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WALSH, Froma. Morte na família: sobrevivendo as perdas.

Porto Alegre:
Artmed, 1998.

Sumário

1. A PERDA E A FAMILIA: UMA PERSPECTIVA SISTEMICA........................27

Froma Walsh e Monica McGoldrick

2 UM TEMPO PARA CHORAR: A MORTE E O CICLO DE VIDA


FAMILIAR.....................................................................................................................56

Monica McGoidrick e Frorna Walsh

3 ECOS DO PASSADO: AJUDANDO AS FAMÍLIAS A FAZEREM O LUTO DE


SUAS PERDAS............................................................................................................. 76

4. A REAÇÃO DA FAMÍLIA À MORTE ...............................................................105

Murray Bowen

5. O LUTO OPERACIONAL E SEU PAPEL NA TERAPIA FAMILIAR CONJUNTA


................................................................................................................118

Norman L. Paul e George H. Grosser

6. O LEGADO DA PERDA .......................................................................................129

Monica McGoldrick

7. OS ROTEIROS FAMILIARES E A PERDA ........................................................153

John Byng-Hall

8. AJUDANDO FAMÍLIAS COM PERDAS ANTECIPADAS............................. 166

John S. Rolland

9. A PERDA AMBÍGUA ...........................................................................................187


Pauline Boss

10. O LUTO EM DIFERENTES CULTURAS.........................................................199

Monica McGoldrick, Rhea Almeida, Paulette Moore Hines, Elliott Rosen, Nydia Garcia
Preto e Evellyn Lee

11. OS RITUAIS E O PROCESSO DE ELABORAÇÃO.......................................229

Evan Imber-Black

12. NOVAS E ESTRANHAS FORMAS DE ABORDAR A CULPA.....................246

David Epston

13. SUICÍDIO DE ADOLESCENTES: A PERDA DA RECONCILIAÇÃO........263

Steven E . Gutstein

14. PADRÕES INTERGERACIONAIS DE PERDA TRAUMÁTICA:

MORTE E DESESPERO EM FAMÍLIAS DE DROGADICTOS........................ 282

Sandra B. Coleman

15. A MORTE NA FAMÍLIA DO TERAPEUTA ...................................................295

Betty Carter

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................................307

Introdução

O tema da morte é o último tabu no campo da terapia de família. Nossa teoria,


pesquisa e prática confrontararn problemas intimidantes como a esquizofrenia, o abuso
de substâncias, a violência familiar e o incesto, e, ainda assim, raramente abordamos o
tópico da perda. De todas as experiências da vida, a morte impõe os desafios adaptativos
mais dolorosos para a família como sistema e para cada um de seus membros
individualmente, com ressonâncias em todos os seus outros relacionamentos. A negação
da morte em nossa sociedade aumenta esta dificuldade. A sociedade americana lida
muito mal com a morte, negando seu impacto, removendo os moribundos de seus lares
e comunidades e não sendo capaz de ofercer suportes culturais para ajudar as famílias
em seu processo de adaptação à perda. Ao mesmo tempo, os avanços da Medicina cada
vez mais colocam as famílias frente a decisões sem precedentes relativas à vida e à
morte. Apesar disso, o campo da terapia familiar, assim como o da saúde mental e a
sociedade mais ampla na qual estão inseridos, têm dedicado escassa atenção à perda.

Curiosamente, até a publicação deste livro, não havia um único livro sobre o
impacto da morte na família em toda a literatura especializada, ou, de forma mais
ampla, no campo da saúde mental.*(1) Os poucos artigos de orientação sistêmica que
contribuem para nosso entendimento da perda estão espalhados em jornais e textos com
múltiplos tópicos, não sendo vistos nem integrados pela maior parte dos estudantes e
profissionais de terapia familiar. Nas disciplinas de saúde mental e ciências sociais, a
atenção à morte e ao luto carece de uma perspectiva sistêmica, e a família é vista como
um pano de fundo que estimula ou dificulta a recuperação dos indivíduos frente à perda.
Devido a este foco tão estreito no indivíduo que sofre e em sua relação direta com o
membro da família falecido, o impacto familiar da perda deixa de ser investigado,
incluindo os efeitos imediatos e de longo prazo sobre os pais, os filhos,os irmãos, a
família extensa e outros que podem até mesmo não ter conhecido o morto, mas que são
tocados por suas relações com os sobreviventes.

*(1) Enquanto este livro eslava sendo impresso, foi publicado excelente texto de Elliott
Rosen sobre famílias que enfrentam doenças terminais, intitulado families facing death:
family dynamics of terminal illness.

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Além disso, a teoria e a prática têm se fundamentado em premissas suposições


não comprovadas a respeito do luto “normal”, em contraste com o “anormal”,
patologizando as experiências que não se encaixam nos padrões do primeiro. É
necessário que reconheçamos a importância dos processos familiares na mediação do
impacto da perda, na promoção do controle e do crescimento ou na contribuição para a
disfunção. Este entendimento requer a valorização da diversidade nas respostas
individuais, familiares e culturais à perda.

Além disso, a teoria e a pesquisa sobre o desenvolvimento têm se concentrado


predominantemente nas conseqüências da perda dos pais na infância (principalmente a
da mãe, havendo uma tendência a ignorar a perda do pai). A perda de um dos pais ou de
um irmão na vida de um adulto jovem permanece particularmente inexplorada.
Precisamos examinar o impacto diferencial da perda nos vários estágios do ciclo de vida
da família, para membros em diversos papéis e relacionamentos e para a família como
unidade funcional.

Embora a teoria dos sístemas familiares tenha introduzido um novo paradigma


para o entendimento da rede de relações na família, o impacto sistêmico da perda
permaneceu em grande parte inexplorado. Com a ascendência dos modelos estruturais e
estratégicos de terapia familiar, a atenção passou a concentrar-se nos processos
transacionais do “aqui e agora”, e nas “co-construções da realidade”. O fato inescapável
da morte, as relações com os membros mortos ou moribundos e suas ressonâncias
através do sistema como um todo ficaram de fora do quadro das investigações e
observações. Jay Haley expressou-se sucintamente: “Eu não acredito em fantasmas”.
Mesmo quando a importância de uma morte específica é notada, nossa teoria carece de
um referencial para compreender o impacto devastador que certas perdas podem ter nos
processos familiares, e confere pouco sentido aos problemas que podem surgir pela
incapacidade de uma família de fazer o luto de suas perdas.

Somente uns poucos pioneiros da terapia familiar abordaram o impacto familiar


da perda. Há 25 anos, Norman Paul descreveu pela primeira vez os efeitos do luto nao
resolvido sobre os outros relacionamentos, especialmente na disfiinção conjugal.
Murray Bowen, aproximadamente na mesma época, chamou a atenção para o impacto
perturbador da morte ou da ameaça de perda no equilíbrio funcional de uma família,
descrevendo a onda de choque emocional que reverbera por todo o sistema familiar por
muito tempo após a perda de um membro importante.

Nosso interesse no tema da perda e o desenvolvimento deste livro caminham


paralelamente ao crescimento de nossa relação como amigas e colegas por mais de 20
anos. No início dos anos 70, envolvidas em projetos separados de pesquisa familiar em
diferentes partes do país, compartilhávamos nossos insights e hipóteses a respeito dos
padrões intergeracionais de luto não resolvido que observávamos no trabalho com
famílias de pacientes esquizofrênicos, com outros distúrbios graves e com famílias de
filhos normais. Ao longo dos anos, influenciadas pelas idéias seminais de Paul e Bowen
sobre a perda e pelos trabalhos de muitos dos que contribuíram para este livro,
continuamos a discutir nossos casos clínicos e de pesquisa, assim como a avançar
nossas próprias formulações e intervenções sistêmicas.

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Recentemente, tem ocorrido um grande número de progressos na teoria, na


pesquisa e na prática clínica em torno da perda nas famílias, mas com pouco contato
entre os inovadores. Para reunir os líderes de nosso campo para uma troca frutífera, nós,
juntamente com Norman Paul, organizamos um Colóquio Internacional sobre a Perda e
a Família em julho de 1988, em Ballymaloe, na Irlanda. Foi uma reunião
excepcionalmente estimulante. Entre muitas apresentações de especialistas, nós (Monica
e Froma) decidimos trazer nosso diálogo para um nível mais pessoal. Em vez de
apresentarmos nossos trabalhos, decidimos usar nosso tempo para explorarmos nossa
própria mortalidade. Pedimos aos participantes, organizados em pequenos grupos, para
se concentrarem no seguinte: explorem suas fantasias e temores a respeito de suas
próprias mortes. Considerem as seguintes perguntas: Quanto tempo você espera viver?
Como você imagina sua morte? Que tipo de ritos funerários você gostaria que fossem
realizados quando você morrer? Que heranças você deixaria? A experiência foi
extraordinariamente significativa. Ao confrontarmos as questões universais da
mortalidade e da perda, a hierarquia e as fronteiras comumente construídas entre o
“especialista” e o “cliente/paciente/ família” se apagaram. Mais do que isso, fomos
todos tocados pelo poder dos legados de perda em nossas próprias famílias e ambientes
culturais, e pela relevância de diferentes questões, dependendo de nossos estágios no
ciclo de vida familiar.
A Conferência internacional sobre a Perda galvanizou nosso interesse comum no
desenvolvimento de um livro a respeito da perda desde uma perspectiva sistêmica.
Como a conferência, a idéia deste livro foi gerada por um ímpeto de reunir os melhores
trabalhos na área da perda e famílias, incluindo artigos clássicos de Paul e Bowen
publicados há muito tempo, e trabalhos novos que representam o que há de mais
inovador no desenvolvimento da teoria, na pesquisa e na prática clínica. Embora quase
todos os autores deste livro tenham apresentado seus textos na Conferência
Internacional da Irlanda, ele não é uma compilação dos trabalhos do congresso ou de
seus desdobramentos, os quais teriam produzido um tomo volumoso. Tentamos
selecionar as idéias sistêmicas mais importantes e os esforços de pesquisa mais
relevantes para a prática clínica.
Este livro é o primeiro a examinar o impacto da perda sobre o sistema familiar e
a considerar tanto os processos normativos como os disfuncionais em relação a cada
passagem no ciclo da vida das famílias e a seu contexto cultural. Embora muito já tenha
sido escrito sobre a perda com um foco individual ou dual, os textos desta obra
examinam a perda enquanto um fenômeno familiar multifacetado — propagando-se por
todo o âmbito familiar e transmitindo-se para a próxima geração.
Os capítulos deste livro, embora abordem aspectos diferentes da perda, tem em
comum uma perspectiva sistêmica, com certas premissas básicas. A família vivencia e
reage à perda como um sistema de relações, no qual todos os membros participam de
interações mutuamente reforçadoras. A perda tem
XXII
implicações para como a família vai se adaptar a experiências posteriores e para
indivíduos não diretamente relacionados ao membro que morreu. Os padrões postos em
ação quando da morte de um membro da família têm tanto um impacto imediato como
ramificações a longo prazo no desenvolvimento familiar, no curso do ciclo de vida e por
muitas gerações.
Nosso interesse no impacto familiar da perda reflete uma perspectiva evolutiva
multigeracional. Mais do que entender os eventos que cercam uma morte como causas
patológicas de distúrbios, nós os vemos como transições normativas no ciclo de vida
familiar, que carregam um potencial de crescimento e desenvolvimento, bem como de
perturbações momentâneas ou disfunções a longo prazo. Entendemos que a resposta
familiar à perda é tão crítica na adaptação quanto à morte. As famílias influenciam o
modo como o evento é vivenciado e seus reflexos a longo prazo. Concentrando-se nos
processos familiares, os clínicos podem promover uma adaptação saudável à perda e
fortalecer a unidade familiar para enfrentar os outros desafios da vida. Tendo em
comum uma perspectiva multigeracional da perda, tomamos o cuidado de dedicar
atenção aos legados das perdas passadas no sistema familiar em todas as avaliações e
intervenções clínicas. Igualmente importante é o fato de nossa consideração da perda
levar em conta a diversidade cultural nos processos de luto.
Neste livro, os autores trazem áreas especiais de conhecimento e uma variedade
de abordagens de intervenção para lidar com diversas questões relevantes para os
profissionais, tais como o suicídio de adolescentes, as heranças intergeracionais e a
morte na família do terapeuta. A perda de um filho, de um dos pais, de um cônjuge e de
um irmão é explorada. Diretrizes e técnicas clínicas úteis são oferecidas para a avaliação
e intervenção com famílias que antecipam uma perda, para aquelas recentemente
enlutadas e para membros de famílias que vivenciam complicações de longo prazo.
Nos capítulos 1 e 2, Froma Walsh e Monica McGoldrick apresentam uma
orientação sistêmica e uma perspectiva do ciclo de vida sobre a perda. No capítulo 3,
Monica McGoldrick elabora diretrizes para a avaliação e a intervenção clínicas
produzidas a partir deste referencial em seu trabalho com a perda. Os capítulos 4 e 5
apresentam as idéias fundamentais de Murray Bowen e Norman Paul em seus agora
clássicos artigos iniciais. No texto seguinte, Monica McGoldrick oferece uma
explicação fascinante dos legados multigeracionais da perda em diversas famílias
proeminentes. A seguir, John Byng-Hall, cujo persistente trabalho sobre os processos de
transmissão intergeracional foi de grande interesse para nós duas, propicia um rico
exemplo de seu trabalho clínico sobre os roteiros familiares e a perda. Também
influenciado pelo conceito de roteiros em seu trabalho a respeito dos sistemas de
crenças das famílias, John Rolland contribui com um texto sobre o tópico negligenciado
da perda antecipatória, baseado em seu modelo evolutivo dos sistemas familiares com
doenças crônicas e fatais. Intimamente relacionada a isto está a situação de perda
ambígua, descrita no artigo seguinte por Pauline Boss, cujas pesquisas representam um
marco no delineamento dos efeitos prejudiciais da ambigüidade que cerca a perda no
funcionamento familiar e o controle das experiências de perda.
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O importante tema da diversidade cultural do luto requer muitas perspectivas.
Monica e suas colegas Nydia Garcia-Preto, Paulette Moore Hines, Evelyn Lee, Rhea
Almeida, juntamente com Elliott Rosen, resumem seu trabalho sobre as diferenças
culturais nas crenças a respeito da perda e nas práticas de luto. A seguir, Evan Imber-
Black aplica suas ricas idéias sobre a importância dos rituais que marcam as transições
familiares para os problemas específicos da perda. Depois. David Epston, que trabalha
em freqüente colaboração com Michael White, nos estimula com suas intervenções
inovadoras sobre a perda a partir de sua perspectiva comum de recriação das narrativas
familiares.
Steven Gutstein oferece uma abordagem criativa e efetiva da rede familiar no
suicídio de adolescentes, um tema no qual tem trabalhado por muitos anos. O capítulo
de Sandra Coleman apresenta uma perspectiva de suas importantes pesquisas, em
conjunto com vários colegas ao longo dos anos, que investigam os padrões
intergeracionais traumáticos de perda em famílias de usuários de substâncias e sua
ligação com o comportamento autodestrutivo da adição. Finalmente, guardamos para o
final um maravilhoso texto de Betty Carter, apresentado em um Simpósio de
Georgetown há muitos anos, que relata seus esforços para lidar com questões de sua
família de origem em torno da morte iminente de seu pai.
Este livro pretende proporcionar um texto útil para profissionais que trabalham
com membros de famílias lidando com a ameaça da perda, com as conseqüências
imediatas de uma morte e com os efeitos a longo prazo de uma perda passada. A
perspectiva e as intervenções familiares sistêmicas com a perda devem se mostrar
valiosas na formação e na prática de uma grande gama de profissionais, incluindo (1)
terapeutas de família, assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras; (2) médicos de
família, enfermeiras e outros profissionais de saúde que trabalham em hospitais, asilos e
ambulatórios; (3) religiosos, conselheiros pastorais e pessoal de casas funerárias. Ele
também vai servir apropriadamente como um texto básico para cursos universitários que
abordem a morte, o morrer e o impacto da perda.
Existem sinais de que nossa sociedade e nosso campo de atuação estão
começando a confrontar questões familiares cruciais a respeito da morte e da perda. Este
livro não é apenas oportuno; a investigação destas questões já é devida há muito tempo.
O medo da morte é o nosso terror mais profundo, e a morte de um ente querido é nossa
tristeza mais profunda. Devemos desafiar o tabu que silenciou o campo da terapia de
família e os outros profissionais em torno do tema da morte, obscurecendo nosso
reconhecimento das questões da perda e bloqueando nossa comunicação com as
famílias e nossa capacidade de ajudá-las. Esperamos que este livro sirva para quebrar
este último tabu.
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1. A Perda e a Família: Uma Perspectiva Sistêmica
FROMA WALSH e MONICA MCGOLDRICK
Por toda a história e em todas as culturas, os rituais de luto facilitaram não
apenas a integração da morte, mas também as transformações dos sobreviventes. Cada
cultura, a seu modo, oferece assistência à comunidade dos sobreviventes para que sigam
adiante com suas vidas. Em Hong Kong, quando as pessoas deixam um funeral chinês,
elas recebem um envelope contendo três itens: um pedaço de pano branco, para secar as
lágrimas; uma bala, para lembrá-las da doçura da vida e para ser dividida com outros
sobreviventes; e uma moeda, como símbolo do antigo costume de reembolsar parentes e
amigos pela viagem para o funeral, para que eles não sofressem ainda mais perdas.
A partir de uma perspectiva familiar sistêmica, a perda pode ser vista como um
processo transacional que envolve o morto e os sobreviventes em um ciclo de vida
comum, que reconhece tanto a finalidade da morte como a continuidade da vida. Atingir
o equilíbrio neste processo é a tarefa mais difícil que uma família deve enfrentar em sua
vida. Este capítulo vai apresentar uma visão sistêmica da perda, considerando o impacto
da morte de uma pessoa sobre a família enquanto unidade funcional, com ressonâncias
imediatas e de longo prazo para cada um de seus membros e para todos os
relacionamentos. Embora reconheçamos a diversidade das respostas culturais,
individuais e familiares à perda (ver McGoldrick, Almeida, Hines, Preto, Rosen & Lee,
capítulo 10), consideramos os processos familiares como determinantes cruciais da
adaptação saudável ou disfuncional à perda. Vamos identificar as principais tarefas
familiares que, em nossa experiência, promovem o processo de elaboração da perda e
retomada da vida. Vamos examinar variáveis cruciais que podem tanto facilitar a
adaptação ou complicar o processo e contribuir para disfunções imediatas ou a longo
prazo. Estes fatores dizem respeito à forma da morte, à família e à rede social, ao
momento da perda no ciclo da vida familiar e ao contexto sociocultural da perda.
Nas sociedades ocidentais antes do presente século, as pessoas morriam em casa
e mesmo as crianças não eram protegidas da visão e dos cheiros da morte.
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Como ainda prevalece nas comunidades pobres do mundo todo, as famílias
tinham que lidar com a precariedade da vida, com a morte que atingia tanto os jovens
quanto os idosos. Com as altas taxas de mortalidade para bebês, crianças e mulheres
durante o parto, juntamente com uma expectativa de vida muito mais baixa (em média
47 anos em 1900, nos EUA), era raro crescer sem vivenciar uma morte na família
imediata. A morte de um dos pais muitas vezes desfazia as famílias nucleares e as
reorganizava de outras formas, produzindo redes complexas de relações completas, de
meio parentesco e de parentesco não-sangüíneo, além de vastos sistemas de parentesco
extensos (Scott & Wishy, 1982).
Portanto, a nostálgica imagem americana da família normal como intacta é um
mito (Walsh, 1983a); nossa negação da morte contribui para sua manutenção. Em nosso
tempo, passamos a esconder a morte, tornando o processo de adaptação à perda ainda
mais difícil. Em contraste com as culturas tradicionais, nossa sociedade carece de
suportes culturais para ajudar as famílias a integrarem o fato da morte à vida que
continua (Aries, 1974, 1982; Becker, 1973; Mitford, 1978). As distâncias geográficas
separam os membros das famílias nos momentos de morte e de morrer. A prática e a
tecnologia médica complicaram o processo, removendo a morte da realidade cotidiana,
ao mesmo tempo em que confrontam as famílias com decisões sem precedentes
relativas a prolongar ou terminar a vida. Mais recentemente, as famílias começaram a se
organizar em esforços para resgatar para si o processo do morrer.
A morte, obviamente, não é a única perda. A separação conjugal ou o divórcio, a
troca de emprego ou casa, a diminuição do funcionamento em decorrência de uma
doença crônica ou o nascimento de um filho deficiente também envolvem perdas,
inclusive as de nossos sonhos e expectativas. Qualquer mudança em nossas vidas,
incluindo aquelas desejadas, como o casamento ou a aposentadoria, requer uma perda.
Levemos desistir ou alterar certas relações, papéis, planos e possibilidades para termos
outras. E todas as perdas requerem um luto, que reconheça a desistência e transforme a
experiência, para que possamos internalizar o que é essencial e seguir em frente.
Qualquer que seja a forma e as circunstâncias, o luto deve ser experimentado.
Investigações recentes feitas por Wortman e Silver (1989) e sua análise de um amplo
campo de pesquisas confirmam que as respostas de luto variam enormemente. Ao
mesmo tempo, estudos epidemiológicos descobriram que a morte de um membro da
família aumenta a vulnerabilidade à doença e à morte prematura dos membros
sobreviventes da família (Osterweis, Solomon & Green, 1984), em especial para
cônjuges viúvos ou pais que perderam um filho recentemente (Huygen, van de Hoogen,
van Eijk & Smits, 1989). Além disso, as crises evolutivas da família foram ligadas ao
aparecimento de sintomas em um de seus membros (Hadley, Jacob, Mliones, Caplan &
Spitz, 1974). Em vista das profundas conexões entre OS membros de uma família, não é
surpreendente que o ajustamento à perda por morte seja considerado mais difícil do que
qualquer outra mudança na vida (Holmes & Rahe, 1967).
Contudo, em nossa revisão da vasta literatura clínica e de pesquisa a respeito da
perda, impressionou-nos a negligência com o foco familiar. Houve
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contribuições importantes para nosso entendimento do processo de morrer (Kübler-


Ross, 1969; Worden, 1982), e esforços para distinguir entre o luto “normal” e o
patológico nos sobreviventes individuais, desde o tratado de Freud sobre o luto e a
melancolia (1917) até os inovadores estudos de I3ecker (1973), Bowlby (1961, 1980),
Engel (1961, 1975), Glick, Weiss e Parkes (1974), Lindemann (1944), Parkes (1972,
1975) e Pollock (1961). Entretanto, particularmente nas contribuições com uma
perspectiva psicanalítica, a consideração da família ficou estreitamente limitada à
relação dual entre um indivíduo sintomático e o parente morto (por exemplo, Pinkus,
1974; Schiff, 1977; Viorst, 1986). No melhor dos casos, é observada a reação de outros,
solidários ou não, à experiência desta pessoa enlutada (por exemplo, Wortman & Silver,
1989). Supõe-se que os membros assintomáticos da família estejam se ajustando
normalmente, sem uma avaliação do sistema de interação. Além disso, a teoria e a
pesquisa sobre o desenvolvimento, concentradas predominantemente nos efeitos da
perda dos pais na infância para o desenvolvimento individual (por exemplo, Furman,
1974), negligenciaram o impacto da perda nos diferentes estágios do ciclo de vida
familiar, para vários membros e para a família como uma unidade funcional (ver
McGoldrick & Walsh, capítulo 2).
De modo geral, o campo da saúde mental falhou em apreciar o impacto da perda
sobre a família como um sistema de interação. Uma resposta individual que pude ser
funcional — ou disfuncional — para uma pessoa tem conseqüências para os outros
membros da família e relacionamentos que só podem ser apreciadas através de um
exame do sistema. Uma atenção insuficiente tem sido dada aos efeitos imediatos e de
longo prazo para os irmãos, pais, filhos e para a família extensa. Os legados da perda
encontram expressão em padrões continuados de interação e influência mútuas entre os
sobreviventes e entre as gerações (ver McGoldrick, capítulo 6). A dor da morte toca
todas as relações dos sobreviventes com os outros, alguns dos quais podem nem mesmo
ter conhecido a pessoa que morreu.
UMA PERSPECTIVA SISTÊMICA DA PERDA
É notável que em toda a literatura do campo da terapia de família não haja um
único livro sobre a perda. Embora a teoria dos sistemas familiares tenha introduzido um
novo paradigma para o entendimento das relações familiares, o significado particular da
perda foi abordado por apenas alguns teóricos sistêmicos, mais notavelmente Murray
Bowen e Norman Paul. Em seu clássico trabalho de 1976 (capítulo 4 deste volume),
Bowen afirmou de forma ousada sua posição sobre o papel da morte nas famílias, um
tema sobre o qual ele já pensava há 30 anos:
O pensamento direto a respeito da morte, ou o pensamento indireto a respeito de
manter-se vivo e evitar a morte, ocupa mais do tempo do homem do que qualquer outro
tema O principal entre todos os temas tabus é a morte. Uma grande porcentagem das
pessoas morre só, presa em seus próprios pensamentos,
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que não podem comunicar para os outros. Existem aí pelo menos dois processos em
operação. Um é o processo intrapsíquico do self, o qual sempre envolve alguma
negação da morte. O outro é o sistema fechado de relações: as pessoas não podem
comunicar os pensamentos que têm, para não incomodarem a família ou os outros.
Bowen descreveu o impacto perturbador da morte ou da ameaça de perda sobre
o equilíbrio funcional de uma família, entendendo a intensidade da reação emocional
enquanto governada pelo nível de integração emocional da família no momento da
perda e pela importância funcional do membro perdido. Uma família mais integrada
pode mostrar mais reações explícitas no momento, mas se adaptar rapidamente, em
contraste com uma família menos integrada, que pode demonstrar pouca reação
imediata mas responder posteriormente com problemas físicos ou emocionais. Bowen
descreveu a onda de choque emocional que pode reverberar por todo o sistema familiar
muito depois da perda de um membro importante da família:
[Uma] rede de “tremores secundários subterrâneos” pode ocorrer em qualquer
ponto do sistema familiar extenso nos meses ou anos que seguem a eventos emocionais
sérios em urna família. Ela ocorre mais freqüentemente após a morte ou a ameaça de
morte de um membro significativo da família, mas pode ocorrer após outros tipos de
perda. Ela não está diretamente relacionada às reações usuais de sofrimento ou luto das
pessoas próximas àquela que morreu. Ela opera em uma rede subterrânea de
dependência emocional entre os membros da família. A dependência emocional é
negada, os eventos sérios aparentam não ser relacionados, a família procura camuflar
qualquer conexão entre os eventos e há uma vigorosa reação de negação emocional, na
qual ninguém tenta relacionar os eventos entre si.
Bowen sustentava que o conhecimento da onda de choque oferece informações
vitais para a terapia, sem as quais a seqüência de eventos pode ser tratada como
desconectada. Da mesma forma, ele considerava essencial avaliar a configuração
familiar total, a posição de funcionamento do membro morto ou prestes a morrer e o
nível geral de adaptação da família à vida, para ajudar seus membros antes ou após uma
morte.
Normal Paul foi o outro pioneiro da terapia de família a reconhecer o impacto
profundo da perda nas famílias (Paul, 1967, 1980; Paul & Grosser, 1965; ver capítulo
5). Paul descobriu que, independentemente da aversão à morte e ao sofrimento, sua
força será expressa de qualquer maneira. O sofrimento pela perda de um pai, irmão por
outro membro importante da família, quando não é reconhecido e não recebe a devida
atenção, pode precipitar a rejeição do cônjuge ou de um filho. Isto pode ocorrer logo
após ou muito tempo depois da perda, como quando uma criança alcança a idade que o
pai tinha no momento em que ela ocorreu. Em alguns casos, o trauma do sofrimento
pode bloquear a intimidade ou interferir no comportamento sexual, sob a forma de
retração ou disfunção sexual, casos extraconjugais ou mesmo envolvimento
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incestuoso (Paul & Paul, 1982, 1989). Ele vê a tarefa terapêutica como a de trazer o
sofrimento abortado à tona, para que ele possa ser elaborado como parte da experiência
normal de vida da família. Com Betty Paul, sua valiosa colaboradora, Norman Paul
devotou sua carreira clinica ao desenvolvimento de formas de confrontar o luto não
reconhecido e lidar com seus efeitos nos relacionamentos subseqüentes. Suas maiores
inovações foram com as confrontações e replay com fitas de áudio e vídeo, e com
projeções justapostas da imagem de um cliente com uma foto de um pai morto. Em
confrontações cruzadas, gravações de experiências de terapia com alta carga emocional
de outras famílias proporcionam uma sanção para que as famílias considerem e
compartilhem seus próprios sentimentos inacessíveis ou inaceitáveis de perda. Outros
estímulos estressores, como poemas, cartas, clips de filmes ou literatura, podem ser
usados para trazer os sentimentos dolorosos para a superfície (Paul, 1976; Paul & Paul,
1982, 1989). Tanto Bowen quanto Paul, em abordagens terapêuticas diferentes,
enfatizaram a importância de aceitar a perda e modificar os padrões associados a ela.
A despeito destes avanços inovadores, houve poucas contribuições para a
literatura familiar com uma visão sistêmica da perda. Herz (1980, 1989) ampliou as
idéias de Bowen, discutindo fatores-chave para a adaptação familiar. Nós mesmas
articulamos uma perspectiva sistêmica da história e da perda (McGoldrick & Walsh,
1983), bem como os padrões normativos e as complicações da morte em diferentes fases
do ciclo da vida (Walsh & McGoldrick, 1987; ver capítulo 2). Contudo, poucos
pesquisadores trouxeram uma perspectiva sistêmica para o estudo da morte e da perda,
especialmente Coleman e Stanton sobre o luto não resolvido em famílias de usuários de
drogas (Coleman & Stanton, 1978; Stanton, 1977; ver Coleman, capítulo 14). Apenas
uns poucos trabalhos clínicos em publicações sobre a família abordaram as ramificações
sistêmicas da perda, notadamente os artigos de Welldon (1971), Howe e Robinson
(1975), Wihiamson (1978), Reily (1978), Hare-Mustin (1979) e Kuhn (1981). Um livro
útil para famílias que enfrentam uma morte iminente acaba de ser publicado por Rosen
(1990).
Em nossa visão, a desatenção da terapia familiar à perda anda de mãos dadas
com a negação da morte em nossa cultura (Becker, 1973; McGoldrick & Walsh, [983).
Ambas são problemáticas para as famílias que lidam com uma perda. Como nossa
sociedade trata o sofrimento como um assunto particular, os clínicos, assim como os
outros de fora da família, tendem a evitar fazer perguntas a respeito do impacto da
perda, reforçando a “comunidade invisível dos enlutados” (Rosaldo, 1989). Paul
comentou sobre a relutância dos terapeutas, bem como a dos clientes, em confrontarem
o tópico da perda:
De todos os diferentes tópicos considerados representativos dos processos
familiares normais, aquele que é vivenciado como o menos normal e o mais anormal é o
processo de luto. O problema aqui é que ele é geralmente considerado normal na
literatura, mas encontra resistência consciente e inconsciente quando realmente ocorre
em uma pessoa. O principal paradoxo é que, embora exista
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uma constante sombra de morte na vida de todos, todos estão alimentando a idéia de sua
própria imortalidade. (Paul & Paul, 1982, p. 229)
Paul adverte que a aversão de um clínico à morte e ao sofrimento pode
prejudicar sua capacidade de diagnosticar e tratar um problema sistêmico familiar
corretamente enquanto ligado ao luto, resultando em uma concentração pouco útil em
sintomas secundários.
A negligência da perda na terapia de família foi aumentada pela cisão que
ocorreu no desenvolvimento do campo a respeito da importância relativa do indivíduo
versus o sistema familiar, do “conteúdo” versus o “processo”, e da história versus o
aqui-e-agora para o entendimento e o tratamento das disfunções familiares (Madanes &
Haley, [977). Com a mudança paradigmática para uma orientação sistêmica, o foco
sobre o indivíduo, as questões de conteúdo e as influências do passado passou a ser
considerado por muitos como não-sistêmico e associado a modelos tradicionais de
psicoterapia mais reducionistas (Fisch, Weakland & Segel, 1982). A medida que os
terapeutas estratégicos e estruturais deslocaram seu foco para os padrões
organizacionais e processos de comunicação da família que podiam ser observados na
interação corrente, as questões de perda foram consideradas insignificantes para o
entendimento da manutenção do problema e irrelevantes para a mudança do sistema. A
perda era repudiada Como sendo “meramente” urra questão de conteúdo, envolvendo
sentimentos e reações intrapessoais a eventos, particularmente no passado; por isso, era
relegada ao domínio da psicanálise. Mais recentemente, os teóricos construtivistas
desvalorizaram ainda mais o significado dos eventos vitais (presumivelmente incluindo
a morte) argumentando que a realidade nunca pode ser conhecida, que todas as
experiências são co-construídas subjetiva- mente e que, portanto, qualquer tentativa de
“descobrir” ocorrências factuais é equivocada e irrelevante para as visões atuais (ver
Hoffman, 1990).
Infelizmente, estas falsas polarizações impediram muitos de apreciar a
importância crítica da perda para as famílias e para a terapia de família. Quando a
avaliação e a intervenção clínicas estão limitadas aos padrões transacionais existentes
entre os membros presentes em uma entrevista ou que vivem sob o mesmo teto num
dado momento, as relações que foram perdidas (passado) ou as ameaças de perda
(futuro) permanecem fora de consideração, embora possam ter uma influência direta nas
perturbações atuais da família. A perda não é simplesmente um evento discreto; ao
contrário, ela envolve um processo transacional ao longo do tempo, com a abordagem
da morte em suas conseqüências. A perturbação individual após uma perda não se deve
somente ao sofrimento, mas também é resultado de mudanças no realinhamento do
campo emocional da família (Kuhn, 1981). A perda modifica a estrutura familiar e
geralmente requer a reorganização do sistema como um todo. Talvez o mais importante,
o sentido de uma morte específica e das respostas individuais a ela sejam moldados pelo
sistema de crenças da família, o qual, por sua vez, é modificado por todas as
experiências de perda (Reiss & Oliveri, 1980). Se quisermos apreciar a diversidade e a
complexidade dos processos de perda, precisamos atentar para o interjogo dos
indivíduos em seus contextos familiar e social;
32
para o processo (‘ o conteúdo, para a história, bem como para o aqui-e-agora e para as
circunstâncias factuais de uma morte bem como para seu significado para a família.
Para ajudar as famílias frente à perda, os terapeutas devem reavaliar a história
familiar, substituindo as premissas deterministas de causalidade por uma perspectiva
evolucionista. Assim como o contexto social, o contexto temporal oferece uma matriz
de sentidos na qual se insere todo o comportamento. Embora uma família não possa
mudar seu passado, as mudanças no presente e no futuro ocorrem em relação a ele. De
fato, como comentou Hoffman (1981),
Um problema pode permanecer congelado até que os padrões ligados ao seu
estabelecimento original sejam modificados. O uso de Bowen da história sugere
enfaticamente que não é o revisitar do passado, mas o refazer do presente, o que conta.
(p. 249)
Nós propomos que as famílias precisam estar em equilíbrio ou em harmonia com
seu passado, não em uma luta para recapturá-lo, escapar dele ou esquecê-lo. Vemos a
terapia como um auxílio às famílias para que recuperem seu senso de continuidade e
movimento desde o passado em direção ao futuro.
Elas podem fazer isso modificando as crenças inseridas em suas visões do
passado que as impedem de progredir. Ajudá-las a reconstruir sua história e colocar suas
perdas em uma perspectiva mais funcional é uma parte essencial para ajudá-las a mudar
suas relações com o passado e o futuro.
ADAPTAÇÃO FAMILIAR À PERDA
O modelo do ciclo de vida familiar de Carter e McGoldrick (1989) oferece um
referencial que leva em consideração as influências recíprocas de diversas gerações à
medida que elas avançam no tempo e se aproximam e reagem à perda (ver McGoldrick
& Walsh, capítulo 2). A morte traz desafios adaptativos comuns, exigindo uma
reorganização imediata e a longo prazo e mudanças nas definições de identidade e
objetivos da família. A capacidade de aceitar a perda está no âmago de todas as
habilidades dos sistemas familiares saudáveis, em contraste com as famílias
severamente disfuncionais, que demonstram padrões de má adaptação ao lidarem com
perdas inevitáveis, unindo-se na fantasia e na negação para desfocar a realidade e
insistir na atemporalidade e na perpetuação de laços nunca desfeitos (Lewis, Beavers,
Gossett & Phillips, 1976).
Adaptação não significa resolução, no sentido de uma aceitação completa e
definitiva da perda. Ao contrário, ela envolve a descoberta de maneiras de colocar a
perda em perspectiva e seguir em frente com a vida. A festejada noção psicanalítica de
elaborar a perda para alcançar uma resolução completa não se aplica à experiência da
maioria dos indivíduos e de suas famílias (Wortman & Silver, 1989). A adaptação não
tem uma escala ou seqüência fixa, bem como perdas traumáticas ou significativas
podem nunca ser totalmente resolvidas. Os múltiplos sentidos de qualquer morte são
transformados durante todo o
33
ciclo de vida, à medida que são vivenciados e integrados com as experiências vitais,
incluindo, obviamente, outras perdas.
As Tarefas Adaptativas da Família
Embora seja um equívoco impor expectativas ou estágios, seqüências ou escalas
fixas a processos tão complexos como o luto, dada a diversidade dos estilos familiares e
individuais de enfrentamento, acreditamos que existem tarefas adaptativas cruciais, as
quais, se não forem realizadas, deixam as famílias vulneráveis à disfunção. Baseadas em
pesquisas e experiência clinica, podemos identificar duas tarefas familiares principais
que tendem a promover a adaptação imediata e a longo prazo para os membros das
famílias e a fortalecer a família enquanto unidade funcional.
1. O reconhecimento compartilhado da realidade da morte e a experiência
comum de perda. Todos os membros da família, a seu próprio modo, devem confrontar
a realidade de uma morte que a atinge. Bowen (capítulo 4) chama nossa atenção para a
importância do contato com a realidade da morte e, em particular, para a inclusão das
crianças:
Eu incentivo os membros da família a visitarem os que estão morrendo sempre
que possível, e a encontrarem algum modo de incluir as crianças, se a situação permitir.
Nunca vi uma criança ferida pela exposição à morte. Elas são “feridas” apenas pela
ansiedade dos sobreviventes. As tentativas bem intencionadas de proteger as crianças ou
os membros “vulneráveis” da perturbação potencial de participar destes eventos as
isolam da experiência e dos riscos comuns, dificultando seu processo de luto.
O reconhecimento da perda é facilitado pela informação clara e pela
comunicação aberta sobre os fatos e circunstâncias da morte. A incapacidade de aceitar
a realidade da morte pode levar um membro da família a evitar o contato com os outros
ou ter raiva daqueles que estão progredindo em seu processo de luto. Antigos conflitos e
rompimentos entre irmãos podem freqüentemente; ser remontados ao leito de morte de
um dos pais, ou ao seu túmulo.
Os rituais funerários (Imber-Black, capítulo 11) e as visitas ao túmulo (Williamson,
l978) têm uma função vital ao proporcionarem uma confrontação direta com a realidade
da morte e uma oportunidade de prestar uma última homenagem, compartilhar o
sofrimento e receber conforto da rede de apoio; dos sobreviventes. Compartilhar a
experiência da perda, seja de que modo for, é crucial para a boa adaptação da família. O
seguinte exemplo sublinha o valor que tem para todos a inclusão de um membro
vulnerável da família no processo de luto:
Sam Marcus, de 74 anos, estava confinado em uma casa geriátrica há 5 anos,
após sofrer danos cerebrais severos ao ser atropelado por um carro. Sua mulher
34
e suas filhas tinham se ajustado, com o tempo, à perda do marido e pai que tinham
conhecido, e conseguiram gradualmente lidar com suas profundas mudanças de
personalidade, ocasionais explosões violentas e, o mais doloroso para elas, sua recente
incapacidade de reconhecê-las. Antecipando sua maior degeneração e morte, as filhas
foram tomadas de surpresa quando a mãe, embora aparentasse boa saúde, morreu
repentinamente. As irmãs queriam muito que o pai participasse do funeral, embora os
médicos se recusassem a liberá-lo, temendo um comportamento perturbador, e
insistissem que ele não compreendia que a esposa tinha morrido e somente ficaria
confuso com a experiência. Para incluí-lo, as irmãs decidiram realizar o velório na casa
geriátrica (para o desagrado do agente funerário, que dobrou o preço pela
inconveniência). Quando o pai foi trazido na cadeira de rodas, elas sentaram ao seu
lado, embora ele não desse nenhum sinal de reconhecê-las. Quando as irmãs se
levantaram e falaram sobre a morte e a vida de sua mãe, as lágrimas correram pelo rosto
do pai. Depois, eles ficaram sentados juntos em silêncio, de mãos dadas.
A comunicação entre a família é vital no curso do processo de perda. Embora
tendo em mente que os indivíduos, as famílias e as culturas variam no grau em que a
expressão aberta dos sentimentos é valorizada ou funcional, existem fortes evidências
de pesquisa sobre o bom funcionamento familiar de que a comunicação clara e direta
facilita a adaptação familiar e fortalece a família como uma rede de apoio para seus
membros (Walsh, 1982). Um clima de confiança, resposta empática e tolerância a
diversas reações é crucial. O processo de luto também envolve tentativas de colocar a
perda em uma perspectiva significativa, que se encaixe coerentemente no resto das
experiências vitais da família e em seu sistema de crenças. Isto requer que se lide com
as implicações negativas da perda, incluindo a perda dos sonhos para o futuro.
As famílias podem vivenciar uma gama de sentimentos, dependendo do sentido
singular do relacionamento e de sua perda para cada membro e das implicações da
morte para a unidade familiar. Fortes emoções podem vir à tona em diferentes
momentos, incluindo sentimentos confusos e ambivalentes de raiva, desapontamento,
desamparo, alívio, culpa e abandono, os quais estão presentes em um certo grau nas
relações familiares. O antropólogo Rosaldo (1989) escreve sobre suas reações à morte
súbita, acidental, de sua esposa, também uma proeminente antropóloga, quando ela
escorregou enquanto eles caminhavam em uma trilha de montanha e caiu em um
precipício íngreme:
Imediatamente após encontrar seu corpo, fiquei enfurecido. Como ela podia me
abandonar? Como ela podia ler sido tão burra de cair? Tentei chorar. Eu soluçava, mas a
raiva bloqueava as lágrimas. Mais tarde, poderosos estados emocionais viscerais
tomaram conta de mim. Experimentei a profunda dor cortante da tristeza, quase além do
suportável, o frio cadavérico de me dar conta da finalidade da morte, o tremor que
começava em meu abdômen e se espalhava pelo corpo, o lamento fúnebre que começou
contra minha vontade, e freqüentes soluços de pranto.
35
Raramente tais emoções são expressas tão diretamente em nossa cultura, onde
compartilhar sentimentos negativos intensos tende a produzir desconforto e
distanciamento nos outros. Além disso, a perda do controle ao vivenciarmos
sentimentos tão avassaladores pode assustar os membros da família e outros, que podem
bloquear a comunicação da experiência.
Quando levamos em consideração as múltiplas, flutuantes e freqüentemente
conflitantes respostas de todos os membros de um sistema familiar, podemos apreciar a
imensa complexidade do processo de luto de qualquer família. E necessária a tolerância
para com as respostas diversas dentro das famílias, e para a possibilidade de que alguns
membros estejam em desacordo com os outros, dadas as diferenças de significado dos
relacionamentos e os estilos de enfrentamento individuais. Quando um cônjuge viúvo é
também o pai de uma criança pequena, a expressão emocional pode ser bloqueada pelas
responsabilidades de ser pai solteiro, com os filhos e os parentes bem intencionados
conspirando para manter o único pai sobrevivente forte e funcionando.
Quando o luto parental é bloqueado, um filho tem mais probabilidade de se
tornar sintomático.
Em famílias nas quais certos sentimentos, pensamentos e lembranças são
proibidos por lealdades familiares ou tabus sociais, o bloqueio da comunicação pode
contribuir para o comportamento sintomático, ou os sentimentos podem ficar ocultos e
reaparecerem em outros contextos, desconectados de sua origem. Quando os
sentimentos são insuportáveis ou inaceitáveis, eles podem ser delegados e expressos de
modo fragmentado por diferentes membros (Reilly, 1978). Um membro pode expressar
toda a raiva pela família, enquanto outro fica em contato apenas com a tristeza; um
demonstra apenas alivio, o outro fica entorpecido. Quando a família é incapaz de tolerar
sentimentos, um membro que expresse o indizível pode virar o bode expiatório ou ser
excluído. Além disso, o choque e a dor de uma perda traumática podem despedaçar a
coesão familiar, deixando os membros isolados e sem apoio em seu sofrimento,
arriscando conseqüências disfuncionais, como no seguinte caso:
A Sra. Campbell buscou a ajuda da clínica psiquiátrica infantil em decorrência
de problemas escolares de sua filha de li anos. A terapeuta descobriu que os problemas
tinham sido identificados pela escola um ano antes, mas haviam piorado no mês
anterior, logo após o filho mais velho, de 18 anos, ter sido a vítima inocente de um
tiroteio entre gangues. O pai começou a beber muito, distanciando-se da família. O
outro filho mais velho, de 17 anos, levou o ódio da família para as ruas, buscando
vingança peio assassinato. Dois outros filhos do meio não demonstraram nenhuma
reação, ficando fora do caminho e comportando-se como “meninos de ouro”. A mãe, em
sua dor, voltou sua atenção para os problemas preexistentes da filha. A terapia familiar
proporcionou um contexto para o trabalho de luto da família, ao mesmo tempo em que
reparou sua fragmentação e promoveu uma rede mais coesa de apoio e cura mútuos. Foi
especialmente importante envolver os irmãos que estavam “bem”, os quais estavam
segurando sua dor e confusão para não sobrecarregarem ou perturbarem ainda mais os
pais. Em uma entrevista de acompanhamento, seis meses depois, a filha
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estava indo bem na escola e a família relatou que a experiência de se reunirem para
compartilhar o sofrimento tinha fortalecido sua capacidade de lidar com outros
problemas.
2. A reorganização do sistema familiar e o reinvestimento em outras relações e
projetos de vida. A morte de um membro da família perturba o equilíbrio familiar e os
padrões estabelecidos de interação. O processo de recuperação envolve um
realinhamento das relações e a redistribuição dos papéis necessários para compensar a
perda e prosseguir com a vida familiar. Promover a coesão e a flexibilidade no sistema
familiar é crucial para sua reestabilização. A convulsão e a desorganização
experimentadas como conseqüência imediata de uma perda podem levar as famílias a
fazerem movimentos precipitados para novas casas ou casamentos. Este novo
deslocamento pode piorar as coisas. Algumas famílias podem tentar se aferrar
rigidamente a antigos padrões, que não são mais funcionais, para minimizar a sensação
de perda e perturbação na vida familiar.
A Sra. Robbins procurou ajuda devido a “problemas de comunicação” entre ela e sua
filha de 16 anos, Donna, que andava tristonha e distante. A família consistia na mãe e
três filhas. O Sr. Robbins, morto em um acidente de carro seis anos antes, tinha sido
muito amado por sua família. A perda foi agravada quando a filha de 16 anos na época,
Pam (que tinha sido a mais ligada ao pai), fugiu com o namorado algumas semanas
depois da morte dele, cortando todos os contatos com a família. Pouco tempo depois,
Nick, um antigo amigo da família, tinha persuadido a Sra. Robbins a se mudar para a
cidade dele para começar urna vida nova. Ele a ajudou a encontrar um emprego e um
apartamento ao lado do dele. A filha mais velha, então com 18 anos, tornou-se sua
ajudante e arruinou um emprego para ajudar a sustentar a família, deixando de lado seus
planos de ir para a faculdade.
A despeito da mudança, a Sra. Robbins se determinou a conduzir a vida familiar corno
se seu marido ainda fosse “o chefe da casa”, e a criar as filhas “dele” corno ele mesmo
teria feito. Juntas, elas mantinham a expectativa ilusória de que ela deveria viver como
se fosse os dois pais ao mesmo tempo, e de que elas deviam continuar a vida familiar
corno antes da morte do pai. Embora a mãe agora trabalhasse em tempo integral para
sustentar a família, ela dolorosamente preparava os pratos preferidos do pai, servindo-os
a cada noite na hora determinada pelos horários dele para a janta. Nick juntava-se a elas
corno um convidado incômodo. Os piqueniques e feriados familiares eram celebrados
exatamente como tinham sido com o Sr. Robbins. Com a exploração do terapeuta, as
meninas admitiram que já estavam crescidas para muitas daquelas atividades, e somente
fingiam se divertir com elas. Já adolescentes, elas queriam passar mais lempo com os
amigos, mas sentiam que seria desleal com os dois pais expressar algum
descontentamento. A mãe reconheceu sua exigência de tentar manter a família como se
estivesse ainda intacta. A terapia então se concentrou em ajudá-las a fazer o luto de sua
perda e a modificarem suas tradições para se
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encaixarem melhor às suas necessidades evolutivas em mutação e à sua estrutura como
família com somente um dos pais.
O processo de luto é bastante variável, e com freqüência dura muito mais do que
as próprias pessoas esperam (Wortman & Silver, 1989). Cada nova estação, feriado e
aniversário podem evocar a perda. A idealização excessiva do morto, a sensação de
deslealdade ou o medo catastrófico de outra perda podem bloquear a formação de outros
relacionamentos e compromissos. Os membros da família podem se recusar a aceitar
um novo membro, vendo-o como um substituto do morto, se a perda não estiver bem
integrada, como no caso das Robbins:
À medida que a terapia progredia, as meninas começaram a expressar queixas a
respeito de Nick: “Aquele homem do apartamento ao lado passa muito tempo lá em
casa”. “Ele é um idiota.” “Ele não chega nem perto do homem que nosso pai foi” Após
ter passado muito rapidamente para uma nova relação, seu status permaneceu ambíguo
por quase seis anos. Embora mantivessem apartamentos separados, Nick dormia no
quarto da mãe, todas as noites colocando um colchonete ao lado de sua cama, e todas as
manhãs guardando-o. Este ritual clandestino expressava a ambivalência persistente em
seu relacionamento. Após a morte de seu marido, a Sra. Robbins tinha encontrado apoio
e consolo em Nick, e a mudança propiciou urna fuga bem vinda de seu ambiente
cotidiano, que a lembrava constantemente da perda. Contudo, ela nunca se sentiu
“perfeitamente bem” em relação a um verdadeiro compromisso com ele, e estava
deprimida, acima de seu peso e insatisfeita com o emprego. A terapia passou por uma
fase de sessões de casal, que revelaram a relutância de Nick em se comprometer
realmente com ela e suas filhas, decorrente de um divórcio e um rompimento amargo
com seus próprios filhos. Ao se dar conta de que a relação deles estava “em um beco
sem saída”, ela decidiu terminá-la.
Com esta perda, a Sra. Robbins viu-se sonhando diariamente com seu falecido
marido, inundada por sentimentos de saudade. Uma série de sessões individuais revisou
seu casamento e o sentido da perda dele para ela. Utilizando fotografias e urna cadeira
vazia, ela teve duas “conversas” que desejava ter tido com ele: a primeira para dizer
adeus antes de sua morte e a segunda, no presente, para informá-lo do que havia
acontecido com as filhas e com ela desde a morte dele e de sua necessidade de agora
tocarem a vida adiante, conservando sempre sua memória querida. Ela perguntou à
terapeuta se podia ficar com as fitas daquelas sessões, e posteriormente disse que sentia
que uni peso tremendo tinha sido retirado de sua mente: “Eu não vou ter mais que
carregar todos aqueles sentimentos na cabeça, porque os tenho todos gravados”,
A terapia de família com a perda requer a mesma engenhosidade e flexibilidade
que a família precisa ter para responder aos vários membros e subsistemas à medida que
suas questões vão aparecendo. Quando ocorrem mudanças em uma parte do sistema,
elas geram mudanças para as outras. A
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opção de fazer sessões individuais, de casal ou com a unidade familiar é guiada por uma
visão sistêmica do processo de perda.
Com a família Robbins, a fase final da terapia envolveu uma reunião da mãe
com as filhas. Elas organizaram caixas velhas no sótão e decidiram ficar com certas
recordações e se desfazer de outras. Para o aniversário da morte do marido, a sra.
Robbins escreveu um obituário que havia sido solicitado, mas incapaz que fora, de
escrever na época da perda dele. Isto estimulou as filhas a escreverem poemas e fazerem
desenhos em memória do pai. Com grande entusiasmo, elas reuniram estes trabalhos em
um livreto, que mandaram para parentes e amigos. A terapeuta orientou a mãe em seus
esforços para reencontrar a filha distante, Pam, que finalmente veio visitá-las. Nos anos
seguintes, a família manteve a terapeuta informada de importantes passagens familiares,
como o novo apartamento e o emprego mais satisfatório da mãe e a ida das filhas para a
faculdade.
Fatores que Influenciam a Adaptação Familiar à Perda
Diversos fatores influenciam o impacto de uma morte e a natureza e a duração
da resposta de uma família. A partir dos trabalhos de Bowen (1976) e Herz (1980,
1989), e de pesquisas sobre o funcionamento familiar (Walsh, 1982), podemos
identificar diversos padrões que tendem a complicar a adaptação familiar à perda e
criam um risco maior de disfunção. Se quisermos entender por que algumas perdas
podem ser devastadoras para certos indivíduos e suas famílias, devemos avaliar
cuidadosamente estas variáveis e abordá-las em qualquer plano de intervenção.
A FORMA DE MORTE. Morte repentina ou prolongada. As mortes repentinas
ou após uma doença prolongada são especialmente estressantes para as famílias e
demandam mecanismos de enfrentamento diferentes (ver Rolland, capítulo 8). Quando
uma pessoa morre inesperadamente, os membros da família carecem de tempo para
antecipar e se preparar para a perda, para lidar com assuntos inconclusos ou, cm muitos
casos, até para dizer adeus.
Quando o processo do morrer é prolongado, os recursos financeiros e de
prestação de cuidados da família podem se esgotar, e as necessidades dos outros
membros são colocadas em suspenso. O alívio com o fim do sofrimento do paciente e
da tensão da família costuma vir carregado de culpa. Além disso, as famílias estão cada
vez mais enfrentando o penoso dilema de manter ou não, e por quanto tempo, os
esforços de manutenção da vida, com enormes custos, para manter um membro da
família indefinidamente em estado vegetativo ou com dores crônicas, sem virtualmente
nenhuma esperança de recuperação. A controvérsia a respeito da ética médica, das
crenças religiosas, dos direitos do paciente/família e de processos criminais se estende
às perguntas mais fundamentais de quando a vida acaba e quem deve determinar este
fim. Estas perguntas podem ser angustiantes para famílias divididas entre os desejos do
paciente
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do direito de morrer com dignidade e a ética médica de salvar vidas a todo custo (e,
acima de tudo, não causar danos). As famílias podem se despedaçar em decorrência de
posições opostas de diferentes membros ou coalizões.
Os clínicos podem ajudar os membros das famílias a preparar e discutir seus
testamentos em vida, a compartilhar abertamente seus sentimentos quanto a tais
situações complicadas e a aceitar qualquer decisão que seja tomada.
Perda ambígua. A ambigüidade em torno de uma perda interfere com a obtenção
de controle sobre ela, freqüentemente produzindo depressão nos familiares (ver Boss,
capítulo 9). Um ente querido pode estar fisicamente ausente, mas psicologicamente
presente, como em situações de seqüestro, “desaparecimentos” de dissidentes políticos
ou de soldados em ação. A incerteza quanto à morte de um membro pode ser uma
agonia para a família. Por exemplo, no caso de uma criança desaparecida, a família
pode se consumir nos esforços para manter a esperança, mesmo temendo pelo pior, e em
buscas e tentativas desesperadas de obter informações que confirmem o destino da
criança. A impossibilidade de recuperar um corpo pode complicar o sofrimento, como
relataram as famílias dos tripulantes da Challenger a respeito de sua dificuldade de fazer
o luto sobre caixões vazios e sua agonia até a descoberta de partes dos corpos de seus
entes queridos.
Em outras situações de perda ambígua, um membro da família pode estar
fisicamente presente, mas psicologicamente “morto”, como no caso de pacientes
deteriorados pelo mal de Alzheimer (ver Boss, capítulo 9). E importante ajudar os
membros da família a lidarem com a perda de aspectos importantes de seu
relacionamento sem excluir a pessoa como se já estivesse morta.
Morte violenta. O impacto devastador da morte violenta reverbera por todo o
sistema familiar. Deformidades corporais ou desmembramentos podem ser imagens
recorrentes cm lembranças ou pesadelos nos anos seguintes, especialmente para aqueles
que presenciaram a morte. Tirar e perder vidas em uma guerra pode assombrar os
sobreviventes anos depois, em distúrbios de estresse pós-traumático que afetam suas
relações familiares, levando a perturbações e mesmo a reações fatais de outros membros
da família (Figley, 1986, 1989). No caso de um veterano da guerra do Vietnã, a morte
de um companheiro, anos depois, detonou um apavorante episódio de flashback, a
ameaça de separação conjugal e uma tentativa dc suicídio da filha adolescente,
sinalizando a necessidade de terapia familiar.
A tragédia sem sentido da perda de vidas inocentes é sobremaneira difícil de
suportar, particularmente quando ela é o resultado de violência ou negligência, como no
caso de motoristas bêbados. Para a família de uma vítima de homicídio, o luto pode ser
interminável se os membros acreditam que a justiça não foi feita. Uma comunidade
inteira pode ser traumatizada pelos crimes violentos que atingem desproporcionalmente
as famílias das áreas urbanas pobres. Um grande desastre, como um tornado ou um
furacão, destrói casas e bairros, bem como vidas. A sensação de segurança e
invulnerabilidade é perdida para todas as famílias nas comunidades atingidas. Se os
sobreviventes têm que viver com uma ameaça sempre presente de novas ocorrências,
como terremotos, a antecipação de mais traumas e perdas complica sua recuperação.
Aqueles
41
que trabalham em serviços de emergência e assistência em desastres e suas famílias
também têm que lidar com sua própria vulnerabilidade e com a natureza arriscada do
trabalho. Bombeiros relatam que a parte mais difícil de seu trabalho é assistir à morte de
uma criança que eles não puderam socorrer ou a perda de um colega.
O acesso fácil a armas letais contribuiu para um aumento alarmante dos
homicídios nos Estados Unidos, bem como para os disparos acidentais. O mais chocante
é a constatação de que os homicídios são cometidos mais freqüentemente por parentes
às vezes em disparos acidentais, mas, mais freqüentemente, no calor do conflito. As
ameaças de maridos de matarem suas esposas se elas os abandonarem são, com muita
freqüência, cumpridas, particularmente se elas se envolvem com outros homens. E, cada
vez mais, mulheres vítimas de violência, sem ter outro recurso, estão matando seus
maridos em defesa própria ou em retaliação por abusos contínuos.
Os suicídios são as mortes mais angustiantes de aceitar para as famílias (Cain,
1972; Dunne, McIntosh & Dunne Maxim, 1988; Gutstein, capitulo 13). O recente
aumento dos suicídios e do simbolismo da morte de adolescentes demanda mais atenção
para as forças sociais maiores, bem como para a influência familiar. Os clínicos também
precisam estar mais alertas para padrões familiares que possam criar riscos maiores de
suicídio. Situações de ameaça à vida na família podem causar medos catastróficos da
perda e comportamentos autodestrutivos. Uma menina adolescente foi atendida em uma
sala de emergência com um ferimento à bala no peito, depois que a arma que ela
carregava no sutiã disparou acidentalmente. Em uma intervenção de crise, ela revelou
que ficara apavorada com os conflitos recentes entre seus pais, e por isso tirou a arma
que eles mantinham embaixo do colchão e a escondeu junto com ela para protegê-los.
Os clínicos devem observar rotineiramente histórias de suicídio na família ou
outras perdas traumáticas que possam indicar risco de suicídio. Em um efeito trágico de
terapia, um homem se matou após o terapeuta ter mobilizado sua esposa para ameaçá-lo
com o divórcio, a menos que ele concordasse em se submeter imediatamente a uma
internação para o tratamento de um problema de alcoolismo que ele negava. Não havia
sido colhida a história familiar. Subseqüentemente, soube-se que, aos 10 anos de idade,
seus pais haviam passado um divórcio amargo; enredado em uma terrível batalha por
sua custódia, ele havia tentado se enforcar. Esta informação teria alertado o terapeuta
para o potencial de suicídio em face da ameaça de divórcio.
Devemos acrescentar que uma ameaça de suicídio como esta não deve obrigar
um cônjuge a permanecer em uma relação destrutiva, nem deve implicar sua
responsabilidade na ocorrência do suicídio. Mas, embora nem o mais cuidadoso
terapeuta seja capaz de impedir que um suicídio ocorra, o risco pode ser diminuído
explicitando as ligações ocultas com os traumas do passado, estimulando as pessoas
vulneráveis a assumirem a responsabilidade por seus atos, mobilizando o apoio familiar
e promovendo imagens de um curso de vida mais promissor (ver Epston, capítulo 12).
Muitas vezes, um suicídio pode ser evitado insistindo-se que urna pessoa
desesperançada considere com cuidado
41
as conseqüências destrutivas deste ato a longo prazo para seus entes queridos, em
especial os filhos.
Quando ocorre um suicídio, a raiva e a culpa podem tomar conta das relações
familiares, particularmente quando os membros são culpados ou culpam a si mesmos
pela morte. O estigma social do suicídio também contribui para a vergonha e o
encobrimento das circunstâncias por parte da família. Estes segredos distorcem a
comunicação familiar e podem isolar a família do apoio social, gerando seu próprio
legado destrutivo.
A REDE FAMILIAR E SOCIAL. Em consonância com importantes pesquisas
sobre o funcionamento familiar (Walsh, 1982), observamos que os padrões de
organização e comunicação e os sistemas de crenças familiares estão entre as variáveis
mediadoras mais cruciais para a adaptação à perda. O nível geral do funcionamento
familiar e o estado das relações familiares antes e depois da perda devem ser
cuidadosamente avaliados, com atenção à família extensa e à rede social. Deve-se
observar em especial as variáveis discutidas a seguir.
Coesão familiar e diferenciação dos membros. A adaptação à perda é facilitada
pela coesão da unidade familiar no apoio mútuo, equilibrada com a tolerância e o
respeito às diferentes respostas à perda dos vários membros da família. Padrões
familiares extremos de indiferenciação ou distanciamento podem complicar a adaptação
à perda. Em um extremo, as famílias indiferenciadas podem exigir uma frente unida e
considerar ameaçadoras e desleais quaisquer diferenças individuais, que devem então
ser ocultadas ou distorcidas. Elas podem procurar um substituto indiferenciado para a
perda e ter dificuldades com separações subseqüentes, aferrando-se a outros membros
da família em transições normais de desenvolvimento. No outro extremo, famílias muito
desunidas vão evitar a dor da perda com distanciamento e rompimentos emocionais. Na
fragmentação familiar, os membros ficam isolados em seu sofrimento, defendendo-se
cada um por si,
Flexibilidade do sistema familiar. A estrutura familiar, em particular suas regras,
papéis e limites, precisa ser flexível, ainda que clara, para a reorganização após a perda.
Em um extremo, uma família caótica, desorganizada, vai ter dificuldade em manter a
liderança, a estabilidade e a continuidade necessárias para administrar a perturbação
transicional. Uma família excessivamente rígida vai ter dificuldades em modificar os
padrões estabelecidos para fazer as acomodações necessárias à perda.
Comunicação aberta versus segredos. Quando uma família enfrenta uma perda, a
comunicação aberta facilita o processo de recuperação, como foi descrito acima em
nossa discussão das tarefas adaptativas. E importante que os clínicos promovam um
clima familiar de confiança mútua, apoio e tolerância para com uma gama de respostas
à perda. Segredos, mitos e tabus em torno da perda interferem no seu controle. Quando
a comunicação é bloqueada, o indizível tem mais chances de ser expresso por meio de
sintomas disfuncionais ou comportamentos destrutivos.
Disponibilidade da família extensa, de recursos sociais e econômicos. A
disponibilidade de outros recursos para a família pode amortecer o impacto da perda
42
(Anderson, 1982; Kessler, Price & Wortman, 1985). A família extensa pode ter um
papel vital neste processo, como na seguinte família saudável: A Sra. Lang, mãe de três
crianças pequenas, de 6 e 4 anos e de 18 meses de idade, desenvolveu leucemia. No ano
seguinte, em diversas hospitalizações e longas viagens de um lado ao outro do país para
transplantes de medula, a família extensa reuniu-se para ajudar o casal e seus filhos. Os
dois casais de avós se revezaram ficando na casa, cuidando dos afazeres e das crianças.
Isto diminuiu a confusão, permitiu ao Sr. Lang acompanhar a esposa e minimizou os
deslocamentos das crianças, que puderam ficar em casa e manter urna rotina diária e
contatos com amigos. A irmã do Sr. Lang também se envolveu, saindo com as crianças
para que os avós pudessem descansar. No ano seguinte à morte da mãe, o apoio da
família foi mantido, com a passagem gradual de muitas responsabilidades para uma
empregada que vivia com a família.
Quando conflitos duradouros, rompimentos ou estigmas sociais (como na AIDS)
deixam a família isolada e desunida, os clínicos que trabalham com a perda podem ser
úteis, mobilizando uma rede potencialmente solidária e promovendo uma conciliação
terapêutica (ver Gutstein, capítulo 13).
Papel e funcionamento anterior do membro morto no sistema familiar Quanto
mais importante a pessoa era para a vida da família, e quanto mais central seu papel no
funcionamento dela, maior a perda. A morte de um dos pais de uma criança pequena é
em geral muito mais devastadora do que a perda de um avô idoso, que já tinha se
tornado mais periférico para o funcionamento da família. A perda de um líder ou
cuidador será sentida dolorosamente, enquanto a morte de um encrenqueiro briguento
pode provocar um suspiro de alívio. A morte de um filho (mico ou da única filha deixa
um vazio particular, especialmente para pais que não podem conceber mais filhos. As
famílias correm o risco de disfunção se, em um extremo, elas tentam evitar a dor da
perda negando a significação de um membro importante da família ou substituindo-o
instantaneamente. No outro extremo, elas podem ficar imobilizadas se forem incapazes
de redistribuir novas funções ou formar novos laços.
Relações conflituosas ou rompidas na época da morte. As relações familiares
incluem conflitos ocasionais, sentimentos confusos e alianças mutantes. Quando os
conflitos forem intensos e persistentes, onde a ambivalência for forte ou quando as
relações tiverem sido completamente cortadas, o processo de luto deverá ser mais
complicado, com efeitos sobre outros relacionamentos. Na terapia, o processo de
orientação (McGoldrick, capítulo 3) pode ser útil na abordagem das complicações
imediatas ou a longo prazo de uma perda. Quando a morte é antecipada, como nas
doenças fatais, os clínicos devem fazer todos os esforços possíveis para ajudar os
pacientes e suas famílias a se reaproximarem e reatarem relações antes que a
oportunidade se perca. Muitas vezes, existe uma hesitação quanto a remexer em
emoções dolorosas ou reviver antigos conflitos, por medo de que as confrontações
negativas aumentem o risco de morte. Os terapeutas de família precisam estar sensíveis
a estes medos e interromper ativamente as espirais interacionais destrutivas, ajudando os
pacientes e os
43
membros das famílias a compartilhar sentimentos construtivamente com o objetivo de
restaurar as relações estremecidas, forjar novas conexões e construir a confiança mútua.
Uma revisão conjunta da vida familiar (Walsh, 1989) pode estimular a transformação,
ajudando os membros da família a compartilhar diferentes perspectivas, a colocar suas
mágoas e decepções no contexto dos desafios do ciclo de vida familiar, a recuperar os
aspectos carinhosos dos relacionamentos e a atualizar e renovar relacionamentos que
ficaram congelados por conflitos passados.
O MOMENTO DA PERDA O CICLO DE VIDA. O momento específico de uma perda
no ciclo de vida multigeracional da família pode criar um risco maior de conseqüências
disfuncionais (ver McGoldrick & Walsh, capítulo 2). As complicações são mais
prováveis em casos de (1) perdas prematuras, (2) coincidência de múltiplas perdas ou
perda no momento dc outro grande estresse familiar, (3) perdas traumáticas não
resolvidas no passado e, em particular, replicações de aniversários transgeracionais.
Perdas prematuras. Cada cultura tem um ditado para expressar a crença de que a
melhor morte é a que vem ao fim de uma vida longa e produtiva, especialmente quando
há filhos e netos para continuar uma linhagem no futuro. A perda prematura é mais
difícil de suportar: parece injusto que alguém “morra antes do tempo”, como também
parece ser um infortúnio cruel para a família sobrevivente. O momento do ciclo de vida
familiar e as expectativas sociais, bem como a idade cronológica, contribuem para a
prematuridade de uma morte e para seu impacto sobre os sobreviventes (ver
McGoldrick & Walsh, capítulo 2). Por exemplo, a viuvez no início do casamento é
muito mais difícil do que mais tarde na vida, devido aos sonhos e esperanças não
concretizados, ao descompasso com os outros casais na mesma fase da vida e à falta de
modelos para o ajustamento à viuvez entre os pares (Neugarten, 1970; Parkes & Weiss,
1983). Os múltiplos papéis e relacionamentos nas famílias complicam a experiência de
perda ainda mais, como na morte de um cônjuge/pai no mesmo estágio familiar da
criação de filhos pequenos.
A morte de um filho é a mais trágica de todas as mortes fora de hora, revertendo
as expectativas geracionais. Como é expresso no ditado chinês, “(J) cabelo branco
nunca deve ir depois do cabelo preto”, o curso da vida é experimentado como fora de
ordem se um filho morre antes dos pais.
Outros interesses familiares coincidentes com a perda. A coincidência temporal
de múltiplas perdas ou de urna perda com outros estressores e fatos evolutivos
marcantes produz um acúmulo de estresse que pode soterrar a família, complicando as
tarefas do luto. Os eventos estressantes podem ser coincidentes ou, em outros casos,
uma perda significativa ou uma experiência quase fatal pode detonar outras mudanças
nos relacionamentos, tais como divórcios, casamentos precipitados ou a concepção de
um filho. Uma avaliação familiar cuidadosa e o esboço de uma linha do tempo podem
alertar os clínicos para a confluência de múltiplas perdas ou de perdas com outros
marcos evolutivos, como na seguinte consulta de um caso de violência conjugal:
44
Mike estava em um grupo para homens que espancam mulheres, enquanto Mary,
sua esposa, estava em um grupo para mulheres vítimas de violência. Eles agora estavam
procurando aconselhamento conjugal, pois Mary estava prestes a desistir do casamento.
O abuso físico da parte do marido tinha se tornado um problema nos últimos três anos.
A atenção do terapeuta a seus ciclos repetitivos de interação parecia ineficaz. Um
consultor foi chamado para traçar a história familiar, que ainda não havia sido
explorada, e descobriu que, durante aquele tempo, o casal estivera sob o choque e a dor
de uma seqüência de perdas. Primeiro, o pai de Mike, de quem ele tinha se afastado,
tinha morrido de um súbito ataque cardíaco; a seguir, seu irmão tinha morrido de câncer
no pulmão; depois, seu negócio falira pouco antes do nascimento de seu quarto filho. A
mãe de Mary, fora seu esteio, falecera; e, mais recentemente, Mike tinha perdido o
controle enquanto dirigia e destruído o carro, sendo que família toda se salvou por
pouco de ferimentos sérios. Mike nunca tinha falado destas perdas no grupo de homens,
já que eles se concentravam apenas no comportamento atual, e não se lembrava de ter
compartilhado seus sentimentos a respeito delas com ninguém, incluindo Mary, que se
voltara para seus amigos íntimos para obter apoio. Ela observou que esta havia sido a
primeira vez que alguém tinha conectado as explosões de violência dele às experiências
de perda que tinham sofrido. O casal concordou que a tensão conjugal das perdas
cumulativas, somada às exigências da maternidade com o novo bebê e as três outras
crianças, era mais do que eles podiam suportar, causando discussões acaloradas que
acabavam em violência. Seria difícil ajudar este casal sem trabalhar sua recuperação
destas perdas múltiplas.
A coincidência da perda com outros marcos evolutivos pode criar tarefas e
exigências incompatíveis, particularmente com um novo casamento ou a morte de uma
criança. Embora estes eventos possam trazer uma alegria especial e uma sensação de
renovação para a família, os processos do luto e os do estabelecimento de um casamento
ou da criação de um recém-nascido são inerentemente conflitantes. O envolvimento em
um deles vai interferir no outro; tentar administrar os dois ao mesmo tempo é
esmagador. Além disso, a relação com um novo parceiro ou com uma criança nascida
na época de uma perda pode ser confundida com a relação perdida. Em nossa
experiência clínica e de pesquisa, as famílias que enfrentam tais desafios conflitantes no
ciclo de vida podem estar em risco de problemas posteriores se o luto for bloqueado por
outras demandas ou relações (ver McGoldrick & Walsh, capítulo 2). A posição especial
de uma criança que tem a função de substituta pode estimular uma criatividade
extraordinária e grandes realizações, ou pode contribuir para disfunções severas (ver
McGoldrick, capítulo 6). Embora as conseqüências patogênicas não sejam
absolutamente inevitáveis, nossa experiência sugere o valor das intervenções
preventivas para famílias que enfrentam. OS desafios simultâneos da perda e do
nascimento, listas intervenções devem promover o apoio conjugal e familiar, de modo
que o processo de luto possa ser realizado sem que as necessidades da criança sejam
negligenciadas.
O legado familiar multigeracional de perda. Algumas famílias e indivíduos com
perdas traumáticas anteriores parecem ter se tornado mais resistentes com
45
a experiência, enquanto outros se tornam mais vulneráveis a perdas subseqüentes.
Quando as questões dc separação são proeminentes nos problemas apresentados
clinicamente, a relevância das perdas passadas deve ser cuidadosamente avaliada.
Quando as famílias têm dificuldades com transições normativas, como a saída dos filhos
dc casa, prestamos uma atenção especial a indícios de lutos não resolvidos de perdas
passadas, cujas lembranças estejam bloqueadas ou distorcidas ou onde os sentimentos
sejam extremamente intensos ou dissociados (ver McGoldrick, capítulos 3 e 6).
As perdas passadas podem se interpor à passagem do ciclo atual de vida de
muitas formas. Uma mulher, que havia se casado com um homem que conhecera há
pouco tempo enquanto sua mãe estava morrendo, tinha tido poucas reações de luto até
que seu casamento terminou em divórcio vários anos depois, e ela se viii tomada de
pensamentos e sonhos a respeito de sua mãe. Em outros casos, uma família pode
vivenciar uma crise transicional quando um filho que tinha uma função de substituto
tenta sair de casa ou assumir um compromisso em um novo relacionamento. Pesquisas
com famílias de usuários de drogas encontraram ligações entre o comportamento
autodestrutivo do adicto, a separação familiar e o luto não resolvido de perdas familiares
traumáticas anteriores (ver Zoleman, capítulo 14).
Os padrões de aniversários transgeracionais são dignos de nota (Walsh, 1983b;
McGoldrick & Walsh, capítulo 2), quando a idade ou a transição familiar no momento
do aparecimento do sintoma coincidem com o ponto do ciclo de vida no qual um dos
pais morreu ou seu luto foi feito, uma geração antes.
Quando os indivíduos alcançam a mesma idade do falecimento de um dos pais,
especialmente a morte prematura do genitor do mesmo sexo, não é incomum que eles
subitamente comecem a se preocupar com a própria mortalidade. Alguns começam
novos esquemas de exercícios físicos e sentem que têm que “passar deste ano”,
enquanto outros antecipam que vão ter o mesmo destino dos pais, e podem até mesmo
se comportar de forma auto destrutiva (Engel, 1975). A preocupação com a mortalidade
do cônjuge pode aparecer quando ele ou ela atinge a idade do genitor do sexo oposto.
A ocorrência de sintomas miuitas vezes coincide com perdas em gerações
passadas no mesmo ponto do ciclo de vida, como no seguinte caso: Joanne e Ralph
começaram a ser atendidos em terapia de família após seu filho Joey, de 22 anos, ter
sobrevivido por pouco a urna overdose de drogas na véspera de seu casamento. Joanne
reconheceu que era mais difícil para ela a saída de Joey (que tinha o mesmo apelido que
ela) de casa para se casar do que havia sido com os outros filhos, mas não sabia por quê.
A terapeuta perguntou a respeito da experiência dos pais de sair de casa, e Joanne
contou que tinha fugido para se casar com o marido contra a vontade de seu pai. Ela
tinha ficado furiosa com a oposição do pai, e ele, por sua vez, se recusara a falar com
ela. Ele morreu subitamente de um ataque cardíaco seis meses depois, sem que tivesse
havido uma oportunidade dc reconciliação. Neste ponto da história, Joanne explodiu em
lágrimas dizendo: “De alguma forma eu me sinto do mesmo jeito agora.”
46
Foi crítico investigar para além das ligações didáticas óbvias de Joanne com seu
pai e com o filho, e explorar outros padrões sistêmicos conectados aos problemas atuais.
Joanne tinha sido muito ligada a sua mãe, que, depois de enviuvar, viveu o resto
dc sua vida deprimida e sozinha. Quando lhe foi indagado se ela se preocupava que
aquela história pudesse se repetir, Joanne admitiu que se preocupava com freqüência
com a saúde do marido e com o descaso dele com seu excesso de peso. Em meses
recentes, ele linha se queixado de dores no peito, mas se recusava a ir ao médico. Com a
partida de Joey, ela se preocupava que algo terrível pudesse acontecer, e que ela fosse
terminar como sua mãe. De fato, dadas suas expectativas catastróficas e a falta de um
modelo para casais de meia-idade, ela e o marido nunca discutiram planos e sonhos para
seu futuro juntos depois que os filhos saíssem de casa. À medida que o casal foi
auxiliado a se concentrar em seu futuro, Ralph passou por um tratamento médico e
começou a se cuidar melhor, e eles puderam festejar o casamento do filho.
Quando os padrões sistêmicos são repetidos nas gerações seguintes, é importante
explicitar as ligações ocultas, diferenciar o presente do passado e ajudar a família a
superar esta transição do ciclo dc vida. Uma apreciação do poder dos roteiros familiares
ocultos (ver Bing-Hall, capítulo 5) e dos legados familiares (Boszormenyi-Nagy &
Spark, 1974) é importante para o entendimento da transmissão destes padrões de perda
(ver McGoldrick, capítulo 6, para maiores discussões). As reações aos aniversários
ocorrem com mais freqüência quando houve distanciamentos físicos e emocionais no
passado, e quando as regras familiares, muitas vezes ocultas, proíbem a comunicação
aberta a respeito de eventos traumáticos passados, como no seguinte caso:
Um rapaz de 18 anos foi hospitalizado com uma reação psicótica aguda que
ocorreu em suas férias de verão na Europa. Em urna avaliação da família, os membros
pareciam constrangidos de estar juntos, relutantes em falar do surto do filho. Em uma
sessão individual com a mãe, ela contou a seguinte história: o pai, uru refugiado judeu
da Polônia, tinha, aos 18 anos, testemunhado o fuzilamento do irmão, perdido o contato
com toda a família e ido para um campo de concentração. Sobrevivendo à guerra, ele
tinha vindo para os EUA, onde tinha se tornado médico e conhecido a esposa, que era
sua paciente. No primeiro encontro dos dois, ela havia perguntado sobre os números
tatuados no braço dele, mas vendo-o tão abalado, decidiu nunca mais mencioná-los. À
medida que os filhos iam crescendo, criou-se uma regra implícita de nunca discutir o
passado do pai, embora os números no braço fossem uni lembrete constante. No
aniversário de 18 anos do filho, o pai lhe deu uma viagem de verão à Europa. Lá, ele
tinha ficado profundamente deprimido e quebrou a regra de silêncio, escrevendo em
urna carta para a família que não conseguia aproveitar as férias sabendo o que
acontecera com o pai quando ele tinha a mesma idade, naquele mesmo lugar. Os pais
não responderam a esta carta, e seu surto subseqüente trouxe-o de volta para casa.
47
Na terapia familiar, foi aberta a comunicação sobre a ligação entre o passado e o
presente. Os membros da família foram elogiados por sua consideração de tanto tempo
pelo pai, e seu desejo de poupá-lo de um maior sofrimento, evitando discutir o que
poderia ser insuportável para ele. Entretanto, houve um consenso de que este “interdito”
não era mais necessário, urna vez que o pai não era mais tão vulnerável quanto havia
sido antes. O “presente de aniversário” do filho pôde ser tomado como urna
oportunidade de reconexão com o passado. Em um encontro de acompanhamento do
caso um ano depois, o filho estava indo bem na faculdade onde, é interessante notar,
estava cursando Comunicação Social. Os pais haviam feito uma viagem até a casa do
pai na Polônia, que tinha se mostrado imensamente valiosa para ele e tinha aprofundado
a relação conjugal.
A dissociação, a negação e a repressão de um indivíduo podem ser habilidades
importantes de enfrentamento na sobrevivência e no controle de traumas e perdas
catastróficas, como ocorreu na tentativa de genocídio do Holocausto nazista. Mas, com
o tempo, a manutenção destes padrões pode ter conseqüências disfuncionais para os
outros membros de um sistema familiar. A persistência do bloqueio da comunicação e
dos rompimentos físicos e emocionais do passado pode restringir as relações conjugais
e criar o risco de efeitos sérios para a geração seguinte.
O CONTEXTO SOCIOCULTURAL DA MORTE. Crenças étnicas, religiosas e
filosóficas. O sistema de crenças de uma família é uma influência crítica na adaptação à
perda. As crenças a respeito da morte e os sentidos que cercam uma perda específica
têm raízes nos legados familiares multigeracionais, em crenças étnicas e religiosas e nas
práticas e valores sociais dominantes (McGoldrick, Pearce & Giordano, 1982; ver
McGoldrick, capítulos 6 e 10). Os clínicos precisam valorizar o poder dos sistemas de
crenças na superação da dor da perda, bem como o impacto destrutivo da culpa e da
vergonha que podem cercar uma morte (Rolland, capítulo 8). Estas atribuições causais
são especialmente fortes em situações de morte traumática onde a causa é incerta e
surgem dúvidas quanto à responsabilidade e à negligência. Os membros da família
podem ter crenças secretas de que eles — ou os outros — deveriam ter feito alguma
coisa para evitar a morte. E importante ajudar as famílias a compartilharem estas
questões, vê-las como normais e aceitarem a extensão e os limites de seu controle da
situação.
Contexto sóciopolítico e histórico da perda. Em tempos de guerra, o impacto das
mortes em combate para as famílias é grandemente influenciado pelas atitudes sociais
quanto ao envolvimento do país na guerra. Nos Estados Unidos, as posições altamente
carregadas e conflitantes sobre a Guerra do Vietnã complicaram seriamente a adaptação
familiar à perda. Em contraste, a perda na Segunda Guerra Mundial foi abrandada por
um senso comum de patriotismo e heroísmo por uma causa nobre e pela vitória. Nós
estamos apenas começando a reconhecer o efeito da ameaça de destruição nuclear sobre
as famílias, particularmente sobre as crianças, que crescem incertas de que sua geração
vá ter
48
uma vida completa pela frente, e com o risco muito real de que toda a vida no planeta vá
se extinguir.
O câncer e a AIDS se tornaram as epidemias de nosso tempo, gerando
tremendos estigmas e temores de contágio (Sontag, 1988). A epidemia da AIDS levou
muitas pessoas, incluindo os clínicos, a se distanciarem de seus pacientes, prejudicando
o apoio familiar e social, bem como a oferta de cuidados críticos de saúde. Com muita
freqüência, são feitas distinções entre “vítimas inocentes”, como as crianças nascidas
com AIDS ou os indivíduos que contraíram a doença por meio de transfusões de
sangue, aquelas que são condenadas por terem “pedido por isto” pelo homossexualismo
e o uso de drogas. Os clínicos podem ajudar a reduzir o estigma social e os medos
infundados de contágio para que a morte por AIDS não seja ainda mais dolorosa e
isoladora para todos.
De modo geral, as atitudes sociais para com a homossexualidade complicam
todas as perdas nas relações gays e lésbicas. Sem o status legal do casamento, um
parceiro pode perder todos os benefícios quando uma relação é terminada com a morte.
O luto pela morte de um parceiro pode ser feito em isolamento quando a relação era
secreta ou reprovada pela família ou pela comunidade. A epidemia da AIDS é ainda
mais devastadora na comunidade gay é, cada vez mais, para homens, mulheres e
crianças de comunidades urbanas pobres — devido às perdas múltiplas e antecipadas
experimentadas nas redes de relações (Klein & Fletcher, 1986). Como lamentou um
homem: “A morte e o morrer estão a nossa volta, e qualquer um de nós pode ser o
próximo”.
Restrições por papéis de gênero. Embora nossa sociedade esteja mudando
rapidamente, as expectativas normativas para homens e mulheres nas famílias ficaram
para trás em relação às realidades emergentes da vida familiar (McGoldrick, 1989;
McGoldrick, Anderson & Walsh, 1989). As mães são particularmente vulneráveis à
culpa por causa das expectativas sociais de que assumam as responsabilidades primárias
pelos cuidados e o bem-estar de seus maridos, filhos e pais idosos. As mulheres foram
socializadas para assumir o papel principal nas tarefas sociais e emocionais do luto,
desde a expressão de sofrimento até os cuidados com os doentes terminais e com os
membros sobreviventes da família. As filhas e as noras carregam esta responsabilidade
nas suas famílias e nas famílias extensas de seus maridos. Agora que a maioria das
mulheres está combinando responsabilidades familiares e profissionais, elas estão cada
vez mais sobrecarregadas. Os homens, que são socializados para lidar com tarefas
instrumentais, tendem a tomar conta dos arranjos funerários, financeiros e de bens, mas
também a contarem sua emoção e permanecerem fisicamente periféricos após uma
perda. A negação social da vulnerabilidade e das necessidades de dependência do
homem e as sanções contra sua expressividade emocional indubitavelmente contribuem
para a perturbação conjugal após a perda de um membro da família, e para a alta taxa de
doenças graves e suicídios entre os homens após a morte de um cônjuge.
As diferentes estratégias de enfrentamento de homens e mulheres podem
aumentar o estresse conjugal, mesmo entre casais com relações anteriormente fortes e
estáveis (Videka-Sherman, 1982). Por exemplo, em um estudo
49
das reações dos pais à síndrome da morte súbita infantil (SIDS)*, os pais relataram
raiva, medo e perda de controle, juntamente com o desejo de manter seu sofrimento para
si mesmos, enquanto que as mães responderam mais com tristeza e depressão (DeFrain,
Taylor & Ernst, 1982). Os pais tendem mais a se distanciarem, a se refugiarem no
trabalho e a se sentirem desconfortáveis com as expressões de sofrimento das esposas,
não sabendo como responder e temendo perder o controle de seus próprios sentimentos.
As mães podem perceber a indisponibilidade emocional dos maridos como abandono no
momento em que elas mais precisam de conforto, experimentando, assim, uma dupla
perda. Quando os pais são expressivos e se envolvem ativamente na doença e morte de
um filho e no processo de luto da família, a qualidade do casamento melhora
marcadamente. Estas descobertas têm aplicações clínicas importantes. Os grupos de
auto-ajuda e a psicoterapia individual, embora sejam intervenções potencialmente
valiosas, parecem ter um impacto limitado na recuperação quando a dinâmica conjugal
não é abordada (Videka-Sherman & Lieberman, 1985). Mais freqüentemente, são as
mulheres que se apresentam — ou são mandadas pelos maridos — para terapia em
conseqüência da depressão ou outros sintomas de perturbação ligados à perda, enquanto
seus maridos parecem funcionar bem e não vêem a necessidade de ajuda para si
mesmos. As intervenções precisam ser direcionadas para a diminuição da cisão dos
papéis sexuais, para que todos os membros da família possam vivenciar seu próprio
sofrimento e ser solidários uns aos outros na adaptação à perda. E importante facilitar o
envolvimento pleno dos homens nas tarefas sócio-emocionais do processo de perda, que
vai enriquecer sua experiência de vida familiar à medida que diminui a carga
desproporcional sobre as mulheres. Uma maior flexibilidade nos papéis aceitáveis para
mulheres e homens vai permitir a gama completa das experiências humanas no luto,
assim como em outras áreas da vida familiar.
A participação plena dos membros masculinos e femininos da família nos rituais
de luto deve ser estimulada. Uma mulher, à morte de sua avó de 100 anos, expressou o
desejo de ser uma das pessoas que carregaria o caixão no enterro. Um dos primos lhe
disse que somente homens podiam fazer aquilo; outro acrescentou que eles já tinham
escolhido seis carregadores (todos eles netos homens). Ela insistiu, sugerindo que eles
simplesmente tivessem mais do que seis carregadores. Ao final, todos os 12 netos,
incluindo cinco mulheres, compartilharam aquela experiência importante.
CONCLUSÃO
De todas as experiências humanas, a morte coloca os desafios adaptativos mais
dolorosos para as famílias. Neste capítulo introdutório, apresentamos uma perspectiva
sistêmica da perda, examinando as extensas ramificações de uma
50
morte na família em todo o sistema dc relações. Identificamos tarefas adaptativas- chave
que os clínicos podem promover junto às famílias bloqueadas no prosseguimento da
vida. Estas tarefas envolvem (1) o reconhecimento compartilhado da realidade da morte
e a experiência compartilhada de perda e (2) a reorganização do sistema familiar e o
reinvestimento em outras relações e projetos de vida.
Também delineamos urna série de variáveis cruciais que podem tanto facilitar
como afetar adversamente os processos de luto das famílias. Para entendermos melhor
as conseqüências saudáveis ou disfuncionais de qualquer perda, os clínicos e os
pesquisadores devem prestar uma atenção minuciosa à forma da morte, ao
funcionamento da rede familiar e social, ao momento da perda no ciclo de vida e ao
contexto sociocultural. Mais especificamente, as mortes envolvendo as seguintes
complicações devem ser examinadas mais cuidadosamente:
(a) morte repentina ou prolongada
(b) perda ambígua
(c) morte violenta, especialmente suicídio
(d) padrões familiares indiferenciados ou desunidos, falta de tolerância a diferentes
respostas mi de coesão para o apoio mútuo
(e) falta de flexibilidade do sistema
(f) comunicação bloqueada e segredos, mitos e tabus em torno da morte
(g) falta de recursos familiares, sociais e econômicos
(h) importância do papel do membro perdido para o funcionamento, com substituições
(i) precipitadas ou incapacidade de reinvestimento
(j) relações conflituosas ou rompidas na época da morte perda prematura
(k) perdas múltiplas ou outros estressores familiares coincidentes com a perda
(l) legado familiar multigeracional de perdas não resolvidas, particularmente replicações
de aniversários transgeracionais
(m) sistema de crenças da família evocando culpa mi vergonha em torno da morte
(n) contexto sociopolítico e histórico da morte, estimulando a negação, o estigma ou
temores catastróficos
Para compreendermos como alguns indivíduos são profundamente marcados
pela perda, enquanto outros demonstram resistência e são até mesmo fortalecidos pela
experiência, recomendamos enfaticamente que as futuras pesquisas e investigações
clínicas examinem mais minuciosamente o contexto familiar da perda, com atenção a
estas tarefas adaptativas e variáveis críticas. O domínio ou a disfunção associados à
perda não são simplesmente uma indicação de luto individual, mas ambém um produto
dos processos de luto da família.
Como será discutido no capítulo 2, o conhecimento das tarefas evolutivas
normativas em cada estágio do ciclo de vida familiar pode ajudar os clínicos a perceber
e a responder às formas particulares pelas quais a perda pode se
51
interpor nas questões proeminentes do ciclo de vida familiar. Uma intervenção precoce
sensível a estas complicações pode ter um valor preventivo importante. Em muitos
casos, o movimento progressivo do ciclo de vida pode ser bloqueado por questões não
resolvidas de lutos passados. A maioria das famílias já experimentou numerosas perdas;
histórias familiares muito extensas não são necessárias, nem é preciso mergulhar em
cada perda anterior. A atenção às tarefas adaptativas familiares e às variáveis discutidas
neste capítulo pode orientar de modo útil as investigações e intervenções (ver
McGoldrick, capitulo 3). O mais importante é normalizar o processo de luto, em uma
gama ampla de respostas, e promover a continuidade frente à perda.
Devemos ter em mente que a perda também pode levar ao crescimento. As
famílias que experimentaram muitas mortes prematuras, traumáticas (ver McGoldrick,
capitulo 6), podem desenvolver tanto um sentimento de serem “amaldiçoadas” e
incapazes de superar estas experiências quanto podem ver a si mesmas como
sobreviventes, que podem ser atingidos mas nunca derrota- dos. A perda pode ser um
catalisador de criatividade e de realizações notáveis (Eisenstadt, 1978; ver Coleman,
capítulo 14). Contudo, quando as famílias não conseguem dominar os desafios
colocados pela morte, os efeitos podem ser danosos, em termos de bem-estar pessoal e
da capacidade de experimentar plenamente a vida e o amor.
Quando as famílias podem se reunir e compartilhar a experiência de sofrimento,
mudanças muito positivas costumam acompanhar o luto, fortalecendo a unidade
familiar e todos os seus membros. A finalidade da morte traz a consciência de que o
tempo é limitado e precioso, e pode ser o ímpeto para a reconciliação e a reparação de
antigos conflitos antes que seja tarde demais (ver Carter, capítulo 15). As famílias
podem desenvolver um sentido mais claro das prioridades da vida, uma maior
valorização das relações e uma capacidade aumentada de intimidade e empatia. Muitas
vezes, produz-se uma sensação de resistência, à medida que os membros da família
reconhecem potenciais não realizados anteriormente e uma convicção compartilhada de
que podem sobreviver a qualquer adversidade. É este senso de fortalecimento e conexão
humana que lutamos para estimular em nossas intervenções clínicas, quando as famílias
vivem a aproximação de uma perda, as conseqüências imediatas de uma morte ou
complicações a longo prazo de perdas passadas. Ao escutarmos sua dor, validamos sua
coragem, sua luta e sua força.
A morte e a perda confundem os limites entre “nós” e “eles” — especialistas
clínicos e famílias atingida — uma vez que todos nós estamos vulneráveis. Para ajudar
as famílias que enfrentam perdas, nós como clínicos e a terapia de família como campo
devemos enfrentar o fato inescapável da morte, a inevitabilidade da perda na vida e o
terror de nossa própria mortalidade. “Estar próximo da morte Inosi ‘concentra
poderosamente’ O bom disto é que somos ainda mais incitados a repensar a vida, a nos
reinventarmos, a fazermos a envolvente pergunta: O que devo fazer com o resto de
minha vida” (Lerner, 1990). Precisamos aceitar nosso próprio medo da morte e os
limites de nosso controle de modo a desmitificar as questões da perda, para que não
continuemos a negar sua significação ou negligenciá-las em nossa teoria e prática.
Aceitando
52
a morte como parte da vida e a perda como uma experiência transformadora, nós — e
nosso campo — vamos descobrir novas possibilidades de crescimento.
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Capítulo 2
Um Tempo para Chorar: A Morte e o Ciclo de Vida Familiar
MONICA MCGOLDRICK
FROMA WALSH
Não existe amor sem perda. E não existe a superação da perda sem alguma
experiência de luto. Não ser capaz de vivenciá-la é ser incapaz de entrar no grande ciclo
de vida humano de morte e renascimento — ser incapaz, isto é, de viver novamente
Lifton, 1975, p. vii
A perspectiva do ciclo de vida, que une o referencial evolutivo e a orientação
familiar sistêmica, vê a perda como um processo transacional que envolve o morto e os
sobreviventes em um ciclo de vida comum, que reconhece tanto a finalidade da morte
quanto a continuidade da vida. Aceitar esta experiência é o desafio mais importante que
enfrentamos em nossas vidas.
Desde a perspectiva sistêmica, uma mesma morte pode envolver a perda de um
cônjuge, de um filho, de um pai, de um primo ou de um tio ao mesmo tempo. Em cada
família, a constelação singular destas relações afeta o impacto da perda sobre cada
membro, cada geração e sobre a família como um todo (Walsh & McGoldrick, capítulo
1). O sentido e as conseqüências da perda variam dependendo da fase específica do
desenvolvimento do ciclo de vida que a família, está negociando no momento em que
ela acontece. Estamos cientes da variabilidade dos padrões de ciclos de vida familiares,
dada a diversidade das formas das famílias e as normas étnicas (Carter & McGoldrick,
1989; McGoldrick et al., capítulo l0). Ao mesmo tempo, pensamos ser útil considerar a
perda no contexto das tarefas familiares em cada fase do ciclo de vida (Herz, 1980,
1989). Não pretendemos reificar a pontuação da corrente das interações familiares ao
longo do tempo em estágios do ciclo de vida; tampouco desejamos sugerir que os cursos
de vida que se desviam deste padrão sejam anormais ou patológicos. Ao contrário, este
referencial nos permite identificar os desafios familiares que podem ser esperados
quando de uma perda em diferentes pontos do curso do ciclo de vida. Qualquer que seja
nossa abordagem terapêutica em relação à
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perda, a perspectiva do ciclo de vida familiar pode facilitar o fortalecimento de toda a
família em seu curso futuro.
O MOMENTO DA PERDA NO CICLO DE VIDA FAMILIAR
O momento de uma perda no ciclo trigeracional de vida da família cria diferentes
complicações, que vão afetar o risco de disfunção criado por este evento (McGoldrick,
no prelo; McColdrick & Gerson, 1985; Walsh, 1983; Walsh & McGoldrick, capítulo 1).
1)e especial significação em relação ao momento da perda são (1) as perdas prematuras;
(2) o aparecimento de sintomas coincidindo com uma perda; (3) a coincidência de
múltiplas perdas ou de uma perda com outras mudanças grandes no ciclo de vida; e (4)
as perdas traumáticas e o luto não resolvido.
Perdas prematuras. Mortes prematuras, que acontecem “fora de hora” em termos
das expectativas cronológicas ou sociais, como a viuvez precoce, a perda precoce dos
pais ou a morte de um filho, tendem a ser mais difíceis de aceitar pelas famílias do que
as mortes “a tempo”. O luto prolongado, muitas vezes durando vários anos, é comum.
As famílias lutam para achar alguma justificativa para a perda. A culpa sentida pelos
cônjuges, irmãos e pais por sobreviverem ao membro da família que morreu pode
bloquear a realização de outros projetos de vida. A morte de um filho, frustrando as
expectativas geracionais, é talvez a perda mais dolorosa para uma família, uma vez que
ela reverte a ordem natural.
Aparecimento de sintomas coincidindo com uma perda recente ou ameaçada. Foi
descoberto que uma ampla gama de distúrbios mentais e físicos estão associados com a
perda recente, e eles podem ser vistos no indivíduo sintomático (Osterweis, Solomon &
Green, 1984) ou no sistema familiar (Hadley, Jacob, Miliones, Caplan & Spitv, 1974).
Problemas de comportamento infantis ou perturbações conjugais podem estar ligados à
perda recente ou ameaçada de um membro significativo da família. Muitas vezes, os
membros das famílias não conectam os sintomas com a perda, e podem nem mencionar
uma morte recente ou iminente. Os clínicos precisam estar alertas para o impacto das
perdas antecipadas (ver Rolland, capítulo 8), bem como daquelas que ocorreram nos
últimos dois anos.
Coincidência de múltiplas perdas ou de uma perda com outras mudanças grandes
no ciclo de vida. A coincidência temporal da perda com outros eventos de grande
estresse pode sobrecarregar uma família e criar tarefas e demandas incompatíveis.
Dedicamos uma atenção especial à coincidência da morte com o nascimento de um
filho, uma vez que o processo de luto e a criação de um bebê são inerentemente
incompatíveis. A criança nascida no mesmo momento de uma perda significativa pode
assumir uma função especial de substituta, que pode ser o ímpeto para grandes
realizações ou disfunções. Da mesma forma, casar em seguida de uma perda pode
confundir os dois relacionamentos, interferindo tanto no luto quanto no investimento na
nova relação. Quando os eventos
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estressantes se acumulam, o apoio familiar pode ser crucial para facilitar a adaptação.
Perdas pós-traumáticas e luto não resolvido. Na avaliação da família, os genogramas e
as cronologias familiares são sobremaneira úteis para revelar seqüências e a
coincidência de eventos nodais ao longo do tempo na família multigeracional
(McGoldrick & Gerson, 1985). Em casos de separação conjugal, temos o cuidado
especial de investigar perdas que possam ter ocorrido no início do relacionamento,
assim como perdas que coincidiram com o aparecimento dos problemas conjugais.
Quando uma criança é o paciente identificado na família, prestamos uma atenção
particular a perdas não resolvidas que tenham coincidido com o nascimento do portador
dos sintomas. Estudos de Walsh (1978) e Mueller e McGoldrick Orfanidis (1976)
sugerem que a morte de um dos avós dentro dos dois anos do nascimento de um filho
pode contribuir para transtornos emocionais posteriores na criança, particularmente
quando de suas tentativas de se separar dos pais e de sair de casa na adultez jovem, que
podem perturbar o equilíbrio familiar.
Também dedicamos uma atenção especial aos padrões de aniversários
transgeracionais, quando a idade ou o estágio do ciclo de vida do paciente identificado
no aparecimento dos sintomas coincide com a idade ou o estágio de um dos pais ao
morrer ou ao fazer um luto uma geração antes. Em tais situações, os padrões ou cenários
familiares são replicados quando um filho, na geração seguinte, alcança a mesma idade
ou estágio que o pai no momento da morte ou da perda traumática. E crucial avaliar o
risco de suicídio ou comportamento autodestrutivo quando um filho(a) atinge a mesma
idade que um dos pais tinha por ocasião de sua morte prematura, traumática,
especialmente o genitor do mesmo sexo, com quem ele(a) tinha sido fortemente
identificado(a).
Quanto mais seriamente disfuncional for uma família, mais provável será que
tais ligações permaneçam ocultas e consideradas desconectadas pelos membros da
família. Em um caso apavorante, um menino de 15 anos esfaqueou um homem na rua,
em um episódio aparentemente dissociativo que a família ignorou. Durante a internação
psiquiátrica após uma segunda agressão similar, a avaliação da família revelou que o
pai, aos 15 anos, havia testemunhado a morte de seu próprio pai por esfaqueamento na
rua. Precisamos de mais pesquisas com famílias, direcionadas a estes padrões
transgeracionais de aniversários, para entendermos melhor os processos de transmissão.
Em nosso trabalho clinico, as intervenções devem ter como objetivo explicitar os
padrões ocultos e ajudar os membros das famílias a diferenciarem as relações presentes
das passadas, para que a história não precise se repetir.
A PERDA EM DIFERENTES ESTAGIOS DO CICLO DE VIDA
Entre Famílias: Adultos Jovens Independentes
Na vasta literatura sobre a perda, é notável que tão pouca atenção tenha sido
dada ao impacto da perda sobre os adultos jovens. A teoria clínica foi
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fortemente influenciada por um mito predominante em nossa cultura de que, uma vez
que um filho tenha crescido e saído de casa, seu relacionamento com a família não é
mais significativo. De fato, existem amplas pesquisas (por exemplo, Cohler & Geyer,
1982) indicando que os relacionamentos normais entre pais e filhos permanecem
íntimos e interdependentes por toda a vida adulta.
Quando os filhos saem de casa, a família deve se reorganizar como sistema e
renegociar as relações intergeracionais, substituindo a dependência e a autoridade
hierárquica da infância e da adolescência por um equilíbrio mais igualitário de adulto
para adulto. Os adultos jovens geralmente se preocupam assim como seus pais com a
possibilidade de voltarem a urna dependência anterior. Em famílias nas quais as
relações são especialmente próximas ou caracterizadas por conflitos intensos, os adultos
jovens podem romper totalmente com o sistema para obterem distância física ou
emocional. Estes rompimentos via de regra produzem somente uma pseudoautonomia,
que se desintegra em contato com a família. Entretanto, como esta postura se encaixa no
estereótipo normativo de independência de nossa sociedade, o significado da perda pode
não ser reconhecido, o que complica o luto.
Perda de filhos. A morte de um filho jovem é uma tragédia para toda a família, e
pode produzir um sofrimento duradouro e altamente perturbador (Gorer, 1965). Quando
uma morte prematura ocorre na adultez jovem, a família pode experimentar a sensação
de que foi cometida uma injustiça cruel com a vida que cessou antes de atingir sua
plenitude. O jovem adulto estava cheio de potencial, prestes a vivenciar os
compromissos e as realizações da vida, impedidos agora pela morte. A dor e a culpa
pela sobrevivência podem impedir os pais e os irmãos de continuarem seus próprios
projetos. Se o jovem adulto estava distante ou tinha conflitos com a família, ou se
morreu por suicídio ou acidente relacionado a drogas, o luto pode ser complicado pelo
estado não resolvido do relacionamento. A morte em combate em uma guerra, mesmo
quando é considerada heróica ou como um sacrifício na defesa patriótica de valores
nacionais ou ideológicos, é, não obstante, dolorosa para os pais, cujo sofrimento pode
persistir por anos a fio (Rubin, 1989). Os irmãos podem ficar bloqueados em seu
próprio potencial por rivalidades anteriores com o irmão morto, culpa e injunções
conflitantes da família para tentar substituir, mas não substituir realmente, o filho
perdido.
Brian, de 29 anos, buscou terapia devido a um ciclo repetitivo de criar para si
objetivos profissionais bastante grandiosos, que perseguia febrilmente, somente para
sabotar a si mesmo cada vez que estava perto do sucesso. Ele inicialmente resistiu a
fazer o trabalho de família de origem, porque sentia um desconforto extremo em
retornar à casa dos pais, onde, no 1all de entrada, havia um “santuário” para seu irmão
mais velho, que tinha morrido no Vietnã com 21 anos. Fotos, medalhas e placas
cobriam as paredes. Embora etc tivesse somente 17 anos quando o irmão morreu, ele
sentiu urna forte expectativa da parte dos pais para que realizasse os sonhos que eles
tinham para o primogênito. Entretanto, esta indução a um papel estava combinada com
urna contra-injunção de que seria desleal superá-lo. Ele gradualmente foi se dando conta
de que, dada a
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idealização que a família fazia de seu irmão, por mais que tentasse, ele nunca seria
capaz de igualá-lo. A terapia concentrou-se na modificação desta posição triangular,
ajudando a desamarrar este nó em suas relações presentes com a família.
Perda dos pais. Dada a tarefa evolutiva da adultez jovem e a tendência
culturalmente sancionada de negar a importância dos laços familiares nesta época, o
impacto da perda de um dos pais para os adultos jovens pode ser seriamente
subestimado por eles e por suas famílias, amigos e, mesmo, pelos terapeutas. A doença
fatal de um dos pais pode ser sobremaneira difícil para os adultos jovens que tenham se
mudado para longe e estejam investindo em um início de carreira e em compromissos
com novos relacionamentos (Walsh, 1989). Eles podem ficar divididos entre seus
próprios projetos imediatos e as obrigações filiais de cuidar dos pais. Os imperativos
evolutivos da adultez jovem podem entrar em conflito com as prioridades de pais idosos
que, de forma a se prepararem para a morte iminente, estão tentando aceitar suas vidas
do modo como foram vividas (Erikson, 1959). Especialmente para as mulheres cujas
identidades ficaram ligadas ao papel de mães, esta revisão da vida está grandemente
centrada nas realizações da maternidade e no relacionamento com os filhos. Os pais
podem experimentar uma maior dependência física, bem como uma necessidade de se
aproximar dos filhos, tanto para buscar neles a confirmação de que foram bons pais
como para aproveitar uma proximidade final com eles. Os filhos jovens, que estão se
afastando — e até mesmo lutando para isso — dos pais, mas ainda não se sentem
seguros sozinhos, podem se sentir ameaçados pela proximidade e pela dependência
parental. Enfrentar a morte de um dos pais pode reavivar temores da perda do self. O
impacto da perda parental em si pode não ser reconhecido, e o jovem adulto pode se
distanciar ainda mais da família.
Outra fonte de distanciamento é o medo de que os projetos recém-iniciados da
vida adulta tenham que ser abandonados ou deixados em SUSflSO para cuidar de um
dos pais que está morrendo, ou, após sua morte, para cuidar do sobrevivente e de outros
membros da família. Esta expectativa tende a pesar muito sobre o filho mais velho ou
mais ligado aos pais. O filho mais velho pode ser solicitado a se tornar o chefe da
família com a morte do pai, enquanto as filhas são tipicamente solicitadas a assumir as
principais funções de cuidadoras do genitor sobrevivente, dos irmãos mais novos e dos
avós idosos. Não é incomum para um filho adulto voltar para casa dos pais para auxiliar
no ajustamento imediato a uma viuvez recente. Quando estas responsabilidades se
tornam muito prolongadas, o movimento evolutivo do ciclo da vida pode ficar
bloqueado para o jovem adulto.
Perda dos avós. A perda dos avós nesta fase pode ser mais fácil, porque os
adultos jovens tiveram a vantagem de conhecê-los desde a infância. Se o avô era
querido, a perda será naturalmente lamentada, mas as ramificações emocionais terão
uma probabilidade maior de se propagarem pelo sistema se os pais e os avós tinham
uma relação difícil que continuava não resolvida no momento da morte.
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Casais Jovens: A União das Famílias pelo Casamento
Perda do cônjuge. A viuvez no início do casamento é relativamente incomum, e
sua prematuridade torna o luto extraordinariamente difícil para o cônjuge sobrevivente
(Parker & Weiss, 1983). A viuvez precoce tende a ser uma experiência chocante e
isoladora, devido à carência de preparação emocional ou suportes sociais essenciais.
Não surpreende que a morte repentina seja mais traumática nesta fase (Parkes, 1972,
1975) do que na vida posterior, quando as mortes prolongadas tendem a produzir
maiores tensões (Gerber, Riisalem, Hannon, F3attin & Arkin, 1975). Os(as) jovens
viúvos(as) não apenas têm que lidar com a perda em si, mas muitas vezes são evitados
pelos irmãos e pares, que precisam fugir do confronto com sua própria mortalidade ou
possibilidade de viuvez. Também existe uma tendência de que a família espere que o
cônjuge viúvo inicie rapidamente um novo relacionamento, negando o significado da
experiência devido à dor que ela cria. As relações entre o cônjuge sobrevivente e a
família do morto, que são geralmente tensas nesta fase do ciclo de vida, muitas vezes se
tornam ainda mais complicadas sem o abrandamento que vem com os anos e os netos.
Se o cônjuge sobrevivente cede à pressão de não expressar seu sofrimento muito
publicamente ou por muito tempo, ou corre para um flOVO relacionamento para evitar
a dor da perda, o luto negligenciado vai provavelmente ser abafado e vir à tona mais
tarde. Como seria de se esperar, as mulheres têm mais dificuldades em iniciar um novo
relacionamento do que os homens, especialmente quando a culpa e a deslealdade são
insinuadas pela família do esposo morto. Os homens tendem a tocar em frente mais
rapidamente, esperando que a nova parceira seja solidária com seu luto continuado
(Glick, Farkes & Weiss, 1975).
Perda de um filho não nascido. A infertilidade, muitas vezes uma perda oculta,
representa a perda dos sonhos para o futuro. Atualmente, ela afeta um número sem
precedentes de casais, devido, em muitos casos, ao uso de certos métodos de controle de
natalidade e ao adiamento da maternidade, bem como ao aumento das doenças
sexualmente transmissíveis. O impacto da perda pode ser gradual ao longo do tempo,
tornando-se mais doloroso com o passar de cada ciclo mensal e com a aproximação da
menopausa, especialmente quando as intervenções médicas falham repetidamente. A
perturbação da mulher pode ser aumentada por ela estar em descompasso com irmãs e
amigas, animadas com suas próprias gravidezes ou envolvimento com recém-nascidos.
Os casais podem evitar o contato com outros e não querer discutir sua situação. E
crucial que os clínicos amenizem seus sentimentos dc não progredirem “normalmente”
no ciclo dc vida familiar sem filhos e ajudem-nos a encontrar formas significativas de
expressar sua produtividade.
Outras perdas ocultas significativas incluem filhos natimortos e abortos
espontâneos e provocados. Estas perdas são muitas vezes desconhecidas dos outros, ou
não reconhecidas e consideradas como não eventos, tornando a perda mais dolorosa
(Lewis, 1976). As mulheres cm geral sentem mais profundamente a perda e o apego do
que seus cônjuges, especialmente quando a criança cresceu em seus corpos durante a
gravidez. Em casos de aborto espontâneo ou
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crianças natimortas, as mulheres também tendem a culpar a si mesmas, sentindo que a
perda resultou de sua deficiência ou ações danosa. O desapontamento e a tristeza podem
incluir a perda de futuros filhos e o temor de futuras complicações na gravidez. O
sofrimento de um casal ao ter um filho natimorto foi aumentado quando o diretor do
funeral lhes disse que os serviços fúnebres não eram realizados “tem tais
circunstâncias”, mas que ele ficaria feliz de “desfazer-se dos restos mortais” para eles.
O marido queria deixar o evento para trás rapidamente e tentar conceber outro filho. A
esposa conseguiu convence-lo a dar um nome para o bebê e enterrá-lo em uma sepultura
marcada, o que ajudou o casal a fazer o luto e a seguir em frente. Uma vez que a perda
de um filho coloca os casais em risco de separação, um grupo focal para casais pode ser
especialmente útil para facilitar o processo dc luto e promover o apoio mútuo entre os
cônjuges.
O impacto destas experiências de perda vai depender grandemente das crenças
religiosas ou culturais a respeito da infertilidade, dos abortos provocados e espontâneos
e das crianças natimortos. O trauma desafia o equilíbrio de um novo casal. Quando
existe estigma social ou falta de apoio da família e dos amigos, o casal pode se voltar
para si mesmo, havendo o risco seja de uma fusão, em uma postura de “dois contra o
mundo”, ou da culpabilização mútua pela incapacidade de preencher a sensação de
perda e vazio um do outro.
Perda dos pais. Quando a morte de um dos pais ocorre quando os jovens casais
estão se concentrando em suas próprias vidas, o processo de luto pode não ser feito tão
diretamente quanto em outras fases da vida. De fato, a doença ou a morte parental
podem empurrar um indivíduo para o casamento, sem que nenhum dos parceiros se dê
conta das questões emocionais por trás da decisão de casar (McGoldrick, 1989). Quando
o casamento serviu para melhorar as relações intergeracionais, a perda parental pode
não ser tão difícil quanto teria sido durante a fase independente da adultez jovem. For
outro lado, a morte de um dos pais pode deixar um filho (especialmente um filho único
ou o único a morar perto dos pais) ansioso a respeito da dependência e das necessidades
do sobrevivente, ao mesmo tempo em que faz o luto pelo que foi perdido.
Uma questão que recebe escassa atenção clínica é a mudança nas relações entre
irmãos adultos trazida pela morte de um dos pais. As irmãs tendem a ficar mais
estressadas neste processo do que os irmãos, por causa da expectativa de nossa cultura
de que as filhas tomem conta dos pais. Os irmãos tendem a dividir as responsabilidades
financeiras, mas não as de cuidados. Antigas rivalidades entre irmãos podem explodir
em conflitos a respeito de quem foi mais favorecido no final, mais sobrecarregado pelos
cuidados ou mais culpado pela morte.
A morte de um dos pais nesta fase, quando OS casais estão deslocando seu
compromisso básico para a relação conjugal, pode empurrá-los de volta para as
obrigações com a família de origem, complicando sua adaptação ao novo sistema. Se é
o segundo dos pais a morrer, o jovem adulto se torna prematuramente a última geração
sobrevivente, o que pode também gerar uma pressão para ter filhos. O sentido de
responsabilidade para com os pais pode produzir conflitos de lealdade entre a família de
origem e o casamento. A maior
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atenção, os cuidados físicos ou financeiros do pai sobrevivente ou a absorção no
processo de luto podem perturbar a relação conjugal, especialmente se o cônjuge se
sente negligenciado por um longo período de tempo. A falta de apoio torna o luto mais
difícil e pode levar ao desapontamento mútuo, com efeitos sobre a relação conjugal e
sexual (Paul & Paul, 1982). O apoio do parceiro não apenas facilita o luto como
também fortalece o casamento, e deve ser promovido em qualquer intervenção clínica.

Famílias com Filhos Pequenos


Perda do cônjuge. Para o cônjuge sobrevivente, a perda de um parceiro nesta
fase da vida é complicada pelas obrigações financeiras e de cuidados com os filhos, que
podem interferir nas tarefas do luto. Os filhos podem distrair o pai/mãe do luto, de
modo a manter o funcionamento de seu único genitor sobrevivente (Fulmer, 1983). Os
sintomas de uma criança podem servir a esta função de distração. Os outros irmãos
podem acobertar seu próprio sofrimento para não sobrecarregarem ainda mais o
sobrevivente. E importante que outros membros adultos da família e amigos contribuam
com cuidados, refeições e outros suportes concretos, para permitir o luto do pai/mãe
sobrevivente. Geralmente, os viúvos recebem mais apoio do que as viúvas nesta
situação. Entretanto, os homens tendem a ter menos amizades íntimas para facilitar o
trabalho do luto.
Perda de um filho. A morte de uma criança pequena tende a ser profundamente
perturbadora para a família toda. O sofrimento tende a persistir por anos a fio, e pode
até mesmo se intensificar com a passagem do tempo (Rando, 1985). O efeito pode ser
devastador sobre o casamento e a saúde dos pais. Diversos estudos documentaram a
grande angústia dos pais em processo de luto através de indicadores como depressão,
ansiedade, sintomas somáticos, auto-estima e senso de controle sobre a vida. A relação
conjugal fica particularmente vulnerável após a morte de um filho, com o risco de maior
deterioração da satisfação conjugal ao longo do tempo (Videka-Sherman & Lieberman,
1985). Taxas de divórcio de até 80% foram registradas entre casais que perderam filhos
(Bluebond-Langner, 1978; Kaplan, Grobstein & Smith, 1976; Schiff, 1977, Strauss,
1975).
Diz-se com freqüência: “Quando seus pais morrem, você perde seu passado;
quando seus filhos morrem, você perde seu futuro”. A morte de um filho envolve a
perda dos sonhos e das esperanças dos pais. Mais do que isso, a prematuridade e a
injustiça da morte de uma criança podem levar os membros da família ao mais profundo
questionamento do sentido da vida. De todas as perdas, o mais difícil é não idealizar
uma criança morta.
Os fatores relativos à criança que morre vão ter efeitos diferenciais sobre a
reação da família. Particularmente difícil pode ser a morte do primogênito, de um filho
único, do único filho de um dos sexos, de uma criança superdotada, de uma criança
difícil, em relação à qual os sentimentos dos pais eram particularmente ambivalentes, ou
de uma criança que morre em um acidente pelo
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qual os pais se culpam. Como as crianças pequenas são inteiramente dependentes dos
pais para sua segurança e sobrevivência, a culpa parental tende a ser especialmente forte
em mortes acidentais ou por causas ambíguas, como na SIDS (DeFrain, Taylor & Ernst,
1982). A culpa tende especialmente a recair sobre as mães, das quais se espera que
assumam as responsabilidades primárias pelo bem-estar dos filhos, mesmo quando a
negligência ou o abuso dos pais estão implicados. As dificuldades parentais
negligenciadas quando da morte de um filho podem se apresentar pelo comportamento
sintomático de um irmão, como no seguinte caso.
A família Lamb foi encaminhada para terapia devido a um problema de “recusa
da escola”, quando seu filho de 4 anos, Danny, recusou-se a ir para o maternal, a
despeito de seu bom ajustamento à escola do ano anterior. Quando indagados sobre
quem compunha a família, ninguém mencionou um irmão mais velho, Michael, que
tinha morrido três anos antes, aos 4 anos de idade. Ao colher a história familiar, a
terapeuta soube que Michael havia morrido subitamente, após desenvolver uma febre
alta. Os pais atribuíram a morte a um vírus que ele teria pego no maternal. O Sr. Lamb
(e sua mãe) culpavam secretamente a Sra. Lamb por ter levado Michael para o maternal
quando tantas crianças estavam contaminadas com a gripe. Os pais ainda mantinham o
quarto de Michael do jeito corno era, e a mãe continuava a festejar os aniversários dele
com Danny, fazendo um bolo a cada ano com velas para a idade que ele teria se
estivesse vivo.
O luto pela perda dc um filho é facilitado quando ambos os pais podem
participar dos cuidados com a criança doente antes de sua morte (Mulhern, Laurer &
Hoffman, 1983) e quando eles têm uma filosofia de vida consistente (Spinetta, Swarner
& Sheposh, 1981) ou fortes crenças religiosas (Martinson, Moldow & Henry, 1980). Os
grupos de auto-ajuda são extremamente valiosos para os pais nesta situação, oferecendo
uma rede de apoio para facilitar o enfrentamento da dor da experiência (Videka-
Sherman & Lieberman, 1985).
Perda de irmãos. Quando da morte de um filho, os irmãos muitas vezes são
negligenciados, juntamente com outros membros da família para os quais a perda
também pode ser devastadora. A morte de um irmão pode ser seguida de um luto
prolongado em algumas crianças, que podem experimentar reações nos aniversários por
anos após a perda (Cain, Fast & Erickson, 1964). A rivalidade normal entre irmãos pode
contribuir para uma intensa culpa entre os sobreviventes, que pode bloquear o
desenvolvimento pleno até a vida adulta. Para as crianças, a morte de um irmão tende a
ser acompanhada por uma perda experimentada dos pais, que estão preocupados com os
cuidados ou com o luto, ou podem até mesmo se distanciar de seus filhos por medo de
ficarem tão vulneráveis à perda novamente. Em caso de doenças e cuidados
prolongados, os irmãos também têm que enfrentar a diminuição da atenção a suas
necessidades. Em muitos casos, os pais se tornam excessivamente protetores e
vigilantes em relação aos filhos sobreviventes, e depois têm dificuldades
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com as transições normativas envolvendo a separação na adolescência e no momento de
sair de casa.
Um dos irmãos também pode ser colocado na função de substituto para a
família. De fato, é bastante comum que pais que perderam ou estão perdendo um filho
concebam outra criança assim que possível. Estudos sugerem que esta reação de
substituição não é necessariamente patogênica, uma vez que se sabe que investir energia
nos filhos sobreviventes facilita o ajustamento positivo dos pais ao longo do tempo
(Videka-Sherman, 1982). Entretanto, as conseqüências a longo prazo para a criança
substituta ainda não foram bem investigadas (Cain & Cain, 1964; Tegg & Sherick,
1976). Nossa experiência clínica sugere que esta reação se torna disfuncional se as
necessidades e as qualidades singulares da criança não puderem ser reconhecidas ou
valorizadas. Nestes casos, as tentativas normativas de separação e individuação tendem
a ser problemáticas para a criança, a perturbar o equilíbrio familiar e a precipitar reações
adiadas de luto em outros membros da família.
Perda do pais. Crianças que perdem um dos pais podem sofrer conseqüências
profundas a curto e longo prazos (Furman, 1974; Osterweis et al., 1984), incluindo
doenças, depressão e outros transtornos emocionais na vida adulta subseqüente. Elas
podem experimentar dificuldades em formar laços íntimos e podem carregar temores
catastróficos de separação e abandono. Nossa experiência clínica sugere que os
compromissos conjugais tendem a ser mais problemáticos quando o genitor do sexo
oposto foi perdido durante a infância. A dificuldade posterior em ter filhos também é
comum, especialmente se o genitor do mesmo sexo foi perdido na infância. Um pai/mãe
pode funcionar normalmente até que um de seus filhos alcance a mesma idade em que
ele/ela passou por um processo de luto. Neste ponto, a relação pode ficar bloqueada, o
pai/ mãe pode se distanciar e/ou a criança se tornar sintomática.
As reações das crianças à morte vão depender de seu estágio de
desenvolvimento cognitivo, do modo como os adultos lidarem com elas no que diz
respeito à morte e do grau de cuidados que elas perderem. Em primeiro lugar, é
importante que os adultos reconheçam as limitações da capacidade de rima criança de
compreender o que está acontecendo e não fiquem alarmados com reações
aparentemente sem emoção ou “inapropriadas”. Por exemplo, uma criança pode abordar
estranhos dizendo “Minha mãe morreu” como um meio de buscar apoio e compreensão
pela observação das reações dos outros (Osterweis et al., 1984). Em segundo lugar, é
crucial que os pais e os outros adultos não excluam as crianças da experiência da perda,
na esperança de poupá-las da dor (ver Bowen, capítulo 4). Terceiro, é importante que as
funções do pai/mãe perdido e do cônjuge em processo de luto sejam reconhecidas e
desempenhadas por outros membros da família. Se, além da perda de um dos pais, a
criança tiver que lidar com um vácuo em seus cuidados enquanto o pai/ mãe
sobrevivente está deprimido ou preocupado, pode haver conseqüências sérias e
duradouras. O modo como uma criança lida com a perda de um dos pais depende
grandemente do estado emocional do pai/mãe sobrevivente (Rutter, 1966; Van
Eerdewegh, Bieri, Parilla & Clayton, 1982). O papel de apoio da família extensa deve
ser estimulado.
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Perda dos avós. A perda de um dos avós nesta fase tende a ser a primeira
experiência dc uma criança em aprender a lidar com a morte. As crianças
provavelmente serão mais ajudadas se forem incluídas na experiência de luto dos pais, e
se sentirão seguras vendo que eles sabem como lidar com uma perda. Se o avô/avó
sofreu uma doença prolongada, durante a qual um dos pais assumiu a principal
responsabilidade por seus cuidados, este vai estar dividido entre as pesadas
responsabilidades de cuidar de uma criança pequena e as obrigações filiais para com o
genitor que morreu e o sobrevivente. Como em qualquer morte, quanto menores os
recursos familiares em termos de disponibilidade da família extensa, de amigos e de
apoio financeiro, mais perturbado será o sistema.
Famílias com Adolescentes
A morte nesta fase do ciclo da vida pode ser particularmente traumática, pois a
tarefa evolutiva primária da separação adolescente entra em conflito com a experiência
da perda, que requer que a família se aproxime para servir de apoio a seus membros.
Perda de um filho. As mortes mais comuns entre adolescentes são em acidentes
(muitas vezes complicados por comportamentos arriscados como abuso de álcool e de
drogas e direção imprudente), suicídio, homicídio e câncer. Quando a morte está
associada com comportamentos arriscados, os pais e os irmãos podem ter sentimentos
de raiva em relação ao filho morto, frustração em relação ao seu comportamento
impulsivo e tristeza pela perda sem sentido. Qualquer um dos problemas da vida,
incentivado pela pressão dos pares, pode contribuir para o comportamento
autodestrutivo de um adolescente, ou para sua decisão de cometer suicídio. Quando
ocorre uma tentativa de suicídio, a família inteira deve ser reunida, ajudada a
compreender e reconstruir os sentidos que cercam a experiência, e a reparar a
fragmentação familiar resultante de adversidades anteriores (ver Gutstein, capítulo 13).
E crucial explorar as conexões possíveis com outras perdas traumáticas no sistema
familiar (Coleman & Stanton, 1978; Landau Stanton & Stanton, 1985), especialmente
outros suicídios, como no seguinte caso.
Um menino de 13 anos foi hospitalizado após uma tentativa de suicídio. Ele e a
família não sabiam como explicar o episódio, e não fizeram menção a um irmão mais
velho já morto. A avaliação da família revelou que o menino havia nascido pouco antes
da morte de um filho mais velho, aos 13 anos. Ele cresceu tentando ocupar o lugar do
irmão que nunca conheceu, de modo a aliviar a tristeza dos pais. O pai, que não
conseguia lembrar a data ou os eventos que cercaram a morte, queria lembrar do
primeiro filho “como se ele ainda estivesse vivo”, O menino cultivava sua aparência, de
modo a se parecer com as fotos do irmão. Somente quando foi indagado a respeito de
seu irmão é que o menino respondeu que tinha tentado o suicídio “para encontrar meu
irmão de 13 anos no céu”. O momento correspondeu a ele alcançar e sobreviver à idade
da morte do irmão, e à sua preocupação, com o estirão de crescimento da puberdade, de
que
66
estava ficando diferente dii aparência que “devia” ter. A terapia familiar se concentrou
em capacitar o menino e seus pais a abandonarem esta posição substitutiva e a seguirem
em frente em seu desenvolvimento.
No caso do câncer, as crianças pequenas geralmente seguem o tratamento e
ficam perto de seus pais, mas, para os adolescentes, o trauma da doença e seu
tratamento podem ficar entremeados de rebeldia, aumentando a dificuldade para os pais.
As crianças podem resistir às medicações ou aos tratamentos como sendo tentativas dos
pais ou das autoridades médicas de controlá-las, colocando, deste modo, severos riscos
para sua saúde. Enquanto os pais, mais conscientes das conseqüências a longo prazo,
lutam com os adolescentes ligados no presente, as instâncias de ajuda ficam muitas
vezes divididas entre os dois.
Perda de irmãos. Os irmãos freqüentemente se afastam da família e dos amigos
após a morte de um adolescente. Eles podem não falar com ninguém sobre a
experiência, chegando mesmo a nunca esclarecerem a natureza da morte. As diferenças
entre os estilos de enfrentamento dos membros da família podem agravar os problemas
que se seguem a uma perda: tipicamente, em nossa cultura, os adolescentes podem
rechaçar as tentativas das mães de compartilhar sentimentos, enquanto que seus pais se
distanciam ou mergulham no trabalho. Estas reações vão, é claro, ser modificadas pela
bagagem cultural e pela experiência particular da família de origem cm lidar com
perdas. Infelizmente, se os estilos de resposta dos membros da família forem muito
diferentes, isto pode tornar o luto ainda mais difícil.
Perda do Pais. Para o adolescente, cujas tarefas evolutivas envolvem o
afastamento da influência e do controle parentais, a morte de um dos pais tende a ser
complicada por sentimentos negativos e conflitantes em relação a ele/ela. Se os outros
membros da família idealizam o pai/mãe morto, a experiência de desqualificação do
adolescente pode levar a uma sensação crescente de isolamento e incompreensão por
parte dos membros da família.
Se os adolescentes já desejavam anteriormente se ver livres do controle parental,
eles podem desenvolver uma culpa considerável. A morte de um dos pais nesta fase
também é complicada pelos modelos de atuação, no sentido de evitar a dor, que ele
pode encontrar entre seus pares. Meninos que perdem um’ dos pais com freqüência se
voltam para o roubo, as drogas ou brigas, ou se retraem socialmente, enquanto que as
meninas tendem a unir-se às irmãs ou a sexualizar as relações com pares, buscando a
proximidade de modo a serem confortadas e a substituírem o que perderam (Osterweis
et ai., 1984). O comportamento de atuação adolescente é, por sua vez, estressante para a
família, e a experiência da perda parental pode sobrecarregar a adaptabilidade do
sistema. Instâncias externas podem acabar envolvidas, particularmente autoridades
escolares ou juvenis. Estes sistemas amplos tendem a focalizar unicamente o
comportamento problemático do jovem, o que pode exacerbar ainda mais os conflitos. E
crucial avaliar o contexto dos problemas de comportamento rotineiramente e, quando
tiverem ocorrido perdas recentes, assistir a família, e não somente o membro
sintomático, na resolução.
67
Perda dos avós. Em nossa experiência, a morte de um dos avós é muitas vezes
um precipitante oculto quando os pais buscam tratamento para o comportamento
problemático de seus adolescentes. O adolescente é, com freqüência, o barômetro dos
sentimentos familiares, aquele que expressa o inexprimível e chama a atenção
necessária para os problemas familiares. E crucial avaliar as mudanças recentes na
família extensa. Se os pais não conseguem lidar com suas próprias questões emocionais
de perda, um adolescente muitas vezes vai assumir os sentimentos parentais e, na falta
de um meio melhor para ajudar, transformar-se em alvo pelo mau comportamento,
como no seguinte caso:
A Sra. Wolff requisitou tratamento psiquiátrico para seu filho de 15 anos, Paul,
afirmando temer que ele “precisasse ser institucionalizado”, pois seu comportamento
estava “fora de controle”. Ele tinha se tornado intratável nos últimos meses, e ela se
sentia cada vez mais perdida ao lidar com ele. A entrevista de avaliação familiar revelou
que, oito meses antes, a avó materna, já bastante deteriorada pelo mal de Alzheimer,
tinha vindo morar com a família. A Sra. Wolff, em lágrimas, descreveu a dificuldade
que sentia para cuidar da mãe em casa. Ela estava assustada com a crescente perda de
controle do funcionamento da mãe, e se sentia incapaz de evitar um acidente
potencialmente fatal.
Quando indagada se a família tinha considerado a institucionalização da avó, a
Sra. Wolff respondeu que isto estava “fora de questão” e que nem havia sido discutido,
urna vez que ela tinha prometido ao pai, em seu leito de morte um ano antes, que
sempre iria cuidar da mãe. Sentindo-se abandonada em seu pesado e conflituoso dilema,
a Sra. Wolff tinha se concentrado cada vez mais em brigas com o filho a respeito de seu
comportamento. Em um círculo vicioso, quanto mais ela tentava controlá-lo, mais ele se
tornava desafiador e imprudente. Seu marido tinha se distanciado progressivamente dela
desde a morte do pai e da mudança da mãe para a casa da família, e parecia
desconfortável com a morte, com a má saúde da sogra e com o luto da esposa. A Sra.
Wolff sentia que estava totalmente sozinha com seu dilema.
A exploração do genograma e da história familiar do marido revelou que,
quando a mãe dele tinha ficado terminalmente doente, cinco anos antes, ele havia
deixado todos os cuidados a cargo de sua irmã. A situação atual reavivava uma culpa
persistente e sua crença de que o fato de que ele não foi capaz de assumir mais
responsabilidades nos cuidados dela tinha contribuído para sua morte precoce.
A terapia envolveu a reintegração do pai no desenvolvimento do filho e na vida
da esposa, ao mesmo tempo em que a ajudou a separar os conflitos e as questões que ela
tinha com a mãe daquelas que tinha com o filho. O envolvimento do marido foi
encarado como urna oportunidade para que ele partilhasse mais inteiramente das
combinações relativas aos cuidados com a sogra, como ele gostaria de ter feito com a
própria mãe. Ambos os pais foram estimulados a estruturar um papel mais claro para o
filho no cuidado da avó e também a usar algumas economias para propiciar cuidados
extras para que a mãe não se desgastasse demais. Embora inicialmente resistente às
mudanças, quando ficou claro para o filho que havia novas regras e que ele teria que
respeitá-las, ele se saiu
68
melhor do que os outros ao lidar com a avó, e o mais capaz de articular a dor de sua
crescente deterioração. Com mais apoio e responsabilidades específicas, seu
comportamento de atuação cessou.
Uma Visão sistêmica da situação em questão requer uma investigação sobre o
funcionamento da relação conjugal e as possíveis contribuições para o dilema desde a
experiência da família de origem do outro cônjuge, como indica este caso. Além disso,
como Paul, os adolescentes são menos ambivalentes e expressam mais abertamente a
tristeza com a perda de um dos avós do que seus pais. Naturalmente, um pai pode se
sentir em conflito ao ter que lidar simultaneamente com a morte de um dos avós e a
separação do adolescente. Esta experiência será intensificada se a sua própria
adolescência tiver sido problemática. O luto tende a ser complicado por triângulos
intergeracionais duradouros, nos quais os problemas entre pais e avós uma geração
antes levam a uma coalizão entre avós e netos, com o pai/mãe (visto como o inimigo
comum) em uma posição externa. Se não forem reparados, estes triângulos podem ser
repetidos na geração seguinte.
Filhos Saindo de Casa
As famílias experimentam uma importante revolução transicional quando os
filhos saem de casa e a unidade doméstica bigeracional se reorganiza em uma díade
conjugal. O impacto da morte dc um jovem filho adulto sobre os pais e o da morte de
um dos pais sobre o jovem adulto já foram discutidos. A morte dc um cônjuge e de um
dos avós será considerada aqui.
Perda de um cônjuge. Quando os filhos saem de casa, os cônjuges devem
renegociar seu relacionamento, que não está mais centrado na sua criação.
Simultaneamente, na meia-idade, quando os homens tipicamente começam a enfrentar
sua própria mortalidade, as preocupações a respeito da viuvez começam a ficar
proeminentes para as mulheres, que têm a expectativa de viver mais do que seus
maridos. As mulheres, que são geralmente mais jovens do que seus maridos, têm quatro
vezes mais chances de sobreviver a seus cônjuges do que os homens. Elas tendem a
ficar viúvas em uma idade mais precoce do que os homens e a permanecerem assim por
muitos anos. Com esta antecipação, mulheres que sempre foram financeiramente
dependentes e emocionalmente centradas nos maridos podem ficar mais preocupadas
com a saúde deles do que com o seu próprio bem-estar (Neugarten, 1970). Nós
estimulamos as mulheres a colocarem suas vidas em perspectiva — a considerarem
como elas vão se sustentar e a construir redes sociais de apoio para aqueles anos que
provavelmente vão passar sozinhas. Os homens, que tendem menos a antecipar a
viuvez, podem carecer de preparação e experimentar um choque maior com a perda das
esposas. Deve ser notado que a taxa de suicídio entre homens que ficam viúvos na meia-
idade é excepcionalmente alta (Butler & Lewis, 1983).
A viuvez na meia-idade é muito mais difícil do que na velhice, porque ela vem
fora de hora em relação às expectativas sociais, e não é comumente experimentada
69
pelos pares. Quando os filhos saem de casa, os casais reinvestem a energia no
casamento e fazem planos para o futuro, com a antecipação de compartilharem
atividades que vinham adiando enquanto a criação dos filhos consumia sua atenção e
seus recursos financeiros. Com a morte de um parceiro, estes planos e sonhos de um
futuro compartilhado são perdidos. Os amigos e os outros casais que ainda não estão
prontos para confrontar sua mortalidade podem se distanciar do sobrevivente. O
viúvo(a) também pode relutar em sobrecarregar os filhos que recém saíram de casa e
ainda não estão estabilizados, ou os pais idosos, que têm menos recursos e maiores
necessidades de cuidados.
Perda dos pais(avós). Quando os filhos saem de casa, os casais estão tipicamente
enfrentando perdas de dois lados, pois seus pais estão declinando de saúde e morrendo.
As pesquisas com famílias de bom funcionamento indicam que a maioria dos adultos de
meia-idade estão preparados para assumir responsabilidades crescentes nos cuidados de
seus pais idosos e a aceitar suas mortes como ocorrências naturais inevitáveis do ciclo
da vida (Lewis, 1976; Neugarten, 1970). Não obstante, o ajustamento à perda é
freqüentemente complicado pelas preocupações com as exigências feitas ao cuidador, a
negligência ou o abandono; filhos que cuidam dos pais podem sentir que seus esforços
não foram apreciados pelo pai/mãe que morreu ou por irmãos menos envolvidos, que
podem, por sua vez, sentir-se culpados por não terem contribuído mais.
Os processos de cuidados e de luto tendem a ser mais complicados para toda a
família em casos em que as tensões ou os rompimentos intergeracionais foram muito
longos. Clinicamente, procuramos, sempre que possível, aproximar os que se afastaram
e promover a união intergeracional, fortalecendo a família para lidar com a perda. Uma
revisão familiar conjunta (Walsh, 1989) pode ser valiosa para estruturar o
compartilhamento de lembranças no curso do ciclo de vida da família, de modo a si
obter uma perspectiva evolutiva mais equilibrada das relações familiares. Como o
crescimento e a mudança têm lugar continuamente, os membros podem descobrir que
questões que eram dolorosas em um estágio anterior do ciclo de vida são agora vistas
diferentemente, com novas oportunidades para a resolução ou pelo menos para um
entendimento mais empático das diferenças e dos desapontamentos.
Com a morte dos pais idosos, os filhos adultos tipicamente começam a
confrontar sua própria mortalidade e a pensar cada vez mais no tempo que lhes resta. A
morte do último membro sobrevivente da geração anterior torna-os especialmente
conscientes de que eles são agora a geração mais velha, e a próxima a morrer. Como a
existência de netos geralmente facilita a aceitação da mortalidade, pode haver pressão
sobre a geração que acaba de sair de casa para se casar e iniciar uma família.
Famílias na Velhice
Com o aumento da expectativa de vida, as famílias de quatro ou cinco gerações
estão se tornando mais comuns, e casais já aposentados, com recursos diminuídos, estão
sendo cada vez mais requisitados a cuidar de seus pais muito
70
idosos. A tarefa central do ciclo de vida na velhice, que é a de aceitar a própria
mortalidade, torna-se bastante real à medida que os irmãos, cônjuges e pares vão
morrendo. Sobreviver à morte de um filho adulto pode ser especialmente doloroso.
Múltiplas perdas coincidentes, embora comuns nesta fase, são, não obstante, um
choque. Em reação, algumas pessoas mais velhas se retraem da proximidade e da
dependência em relação a outros idosos, para não terem que experimentar ainda mais
perdas. Os conflitos familiares intergeracionais podem explodir devido a questões de
cuidados, dependência e perda de funcionamento e de controle, à medida que a saúde
declina e a morte se aproxima (Walsh, 1989).
Perda do cônjuge. Em um casamento, é inevitável que um parceiro morra antes
do outro. Como foi observado, as mulheres têm mais chances de sobreviver a seus
maridos, por sete anos em média. Mais de três quartos dos homens com mais de 65 anos
são casados, em contraste com apenas um terço das mulheres desta idade (l3utler &
Lewis, 1983). Este desequilíbrio de gêneros é um dos problemas mais pungentes dos
idosos. Os homens mais velhos, que tendem a selecionar parceiras mais jovens, têm
mais opções conjugais; as chances das mulheres casarem novamente são poucas, uma
vez que há menos homens em sua faixa etária e as relações com homens mais jovens
são menos aceitas socialmente. Além disso, se o casamento anterior foi profundamente
valorizado, ou, ao contrário, muito penoso, alguns viúvos(as) mais velhos(as) preferem
simplesmente nunca casar novamente.
Os viúvos correm um risco especialmente alto de morte e suicídio no primeiro
ano de luto, devido à sensação inicial de perda, desorientação e solidão, e por causa da
perda das funções de cuidadora da esposa. A vulnerabilidade dos maridos à perda
também pode ser maior porque os homens são socializados paja minimizar sua
consciência da dependência em relação às mulheres. Além disso, como os homens têm
menos chances de ficarem viúvos, eles estão menos preparados para o ajustamento. As
mortes de viúvos nos primeiros seis meses de luto estão 40% acima da taxa esperada
para os homens casados da mesma idade.
O processo de ajustamento à viuvez na velhice foi bem estudado (Lopata, 1973).
As tarefas psicossociais para esta transição são duas: fazer o luto da perda do cônjuge e
reinvestir no funcionamento futuro. Lopata identificou três fases neste processo dc
ajustamento para as mulheres, as quais correspondem aproximadamente às tarefas de
adaptação familiar que delineamos no capítulo 1. A primeira é afrouxar os laços com o
cônjuge e reconhecer o fato da morte, transformando as experiências diárias em comum
em lembranças; o estímulo à expressão aberta do luto e da perda é importante neste
momento. Em segundo lugar, dentro de um ano, a atenção tipicamente se volta para as
tarefas de estar física e emocionalmente sozinha as exigências do funcionamento diário,
do sustento, da administração da casa. A seguir, as mulheres tipicamente começam a
terceira fase do ajustamento, que envolve a mudança para novas atividades e o interesse
nos outros. A perda na viuvez é militas vezes agravada por outros deslocamentos,
particularmente quando a casa e a comunidade social da família são abandonadas 011
quando a perda financeira ou a doença reduzem
71
o funcionamento independente. É interessante que os viúvos(as) sejam a única classe de
pessoas enlutadas a receber um título específico que define seu status. Contudo, esta
identidade é um lembrete constante da perda e pode impedir o processo de retomada da
vida. E, ao contrário do divórcio, um cônjuge falecido não é referido como um ex-
marido ou ex-mulher.
A Morte em Famílias Divorciadas e Casadas novamente
Com a tendência das taxas atuais de divórcios, novos casamentos e novos
divórcios continuarem altas, os membros das famílias tendem a experimentar uma
variedade de perdas. A investigação clínica deve se estender para além do ambiente
familiar imediato, para a rede mais ampla de relações, e não negligenciar as mortes em
casamentos anteriores e famílias sem parentesco sangüíneo. A morte de um ex-cônjuge
pode provocar uma reação de luto surpreendentemente forte, muito embora o casamento
tenha terminado anos antes, como no seguinte caso.
Sarah só soube da morte de seu ex-marido, Paul, por um vizinho. Seu
sofrimento, cuja intensidade a surpreendeu, tomou-se mais doloroso devido a sua
exclusão dos outros membros da família, preocupados em proteger a viúva e os filhos
de Paul de sua presença potencialmente perturbadora em meio a sua tristeza. Embora
Sarah tivesse sido muito ligada aos pais e aos amigos de Paul por muitos anos, ela
nunca tinha conhecido sua segunda esposa e os filhos deles, e não foi convidada para
receber as condolências na casa da família. Ela foi ao velório sozinha, e, como os outros
presentes evitavam o contato com ela, sentiu-se corno um fantasma nas sombras, Foi
extremamente importante para ela o fato de seu atual marido e um velho amigo terem-
na acompanhado em uma visita ao cemitério no dia seguinte, e terem sido solidários
com seu sofrimento.
Assim como as conexões das crianças na rede familiar devem ser facilitadas,
suas perdas também devem ser consideradas quando da morte de familiares com ou sem
laços de sangue que foram importantes para elas em alguma fase de seu
desenvolvimento. Também é importante compreender as dificuldades dos adultos na
formação de relações com seus enteados ligadas à morte de um filho no casamento
anterior. Além disso, quando o padrasto/madrasta criam apego muito grande a seus
enteados e assumem responsabilidades financeiras, entre outras, a morte de seu cônjuge,
o pai/mãe biológico, deixa-os sem nenhum direito legal de continuar a relação com as
crianças. Em outros casos, se existem fortes conflitos de lealdade quando da morte de
um dos pais, os filhos podem contestar veementemente um testamento que favoreça um
padrasto/madrasta em detrimento do pai! mãe biológicos. Finalmente, com a crescente
prevalência de novos casamentos, os casais estão cada vez mais enfrentando um dilema
desconfortável de discutir: com qual cônjuge eles devem ser enterrados? Para os filhos
de famílias divorciadas, podem ressurgir antigos desejos de ver os pais reunidos para
sempre em seus túmulos.
72
DISCUSSÃO
Uma apreciação das complexidades variáveis da perda no curso do ciclo de vida
familiar e dos desafios previsíveis comumente associados à adaptação em cada estágio
do desenvolvimento é extremamente valiosa para a avaliação e a intervenção com
famílias. Ao mesmo tempo, dada a diversidade das formas familiares e dos cursos de
vida em nossa sociedade, devemos ter o cuidado de não confundir os padrões comuns
com os normativos (Walsh, 1982), ou de sugerir que as trajetórias ou os momentos são
patológicos quando são diferentes. Muitas vidas e relacionamentos não se encaixam
perfeitamente nas categorias e na sucessão de estágios descritas acima, e perdas
significativas podem não ser reconhecidas. Por exemplo, as questões de perda relativas
à infertilidade ou a abortos espontâneos não estão limitadas a casamentos recentes sem
filhos. Indivíduos solteiros ou casais que decidiram não ter filhos podem ser tomados
erroneamente como sofrendo ou compensando uma perda, como fica insinuado em
nosso vocabulário, que os rotula como não-casados e sem filhos. A morte de um
parceiro é complicada para os casais de gays e lésbicas devido ao estigma social e às
limitações legais, que não legitimam seus “casamentos”. Quando o relacionamento foi
sempre mantido em segredo, a perda mesma pode ser ocultada. A singularidade de cada
curso de vida em seu contexto precisa ser apreciada em todas as avaliações do ciclo de
vida multigeracional familiar e em nosso entendimento do sentido da perda.
73
Capítulo 3
Ecos do Passado: Ajudando as Famílias a Fazerem o Luto de suas Perdas
MONICA MCGOLDRICK
O luto antigo, não resolvido, não se dissipa, mas permanece, abrindo um caminho de
fogo em minhas experiências e relacionamentos adultos.
Parnela York Klainer, Good doughter, good mother
A morte faz cessar urna vida, mas não os relacionamentos, que podem lutar na mente do
sobrevivente em busca de urna solução que podem nunca encontrar.
Robert Anderson, I never sang for my father
A coisa mais importante de se saber a respeito dos americanos... é que...[eles] pensam
que a morte é opcional.
Jane Walmsley, Brit-think; Ameri-think,1986
A morte é a questão fundamental com a qual vamos nos deparar na vida. Ela está no
coração da experiência humana. Ela nos força a confrontar nossa prioridade máxima —
lembrando-nos mais poderosamente do que qualquer outra coisa do quanto as relações
familiares são importantes.
Uma vez que a negação da morte é uma característica tão proeminente de nossa
sociedade (Becker, 1973; Walsh & McGoldrick, capítulo 1), não nos surpreende que
tantos casos girem em torno da perda, mesmo quando ela não é o problema manifesto.
Ajudar as famílias a lidar com a morte é um aspecto central da terapia familiar. Não
acredito que métodos terapêuticos puramente interacionais sejam adequados para
responder a uma experiência familiar de perda que tenha sido bloqueada, e discordo
daqueles terapeutas que, como Haley, sustentam que não acreditam em fantasmas e,
portanto, focalizam seu trabalho exclusivamente nas interações entre os vivos.
Para sermos terapeutas sistêmicos efetivos ao lidar com a questão da morte, precisamos
estar comprometidos com a importância das conexões humanas e com a continuidade
das relações familiares. Com uma freqüência surpreendente,
76
os sintomas refletem a dificuldade de uma família em se adaptar à perda e seguir em
frente, seja o problema o abuso de drogas ou álcool, o comportamento perturbado de
uma criança ou adolescente, a ansiedade, fobias ou compulsões, conflitos conjugais, a
depressão ou a incapacidade dos membros da família de saírem de casa ou de se
comprometerem em outros relacionamentos.
Quando os membros da família se comunicam abertamente sobre uma morte
(independente de suas circunstâncias) e participam juntos dc rituais culturalmente
significativos (por exemplo, ritos funerários e visitas ao túmulo), a morte se torna mais
fácil de integrar. As tentativas de proteger as crianças ou os membros “vulneráveis”
desta experiência tendem a tornar o luto mais difícil. Tolerar as diferenças nas reações à
morte, incluindo os inevitáveis sentimentos ambivalentes em relação ao morto, é
essencial. Quando a lealdade familiar demanda uma certa reação que não corresponde
aos verdadeiros sentimentos, o processo de luto é adiado, ou, em alguns casos,
inteiramente evitado. Até conseguirem fazer o luto, os membros da família permanecem
em um grau maior ou menor aprisionados por ele.
O processo de luto pode durar anos, durante os quais cada estação, feriado e
aniversário van evocar novamente a antiga sensação dc perda. Enquanto este processo
continua, a família deve se ajustar à ausência de seu membro morto. Os papéis e as
tarefas são redistribuídos, novos relacionamentos são formados e as antigas alianças são
transformadas. Eventualmente, chega um momento cm que a maioria das famílias
consegue, de forma geral, aceitar sua perda, embora o luto nunca seja totalmente
terminado. Sempre haverá eventos que detonam lembranças da pessoa perdida, mas,
com o tempo e a cicatrização, a dor se torna menos crua e intensa, liberando energia
para outros relacionamentos.
Após uma perda, as famílias devem se reestruturar sem a pessoa morta, cujos
papéis e funções devem ser assumidos por outros. Quanto mais importante era o morto
para o funcionamento emocional ou prático da família, mais difícil é o ajustamento para
os remanescentes. Quando um filho morre, a reestruturação familiar requer que se
encontre um novo foco para o amor e os cuidados que anteriormente eram dedicados
àquela criança. Se as famílias não fazem este reajustamento, elas podem sobrecarregar
os outros filhos ou distorcer seus relacionamentos, fazendo de alguém o substituto do
filho morto.
A perda de um dos pais ou do cuidador primário apresenta o desafio mais difícil.
As funções centrais de provedor dos cuidados devem ser assumidas por outra pessoa.
Preencher a perda emocional dos pais é outra questão. As vezes, um tio, uma tia ou um
dos avós pode preencher esta falta. Se os recursos não estiverem disponíveis, a perda
será seriamente agravada.
Quando as famílias não fazem adequadamente o luto de suas perdas, elas não
conseguem seguir em frente com as tarefas do viver. Os membros da família podem
culpar a si mesmos ou uns aos outros pela morte; eles podem tentar transformar outras
pessoas em substitutos para a pessoa perdida ou se absterem de experimentar novamente
a proximidade com os outros. Não é a morte em si, mas a evitação da experiência pela
mistificação e do mito, que
77
passa a ser problemática. Mesmo uma perda traumática pode ser suportada, desde que
os membros da família possam aceitá-la e reestruturar seu relacionamento para seguir
em frente com suas vidas. As famílias podem se adaptar às piores circunstâncias. Elas
só ficam aprisionadas quando não conseguem reconhecer a perda e a necessidade de
reorganizar e reorientar a família e suas vidas (Kuhn, 1981).
AVALIANDO A MORTE NA FAMÍLIA
É importante investigar os padrões de adaptação à perda como uma parte
rotineira da avaliação familiar, mesmo quando esta questão não é apresentada
inicialmente como relevante para as queixas principais. E muito útil construir um
genograma trigeracional e uma cronologia ou linha do tempo familiar, com os eventos
de maior estresse, como parte da avaliação de cada família (McGoldrick & Gerson,
1985, 1989). Estas ferramentas permitem ao profissional organizar as informações
reunidas em uma entrevista rápida e facilmente, sem ter que coletar uma história
familiar elaborada. Pode-se observar todas as perdas e reconstituir seu momento, suas
circunstâncias e seu impacto, tornando mais fácil a investigação de padrões relevantes
para os problemas manifestos, bem como a de estratégias e recursos de enfrentamento
que vão influenciar a adaptação dos membros da família a estes problemas.
Ao avaliar a reação de uma família à morte, o terapeuta deve levar em conta os
fatores gerais delineados nos capítulos 1 e 2.
A ADAPTAÇÃO DISFUNCIONAL À PERDA
Quando o luto é bloqueado, diversos processos podem ocorrer: os
relacionamentos se tornam rígidos; a família se isola; o tempo pára; os sentimentos são
bloqueados por diversas formas de negação. Estes padrões devem ser discutidos como
parte de qualquer avaliação clínica.
(1) O tempo para. Quando as famílias não conseguem fazer um luto, elas ficam
paradas no tempo — seja em sonhos do passado, nas emoções do presente ou no medo
do futuro. Elas podem ficar tão preocupadas com futuras perdas potenciais que se
tornam incapazes de se envolver nas relações que têm, com medo de que amar
novamente signifique sofrer mais perdas. Outras se concentram exclusivamente em seus
sonhos do futuro, tentando preencher a lacuna deixada pela perda com novos
relacionamentos, formados na fantasia e na fuga da dor. Geralmente, aqueles que
abreviam seu luto precipitando-se em outros relacionamentos descobrem que, quando os
sonhos cedem lugar às realidades da nova relação, a dor volta para assombrá-los. Os
problemas que as famílias têm em outras transições evolutivas, como o casamento, a
transição para a paternidade ou a saída dos filhos de casa, militas vezes refletem esta
parada no tempo.
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(2) Os relacionamentos tornam-se rígidos. Às vezes, a família se fecha completamente,
com uma total incapacidade de se apegar a quem quer que seja. Se os sobreviventes
escolhem outros membros da família para substituir o morto, seus relacionamentos
podem parecer estáveis, ainda que rígidos. Isto pode funcionar até que o substituto
expresse sua individualidade, tornando aparente que ele não é a pessoa morta. Isto pode
detonar uma reação adiada, mesmo muito tempo após a experiência original de perda.
Quando as famílias não conseguem aceitar uma morte, elas tendem a
desenvolver formas fixas de relacionamento para lidar com seus temores de perdas
futuras. Outra indicação de negação é a falta de disposição a fazer mudanças após a
morte. Elas podem transformar o quarto da pessoa morta em um memorial ou mausoléu.
(3) A família usa a negação ou a fuga em atividades frenéticas, drogas, álcool,
fantasias, mitos. Os mitos, segredos e expectativas que se desenvolvem em torno de
uma perda crítica podem ser incorporados nas regras da família e passados dos pais para
os filhos. Algumas famílias deixam de fazer qualquer menção ao morto, como se assim
pudessem banir toda a dor. E como se elas tentassem apagar toda e qualquer existência
desta pessoa.
Muitos dos padrões que observamos rotineiramente nas famílias — excesso de
ímpeto nas atividades, casos amorosos, conflitos não resolvidos continuados, alienação,
isolamento, medo de estranhos, divórcios freqüentes, depressão, sobrecarga de trabalho,
fuga para novelas ou programas de esportes na TV — podem refletir a incapacidade de
lidar com a perda, que acaba se transformando na incapacidade de se apegar a qualquer
outra pessoa por medo de sofrer mais perdas.
A construção de mitos para evitar as realidades de uma perda acarreta respostas
delirantes, que unem os membros da família de forma patológica e, ao mesmo tempo,
criam grandes conflitos psicológicos entre eles, uma vez que estas respostas estão
ligadas somente ao delírio, e não à pessoa real. Estes mitos naturalmente afetam as
crianças que se tornam substitutos dos membros da família que já morreram, embora
elas possam desconhecer totalmente esta conexão. As pessoas desenvolvem sérios
problemas emocionais quando são criadas como dublês de fantasmas insepultos do
passado. Para se libertarem e serem elas mesmas, elas devem descobrir o mistério por
trás de suas identidades e achar uma forma de “exorcizar” o fantasma ou Dybbuk*
(Paul, 1976; Paul & Grosser, 1965; Paul & Paul, 1989).
* N. de T. Dybbuks são personagens do folclore judaico, demônios ou almas de pessoas
mortas que entram nos corpos dos vivos e dirigem seu comportamento, podendo ser
exorcizados somente por meio de uma cerimônia religiosa (Webster’s Eocyclopedic
Unabridged Dictionary of the English Language, 1989, Random House).
79
INTERVENÇÃO CLÍNICA
Objetivo Clínico Primário
O objetivo primário da intervenção em torno da morte é fortalecer as famílias
para que façam seu luto e sigam em frente. Isto envolve:
(1) O reconhecimento comum da realidade da morte. Para normalizar a perda e
diminuir a sensação de mistificação, os membros da família são estimulados a aprender
a respeito da morte e a encarar sua reação e a dos outros frente a ela. Se os fatos a
respeito da morte não foram admitidos, um terapeuta pode facilitar seu aprendizado e a
aceitação da realidade.
(2) A experiência compartilhada da perda e sua colocação em contexto. Isto
geralmente envolve rituais funerários e outras experiências através das quais as famílias
podem compartilhar o legado emocional da perda o luto, a raiva, a dor, o
arrependimento, os sonhos perdidos, a culpa, a tristeza e a saudade da pessoa morta.
Farte deste compartilhar são as histórias contadas conjuntamente sobre a vida e a morte
da pessoa. Isto ajuda as famílias a integrar a experiência da perda em suas vidas,
promovendo seu sentido de continuidade e conexão familiar, cultural e humana, e
fortalecendo-as para que resgatem seu senso de si mesmas como unidades em evolução.
Para desenvolver uma sensação de controle, domínio e a capacidade de sobreviver
frente à perda, os membros da família, especialmente os homens, podem precisar de
encorajamento para abrirem seus relacionamentos com os vivos e aprenderem mais
sobre sua família como um todo — sua história, sua cultura e as perspectivas e histórias
dos diferentes membros.
O filme Flores de Aço traz um exemplo tocante de uma diferença típica dos
gêneros neste aspecto do enfrentamento da morte, quando a mãe, no funeral da filha,
conta a história da morte dela para suas amigas mulheres, depois que todos os homens
já foram embora.
Eles desligaram as máquinas. Drum [seu marido] saiu. Ele não agüentou.
Jackson [seu genro] saiu. Chega a ser engraçado. Supõe-se que os homens sejam feitos
de aço ou algo assim. Eu só fiquei lá sentada. Simplesmente segurei a mão de Shelby.
Não houve nenhum som. Nenhum tremor. Somente paz. Eu me dou conta, como
mulher, de como tenho sorte. Eu estava lá quando aquela criatura maravilhosa entrou
em minha vida e eu estava lá quando ela saiu. Foi o momento mais precioso de minha
vida.
Esta poderosa história de morte ajuda a mãe e todas as mulheres de sua rede a
colocarem a morte no contexto do ciclo da vida e de suas experiências mais
importantes. A sensação de privilégio da mãe em fazer parte da experiência da morte de
sua filha, independente de quão dolorosa para ela, dá sentido a sua vida. Na terapia,
gostaríamos de ajudar os homens da família a compartilhar da riqueza destas
experiências nodais de vida.
Quando as famílias ficam impossibilitadas de superar uma perda, é útil expandir o
contexto no qual ela é vista. Compartilhar lembranças e histórias do
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morto pode ajudar os membros da família a desenvolver perspectivas mais benignas e
menos traumáticas de papel da perda em suas vidas. Este compartilhar ajuda-os a tolerar
suas próprias reações emocionais e as dos outros, os padrões de luto e os caminhos para
seguir em frente. Parece importante para as famílias se sentirem livres para recordar,
bem como para se livrar das recordações. Esclarecer e elaborar as histórias e narrativas
da família sobre sua história são formas de promover esta resolução. Um dos aspectos
mais difíceis do luto negado ou não resolvido é que ele deixa as famílias sem narrativas
com as quais conferir sentido a sua experiência. Se os eventos não podem ser
mencionados ou se a “linha política” da família não pode ser ampliada, é quase
impossível para seus membros darem sentido a sua história como um todo, e a geração
seguinte fica sem modelos ou diretrizes para integrar perdas posteriores. A terapia pode
ajudar as famílias a criar narrativas que facilitem e enriqueçam sua integração da perda
(Laird, 1989).
(3) A reorganização do sistema familiar. Quando o sistema não foi capaz de
completar as tarefas adaptativas de reorganização sem a pessoa morta, a terapia pode
ajudar seus membros a realizarem esta tarefa complexa e muitas vezes dolorosa. Isto
pode acarretar uma mudança nos papéis dos cuidadores ou nas funções organizacionais
e de liderança, a reorientação da rede social, a mudança no foco familiar (como quando
da morte de um filho único) ou a reorganização emocional da hierarquia geracional
(como quando da morte do último avô).
(4) O reinvestimento em outros relacionamentos e projetos de vida. A morte
pode dar um ímpeto importante para a vida. As famílias podem ser fortalecidas pela
experiência compartilhada da perda e se concentrar mais claramente naquilo que
querem fazer em suas vidas e em como querem se relacionar com os outros. A
experiência da morte pode liberar energias criativas, e os terapeutas devem estimular
este desenvolvimento. Os clínicos podem ajudar os membros das famílias a redefinirem
seus compromissos e prioridades de vida e redirecionarem seus relacionamentos e
atividades.
A Ritualização da Perda (Imber-Black, capítulo 11)
Através do uso da familiaridade, da repetição e da transformação, os rituais são
experiências familiares importantes para marcar as transições do ciclo de vida. Elas
incorporam sentidos simbólicos referentes à história ou ao futuro comum de uma
família ou cultura. Como diz Roberts, nos rituais, “as mudanças do presente são ligadas
às tradições do passado, enquanto as relações futuras são definidas” (1988, p. 11).
Muitas vezes, eles envolvem a repetição intencional de palavras, músicas, comidas,
bebidas, cheiros, visões, cerimônias e comportamentos, o que sugere a continuidade e
coloca a experiência em contexto, ao mesmo tempo em que marca as mudanças de
papéis e status trazidas pelas transições no ciclo da vida. A maioria dos rituais
funerários incorpora tradições que fazem referência à experiência de aceitação da morte
das gerações anteriores, propiciando assim uma rede de proteção para os membros da
família, ao
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mesmo tempo em que eles experimentam a dor da perda. Elas oferecem um momento
especial fora do tempo, ou seja, um período de tempo encapsulado, que permite que eles
vivenciem as emoções avassaladoras que a morte evoca, ao mesmo tempo em que
contêm esta expressão.
Uma das intervenções mais importantes que um terapeuta pode fazer com uma
família é ajudá-la a manter o controle sobre seus rituais de luto. Isto não é sempre fácil,
e as próprias famílias podem não concordar a respeito de quais tradições manter, uma
vez que seus membros muitas vezes têm crenças religiosas e atitudes diferentes em
relação à morte. Por muitas razões, incluindo a mudança dramaticamente rápida dos
valores e das normas de nossa cultura e sua mobilidade, que tende a afastar as pessoas
de suas raízes, as pessoas muitas vezes se sentem desconfortáveis com os rituais
tradicionais de luto de suas famílias, e alienadas pelas práticas tecnocráticas,
materialistas e de negação da morte das indústrias funerária e da saúde, que têm uma
influência tão dominante nos rituais e costumes da morte nos Estados Unidos.
Infelizmente, nos últimos 50 anos, a morte tem sido cada vez mais orquestrada pelo
establishment médico, o qual tem se orientado para a superação ou prevenção da morte.
Os médicos não recebem virtualmente nenhum treinamento sobre como ajudar as
pessoas a morrer ou a lidar com a morte como um processo natural. Outros profissionais
de saúde, como as enfermeiras, têm um treinamento melhor e mais experiência na
assistência aos que estão morrendo e suas famílias, mas a ênfase crescente da cultura na
tecnologia como a relação primária dos que estão morrendo geralmente não faz nada
além de aumentar a sensação de perda de controle da família sobre seus
relacionamentos e sobre a experiência de morte. O recente movimento das casas de
apoio é um progresso muito bem vindo, ajudando os que estão morrendo e suas famílias
e amigos a vivenciarem a morte como uma parte natural da vida, mas ele ainda tem
pouco impacto sobre a experiência geral da morte para a maioria das famílias.
A negação da morte em nossa cultura muitas vezes significa que nós não
discutimos em vida como queremos morrer e como queremos que sejam nossos
funerais. Um número grande de pessoas não faz absolutamente nenhum testamento, a
despeito da extrema dificuldade que esta omissão pode trazer para os sobreviventes. A
morte é uma experiência muito particular. E muito fácil que os aspectos pessoais se
percam nos rituais e costumes determinados pelo establishment médico, pelas
instituições religiosas e casas funerárias. Com muita freqüência, a primeira lembrança
de um velório a ser evocada pelos membros da família é a sensação de alienação que
sentiram ao ouvir a encomendação ou os comentários de religiosos que não conheciam a
pessoa morta, ou cujos valores eram totalmente estranhos à família. Qualquer coisa que
um único possa fazer para ajudar a família a resgatar seus próprios rituais de luto vai
trazer um beneficio duradouro para todos os seus membros.
As pessoas podem ser estimuladas a lidar com estas questões (a) especificando
se querem ou não que sejam tomadas medidas extremas para mantê-las vivas; (b)
elaborando um testamento contendo a disposição de sua herança; (c) esclarecendo quais
seus desejos para o funeral. Particularmente se a morte for súbita e traumática, é
extremamente difícil no momento da crise que os membros
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da família encontrem a energia emocional para pensar sobre os rituais de luto que são
significativos para eles. Existe uma forte tendência a entregar o controle nas mãos de
quem se dispuser a assumir a responsabilidade pelas decisões. Assim, os religiosos e os
responsáveis pelos funerais acabam freqüentemente na posição de determinar estas
importantes experiências familiares para pessoas totalmente estranhas, além de serem,
cm geral, os únicos membros da cultura que lidam com a morte e suas conseqüências de
forma regular.
Os clínicos podem validar a experiência das famílias com as instituições que
lidam com a morte para que elas não acabem sentindo que é a sua própria loucura que
está causando os problemas que elas vivenciam. Elas também podem ser ajudadas a
canalizar seus esforços para criar a situação que desejam para a pessoa que está
morrendo.
Ritualizar a perda envolve três partes: (1) um ritual para reconhecer e fazer o
luto da perda; (2) um ritual para simbolizar o que os membros da família incorporam ou
levam com eles da pessoa morta; (3) um ritual para simbolizar o prosseguimento da
vida. Ajudar as famílias a construírem rituais pessoalmente significativos é uma parte
importante da promoção da transformação emocional e estrutural exigida pela perda.
Um brinde feito em um casamento ou aniversário ou até um discurso no funeral de
outro membro da família pode relembrar a pessoa morta e ajudar a trazê-la de volta para
o contexto das relações familiares. Um jovem se ofereceu para fazer o brinde familiar
no Dia de Ação de Graças e agradeceu pelas lembranças felizes que todos tinham da
mulher de seu irmão, que tinha morrido dois anos antes, em um acidente de carro. Estas
evocações para integrar a perda, mesmo que muito tempo depois da morte, podem ter
ressonâncias profundamente terapêuticas para a família. Uma mulher organizou um
serviço memorial para seu irmão, que tinha cometido suicídio no dia de seu aniversário,
25 anos depois da morte dele, iniciando um processo de reconciliação que tinha sido
abortado um quarto de século antes.
Estruturando a Terapia: Sessões Conjuntas ou Separadas
Existem diversas questões sobre como estruturar uma terapia focalizada na perda
quando definir tarefas, quando fazer uma sessão com toda a família para ajudar seus
membros a lidarem com uma morte e quando orientar os membros da família para
lidarem com suas perdas em particular. O terapeuta deve pesar cuidadosamente o nível
de estigma que a família pode associar à terapia em contraste com o valor potencial de
ter um estranho participando de uma discussão familiar da perda. Uma única sessão
longa com os membros da família para tratar dc uma crise séria pode ter um valor
profundo para mudar padrões antigos, desintoxicando perdas encobertas e abrindo as
relações familiares. Ela pode se tornar um evento marcante para a família. A presença
de um terapeuta pode proporcionar uma rede de segurança para algumas famílias que,
de outra forma, não se aventurariam a discutir perdas dolorosas entre si.
83
Por outro lado, existem famílias para as quais a exposição de ter um estranho
testemunhando suas discussões mais particulares aumenta a toxicidade ou humilhação
que eles experimentam ao lidar com sua dor. Quando os membros da família estão em
estágios diferentes de confrontação da perda, ou têm estilos muito diferentes de lidar
com suas emoções, assim como quando houve um suicídio recente e alguns sentem a
necessidade de falar enquanto que, para outros, a dor é ainda muito crua, pode fazer
mais sentido trabalhar individualmente com aqueles que estão prontos e estimular um
processo terapêutico gradual para a família como um todo. Aqueles que estiverem
motivados podem ser orientados para fazer uso dos vários rituais familiares, religiosos e
do ciclo de vida que ocorrem ao longo do tempo para integrar sua perda (ver Imber-
Black, capítulo II). Os membros da família também podem ser orientados para
desintoxicar a perda em um contexto mais privado, escrevendo cartas, visitando o
túmulo, a casa da família ou outros lugares de significado especial, ou conversando com
parentes que tenham alguma significação familiar em relação à perda. As vezes, é claro,
é útil reunir os membros da família, ainda que estejam em pontos diferentes de seu luto,
para criar um contexto de confiança dentro do qual eles possam administrar este
processo de modo seguro e servir como testemunhas mútuas para suas experiências,
mesmo que não consigam exatamente compartilhá-las.
Genogramas
Os genogramas são uma ferramenta básica para explorar a perda em uma família
(McGoldrick & Gerson, 1985). Eu construo rotineiramente um genograma trigeracional
na primeira sessão, o que me permite saber imediatamente quem são os membros da
família, quando e como eles morreram e quais rompimentos, conflitos, potencialidades
e problemas existem no sistema. Os genogramas oferecem um contexto para que se
façam perguntas detalhadas sobre a reação da família às perdas, a qual, mais do que a
perda em si, é o fator chave nas disfunções familiares nestas situações.
Joy Hitchcock inicialmente buscou a terapia devido a dores de cabeça e
problemas conjugais, embora, com o tempo, tenha se tornado evidente que ela era uma
antiga consumidora de diversas drogas. Quando seu terceiro terapeuta individual
encaminhou os Hitchcocks para mim para terapia de casal, questionei imediatamente o
lugar dela na família, e comecei a fazer um genograma (Fig. 3.1). Ela era a quinta de
seis filhos, sendo que a segunda filha, Martha, tinha se afogado aos 4 anos, três anos
antes do nascimento de Joy. Esta não sabia nada sobre a irmã, e disse que a família
nunca a mencionava. Parecia claro que os cinco filhos sobreviventes tinham cada um os
seus papéis bem definidos na família. A filha mais velha, Catherine, era a mãe, a grande
realizadora e organizadora dos irmãos. O terceiro filho, o mais velho dos homens,
Robert Jr., era o perpetuador do padrão masculino, o tipo silencioso e forte, e o único
com quem o pai falava “de homem para homem”. A quarta filha, Jane, nascida logo
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após a morte de Martha, era a “perdedora”, consumindo drogas explicitamente e
constantemente sendo buscada nas delegacias pelos pais. O filho mais novo, David, era
“o último vagão do trem”. Ele era visto como pouco dotado e ninguém lhe dava muita
atenção. Na adolescência, ele tinha se apegado ao marido de Joy, Pete, que se tornou
seu pai, irmão e amigo. O papel de Joy era não fazer marolas. Quando ela as fez, indo
morar com Pete quando entrou para a faculdade, os país cortaram sua mesada e se
recusaram a falar com ela, mesmo enquanto continuavam a salvar Jane de repetidos
problemas com seu marido traficante de drogas.
Devido à natureza séria do problema de Joy com drogas, decidi solicitar urna
sessão com a família, todos vieram, exceto Jane. Durante este encontro, a sombra de
Martha, pairando sobre toda a família, ficou aparente. Estava claro que a morte dela
Linha ficado atrelada a muitos estresses coincidentes, e que os filhos temiam tanto
quebrar a regra de silêncio da família que nunca tinham querido saber dos fatos sobre
sua vida e morte. Catherine, a mais velha, disse que ela sempre tinha pensado em
Martha como sua irmã gêmea. Robert tinha certeza de que se lembrava dela, embora ela
tivesse morrido quando ele tinha apenas 3 anos. David, o mais novo, achava que Martha
era a mais velha. Joy achava que ela tinha morrido aos 7 anos. O pai sabia exatamente
que idade ela teria agora, embora não conseguisse lembrar a idade dos outros filhos, e a
mãe se atrapalhava com o número dc filhos que tinha, embora soubesse quantos anos,
meses e dias Martha teria agora.
A morte de Martha ecoava perdas da infância de cada um dos pais, e havia
deixado um legado de culpa que eles não conseguiam encarar. Depois da morte dela, a
família tinha se mudado para 2000 milhas de distância, em parte para fugir de suas
lembranças. Os três anos seguintes foram marcados por tragédias: o avô paterno tinha
sofrido um derrame grave ao visitá-los, e morreu quatro meses depois; o pai teve uma
série de problemas nos negócios e foi forçado a se mudar duas vezes em um curto
período; uma tia morreu em um acidente horrível e a filha mais velha desenvolveu pólio
e teve que ser colocada em um pulmão de aço por dois anos.
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Minha hipótese sobre o processo familiar, de acordo com o genograma, foi que Jane,
nascida no início deste período, tinha se tornado o foco de energias negativas, e Joy,
cujo nome sugeria mesmo o fardo que carregava, devia corporificar a felicidade. À
medida que os membros da família discutiam sua história e repassavam os detalhes do
genograma, os mitos e as distorções que cada um tinha carregado durante anos se
tornaram evidentes e abertos para esclarecimentos pela primeira vez. Com muito
esforço e um exame detalhado dos padrões familiares, os Hitchcocks começaram a ver
como haviam ficado presos em uma rede de proteção, para impedir a si mesmos e aos
outros de vivenciarem perdas. O abuso de drogas de Joy era urna forma de ela
amortecer seus sentimentos, de modo a interpretar o papel de filha feliz e não fazer
marolas em uma família que não conseguia lidar com perdas.
A exploração do genograma muitas vezes esclarece, como para os Hitchcocks, o
modo como certos membros da família ficam engolfados no legado do luto não
resolvido devido ao momento de seu nascimento, suas características pessoais, sua
posição na família e assim por diante (McGoldrick & Gerson, 1985).
Todos os parentes vivos são fontes potenciais para o desbloqueio da experiência
de perda, sua relevância sendo determinada por sua relação com a pessoa morta e com
os sobreviventes, e por seu acesso potencial à história familiar em geral. Os parentes
mais idosos são fontes especialmente valiosas de informação. A história familiar que
eles conhecem será perdida se não for compartilhada com a geração seguinte.
Fazendo Perguntas
As perguntas são a ferramenta mais poderosa para se obter uma nova
compreensão de uma família. As datas das mortes são pouco lembradas ou honradas
como ritos sagrados? Os membros da família se sentem confortáveis de falar sobre o
morto e as circunstâncias da morte? Lembranças tanto positivas como negativas estão
disponíveis? Quanto mais informação os membros da família tiverem, mais perspectiva
vão obter de si mesmos e de suas vidas, e melhor será a chance de encararem o futuro
com abertura. Existem perguntas sobre a perda na família que podemos fazer de modo a
compreender a adaptação das gerações anteriores, que dá o tom das relações familiares
presentes:
1. Como os vários membros da família demonstraram suas reações frente à morte? Com
lágrimas? Distanciamento? Depressão? Atividades frenéticas? Eles falaram uns com os
outros sobre a perda?
2. Quem estava presente no momento da morte? Quem não estava e que “deveria” ter
estado? Quem viu o corpo morto e quem não viu?
*N. de F. Alegria, em inglês.
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3. Qual era o estado das relações familiares no momento da morte? Havia questões não
resolvidas com a pessoa que morreu?
4. Quem organizou o funeral? Quem esteve presente? Quem não esteve? Quem fez o
discurso?
5. O corpo foi cremado ou enterrado? Se ele foi cremado, o que aconteceu com as
cinzas? Existe uma lápide?
6. Ocorreram conflitos ou rompimentos na época da morte?
7. Houve um testamento? Quem recebeu qual herança? Houve conflitos a respeito do
testamento?
8. Quem visita o túmulo, e com que freqüência? Quem menciona o morto, e com que
freqüência? O que aconteceu com os pertences da pessoa morta?
9. Houve algum sigilo em torno das causas ou circunstâncias da morte? Os fatos foram
ocultados de alguém de dentro ou de fora da família?
10. Qual mistificação ou mitologia foi criada na família em torno da pessoa morta desde
sua morte? Ela foi transformada em santa?
11. Que diferença eles pensam que faria se a pessoa morta tivesse sobrevivido mais
tempo? Que sonhos foram interrompidos pela morte?
12. Os membros da família se sentem estigmatizados pela morte (por exemplo, no caso
de um suicídio ou de uma morte por AIDS)?
13. Como as vidas dos sobreviventes foram influenciadas pelas suas relações com a
pessoa morta? O que eles carregam consigo desta pessoa?
14. Quais são suas crenças culturais e religiosas sobre a vida após a morte e como elas
influenciaram sua compreensão do sentido da perda?
15. Que outras crenças os membros da família têm que podem ajudar a sustentá-los
frente à perda (por exemplo, uma noção de missão familiar ou cultural, um sentido de
sobrevivência)?
Estas perguntas não podem, é claro, ser feitas isoladamente. Ofereço-as para
sugerir áreas importantes para pensar em uma jornada com a família em direção a urna
maior compreensão da experiência de perda.
Outros Métodos de Abrir as Famílias para as Perdas Encobertas
Qualquer coisa que ajude a despertar nos membros da família urna disposição
para se reconciliarem com partes de uma experiência de perda dissociada pode ser útil
neste processo. Isto pode envolver:
1. visitar o cemitério;
2. escrever cartas para o morto ou para os vivos a respeito do morto;
3. olhar fotos antigas, emolduradas ou colocadas em um álbum;
4. ler cartas e diários antigos, selecionar, entre objetos pessoais e outros, o que guardar e
o que passar para outras pessoas como recordação, e como se desfazer do resto;
5. manter um diário com sonhos, lembranças e reflexões;
6. conversar com os familiares a respeito da perda;
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7. assistir a filmes — I Never Sang For My Father, Cria, Dad, Flores de Aço;
8. ler histórias — A Death in the Family, A Morte de Ivan Illych, A Very Easy Death, A
Grief Observed;
9. músicas — talvez a música favorita do cliente, da família ou do morto.
Depois que os bloqueios da perda tiverem sido superados, podemos ajudar os
membros da família a: (a) re-ritualizar a perda por meio de um memorial ou rito,
independente de quantos anos já tiverem se passado desde a perda; (b) revisar as
histórias de sua história, para incluir a experiência anteriormente submersa de perda, e
resgatar e incorporar os aspectos ocultos do papel da pessoa perdida na narrativa
familiar; (c) revisar suas relações atuais à luz do sentido agora modificado de sua
história.
Quando a família esteve impossibilitada de fazer seu luto e a perda ficou
encoberta por muitos anos, de modo que os membros da família não estão nem mesmo
cientes de que ela moldou as relações atuais entre eles, um trabalho considerável de
terapia pode ser necessário para abri-los para suas experiências bloqueadas. O objetivo
aqui é colocar o sistema em movimento novamente, pois a família opera como se o
tempo tivesse parado. O primeiro estágio muitas vezes envolve ajudar os membros da
família a se abrirem emocionalmente para a experiência bloqueada de perda.
Os métodos criativos de intervenção de Norman Paul se prestam sobremaneira
para abrir as famílias para suas perdas encobertas. Ele procura agressivamente na
história familiar pelo fantasma cuja sombra bloqueia os vivos, e então trabalha para
“exorcizá-lo”. Ele se concentra na vivência emocional nega da de perda, atravessando
os muros que as pessoas construíram, muitas vezes durante a vida inteira, como
resultado de sua incapacidade de fazer o luto. Ele faz um uso extensivo de fitas de vídeo
para dramatizar e trazer à tona aspectos ocultos da experiência bloqueada dos membros
da família. As experiências capturadas em vídeo são recolocadas no contexto do sistema
natural da família, ao invés de permanecerem entre o cliente e o terapeuta, em contraste
com a terapia psicodinâmica tradicional, que focaliza a experiência de perda individual.
Paul também usa a técnica dramática de sobrepor uma imagem ampliada do
“fantasma” da família em um telão sobre a imagem do sobrevivente, cuja vida o
fantasma parece estar dominando. Através desta representação vívida do fenômeno de
substituição, Paul dramatiza a distorção emocional que ocorre em uma família na qual o
luto das perdas permanece não resolvido. Ele pode recomendar que os pacientes visitem
o hospital onde um de seus pais morreu, ou o campo de concentração onde seus
familiares foram mortos, para entrarem em contato com sentimentos encobertos. Os
clientes são solicitados a gravar em fitas o que estão pensando e sentindo durante esta
experiência. O objetivo destas técnicas é diferenciar os mortos dos vivos, e libertar estes
das “obrigações” para com os primeiros ou da mitologia familiar desenvolvida para
evitar a dor da perda (Boszormenyi-Nagy, 1962; McGoldrick, 1977; Mueller &
McGoldrick Orfanidis, 1976; Paul, 1980; Paul & Grosser, 1965; Paul & Paul,
1989).
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Lutos Super ou Sub-ritualizados
Estas famílias com freqüência sub-ritualizaram sua perda. Elas podem não ter
vivenciado nenhuma espécie de funeral, 011 apenas um funeral mínimo, em cuja
organização talvez tenham tido um papel mínimo. Muitas vezes, membros importantes
da família não tomaram parte nos rituais de luto, seja por razões emocionais ou devido à
distância ou doenças. As famílias de culturas que minimizam a experiência emocional
da perda podem ser particularmente vulneráveis a este tipo de sub-ritualização, o que
pode deixá-las em um estado de limbo emocional por muitos anos. A família do filme
Gente Como a Gente é um exemplo típico dc perda trágica, o afogamento do filho em
um acidente de barco, que foi quase que totalmente sub-ritualizada e da qual a família
não consegue se recuperar. A tentativa de suicídio do filho mais novo, em meti
entender, reflete sua experiência de que não há saída para ele da experiência de estar
parado no tempo. A história não é apenas sobre a impossibilidade da mãe de fazer o
luto, mas igualmente sobre a incapacidade do pai de lidar com seu próprio sofrimento e
com o da esposa.
No seguinte caso, o pai, que trouxe seu filho Michael para terapia, parecia não se
dar conta de que o problema manifesto, o distanciamento e a falta de atenção de
Michael na escola estava ligado a um luto não resolvido. Focalizar os aspectos
relevantes da história familiar e estimular os membros da família a ritualizarem sua
perda permitiu ao filho tornar-se parte da família reestruturada e prosseguir com eles em
direção a um futuro comum.
Michael Johnson, de 9 anos, tinha perdido a mãe aos 4, devido a uma doença
renal que a linha deteriorado por dois anos. Eric, o pai de Michael, não o tinha incluído
no funeral, na esperança de poupá-lo da dor. Quase imediatamente, ele se casou com
uma mulher que tinha dois filhos em idade de latência, mas separou-se dentro de seis
meses. Um ano depois, ele se casou novamente, desta vez com uma mulher que já tinha
dois filhos de um casamento anterior. Juntos, eles tiveram urna filha, agora com 2 anos
de idade, e um filho, agora com 6 meses. Eric disse que a terapia havia sido urna
exigência da escola, e que ele não tinha idéia de por que eslava ali. A primeira sessão
foi dedicada à construção do genograma da família, que tornou imediatamente aparente
as múltiplas mudanças que seus membros tinham experimentado, e levou à hipótese de
que Michael tinha de alguma forma sido “deixado para trás no tempo” pela morte de sua
mãe, e estava impossibilitado de fazer parte desta nova família.
Foi uma surpresa quando o pai trouxe na segunda sessão, para a informação da
terapeuta, urna carta escrita por sua esposa morta. A terapeuta encorajou-o a ler a carta
na frente de sua família, para que a informação passasse a ser de todos, e não só dele. A
carta era uma revisão tocante das relações de sua primeira mulher com toda a sua
família, agradecendo-lhe pelo amor e o apoio que tinha recebido de cada um — seu
marido, os pais dela e os dele e até mesmo os avós dele. Ela expressava a esperança de
que o marido se casasse novamente, pedindo que ele tivesse certeza de que sua segunda
mulher amasse Michael tanto quanto a ele, e falava de seus sonhos para o futuro do
filho e de toda a
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família. A leitura da carta produziu urna impressão profunda em Michael, que passou,
com o estímulo da terapeuta, a fazer pela primeira vez urna série de perguntas a seu pai
a respeito da mãe morta. Ao fim desta sessão, a terapeuta sugeriu que pai e filho
compartilhassem um ritual privado em casa, separando os objetos pessoais da mãe. Na
sessão seguinte, Michael parecia muito mais alegre. O pai falou sobre como ele era uma
lembrança viva da primeira esposa, pois parecia-se muito com ela. Ambos ficaram mais
livres em seu relacionamento mútuo, e Michael logo relatou estar se dando melhor com
a madrasta e os novos irmãos.
Às vezes, intervenções breves conseguem liberar as forças ocultas da família,
possibilitando a seus membros encarar a perda e encontrar formas de integrá-la.
Em outras famílias, a super-ritualização da perda pode inibir sua evolução. As famílias
podem transformar o quarto de um filho em um memorial, e se recusar a mudar as
coisas ou a se desfazer das roupas da pessoa morta, mesmo após meses ou anos. Elas
podem insistir em visitas constantes ao túmulo, de tal modo que se tornam repetições
compulsivas, aprisionando a energia da família e impedindo seus membros de
assumirem novos compromissos.
Rose Gelinas, uma mulher grega de trinta e poucos anos que tinha perdido um
bebê de 6 meses devido à SIDS após quatro abortos espontâneos anteriores, estava
ainda obcecada com a perda três anos depois. Ela passava horas, todos os dias, olhando
para as fotos de seu filho morto, e visitava sua sepultura diversas vezes por semana. Ela
falava constantemente sobre o bebê, e ficava furiosa quando seu marido e outros
membros da família lhe diziam que já era hora de seguir em frente. A terapia envolveu a
ampliação do contexto no qual ela realizava seus rituais, explorando o modo como o
retraimento de seu marido alimentava sua obsessão com a perda e convidando membros
da família extensa a participarem com ela de seu enfrentamento. Eles receberam a tarefa
de aprender mais sobre sua família, especialmente a respeito de outros parentes que
tinham perdido filhos e como eles lidavam com suas perdas.
Acontece que Rose, que era a mais nova de seis filhos, tinha sido dada para urna
tia para ser criada, porque sua família era pobre. Esta tia tinha tido diversos abortos
espontâneos, um filho natimorto e nenhum outro filho biológico. Ela tinha adorado
Rose até que esta a “abandonou” para casar-se com George.
Depois disso, ela se tornou extremamente ameaçadora, em certa altura dizendo,
quando Rose estava grávida, que já que esta era tão ingrata, ela esperava que a criança
morresse. Por uma estranha coincidência, esta tia morreu no mesmo dia que o bebê de
Rose. Quando começou a aprender mais sobre sua família e a desvendar a história da
tia, Rose pôde ver a maldição desta em uma outra luz como um reflexo de sua dor e
insegurança, e não como uma condenação dela, Rose, à infelicidade. Rose foi libertada
de seus rituais compulsivos. Ela visitou seus pais na Grécia e conversou sobre a história
da família com o tio (o marido da tia). Tudo isso ajudou-a a desenvolver uma
perspectiva mais benigna de sua perda. George, por sua vez, foi ajudado a ver que o
modo como ele evitava seus
90
próprios sentimentos e os da mulher estava ligado ao seu rompimento com uma filha
que tinha com a primeira mulher, a qual ele não via há 10 anos. Ele foi ajudado a fazer
contato com esta filha, em um esforço para não agravar ainda mais sua perda real. Com
isso, ele ficou mais livre para responder à experiência de dor da esposa e apoiá-la, ao
invés de rechaçar as tentativas dela de fazer o luto da perda mútua.
A obsessão de Rose com o filho morto refletia sua sensação de invalidação por
aqueles a sua volta, bem como a culpa que tinha absorvido da família e, sem divida, da
cultura, que em geral imputa às mulheres a responsabilidade por qualquer coisa que dê
errado, especialmente no que diz respeito aos filhos. Elas também podem se sentir
culpadas e envergonhadas de perderem bebês em abortos, como se, de algum modo, o
fracasso da maternidade fosse culpa delas.
Enquanto as mulheres são em geral livres para chorar abertamente, os homens,
como George, muitas vezes negam, escondem e evitam seu sofrimento, temendo uma
perda de controle. As reações prescritas para os gêneros pela cultura exageram a
perturbação tanto de homens como de mulheres. Os homens geralmente se refugiam no
trabalho e se distanciam do luto explícito das esposas, vendo-o como uma ameaça para
sua necessidade desesperada de manter o controle. As mulheres vivenciam o
retraimento dos maridos como uma dupla perda. Uma mulher, mãe de três filhos, disse,
quando nos encontramos dois anos depois da morte do mais velho: “Pelos meus olhos
fluem as lágrimas de toda a família”. Ela tinha passado a achar que era louca, era tratada
pelo marido como patologicamente deprimida e hiper emotiva e tinha sido encaminhada
para terapia individual por causa de seu “problema”. A incapacidade do pai e dos
irmãos de chorar, falar sobre a experiência de cada um, ou compartilhar seu sofrimento
nunca foi rotulada como problema, nem por eles nem por ninguém, até que a frustração
da mulher com a insensibilidade do marido trouxe-o até meti consultório.
Este tipo de padrão de luto desviado é a norma em nossa cultura e leva ao
isolamento. Os membros da família que não conseguem compartilhar sua experiência de
perda são privados de um dos recursos terapêuticos mais importantes: os outros.
Clinicamente, é importante abordar este desequilíbrio e estimular as famílias a
questionarem estas respostas em si mesmas e na sua cultura. Quando um membro da
família tem que fazer sozinho o luto, a dor é muito pior. Interpretar estas reações como
compreensíveis, dada a doutrinação de nossa cultura de que “homem que é homem” não
chora e de que as mulheres são as cuidadoras emocionais, é uma parte importante do
trabalho de ajudar as famílias a verem as reações de seus membros com mais tolerância
e assumirem a responsabilidade pela modificação de suas respostas disfuncionais.
Obviamente, devemos tomar cuidado para não impor nossas definições de “luto
normal” a nossos clientes. Embora seja impossível evitar julgamentos pessoais de valor
sobre o que consideramos como respostas saudáveis e adaptativas à morte, nunca
devemos ter muita certeza de que nossos valores são os melhores. Como Wortman e
Silver (1989) apontaram, sabemos muito
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menos do que pensamos a respeito do que constitui um luto saudável e do quanto ele é
“necessário” ou “apropriado” para resolver uma perda. Parece claro que o processo
terapêutico deve incluir o luto da perda, a incorporação da pessoa morta nas vidas dos
sobreviventes e a reestruturação da família, para que eles possam seguir em frente com
suas vidas. O sofrimento é uma questão muito pessoal. Não devemos julgar
precipitadamente como os outros fazem seus lutos, se eles deveriam ser mais ou menos
expressivos. Cada família e cada pessoa deve encontrar seus próprios meios.
Revelando as Perdas Encobertas
Muitas vezes, o primeiro problema clínico é demonstrar a relevância da história
familiar para o problema manifesto e superar a resistência que o cliente pode ter a
“remexer em velhas feridas”. Embora ocorram momentos mágicos ocasionais na
terapia, quando a pergunta “certa” opera uma transformação, com mais freqüência são
as perguntas e a escuta pacientes e cuidadosas que ajudam os clientes a ver as conexões
entre seus problemas e as relações familiares que os sustentam, como ilustra o seguinte
caso.
Duncan Forbes (ver Figura 3.2), de 59 anos, um executivo WASV altamente
bem-sucedido, buscou a terapia quando sua mulher, Catherine, pediu que parassem de
protelar o divórcio após dois anos de separação. Duncan tinha deixado Catherine porque
sentia que o relacionamento deles eslava morto. Tanto ele como a esposa tinham um
objetivo ter o casamento reparado magicamente, fazendo com que Duncan desejasse
estar casado novamente. Ele afirmou que achava que sua família de origem não tinha
nenhuma relevância, e que achava chato discutir seu genograma. Somente através de
discussões repetidas e detalhadas das lacunas em seu entendimento de si mesmo e dos
eventos e relações de sua família, evidenciadas em encontros individuais e sessões com
sua irmã e com três filhos adultos, é que ele gradualmente foi se dispondo a fazer os
movimentos que desbloquearam as experiências de perda na sua família. Seus pais
tinham morrido muitos anos antes. Sua irmã cultivava a imagem dele de “menino de
ouro”. Ela não ficou muito entusiasmada com a “caça aos fantasmas da, família” que ele
queria fazer, mas os encontros com ela ajudaram-no a se dar conta do quão poderosa
linha sido a regra de silêncio na família deles. As sessões com os filhos, que o
consideravam frustrantemente pouco emotivo, ajudaram-no a ver, pelo menos de modo
genérico, que ele queria entrar em contato com seus sentimentos.
*N. de T. Ver nota de rodapé da página XV.

Após oito meses de terapia, ele finalmente fez uma viagem até sua cidade natal
na Virgínia do Norte, e visitou as duas únicas tias sobreviventes da geração de seus pais,
as quais não tinha visto por muitos anos. Ele apareceu na sessão seguinte exultante e
carregado de álbuns de fotografias, cartas e diários que sua mãe tinha mantido durante
quase toda a infância dele. Através do processo emocional que isso detonou, ele foi
capaz de entrar em contato com a vida dolorosa da mãe e com sua própria infância pela
primeira vez. À medida que falava, ele também mencionou o tema da morte do pai, e
começou a chorar pela primeira vez 20 anos após ela ter ocorrido. Ele lembrou como
tinha caminhado, amparando a avó, até o caixão, e como ela gemia repelidamente “meu
bebê, meu bebê”, quando viu o pai de Duncan, de 65 anos., dentro dele. Seu único
sentimento quando o pai morreu foi de raiva com os médicos por causa de seus erros.
À medida que Duncan regressou a suas perdas bloqueadas, ele começou a se
conectar com seus sentimentos pela primeira vez. Seu passado tinha ficado trancado por
perdas que seus pais tinham vivenciado. Ele foi capaz de ler nas entrelinhas dos diários
da mãe sobre o tormento que ela passou quando seu irmão gêmeo foi mandado para um
hospital psiquiátrico do Estado na mesma época em que Duncan, com 7 anos, quase
morreu de tuberculose e teve que ser mandado para um sanatório por quase um ano. Seu
tio virtualmente nunca foi mencionado desde então. Duncan pôde ver, a partir do diário,
como a mãe tinha sido intensamente ligada a ele, e a tragédia que sua perda tinha sido
para ela. Ele também pôde ver o quanto ela ficou devastada pela perda ameaçada do
filho, em quem parecia depositar muitos de seus próprios sonhos e aqueles não
realizados pelo marido e pelo irmão.
Entrar em contato com estas lembranças, sonhos e reflexões libertou-o para lazer
o luto de seus pais e reaproximar-se de sua família, que agora começava a realmente
interessá-lo. Ele descobriu diversos “segredos” a respeito dos casos dc seu pai e dos
problemas da mãe com a bebida, que tinham sido partes não reconhecidas da história da
família. Pela primeira vez, ele começou a se
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relacionar com a mulher com ela sendo mais do que um instrumento de sua satisfação
ou descontentamento. Ele agora podia começar a negociar os problemas conjugais com
ela.
Perdas Recentes
Em um certo sentido, todas as famílias são marcadas pelas perdas que sofreram
em comum. Em momentos de perda, os membros da família são muitas vezes forçados
a lidar uns com os outros de modo mais íntimo, o que pode ser particularmente difícil se
eles se separaram com o passar do tempo. Irmãos que tiveram pouco a ver uns com os
outros durante anos são subitamente forçados, sob tensão, a compartilhar experiências
angustiantes. Isto tem o potencial de aproximar os membros da família, enquanto se
revezam na vigília do hospital nos últimos dias e redefinem para si mesmos o que os
laços familiares significam, mas também pode trazer à tona antigos conflitos. Ao
mesmo tempo em que uma morte na família pode oferecer a oportunidade de retrabalhar
antigas relações — de arriscar dizer o que ficou não dito até agora, de recomeçar
relacionamentos que foram rompidos — ela pode, ao contrário, intensificar velhos
ressentimentos. O trabalho com os membros de uma família no período após uma perda
pode criar oportunidades para ajudá-los a reverter este processo e modificar até mesmo
os padrões disfuncionais duradouros.
Johanna Imperi (ver Figura 33) tinha estado em terapia em diversos períodos de
estresse durante a faculdade de Medicina. Ela havia ficado grávida do namorado
enquanto ainda estava no segundo grau, casado com ele e, nos anos seguintes, rompido
contato com seu pai, Joe.
A mãe de Johanna, que havia sido cronicamente doente por muitos anos e era
viciada em remédios, havia morrido de overdose (possivelmente não intencional)
quando Johanna tinha 8 anos, e seu irmão John, 6. A morte intensificou conflitos que já
existiam entre Joe e a família da esposa, que o culpava pela morte dela. Joe se sentia
impotente frente à família da esposa e ao dinheiro deles, e ficava ressentido quando eles
davam presentes caros para seus filhos e lhes diziam para não confiar no pai. Ambos os
filhos começaram a se rebelar contra ele em uma idade muito precoce.
Embora o pai tivesse rompido com ela devido a sua rebeldia, Johanna conseguiu,
com a ajuda da herança do avô materno e o apoio da família do marido, formar-se em
Medicina. Nesta altura, o marido trocou-a por outra mulher. Ela veio para terapia devido
a esta perda e problemas com o filho, Alex, que agora era um pré-adolescente. Ela havia
transformado o marido e a família dele em sua família substituta, e agora sentia não
apenas a perda do apoio dele, mas também uma sensação de traição.
Durante o curso da terapia, ajudei-a a reparar o rompimento com o pai a reforçar
as relações com as irmãs da mãe e com a avó materna, que ainda
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estava viva. Ela se esforçou para ter uma relação co-parental com o ex-marido e manter-
se ligada à família dele.
Infelizmente, exatamente quando ela terminava sua formação médica, seu filho,
que estava prestes a começar a faculdade, foi atropelado por um carro após ter bebido
com um amigo. Corno eu a conhecia bem, eu estava em posição de orientá-la em uma
das experiências mais difíceis que uma pessoa pode suportar, a morte de um filho. Ela
tinha que lidar não apenas com seu sofrimento avassalador, mas também com os
conflitos e rompimentos entre seu pai e a família de sua mãe, além de ter que
compartilhar a experiência do funeral com o ex-marido, sua segunda esposa e os filhos
de ambos, que também se consideravam a família de Alex.
Ela até mesmo foi capaz de lidar com o amigo do filho, que não tinha se
machucado, e com a família dele. Isto foi particularmente difícil porque, dada a
ambigüidade da morte (semelhante à ambigüidade da morte da mãe, anos antes), ela
estava inclinada a culpar o amigo.
Devido à reaproximação que tinha ocorrido entre Johanna e seu pai no início da
terapia, ele agora conseguia ser para ela o pai que não havia sido quando a esposa tinha
morrido. Quando Johanna lhe contou como era doloroso para ela amá-lo e a família da
mãe, e eles não falarem uns com os outros, ele assumiu a responsabilidade por seu
relacionamento com a família dela. Ele fez questão de falar com lodos no funeral,
solidarizando-se com a sua dor e mencionando a esposa morta nas conversas. Isto fez
parte de um importante processo terapêutico, não apenas para ele mas para toda a
família, e foi a coisa mais importante que ele pôde fazer pela filha — permitindo a ela
receber apoio sem ter que enfrentar conflitos de lealdade em relação à família.
Nos meses após o funeral, Johanna foi capaz de ir até cada parente e conversar,
não só sobre a perda de Alex, mas também sobre sua mãe, de um modo que ela nunca
tinha conseguido antes. Ela descobriu que a mãe sonhava em ser médica, o que lhe deu
unia sensação de continuidade na realização de
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algo para ela, urna ligação que adquiriu um sentido particular à medida que lutava para
dar algum sentido à interrupção da vida do filho. Neste processo, ela conseguiu assumir
o controle de sua experiência de formas muito importantes para ela.
Esta trágica e dolorosa morte do filho possibilitou a Johanna e sua família
focalizarem e intensificarem um processo terapêutico que tinha sofrido um curto-
circuito anos antes. Assim como uma perda agrava outra, um processo terapêutico pode
vir a incluir ou incorporar outro.
Lidar com esta perda também envolveu ajudar Johanna a desenvolver um
sentido de sobrevivência e um contexto dentro do qual integrar a perda.
Famílias que vivenciaram muitas perdas traumáticas ou prematuras podem ter
uma sensação de condenação, ou mesmo dc serem amaldiçoadas (ver McGoldrick,
capítulo 6), e o terapeuta vai ter que ajudá-las a revisar seu genograma para que possam
encontrar outras formas de contar a história familiar e eliminar esta sensação de
impotência frente às forças de um destino cruel.
Enfrentando a Ambivalência
A perda em situações nas quais as relações eram ambivalentes pode ser
particularmente difícil de resolver. Intervenções com o objetivo de validar a
ambivalência e encorajar os sobreviventes a encararem toda a gama de suas respostas
pode ajudar a evitar anos de mascaramento das realidades da perda.
Virgínia McCabe buscou terapia logo, após a morte de seu marido Ted, de 61
anos, em decorrência de um ataque do coração. Inicialmente, ela descreveu o marido
como um homem forte e sensível, amado por todos, e retratou a si mesma como uma
sombra, que não conseguia imaginar como continuar agora que seu marido, o centro da
família, tinha partido. Levou algum tempo até ela mencionar que “talvez” ele tivesse
sido um alcoólatra, o que não se encaixava absolutamente nas descrições anteriores da
vida dos dois. Ela estava claramente lutando com imagens divergentes dele.
Lembrando-a do custo que tem para uma família a idealização de seus
fantasmas, sugeri que, para a sessão seguinte, ela escrevesse uma biografia objetiva dele
— com todas as imperfeições. Sua resposta a este exercício foi uma dramática história
de 15 páginas, descrevendo francamente seu problema coma bebida, suas mudanças ao
longo dos anos, as muitas coisas das quais eles nunca falaram, seus mal-entendidos, sua
evitação, seu humor, suas intimidades — toda a complexidade da relação. Era um
documento tocante e profundo. Este ritual privado ajudou-a a esclarecer o sentido do
casamento deles dentro da família,
Ela relatou que um de seus filhos tinha lhe perguntado no que ela estava
trabalhando quando a viu escrevendo, e perguntou se poderia ler. Ela disse calma-
mente que preferia que não, que aquele era um documento particular que ela, estava
escrevendo a respeito do marido para si mesma. Ele respeitou os limites, dela e não
insistiu no assunto; foi como se esclarecer o casamento também ajudasse
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a definir as fronteiras familiares. Mais tarde, ela disse que isso ajudou-a a decidir quais
mudanças precisava fazer em seus outros relacionamentos — com os filhos e com os
irmãos. Isto não eliminou a perda, a dor da saudade de Ted ou das oportunidades
perdidas de seu relacionamento. Mas possuir sua verdade fortaleceu-a para olhar para
frente e considerar quais mudança ela precisava lazer em suas outras relações.
Por exemplo, um de seus filhos estava há muito planejando casar-se no dia do
aniversário do pai, que era um mês após sua morte. A família havia concordado, mas
Virgínia se deu conta de que estava ressentida e usando a nora como bode expiatório,
tachando-a de “superficial” e “muito diferente” da família, além de começar a fazer
fofocas com as filhas a respeito da insensibilidade dela para com o luto de todos e
dificultar intencionalmente sua entrada na família. Depois de confrontar honestamente
seu próprio casamento, ela foi capaz de tomar a decisão consciente de mudar seu
comportamento em relação à nova nora que, nesta perspectiva, mostrou ser uma pessoa
muito agradável.
Validando a Necessidade de Rituais Terapêuticos
Quando as famílias não conseguem completar seus rituais devido a questões
culturais, migrações ou problemas familiares, as sugestões terapêuticas podem validar
sua necessidade de fazer o luto e liberá-las para usarem sua própria criatividade para
inventar rituais que as reestruturem e fortaleçam.
Charles Smith, um afro-americano de 42 anos, buscou terapia, juntamente com a
esposa, para sua filha do meio, que, aos 14 anos, engravidara. A terapia focalizou OS
vários conflitos e rompimentos familiares, bem como o apego de Charles a certos
membros de sua família extensa, os quais estavam tirando vantagem dele e impedindo
que definisse os limites apropriados. Ele linha experimentado múltiplas perdas enquanto
crescia em um gueto urbano, do qual ele havia lutado muito para escapar. Durante a
terapia, ele descobriu que seu padrasto tinha morrido subitamente e sua meia-irmã tinha
organizado o funeral antes que ele pudesse chegar lá. Charles veio à sessão seguinte
muito perturbado, não somente porque tinha perdido o funeral, mas também porque um
de seus irmãos estava bravo com ele por ele não ter lhe contado imediatamente que o
pai tinha morrido. Ao repassarmos sua história, discutimos os percalços nas relações
familiares que se seguiram a outras perdas. Encorajei-o a pensar sobre o que ele poderia
fazer para “consertar o que estava errado”, para fazer o luto e reparar a relação com o
irmão. Validado a pensar sobre isso, ele imediatamente pensou em um plano de viajar
com o irmão para visitar a cidade onde o padrasto vivia e visitar seu túmulo, Também
discutimos como ele poderia evitar que a raiva que sentia em relação à meia-irmã se
transformasse em mais um rompimento, urna vez que a família já tinha tantos outros.
Ele prontamente concordou que ir visitar a ela e à família para “discutir os velhos
tempos” provavelmente seria tudo o que eles precisariam para manter abertas as linhas
de comunicação entre eles.
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Perda Iminente ou Ameaçada
A iminência de uma morte pode ser uma excelente oportunidade para mobilizar
a família para resolver antigas questões às quais, de outro modo, seus membros
poderiam resistir. A morte pode ajudá-los a reordenar suas prioridades e concluir seus
assuntos incompletos. Os clínicos podem facilitar este processo estimulando os
membros da família, através de perguntas direcionadas ao passado e ao futuro, a
explorar padrões familiares e fortalecendo-os em relação a suas relações atuais. Eles
podem ser ajudados a refletir cuidadosamente sobre o que querem comunicar a outros
membros da família para cicatrizar feridas passadas e colocar sua casa emocional em
ordem, sobre como querem passar o resto de suas vidas e sobre como querem que sejam
seu testamento e seu funeral.
Uma morte iminente tende a intensificar os padrões de relacionamento que já
operam em uma família. Nossas intervenções redefinem esta escalada de conflitos e
alianças como natural, ao mesmo tempo em que usam o estresse da perda iminente para
focalizar a atenção de seus membros e reordenar suas prioridades, de modo a assumirem
o controle de suas vidas e relacionamentos, como ilustra o seguinte caso. A tarefa
terapêutica é ajudar os membros da família a suportar sua experiência pelo tempo
suficiente para ultrapassar as distrações da superfície, confrontar as relações centrais em
suas vidas e decidir como querem lidar com elas.
Peter Mintz, um competente clínico geral, procurou ajuda quando subitamente
começou a se preocupar com a possibilidade de um processo por erro médico ser
movido por um de seus pacientes. Ele não conseguia se concentrar no trabalho e estava
passando as noites sem dormir, ruminando sobre seus pacientes e os erros que poderia
ter cometido com eles. Ao fazer o genograma de sua família, descobri que ele era o mais
novo de três irmãos. Seu irmão do meio, Steve, advogado, havia recebido um
diagnóstico de câncer linfático três anos atrás, e não estava muito bem. Steve estava
simultaneamente passando por um divórcio que envolvia conflitos amargos com a
mulher por causa dos filhos. Ele tinha recentemente sido forçado a abandonar sua firma
de advocacia devido ao tempo perdido com os tratamentos. Ele se recusava a conversar
com os pais; ele se sentia incompreendido e achava que não tinha nada em comum com
eles. Tanto Peter quanto Steve viam seu irmão mais velho, Larry, um cirurgião-plástico
influente, como um “fanfarrão convencido”, e se sentiam totalmente alienados dele. A
única pessoa da família com quem Steve mantinha contato era Peter, para quem ligava
quase todos os dias em busca de consolo e orientação. Os dois irmãos eram
extremamente ligados. Peter disse a Steve que, se em algum momento ele não pudesse
mais se movimentar sozinho e precisasse de cuidados, ele poderia vir morar com sua
família e não teria que ficar só.
Agora, contudo, Peter estava se sentindo dividido entre os pais e o irmão. Os
pais estavam ficando cada vez mais perturbados com a recusa de Steve em se comunicar
com eles, e estavam constantemente pressionando Peter para lhes dar informações sobre
o irmão. Nenhum dos irmãos mantinha contato com
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Larry. A meu ver, a preocupação de Peter com seus pacientes era um
deslocamento de sua ansiedade com a morte antecipada de Steve. Ele sentia que não
conseguia lidar com a angústia de sua família, gerada pelo rompimento e pela morte
antecipada. Com isto em mente, sugeri que convidássemos Steve para uma sessão.
Nesta sessão, Steve, o irmão que estava morrendo, repetidamente deslocava a
discussão de sua relação com os pais referindo-se ao ressentimento de sua mulher em
relação a eles. Como ele mesmo disse, seus pais não estavam nem mesmo em sua lista
de prioridades. Ele passou um bom tempo da sessão falando sobre sua ex-mulher e o
relacionamento dela com os pais dele, antes de conseguir se concentrar na questão
muito mais relevante de sua própria relação com eles.
Nesta entrevista, ambos disseram que, muito antes da doença de Steve, Peter,
embora fosse o mais novo dos três, já tomava conta dele. Eles não sabiam explicar por
que Larry não tinha tido este papel, e o descreveram como um menino mimado desde a
infância. Steve, eles concordaram, tinha sido uma criança doente, e ele disse que seus
pais sempre o trataram como se não fosse inteligente. Como disse Peter: “Eu me
lembro, quando íamos ao cinema quando éramos crianças, que era para mim que eles
davam o dinheiro para os ingressos”. Steve ficou irado com estas lembranças.
Confrontei-o, então, a respeito de seu comportamento atual:
MM Parece que ter sido tratado como fraco fez com que você não quisesse jamais
parecer vulnerável para seus pais, e agora, cm sua máxima vulnerabilidade, posso ver
que seria muito difícil admitir qualquer coisa para eles. E curioso que as coisas sejam
difíceis com seus pais e com Larry, mas que você esteja extremamente consciente de
seus senti mentos cm relação a Peter. Vocês dois são tão próximos. Você acha que
quando você morrer eles vão sentir que falharam?
STEVE Não consigo imaginar por quê.
MM Eu acho que eles já se sentem assim. Eles tentam amá-lo e não sabem como chegar
até você.
PETER Eles estão muito bravos com ele por tratá-los de maneira tão mesquinha. Eles
não dizem isso para ele, mas dizem para mim. Porque você não diz para um cara que
tem uma doença terminal que você está furioso com ele. Eu acho que eles sentem, sim,
que falharam. Eles têm um filho que eles pensam que não os ama, e eu acho que eles
sentem que isto é um verdadeiro fracasso da parte deles — especialmente mamãe, que é
realmente a mãe típica. Ela nunca teve outra coisa além dos filhos. Mesmo que ela
errasse nas coisas, ela fazia com todo o coração.
MM Bem, eu diria que eles já sentem que falharam, mas você ter uma doença terminal e
não deixá-los fazer nada é como dizer: “Vocês não só falharam comigo quando criança,
como eu também farei vocês pagarem por isso agora. Não vou deixar vocês
compensarem o que não fizeram naquela época”.
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PETER Você quer dizer que ele está se vingando deles?
STEVE Eu nunca pensei nisso desta forma.
FETER Você acha que está acertando as contas, Steve?
STEVE Eu devo estar com raiva deles. Acho que não poderia ser diferente. Mas, na
verdade, acho que é tudo culpa de minha ex-mulher, porque ela nunca gostou deles e
costumava criticar o modo como eles me tratavam e, por algum motivo, eu sempre
acreditei em tudo o que aquela vaca dizia, e nunca conseguia ficar com raiva dela.
MM Talvez sua mulher tivesse um pouco de razão. Talvez ela estivesse sentindo seus
sentimentos por você. Você deve estar absolutamente furioso com seus pais para não
permitir que eles compensem agora o que quer que seja que eles não fizeram antes.
SIEVE Não sei exatamente. O que me incomoda é que você disse que minha mulher
pode ter razão em alguma coisa.
MM Bem, talvez ela não ...
STEVE Já me sinto melhor. Eu tenho uma grande dificuldade com isso. Acho que no
fundo eu gostaria de poder falar com meus pais, e não acho que eles ... Não sei bem o
que pensar. E muito confuso. Eu não dediquei muito tempo a trabalhar estas coisas. Elas
não estão nem mesmo na minha lista de prioridades no momento. Estão lá no fim.
MM Bem, parece que, em algum nível, isto poderia ser bastante importante para você,
mas estamos aqui por causa dc seu irmão
STEVE É, ele está pagando o pato. Como posso ajudar Peter fazendo alguma coisa com
o resto da família?
MM Bem, acho que você não deixa seus pais compensarem as coisas erradas que
possam ter feito com você. E como você não lhes dá abertura, e Peter sabe disso, e
também sabe que você tem muitas necessidades que eles poderiam dividir com...
STEVE Você quer dizer que isso aliviaria a carga para ele?
MM É, então, de alguma forma, você talvez também esteja descontando nele.
STEVE Acho que seria ótimo fazer alguma coisa para facilitar a vida do Peter.
PETER Bem, isto é muito fácil — dê um jeito na sua relação com mamãe e papai e
comece a trabalhar no Larry. E muito simples!
STEVE Larry! Ele nem está na folha de papel.
PETER Ah, está sim, absolutamente.
STEVE Bem, talvez eu seja simplesmente um egoísta, mas eu não consigo me
preocupar com os problemas da família agora. Eu não sei
PETER Mas, da maneira como estamos colocando, não é para você se preocupar com os
problemas deles, mas só para me poupar do colapso nervoso... Eu acho que eu
realmente estive prestes a enlouquecer, quando em qualquer outro momento eu teria
sido capaz de administrar um caso como este.
STEVE Mas, quando eu entro em pânico, nunca me ocorre ligar para os meus pais.
Acho que eu ligaria primeiro para um estranho — é tão fora do comum para mim.
100
PETER É tão fora do comum que você não consegue fazer?
STEVE Obviamente eu vou ter que fazer isso. Vou ter que colocar lembretes por toda a
casa.
MM Bem, eu penso que a questão está sendo exagerada pela sua doença. Isto coloca as
coisas em foco — aos seus olhos, eles falharam com você e, agora que você está
morrendo, isto coloca em foco os sentimentos não resolvidos da família. Se eles pensam
que você pode morrer logo e que eles falharam e não conseguem se aproximar de você
para com pensar isto, eles devem se sentir muito mal e, em vez de pressionarem você,
eles pressionam Peter.
PETER E como se tudo estivesse acontecendo em alta velocidade. E muita coisa.
STEVE Bem, se existe uma fórmula, eu adoro fórmulas dê-me uma fórmula que eu
possa aplicar.
PETER O Steve quer uma resposta.
MM Bem, uma coisa que me ocorre é que nós poderíamos ter uma sessão com toda a
família.
STEVE Ai, ai, ai! Após esta sessão, Steve ligou para os pais e começou a falar com
eles. Parece que, ao ser forçado a confrontar esta parte de suas relações familiares e a
definir suas prioridades na presença do irmão, ele se deu conta de que era importante
para ele se reaproximar dos pais. Estes ficaram enormemente aliviados. Ele até mesmo
começou os preparativos para urna reunião familiar no ano seguinte. Mais tarde,
tivemos urna sessão de família, na qual os pais revisaram a história familiar, lembrando
Steve da gravidade da asma e dos problemas de aprendizagem que teve na infância. Sua
percepção deles corno os vilões de sua infância deu lugar ao reconhecimento de que, na
verdade, eles tinham muita fé em suas capacidades, mesmo quando ele estava tendo
pouco sucesso objetivo na escola.
Este exemplo é típico das distorções que ocorrem quando os membros da família
não conseguem falar abertamente sobre suas experiências. Mágoas e mal-entendidos da
infância em relação aos pais podem se tornar fixos e ser alimentados durante anos,
gerando ainda mais distorções nas relações familiares até que tudo se esclareça pela
discussão aberta.
O próximo passo da terapia envolveu a exploração da exclusão de Larry da
família, uma vez que ele parecia ser o candidato preferencial para mais um rompimento
se Steve morresse. Os pais disseram que Larry tinha nascido logo após o avô materno
ter morrido e a avó ter se mudado para a casa deles. Larry, que recebeu o nome de seu
avô paterno, tornou-se o filho da avó, com toda a proteção especial que isso acarretava.
Ela o levava aonde quer que fosse e demonstrava uma preferência óbvia por ele,
provavelmente como um substituto para o marido. O casal permitiu que ela agisse assim
para acomodá-la no sofrimento pela viuvez. Redefini o papel de Larry, de menino
mimado para cordeiro sacrificial. Um processo de renomeação foi iniciado, pelo qual,
com o tempo, a exclusão de Larry foi modificada e ele e Peter
101
se aproximaram, de modo que eles puderam formar um sistema de apoio mútuo quando
Steve morreu.
Testamentos e Legados da Perda
As questões familiares não resolvidas, muitas vezes se concentram em conflitos
a respeito de testamentos, que refletem duas questões básicas: quem fez mais pelo morto
e quem foi mais amado por ele. Com mais freqüência, é com a morte do último dos
genitores — em geral, a mãe — que surgem estes conflitos, uma vez que esta morte
reestrutura a família básica em torno das relações entre os irmãos, ao invés dos pais
como centro da família. As relações culturais vão influenciar o quão explícito será este
processo. Por exemplo, Chestang (1990) sugeriu que, em famílias negras, os conflitos
entre irmãos explodem direta e imediatamente, especialmente entre a irmã mais velha e
os irmãos mais novos, a respeito de quem fez mais pela mãe e quem ela amava mais.
Embora isto seja com freqüência muito doloroso para os envolvidos, a boa notícia é
que, com o tempo, eles geralmente superam estas dificuldades e sentimentos feridos.
Em outras culturas, como a irlandesa, por exemplo, estes conflitos são
igualmente reais, mas quase nunca articulados diretamente. Os rompimentos podem dii
rar anos ou mesmo gerações, e podem com freqüência ser remontados a estes confrontos
originais não resolvidos.
Se os membros da família puderem ser orientados a explorar as implicações dos
testamentos com antecedência, o dano que eles podem criar pode ser às vezes evitado,
como no seguinte caso.
Myra Stein procurou ajuda por causa de questões relativas a seu pai, que tinha
sido “intratável toda a sua vida”, mas que, vivendo agora em uma clínica geriátrica,
estava se tornando cada vez mais difícil. Ela sentia alguns conflitos com os dois irmãos
a respeito das responsabilidades para com o pai, e estava preocupada pelo que temia que
fosse acontecer quando ele morresse e seu testamento fosse lido, uma vez que sabia que
seu meio-irmão mais velho, Paul, tinha sido cortado do testamento, O pai tinha se
divorciado da primeira mulher há muito tempo, e tinha tido poucos contatos com Paul, o
filho deste casamento, até que este o procurou, já adulto, e, por um curto período, eles
se tornaram sócios em um negócio. Este projeto tinha terminado em conflitos, e o pai
tinha, nos últimos cinco anos, se recusado a falar com ele, a despeito das muitas
tentativas do filho de se reaproximar.
Myra nem sabia da existência do irmão mais velho até os 15 anos, mas sentia
que sua ligação com ele tinha sido muito importante a partir de então. Ela sentia a dor
de Paul pelo pai ter estado presente na vida dos outros filhos, mas não na dele. Orientei-
a a pensar por si mesma no que suas relações com o pai e com Paul significavam para
ela, já que ela não podia controlar o relacionamento entre eles. Ela tinha tentado muitas
vezes, ao longo dos anos e sem sucesso, fazer o pai se dar conta de como era injusto
cortar Paul do testamento. Refletindo sobre o sentido atual de suas relações familiares,
ela foi capaz de tomar a
102
decisão, que compartilhou com o irmão mais novo, de que, quando o pai morresse, ela
iria dividir a herança igualmente com Paul. O irmão mais novo concordou e quis
também dividir sua parte. Esta decisão lhe deu mais tranqüilidade para lidar com o pai à
beira da morte, e liberou-a para ser mais carinhosa com ele. Ela se deu conta de que, ao
mesmo tempo em que não podia controlá-lo, ele também não tinha este poder sobre ela.
Quando o pai morreu, Paul, que tinha tentado uma última vez falar com ele em
seu leito de morte, sem sucesso, expressou abertamente sua raiva no funeral, o que
constrangeu a família, mas, provavelmente, também deu voz aos sentimentos de outras
pessoas em relação ao morto. Myra e seu irmão mais novo foram capazes de ficar
calmos, sabendo que agora iriam redefinir as relações entre eles, a despeito da
influência que o testamento do pai pudesse ter no seu futuro. Ela pôde apreciar o pai
pelo que de bom ele tinha dado a ela e tomar suas próprias atitudes em relação ao
comportamento que ela achava que punha em risco outras relações familiares.
CONCLUSÃO
Não devemos pensar, como terapeutas, que somos o único recurso das famílias.
Os amigos, os grupos de auto-ajuda, a religião, a natureza, os livros, a música e os
filmes podem ser fontes importantes de inspiração, alívio e aproximação após uma
perda. Dada a anomia e o distanciamento de nossa sociedade, devemos a nossos clientes
conhecer e validar outros recursos de consolo e busca de sentido.
Os exemplos oferecidos aqui são extratos simplificados de uma terapia que é
complexa e para a qual raramente existem fórmulas mágicas — assim como na vida. E
importante nos mantermos flexíveis em relação a atender os membros da família
individualmente e em diferentes combinações, bem como ao ritmo da terapia. Devemos
respeitar o tempo da família ao lidar com estas questões. Também é essencial
mantermos um referencial sistêmico que permita que nos desloquemos com o cliente
entre o passado, o presente e o futuro, à medida que ele se movimenta entre as questões
emocionais internas, as relações familiares imediatas e as questões contextuais mais
amplas nas quais a família está inserida.
Max Lerner (1990) descreveu o quanto o enfrentamento da morte pode ser uma
experiência profundamente modificadora em nossas vidas.
Estar perto da morte “concentra poderosamente o homem”, como coloca o Dr.
Johnson... [isto] nos incita a recuar e a reinventar a nós mesmos, a saborear mais
plenamente a vida que nos resta. Significa reimaginar quem somos e onde estamos, o
que queremos do resto de nossas vidas, do que podemos nos livrar por não ser essencial,
o que passa a ser central. (p. 10)
Devemos ajudar nossos clientes a superarem sua negação da morte e aquela de
nossa cultura. A questão principal nesta abordagem da intervenção é
103
fortalecer as famílias para que expandam o contexto no qual vêem a si mesmas e a sua
perda — ver a continuidade de sua experiência desde o passado e em direção ao futuro,
e ver sua ligação uns com os outros, com sua cultura e com todos os outros seres
humanos. Isto coloca não apenas a morte, mas toda a vida, em uma perspectiva melhor,
fortalecendo-as para o futuro.
104
Capítulo 4
A Reação da Família à Morte – Murray Bowen

Pensar diretamente a respeito da morte, ou indiretamente a respeito de manter-se


vivo e evitar a morte, ocupa mais tempo da vida do homem do que qualquer outro tema.
O homem é um animal instintivo, com a mesma consciência instintiva da morte que as
formas mais inferiores de vida. Ele segue o mesmo padrão instintivo previsível de vida
que todos os seres vivos. Ele nasce, alcança a maturidade, se reproduz, sua força de vida
se extingue, e ele morre. Além disso, ele é um animal pensante, com um cérebro que o
capacita a raciocinar, refletir e pensar de forma abstrata. Com seu intelecto, ele
desenvolveu filosofias e crenças a respeito da vida e da morte que tendem a negar seu
lugar no plano da natureza. Cada indivíduo tem que definir seu lugar no esquema geral e
aceitar o fato de que vai morrer e ser substituído pelas gerações seguintes. Sua
dificuldade em encontrar um plano de vida para si mesmo é complicada pelo fato de que
sua vida está intimamente interligada às vidas a sua volta. Este dado de consciência está
direcionado para a morte como parte da família total na qual ele vive.
Não existem maneiras simples de descrever o homem como parte das relações a
sua volta. Em outro texto (Bowen, 1978), expus meu modo de conceber o humano como
indivíduo e, também, como parte do amálgama social-emocional no qual vive. De
acordo com minha teoria, uma alta porcentagem do comportamento humano de relação
é dirigida mais por forças emocionais instintivas automáticas do que pelo intelecto.
Uma grande atividade intelectual é dedicada a explicar e justificar comportamentos que
são direcionados pelo complexo instintivo-emocional-sensorial. A morte é um evento
biológico que encerra uma vida. Nenhum evento vital é capaz de suscitar nos indivíduos
mais pensamentos dirigidos pela emoção e mais reações emocionais naqueles a sua
volta. Escolhi o conceito de sistemas de relacionamento “abertos” e “fechados” como
um modo efetivo de descrever a morte como um fenômeno familiar.
Reproduzido com a permissão da Family Terapy, editada por P. Guerim, New York:
Gardner Press, 1976.
105
Um sistema de relacionamento “aberto” é aquele no qual um indivíduo está livre
para comunicar uma alta porcentagem de pensamentos internos, sentimentos e fantasias
para outro, que é capaz de um comportamento recíproco. Ninguém tem um
relacionamento completamente aberto com outra pessoa, mas um estado saudável se dá
quando uma pessoa pode ter um relacionamento no qual um grau razoável de abertura é
possível. Uma boa porcentagem das crianças têm uma versão razoável disto com um de
seus pais. O relacionamento mais aberto que a maioria das pessoas têm em suas vidas
adultas é a relação conjugal. Após o casamento, na interdependência emocional da vida
em comum, cada cônjuge se torna sensível às questões que desagradam o outro. Eles
evitam instintivamente os assuntos sensíveis, e o relacionamento se transforma em um
sistema mais “fechado”. O sistema fechado de comunicação é um reflexo emocional
automático para proteger o self da ansiedade da outra pessoa, embora a maioria das
pessoas diga que evita os assuntos-tabu para não desagradar os outros. Se as pessoas
pudessem agir segundo o conhecimento intelectual ao invés do reflexo automático, e
obter algum controle sobre suas próprias reações à ansiedade do outro, elas seriam
capazes de falar dos assuntos-tabu a despeito da ansiedade, e o relacionamento
alcançaria uma abertura mais saudável. Mas as pessoas são humanas, as reações
emocionais operam como reflexos, e, quando o individuo médio finalmente reconhece o
problema, pode ser impossível para dois cônjuges reverterem sozinhos o processo. Este
é o ponto no qual um profissional treinado pode funcionar como uma terceira pessoa
para operar a mágica da terapia de família, no sentido de abrir um relacionamento
fechado.
O principal entre todos os assuntos-tabu é a morte. Uma alta porcentagem de
pessoas morre só, presa de seus próprios pensamentos, que não conseguem comunicar
para os outros. Existem no mínimo dois processos em operação. Um deles é o processo
intrapsíquico no self, que sempre envolve alguma negação da morte. O outro é o
sistema fechado de relacionamento: as pessoas não conseguem comunicar seus
pensamentos, por medo de desagradar a família ou outras pessoas. Existem, geralmente,
no mínimo três sistemas fechados em operação em torno de uma pessoa em fase
terminal. Um deles opera com o paciente. Em minha experiência, todos os doentes
terminais têm alguma consciência da iminência da morte, e uma alta porcentagem deles
tem uma quantidade extensiva de conhecimento pessoal que não comunica a ninguém.
Outro sistema fechado é a família. Esta recebe suas informações básicas o médico,
complementadas por detalhes de outras fontes e ampliada, distorcida e reinterpretada em
conversas em casa. A família repassa seu próprio boletim oficial, cuidadosamente
planejado e editado, para o paciente. Ele se baseia na sua interpretação das informações
e é modificado para evitar a reação de ansiedade do paciente. Outras versões deste
boletim são sussurradas dentro do campo auditivo do paciente quando a família pensa
que ele está dormindo ou inconsciente. Os pacientes com frequência estão atentos às
comunicações sussurradas. O médico e sua equipe têm outro sistema fechado de
comunicação, supostamente baseado em fatos médicos, que é influenciado pelas reações
emocionais à família e dentro da equipe.
106

Os médicos tentam fazer relatórios factuais para a família, que são distorcidos pela
emotividade e pelo esforço de dar a ênfase correta às “boas notícias” ou às “más
notícias”. Quanto mais intensa for a reação do médico, mais ele tenderá a usar um
jargão profissional que a família não vai escutar, ou a se tornar muito simplista em seus
esforços para se comunicar em linguagem leiga. Quanto mais ansioso estiver o médico,
mais ele tenderá a fazer discursos demais e ouvir de menos, a terminar com uma
mensagem vaga e distorcida e a não se dar conta da percepção errônea que a família terá
dela. Quanto mais ansioso o médico, mais a família vai pedir detalhes específicos, que
ele não será capaz de fornecer. Os médicos, de modo geral, respondem a perguntas
especificas com um excesso de generalizações que não satisfaz a família. Eles têm outro
nível de comunicação com o paciente. Mesmo o médico que concorda com o princípio
de informar os “fatos” ao paciente pode comunicá-los com tanta ansiedade que este vai
reagir ao médico, e não ao conteúdo do que está sendo dito. Os problemas ocorrem
quando o sistema fechado de comunicação da medicina enfrenta o milenar sistema
fechado entre o paciente e a família, e a ansiedade aumenta devido à ameaça da doença
terminal.
Minha experiência clínica com a morte iniciou há mais ou menos 30 anos, em
discussões detalhadas com pacientes suicidas. Eles estavam ansiosos para falar com um
ouvinte sem preconceitos, que não tinha que corrigir seu modo de pensar. Foi então que
descobri que todas as pessoas gravemente doentes, e mesmo aquelas que não estão
doentes, ficam gratas por uma oportunidade de falar sobre a morte. Ao longo dos anos,
tentei manter estas discussões com pacientes com doenças graves em meu consultório,
com amigos e pessoas que conheci socialmente e com os membros de minha família
extensa. Nunca vi um paciente terminal que não saísse fortalecido destas conversas. Isto
contradiz as crenças anteriores a respeito da fragilidade do ego em certas situações. Fiz
isto até mesmo com um espectro de pacientes em coma. As pessoas em estado terminal
muitas vezes se permitem entrar em coma, e uma boa porcentagem pode sair
voluntariamente deste estado para comunicações importantes. Fiz com que estas pessoas
saíssem do coma por tempo suficiente para conversarem e expressarem sua gratidão
pela ajuda, e retornarem imediatamente ao coma.
Até meados dos anos 60, a maioria dos médicos se opunha a contar aos pacientes
que eles tinham uma doença terminal. Na última década, a opinião médica dominante a
respeito disto mudou muito, mas a prática médica não acompanhou esta mudança de
atitude. As comunicações deficientes entre médico e paciente, entre o médico e a
família e entre a família e o paciente ainda são muito semelhantes ao que eram. O
problema básico é emocional, e uma mudança nas regras não muda automaticamente a
reação emocional. O médico pode acreditar que deu informações factuais ao paciente,
mas, na emoção do momento, com a comunicação abrupta e vaga e o processo
emocional do paciente, este deixa de “escutar”. O paciente e a família podem fingir que
lidaram claramente uns com os outros sem que nenhum tenha sido ouvido em meio à
emotividade geral. Em meu consultório de terapia familiar dentro de um centro médico,
estou em contato freqüente tanto com os pacientes como com suas famílias, e, em
menor grau, com os médicos.
107

O sistema fechado entre o paciente e a família é sólido o suficiente, na melhor das


hipóteses. Acredito que a má comunicação entre o médico e a família e entre o médico e
o paciente seja problema maior. Já houve repetidas situações nas quais os médicos
pensavam que estavam se comunicando claramente, mas a família entendeu mal ou
distorceu as mensagens e acabou convencida da ocorrência de erro médico no
tratamento. Em todos estes casos, os procedimentos cirúrgicos e médicos estavam
adequados, e a família estava reagindo às falas breves e concisas do médico, que achava
que estava se comunicando adequadamente. Nestas situações, é bastante fácil fazer
interpretações simples das afirmações do médico e evitar a suspeita de erros.
Acredito que a tendência a contar aos pacientes sobre doenças incuráveis é uma
das mudanças saudáveis da Medicina, mas os sistemas fechados não se abrem quando o
cirurgião faz um discurso tenso e apressado sobre a situação. A experiência indica que
clínicos e cirurgiões devem ou aprender os fundamentos da emotividade no sistema
fechado no triângulo médico-família-paciente, ou recorrer a especialistas em terapia de
família se carecem de tempo ou motivação para dominá-los por si mesmos. Um
exemplo clínico da emotividade no sistema fechado será apresentado mais adiante.

O EQUILÍBRIO EMOCIONAL DA FAMÍLIA E A ONDA DE CHOQUE


EMOCIONAL

Esta seção vai lidar com uma classe de eventos na família que não está ligada
diretamente às comunicações nos sistemas abertos ou fechados. A morte, ou a morte
ameaçada, é apenas um dos muitos eventos que podem perturbar uma família. Uma
unidade familiar está em equilíbrio funcional quando está calma e cada membro está
funcionando com eficiência razoável naquele período. O equilíbrio da unidade é
perturbado seja pela chegada, seja pela perda de um membro. A intensidade da reação
emocional é governada pelo nível de funcionamento da integração emocional da família
no momento, ou pela importância funcional daquele que é acrescentado ou perdido pela
família. Por exemplo, o nascimento de uma criança pode perturbar o equilíbrio
emocional até que os membros da família possam se realinhar em torno dela. Um avô
que vem para uma visita pode deslocar brevemente as forças emocionais da família, mas
um avô que vem morar na mesma casa pode mudar equilíbrio emocional familiar por
um longo tempo. As perdas que podem perturbar o equilíbrio familiar são físicas, como
quando um filho sai de casa para estudar ou se casar. Existem perdas funcionais, como
quando um membro-chave da família se torna incapacitado por uma longa doença ou
por um acidente que o impeça de realizar o trabalho do qual a família depende. Há
perdas emocionais, como a ausência de uma pessoa bem-humorada, que consegue
alegrar a todos na família. Um grupo que passa da risada bem-humorada para a
seriedade se torna um tipo diferente de organismo. O tempo necessário para que a
família estabeleça um novo equilíbrio emocional depende de sua integração emocional e
da intensidade da perturbação.
108
Uma família bem integrada pode demonstrar mais abertamente suas reações no
momento da mudança, mas se adaptar mais rapidamente. Uma família menos integrada
pode demonstrar pouca reação no momento e responder mais tarde com sintomas de
adoecimento físico, emocional, ou distúrbios de comportamento social. Uma tentativa
de fazer com que a família expresse seus sentimentos no momento da mudança não
aumenta necessariamente seu nível de integração emocional.
A “onda de choque emocional” é uma rede de “tremores secundários”
subterrâneos de sérios eventos vitais, que podem ocorrer em qualquer parte do sistema
familiar extenso nos meses ou anos após um evento emocional importante para uma
família. Ela ocorre com mais freqüência após a morte real ou ameaçada de um membro
significativo da família, mas pode ocorrer após outros tipos de perdas. Ela não está
diretamente relacionada às reações normais de sofrimento e de luto das pessoas
próximas àquela que morreu. Ela opera em uma rede oculta de dependência dos
membros da família uns em relação aos outros. A dependência emocional é negada, os
eventos vitais sérios parecem não estar relacionados, a família tenta camuflar qualquer
conexão entre eles e existe uma vigorosa reação de negação emocional quando alguém
tenta relacionar os eventos entre si. Ela ocorre com mais freqüência em famílias com
um grau significativo de “fusão” emocional negada, que até então conseguiam manter o
sistema em um equilíbrio emocional assintomático. O processo familiar básico foi
descrito em outro texto (Bowen, 1978).
A “onda de choque emocional” foi primeiramente identificada nas pesquisas do
autor com famílias no fim dos anos 50. Ela foi mencionada em textos e conferências,
mas não foi descrita adequadamente na literatura. Ela foi observada de início no curso
de pesquisas multigeracionais, com a descoberta de que uma série de eventos vitais
importantes ocorria em múltiplos membros da família extensa no intervalo de tempo
após a doença grave e a morte de um membro significativo da família. De início, isto
pareceu ser uma coincidência. Então foi descoberto que uma versão deste fenômeno
acontecia em uma porcentagem suficientemente alta de todas as famílias, e agora uma
verificação da “onda de choque” é feita rotineiramente em todas as anamneses
familiares. Os sintomas de uma onda de choque podem ser qualquer problema humano.
Eles podem incluir todo o espectro das doenças físicas, desde uma maior incidência de
resfriados, passando pelo diabetes, até problemas médicos e cirúrgicos agudos. É como
se a onda de choque fosse o estímulo que colocasse o processo físico em atividade. Os
sintomas também podem incluir toda a gama de transtornos emocionais, desde a
depressão leve e fobias até episódios psicóticos. As disfunções sociais podem incluir o
alcoolismo, fracassos na escola ou nos negócios, abortos e nascimentos ilegítimos. Um
aumento na presença da onda de choque oferece ao médico ou terapeuta uma
informação vital para o tratamento. Sem ela, a seqüência de eventos é tratada como
fatos separados e sem relação.
Alguns exemplos da onda de choque vão ilustrar o processo. Ele ocorre com
mais freqüência após a morte de um membro significativo da família, mas pode ser
quase tão severo após uma morte ameaçada. Um exemplo foi uma avó com sessenta e
poucos anos, que sofreu uma mastectomia radical devido a um câncer.
109

Nos dois anos seguintes, houve uma cadeia de reações sérias entre seus filhos e as
respectivas famílias. Um dos filhos começou a beber pela primeira vez em sua vida, a
esposa de outro teve uma depressão séria, o marido de uma das filhas foi à falência e os
filhos de outra se envolveram em acidentes de automóvel e delinqüência. Alguns
sintomas ainda continuavam cinco anos depois, quando o câncer da avó foi considerado
curado. Um exemplo mais comum da onda de choque é o que se segue à morte de um
avô importante, com sintomas aparecendo em um espectro de filhos e netos. Os netos
atingidos são, muitas vezes, aqueles que tinham pouca ligação emocional com os avós.
Um exemplo: após a morte de uma avó, sua filha pareceu não ter mais do que a reação
normal de luto, mas reagiu de alguma forma mais profunda, transmitindo sua
perturbação para seu filho, que nunca tinha sido muito ligado à avó, mas reagiu à mãe
com um comportamento delinqüente. A família camufla tanto a relação entre estes
eventos que vai mascarar ainda mais sua seqüência se se der conta de que o terapeuta
está procurando alguma conexão entre eles. As famílias são extremamente reativas a
qualquer esforço para abordar diretamente a negação. Um filho em seus trinta anos
viajou para visitar a mãe, que tinha sofrido um derrame e estava afásica. Antes disso,
sua esposa e filhos tinham uma vida normal, e seus negócios estavam indo bem. Seu
esforço para se comunicar com a mãe, que não conseguia falar, foi uma experiência
penosa. No avião a caminho de casa, ele conheceu uma jovem com a qual começou o
primeiro caso extraconjugal de sua vida. Nos dois anos subseqüentes, ele levou uma
vida dupla, seus negócios começaram a ter problemas e seus filhos a irem mal na escola.
Ele teve um bom começo na terapia de família, a qual continuou por seis sessões; então,
fiz uma conexão prematura entre o derrame de sua mãe e o caso. Ele cancelou o
encontro seguinte e nunca mais retornou. A natureza do fenômeno humano é tal que
reage vigorosamente a qualquer sugestão de dependência entre uma vida e outra.
Outras famílias são menos reativas, e podem ficar mais interessadas no
fenômeno do que reagir a ele. Conheci somente uma família que fez uma conexão
automática entre estes eventos antes de buscar uma terapia. O pai disse: “Minha família
era calma e saudável até dois anos atrás, quando minha filha se casou. Desde então, tem
havido um problema atrás do outro, e as despesas com médicos estão se tornando
exorbitantes. Minha mulher operou a bexiga. Depois disso, ela começou a pôr defeitos
em todas as casas onde moramos. Rescindimos três contratos e nos mudamos quatro
vezes. Depois ela desenvolveu um problema de coluna e teve uma fusão medular. Meu
filho tinha sido um bom aluno antes de minha filha casar. No ano passado, seu
rendimento caiu e ele largou a faculdade. No meio de tudo isto, eu tive um ataque
cardíaco”. Eu vejo esta como uma família com um equilíbrio emocional tênue, no qual o
funcionamento da mãe dependia de seu relacionamento com a filha. A maioria das
disfunções subseqüentes estava na mãe, mas o filho e o pai eram de tal modo
dependentes dela que também desenvolveram sintomas. A incidência da onda de choque
emocional é prevalente o bastante para que a Georgetown Family Section faça uma
checagem de rotina em todas as histórias familiares.
110

O conhecimento sobre a onda de choque emocional é importante ao lidar com


questões de morte nas famílias. Nem todas as mortes têm a mesma importância para
uma família. Em algumas, existe uma grande chance de que a morte seja seguida de
uma onda de choque. Outras mortes são mais neutras, e via de regra não provocam mais
do que as reações normais de sofrimento e luto. Outras mortes são um alivio para a
família, e em geral são seguidas de um período de melhor funcionamento. Se o
terapeuta consegue saber com antecedência da possibilidade de uma onda de choque
emocional, ele pode tomar algumas providências no sentido de sua prevenção. Entre as
mortes com maior chance de gerarem ondas de choque sérias e prolongadas estão as
mortes dos pais quando a família é jovem. Isto não apenas perturba o equilíbrio
emocional, mas também remove as funções do provedor ou da mãe em um momento no
qual estas são mais importantes. A morte de um filho importante pode abalar o
equilíbrio da família durante anos. A morte do “chefe do clã” é outra que pode ser
seguida por uma perturbação mascarada a longo prazo. Pode ser um avô que podia ser
parcialmente deficiente mas continuava a ter um papel decisivo na vida da família. As
avós nestas famílias geralmente viviam à sombra dos maridos, e suas mortes podem ser
menos importantes. A reação familiar pode ser intensa após a morte de uma avó que era
a figura central na vida emocional e na estabilidade da família. O “chefe do clã”
também pode ser o irmão mais importante da geração atual.
Existe outro grupo de membros da família cujas mortes podem não resultar em
mais do que o período normal de sofrimento e luto. Eles podem ter sido estimados, mas
tiveram um papel periférico nas questões familiares. Eles são os neutros, que não foram
“nem famosos, nem infames”. Suas mortes tendem a não influenciar o funcionamento
familiar futuro. Por último, existem aqueles membros da família cujas mortes são um
alivio para todos. Eles incluem as pessoas cujo funcionamento nunca foi crítico para a
família e que podem ter sido um fardo em sua doença final. Suas mortes podem ser
seguidas por um curto período de pesar e luto, que então dá lugar a um funcionamento
familiar melhorado. Uma onda de choque raramente se produz após a morte de um
membro disfuncional da família, a menos que sua disfunção tivesse um papel crítico na
manutenção do equilíbrio emocional familiar. Os suicídios são comumente seguidos de
reações prolongadas de pesar e luto, mas a onda de choque é, em geral, menor, a menos
que o suicídio tenha sido uma abdicação de um papel funcional essencial.

TERAPIA NO MOMENTO DA MORTE

O conhecimento sobre a configuração familiar total, a posição funcional da


pessoa que está morrendo na família e o nível geral de adaptação vital são importantes
para qualquer um que se disponha a ajudar uma família antes, durante ou depois de uma
morte. Tratar todas as mortes como iguais pode ser um equívoco. Algumas famílias de
bom funcionamento são capazes de se adaptar a falar sobre a morte antes que ela ocorra.
Supor que estas famílias precisam de ajuda pode ser uma intromissão inábil. Os
médicos e os hospitais deixam muitos dos problemas relativos à morte nas mãos dos
capelões ou religiosos, na esperança de que eles saibam o que fazer.
111

Existem religiosos excepcionais, que sabem intuitivamente como agir nestas situações.
Entretanto, muitos capelões ou religiosos jovens tendem a tratar todas as mortes da
mesma forma. Eles operam com sua teologia uma teoria sobre a morte que não vai além
dos conceitos normais de pesar e luto, e tendem a direcionar sua ajuda para a expressão
aberta do sofrimento. Isto pode proporcionar uma ajuda superficial para a maioria das
pessoas, mas não toca nos processos mais profundos. A noção popular de que a
expressão do sofrimento através do choro pode ser útil para a maioria das pessoas
complica a situação para outras. É importante que o médico ou terapeuta conheça a
situação, tenha sua vida emocional sob um controle razoável, sem o uso de muita
negação ou outros mecanismos extremos, e respeite a negação que opera na família. Em
meu trabalho com famílias, emprego com cuidado palavras diretas como morte, morrer
e enterrar, e evito o uso de palavras menos diretas como falecer, expirar e partir. Uma
palavra direta sinaliza para o outro que eu me sinto confortável com o assunto, e
possibilita a ele se sentir confortável também. Uma palavra tangencial pode dar a
impressão de suavizar o fato da morte, mas convida a família a responder com palavras
tangenciais, e a conversa rapidamente chega a um ponto em que alguém de fora poderia
se perguntar se estamos realmente falando da morte. O uso de palavras diretas ajuda a
abrir um sistema emocional fechado, e acredito que propicia uma dimensão diferente na
qual ajudar a família a se sentir confortável consigo mesma.
A seguir, apresento um exemplo clínico que ilustra um esforço para abrir a
comunicação com uma paciente em estado terminal, sua família e a equipe médica.
Como professor-visitante em outro centro médico, eu tinha sido convidado a fazer uma
entrevista de demonstração com os pais de uma menina com transtornos emocionais. No
caminho para a sala de entrevista, fiquei sabendo que a mãe tinha câncer em fase
terminal, que o cirurgião tinha informado o pai e este informado o terapeuta da família,
mas que a mãe não sabia ainda. Em meu consultório, esta questão teria sido discutida
automaticamente com a família, mas relutei em seguir este curso porque não seria
possível fazer entrevistas de acompanhamento. Um grande grupo de profissionais e
estagiários acompanhava a entrevista. Optei por evitar a questão crítica. O início da
entrevista foi estranho, difícil e constrangido. Decidi que a questão da doença tinha que
ser discutida. Após mais ou menos 10 minutos do início da entrevista, perguntei à mãe
por que ela achava que seu médico, sua família e os outros não tinham lhe contado a
respeito de seu câncer. Sem a menor hesitação, ela respondeu que achava que eles
estavam com medo de lhe contar. Ela disse calmamente: “Eu sei que tenho câncer, já há
algum tempo. Antes eu suspeitava, mas eles me disseram que não era câncer. Eu
acreditei neles por algum tempo, achando que era só a minha imaginação. Agora eu sei
que é câncer. Quando eu pergunto, e eles dizem que não, o que isso significa? Significa
que eles são mentirosos ou que eu sou louca, e eu sei que não sou louca”.
Ela então começou a entrar em detalhes a respeito de seus sentimentos, com
algumas lágrimas, mas totalmente sob controle. Ela disse que não tinha medo de morrer
por ela mesma, mas que gostaria de viver o suficiente para ver a filha ter sua própria
vida. Ela detestava a idéia de deixar para a filha a responsabilidade pelo pai.
112

Ela falava com sentimentos profundos, mas com poucas lágrimas. Ela e eu éramos as
pessoas mais calmas na sala. Seu terapeuta enxugou as lágrimas. O pai reagiu brincando
e fazendo troça da imaginação vívida da esposa. Para evitar que a reação dele a
silenciasse, fiz alguns comentários para sugerir que ele não interferisse nos pensamentos
sérios dela. Ela pôde então continuar: “Esta é a vida mais solitária do mundo. Aqui
estou eu, sabendo que vou morrer e que não tenho muito tempo, e não posso falar com
ninguém. Quando falo com meu médico, ele diz que não é câncer. Quando tento falar
com meu marido, ele faz brincadeiras. Eu vim aqui para falar sobre a minha filha, e não
sobre mim mesma. Eu estou apartada de todos. Quando acordo de manhã, eu me sinto
terrível. Olho para meus olhos no espelho para ver se eles estão amarelados e se o
câncer já se espalhou para meu fígado. Tento parecer alegre até meu marido sair para o
trabalho, porque não quero chateá-lo, e então fico sozinha com meus pensamentos o dia
inteiro, chorando e pensando. Antes de meu marido retornar do trabalho, tento me
recompor para satisfazê-lo. Eu queria morrer logo e não ter mais que fingir”. Ela trouxe
algumas idéias de sua infância a respeito da morte. Quando era criança, ela se sentia mal
quando as pessoas caminhavam sobre os túmulos. Ela sempre desejou poder ser
enterrada acima do solo, em um mausoléu, para que ninguém caminhasse sobre sua
sepultura. “Mas”, disse ela, “somos pessoas pobres, e não temos condições de construir
um mausoléu. Quando eu morrer, vou ser enterrada como qualquer outra pessoa.”
O problema técnico desta única entrevista era permitir à mãe falar, evitar que a
ansiedade do pai a silenciasse e esperar que o terapeuta regular pudesse continuar o
processo depois. É impossível fazer muita coisa no sentido de abrir um relacionamento
emocionalmente fechado desta intensidade em uma única sessão, embora o pai dissesse
que ia tentar ouvir e compreender. A paciente ficou aliviada por sair parcialmente do
sistema fechado no qual estava vivendo. O terapeuta disse que ela sabia sobre o câncer,
mas estava esperando que a mãe tocasse no assunto. Esta é uma postura comum entre os
profissionais de saúde mental. A emotividade do próprio terapeuta tinha impedido a
esposa de falar. Ao final da entrevista, a mãe disse, sorrindo entre as lágrimas: “Nós
certamente passamos uma hora caminhando em volta do meu túmulo, não é?”. Quando
me despedi deles no corredor, ela disse: “Quando você for para casa hoje à noite,
agradeça a Washington por ter lhe mandado aqui hoje”. O pai, menos expressivo, disse:
“Estamos muito gratos”.
Tive alguns minutos com a platéia que tinha observado a entrevista. Uma parte
do grupo tinha se emocionado até as lágrimas, a maioria estava silenciosa e alguns
foram muito críticos. As críticas foram expressas por um jovem médico, que falou sobre
magoar a mulher e tirar-lhe a esperança. Senti-me satisfeito de ter decidido abordar esta
questão nesta única entrevista de demonstração. No caminho de casa, meus
pensamentos se dirigiram às diferenças nas reações da platéia e aos problemas de treinar
os jovens profissionais para conter sua própria emotividade o suficiente para serem mais
objetivos a respeito da morte. Pensei que seria mais fácil treinar aqueles que choraram
do que os que intelectualizaram seus sentimentos. Este é um exemplo de um bom
resultado em uma única sessão. Ele ilustra a intensidade de um sistema fechado de
relacionamento entre o paciente, a família e a equipe médica.
113

A FUNÇÃO DOS FUNERAIS

Há uns 25 anos, tive uma experiência clínica que ilustra a questão central da
próxima seção deste capítulo. Uma mulher jovem começou sua análise dizendo: “Deixe-
me enterrar minha mãe antes de passarmos para outras coisas”. Sua mãe tinha morrido
há 6 anos. Ela chorou durante semanas. Naquela época, eu trabalhava com o referencial
da transferência e da dinâmica intrapsíquica. A afirmação da paciente foi usada mais
tarde como um modo de descrever a teoria dos sistemas a respeito das ligações
emocionais não resolvidas que permanecem viáveis durante anos, que se misturam com
relacionamentos significativos futuros e continuam a direcionar o curso de uma vida.
Existe um modo de utilizar o funeral para “enterrar o morto” mais completamente.
Poucos eventos humanos causam tanto impacto emocional sobre a resolução de ligações
emocionais não resolvidas quanto a doença grave e a morte.
O ritual funerário existe sob alguma forma desde que o homem se tornou um ser
civilizado. Acredito que ele serve a uma função comum de colocar os sobreviventes em
contato íntimo com o morto e com amigos importantes, e ajuda todos a encerrarem sua
relação com o morto e seguirem em frente com suas vidas. Penso que o objetivo de um
funeral é atingido quando ele coloca os parentes e os amigos no melhor contato
funcional possível uns com os outros e com o duro fato da morte neste momento de alta
emotividade. Acredito que os funerais eram mais efetivos quando as pessoas morriam
em casa, na presença da família, e quando os parentes e amigos construíam o caixão e
conduziam eles mesmos o sepultamento. A sociedade não mais permite isto, mas
existem formas de proporcionar um nível razoável de contato pessoal com o corpo e os
sobreviventes.
Existem numerosos costumes funerários atuais que funcionam de modo a negar
a morte e a perpetuar as ligações emocionais não resolvidas entre o morto e os vivos.
Eles são mais intensos nas pessoas ansiosas a respeito da morte, que usam a forma e o
conteúdo atual dos funerais para evitar a ansiedade. Existem aqueles que se recusam a
olhar para um corpo morto porque “quero lembrar dele como o conheci”. Existe o
segmento ansioso da sociedade que se refere aos funerais como rituais pagãos. Os
costumes funerários possibilitam que o corpo seja removido do hospital sem que a
família tenha qualquer contato pessoal com ele. As crianças são geralmente excluídas
dos funerais para não ficarem abaladas. Isto pode resultar em uma vida de fantasias e
imagens distorcidas e irreais, que podem nunca ser corrigidas. O funeral fechado é outro
costume que evita a emotividade da morte. Ele é motivado pela ansiedade da família em
evitar o contato com a emotividade dos outros. Ele nega ao sistema de amizade a
oportunidade de encerrar sua relação com o morto e priva a família do apoio dos
amigos.
114

Acredito que o apoio profissional a uma família no momento de uma morte pode
ajudar seus membros a terem um funeral mais útil do que seria possível se eles tiverem
somente os conselhos de amigos e parentes ansiosos. Em 20 anos de prática familiar,
tive contato com vários milhares de famílias e fiquei nos bastidores, “orientando-as”,
em milhares de mortes e funerais. Estimulo os membros da família a visitarem seus
parentes que estão morrendo sempre que possível, e a encontrarem alguma forma de
incluir as crianças se a situação permitir. Nunca vi uma criança ferida pela exposição à
morte. Elas são “feridas” apenas pela ansiedade dos sobreviventes. Eu estimulo o
envolvimento do maior grupo possível de membros da família extensa, um caixão
aberto e tanto contato pessoal quanto possível entre o morto e os vivos, a publicação de
avisos nos jornais e a notificação de amigos e parentes, um funeral público de corpo
presente e uma cerimônia funerária o mais individualizada possível. Algumas
cerimônias são altamente ritualizadas, mas mesmo estas podem ser personalizadas. O
objetivo é colocar todo o sistema familiar em contato pessoal com a morte, na presença
de todo o sistema de amizades, e oferecer uma mão amiga às pessoas ansiosas que
preferem fugir a enfrentar um funeral.
A seguir, apresento um exemplo de orientação dos amigos desde os bastidores.
Ele envolveu os vizinhos mais do que as pessoas de minha prática profissional. Os
jovens pais, de 30 e poucos anos, e seus filhos de 10, 8 e 5 anos, tinham vindo morar
com a avó materna viúva, em preparação para a mudança do pai para um país distante, a
trabalho. Em um domingo um mês antes de sua partida, a jovem mãe morreu
subitamente de um ataque cardíaco. Toda a comunidade ficou chocada. Naquela noite,
passei umas três horas com o pai. Ele e sua esposa haviam sido muito ligados. Ele tinha
dezenas de perguntas sobre como lidar com aquela emergência, com o funeral, com o
futuro dos filhos e com sua própria vida. Ele se perguntava se as crianças deviam ir à
escola no dia seguinte, o que ele devia dizer para os professores e se ele devia se
desligar de seu trabalho no exterior. À tarde, ele tinha tentado contar para os filhos
sobre a morte da mãe, mas ele começou a chorar e eles disseram: “Por favor, papai, não
chore”. Ele disse que simplesmente tinha que ter outra mãe para as crianças, mas se
sentia culpado de dizer isso apenas oito horas após a mulher ter morrido.
Durante a visita, delineei o que considerava como o curso ideal de ação para ele. Sugeri
que pegasse todas as idéias que fossem coerentes para ele, e, se elas fizessem sentido,
que as usasse tanto quanto possível. Sugeri que a capacidade das crianças de lidarem
com a morte depende dos adultos, e que o futuro seria mais bem contemplado se a
morte pudesse ser apresentada em termos que as crianças pudessem entender e se elas
pudessem se envolver de modo realista no funeral. Alertei-o das reações emocionais
adversas dos amigos, e para se preparar para críticas se decidisse envolver os filhos. Nas
primeiras horas após a morte, as crianças estavam respondendo à emotividade dele,
mais do que ao fato da morte da mãe. Neste tipo de situação, é comum que as crianças
parem de falar e neguem a morte. Sugeri que ele superasse isso mencionando a morte
em intervalos freqüentes nos dias seguintes e, se começasse a chorar, que assegurasse os
filhos de que estava bem e que eles não precisavam se preocupar com ele. Eu queria
manter o canal aberto para toda e qualquer pergunta que eles pudessem ter. Sugeri que
as crianças decidissem se queriam ou não ir à escola no dia seguinte.
115
Sobre a questão de envolvê-las com a mãe morta, sugeri que ele reservasse um tempo
antes do funeral para levar os filhos à casa funerária, remover todas as outras pessoas da
sala e ficar a sós com eles e a mãe. Argumentei que isto ajudaria as crianças a se
adaptarem à realidade da morte da mãe e que funcionaria melhor se os membros
ansiosos da família extensa fossem excluídos.
Na noite da terça-feira, fiquei uma hora no quarto com o pai sentado em uma
cadeira com os três filhos em seu colo. Todos puderam chorar, e as crianças ficaram
livres para fazer perguntas. Ele lhes contou a respeito da idéia de irem até a casa
funerária na tarde seguinte. O filho de 5 anos perguntou se poderia beijar a mamãe. O
pai olhou para mim em busca de uma resposta. Sugeri que isto ficaria entre o filho e sua
mãe. Mais tarde, na sala, anunciei aos parentes e amigos que o pai levaria as crianças à
casa funerária na tarde seguinte, que esta seria uma visita privada e que ninguém mais
deveria estar presente. A mãe dele disse: “Filho, isto vai ser muito duro para você”. Ele
respondeu: “Mãe, cale a boca. Eu posso fazer isso”.
Na noite de quarta-feira, visitei a casa funerária. Todo o sistema família-amigos
estava presente. A avó materna, que tinha se mantido calma durante estes dias, disse:
“Muito obrigada por sua ajuda”. O pai fez um relato detalhado da visita dos filhos à
tarde. As crianças foram até o caixão e tocaram a mãe. O filho de 5 anos disse: “Se eu a
beijasse, ela não ia me beijar de volta”. Os três passaram algum tempo inspecionando
tudo, olhando até embaixo do caixão. O filho de 8 anos foi para baixo do caixão e rezou
para que a mãe pudesse pegá-lo em seus braços de novo no céu. Alguns amigos da
família chegaram enquanto o pai e os filhos estavam na sala. O pai e as crianças ficaram
no lobby enquanto os amigos entravam. Lá, o filho mais novo encontrou alguns
cascalhos em uma floreira. Ele era o filho que apanhava objetos para dar à mãe como
“presentes”. Ele levou uma pedrinha para a sala e colocou-a nas mãos da mãe. As outras
crianças fizeram o mesmo. Então elas anunciaram: “Podemos ir agora, papai”. O pai
ficou muito aliviado com o resultado da visita. Ele disse: “Mil toneladas foram tiradas
dos ombros desta família hoje”. No dia seguinte, fui ao funeral. As crianças estavam
bem. Os filhos mais velhos estavam calmos. Durante a encomendação, o filho de 8 anos
sussurrou para o pai: “Papai, eu vou sentir saudade da mamãe”. O de 5 anos chorava
agarrado ao pai.
Houve algumas críticas quanto ao fato de o pai envolver as crianças no funeral,
mas ele lidou bem com a situação e as críticas se transformaram em admiração após a
visita à casa funerária. Eu mantive um contato próximo com a família durante o ano
seguinte. O pai continuou a mencionar a morte da mãe. Dentro de uma semana, as
crianças estavam falando da mãe no passado. Elas ficaram com a avó, e não ocorreu
nenhuma das complicações geralmente vistas após uma morte deste tipo. O pai aceitou
um emprego mais perto de casa, para que pudesse retornar se fosse preciso. No ano
seguinte, ele se casou novamente e levou as crianças para viver em outra cidade com
sua nova mulher. Já se passaram 12 anos da morte, e o ajustamento familiar foi perfeito.
Ainda mantenho contatos periódicos com a família, que agora inclui os três filhos já
crescidos do primeiro casamento e mais crianças pequenas do segundo. Alguns anos
após a morte da primeira esposa, o pai escreveu sua versão da experiência, intitulada:
“Meu Deus, minha mulher morreu”.
116

Ele descreveu seu choque inicial, seus esforços para superar a autocomiseração, sua
resolução de tomar suas próprias decisões quando a ansiedade estava alta e a coragem
emocional que foi necessária para levar a cabo seu plano nos dias críticos antes do
funeral e do sepultamento. Isto ilustra o que eu considero um resultado ótimo de uma
morte traumática, a qual poderia ter deixado seqüelas para toda a vida; mas este pai teve
mais força interior do que qualquer parente que já conheci em uma situação de tal
intensidade de estresse.

RESUMO

A teoria dos sistemas familiares proporciona uma perspectiva mais ampla da


morte do que é possível com a teoria psiquiátrica convencional, que focaliza a morte
como um processo dentro do indivíduo. A primeira parte deste capítulo aborda o
sistema fechado de relacionamento entre o paciente, a família e os médicos, e os
métodos de terapia de família que se mostraram úteis para a superação de algumas das
ansiedades que criam este sistema. A segunda seção descreve a “onda de choque
emocional” que está presente em algum grau em uma porcentagem significativa das
famílias. O conhecimento sobre ela, que é o resultado direto de pesquisas com famílias,
propicia ao profissional uma dimensão diferente para o entendimento da
interdependência emocional e das complicações a longo prazo de uma morte na família.
A seção final aborda o impacto emocional dos funerais e como os profissionais podem
ajudar os familiares a alcançarem um melhor nível de funcionamento emocional
enfrentando calmamente a ansiedade da morte.

REFERÊNCIA

BOWEN, M. (1978’). Family therapy in clinical practice. New York: Jason Aronson.
117

Capítulo 5
O Luto Operacional e seu Papel na Terapia Familiar Conjunta
NORMAN L. PAUL
GEORGE H. GROSSER

A perda de entes queridos pela morte é uma herança comum. A filosofia do


homem, sua religião e sua arte são, em parte, uma resposta à morte. Elas são uma
tentativa de fixar o mundo na forma final que vai ser a resistência contra a
desintegração.

O homem ama
E ama o que desvanece
O que mais há para ser dito?
W. B. Yeats*(*)

Os psicólogos parecem ter muito pouco a dizer, a julgar pela escassez de


literatura psicológica a respeito do fenômeno do luto compartilhado e de sua resolução
como é experimentada por uma família quando um ente querido morre. Existem, além
disso, muito poucas observações diretas e descrições do processo de luto nos
indivíduos, tanto em sua forma natural como na patológica. Os estudos clínicos já
publicados incluíam explicações resumidas e generalizações feitas a partir de poucas
observações empíricas.
Somos uma sociedade preparada materialmente para a morte; pensemos na
expansão e na diversidade das companhias de seguros de vida e no crescimento estável
dos programas de seguridade social. Abrimos uma revista e somos confrontados com a
pergunta: “E quando você não estiver mais aqui?”. A presença disseminada e o interesse
nos planos de segurança econômica contrastam nitidamente com a falta de
conhecimento sobre como preparar psicologicamente os sobreviventes para lidar com a
morte. Sabemos muito pouco sobre como e por que meios uma família responde
psicologicamente à morte de um de seus membros.

Nota de rodapé:
Publicado com a permissão do Community Mental Health Journal, I, 4, Inverno de
1965.
*(*) N. de T. Tradução livre. No original: Man is in love/And loves what vanishes; /
What more is there to say?
118

Embora seja verdade que estas informações não estejam ausentes apenas em
nossa cultura, mas também em outras sociedades, existe uma diferença vital. Na maioria
das outras áreas do mundo, as crianças e os adultos são preparados para a morte por
meio de formas elaboradas de cerimônias e rituais, acompanhadas de doutrinas e
explicações sobre o sentido da vida e da morte. Estas cerimônias e rituais se perderam
para nós pela secularização, pela urbanização e pela nossa confortável, porém enganosa,
ênfase na racionalidade. Nada, na era moderna, veio substituir as formas tradicionais de
luto. Nossas cerimônias abreviadas, muitas vezes escondidas com cuidado das crianças,
não conferem uma compreensão empática nem proporcionam uma catarse para esta
experiência. Isto gera perguntas sobre o que poderia acontecer quando uma criança não
quer ou não consegue aceitar a morte.
Embora os antropólogos tenham demonstrado um interesse considerável nela,
poucos psiquiatras elegeram a morte como tema de reflexão. Entre estes estão Freud,
Bowlby, Engel, Lindemann, Rochlin e Parkes. O texto Luto e Melancolia (1917)
[19151, de Freud, proporcionou o principal estímulo para as investigações dinâmicas
subseqüentes do pesar e do luto, e sua (Freud, 1926) formulação da importância da
ansiedade de separação como um fator crítico no desenvolvimento do ser humano foi
aprimorada posteriormente por Bowlby. A excelente descrição de Bowlby (1961a,
1961b) dos processos de luto pode ser equiparada a sua ordenação da seqüência de
respostas observadas em crianças separadas dos cuidados de suas mães. O conceito de
Rochlin (1961) do medo do abandono forneceu mais ímpeto para o entendimento de
alguns efeitos duradouros das experiências de perda no homem. Mais recentemente,
Bowlby (1961c) indicou que a ansiedade de separação, o pesar e o luto são fases de um
único processo, acrescentando que, quando vistas deste modo, elas se esclarecem
mutuamente.
Temos sido repetidamente confrontados com pacientes esquizofrênicos
hospitalizados que melhoram no curso da terapia individual intensiva, mas não
conseguem manter seus ganhos quando da perda real ou projetada do terapeuta ao fim
do tratamento. Estes pacientes tendem a se descompensar, exibindo padrões de
regressão similares àqueles observados antes da internação inicial. Estas observações
sugerem que a incapacidade de lidar com a perda pode ser característica de um padrão
familiar, adquirido em um meio onde outros membros da família compartilhavam um
problema semelhante. Nossos estudos preliminares revelaram que este problema estava
presente. A estrutura das famílias estudadas incluiu um conjunto de relacionamentos
familiares altamente resistentes à mudança, especialmente observável nas atitudes em
relação ao paciente. Estas atitudes e comportamentos, incluindo as reações do paciente a
sua família, foram vistas como uma manifestação de um “equilíbrio familiar fixo”. Este
termo se refere a um estado dinâmico relativamente inalterado, para o qual há uma
tendência a retornar quando perturbado, e que também pode ser visto como uma
homeostase patológica. O “equilíbrio familiar fixo” também foi encontrado em famílias
de pacientes neuróticos, a principal diferença sendo a menor rigidez com que este estado
era mantido.
119

Os sistemas familiares, como todos os outros sistemas sociais, tendem a manter um


equilíbrio que, no caso da família normal, evolui gradualmente e se altera de acordo
com o envelhecimento e as demandas diferenciais de papéis do ciclo de vida de seus
membros.

UM ESTUDO DE FAMÍLIAS

Foi realizado um estudo clínico com 50 famílias com membros esquizofrênicos e


25 famílias com pelo menos um membro psiconeurótico. Foram descobertos padrões
inflexíveis de interação, revelados através de material de anamnese, que existiam muitos
anos antes do início do tratamento. O fato mais significativo foi que, a despeito das
diferenças óbvias de composição familiar, origem étnica, religião e status
socioeconômico, estas famílias tinham um traço surpreendente em comum, que eram
padrões variáveis de má adaptação à perda de objeto. Esta incapacidade de lidar com a
perda era geralmente expressa pela negação de sua significação no nível afetivo. A
tendência a manter este padrão estava presente em famílias com graus variados de
psicopatologia.
Embora as perdas originais pudessem ter ocorrido até mesmo 50 anos atrás, a
reação a elas exercia um efeito duradouro no presente. Estas perdas foram geralmente
sofridas por um dos pais, com freqüência antes do nascimento do paciente. Os afetos e
as atitudes em relação às pessoas perdidas tinham permanecido essencialmente
inalteradas, e as perdas recentes evocavam padrões similares de reação. O estilo de vida
atual da família parecia permeado por graus variados de negação ou “rechaço” das
perdas e decepções. Mudanças importantes na homeostase familiar, como aquelas que
podiam resultar em separação ou independência de seus membros, encontravam muita
resistência.
Este padrão observado era mais severo nas famílias de pacientes
esquizofrênicos. A maioria destes membros estava fixada no que Bowlby (1961a)
chamou de primeira fase do luto, “a ânsia de recuperar o objeto perdido”. Além disso,
duas reações observadas estavam diretamente relacionadas ao membro mais velho da
família.
Em primeiro, lugar, o paciente era dotado, pela projeção, de um certo número de
características do objeto perdido, tornando-se assim tanto um alvo quanto um portador
de sentimentos ambivalentes. Os autores já descreveram em outro texto os mecanismos
que tendem a manter o paciente em seu papel patológico, reforçar sua sintomatologia e
interferir no desenvolvimento de sua identidade. O paciente esquizofrênico muitas vezes
expressa em termos afetivos uma identificação com pessoas mortas, pelas referências a
sua própria falta de vida.
Em segundo lugar, a família tenta evitar a emancipação do paciente e, em um
certo grau, a de outros membros da família, que é vista como uma perda potencial para a
unidade. Isto é realizado pelo reforço dos laços simbióticos, que desaparecem
normalmente com o crescimento do ego e o desenvolvimento de uma identidade
pessoal.
120
Estas observações ajudaram a formular a hipótese de uma relação direta entre a
resposta de má adaptação à perda de objeto e a fixidez dos relacionamentos simbióticos
da família. Uma chave possível para deslocar esta fixação seria mobilizar aqueles afetos
que poderiam ajudar a perturbar este tipo peculiar de equilíbrio.

O LUTO OPERACIONAL

Uma vez que o luto abortado ou a negação da perda parecem estar no centro
desta fixação, pareceu-nos que uma “experiência corretiva de luto”, ainda que tardia,
poderia ser eficiente para neutralizar as fixações simbióticas existentes.
Para testar esta hipótese em um programa orientado para o tratamento, foi
desenvolvida uma técnica terapêutica que envolvia a introdução deliberada de uma
experiência de luto tardia. A expressão luto operacional foi escolhida para descrever
esta técnica devido a sua ênfase nos elementos de experiência envolvidos no processo
de luto. Estas experiências são as mais aproximadas ao que foi descrito como reações de
pesar e trabalho de luto. Elas consistem em uma resposta de luto induzida pelo
questionamento direto sobre as reações a perdas reais sofridas por membros específicos
da família. O terapeuta, através da revisão repetida dos detalhes coletados a respeito
destas perdas, estimula a expressão de sentimentos do membro diretamente envolvido.
Os outros membros da família são então convidados a revisar estes sentimentos, através
da observação da reação de luto. Esta técnica foi criada de modo a permitir que
crianças, muitas vezes pela primeira vez, observassem a expressão destes sentimentos
intensos por seus pais. Isto pode proporcionar uma experiência empática poderosa. O
paciente e os outros membros da família podem obter caleidoscopicamente uma
sensação de continuidade afetiva; o terapeuta pode tranqüilizá-los de que os sentimentos
revelados são normais. O deslocamento da hostilidade desde o objeto original perdido
para os membros da família presentes (em geral o paciente esquizofrênico) pode ser
esclarecido, e a revelação de “segredos de família” anteriormente desconhecidos pode
ser realizada. Uma característica concomitante do luto operacional é a revisão aberta de
ameaças de abandono episódicas por um dos pais ou outro membro da família que tenha
afligido a unidade familiar com presságios sinistros. Estas ameaças e a ansiedade
resultante diminuem quando as fontes originais destas ansiedades de separação são
elaboradas.
Durante estes períodos de luto provocado, os membros da família adquirem a
capacidade de compartilhar experiências afetivas entre si. Isto aumenta sua
familiaridade com a experiência de luto e seus derivados. Ao mesmo tempo, eles são
estimulados pelo terapeuta a reagir empaticamente aos afetos revelados pelos outros.
Este processo contribui para o desenvolvimento de um ego observador em cada membro
da família. Embora eles possam exibir graus variáveis de resistência a muitos temas, o
luto e a revisão dos objetos perdidos se sobressaem como os mais difíceis de trabalhar.
121

WALSH, Froma. Morte na família: sobrevivendo as perdas. Porto Alegre: Artmed,


1998.

Nossos estudos até agora sugerem que a evitação do luto operacional é mais
forte nas famílias com um membro esquizofrênico. As famílias de pacientes neuróticos,
em geral, são capazes de trabalhar este tema espontaneamente após o terapeuta tê-lo
discutido algumas vezes. Parece que a reação da família em si pode ser um critério
diagnóstico.
À medida que o paciente começa a exibir um comportamento mais adequado, o
equilíbrio familiar fixo demonstra sinais graduais de colapso, manifesto em sintomas de
desorganização individual e aumento dos atritos intrafamiliares. Alguns membros com
fortes laços simbióticos relatam uma variedade de distúrbios psíquicos e
psicossomáticos, incluindo insônia, tensão, sintomas do trato digestivo, depressão e
ansiedade flutuante. Ao mesmo tempo, algumas defesas são colocadas em
funcionamento. Elas podem assumir a forma de uma busca frenética de orientação e
conselhos especializados de médicos ou religiosos, ou uma imersão em diversas
atividades. Esta desorganização é temporária, mantendo-se até que a individuação
emergente se torne aparente. Quando isto ocorre, os relacionamentos se modificam e os
conflitos tendem a se extinguir.
Estes fenômenos são típicos da segunda fase do processo de luto, como descrito
por Bowlby (1961a), e lembram a desorganização pessoal temporária que ocorre quando
um paciente em psicoterapia ou psicanálise individual está no processo de abandonar
um mecanismo de defesa profundamente arraigado.
O planejamento da alta começa com a emergência de novos interesses por parte
de cada membro da família. Ela está associada a uma revisão da história do grupo
familiar e a sua reação à separação iminente do terapeuta. Os sentimentos ambivalentes
em relação à perda são enfatizados em relação à importância da capacidade de suportar
e aceitar os afetos produzidos pelo fim do tratamento.
CASO ILUSTRATIVO
O seguinte relato focaliza a fase inicial da terapia familiar conjunta, após a negação da
doença do paciente e dos problemas familiares associados ter sido revisada. Embora os
membros da família conhecessem um pouco da história da perda em questão, eles nunca
haviam sido expostos ao impacto afetivo destes eventos. Está incluído aqui um extrato
de uma gravação da primeira sessão de terapia familiar conjunta, realizada oito anos e
meio após o surgimento de uma reação esquizofrênica esquizoafetiva crônica recorrente
em Turner D. Jr., de 34 anos, casado e pai de três filhos.
O primeiro episódio esquizofrênico do paciente ocorreu aos 26 anos, quando, após
diversos abortos espontâneos, sua esposa anunciou que estava novamente grávida e que
desta vez conseguiria manter o bebê. Dentro de poucos dias, ele começou a exibir um
estado de perturbação aguda, manifestada em delírios, alucinações, comportamentos
posturais bizarros, ideação paranóide e
122
afeto inapropriado. Ele foi internado com um diagnóstico de severa reação
esquizofrênica indiferenciada aguda. Ele se recuperou em seis meses, e conseguiu um
emprego como engenheiro de pesquisa, no qual se manteve por 10 anos. Seus sintomas
reapareceram durante os segundos trimestres das duas gestações seguintes da esposa,
em 1955 e em fevereiro de 1960. Desde esta última data, ele teve três períodos de
internação, que duraram em média seis meses cada. Ele foi tratado com psicoterapia
individual e medicação a partir de fevereiro de 1960. No fim do verão de 1962, decidiu-
se começar um curso simultâneo de terapia familiar conjunta uma vez por semana, da
qual participariam seus pais, irmãos e esposa. Esta estava sendo atendida em terapia
desde fevereiro de 1960.
A família D., de aparência atraente e atitude vigorosa e animada, consiste de
dois pais vivos e cinco filhos, dos quais o paciente é o mais velho. O Sr. Turner O. Dr.,
o pai, é um executivo de 58 anos. Ele foi o único sobrevivente entre os três filhos de sua
própria família nuclear, e foi criado pelos avós maternos a partir dos 7 anos de idade,
depois que seu pai morreu na explosão em um curtume. Seu papel em geral passivo
como pai fica salientado em uma piada familiar na qual ele é considerado o sexto filho.
Sua atitude em relação ao paciente sempre foi distante e de pouco envolvimento. A Sra.
D., de 57 anos, é uma enfermeira graduada, que parece enganosamente feminina e
desamparada, a despeito de seu papel controlador. No que diz respeito a sua forma de
lidar com sentimentos, esta família deixa evidente a ausência de expressão direta de
hostilidade, com uma tendência à excessiva alegria infantil, humor frenético e risinhos
ao se deparar com níveis desconfortáveis de tensão.
O luto operativo começou com uma revisão da reação do pai à morte de seu
próprio pai, após o paciente ter discutido seus problemas pessoais pela primeira vez na
presença da família. Ele tinha caracterizado a si mesmo como incapaz de alcançar um
nível de funcionamento além do da adolescência. O terapeuta perguntou sobre a origem
do nome do paciente.
TERAPEUTA (NP) Uma das coisas que eu queria descobrir aqui é em termos de,
vamos voltar no tempo, como você decidiu o nome de Turner, porque isto foi o começo
dele.
SR. D. (com suavidade) Era John, no início; John.
SRA. D. (bem baixinho) Não.
SR. D. Não?
SRA. D. Não, esse foi o Corky (o segundo filho).
SR. D. (surpreso) Ah, esse foi o Corky?
SRA. D. (com convicção) Eu não acho que tenha havido qualquer dúvida a respeito do
fato de que o primeiro filho teria o mesmo nome que o pai. Eu quero dizer, não acho,
nós nem sequer pensamos em outra coisa, e nunca pensamos em outra coisa exceto que
seria um menino.
TERAPEUTA Ele teria tido problemas se fosse uma menina. (todos riem)
SRA. D. Bem, uma vez que tivemos problemas por ele ser... o que pode, pode
basicamente — você não sabe o quanto isso demorou ... mas eu não acho que tenha sido
um segredo. Nós falamos sobre isso abertamente
123
na família; o Turner (Sr.) sempre disse que ficaria, você sabe, perfeitamente feliz de não
ter filhos; ele não sabia o que fazer com eles porque ele é filho único, basicamente um
filho único de filhos únicos.
TERAPEUTA (para o Sr. E.) Seus pais também eram filhos únicos?
SRA. D. (respondendo pelo Sr. D.) Bem, na verdade não. O pai dele tinha dois irmãos,
mas eles morreram muito cedo, e ele não teve nenhuma experiência com crianças e,
como eu lhe disse agora há pouco, eu queria ter oito meninos. Nós tivemos um conflito
logo de saída (rindo nervosamente).
TERAPEUTA (para o Sr. D.) Bem, qual foram suas idéias a respeito do nome para ele?
Sr. D. (um pouco hesitante) Eu não me lembro se tinha alguma idéia. Eu acho que
estava simplesmente subentendido que ele carregaria o nome dos D., porque toda a
família, hã, a única coisa que eu consigo me lembrar, hã, a respeito de meu nome é o
fato de que toda a família dos D. estava morrendo e ele era, ele era o único que podia
continuar o nome, este ramo da família.
SRA. O. Turner é um nome de família.
SR. D. E meu avô era Turner.
TERAPIUTA E seu pai?
SR. D. Não, o nome dele era Ebenezer. Então voltamos para o pai dele, que era Turner,
TERAFEUTA (para o Sr. D.) Você conheceu o pai dele?
SR. D. Não, não.
TERAPEUTA Ele morreu antes de você nascer?
SRA. D. (ligeiramente triste) Ele mal conheceu o pai.
TERAPEUTA Você se lembra de sua experiência quando ele morreu?
SR. D. (contendo as lágrimas) Sim, eu me lembro.
TFRAFEU’IA O que é que você lembra?
SRA. D. Bem, foi muito forte.
TERAPEUTA Em que sentido?
SR. D. Bem, veja, (falando muito rapidamente) ele morreu queimado. Foi um acidente,
uma explosão. Meu avô levou-me até o, hã, o local do incêndio.
TERAPEUTA Qual avô?
SR. O. Johnson
TERAPEUTA Entendo.
SR. D. Veja, do lado da minha mãe, e, hã, eu lembro desta experiência muito bem e,
hã,...
TERAPEUTA Você se lembra do que sentiu naquela hora?
SR. D. (recompondo-se) Bem, eu achava que estava enfrentando a situação muito bem,
tanto quanto posso me lembrar. Eu contei para todo mundo na vizinhança, e falar
naquilo parecia me ajudar a entender a situação e, hã, é claro, nós já estávamos morando
com meus avós, então foi só a transferência de meu pai para meu avô a partir dali e,
hã...
124
A despeito das manobras defensivas da esposa para distrair sua atenção, o pai
respondeu relutantemente às perguntas diretas sobre a morte de seu pai. Ele forneceu
detalhes exatos com muito sentimento, enquanto os outros escutavam com atenção
embevecida:
TERAPEUTA Você viu o seu pai quando ele se queimou?
SR. D. (cada vez mais triste) Não. Não, eu não vi. Não me deixaram sair do carro. Meti
avô disse: “Fique sentado no carro”, e eu fiquei. (Seu pai morreu em 12 de setembro de
1912.)
TERAPEU1A Como você se sente agora, ao relembrar esta experiência? Como você
está se sentindo aqui?
SR. D. (começa a chorar em silêncio) Eu me sinto mal com isso.
TERAPFUTA Como assim, mal?
SR. D. Hã (suspiro profundo), bem, eu acho que foi, as coisas teriam sido muito
diferentes se ele não tivesse morrido (choro contínuo).
TERAIEUTA Mas eu quero saber o que você sente, quero dizer
SR. D (tentando se recompor enquanto fala rapidamente) Bem, pesar, sofrimento.
TERAPEUTA Lá dentro, você tem uma sensação de tristeza?
SR. D. (chorando novamente) Sim, sim.
TERAPEUTA E esta mágoa antiga volta quando você revisa isso?
SR. D. É, acho que sim.
SRA. D. (tristemente) Eu sempre senti muito, mais pela mãe dele do que por ele, porque
eu sentia que ele tinha a vida pela frente, e a vida dela tinha terminado. Na verdade,
acho que a vida dela nunca começou.
SR. D. Não, ela
TERAPEUTA Sim, mas num certo sentido eu acho que a sua vida também deve ter
parado quando ele morreu — sem pai.
SR. D. Está certo (chorando silenciosamente).
Ele então descreveu os bons momentos que tivera com o avô. Mary, a irmã do
paciente, fez eco a estas palavras afirmando que o Sr. D. Sr. era um “avô maravilhoso”.
O terapeuta perguntou se era assim que o Sr. D. Sr. tinha visto seu avô; ele disse
prontamente que sim, com alguma surpresa. Posteriormente nesta mesma sessão, o Sr.
D. Sr. expressou seu desagrado com o terapeuta por se concentrar nos sentimentos dele
em relação à morte de seu pai, questionando o valor deste procedimento:
SR. D. (com o rosto corado, com raiva) Mas que efeitos tem falar sobre isso? O que
TERAPEUTA Pergunte às outras pessoas. Pergunte a elas.
SRA. D. (ponderadamente) Esta é a pergunta que temos feito durante anos. Cada vez
que tentei, cada vez que falamos nisso, meu querido entra para dentro de sua concha e
diz: “Para que falar disso?”.
TERAPEUTA Bem, então pergunte aos outros aqui e descubra.
SRA. D. (com alguma surpresa) Bem, nós já não dissemos para ele?
125
MARY Não, na verdade não.
TERAPEUTA Bem, ele quer saber. Acho, para ser justo com ele, que ele quer saber se
isso é importante. (Para o pai): Esta é a pergunta que você está fazendo.
SR. D Está certo.
SRA. D. Isto é extremamente importante para mim.
SR. L). (incisivamente) Por quê?
SRA. D. Porque, talvez se ele puder falar sobre como ele se sente em relação ao pai, ele
possa falar sobre como se sente em relação a mim.
Mary e a esposa do paciente indicaram a importância da revisão afetiva da perda
do Sr. D. Turner Jr., o paciente, então respondeu (com hesitação): “Bem, bem, durante
todo o tempo em que ele estava falando, eu tive uma, há, sensação de, de sofrimento por
ele que eu nunca tinha experimentado antes, hã, então foi um, um sentimento novo para
mim e, hã, bem, eu nunca tinha ouvido a história antes. Minha primeira experiência com
a morte de alguém próximo a mim foi quando Nick Jones (meu melhor amigo) morreu”.
O encontro terminou em um tom positivo. Eles concordaram em continuar a terapia
familiar conjunta, com um entendimento pleno de sua natureza inovadora. O paciente
retornou para o trabalho na semana seguinte. Naquela mesma semana, na terapia
individual com o mesmo terapeuta, ele relatou espontaneamente que, após estabelecer
uma empatia com o que o pai tinha vivido, ele se sentia “um homem” pela primeira vez
em seu trabalho. Ele então revelou que se sentia estranhamente deprimido, o que
relacionou com a ausência de seu alto nível de ansiedade anterior.
DISCUSSÃO
O caso acima ilustra a técnica do luto operacional. A despeito das aparências
superficiais em contrário, fica evidente que o paciente foi criado em uma família que
nunca compartilhou emoções críticas relacionadas à experiência de perda de objeto. A
mãe, dando ao paciente o nome do pai, tinha expressado o desejo de que o paciente se
identificasse com ele. Entretanto, o distanciamento deste o impediu de ser um bom
modelo para o filho, exceto na área das realizações profissionais, na qual o paciente e o
pai tinham em comum padrões compulsivos. Como foi revelado nesta sessão, a perda
traumática do pai nunca foi elaborada nestes 50 anos após sua ocorrência. A fixação do
pai tornou-o incapaz de expressar os afetos críticos de tristeza e desamparo. Ele também
foi prejudicado no aspecto mais importante, o de não ser capaz de experimentar estes
afetos. Uma dificuldade similar era crucial na falta de desenvolvimento emocional do
paciente.
Uma diferença entre este caso e o das famílias de pacientes neuróticos é que,
nestas últimas, as perdas significativas são vivenciadas diretamente pelos pacientes. Na
família D., a perda foi vivenciada pelo pai, e não diretamente pelo paciente. Este caso
ilustra as influências transgeracionais da experiência
126
de perda no processo esquizofrênico. Hill (1955) e Bowen (1960), entre outros, sem
nomear influências específicas, comentaram este fenômeno.
Este exemplo também demonstra como o luto operacional em sessões conjuntas
de família pode ativar um potencial empático que seria impossível em outros settings.
Embora tenha sido demonstrado que as reações de luto podem ser induzidas na
psicoterapia individual (Lindemann, 1944; Wetmore, 1963), este material nunca teria
levado às conseqüências interacionais de melhoria nas relações dentro da família que o
setting familiar proporcionou. Turner D. Jr. teve a oportunidade de testemunhar
pessoalmente e estabelecer empatia com os afetos que seu pai revelou ao relembrar um
evento crítico. Isto pareceu catalisar afetos similares no paciente.
A natureza e a aparência da empatia carecem de uma definição adequada (Paul,
1966). Exceto quando usada pelo poeta, a linguagem tende a filtrar a essência da
experiência empática. A hostilidade, a ansiedade ou a alegria são comumente expressas
e compartilhadas, mas a experiência do pesar, da tristeza ou da angústia são geralmente
escondidas. Entretanto, quando estes últimos estados são compartilhados, eles trazem
uma comoção singular. O reconhecimento do homem das qualidades trágicas da vida
tem sido focalizado pelos existencialistas em termos de solidão. O luto operacional,
com suas respostas empáticas observáveis, serve como uma técnica para terapia e
pesquisa em uma das áreas mais difíceis da experiência humana.
Finalmente, uma característica crucial enfrentada diretamente no curso do luto
operacional na terapia familiar conjunta é a questão da alta (Edelson, 1963). Uma vez
que muitos êxitos terapêuticos naufragaram nos estágios finais da relação paciente-
terapeuta, esta característica do processo terapêutico é enfatizada aqui. Pela reativação
da experiência anterior de perda de objeto na terapia familiar conjunta, o terapeuta pode
começar a preparar a família para a realidade da perda eventual do terapeuta.
Estimulado pelas perguntas dirigidas pelo terapeuta, as respostas antecipatórias a esta
separação são compartilhadas. Assim, novamente, cria-se uma oportunidade para
elaborar as ambivalências relacionadas à perda (Greenson, 1964), e os ganhos recentes
podem ser consolidados.
127
6
O Legado da Perda
MONICA MCGOLDRICK
A idéia da morte, o temor a ela, assombra o animal humano corno nenhum
outro; ela é a mola mestra da atividade humana... De todas as coisas que movem o
homem, uma das principais é o pavor da morte.
Ernest Eecker, The denial of death
Você mesmo é a continuação corporificada daqueles que não viveram em seu tempo e
outros serão (e são) sua imortalidade na terra
Jorge Luis Borges
Examinando os efeitos multigeracionais da perda, podemos aprender muito
sobre como as famílias operam, o que acontece quando elas ficam paralisadas por seus
problemas e como podemos mudar estes padrões. A perda pode fortalecer os
sobreviventes, despertando sua criatividade, estimulando- os a se realizarem, ou pode
deixar atrás de si um legado destrutivo, ainda mais poderoso se não for enfrentado, O
dramaturgo A. R. Gurney descreveu o legado do suicídio de seu bisavô, nunca
mencionado durante sua vida, em sua família.
Meu bisavô pendurou suas roupas um dia e entrou no Rio Niagara, e ninguém
entendeu por quê. Fie era um homem respeitado em l3uffalo. Meu pai nunca conseguiu
mencionar este fato, e ele afetou a família até a quarta geração como um gesto sombrio
e inexplicável. Ele tornou meu pai e o pai dele desesperados para serem aceitos, para
serem convencionais e confortáveis. Fez com que eles se comprometessem com um
mundo burguês ostensivamente fácil. Eles o entendiam precariamente, mas a razão
nunca foi mencionada. (Witchel, 1989)
129
Quatro gerações depois, os padrões colocados em movimento por esta morte
ainda estavam operando. Gurney tinha 48 anos quando soube do suicídio pelo seu
sogro, que era genealogista. Isto ocorreu quando o pai de Gurney morreu; em uma
interessante continuação do padrão, o próprio Gurney se recusa a falar sobre a morte do
pai. Podemos repetir por diversas gerações os padrões gerados por perdas cm gerações
anteriores que nem sequer conhecemos. Este capítulo vai usar exemplos de diversas
famílias bem conhecidas para ilustrar o legado da perda entre as gerações de uma
família.
A RAINHA VITÓRIA
A Rainha Vitória, que governou a Inglaterra durante dois terços de um século,
dominou o séc. XIX e, de muitas maneiras, teve uma influência continuada no séc. XX.
Vitória sofreu, como muitos de nós, os efeitos firmemente arraigados dos problemas da
perda em suas relações familiares. Por 40 anos, ela vestiu luto no estilo do ano em que
seu marido, Albert, morreu. Anos antes, Vitória tinha escrito: “Como adoramos nos
apegar ao sofrimento” (Benson, 1987, p. 96), e agora ela certamente o fazia. Ela
desenvolveu uma obsessão por catalogar tudo, para que nada fosse modificado. Ela
cercou-se de recordações do passado e deu ordens para que nada fosse jogado fora —
não haveria mais perdas ou mudanças. Até sua morte, estas ordens foram obedecidas
(Strachey, 1921). As reações de Vitória, limitantes e rígidas como podem parecer, são
compreensíveis — quando dominadas por uma morte, as pessoas podem se tornar
rígidas, aferrando-se desesperadamente ao que quer que permaneça daquele que
perderam, e resistir a mudanças que possam significar outra perda.
O pai da Rainha Vitória, que a adorava, morreu quando ela tinha apenas 8 meses
de idade. Desde então, ela passou a dormir com a mãe todas as noites até os 18 anos,
compartilhando tudo com ela. Vitória estava quase completamente isolada de outros
relacionamentos próximos, uma vez que sua mãe alemã tinha emigrado sozinha para a
Inglaterra para se casar, e os parentes britânicos sentiam pouca conexão com ela após a
morte de seu marido.
A medida que Vitória amadurecia, ela começou a se sentir sufocada pelas
exigências emocionais de sua mãe exilada. Quando subiu ao trono, aos 18 anos, ela
baniu a mãe emocionalmente, mantendo-a à distância pelo resto da vida.
Os intensos laços anteriores entre elas foram substituídos quase imediatamente por um
relacionamento apaixonado e turbulento com seu primo-irmão e marido, o Príncipe
Albert.
Vinte e quatro anos depois, quando Vitória tinha 42 anos, sua mãe morreu, o que
a precipitou em paroxismos de pesar, em grande parte em decorrência da culpa e do
remorso por seu afastamento. Quando ela começou a mexer nos papéis da mãe após o
funeral suas emoções afloraram completamente. A mãe tinha guardado todo e qualquer
fragmento das recordações da infância de Vitória. Ela sentiu um arrependimento
profundo por tê-la rejeitado (Weintraub, 1987, p. 289).
130

O amor dela por mim. É muito tocante: encontrei livretos com relatos de quando
eu era bebê, e eles demonstram uma ternura sem limites! Não ter a amizade da mãe, não
poder lhe fazer confidências quando uma menina (sic) mais necessita dela ... isto me
exaspera agora. (Citada em Woodham-Smith, 1972, p. 412)
Vitória, embora já uma mulher de meia-idade, descreveu-se aqui como uma
“menina”, em outros trechos dizendo-se uma “pobre criança órfã”, não mais amada após
a morte de sua mãe (Weintraub, 1987). Ela parece, como observou o biógrafo
Weintraub, “determinada a acalentar seu sofrimento e a não ser consolada” (p. 290).
Durante semanas ela fez todas as suas refeições sozinha, considerando seus filhos “uma
perturbação” e deixando todos os assuntos do governo para seu marido, ele mesmo em
fase terminal de sua doença.
A morte de Albert, alguns meses depois da de sua mãe, paralisou Vitória
completamente. Ela tinha transformado Albert no centro de sua vida, de tal forma que
todas as outras relações eram secundárias. Ela não foi ao funeral dele, mas durante anos
dormiu com sua camisola nas mãos. Ela transformou o quarto dele em um “aposento
sagrado”, que devia ser mantido exatamente como era quando ele estava vivo. Todos os
dias, pelo resto de sua vida, ela fez com que os lençóis fossem trocados, as roupas dele
colocadas sobre a cama e a água fosse preparada para que ele fizesse a barba. Em cada
cama onde dormia, ela prendia uma fotografia de Albert morto.
Podemos somente especular, com o beneficio de nossos conhecimentos
psicológicos atuais, como os filhos de Vitória devem ter sido afetados pelas distorções
que a perda criou em seus padrões familiares. A própria Vitória afirma que, tendo
crescido tão isolada com a mãe, nunca se sentiu confortável com seus filhos
(Auchincloss, 1979, p. 151). Sabemos que ela se recusava a fazer qualquer acomodação
à necessidade do filho mais velho de aprender a experiência de governar — tratando-o
como uma criança até seu último suspiro, quando ele já tinha 50 anos.
A FAMÍLIA BRONTË
A perda pode criar mitos e superstições a respeito dos perigos do mundo exterior
que se transmitem pelas gerações de uma família, influenciando descendentes que não
têm consciência das origens das crenças e premissas desde as quais operam. A família
Brontë (Figura 6.1) parece ter desenvolvido a crença de que deixar a casa familiar era
perigoso e, ao final, nenhum de seus membros pôde fazê-lo. Charlotte, a mais velha a
alcançar a vida adulta, certa vez escreveu como um epitáfio para uma de suas heroínas:
“A órbita de sua vida não deve ser tão circular; para você, a fase crescente deve bastar”
(Fraser, 1988, p. 483). Este epitáfio poderia ser aplicado a toda a geração de sua família.
Havia algo de excêntrico nas crenças, comportamentos e na vida dos Brontës que parece
ter sido um legado familiar. Charlotte, mesmo em sua juventude, parecia-se de algum
modo com uma velhinha; por outro lado, ela usou camisas de criança por toda a sua
vida. Ela se descrevia como “não-desenvolvida”. Todos
131
os Brontës se preocupavam com a morte. Para o irmão, Branwell, ela era um tema
primário em seus escritos e, por fim, também para Emily. A idéia de que morreria
jovem oprimia a mente de Charlotte desde sua juventude (Fraser, p. 383), embora ela,
na verdade, viesse a sobreviver vários anos a todos os irmãos. Explicando a uma amiga
por que ela não podia sair de casa para abrir uma escola com ela, Charlotte escreveu:
Quando eu estiver livre para deixar minha casa talvez eu esteja muito além do
apogeu de minha vida — minhas faculdades estarão enferrujadas — e meus
conhecimentos, em grande medida, esquecidos. Estas idéias me atormentam
profundamente às vezes — mas sempre que consulto minha Consciência ela afirma que
faço bem em ficar em casa — e amargas são suas repreensões quando cedo a um desejo
ansioso de libertação. (Fraser, p. 183)
Não temos muitas informações sobre as gerações anteriores desta família
extraordinária, que produziu ditas das grandes romancistas que o mundo conheceu:
Emily Brontë, autora de O Morro dos Ventos Uivantes, e Charlotte Brontë, autora de
Jane Eyre. Podemos suspeitar que havia conflitos emocionais gerados por perdas na
família do pai das Brontë, Patrick, já que seu pai e seu avô tinham sido ambos adotados
e maltratados por suas famílias adotivas. A mãe, Maria Branwell Bronte, veio de uma
família na qual quatro filhos morreram quando ainda bebês ou na infância, incluindo os
três mais próximos a ela em idade. Também sabemos que Patrick e Maria se casaram
em um casamento duplo com a prima-irmã de Maria e o melhor amigo de Patrick, e que,
naquele mesmo dia, a irmã mais nova de Maria, Charlotte, casou-se com um primo
132
delas em uma outra cidade da Inglaterra. Na visão sistêmica da “coincidência” de
eventos em uma família, eles não são vistos simplesmente como acontecimentos
aleatórios, mas enquanto refletindo alguma conexão sistêmica mais profunda. Este fato,
de que quatro membros de uma mesma família se casaram no mesmo dia, sugere
alguma fusão na família Bronté, que resulta muitas vezes de uma perda, embora não
conheçamos as circunstâncias específicas que levaram a este casamento múltiplo.
Seguiu-se na família de Patrick e Maria l3ronté uma série de perdas trágicas, que
parecem ter influenciado profundamente o comportamento futuro de seus membros,
limitando sua capacidade de se separarem e voltando-os para dentro, para si mesmos e
uns para os outros. Patrick passou a se ver como “um estrangeiro em uma terra
estrangeira”, e parece ter comunicado para seus filhos esta sensação de alienação e
necessidade de se protegerem do mundo externo. Os seis filhos nasceram em rápida
sucessão e, logo após o nascimento do último, a mãe aparentemente desenvolveu uma
séria afecção sangüínea, que a levou à morte. Durante o último período da doença de
Maria, e coincidentemente com ela, todos os seis filhos desenvolveram escarlatina, o
que deve ter intensificado a tragédia que a família já vivenciava. Maria teve uma morte
excruciantemente dolorosa um ano depois, tendo visto raramente seus filhos no último
ano devido a seu sofrimento. A filha mais velha tinha apenas 9 anos, e o mais novo não
tinha ainda 2. Patrick parece ter encontrado nos filhos um lembrete doloroso da mulher,
ao invés de um conforto:
Um sofrimento opressivo por vezes se abatia sobre mim quando eu sentia sua
falta em cada canto, e quando sua memória era revivida continuamente pela inocente,
ainda que perturbadora, tagarelice de meus filhos. (Fraser, p. 28)
Patrick se retraiu e passou a comer sozinho, o que continuou a fazer pelo resto
de sua vida. Sua filha mais tarde disse: “Ele não gostava de crianças ... e o barulho fazia
ele se calar e não querer companhia — não, para positivamente não ser incomodado por
ela” (Fraser, p. 28). Do momento da morte de Maria em diante, nada no lar dos Brontés
foi mudado — nenhuma mobília foi deslocada, acrescentada ou eliminada — e muito
poucas pessoas os visitaram. A rigidez em relação a outras mudanças, similar à tentativa
da Rainha Vitória de controlar seu mundo após suas perdas avassaladoras, é uma reação
comum em famílias que experimentaram perdas graves. E como se o tempo parasse. As
famílias podem se fechar, tentando controlar aqueles aspectos do mundo sobre os quais
ainda têm algum poder, já que naquilo que realmente importa — os relacionamentos
humanos — elas perderam a sensação de controle.
A irmã solteira da mãe, Elizabeth, veio morar com os Brontés e permaneceu até o fim
da vida. Quando, quatro anos mais tarde, as duas filhas mais velhas morreram, foi
contratada uma pessoa para tomar conta da família, que também ficou pelo resto de sua
vida. Ela morreu uma semana após a morte da última filha sobrevivente, Charlotte.
Durante toda a sua infância, as seis crianças foram deixadas quase que sozinhas e,
embora o aspecto exterior de suas vidas não se modificasse, elas desenvolveram uma
notável vida interior. Desde
133
a infância, elas começaram a escrever histórias juntas, em uma caligrafia microscópica,
em pequenos livros que não tinham mais do que 5 centímetros quadrados, dos quais
mais de 400 foram recuperados. A escrita destas histórias está em uma grafia quase
privativa, como se, desligadas do mundo externo, elas estivessem se fundindo umas
com as outras em sua imaginação; suas mentes vagavam livres na fantasia, criando
sagas históricas com personagens imaginários, combinados com figuras históricas das
quais tinham ouvido falar.
Quando a filha mais velha tinha 12 anos, ela e as irmãs foram mandadas para um
internato local para filhos de pastores, mas, infelizmente, ainda mais tragédias se
seguiram a esta tentativa de expansão dos horizontes da família. Ela e a segunda irmã
desenvolveram tuberculose na escola, e morreram dentro de poucos meses. A morte da
mais velha, Maria, que carregava o nome da mãe, foi especialmente trágica, porque as
autoridades da escola foram muito cruéis com a criança moribunda em seus últimos
dias, e as outras tiveram que observar o tormento de sua irmã favorita, que tinha sido
por tanto tempo a substituta de sua mãe. A morbidez de tudo aquilo deve ter sido
exagerada pelo fato de que o cemitério onde a mãe e as irmãs foram enterradas cercava
a casa da família por dois lados, e não havia como escapar do lúgubre sentido de morte
daquelas sepulturas.
A tragédia destas perdas da juventude deve ter reforçado para os Brontës a idéia
nascente dc que a vida no mundo exterior era perigosa. As crianças foram retiradas da
escola e, daí em diante, sempre que algum dos quatro filhos remanescentes tentou sair
de casa, eles foram forçados a retornar, seja por terem ficado doentes ou disfuncionais
longe de casa, seja porque alguém da família tinha ficado doente ou necessitava
atenção. O único filho, Branwell, em quem as maiores esperanças eram depositadas, foi
aceito pela Royal College of Arts de Londres, e deixou a casa da família para freqüentá-
la, mas nunca chegou até lá, voltando pouco tempo depois, viciado em álcool e drogas.
A partir daí, ele saía periodicamente de casa em função de empregos que nunca
conseguia manter. Das três irmãs sobreviventes, Charlotte foi a que teve mais êxito em
sair de casa, conseguindo, à certa altura, ficar em uma escola por dois anos, e foi a única
capaz de desenvolver amizades fora da família. Ela também, entretanto, sempre voltava
para casa.
A verdadeira deterioração de Branwell coincidiu com a publicação dos primeiros
trabalhos de suas três irmãs, feita sob pseudônimos masculinos, sem que elas contassem
a ninguém, nem ao pai nem ao irmão, o que estavam fazendo. Quando Branwell morreu,
três anos depois, as irmãs já eram amplamente reconhecidas por seus próprios nomes.
Infelizmente, Emily caiu doente quando Branwell morreu, e nunca mais deixou a casa,
morrendo três meses depois. Anne também ficou doente por volta da mesma época, e
morreu cinco meses depois de Emily, restando apenas Charlotte dos seis irmãos. A
respeito de seus irmãos mortos, Charlotte temia que “a sombra de seus últimos dias
deve agora, penso eu, permanecer para sempre” (Fraser, p. 325). A descrição dela de
suas reações na época é uma excelente expressão do legado do trauma da perda em uma
família:
134

Não devo olhar para a frente, nem olhar para trás. Com muita freqüência, sinto-
me como se estivesse cruzando um abismo sobre uma prancha estreita um olhar em
volta poderia me amedrontar muito. (Fraser, p. 320)
Charlotte retornou ao seu trabalho:
A perda do que temos de mais próximo e caro a nós neste mundo produz um
efeito sobre o caráter: buscamos aquilo que ainda nos resta como apoio e, quando o
encontramos, nos agarramos a ele com tenacidade revigorada. A faculdade da
imaginação sustentou-me quando eu estava afundando. Seu exercício ativo tem mantido
minha cabeça fora d’água desde então. (Fraser, p. 340)
Charlotte teve vários pretendentes, o mais persistente dos quais foi o cura de seu
pai, Arthur Nicholls. Quando, alguns anos depois, ela finalmente concordou em casar-se
com ele, seu pai teve um acesso de raiva e despediu-o; entretanto, um ano depois,
incapaz de suportar o substituto de Nicholls, Patrick Bronté cedeu e concordou que ele
se casasse com Charlotte, se os dois se comprometessem a nunca deixá-lo. Eles
concordaram. Charlotte não estava realmente apaixonada por Nicholls, como sabemos
por meio de suas cartas para suas duas amigas íntimas, mas, logo após o casamento, ela
acompanhou o marido até a casa dele na Irlanda. Lá ela começou a vê-lo sob outro
ângulo — percebeu seu humor e achou-o mais interessante no contexto da família — e
começou a se apaixonar por ele. Contudo, ela retornou da lua-de-mel por estar ansiosa
em relação à saúde do pai, que logo melhorou. A dela, entretanto, começou a se
deteriorar. Ela tinha ficado grávida e, quando morreu meses depois, também perdeu o
bebê. A causa de sua morte não é clara. Genericamente, parece que seus sintomas de
vômitos da gravidez exacerbaram uma condição tuberculosa, e ela morreu de exaustão e
desidratação. Sua criada adorada, Tabby, tinha morrido um pouco antes. Ao morrer,
Charlotte tinha 38 anos, a mesma idade que a mãe, Maria Branwell Brontë, tinha
quando morreu. Somente Patrick agora sobrevivia, e ele viveu mais seis anos, morrendo
com a avançada idade de 86 anos.
Este foi o fim de uma família muito criativa. Poderíamos quase pensar que eles
estavam psicologicamente “condenados” pelo impacto das mortes anteriores em sua
mitologia sobre a perda. O legado da perda em uma família pode ir milito além daqueles
afetados por ela quando de sua ocorrência. Clinicamente, nossa tarefa é fortalecer as
famílias para que se libertem de mitologias disfuncionais e revisem sua história para que
possam abrir novas possibilidades para o futuro.
A REPETIÇÃO DE PADRÕES NAS FAMÍLIAS
As famílias tendem a se repetir. Embora o comportamento manifesto possa
assumir formas variadas, as mesmas questões tendem a ser atualizadas de geração para
geração. Bowen (1978) denomina isto de transmissão multigeracional
135
de padrões familiares, especulando que os padrões de relacionamento nas gerações
anteriores oferecem modelos implícitos para o funcionamento familiar na geração
seguinte. A justaposição de eventos nodais intensifica o processo familiar e aumenta a
probabilidade de transmissão emocional de padrões para a geração seguinte. Quer a
morte em uma família leve os pais a negligenciarem, quer a superprotegerem um filho
para compensar seus sonhos e relacionamentos perdidos, o peso da perda não resolvida
se torna um fardo para a geração seguinte, os filhos podem ser aprisionados em um
papel especial para realizarem as missões deixadas incompletas pela perda, ou podem
ser limitados pela incapacidade dos pais de se comprometerem com novos
relacionamentos por medo de repetirem a dor da perda.
A FAMÍLIA FREUD
A família Freud oferece diversas repetições interessantes de padrões que
parecem ter sido um legado da perda (Figura 6.2). Sigmund, o mais velho dos oito
filhos, nasceu em 1856 em Freiburg, na Morávia. Além de ser o mais velho, ele também
foi o único filho durante muitos anos. Sabemos que ele tinha uma posição muito
especial em sua família, tinha uma relação intensa com a mãe, que sempre se referia a
ele como seu “Sigi de ouro”. Segundo se sabe, ele era o centro da casa. Ele foi seguido
por um irmão que morreu, depois cinco irmãs e, finalmente, por um irmão 10 anos mais
jovem.
A importância especial de Sigmund para o pai foi provavelmente intensificada
pela morte de seu avô paterno três meses antes de seu nascimento. Este avô, Schlomo,
era rabino, e Sigmund, como professor e líder daquilo que muitos viam como a nova
“religião” da Psicanálise, estava seguindo a seu modo os passos do avô. () pai de
Sigmund, Jacob, também tinha perdido dois filhos de seu primeiro casamento, embora
não saibamos detalhes a respeito deles. Estas perdas tendem a intensificar o significado
dos filhos que vêm depois, particularmente do seguinte a nascer, que, neste caso, teria
sido Sigmund.
O irmão de Sigmund, Julius, nascido quando ele tinha um ano e meio, viveu
apenas sete meses. O filho mais próximo em idade, especialmente uma criança do
mesmo sexo, muitas vezes se torna o substituto dc um filho perdido.
No caso de Sigmund, sua proximidade com a mãe pode ter se tornado ainda mais
importante após a morte de seu segundo filho. A perda deste bebê teria em si sido
intensificada pelo fato de que, exatamente um mês antes de sua morte, o irmão mais
novo de Amália, também chamado Julius, morrera aos 20 anos de tuberculose pulmonar
(Krüll, 1986). Ela provavelmente já sabia que o irmão estava morrendo quando deu o
nome dele ao filho, sete meses antes, uma vez que não é do costume judaico dar a uma
criança o nome de um membro vivo da família. Mais tarde, Sigmund diria que tinha
recebido o irmão com “desejos maldosos e um ciúme realmente infantil, e a morte dele
deixou em mim o germe da culpa” (Krull, 1986). Além disso, nesta época, a babá de
Sigmund foi despedida da casa e a família se mudou duas vezes, aparentemente devido
a dificuldades financeiras. Seu sobrinho, John, e os dois meio-irmãos emigraram
136
para a Inglaterra logo depois. Além disso, ele logo teve que dividir a afeição dos pais
com uma nova irmã, Anna, com quem nunca conseguiu se relacionar bem. E importante
investigar cuidadosamente as perdas na história da família, a fim de entender o sentido
das relações que se desenvolvem. A percepção de Freud de seu lugar especial e seu
fervor religioso a respeito de suas crenças, bem como os relacionamentos que evoluíram
na família Freud, foram sem dúvida influenciados por esta acumulação de perdas
próximas ao seu nascimento.
Outro período crítico na vida de Freud foi aquele em torno da morte de seu pai,
que aconteceu quando Freud tinha 40 anos. Esta morte ocorreu logo após o nascimento
de sua última filha, Anna, batizada assim não por causa da irmã da qual se ressentia,
mas em homenagem à filha de seu professor de hebraico do ginásio, Samuel
Hammershlag (Jones, 1953-1957, 1; Krüll, 1986; Gay, 1988, 1990). Também nesta
época, sua cunhada Minna veio morar permanentemente com a família. Talvez não seja
de surpreender, dado o poder do legado emocional cm torno de uma perda significativa,
que a última filha, Anna, nascida no ano em que o pai de Freud morreu, tenha se
tornado sua favorita, sua seguidora e, certamente, a mais ligada emocionalmente a ele
de todos os seus filhos. Ele também desenvolveu uma ligação afetiva com sua cunhada,
Minna, e, por muitos anos, ela foi sua companheira intelectual e emocional. Em uma
carta para seu então mais íntimo amigo, Wilhelm Fleiss, ele descreve Minna como
“minha confidente mais íntima” (Masson, 1985, p. 73). Ele freqüentemente viajava
sozinho com ela, enquanto sua esposa era deixada com as crianças, e existem fortes
evidências de envolvimento sexual entre eles (Swales, 1982, 1986, 1987), um padrão
que não é incomum em famílias após uma perda. Com freqüência, podemos determinar
que os casos amorosos são precipitados por perdas, embora a conexão entre a morte e a
ligação emocional e sexual permaneça fora da consciência. Ainda mais fascinantes são
as evidências de uma repetição deste padrão de envolvimento sexual com uma cunhada
na geração seguinte, entre o filho mais velho de Freud, Martin, e a irmã de sua mulher
(Freud, 1988).
Jacob Freud, assim como seu filho Sigmund, tinha 40 anos quando seu pai
morreu. Conquanto isto, como a morte de Charlotte l3rontë com a mesma idade da mãe,
pode não ser mais do que uma coincidência, muitas vezes ficamos impressionadas, em
nossas explorações das histórias familiares, com a padronização destas coincidências, o
que pode refletir uma identificação especial com o genitor, como, dc fato, Freud parece
ter tido com seu pai. Quando este morreu em 1896, Freud escreveu:
Por uma daquelas obscuras vias por Irás da consciência oficial, a morte do velho
me afetou profundamente. Eu o prezava muito, compreendia-o muito bem e, com aquela
combinação de sabedoria profunda e leveza romântica que lhe era peculiar, ele
significou muito para mim. Sua vida havia terminado muito tempo antes de morrer, mas
sua morte parece ter despertado em mim lembranças de todos os dias passados. Sinto-
me agora um tanto desarraigado. (Masson, 1985, p. 202)
137
Sigmund, agora com 40 anos, experimentava na época uma grande crise vital.
Ele apresentava sintomas de depressão e “pseudo” problemas cardíacos. Ele se queixava
dc letargia, enxaquecas, além de vários outros problemas somáticos e emocionais. Ele
estava claramente atravessando uma fase de grande perturbação. Ele começou sua
famosa auto-análise e construiu o edifício de uma nova teoria, que levou à publicação
de seu talvez mais famoso livro, A Interpretação dos Sonhos. Foi nesta época também
que ele formulou sua teoria da sedução, a qual renegou logo depois. Muitos viram este
recuo como uma reação a um sentimento de culpa pela idéia de que sua teoria pudesse
se aplicar a seu pai.
A morte do pai de Freud foi com certeza uma experiência-chave em sua vida,
como é a morte de um dos pais para a maioria das pessoas. Ser confrontado com uma
morte significativa pode levar a uma intensificação da emoção, a qual pode ser muito
produtiva em vários aspectos e levar à criatividade, como foi obviamente o caso de
Freud. Mas quaisquer questões que não tenham sido resolvidas no relacionamento com
os sobreviventes podem ficar cristalizadas no tempo e levar a uma interferência
emocional em outras relações, aprisionando-as em sua rede e restringindo-as em seu
desenvolvimento. Podemos especular sobre o papel que o processo emocional da
família Freud desempenhou no fato de que nem Minna Bernays nem Anna Freud se
casaram, e de que ambas pareceram ter uma grande quantidade de energia emocional
direcionada para Freud por toda a vida.
Algumas mortes têm mais impacto sobre uma família do que outras.
Particularmente traumáticas são as mortes prematuras, como a do irmão de
138
Sigmund, Julius. Um exemplo similar, duas gerações depois, foi a morte do neto
de 4 anos de Sigmund, que tinha ficado órfão ainda bebê, com a morte da filha de
Freud, Sophie. Esta criança era, ao que tudo indica, extremamente inteligente.
Ele era, de fato, um rapazinho encantador, e eu mesmo estava consciente de
nunca ter amado um ser humano, e certamente uma criança, com tal intensidade ... Esta
perda me é muito difícil de suportar. Não creio que tenha alguma vez experimentado tal
sofrimento; talvez minha própria doença contribua para o choque. Trabalho puramente
devido à necessidade; fundamentalmente, tudo perdeu o sentido para mim. (Freud,
1975, p. 344)
Um mês depois, ele escreveu que estava sofrendo a primeira depressão de sua
vida. Durante mais de três anos ele foi incapaz de apreciar a vida, e aparentava ter
entrado em depressão. Esta forte reação parece dever-se parcialmente à coincidência
com seu próprio diagnóstico de câncer, que viria a ser fatal. Ele escreveu para o pai da
criança 3 anos mais tarde:
Passei alguns dos dias mais negros de minha vida em lamentos pela criança.
Finalmente sou capaz de me controlar, e consigo pensar nele tranqüilamente e falar dele
sem lágrimas. Mas os confortos da razão não me auxiliaram; o único consolo para mim
é que, na minha idade, eu não teria chegado a conhecê-lo muito. (citado em Clark, 1980,
p. 441)
Contrastemos isto com sua reação à morte da mãe, aos 95 anos, em 1930. Ele
nem mesmo foi ao funeral, mandando a filha, Anna, como representante da família.
Sigmund escreveu:
Não vou esconder o fato de que minha reação a este evento foi, devido a
circunstâncias especiais, curiosa. Seguramente, não há como determinar que efeitos esta
experiência pode produzir em camadas mais profundas, mas, na superfície, posso
detectar somente duas coisas: um aumento de minha liberdade pessoal, urna vez que
sempre me aterrorizou o pensamento de que ela pudesse vir a saber de minha morte; e,
em segundo lugar, a satisfação por ela ter por fim alcançado a libertação a que
conquistou o direito após uma vida tão longa. Sob outros aspectos, nenhum sofrimento,
como meu irmão dez anos mais novo está dolorosamente experimentando... Nenhuma
dor, nenhum sofrimento, o que provavelmente é explicado pelas circunstâncias, a idade
avançada e o fim da compaixão que sentíamos por sua impossibilidade de recuperação.
Sem este sentimento de libertação, de alívio, que creio que posso compreender, eu não
poderia morrer enquanto ela estivesse viva, e agora posso. De alguma forma, os valores
da vida mudaram notavelmente nas camadas mais profundas. (Jones, 1953-1957, 111, p.
152)
139
OS KENNEDYS NÃO CHORAM: TEMOS QUE SEGUIR EM FRENTE
Nenhum americano que estivesse vivo em 1963 pode esquecer a imagem de
John-John Kennedy fazendo continência para o caixão do pai naquele dia frio e
luminoso de novembro. O menino sem pai, aos 3 anos de idade, nascido no Dia de Ação
de Graças duas semanas após a eleição do pai para a presidência, nos lembrava a todos
da fragilidade de nossas vidas. Também temos imagens de outras mortes de Kennedys:
o Réquiem de Mozart tocando na catedral de St. Patrick por Robert Kennedy — todos
os seus dez filhos de luto, Ethel ainda grávida do último, a voz de Ted falhando no
discurso de despedida a mais um irmão. O próprio John Kennedy tinha sido o substituto
de seu irmão mais velho, Joe, após sua morte na Segunda Guerra Mundial. Um ano
depois da tocha da liderança ter sido passada para Ted, recordamos seus esforços
atrapalhados para encobrir seu papel na morte de Mary Jo Kopechne em
Chappaquidick. Na geração seguinte, sobreveio a terrível e inglória morte de David
Kennedy, cuja overdose de drogas parecia tanto ser um efeito das perdas anteriores.
Algumas famílias parecem marcadas pela perda — elas se tornam famílias quase
trágicas. A história multigeracional de perdas trágicas na família Kennedy remonta há
muito tempo, e continua no futuro, repetindo muitas e muitas vezes a dor da perda
prematura (Figura 6.3). As perdas se alastram nas famílias, muitas vezes transmitindo
ondas de choque de geração para geração. Estamos bastante familiarizados com as
perdas dos Kennedys em nossa época, assim como tendemos a conhecer as perdas de
nossa própria família no curso de nossas vidas. Geralmente, sabemos menos sobre as
perdas que vieram antes — e que contribuíram muito para a formação dos mitos e
atitudes familiares. De fato, a história de perdas trágicas dos Kennedy, começa muito
antes dos filhos e netos de Joe e Rose.
O pai de Joe Kennedy, Patrick Joseph (P. J.), era o único homem sobrevivente
de sua família. O irmão mais velho, John, tinha morrido com 1 ano de idade, e o pai,
Patrick, morreu quando P. J. tinha seis meses. Estas perdas devem ter gerado
sentimentos especiais na mãe de T. J. por seu único filho, e uma sensação ampliada da
fragilidade da vida — especialmente da vida masculina. Tendo crescido do modo mais
difícil — sem pai e servindo como substituto do irmão morto —, P. J. se tornou um
homem trabalhador mas cauteloso. Ele “casou bem”, com uma mulher inteligente, Mary
Hickey, de uma família de sucesso. Ele também era inteligente, mas sua insegurança
tornava difícil para ele dizer não a quem quer que fosse. Ele abriu um negócio de
bebidas e, como tantos irlandeses de sua época, entrou para a política. Ele sempre
tomou conta das famílias de seu distrito, completando oito mandatos na legislatura
estadual. Muitos se ressentiam de seu comprometimento em ajudar os outros como
chefe do distrito, pois isto interferia no sucesso de sua própria família. Ainda assim, ele
deve ter sentido a necessidade de fazer o bem para os outros porque se identificava com
eles, tendo sido ele mesmo criado como uma criança sem pai, desesperadamente
necessitada.
140
O primeiro filho de P. J. e Mary foi Joseph P. Kennedy, que novamente veio a
ser o único filho sobrevivente de seus pais. Sua já privilegiada posição de irmão mais
velho foi fortalecida quando seu irmão Francis morreu de difteria aos 2 anos de idade.
Uma neta disse mais tarde: “A morte do bebê foi tão inesperada e tão sem sentido que o
único modo (da mãe de Joe) de enfrentá-la foi dedicar ainda mais amor a Joe”. Embora
tivesse duas irmãs mais novas, Joe se tornou o centro das atenções de toda a família.
Talvez tenha sido este legado de excepcionalidade do homem sobrevivente,
intensificando a tendência cultural em relação aos filhos homens, que tenha levado Joe a
concentrar suas expectativas tão fortemente sobre seus próprios filhos.
Joe cresceu para imitar a mãe, que acreditava em colocar sua família em
primeiro lugar e via o apoio do marido aos outros como uma fraqueza. Ao final, P. J. foi
derrotado pela engrenagem política de Boston (muito provavelmente ele tenha sido
traído pelo próprio futuro sogro de seu filho, Honey Fitz). Embora ele tenha aceitado
sua derrota com nobre dignidade, em seu íntimo ele sofreu como uma criança que é
punida injustamente. A lição que seu filho Joe aprendeu com isto foi que a lealdade
política e a generosidade eram meros bens de troca. A decisão que ele tomou então foi
de não confiar em ninguém exceto em si mesmo. Assim, ele desenvolveu uma vontade
de ferro e uma abordagem calculista e manipuladora para lidar com os outros.
Tem-se a impressão de que Joe sentia uma forte pressão para fugir da
identificação embaraçosa com seu pai de coração mole, cuja bondade, que parece ter
nascido da identificação com outros que tinham sofrido perdas, foi retribuída com
exploração e rejeição. Uma pista para o teor do relacionamento de Joe com seu pai é
que, quando P. J. morreu, em 1928, Joe não foi ao funeral, mas ficou na Califórnia com
sua amante, Gloria Swanson. Por mais que P. J. almejasse uma relação próxima com o
filho, ele não teve êxito em obtê-la. Assim como P. J., sem pai, havia gravitado em
torno da mãe, a ligação especial de Joe era com Mary.
A família de Rose Fitzgerald Kennedy também sofreu perdas traumáticas
avassaladoras em momentos críticos de sua história. Seu pai, Joe Francis, chamado de
“Honey Fitz”, era o quarto de 12 filhos. As duas (micas filhas morreram ainda bebês,
bem como o irmão mais velho. Três outros filhos tiveram suas vidas totalmente
devastadas pelo alcoolismo. Outros dois, Michael e Edward, também tinham problemas
graves com a bebida. O nono irmão, Joseph, tinha danos cerebrais por causa da malária,
e era quase vegetativo. Portanto, das 12 crianças nascidas nesta família, somente três,
incluindo Honey Fitz, sobreviveram com boa saúde. Honey Fitz se tornou o filho
favorito. Após a morte de sua mãe, quando ele tinha 16 anos, seu pai desenvolveu um
desejo especial de que ele se tornasse médico, já que as doenças tinham causado perdas
tão dolorosas à família. Entretanto, após um ano na Faculdade de Medicina de Harvard,
o pai morreu, e John deslocou suas ambições para a política, que oferecia um retorno
imediato e a oportunidade de conseguir empregos para seus irmãos. Quando ele foi
eleito prefeito de Boston, muitos diziam que toda a prole dos Fitzgeralds era a
verdadeira governante. Ele considerava sua responsabilidade
141
prover para os seus irmãos, e assim o fez. Mais tarde, seus netos, obviamente, fariam o
mesmo.
John conheceu sua futura esposa, Josie Hannon, sua dolorosamente tímida prima
em segundo grau, apenas alguns meses antes da morte de sua mãe. Muitos dizem que a
atração e a ligação dele com ela se baseavam em suas perdas mútuas. Josie era a quinta
de nove filhos, somente quatro dos quais sobreviveram. Um irmão, de 6 anos, morreu
de febre enquanto sua mãe estava grávida de Josie, outro tinha morrido de inflamação
nos pulmões quatro anos antes. Dois outros irmãos morreram cedo, por alcoolismo. O
único filho sobrevivente teve a perna esmagada por um trem aos 13 anos. Mas a perda
mais trágica da família foi a da irmã mais nova, que morreu afogada com sua melhor
amiga, enquanto Josie devia estar cuidando delas. A perda devastadora que qualquer
família sentiria com a morte de uma criança foi agravada aqui por uma complexa rede
de culpa — de que a família, e Josie em particular, tinham contribuído para a morte, não
protegendo a criança adequadamente. A família nunca se recuperou. Aqueles que
conheceram as três irmãs sobreviventes disseram que a tristeza e o retraimento pairaram
sobre elas pelo resto de suas vidas Kears Goodwin, 1987).
E fácil entender o que atraiu Josie no confiante, vigoroso, aventureiro e
entusiasmado Honey Fitz, cujo nome* mesmo refletia sua capacidade de encantar com
as palavras. A longa corte de Honey Fitz a Josie foi, na verdade, um esforço para fazê-la
sair de dentro de si mesma pelo humor, magnetismo e sociabilidade dele. Como tantas
gerações seguintes de sua família, ele lidava com a perda mobilizando-se em atividades
frenéticas e tentando não olhar para trás. Talvez ele a tenha escolhido na esperança de
que, se ele conseguisse “revivê-la”, ele compensaria simbolicamente a perda da mãe e
das duas irmãs menores. Talvez ele a tenha escolhido porque viu expresso nela um
reflexo da tristeza que ele mesmo sentia, mas nunca ousaria revelar. As mulheres muitas
vezes parecem ser as portadoras explícitas da dor emocional das perdas dos homens.
Estes evitam a dor, enquanto as mulheres sofrem por todos. Também sabemos que
muitas pessoas são atraídas por parceiros que expressam por elas um lado de si mesmas
que elas rejeitam em um nível consciente. Quase nunca se podia notar na sociabilidade
jovial de Honey Fitz a dor que ele ocultava pelas perdas de sua mãe, das irmãs, de seus
sonhos de uma boa educação ou do fardo de seus irmãos disfuncionais. Talvez o efeito
destas perdas fosse visto mais claramente nas maquinações políticas egocêntricas em
interesse próprio e em sua disposição a sacrificar qualquer relacionamento por suas
necessidades, não importando as conseqüências de suas traições. (Seu genro, Joseph
Kennedy, tinha traços de personalidade muito parecidos.)
A frieza de Honey Fitz provavelmente tinha suas raízes na sua consciência
infantil de que não havia ninguém para quem se voltar. A depressão eterna
*N. de T. Honey, em inglês, significa mel, doçura, sendo também uma forma carinhosa
de se referir a urna pessoa, equivalente a querido ou meu bem. O verbo to honey
significa lisonjear, adular, mostrar-se persuasivo. (Dicionário Record Inglês Português)
142
de sua mulher, Josie, foi igualmente influenciada pelas perdas prematuras e repetidas
que sua triste família experimentou. Quando o desafio de conquistar Josie foi vencido, a
diferença entre suas naturezas se tornou inegavelmente aparente. Ou talvez a tristeza
mesma de Josie, que tanto o tinha atraído, agora se tornava tóxica, e ele fugia dela. Com
o passar dos anos, Honey Fitz se expandia para fora, enquanto Josie se voltava cada vez
mais para dentro de si. Foi sua primeira e adorada filha, Rosie, que realmente pareceu
substituir sua mãe e irmãs.
Ela cresceu como companheira do pai na estimulante arena política de sua vida
colorida — ela ia a toda parte com ele.
Ela levou uma vida encantada até a adolescência, quando tudo mudou
subitamente. A principal falha de caráter de seu pai, uma ambição manipuladora
autocentrada, reflexo de suas perdas precoces, fez com que ele a traísse.
Ele sacrificou os sonhos dela por seus objetivos políticos próprios, e talvez
também tenha havido uma compulsão para repetir sua experiência dos 16 anos, quando
ele teve que desistir de seus planos para a Medicina. Rosie tinha uma natureza ardente,
um espírito indomado. Estudante brilhante, seu sonho era ir para a Universidade de
Wellesley, na qual tinha sido aceita aos 16 anos; mas Honey Fitz estava em apuros.
Suas tramóias políticas levaram a acusações de fraude e a sua destituição do cargo de
prefeito de Boston. Ele fez um acordo com os lideres da igreja local que exigia que a
filha fosse para uma escola católica. Rose foi abruptamente mandada para um convento-
escola no exterior. Ela foi totalmente isolada da família, de sua excitante vida social e
colocada em um ambiente rígido que exigia silêncio e rechaçava toda manifestação de
espontaneidade. Típico da repressão das escolas paroquiais da época, o local tinha até
mesmo uma regra contra a formação de “amizades particulares” pelas garotas. A reação
de Rose foi aquela que ela iria manifestar repetidamente em sua longa vida: ela sufocou
seus sentimentos dc resistência, curvou-se ao desejo do pai e forçou-se a canalizar suas
energias pela aderência rígida à oração, que era a única via aberta para ela. Uma espécie
de desapego às relações humanas foi forjada nessa transição, que viria a caracterizar
toda a sua vida. O que ela perdeu foi a crença em uma relação especial com o pai, bem
como a sensação de poder para determinar a própria vida. Ela teve que se curvar diante
da vontade de um homem mais forte. A religião ajudou-a a engolir esse e muitos outros
remédios amargos que se seguiriam.
Estamos bem familiarizados com as perdas dos filhos de Rose e Joe Kennedy
por morte, mas sua primeira perda não foi deste tipo. Ela ocorreu quando Rosemary, sua
filha mais velha, foi submetida a uma lobotomia em 1941, aos 23 anos. Ela permaneceu
institucionalizada, longe da família e isolada deles (com a exceção de Eunice, o único
membro da família a visitá-la regularmente), nos últimos 47 anos. Rosemary parece ter
sido retardada, em si uma séria perda para qualquer família; uma criança assim
representa uma perda de sonhos, um constrangimento e uma dor que não se apaga.
Desejando mantê-la dentro da família, eles guardaram segredo sobre seus problemas por
muitos anos, e fizeram todos os esforços possíveis para apresentá-la como normal.
Com 20 e poucos anos, Rosemary havia desenvolvido severos problemas de
comportamento. A uma certa altura, Joe decidiu, enquanto Rose estava
144
viajando e sem consultá-la, que Rosemary devia ser lobotomizada. A operação, que foi
mantida em total sigilo, piorou suas condições consideravelmente. Aparentemente, Joe
então mandou-a para uma instituição no centro-oeste. Ele nunca contou à esposa — nem
nesta época, nem depois — sobre a lobotomia. Rose foi informada de que seria melhor
que ela não visitasse a filha por algum tempo. Segundo amigos e parentes, somente 20
anos depois, após o derrame de Joe em 1961, foi que Rose começou a juntar as peças da
história por si (Kearns Goodwin, 1987). Por que ela não insistiu em visitar esta filha a
quem tinha se dedicado por tantos anos? Como ela pôde nunca ter perguntado a
respeito? Como foi que os outros nunca perguntaram ou questionaram o
desaparecimento de um de seus membros? Será que Joe se culpava pelo que aconteceu?
Será que os outros culpavam a si mesmos ou mutuamente por a ignorarem por tantos
anos? Não sabemos. Sabemos que em suas memórias, escritas 33 anos depois da
operação, Rose ainda sustentava que participara da decisão da lobotomia, e não
mencionou que não havia visitado ou indagado a respeito de Rosemary durante 20 anos.
A família Kennedy nunca falava sobre o retardo de Rosemary entre si, e sua
primeira menção pública foi em 1960. Temos uma sugestão do impacto a longo prazo
da incapacidade da família de lidar abertamente com este “fantasma” em um incidente
descrito a respeito de David Kennedy, o filho que veio a morrer de uma overdose de
drogas. Um dia, em meio a seus problemas, ele se deparou com uma reportagem sobre
lobotomias em uma revista que incluía uma foto de sua tia Rosemary. Fie é citado como
tendo dito:
Ela eslava com um par de sapatos brancos novos, e eslava sorrindo. Ocorreu-me
a idéia de que, se meu avô estivesse vivo, a mesma coisa que aconteceu com ela poderia
ter acontecido comigo. Ela representava algo constrangedor; eu sou algo constrangedor.
Ela era urna pedra no sapato; eu sou uma pedra no sapato. Olhando para aquela
fotografia, comecei a odiar meu avô e todos eles por terem leito o que fizeram com ela e
pelo que eles estavam fazendo comigo. (Colher & Horowitz, 1984, p. 441)
A vergonha e a culpa que levaram ao sigilo e à mistificação que cercaram a
deficiência, a lobotomia e o desaparecimento de Rosemary dão a esta perda um poder
duradouro. Os outros membros da família ficam com a impressão de que “se ela pôde
desaparecer, cii poderia desaparecer”. E suas fantasias preenchem o resto da estória com
quaisquer sentidos que associem às partes dela que conhecem.
A ambigüidade da perda de Rosemary deve ter sido particularmente
perturbadora, porque não podia ser elaborada como uma morte. Ela continuava viva,
mas não física ou mentalmente presente. Rose disse, em suas memórias, que Rosemary
os reconhecia e ficava contente ao vê-los, mas que estava “perfeitamente feliz em seu
ambiente e ficaria confusa e perturbada se fosse para qualquer outro lugar”. (Kennedy,
1974, p. 308). Ainda assim, com certeza outros membros da família devem ter se
perguntado se isto era verdade, e questionado sua exclusão.
145
Infelizmente, Rosemary foi somente a primeira de muitos filhos perdidos pela
família Kennedy. Em cada caso, houve uma tendência similar ao sigilo em relação a
qualquer fato que não fosse condizente com uma imagem positiva, Joe Jr., o “Menino
de Ouro” programado pelo pai para ser presidente, foi abatido em uma missão aérea
desnecessariamente perigosa em junho de 1944.
Somente seu heroísmo foi mencionado, não o risco exagerado que correu ou o
fato de que tinha recebido um alerta de seu engenheiro eletrônico, naquele dia, de que
seu avião não tinha as mínimas condições para voar (Davis, 1984; McTaggart, 1983).
Os Kennedys também nunca mencionaram que ele estava vivendo com uma mulher
casada, Pat Wilson, na época de sua morte. Quando Wilson escreveu uma carta de
solidariedade para Rose, a mãe enlutada não respondeu.
E difícil evitar a sensação de que há uma repetida combinação de tragédia,
acidente e desafio ao destino na família Kennedy. Joe Kennedy Jr. Tinha levado a cabo
diversas missões de bombardeio de alta periculosidade, sobre as quais tinha sido
avisado que suas chances de sobrevivência eram de menos de 50%. Ele já tinha
cumprido seu tempo de serviço militar, mas estava esperando uma missão da qual
retornasse como herói, talvez porque seu irmão mais novo, John, tivesse recém-recebido
uma medalha por seu desempenho no Pacífico. (Na ocasião, John tinha inicialmente
sido dado como desaparecido em ação, e um funeral havia sido realizado pelos
tripulantes sobreviventes. Joe Sr. recebeu esta notícia, mas escondeu-a de sua mulher e
dos filhos por uma semana, depois da qual soube que John tinha, na verdade,
sobrevivido.)
Neste incidente e em outros que se seguiram, há numerosos exemplos de como
os Kennedys lidavam com a morte. Quando Joe Jr. morreu, seu pai anunciou o fato para
os filhos, pediu que eles fossem “particularmente bons com a sua mãe” e se retirou para
seu quarto, enquanto Rose ia para o seu. Nem naquela ocasião, nem em nenhuma das
outras perdas trágicas posteriores, eles foram capazes de dividir seu sofrimento um com
o outro. Rose disse que ela e o marido “choravam internamente, silenciosamente”.
Naquela época, Joe disse: “Temos que seguir em frente. Devemos tomar conta dos
vivos. Há muito trabalho a ser feito”. (Kennedy, 1974, p. 453). Ela se voltou para a
religião, repetindo o rosário muitas e muitas vezes, deixando para o marido os
preparativos do funeral e as correspondências a serem respondidas. Ela ficou
inicialmente absorvida em seu sofrimento, enquanto ele imediatamente se mobilizou
para a ação — a resposta usual dos homens Kennedy à perda, e em consonância com as
regras de gênero de nossa cultura.
A segunda filha, Kathleen, com quem a mãe tinha rompido por ter se casado
com um nobre inglês protestante em maio de 1944, perdeu o marido na guerra em
setembro daquele ano. Quando as notícias de sua morte chegaram, ela estava nos
Estados Unidos com a família por causa da morte do irmão ocorrida um pouco antes.
Ela estava fora, fazendo compras, e sua irmã Eunice foi encontrá-la. Eunice, com o
típico jeito dos Kennedys, elogiou suas compras e não disse nada até que ela tivesse
terminado, quando sugeriu que telefonassem para o pai antes de irem almoçar. Joe então
lhe deu a notícia da morte do marido. Naquela noite, a família foi solicita com Kathleen,
enquanto evitava
146
diligentemente qualquer menção à morte dc seu marido! Uma amiga que veio ficar com
ela naquela época ficou chocada com a necessidade frenética da família de tocar a vida
como se nada houvesse acontecido (McTaggart, 1983).
Kathleen certa vez disse a uma outra amiga que tinha sido ensinada que “os
Kennedys não choram”. Quando seu irmão Joe morreu, e o colega de quarto dele
telefonou para dar OS pêsames, ela explodiu em soluços. Mais tarde, ela escreveu a ele
pedindo desculpas e dizendo: “Sinto muito ter me descontrolado aquela noite, isto
nunca torna as coisas mais fáceis” (Kearns Goodwin, 1987, p. 690). Após a morte de
seu marido, ela deixou a casa dos pais e retornou à Inglaterra, onde se permitiu passar
por meses de luto explicito, ficando na casa de seus sogros em busca de conforto e
apoio.
Quatro anos mais tarde, Kathleen se apaixonou por outro protestante, desta vez
um nobre casado, Peter Fitzwilliam, que tinha a reputação de gostar da vida fácil, do
jogo e dos casos amorosos. Rose Kennedy disse que, se Kathleen se casasse, ela não só
a repudiaria como também faria com que Joe cortasse sua mesada, e jurou que o
abandonaria se ele se recusasse a fazê-lo. Kathleen decidiu que não poderia terminar o
relacionamento, a despeito das ameaças da mãe. Esperando apelar ao pai, ela combinou
encontrá-lo em uma viagem de fim dc semana com Fitzwilliam, na Riviera. Em um
cenário morbidamente familiar, Fitzwilliam insistiu que fossem em um avião pequeno,
embora a previsão do tempo fosse tão ruim que todos os vôos comerciais tivessem sido
cancelados e seu piloto solicitasse veementemente um adiamento. O avião caiu na
tempestade e Kathleen e Fitzwihiam morreram.
A família nunca conseguiu admitir a verdade do que tinha acontecido, nem em
público, nem entre si. Joe, que tinha ido identificar o corpo, disse que Kathleen estava
bonita e parecia dormir embora ela tivesse, na verdade, ficado horrivelmente
desfigurada pelo acidente. As circunstâncias de sua morte com Fitzwilliam foram
ocultadas, e ela foi enterrada como a viúva de seu primeiro marido. Seu pai foi o único
membro da família a ir ao funeral. Mesmo então ele não se envolveu nos preparativos
da cerimônia, feitos por sua ex-sogra, que até mesmo escreveu seu epitáfio: “Alegria ela
trouxe, Alegria ela encontrou”. Os Kennedys e os Fitzwilliams se uniram em um
complô de silêncio a respeito das circunstâncias da morte.
Os amigos ficaram estarrecidos com o cartão enviado por Rose Kennedy para
ser lido na missa, que trazia uma oração por aqueles que não tinham ido para o céu.
Seus irmãos John e Bobby visitaram a governanta de Kathleen, arrancaram dela todas as
suas lembranças e então disseram: “Não a mencionaremos novamente”. Eles parecem
ter mantido a palavra, embora Bobby tenha dado o nome dela a sua filha mais velha.
Vinte e quatro anos depois, Rose escreveu em suas memórias:
Em 1948 (Kathleen) havia tirado férias na Riviera e estava voando em um avião
particular com alguns amigos, indo para Paris encontrar seu pai. No caminho — urna
rota que atravessava os picos dos Alpes Franceses — o tempo ficou ruim, o
equipamento de navegação não era adequado e o avião se chocou contra o lado de urna
montanha, matando todos a bordo. Joe foi avisado e correu para a cena
147
do acidente, assistindo ao corpo de sua filha ser trazido da encosta. Perdemos nossa
amada Kathleen em 13 de maio de 1948. (Kennedy, 1974, p. 358)
Todas as referências ao noivo foram eliminadas, como se ele nunca tivesse
existido, juntamente com todas as referências ao fato de que Rose tinha renegado a
filha.
Desde então, os Kennedys sofreram muitas outras perdas e quase perdas. Por
três vezes John Kennedy foi dado como morto e recebeu os últimos sacramentos. Por
duas vezes Ted quase morreu, um ano depois da morte de Joe, quando fraturou a coluna
em um acidente de avião, e um ano após a morte de Robert, quando quase se afogou (o
que aconteceu com sua acompanhante Mary Jo Kopechne em Chappaquidick). Teria
sido apenas coincidência que seus acidentes quase fatais aconteceram tão próximos das
trágicas mortes de seus irmãos, ou seria isto iam exemplo de algo que foi documentado
repetidamente nas pesquisas sobre estresse: que estas experiências aumentam nossa
vulnerabilidade a doenças, acidentes e problemas emocionais. (Holmes & Rahe, 1967)
Na geração seguinte da família Kennedy, David Kennedy morreu de overdose de
drogas e Joe foi o responsável por um acidente de carro que feriu David e deixou a
namorada dele, Pam Kelley, permanentemente paralisada.
Há também um relato de que Rose Kennedy feriu uma jovem em um sério
acidente de automóvel (Saunders, 1982). Pelo menos seis dos netos dos Kennedys
tiveram problemas com drogas ou internações psiquiátricas (Robert Shriver, Chris
Lawford, Joe, Bobby, David e Kara Kennedy). O que leva uma família a ter um
comportamento tão arriscado e destrutivo? Muitas pessoas vêem o comportamento
imprudente de Kathleen e Joe Jr., a promiscuidade sexual de Joseph e John Kennedy e
as ligações politicamente perigosas de diversos Kennedys (Joe e John em particular)
como uma reação a seu medo da morte — viver no limite, “desafiando o destino” para
provar a si mesmos que estavam vivos.
A forma como Rose Kennedy lidava com a morte era muito diferente. Ela disse,
comentando sua reação à morte de seu filho John:
Eu tinha me treinado durante anos para não ficar muito visivelmente perturbada
com as más notícias, porque tinha urna forte impressão de que, se eu perdesse o
controle, todos na casa iriam fazer o mesmo. (Kennedy, 1974, p. 484)
Quando chegaram as notícias de que John Kennedy tinha sido assassinado, Rose
decidiu operar a partir de um princípio que ela e Joe tinham adotado anos antes: as más
notícias só devem ser dadas pela manhã, não no fim do dia, porque senão perturbariam
seu sono. Assim, ela organizou um “complô de solidariedade” para evitar que Joe, que
nesta época já tinha sofrido um derrame, soubesse da morte até o dia seguinte. Todas as
televisões foram desligadas, diferentes histórias foram contadas a respeito dos amigos e
familiares que começaram a aparecer e todos mantiveram conversas artificiais com ele
por toda a tarde e a noite. Ele foi informado na manhã seguinte.
148
Rose acreditava que a compostura de Jackie na época da morte de John Kennedy
era um exemplo para o mundo inteiro de como se comportar. Na semana seguinte, diz
Rose, a família “comemorou o Dia de Ação de Graças, e todos nós escondemos o
sofrimento que nos atormentava e nos esforçamos para fazer daquele um dia de paz,
otimismo e gratidão pelas bênçãos que ainda tínhamos”. (Kennedy, 1974, p. 485). Rose
cita o elogio de Jackie sobre o modo como a família Kennedy lida com a tragédia:
Você pode se sentar para jantar com eles, e tantas coisas tristes aconteceram a
cada um, e Deus talvez alguma coisa triste tenha acontecido naquele mesmo dia, e você
pode ver que cada um está consciente do sofrimento do outro. E então eles podem se
sentar à mesa em um estado de espírito bastante triste. Então cada um deles vai começar
a fazer este esforço consciente para ser alegre, ou engraçado, ou para elevar o espírito
dos outros, e você se dá conta de que aquilo é contagioso, de que todos estão fazendo o
mesmo. Todos eles têm um humor um pouco irrelevante, um pouco auto-irônico, um
certo senso de ridículo e, em momentos de tristeza, um humor desvairadamente travesso
e cheio de irreverência. Mas fazer um esforço real para ser leve quando todos estão
tristes. Minha tendência natural é de ser um tanto introvertida e solitária, e de me retrair
em mim mesma e remoer demais meus pensamentos. Mas eles trazem à tona o melhor.
Ninguém se senta com eles e chafurda na autocomiseração. (Kennedy, 1.974, p. 485)
Comentando a morte de seu terceiro filho, Robert, cinco anos após a de Jack,
Rose disse que a sombria realidade do segundo assassinato era tão incrível que parecia
além da ficção. Ela diz que os outros comentavam sobre sua compostura, sua bravura e
autocontrole no funeral, mas também que seus acenos para o público eram um tanto
“inadequados”. Rose respondeu:
Quanto a minha compostura eu tinha que demonstrá-la. Se eu tivesse me
descontrolado com a dor, eu teria apenas aumentado o sofrimento dos outros e,
possivelmente, poderia ter detonado uma reação em cadeia de lágrimas. Mas, na
verdade, não fui somente eu que dei o exemplo de fortaleza. Eles todos o deram uns aos
outros. (Kennedy, 1974, p. 517)
O sofrimento é uma questão muito pessoal. Não devemos ser precipitados ao julgar
como os outros fazem seus lutos — se eles deveriam ser mais ou menos expressivos.
Cada família deve encontrar seu próprio modo. Os Kennedys refletem militas
características irlandesas de reação à morte (ver capítulo 10; McGoldrick, 1982, 1990;
McGoldrick, Preto, Hines & Lee, 1988). Eles demonstraram muita força ao lidarem
com uma incrível série de tragédias, e também mostraram grandes vulnerabilidades,
particularmente no enfrentamento de perdas embaraçosas e não-heróicas. O que é
notável nesta família é sua capacidade de perseverar mesmo após as perdas mais
devastadoras.
Famílias como a dos Kennedys, que experimentaram tantas mortes prematuras e
traumáticas, podem desenvolver uma sensação de serem “amaldiçoadas”
149
e incapazes de superar a experiência, ou podem chegar a ver a si mesmas como
sobreviventes, que podem ser atingidos mas nunca derrotados. Após a morte de seu
marido, que se seguiu à morte de seu irmão favorito, Joe Jr., Kathleen Kennedy
escreveu para uma amiga:
De uma coisa você pode estar certa, a vida não guarda temores para alguém que
conheceu o amor, o casamento e a morte antes dos 25 anos. Sorte minha ser urna
Kennedy. Tenho uma forte impressão de que isto faz urna grande diferença no modo de
enfrentar as coisas. Vi como mamãe e papai se comportaram em relação à morte de Joe,
e sei que todos temos a capacidade de não nos deixarmos abater. (Kearns Goodwin, p.
697)
Kathleen obviamente se sentia fortalecida de alguma forma pelo que ela entendia
como a força de seus pais. E claro que isto pode ter sido, em parte, somente uma
aparência, para convencer os outros e a si mesma de que ela podia e devia “não se
deixar abater”. A bravata dos Kennedys deixou seu legado no comportamento perigoso
deles e em seu desafio à morte. No caso dela, os riscos que corria acabaram por custar-
lhe a vida. Ainda assim, com todas as suas dificuldades em lidar com o medo, os
Kennedys demonstraram uma surpreendente força de vida e coragem para superar
tragédias. E quase como se seu sentido da missão familiar os sustentasse, a despeito de
suas perdas individuais. A explicação de Rose de seu próprio modo de lidar com o
sofrimento resume bem a atitude dos Kennedys:
Minha reação ao sofrimento assume, em parte, a forma de uma atividade
nervosa. Tenho que me manter em movimento, caminhando, mexendo nas coisas
rezando para mim mesma enquanto me movimento e convencendo a mim mesma de
que não serei derrotada pela tragédia. Porque ainda existem os vivos por quem
trabalhar, enquanto fazemos o luto pelos mortos. (Kennedy, 1974, p.481)
CONCLUSÃO
A morte sempre deixa um legado, quer ele seja de fortalecimento ou de trauma,
que fecha um sistema e distorce os relacionamentos dos sobreviventes.
Certos fatores tornam o legado negativo da perda mais poderoso, como ilustram
os exemplos da Rainha Vitória, dos Brontés, dos Freuds e dos Kennedys. Quando a
morte ocorre fora de hora ou no contexto de relações familiares conflitadas, quando
existe uma acumulação de perdas, ou quando a morte é estigmatizada e cercada de
sigilo, o poder do legado é intensificado. Quando as famílias são incapazes de fazer o
luto, de compartilharem o reconhecimento da perda e reinvestirem em outros
relacionamentos e projetos de vida, sua recuperação fica prejudicada, e o legado
continua. Para fortalecer estas famílias, devemos ajudá-las a examinar os legados
negativos e a definirem ativamente seu futuro, desenvolvendo formas mais abertas de
responder à morte.
150
Capítulo 7

Os Roteiros Familiares e a Perda


JOHN BYNG-HALL

Um terapeuta de família pode ajudar as famílias a enfrentarem um luto de modo


que dele não resultem danos emocionais a longo prazo. Isto é importante em si, mas
levanta importantes questões. Se podemos influenciar o curso de um luto, poderemos
também no processo reescrever o roteiro familiar e, assim, fortalecer a família? Mais do
que isso, podemos influenciar o modo como a família vai conduzir seus lutos futuros?
Se a resposta for afirmativa, isto torna o luto um momento terapêutico particularmente
privilegiado. Ele carrega um potencial de saúde mental preventiva a longo prazo, com
implicações para as gerações futuras.
Embora os roteiros venham do passado e sejam encenados no presente, eles são,
acima de tudo, para o futuro. Eles nos ensinam, com a experiência, o próximo passo a
tomar, sendo que a interação subseqüente proporciona um modelo de como nos
comportarmos quando circunstâncias similares ocorrerem no futuro. A teoria dos
roteiros, embora inicialmente popularizada pelos analistas transacionais, foi mais
elaborada por outros profissionais, como cientistas cognitivos (Schank & Abelson,
1977), psicólogos do desenvolvimento, psicanalistas e terapeutas sexuais. Esta
teorização se concentrou em grande parte nos indivíduos, mas foi ampliada de modo a
incluir o sistema familiar (Byng-Hall, 1985, 1988). O conceito de roteiro familiar é
usado para explicar o mecanismo que permite às famílias repetirem cenas familiares
particulares quando são encontrados contextos similares. As cenas são codificadas em
roteiros, que podem determinar como a família deve interagir em contextos particulares,
incluindo eventos do dia-a-dia, como a hora das refeições; eventos transgeracionais,
como a saída dos filhos de casa, ou eventos particulares que podem acontecer a
qualquer momento, como uma morte na família. Os papéis e os padrões de interação da
família que são encontrados em todos os contextos estão codificados no “roteiro
familiar”.
Uma morte na família ensina os indivíduos não somente como fazer um luto,
mas também como morrer. Em uma família, a mãe idosa se tornou particularmente
rabugenta com a proximidade da morte.
153
A filha “que era uma santa”, que teve que suportar isto, mudou completamente sua
personalidade quando, mais tarde, ela mesma desenvolveu um câncer, tornando-se tão
difícil quanto sua mãe tinha sido.
Os membros da família herdam de experiências anteriores de luto suas regras a
respeito do que deve ser repetido e o que deve ser evitado. Os roteiros tendem ou a
repetir padrões do passado – roteiros replicativos – ou a prescrever comportamentos que
evitem experiências dolorosas passadas – roteiros corretivos. A filha “que era uma
santa” poderia ter seguido um roteiro corretivo quando enfrentou a iminência de sua
própria morte, sendo excessivamente conformada; efetivamente, ela adotou um roteiro
replicativo e seguiu o exemplo de sua mãe.
As regras para morrer e fazer um luto também estão codificadas na mitologia e
nas lendas familiares sobre as mortes na família. A família extensa muitas vezes
contribui com detalhes para os roteiros. Como as mortes, espera-se, não são ocorrências
freqüentes, os rituais e as tradições culturais também são importantes para orientar o
comportamento da família.
Em um nível mais imediato e mais fundamental, o modo como os membros da
família normalmente administram todas as suas separações e perdas determina o modo
como a dor de um luto é enfrentada. A teoria do apego (Bowlby, 1980) explora a
questão da perda. Os apegos seguros proporcionam relações carinhosas com as quais se
pode contar, e que estão disponíveis sempre que necessário, enquanto que os apegos
inseguros não são confiáveis, seja porque sua disponibilidade é imprevisível, o que
muitas vezes leva a um comportamento dependente, ou devido a repetidas rejeições, que
levam à evitação da intimidade. Os apegos seguros oferecem uma base segura para
explorar as implicações de uma situação, especialmente se ela for assustadora ou
angustiante, como o luto (Bowlby, 1988); os apegos inseguros não o fazem.
Normalmente, a revisão repetida dos eventos que cercam uma morte permite
uma exploração do que ela significa. Isto pode ser feito tanto na imaginação quanto na
discussão, preferivelmente com uma relação segura. Se a principal figura de apego
estiver morta, alguém deverá substituí-la. O terapeuta de família pode atuar como uma
figura de apego temporária, mas deve usar este papel para estabelecer um conjunto
seguro de apegos dentro de uma família, para que seus membros possam fazer seu
próprio luto (Byng-Hall, no prelo).
De início, as amplas implicações emocionais da morte, seja ela testemunhada ou
imaginada, podem parecer avassaladoras, e os membros da família muitas vezes
amortecem seu impacto alterando o roteiro de várias formas, incluindo:
(a) Uma desconexão temporária de parte ou de todo o afeto de aspectos das imagens
cognitivas: isto fica mais marcado em situações de choque e apatia, e pode levar uma
pessoa a se comportar e falar como se fosse meramente um espectador, e não um
membro da família.
(b) A negação da perda, quando a pessoa morta é tomada como ainda presente (por
exemplo, é reconhecida na rua), ou a morte é aceita mas a separação não, de modo que a
pessoa enlutada sente-se em comunicação telepática ou espiritual com ela.
154

O relacionamento, desta forma, continua apesar da morte.


(c) A escolha, por parte da família, de um substituto, que vai assumir o papel e a
identidade da pessoa morta. Esta permanece “viva”, e a perda é suavizada. Por exemplo,
ao retornar do leito de morte de meu pai, subitamente me dei conta de que eu estava
sentado na cadeira dele na hora da janta. O lugar havia sido determinado para mim, e eu
o havia ocupado.
(d) A identificação com apenas um dos papéis ao reviver as circunstâncias da morte na
imaginação. For exemplo, identificar-se com a enfermeira pode ajudar a anestesiar a dor
da empatia com outros papéis, como, por exemplo, o da pessoa que está morrendo.
Com o progresso típico do processo de luto, as implicações da morte são aceitas,
ainda que sejam dolorosas, e os membros da família podem agir com o total
conhecimento da verdadeira situação que os cerca. Como coloca Parkes (1972), seu
“universo de premissas” deixa de ser aquele no qual se pressupõe que a pessoa morta
vai continuar a ter certos papéis no desdobramento do roteiro de vida e passa a admitir
que aquelas situações nas quais a pessoa morta teria se envolvido não vão mais
acontecer, ou serão alteradas significativamente.
O mecanismo de amortecimento do impacto imediato da morte pode persistir e,
com isso, bloquear o processo de luto. A restrição do afeto e a negação podem se tornar
permanentes. A substituição da pessoa morta por outro membro da família pode ser útil
na manutenção dos papéis familiares, mas prejudicial se pressupõe que ele tem os
mesmos atributos da pessoa morta. Um filho concebido como substituto logo após uma
morte pode ser perseguido por estas expectativas. A identificação com um dos papéis
das circunstâncias da morte pode se tornar fixa, como uma tentativa de defesa contra
outras identificações.
Ao revisar o que aconteceu ou o que poderia ter acontecido, uma pessoa pode se
identificar com quatro papéis diferentes: a pessoa morta; os bons cuidadores, que
tentaram ajudar ou, na imaginação, até mesmo conseguiram evitar a morte; os
cuidadores fracassados, que são com freqüência considerados responsáveis pelas
mortes; ou os assassinos, que tiveram um papel ativo na promoção da morte.
Normalmente, todos os membros da família podem, transitoriamente, e com níveis
variáveis de consciência, imaginar a si mesmos ou aos outros nestes papéis. Esta
revivescência na fantasia é uma das formas de entrar no roteiro e revisá-lo. Identificar-
se com a vítima pode reduzir a culpa de ser responsável seja por causar a morte, seja por
ser incapaz de aceitar a realidade da separação. Ser a pessoa morta na imaginação, se
isto se torna permanente, pode levar a roteiros replicativos potencialmente perigosos ou
prejudiciais. As pessoas em processo de luto podem se colocar em situações perigosas
ou se tornarem “mortas” por dentro. Um roteiro corretivo pode envolver tornar-se
excessivamente ativo — “pronto para tudo”; outro pode significar evitar todos os
contextos similares àqueles nos quais a morte ocorreu, o que pode ser limitante e
restritivo.
155
Identificar-se com o suposto salvador pode propiciar que se desfaça o ato letal na
imaginação, um ato de negação que pode bloquear o luto. Quando, entretanto, a
realidade da morte finalmente tem que ser enfrentada, isto leva a uma culpa aguda por
não ter evitado a morte — uma identificação com o cuidador fracassado. Os
psicoterapeutas conhecem bem aquelas pessoas dilaceradas pela culpa do que fizeram
ou deixaram de fazer. Esta culpa pode agir como um incentivo para o roteiro corretivo
de tornar-se um cuidador compulsivo. Um roteiro replicativo seria tornar-se um
cuidador fracassado, tentando ajudar aqueles que não podem ser ajudados.
A identificação com a pessoa vista como responsável pela morte pode proteger
contra o terror de aceitar que esta não pode ser controlada. A identificação com um
agressor protege contra a imagem terrorífica de ser assassinado. Os roteiros replicativos
podem levar a colocar outras pessoas em perigo; os roteiros corretivos podem levar a
uma inibição séria da agressividade. Diversos roteiros podem, é claro, coexistir, de
modo que um indivíduo normalmente passivo pode ser subitamente impulsionado para a
violência por um contexto similar, em alguns aspectos, ao cenário da morte (por
exemplo, quando se sentir aprisionado).
Os papéis adotados são influenciados pelo roteiro da família para doenças que
existiam antes da morte, como a “enfermeira” da família, o “inválido”, ou o indivíduo
vigoroso que ridiculariza a doença. Isto pode afetar o padrão de identificação aceito e
atribuído aos outros. Por exemplo, se alguém já está identificado como uma pessoa que
não leva as doenças a sério, então ela e o resto da família podem facilmente vir a culpar
esta pessoa por não ter procurado ajuda desde cedo.

CASOS ILUSTRATIVOS

As implicações clínicas desta forma de pensar são ilustradas pela família B. Os


membros da família mostram como sua reação a uma morte traumática foi influenciada
por roteiros do passado, e como a terapia de família alterou seu roteiro de luto. Eles
responderam diferentemente à morte seguinte na família.
A família B. vivia em um moinho de vento reformado em uma pequena cidade
nos arredores de Londres, onde tinham uma floricultura. Jenny, de 14 anos, foi
encaminhada para mim tarde da noite por um padre. Ela tinha acabado de testemunhar o
enforcamento de seu namorado de 17 anos. O padre disse que aquilo parecia ter sido um
experimento que, tragicamente, tinha dado errado.
Na primeira sessão de família, Jenny parecia muito composta. Ela se sentou no
meio do sofá, enquanto sua mãe, Almena, e seu padrasto, Stanley, sentaram-se nas duas
cadeiras mais afastadas, um de cada lado. Não era possível para os três membros
daquela família ficarem mais longe uns dos outros naquela sala.
156

Jenny contou a seguinte história, em um tom monótono e apático — distante de


qualquer emoção — como um repórter fazendo um relato testemunhal de um evento.
“Eu estava no sótão, sabe — a sala de cima do moinho — com Fred. Meus pais estavam
fora. Estávamos falando sobre um monte de coisas, a vida e a morte, este tipo de coisas.
Fred perguntou se eu achava que doía quando alguém se enforcava. Eu disse que não, só
quebrava o pescoço, e aí não se sentia nada. Ele foi até uma corda que estava pendurada
no teto e fez um laço nela. Ele vivia me pregando peças, por isso eu disse que ele não
teria coragem de fazer aquilo. Ele subiu em uma caixa e passou a cabeça pelo laço. Eu
disse para ele parar com aquilo e descer, mas ele não me deu bola. De repente, ele
chutou a caixa para longe. Eu corri até ele e tentei levantá-lo de novo, mas ele era muito
pesado. Eu tentei desatar o nó, mas ele nem se mexeu. Eu fiquei gritando para ele subir
na caixa de novo e parar de ser bobo. O rosto dele ficou azul e a língua começou a saltar
para fora. Eu gritei por socorro, mas não tinha ninguém por lá, então eu corri para a rua
e comecei a parar as pessoas para nos ajudarem. Ninguém acreditou em mim; eles
acharam que eu era só uma menina idiota. Eu telefonei para a polícia. Eu estava em
pânico. Corri de volta para Fred. O rosto dele estava horrivelmente preto. Finalmente,
eu encontrei uma faca e cortei a corda. Eu só fiquei abraçada nele. Eu comecei a chorar.
Levou horas até a ambulância chegar e levá-lo para o hospital. A policia me levou para
a delegacia. Eu esperei três horas, enquanto eles procuravam pelos meus pais. Eu ficava
perguntando se o Fred estava 0K. Eles disseram que ele ia ficar bem. Eu me imaginava
levando flores para ele no hospital. Quando minha mãe chegou, ela me contou que ele
estava morto.”
Como terapeuta, eu precisava fazer duas coisas: uma era reconectar a emoção à
imagem; a outra era conectar Jenny a seus pais. O terapeuta é mais útil se possibilita à
família abraçar e confortar a pessoa que está sofrendo, para que o luto possa continuar,
como deve ser, em casa. Isto foi alcançado fazendo algumas perguntas sobre Fred, e
sobre quanto tempo durou a relação deles. Jenny finalmente explodiu em lágrimas
quando descreveu a primeira vez que se encontraram, em uma festa no ano anterior.
Pedi, então, que sua mãe se sentasse ao lado dela e a consolasse e, um pouco depois,
também pedi ao padrasto que fizesse o mesmo. Ao final da sessão, ela estava chorando,
sentada entre seus pais, que a abraçavam. A mudança entre a distância no início da
sessão e o abraço no final exemplificou o trabalho com esta família. A redação de um
novo roteiro tinha começado.

Envolvendo a Família

Um trabalho considerável tinha sido feito para reunir a família. Minha resposta
imediata ao telefonema do padre tinha sido de me oferecer para atender a família toda
na noite seguinte. Obviamente, era muito cedo; eles não estavam prontos
emocionalmente, nem organizados ainda para me ver. Não obstante, isto foi útil, pois
lhes comuniquei que estava prontamente disponível para ouvi-los. Então, ofereci outro
horário, na semana seguinte. Naquela ocasião somente o padrasto, Stanley, compareceu.
157

As outras duas ainda não estavam prontas. Esta situação foi muito frutífera.
Stanley me contou sobre a história da família. Jenny e a mãe tinham vivido sós
desde que Jenny tinha 2 anos, quando seu pai as abandonou. Stanley tinha se juntado à
família há cinco anos, mas nunca havia podido ser um pai para Jenny. Almena, a mãe
dela, tinha impedido que ele tivesse um papel disciplinador. Com a chegada de Stanley
na família, Jenny rompeu sua relação muito próxima com a mãe, e a substituiu por uma
relação íntima com uma amiga da mesma idade, Samantha, na casa de quem passava
quase todo o tempo. Na verdade, desde o enforcamento, Jenny tinha se mudado de vez
para a casa da amiga.
Stanley e Almena tinham dois filhos juntos, de 3 e meio e de 2 anos. Stanley
conseguia ser um pai de verdade para eles. Ele se sentia incomodado, entretanto, com
sua quase inexistente relação com Jenny. Uma das vantagens do trabalho de luto é que a
intensidade e a urgência das emoções que são geradas podem ser usadas para aproximar
as pessoas e alterar a estrutura familiar. Dei a Stanley a tarefa de levar Jenny de volta
para casa, o que ele fez com considerável autoridade. Ele foi até a casa de Samantha e
exigiu que ela retornasse. Isto não apenas inseriu Jenny de volta na família, mas
começou a estabelecer uma relação entre padrasto e enteada na qual Stanley tinha
alguma autoridade.
No início do segundo encontro com a família, Jenny sentou-se no sofá
novamente, mas desta vez seus pais se sentaram nas duas cadeiras mais próximas, em
vez de nas mais distantes. Jenny me contou que andava desmaiando, o que ela chamava
de “apagar”. Explorei quando estes ataques de desmaio ocorriam, e descobri que eles
aconteciam justamente quando ela relembrava a queda de Fred da caixa e seu
estrangulamento. Sugeri que ela tinha se colocado no lugar de Fred e imaginado como
tinha sido para ele, e desmaiara ao visualizá-lo morrendo. Ela me disse que também se
sentia tonta quando imaginava o que deveria ter feito para evitar o enforcamento.
Juntando estas duas coisas, eu disse: “Talvez você se sinta tão culpada pelo que
aconteceu que você pense que deveria ter sido você, e não Fred, a morrer, então, você
coloca sua própria cabeça no laço quando pensa sobre isso, e apaga”. É importante, ao
revisar a cena da morte, falar abertamente sobre os detalhes mais horríveis. De outro
modo, eles permanecem intocados no trabalho de questionamento e podem reaparecer,
com detalhes bastante específicos, em uma reencenação posterior.
Durante este período, eu estava ciente de que estava fazendo um pouco de
trabalho individual com Jenny, enquanto seus pais observavam. Este trabalho era
importante porque uma identificação com um ato suicida pode ser muito perigosa.
Contudo, isto criava dois problemas. Em primeiro lugar, isto desautorizava os pais, e,
em segundo lugar, a angústia da situação poderia ir além do limiar emocional deles, de
modo que eles não seriam capazes de apoiar Jenny em uma exploração mais
aprofundada desta questão. Houve alguma evidência do primeiro problema quando a
mãe foi escutada dizendo, ressentida, que Jenny estava contando a mim mais do que
contara a ela em toda sua vida.
Perguntei, então, o que os pais estavam imaginando durante esta discussão.
Reconheci que, embora Jenny tivesse sido exposta à pior experiência, os pais também
precisavam de ajuda para enfrentar o que tinha acontecido. Isto os ajudou a se sentirem
suficientemente amparados para que não tivessem que sabotar quaisquer outras
revelações de imagens terríveis.
Pouco tempo depois disto, a mãe me contou que Jenny tinha falado em suicídio
logo após o funeral. Eu precisava avaliar que risco de suicídio ela estava correndo
agora. Ela admitiu sentir que preferia estar com Fred do que neste inferno na Terra. Ela
ponderou um pouco e disse que nunca desejaria que sua família, citando cada um de
seus membros — incluindo Stanley —, sofresse do modo como os pais de Fred tinham
sofrido. Senti-me aliviado, pois o apego de Jenny a sua família parecia ser forte o
suficiente para segurá-la. Eu sabia que podia evocar uma preocupação e um carinho
suficientes dentro da família tocando sua dor.
Perguntei se ela tinha conseguido chorar novamente. Somente sozinha, à noite,
ela disse. Perguntei em qual ombro ela gostaria de poder chorar. Fez-se um silêncio
desconfortável. A mãe quebrou-o dizendo que seria no da mãe de Samantha, com quem
ela estivera vivendo. Ela disse isso de uma forma que me comunicou que ela estava
tentando antecipar a resposta de Jenny, pois ouvir isto da filha teria sido doloroso
demais para suportar. Durante esta conversa, notei que tanto Jenny como a mãe tinham
começado a apontar os dedos dos pés uma para a outra. Percebi que elas queriam muito
se aproximar e que, se eu pudesse ajudar Jenny a chorar agora, isto poderia ajudar no
processo. Perguntei sobre suas lembranças de Fred, o que, como na primeira sessão,
ajudou-a a chorar. Sua mãe veio se sentar ao lado dela e colocou o braço em volta de
seu ombro. Jenny ficou quieta e pensativa. Perguntei onde ela tinha ido em sua
imaginação, e ela disse que estava pensando sobre o que eu dissera a respeito de
“apagar”. Perguntei se fazia sentido. Ela disse que sim. Este é um bom exemplo de
como a exploração de idéias é facilitada pelo suporte típico de um apego seguro. Jenny
não tinha conseguido pensar plenamente sobre o que eu tinha dito antes disso.
Percebi que Stanley estava sentado desconfortavelmente ao lado delas, e se
sentindo excluído. Claramente, havia o perigo de recriar um laço exagerado entre mãe e
filha e deixar Stanley de fora. Pedi a ele que chegasse sua cadeira para mais perto de
Jenny para que também pudesse consolá-la. Ele se deslocou e pôs a mão no ombro dela.
Agora, como na primeira sessão, cada um dos pais estava ativamente consolando Jenny,
desta vez, entretanto, com menos intervenção ativa de minha parte. Para que um roteiro
de luto iniciado pelo terapeuta se consolide, ele tem que ser assumido pela família.
Almena disse: “Todos sabem o que é se preocupar com os sentimentos da
família quando se está pensando em suicídio”. Eu disse: “Parece que você sabe como
é”. Ela contou uma história sobre como, ainda adolescente, no seu aniversário de 14
anos (a idade de Jenny) seu namorado tinha rompido com ela, e ela tinha pegado um dos
cintos da mãe, feito um laço pelo qual passou sua cabeça, jogado o cinto por sobre uma
viga e puxado até apagar.
159

Quando recobrou os sentidos, ela tinha, é claro, largado o cinto. Ela descreveu a
situação de uma forma fria, sem emoção, que lembrava o modo como Jenny tinha
contado sua história da primeira vez. Esta disse, com um tom de reprovação, que sua
mãe nunca tinha lhe contado aquela história. Almena disse: “Sim, eu contei, eu lhe
contei muitas vezes. Tenho certeza que contei”.
A história lançou uma nova luz sobre o que podia ter acontecido na interação
que precedeu o enforcamento. Jenny podia ter sido mais ativa na criação de uma cena na
qual parte da experiência de sua mãe foi reencenada de modo similar na mesma idade.
Soubemos mais tarde que Almena tinha usado Jenny como companhia depois que o
marido as deixara. Ela havia ficado muito deprimida. Ela podia muito bem ter falado
sobre suicídio como uma resposta ao abandono do marido. Também é muito provável
que ela tenha contado esta história de enforcamento para Jenny quando ela era muito
pequena. As crianças pequenas podem reter os detalhes concretos de uma história e
esquecer a história em si. As histórias e as lendas familiares proporcionam os moldes a
partir dos quais os roteiros das ações futuras podem se formar (Byng-Hall, 1988).
Revelou que o pai de Freud também tinha ameaçado e tentado se suicidar muitas
vezes nos últimos anos. Ele tinha aprendido um roteiro de suicídio. Isto ilustra a idéia de
que ambos os parceiros da reencenação de um roteiro devem ter o potencial para
assumir os papéis envolvidos. A forma do suicídio final, entretanto, pode ter sido
determinada por Jenny — via sua mãe.
Jenny então me contou que tinha acabado de ter uma briga assustadora e confusa
com sua amiga, Samantha. Ela tinha ido visitá-la uma tarde, e Samantha queria que ela
ficasse para dormir, mas Jenny insistiu em ir para casa. Samantha bloqueou seu
caminho e Jenny a atacou. O pai de Samantha, que estava do lado de fora do quarto,
correu para apartar a briga. Notei que, enquanto contava esta história, Jenny colocara a
mão em volta da garganta. Perguntei como tinha sido a briga e ela disse que tinha
agarrado a garganta de Samantha. Depois que as duas se separaram, Jenny ficou muito
preocupada com a amiga e, Junto com o pai dela, a tinham levado até a janela para que
respirasse um pouco de ar fresco. Estava claro que Samantha não havia realmente
corrido perigo — em primeiro lugar, porque Jenny sabia que o pai dela estava do lado
de fora, pronto para vir salvá-la e, em segundo, porque ela tinha recuperado totalmente
o fôlego antes de ser levada até a janela. Não obstante, foi um ataque potencialmente
perigoso, que tinha deixado Jenny assustada.
Perguntei a Jenny por que ela tinha segurado a garganta da amiga. Ela pensou
um pouco e disse que era porque Fred tinha sido estrangulado. Eu disse que achava que
ela tinha que encontrar um meio de confiar nos adultos novamente. Com Fred, ela não
tinha conseguido que os adultos ajudassem alguém que estava morrendo sufocado. Esta
impossibilidade de conseguir ajuda ou de acreditarem nela tinha destroçado sua
confiança no mundo.
Sempre que uma crise ocorria entre sessões, eu tentava verificar se algo havia
sido reencenado. Eu parto do princípio que os clientes e suas famílias tentam reencenar
um roteiro para ver se conseguem controlá-lo, criando um
160
final novo, menos aterrorizante, para o drama temido. Freqüentemente é possível, como
neste ataque, observar como isso é feito.
Acrescentei que, nesta briga, Jenny também tinha conseguido sentir raiva uma
coisa que sempre acontece quando alguém morre e, uma vez que é difícil ficar bravo
com a pessoa que morreu, isto às vezes vem à tona como raiva de outra pessoa ou de si
mesmo. Fia disse que tinha raiva de Fred por ele tê-la deixado daquele jeito. Este
aspecto do trabalho de luto é crucial. E importante que toda a família se conscientize
deste problema e ajude a reconectar a raiva a sua fonte original. Isto também explicitou
a identificação de Jenny com a parte agressiva deste auto-assassinato.
Ao fim da segunda sessão com a família, rotulei o evento como suicídio, não
mais o aceitando como uma brincadeira infeliz que tinha dado errado. Se eu tivesse sido
conivente com isto, as verdadeiras implicações de atos autodestrutivos potencialmente
perigosos no futuro poderiam ter sido negadas.
Talvez a parte mais importante do trabalho nestas duas sessões tenha sido o
desenvolvimento de um novo roteiro de luto, no qual, em vez de fugir uns dos outros,
eles se aproximaram e se apoiaram mutuamente. Isto representou um deslocamento de
um roteiro de apego familiar evitativo em direção a um mais seguro.
Reduzindo a Influência dos Antigos Roteiros de Luto
Outra abordagem à recriação dos roteiros familiares é explorar a história da
família, focalizando o modo como o luto foi conduzido no passado e o comparando com
o que está sendo feito agora.
Na terceira sessão, desenhei uma árvore genealógica (genograma). Stanley não
tinha experimentado nenhuma morte em sua família imediata, então passei para
Almena. Ela havia saído de casa aos 17 anos, para se afastar da mãe, com a qual brigava
e que tornava a vida do pai um inferno, “mas ir embora foi como deixar meu pai para os
lobos”. Seu pai morreu de enfarte quando ela tinha 19 anos. Ela foi muito ligada a ele,
afirmando que mantinha contato telepático com ele desde que saíra de casa. Ela tinha
tido premonições da morte dele. Quando ele morreu, ela ficou completamente destruída.
Ela não podia acreditar que isto tinha realmente acontecido, não conseguia chorar.
ALMENA Eu sentia que, se tivesse estado lá de alguma forma, eu poderia tê-lo salvo ou
se eu o tivesse encorajado a morar comigo mas não o fiz.
TERAPEUTA E interessante, Jenny, que sua mãe também tenha enfrentado este
problema. Ela também sentiu que poderia ter salvo a vida de alguém se tivesse feito
algo diferente.
Almena descreveu como estas perguntas tinham começado a girar na sua cabeça
até que, subitamente, ela não conseguiu mais pensar. A linguagem tinha deixado dc ser
compreensível para ela.
161
ALMENA Eu não entendia mais o que diziam para mim — eu precisava ficar
totalmente fora de contato com todos.
Ela contou que se distanciou das pessoas, e deu a volta ao mundo, morando em
20 países diferentes. Ela descreveu sua situação como um colapso, mas nunca procurou
um psiquiatra porque “eles” a teriam internado.
TERAPEUTA Então você teve um colapso turístico. (risos)
ALMENA Eu nunca me senti em casa em lugar nenhum.
TERAPEUTA (para Stanley) Você está achando difícil mantê-la em casa?
Todos concordaram que ela agora tinha canalizado sua sede de viagens para os
feriados, e ela disse que agora se sentia em casa. Voltando ao tópico do colapso:
ALMENA Eu estava simplesmente completamente insensível, insensível demais até
para ter medo. E, contudo, nunca me senti melhor.
TERAPEUTA E, naquela época, se o seu pai estivesse vivo, você acha que conseguiria
ter falado com ele — ou você continuava em contato telepático com ele?
ALMENA Não, era muito caótico.
O “colapso” durou 10 anos, até que ela se juntou a um grupo de meditação “e as
partes de mim que não estavam completamente destruídas voltaram”.
Ela começou a “entrar em contato” com o pai novamente. Eu precisava explorar
a natureza deste fenômeno, tendo em mente como Jenny poderia usar o mesmo
mecanismo para evitar o sofrimento, especialmente porque ela tinha dito, à certa altura,
que Fred ainda estava presente.
TERAPEUTA Conte-me como você entra em contato com seu pai. O que acontece?
ALMENA Eu estava passando por algo difícil de alguma forma. De repente, algo
acontecia — e eu recebia uma pergunta inteligente como: “O que está realmente errado?
O que você quer fazer?”, que me fazia pensar muito mais racionalmente. E então
eu tinha esta conversa em sonhos, na qual eu conseguia resolver um pouco melhor as
coisas.
TERAPEUTA Então, era como se o seu pai...
ALMENA (interrompe) Na minha cabeça. Eu não tenho que falar em voz alta,
JENNY Conversas com o seu pai na sua cabeça ou conversas só com você?
ALMENA Boa pergunta. Eu ouço a voz dele, ou ouço a conversa (olhando para o teto).
JENNY Então é entre você e ele. Não é só você e ele só discutindo com você mesma na
sua cabeça.
ALMENA Com certeza parece ser entre nós.
162
TERAPEUTA O que você acha da pergunta de Jenny? São as suas lembranças dele
falando com ele? Ou é a sua imaginação?
ALMENA Quanto você pode recriar uma pessoa na sua cabeça? Eu não faço idéia.
TERAPEUTA Para você, é uma experiência importante ter a lembrança dele ou a
imagem dele na sua cabeça, ajudando-a resolver as coisas por si mesma.
Descobri que Almena ainda tinha estas experiências ocasionalmente. Foi
importante, entretanto, que Jenny estabelecesse, em sua própria mente, qual era a
natureza da telepatia e por que ela ocorria. Almena aceitou que isto tinha possibilitado a
ela sentir que não tinha perdido totalmente o pai. Ela continuou a falar sobre sua culpa
de não tê-lo salvo, mas concluiu que não havia nada que ela pudesse ter feito.
TERAPEUTA Então você finalmente aceitou o fato de que não matou seu pai. Jenny,
talvez sua mãe possa ajudá-la com a culpa que você sente. Ela pode ajudá-la a não ficar
de luto por 10 anos.
Agora era importante renomear o “colapso” de Almena.
TERAPEUTA Posso colocar aqui (escrevendo na árvore genealógica de maneira
formal) que você não conseguia sair do luto? Você aceitaria isto como diagnóstico que
você não conseguia completar o luto?
ALMENA Bem, eu não sei. Mas ele ficou meio prolongado mesmo.
Após mais algumas discussões, ela aceitou esta visão. Ela parecia aliviada. Esta
foi a primeira vez que ela tinha falado com um profissional do campo da saúde mental
sobre estas experiências assustadoras. Foi extremamente importante que a família fosse
testemunha desta renomeação. Foi então possível definir o que era necessário para o
luto normal e, com isso, escrever um novo roteiro familiar para ele. For exemplo, algum
tempo da terapia foi dedicado a discutir como o contato telepático com Fred seria um
meio para Jenny evitar encarar a realidade da morte dele. A implicação era de que ela
devia evitar este mecanismo para fazer um luto normal. Comentei como o início do luto
de Jenny tinha sido parecido com o de sua mãe; ambas tinham saído de casa e evitado o
contato com os pais. O objetivo da terapia foi então definido como encontrar um modo
de reverter esta tendência a se distanciar nas crises.
Muito da terapia remanescente, que durou nove meses e incluiu 11 sessões, teve
por objetivo a consolidação das mudanças estruturais iniciadas quando Stanley levou
Jenny de volta para a família. Foi feito algum trabalho com os filhos mais novos, Annie
e Chester. Seus pais estavam tendo dificuldades em controlá-los. Ajudar os pais a
recuperarem o controle liberou-os para passarem mais tempo com Jenny. Por algum
tempo, ela visitou uma amiga doente no hospital, levando-lhe flores todos os dias —
uma identificação com a boa cuidadora. Ela foi ajudada a ver que estes cuidados
excessivos representavam
163
seu desejo de fazer reparações pela morte de Fred. Evocamos sua imagem de levar
flores para Fred no hospital, pouco antes de saber que ele estava morto. O luto se tornou
uma parte menos proeminente do trabalho. Jenny ficou mais tranqüila e começou a sair
com outros rapazes. Neste ponto, dei alta para a família.
Evidências de um Novo Roteiro de Luto
Dezoito meses após a alta, Stanley me ligou para marcar um horário. Almena
tinha morrido na semana anterior, de câncer nos ovários. O luto parecia estar indo bem,
mas ele queria me consultar para ter certeza de que estavam fazendo tudo certo.
Stanley e Jenny compareceram à primeira sessão. Ambos choravam e estavam
em contato total com seus sentimentos. Repassei com eles todos os detalhes, e fiz um
pouco de trabalho de luto. Duas semanas antes da morte, Stanley e Almena se casaram
em uma cerimônia tocante no hospital. Todos os filhos estavam presentes. Eles acharam
que aquela seria uma confirmação adequada de seu relacionamento, o qual eles sempre
quiseram formalizar.
O relato deles da cena da morte foi particularmente pungente. Almena tinha
morrido no hospital no meio da noite. Toda a família estava a seu lado, incluindo sua
irmã, que tinha vindo da Austrália, mas sem as crianças peque nas. Todos tinham se
abraçado muito. Quando Almena morreu, eles não avisaram imediatamente as
enfermeiras, porque sabiam que isto interromperia seu momento a sós, com a chegada
dos médicos e tudo mais. Ao contrário, eles ficaram abraçados por mais ou menos uma
hora, juntos com o corpo, até que estivessem prontos para dizer adeus. Todos estavam
profundamente emocionados e tristes, mas se sentiam muito próximos uns dos outros. A
realidade da morte foi aceita. Lembrei da família, na primeira vez que veio a meti
consultório, abraçada no sofá no fim da sessão.
Quando discuti o funeral, Jenny disse que tinha sentido muito frio quando viu a
mãe sendo enterrada. Lembrei-a de como ela se sentiu desfalecer após a morte de Fred.
Ela lembrou que pensou que devia estar frio no caixão da mãe. Ela pôde ver que estava
se colocando no lugar da mãe. Investiguei se Jenny estava usando telepatia para evitar
se separar da mãe, e ela disse que não.
Desta vez, o processo de luto correu muito mais normalmente. Atendi toda a
família, incluindo os filhos menores, agora com 5 e meio e 4 anos, e os pais de Stanley,
que haviam assumido a maior parte das tarefas de Almena quando esta ficou doente.
Ajudei a montar uma versão do que tinha acontecido que fizesse sentido para as
crianças e fosse aceitável e verossímil no que dizia respeito à família. Sempre tento
fazer isso com crianças pequenas, porque estabelece um relato comum que pode ser
mais elaborado à medida que elas vão crescendo e querem saber mais, sem contradizer a
história simples com a qual começaram. Isto, juntamente com suas experiências de que
a morte aproximou a família, vai, espero, escrever um roteiro saudável de luto para elas.
164
Devemos agora retornar à pergunta original: podemos reescrever o roteiro
familiar e, se a resposta for afirmativa, que partes dele? Existem algumas evidências de
que o roteiro de luto deslocou-se da impossibilidade de Almena de fazer o luto do pai
para a possibilidade da família de fazer o luto dela. A mudança principal foi que os
membros da família se aproximaram para se ajudarem mutuamente a enfrentar a
realidade do que tinha acontecido e encararem a dor. E quanto aos aspectos do roteiro
que vão além do luto? Minha impressão foi de que isto se estendeu para o
comportamento de apego da família, que passou a ser capaz de se aproximar.
Todavia, os terapeutas não devem ser onipotentes. Eu não tinha trabalhado o
modo como os indivíduos administravam o fim de seus relacionamentos. Um ano
depois, soube que Jenny, agora com 17 anos, havia ficado deprimida após o
rompimento de um namoro, e tinha procurado psicoterapia. Comparada à fuga de sua
mãe dos terapeutas, isto pode ser visto como um progresso.
165
Capítulo 8
Ajudando Famílias com
Perdas Antecipadas
JOHN S. ROLLAND
A antecipação da perda devido a uma doença física pode ser tão perturbadora e
dolorosa para as famílias quanto a morte efetiva de um de seus membros. Relativamente
pouca atenção tem sido dedicada ao processo pelo qual as famílias antecipam perdas
futuras e como sua experiência com a ameaça prolongada da perda evolui com o
desenvolvimento da doença, dos indivíduos e da família. A maior parte da literatura
sobre a perda tem focalizado o luto na fase terminal das doenças, quando a perda é
iminente e certa, negligenciando os enormes desafios enfrentados pelas famílias que
convivem com a incerteza em face da tragédia, ao mesmo tempo em que precisam
manter a esperança. Uma miríade de sentimentos e transações associadas à perda
antecipada complicam todas as dimensões da vida familiar ao longo do tempo. Este
capítulo vai oferecer um referencial clínico para a abordagem do entrelaçamento dos
esforços familiares para manter a esperança, lidar com graus variáveis de incerteza e se
preparar para a perda no curso de uma doença.
Lindemann (1944) descreveu, pela primeira vez, o fenômeno do “luto
antecipado” em seu estudo da adaptação dos cônjuges à separação durante a guerra,
observando os sinais essenciais de luto “verdadeiro” experimentados como uma
preparação para a perda efetiva. As pesquisas subseqüentes se concentraram nos efeitos
do luto antecipado sobre pais de crianças em fase terminal e sobreviventes-chave (por
exemplo, cônjuges) de adultos em fase terminal (Clayton et al., 1973; Friedman et al.,
1963; Futterman et al., 1972; Gerber et al., 1975; Glick et ai., 1974; Natterson &
Knudson, 1960; Parkes, 1976; Parkes & Weiss, 1983; Rando, 1983; Schoenberg et al.,
1974). As pesquisas produziram achados inconsistentes e muitas vezes contraditórios
sobre o valor do tempo para antecipar a perda e os tipos de estratégias de enfrentamento
mais úteis para a adaptação a longo prazo (Fulton & Gottesman, 1980).
Na literatura sobre os sistemas familiares, a escassa atenção à perda tem se
concentrado no impacto de perdas anteriores não resolvidas sobre a vida posterior da
família (Bowen, capítulo 4; Coleman, capítulo 14; Coleman & Stanton, 1978; Herz,
1989; Paul & Grosser, capítulo 5; Walsh & McGoldrick, 1988).
166
A perda futura toca mais de perto o fato existencial de nossa própria mortalidade
como um evento antecipado, que podemos ter que negar. (Becker, 1973)
Este capítulo oferece uma definição sistêmica interacional da perda antecipada
no curso de uma doença, incluindo a influência mútua da dinâmica familiar na (1)
ameaça de perda do membro doente; (2) antecipação do membro doente da perda de sua
família; (3) perspectiva de incapacitação e/ou morte do membro doente. A ameaça da
perda deve abranger a “pessoa”, as relações da família com o membro doente e a
unidade familiar intacta.
A experiência de antecipação da perda envolve uma gama de respostas
emocionais antecipadas, que podem incluir ansiedade de separação, solidão existencial,
tristeza, desapontamento, raiva, ressentimento, culpa, exaustão e desespero. A expressão
emocional muitas vezes flutua entre estes sentimentos mais difíceis e outros, como uma
percepção mais aguda de estar vivo e da preciosidade da vida, intimidade, apreciação
dos eventos “rotineiros” e esperança. Pode haver uma ambivalência intensa em relação
ao membro morto, desejos hesitantes de proximidade e distância e fantasias de fuga de
uma situação insuportável. Especialmente no caso de doenças crônicas que envolvem a
ameaça de perdas a longo prazo, as famílias muitas vezes se tornam superprotetoras e
vigilantes. Elas podem ensaiar repetidamente o processo da perda e cenários
imaginários de sofrimento e provação. Estas emoções complexas podem influir
poderosamente na dinâmica da família, à medida que esta tenta se adaptar à perda
antecipada.
Um modelo de orientação sistêmica, que vê a experiência da perda antecipada
dentro de um referencial evolutivo, esclarece como o sentido da perda possível evolui
ao longo do tempo com a mudança das exigências do ciclo de vida (Rolland, 1987a,
1987b, 1988a, 1989). Também a proeminência da perda antecipada varia segundo as
experiências transgeracionais dos membros da família com perdas reais e ameaçadas. A
vivência da perda ameaçada em uma família varia com o tipo de doença, suas
exigências psicossociais ao longo do tempo e o grau de incerteza do prognóstico. Como
a qualidade e o grau da perda antecipada variam com as fases evolutivas da doença
(Rolland, 1984), é essencial diferenciar entre a perspectiva da perda inevitável no
estágio terminal de uma doença e a consciência da possibilidade da perda em um
momento mais anterior. Também é crucial avaliar a ansiedade dos membros da família a
respeito da incapacitação e do sofrimento como distintos da morte, uma vez que os
pacientes e suas famílias freqüentemente expressam seus maiores temores em relação à
impotência frente a um sofrimento incontrolável. Diferentemente das famílias em
sofrimento agudo, estas são confrontadas muito antes com tarefas psicossociais
aparentemente incompatíveis. Nas tentam sustentar a inclusão vital de uma pessoa em
vias de se tornar incapacitada ou morrer, ao mesmo tempo em que se esforçam para
manter a integração familiar redistribuindo as funções do membro doente. Estas
distinções críticas são facilmente negligenciadas, sobretudo no momento do
diagnóstico.
167
Por último, os sistemas de crenças modelam poderosamente o modo comoas
famílias vêem e respondem às situações de ameaça à vida. Os sentidos atribuídos à
incapacitação e à morte, bem como a sensação de competência para influir no
desenrolar dos eventos, vão afetar o modo como as pessoas agem em face de uma
ameaça de perda. Questões não resolvidas de culpa e vergonha podem afetar fortemente
sua visão da causa de uma doença e os sentidos associados à perda antecipada,
prejudicando seriamente sua adaptação (Rolland & Walsh, 1988b).
Estudos recentes de Wortman e Silver (1989) indicam que as premissas
tradicionais a respeito do luto saudável são, em grande parte, mitos. Suas pesquisas
sugerem enfaticamente uma gama muito mais ampla de reações não patológicas de luto
e lançam dúvidas sobre as teorias das fases do luto (Kübler Ross, 1975). l)a mesma
forma, esta discussão se baseia na consciência de que existem muitas estratégias de
enfrentamento efetivas para lidar com a perda ameaçada. O objetivo deste capítulo é
oferecer um referencial para a avaliação clínica e para pesquisas que venham a
aperfeiçoar a tomada de decisões e a intervenção efetiva em uma gama de situações
enfrentadas pelas famílias que lidam com perdas antecipadas.
O MODELO DA DOENÇA NO SISTEMA FAMILIAR
O modelo da Doença nos Sistemas Familiares, desenvolvido pelo autor
(Rolland, 1984, 1987a, 1988a, 1989), oferece um referencial útil para a compreensão da
experiência da perda antecipada nas famílias. O modelo distingue três dimensões
separadas: (1) os “tipos psicossociais” de doenças; (2) as fases principais de sua história
natural; e (3) as variáveis-chave dos sistemas familiares. Na primeira dimensão, os
padrões de doença podem variar em termos de surgimento (agudo ou gradual), curso
(progressivo, constante ou reincidente), conseqüências (fatal, tempo de vida abreviado
ou possível morte súbita, ou sem efeitos sobre a longevidade) e incapacitação
(nenhuma, leve, moderada ou severa). Para identificar os temas psicossociais centrais no
desdobramento das doenças crônicas, a segunda dimensão delineia duas fases principais
— (1) crise inicial, (2) crônica e (3) terminal — cada uma ligada por transições críticas.
Uma avaliação do sistema familiar, como a terceira dimensão, enfatiza a importância de
vários componentes da vida família (por exemplo, desenvolvimento, sistemas de
crenças, coesão, adaptabilidade, comunicação) em relação a tipos específicos de
distúrbios em uma fase específica do “ciclo de vida da doença”. O modelo da Doença
no Sistema Familiar possibilita aos clínicos caracterizarem qualquer doença em termos
de suas demandas práticas e emocionais e em relação aos padrões interacionais da
família.
168
A Linha do Tempo da Doença e a Perda Ameaçada
Os tipos psicossociais e as fases da doença oferecem uma linha do tempo de
pontos nodais potenciais de perda, incluindo a incapacitação e a morte. As famílias
começam a desenvolver suas próprias linhas do tempo no diagnóstico inicial. As
discussões com os profissionais de saúde sobre a natureza do distúrbio, seu prognóstico
e as prescrições para seu manejo constituem um “evento constituinte” para os membros
da família. Em geral, este é um período altamente emotivo e vulnerável. As famílias
enfrentam a perda da vida “normal”, tal como era antes do diagnóstico, do mesmo modo
que vivenciam ainda mais perdas ameaçadas pela incapacitação e/ou da morte. Este
estado semelhante a um transe, hipervigilante e ansioso, torna as famílias altamente
receptivas a mensagens propositais e não-propositais sobre como passar pelas incertezas
que as confrontam. Tudo o que é efetivamente dito, insinuado ou mal esclarecido pelos
médicos a respeito do prognóstico é crítico. A inclusão e a exclusão de cada membro da
família nestas conversas influenciam a maneira como ela situa sua experiência. Uma
família, acostumada a discussões abertas e francas, descreveu como o médico veio ao
quarto da mãe no hospital e levou todos para uma sala separada para informá-los de que
ela tinha câncer e discutir o diagnóstico. Neste momento vulnerável, os membros da
família sentiram que estavam sendo instruídos implicitamente a excluírem a mãe de
quaisquer discussões sobre seu câncer.
Além disso, famílias diferentes podem escutar a mesma discussão por meio de
filtros históricos/culturais/étnicos milito diferentes, que podem levar a padrões
conflituosos e disfuncionais posteriormente. As crenças a respeito da probabilidade e do
momento de uma maior incapacitação e da morte influenciam fortemente as regras de
relacionamento estabelecidas em face da ameaça de perda. Em uma família, o marido
teve um câncer benigno de pele removido e foi tranqüilizado por seu médico de que não
devia se preocupar com uma possível recaída. O pai de sua esposa tinha morrido de
melanoma maligno um ano após seu médico ter-lhe garantido que havia extraído um
tumor “benigno”. Sua experiência traumática, ignorada pelo médico, tinha levado a
esposa a desconfiar do prognóstico e viver em uma antecipação apavorada da morte do
marido. Portanto, é extremamente útil pedir a cada membro da família para discutir suas
expectativas a respeito do curso e das conseqüências antecipadas da doença.
Doenças progressivas, como o mal de Alzheimer (Boss et al., 1988) ou a
esclerose múltipla, envolvem uma série de perdas. Com o Alzheimer, embora o
momento destas perdas seja ambíguo, sua inevitabilidade não o é. Os membros da
família antecipam e sofrem com cada marco na evolução da doença. No caso de
doenças incapacitantes, durante suas transições-chave, as funções da família podem
precisar de modificações para passarem para uma nova fase da adaptação. Os clínicos
devem estar sensíveis aos pontos nodais que podem exigir mudanças descontínuas para
a família. For exemplo, uma família tentou a todo custo preservar as funções do papel
do pai, cuja saúde se deteriorava, a fim de manter sua forte crença no seu controle da
situação. Com o avanço da
169
incapacitação, o êxito da adaptação exigiu a aceitação daquilo que não poderia ser
mudado.
Tanto o “se” como o “quando” da morte têm um impacto enorme sobre a
família. A maioria dos estudos sobre a perda antecipada, concentrando-se nas doenças
terminais, não abordaram o aspecto “se” e limitaram os aspectos “quando” para a última
fase. No momento do diagnóstico, a maioria das doenças é incerta nos dois âmbitos. A
única pergunta é o grau de incerteza e quando a perda antecipada vai se tornar
proeminente. Por exemplo, quando o câncer de pulmão de um membro da família está
em remissão, temores intensos cercam uma possível recaída. Cada encontro com o
médico, cada sintoma ambíguo, traz apreensão. A perda da primeira remissão muitas
vezes destrói a esperança de cura da família e traz à tona seus piores medos. Em termos
médicos, isto significa que o melhor tratamento não foi capaz de eliminar a
possibilidade de uma morte precoce e que as segundas tentativas têm uma probabilidade
ainda menor de êxito. A fronteira ambígua entre a remissão e a cura atiça
indefinidamente as brasas da perda antecipada. Mesmo 20 anos após o tratamento de um
câncer, um sintoma vago pode reacender imediatamente os temores da família de
recaída e morte.
Doenças reincidentes, como a asma ou as doenças cardíacas, podem subitamente
se agravar ou causar a morte. Períodos estáveis ou de poucos sintomas se alternam com
períodos de exacerbação, de modo que as questões relacionadas com a perda antecipada
vão e vêm no cotidiano da família. Esta sofre com as exigências tanto da freqüência da
transição entre as crises e os períodos calmos quanto da incerteza de quando uma
recaída fatal pode ocorrer. No evento de uma crise que representa uma ameaça à vida
(por exemplo, angina/ ataque cardíaco, hemofilia), a antecipação da perda pode
preocupar uma família. As famílias temem mais aquelas crises que podem surgir
subitamente, sem qualquer aviso, e requerem ajuda imediata para evitar a catástrofe.
Uma mulher com uma longa história de diabetes desenvolveu, abruptamente e sem
sinais que a alertassem, episódios severos de hipoglicemia, resultando em perda da
consciência. Ela e seu marido temiam que um destes episódios pudesse colocar em risco
a segurança de seus filhos pequenos, bem como terminar com sua vida.
Freqüentemente, as regras da família mudam para proteger seus membros contra
situações de ameaça à vida. Por exemplo, quando um dos pais tem um ataque cardíaco,
a regra familiar de comunicação aberta pode se transformar em evitação dos conflitos, a
fim de protegê-lo de uma recaída fatal. Como as recaídas perigosas muitas vezes podem
ser detonadas por perturbações emocionais, os membros da família, e particularmente o
cônjuge que está bem de saúde, precisam de orientação explícita a respeito de quando
podem retomar suas discordâncias normais, sua vida sexual, etc.
170
A Relação entre a Perda Psicológica e a Perda Física
As doenças variam em termos do equilíbrio entre a incapacitação física e
psicológica esperada. A perda psicológica envolve uma gama de déficits cognitivos que
limitam a participação na vida familiar. Em doenças como um derrame grave, a morte
psicológica ocorre muito antes da morte física.
A perda psicológica é especialmente dolorosa para uma família, pois está
associada à perda progressiva da intimidade. Com o declínio físico, a intimidade pode
sofrer se a família se retrai emocionalmente. Um distanciamento prematuro pode
ocorrer se os membros da família ficam divididos entre seus desejos de manter a
intimidade e sua necessidade de renunciar emocionalmente a um membro que está
morrendo. Todos os relacionamentos estão firmados no dilema existencial de escolher a
intimidade em face da eventual separação/ perda. As doenças que ameaçam a vida
enfatizam esta forma universal de perda antecipada.
Boss et al. (1984, 1988, capítulo 9) descrevem situações nas quais um membro
doente se torna psicologicamente morto para família, mas permanece vivo fisicamente,
como no mal de Alzheimer. Ela afirma que as incertezas a respeito da trajetória da
doença empurram as famílias seja (1) para se reorganizarem sem o membro afetado ou
(2) para minimizarem as demandas/existência da doença e esperar fantasiosamente que
o membro doente mantenha suas responsabilidades familiares normais. Quando tomar
uma tal decisão familiar depende do tipo, do grau e do momento da perda antecipada,
bem como das variáveis de estilo da família, como coesão e adaptabilidade. For
exemplo, uma família altamente coesa pode ter menos tolerância à ambigüidade face à
perda ameaçada. A necessidade de manter uma unidade familiar coesa pode leyar à
exclusão prematura do membro doente, ou a uma negação obstinada. E útil investigar a
participação continuada do membro doente nos rituais familiares (ver lmber-I3lack,
capítulo li) e observar os padrões de comunicação que o excluem.
As Fases da Doença e as Tarefas Evolutivas
Algumas tarefas evolutivas na fase de crise inicial facilitam o enfrentamento da
perda antecipada por parte da família. As famílias devem fazer o luto pela perda da vida
costumeira que tinham enquanto unidade familiar antes da doença. Em distúrbios
progressivos e incuráveis, as famílias devem aceitar as provações esperadas e a
possibilidade de uma maior incapacitação ou da morte. Seus membros devem aprender
a viver “no limbo” e a fazer o luto das ambigüidades que devem suportar ao longo do
tempo. Os esforços para resistir à aceitação da cronicidade podem expressar seu desejo
de se esquivar a viver com a perda antecipada ou “com a morte nos calcanhares”. Lidar
com a ameaça de perda por um período indeterminado torna muito mais difícil para uma
família definir seus limites estruturais e emocionais presentes e futuros. Ajudar as
famílias
171
a estabelecerem padrões funcionais desde cedo promove o enfrentamento e a adaptação
posteriores à perda.
Encarar a perda pode destruir o mito familiar de que as doenças fatais só
acontecem com os outros. A perda da sensação de controle pode ser uma experiência
extremamente debilitante para a família, levando a um comportamento frenético ou
imobilizado. Neste período de incerteza intensa, as famílias precisam desesperadamente
restabelecer a crença (mesmo ilusória) de que têm algum controle da situação. Ajudá-las
a priorizar tarefas e tomar ações diretas, tais como reunir informações sobre a doença e
recursos da comunidade, é especialmente útil para auxiliá-las a restabelecerem sua
sensação de domínio. O envolvimento do paciente e da família em grupos de auto-ajuda
de portadores de doenças específicas deve ser estimulado. Educar as famílias sobre
quais os sintomas significativos e quais os de pouca importância, sempre que possível,
pode evitar sustos desnecessários. Ajudá-las a distinguir entre a montanha-russa
emocional normal e seus temores da loucura pode diminuir a reatividade neste estágio.
A fase crônica apresenta dilemas diferentes para as famílias. Com as demandas
de cuidados, a exaustão e a ambivalência se tornam comuns à medida que os recursos
financeiros e emocionais se esgotam. A maré emocional da antecipação pode mudar do
medo para o desejo da morte, carregado de enorme culpa e vergonha, que raramente são
discutidas. Os clínicos precisam distinguir entre a ambivalência normal, produzida no
contexto de um longo martírio, e os conflitos preexistentes no relacionamento,
potencializados em face da possível perda. Em doenças prolongadas, os padrões
normais de intimidade do casal se desorganizam com o tempo, devido às discrepâncias
entre o membro doente e o cônjuge/cuidador de boa saúde. As emoções muitas vezes
são mascaradas e contribuem para a “culpa do sobrevivente”. Como um jovem marido
lamentou a respeito do câncer de sua esposa: “Já foi difícil o suficiente há dois anos
absorver o fato de que, mesmo que Anna ficasse curada, o tratamento com radiação
tornaria impossível para ela engravidar. Agora me parece insuportável que sua lenta e
contínua batalha sem esperança contra o câncer torne impossível realizarmos nossos
sonhos como os outros casais de nossa idade”. Intervenções psicoeducacionais com a
família, que normalizem as emoções relacionadas à perda ameaçada, podem ajudar a
prevenir os ciclos de culpa e vergonha.
Os cuidados médicos para as doenças fatais muitas vezes são dispensados cm
clínicas especializadas, onde pacientes e famílias que lidam com os mesmos distúrbios
podem desenvolver relacionamentos significativos até mesmo nas salas de espera. A
progressão, a reincidência ou a morte de outro paciente pode despertar temores de “Será
que vou (vamos) ser os próximos?” e baixar o moral da família. h útil para os clínicos
manterem-se informados sobre estes contatos e oferecer consultas para a família.
A fronteira entre as fases crônica e terminal, quando a morte não é mais um “se”,
mas uma inevitabilidade, é muitas vezes ambígua. Quando o membro doente da família
entra na fase terminal, a única dúvida que resta é a quantidade de tempo que esta tem
para se preparar. A tecnologia médica e o imperativo
172
da filosofia de esgotar todas as possibilidades podem com freqüência reverter ou adiar
estas transições “naturais”. Agora é possível induzir uma terceira ou quarta remissão do
câncer. Estas intervenções médicas persistentes, criadas para prolongar a vida, podem
ser difíceis de distinguir das tentativas de cuidados para confortar um paciente
moribundo. A formação médica também tende a promover uma comunicação ambígua
com as famílias, levando os médicos a serem cautelosos a respeito do prognóstico ou a
não admitirem a incerteza. Esta atitude de “vamos esperar para ver” muitas vezes gera
uma ansiedade e uma ambigüidade ainda maiores, que confundem a família quanto ao
estágio da doença, como no caso a seguir.
O Sr. e a Sra. L.. foram encaminhados para uma consulta por ocasião de uma
nova internação para o tratamento do linfoma da Sra. L., que já durava 10 anos, devido
à súbita recusa de sua filha a visitar a mãe no hospital. Três recaídas anteriores tinham
sido tratadas com facilidade, mas, desta vez, urna série de tentativas tinham falhado.
Com um médico altamente otimista e o curso estável da doença, a família nunca tinha
discutido abertamente a possibilidade da morte, O comportamento da filha sinalizava
urna mudança necessária. A Sra. L. continuava a se sentir cada vez pior e achava que
podia estar morrendo, mas seu médico sustentava que ela estava “indo bem” e propunha
diversos tratamentos ainda não testados (que a família reconhecia corno tiros no
escuro). As conversas com o oncologista revelavam sua firme crença em um tratamento
agressivo continuado, que seria enfraquecido por qualquer discussão da morte com a
família. A confiança desta no médico bloqueou sua transição para o estágio final do luto
antecipado. Somente 48 horas antes de sua morte, quando a Sra. L. já estava em coma, o
médico concordou em discutir com seus familiares o fato de que ela estava morrendo.
Quando as famílias estão enfrentando a antecipação da perda na fase final de uma
doença, a qualidade, tanto quanto a quantidade do tempo, passa a ser uma prioridade. Os
clínicos precisam explorar os temores da família quanto ao processo de morrer, tanto
quanto perda em si! A antecipação da dor e do sofrimento crescentes de um membro da
família causam, muitas vezes, uma preocupação maior do que a morte. Isto é
especialmente comum em doenças duradouras progressivas, nas quais a antecipação da
morte tenha sido ensaiada muitas vezes. A identificação precoce de meios efetivos para
o controle da dor e a discussão informada com a família a respeito dos desejos do
membro doente de ter sua vida preservada a qualquer custo podem aliviar uma
importante fonte de angústia.
As necessidades dos pacientes moribundos e de suas famílias talvez tenham sido
melhor atendidas nas casas de apoio,* um sistema profissional de cuidados voltado para
a fase terminal das doenças. Criado para ter autonomia em relação aos cuidados
hospitalares tradicionais, o conceito de casa de apoio,
*N. de 1. No original, hospices.
173
em poucas palavras, é de que o paciente-família é a unidade-alvo, com serviços
disponíveis 24 horas por dia, sete dias por semana, para o provimento de cuidados
paliativos ou de apoio, com ênfase nas necessidades biopsicossociais e espirituais do
paciente-família*
Dentro da casa de apoio, o paciente, a família e os cuidadores profissionais se
transformam em um grupo firmemente unido, à medida que, separadamente e em
conjunto, eles atravessam as três fases distintas que são comuns ao estágio terminal da
perda antecipada: (1) a fase da chegada; (2) a fase do aqui-e-agora e (3) a fase da
partida.
Na fase da chegada, as famílias tipicamente chegam esgotadas por seus esforços
prolongados para salvar a vida de um de seus membros. Os clínicos precisam ajudar o
paciente e a família a aceitarem que a entrada da equipe em suas casas ou a internação
nas dependências de uma casa de apoio é um reconhecimento da irreversibilidade da
situação e a transição dos cuidados curativos para os paliativos. Esta transição está
carregada de possibilidades de culpa e vergonha. A família pode culpar a equipe médica
por seu fracasso em proporcionar a cura, em particular se os médicos tinham,
anteriormente, oferecido um prognóstico exageradamente otimista. O paciente e os
membros da família podem se culpar mutuamente ou a si mesmos por terem perdido a
batalha contra a perda ameaçada. Isto se aplica em especial às famílias guiadas por um
forte senso de responsabilidade e controle pessoal, como no seguinte caso:
Jeff, 30 anos, tinha câncer há dois, e estava em fase terminal. Extremamente
independente e profissionalmente bem-sucedido, ele tinha jurado se curar, ao contrário
de seu pai, um “fracassado” que, separado da mulher, havia cometido suicídio. Quando
Jeff desenvolveu metástases cerebrais e demência, e não podia mais ser tratado em casa,
sua esposa não teve outra alternativa a não ser colocá-lo em um casa de apoio. Ela sofria
de urna culpa intensa ao assumir a responsabilidade pelo fracasso de sua cura e pelo fato
de que ele ia morrer em uma “instituição”, um sinal de fraqueza corno a de seu pai. A
terapia de casal focalizou estas questões para desvincular sua sensação de fracasso da
inevitabilidade da morte.
Os clínicos podem funcionar como guias para as famílias, ajudando-as a
abandonarem suavemente suas esperanças anteriores de cura, iniciar um plano
humanitário de cuidados paliativos e instilar esperança no desenvolvimento de um
caminho para a experiência da morte. Sua tarefa é unir-se à família em um momento em
que seus membros estão ocupados com os pensamentos de uma separação final. Em um
local de internação, como uma casa de apoio, os clínicos precisam orientar com
sensibilidade o paciente/família que está lidando com uma perda iminente em sua nova
“casa”
*N. de T. Os hospices, hospedarias para viajantes e peregrinos na Idade Média,
começaram a receber os moribundos em Dublin, na Irlanda, no séc. XIX. Na década de
60,0 St. Christopher’s Hospice de Londres se tornou o protótipo das casas de apoio
modernas. Hoje, existem mais de 1.700 casas de apoio nos Estados Unidos.

A fase aqui-e-agora é um período de espera, no qual a antecipação do “quando”


da perda passa a ser uma experiência do dia-a-dia. As famílias podem precisar de
assistência para redefinirem a esperança enquanto direcionada ao presente, e não mais
ao futuro. O paciente e a família precisam de compreensão mútua em suas mudanças
imprevisíveis de humor e de coragem e força para “viver o momento”. O paciente
espera compaixão para suas reações imprevisíveis à dor e seu alívio, e não ser
abandonado enquanto ainda estiver vivo. Os membros da família, exaustos, podem
precisar ser tranqüilizados de que os esforços do membro doente para se distanciar das
lutas da vida diária não são uma rejeição a eles ou uma repreensão por não terem feito o
suficiente. Os clínicos agora têm o papel crítico de diminuir a lacuna crescente entre o
paciente e a família. Eles podem ajudar a família a se manter envolvida com o paciente
enquanto caminham em direção à separação final. Uma vez que a iminência da morte
tenha sido aceita pelos pacientes e suas famílias, os clínicos podem lidar mais
abertamente com os preparativos práticos, como o funeral, o testamento e as questões
não resolvidas de relacionamento. O dilema da família é, em certos aspectos, isomórfico
em relação ao papel da casa de apoio clínico envolvido em uma forma breve de terapia.
Ambos precisam estabelecer objetivos imediatos e planejar a alta. Eles aprendem a
esperar e a não necessitar de outra visita para realizarem suas metas.
Na fase da partida, o paciente vive em um mundo de preocupações cada vez
menores, centradas no controle da dor e do sofrimento e na esperança de ter pessoas
significativas ao seu lado em suas últimas horas. A tarefa da família é compartilhar os
momentos finais, e então vivenciar a experiência de ter sido deixada para trás. Pode
haver vergonha, decorrente da sensação de abandono ou alívio pelo fim de um tormento
ou de uma relação complicada. Existe uma tremenda variação entre as famílias e as
culturas em relação à tolerância e à experiência de dizer adeus. Os clínicos precisam
estar cientes da ampla gama de respostas normais ao ajudar as famílias neste processo.
Além disso, os clínicos veteranos aprendem a se separar sem se perderem em cada
partida.
O CICLO DE VIDA DA FAMÍLIA
A experiência de perda ameaçada de uma família pode ser entendida através da
perspectiva do ciclo de vida, considerando particularmente os encontros
transgeracionais com perdas reais/ameaçadas e o momento das doenças fatais dentro
dos ciclos de vida da família e dos indivíduos (Rolland, 1987a, 1989).
O Passado: Questões Trausgeracionais
As informações do genograma relativas aos encontros anteriores da família com
a morte, a incapacitação, a perda ameaçada e a ambigüidade são particularmente
importantes (Herz, 1989; McGoldrick & Gerson, 1985; Rolland, 1987a;
175
Walsh & McGoldrick, 1988). É útil investigar os padrões de enfrentamento em
situações prévias de perda antecipada. Além dos eventos ligados a doenças, as
experiências da família com outras formas de incerteza ou perda, como a poconjt breza,
o divórcio, a violência, o abandono ou as profissões perigosas (por exempio, nas forças
armadas ou na polícia) proporcionam informações valiosas sobre a resistência da
família face às adversidades. Uma investigação histórica pode esclarecer as diferenças
aprendidas pelos membros da família, suas áreas de conhecimento e inexperiência e a
percepção esperada de competência ou impotência na experiência atual de perda
antecipada. Uma história de perdas não resolvidas, traumáticas ou inesperadas pode
gerar um medo catastrófico para uma pessoa confrontada com uma ameaça de perda.
Isto pode ser expresso por uma superproteção do membro doente ou outros membros da
família, ou por distanciamentos e rompimentos. Um homem, que tinha perdido sua
primeira mulher em conseqüência de um câncer de mama, começou a ter um caso e
pediu o divórcio da segunda esposa dentro de semanas de seu diagnóstico e cirurgia de
mastectomia, a despeito do bom prognóstico de seu caso. Os riscos de “questões mal
resolvidas” foram enfatizados nos casos de perda súbita; contudo, cuidar de alguém com
uma doença prolongada pode gerar o temor de não conseguir jamais suportar novamente
o processo deste martírio.
A Influência dos Estágios do Ciclo de Vida
A perda antecipada cria complicações diferentes, dependendo de sua adequação
aos imperativos atuais ou futuros dc) desenvolvimento da família. O impacto vai variar
com a oscilação do sistema familiar entre períodos centrípetos de alta coesão, como no
início da vida de uma criança, e períodos centrífugos de maior separação, como cm
famílias com adolescentes ou adultos jovens (I3eavers, 1982; Combrinck-Graham,
1985). Por exemplo, uma família cuja filha de 20 anos está saindo de casa quando
desenvolve um tumor cerebral incapacitante, que pode se mostrar fatal, deve fazer
mudanças para se manter tinida.
DOENÇAS PRECOCES.
O surgimento de uma doença grave é esperado no fim da vida adulta, quando a
busca de sentido, a integração e a aceitação da vida pessoal e familiar e a antecipação da
morte são tarefas normais universais (Herz, 1989; Levinson, 1978, 1986; Neugarten,
1976; Rolland, 1987a; Walsh & McGoldrick, 1988). Quando um distúrbio incapacitante
ou fatal ocorre mais cedo, ele está fora de compasso, tanto em termos de tempo
cronológico quanto social. Quando a doença vem fora de hora, o cônjuge e a família
carecem da preparação psicossocial e do ensaio que ocorrem mais tarde, quando os
pares estão experimentando perdas similares. O membro doente e a família tendem a se
sentir roubados em suas expectativas de um tempo de vida normal. No caso de casais
jovens, a ameaça de perda está fora de compasso porque ocorre simultaneamente com as
expectativas de ter filhos e desenvolver uma carreira.
Embora uma doença grave rompa a negação da morte e a promessa de uma
176
vida plena tanto para os casais jovens como para os mais velhos, para os cônjuges de
boa saúde dos casais jovens a preparação para a incapacitação e a morte não está
normalmente em seu horizonte. O duro fato é que, com a doença do cônjuge, o ciclo de
vida familiar vai ser severamente alterado, e possivelmente abreviado. Como
confidenciou uma jovem esposa, cujo marido tinha câncer:
“Enquanto Jim tiver câncer, nós não teremos futuro”. O sofrimento é ainda maior para
os casais quando seus pares se distanciam porque querem evitar encarar a possibilidade
da perda de seus cônjuges ou filhos. Estas questões aumentam a discrepância entre o
cônjuge doente e o que está bem, e isolam a família.
OS PERÍODOS DE TRANSIÇÃO DO CICLO DE VIDA.
Em todos os modelos do ciclo dc vida (Carter & McGoldrick, 1989; Duvall,
1977; Levinson, 1978), as transições evolutivas envolvem começos e fins (por exemplo,
nascimentos, a saída de casa dos adultos jovens, a aposentadoria, o divórcio e a morte).
Geralmente, as preocupações sobre a morte, os limites da vida e a antecipação da
separação e da perda vêm à tona nestas épocas. O diagnóstico de uma doença grave
sobrepõe o ciclo de vida da doença ao do indivíduo e da família. Uma das tarefas
evolutivas primárias desta é se acomodar à antecipação de uma maior incapacitação e da
possível morte prematura (Rolland, 1987a). As famílias em transições do ciclo de vida
podem ficar mais vulneráveis às perturbações emocionais geradas pela antecipação da
perda associada à doença. Por exemplo, suponhamos que uma família esteja no estágio
de seus adultos jovens saírem de casa quando o pai tem um infarte grave. A ameaça da
morte do pai pode influenciar fortemente os membros adultos jovens em transição,
levando-os a alterarem suas decisões de vida de forma que comprometam seus projetos
independentes.
No caso de perdas ameaçadas a longo prazo, à medida que as famílias passam
pelas transições normais do ciclo de vida, pode haver um ressurgimento de sentimentos
anteriores de perda antecipada que as famílias achavam que já tinham “elaborado”. Da
mesma forma, em momentos de transição, as tarefas evolutivas do próximo estágio da
vida podem ter que ser alteradas, adiadas ou abandonadas se não forem realistas ou
forem impossíveis de realizar. A cada transição, um luto intenso pode ocorrer em
relação às oportunidades e experiências que podem ter sido antecipadas, mas que agora
têm que ser abandonadas de forma mais definitiva. Os membros da família muitas vezes
precisam fazer o luto da perda de sonhos e esperanças futuras. Por exemplo, quando
uma mãe é informada do diagnóstico de câncer avançado de sua filha, ela deve fazer o
luto pela perda de experiências antecipadas que vão desde a formatura da filha no
ginásio e seu casamento até sua própria possibilidade de ser avó. Os clínicos devem
investigar a respeito de perdas relacionadas a estágios futuros da vida e explorar opções
de experiências positivas alternativas.
177
Questões Relacionadas ao Surgimento da Doença na Infância e na Vida Adulta
A ameaça de perda vai afetar as famílias de diferentes formas à medida que elas
se depararem com as tarefas evolutivas de cada estágio do ciclo de vida. Estas
diferenças podem ser ilustradas examinando a questão dos problemas de saúde surgidos
na infância ou na vida adulta na medida em que afetam o ciclo da vida conjugal.
DOENÇAS CONGÊNITAS, HEREDITÁRIAS E SURGIDAS NA INFÂNCIA.
Com estas doenças, a socialização e o sistema de crenças de uma criança são
moldados pelo interjogo contínuo entre os marcos evolutivos e as limitações e os riscos
futuros da doença. Em muitos problemas hereditários, as crenças familiares a respeito
de seu controle e das regras de interação social vão sendo formadas através das gerações
para estarem em sintonia com a perda antecipada (Rolland, 1987b). For exemplo, na
hemofilia, episódios de sangramentos possivelmente fatais podem ser causados por
traumas, afetos intensos ou períodos longos de estresse. Como a morte súbita está
sempre presente, os pais muitas vezes ensinam às crianças portadoras uma forma bem
afinada de controle sobre seus corpos, que é justaposta ao medo das interações sociais.
As emoções são monitoradas cuidadosamente no interesse da autopreservação. A
antecipação da perda orienta esta interligação entre o sistema de crenças e os processos
de desenvolvimento.
O indivíduo portador de um distúrbio hereditário ou surgido na infância traz a
experiência evolutiva da perda antecipada para suas relações adultas. Os casais
desenvolvem seu relacionamento com o fator da perda possível reconhecido
abertamente ou eclipsando de forma oculta seu compromisso. E importante que os
clínicos promovam a comunicação a respeito do impacto da possível incapacitação e da
morte prematura em áreas como a criação dos filhos, a carreira e a divisão do trabalho,
para que o casal possa desenvolver a flexibilidade necessária para se adaptar às
exigências adicionais de uma doença fatal.
Em doenças crônicas, como o diabetes e a hemofilia, a preocupação com a perda
futura fica inserida no planejamento do ciclo da vida de formas mais sutis e disfarçadas,
como ilustra o caso a seguir.
Greg, um homem hemofílico de 45 anos, foi encaminhado para tratamento por
depressão severa. Sua deficiência exigia que ele caminhasse com muletas. Ele tinha se
divorciado há três anos, e sua única filha acabara de sair de casa para estudar.
A avaliação revelou que a família de sua mãe tinha uma história de hemofilia de 200
anos, envolvendo muitos casos. Um de seus irmãos tinha morrido na infância após um
ferimento traumático, e apenas um dos membros hemofílicos tinha vivido além dos 50
anos. Quando indagado sobre como ele tinha concebido sua vida desde a infância,
afirmou que sentia que, se conseguisse sobreviver aos riscos maiores de traumas na
infância (seu irmão sendo um lembrete vívido), ele teria tempo suficiente para se casar e
ter filhos, mas, dadas as estatísticas
178
e sua longa história familiar, a vida após os 45 anos parecia improvável. Após os
40, ele começou a ver sua vida como uma “pré-morte”. Ele não tinha perspectivas ou
planos para a vida após os 50 anos, somente a antecipação da morte.
Este caso demonstra como alguém pode estruturar todo o seu ciclo de vida
segundo uma expectativa de incapacitação e morte em uma fase específica da vida. O
momento do divórcio de Greg coincidiu com um plano vagamente consciente de poupar
sua esposa de ter que lidar cem o fardo de seu adoecimento e morte, e lhe dava controle
sobre o fim do relacionamento. A saída da filha de casa deixou-o só com sua depressão,
pensamentos suicidas e falta de esperança. Este caso enfatiza tanto o perigo potencial da
antecipação da perda se tornar um processo de fuga como a necessidade de um
referencial clínico preventivo. Greg tinha uma versão da perda antecipada como
inevitável e com hora marcada, ao invés de possível e de momento incerto. Da mesma
forma, seu processo de fuga se acelerou no ponto mais vulnerável de seu ciclo de vida.
Uma intervenção mais precoce, que teria feito um levantamento de como sua
experiência transgeracional influenciou sua linha do tempo pessoal da doença, poderia
ter previsto o momento de maior risco. Isto lhe teria possibilitado planejar sua vida após
os 40 anos de uma forma que reconhecesse a possibilidade da incapacitação e da morte
precoce, mas que não excluísse projetos e relacionamentos significativos dentro de um
contexto de incerteza.
DOENÇAS SURGIDAS NA VIDA ADULTA.
As doenças graves que ocorrem no início do relacionamento de um casal são
particularmente estressantes, porque os parceiros ainda estão construindo os alicerces de
sua relação a longo prazo. Para os casais de bom funcionamento, se o surgimento da
doença ocorre mais tarde no ciclo da vida familiar, as perturbações são
contrabalançadas pela base mais firme do relacionamento. Se existem padrões
disfuncionais anteriores à doença, então a ameaça de perda tenderá a distanciar ainda
mais o casal.
O tipo de doença e o momento da perda antecipada influem sobre o modo como
os cônjuges respondem às ameaças a seus planos de vida. Com uma doença como o
diabetes, a possibilidade de incapacitação ou de abreviamento da vida muitas vezes
permanece distante. Freqüentemente, a pessoa com diabetes se acomoda às
conseqüências negativas incertas da doença pela negação e minimização. A medida que
os cônjuges formam uma relação íntima, o parceiro de boa saúde precisa se informar a
respeito da doença. A capacidade do cônjuge com diabetes de informá-lo pode ser
bloqueada por temores relativos à deterioração, abandono e morte, que são questões
carregadas e sensíveis para ambos os parceiros. Muitas vezes, questões relacionadas à
antecipação da perda estão ocultas em afirmações como: “A doença é minha e eu cuido
dela sozinha”.
Outro ponto nodal comum ocorre quando o casal decide ter filhos. Ele deve
considerar os riscos de complicações na gravidez tanto para a mãe doente quanto para a
criança. Outros temores incluem: (1) a transmissão genética para os filhos, que terão
que carregar o fardo da perda antecipada; (2) a antecipação da perda de um “filho
sonhado” que poderá contrair a doença em algum mo
179

mento; (3) a antecipação de complicações da doença que viriam a interferir na criação


dos filhos; (4) o medo de que o cônjuge doente não viva o suficiente para ver os filhos
adultos, e (5) as exigências financeiras e psicossociais para o cônjuge sobrevivente ou
de boa saúde.
OS SISTEMAS DE CRENÇAS
Face à perda possível, criar um sentido para a doença que preserve a sensação de
competência é uma tarefa primária para a família. Neste sentido, as crenças de uma
família a respeito do que e de quem pode influenciar o curso dos eventos são
fundamentais. Se a família entende que o locus de controle sobre a saúde/doença é
interno a ela, ou que está nas mãos de outros poderosos ou que é uma questão de acaso,
isto vai afetar o modo como ela interpreta os eventos, seus comportamentos de
promoção da saúde e seu envolvimento nos cuidados ao doente (1 efcourt, 1982;
Rolland, 1987b; Wallston & Wallston, 1978).
Os clínicos devem avaliar as noções dos membros da família sobre o que causou
uma doença e suas crenças a respeito do que pode influenciar seu curso e suas
conseqüências. Crenças que invocam culpa ou vergonha bloqueiam o processo
normalizador para a família. Elas são suficientemente tóxicas para, no caso de não
serem resolvidas, quase invariavelmente impedirem o estabelecimento de um sistema de
doença familiar funcional. No contexto das doenças incuráveis, o membro culpado da
família é implicitamente considerado responsável por negligência ou mesmo por
assassinato em potencial se o paciente morre. As decisões a respeito do tratamento
podem ficar carregadas de tensão quando cada estágio da perda agrava o ciclo de
culpabilização. For exemplo, uma mãe que sente que o marido a culpa pela leucemia do
filho pode estar menos apta a cessar tratamentos experimentais com baixa probabilidade
de sucesso do que o pai ressentido.
Para a família, as ambigüidades distorcem quais comportamentos podem afetar
as chances de desfecho trágico para uma doença, aumentando a tendência à atribuição
de culpa sempre que a progressão do problema puder estar ligada a erros de omissão ou
atuação. E crucial que os clínicos ajudem a família a obter prognósticos médicos e
orientações de manejo claras. Em situações de perda ameaçada, as mulheres são mais
propensas do que os homens às atribuições envolvendo culpa ou vergonha, devido às
expectativas sociais ligadas ao papel de responsáveis primárias pelos cuidados com os
filhos, marido, pais idosos e família extensa.
Nas doenças da infância, os pais e os irmãos (especialmente aqueles próximos
em idade à criança doente, quando a rivalidade é mais forte) correm um risco mais
elevado de culpa. Eles podem se sentir culpados por terem sido poupados do sofrimento
físico e da ameaça de morte. Os pais podem se torturar pensando em sua possível
negligência como um fator causal. Para alguns membros da família, especialmente os
irmãos, este sentimento pode ser expresso como uma preocupação somática geral ou um
temor catastrófico de
180
sofrer o mesmo destino. Se já houve o caso de uma criança cuja aparente gripe revelou
ser uma leucemia, sintomas respiratórios mínimos em outros membros da família
podem detonar pânico. Os membros da família podem se tornar superprotetores em
relação a todos os seus filhos. Em outros casos, a culpa pode se manifestar em
comportamentos autodestrutivos (por exemplo, alcoolismo, imprudência).
Em minha experiência clínica, as famílias com as crenças mais fortes, e por
vezes extremas, a respeito da responsabilidade pessoal e aquelas com os padrões
disfuncionais mais severos tendem a superenfatizar os fatores psicossociais na causa ou
nas conseqüências de uma doença. Para famílias com um locus de controle altamente
interno, a crença na responsabilidade pessoal guia todos os aspectos da vida, incluindo
situações de “alto risco” de perda ameaçada. Uma relativa falta de reconhecimento dos
“percalços do destino” como fator em uma doença pode criar um foco de culpa e
vergonha. Para tais famílias, a incapacitação ou a morte implicam uma falha da força de
vontade ou do esforço. A perda antecipada é acrescida de uma segunda batalha da vida
contra a morte: a da vontade e, possivelmente, do sistema de crenças da família. Este
tipo de família tenderá a se aferrar tenazmente ao membro doente. As famílias guiadas
por um sistema de crenças orientado externamente, centrado no “destino”, arriscam a
exclusão e o luto prematuros do membro doente.
Fazer as pazes consigo mesmo, com a família e com o mundo é uma tarefa
fundamental no enfrentamento de uma ameaça de perda, especialmente na fase terminal.
Diversos tipos de crenças complicam este processo normativo. Em primeiro lugar,
questões não resolvidas de culpa ou vergonha comprometem seriamente o movimento
em direção à morte e sua aceitação. Em segundo lugar, as crenças de algumas famílias a
respeito do controle são definidas rigidamente como a capacidade de controlar o
desdobramento biológico e o desfecho de uma doença. Uma definição mais flexível de
competência envolve a participação ativa no processo como um todo. Para manter o
valor familiar de controle pessoal durante a fase progressiva ou terminal de uma doença,
a participação em um processo bem-sucedido de separação gradual deve substituir o
domínio da biologia. Quando uma família está experimentando uma perda, a diferença
entre um legado de competência ou de derrota está ligada a este tipo de flexibilidade do
sistema de crenças. Os clínicos precisam ter em mente que as famílias com crenças mais
fortes e rígidas sobre a responsabilidade pessoal podem funcionar muito bem durante os
estágios iniciais da perda ameaçada, mas se tornam extremamente vulneráveis se a
doença progride. Uma atitude que sugere “Entendemos os riscos e vamos tentar vencer
esta coisa” precisa ser distinguida de “Nós temos que vencer esta coisa”.
Sistemas Amplos de Valores
Historicamente, os valores masculinos da classe média, que enfatizam as
realizações individuais e o controle, têm prevalecido na América. Vivemos em uma era
que promove a responsabilidade e o esforço pessoal como a via para
181
enfrentar as adversidades. Desde o estabelecimento das políticas nacionais até a
psicologia popular (Siegal, 1986; Simonton et al., 1978), existe uma tendência a
internalizar e localizar os problemas no indivíduo ou na família. Este valor social pode
interagir fortemente com os sistemas de crenças de famílias que enfrentam ameaças de
perda. As conseqüências de se “perder” a batalha contra a incapacitação e a morte
podem se impregnar de uma profunda sensação de vergonha e fracasso publico. Esta
experiência interpretada negativamente pode alterar o paradigma de uma família por
várias gerações. Os clínicos precisam se abster de defender muito enfaticamente a
filosofia de que a perda poderia ter sido evitada se a família tivesse assumido
responsabilidade suficiente pela doença.
O ESTIGMA SOCIAL: O EXEMPLO DA AIDS.
A AIDS ilustra dramaticamente como o processo de enfrentamento da
antecipação da perda e do luto por uma família é comprometido severamente pelo
estigma social. As crenças/ metáforas associadas à AIDS (Sontag, 1988) sugerem que a
restauração da saúde só pode ocorrer após uma “limpeza moral” e a expiação adequada
da imoralidade. Assim, as atitudes do sistema mais amplo, que vitimizam as famílias,
podem competir com os problemas familiares não resolvidos como causa potencial de
sofrimento interminável, ligado à culpa ou à vergonha. A perda ameaçada é militas
vezes experimentada em um contexto de sigilo, que promove o isolamento face a uma
morte infame. Os clínicos precisam ajudar a remover estes bloqueios, a promover rituais
positivos e o apoio da comunidade para os pacientes e suas famílias.
A AIDS é singular em diversos outros aspectos. Como ela é epidêmica, as
famílias e os cuidadores muitas vezes vivenciam perdas múltiplas e lidam
simultaneamente com vários amigos ou familiares em vários estágios da doença e,
portanto, em vários estágios da perda antecipada. Os clínicos precisam estar sensíveis à
imersão contínua em ondas de morte e luto iminentes que cercam as famílias de
comunidades de alto risco. As pessoas com AIDS devem enfrentar seus próprios medos
da morte, ao mesmo tempo em que podem estar intimamente envolvidas com a perda
ameaçada de seus parceiros ou outros membros de sua comunidade ou família. Um ou
ambos os pais de uma criança com AIDS são muitas vezes confrontados com seu
próprio diagnóstico quando são informados do de seu filho. Se o casal tiver outros
filhos, os clínicos precisam construir suportes para a criação das crianças na família
extensa e ajudar a planejar um futuro que pode não incluir seus pais.
DISCUSSÃO
A ênfase exagerada na perda antecipada pode se tornar, por si só,
emocionalmente incapacitante, se não for contrabalançada por formas de utilizar esta
experiência para melhorar a qualidade de vida. Neste sentido, os clínicos podem ser
extremamente úteis para ajudar as famílias a alcançarem um equilíbrio saudável. Em
doenças com riscos a longo prazo, as famílias podem manter
182
seu controle em face da incerteza (1) reconhecendo a possibilidade da perda, (2)
mantendo a esperança e (3) construindo uma flexibilidade no planejamento do ciclo de
vida familiar que preserve e ajuste as metas principais (por exemplo, a criação dos
filhos) e passe ao largo das forças da incerteza. Os clínicos podem ajudar as famílias a
chegarem a consensos sobre as condições sob as quais outras discussões familiares
seriam úteis, e quem seria apropriado incluir nelas.
Em situações de perda antecipada, devemos ter cautela ao julgar a utilidade
relativa das ilusões positivas ou minimizações em oposição à confrontação direta e à
aceitação das realidades dolorosas. Em muitas situações clínicas, ambas são necessárias,
e o clínico habilidoso deve acertar o ponto estimulando tanto a utilidade da esperança
exagerada quanto a necessidade de tratamento para controlar a doença ou uma nova
complicação. Desde a perspectiva do ciclo de vida, as transições da doença, do
indivíduo ou da família são momentos críticos nos quais examinar as questões de perda
ameaçada e pesá-las à luz de outras considerações evolutivas. A discussão aberta e a
tomada de decisões em comum nestas injunções vão ajudar a evitar futuros ciclos de
culpa se a perda ocorrer. Um jovem adulto cujo pai tem câncer em remissão pode ter
dificuldades para sair de casa, em parte por medo de nunca mais ver o pai doente.
Promover a discussão franca dos sentimentos entre os pais e o jovem adulto pode ser
útil. Além disso, há um maior estímulo e importância para que uma família enfrente a
negação de uma doença quando existe a esperança de que ações preventivas ou
tratamentos médicos possam afetar suas conseqüências.
Por outro lado, a maioria de nós não consegue tolerar um encontro inexorável
com a perda. Existe a necessidade de uma trégua mental e física. Taylor (1989)
descreveu a necessidade normal e saudável de ilusões positivas, e sua importância para
o enfrentamento e a adaptação bem-sucedidos. O uso saudável da minimização ou do
foco seletivo sobre os aspectos positivos, bem como doses oportunas de humor, devem
ser distinguidos da negação, que é considerada patológica.
Um encontro com a morte proporciona uma oportunidade para a confrontação de
medos catastróficos da perda. Isto pode levar os membros da família a desenvolverem
uma melhor apreciação e perspectiva da vida, que resulta em prioridades mais claras. A
criação ativa de oportunidades pode substituir o adiamento e a espera passiva pelo
“momento certo”. A ameaça da perda, ao enfatizar a fragilidade e a preciosidade da
vida, oferece às famílias uma oportunidade de voltar a questões não resolvidas e
desenvolver relacionamentos mais imediatos e carinhosos. Em doenças em estágios
avançados, os clínicos devem ajudar as famílias a enfatizarem a qualidade de vida,
definindo metas prontamente alcançáveis que enriqueçam suas vidas cotidianas.
Escritos recentes (Imber-Black et al., 1988) no campo da terapia de família têm
sublinhado a falta de rituais em muitas famílias no que diz respeito à perda. A ameaça
de perda muitas vezes eleva a consciência de que cada reunião e ritual familiares podem
ser os últimos com todos presentes. Os clínicos podem ajudar as famílias que enfrentam
uma perda ameaçada promovendo a criação e o uso de rituais de comemoração e
inclusão. Uma reunião pode revigorar
183
uma família e servir para somar suas energias curativas para apoiar o membro doente e
seus cuidadores-chave. No contexto da perda ameaçada, as comemorações tradicionais
oferecem uma oportunidade de reafirmar e melhorar todas as relações familiares. Os
membros emocionalmente distantes ou isolados podem ser reconectados à vida familiar.
Por último, os clínicos que trabalham com estas famílias precisam considerar suas
próprias experiências e sentimentos sobre a perda. Fatores como a nossa história
transgeracional e familiar de perdas ameaçadas ou reais, nossas crenças sobre a saúde e
nosso estágio atual no ciclo de vida vão influenciar nossa capacidade de trabalhar
efetivamente com famílias que enfrentam perdas.
Os temores a respeito de nossa própria vulnerabilidade são facilmente
despertados ao trabalharmos com famílias que enfrentam doenças precoces. Isto é
especialmente provável se o paciente e a família estão no mesmo estágio do ciclo da
vida que o terapeuta. A autoconsciência é particularmente importante se o terapeuta tem
a mesma doença ou um alto risco de doenças envolvendo perda (por exemplo, uma forte
história familiar de câncer ou doenças cardíacas). Como estas situações são tão
absorventes, os clínicos que trabalham com uma família por uru período extenso tendem
a modelar suas esperanças e crenças segundo as da família. Isto pode levar a um
otimismo excessivo e ao esquecimento de que a perda é realmente possível. Finalmente,
nossas próprias questões relacionadas a perdas reais ou ameaçadas e o medo de nossa
própria mortalidade podem nos levar a manter uma excessiva distância emocional,
evitando discussões importantes e muitas vezes dolorosas relacionadas à perda
ameaçada, ou a nos envolvermos demais com uma determinada família. A medida que
aceitamos os limites de nossa capacidade de controlar o incontrolável e elaborar as
perdas pessoais não resolvidas, podemos trabalhar mais sensivelmente com os dilemas
excruciantes destas famílias.
184

9. A Perda Ambígua
PAULINE BOSS
Uma tarefa universal de todas as famílias, independentemente da diversidade
cultural, é elaborar as perdas. Em grande parte, a comunidade cultural ajuda as famílias
a fazerem isso por meio de rituais nos quais os amigos e a família se reúnem. Mas
também existem perdas que não recebem esta validação pública. A perda nunca é
oficialmente documentada ou ritualizada. Um membro da família pode simplesmente
estar desaparecido, como os reféns, as crianças desaparecidas e os soldados
desaparecidos em combate no sudeste da Ásia. Mas os entes queridos podem estar
desaparecidos de uma família mesmo quando ainda estão fisicamente presentes. Por
exemplo, eles podem estar psicologicamente ausentes devido à demência, ao coma ou
por serem viciados em drogas, álcool ou até mesmo em trabalho. Eles estão fisicamente
presentes, mas emocionalmente distantes. Embora a família pareça intacta, existe um
importante espaço vazio.
Em outros trabalhos, denominei este fenômeno ambigüidade de fronteiras, uma
situação familiar que resulta da perda ambígua. A falta de clareza a respeito da perda de
um membro da família gera confusão e conflito sobre quem está dentro e quem está fora
do sistema. Neste capítulo, explico o que é a perda ambígua, por que ela é importante e
o que pode ser feito para ajudar as famílias a superarem estas situações. A idéia de que a
ambigüidade de fronteiras é estressante para as famílias foi desenvolvida em 1973. *(1)
Nota de rodapé:
Este capítulo é uma revisão de pesquisas atualmente financiadas pelo National Institute
on Aging (Projeto n° IP50-MH40317-01) e pela Agricultural Experiment Station da
Universidade de Minnesota (Projeto n° MIN52048). As pesquisas anteriores foram
feitas em cooperação com o Naval Health Research Institute de San Diego.
*(1). Para maiores detalhes sobre a pesquisa original e o desenvolvimento teórico a
partir daí, o leitor deve se referir aos resumos e referências de Boss, 1987, 1988, 1990, e
Boss e Greenberg, 1984.
187
A ambigüidade de fronteiras, um fenômeno familiar que resulta do estresse da
perda ambígua, é definida como o não saber da família sobre quem está dentro e quem
está fora do sistema. A família pode perceber um membro fisicamente ausente como
presente psicologicamente, ou um membro fisicamente presente como psicologicamente
ausente. Em ambos os casos, a fronteira familiar é ambígua. Apresento esta revisão para
esclarecer o sentido da ambigüidade de fronteiras e para explorar seu alcance e
aplicação na pesquisa e na prática clínica.
Uma grande certeza nas famílias é a de que, ao longo do tempo, vai haver perdas
e separações. Eu postulo que focalizar o grau de ambigüidade das fronteiras familiares,
ao invés dos recursos específicos de enfrentamento de problemas, pode explicar melhor
por que uma família consegue ou não lidar com a perda. Se uma família não consegue
esclarecer quem está dentro e quem está fora de seu sistema (como no caso das perdas e
separações ambíguas), ela não consegue se reorganizar; o processo de reestruturação
morfogênica do sistema é bloqueado; o sistema fica no limbo.
Os primeiros trabalhos teóricos e de pesquisa sobre a ambigüidade de
fronteiras focalizavam as perdas ambíguas das famílias de militares declarados
desaparecidos em combate (DEC) no Vietnã (Boss, 1975, 1977, 1980a). Meu
pensamento foi influenciado pelo teórico sistêmico Walter Buckley (1967), pelo
sociólogo da família Reuben Hill (1971a, 1971b) e pelo interacionista simbólico Erving
Goffman (1974). O constructo da ambigüidade de fronteiras foi apresentado como uma
importante variável de estresse, com raízes em três disciplinas: (1) psicologia social
(interacionismo simbólico); (2) sociologia (manutenção de fronteiras); e (3) terapia
familiar simbólica experimental (a construção perceptiva de uma família de quem está
dentro e quem está fora de seu sistema) (ver também Boss & Greenberg, 1984).
Baseado na percepção própria da perda da família, mais do que na quantificação
do pertencer a uma família da forma tradicional, este trabalho
criou um novo meio de avaliar e aliviar as crises familiares após uma perda. Ele é
especialmente útil em termos teóricos, pois a idéia nos permite começar a responder as
perguntas sobre por que algumas famílias são resistentes enquanto outras ficam
imobilizadas pela perda e nunca se recuperam.
Para melhor entender a premissa teórica sobre a perda ambígua e o estresse que
ela causa às famílias, vou primeiramente resumir minhas suposições gerais a respeito da
família e da mudança (Boss, 1988):
1. As famílias são sistemas e devem manter suas fronteiras a despeito das mudanças
internas, para sobreviverem e não se desfazerem sob pressão.
2. As fronteiras familiares não podem ser mantidas por pessoas de fora; elas devem ser
mantidas a partir de dentro, pela própria família. Fronteiras familiares claras e saudáveis
facilitam o manejo dos eventos estressantes da vida familiar e possibilitam à família
administrar as inevitáveis perdas e mudanças normativas e resolver as mudanças
evolutivas de seus membros, bem como administrar eventos e situações inesperadas.
188
3. Para que um sistema familiar mantenha suas fronteiras, seus membros devem saber
quem está dentro e quem está fora da família. Isto é determinado solicitando todos os
membros da família a falarem sobre sua percepção individual e coletiva de quem está na
família. As fronteiras familiares também são determinadas perguntando quem está
presente nos momentos de comemoração e dos rituais familiares.
4. Uma barreira significativa para o manejo do estresse familiar, portanto, é a
ambigüidade em torno de uma experiência de perda, quando não sabemos se a pessoa
está dentro ou fora do sistema familiar.
5. Um certo grau de ambigüidade é normal em todas as famílias, mas, a longo prazo, ela
é um forte estressor e vai tornar vulneráveis até mesmo as famílias mais fortes.
6. Embora a idéia da ambigüidade das fronteiras como disfuncional tenha surgido a
partir das pesquisas com famílias de DEC, ela parece ter relevância para outros eventos
familiares de perda, como doenças crônicas e mortes.
7. Quando um evento de perda não pode ser alterado, a mudança ainda é possível na
percepção que a família tem daquele evento.
O grau de ambigüidade de fronteiras é crítico para entendermos as famílias que
se defrontam com o estresse da mudança. A ambigüidade de fronteiras nas famílias
pode se desenvolver de duas formas. Na primeira, a perda mesma pode se apresentar
como ambígua, ou seja, os fatos que a cercam são incompletos ou pouco claros; não
existe certeza sobre o que está acontecendo ou como as coisas vão terminar. Perdas
como esta ocorreriam para uma família, por exemplo, se um ente querido fosse tomado
como refém ou declarado desaparecido em combate. A família não sabe onde a pessoa
desaparecida está, e nem se ela está viva ou morta. Outro exemplo de ambigüidade no
evento da perda são as doenças crônicas, como a demência ou o coma. Os membros da
família sabem que seu ente querido vai morrer, mas não sabem quando. Sem um
diagnóstico preciso, não existe uma solução clara. Estas situações prolongadas de
ambigüidade são extremamente difíceis para as famílias.
Também existem situações nas quais o evento é claro, o diagnóstico é preciso e a
comunidade de amigos e parentes conseguem ver a perda claramente, mas os membros
da família ignoram os fatos e fecham seus olhos à realidade. Sua construção da
realidade se baseia em uma hesitação em aceitar a perda. Os fatos são compreendidos,
mas a percepção coletiva torna a perda ambígua. Estas famílias mantêm as pessoas
fisicamente ausentes psicologicamente presentes muito após elas estarem claramente
mortas e enterradas, ou isolam da família membros presentes fisicamente muito antes de
eles estarem mortos. Em outras palavras, algumas famílias constroem uma realidade que
define artificialmente suas fronteiras porque não podem tolerar uma morte súbita ou
uma doença prolongada.
Quer a ambigüidade comece no evento em si ou se origine primariamente na
percepção da realidade, é através desta janela perceptiva da família que o terapeuta pode
entrar. Somente pelo reenquadramento de como os membros
189
da família vêem a situação é que a mudança pode acontecer. Devemos, portanto, ver a
perda através dos olhos deles para que possamos descobrir como apoiá-los e guiá-los na
resolução dela.
Baseadas nestas premissas sobre as famílias e a perda, várias pesquisas foram
conduzidas com diferentes amostras ao longo dos anos. As seguintes proposições foram
atualizadas a partir da Lista original (ver Boss & Greenberg, 1984), mas se mantêm
basicamente as mesmas:
1. Quanto maior for a ambigüidade de fronteiras do sistema familiar, maior será a
impotência (baixo controle) e maior a probabilidade de disfunções individuais e
familiares (depressão e conflito). A ambigüidade de fronteiras pode resultar do fato do
mundo externo não dar à família informações suficientes a respeito da perda ou pode
surgir de dentro da família, a partir de sua própria negação da perda. Em ambos os
casos, os indicadores últimos de quem está dentro e quem está fora da família se
baseiam na percepção coletiva, bem como nas percepções individuais, e, o mais
importante, na congruência entre as percepções individuais dos membros da família.
2. A curto prazo, a ambigüidade das fronteiras familiares pode não ser disfuncional. Ou
seja, no período imediatamente seguinte a uma perda ou separação inesperada, um
período de ambigüidade de fronteiras pode dar tempo à família, em termos cognitivos,
para aceitar a informação de que o status quo foi rompido e de que a perda é real. Os
membros da família podem usar este período inicial para negar a perda ou construir
outros sentidos para o que lhes aconteceu. Com o tempo, entretanto, um sistema
familiar resistente vai começar a aceitar novas informações sobre o que foi perdido, a
fim de que os processes de enfrentamento e reorganização possam começar. Pela
reestruturação coletiva e individual do sentido da perda, as fronteiras do sistema são
esclarecidas e mantidas de forma mais realista.
3. Se um grau alto de ambigüidade das fronteiras familiares persiste ao longo do tempo,
o sistema familiar está em risco de se tornar altamente estressado e subseqüentemente
disfuncional. Manter um sistema definido ambiguamente bloqueia a cognição, bem
como as respostas emocionais e comportamentais que iniciam os processos de
reestruturação. Por exemplo, devido à persistência da perda ambígua, famílias com um
membro cronicamente doente podem negar seja a doença da pessoa, seja sua presença
no sistema, mesmo enquanto ela ainda estiver fisicamente presente. As doenças
crônicas, especialmente aquelas que são, em si, incertas em seu progresso e
conseqüências (como o mal de Alzheimer), tendem a resultar em um grau mais alto de
ambigüidade das fronteiras familiares do que doenças mais previsíveis e tratáveis (ver
Rolland, capítulo 8). Embora os membros da família saibam que o membro doente vai
morrer, eles não sabem quando (ou, no caso de remissão, eles nunca sabem exatamente
se a pessoa está morrendo), de modo que seu estresse será extremamente alto. Eles
ficam imobilizados.
190
4. As famílias de contextos culturais diferentes variam em sua percepção das fronteiras
familiares — mesmo após eventos similares de perda e separação. For exemplo, a
comunidade ou o contexto cultural da família vão influenciar a prontidão com que o
sistema pode aceitar informações sobre eventos de mudança ou perda. Isto se aplica a
perdas normativas, como a morte de um avô, perdas inesperadas ou catastróficas, como
a morte de um bebê, ou doenças prolongadas e debilitantes, como o mal de Alzheimer,
que podem trazer grandes perdas financeiras e pessoais. Outras perdas vistas
diferentemente segundo o contexto são os abortos espontâneos e provocados e as
crianças natimortas. Estas também são perdas reais para muitos casais, mas, como em
todos estes exemplos, são as percepções individuais e coletivas que devem guiar nossa
intervenção e nosso apoio.
ESTRATÉGIAS GERAIS PARA O APOIO E AS INTERVENÇÕES CLÍNICAS
O que podemos fazer em relação à perda ambígua? Nossa meta terapêutica é
ajudar as pessoas a lidarem com uma situação difícil e persistente de forma mais
resistente, que as permita terem tanto domínio de seu próprio destino quanto possível,
mesmo enquanto a família vive com a realidade de uma situação que carece de clareza e
perspectivas de resolução.
Nossas pesquisas indicam que, ao invés de limitarmos nosso foco às estratégias
de enfrentamento ou eventos estressores específicos, é crucial avaliarmos o grau de
ambigüidade das fronteiras da família após a perda, uma vez que a ambigüidade,
somada à perda em si, gera imobilização e subseqüente disfunção, tanto em nível
individual quanto na família. As seguintes estratégias são recomendadas para terapeutas
que trabalham com todos os tipos de perdas ambíguas em famílias. Elas podem ir de
severas a leves, de curto prazo a prolongadas, de normais a catastróficas, mas em todos
os casos o critério básico é que a família não esteja certa da ausência ou presença de um
de seus membros.
Primeiro, afirme que a ambigüidade é um grande estressor para os membros da
família. As famílias relatam que o simples fato da situação ser denominada ambígua por
um profissional e de sentirem empatia em relação a seu dilema as ajuda a suportar a
falta de clareza. Colocar o rótulo da ambigüidade na situação ajuda as famílias a lidarem
com ela.
Segundo, ofereça um setting e uma estrutura para os encontros familiares, a fim
de que membros da família de várias gerações possam se sentar juntos e ouvir as
percepções uns dos outros sobre a situação e o sentido que elas têm para cada um. Se o
trabalho conjunto de resolução do problema ficar bloqueado, ajude os membros a
família a se apoiarem e colaborarem com os esforços uns dos outros mais efetivamente.
Se as percepções continuarem a diferir, ajude os membros da família a tolerarem as
visões uns dos outros. Insistir que todos os membros da família vejam a perda de forma
idêntica somente vai impedir sua resolução.
191
Terceiro, ofereça tanta informação quanto possível sobre a situação deles —
técnica bem como psicossocial. As famílias podem muitas vezes resolver seus próprios
problemas, se tiverem informações suficientes para tomarem decisões e modificarem
seu comportamento. Podemos fortalecê-las para que encontrem as informações que
precisam sobre a situação e o prognóstico de seus entes queridos. Oriente-as sobre como
reunir fragmentos de informação para esclarecer uma situação de perda. Em algumas
situações, uma atuação mais ativa pode ser necessária no sentido de pressionar
especialistas médicos ou outras autoridades para que forneçam mais informações. Em
casos de doenças fatais, as intervenções psicoeducacionais, especialmente diretrizes de
manejo, são muito úteis.
Quarto, ofereça às famílias fontes e opções de apoio em sua situação — de pares
e de profissionais. Indique números de telefone, endereços e nomes de pessoas e grupos
que tenham sofrido perdas semelhantes. Grupos coordenados por profissionais e grupos
de auto-ajuda de famílias que enfrentam situações similares de perda podem ser
valiosos. O contato e a interação social, ao invés do isolamento, são necessários para
estimular a mudança e a adaptação à perda ambígua.
Por último, e talvez o mais importante, deve-se oferecer às famílias um formato
dentro do qual elas possam trabalhar para encontrar algum sentido em sua perda, e
estimulá-las a isso. Primariamente, isso significa que devemos lhes oferecer um formato
no qual seus membros possam conversar juntos sobre como constroem o que está
ocorrendo a eles. Minha experiência tem sido de que, individualmente, os membros da
família expressam atribuições diferentes ao longo do tempo e por isso é importante que
todos ouçam as construções da realidade uns dos outros à medida que se modificam. A
congruência entre as percepções da família não vai acontecer sem processo e interação.
Também é importante que a culpabilização, alheia ou de si mesmo, seja minimizada. O
terapeuta pode ser muito útil ao oferecer um formato no qual outros membros da família
possam dar voz a percepções menos recriminantes do dilema familiar. Isto é importante
para a mudança, pois a culpa pode se transformar em um grande bloqueio contra a
recuperação em uma situação já difícil de perda. Além disso, se a situação é interpretada
como uma punição de Deus ou de um cônjuge ou pai, a resolução de uma perda
ambígua é também muito mais difícil. Sempre que os membros da família se sentirem
culpados, seja uns pelos outros, seja por uma força externa, as defesas ativadas tendem a
impedir a aceitação de novas informações e opções. As atribuições e os sentidos das
perdas incertas de entes queridos são discutidas mais efetivamente em grupo — familiar
ou de pares — do que em sessões individuais.
ESTRATÉGIAS ESPECÍFICAS: PRESENÇA FÍSICA COM AUSÊNCIA
PSICOLÓGICA
Para famílias nas quais a pessoa está emocionalmente ausente mas fisicamente
presente, as estratégias e o apoio devem ter como objetivo esclarecer em que sentido a
pessoa ainda está dentro e em que sentido ela está fora. Por exemplo, um paciente de
Alzheimer que era um excelente carpinteiro agora só consegue usar martelo e pregos
para brincar com madeira. Se os membros da família não mudarem sua percepção do
papel que a pessoa psicologicamente ausente pode desempenhar de forma realista, eles
vão ficar continuamente frustrados e desapontados, e até mesmo em perigo. Uma pessoa
que dirigia, cozinhava e administrava o dinheiro deve abandonar funções valiosas e ser
ajudada a permitir que outros as assumam. Além da perda de parte da identidade e do
desempenho de papéis, um pai ou companheiro deve agora ser visto como uma pessoa
dependente, que precisa de cuidados e supervisão. Isto requer uma reavaliação em
intervalos regulares, conforme os estágios progressivos da doença (ver Rolland, cap. 8).
A pessoa pode melhorar ou se tornar ainda mais incapacitada e infantilizada.
E importante ajudar a família a encontrar novas ou diferentes áreas de
funcionamento que possam maximizar a participação do indivíduo na vida familiar.
Pessoas de fora podem ser úteis para ajudar os membros próximos da família a fazerem
avaliações regulares, uma vez que os cuidadores podem se adaptar antes de se darem
conta de que grandes mudanças são necessárias. Os membros da família extensa
também podem auxiliar, bem como os amigos, os vizinhos e os membros da igreja.
Nossa principal tarefa como terapeutas é ampliar o círculo de apoio e intervenção de
modo a incluir a comunidade e as redes de familiares quando há uma perda ambígua.
Sozinhos, não temos o poder de operar as enormes mudanças necessárias nos papéis,
regras ou rituais destas famílias. Reuniões familiares com duas ou três gerações (mesmo
através da viva-voz) são úteis e eficientes. Eles ajudam os cuidadores sobrecarregados e,
muitas vezes, culpados a verem a realidade e ousarem as mudanças necessárias. Ou, se
o cuidador vê a realidade diária e a família extensa não, eles podem receber o apoio de
algum outro membro para convencer aqueles relutantes de que as coisas nunca vão
voltar a ser como eram e que as mudanças são necessárias.
Os cônjuges de pacientes de Alzheimer freqüentemente dizem que, quando a
família é capaz de mudar suas percepções do paciente, eles podem determinar
fronteiras, redistribuir papéis e assumir responsabilidades de uma maneira nova. Uma
esposa se torna a administradora das finanças da família e a motorista do carro; um
marido passa a ser o cozinheiro. O terapeuta pode ajudar as famílias a negociarem uma
redistribuição de papéis e responsabilidades que se encaixe em seu sistema de crenças e
nas necessidades e habilidades de cada geração de membros da família. Mesmo que os
atores não mudem, os níveis de estresse da família diminuem quando as tarefas
necessárias da vida diária são realizadas.
194
ESTRATÉGIAS: AUSÊNCIA FÍSICA COM PRESENÇA PSICOLÓGICA
Para famílias nas quais uma pessoa está fisicamente ausente, outras estratégias
são necessárias. Em primeiro lugar, se existe uma chance de que a pessoa ausente seja
encontrada ou retorne viva e a família quer fazer esta aposta, os terapeutas devem
encorajar seus membros a manterem-na presente incluindo-a continuamente nos rituais
e comemorações. Os membros da família podem comprar presentes de aniversário e nas
demais datas festivas para a pessoa desaparecida, e guardá-los para um retorno
antecipado; eles podem escrever cartas e criar fitas de áudio e vídeo das festas e
comemorações que a pessoa perdeu, para que ela possa vivenciá-las quando retornar.
Também podemos estimular os membros da família a pedirem que a comunidade
reforce sua esperança com símbolos visíveis, como a fita amarela ainda hoje usada para
os reféns ou com as vigílias anuais e cerimônias com velas usadas pelas famílias de
crianças desaparecidas e soldados DEC. Reuniões freqüentes da família são necessárias
para verificar a congruência entre as percepções de seus membros da esperança em
relação ao retorno do ente querido. E se as chances realistas de retorno se desfizerem, os
terapeutas precisam ajudar a família a se refazer do desapontamento e da perda da
esperança. Com o tempo, podem surgir discordâncias entre percepções diferentes da
realidade. É útil explicitar estas discordâncias entre os membros da família a respeito da
pessoa ausente, sob pena de se transformarem em segredos familiares. (É, na verdade, o
conflito sobre percepções diferentes que estimula a mudança.) É exatamente por isso
que a resolução da perda ambígua é mais lenta, se não impossível, quando se trabalha
com uma pessoa, ao invés de com diversas gerações de membros da família.
Se e quando a família chegar a um acordo quanto à irreversibilidade da situação
e a impossibilidade da volta da pessoa, então um ritual é necessário. O terapeuta pode
fazer sugestões, mas é a família que deve criar este ritual. Ele deve envolver não apenas
os membros imediatos da família, mas a comunidade também. Embora ele possa ser
mais difícil de organizar do que os velórios e funerais tradicionais, algum ritual precisa
ser criado para “sepultar” a perda de uma pessoa desaparecida. Isto pode ser feito por
meio de cerimônias de rememoração e símbolos como fotos ou outras representações da
pessoa ausente. Desta forma, os membros da famffia podem, ao menos simbolicamente,
obter alguma sensação de conclusão em sua perda, a despeito da ambigüidade, e a
comunidade a sua volta os ajuda a validar e recordar o que aconteceu.
AJUDANDO AS FAMÍLIAS A TOLERAREM PERDAS AMBÍGUAS
Idealmente, as perdas inevitáveis dos membros da família ao longo da vida vão
ser claras. Perdas por morte não são fáceis de suportar, e tampouco se supera
completamente a saudade da pessoa que se foi. Entretanto, existe menos preocupação do
que encontramos quando a perda é ambígua. O luto pode ser resolvido mais facilmente;
a família pode mudar e seguir em frente. Os membros da família sentem falta de seu
ente querido, mas não são tomados ou imobilizados pela perda, pois a situação é óbvia:
os fatos estão claros. Após um período de luto, eles podem tomar decisões, fazer
escolhas e mudanças mais facilmente. Existe congruência entre como a família, os
amigos e a comunidade vêem a perda; eles se reúnem em seu sofrimento como uma
validação pública daquela perda. As coisas são tristes, mas claras. Existe pouca
ambigüidade a respeito do que fazer dali por diante. A mudança é mais fácil porque a
perda é mais clara.
195
Mas, muitas vezes, não é isto o que ocorre. Existem muitas doenças crônicas,
eventos e situações nas quais os membros da família estão fisicamente presentes, mas
emocionalmente distantes. Algumas vezes, a recuperação é possível — como no vício
de drogas, produtos químicos ou trabalho. Mas quando não há recuperação em vista
(como no mal de Alzheimer), ou mesmo quando há uma remissão mas ainda existe
chance de que a doença retorne, as famílias devem aprender a viver com a ambigüidade.
A questão passa a ser como aumentar a tolerância da família à perda ambígua. Como
podemos viver funcionalmente com a incerteza? Como as fronteiras de uma família
podem ser mantidas quando não está claro quem está dentro e quem está fora do
sistema? Baseado em pesquisas e observações clinicas, este é um resumo do que estas
famílias consideram útil:
1. Os pais (ou irmãos, se os pais forem muito idosos) de uma pessoa emocionalmente
ausente devem assumir as responsabilidades em equipe. Se é um cônjuge que é afetado,
o cônjuge remanescente deve assumi-las. Todos devem aumentar sua capacidade de
controle da situação. Para os irmãos, isto pode significar que todos se envolvam com as
tarefas e responsabilidades de cuidados, não apenas as mulheres e aqueles que moram
mais perto. Para as mulheres mais velhas, socializadas de modo tradicional, isto pode
significar administrar o dinheiro, dirigir e tomar todas as decisões — mesmo que seu
marido ainda esteja vivo. As mulheres mais jovens da família podem ser úteis para
ensinar a uma mulher mais velha, especialmente se ela foi dona-de-casa em período
integral, como obter informações de consultores financeiros, agências comunitárias e
centros médicos, para capacitá-la a tomar decisões no mundo fora do lar. Os homens
mais velhos também podem aprender com os jovens da família a cozinhar e lavar roupa.
2. O cônjuge, o casal e a família devem se tornar flexíveis para poderem redistribuir os
papéis de gênero designados tradicionalmente. É necessário que o marido cozinhe e
limpe a casa se sua esposa estiver doente; é preciso que uma esposa dirija e administre o
dinheiro se seu marido ficar doente. É necessário que todos os irmãos, independente do
gênero, participem nos cuidados às perdas ambíguas em sua família. O gênero não deve
excluir ou aprisionar ninguém no papel de provedor das necessidades materiais ou
emocionais. Os membros mais jovens da família devem ser estimulados nas reuniões a
ensinarem e modelarem a flexibilidade nos papéis para os mais velhos, socializados de
forma tradicional. De modo geral, as mulheres, mais do que os homens, foram
designadas como responsáveis pelos cuidados emocionais quando os membros da
família são perdidos de forma ambígua. Esta é uma carga muito pesada para esposas,
filhas e cunhadas; os homens e os rapazes também devem ser encorajados a
participarem dos cuidados emocionais.
196
3. A família deve ser estimulada a continuar com seus rituais e
comemorações. Não deixe de festejar os aniversários só porque alguém está doente, mas
adapte estas comemorações para incluir esta pessoa. As festas noturnas podem ser
antecipadas para a tarde. Os restaurantes podem ser impossíveis para as festas
familiares, mas elas devem acontecer de qualquer maneira. O cônjuge saudável deve ser
estimulado a continuar sua participação nos rituais individuais — como ir à igreja ou à
sinagoga, ou mesmo às compras. Além disso, os eventos e rituais especiais dos irmãos
não devem ser ignorados somente porque o status de um dos filhos é ambíguo. As
crianças que estão inteiramente presentes também têm necessidades; os pais devem
atendê-las e não se preocupar somente com o filho perdido.
4. Para as famílias nas quais a ambigüidade da perda não pode ser esclarecida, estimule
o uso regular de períodos de descanso dos cuidados e o suporte da família extensa. As
férias e o contato com outras pessoas vão minimizar os sentimentos de aprisionamento e
impotência para aqueles que vivem com a perda ambígua. Uma vez que nada pode ser
feito para remediar a situação ou encerrá-la, os membros da família devem cuidar de si
mesmos tirando um tempo para o lazer diversas vezes por semana, se não
diariamente. Idealmente, deve acontecer uma reunião da rede da família e das pessoas
da comunidade para decidir como tornar isto possível para aqueles que são
rotineiramente responsáveis pela pessoa emocionalmente ausente.

ACHADOS DE PESQUISA E PERSPECTIVAS FUTURAS


Descobrimos que os cuidadores de pacientes com Alzheimer têm mais depressão
quando são menos orientados para o controle, e que são menos orientados para o
controle quando percebem um alto grau de ambigüidade de fronteiras em seu sistema
familiar. Ou seja, quando o cuidador percebe seu companheiro como emocionalmente
ausente, o controle e a solução dos problemas são bloqueados para o cuidador, que fica,
portanto, mais deprimido (Boss, Caron, Horbal, 1988; Boss, Caron, Horbal, &
Mortimer, 1990). Esta pesquisa corrobora o objetivo terapêutico de remover tanta
ambigüidade quanto possível, para que os cuidadores das famílias não fiquem
bloqueados no controle da situação. Quando algumas ambigüidades não podem ser
esclarecidas ou resolvidas, as famílias devem aprender a viver com a incerteza.
Paradoxalmente, a ambigüidade é reduzida quando há uma expectativa clara de que o
curso ou o desfecho da situação é incerto.
197
CONCLUSÃO
Conquanto existam muitas teorias sobre a perda e a separação, até este momento
não foi elaborada nenhuma teoria sobre como trabalhar com famílias quando elas não
estão certas se um de seus membros foi perdido ou não. Quando comecei a trabalhar
com as famílias de homens que desapareceram em combate no Camboja e no Vietnã, eu
pensava que este fenômeno era singular e raramente encontrado na vida familiar
cotidiana. Ao longo dos anos, entretanto, percebi que a perda ambígua é uma situação
comum que, em algum grau, ocorre a todos nós no ciclo de vida. Perder e ainda
permanecer ligado a pais e filhos; terminar relacionamentos significativos, divórcios e
novos casamentos — todos são eventos comuns nos quais as fronteiras familiares são
obscurecidas e, muitas vezes, permanecem assim durante as transições inevitáveis da
vida.
Os terapeutas veem com mais frequência os casos menos normais. Atendemos
famílias nas quais as crianças estão doentes, os idosos são frágeis, os cônjuges estão
ausentes ou os entes queridos estão em coma ou incapacitados. Nossa tarefa é orientar
as famílias no desenvolvimento da tolerância às perdas que permanecem ambíguas. Em
um processo de nomeação, ajudamos as famílias a identificarem suas fontes de estresse
e imobilidade — a ambigüidade tanto quanto o evento em si. Uma vez nomeada, a
situação pode ser administrada. Desta forma, ajudamos as famílias a se ajudarem.
Orientamo-las na direção do esclarecimento do que foi perdido e do que ainda está
presente — minimizando, assim, a ambigüidade que bloqueia o luto e a resolução da
perda. Guiamo-las em seu aprendizado gradual da tolerância aos tons cinza.
A maioria das famílias pode enfrentar a maioria das perdas se souberem o que
está acontecendo, quais são os fatos e onde a pessoa perdida está, de corpo e mente.
Quando trabalhamos com famílias que não têm respostas para estas perguntas, e não
podem consegui-las nem mesmo com todos seus esforços, podemos achar úteis as idéias
a respeito da ambigüidade de fronteiras e papéis. Este não é um modelo de doença; é um
modelo de estresse familiar, tão preventivo quanto terapêutico. Quando há uma perda
ambígua, as famílias ficam perturbadas e estressadas. Deve-se ter cuidado para não
atribuir culpa à família, sugerindo que a patologia familiar necessariamente causou suas
dificuldades com a perda.
A abordagem do manejo do estresse familiar gerado pelas perdas é relativamente
nova no campo da terapia de família. Acreditamos que esta abordagem oferece uma
base teórica para o trabalho com famílias na tarefa de resolver suas perdas. Sobreviver a
uma perda ambígua é difícil até para as famílias mais fortes. Tudo o que pudermos fazer
para proporcionar clareza e aliviar o estresse será útil para aumentar a resistência e para
a reconstrução da vida familiar.
198
O Luto em Diferentes Culturas
MONICA MCGOLDRICK, RHEA ALMEIDA,
PAULETTE MOORE HINES, ELLIOTT ROSEN,
NYDIA GARCIA-FRETO e EVELYN LEE
Conta-se uma história a respeito de um servo chinês que queria uma folga para ir
ao funeral de seu primo. Seu relutante patrão perguntou quanto tempo ele achava que
levaria para seu tio comer a tigela de arroz que ele planejava deixar ao lado do túmulo.
Sua resposta: mais ou menos o tempo que sua tia que morreu na semana passada vai
levar para sentir o aroma das flores que você colocou no túmulo dela.
Schiff, 1977, p. 9
Em toda a história, cada cultura teve suas formas de marcar o luto. Com o
tempo, e pela imigração e o contato entre diferentes grupos nos Estados Unidos, os
padrões de luto dos grupos mudaram e continuam a mudar todo o tempo. Ainda assim,
os valores e as práticas de luto ainda variam de forma profunda, de modo que os
clínicos devem ser cuidadosos com as definições de “normalidade” ao avaliar as reações
das famílias à morte (McGoldrick, 1989; McGoldrick, Hines, Garcia-Preto & Lee,
1986; McGoldrick, Pearce & Giordano, 1982).
Como todo mundo, os clínicos têm suas próprias noções a respeito do que é um
luto saudável, de sua expressão emocional e do tempo que ele deve durar. Não devemos
nunca estar muito certos de que sabemos o que é melhor ou mais apropriado para os
outros ao lidarem com seu luto. O julgamento negativo dos outros a respeito de quando
o luto é demais ou de menos pode aumentar as dificuldades dos membros da família que
sofre. A norma americana dominante é de que um certo nível moderado de expressão
emocional, e mesmo de depressão, é “necessário”, mas que isto só deve durar um
período “razoável” de tempo — talvez um ou dois anos para a morte de um parente
próximo (Wortman & Silver, 1989).
Já foi dito que Jackie Kennedy, com seu magnífico estoicismo público no
funeral televisionado de seu marido, “fez o luto retroceder 100 anos” (Schiff, 1977, p.
16). Outros poderiam dizer, ao contrário, que Jackie Kennedy ofereceu um modelo
notável de coragem e fortaleza sob circunstâncias extremamente penosas. Wortman e
Silver (1989), em sua recente revisão das pesquisas a respeito das reações à perda,
concluíram que uma porção substancial da população tende a não expressar perturbação
ou depressão direta seja a curto, seja a longo prazo após uma perda, enquanto outros
expressam uma grande perturbação tanto a curto como a longo prazos. Eles concluem
que temos muito a aprender sobre as diferentes reações das pessoas a uma perda antes
de podermos fazer generalizações a respeito de quanto luto é necessário para evitar
disfunções a longo prazo devido ao “luto não resolvido”. Eles também levantam graves
questões a respeito das difundidas premissas clínicas relativas à necessidade de fazer o
luto e “botar as emoções para fora” no período imediatamente posterior a uma perda.
Eles questionam igualmente a premissa infundada de que alguém que não tenha
“terminado” um luto dentro de dois anos é de alguma forma anormal.
200
A forma, bem como a duração considerada normal para o luto, difere
grandemente de cultura para cultura. Em certos países mediterrâneos, como a Grécia e a
Itália, por exemplo, as mulheres tradicionalmente se vestem de preto pelo resto da vida
após a morte de seus maridos. A imperadora da Áustria, cujo marido morreu no dia 1°
de abril de 1922, vestiu preto por 67 anos, até sua morte em 15 de março de 1989, e
mesmo então seu funeral foi adiado por duas semanas até o aniversário da morte dele,
quando ele foi enterrado novamente ao lado dela. Na Itália, não é incomum que os
membros da família pulem na cova quando o caixão é baixado. Na Índia, mesmo no séc.
XX, espera-se que as viúvas se atirem na pira funerária, como um sacrifício para a vida
após a morte de seus maridos.
No extremo oposto, os americanos de ascendência britânica tendem a valorizar
uma forma racional, “sem frescuras”, de experimentar a perda de membros da família.
Entre estes grupos, os funerais são realizados da forma mais prática e pragmática
possível. Como disse um amigo, explicando por que não tinha ido ao funeral de sua
irmã gêmea: “Qual seria a lógica de gastar dinheiro com uma passagem de avião para ir
até lá? Ela já estava morta”.
Os WASPs’ tendem a preferir morrer em hospitais, onde não representam um
inconveniente para suas famílias e onde sua dependência não os obriga a incorrer em
quaisquer obrigações emocionais. Nos hospitais, os cuidados são providos a partir do
princípio “racional” do pagamento por serviços. Para outros grupos étnicos, no entanto,
uma morte fora do ambiente emocional e físico da família é experimentada como uma
tragédia dupla. Grupos que valorizam a interdependência humana, como os italianos, os
gregos, os portoriquenhos e os indianos, consideram uma privação antinatural não
cuidar de um membro da família numa tal hora de necessidade.
As culturas diferem até mesmo de forma importante a respeito de expressões
públicas, em oposição às privadas, de luto. Na cultura porto-riquenha, espera-se que
particularmente as mulheres “expressem seu sofrimento dramaticamente por meio de
demonstrações de ataques e emoções incontroláveis” (Osterweis, Solomon & Green,
1984). Mas nas sociedades do sudeste asiático, embora homens e mulheres participem
de demonstrações públicas de emoção, em privado espera-se que eles se mantenham
compostos e estóicos quanto a seus sentimentos.

201
A cultura americana tem-se deslocado cada vez mais em direção ao modelo
WASP dominante de minimizar todas as expressões e rituais de enfrentamento da
morte. Pela legislação, dos costumes e dos regulamentos de trabalho e de saúde pública,
um considerável controle social é exercido sobre este processo. Os rituais funerários
foram controlados e comercializados pela indústria funerária. A licença permitida por
luto nos locais de trabalho (geralmente de um a três dias) limita severamente o
desempenho de práticas tradicionais de vários grupos culturais em relação à morte e ao
luto.
Em todas as culturas que conhecemos, as expectativas em relação a homens e
mulheres no que diz respeito à morte diferem dramaticamente (McGoldrick, Garcia-
Preto, Hines & Ice, 1989). Em muitas culturas, as mulheres conduzem o luto ou
trabalham como carpideiras profissionais. Por outro lado, em algumas culturas, elas são
dispensadas dos funerais porque ficam “perturbadas demais” para lidar com a morte.
Nos Estados Unidos, as mulheres tipicamente assumem o papel principal nas tarefas
sociais e emocionais do luto, desde a expressão do sofrimento e dos cuidados com os
doentes terminais até a atenção às necessidades dos membros sobreviventes da família,
enquanto os homens se encarregam do funeral, escolhem o caixão, pagam as taxas e, de
modo geral, lidam com as tarefas “administrativas” da morte.
É importante que os terapeutas apreciem as atitudes específicas de um grupo
étnico a respeito do luto e descubram em que os membros da família acreditam em
relação à natureza da morte, os rituais que devem cercá-la e suas expectativas para a
vida após a morte. Muitas vezes, a não realização de rituais de morte contribui para a
experiência familiar de perda não resolvida. De fato, devido à tendência de nossa
cultura a minimizar a necessidade de rituais e à predominância de ajuda profissional no
processo do morrer, os membros da família freqüentemente ignoram o sentido pessoal
que a morte tem para eles. Eles podem entender reações emocionais duradouras como
um sinal de fraqueza ou próprio de indivíduos “incultos” ou supersticiosos.
Ajudar os membros de um família a lidarem com uma perda muitas vezes
significa demonstrar respeito por sua herança cultural particular e encoraja-los
ativamente a determinarem como vão comemorar a morte de um parente querido.
Embora seja melhor, de modo geral, estimular as famílias a serem mais abertas em
relação à morte, também é crucial respeitar seus valores culturais e seu momento para
lidar com as conseqüências emocionais de uma perda. E especialmente importante fazer
diversas perguntas sobre as tradições de um grupo cultural específico:
1. Quais são os rituais prescritos para lidar com o morrer e com o corpo morto, e os
rituais para comemorar a perda?
202
2. Quais são as crenças do grupo sobre o que acontece após a morte?
3. Em que eles acreditam em relação à expressão emocional apropriada e a integração
de uma experiência de perda?
4. Quais são as regras de gênero para lidar com a morte?
5. Algumas mortes São particularmente estigmatizadas (por exemplo, suicídios) ou
traumáticas para o grupo (por exemplo, a morte de uma criança na cultura porto-
riquenha)?
Na discussão a seguir, vamos considerar seis diferentes padrões culturais para o
enfrentamento da morte e as implicações para as intervenções com famílias em cada um
deles.
FAMÍLIAS IRLANDESAS
Mônica McGoldrick
Para as famílias irlandesas, a morte geralmente é considerada a mais
significativa transição do ciclo de vida (McGoldrick, 1982), e os membros da família
farão tudo o que puderem para dar à pessoa morta “uma boa despedida” para a vida
após a morte. Eles fazem questão de ir a todos os velórios e funerais de membros da
família e amigos, não poupando despesas com bebidas e outros preparativos, mesmo
quando têm pouco dinheiro. Segundo uma piada familiar irlandesa, um homem irlandês
pede uma mulher em casamento dizendo: “Você gostaria de ser enterrada com o meu
pessoal?”. Os irlandeses pensam sobre seus próprios funerais, muitas vezes encorajando
os outros a planejarem uma boa comemoração. E eles se referem com freqüência a sua
presença após a morte: “Quero que meu cortejo saia da Casey,’ e quero estar de óculos,
para poder ver quem vai estar lá”.
Os irlandeses, assim como os negros americanos, tradicionalmente atrasavam o
enterro para que todos os membros da família tivessem tempo de assisti-lo. Estes
costumes estão indubitavelmente ligados a sua crença de que a vida neste mundo é cheia
de sofrimento e de que a morte traz a libertação para um mundo melhor na outra vida.
(Na verdade, eles acreditam que todos, exceto os santos, terão que passar algum tempo
no Purgatório expiando seus pecados a caminho do céu, mas que só os piores pecadores
não chegarão lá.) Como descreveu Shannon (1 966):
Todo irlandês estava preparado para apertar a mão da Morte, urna vez que esta
senhora tinha sido urna visitante tão freqüente no passado. Eles não tinham dificuldades
em acreditar nas doutrinas cristãs do mal e do pecado original. Estas eram as verdades
mais adequadas de sua religião, porque eram pertinentes à organização de sua própria
experiência. Não poderia ser diferente em urna sociedade cativa e superlotada, que vivia
nas esfarrapadas bordas econômicas de urna ilha onde as forças da natureza
encontravam poucas barreiras humanas. Esta era a vida na terra, dura e solitária. A
melancolia, nestas circunstâncias, era urna disposição mental comum, a morte familiar e
mesmo ansiada, e as oportunidades de reunião social o prêmio mais caro. Os costumes
sociais irlandeses acomodavam e refletiam estas necessidades. O velório irlandês, a
instituição nacional, expressava o papel integral da morte. (p. 8)
203
Ao contrário das famílias negras, que sofrem abertamente em seus funerais, os
irlandeses tendem muito mais a ficar bêbados, a contar histórias e piadas e a
considerarem o velório como uma espécie de festa, com pouca ou nenhuma expressão
direta de luto. Tradicionalmente, os velórios eram muito mais festivos do que os
casamentos (Evans, 1957; Suilleabhain, 1967). Existe um antigo ditado irlandês: “Cante
uma canção em um velório, e derrame uma lágrima quando uma criança nascer”. No
passado, os irlandeses geralmente praticavam brincadeiras de velório, “aquelas formas
bizarras de alegria com as quais os irlandeses comemoravam a morte — Iquel
envolviam beijos, casamentos de mentira e simbolismos fálicos grosseiros, bem como
‘pregar peças ao cadáver” (Greeley, 1972, p. 55). Por muitos séculos, o humor tem sido
um dos principais mecanismos de sobrevivência dos irlandeses. Tem-se especulado que
um dos elementos centrais do humor grotesco da comédia irlandesa é o resultado da
preocupação em ridicularizar a morte — não raramente reafirmando a vida por meio da
atividade sexual (Greeley, 1981).
A tradição era ter uma noite inteira de vigília com o cadáver, que não deveria ser
deixado só até o enterro. Com freqüência, isto se tornava uma desculpa para beber,
contar histórias e piadas (Delaney, 1973). Se o cadáver fosse de um homem, ele poderia
ser incluído em um jogo de cartas, poderiam ser feitos brindes em sua homenagem e até
mesmo uma bebida seria colocada em sua mão. Ele até poderia ser tirado para dançar
(Suilleabhain, 1967). Em geral, nos velórios eram servidas bebidas e fumava-se em
cachimbos de barro. Estes agora já desapareceram, mas a bebida em geral permanece,
juntamente com as piadas e as histórias. A última coisa que se poderia querer é ter um
funeral “chato”, e a melhor coisa que se poderia dizer a respeito de um bem-sucedido
velório irlandês é que o morto teria se divertido muito. “O Pat teria adorado! Pena que
ele não possa estar aqui para se divertir conosco.” Uma vez que o humor é
universalmente apreciado entre os irlandeses, as piadas e histórias também eram vistas
como uma forma adequada de comemorar a morte de uma senhora idosa da família,
embora estas práticas fossem, é claro, mais comuns com homens de uma certa idade
(Evans, 1957), e raramente ocorressem com adultos jovens ou crianças ou quando a
morte fosse muito traumática para a família.
Os irlandeses acreditavam que era importante ter uma janela aberta no momento
da morte para que o espírito pudesse escapar. Eles colocavam sal ou tabaco no corpo.
Eles também faziam questão de mandar duas pessoas avisarem a todos os vizinhos, e
também aos animais de criação e às abelhas, sobre a morte. Os irlandeses têm uma
longa história de crenças em todo o tipo de espíritos: duendes, diabretes, fadas,
hnnshees. Estes últimos eram espíritos particularmente relacionados à morte, uma bela,
etérea e pálida mulher vestida de branco, cuja aparição e “lamento” (choro ou gemidos)
eram um presságio certo de morte iminente. Embora a maioria dos irlandeses educados
negue qualquer crença em fantasmas, ainda pode haver uma certa parte de suas mentes
em que estas crenças persistam. Pode haver piadas a respeito do cadáver estar realmente
morto, e superstições quanto ao que causou a morte e o que mais deve ser feito para que
“a alma do falecido descanse em paz”. Foram, no final das contas, os irlandeses que
inventaram o Halloween, a noite na qual os mortos caminham sobre a terra e pregam
peças nos vivos. Eles com freqüência acreditam que os mortos podem nos ver e que, a
menos que certas coisas aconteçam, seus espíritos ficarão inquietos ou insatisfeitos. Eles
podem relutar muito em discutir estas crenças, e até em admiti-las para si mesmos, e
requer paciência e sensibilidade consideráveis esperar até que estejam prontos para
confiar que podem falar sobre o que sentem. Estas discussões não são fáceis para eles.
204
Clinicamente, a maior dificuldade é que os membros da família muitas vezes são
incapazes de compartilhar sua dor pela perda. Uma vez encerrado o funeral, as coisas
devem voltar ao normal. Mesmo face a uma morte iminente, os irlandeses tendem a
sofrer sozinhos e em silêncio, seu riso freqüentemente sendo uma maneira de encobrir a
angústia. Ao contrário dos grupos que preferem reunir os membros da família no
momento da morte, os irlandeses com freqüência ficam muito desconfortáveis nestas
situações, preferindo sofrer sozinhos. (Zborowski, 1968)
O terapeuta pode achar mais fácil explorar o luto não resolvido com um único
indivíduo ou, no máximo, com dois membros de uma família, ao invés de reunir toda
ela. Também pode ser útil estimular a vivência privada do luto, por meio de visitas
individuais ao túmulo ou cartas escritas para ou sobre o morto. Quando alguns membros
da família preferem a franqueza e se sentem perturbados pela tendência à mistificação
da morte por parte de outros, as diferenças entre suas reações podem ser extremamente
incômodas para ambos. A pessoa que quiser discutir uma morte pode ser vista como
mórbida, e até mesmo rotulada como louca. Um imigrante irlandês, que não tinha
podido retornar à Irlanda quando seus pais morreram, disse: “Bem, não dá para ficar
pelos cantos sentindo pena de si mesmo, não é?”. Por 10 anos ele não tinha mencionado
as mortes para ninguém, nem para a esposa.
Na terapia, é importante proteger os membros da família que querem lidar com
seus sentimentos de perda, a fim de que não intensifiquem a ansiedade nem precipitem
rejeição por parte dos outros. Entre os irlandeses, os sentimentos negativos em relação
aos mortos são especialmente difíceis de enfrentar. Um jovem cuja mãe tinha morrido
quando ele tinha 14 anos sentia-se incomodado por ela ser tratada como uma santa por
seu pai e pelas irmãs mais velhas. Suas lembranças da mãe eram de alguém bastante fria
e distante. Quando ele finalmente juntou coragem para falar com o pai sobre estas
lembranças, a resposta dele foi: “Deus e sua mãe vão lhe perdoar pelo que você está
dizendo”. Terapeuticamente, era importante dar ao filho espaço para seus sentimentos,
ao mesmo tempo em que era necessário ser empático com a necessidade do pai de
idealizar sua esposa. Foi interessante notar que, duas semanas após o filho ter tocado no
assunto de que a mãe não era uma santa, o pai começou a namorar pela primeira vez
desde que a esposa tinha morrido, cinco anos antes.
205
FAMÍLIAS INDIANAS HINDUS
Rhea Almeida
Na cultura hindu,’ a morte é apenas outra fase do ciclo de vida, trazendo
consigo um renascimento do ser.
Aquele que nasce começa a morrer. Aquele que morre começa a viver, O nascimento e
a morte são meramente portas de entrada e saída no palco deste mundo. Em realidade,
ninguém vem, ninguém se vai. Somente Brahma, ou o eterno, existe. (Shivanand, 1979,
p. 19)
Os hindus acreditam que a vida começa antes do nascimento e continua após a
morte. Eles vêem nossas vidas nesta terra como meras passagens no tempo, e acreditam
que estamos fadados a nosso destino e não temos o poder de alterá-lo. Eles acreditam
que, no momento da morte, a alma deixa o corpo e entra em outro ser para continuar a
evolução de seu karma, até finalmente alcançar, muitas vezes através de múltiplas
encarnações da pessoa em ciclos de nascimento, vida e uma nova morte, a passagem
final para o “nirvana”. Esta é a vida espiritual definitiva à qual os indianos aspiram.
Toda a vida é estruturada em torno de sacrifícios e rituais, sendo que os mais
importantes ocorrem no momento da morte. Os hindus acreditam que é importante que
a pessoa que morre tenha completado todas as suas responsabilidades mundanas, como
casar todas as filhas e netas, pagar todas as dívidas, já que o crédito não é um costume
indiano, dizer adeus aos amigos e membros da famffia e recitar o nome de Deus para
que, quando a morte chegar, a passagem seja feita suavemente.
Quando uma pessoa morre, existem muitos rituais a serem realizados. O corpo
da pessoa moribunda é colocado o mais perto possível do chão, para permitir a absorção
do espírito pela terra. Passagens do Bhagavad Gita (a Bíblia hindu) são oferecidas por
sacerdotes Brahmin ou pelos membros mais velhos da comunidade da casta superior.
Um amigo íntimo ou parente geralmente banha o corpo com sabão e coalhada para
simbolizar a vida, e o veste. O corpo é voltado para o norte, com os pés direcionados
para o sul para estar pronto para o renascimento. Para simbolizar a perda, ele é enrolado
em um pano branco que mede um quarto a menos do que o comprimento do caixão.
Nenhuma bebida ou comida são oferecidas na casa do morto por 10 ou 12 dias, após os
quais a vida familiar é retomada, embora se espere que as mulheres de mais de 25 anos
permaneçam de luto por toda a vida. A estrutura deste processo é vital para as crenças
dos poluentes e da pureza relativas ao renascimento e à transmigração final
(Radhakrisnan, 1977).
Nota de canto de página: *A Índia tem 800 milhões de habitantes, de características
raciais e religiões variadas.Os hindus, que constituem quase 80% da população (‘lhe
Luropu Yenr Book, 1989), vivem principalmente no sul e no oeste, os muçulmanos e os
sikhs estão concentrados no norte e os cristãos na costa sudoeste, juntamente com uma
pequena e antiga comunidade de judeus. A despeito desta adversidade, as idéias hindus
a respeito do karma e das castas são muito difundidas. Nos Estados Unidos, desde que,
em 1965, a lei de imigração eliminou as quotas nacionais, a população indiana subiu
para em torno de 200 mil pessoas, concentradas em grande parte em Nova York e na
Califórnia (Jensen, 1980). A maior parte dos imigrantes indianos eram profissionais
liberais das castas superiores. Agora, entretanto, o grupo imigrante básico são os
intocáveis, que, a despeito da longa tradição hindu de passividade e aceitação do próprio
destino, têm adotado novos valores e buscado uma vida melhor.
206
Quanto mais baixa for a posição do indivíduo no sistema de castas, mais rituais
são necessários para auxiliar o processo de renascimento e morte, que vai, ao final,
conduzir a pessoa à tranqüilidade da vida após a morte: a vida eterna (Toynbec, 1968).
E crucial que os ritos da morte sejam realizados conforme o prescrito. Senão, existe um
grande temor de que a pessoa renasça com o mesmo karma, ou destino de vida, e não
progrida em direção à vida espiritual desejada.
A crença indiana no karma e na transmigração da alma oferece os meios para
justificar a experiência dos indivíduos, independente do quão dolorosa e cheia de
privações a vida nesta terra possa ser (l3ardhan, 1974). C) karma é a crença de que a
vida atual é o destino, imutável. Entretanto, podemos influenciar nosso destino posterior
através das ações desta vida. A transmigração é o processo de oferecimento de
sucessivos sacrifícios por meio da morte e do renascimento, pelos quais se evolui até o
nirvana. O sacrilicio’ é essencial para separar a alma da poluição e obter a pureza do ser,
no sentido de alcançar o estado final de nirvana (Baechler, 1975). As crenças hindus
corporificam e glorificam a passividade e o sacrifício (Smith, 1989).
O conceito de tempo dos indianos é diferente do conceito dos americanos. Eles
estão voltados para o passado e para o futuro (nirvana). Os eventos e as experiências
presentes são explicados somente na medida em que se relacionam com as ações
passadas (karma) ou com a vida futura (transmigração). O destino de uma pessoa na
vida pode ser explicado por suas ações anteriores, e pode ser alterado na vida após a
morte pelas ações presentes. A vida nesta terra é parte de um contexto muito maior de
vida e morte (Stevenson, 1920).
Nota de canto de página: *O sistema de castas na Índia é um sistema antigo de
estratificação, baseado nas crenças hindus a respeito da pureza e da poluição. A pureza
esta relacionada à capacidade de ter uma vida totalmente espiritual e se abster das
“decadências” do corpo. A poluição é a crença religiosa a respeito de grupos de pessoas
que existem na extremidade de um sistema rigidamente estratificado, o qual explica o
dilema de suas vidas atuais como uma atribuição do destino (karma).
Dentro desta hierarquia de pureza e poluição, os Brahmins têm uma posição superior à
dos Intocáveis, que estão logo abaixo da casta mais inferior (Kamaraju & Ramana,
1984).
Nota de canto de página: **Q sofrimento e o sacrifício nesta vida são
autodisciplinamentos em direção a uma essência mais espiritual e elevada do ser. Por
isso o yogi hindu, cuja posição na sociedade é ainda mais alta do que a do sacerdote,
jejua por longos períodos, abstém-se de sexo e do conforto das relações humanas e
concentra toda sua energia na iluminação espiritual em preparação para o nirvana. Os
leitores interessados podem se referir aos Vedas (560 a.C.), escritos originais sagrados
dos Brahmins, para compreender as diferentes reconstruções filosóficas do karma e do
renascimento entre o Flinduísmo e o Budismo (Kane, 1941).
207
As mulheres têm experimentado historicamente a mesma falta de status e
direitos que as castas inferiores (Altekar, 1959; l3ardhan, 1982; Krishnaswamy, 1984).
A morte ou a doença de bebês do sexo feminino não é considerada uma perda tão
grande como a dos bebês do sexo masculino, especialmente nas castas mais baixas, nas
quais a economia tem um papel vital na sobrevivência (Bumilier, 1990; Lynch, 1969).
As viúvas muito jovens, tanto na tradição hindu quanto na muçulmana, são solicitadas a
se casarem novamente com o irmão do marido morto ou com outro solteiro disponível.
As viúvas com filhos são proibidas de se casarem novamente devido a considerações de
propriedade, bem como de sanções morais e religiosas (Gore, 1965). Embora as
mulheres cujos maridos morrem devam realizar diversos rituais de sacrifício para
glorificar a família,’ nenhum rito similar é imposto aos maridos ou aos outros membros
da família (Stephens, 1963). Os homens, por outro lado, freqüentemente somatizam seu
sofrimento e se tornam mais dependentes de suas mães ou outros membros da família
(Teja, Narang & Aggarwal, 1971).
O sistema familiar, uma rede de relações construída por meio da linhagem
masculina,” tem um papel importante na atenuação do sofrimento causado por uma
morte. Na Índia, a ampla rede da família extensa absorve muito da ansiedade que cerca
a doença e a morte, um fator que já provou ser de grande significado na elaboração da
doença e da morte (Blotcky, 1981). A ausência desta rede entre as famílias indianas dos
Estados Unidos cria um estresse adicional nos momentos de doença ou morte.
Na Índia, os corpos são geralmente cremados após a morte, exceto os de crianças
com menos de 5 anos de idade, que são tipicamente enterrados, pois se acredita que elas
vão certamente retornar à vida terrena para uma experiência mais completa. Isto
contraria totalmente a crença cristã de que as crianças são inocentes e,
conseqüentemente, a morte precoce automaticamente lhes garante um status celestial.
Segundo a tradição hindu, extensos ritos prescritos devem ser realizados antes de uma
cremação ou enterro. Na Índia, os cemitérios das diferentes castas são geralmente
separados, e os ritos sacrificais realizados nos locais de cremação variam segundo a
casta. A liberdade em relação às práticas funerárias de casta nos Estados Unidos é
positiva para os indianos de castas inferiores, mas pode ser problemática para os outros.
Nos Estados Unidos, as leis de saúde, os regulamentos dos hospitais e as rotinas das
casas funerárias podem interferir nas tradições hindus de assistir aos que morrem e a
suas almas. Quando os rituais têm que ser realizados em uma casa funerária, os
membros da família tendem a se sentir constrangidos por não terem a privacidade de
seus lares, e podem sentir que o corpo está sendo “corrompido” quando estranhos o
tocam. Conseqüentemente, existe um grande temor de que o “fantasma” ou a alma fique
presente por mais do que os 10-12 dias de praxe.
Nota de canto de página: *Até recentemente, as viúvas hindus praticavam um rito
funerário conhecido como sutee, no qual se queimavam vivas na pira funerária de seus
maridos, como um sacrifício para eles e para elas mesmas na vida após a norte. As
mulheres “eram de modo a verem a auto-imolação como sua única forma de fugir dos
casamentos níelizes — ou, pior, como um ato de coragem e inspiração religiosa”
(Eumiller, 1990, p. 46).
Nota de canto de página: *tipicamente todos os filhos de uma família indiana trazem
suas esposas para uma casa conjunta, que ustenta física e economicamente os irmãos
homens e suas famílias, as irmãs solteiras e as fías do lado do pai, em como os pais.
Este sistema familiar toma decisões em conjunto a respeito de como o dinheiro deve ser
ianho, gasto e investido. A educação e as viagens para o exterior são decisões
comunitárias, e todos os casamentos são arranjados por meio de contatos deste sistema
familiar extenso.
208
Na própria Índia, a tradição é morrer na cidade santa de Benares, se possível, ou
pelo menos ter suas cinzas dispersas sobre o Rio Ganges (Shivanand, 1979). Quando o
processo de espalhar as cinzas sobre um rio e outros ritos não são realizados, a alma fica
em um impasse entre este mundo e o outro. Isto cria uma tremenda sensação de fardo,
especialmente para a esposa ou mãe do morto, bem como de desonra pelos poluentes da
alma não a terem deixado tranqüila- mente, ou o que os hindus denominam “uma boa
morte”.
Quando alguém morre na Índia, não é considerado apropriado falar sobre as
próprias reações a esta morte. O sistema de castas sancionado pelas escrituras hindus,
com sua ênfase na passividade e no sacrifício, paradoxal- mente traz honra para aqueles
que mantêm suas emoções separadas dos eventos correntes (Kakar, 1978). As pessoas
de luto vestem-se de branco e não usam jóias. Os sintomas típicos demonstrados nos
momentos de luto incluem o isolamento social, o jejum, a somatização ou a
preocupação histérica com algum aspecto da pessoa morta.
Ao abordarmos a perda, devem ser colhidas informações a respeito dos costumes
e rituais de luto tradicionais da família (Tseng & McDermott, 1985). Possibilitar o
processo destes rituais dentro das limitações das práticas hospitalares, regulamentos de
saúde e casas funerárias é necessário. Muitos costumes podem ser adaptados e ainda
cumpridos com aceitação cultural. Devido às expectativas tradicionais de que as
mulheres se sacrifiquem por seus maridos ou filhos, elas correm um risco maior de
suicídio após uma morte. Esta é uma prática que deve ser contestada terapeuticamente,
embora se compreenda a premissa do sacrifício e do nirvana. Os homens têm menos
tendência a carregarem fardos emocionais, em grande parte devido ao grande valor
conferido à vida masculina e à glorificação das mulheres através do sacrifício nas
escrituras hindus. As mulheres que cometem suicídio trazem alívio ou honra para suas
famílias, enquanto que os homens geralmente causam dor e desonra. Este padrão
indiano de “cindir” os eventos das emoções ou da consciência social deve ser
confrontado dentro da tradição cultural de tolerância e passividade. Uma vez que o
sacrifício e a glorificação da família são tarefas importantes que cercam uma morte, os
rituais construídos em torno de oferendas de comida, dinheiro, preces, jejuns e cânticos,
ou visitas em grupo ao templo para rezar, são úteis para impulsionar a alma e trazer
honra à família.
209
A MORTE NA CULTURA AFRO-AMERICANA
Paulette Moore Hines
A morte não é uma estranha para o afro-americano médio, independente de sua
idade. Por exemplo, em 1983, em minha própria família, houve cinco mortes em um
período de três meses: meu avô, que morreu de câncer aos 66 anos; dois tios, ambos
com menos de 60 anos, que morreram de derrames relacionados ao estresse e à
hipertensão; um primo de 32 anos que morreu de doença renal e minha sobrinha de 17,
que provavelmente morreu devido à negligência do hospital durante seu tratamento de
lúpus. A experiência de minha família não é rara entre os afro-americanos, embora o
grande número de mortes com um intervalo tão curto possa parecer extraordinário. A
morte tem sido uma realidade diária desde o tempo em que os africanos eram trazidos
de sua terra nativa acorrentados. Muitos morriam vítimas da fome, da sufocação,
doenças, açoitamentos, mutilações e assassinatos diretos, bem como da perda da
vontade de viver. A experiência de escravidão que se seguia não era menos pavorosa.
Os linchamentos, os fuzilamentos e a morte devido às condições da escravidão eram
comuns.
Desde a época da escravidão, a taxa de morte entre os afro-americanos continua
a exceder a de outros grupos étnicos e raciais. Em 1986, a taxa de mortalidade infantil
dos negros (18,0 por 1000) era mais do que duas vezes maior do que a dos brancos (8,9
por 1000). Para aqueles que sobrevivem ao nascimento, as estimativas da expectativa de
vida média são de 65,4 e 73,8 anos para homens e mulheres afro-americanos
(comparado com 72,1 e 78,8 para homens e mulheres brancos). As principais causas de
morte entre os afro-americanos, segundo os dados de 1986, são: doenças cardíacas,
câncer, derrame, acidentes, homicídios e intervenções legais e diabetes (Biireau de
Censo dos FUA, 1989). Na verdade, os afro-americanos têm a taxa mais alta de morte
por ferimentos e causas não relacionadas a doenças de todos os grupos. De 1970 a 1986,
os homens negros tinham sete vezes mais chances de morrer por homicídio do que os
brancos. Entretanto, o suicídio, no sentido tradicional, não é um fenômeno de grandes
números entre os afro-americanos, embora sua incidência esteja crescendo. Também
existe um número desproporcional de afro-americanos (25,2%) entre as mortes
relacionadas à AIDS, dada a sua representação entre a população geral (11,2%); 52,8%
das crianças que morreram de AIDS eram negras, assim como 54,5% das mulheres
(Bureaii de Censo dos EUA, 1989). Estas desigualdades de saúde e morbidez têm sido
perpetuadas por uma combinação de fatores fisiológicos, culturais e sociais, incluindo
maus cuidados de saúde, informações inadequadas, déficits nutricionais, empregos
perigosos, pobreza e discriminação racial.
E desnecessário dizer que as famílias muitas vezes têm que lidar com a perda
súbita e traumática de parentes sem o benefício do luto antecipado. O fato de que, para
muitas pessoas, a famifia extensa é a fonte primária de apoio e proteção contra a
avaliação negativa de uma sociedade que ainda rejeita pessoas de cor intensifica as
ramificações usuais da morte. Existem numerosos familiares cuja morte pode
representar uma perda crítica de apoio emocional.
210
Nas famílias pobres, em particular, a sobrevivência diária pode ser ameaçada pela perda
da assistência concreta em termos de finanças, cuidado com as crianças, moradia, etc.
As crenças atuais sobre a morte estão claramente ligadas à influência combinada
da filosofia africana e do cristianismo. Wíredu (1980) e Opoku (1989) sublinham a
crença africana de que a morte não é o fim, mas a inauguração da vida sob outra forma.
A morte não é vista como uma intromissão e não rouba o sentido da vida, mas sim é
uma progressão. Uma “boa morte” é aquela na qual a pessoa morre de causas
relacionadas à idade avançada; uma “morte ruim” é causada pela violência ou por uma
“doença suja” (Opoku, 1989). A morte pode resultar não somente de causas físicas, mas
ser desejada por um indivíduo; as duas não são necessariamente mutuamente
exclusivas. Os afro-americanos geralmente acreditam que as mortes ocorrem em
conjunção com os nascimentos, e que as pessoas muitas vezes resistem a ela até que
certos eventos significativos antecipados (por exemplo, aniversários, datas festivas)
tenham passado, embora a maioria não esteja ciente das bases destas crenças no mito
africano (Asante).
O cristianismo reforçou várias crenças africanas tradicionais. Mesmo quando
uma morte ocorre por meios trágicos, ela é vista como o desejo de Deus e um passo
necessário para se alcançar uma nova vida — livre de dor, sofrimento e tristeza. A
morte não deve ser temida; os problemas e as alegrias da vida não são sem sentido, mas
se relacionam com nossa próxima existência. Por isso, acredita-se que devemos viver
nossas vidas em preparação para a morte. Para alguns, isso se traduz em uma aderência
estrita aos mandamentos bíblicos.
Os temas relacionados à dor, ao sofrimento e à morte são muito difundidos na
literatura, na poesia e na música afro-americana. A letra de um spiritual’ afro-
americano, “Antes de ser escravo, vou estar enterrado em minha cova e vou para casa,
para o meu Senhor, e serei livre”, comunica a noção comum de que “uma vida pela qual
não vale a pena morrer não vale a pena ser vivida”.
Rituais e Tradições
Os afro-americanos, como os irlandeses, dão grande importância a “partir com
estilo”, independente de custos. A despesa com as roupas do enterro em outros
ornamentos para o funeral pode ser a última oportunidade que a família tem de fazer
com que a pessoa morta tenha alguma dignidade ou status, tantas vezes negados aos
afro-americanos em vida (Harrington, 1963). A importância de proporcionar “o melhor”
para um parente morto é evidenciada pelo fato de que a indústria funerária é uma das
maiores das comunidades afro-americanas. Em contraste com a população judaica, os
afro-americanos dão uma ênfase maior ao comparecimento a um funeral do que talvez a
qualquer outra reunião familiar. Uma vez que o comparecimento simboliza o respeito
pelo morto e sua família, costuma haver muita discussão sobre quem apareceu nos
funerais, e guarda-se mágoa por muitos anos dos familiares e amigos ausentes. Não
estar presente é visto como um desprezo à importância de “manter-se unido”, e os
parentes ausentes ficam vulneráveis a acusações de terem esquecido suas raízes.
Nota de canto de página: *N. de 1. Canto religioso dos negros do sul dos listados
Unidos.
211
A comunidade pode ser avisada de uma morte pela colocação de uma coroa na
porta da casa da pessoa morta. Em grande parte devido a razões econômicas, que
tornam difícil para os membros da família se ausentarem do trabalho e fazer planos de
viagem, os funerais tipicamente acontecem de três a sete dias após a morte. As
cremações não são proibidas, mas raramente são realizadas. No nordeste do país, os
velórios são geralmente conduzidos em uma igreja ou em um salão funerário na noite
anterior ao enterro. No sul, o ritual predominante da “vigília” envolve a família e os
amigos trazerem comida ou dinheiro e visitarem a famffia desde o momento da morte
até o funeral. Esta é uma época de emoções confusas, pois os membros da família que
se mudaram para longe retornam e reatam suas ligações. Ao contrário dos irlandeses, os
afro-americanos não servem álcool; uma atmosfera festiva seria impensável.
As práticas afro-americanas tradicionais fazem um contraste direto com as
prescrições altamente ritualizadas das culturas judaica e hindu, e a pouco emotiva
tradição WASF “sem frescura”. Não existem proibições em relação às expressões
públicas de dor, particularmente por mulheres e crianças. Estas não são excluídas dos
rituais que cercam a morte, a menos que assim o prefiram. No funeral, a encomendação
e a música são tipicamente usados para provocar a liberação das emoções. Spirituals
emocionantes são cantados a respeito da dor e do sofrimento desta vida e da alegria de
reunir-se com os parentes mortos e atingir a paz final. A prática de abrir o caixão
durante o funeral para uma última visão do morto aumenta a intensidade emocional da
experiência.
Considerações Terapêuticas
E improvável que a família afro-americana média apareça no consultório de um
terapeuta de família por sua própria vontade com uma queixa diretamente ligada a uma
morte iminente ou já ocorrida. O valor cultural é o de “ser forte”, o que muitas vezes se
traduz em lidar com a adversidade sem lágrimas e sem diminuir as atividades
cotidianas. Entretanto, quando ocorre uma morte, o choro e a expressão aberta do
sofrimento são estimulados e considerados úteis, se não essenciais, a fim de se
superarem os efeitos debilitantes potenciais do luto. Ao mesmo tempo, reações
prolongadas de tristeza depois do funeral não são toleradas com facilidade. Espera-se
que você continue a fazer o luto de sua perda, mas que também reassuma suas funções
usuais em casa e no trabalho algumas semanas após o funeral. O valor atribuído à
expressão emocional aberta, as atitudes culturais tradicionais em relação à morte, a
demonstração imediata de apoio da família e da comunidade e a forte espiritualidade
facilitam a resolução do luto.
Talvez em face do sofrimento e da morte onipresentes, esta população tenha
aprendido a celebrar a vida a fim de sobreviver, a antecipar e aceitar a morte e, ainda,
necessariamente, a se aferrar a sonhos de uma vida melhor. Um extrato de uma sessão
com a família de um paciente com câncer terminal de 32 anos ilustra os recursos e a
resistência que têm sido características de tantos afro-americanos face à tragédia:
212
TERAPEUTA Como você fala com sua mãe sobre isso?
CLIENTE “Bem, eu tenho o mal de Hodgkin. O que vamos fazer a respeito?” Minha
mãe tem muita certeza de que eu posso viver uma vida bastante normal ou ficar bom,
mas aí existe sempre a possibilidade — ambos estamos conscientes de que eu posso
morrer. Isto não é mantido em segredo nem varrido para baixo do tapete.
TERAPEUTA E se acontecer de você morrer? O que ela diz?
CLIENTE Bem, ela fica me dizendo que não seria a única mãe que perdeu um filho. Ela
ia continuar vivendo. Seria a coisa mais difícil que ela já teve que enfrentar ... mas é a
vida ... e eu digo para ela: “Se eu morrer, você sabe que eu não quero que o meu caixão
seja aberto”. Logo que descobrimos a doença, ela olhou para mim, e estava tentando
não chorar. Ela estava sendo forte, e nós fomos para casa e decidimos: “Muito bem, o
que é isso? O que vamos fazer a respeito disso?”. Eu disse para ela: “Você tem 24 horas
para chorar e gritar e sentir pena de mim e tudo mais. Depois, vamos partir para a ação”.
E nós choramos um pouco mais.
TERAPEUTA O que era “partir para a ação”? O que vocês fizeram?
CLIENTE Começamos pelo médico — a quimioterapia. Houve mais alguns momentos
ruins. Minha religião é realmente útil. O processo de morrer não é assustador. E o
sofrimento, o hospital, a deterioração e tudo aquilo. Eu penso com freqüência na minha
filha. Minhas preces são de vê-la crescer.
Alguns, entretanto, têm dificuldade para enfrentar as conseqüências de uma
morte. A crença de que se deve ser forte às vezes se traduz em um bloqueio prematuro
dos sentimentos por medo de ser dominado por eles e ficar incapaz de funcionar. Os
membros da família podem estimular a contenção ao invés da liberação dos sentimentos
reprimidos. Esta era a situação de uma cliente que veio me procurar duas semanas após
a morte de seu marido. Seus filhos adultos ficavam assustados sempre que ela chorava
abertamente, e achavam que ela deveria ser capaz de desempenhar suas atividades de
sempre. “Eles não entendem realmente como é, e não estão acostumados a me ver
chorar e não conseguir enfrentar as coisas.” Ela se sentia braba e sozinha, e não estava
disposta a aceitar os esforços de seus filhos para apoiá-la. Optei por pedir que eles
esclarecessem suas preocupações e sugeri à famffia que a cliente estava sendo muito
forte ao enfrentar sua perda ao invés de fugir dela. Orienta-los a dar a minha cliente a
permissão para se recarregar física e emocionalmente, permitindo que ela se retraísse
temporariamente, foi uma intervenção simples, porém valiosa. Quando a mãe foi capaz
de ver que seus filhos estavam tentando protegê-la e que compartilhavam de sua
sensação de perda, ela parou de evitá-los, sentiu-se menos sozinha em seu luto e
também passou a fazer um melhor uso de sua rede de pares.
213
A morte de uma pessoa central para a familia nuclear ou extensa pode demandar
uma reorganização da estrutura familiar. Um dos pontos fortes das famílias afro-
americanas é sua capacidade de exercitar uma grande flexibilidade de papéis e de trocar
apoio emocional e concreto (Hines & Boyd-Franklin, 1982). A adaptação a uma morte
pode exigir uma mudança de casa, a fim de que as responsabilidades pelas crianças ou
idosos possam ser assumidas por outros ou que as sobrecargas financeiras criadas pela
morte possam ser diminuídas.
Pode haver uma variação significativa entre os recursos e estilos de vida dos
membros da família dentro da rede da família extensa. Os membros que tendem a
assumir todas as responsabilidades e aqueles que alcançaram um status econômico
médio têm maiores chances de se sentirem obrigados e excessivamente estressados
quando morre alguém de grande significado emocional e prático para o funcionamento
da família. Uma das intervenções mais úteis que um terapeuta de família pode fazer é
auxiliar estas pessoas a incluírem ativamente suas necessidades pessoais nas decisões a
respeito de como preencher o vácuo criado por uma morte Isto pode ser realizado com
mais facilidade se o terapeuta verbalizar uma apreciação genuína do valor atribuído a
“ajudar a família”, e estimular aqueles que têm um padrão de sobrecarga de atividades a
pesarem as conseqüências a longo prazo para seus outros significativos se lhes forem
negadas as oportunidades para desenvolver a força e a criatividade de seus
antepassados. Em alguns casos, isso pode significar que um cliente assuma menos ou
outras responsabilidades, ao contrário de recusá-las, se os recursos de outros membros
da família o impedirem de ajudar da maneira ideal. Também pode ser útil oferecer
orientação sobre como definir limites sem se isolar e perder os benefícios da
proximidade familiar.
Em caso de mortes prematuras e evitáveis, as famílias têm tanta tendência a se
debaterem entre sentimentos de raiva, ansiedade e impotência quanto de depressão. Esta
situação é ressaltada nos seguintes casos ilustrativos:
Um casal pediu urna consulta porque a sua filha de 15 anos, Marie, descrita corno
irresponsável em casa e sem disposição de se aplicar consistentemente aos estudos.
Nove meses antes, o irmão mais velho de Marie, Michael, superdotado academicamente
e nos esportes, tinha se matado com um tiro. Os meses anteriores a esta morte foram de
uma terrível perturbação para a família, pois o hábito de Michael de usar drogas tinha
ultrapassado sua habilidade de controlá—lo.
A mãe de Michael afirmou que a família tinha “aceitado a morte dele desde o momento
em que aconteceu. Não é que ele quisesse morrer — ele só não queria viver. Michael
não era o tipo de rapaz que conseguia machucar outras pessoas e dormir à noite. Pelo
menos sabemos que ele está em paz”. Marie falou de sua certeza de que “Michael tinha
morrido muito antes de puxar o gatilho”.
214
Um dos objetivos do tratamento neste caso era ajudar a família a compreender como a
morte de Michael tinha aumentado a ansiedade dos pais em relação a criar os outros
filhos em um ambiente cada vez menos seguro. Cada vez que Marie queria sair, seus
pais impunham limites exageradamente estritos e faziam longos sermões, até ela sair
batendo a porta. Com o passar do tempo, Marie tornou-se abertamente desafiadora em
relação a ajudar nas tarefas da casa.
Minha hipótese foi de que a recusa de Marie em cumprir com suas
responsabilidades em casa era sua forma de reduzir a ansiedade dos pais, forçando-os a
colocá-la de castigo em casa como punição. Estas restrições diminuíam os temores dela
de sucumbir a pressões de seus pares. Redefini a desobediência de Marie em casa como
sua maneira singular e equivocada de ser responsável e carinhosa, uma forma dela
continuar fazendo parte de sua turma e, ao mesmo tempo, manter a lealdade aos pais.
Esta redefinição permitiu que os pais discutissem suas muitas ansiedades e como elas
tinham começado a colorir a vida em família. Não tentei convencê-los de que seus
temores eram infundados, mas, ao contrário, ajudei-os a começar a pensar em formas
alternativas de responder aos perigos que a morte de seu filho os tinha feito conhecer.
Existem diversas outras questões a ter em mente ao se trabalhar com
famílias afro-americanas em torno de questões de morte e luto. Não podemos fazer
suposições a respeito do sentido de uma morte simplesmente a partir da proximidade
das relações; um relacionamento com um membro da família extensa pode ter a mesma
ou maior significação para um indivíduo do que com um membro da família nuclear.
Em segundo lugar, é mais provável que os membros da família se deparem com
conflitos de relacionamentos não resolvidos em casos em que a morte não foi
antecipada do que quando ela era esperada. As famílias podem se beneficiar de
discussões abertas sobre as questões não resolvidas, a despeito de sua impossibilidade
de mudar sua história com o indivíduo morto. A comunicação aberta entre os membros
da família pode ser particularmente útil quando os “segredos” (por exemplo,
paternidade e uso de drogas) revelados por ocasião de uma morte evocam confusão ou
conflito entre os membros sobreviventes da família (Boyd-Franklin, 1989). Os
terapeutas também podem ser úteis criando um fórum no qual OS membros da família
possam ventilar seus sentimentos a respeito das circunstâncias que cercaram uma morte
e achar maneiras apropriadas de canalizar sua raiva sem direcioná-la destrutivamente
uns para os outros ou para si mesmos.
FAMÍLIAS PORTO-RIQUENHAS
Nydia Garcia-Preto
Os hispânicos vêem a morte como parte da vida, um evento inevitável. Sua
preferência, que é, talvez, universal, é morrer em uma idade avançada, em casa,
cercados pelos amigos e pela família, após terem visto seus filhos e netos crescerem.
Qualquer outra morte, como uma morte súbita ou traumática, ou que aconteça em um
estágio prematuro do ciclo da vida, é muito mais difícil de aceitar. O alto valor atribuído
às crianças torna a morte de um bebê particularmente difícil de integrar para os
hispânicos. Para ajudá-los a lidar com esta mais trágica das mortes, os porto-riquenhos
costumavam vestir a criança de branco, pintar seu rosto para fazê-la parecer com um
anjo e colocar flores dentro e fora do caixão. Músicas eram cantadas e tocadas para
saudar a ida do bebê para o céu.
215
Também é extremamente doloroso quando os pais morrem jovens, deixando
filhos que ainda precisam de cuidados. Na maioria dos casos, as famílias extensas porto-
riquenhas assumem a responsabilidade pela criação das crianças, especialmente quando
a mãe morre. Como os homens hispânicos não são treinados para serem cuidadores, as
crianças geralmente ficam com parentes até que o pai se case de novo, e muitas vezes
nunca voltam a viver com ele. Quando é o pai que morre, a mãe também depende dos
parentes para ajudá-la a cuidar dos filhos, já que muitas vezes tem que sair de casa para
trabalhar.
Devido à ênfase que os hispânicos dão à interdependência, a perda de um
membro da família é vivenciada como uma ameaça especialmente profunda ao futuro
desta, o que com freqüência detona reações de extrema ansiedade. Talvez esta seja uma
das razões por que as doenças são tão temidas dentro das culturas hispânicas. Os porto-
riquenhos, por exemplo, esperam até não poderem mais funcionar antes de buscarem
ajuda profissional, em parte porque têm medo dos hospitais, onde esperam ser
diagnosticados com alguma doença fatal. Ao invés de procurar cuidados médicos,
homens e mulheres se queixam de dor, e muitos preferem visitar curandeiros populares
e pedir orientação para a família e os amigos.
Geralmente, os doentes são cuidados em casa, tipicamente pelas mulheres, e só
são hospitalizados quando não há outra alternativa. Isto reforça a crença de que você só
vai para o hospital como um último recurso — para morrer. Quando isto acontece, os
membros da família tendem a acampar no hospital. Eles rezam, trazem comidas e
pedem que um padre ou pastor venha visitá-los quando a situação se torna crítica. Se a
morte é esperada, os parentes são chamados com urgência, especialmente quando estão
muito longe. Os hispânicos dão grande valor a ver um parente que está morrendo,
resolver quaisquer conflitos que possam existir e dar um último adeus. No momento da
morte, no velório e durante o enterro, espera-se que tanto homens como mulheres
expressem suas emoções intensamente; as mulheres, em particular, por vezes perdem o
controle e mostram uma histeria diagnosticada como “ataques”. Mas, após o enterro, a
expectativa é de que as pessoas aceitem a morte e tentem ser fortes.
A maioria dos hispânicos é católica romana e acredita na vida eterna. Eles
sustentam que o espírito da pessoa morta precisa ser tranqüilizado pelos vivos para ter
paz na vida após a morte. Os porto-riquenhos, por exemplo, tendem a perceber a vida
eterna como um lugar para onde os entes queridos vão descansar, e de onde podem
cuidar de nós. Para muitos, ela também é definida como o mundo espiritual, um nível de
existência que algumas pessoas podem experimentar enquanto vivas e que influencia
nossa vida diária. Isto é reforçado por uma crença muito difundida de que os espíritos
passam por uma evolução, começando em um nível de ignorância e indo em direção a
um estado de perfeição moral. Para atingir este nível superior de “luz e entendimento”,
os espíritos devem ser capazes de se desapegarem da terra, o que pode ser difícil,
particularmente quando uma pessoa morre prematuramente, sem resolver conflitos
familiares ou pagar dívidas antigas.
Após uma morte, espera-se que os amigos visitem e tragam comida para a
família da pessoa morta, junto com a qual rezam para que seu espírito encontre
descanso e acendem velas para iluminar seu caminho para a paz eterna. Os porto-
riquenhos católicos se reúnem por pelo menos sete dias para rezar o terço. As visitas ao
túmulo e as missas na igreja durante o ano seguinte à morte também são momentos em
que os membros da família se reúnem para consolar uns aos outros e rezar pelo espírito
da pessoa morta. Dentro desta cultura, a comunicação com OS mortos não é percebida
como impossível. Muitos porto-riquenhos visitam espíritas ou médiuns quando querem
resolver questões com os mortos. Isto acontece especialmente quando eles sonham que
a pessoa morta está retornando para dizer adeus ou entregar uma mensagem especial.
Isto é geralmente percebido como um sinal de que o espírito está inquieto e deve se
comunicar antes de deixar o mundo material.
Não poder estar presente durante a doença ou morte de alguém próximo torna a
perda ainda mais difícil de aceitar para algumas pessoas, e prolonga o processo de luto.
Esta é uma experiência comum para os hispânicos dos Estados Unidos, particularmente
quando a morte acontece em seu país de origem. Eles podem não conseguir voltar por
razões políticas ou financeiras, ou podem chegar tarde, simplesmente devido à distância
a ser viajada. Descobri que a perda não resolvida é um tema latente comum entre os
hispânicos em terapia, independente de suas queixas iniciais. O seguinte caso é um
exemplo de como a impossibilidade da cliente de dizer adeus para sua mãe no momento
de sua morte, bem como sua decisão de controlar seus sentimentos no funeral,
contribuíram para a depressão pela qual ela buscou terapia. As intervenções levaram em
consideração padrões culturais e utilizaram rituais para ajudar a libertar emoções e
impulsionar o processo de luto.
Urna mulher porto-riquenha de 25 anos foi encaminhada para mim por um de seus
professores da universidade. Ela estava deprimida e tinha dificuldade de concentração.
Ela me contou que sua mãe tinha morrido súbita e inesperadamente três meses antes.
Um mês depois, ela foi diagnosticada com artrite reurnatóide. Ela sentia como se seu
mundo estivesse desmoronando.
Ela soube da doença da mãe quando o irmão ligou para avisar que ela estava no
hospital. Durante as quatro horas da viagem até lá, ela rezou para poder ver a mãe viva.
Ao chegar, ela descobriu que, na verdade, sua mãe tinha morrido de ataque cardíaco
antes do telefonema, mas os irmãos ficaram com medo de sua reação emocional e
tinham esperado para lhe dizer pessoalmente. Ela ficou furiosa, sentindo-se excluída e
infantilizada pela decisão dos irmãos de conduzir as coisas daquela maneira. Ela
também sentia raiva por não ter tido a chance de dar adeus à mãe; ao mesmo tempo,
sentia-se culpada por não ter estado lá. No funeral, ela tinha mantido suas emoções sob
controle, em um esforço para mostrar à família que era capaz de se controlar.
217
Na terapia, pedi que ela trouxesse fotos da mãe e de outros membros da família,
e que descrevesse como tinha ficado sabendo da morte da mãe e como tinha sido o
funeral. Tudo isto precipitou emoções muito fortes. Também pedi que ela escrevesse
uma carta para a mãe dizendo tudo o que queria lhe dizer, e que então visitasse seu
túmulo e lesse a carta em voz alta. Ela descreveu esta experiência como carregada de
emoção e muito útil. posteriormente, uma sessão com sua irmã e um dos irmãos ajudou
a promover o apoio emocional entre eles. Eles falaram de sua perda e da luta de minha
cliente contra sua própria doença. Sentindo-se mais em paz consigo mesma, ela fez
planos de se mudar para mais perto da família, mas viver de forma independente. Desta
maneira, ela expressava a importância da conexão familiar e cultural enquanto, ao
mesmo tempo, fazia um esforço para ajudar seus irmãos a modificarem sua visão
culturalmente tendenciosa dela como frágil e necessitada de proteção.
FAMÍLIAS JUDIAS
Elliott Rosen
Nas famílias judias, existem quatro padrões primários de crença e
comportamento que são essenciais para o funcionamento e podem nos ajudar a
compreender as maneiras como estas famílias respondem à doença, à perda e à morte.
Eles são: (1) a família como a fonte central de apoio e ligação emocional; (2) o
sofrimento como um valor comum à família e à comunidade; (3) a proeminência das
realizações intelectuais e do sucesso financeiro; e (4) o valor especial dado à expressão
verbal dos sentimentos (Herz & Rosen, 1982).
Conquanto os judeus, como muitos outros grupos étnicos, tenham se juntado à
massa da sociedade americana homogeneizada nas três últimas gerações, fica claro que
estas crenças e padrões de comportamento persistem, a despeito dos casamentos mistos
e da tendência à assimilação. Estes padrões, arraigados na vida provinciana e protegida
do gueto do leste europeu do séc. XIX e reforçados pela experiência de imigração do
início do séc. XX, persistem em formas sutis e muitas vezes mais sofisticadas na vida
contemporânea dos judeus americanos. De certo modo, estes padrões — especialmente
os de sucesso e expressão dos sentimentos — também se integraram à cultura americana
em geral, especialmente nas costas leste e oeste, mas eles ainda podem ser identificados
como fundamentalmente judaicos e mantêm sua influência poderosa nas famílias judias.
A Centralidade da Família
Para os judeus, a ligação emocional com a família é valorizada e respeitada
(Zuk, 1978). Este valor ultrapassa a família nuclear e inclui os membros da família
extensa, bem como as gerações anteriores. Os judeus Ashkenazic, descendentes dos
habitantes do leste europeu, que constituem a maior parte dos judeus americanos, dão a
seus filhos o nome de parentes falecidos. A maioria das famílias judias, independente de
seu nível de comprometimento religioso, observa uma data anual de recordação dos que
já morreram e, entre os mais afluentes, considera um grande sinal de respeito fazer
contribuições financeiras substanciais para honrar a memória dos mortos. Em grande
parte, as instituições judaicas, tanto nos Estados Unidos como no resto do mundo,
sobrevivem devido à grandeza filantrópica dos judeus que homenageiam seus parentes
mortos. Esta noção de família se amplia ainda mais para incluir, literal e
simbolicamente, toda a comunidade judaica. O siogan da maior organização filantrópica
da comunidade judaica americana, a LInitL’d Jewish Appeal, tem sido por muito tempo
“Nós Somos Um”, e a maioria dos judeus compreende o sentido desta frase. Embora o
processo de elaboração de uma perda, é claro, só possa ter lugar na privacidade da
família, o luto formal só pode ser conduzido dentro da comunidade, na presença de um
minyan, 011 comunidade de culto de 10 adultos. Nas comunidades judaicas mais
tradicionais, o minyan é formado por dez homens.
218
Para os judeus, o calendário religioso e a observação dos rituais estão mais
ligados ao lar do que à sinagoga. Embora o culto em comum e militas outras atividades
possam acontecer na sinagoga, os ritos religiosos mais importantes são conduzidos em
casa e estão intrinsecamente ligados à vida da família, exigindo sua participação. A
observação semanal do Sabhath, a celebração do Hanukkah (para o qual não existe uma
cerimônia especial na sinagoga) e o seder da Páscoa (que é a principal reunião familiar
do ano religioso) são alguns exemplos.
Para as famílias judias, existem eventos mais importantes no ciclo da vida do
que um funeral. O comparecimento ao enterro é de praxe, embora se espere que os
membros da família e da comunidade façam uma visita de shiva (isto é, condolências) à
família enlutada, preferencialmente no momento em que a comunidade se reúne na casa
para uma cerimônia que homenageia o morto. Mas eventos como as circuncisões rituais
(hrit ou bris), bar/hat mitzvah e casamentos são considerados passagens mais
significativas na vida da família do que os funerais, e o comparecimento nestas horas é
mais valorizado. Isto, é claro, é congruente com a natureza voltada para as crianças da
família judia; os eventos do ciclo da vida que celebram a passagem para a vida adulta
são altamente considerados, e a não-participação dos membros da família neles
raramente é esquecida.
O fato de que uma crença forte na vida após a morte está ausente na maioria das
famílias judias contemporâneas pode oferecer uma explicação adicional de por que os
funerais não são considerados eventos rituais centrais.
O Sofrimento como uni Valor Comum
Entre as expressões iídiches mais comuns trazidas para este país pelos
imigrantes do leste europeu estava “shver zu zeiner Yid”, ou “ duro ser judeu”.
219
Na sociedade judaico-americana contemporânea esta máxima caiu em desuso, mas a
crença subjacente permanece operante. O sofrimento é uma dimensão fundamental da
vida e tem uma função social poderosa, mas, ao contrário dos irlandeses, os judeus não
vêem o mundo como um lugar cruel, e sim como moralmente neutro. A história bíblica
do Jardim do Eden, que forma o âmago da crença cristã sobre a natureza da humanidade
como corrompida pelo pecado, é interpretada na filosofia judaica como a fonte do livre
arbítrio e da responsabilidade moral. Mas a noção de destino (beshert, em iídiche)
sempre foi um valor compartilhado pelos judeus. As coisas boas que acontecem a nós
podem ser heshert, assim como as coisas ruins, e, portanto, a vida pode ser vista como
caprichosa e imprevisível, mas não como inerentemente má. Há uma geração, não era
incomum uma mãe judia advertir seus filhos para que não cantassem de manhã porque
estariam chorando à noite.
219
Mas, para os judeus, a dor da vida não é para ser suportada estoicamente.
Vituperar contra a injustiça do mundo — e mesmo contra o próprio Deus - é parte do
folclore judaico — aceitável, e até mesmo esperado. Por isso, aproveitar a vida por si só
pode ser difícil, e divertir-se junto não é uma coisa que acontece com facilidade nas
famílias judias. O sofrimento é tradicionalmente um fenômeno que tem aproximado os
judeus e dado a eles um sentido de ligação emocional; a noção de que sofremos por
nossos pecados, uma crença prevalente em muitas outras culturas, não é comum nas
famílias judias. Ao invés disso, sofremos porque o mundo não é um lugar perfeito e,
embora a vida possa ser muitas vezes difícil, “a pior vida é melhor do que a melhor
morte”. Ao contrário de muitas outras culturas, entre os judeus as perguntas sobre o que
acontece após a morte não são de importância central. Seria estranho hoje em dia ouvir
uma encomendação que aludisse mais do que obliquamente ao mundo do além, ou que
prometesse uma reunião com os entes queridos que já morreram. A vida presente é o
foco de preocupação. Isto pode explicar em parte a propensão dos judeus à depressão, à
somatização e à hipocondria (Zborowski, 1969; Zborowski & Herzog, 1952). Estes
sintomas são vistos freqüentemente em reação a doenças ou perdas na famffia.
A história, obviamente, não pode ser ignorada enquanto uma explicação
importante de por que os judeus vêem o sofrimento como parte integrante da vida.
Desde o massacre dos meninos judeus na Bíblia até o programa nazista de genocídio
durante o Holocausto, os judeus sofreram perseguições por toda a história e em todas as
partes do mundo. A sobrevivência, desta forma, tornou-se um valor importante para a
família e a comunidade judaica. Isto pode explicar em parte por que os rituais de
celebração do ciclo da vida têm um papel mais poderoso na vida da família judia do que
aqueles relacionados às mortes. Uma discussão do lugar do sofrimento na experiência
judaica não seria completa sem a consideração do Holocausto. A destruição de famílias
e comunidades inteiras é parte do legado de perda de muitas famílias judias, e também é
uma dimensão importante do espírito comunitário dos judeus contemporâneos (Epstein,
1979; Moskovitz, 1983). Muitos judeus descendem de sobreviventes de campos de
concentração que experimentaram a morte brutal e o desaparecimento de outros
membros de suas famílias. Isto teve profundas conseqüências multigeracionais, tanto
em termos da sobrevivência como uma preocupação central quanto sobre o modo como
a perda e a morte são experimentadas. Embora muitas das implicações clínicas da
experiência do Holocausto estejam além do alcance desta discussão, os terapeutas que
trabalham com famílias judias em torno de questões de morte e perda fariam bem em
conhecer a crescente literatura sobre este tema.
220
As Realizações Intelectuais e o Sucesso Financeiro
Em muitas culturas, a noção de dar aos mortos uma “boa despedida” é um tema
proeminente. Isto pode incluir dispender grandes somas de dinheiro em um caixão
esplêndido, um costume contrário à tradição judaica. Como esta noção de uma vida
melhor depois da que conhecemos é estranha aos judeus, o funeral é percebido como
um reflexo das realizações da vida e como um conforto para os vivos, mas não como
uma oportunidade para demonstrar riqueza ou status social. Isto produz um contraste
interessante com as demonstrações dispendiosas e muitas vezes ostentatórias dos bar
mitzvahs e casamentos e, indubitavelmente, reflete o fato de que os rituais da morte têm
suas raízes nas antigas tradições judaicas — às quais as pessoas tendem a se voltar
nestes momentos — enquanto que muitos outros eventos do ciclo da vida são frutos da
diáspora da comunidade judaica dos dias modernos. Mais importante do que a
aparência da cerimônia funerária cm si é quem e quantos compareceram, e
como o morto foi elogiado. Os funerais são uma oportunidade de revisar os
sucessos da vida da pessoa morta, bem como os da família. Um grande comparecimento
e discursos que trazem lágrimas aos olhos de todos são altamente valorizados. Ao
contrário dos irlandeses, os judeus considerariam a leveza de espírito e a atmosfera
festiva inaceitáveis. Entretanto, como foi mencionado acima, ir a casa durante o período
de luto para consolar a família permanece sendo mais importante do que comparecer ao
funeral ou ao enterro, refletindo a centralidade da família.
Nas famílias judias, o alto valor dado às realizações intelectuais e ao sucesso
financeiro muitas vezes cria conflitos intergeracionais. Estes conflitos com freqüência
se exacerbam quando as famílias enfrentam doenças graves ou mortes. Além disso, as
posições relativas de homens e mulheres na cultura tradicional judaica persistem nas
famílias contemporâneas, e muitas vezes ultrapassam o valor do sucesso. Um filho
percebido como profissionalmente bem-sucedido pode ser implicitamente desculpado
por não “dar apoio” à família — durante uma doença e após uma morte — já que seu
trabalho é importante e traz honra para a família. De uma filha, entretanto, independente
de sua posição profissional, espera-se que esteja presente para cuidar da família tanto
durante a doença como após a morte. Se o morto era o provedor da família, a segurança
financeira que ele deixou para os seus será cuidadosamente inquirida pela família
extensa, bem como por toda a comunidade, e seu valor poderá ser julgado de acordo
com ela. Nas famílias tradicionais, o acadêmico culto que passou a vida estudando e foi
financeiramente improdutivo era teoricamente merecedor de honra e respeito, mas em
realidade, o fato de não ter provido adequadamente para sua famffia tornava-o um
objeto de desprezo.
221
A Expressão Verbal dos Sentimentos
A capacidade de expressão é altamente valorizada pelas famílias judias, e pode
ficar particularmente evidente em situações de ameaça à vida. Como foi mencionado
acima, a expressão da raiva e de outras emoções voláteis não é incomum e, em muitas
famílias, serve como um indicador visível da proximidade entre as pessoas. Embora as
crianças de uma família polonesa, por exemplo, saibam que o respeito pelos mais velhos
inclui não responder e não usar palavras sujas, as crianças judias tendem a sentir menos
estas limitações. Discussões sem fim e discordâncias continuadas e ruidosas entre
membros da famffia são muitas vezes conduzidas na frente dos doentes, e um funeral,
um enterro ou a presença na casa de um morto não são, em si, suficientes para
desencorajar as pessoas a expressarem sentimentos. Entretanto, a expressão de amor e
lealdade aos doentes terminais ou aos mortos é igualmente apropriada e inteiramente
esperada. O semblante estóico de uma Jackie Kennedy, por exemplo, é estranho aos
valores judaicos tradicionais e, como uma mulher comentou, incrédula ao assistir ao
funeral de Kennedy, “Qualquer mulher judia que se desse ao respeito teria se jogado
naquela sepultura”.
Os Rituais Judaicos da Morte
Os rituais que cercam a morte refletem as atitudes judaicas tradicionais quanto à
perda. Durante o período terminal de uma doença, espera-se que a família esteja
presente e propicie cuidados constantes. Quando sobrevém a morte, esta noção é
estendida a toda a comunidade, e uma sociedade funerária especialmente treinada
(conhecida como a hevra kadisha) assume a responsabilidade por preparar o corpo para
o enterro; isto inclui lavá-lo, envolvê-lo em uma mortalha, acompanhá-lo o tempo todo
e recitar salmos. A mortalha é feita de um pano simples, e os adornos são proibidos; da
mesma forma, o caixão é construído com madeira de pinho simples, e até mesmo os
pregos de aço são proibidos. Estas restrições enfatizam a noção de que na morte não se
permitem distinções entre ricos e pobres. O Eclesiastes reflete bem a noção da morte
como a grande igualadora em sua discussão da acumulação de bens, que termina com a
famosa afirmação: “Tudo é vaidade”
A maioria dos judeus modernos está milito afastada das raízes do judaísmo
tradicional. Com a diáspora, os judeus assimilaram a cultura dominante dos vários
países onde se fixaram. No momento da morte, as famílias tendem a desejar uma
ligação mais profunda com as antigas tradições religiosas. O funeral acontece tão cedo
quanto possível, o que é considerado um sinal de respeito ao cadáver e, nas
comunidades mais religiosas, às vezes no mesmo dia. Existe muito respeito pelo corpo,
por ter sido um veículo para a vida, mas o embalsamamento ou qualquer outra forma de
preservação do cadáver de sua decomposição natural é proibida. Na lei judaica, a
cremação é proscrita, uma questão que tende a causar tensão em famílias nas quais os
indivíduos desejam ser cremados ou fazê-lo com outros familiares. Estas dificuldades
surgem tão freqüentemente em famílias não-religiosas como nas ortodoxas, uma vez
que os sentimentos a respeito da cremação podem ser altamente tóxicos. Desde o
momento da morte até que o enterro tenha acontecido, as pessoas de luto estão isentas
de cumprir com a lei ritual, o que reflete a noção de que as fortes emoções colocadas em
movimento pela morte impedem a dedicação total à honra de Deus.
222
A cerimônia funerária e o enterro são simples, e espera-se que os membros da
família, quando possível, acompanhem o corpo da pessoa falecida até a sepultura. No
enterro, a família e os amigos participam enchendo a cova, Isto é ao mesmo tempo uma
catarse e um modo simbólico de deixar o morto descansar. Após o enterro, a família
retorna para casa e inicia um período de luto (shivn, ou “sete”, significando o número de
dias) durante o qual os membros da família devem ser visitados e consolados,
basicamente compartilhando suas lembranças do morto. Não se espera que a família
organize este período de shiva e, por isso, toda a comida é preparada pelos amigos e
todas as providências são tomadas por outros. Durante o período de shiva, no qual é
proibido sair de casa e não se deve trabalhar, os familiares devem se sentar em um
banco baixo, rasgar uma peça de roupa para significar o rompimento da vida (hoje em
dia, isto é geralmente simbolizado por lima fita de luto) e, de modo geral, abster-se das
atividades diárias normais. Após o shiva, começa o segundo estágio do luto formal
(chamado slu’Ioshim, ou “trinta”, novamente o número de dias), durante o qual a
família começa a retornar aos seus afazeres mas continua a vestir seus sinais de luto. O
luto formal continua por um ano; o fim deste último estágio é marcado pela inauguração
da sepultura. A cada ano, o aniversário da morte é lembrado queimando-se uma vela,
fazendo caridade e reunindo os sobreviventes na sinagoga para recitarem publicamente
uma oração à memória do morto.
E desnecessário dizer que estes rituais refletem o padrão tradicional das práticas
judaicas. Hoje, a maioria das famílias judias não se considera particularmente religiosa,
e pode optar por seguir poucos destes rituais. Entretanto, o terapeuta pode fazer bem em
explorar com as famílias as decisões que tomaram em relação a como vão marcar a
morte de um de seus membros e o subseqüente período de luto. A incorporação dos
rituais tradicionais pode se mostrar paliativa, enquanto a recusa em realizá-los pode
oferecer pistas sobre o funcionamento da família.
RITUAIS DE LUTO NA CULTURA CHINESA
Evelyn Lee
Os rituais de luto na cultura chinesa são influenciados pelo confucionismo, o
taoísmo e o budismo. A morte é tradicionalmente considerada a transição mais
significativa do ciclo da vida. Nos últimos cinco mil anos, desenvolveram-se muitos
rituais para ajudar os membros das famílias a lidarem com suas perdas. O
confucionismo ensinava as virtudes da piedade filial e da honestidade. “Enquanto seus
pais estiverem vivos, trate-os com respeito. Quando eles morrerem, enterre-os com
pompa e honre-os com os ritos apropriados” (The Confucian Analects). As regras dos
ritos funerários estão descritas em um dos cinco clássicos da literatura confuciana, o Li
Clii (o Livro dos Ritos). Estas regras, e muitos costumes acrescentados desde a época de
Confúcio, têm sido seguidas e praticadas fielmente por muitos chineses.
223
Assim como os casamentos, os funerais são geralmente um assunto da
comunidade; seu grau de elaboração reflete o status social da familia. O conceito de
imortalidade da alma tem um grande impacto nos rituais de luto. A fim de oferecer ao
morto uma boa “despedida” e para assegurar que ele não irá viver na pobreza, dinheiro
de papel, casas de papel e outros bens materiais são queimados. Para não deixar o morto
com fome, muitas comidas são oferecidas, como arroz, vinho, galinhas, frutas e pães.
Para demonstrar a tristeza e o sofrimento dos membros da família, ocasionalmente são
contratadas carpideiras profissionais. No cortejo do funeral, os herdeiros homens
geralmente vão na frente, acompanhados por outros membros da família e músicos.
Mais tarde, um jantar funerário é geralmente oferecido para a família e os amigos. Os
convidados devem consolar os membros da família e dizer “boas palavras” a respeito do
morto. Piadas e músicas alegres não são permitidas. Envelopes vermelhos com dinheiro
e doces são dados para os convidados para espantar a má sorte associada a ir a um
funeral.
A fim de evitar que o morto vá para o inferno, militas famílias contratam
monges ou cantores taoístas para rezar pelo espírito. Durante o velório e o funeral,
espera-se que o cônjuge e os filhos do morto chorem sem inibição. Entretanto, eles
devem controlar suas emoções após o funeral. Quando uma pessoa morre, seu corpo é
enterrado embaixo da terra. Geralmente, um geomante tradicional é consultado a
respeito da localização e da arquitetura do túmulo, especialmente quando o morto é uma
figura importante na família extensa. Acredita-se que a localização do túmulo vá
determinar o destino e o bem-estar dos descendentes do morto. Após o funeral, a
palavra “morte” e seus sinônimos não são mencionados e são estritamente proibidos nas
ocasiões alegres como aniversários e casamentos.
Os budistas, entretanto, não acreditam em militas das práticas acima. Eles
acreditam no karma, na reencarnação e na predeterminação da vida atual por atos bons
ou maus nas vidas passadas e presente. Antes da morte de um budista, amigos e/ou
monges se reúnem e auxiliam no processo de morrer entoando o sutra budista. A
demonstração de emoções incontroláveis não é estimulada. Não são servidas carnes
durante as refeições do funeral porque os budistas não acreditam em matar animais. A
cremação é a forma mais aceitável de enterro.
Tradicionalmente, o período prescrito de luto dentro das famílias chinesas é de
49 dias (eram sete anos na antiga China). No sétimo dia após o funeral, a família celebra
uma cerimônia especial para o morto, que é repetida a cada sete dias por sete semanas
consecutivas. Durante este luto de 49 dias, os membros da família devem vestir panos,
listras ou faixas pretas nos braços. As mulheres também devem usar arranjos florais
simples, feitos de madeira, no cabelo. Nenhuma atividade festiva, como os casamentos,
é permitida durante este tempo. O aniversário da morte e dois dias especiais de
rememoração (um em março e o outro em setembro) são reservados a cada ano para que
os familiares façam suas homenagens nos cemitérios.
224
A continuidade das relações familiares após a morte é muito importante. A
antiga prática do culto aos ancestrais ainda é seguida na maioria dos lares chineses.
Todos os dias, são feitas orações em frente a um retrato dos pais ou avós, colocado
proeminentemente na sala de estar. Acredita-se que os espíritos dos ancestrais podem
ser contactados diretamente e, se honrados corretamente, eles vão conferir suas bênçãos
e proteger seus descendentes do perigo. Muitos budistas não praticam o culto aos
ancestrais; os membros da família honram os mortos colocando uma placa no templo
para fins de cânticos contínuos.
Muitos chineses tradicionais fazem uma distinção muito importante entre uma
“boa” morte, na qual todos os rituais prescritos são seguidos, e uma morte “ruim”, na
qual isso não acontece. Na “boa” morte, o morto se vai em paz, com idade avançada, e é
abençoado com muitos filhos, especialmente Fio- meus. A última visão de uma pessoa
moribunda é a de todos os parentes reunidos em torno da cama para dizer adeus. No
momento da morte em si, toma-se o cuidado de fechar as pálpebras do morto. Uma
morte “ruim” significa uma morte prematura. O assassinato e o suicídio são
particularmente estigmatizados. Quando uma criança morre, OS pais e os avós não vão
ao funeral. A ausência de discussões sobre estas mortes é uma forma socialmente
aceitável de evitar lidar com mortes “ruins”. Devido aos anos de guerra e fome na
China, e à alta taxa de mortalidade de mulheres no parto, muitos chineses
experimentaram mortes prematuras e não “completaram” seu luto.
Os rituais de luto mencionados têm sido dramaticamente restringidos nos
últimos 40 anos. Forças políticas, sociais e econômicas moldaram as atuais práticas de
luto dos chineses em diferentes países. Sob o governo comunista da China, a cremação
é obrigatória para todos. As cerimônias religiosas não eram permitidas até
recentemente. Os chineses de Hong Kong conseguem manter militas das antigas
tradições. Entretanto, devido às condições de superpopulação, os membros da família
devem retirar os ossos dos mortos entre sete e 10 anos após o enterro. Os chineses ricos
das Filipinas provavelmente praticam os funerais mais elaborados. Com milita
freqüência, a tumba é construída como uma casa ornamentada. Os rituais de luto dos
chineses na América dependem milito do grau de aculturação dos membros da família e
da comunidade onde vivem. Hoje, ao invés de um funeral chinês ser um assunto da
comunidade, ele tende a ser ditado pelos procedimentos seguidos pela casa funerária
envolvida. O período de luto de 49 dias foi drasticamente reduzido, tipicamente para
uma licença de luto de uma semana ou menos. E a cerimônia religiosa no funeral é
agora tipicamente conduzida por um pastor ou padre, em vez de um monge budista ou
taoísta.
Não obstante, nos grandes bairros chineses de cidades como São Francisco e
Nova York, os chineses aderem obstinadamente à tradição, e tentam integrar as práticas
funerárias chinesas e americanas. For exemplo, os funerais nestas cidades muitas vezes
incluem a queima de dinheiro de papel, marchas funerárias pela comunidade e um jantar
para os parentes e amigos. Tipicamente, os homens chineses assumem o papel de tomar
as decisões importantes, como o tipo e o tamanho dos funerais e as providências
financeiras, e as mulheres administram as tarefas emocionais e sociais do luto.
225
Existem muitas implicações clinicas ao ajudar os chineses a lidarem melhor com
as exigências emocionais da experiência de perda. For exemplo, a vergonha e o tabu
cultural contra discutir a perda de alguém que sofreu uma morte violenta ou prematura
podem exercer uma força poderosa nas famílias chinesas. Uma mulher chinesa de 60
anos foi encaminhada para tratamento após ter descoberto o corpo de um homem idoso
que tinha alugado um quarto em sua casa. Esta experiência detonou uma reação intensa
na mulher, a ponto dela ter ficado incapaz de falar por várias semanas. Lentamente, em
um período de muitos meses, ela finalmente foi capaz de fazer o luto por uma vida
inteira de perdas súbitas em sua família, incluindo a morte de seu filho aos 5 anos de
idade. Dentro de seu referencial cultural, a perda do filho, que tinha morrido de uma
febre alta muitos anos antes, tinha sido uma morte “ruim” e uma experiência vexatória
para a família. Não tinha nem havido uma cerimônia de enterro para o menino. Além
disso, sua sogra tinha sido assassinada. Ela e o marido não tinham conseguido fazer
estes lutos.
Ao trabalhar com famílias chinesas, o terapeuta precisa ter várias coisas em
mente. Os chineses tipicamente não fazem conexões entre a experiência passada e o
comportamento presente. Com freqüência, o terapeuta precisa adotar a postura de um
professor, instruindo o cliente a respeito da relação entre os sintomas e os eventos
passados. Também é importante reconhecer a extensão de tempo necessária para
estabelecer um vínculo terapêutico de confiança que possa suportar a intensidade das
reações de luto de um cliente. Além disso, o terapeuta deve respeitar o referencial
cultural através do qual o cliente percebe as perdas familiares. Para tanto, as seguintes
diretrizes podem ser úteis:
1. Explore como o cliente percebe a causa da morte: uma discussão pode revelar que,
embora ele atribua a morte de um parente a uma causa física, como um enfarte ou um
câncer, ele na verdade acredita que a causa foi espiritual. No caso acima, a mulher
estava convencida de que seu filho de cinco anos tinha morrido por causa das
transgressões de um de seus ancestrais.
2. Discuta como o cliente seguiu o ritual do enterro e do luto no momento da morte: o
não-cumprimento das práticas tradicionais pode levar a sentimentos duradouros de
culpa. Em alguns casos, acompanhar os clientes ao cemitério para que completem os
rituais de enterro para parentes há muito falecidos pode ser necessário.
3. Examine as crenças do cliente a respeito da vida após a morte: as tradições chinesas
frisam os horrores do inferno e têm muito menos a dizer sobre as possibilidades do
paraíso. Algumas reações extremas a uma morte
são mais bem compreendidas à luz do destino dos parentes falecidos na vida após a
morte e suas implicações para os sobreviventes da família.
226
4. Examine a comunicação com a pessoa morta: os espíritos dos mortos estão muito
vivos para muitos chineses. Em alguns casos, estimular orações
e cânticos pode ser útil, e até mesmo consultas com curandeiros espirituais para ajudar
os clientes a encerrarem questões com os mortos são necessárias.
5. Explore as mudanças familiares que se seguiram a uma morte: uma grande
importância está associada ao cumprimento das obrigações familiares na cultura
chinesa. Não fazê-lo pode levar a sentimentos intensos de culpa e vergonha, que são
difíceis de verbalizar. Com clientes chineses,
sempre é importante entender como eles percebem as mudanças em suas obrigações
familiares após uma morte, e se acreditam que as cumpriram inteiramente.
CONCLUSÃO
Embora seja impossível desenvolver prescrições para as intervenções com
famílias de diferentes origens no que diz respeito à perda, as seis descrições étnicas
apresentadas aqui devem deixar claro que existem muitas diferenças importantes em
relação a como lidar com a morte entre as culturas. Ao trabalhar com famílias no
sentido de compreenderem suas perdas, você deve investigar suas crenças a respeito de:
(a) o manejo dos doentes e dos mortos; (b) o que acontece após a morte; (c) a expressão
emocional adequada do luto e a integração da experiência de perda; (d) os papéis típicos
e os comportamentos esperados de homens e mulheres; (e) quais mortes são
estigmatizadas e especialmente traumáticas; e (f) como minimizar o impacto negativo
deste trauma na adaptação da família após a morte.
Focalizar os questionamentos nestas áreas vai permitir que você aprenda com
cada família a respeito de seus valores e crenças. Quando tiver compreendido os valores
da família, levante questões filosóficas e clínicas delicadas sobre como e quando
estimular seus membros a modificarem práticas de má adaptação, mas sancionadas
culturalmente (por exemplo, o suicídio como aceitável — tanto para as viúvas indianas
ou para os japoneses que “sofreram vexames” — ou o costume dos homens que se
encarregam dos aspectos administrativos da morte enquanto mulheres fazem o luto
explícito pela família). Não existem absolutos nestas questões, mas encorajamos os
clínicos a serem claros sobre seus próprios valores culturais e a assumirem a
responsabilidade por sua própria perspectiva cultural quando propõem respostas
alternativas para uma família.
228
Os Rituais e o Processo de Elaboração
EVAN IMBER-BLACK
Todas as culturas têm rituais elaborados para abordar o complexo processo do
luto. Estes rituais, compostos de metáforas, símbolos e ações em uma forma dramática
altamente condensada, servem a muitas funções. Eles marcam a perda de um membro,
ratificam a vida vivida pela pessoa que morreu, facilitam a expressão de sofrimento de
forma consistente com os valores da cultura, falam simbolicamente do sentido da morte
e da vida e apontam uma direção para conferir sentido à perda, ao mesmo tempo cm que
possibilitam a continuidade para os vivos.
Uma investigação dos rituais de luto em diferentes culturas revela diferenças que
expressam as crenças de cada uma delas, assim como suas semelhanças, pois todos estes
rituais são limitados no espaço e no tempo, proporcionando uma sensação de segurança
psicológica para os participantes. Os rituais de luto ocorrem em locais específicos, tais
como partes da casa, igrejas ou sinagogas, cemitérios, e por períodos de tempo
específicos, como o velório ou o shiva. Muitas culturas têm períodos de luto de um ano,
com rituais particulares destinados a marcar a passagem do tempo e a reentrada na vida
normal para os sobreviventes. Scheff (1979) aponta para os meios pelos quais os rituais
possibilitam o suporte e a contenção de emoções fortes. Assim, nos rituais de luto, as
pessoas se reúnem para chorar uma morte de uma forma limitada no tempo, que
proporciona apoio mútuo e permite a expressão inicial de dor e perda em um contexto
criado para promover a conexão interpessoal. Estes rituais muitas vezes requerem
refeições em comum e visitas aos enlutados durante um período prescrito de tempo, a
fim de impedir um isolamento disfuncional no período imediatamente após uma perda
(Van Gennep, 1960).
Muitos grupos culturais e religiosos têm rituais que ocorrem siibseqüentemente a
uma morte em seqüências prescritas de tempo, possibilitando aos vivos recordar e
honrar os mortos e lidar com a perda ao longo do tempo. Rituais como as missas
católicas de sétimo e trigésimo dias e nos aniversários da morte, e a leitura do kriddish
nos aniversários da morte no judaísmo exprimem a realidade do luto como um processo
que ocorre com o tempo e que requer estruturas familiares para possibilitar sua
elaboração.
230
A capacidade dos rituais de expressar fortes contradições simultaneamente
torna-os especialmente relevantes para o processo de luto. Roberts (1988) descreve um
ritual funerário de dança Ashantí cujos movimentos capturam a delicada dor da perda de
cada indivíduo, ao mesmo tempo em que conectam cada pessoa à comunidade, em uma
reafirmação da vida. Os rituais de luto adotados culturalmente contêm elementos de
familiaridade e repetição arraigados em tradições passadas, que paradoxalmente
possibilitam a modelagem da vida e dos relacionamentos futuros.
Os rituais de luto podem operar em níveis múltiplos, facilitando a expressão do
sofrimento individual, marcando mudanças nos relacionamentos, ratificando a perda da
família e possibilitando a elaboração de toda a comunidade. Um exemplo pode ser visto
no Memorial da Guerra do Vietnã em Washington, DC, que funciona como um ritual
permanente de luto e elaboração. Os familiares e amigos que perderam homens e
mulheres na guerra vão ao memorial em viagens às quais se referem como
peregrinações, encontram os nomes das pessoas na parede e muitas vezes os copiam,
esfregando um lápis em um pedaço de papel colocado sobre as letras, e levam para casa,
de um modo que simboliza sua própria perda pessoal enquanto os conecta com a
comunidade geral dos que perderam entes queridos na guerra.
O DISTANCIAMENTO ENTRE OS RITUAIS AUTÊNTICOS DE LUTO E A VIDA
CONTEMPORÂNEA
Conquanto os rituais de luto existam, a conexão destes com as necessidades de
uma pessoa ou família em particular de maneira significativa pode não acontecer. Os
rituais permanecem sendo vitais e autênticos para as pessoas quando estão inseridos em
tradições passadas e podem ser recriados segundo as necessidades do presente. Os
rituais de luto costumeiros podem acontecer de maneiras rígidas ou vazias, deixando os
vivos desconectados de qualquer sensação de elaboração genuína. Como a maioria das
pessoas agora morre em hospitais em vez de em casa, muitas vezes cercadas por
tecnologias complexas ao invés de símbolos familiares, a proximidade da morte e da
perda como uma parte do ciclo da vida humana associado a rituais de carinho está perto
de desaparecer. Com freqüência, a encomendação de um corpo como parte de um ritual
funerário pode ser feita por um religioso que mal conhecia o morto e conduz uma
cerimônia cheia de cichês, que pouco faz no sentido de facilitar a elaboração dos
sobreviventes (Rule, 1990). Cada vez mais, nossa cultura permite à indústria funerária
moldar os rituais de luto, de tal modo que eles dizem mais a respeito do capitalismo do
que de uma autêntica elaboração. O exemplo mais recente disto pode ser visto na
recém-estabelecida prática das visitas drivethrough, em que a pessoa se aproxima de
carro de uma tela de vídeo, digita o nome do morto no computador, vê sua imagem,
registra a visita via computador e vai embora. A falta de rituais de luto autênticos na
vida contemporânea freqüentemente impede o processo necessário de elaboração após
uma morte. Os relacionamentos que precisam sofrer as mudanças exigidas por uma
morte se tornam rígidos, e surgem sintomas que são expressões metafóricas do luto
incompleto e da perda não elaborada. Quando isto ocorre, a vida ritual subseqüente de
uma família muitas vezes é afetada de modo prejudicial, o que pode, simultaneamente,
ser o caminho para a elaboração, especialmente quando tratado em terapia.
231
OS RITUAIS, A PERDA E O PROCESSO TERAPÊUTICO
A vida ritual de uma família pode funcionar como uma lente poderosa com a
qual examinar e compreender a maneira dela lidar com suas perdas anteriores e atuais.
Esta vida ritual inclui todos os rituais diários, tais como as refeições; suas tradições,
como os aniversários, as férias e práticas próprias; suas comemorações de datas
nacionais e religiosas; e seus rituais do ciclo da vida, tais como os casamentos, o
nascimento de crianças e os ritos de passagem. Estes rituais, que ocorrem na vida de
todas as famílias, também abrem o caminho para os lutos, as elaborações e as
comemorações necessárias.
Exemplo de Caso — “A Morte Toca Todos os Rituais”
Uma família formada por uma mãe divorciada, Cathy Colby, de 56 anos, seu ex-
marido, Eric Colby, de 57, sua segunda esposa, Susan Colby, de 38, e a filha do casal
original, Ellen, de 27 anos, foi atendida em uma interconsulta seis meses após o suicídio
do filho Brian, que tinha 28 anos na época de sua morte. Sabendo de meu interesse por
rituais, a família tinha expressado o desejo de falar comigo devido à comoção causada
pela proximidade das festas natalinas e de fim de ano.
Com o desenrolar da entrevista, a família falou pungentemente sobre muitos
rituais. Ao descrever sua sensação aguda de sofrimento e perda, o pai começou a me
contar sobre o café da manhã que ele e o filho tomavam juntos diariamente: “Todos os
dias, eu o apanhava em seu apartamento e nós tomávamos o café da manhã juntos antes
de cada um ir para o seu trabalho. Era o início do meti dia, e falávamos sobre o dia
anterior e sobre nossos planos. Agora, de manhã, acordo, meus pés tocam o carpete e sei
que não vou vê-lo no café, e mal consigo começar o dia”. As outras pessoas da família
não tinham compartilhado este ritual diário, que tinha feito parte da vida do pai por
muitos anos. A medida que falávamos, o pai localizou sua mais profunda sensação de
perda no tempo e no espaço de seu ritual diário dizendo: “Mesmo eu dando um jeito de
funcionar durante o dia e a noite, a dor recomeça a cada manhã, e eu tenho que lutar
contra ela novamente”.
Para a mãe, a filha e a madrasta, o Dia de Ação de Graças e o Natal que se
aproximavam estavam cheios de uma sensação de pavor. A mãe falou pela família: “Eu
gostaria de viajar nos feriados, ir para outro lugar, cancelar o Natal, cancelar o Ano-
Novo — talvez assim não doesse tanto. Eu simplesmente não consigo imaginar estas
festas sem ele”. Em face da profunda perda, eles estavam contemplando um caminho
ritual que os afastaria de comemorações subseqüentes, e que lhes teria custado o suporte
familiar presente nelas.
232
Ellen falou sobre como começou a fazer suas compras de Natal e descobriu que
tinha comprado coisas para Brian sem se dar conta. Para as mulheres, a enormidade da
perda estava concentrada nestas reuniões familiares, pelas quais elas eram
primariamente responsáveis. A medida que falávamos do lugar de Brian nos padrões
anteriores de comemoração, uma troca aberta de histórias familiares a respeito dele e de
seus relacionamentos, tão crucial para o processo de luto, foi facilitada. Aqui, recordar
os rituais das festas juntos abriu uma porta para que eles compartilhassem o sofrimento,
e começou a aliviar os temores desta família extensa de ficar junta nas festas daquele
ano.
Finalmente, o pai e a filha quiseram falar sobre o aniversário de Brian, que seria
dali a vários meses. O pai, que tinha ficado quase em silêncio durante a discussão sobre
o Natal, começou a chorar. Ele descreveu a tradição anual do aniversário, que era, na
verdade, uma metáfora de toda a infelicidade de Brian na vida, seu uso de drogas até
então não mencionado e as tentativas frenéticas do pai e da irmã de ajudá-lo. Aqui, a
família ouviu a imensa culpa do pai, que ele não tinha sido capaz de expressar
anteriormente de forma tão articulada. Enquanto o pai falava sobre o último aniversário
de Brian, a mãe chorava, recordando seu nascimento.
Para cada membro da família, diferentes rituais continham emoções poderosas e
conexões de relacionamento que eram evocadas pelo suicídio de Brian. Para o pai, o
ritual diário do café da manhã e o aniversário do filho eram mais importantes, enquanto
que, para as mulheres, as festas iminentes eram as mais cruciais. Esta discussão
conjunta dos rituais da família possibilitou que compartilhassem o luto, que se
apoiassem mutuamente e expressassem sua perda de formas diferenciadas, simbolizadas
nos rituais que eram mais importantes para cada pessoa. Terminei esta sessão com uma
sugestão para a famffia e o terapeuta de que trabalhassem em um ritual ligado às festas
próximas que permitisse a troca, limitada no tempo, de histórias, símbolos e lembranças
de Brian e de comemorações anteriores. Este ritual se destinaria a afirmar sua perda e
homenagear Brian, ao mesmo tempo em que facilitaria seu desenvolvimento como
indivíduos e como família. Uma intervenção como esta permite às famílias utilizarem as
comemorações de forma consciente para examinar sua perda e começar o processo de
elaboração.
233
A PERDA E OS PADRÕES DAS PRÁTICAS RITUAIS
Em uma tipologia das práticas rituais, Roberts (1988a) descreve famílias sub-
ritualizadas, que não celebram nem marcam as mudanças familiares com rituais e não
participam de rituais sociais mais amplos, famílias rigidamente ritualizadas, que sempre
têm que realizar seus rituais exatamente da mesma forma, sem variações, improvisações
ou evoluções, e famílias com rituais interrompidos, que não conseguem vivenciar
inteiramente um ritual devido a mudanças súbitas ou traumas. Ao conversar com
famílias cujos padrões rituais se encaixam nestas categorias, freqüentemente se
encontram perdas não resolvidas expressas metaforicamente através dos rituais atuais da
família.
A descrição de uma estagiária do ritual anual de Ação de Graças de sua família
ilustra seu reconhecimento nascente da relação delicada entre a perda, a elaboração e os
rituais subseqüentes, especialmente os de comemoração:
“Lindas mesas enfeitadas, cheias de comidas de festa e, é claro, o obrigatório peru de
Ação de Graças, tudo sofisticado o suficiente para ser fotografado para qualquer capa de
revista; e, ainda assim, não distraíam ninguém o suficiente da atmosfera geral de
desânimo, tensão e tristeza mal-disfarçadas, quando, a cada ano, cada pessoa era levada
a reexperirnentar individualmente a discrepância entre forma e sentimento. Tudo tinha a
aparência correta, e, no entanto, não havia conexão, nenhum sentido comum. Aquilo era
urna tentativa de recriar o ritual de outra pessoa, e, a cada ano, deixava os participantes
sozinhos em meio a muitos, esperando pelo final...
Meus pais, tias e tios experimentaram um mundo destroçado, parentes e amigos
assassinados, comunidades e cultura destruídas (no Holocausto)
esta perda tremenda não teve um luto explícito, ritualizado ... ao contrário, foi negada,
escondida, tornada íntima. No início, era porque havia muito a fazer, a sobrevivência
vinha em primeiro lugar ... e depois, quando já havia o tempo e a segurança física
suficientes para permitir algumas expressões de luto, tudo já estava enterrado, muito
assustador, muito mistificado. Assim minha família não fazia o luto de suas perdas, não
criava rituais em torno destas terríveis e terrivelmente importantes transições. Sem o
luto das mortes, pode haver urna verdadeira celebração dos nascimentos? Com a
negação do sentido das grandes transições, pode uma família marcar com sentido outras
transições, ou estes rituais precisam então ser cuidadosamente contidos para que não
nos conduzam perigosamente para perto de pensamentos e sentimentos de outras épocas
de mudança, para aqueles que não estão aqui e para sentimentos que não são
permitidos?” (Roberts, 1988b, p. 388)
Examinando toda a vida ritual de uma família, pode-se ver seus esforços
corajosos para conferir sentido a suas perdas, muitas vezes de um modo que silenciosa e
ferozmente reforça e amplifica a perda mesma contra a qual estão lutando. Sentando
com famílias e, com a postura do antropólogo, interrogando-as sobre sua vida ritual,
fiquei profundamente comovido com o modo como os rituais contêm profundas
metáforas do caminho de elaboração da família após uma perda trágica. As soluções
aparentemente ditadas pelo senso comum e pela necessidade de autoproteção adotadas
pelos seus membros emergem como padrões de rituais que operam paradoxalmente para
impedir a elaboração verdadeira pela qual eles anseiam.
234
As famílias podem abandonar todos os seus rituais, decretando uma moratória
das comemorações, e se manter em uni estado permanente de sofrimento e ausência de
alegria. Uma família hispânica, por exemplo, para a qual a comida anteriormente
significara conexão, carinho e troca, descreveu que eles não faziam mais as refeições
juntos. “Desde quando?”, perguntei. “Desde que o papai morreu e a mamãe começou a
comer sozinha no quarto dela”, foi a resposta. A elaboração começou nesta família por
meio de uma terapia que focalizava simplesmente uma reinstituição gradual das
refeições em conjunto, trabalhando com a dor e o sofrimento que isto evocava,
justapostos à sensação simultânea de apoio e amor que a mãe experimentava ao comer
com os filhos.
A PERDA E AS COMEMORAÇÕES SUBSEQÜENTES DE DATAS FESTIVAS
Os rituais de comemoração estão inseridos no calendário externo de uma cultura
ou subcultura. Como tais, eles são celebrados simultaneamente ou em uma data
determinada por uma porção significativa da população, e são impossíveis de ignorar.
As famílias que experimentaram perdas enfrentam um desafio especial ao se depararem
com as comemorações subseqüentes. A sua volta, as pessoas parecem estar celebrando,
aguçando a sensação de perda e diferença.
Em minha própria vida, nos três anos após a morte súbita de meu pai,
testemunhei a luta de minha mãe com os rituais das festas judaicas, que intensificavam
sua sensação de perda. Sua gradual elaboração é visível através do prisma destes rituais.
No primeiro ano, ela não conseguiu participar do Rosh Hashanah, o Ano-Novo judaico.
Ela não mandou cartões, que tinham feito parte de seu ritual por 53 anos com meu pai, e
explicou: “Não posso assinar só o meti nome”. Ela se afastou da sinagoga, que tinha
estado no centro de sua vida de casada. Paradoxalmente, estas tentativas aparentemente
razoáveis de se autoproteger intensificavam sua dor e seu isolamento. No segundo ano,
ela não mandou cartões, mas foi a uma sinagoga diferente. Ela me relatou ter odiado e
se sentido destituída não apenas de seu pai mas das recordações dele, que estavam tão
presentes na sinagoga que freqüentavam. No terceiro ano, eu recebi um cartão de Ano-
Novo dela, e ela retornou à sinagoga de sempre e sentou no lugar que tinha sido seu por
35 anos. Com uma compreensão aguda da coragem necessária para retomar rituais
familiares, mas para sempre modificados em meio à perda, ela disse: “Acho que foi
muito corajoso de minha parte — foi difícil, mas eu pude sentir a presença de seu pai, e
isso foi bom”.
Diferentes das famílias que abandonam seus rituais de celebração em face de
uma perda avassaladora são aquelas que os conduzem rígida e estereotipadamente,
como se não houvesse uma perda. Estas famílias estabelecem uma regra silenciosa de
não reconhecer a perda e tentar o impossível, mantendo os rituais subseqüentes como se
a pessoa não tivesse partido. Este caminho impede a família de falar sobre a pessoa
morta e de contar histórias sobre rituais anteriores nos quais ela participou. Rituais
estéreis, cristalizados, passam a simbolizar a profunda necessidade de elaboração da
famffia, que não consegue ser posta em palavras. Quando as famílias não conseguem
afirmar suas perdas, seus rituais se tornam eventos cuidadosamente encenados, para que
a espontaneidade e a interação humana livre inerentes aos rituais autênticos não
aproximem seus membros daquilo que não pode ser dito ou conhecido.
235
Exemplo de caso — “E o Natal?”
Uma família, formada por dois pais, o Sr. e a Sra. Franco, de 58 e 56 anos, e seu
filho adulto, Alan, de 33, procurou a unidade de crise de um hospital urbano no início
de dezembro. Alan morava com os pais e não trabalhava nem saía de dentro de casa. Ele
tinha uma longa história de atendimento com terapeutas e envolvimento em hospitais-
dia, sem efeitos sobre seu comportamento ou sua vida em geral, primariamente vivida
em isolamento. A crise daquele momento envolvia o comportamento de Alan em
relação a sua mãe, que tinha recentemente se tornado extremamente raivoso, hostil e
ameaçador, ao mesmo tempo em que implorava ao pai que não fosse para o trabalho. O
Sr. Franco disse que este episódio parecia familiar, ocorrendo no início de cada inverno,
mas que desta vez parecia muito pior.
Quando o terapeuta tentou conversar com a família, Alan começou a gritar: “A
história de Michael, a história de Michael, temos que discutir a história de Michael!” Os
pais pareceram ficar muito sentidos e, enquanto o pai dizia:
“Isto não tem nada a ver com Michael”, a mãe calmamente começou a contar ao
terapeuta a respeito de seu filho mais velho, Michael, que tinha morrido subitamente 17
anos antes, com 20 anos de idade, de aneurisma cerebral. Michael era um excelente
aluno e atleta, para quem a família tinha muitas esperanças. Ele tinha se casado no
início de dezembro, um pouco antes do Natal, e morrera em fevereiro, deixando a
esposa grávida. Esta tinha rompido com os Francos logo depois, impedindo o acesso
deles ao neto de 16 anos.
O terapeuta perguntou aos Francos como eles tinham feito o luto da morte de
Michael. Cada um tinha chorado sozinho, separado dos outros membros da família, de
uma forma que parecia representada pelo padrão de isolamento atual de Alan. A Sra.
Franco ia à igreja sozinha com freqüência, e lá chorava só, sentada em um banco.
Quando voltava para casa, ela descreveu que “simulava a normalidade” da vida
cotidiana, para que ninguém soubesse de seu intenso sofrimento. O Sr. Franco ia
semanalmente ao cemitério, também sozinho. Ninguém sabia que ele fazia estas
peregrinações ao túmulo de Michael. Alan, com 17 anos, tinha ficado extremamente
deprimido, desistindo da escola perto da formatura, e foi encaminhado para terapia
individual e, por fim, a um hospital-dia. Sem se dar conta, o sistema de tratamento
replicava o estilo da família de sofrer separadamente, de modo que a elaboração familiar
nunca era abordada. Agora, Alan ficava em casa enquanto os pais trabalhavam,
aparentemente tendo desistido da vida. Como eles eram extremamente sensíveis ao
sofrimento mútuo, o doloroso tema da morte de Michael nunca era discutido na família.
Ao invés disso, esta era distraída pelo comportamento cada vez mais bizarro de Alan,
que parecia servir para impedir o luto e congelar a família no tempo, dificultando o
desenvolvimento e a mudança individual e familiar.
Na segunda sessão, quando os pais começaram a se queixar de que não viam
mudanças no comportamento ameaçador de Michael, este começou a gritar: “O Natal!
O Natal! E o Natal? Temos que falar sobre o Natal!”. Embora os pais insistissem que o
Natal tinha pouca importância, o terapeuta optou por atender o pedido de Alan, tendo
aprendido anteriormente que, com seu jeito estranho, ele dava voz às dores mais
profundas da família. A comemoração natalina da família tinha permanecido idêntica
nos últimos 17 anos. A Sra. Franco decorava a casa, a fim de “fingir que estamos felizes
e que somos iguais às outras famílias”. Ela fazia um jantar especial, que Alan sempre
perturbava com gritos de raiva, impedindo que a família convidasse parentes ou amigos
e assustando os pais de tal modo que eles não saíam para fazer visitas. Sua
metamensagem parecia ser certamente não estamos felizes — não somos como as outras
famílias”. Assim, trancados juntos em casa, o espectro da morte de Michael permeava a
festa, mas não era mencionado. “Nós tentamos fazer tudo do jeito como seria se
Michael estivesse aqui”, explicou o Sr. Franco. A Sra. Franco comentou que sempre
montava um presépio que Michael havia construído quanto tinha 12 anos. Neste
momento, ela ficou em silêncio e então disse: “Sabe, aquele presépio não é muito bem
feito — se ele estivesse vivo, eu acho que teria parado de montá-lo há muito tempo. Eu
acho que não vou montá-lo este ano”. Ela começou a chorar na frente da família pela
primeira vez. Com esta indicação de que o próximo Natal poderia ser diferente e de que
família talvez começasse a difícil e dolorosa jornada para o presente, Alan sorriu para a
mãe com uma ternura que ainda não havíamos visto.
Pedi ao terapeuta que levantasse a possibilidade de eles realizarem um ritual de
luto que possibilitaria uma conversa a respeito de Michael e uma nova celebração do
Natal. Ela perguntou se cada um deles estaria disposto a trazer um símbolo de Michael
na próxima sessão, que estava marcada para três dias antes do Natal. Eles concordaram.
A sessão foi a primeira a começar sem gritos por parte de Alan. Em resposta à
solicitação da terapeuta, eles compartilharam seus símbolos. O pai mostrou o anel do
colégio de Michael, que ninguém sabia que ele tinha guardado e carregado consigo por
17 anos. A mãe trouxe um poema a respeito do amor de uma mãe por seu filho, que ela
tinha descoberto pouco depois da morte de Michael. O poema estava em uma folha de
jornal amassada e amarelada, pois ela o tinha guardado em sua carteira por 17 anos e
nunca tinha lido para ninguém. A terapeuta pediu que ela lesse o poema para a família, e
ela o fez. Alan trouxe uma fotografia de dois belos meninos, na qual Michael o
abraçava. Calma e gentilmente, a terapeuta pediu que eles trocassem os símbolos uns
com os outros conectando-se tangivelmente por meio desta ação e alterando seu
sofrimento, antes solitário e imutável. Ela então pediu que cada um contasse sua história
preferida sobre Michael. Alan, que com freqüência se distraía e perturbava as sessões,
manteve-se respeitoso e atento enquanto os pais falavam. Eles, por sua vez, ouviram o
filho com uma nova postura, antecipando e recebendo clareza. Esta troca de histórias
levou a um compartilhamento de culpas e vergonhas anteriormente secretas e
escondidas de cada membro em relação à morte de Michael. Eles choraram juntos pela
primeira vez m 17 anos, e nós choramos silenciosamente com eles.
237
Após este ritual tocante e simples de elaboração, os Francos começaram a
discutir sua festa de Natal. Alan concordou em não perturbar a comemoração da família.
Ele disse que jantaria com os pais e que eles deviam sair para fazer visitas quer ele fosse
junto, quer não. Ele então começou, pela primeira vez, a discutir suas próprias
necessidades para o futuro.
Após o Natal, eles retornaram para dizer que tinham realmente ceado juntos no
Natal, e tinham conseguido conversar abertamente sobre Michael. A tentativa
impossível de celebrar “como se Michael ainda estivesse vivo” tinha sido substituída
por um novo ritual de Natal que, ao mesmo tempo, honrava sua perda e confirmava suas
relações presentes.
Este ritual, conduzido na segurança da sessão de terapia e co-criado pela
terapeuta e pela família, combinava delicadamente as necessidades humanas de
elaboração e celebração, não disponíveis anteriormente para a família. Foi
proporcionada uma forma dos Francos compartilharem abertamente sua profunda perda
de um filho e de um irmão, facilitando sua reconexão, seu luto e a comemoração do
Natal pela primeira vez cm 17 anos. Este ritual simples abriu um caminho que
simultaneamente homenageava o passado, alterava o presente e possibilitava um futuro
(Imber-Black, 1988).
Como ilustra a discussão anterior dos padrões familiares de comemoração, duas
tendências predominam face à perda, à medida que uma família luta para retomar os
rituais de celebração em particular. Em algumas famílias se estabelece uma regra
silenciosa de banir a discussão aberta da perda, sustentando a farsa de que esta não
ocorreu e de que as comemorações podem proceder como de costume. Nestas famílias,
a tensão se torna profunda à medida que as festas se aproximam e, muitas vezes, surgem
sintomas em vários de seus membros que não são compreendidos enquanto relacionados
à perda não reconhecida e às festas próximas. As famílias descrevem que têm que
“suportar” as comemorações; suas tentativas corajosas de evitar a dor resultam na
evitação de qualquer sensação genuína de conexão e apoio, ao mesmo tempo em que
afastam a família da possibilidade de qualquer nova alegria.
Em outras famílias, decreta-se uma moratória dos rituais de comemoração. A
família passa a viver em um estado inalterável de sofrimento. Tomando o caminho
aparentemente ditado pelo senso comum de “nada de festas”, as famílias descobrem que
o contexto das comemorações permanece em volta delas, exacerbando sua sensação de
dor e isolando-as do apoio emocional que reside no tecido dos rituais familiares.
À medida que o terapeuta descobre o padrão de rituais de celebração da família
face à perda, ele tem muitas opções terapêuticas. Estas incluem perguntas voltadas para
o futuro a respeito de modos alternativos de prática de ritual que comecem a incorporar
a perda, histórias contadas na sessão a respeito de rituais anteriores e do lugar da pessoa
falecida neles, e a co-criação de rituais terapêuticos que vão permitir a emergência de
novos padrões, ao mesmo tempo em que facilitam a elaboração. Ao entrevistar a
família, é importante descobrir se a pessoa que morreu era a organizadora dos seus
rituais, aquela que garantia sua realização. Se este for o caso, como a famffia interagiu
em resposta à perda desta função? Ela coloca questões especiais. Algumas
comemorações da família extensa se desintegram quando, por exemplo, a avó que era a
organizadora dos rituais morre. Em outras famílias, um conflito intenso pode se instalar
em torno de quem será o novo organizador. Muitas vezes, este conflito representa
questões mais amplas de relacionamento a respeito de quem vai liderar a família em
outros aspectos. Em muitas famílias, estas lutas ficam mascaradas, como quando um
irmão simplesmente anuncia que o Dia de Ação de Graças, anteriormente comemorado
na casa dos pais, vai agora ocorrer em sua casa, preparado por sua esposa; os outros
irmãos ou vêm, cheios de ressentimento mudo, ou inventam diversas desculpas para não
participarem, nenhuma das quais realmente toca nas mudanças que ocorrem na família
em resposta à morte do organizador dos rituais. Sessões de terapia familiar trabalhadas
com sensibilidade com irmãos adultos podem abordar esta questão abertamente,
utilizando os rituais da família como uma porta de entrada para as complicadas relações
familiares.
238
A PERDA E OS RITUAIS SUBSEQÜENTES DAS TRADIÇÕES FAMILIARES
As tradições familiares estão inseridas no calendário interno da família e
incluem rituais como aniversários e tradições singulares que uma família pode inventar.
Não existem meios comuns de marcar o aniversário de um membro da família que
morreu ou o aniversário de casamento quando um cônjuge se vai, e os vivos estão
agudamente conscientes da aproximação destas datas. As famílias podem ter que
examinar o sentido destas datas e criar um ritual para capturar tanto as lembranças
queridas como a sensação de perda.
Os aniversários podem criar problemas especiais, como quando um adulto se
aproxima da idade com a qual um de seus pais morreu. Uma pessoa pode ir para terapia
queixando-se de depressão ou ansiedade, muitas vezes combinada com um desejo
súbito de alterar suas circunstâncias de vida drasticamente. Estes sintomas começam a
adquirir um novo sentido quando são conectados com a coincidência da idade na qual
um dos pais morreu e o aniversário que se aproxima (Walsh, 1983; ver Walsh &
McGoldrick, capítulo 2). O trabalho da terapia pode então proceder a separar a morte e
o aniversário, co-criando rituais para contemplar ambos. Da mesma forma, um membro
da famffia pode morrer no dia do aniversário de outro, resultando em uma fusão
permanente da morte com a passagem e a comemoração da vida geralmente marcadas
por um aniversário. Quando isto ocorre, o aniversário pode, desde aí, deixar de ser
comemorado, e somente pode ressurgir com permissão, em uma terapia focalizada na
necessidade de proporcionar continuidade à vida, ao invés de estagnação. A tendência a
somente marcar a morte, e não o aniversário, ou a tentar ignorar a morte e fingir uma
comemoração pode ser contrabalançada com um ritual, pois estes têm a capacidade de
captar e expressar dualidades e contradições profundas. Assim, um dado ritual pode
conter símbolos e ações simbólicas, e utilizar tempo e espaço de modos que
possibilitem o luto e a celebração.
As famílias também podem ter que criar rituais para marcar o aniversário de uma
morte, especialmente se não conseguir discuti-la, como acontece com suicídios, mortes
que a família ou a comunidade externa associa com estigmas, ou perdas ambíguas,
como quando um membro desaparece. Com muita freqüência, os membros da família se
distanciam uns dos outros face a tais perdas, impedindo a elaboração necessária para
todos. Roberts (1988a) descreve uma mulher cujo irmão tinha cometido suicídio 20
anos antes. A família costumava marcar todos os rituais junta, mas tinha sido totalmente
incapaz de conversar sobre a morte do irmão ou ritualizá-la de alguma forma. A cada
ano, o aniversário de sua morte passava sem que os membros da família conseguissem
se aproximar ou compartilhar seu sofrimento. Em uma terapia focalizada nos rituais, a
mulher e seu esposo foram capazes de criar um ritual para ratificar a morte do irmão e a
sensação de perda dela. Nas noites precedentes e no aniversário da morte, eles
acenderam velas e falaram sobre o irmão morto, enquanto olhavam fotos delt pela
primeira vez. A mulher também descreveu esta cerimônia para sua mãe, quebrando o
tabu cm torno da morte do irmão pela primeira vez em 20 anos.
A PERDA E OS RITUAIS SUBSEQÜENTES DO CICLO DE VIDA
Os rituais do ciclo de vida, tais como casamentos, cerimônias de batismo, ritos
de passagem como o bar mitzvnh, crismas ou formaturas, e funerais podem interagir de
forma poderosa com perdas anteriores. Estes rituais, que marcam tanto o
desenvolvimento e a mudança individual como os da família, enquanto
simultaneamente anunciam a estabilidade desta, por vezes causam novas e inesperadas
ondas de luto por uma perda anterior. Ao mesmo tempo, como geralmente incluem a
participação da família extensa e da comunidade, eles podem oferecer uma
oportunidade para homenagear e conectar o, morto à vida futura e presente da família.
Uma vez que os rituais do ciclo de vida incorporam o sentido de pertencimento a uma
famffia e a um grupo, ao mesmo tempo em que expressam crenças e ideologias
particulares, a falta dos membros falecidos é sentida de forma profunda.
No primeiro ritual do ciclo de vida que ocorre após a morte de um membro da
família, pode-se experimentar a finalidade da perda. Como uma mulher afirmou: “Foi só
na minha formatura da universidade, três anos depois que meu pai morreu, que
realmente comecei a encarar a enormidade de minha perda. A educação era tão
importante para ele. Quando ele morreu, eu simplesmente estudei mais, e não enfrentei
sua perda. Ele teria ficado tão feliz na minha formatura. Eu sentia tanta saudade dele, e
não conseguia mais fingir. A formatura foi muito confusa para mim, sabendo do
orgulho que ele sentiria e, contudo, sentindo-me tão triste. Eu também me sentia
culpada, por estar satisfeita comigo mesma. Na festa, minha mãe fez uma coisa que me
ajudou muito — ela falou sobre ele, o que aquilo significava para ele, como ele me
amava e como ele estava orgulhoso de minhas realizações. Ela me deu permissão para
sentir a falta dele abertamente para seguir em frente”.
240
Em sua pesquisa qualitativa sobre o ritual do bar rnitzvah, Davis (1988) descreve
atos espontâneos de elaboração de perdas anteriores que ocorrem no contexto de
comemorações. Um pai deu publicamente a seu filho o manto e o livro de orações de
seu próprio pai, já falecido, no qual cinco gerações de bar mit:vahs tinham sido
registradas. Perante toda a congregação, ele disse ao filho o que seu avô teria lhe
desejado se estivesse vivo: “Viva sua vida por inteiro! Faça o que você achar certo!”,
acrescentando: “O que meu pai me deu, acima de tudo, foi a sensação de ser sempre
amado, de ser sempre bom - e se eu pudesse lhe dar alguma coisa, seria isso”. Nesta
breve e simples passagem de símbolos de pai para filho, o avô foi homenageado, assim
como as gerações anteriores, e a elaboração da perda se fundiu à celebração do ciclo da
vida em um momento poderoso.
Naquelas culturas e religiões nas quais os bebês recebem o nome de membros da
família já falecidos, ou em famílias que simplesmente decidem batizar seus filhos
assim, o ritual de batismo pode evocar uma sensação de perda em meio à celebração
contraditória da vida. Uma mãe relatou que, no batismo de seu filho com o nome de um
primo muito querido que tinha morrido um ano antes, testemunhou a tia, mãe dele,
chorar pela primeira vez. A mãe disse que acreditava que o ato de dar o nome dele ao
bebê marcou a realidade da morte para sua tia. A capacidade dos rituais de conterem as
dualidades mais poderosas da vida e da morte fica evidente aqui.
Freqüentemente, as pessoas vêm à terapia antecipando um ritual específico do
ciclo de vida. Muitas vezes, elas não estão inicialmente cientes da transição que se
aproxima, e especialmente de sua marcação pública por meio de um ritual e da dor que
estão experimentando em suas vidas. Com o desenrolar da terapia, tanto clientes como
terapeutas podem descobrir um delicado interjogo de perdas anteriores, passagens do
ciclo de vida e rituais. Pode haver a necessidade de um trabalho terapêutico em relação
à perda, antes que um indivíduo ou uma família seja capaz de passar para a fase
seguinte do ciclo de vida, incluindo todos os rituais a ela relacionados. Após este
trabalho, os membros da família e o terapeuta podem ser capazes de co-criar elementos
do ritual do ciclo de vida que confirmem a perda em meio à comemoração.
Exemplo de caso — “Como Posso me casar quando Amo Dois homens?”
Uma jovem solteira, Teresa, de 25 anos, buscou terapia. Na sessão inicial, ela
estava ansiosa e perturbada, e me contou que estava extremamente confusa porque
havia dois homens em sua vida, e ela não conseguia decidir com qual dos dois se casar.
Um deles, Joey, de 27 anos, trabalhava na mesma empresa que seu pai, ganhava um
bom salário e era muito dedicado a ela. Ela o conhecia há muitos anos, e disse que ele a
tratava “como uma jóia”. Ela acreditava que ele seria um bom marido e pai. Ele também
se interessava pelo trabalho dela. A família dela gostava muito dele, e ele era do mesmo
grupo étnico, italiano, e da mesma religião, católica. O outro homem, Kevin, de 30
anos, estava um tanto inseguro quanto a seu futuro, mas sabia que a amava e queria se
casar com ela. Ela o tinha conhecido um ano e meio antes. Ele também era católico, mas
era irlandês. Sua família não gostava muito dele, mas Teresa disse que estava muito
mais entusiasmada com ele do que com Joey. Quando perguntei por que sua família não
gostava de Kevin, ela deu de ombros e disse: “Ah, eles acham que eu passo tempo
demais com ele”. Naquele momento, ela passava pouco tempo com Joey, mas eles
conversavam longamente por telefone. Ela relatou que vacilava diversas vezes no
mesmo dia em relação a qual deles escolher. Um tanto curioso era o fato de, em sua
conversa comigo, ela falar muito mais sobre sua impossibilidade de se casar do que
sobre a possibilidade do casamento, dizendo muitas vezes: “Como posso me casar
quando amo dois homens?”. A primeira vista, seu dilema parecia se originar do fato
dela não estar pronta para se casar com ninguém, e de possíveis conflitos com sua
famiia. Quando perguntei como ela tinha conhecido cada um deles, entretanto, sua
dificuldade começou a fazer sentido de outra forma, inserida em uma perda profunda e
não elaborada.
241
“Eu conheci Joey quando era adolescente. Ele era o melhor amigo de meu irmão
Louie.” Ao mencionar Louie, Teresa começou a chorar, e me contou que ele tinha
morrido de câncer há mais ou menos um ano. “Louie era meu irmão querido, muito
querido. Nós éramos muito próximos. Se ele estivesse aqui, eu saberia o que fazer.” Nós
falamos durante um longo tempo sobre a doença de Louie e o papel de Teresa quando
ele estava doente. Ela tinha cuidado dele em casa e tinha sido o membro da famffia que
ficara com ele no hospital no fim de sua vida, pois seus pais simplesmente não eram
capazes de suportar a dor de vê-lo morrer. Ela se transformou no elo de ligação entre
Louie e os outros membros da família, e entre esta e o hospital. Ela também era a maior
fonte de consolo e apoio para seus pais, e poucas outras coisas aconteceram em sua vida
durante muitos meses. Entretanto, foi no hospital que ela conheceu Kevin. Na época, ele
trabalhava como servente, e a consolara muitas vezes. A família dela o considerava um
intruso. Ela comentou que Joey também quisera consolá-la durante a doença de Louie,
mas ele mesmo ficara tão perturbado com a situação do amigo que ela se afastara dele.
Após a morte de Louie, ela tinha começado a se encontrar com os dois com uma certa
freqüência, e sua confusão aumentou. No fim da sessão, ela disse que seu pai estava
extremamente deprimido, e ela estava preocupada com ele. “Não consigo me imaginar
casando enquanto meu pai estiver assim.” A “confusão” de Teresa quanto a seus
pretendentes também parecia ser a solução para a incapacidade de sua família de
suportar qualquer casamento, já que, enquanto ela estivesse confusa, não haveria
casamento.
Na segunda sessão, Teresa me contou mais sobre Kevin e por que os pais dela
não gostavam dele. Ele tinha problemas com drogas e bebida, e tinha milita dificuldade
de se manter nos empregos. Parecia que Teresa tinha passado de tomar conta de Louie
para tomar conta de Kevin. Ela concordou com isto, e disse que cuidar de Kevin a
ajudava a sentir menos saudade do irmão.
242
Eu perguntei o que ela achava que estaria fazendo se Louie não tivesse morrido. Sem
hesitar, ela disse: “Ah, eu estaria planejando meti casamento com Joey, e Louie seria o
padrinho!”. Neste momento, ela começou a soluçar. Subitamente, ficou claro que não
havia só a impossibilidade de seu pai de suportar um casamento, mas também a dela.
Após esta sessão, Teresa terminou seu relacionamento com Kevin. Ela também
disse a Joey que queria ficar com ele, mas que precisava de tempo para tomar uma
decisão final a respeito de casamento. Ela trouxe os pais para a terapia, e trabalhamos
questões envolvendo a morte de Louie por várias sessões. Aquela foi a primeira vez que
a família se sentou para conversar sobre ele, substituindo um padrão no qual Teresa e
sua mãe consolavam uma à outra, e ambas pisavam em ovos em torno do pai,
acreditando que a dor dele era simplesmente grande demais e só iria piorar falando
sobre ela.
Ao longo de muitos meses, Teresa foi tomando a decisão de se casar com Joey.
Eles vieram juntos a algumas sessões, e falamos sobre seus planos para o casamento.
Teresa falou novamente sobre ser incapaz de imaginar um casamento sem Louie. Aqui,
introduzi a idéia de que seria importante planejar um aspecto da cerimônia que
recordasse seu irmão, e pedi a eles que pensassem de que forma poderiam fazer isso.
Quando Teresa e Joey retornaram, descreveram como queriam homenagear
Louie no contexto do casamento. Eles decidiram que seria importante ter uma cerimônia
curta com a família extensa na noite anterior ao casamento, a fim de permitir que as
pessoas compartilhassem abertamente seus sentimentos de saudade, para que eles não
fossem mascarados. Eles decidiram que iriam avisar 05 membros da família sobre estes
planos com antecedência, e pedir àqueles que quisessem falar sobre a vida de Louie
para incluir o que achavam que ele esperaria para o casamento deles. Para o dia do
casamento, eles pediram ao irmão de Joey, que ia ser o padrinho, que mencionasse
Louie no brinde que faria para os dois. Teresa disse que era muito importante para ela
que as pessoas se sentissem livres para sentir tanto tristeza quanto felicidade em seu
casamento, já que ela estava sentindo as duas e não queria ter que fingir neste dia tão
importante.
Teresa e Joey voltaram um mês após o casamento. A cerimônia da noite anterior
à festa havia sido muito emocionante, e tinha realmente permitido às pessoas
vivenciarem todas as suas emoções sem fingimentos. Uma das tias tinha trazido um
filme caseiro que mostrava Teresa, Louie e Joey quando adolescentes. Outros tinham
trazido fotografias e outras recordações para situar seus comentários. Teresa disse: “O
mais importante foi as pessoas terem nos contado o que Louie teria desejado para nós
— isto me deu a permissão de toda a família para tocar minha vida em frente. Nosso
casamento foi lindo — eu senti falta de Louie, mas ficou tudo bem, porque eu pude
sentir e dizer isso sem ter medo. Quando nosso padrinho mencionou Louie no brinde, eu
respondi dizendo o quanto estava sentindo o amor dele — eu não tinha planejado fazer
isso — simplesmente foi a coisa mais natural”.
As vezes, uma morte ocorre exatamente nas proximidades de um ritual do ciclo
de vida, como, por exemplo, quando um dos pais morre logo após o casamento de um
filho, ou quando um dos avós morre quando uma criança nasce. Uma morte assim pode
moldar profundamente os relacionamentos, e um novo ritual pode ser necessário muitos
anos depois de modo a libertá-los do contexto da perda. Um casal se separou depois de
14 anos de casados. O pai da esposa tinha morrido dois dias após o casamento. Em seu
sofrimento, ela se voltou para o marido, embora sentisse que ele simplesmente “não
podia ser comparado” a seu pai. Ele, por sua vez, dera um jeito de se rebaixar às
expectativas dela, de modo que eles entraram em um ciclo no qual ela ficava
intensamente desapontada com ele e ele continuava a desapontá-la. A esposa disse que,
mesmo quando as coisas estavam bem entre eles, a aproximação de seu aniversário de
casamento detonava um novo round de brigas e desespero. Nosso trabalho na terapia
envolveu ajudá-la a fazer o luto pela morte do pai, a separar a morte dele de seu
casamento e, finalmente, quando o casal estava pronto para se reconciliar, a organizar
uma nova cerimônia de casamento, incluindo uma nova data de aniversário. ()casal fez
novos votos de matrimônio, comprou novas alianças, e o marido criou copos especiais
com seus nomes e a nova data gravados neles, libertando-os da lembrança de um ritual
de casamento que tinha, na verdade, se fundido com a morte do pai dela.
CRIANDO RITUAIS PARA FACILITAR A ELABORAÇÃO
Como este capítulo procurou deixar claro, os rituais da vida de qualquer família
são a melhor porta de entrada para facilitar a elaboração. Os rituais diários, as tradições,
as comemorações e os rituais do ciclo de vida proporcionam oportunidades para
enfrentar as perdas e o sofrimento. For vezes, entretanto, podemos ter que ir além destes
rituais normais, e co-criar um ritual especial para promover a elaboração. A capacidade
singular dos rituais de conter contradições torna-os especialmente relevantes para a
tarefa vital de fazer o luto e seguir em frente.
Criar estes novos rituais requer uma busca dos símbolos e atos simbólicos
apropriados para um dado indivíduo, família ou comunidade. Estes símbolos e ações
metafóricas conectam a família com o familiar e abrem uma via para o novo. Os
símbolos possibilitam aos participantes desenvolver múltiplos sentidos no ritual, e as
ações propostas levam-nos para além da esfera verbal.
Como os rituais envolvem as dimensões do espaço e do tempo, deve-se tomar
cuidado para utilizar o tempo do ritual de modo a traçar distinções particulares, como a
distinção entre o tempo do luto e o tempo de retomar as celebrações da vida. O tempo
também pode ser manipulado em um ritual para enfatizar contradições simultâneas. O
espaço onde um ritual ocorre pode expressar crenças particulares, como quando ele tem
lugar em uma instituição religiosa, ou pode conter símbolos especiais, como um
cemitério, ou envolver a volta a um espaço que tinha um sentido único para o morto,
como uma casa, um bosque, uma certa cidade.
Qualquer ritual novo destinado a abordar uma perda deve ser cuidadosamente
co-criado, e não imposto. Deve-se tomar o cuidado de deixar alguns aspectos dele sem
planejamento, a fim de permitir um desenrolar autêntico no momento em que o ritual
for realizado (lmber-Black, 1988; Whiting, 1988).
244
Um poderoso e recém-criado ritual contemporâneo de elaboração é o Projeto
Nomes, também conhecido como “as colchas da AIDS”. O Projeto Nomes é um ritual
nacional* de elaboração, corporificado em um tributo aos milhares de homens,
mulheres e crianças que morreram de AIDS. Milhares e milhares de painéis de 1 X 2 m
foram criados e costurados uns aos outros para formar uma colcha. Cada painel é feito
com amor por pessoas que perderam alguém, e contém expressões que capturam um
aspecto essencial da pessoa que morreu de AIDS. Cada exibição da colcha é
acompanhada de uma cerimônia na qual todos os nomes são lidos em VOZ alta,
reafirmando a singularidade da vida de cada indivíduo, ao mesmo tempo em que
capturam a sensação avassaladora de perda coletiva. A escolha da colcha simboliza as
possibilidades de calor humano disponível pela ligação entre os sobreviventes,
estimulando a vida em face da morte terrível. Para os indivíduos, fazer uma colcha é um
ato de amor, criatividade e continuidade. Para a comunidade, costurá-las tem sido
historicamente uma expressão de solidariedade, colaboração, esperança e alegria. Este
ritual dolorosamente inacabado funciona em múltiplos níveis para recordar cada pessoa
que morreu, para conectar uma comunidade que faz um luto unida e servir como um
poderoso lembrete visual da magnitude da perda para a comunidade mais ampla, ao
mesmo tempo em que celebra a vida.
Trabalhar com clientes em terapia co-criando rituais de elaboração necessários
por vezes muda a posição do terapeuta para a de uma testemunha privilegiada, um guia
humilde ou um companheiro em uma viagem precária. O movimento desde a perda, até
a elaboração e daí à reaproximação com os rituais significativos da vida é uma espiral.
Os rituais de elaboração não oferecem um fechamento simplista ou trivial, mas sim
possibilitam a transcendência, facilitando a reconciliação dos relacionamentos e um
novo envolvimento com a vida.

12. Novas e Estranhas Formas de Abordar a Culpa

DAVID EPSTON
A culpa associada à morte ou ao morrer de outros é bem conhecida, mas tem
havido pouca discussão a respeito dela quanto àquelas convenções derivadas da noção
de “elaboração”. E quase como se, em face da morte e do morrer, a criatividade que
muitos terapeutas empregam em seu trabalho fosse abandonada. A seriedade adotada
pode obstruir quaisquer medidas além da tentativa de convencer a pessoa a não se sentir
culpada. Não estou sugerindo aqui que não devemos levar a morte e o morrer a sério; ao
contrário, estou defendendo o profundo brincar associado ao esforço criativo. As
histórias a seguir foram escritas na esperança de que outros possam ser encorajados a
brincar profundamente face à morte e ao morrer, pois nas histórias de Bill, Hayden, e
Martin e Sally, o terapeuta foi forçado pela urgência a recorrer a esta aptidão. Em cada
estudo de caso, a pessoa estava experimentando culpa em algum ponto do continuum de
auto-acusação/condenação, autopunição, auto-inanição, autotortura, auto-exílio e, por
fim, auto-execução. Para Billy, Hayden e Martin, o alivio rápido e duradouro foi
encontrado de forma nova e estranha.
BILLY ESCAPA DE GUBA
Billy, de 12 anos, foi encaminhado para uma comunidade terapêutica residencial
devido a sua persistente falta às aulas, fugas de casa e, mais recentemente, abuso de
álcool. Ele era o terceiro de quatro filhos de uma família fundamentalista. Seu pai
trabalhava o dia todo em sua pequena empresa, mas ainda tinha dificuldade para
sustentar a família, que se encontrava empobrecida. A mãe tinha vindo de uma família
“aristocrática” e altamente bem-sucedida, que a tinha rejeitado quando ela se casara.
Aos 3 anos de idade, Billy tinha sido atropelado por um ciclista, sofrendo
ferimentos desfigurantes no rosto, que haviam requerido cirurgias reparadoras. Embora
estas tivessem sido bem-sucedidas, daquele dia em diante, segundo
246
a história da família, Billy tinha passado a “rejeitar” os pais. Segundo o relato deles, o
menino se recusava a aceitar suas tentativas de “abraçá-lo” e começou a vagar para
longe de casa. Segundo Billy, eles o culpavam por sua “estupidez” ao se jogar na frente
do ciclista; ele os culpava, por sua vez, por não o terem vigiado adequadamente.
Quando Billy tinha 7 anos, seu pai recebeu um diagnóstico de câncer nos rins, e
suas condições de saúde se deterioraram nos três anos seguintes. Finalmente, uma
última tentativa foi feita para salvar sua vida através de cirurgia e, surpreendentemente,
ele passou por um período de remissão.
Fui solicitado a atender Billy com urgência dois anos depois da cirurgia do pai e
seis semanas após a família insistir na sua admissão à unidade residencial, devido a sua
ausência da escola e ao perigo de suas fugas de casa. Ele tinha freqüentado menos de 10
dias de aula nos seis meses anteriores. A saída do pai de Billy havia se deteriorado
súbita e drasticamente, e sua mãe tinha ficado emocionalmente paralisada, recusando-se
a falar com quem quer que fosse. Como não havia outros membros da família que
pudessem cuidar de Billy, a admissão na residência tornou-se uma maneira de evitar a
ação legal que o colocaria sob a custódia do Estado. Ela também aumentaria a
possibilidade de que Billy e sua família pudessem ser reunidos no futuro.
A equipe de terapia familiar da unidade residencial encontrou a família de Billy
completamente “devastada” e extremamente difícil de atingir. Enquanto isso, a
comunidade terapêutica não conseguia contê-lo com os recursos convencionais. Ele
continuava a fugir à noite, usando bicicletas roubadas, e já havia roubado 20 quando eu
o conheci. Ao mesmo tempo, ele tinha sofrido numerosos ferimentos físicos, muitos dos
quais não conseguia explicar. A equipe e os outros internos sentiam que havia “alguma
coisa de louco nele”, e ninguém gostava de se aproximar muito. O mais enervante para
o terapeuta de Billy era sua maneira imprudente de andar nas bicicletas roubadas, por
vezes parecendo se jogar no caminho dos carros. Outras vezes, ele era encontrado se
abrigando em igrejas, perigosamente empoleirado nos campanários, bêbado com o
vinho do altar. Uma ocasião, ele tinha arrombado a casa do diretor de uma funerária e
roubado as chaves do carro fúnebre. Estes eventos perturbavam tanto a equipe da
residência que a única opção que seus membros conseguiam imaginar para reduzir o
caos que ele estava criando era transferi-lo para uma unidade de segurança, onde ele
pudesse ser encarcerado. Ao invés disso, o terapeuta, em uma tentativa de colocar Billy
sob alguma medida de controle, iniciou o processo ritual desenvolvido por Michael
White (1989) denominado “ritual de inclusão”. Este ritual envolve uma fase de
contenção física, mas esta é definida como uma forma de entrar em contato com os
outros ao invés de como uma punição. Um processo ritual como este muitas vezes
detona uma crise de intimidade, na qual o jovem busca a proximidade física e uma
sensação de pertencimento.
Na intimidade que esta intervenção provocou, Billy contou a seu terapeuta sobre
sua certeza de ter causado o câncer do pai e de estar possuído por um demônio. Foram
feitas tentativas de convencê-lo do contrário; quando elas falharam, Billy foi atendido
pelo médico da família, cujos esforços não tiveram
247
melhor êxito. Todos estavam tão desesperados que alguém propôs um exorcismo, uma
prática coerente com o cristianismo fundamentalista da família. Billy aproveitou esta
oportunidade, que foi conduzida sob a orientação eclesiástica apropriada. Ele
experimentou um alívio imediato, mas, infelizmente, este só durou 24 horas, após as
quais ele sentiu que seu “demônio” tinha retomado o controle sobre ele. Neste ponto, eu
fui solicitado a atender Billy em uma interconsulta com seu terapeuta. As condições de
saúde do pai tinham se deteriorado recentemente, e acreditava-se que sua morte era
iminente. Especulávamos que o demônio de Billy poderia exigir a vida dele em
retribuição pela morte de seu pai.
Fui requisitado pela equipe de terapia familiar para fazer uma consulta de
emergência com Billy. Uma coisa parecia estar a meu favor ao encontrá-lo: eu sou
ciclista, e tinha ido à consulta em uma bicicleta de corrida, vestindo uma camiseta de
ciclismo sob minha camisa. Como dois ciclistas poderiam não se unir? Quando Billy
entrou na sala, surpreendi-me com sua abertura, simpatia e ausência de suspeitas. Ainda
assim, achei que seria prudente mostrar minhas credenciais. Perguntei se ele gostaria de
dar uma olhada na minha bicicleta. Ele aceitou com efusão. Revelei minha camiseta de
ciclista. Minha primeira pergunta após nossa “reunião de ciclistas” foi: “Você já teve
um dia bom na sua vida?”. Ele considerou a pergunta muito seriamente e veio com a
resposta: “Aquele dia na igreja, quando eu fui exorcizado... e o dia em que eu ganhei
minha primeira bicicleta”. Como os efeitos da primeira experiência tinham sido tão
curtos, decidi insistir na segunda. Convidei-o a me contar sobre ela com mais detalhes.
Para ajudá-lo em sua descrição, perguntei qual era o nome da bicicleta. Sua resposta foi
fortuita: “Cascavel!”. Então perguntei se ele sabia o que era uma cascavel. “Sim”, ele
disse, “uma cobra mortal”. Eu concordei com ele: “Você está certo. Ninguém em estado
normal ia mexer com uma cascavel”. A partir daí, aproveitei todas as oportunidades
para acrescentar os comentários — “As bicicletas são boas... andar de bicicleta é bom...
os ciclistas são bons... e ser bom afasta a maldade” — em nossa conversa. Estes
comentários nos colocavam no mesmo status: ciclistas bons, em oposição à maldade. A
crença de Billy de que ele estava possuído pelo demônio e, conseqüentemente, era um
praticante do mal, tinha se mantido imune ao descrédito. Eu lhe ofereci uma
contraproposta que não mais o forçava a fechar os olhos para as discrepâncias entre os
eventos da vida do pai e os de sua própria vida.
Pedi então que Billy me mostrasse seu demônio por meio de um desenho, o que
ele fez sem hesitar. Sua representação tinha chifres, um tridente, um rabo em forma de
seta e um terceiro olho no meio da testa. Logo abaixo, estava escrito “Guba”. Não
demonstrei medo, mas tratei a representação de Guba com o mesmo grau de respeito
que se deve dedicar a qualquer adversário de valor. Coloquei a imagem de Guba em um
canto da sala e pedi a Billy e seu terapeuta que pegassem suas cadeiras e se juntassem a
mim no lado oposto. Nós nos aproximamos e conversamos em um tom confidencial e
sussurrado. Apelidei Billy de “Cascavel”, o terapeuta aceitou o nome de “Cavaleiro
Branco” e eu tomei a alcunha de “Anjo Vingador”. Naquele momento e lugar, todos
concordamos em unir forças contra Guba. Sempre que a oportunidade
248
surgia, eu repetia a contraproposição: “Os ciclistas são bons; ser bom afasta a maldade”.
Prossegui contando a Billy sobre a camiseta de ciclismo Molteni que me tinha
sido devolvida recentemente por outro cliente, que tinha sofrido um episódio quase fatal
de asma. Ela tinha sido seu talismã enquanto ele recuperava o controle sobre a doença e
se tornava um ciclista competente. Também informei-o de que o ciclista mais famoso do
mundo, Eddie Mercyx, era patrocinado pela Molteni Spaghetti Company, e tinha ganho
cinco vezes o Tour de France. Falei mais detalhadamente sobre como “a Molteni” tinha
me ajudado a viajar da Inglaterra até a França de bicicleta, e disse que, quando
fraquejava, eu sempre sabia que podia contar com “a força da Molteni” para chegar ao
meu destino, acontecesse o que acontecesse. Ao final da sessão, dei “a Molteni” para
Billy.
Comecei a telefonar regularmente para Billy, e começava o contato da seguinte
maneira: “Cascavel, câmbio... câmbio. Você está me ouvindo? Aqui é o Anjo
Vingador... você está captando meu sinal?”. Depois que Billy reconhecia nosso contato,
eu perguntava: “Algum sinal do inimigo hoje? Guba tentou lhe incomodar ou controlar
sua mente?”. Billy geralmente me contava sobre alguma escaramuça e sobre as táticas
que ele estava empregando, concluindo com: “E eu escapei do Guba”. Eu indagava se
ele achava que tinha recursos suficientes, e ele me assegurava que “a Molteni” estava
funcionando. “Farei novo contato daqui a alguns dias. Aqui é o Anjo Vingador, câmbio
e desligo.”
Nós nos encontramos novamente dois meses depois de meu retorno do exterior.
Billy, segundo ele mesmo e seu terapeuta, tinha retomado completamente o controle
sobre si mesmo. Achei difícil esconder minha surpresa. Dentro de duas semanas de
nosso primeiro encontro, ele tinha parado de fugir, de roubar bicicletas e de se
machucar, e tinha se tornado mais acessível para o terapeuta e para os outros internos.
Pedi sua permissão para fazer uma série de perguntas a fim de satisfazer minha
curiosidade sobre como ele tinha escapado de Cuba. A seguir, está o formato “carta”
que utilizei para recontar e validar a história de Billy.
Caro Cascavel:
Esta é uma cópia de nossa conversa de hoje. Você pode lê-la novamente quando quiser.
Se você esquecê-la, a carta vai ajudá-lo a se lembrar. Billy, isto é o que você tinha a
dizer:
A camiseta Molteni me fez acreditar que eu era capaz de lutar contra Cuba. Eu acho que
ele não gostou disso. Ele está pronto para tentar um novo ataque. Mas ele pode ser
eliminado pelo bem. Eu sou do bem, e Cuba é do mal. Meu nome especial me deu força
porque ele significa uma cobra muito venenosa. Meu terapeuta, Tim, garante que eu sou
bom, e não mau. Tim está do lado do bem e da força. Eu não sabia que tinha tanta força
mental antes. Eu descobri isso quando Tim me promoveu para um grau superior na
residência. Se eu continuar assim, logo vou virar sênior. Eu estou me acostumando com
o fato de que tenho
249
um bem e uma força pessoais dentro de mim. Hoje em dia, eu tenho toneladas a mais de
força do que eu tinha quando lhe conheci. Nosso amigo Michael White estava certo
quando disse que eu ia ficar bom porque eu era capaz de lutar contra o Guba, e que eu
não devia ser tão impaciente. Ele também estava certo quando disse que tudo o que
tinha que ser feito já tinha sido feito, e que eu ia fazer o resto.*(1)
Eu sei que a vida é cheia de altos e baixos e que, quando eu estiver por baixo,
vou estar vulnerável aos truques e à maldade de Cuba. Vai ser fácil revidar, mesmo
quando eu estiver por baixo e Cuba tentar controlar minha mente de novo. Eu tenho
uma mente própria agora, e ela é forte. Eu posso chamar o Cavaleiro Branco e o Anjo
Vingador se Cuba tentar alguma jogada sorrateira contra mim. Eu já revidei usando
minha força mental para ser bom e não ser convencido a ser mau. Eu simplesmente não
escutava mais o que o Guba dizia. Eu simplesmente disse a mim mesmo para não
escutar, e pronto. Mesmo se o Guba gritasse comigo, eu gritava mais alto ainda. Eu tiro
a minha força de dentro da minha própria mente, e sei que sempre a tive, O problema é
que eu não sabia que tinha. Agora eu sei.
Fiquei muito interessado em aprender suas técnicas anti-Guba. Ainda assim, pode ser
uma boa idéia praticar com o Tim como lutar contra o Guba. Você pode fazer isso
fingindo que está por baixo e vulnerável, e espionando as emboscadas que o Guba tenta
fazer contra sua mente para dominá-la com as bobagens dele. Tim vai auxiliá-lo nisto,
ajudando-o a fingir e a espionar os hábitos de Guba. Se ele for usar golpes baixos, você
vai ter que estar de prontidão. Espionar é a melhor coisa a fazer enquanto tudo estiver
bem na sua vida. Se as coisas ficarem feias, você vai estar pronto para qualquer coisa
que o Guba tente para controlar você. Ele vai ficar muito chateado quando descobrir que
você fortaleceu tanto sua mente. Ele geralmente procura as mentes fracas. Você não é
nenhum fracote — isso é certo. Guarde esta carta em um lugar seguro.
Atenciosamente,
O Anjo Vingador
Contudo, temerosos pela sanidade de Billy no caso da morte de seu pai, achamos
prudente tomar providências para esta possibilidade, para o caso de nossas intervenções
falharem. Combinamos um encontro com o irmão mais velho de Billy, recém-voltado
de viagem, e filmamos a conversa com ele. Sugerimos que o propósito era a absolvição
de Billy, mas que talvez tivéssemos que guardar a fita até que ele estivesse pronto para
apreciar seu conteúdo. Entretanto, Billy ficou muito animado para ver a fita, pois sua
relação com o irmão era a mais forte que mantinha dentro da família. Durante minha
discussão com o irmão, propus uma explicação para o câncer do pai que se opusesse à
de Billy: “Seu pai trabalha tanto... é quase como se ele se matasse de trabalhar”.
Nota de rodapé:
*(1). Billy conhecera Michael White porque seu ritual de inclusão tinha sido
denominado “à moda de Michael White” em sua comunidade terapêutica, o que
despertou urna curiosidade enorme nele de saber o que este senhor acharia de seus
apuros, quando lhe contei que ia visitar Michael na Austrália.
250
O irmão de Billy concordou, e investigamos esta proposição por algum tempo durante
nosso encontro filmado. Embora eu tivesse sido informado de que o pai deles negava
que sua vida estivesse em perigo e se recusava a discutir planos para o futuro da família
com a esposa e com o terapeuta do filho, escrevi uma carta para ele, buscando sua
cooperação na preparação do vídeo.
Caro sr. Brown:
Estou colocando meus pensamentos no papel porque não vou poder estar presente
quando o senhor fizer o vídeo com Tim [o terapeuta]. Lamento muito não poder fazê-lo.
A próxima hora pode ser a experiência mais crítica para o futuro de seu filho. Sei que
isto parece dramático, portanto permita-me explicar. Como o senhor deve saber, Billy
erroneamente acredita que é inteiramente responsável pelo seu câncer e por qualquer
sofrimento que o senhor possa estar atravessando. Embora o senhor possa se
surpreender com isso e não estar disposto a aceitar suas crenças infantis, ele nutre estas
idéias a despeito das melhores intenções de dissuadi-lo e dos maiores esforços para
convencê-lo do contrário. Parece-nos que ele formou estas idéias há alguns anos atrás,
quando ainda era muito pequeno, e, no ponto de vista dele, tudo o que tem acontecido
desde então as tem confirmado. Ele ainda não consegue ver isto desde o ponto de vista
de um adulto, porque, em um certo grau, ele está estacionado em um nível anterior de
pensamento. O amor dele pelo senhor é tão grande que ele ficou devastado com sua
doença. Se ele o amasse menos, seu problema seria consideravelmente menor, e não
estaríamos tão preocupados. Ele acredita inconscientemente que deve ser punido e
torturado, e é exatamente isso que ele faz consigo mesmo às vezes. Isso é muito
perigoso para o bem-estar dele. Também existe um grave risco de que ele venha a ter
um estilo de vida torturado, no qual seus pensamentos inconscientes de culpa pelo seu
sofrimento imponham autopunições para ele. Se não fizermos algo, é possível que ele
seja condenado a uma pena de prisão perpétua por algo que não fez. Ele vai pagar com
autotorturas por um crime que não cometeu, e nem poderia ter cometido. Nós sabemos
disso, o senhor sabe disso, mas Billy tem um conjunto de idéias muito diferentes para
explicar seu infortúnio. Ele é uma vítima, como o senhor e sua família, mas ele vê a si
mesmo como o vilão da história.
Minha opinião é de que só o senhor (enquanto pai dele e a pessoa que mais
sofre) pode absolvê-lo. Tenho medo de dizer que o sofrimento dele pode persistir até
que ele tenha a compreensão adulta para acreditar em suas palavras e conscientizar-se
inteiramente do sentido delas. Solicito, pelo bem de seu filho (e pelo seu), que o senhor
grave e documente seu perdão a ele, para impedi-lo de se torturar de culpa por sua
doença. Não é provável que isto tenha um impacto imediato, mas prometemos que
vamos guardar a fita e colocá-la à disposição de Billy quando ele ou nós acharmos que
ele está pronto para saber a verdade. Deste modo, independente do que venha a
acontecer com o senhor ou conosco, esta fita vai permanecer em propriedade de seu
filho, e acredito que ela poderá significar a diferença entre uma vida torturada e um
futuro bom
251
para Billy. Novamente, sou de opinião de que o que o senhor está prestes a fazer vai ter
mais influência sobre o futuro de seu filho do que qualquer outra coisa, exceto sua
concepção e nascimento.
Não estarei aí com o senhor e o terapeuta de Billy, mas quero que saiba que
estarei presente em espírito. Desejo-lhes boa sorte, pois o que farão agora pode mudar o
curso da vida de Billy.
Com respeito e admiração,
David.
O pai de Billy foi contra filmar o encontro, mas, ao invés disso, optou por falar
pessoalmente com o filho. Quatro meses depois, ele morreu. Billy, juntamente com sua
família, ficara ao seu lado em sua última semana de vida. Embora sofresse
profundamente, Billy foi capaz, em todos os momentos, de agir com dignidade e
integridade pessoal, e apoiar os outros membros da família. Por sugestão e em
companhia de seu terapeuta, Billy acompanhou o corpo do pai até o crematório
juntamente com o pastor, e mais uma vez participou de todas as formas possíveis, até
que tudo o que restava fazer era dizer adeus a seu pai.
Dois anos depois, fiquei sabendo que Billy tinha crescido bastante, e
provavelmente não cabia mais na Molteni. Combinamos nos encontrar. Billy recordou
como Guba “entrava dentro de mim e me fazia fugir e me meter em coisas ruins... ele
simplesmente instruía minha mente a fazer as coisas”. Quando perguntei como ele
explicava seu sucesso, ele propôs uma série de possibilidades:
BB Em primeiro lugar, descobri que as pessoas se preocupavam comigo. Antes, eu
achava que ninguém ligava; em segundo lugar, a Molteni. Um grande amigo deu-a para
mim... você. Eu sabia que podia confiar nela. Ela era uma coisa poderosa, que conseguia
deter todos os meus inimigos. E eu sei que, desde que ela veio para mim, todas aquelas
coisas ruins pararam de acontecer. Eu sou muito grato a ela. E, em terceiro lugar,
expresse sua vida para aquelas pessoas que você sabe que te amam... Depois que eu
comecei a falar com você, as coisas meio que perderam o poder, como acontece quando
você vê a eletricidade em uma lâmpada e depois a desliga.
DE Então me diga, antes do Guba lhe dar a idéia de que você era o culpa do pelo
problema de seu pai. Quando seu pai morreu, penso que teria sido um bom momento
para Guba tentar se reafirmar em sua mente. Isto não teve nenhum impacto em você?
Nenhuma destas idéias lhe afetou?
BB Não... não... Eu acreditei durante um tempo que eu era culpado por meu pai ter
ficado doente.
DE De onde você tirou esta idéia?
BB Cuba insinuou isso em minha mente, mas eu me convenci que não era verdade. Eu
escutei meu pai quando ele falou comigo. Ele me disse para ficar bom, porque sabia o
que estava acontecendo comigo.
DE Você se convenceu de que não era verdade?
252
BB É.
DE Se Você não tivesse tido a força que teve, o que você acha que Guba teria feito com
você no final?
BB Ele provavelmente teria me transformado em um vegetal e me mandado para um
hospital para loucos.
DE Fico feliz por isso não ter acontecido.
BB Eu também.
DE Porque você me parece ser uma pessoa muito boa, e se eu tivesse que descrevê-lo
em uma só palavra, seria corajoso. Tenho a impressão que você viveu coisas bastante
difíceis para um jovem — a morte de seu pai. E fim me disse que você foi
extremamente solícito com sua família, e que seu pai teria ficado muito orgulhoso de
você. Você também pensa assim?
BB Sim.
Após esta conversa. Billy posou para uma foto vestido com a Molteni. Então,
convidei-o a inaugurar minha bicicleta. Ele retornou 15 minutos depois, tendo suado
bastante, mas ele e a bicicleta estavam inteiros. Jamais vi alguém com uma postura tão
orgulhosa quanto a dele ao desmontar da bicicleta e me devolver o capacete. Desde
então, Billy se tornou um jovem muito popular tanto na residência como na escola, onde
é considerado “o garoto mais centrado”.
Um trabalho considerável foi feito pela equipe terapêutica para ajudar Billy e
sua mãe a se reaproximarem, uma proposta muito difícil, uma vez que, após a morte do
pai, descobriu-se que ele havia hipotecado todo seu seguro de vida e a mãe teve que
vender a casa da família para pagar os credores. Neste processo, um segundo filho teve
que ir morar com amigos. (Atualmente, estão sendo feitos esforços para angariar
recursos financeiros e ajuda da família extensa para a mãe de Billy, para que a família
possa se reunir novamente. Parece provável que Billy possa retornar para sua família em
um futuro próximo.) *(1)
CONFISSÃO, PENITÊNCIA E ABSOLVIÇÃO*(1)
Sally, de 26 anos, marcou uma consulta para seu marido, Martin, de 28, e para
ela mesma, porque o marido se recusava a reconhecer sua gravidez de três meses.
Quando os encontrei e conversamos pela primeira vez, ficou muito fácil entender por
quê. Sally e Martin tinham se conhecido quando tinham 13 e 15 anos respectivamente, e
suas vidas praticamente não tinham se separado desde então. Eles sempre quiseram
filhos; entretanto, viajaram para o exterior para que Martin pudesse progredir em sua
carreira de contador. Isto era muito importante para ele, pois sua família tinha ficado
muito pobre em decorrência das más decisões de seu pai nos negócios.
Nota de rodapé:
*(1). Quase todo o crédito por este caso vai para o terapeuta de Billy, Tim, e a equipe
terapêutica que trabalhou com ele com carinho e perseverança por muitos anos. (Esta
história foi escrita com a colaboração de Martin e Saly Lyttleton, e agradeço-lhes por
sua orientação.)
253
Ele, em contraste, queria garantir a segurança financeira da família, incluindo sua mãe,
que tinha se separado do pai, e a mãe de sua mãe. Sally ficou grávida quando eles
estavam morando fora, e queria voltar para casa. Martin pediu que eles ficassem mais
um ano para poder terminar seu contrato. Como havia algumas indicações de risco
obstétrico perto do fim da gravidez, Sally foi internada para um “parto induzido”, para
decidir se uma cesariana seria necessária. A equipe médica, por engano, procedeu como
em um parto normal. Após 18 horas de trabalho de parto, um jovem médico tentou, sem
sucesso, usar o fórceps, e Sally foi transferida com urgência para a sala de operações.
Com a demora, o bebê parou de respirar, tendo que ser ressuscitado e, como resultado,
sofreu danos cerebrais profundos. Martin e Sally voltaram para a Nova Zelândia com o
bebê, que passou nove meses entre a casa e o hospital antes de morrer. Esta foi uma
época extremamente difícil para todos os envolvidos, e a angústia e o sofrimento foram
quase insuportáveis.
Nesta época, Martin começou a se preocupar com sua culpa. Ele se culpava por
dois motivos: primeiro, se ele não tivesse querido ficar na Inglaterra, isto não teria
acontecido e, segundo, ele deveria ter se dado conta de que a equipe médica estava
enganada e ter feito algo para alertá-la. Embora Sally reconhecesse que ela também
tinha algum luto por fazer, ela se sentia capaz “de olhar para a frente, e não para trás”, e
esperava que a gravidez atual tivesse o mesmo efeito em Martin.
Este, ao contrário, estava bastante desligado. Embora ainda mantivesse seu
emprego, ele se preocupava cada vez mais com todos os motivos que tinha para se
culpar pela morte do primeiro filho, o que tomava de duas a três horas de seu tempo
todos os dias. Além disso, ele estava preparando uma ação legal contra o médico em
questão, e estava determinado a levá-la adiante a despeito do que descrevia como “um
monte de conflitos em minha cabeça”. Em um certo grau, ele não sabia a quem culpar
mais — o médico ou ele mesmo.
Escutei-o durante um bom tempo, e então fiz a seguinte pergunta:
“Quantas pessoas tentaram convencê-lo de que você não é culpado?”. Eles afirmaram
que seus muitos amigos e familiares tinham tentado exatamente aquilo, sem nenhum
sucesso. Na verdade, Martin agora evitava todas as ocasiões sociais. Ele descreveu que
se sentia distante e “anormal”. Em nossa discussão, alternei o termo mais auto-referente
“autotortura” com o termo culpa, e depois comecei a usá-lo quase exclusivamente.
Propus que havia uma rota bem estabelecida de fuga da autotortura: confissão,
penitência e absolvição. Perguntei se eles já tinham ouvido falar nisso. Eles riram pela
primeira vez, e afirmaram que sim. Perguntei novamente se eu tinha alguma chance de
convencer Martin de que ele não devia se sentir tão culpado, uma vez que “no fim das
contas, a culpa não é sua”. Eles insistiram que isto havia sido tentado exaustivamente
sem que Martin experimentasse qualquer alívio.
Com isso, todos concordamos em começar pela confissão de Martin. Estimulei-o
a empregar os “sete pecados capitais” como ponto de referência moral.
Ele tinha bem claro quais eram as acusações que fazia contra si mesmo:
254
A razão de estarmos na Inglaterra era a minha pressão... Eu fiz Sally ficar lá com uma
mistura de mentiras e sei lá mais o quê... No dia do parto, eu não peguei ninguém pelo
pescoço... Eu queria não ter ficado tão preocupado com Sally. Eu deveria ter olhado
para o que as pessoas estavam fazendo.
Sally e eu nos reunimos e decidimos que os pecados dele tinham sido os da
desonestidade, ganância e ignorância. Martin se declarou 100% culpado. Sally e eu
começamos a criar uma penitência apropriada, à qual nos referíamos como “tortura” ao
invés de “autotortura”. Optamos pela idéia das “corridas da tortura” e “tarefas da
tortura”, todas muito benevolentes, uma vez que, desde a morte do bebê, Martin havia
engordado 15 quilos e estava extremamente obeso. O clima mudou dramaticamente, e
poderia-se dizer que estávamos rindo bem alto, especialmente quando concordávamos
com uma das auto-acusações de Martin e também insistíamos que ele não tinha
considerado inteiramente sua condição de pecador.
A seguinte carta foi enviada para eles imediatamente após a sessão:
Caro Martin:
Você tez sua confissão ontem, o que provavelmente significou um alívio para você.
Agora você está em uma posição melhor para realizar algumas ações sob forma de
penitência. Esta vai tornar o lugar da autotortura. Como você mesmo notou, a
autotortura era uma sentença sem limite — uma pena perpétua, na verdade. Havia a
possibilidade de sua mente se transformar em sua prisão e sua culpa se tornar sua
carcereira.
Em sua confissão, você se declarou 100% culpado das seguintes auto-acusações:
1. A fim de prover para sua mãe, sua avó e sua própria família de uma maneira diferente
da de seu pai, você viajou para a Inglaterra para garantir uma boa renda. Você fez isto
para não vivenciar a insegurança que sofreu quando criança. Você foi pressionado, por
estas preocupações, a progredir em sua carreira, e fez tudo que estava a seu alcance para
convencer Sally a acompanhá-lo. Pelos motivos acima, você acusou a si mesmo dos
pecados de desonestidade e ganância, e se declarou culpado.
2. No dia do parto de Sally, “Eu não peguei ninguém pelo pescoço. Eu deveria ter
olhado para o que as pessoas estavam fazendo”. Ao invés disso, você foi culpado por
passar o tempo todo ao lado de Sally, confortando-a e compartilhando sua dor. Você se
declarou culpado de ignorância. “Eu deveria saber o que significava um ‘parto
induzido’, ter estudado Medicina e me especializado em Ginecologia e Obstetrícia.”
Ao invés disso, você progrediu em sua carreira de contador e investiu muito
tempo e energia nela. E, além disso, você se recusou a trabalhar como contador por
motivos altruístas, e insistiu em ser pago por seus serviços. Com seu salário, ao invés de
dar todo o seu dinheiro para uma causa nobre — Sally sugeriu a Sociedade para a
Prevenção da Crueldade contra os Animais —, você
255
tentou assegurar sua vida e a de Sally, juntamente com a geração de seus filhos e as
gerações de sua mãe e de sua avó.
Você concordou que a justiça só seria feita se você infligisse a si mesmo alguma
penitência justa e adequada a seus pecados de ganância, desonestidade e ignorância. E
eu imagino que alguns outros pecados mortais tenham lhe escapado durante sua
confissão.
As torturas serão as seguintes:
1. Todos os dias, chova ou faça sol — espero que chova! — você deverá se
levantar à inconveniente hora das 6:30 da manhã, vestir o abrigo de corrida apropriado e
correr por exatos 20 minutos. Durante este tempo, você deverá repetir, diversas vezes,
uma lista de insultos a si mesmo. Sally irá providenciar esta lista e reabastecê-la quando
necessário.
2. Sally permitirá que você se esqueça de levar o lixo para fora e então insistirá
que você o faça tarde da noite e de pés descalços.
3. Martin, você deverá deixar suas roupas espalhadas pela casa, e Sally as
esconderá para que você experimente uma breve e aguda tortura para encontrá-las. Sally
dirá que sua gravidez a tornou esquecida, e que ela simplesmente não pode evitar isto.
4. Martin, você deverá pintar o telhado dentro de um mês. Aleatoriamente, Sally
vai lhe telefonar para que você, sendo o tipo de pessoa que não consegue resistir ao som
do telefone, tenha que descer do telhado. Sally irá perguntar se você está se torturando
de modo satisfatório.
5. Mais uma vez, durante as torturas 2, 3 e 4, você deverá recitar para si mesmo
os versos auto-acusatórios que Sally irá compor.
Estarei ansioso para encontrá-los daqui a um mês para ver se você, Martin, vai
estar pronto para a absolvição. Boa sorte!
Afetuosamente,
David.
Nós nos encontramos um mês depois e, assim que nos vimos, começamos a
gargalhar. Martin me informou que tinha “modificado ligeiramente a tortura” da corrida
para a natação, e estava fazendo de seis a oito piscinas por dia. Eu comentei: “Nadar é
bom, porque sua mente fica bem livre. Você fica pensando em sua culpa?”. Ele riu e
disse que simplesmente não tinha energia para isso. Um bom progresso também estava
sendo feito no telhado. Sally me contou que Martin tinha se tornado mais energético,
mais “como antes” e menos deprimido. Quando perguntei quando isto tinha ocorrido,
ela disse: “Imediatamente, mesmo! Você melhorou dentro de 24 horas”. Martin
concordou animadamente, dizendo que não se sentia mais “anormal” e voltara a ser
80% do que era antes: “Estou chegando tão perto que muitas pessoas não notariam a
diferença”.
DE O que você acha que aconteceu aqui que deu a partida para seu retorno?
ML Foi como um ponto de virada. Se ele teria acontecido mais adiante, não sabemos.
Mas não poderia ter acontecido quando ele morreu.
256
Foi uns dois meses depois, e foi um ponto de virada. É a única forma de
descrever.
DE Como você entende o que aconteceu? O que você acha que eu fiz ou disse que
permitiu que vocês mudassem de curso, em um certo sentido?
ML Você foi sensato no que disse, mas sua abordagem foi muito divertida, beirando o
ridículo. Foi a abordagem. Eu consegui ver seus motivos, e eles eram bons. Foi
ligeiramente ridículo. Fez com que tudo o que eu estava sentindo parecesse ridículo.
SL (explodindo em risadas) E foi aquilo que você disse, que um monte de gente andava
lhe dizendo que não era sua culpa. E aquilo não funcionava. Se você se culpa, você tem
que botar isso para fora.
Passamos então a discutir como eles tinham se distanciado tentando proteger um
ao outro, “indo cada um para o seu canto”. Eles sentiam que aquilo que tinha se
introduzido entre eles havia desaparecido. Eles também falaram sobre os atritos que
haviam surgido entre eles quando Sally estimulara Martin “a voltar a ser como antes,
tão confiante”, e ele se sentira incomodado. Sally também expressou seu alivio pelo fato
de Martin não estar mais indiferente a sua gravidez. Ela temia que ele acabasse, por
assim dizer, perdendo mais este filho. Eles concordaram que tudo isto era passado,
embora eles ainda tivessem que fazer um certo luto pelo bebê. Agora eles estavam
determinados a compartilhar este luto. Martin tinha retomado todas as atividades sociais
que abandonara. Eles tinham escolhido cuidadosamente “um bom ginecologista” e
estavam seguros de que tudo ia sair bem desta vez.
Acho que nunca esperei tanto por uma entrevista de acompanhamento de seis
meses. Sally me contou que ia fazer cesariana e mal podia esperar para ter seu filho nos
braços. Martin estava um pouco apreensivo, mas estava indo bem. Ela riu e disse que eu
poderia estar interessado em saber que ele estava nadando um quilômetro por dia e já
tinha perdido 15 quilos. Quando perguntei o que estava acontecendo com a ação legal,
ela respondeu: “Sabe, Martin não mencionou mais isto desde a primeira vez que
estivemos aqui, há seis meses”. Desejei-lhe sorte. Três semanas depois, recebi um
cartão anunciando o nascimento de uma “menina linda e saudável”. Nós nos
encontramos um ano depois para uma revisão, e para que eu conhecesse a filha deles.
Martin disse que ele agora considerava que a morte de seu filho tinha lhe tornado uma
pessoa mais profunda, e ele seria sempre grato por isso. A ação legal estava
continuando, mas Martin não tinha mais nenhum interesse nela e estava pensando em
retirá-la.
257
HAYDEN BARLOW RECUPERA O APETITE *(1)
Hayden, de 11 anos, tinha tido um tumor maligno diagnosticado aos três, e
sofrera diversas cirurgias, radio e quimioterapias. Recentemente, ele tinha tido uma
recaída que envolvia novas cirurgias. A isto se seguiu, em um período de muitos meses,
uma perda de peso dramática e uma completa perda de apetite, aparentemente não
relacionada ao processo da doença. Fui solicitado a atendê-lo para ver se conseguia
descobrir qual era o problema. Hayden puxou para baixo a aba do boné de beisebol que
geralmente usava, cobrindo seu rosto. Tudo o que eu podia ver eram suas lágrimas
escorrendo por baixo dele. Ele odiava que o vissem chorar. Ele me contou que não
conseguia comer. Cada vez que se sentava para fazer uma refeição, ele via uma bolsa de
soro e se sentia nauseado, como acontecia após a quimioterapia. A noite, ele tinha
pesadelos com bolsas de soro e misturas de remédios que pingavam dentro delas. Ele
estava morrendo, enquanto médicos e enfermeiras saíam de dentro das tumbas dizendo:
“Nós vamos te pegar! A culpa é sua!”. Então ele se virava e via um caminhão vindo em
sua direção. Embora Hayden parecesse aliviado por falar de seus temores, eu sabia que
isto era insuficiente para que ele recomeçasse sua quimioterapia. Hayden pediu que eu
contasse a seus pais o que estava acontecendo com ele. Ele não conseguira revelar para
eles que sua coragem habitual era apenas uma fachada. A família concordou com o
encaminhamento para terapia familiar.
Quando conheci Cynthia e Roy Barlow, eles pareciam confusos e desesperados.
Hayden estava escondido sob seu boné de beisebol e o casaco de lenhador do pai. Eles
disseram que Hayden era extremamente independente e, por algum tempo, preferira
administrar seu tratamento no hospital sozinho. Entretanto, ele não estava mais
conseguindo fazer isto, e eu conjeturei que eles deviam estar terrivelmente preocupados
com sua inexplicável perda de peso, com sua “palidez e infelicidade” no último mês e
com sua recusa a se submeter a outros tratamentos. Os olhos de Hayden estavam
voltados para baixo, mas eu notei que, quando eu me virava para seus pais, ele olhava
para mim. Após estabelecer a preocupação e a confusão dos pais, voltei-me rapidamente
para ele, encontrando seu olhar pela primeira vez, e disse: “Você acha que seus pais
conseguem entender seus sentimentos tão fortes?”. Ele foi pego de surpresa, e
murmurou um defensivo “não sei”. “Bem, por que você não os testa? Eles parecem
fortes o bastante para mim, mas você nunca vai saber se não testá-los.”
Disse a seus pais: “Vocês se importam se Hayden testá-los para ver se vocês são
fortes o suficiente para compreenderem as preocupações dele?”. Embora incertos
quanto à natureza do teste, eles concordaram com entusiasmo. Foi combinado que o pai
seria o primeiro, e que seu teste duraria exatamente 15 minutos; a mãe então se juntaria
a eles, e o teste dela também teria a mesma duração.
Nota de rodapé:
*(1). Uma versão completa desta história, escrita em cooperação com a mãe de Hayden,
Cynthia Barlow, sua médica, Louise Webster, sua assistente social, Lynn O’Flaherty, e
Mike Murphy, foi publicada em Epston (1989, p. 29-44).
258
A médica, Cynthia e eu nos retiramos da sala, deixando pai e filho sentados
frente a frente com uma caixa de lenços de papel entre eles. Após exatos 15 minutos,
Cynthia se juntou a Roy e Hayden. A médica e eu batemos na porta quando o teste de
Cynthia terminou, e fomos admitidos de volta na sala. O chão estava cheio de lenços de
papel, e imaginei que as coisas tinham funcionado de acordo com o que eu esperava.
Todos tinham se recomposto; Hayden parecia um tanto aliviado, estava rindo pela
primeira vez. Com um certo orgulho, ele me assegurou que seus pais conseguiriam
entender seus sentimentos.
Pedi a Hayden que me desse uma medida de sua preocupação, em oposição à de
sua alegria, separando os braços para indicar o “tamanho” de cada uma. Tornei as
medidas cuidadosamente com uma fita métrica: 50 cm de preocupação e 15 cm de
alegria. A médica reiterou que a quimioterapia daquele mês seria adiada. Convidei-os a
retornarem no dia seguinte.
No outro dia, os ânimos estavam mais leves, mas Hayden e seus pais ainda não
sabiam o que esperar. Atendi Hayden sozinho no início, e disse a ele que seus médicos
tinham me informado de seus pesadelos. Ele me contou que sonhava que um grupo de
médicos apontava acusadoramente para ele, gritando: “Foi ele!”. Então eles saíam da
frente, e ele via um caminhão vindo em sua direção. Neste momento, ele acordava do
pesadelo. Ele continuou contando que, quando era pequeno, tinha ficado responsável
pela supervisão de seu tio deficiente mental. Eles estavam atravessando uma rua juntos
quando o tio se colocou na frente de um caminhão que passava. Hayden recordou: “Ele
foi para o hospital, mas antes de morrer ligaram bolsas de soro nele. Eu comecei a bater
no motorista do caminhão. Eu não pensei!”. Estimulei os sentimentos de culpa e auto-
acusação de Hayden, mas não os contestei de nenhuma forma. Meramente aceitei sua
construção dos eventos.
Pedi a seus pais que se juntassem a nós, e solicitei a permissão deles para
hipnotizar Hayden. Eles sentaram ao meu lado, observando atentamente. Guiei a todos
nós para o transe, convidando Hayden a fechar os olhos, e então perguntei se ele
conseguia ver uma televisão em sua mente, e perguntei: “Ela é preto e branco ou
colorida? E grande ou pequena?”. Para confirmar o comportamento de transe para
Hayden e seus pais, fiz com que ele levitasse sua mão, propondo que imaginasse um
balão sendo atado em seu pulso com um fio bem fino. Enquanto sua mão levitava,
contei a seguinte história:
Há muito tempo, em um lugar muito distante, eu estava fazendo o mesmo trabalho que
agora. Um homem veio me ver. Ele me disse que não conseguia mais comer, e que
costumava gostar muito de suas gororobas. “E por que não?”, eu perguntei. Ele me disse
que era uma longa história. Eu disse que tinha tempo de sobra, e que ele podia me
contar a história se quisesse. Ele disse que tinha que contar, ele não tinha escolha.
Aquilo o estava incomodando há muito tempo, e ele já estava farto. Ele me contou que
era motorista de caminhão e que tinha matado um homem acidentalmente que, desde
então, não conseguira
259
mais comer direito. “Como foi que aconteceu?”, eu perguntei. Ele contou que estava
dirigindo quando um menino atravessou a rua na frente dele. Aí uma abelha apareceu do
nada e picou-o no rosto, e ele perdeu o controle temporariamente e atropelou um
homem que vinha vindo atrás do menino, “Bem”, eu disse, “você pode começar a comer
novamente. Certamente a culpa não foi sua. A culpa foi da abelha!” Ele retrucou: “Eu
sei disso... isso eu sei! Não é com isso que eu estou preocupado. Eu estou doente de
preocupação com o menino”. Eu fiquei confuso, e perguntei por quê. Ele disse: “Ele vai
se culpar, embora tenha sido culpa da abelha. Ele era só um menino, e com certeza não
vai entender”. Eu disse para ele: “Escute, eu tenho feito este trabalho há nove anos e sei
do que estou falando. Eu quero que você saiba que nenhum menino iria acreditar numa
idéia tão maluca”. Ele imediatamente se alegrou e me perguntou se eu tinha certeza. “É
claro que tenho”, eu disse. E sabe o que mais? Ele foi para casa naquele dia, recuperou
seu apetite e começou a comer de novo. Ele me disse depois que sua vida melhorou em
muitas outras coisas, embora ele até hoje não goste muito de abelhas. Mas eu acho que
isso é fácil de entender.
Prossegui com mais um pouco de “conversa de transe”, e então perguntei a
Hayden quais eram suas comidas preferidas. Após pensar um pouco, ele disse que eram
a galinha da Kentucky Fried Chicken e pizza. Brincando, eu avisei que se ele não
começasse a comer, eu ia pegar algumas bolsas de soro do hospital e dar para seus pais.
Eles colocariam a pizza em um prato e o soro no outro, e ele teria que escolher entre os
dois. Ele disse que definitivamente ia preferir a pizza ao soro. Então eu disse que seus
pais deveriam insistir que ele sapateasse em cima das bolsas de soro dizendo: “Isso não
é comida, isso é para os médicos e para eu ficar bom!”. Antes de ter permissão para
começar a comer a pizza, ele deveria jogar o soro na lata de lixo. Ele me garantiu que
isso não seria um problema para ele. Eu disse: “Na mesa, só uma das coisas vai ser de
comer”. Reorientei Hayden gradualmente, e ele imediatamente levou a mão acima da
cabeça para pegar o balão, para o divertimento de seus pais. Combinamos de nos
encontrar um dia antes de seu próximo tratamento, dali a um mês.
Comecei a sessão seguinte perguntando a Hayden se eu podia reavaliar suas
taxas de preocupação e alegria. Tudo no aspecto dele e de sua família me dizia que o
resultado seria bom. Foram 120 cm de alegria contra 1cm de preocupação. Quando lhe
perguntei como isto tinha acontecido, ele disse que descobrir que seus pais “eram
capazes de compreender minhas preocupações” tinha ajudado a diminuí-las. “Eu conto
para eles as minhas preocupações. Eu já os testei. Eles agüentam bem.” Tanto Roy
como Cynthia disseram que não estavam cientes da natureza de seus temores, e sentiam
que agora o tinham convencido de que ele não tinha que ser “tão forte”. Eles disseram
que tinham acontecido grandes mudanças desde nosso último encontro. Hayden estava
muito falante, tinha uma aparência feliz, não se escondia mais no casaco de lenhador do
pai e estava comendo bem. De fato, ele tinha ganho 4 kg. Agora, seu prato quase
transbordava, e ele não compartilhava meu temor de que pudesse ficar gordo. Seus
pesadelos tinham parado e tinham sido substituídos
260
“por sonhos bons sobre nada”. Ele não via mais bolsas de soro, de modo que seus pais
não tinham que aplicar “nossa brincadeirinha” nele. A cor tinha voltado a suas faces, e
ele era capaz de olhar para seu cabelo, que estava crescendo novamente, o que antes não
ousava fazer. Cynthia comentou que Hayden não tinha mais medo dos tratamentos.
Dois meses depois, estas mudanças ainda se sustentavam.
Mais tarde, vim a saber que Hayden tinha uma das piores reações à
quimioterapia que a unidade de oncologia pediátrica já conhecera. Ele vomitava
aproximadamente cinco vezes em antecipação ao tratamento, após o qual continuava a
ter ânsias. Ele necessitava de medicação e muitas vezes tinha que passar a noite no
hospital para se reidratar. Unimos nossas forças novamente em mais duas sessões.
Hayden foi capaz de se treinar para substituir a náusea associada à quimioterapia por
filmes na sua cabeça. Ele nunca mais vomitou, e suportou os tratamentos restantes com
serenidade. As coisas certamente estavam indo bem para Hayden. Ele também solicitou
minha assistência em relação a problemas para controlar seu temperamento em sala de
aula e pequenos roubos. Ele me contou que usara sua “auto-hipnose” nos problemas
com muito sucesso, e que ampliara seu uso para os estudos e melhorara suas notas e sua
concentração. Entretanto, ele se recusava a fazer o mesmo no campo dos esportes, pois
achava que isto lhe daria uma vantagem injusta sobre os outros.
Um ano depois, foi descoberta uma nova metástase de sua doença. Sua família
se decidiu contra novos tratamentos, uma vez que o prognóstico era muito ruim. Vários
anos depois, sua mãe escreveu o seguinte:
Hayden aprendeu a lidar com muitas emoções. Ajustar-se às mudanças em sua
aparência foi um de seus maiores obstáculos, juntamente com ter que aceitar o fato de
que muitas coisas que ele queria fazer nunca iriam se concretizar. Hayden tinha uma
enorme coleção, que enchia seu quarto e incluía os muitos chapéus que usava onde quer
que fosse. Embora sua vida tenha sido breve, ele realizou muito mais do que muitos
outros que vivem mais tempo. Ele nos fez perceber que a vida é curta demais para nos
preocuparmos com coisas pequenas; devemos viver com o máximo de intensidade.
Hayden tinha medo do sono, mas não da morte. Quando ele morreu, nos braços do pai,
nós também não temíamos mais a morte. As lembranças mais preciosas de Hayden que
temos em nossos corações são de seus dois últimos anos. Ele foi amado e admirado por
muitos. Qualquer um que tirasse um tempo para sentar-se com ele e escutá-lo aprendia
muito. Sendo um menino tão desprendido e especial, Hayden teve muitos amigos, com
quem compartilhava suas idéias e pensamentos. A tarefa mais difícil para aqueles
próximos a ele foi não sermos capazes de aliviar sua dor; somente podíamos ajudá-lo a
enfrentá-la. A dor e o tormento suportados por ele, ninguém conheceu, e só podemos
imaginar. Hayden nos deixou o dom do amor, da paciência, de como suportar o
sofrimento e compreender os outros. Através dele, aprendemos a proximidade e a
importância dos amigos, dos vizinhos e da família, um laço que será eterno. Obrigada,
meu filho.
261
CONCLUSÃO
Estas três histórias têm em comum a experiência de pessoas devastadas pela
culpa em relação à morte de uma pessoa amada: um pai, um filho recém-nascido e um
tio deficiente. Em cada história, a pessoa se acreditava responsável e caminhava
inexoravelmente em direção a uma tragédia pessoal. O luto, seja em antecipação, seja
no evento da morte do ente querido, fora bloqueado. Uma vez libertos de suas
respectivas formas de autopunição, todos puderam reassumir o controle de suas vidas. A
abordagem que segui foi altamente individualizada, mas os resultados foram idênticos
— isto é, a culpa de cada cliente pareceu evaporar-se. Recentemente, tenho oferecido
estas mesmas histórias a outras pessoas carregadas de culpas, e elas tiveram um efeito
similar em suas vidas. Entretanto, meu propósito mais genérico é trazer a
culpa/culpabilização para dentro do discurso do luto/perda, juntamente com a
criatividade das brincadeiras profundas.
262
13. Suicídio de Adolescentes: A Perda da Reconciliação
STEVEN E. GUTSTEIN
Para tomar a decisão de morrer, você deve não acreditar mais que as coisas
podem mudar, que elas podem, de algum modo, melhorar. O “suicida” chegou à
conclusão de que, não importando o quão irracional esta premissa possa ser, a vida não
vale a pena ser vivida no presente e que algo foi perdido ou alterado, tornando certo o
fato de que a vida nunca mais valerá a pena ser vivida.
Quando uma pessoa é psicótica, está claramente na fase terminal de uma doença
ou está espiritual ou fisicamente aprisionada, podemos compreender a fonte deste grau
de desespero e da perda total da esperança no futuro. Entretanto, quando nos referimos a
adolescentes em boa saúde física, com “toda a vida pela frente”, é difícil, se não
impossível, entender as idéias que embasam um ato tão extremo. For que um suicídio
haveria de se seguir à perda de um(a) namorado(a), à reprovação em um exame ou à
recusa da admissão em uma torcida organizada? A despeito dos estudos intensivos, o
suicídio de adolescentes permanece sendo um enigma perturbador.
Meu trabalho com adolescentes em risco de suicídio tem se concentrado na
perda como um dos precursores primários ao ato suicida. Teorias recentes sobre o
impacto da perda e do luto (Felner, Faber & Primavera, 1983; Hirsch, 1980; Farkes,
1971) empregaram um ponto de vista construtivista, pontuando o sentido pessoal da
perda para aqueles afetados por ela, mais do que no número ou no tipo das perdas em si.
E bastante evidente que muitos adolescentes atravessam severas e numerosas crises e
perdas sem recorrerem ao suicídio. Acredito que é o modo como as perdas são
administradas na família e os “mitos” a respeito delas que são desenvolvidos dentro do
contexto da família e do sistema mais amplo de afinidade que determinam se o ato
suicida vai ser a resposta a uma perda percebida ou antecipada.
Quando minha equipe de pesquisa clínica começou a estudar e tratar
adolescentes em risco de suicídio e suas famílias, em 1983, ficamos surpresos com o
grau em que as soluções extremas adotadas por estes jovens refletiam a
263
maneira drástica com que os membros de suas famílias vinham lidando com as crises ao
longo de diversas gerações. Ao coletarmos a história multigeracional, ficamos
impressionados com a quantidade de comportamentos autodestrutivos, abusos,
violência, divórcios, abandonos, conflitos duradouros e rompimentos emocionais que
caracterizavam as relações familiares ao longo das gerações. Igualmente chocante era o
grau em que os adolescentes, seus irmãos e seus pais se encontravam isolados do
relacionamento com os membros da família extensa e os amigos próximos da família.
A “ECOLOGIA” DOS MITOS PESSOAIS
Quando repetidamente solicitamos, e por vezes insistimos, que as famílias
envolvessem seus parentes, amigos e vizinhos nas reuniões de intervenção de crise,
fomos impedidos pela relutância de pais e filhos em buscar a ajuda de seu sistema de
afinidade. Para delimitar o conceito de sistema de afinidade, usamos a definição de
Williams (1970) de um “conjunto de relacionamentos sociais interpessoais que envolve
fortes interesses e emoções... e muitos laços recíprocos de dependência e apoio” (p. 47),
incluindo os parentes “de sangue” e os amigos próximos da família, que agem como
“parentes honorários”. Com muita freqüência, todos os contatos com os parentes tinham
se perdido, e os pais ou os adolescentes vetavam qualquer comunicação com aqueles
que ainda permaneciam envolvidos. Eles contavam histórias que ilustravam
vividamente a toxicidade dos relacionamentos entre os membros da família, que eram
tipicamente retratados como incompetentes, eles mesmo atravessando crises ou agindo
de forma que polarizava ainda mais os conflitos existentes.
Fiquei convencido de que estas histórias mordazes eram um reflexo dos “mitos
pessoais” centrais desenvolvidos pelo adolescente em risco de suicídio. Por mitos
pessoais, refiro-me às fábulas familiares básicas que são reinterpretadas de modo a
reforçar crenças muito arraigadas a respeito da forma como os indivíduos podem
funcionar com sucesso no mundo. O poder do mito deriva não somente da história, mas
do vínculo desta com sua “moral”. Os trágicos e limitados mitos a respeito do desvalor
da família e do perigo de confiar e se vincular aos outros, derivados de muitas gerações
de crises, foram um precursor importante da decisão dos adolescentes de agirem de
forma suicida.
A manutenção de uma gama ampla e flexível de mitos está alicerçada em um
sistema de afinidade saudável. Em um sistema funcional, vários membros corporificam
e compartilham diversos mitos ao mesmo tempo, sem serem excluídos do sistema. Estes
mitos coexistem em uma “ecologia” aberta, na qual crenças diversas e mesmo
contraditórias a respeito dos relacionamentos e do valor pessoal são ilustradas e
corroboradas pelas ações e histórias de diferentes membros. Os mitos que são
desenvolvidos em torno de eventos críticos reforçam uma ampla gama de formas de
relação com os outros. Da mesma forma, o mesmo evento pode ser “historiado” por
diferentes participantes e observadores de maneiras que reforçam crenças drasticamente
diferentes a respeito de si mesmo e dos outros.
264
As crianças que crescem neste contexto subjetivo rico têm acesso a toda a gama
de mitos e, assim, desenvolvem sua própria ecologia diversa de mitos pessoais entre os
quais optar de acordo com as circunstâncias. Por exemplo, histórias sobre como um tio
ou tia assumiu o papel parental após a morte do pai ou da mãe de uma criança podem
coexistir com histórias nas quais a perda de um membro crucial da família levou a um
longo vácuo no funcionamento familiar. Podem ser evocadas histórias nas quais havia
um vínculo especial entre uma criança e sua avó, que são equilibradas por outras
histórias que enfatizam a primazia clara da relação parental (“Mãe só tem uma”).
Uma grande crise, que elimine ou conteste um mito pessoal em particular, tal
como a morte de um dos pais (“Ninguém vai te amar tanto quanto a sua mãe”), pode
causar sofrimento e tristeza. Contudo, a criança pode aceitar gradualmente a perda do
mito e modificá-lo ou substituí-lo em seu repertório a fim de se adaptar à crise
(“Ninguém nunca vai me amar como a minha mãe, mas a vovó e o vovô sempre vão me
amar e cuidar de mim”). A criança é capaz de realizar um processo que eu chamo de
reconciliação.
O adolescente em risco de suicídio que enfrenta uma grande crise tem uma gama
severamente limitada de mitos pessoais com os quais administrá-la. Quando estes mitos
passam a ser insustentáveis, o adolescente vulnerável não tem como adaptá-los ou
substituí-los. Privado de qualquer modo de antecipar um futuro que possa ter um
desenrolar positivo e incapaz de realizar a reconciliação, ele vê o suicídio como uma
opção viável.
O PROCESSO DE RECONCILIAÇÃO
A reconciliação é definida como um processo ao mesmo tempo interno e
externo, um meio-termo criado pelos membros da família nos momentos de crise para
alterar seus mitos pessoais a respeito dos tipos de relacionamento de que necessitam e o
modo como eles e os outros devem agir para atender a suas necessidades. O processo de
reconciliação pode ocorrer após a percepção de uma mudança abrupta na natureza de
um relacionamento percebido como crucial, como a morte de um dos pais ou de um
filho, ou em seguida a uma perda que demande uma mudança grande de identidade
pessoal, como o fracasso em um objetivo profissional.
O ciclo de vida da família proporciona numerosas ocasiões nas quais os
indivíduos devem alterar suas premissas mais básicas a respeito de si mesmos e de
pessoas-chave em suas vidas (McGoldrick & Carter, 1982). Um marido que encontrava
na mulher toda a sua intimidade e apoio deve buscar formas alternativas de preencher
estas necessidades se ficar viúvo. Um filho único que estava convencido de ser o centro
do mundo para seus pais deve se adaptar a dividir este universo com um novo bebê. A
mãe que acreditava que seu principal valor derivava de suas habilidades maternais deve
encontrar uma nova identidade quando seu último filho sair de casa.
Ao ser confrontado com perturbações intensas em premissas básicas, cada um de
nós tem que lidar com a perda de mitos pessoais que são experimentados
265
como cruciais para nosso bem-estar e sucesso. Devemos ser capazes de aceitar a perda
do mito, fazer o luto pela fantasia perdida que ele representava e então modificarmos ou
substituirmos o mito perdido por outros que ocupem seu nicho. A reconciliação ocorre
com a experiência de que, embora o novo mito não possa nunca substituir totalmente o
antigo, ele traz esperança suficiente para que a felicidade presente e futura seja
preservada. A reconciliação não pode ocorrer se mitos alternativos não estiverem
disponíveis ou não forem aceitáveis, se uma única forma de estabelecer a identidade ou
um único relacionamento crucial for visto como o único meio de existir.
Com a perda do relacionamento com um sistema extenso de afinidade e o
desenvolvimento de uma gama limitada de mitos pessoais extremos, a família do
adolescente em risco de suicídio perde a capacidade de reconciliação. O objetivo de
minha pesquisa centrou-se na compreensão desta perda e no desenvolvimento de um
método de intervenção nas crises suicidas de forma a restaurar a capacidade de
reconciliação do adolescente e da família. O primeiro passo foi tentar compreender o
que tinha acontecido com o sistema de afinidade destas famílias e especular sobre os
efeitos da “fragmentação” deste sistema para as gerações futuras.
A FRAGMENTAÇÃO DO SISTEMA DE AFINIDADE
Os sistemas de afinidade se tornam vulneráveis quando são sobrecarregados por
numerosas perdas severas ou por mudanças drásticas nas condições culturais ou
ambientais. Os indivíduos podem passar a acreditar que sua sobrevivência está
ameaçada e que o sistema de afinidade, do modo como está constituído, não pode
protegê-los, que seus membros não têm os recursos necessários para atender às
necessidades de todos e que alguns devem ser sacrificados para que outros possam
sobreviver. Uma boa analogia seria com os sobreviventes de um naufrágio, que se vêem
em um bote salva-vidas com capacidade para a metade de seu número, à deriva no
oceano e com provisões para apenas alguns dias.
Dados os altos níveis de ameaça percebida e sensação de urgência, os membros
da família podem se sentir compelidos a tentar soluções rápidas e drásticas. Engajar-se
em um processo de reconciliação, que envolve incorporar uma gama de mitos pessoais
diferentes e implica inevitavelmente em conflito, negociação, luto e aceitação, pode
parecer muito difícil face ao desastre iminente. Soluções rígidas e extremas de
“sobrevivência” podem começar a predominar, tipicamente envolvendo o rompimento
com os mitos rivais, seja pelo retraimento, para escapar de uma família “tóxica”, ou pela
exclusão de outros que são percebidos como ameaças à continuidade da existência da
unidade como um todo. Neste contexto de sobrevivência, o equilíbrio dos mitos é
perturbado. As soluções extremas prevalecem, e se desenvolvem novos mitos em torno
delas, os quais, por sua vez, reforçam as crenças extremas. Os mitos extremos tendem a
promover outros, do mesmo tipo ou do tipo oposto. Por exemplo, crescer em um
contexto no qual a lealdade é vista como a coisa mais importante
266
pode levar uma pessoa a manter rigidamente esta crença ou a reagir acreditando que
qualquer comprometimento com a família é intolerável. Um processo similar de
lealdade extrema e rígida combinada com rompimentos extremos foi descrito por
Minuchim (1974) em seu conceito de indiferenciação, e por Bowen (1976) em sua
discussão de como as crianças criadas por famílias emocionalmente fundidas recorrem a
rompimentos emocionais completos para se separarem dos pais.
Com o tempo, como o retraimento e a exclusão dos outros se tornam as formas
predominantes de lidar com as crises, mitos rígidos a respeito da necessidade de
“soluções de sobrevivência” extremas para as transições vitais levam à fragmentação do
sistema de afinidade. Isto se transforma em um “processo circular de amplificação do
desvio”, uma vez que mitos extremos levam a ações extremas em momentos de crise, e
estas soluções de “bote salva-vidas” reforçam os mitos de sobrevivência. Os efeitos
deste processo para as gerações futuras podem ser catastróficos. Como afirmaram
Boszormenyi-Nagy e Krasner (1986),
[Se] a perda de relacionamentos próximos e reconfortantes engendra sérios
infortúnios para os descendentes, a história recente ilustra um curso sinistro de perda
progressiva da esperança de segurança para cada prole sucessiva. A perda das relações
familiares estabilizadoras e solidárias, ainda que opressivas, coloca cada geração
subseqüente em uma posição mais vulnerável e exposta. (p. 198)
Erickson (1984) apontou para as drásticas conseqüências multigeracionais da
resolução extrema de mesmo uma única crise. Por exemplo, os filhos de um homem que
tenha saído de casa na crença da importância de escapar de uma família tóxica podem
nunca ser capazes de acessar os parentes do pai como parte de seu próprio sistema.
A medida que este processo continua, o número de membros de um sistema de
afinidade que permanecem emocionalmente disponíveis uns para os outros diminui
progressivamente, pois os membros que saem ou são excluídos não são substituídos, e
os indivíduos que se distanciam desenvolvem mitos pessoais que impedem a
aproximação ou o desenvolvimento de novos sistemas de afinidade. A medida que as
famílias extensas se fragmentam, desenvolvem-se núcleos familiares altamente densos e
isolados, emocionalmente distantes e/ou polarizados uns em relação aos outros, cada um
deles se aferrando e demonstrando tolerância somente a uns poucos mitos pessoais
rígidos e extremos.
OS MITOS PESSOAIS NA CULTURA DA SOBREVIVÊNCIA
À medida que a fragmentação continua e a família assume uma mentalidade de
assédio, tipos específicos de mitos de sobrevivência começam a predominar. São
desenvolvidos mitos a respeito da lealdade inquestionável (a família sempre vem em
primeiro lugar, independente dos sacrifícios pessoais) ou da
267
independência extrema (cada um por si) nos momentos de crise. Os membros “leais” da
família e os “forasteiros desleais” são vistos de forma dicotômica “dentro/fora, ou/ou”.
Alternativamente, os membros da família são vistos como inevitavelmente traindo e
prejudicando aqueles parentes com os quais se mantêm emocionalmente conectados.
Ao invés de aprender que a perda de outros significativos pode ser elaborada, os
membros da família passam a acreditar ou na impossibilidade da substituição — que os
relacionamentos, uma vez perdidos, nunca podem ser substituídos — ou na
possibilidade da substituição completa que os relacionamentos são intercambiáveis e
que qualquer perda pode ser facilmente superada, levando, assim, à desvalorização do
parentesco e sua substituição por relacionamentos não familiares altamente transitórios.
Os membros da família passam a acreditar que existe apenas uma quantidade
finita de amor que os indivíduos têm para dar, de modo que, quando ele é dado para
uma pessoa, outra deve ser inevitavelmente privada dele. Em última análise, isto leva ao
mito da exclusividade, no qual desenvolver novas relações fora do sistema em
fragmentação é visto como uma ameaça aos membros remanescentes e gera reações
extremas. A mensagem implícita, mas claramente comunicada, é que “seu
relacionamento com outro não pode ser separado de seu relacionamento comigo, e tem
conseqüências terríveis para o nosso relacionamento”. A característica exclusiva dos
relacionamentos significa que os membros que continuam na família o fazem ao preço
da renúncia à intimidade com membros não sancionados ou pessoas de fora, e aqueles
membros que substituem perdas com novos relacionamentos tendem a ser excluídos da
família. Alternativamente, os membros da família podem responder à fragmentação com
a crença na intimidade indiferenciada, na qual os relacionamentos são desenvolvidos
desconsiderando-se qualquer lealdade familiar primária, e não é feita nenhuma
discriminação entre graus de proximidade.
A PERDA DA RECONCILIAÇÃO
A reconciliação raramente é possível uma vez que os relacionamentos se
baseiem nesta cultura da sobrevivência. Devido às crenças rígidas na ausência de
alternativas e suportes relacionais, os meios-termos e os sacrifícios inerentes à
reconciliação são percebidos como insustentáveis. A perda da reconciliação tem
péssimas implicações para o desenvolvimento social das crianças do núcleo isolado,
particularmente a redução da capacidade da criança de formar relacionamentos íntimos
individualizados. Sem reconciliação, as mudanças evolutivas da criança não levam a
uma definição modificada do relacionamento entre pais e filhos. Uma vez separados, os
pais e a criança não podem ser reunidos, e a perda de um dos pais não pode ser
substituída nem mesmo sob forma modificada. As novas agregações à família resultam
em conflitos amargos e triangulação ou exclusão. As perdas não são reconhecidas nem
elaboradas. Relacionamentos substitutos temporários não estão tipicamente disponíveis
para suavizar o impacto da perda ou da separação e, mesmo quando estão
268
disponíveis, estes substitutos são vistos como ameaças e, por isso, não são tolerados
pela criança ou pelo pai/mãe emocionalmente bloqueado.
A criança em situação de risco na família isolada aprende que as perdas não
podem ser substituídas e que as separações, ao invés de serem seguidas por
reconciliações, levam a mais isolamento e alienação. Esta experiência de
impossibilidade de substituição, combinada com a necessidade da criança de uma
relação simbiótica e exclusiva e as respostas rígidas da família às transições evolutivas,
arma a cena para a posterior resposta suicida da criança à crise adolescente.
AS CRISES DA ADOLESCÊNCIA NO NÚCLEO ISOLADO
A adolescência constitui uma crise que ameaça a vida da família isolada. Como
nas transições evolutivas anteriores, ela é incapaz de aceitar as perdas inevitáveis e as
mudanças inerentes à chegada de uma criança à adolescência. Como afirmou Richman
(1981):
As demandas evolutivas da adolescência são uma ameaça para algumas famílias. Elas
vem o mundo externo como um inimigo e armam barreiras para se protegerem dele. A
adolescência implica um reconhecimento das diferenças, de ser um outro separado, o
que, na família “suicidogênica”, é sentido como urna ameaça à simbiose e a perda do
parceiro simbiótico. (p. 137)
A família isolada reage de forma rígida e extrema às tentativas de individuação
do adolescente. A medida que ele aumenta a ênfase nos relacionamentos fora da família,
ele é percebido como desleal. Demandas de exclusividade são feitas a ele — por
exemplo, “ou eu (nós) ou ela”. Uma segunda reação pode ser a rejeição explicita. Em
alguns casos, o movimento para a adolescência engendra reações de autoproteção
emocional em pais que antecipam uma eventual rejeição por parte do adolescente. Por
exemplo, uma mãe solteira que previamente mantinha um relacionamento exclusivo
com seu filho pode buscar uma relação igualmente exclusiva e excludente com um novo
namorado.
Por sua parte, os adolescentes de famílias isoladas tendem a buscar
relacionamentos externos de modo extremo, e parecem dispostos a sacrificar sua
lealdade à família a qualquer momento. Estas crianças aprenderam que um
relacionamento simbiótico exclusivo é essencial para a sobrevivência. Uma única
relação especial é o que importa, mas eles perderam a esperança de estabelecê-la dentro
da família. A adolescência oferece a oportunidade de que o jovem substitua as relações
familiares percebidas como vazias por um novo relacionamento exclusivo. O desejo de
formar uma relação simbiótica pode ser transferido de um dos pais para um namorado
ou namorada. Este relacionamento passa a ser percebido como central para a identidade
do adolescente, e insubstituível se for perdido. As tentativas de formar relações
próximas com os pares são feitas de maneira desesperada, que é desconcertante para
muitos jovens e leva a uma inevitável rejeição. Isto reforça as crenças do adolescente a
269
respeito da impossibilidade de ter relacionamentos não exclusivos. O adolescente pode
ter sucesso em formar uma nova simbiose, mas ela será precária na melhor das
hipóteses. Na pior delas, a criança já terá implodido as pontes às suas costas.
A indisponibilidade de relacionamentos coesos de parentesco significa que o
ciclo de rejeição não vai ser interrompido. Os membros da família não estão acessíveis
para funcionarem como mediadores ou oferecerem soluções alternativas para os
conflitos em escalada. Quando o adolescente ou os pais percebem uma rejeição, não
existem substitutos temporários, não há um lugar de refúgio para suavizar a sensação de
perda. Os mitos poderosos do sistema de afinidade a respeito de abandono e exclusão,
juntamente com a ausência de precedentes históricos de mediação de conflitos e meios-
termos, aumentam a crença na necessidade de reações extremas de autoproteção.
O adolescente de uma família isolada vive em uma situação precária, na qual
qualquer perda real ou antecipada, seja pelo nascimento de um irmão, a perda do
relacionamento com um par ou o envolvimento de um dos pais em uma nova relação de
intimidade, pode levar a um comportamento suicida. O adolescente não conseguiu
desenvolver e não se dispôs a aceitar qualquer intimidade individualizada. As mudanças
físicas e os imperativos biológicos da adolescência, por si mesmos, trazem a ameaça da
perda da relação parental exclusiva, à medida que os pais se distanciam física e
emocionalmente da criança em antecipação ao seu abandono e perda iminentes. Mesmo
se a relação parental exclusiva é substituída por um par, a natureza da intimidade
adolescente é tal que ela, na melhor das hipóteses, vai ser tênue e estar inevitavelmente
ligada à rejeição futura.
Para estes adolescentes, percebendo a necessidade de exclusividade e
acreditando na impossibilidade da substituição de outros-chave, a antecipação da perda
de um relacionamento exclusivo é experimentada como um desastre. A ameaça ou a
tentativa de suicídio pode ser feita em um esforço desesperado para impedir a perda
iminente. O comportamento pode ser precipitado pelo rompimento real ou antecipado
do relacionamento por parte de um ente querido. Seu objetivo é influenciar o outro a
não tomar uma decisão excludente, ou reverter uma decisão excludente que ele esteja
sendo forçado a fazer. Quando o adolescente acredita que a perda já ocorreu, o ato não é
mais uma tentativa de modificar o outro, mas uma decisão mais definitiva e fatal.
O PROGRAMA SISTÊMICO DE INTERVENÇÃO DE CRISE
Baseada sobre a crença no papel crucial dos mitos familiares multigeracionais no
processo suicida, nossa equipe clinica do Centro de Orientação Infantil de Houston
desenvolveu o Programa Sistêmico de Intervenção de Crise (PSIC). O objetivo do PSIC
é usar a crise suicida como uma oportunidade para ensinar às famílias isoladas a
possibilidade de acessar seus parentes e amigos de modo a criar um novo e mais amplo
sistema de mitos. Os métodos do PSIC
270
são descritos mais detalhadamente pelo autor em um texto relacionado (Gutstein, 1987).
No PSIC, reunimos a família e os amigos para ritualizar a crise suicida como
uma importante transição evolutiva, semelhante ao nascimento, à morte ou ao
casamento. Tentamos desenvolver uma cerimônia de reconciliação na qual os membros
da família possam experimentar sua força e unidade, bem como a capacidade da família
de se adaptar para atender às necessidades singulares de seus membros. Esperamos que
a cerimônia ganhe um significado para as futuras histórias e mitos que emanam da crise.
A importância de reapresentar o adolescente em risco de suicídio para seus familiares e
dos pais reconhecerem que não podem lidar sozinhos com ele é priorizada. Um efeito
poderoso é observado quando os adolescentes examinam as soluções extremas que eles,
seus pais ou avós tomaram no passado, e que resultaram em polarização e isolamento.
Reaproximando-se em sua perda mútua, os membros da família têm a oportunidade de
se reconectarem pelo luto comum ao tipo de família com a qual sonharam mas nunca
tiveram.
Não esperamos reparar todos os relacionamentos rompidos ou prejudicados.
Uma parte crucial do processo de reconciliação é a aceitação dos relacionamentos
perdidos ou irrecuperáveis. Esperamos que os membros da família emerjam da crise
com a crença de que pertencem ou podem pertencer a uma rede que pode atender a suas
necessidades de intimidade, bem como de individuação. Trabalhamos no sentido de
recontar as histórias familiares e criar experiências a partir das quais surjam novos mitos
de força, tolerância à pluralidade e apoio dentro da rede familiar.
A intervenção se baseia em três crenças a respeito do tratamento efetivo de
crianças e adolescentes em risco de suicídio:
1. Aproveitar a oportunidade da crise: O choque da crise suicida pode ser uma
oportunidade, se usada corretamente, de “relaxar” os padrões de comportamento
previamente rígidos que contribuíram para a crise e reaproximar membros da família
que estavam polarizados e distantes. Este período temporário de maior abertura, tão
característico das crises, proporciona uma breve janela para intervenções poderosas.
Portanto, os clínicos devem ter o cuidado de não “atenuarem” a crise comunicando aos
pais que seu filho está entregue a experts que irão resolver totalmente seu problema.
Esta mensagem pode levar à interrupção prematura da sensação de crise entre os
membros da família, e, portanto, a uma diminuição de seu envolvimento e de sua
motivação para tentar uma mudança. Os clínicos que trabalham com situações de crise
caminham em uma delicada corda-bamba, devendo responder com intensidade
suficiente para minimizar o perigo e transmitir segurança, mas não tanta que dissipe a
sensação de crise. Aprendemos que os membros da família, se instruídos e motivados
adequadamente e tendo suporte à disposição as 24 horas do dia, freqüentemente
conseguem monitorar o comportamento de seus adolescentes em casa com segurança
durante os períodos agudos de crise suicida. A internação é empregada quando a família
não está
271
disposta ou não tem condições de mobilizar os recursos necessários para garantir a
segurança do jovem, e mesmo assim somente por períodos curtos e com o propósito
específico de manter o jovem em um ambiente seguro enquanto a família se prepara
para assumir esta responsabilidade.
2. Reunir os familiares em torno da crise: Os membros da família, separados por anos
de conflitos e distância física, podem se reunir quando enfrentam a perda possível de
um jovem de sua família, se for criado o contexto apropriado para este reencontro.
Neste sentido, a crise suicida pode ser uma oportunidade para reverter o processo de
fragmentação das relações e criar uma cerimônia de reconciliação.
Por mais de 20 anos, os terapeutas que trabalham com redes de relações têm
demonstrado a importância de incluir os membros da família extensa e da rede social no
tratamento durante uma crise (Rueveni, 1977; Schoenfeld et al., 1986; Speck &
Attneave, 1973). Eu, ao contrário deles, não creio que mais seja melhor, e que uma
grande reunião de familiares e amigos leve necessariamente a um resultado mais
efetivo. Pesquisadores que estudam os efeitos do apoio social ficaram impressionados
com o poder de familiares e amigos bem-intencionados de gerar ainda mais perturbação
e conseqüências negativas (Wortman & Lehman, 1986). Acredito que seja mais
eficiente reunir seletivamente aqueles membros da rede que são necessários para
realizar um processo de reconciliação em torno da crise. Estes podem incluir os
membros envolvidos de forma central na crise, aqueles que têm um papel primário na
manutenção e na criação das histórias e mitos familiares e aqueles com potencial para
estimular fortemente a reconciliação na crise.
3. Defensoria múltipla: Juntamente com outros clínicos que trabalham com jovens em
risco de suicídio, percebi que os membros da família muitas vezes estão tão polarizados
e em tal conflito que um único terapeuta não consegue conquistar a confiança de todos e
representar adequadamente suas necessidades. Por exemplo, Richman (1986) e Pfeffer
(1986) discutiram a aparente perda da empatia que caracteriza o relacionamento entre
pais e filhos nas famílias de adolescentes em risco de suicídio. Os membros da família
tipicamente adotaram mitos de sobrevivência extremos, do tipo “ou/ou, perde/ganha”,
nos quais a negociação e os meios-termos parecem insustentáveis. O clínico que tenta
permanecer neutro nos conflitos familiares rapidamente descobre que os membros da
família respondem com um “ou você está comigo ou está contra mim”.
Para obter a confiança e a participação dos membros da família e ajudá-los a
aprender que seus pontos de vista singulares podem ser tolerados e contemplados pela
família sem o recurso às soluções extremas, desenvolvemos um processo de defensoria
múltipla, no qual cada membro da família diretamente envolvido na crise tem seu
próprio “advogado”. A tarefa do clínico-defensor é
272
se convencer inteiramente da propriedade da posição de seu cliente e se dispor a
defendê-la contra todos. Entretanto, ao contrário do advogado de tribunal, o defensor da
equipe mantém um comprometimento igual com o processo de reconciliação, no qual as
necessidades de todos os membros da família são atendidas e as soluções extremas são
evitadas.
OS MÉTODOS DO PSIC
Os clínicos são contactados no momento de uma crise suicida através de
telefonemas de uma série de fontes de encaminhamento. Os membros da equipe
conduzem uma avaliação inicial imediata por telefone. São feitos planos para uma
resposta de emergência conforme for necessário a partir de um exame caso a caso.
Dentro de 24 horas da chamada inicial, uma avaliação de três horas é conduzida por
dois membros da equipe de crise, na qual o nível de perigo da situação é determinado
usando-se cinco critérios: (1) qualquer história anterior de pensamento ou
comportamento suicida; (2) o status mental e afetivo do paciente e dos pais; (3) a
letalidade da tentativa; (4) a especificidade dos planos para futuros atos suicidas; e (5) o
grau em que o comportamento suicida gerou uma sensação de crise para pelo menos
alguns membros da família. Através do processo do PSIC, o nível de risco do paciente é
monitorado diariamente.
Se a avaliação indica que uma resposta emergencial segura pode ser estabelecida
e membros-chave da família e da rede social podem ser envolvidos, os clínicos
imediatamente começam a ter sessões individuais com eles, para prepará-los para uma
reunião familiar. Duas tarefas críticas durante estas sessões São (1) trabalhar com os
membros da família a fim de que convidem a família extensa e os amigos mais
próximos do paciente para uma reunião e (2) desenvolver posições de defesa para os
membros da família envolvidos de forma central.
Não esperamos que os membros da família fiquem entusiasmados para convidar
seus parentes e amigos para grandes reuniões. Parte de nosso trabalho é desenvolver
gradualmente um contexto no qual faça sentido para cada cliente ter a família e os
amigos presentes. Pode ser um contexto positivo, como a necessidade de apoio, ou
negativo, como a exposição da duplicidade de um membro supostamente interessado da
família. O mais importante é que a solicitação de convidar outros significativos faça
sentido para os clientes a partir de seu quadro de referências.
Nós tipicamente conduzimos duas reuniões de quatro horas no curso de duas a
quatro semanas. Geralmente comparecem de 12 a 20 membros da família nuclear e
extensa, juntamente com três ou quatro membros da equipe. Estes passam várias horas
planejando as reuniões. Eles coletam histórias relevantes para serem contadas, planejam
encenações e criam rituais. Durante as reuniões, os advogados sentam com seus
clientes, espalhados em meio à família. Um clínico, designado como metadvogado,
assume a responsabilidade pelo processo da reunião, assegurando que haja o movimento
de um estágio do processo
273
para o outro, que nenhuma das posições defendidas se imponha às demais e que
prevaleça uma atmosfera segura. Dividimos a reunião em quatro estágios, que
acreditamos serem os componentes essenciais do processo de reconciliação.
A FAMÍLIA CREVANT
Tammy, de 15 anos de idade, tinha tomado uma grande overdose de analgésicos
dois dias antes de a vermos pela primeira vez, na unidade de tratamento intensivo de um
hospital local. Ela tinha acabado de romper com seu namorado de 23 anos e acreditava
que sua mãe a havia rejeitado devido a este último relacionamento e que nunca mais a
amaria novamente. Ela também acreditava que a mãe estava tão preocupada com sua
irmãzinha e seu padrasto que não tinha mais tempo para uma menina adolescente. Além
deste namorado, Tammy não tinha outros amigos íntimos.
O pai de Tammy, Lloyd, morrera em um acidente de barco duas semanas antes
dela nascer. Após a morte do marido, a mãe de Tammy, Colette, ficou severamente
deprimida e, nos primeiros anos da vida de Tammy, ficou impossibilitada de realizar
adequadamente muitas das tarefas normais da maternidade. Na época, Colette morava
perto de seus pais, de modo que Tammy cresceu tendo os avós como pai e mãe. Por
algum tempo, Tammy sentiu uma certa segurança nesta família. Porém, diversos
eventos deram fim à família que ela conhecera. Quando Tammy tinha 5 anos, a mãe deu
à luz uma criança ilegítima e, subitamente, a atenção foi deslocada dela para o novo
bebê. Um ano depois, Colette casou-se novamente, e a família se mudou para Houston,
a quinhentas milhas de sua Louisiana natal. Dentro de seis meses da mudança, o avô de
Tammy morrera, e ela culpara a mãe pela morte dele, acreditando que a mudança o
tinha magoado profundamente. A avó de Tammy também culpava Colette pela morte do
marido. Ela tinha se recusado a comparecer ao casamento da filha, e, quando seu marido
morreu, cortou todos os contatos por três anos.
Tammy foi criada sem nunca ter conhecido seu pai nem ninguém de sua família,
pois toda a família de Lloyd culpava Colette pela morte dele. A história que era contada
dizia que Lloyd bebia para escapar das incessantes exigências dela. Os pais dele e os
outros parentes romperam relacionamento com Colette e seus filhos depois do funeral.
A experiência de Tammy com a família da mãe era de ter os parentes a sua volta e
depois perdê-los irrevogavelmente. Com o novo casamento da mãe, a mudança para
Houston e a morte do avô, Tammy perdeu os relacionamentos que haviam sido mais
importantes para ela. Sentindo que a mãe estava preocupada com os outros membros da
família, Tammy buscou substituir a relação especial que tinha tido com o avô
envolvendo-se com homens mais velhos. Cada relacionamento a fazia sentir-se usada e
vazia. Sua persistente violação da regra imposta pela mãe ao namorar estes homens as
distanciava mais e mais. Tammy tinha perdido o único relacionamento com o qual
contara. Agora, ela temia que tivesse implodido as pontes atrás de si, e que nunca mais
fosse aceita na família.
274
Após seu encontro inicial com dois membros da equipe de crise, a mãe e o
padrasto de Tammy, Ed, pediram licença de seus empregos e outras responsabilidades
para se revezarem em uma vigília de prevenção de suicídio 24 horas por dia até o
momento da primeira reunião de crise, oito dias após a tentativa de suicídio. Neste
ínterim, os membros da equipe se reuniram com membros-chave da família para
construir alianças, conhecer as histórias da família sobre os eventos que tinham levado a
tanta polarização e tantos conflitos e convidar outras pessoas da família para a reunião.
Eles conseguiram mobilizar membros da família de Colette, bem como os irmãos e os
pais de Ed. A primeira reunião incluiu a família de Colette, e uma segunda reunião foi
conduzida, duas semanas depois, com a presença de familiares de Ed.
Começamos estas reuniões celebrando a unidade e a coesão passadas da família.
Uma sensação fundamental de unidade é necessária para suportar o conflito e a
separação que ocorrem inevitavelmente mais tarde na reunião. Neste estágio da unidade,
a família e os membros da equipe são muitas vezes solicitados a contar histórias que
reflitam o heroísmo, o amor e a coesão do passado da família. Os avós e os outros
membros das gerações mais velhas são particularmente importantes neste momento,
pois freqüentemente são os depositários destas histórias e, com sua presença,
simbolizam a continuidade da família.
Estavam presentes, no primeiro encontro da família Crevant, Tammy; sua mãe,
Colette; seu padrasto, Ed; seu irmão, Ernest (18); sua irmã, Cheryl (10); seu meio-
irmão, Billy (8); as duas irmãs de Colette, Thelma Jean e Marie; o marido de Thelma
Jean, Burt; e a mãe de Colette, Michelle. A reunião começou com uma “prece” de
abertura, pronunciada pelo metadvogado:
Estamos felizes por vocês terem podido vir hoje. Sabemos que estão aqui porque se
amam e se imporiam muito uns com os outros. Todos esperamos e rezamos para que
vocês possam sair daqui com a sensação de estarem ainda mais fortes do que quando
entraram. Ainda mais unidos do que estão se sentindo agora. Minhas preces são para
que nós possamos sair disto com a sensação de estarmos unidos. Por favor, me
acompanhem em um momento de prece silenciosa por todos nós.
Após a prece, a reunião passou para as histórias passadas de coesão e troca.
METADVOGADO Algumas pessoas desta equipe estavam me contando histórias sobre
a força desta família, e certamente houve momentos em que vocês estiveram unidos
antes. Sua família e sua família honorária sobreviveram para chegar até este lugar.
ADVOGADO Alguém estava me contando a respeito de uma viagem de acampamento
quando as irmãs eram pequenas.
MICHELLE A pior parte é que uma das crianças fazia xixi na cama. Passamos várias
noites em lavanderias.
ADVOGADO E aquela história sobre o bibico?
TAMMY Era uma chupeta. Eu chamava de bibico.
275
THELMA JEAN Ela saiu voando pela janela do carro, e disse “que merda”. Quanto
mais nós ríamos, mais irritada ela ficava, e ela queria voltar para procurar o bibico.
MICHELLE Vocês se lembram daquela vez no Mardi Grãs? *(1) Se a terça-feira tivesse
sido como os outros dias, eu teria desmaiado. Lembram da multidão na Bourbon Street?
MARIE Você não poderia ter ido para a Bourbon Street, mamãe, não com cinco filhos.
MICHELLE Por que não? Naquele tempo, eu levava vocês onde quer que eu fosse.
Vocês eram como um pedaço de mim.
O metadvogado gradualmente desloca o foco da reunião, da unidade do passado
para a sensação de separação que precipitou a crise atual. O estágio da separação é o
momento de todos os membros da família encararem suas diferenças essenciais. Para
que uma pluralidade de mitos possa existir, o sistema de afinidade deve ser um fórum
no qual indivíduos com crenças e formas de agir muito diferentes possam conservar
suas diferenças e, ainda assim, preservar sua conexão primária. O estágio da separação
ilustra as dificuldades que a família experimenta para conciliar as diferenças
aparentemente irreconciliáveis que levaram à crise. A encenação primária desta fase é o
processo de defensoria múltipla. Juntos, os advogados e seus clientes apresentam sua
posição de maneira altamente comprometida e determinada. A posição de cada membro
da família é enfaticamente sustentada, com a exclusão das outras. Os amigos e os
parentes são solicitados a fazerem fila atrás de uma das posições. A defensoria parece
uma convenção política dos tempos antigos, em escala reduzida. Os advogados
caminham de um lado para o outro e se reúnem com diferentes membros da família,
tentando conquistar apoio para suas posições. Ninguém tem permissão para ficar
sentado observando, todos devem falar ao mesmo tempo. A sala parece um caos.
Diversas conversas acaloradas podem estar acontecendo simultaneamente. Confrontos
ocorrem lado a lado com pequenas coligações. Os advogados e seus clientes trocam
seus papéis. As interrupções são freqüentes. O foco do conflito se desloca entre diversas
questões e membros da família. O seguinte diálogo ilustra a natureza aparentemente
caótica e intensa do processo de defensoria.
ADVOGADO DE TAMMY (PACIENTE) Falando com Tammy, fica claro que ela não
conseguia conversar com a mãe. Que sua mãe nunca a levou a
sério, desde o início.
ADVOGADO DE COLETTE (MÃE) Pelo menos a Colette ainda está tentando. A
Tammy já desistiu há muito tempo.
ADVOGADO DE ED (PADRASTO) O Ed se sente perdido no meio das duas.
Nota de rodapé:
*(1). SN. de T. Carnaval comemorado em algumas cidades dos Estados Unidos, como
Nova Orleans, no estado da Lousiana.
276
ADVOGADO DE COLETTE Só que parece que foram poucas as vezes em que se
podia notar que ele estava por perto delas.
ADVOGADO DE TAMMY Ela ficaria espantada se você a convidasse para ir ao
cinema ou ao shopping. A Tammy sempre é deixada de lado.
COLETTE Muitas vezes ela me pede para fazer alguma coisa e eu faço. Minha cabeça
fica tão cheia que eu esqueço, e peço para ela me lembrar.
TAMMY For que você não pode simplesmente se lembrar sozinha?
THELMA JEAN (IRMÃ DE COLETTE) Ela tem mais de um filho.
ADVOGADO DE ED O Ed sempre tenta apoiar as duas, e sempre é rechaçado.
MARIE Ele não se esforça o suficiente.
ED Você não acha que ter dois empregos e dormir quatro horas por noite é suficiente?
MARIE Ei, a Colette tem dois empregos e está cuidando destas crianças.
BURT (TIO DE TAMMY) Aquela família lá são seis pessoas vivendo embaixo do
mesmo teto. Aquilo não é uma família. Aquilo não é uma unidade familiar,
definitivamente não — é uma piada.
ADVOGADO DE TAMMY A Tammy não sente em absoluto que tem uma família.
THELMA JEAN São seis pessoas morando no mesmo endereço.
MARIE Eu acho que antes da mudança para Houston havia uma família. Quando eles se
mudaram para longe, eles a deixaram para trás. Especialmente quando deixaram o vovô.
A Tammy precisava do vovô.
ADVOGADO DE TAMMY Talvez ele não tivesse morrido se eles não tivessem se
mudado.
ERNEST (IRMÃO MAIS VELHO DE TAMMY) A Tammy não foi a única que sofreu.
MICHELLE (MÃE DE COLETTE) O vovô até já tinha aprontado a casa ao lado para
eles morarem.
COLETTE Eu não queria viver minha vida segundo os desejos de minha filha. Por
Deus! Eu tinha que viver minha própria vida!
ADVOGADO DE TAMMY Mesmo que isso cause a morte da Tammy?
O metadvogado encerra a fase da separação quando todos os presentes se dão
conta de que as posições apresentadas são aparentemente irreconciliáveis, que nenhum
meio-termo vai ser encontrado e que nenhuma solução fácil e satisfatória vai ser
alcançada. Fazendo uso da sensação de desespero que acompanha esta experiência
exaustiva e frustrante, a equipe desloca o foco da reunião para uma aceitação comum do
luto que todos sentem pela perda da família segura e carinhosa da qual se lembram ou
que alguma vez idealizaram. No estágio da aceitação, os membros da equipe relatam as
muitas histórias sobre perdas que seus clientes lhes contaram. Os membros da família
são estimulados a compartilharem os sonhos muito pessoais que já tiveram de uma
família que preenchesse todas as suas necessidades. Uma nova unidade se desenvolve
em torno da sensação de luto compartilhada por todos.
Com a família Crevant, a aceitação começou com o compartilhamento de sonhos
coletivos do que poderia ter acontecido se Lloyd (o pai de Tammy),
277
Carol (a primeira mulher de Ed) e o vovô (o avô de Tammy) não tivessem morrido.
Cada membro da família falou sobre os momentos de ternura de que melhor se
lembrava com cada um de seus entes queridos perdidos. Colette estava sentada bem na
frente de Tammy. O resto da família foi organizada em um círculo apertado em torno
delas. O clímax ocorreu quando Colette, pela primeira vez, compartilhou com Tammy
suas lembranças do namoro com Lloyd, dos sentimentos que teve no dia em que
Tammy nasceu, dos planos que ela e Lloyd tinham para o futuro e do que sentiu no dia
em que ele morreu. A família ficou chorosa e se aproximou, dando os braços. Quando
Colette terminou de contar sua história, Tammy, com a ajuda de seu advogado, falou
sobre seus sonhos a respeito de como teria sido a vida com seu pai. A medida que ela
continuava sua história, as lágrimas começaram a descer por seu rosto, e ela chorou pela
primeira vez desde sua tentativa de suicídio. Colette, orientada por seu defensor, tomou
Tammy nos braços e embalou-a, ao lado do marido e de sua família. Após algum
tempo, Colette perguntou a Tammy se Ed podia abraçá-la também. Pela primeira vez
em sua vida, Tammy concordou e Ed colocou-a em seu colo. Ela se agarrou a ele, e ele
abraçou-a firmemente.
Aproveitando esta nova unidade, a equipe novamente deslocou o foco para a
crise atual. O objetivo do estágio final de reconciliação e comprometimento é ajudar a
família a resolver a crise de um modo que aceite as diferentes necessidades de seus
membros, ao mesmo tempo em que promova a descoberta da força e da unidade da
família e do sistema de afinidade. Durante este estágio, buscamos a construção de
rituais familiares e encenações físicas para simbolizar a nova unidade. Exemplos de
rituais podem ser uma cerimônia de maioridade, um ritual de luto para um membro
crucial da família que não esteja mais disponível física ou emocionalmente, o
planejamento, de maneira inovadora, da comemoração de uma data festiva próxima ou a
iniciação formal de amigos como parentes honorários para substituir as perdas de
membros da família.
Para os Crevant, o estágio de reconciliação e comprometimento acarretou o
planejamento, por parte de todos os presentes, de um ritual de Natal diferente, em que a
família tivesse a oportunidade de forjar sua própria identidade com o apoio dos
parentes.
METADVOGADO Já faz muito tempo que as crianças tiveram um Natal com uma
família que sentiam como sua. Seria bom para elas saberem mais sobre a família que
têm. Estou pensando nesta nova família, na qual Ed é o pai e Colette é a mãe. Ao
mesmo tempo, não quero que eles esqueçam de seus outros parentes.
THELMA JEAN Vai chegar um momento em que Ernest e Tammy vão ter suas
próprias famílias. Eles vão separar nossa família no Natal. Quando eles se mudarem
para Nova York ou para a Califórnia, eles podem não vir passar o Natal em casa.
METADVOGADO As pessoas têm que descobrir como ficar juntas, mas também têm
que dar um jeito de terem suas próprias famílias. A família Chazwick-Crevant é uma
famffia diferente. Será difícil para Tammy e
278
Colette se juntarem a esta família. Os homens podem ter que ajuda-las. Billy (o filho de
Ed), como um dos homens, sugeriu que eles façam a festa aqui em Houston sozinhos, e
não viajem para a Louisiana este ano antes do Ano-Novo. A família Chazwick-Crevant
tem a força para ser uma família e comemorar o Natal sozinha.
A EFICIÊNCIA DO PSIC COM JOVENS EM RISCO DE SUICÍDIO
Os adolescentes tratados com o método de Intervenção Sistêmica de Crise
durante o período de janeiro de 1984 até junho de 1985 foram acompanhados por um
período de 18 meses após o tratamento para testar a eficiência do PSIC. Para uma
discussão mais completa da metodologia de pesquisa e dos resultados, ver Gutstein et
al. (1988) e Gutstein e Rudd (1990).
Dos 50 adolescentes envolvidos neste estudo, somente dois (4,3%) tiveram
comportamento suicida durante o tratamento ou no período de acompanhamento de 18
meses. Em ambos os casos, o comportamento ocorreu dentro de seis meses após o
tratamento, e em nenhum deles causou ferimentos físicos. Uma tentativa envolveu uma
pequena ingestão de medicamentos e a outra cortes superficiais nos pulsos. Além disso,
não houve relatos de ferimentos nem no paciente identificado nem nos membros da
família durante a fase do tratamento ou os períodos de acompanhamento.
A vasta maioria (mais de 87%) dos pais classificaram os problemas de
comportamento de seus filhos como “severos” ou “catastróficos” no início do
tratamento. Entretanto, apenas uma minoria muito pequena foi definida assim após o
tratamento. As classificações melhoraram marcadamente três meses depois do
tratamento, com apenas 27% indicando que a crise não tinha, em grande parte, sido
resolvida. Esta tendência se manteve ao longo do período de seis meses e, no período de
acompanhamento de 12 a 18 meses, somente 12% dos pais (seis casos) indicaram que o
problema continuava severo (F = 98,65,p < .0001).
Embora nenhuma comparação ou grupo de controle tenha sido usado neste
estudo, uma estimativa aproximada da segurança do PSIC pode ser obtida comparando-
se os resultados com outros estudos de tratamentos para jovens em risco de suicídio.
Após uma revisão completa da literatura, não conseguimos encontrar nenhuma tentativa
de medir a eficiência de programas de tratamento primariamente ambulatoriais.
Localizamos seis estudos que avaliavam tratamentos psiquiátricos de internação para
crianças e adolescentes em risco de suicídio (Barter, Swaback, & Todd, 1968; Cohen-
Sandler, Berman & King, 1982; Hawton et al., 1982; Mclntire et al., 1977; Stanley &
Barter, 1970; White, 1974). Nestes estudos, as taxas de comportamento suicida em
períodos médios de 12 e 21 meses após a alta variaram de 14 a 50%.
Um dos principais objetivos do PSIC é desenvolver uma interdependência mútua
saudável entre os membros da família extensa e da rede social, ao invés da dependência
institucional que às vezes ocorre após longos períodos de hospitalização (Kiesler, 1982).
Uma estimativa de nosso sucesso em relação a
279
este objetivo pode ser feita usando as famílias de nosso estudo como seus próprios
controles. Para isso, comparamos as taxas de baixa institucional de flO5SO5
adolescentes identificados durante os anos anterior e posterior ao tratamento com o
PSIC. Dez entre 47 (21%) tinham estado em um ambiente institucional pelo menos uma
vez nos 12 meses anteriores ao PSIC. Em comparação, somente um (2%) necessitou
hospitalização ou colocação residencial durante o período de acompanhamento.
DISCUSSÃO
Assim como a família nuclear isolada representa a culminação inevitável da
fragmentação progressiva do sistema de afinidade, a tentativa de suicídio do adolescente
pode ser o produto final inevitável de seu isolamento da rica diversidade de mitos e
conexões disponíveis entre seus familiares e amigos. Se este for o caso, os métodos de
tratamento voltados para a diminuição do isolamento dos membros da família e para a
reconciliação com os outros podem se mostrar essenciais para impedir futuras crises
suicidas nos adolescentes.
Nossos resultados de pesquisa dão suporte preliminar à eficiência de
mobilizar os sistemas de afinidade como uma intervenção segura e eficaz nas crises
suicidas adolescentes. Embora a abordagem do PSIC requeira um esforço intensivo em
equipe, sua relação custo-benefício é altamente positiva quando comparada com a de
uma longa internação hospitalar.
Embora nosso esforço de pesquisa comece a demonstrar a utilidade do PSIC, ele
de nenhuma forma retrata nossa surpresa com a disposição e a capacidade da maioria
dos membros das famílias de assumirem um papel preponderante no processo de
tratamento quando fortalecidos estrategicamente por profissionais. Por exemplo, muitos
pais tiram férias de uma ou mais semanas, com pouco tempo de antecedência, para
garantir a segurança de seus filhos durante o período agudo inicial da crise. Igualmente
impressionantes foram as reações dos amigos e familiares. Parentes que estavam sem
contato há anos se transformaram em participantes ativos na crise, e muitas vezes
viajavam grandes distâncias para comparecer às reuniões. Mesmo quando a amargura e
a traição prevalecem nas relações atuais, restam lembranças vivas de amor e ternura, e
fantasias de pertencer a um grupo que, quando funciona, proporciona um grau de
segurança e identidade que nenhum outro sistema pode oferecer. Quando
estrategicamente evocadas, elas exercem uma força poderosa, mesmo quando há muito
parecia que já haviam se desvanecido.
280
281 Referências
14. Padrões Intergeracionais de Perda Traumática: Morte e Desespero em Famílias de
Drogadictos
SANDRA B. COLEMAN
À medida que nos aproximamos do séc. XXI, há evidencias alarmantes de que
muitos problemas com potencial letal ameaçam nossa sociedade e o ambiente que um
dia a sustentou. Alguns pensam que nosso planeta em si está morrendo. Talvez mais do
que em qualquer outro momento, exceto nos tempos de guerra, a atenção universal
esteja se voltando para a morte e o morrer.
A maioria de nós provavelmente não vai viver o suficiente para saber se a Terra
e seus habitantes vão sobreviver, mas todos estamos testemunhando os efeitos que
alguns dilemas humanos, como a AIDS e as drogas, estão produzindo na sociedade.
Embora estes problemas sejam pessoais por natureza, eles não podem ser entendidos
sem consideração ao contexto interpessoal dentro do qual suas conseqüências muitas
vezes fatais têm lugar. O que é fora do comum em alguém que morre de AIDS ou por
abuso de drogas é que ele(a) é, com freqüência, muito jovem. Isto cria uma situação que
difere significativamente daquela que cerca uma pessoa que morre nos estágios
posteriores da vida, e cuja família e amigos podem ter morrido antes dela. No caso das
pessoas jovens em estado terminal, os membros da família e/ou os outros significativos
estão vivos, e muitas vezes têm um papel importante no processo do morrer. Por isso, é
importante compreender os papéis da pessoa que está morrendo e daqueles envolvidos
no processo. Embora este capítulo discorra em grande parte sobre os dependentes de
heroína, o material apresentado também se aplica àqueles que contraíram AIDS pelo
uso de drogas injetáveis.
INTRODUÇÃO
O grau em que uma pessoa que está morrendo assume um status especial na
família foi discutido há quase 20 anos por Kastenbaum e Aisenberg (1972), que
sugeriram que o membro que está morrendo muitas vezes funciona como uma
representação simbólica de todos os ancestrais da família. Estes autores
282
dedicaram especial atenção à participação social imposta pela morte, uma visão
primeiro expressa por Slater (1964), que ficou intrigado com a maneira como as pessoas
cercam os cadáveres nos funerais, dando-lhes amor e atenção. Kastenbaum e Aisenberg
também observaram que o estado terminal pode acelerar os processos interacionais
grupais, oferecendo ao membro da família que está morrendo uma oportunidade de
participar em seus rituais idiossincráticos de morte. Portanto, como sugere Becker
(1973), a morte é uma parte integrante e funcional da vida, um evento que todas as
famílias enfrentam em momentos variados do ciclo vital.
Consistente com a visão de Carter e McGoldrick (1980) do ciclo de vida em
termos do “sentido das conexões intergeracionais na família”, a morte de um membro
da família cria uma experiência que deve ser enfrentada e administrada, similar a muitas
outras tarefas vitais. Carter e McGoldrick estão particularmente interessadas na
intersecção entre os eventos contemporâneos e evolutivos do aqui e agora e os padrões
familiares históricos, sugerindo que a disfunção familiar tende a resultar quando a
tensão evolutiva normal colide com o estresse transgeracional. Com certeza, um dos
eventos mais traumáticos na vida da família é a morte de um membro significativo,
particularmente quando ela é súbita ou prematura. Assim como nos outros traumas
evolutivos, pode haver efeitos a longo prazo. Se os eventos subseqüentes serão positivos
ou negativos, isto vai depender de muitas variáveis familiares intervenientes. Por
exemplo, Eisenstadt (1978) propôs uma teoria da eminência do gênio como uma
conseqüência do luto parental, afirmando que existe um processo criativo de luto que
“está relacionado a uma seqüência de eventos por meio da qual a perda detona uma
crise que requer o controle por parte do indivíduo afetado por ela”. Ele acrescenta: “Se a
crise é elaborada, isto é, se os elementos destrutivos e as características depressivas da
experiência de luto são neutralizados, ela pode resultar em um produto criativo ou uma
personalidade integrada criativamente” (p. 220).
Eisenstadt sugere que uma variável interveniente importante entre a morte de um
dos pais e o desejo de fama, eminência e excelência profissional é a natureza da unidade
familiar anterior ao período perturbador que precede a morte. Ele oferece suporte para
sua teoria reconstruindo os perfis de perda parental de 699 pessoas eminentes que
vivenciaram a perda precoce de um ou dos dois pais. Os dados comparativos sobre a
orfandade na população em geral, ou seja, informações atuariais, indicaram que o grupo
eminente tinha um grau consideravelmente maior de perda parental. Comparações com
grupos de delinqüentes, entretanto, demonstraram que estes ficavam órfãos em taxas
comparáveis àquelas encontradas entre o grupo eminente. Por isso, Eisenstadt sugere
que a questão crítica não é necessariamente a perda em si, mas o modo como ela é
administrada. O grupo eminente parecia investir uma energia considerável em projetos
intelectuais, o que pode representar uma abordagem criativa do enfrentamento do luto.
A questão mais importante que surge a partir da teoria de Eisenstadt é: o que
acontece quando o luto não é elaborado? Os dados da delinqüência sugerem que a
incapacidade de fazer o luto de forma criativa pode ser uma função
283
das características familiares que emergem no momento em que um membro morre. Se
este for o caso, a variável importante não é a morte, mas as transações e inter-relações
familiares que levam a uma resolução bem ou malsucedida da morte.
UMA TEORIA DO LUTO INCOMPLETO E DO ABUSO DE SUBSTÂNCIAS
Evidências Clínicas
Os princípios básicos de minha teoria do luto incompleto foram desenvolvidos
diversos anos antes do trabalho de Eisenstadt ser publicado (Coleman, 1975), mas os
conceitos centrais são notavelmente similares. Os primeiros alicerces da teoria se
encontram em um estudo piloto da prevalência da morte entre 25 dependentes de
heroína em processo de recuperação e suas famílias (Coleman, 1975). Pelo menos uma
morte traumática ou prematura na família de origem ou de procriação foi experimentada
em 72% (N = 18) dos casos. A investigação foi limitada às mortes inesperadas e que
não ocorreram em função de doenças associadas ao processo normal de envelhecimento.
Portanto, a maior parte das mortes relatadas aconteceram durante os anos de
desenvolvimento dos dependentes ou de seus pais. Outros achados revelaram que 68%
(N = 17) das famílias tinham um dos pais ou um irmão alcoólatra em uma das gerações
estudadas. É interessante notar que, além do uso de heroína, a morte e o alcoolismo
foram variáveis comuns entre estas famílias.
Os seguintes exemplos de casos são representativos das famílias que serviram
como sujeitos no estudo piloto.
Após uma discussão acalorada com sua esposa, o sr. A. deixou-a com os dois filhos
pequenos e foi se reunir com amigos para uma aventura de mergulho da qual nunca
retornou. Diversos dias depois, seu corpo foi encontrado na praia. Uma investigação
revelou que seu regulador de ar tinha falhado e que ele provavelmente se afogara no
mar. O sentimento de culpa da sra. A. em relação a seu papel na disputa conjugal era
excessivo.
Após uma experiência extremamente traumática no funeral, a sra. A. passou a
ser visitada com freqüência pelo gerente da casa funerária, que estava separado de sua
esposa esquizofrênica. Posteriormente, a sra. A. se casou com ele (que por fim teve que
abandonar a indústria funerária devido a intensos ataques de ansiedade associados à
visão de cadáveres).
Vários anos depois, quando os filhos da sra. A. já eram adolescentes, eles se
envolveram seriamente com drogas, e tiveram que ser admitidos em uma comunidade
terapêutica para reabilitação de drogadictos. Durante este tratamento, em uma sessão de
casal que fazia parte do componente de terapia familiar do programa, a sra. A. recordou
um confronto intenso que teve, em sua
284
adolescência, com a mãe em seu leito de morte. Esta “visita” terapêutica ajudou-a a
dizer adeus a um dos fantasmas que há muito assombrava o sistema familiar.
A sra. P. havia se casado com o irmão gêmeo de seu falecido marido após ter enviuvado
devido a uma morte estranha, súbita e inexplicada. Tanto o sr. como a sra. P tinham
diversos filhos de seus casamentos anteriores, três dos quais vieram a se envolver com
abuso de drogas e alcoolismo. O único filho de sua união (nascido antes do casamento)
também se envolveu pesadamente com drogas aos 13 anos de idade. Uma das filhas do
primeiro casamento da sra. P. morreu em um acidente suicida de automóvel após uma
violenta discussão com a mãe. O filho mais velho do sr. P. foi internado em uma
instituição psiquiátrica e havia suspeitas de seu envolvimento em um caso de homicídio
sob o efeito de drogas.
O pai alcoólatra da sra. F. abandonou sua mãe quando ela era bem pequena. Após a
morte da mãe, a sra. F foi criada pela avó materna, que morreu subitamente quando a
sra. F. estava no início da adolescência. Ela se casou com um alcoólatra e teve cinco
filhos, um dos quais se envolveu seriamente com drogas e álcool. Um outro filho, o
mais velho e mais bem-sucedido, foi a vítima inocente de um assassinato em um caso
de latrocínio em seu alojamento na faculdade. Pouco tempo depois, a única neta da sra.
F. morreu aos 11 meses de uma doença congênita pouco comum. Não demorou muito
para que outra filha se envolvesse com drogas.
Além destes exemplos tirados das vidas de famílias com membros que abusam
de substâncias, foram encontradas evidências clínicas do significado da morte e de
questões relacionadas a ela entre famílias de viciados em minhas sessões semanais de
terapia de grupo para irmãos de drogadictos em recuperação (Coleman, 1978, 1979).
Este grupo foi desenvolvido como parte de um projeto de prevenção primária para pré-
adolescentes em situação de risco de futura dependência de drogas. Todos estes jovens
vinham de famílias com padrões intergeracionais repetitivos de drogadição. Eles
levaram quase um ano para acalmarem seu comportamento caótico e de atuação em
grupo, mas quando finalmente se sentiram seguros o suficiente para sentarem com
tranqüilidade e compartilharem suas emoções, um material fascinante emergiu.
A morte — simbólica ou real — era o tema recorrente mais familiar. Ela sempre
tinha um efeito de sobriedade nos membros do grupo:
A primeira destas experiências de grupo ocorreu quando o irmão de 23 anos de Rita, de
13, foi vítima de latrocínio. Ironicamente, este irmão era o único membro da família de
Rita que não era dependente de drogas, álcool ou comida. Rita, sua mãe e uma irmã
casada eram muito obesas; seu pai era um alcoólatra que, em conseqüência da terapia
familiar, tinha conseguido ficar sóbrio pela primeira vez em mais de uma década; um
outro irmão e uma irmã eram vicia dos em drogas.
Nota de rodapé:
*(1). Um trecho desta sessão de terapia aparece em Coleman e Stanton (1978).
285
Rita e sua família vieram para terapia familiar imediatamente após o assassinato.
No grupo, Rita disse soluçando que, ao ser informada da morte do irmão, ela
quis retornar ao grupo de terapia, após tê-lo abandonado algumas semanas antes. Quase
todos os membros do grupo começaram a chorar quando ela relatou o triste episódio.
Cada um deles então falou de uma experiência pessoal com a morte. Considerando sua
pouca idade, eles tinham sofrido uma vasta gama de perdas prematuras, incluindo a da
irmã de quatro anos de um dos meninos, que tinha morrido de leucemia vários anos
antes. Um resultado interessante da tragédia de Rita foi que, em contraste com sua
posição previamente periférica no grupo, ela se transformou em um membro integrado e
aceito.
Alguns meses depois, uma outra menina de 13 anos explodiu em lágrimas. Seu irmão
mais velho, diabético desde a infância, tinha começado a usar drogas novamente. No
passado, a combinação de sua doença física com o abuso de heroína tinha ameaçado
tanto sua vida que ele recebera a extrema-unção três vezes. Sue contou ao grupo que
temia que, desta vez, seu uso de drogas se mostrasse fatal. Novamente, os membros do
grupo falaram seriamente sobre suas experiências passadas com a morte. Eles sugeriram
que Sue revelasse seus temores para seu irmão, o que ela fez em seguida. Embora ela
duvidasse que isto fosse mudar o comportamento dele, ela sentiu um alívio considerável
por tê-lo encarado tão honestamente.
Um dos membros mais jovens, Margo, abandonou o grupo antes da primeira primavera,
dizendo que não conseguia mais tolerar o estresse e a atuação dos outros. Em meados do
verão, quando seu cachorrinho foi morto por um automóvel, Margo retornou
rapidamente para o grupo. Ela chorava copiosamente, e contou a todos como estava
furiosa com o motorista descuidado, um vizinho insensível. Margo teve uma dificuldade
considerável em superar a perda, embora seus pais lhe tivessem comprado um cachorro
novo. Poucas mudanças aconteceram em seus afetos até que foi sugerido que ela
trouxesse seu novo mascote para o grupo. Após a visita muito festejada do bichinho, o
sofrimento de Margo se dissipou.
Literatura de Apoio
Revisões bastante completas da literatura sobre a morte, a separação e a perda
aparecem em textos já publicados, e não serão repetidas aqui (Coleman, 1980a, l980b;
Coleman & Stanton, 1978; Stanton & Coleman, 1980; Stanton et al., 1978). Entretanto,
tendo em vista sua relevância conceitual, os principais achados de pesquisa são
apresentados.
Uma questão central na vida dos usuários de drogas é o elemento suicida
inerente a estas populações. Uma alta proporção de drogadictos morre em uma idade
precoce; além disso, dados complementares revelam uma alta incidência de morte
prematura de pelo menos um dos pais do drogadicto (Blum & associados, 1972;
Ellinwood, Smith & Valliant, 1966; Harbin & Maziar, 1975; Klagsbrun & Davis, 1977;
Miller, 1974).
286
É interessante notar que um estudo dos resultados de tratamentos (Harris & Linn, 1978)
descobriu que uma das poucas características de história familiar que diferenciava
significativamente os dependentes de heroína dos usuários de outras drogas era que os
primeiros tinham maior probabilidade de ter experimentado a morte de seus pais antes
dos 16 anos de idade.
A prevalência de símbolos da morte reflete ainda mais o papel singular que esta
tem nas famílias de drogadictos. Observando os papéis, as comunicações,
metacomunicações e interações dentro de 25 famílias, distingui (Coleman, 1975) três
fases metafóricas relacionadas à morte no continuum da drogadição: (1) a iminência da
morte (uso inicial de drogas); (2) o funeral (remoção da casa para uma comunidade
terapêutica residencial); e (3) a ressurreição (tratamento familiar). Neste sentido, a
drogadição é análoga a um lento processo de morrer. Coleman e Stanton (1978; Stanton
& Coleman, 1980) sugerem que a drogadição facilita o comportamento participativo da
família relacionado à morte. Tratando o usuário de drogas como se ele estivesse
passando por uma morte lenta e tediosa, os membros da família conseguem perpetuar
(frente a frente com o drogadicto) a morte prematura e não resolvida de um outro
membro. O drogadicto, portanto, torna-se um substituto ou “fantasma” do morto. Isto é
consistente com a visão de Stanton (1977) do drogadicto como o membro sacrificial,
que se martiriza de modo a preencher a necessidade da família de uma morte. Stanton
considera que o papel de “salvador” do drogadicto permite à família se envolver em
uma trama de suicídio.
Além da separação causada pela morte, qualquer tipo de distanciamento é
particularmente difícil para as famílias de drogadictos. Stanton (1980), Stanton et al.
(1978) e eu (Coleman, 1978, 1979) escrevemos extensivamente sobre os elementos
conflitados de separação, expressando nossas dúvidas de que seja mera coincidência que
o uso de drogas se intensifique durante a adolescência, quando os conflitos de separação
alcançam o ponto máximo. Como apontam Stanton et al. (1978), o abuso de drogas é
uma “resolução paradoxal” para o crescimento e à saída de casa. A droga permite ao
usuário se separar da família como um meio de estabelecer alguma independência, mas
também facilita o retorno ao lar quando é hora de “dar um tempo”. Isto perpetua o
padrão cíclico de sair e não sair, mantendo o drogadicto em uma oscilação entre a casa e
o mundo externo das drogas. O profundo conflito que a separação apresenta para estas
famílias foi discutido extensamente em outras publicações.
O PAPEL DA RELIGIOSIDADE *(1) NAS FAMÍLIAS DE DROGADICTOS
Semelhante à exploração do papel da morte nas famílias de drogadictos é a
investigação da função da religião na vida familiar.
Nota de rodapé:
*(1). A religiosidade, ou religião, como referido aqui, vai além da doutrina formal, e
inclui qualquer sistema ou crença filosófica que represente uma visão específica do
sentido da vida. Assim, o termo “religião” abrange uma visão sociológica, ou
Weltanschauung, que inclui a conceitualização do objetivo da própria existência. Isto é
considerado como uma das forças motivadoras que orientam o comportamento
intencional — um determinante interno, em um certo grau, dos processos vitais do
indivíduo.
287
As crenças religiosas ou os sistemas filosóficos de pensamento tendem a ser uma
interface importante entre a morte e seu comportamento adaptativo da família. A fé
pode tanto aliviar como exacerbar a tristeza, a raiva e a culpa que acompanham ou se
seguem à morte de um ente querido. Consequentemente, a fim de compreendermos
como as famílias respondem à morte e à perda, é necessário explorarmos seu sistema de
valores e suas práticas religiosas, bem como sua filosofia de vida.
Literatura de Apoio
Existem algumas evidências da ligação entre o uso de drogas e a falta de
exposição ao treinamento religioso na infância. Por exemplo, Blum et al. (1972)
descobriram que as famílias em alto risco de uso de drogas eram inconsistentes ou
ambíguas a respeito das práticas religiosas de seus filhos. Em contraste, as famílias com
baixo risco de uso de drogas transmitiam a seus jovens os fundamentos da religião e da
crença em Deus durante a infância e se tornavam mais flexíveis em relação à freqüência
à igreja quando eles alcançavam a adolescência. Uma relação entre a religião e o uso de
drogas também é sugerida por Gorsuch e Dutler (1976), que afirmam que aqueles que
praticam a abstinência podem ter aprendido que suas necessidades básicas podem ser
atendidas por fatores tradicionais de socialização parental, como, por exemplo, a
religião. Esta idéia ganha suporte quando é vista em conjunto com as descobertas de
Blum e associados (1972) de que os jovens de famílias tradicionais, independente de
classe social, raça ou etnia, estão menos propensos a se envolverem no abuso de drogas.
Além de explorarmos a relação entre a religião doutrinária formal e o uso de
drogas, é necessário considerarmos o papel da religião nas conseqüências da morte.
Feifel (1959) sustenta que a orientação religiosa, os mecanismos de enfrentamento e a
reação pessoal dos indivíduos à morte estão relacionados. A tese principal que
fundamenta o sistema logoterapêutico de Frankl é de que a força vital primária do
homem é a busca de sentido. Frankl (1963) sugere que a perda de sentido cria um
“vácuo existencial” no qual se carece de uma explicação para viver, gerando
desesperança e angústia. Ele explica o alcoolismo como uma função do “vácuo
existencial”, e sugere ainda que o desejo frustrado de sentido pode ser compensado pela
substituição por um desejo de prazer. Poderíamos supor, em vista desta premissa
teórica, que a drogadição também é um meio de enfrentar o vazio espiritual?
Embora estes achados seriam interessantes, a natureza das interações entre pais e
filhos é talvez mais importante do que as práticas religiosas específicas. Kastenbaum
(1965) relaciona a perda de objeto sob a forma da morte à alienação em relação a Deus,
pois uma perda significativa tende a aumentar o temor de novas perdas. Ele também
sugere que a perda ou a falta de um sistema de crenças, especialmente em conjunção
com a perda de um objeto de amor, pode produzir sentimentos intensos de desespero,
desamparo e impotência, reforçando o estado depressivo. Por isso, postula-se que a
crença em qualquer sistema, seja o deísmo, o ateísmo, etc., é, em si, uma resolução, e
288
representa um constructo filosófico-religioso a respeito da vida e de seu sentido
experiencial. A ausência de tal sistema leva a um estado de descomprometimento que
induz um sentimento de desamparo, fraqueza e frustração. Se a perda de um membro
significativo da família acontece dentro do vácuo de um sistema amorfo de crenças
religiosas, presume-se que o uso de drogas possa representar uma busca de sentido e
uma defesa contra a própria mortalidade.
Achados de pesquisa
Dados de diversos grandes estudos sugerem que a morte, a perda e a separação
são fatores altamente significativos na vida dos usuários de drogas injetáveis. Em uma
pesquisa nacional sobre terapia de família e abuso de drogas, os pesquisadores
descobriram que a separação da família, a depressão e as questões de morte e perda
eram freqüentemente citadas como conflitos importantes apresentados na terapia de
família (Coleman, 1976; Coleman & Davis, 1978). Entre 16 variáveis possíveis que
afetavam as famílias em tratamento, somente a atuação, outras dependências e
problemas sexuais tiveram índices mais altos.
Uma investigação sobre questões de morte e perda em vários grupos
étnicos/raciais e outras minorias revela um material de apoio interessante.
Consistentemente, entre todas estas populações, prevalecem a perda e os conflitos de
separação. Particularmente comum entre os usuários de drogas cujos pais são imigrantes
de primeira geração é a alienação em relação ao país de origem. Isto cria um problema
de separação que se estende por três gerações. Por exemplo, uma família hispânica que
se estabelece no sudoeste dos Estados Unidos fica separada de seu país nativo, bem
como dos pais e da família extensa, que é de grande importância para os sistemas
familiares hispânicos. A medida que os filhos crescem, sua aculturação americana
forma um contraste claro com as características étnicas mais altamente visíveis de seus
pais, criando ainda mais separação entre as gerações. Isto resulta em uma enorme perda
das tradições e conexões familiares.
Nenhuma população demonstra maiores efeitos desta perda das tradições do que
os índios norte-americanos. Entre os Navajos, descobri (Coleman, 1979) que as
questões de perda incluíam as famílias individuais, bem como a nação inteira, pois,
além de todas as mudanças familiares, os Navajos são perseguidos por problemas que
carregam a ameaça da perda de seus rituais religiosos. Estes são muitas vezes
substituídos por novas religiões evangélicas, que têm um efeito sedutor para os povos
indígenas muito necessitados. As disputas com os Hopi devido a fronteiras territoriais
representam ameaças contínuas de perda da terra, com a privação concomitante de
grandes quantidades de gado. Os terapeutas de família Navajo sentem que a destituição
da identidade cultural de seu povo exacerba e contribui para a drogadição. Como disse
um destes profissionais: “A menos que o índio possa preservar seus rituais, ele com toda
a certeza morrerá”.
Estes estudos reforçam a teoria do luto incompleto e formam os alicerces de
pesquisas mais extensas que investigam diretamente o papel do uso da heroína nas
famílias que buscam ajuda para lidar com mortes, perdas e separações durante o ciclo de
vida. Estas pesquisas mais recentes (Coleman et al., 1982; Coleman, Kaplan
289
& Downing, 1986) oferecem uma investigação sistemática do papel da morte, da
separação, da perda e da religiosidade no contexto do ciclo de vida familiar de uma
amostra de duas gerações de usuários de heroína, pacientes psiquiátricos ambulatoriais e
pessoas normais. Ela se baseou na premissa teórica de que o uso de drogas serve para
perpetuar os padrões familiares que mantêm o membro usuário impotente e incapaz de
abandonar a família. Este processo tende a unificar a família e sustentar sua integridade.
Dentro do complexo conjunto de mecanismos envolvidos no processo de uso de drogas
se encontra uma sensação generalizada de desamparo familiar e falta de sentido ou
propósito na vida. Assim, o ritual do uso da heroína tem um papel intencional.
Os sujeitos deste estudo realizaram uma extensa bateria de testes, incluindo uma
entrevista individual estruturada (Questionário Coleman de História Familiar, “QCHF”,
Coleman, Kaplan & Downing, 1982) que inclui perguntas sobre fatores demográficos,
religião, sentido da vida, experiência com a dor, atitudes em relação à morte,
comportamentos de dependência, relação com as figuras parentais, incesto, estilo de
vida e filhos. Ele também proporciona uma retrospectiva geral dos principais eventos
vitais, as respostas dos sujeitos a estes eventos e sua percepção das reações dos
membros da família. As perguntas a respeito da composição familiar ao longo do tempo
levam à construção de um “mapa” dos lares dos sujeitos e de todos os que viveram com
eles. Para cada membro da família ou outro significativo já falecido são registrados
detalhes como a causa da morte, a idade do sujeito e do morto, a proximidade da relação
emocional e o impacto prático da morte, a extensão do luto feito pelo sujeito, os pais e
os irmãos, o comparecimento ou não do sujeito ao funeral e o impacto do funeral. Cada
separação permanente e temporária de um membro da família também é explorada para
se determinar quando aconteceu, suas causas e efeitos, e se o sujeito se reaproximou
desta pessoa.
Os resultados desta pesquisa confirmam as principais premissas do estudo. A
incidência total de morte varia surpreendentemente entre os grupos e difere
significativamente para os drogadictos cujo ciclo de vida familiar, ao longo das duas
gerações, (1) foi invadido por múltiplas experiências de morte, muitas vezes de natureza
prematura e bizarra, (2) está ligado a suicídios ou ideação suicida e (3) demonstra uma
fascinação obsessiva extrema com a morte. Além disso, os drogadictos são mais
freqüentemente separados de suas famílias como um todo durante a infância ou
adolescência; estas separações, embora muitas vezes temporárias, parecem estar
associadas a eventos traumáticos ou ocorrer de forma muito perturbadora. Além disso,
os drogadictos, mais do que qualquer outra população, são propensos a estarem
separados permanentemente de suas famílias de origem e a serem criados em lares que
não são de membros da família imediata. Como grupo, os drogadictos tendem a
desenvolver um padrão intergeracional distinto e repetitivo de separação e retorno a
suas famílias de origem. Por intimo, em relação ao conceito de religião, nenhuma das
gerações desenvolve um sentido ou propósito central claramente definido para a vida.
Talvez o mais interessante seja a colocação destas descobertas no referencial
evolutivo do ciclo de vida familiar, particularmente quando alguns dos resultados
qualitativos são incluídos. Durante a infância, existe uma maior
290
tendência da parte do drogadicto em ter uma separação prolongada seja da família toda,
seja da mãe ou figura materna. Também durante a infância, o drogadicto tem mais
probabilidade de que um de seus irmãos mais velhos saia de casa por razões não
associadas com as mudanças normais esperadas, como, por exemplo, encarceramento
ou fuga de casa. Mesmo as separações temporárias ocorrem em mais de 50% desta
população, e os drogadictos também têm uma probabilidade maior de perder um avô.
Deste modo, a infância parece conter um forte elemento de perda e separação para o
dependente.
As conseqüências imediatas destas experiências estão refletidas no trabalho de
Bowlby (1980) que, há 10 anos, reafirmou suas descobertas clássicas (Bowlby, 1951) de
que a perda precoce na infância, sem resolução, produz padrões perturbados de
comportamento de apego, que podem levar a um estresse crônico e à depressão severa.
Esta visão se assemelha à idéia de Eisenstadt de que a perda precoce detona uma crise
que demanda o domínio ou o “luto criativo”, sem o qual pode se seguir um
comportamento anti-social. Eisenstadt vê a unidade familiar como a principal variável
interveniente. Portanto, o contexto dentro do qual a crise ocorre é, talvez, mais
significativo do que o evento traumático em si.
Durante a adolescência, novamente existem mais separações da família toda para
os drogadictos se comparados com os sujeitos normais e com história psiquiátrica.
Como no estágio anterior do desenvolvimento, em meio a tudo isto, um irmão pode sair
de casa inesperadamente. Quando se considera que os drogadictos estão mais propensos
a experimentarem a morte de um membro da família imediata nesta época, bem como a
de um outro significativo, o período da adolescência emerge como altamente
perturbador e traumático.
Uma das questões contextuais relevantes é a de que o drogadicto tem maior
probabilidade de ter pais que, durante a infância, perderam membros da família que
moravam em suas casas. Estas experiências de morte podem incutir nos pais uma maior
ansiedade em relação a qualquer tipo de perda na família de procriação. Assim, quando
um dos filhos se prepara para sair de casa, ainda que na idade apropriada, este evento
normal do ciclo da vida fica cercado de conflito e ambivalência. Isto poderia explicar o
padrão repetitivo de abandono e retorno ao lar, que é inteiramente diferente daquele dos
pacientes psiquiátricos ou normais. Este comportamento particular sugere que o
drogadicto não é a “pessoa das ruas” como costuma ser descrito, mas está, na verdade,
muito ligado à casa e à família, ainda que este laço esteja associado a uma ansiedade
fora do normal. Estes achados corroboram muitos dos dados clínicos revisados por
Stanton (1982).
Outra questão contextual é a resistência da família do drogadicto em falar a
respeito da morte e do morrer, uma função da comunicação familiar que está geralmente
associada a famílias psicologicamente saudáveis (Lewis, Beavers, Gosset & Fhillips,
1976). Talvez a incapacidade das famílias de drogadictos de confrontarem diretamente a
questão da morte esteja ligada ao ambiente mais conflituado no qual vivem, um fato
confirmado por descobertas com a Escala Moos de Ambiente Familiar. Quando
combinado com a falta de envolvimento
291
religioso formal dos viciados em heroína e sua falta de propósito generalizada, o
ambiente familiar como um todo parece ser sombrio e assustador.
Os sistemas de valores também diferem consideravelmente para o grupo dos
drogadictos. Tanto eles como seus pais acreditam que o que acontece quando uma
pessoa morre está relacionado a como ela viveu sua vida na terra. Ambas as gerações
estão menos dispostas a morrer por alguém do que os sujeitos normais ou os pais dos
sujeitos normais e psiquiátricos. Isto pode refletir o grau moderado de ansiedade a
respeito da morte e do morrer dos pais dos drogadictos, e também pode estar
relacionado à ausência de sentido ou propósito em suas vidas, uma vez que, com
certeza, dar a vida por uma causa justificável é indicativo de alguma forma de
intencionalidade,
Os drogadictos parecem ter um sistema de valores relativamente concreto. Eles
dão grande importância ao dinheiro, mas não estão particularmente preocupados com os
valores abstratos associados a contribuir com a sociedade, ser um líder da comunidade
ou corrigir as desigualdades sociais e econômicas — valores associados com muito
mais freqüência aos sujeitos normais. E interessante notar, entretanto, que a amostra dos
drogadictos relatou a maior preocupação com um bom casamento e uma boa vida
familiar e queria, mais do que os outros, dar a seus filhos oportunidades melhores do
que as que tinham experimentado. Embora em um nível profundo eles sintam, e
certamente ajam, como se a vida tivesse pouco sentido, em um plano mais cognitivo
eles esperam algo melhor. Podemos especular que isto está ligado a seus próprios laços
com suas famílias de origem. Esta informação auto-relacionada pode ser uma função
tanto da negação, que permeia o estilo de vida do drogadicto, como de seu
comportamento contrafóbico. Isto caracteriza o conflito central, semelhante ao da
adolescência, do drogadicto. Eles ainda não estão prontos para incorporar os objetivos e
valores da sociedade, pois ainda estão presos em sua tarefa incompleta de crescer e sair
de casa. Por isso, os drogadictos se aferram à família mesmo quando rejeitam seus
valores e atitudes. Ir além do sistema familiar e abraçar o sistema mais amplo é um
passo que eles ainda não estão prontos para dar.
Esta preocupação consigo mesmo fica provavelmente mais óbvia no grau de
preocupação corporal dos drogadictos. Seus altos índices de somatização sugerem um
foco muito forte em seus corpos, um fato que é certamente compreensível em vista do
uso de heroína. De maneira paradoxal, estas pessoas são compelidas compulsivamente a
injetarem uma droga poderosa em suas veias e depois se preocuparem obsessivamente
com os mesmos corpos dos quais abusam regularmente.
CONCLUSÕES
Fica evidente, a partir de dados de clínicos e dos materiais de pesquisa, que as
questões de morte e perda afetam as famílias de maneira profunda, interferindo e
influenciando seus padrões interacionais por geração após geração. É provável que
características similares prevaleçam em muitas famílias além
292
daquelas com membros dependentes de drogas, particularmente em famílias com outros
tipos de comportamento de abuso ou dependência. Como exemplo, podemos citar
famílias com transtornos alimentares, dependência de sexo e amor, compulsão ao jogo e
ao trabalho.
Além do contexto familiar multigeracional dentro do qual se desenvolve o
dependente, devemos sempre considerar a sociedade mais ampla e seus efeitos
interativos. Claramente, nossos pobres da periferia, nossos moradores de rua e nossas
populações empobrecidas estão avassaladoramente tomados pela morte, pela perda e
pela desesperança. Mais do que qualquer outras, estas famílias são confrontadas com a
violência e o medo diários, para os quais, talvez, o único alivio seja o de uma substância
que altere quimicamente seu sofrimento. O campo de batalha do crime e da pobreza é
um terreno fértil para as condições mesmas que geram os padrões descritos
anteriormente.
Com respeito à questão da AIDS, o problema crescente desta deficiência auto-
imune entre os usuários de drogas injetáveis pode reforçar ainda mais o padrão descrito
aqui. Com certeza, o número crescente de mortes causadas pela AIDS tem uma alta
probabilidade de contribuir para a sensação de desamparo e imensa angústia que
permeia o mundo das drogas. Se aceitamos as premissas teóricas e as implicações
descritas aqui, as tentativas de colocar agulhas limpas nas ruas e nos locais de consumo
de drogas terão pouca chance de fazer algo para reduzir a incidência da dependência de
drogas e sua relação com a epidemia da AIDS. Do contrário, somente podemos esperar
que o risco da AIDS aumente o comportamento de busca de sensações do usuário de
drogas injetáveis, tornando a experiência da droga muito mais estimulante. Para o
sistema familiar, a AIDS oferece uma oportunidade para que mais fantasmas
assombrem as gerações futuras; se seu luto não for feito adequadamente, eles podem
perpetuar a dança circular que acompanha a cerimônia da drogadição.
293
294 Referências
15. A Morte na Família do Terapeuta
BETTY CARTER
Escrevi o trabalho a seguir em março de 1973, para ser lido no Simpósio sobre
Psicoterapia de Família da Universidade de Georgetown, em novembro do mesmo ano.
Naquela época, eu estava terminando minha formação em terapia de família. Nos 17
anos que se passaram desde então, continuei meus esforços para “praticar o que prego”,
ainda que de maneira menos formal. Este trabalho, que me reaproximou
permanentemente de minha família de origem, ainda representa a abordagem que utilizo
em minha prática clínica quando confrontada com a morte real ou ameaçada de um
membro das famílias que atendo.
O seguinte é um resumo de meus esforços para modificar meu relacionamento
com os membros da minha família de origem in vivo, e não em minha cabeça. Como
muitos outros, eu já tinha feito esta última tentativa, concluíra que meus pais me
amavam e tinham feito o melhor que podiam sob suas circunstâncias de vida e que, é
claro, uma vez que as coisas nunca poderiam ser “reais” entre nós, eu poderia ao menos
ser “compreensiva” com eles e tolerar o “tédio” e a “irritação” das visitas a que o dever
filial me obrigava. Meu principal investimento emocional, de qualquer forma, era em
minha própria família nuclear, e eu estava propensa a dedicar todas as minhas energias a
fazer as coisas funcionarem bem com meu marido e meus dois filhos pequenos.
Três coisas me levaram à decisão de tentar o curso “radical” de voltar a minha
família de origem: uma delas foi ler Murray Bowen e escutar dele e de outros a respeito
de seu poder de persuasão nas conferências profissionais; a segunda foi uma crescente
sensação de desconforto em meu trabalho com famílias, à medida que percebia a
futilidade de tentar ignorar ou evitar seus antigos rompimentos familiares, e me
descobria recomendando a meus clientes que fizessem coisas que eu mesma não tinha a
coragem de fazer com minha própria família e, em terceiro lugar, a despeito de nossos
mais sinceros esforços para enfrentá-la, vinha a tensão entre meu marido e eu, que
estava produzindo sintomas de ansiedade em nós dois e conflitos com e sobre nossos
filhos.
295
Dividi este relato de meu trabalho, que ainda está, em grande parte, em
progresso, em três partes: a readmissão na família, a doença de meu pai e a festa de
aniversário de casamento. O período de tempo coberto é de um ano — de março de
1972, quando comecei a planejar minha readmissão, até a redação deste texto em março
de 1973. Tive consultas periódicas com um terapeuta de família que também estava
supervisionando alguns de meus casos clínicos durante este período.
A READMISSÃO NA FAMÍLIA
Em março de 1972, decidi que quando meus pais retornassem de suas férias de
inverno na Flórida, eu ia tentar mudar meu relacionamento com cada um deles. Passei
os dois meses anteriores a seu retorno a Nova York alternadamente pensando a respeito
da família e do que eu queria mudar em minha posição dentro dela e lutando contra
ataques de ansiedade e medo muito mais intensos do que eu havia esperado. Embora
minha insônia, dores nas costas e tiques variados me tentassem a abandonar a idéia
antes de começar, eles também pareciam indicar que o projeto era mais importante do
que eu havia me dado conta. Desenhar um genograma, fazer listas, tentar organizar todo
o tipo de dados e buscar algum distanciamento acadêmico da família foram estratégias
úteis para reduzir minha ansiedade e produzir algumas idéias sobre como começar a me
mexer.
Minha família é católica e irlandesa pelos dois lados. Eu sabia muito mais a
respeito da família de minha mãe do que sobre a de meu pai, tendo crescido na casa do
Brooklyn, onde meus pais ainda moravam e onde minha mãe tinha vivido com sua
família antes de se casar. Tia Clara, a irmã mais nova de minha mãe, ainda morava no
andar de cima, e estava em contato diário com meus pais. Eu tinha muitos dados sobre a
família de minha mãe, tinha conhecido a mãe dela muito bem, e lembrava vaga mas
ternamente de seu pai. Do lado de meu pai, eu estava incerta a respeito do número (eram
oito) e das idades de seus irmãos, nunca tinha conhecido seus pais, que tinham morrido
antes de eu nascer, e não me lembrava dele jamais ter falado a respeito de nenhum
deles! Eu tinha lembranças vívidas de infância da maioria dos irmãos e irmãs de meu
pai, mas dois deles tinham morrido subitamente nos anos 40, uma havia tentado o
suicídio mais ou menos na mesma época e tinha se afastado da família desde então, três
eu nunca tinha visto e raramente ouvira falar, e os outros tinham perdido o contato há
muitos anos. Meu pai, o mais novo de seis irmãos, tivera pólio quando criança, e ficou
manco para o resto da vida. Em 1966, após uma festa familiar no seu aniversário, ele
tinha caído, quebrado a perna fraca e, desde então, dependera de um andador. Em
agosto de 1971, um pouco antes de completar 75 anos, ele tinha removido um tumor
maligno da garganta, e a família havia sido informada de que não havia outros sinais de
câncer.
Meus pais se casaram em 1928 e tiveram cinco filhos; eu era a mais velha, e
tinha uma irmã um ano e meio mais nova e um irmão quatro anos mais novo. Duas
meninas gêmeas morreram prematuramente ainda bebês — uma delas logo
296
após o nascimento e a outra aos 18 meses (quando eu estava com 12 anos), de uma
overdose de sulfa prescrita para uma dor de garganta. Ela morreu no dia do aniversário
de meu pai, alguns meses após minha mãe ter se submetido a uma grande cirurgia para a
remoção de um câncer intestinal, do qual ela havia recebido escassas chances de
recuperação.
À medida que eu investigava o sistema familiar como um todo pela primeira
vez, foi se tornando aparente que ele trazia todos os sinais de um sistema emocional
fechado, que entrava em ebulição periodicamente com mortes prematuras, doenças
graves, acidentes ou colapsos. Estes eventos eram administrados por meio de uma série
de conversas tensas e sussurradas entre os adultos e de um sofrimento um pouco mais
explícito por parte das mulheres nos velórios e enterros. Depois, eles eram eliminados
das discussões e de qualquer referência, e os membros da família seguiam em frente
com suas vidas, na tradição irlandesa de resignação e persistência em face das
“perturbações”. Examinando minha posição em cada um dos principais triângulos de
minha família original, vi a mim mesma “afinada”, mas em conflito, com minha mãe,
minha irmã e minha cunhada, e com uma disposição terna, mas enormemente distante,
em relação a meu pai, meu irmão e meu cunhado (todos eles chamados Jack,
incidentalmente). Minha irmã e eu tínhamos saído de casa imediatamente após a
faculdade, ela para se casar e eu para trabalhar na Europa. Nos últimos 20 anos, após
uma adolescência tempestuosa, eu tinha mantido um contato polido, superficial e
amigável com minha família, evitando as questões emocionais “controversas”, que
tendiam a se converter em discussões políticas ou de outros temas abstratos. Tinha
havido uma breve ruptura nesta fachada em 1959, quando criei um escândalo familiar
ao me casar com um protestante divorciado fora da igreja católica, em um casamento ao
qual só compareceram minha irmã, meu irmão e um primo em segundo grau. Após mais
ou menos um ano de tensão, isto foi “aceito” e “esquecido” sem discussão ou
referências posteriores.
Decidi que, a fim de conhecer os homens de minha família, eu teria que me
sentir mais simpática às mulheres, que eu percebia como se interpondo entre nós.
Planejei minha primeira “nova” visita para pouco depois do retorno de meus pais da
Flórida, na ocasião de meu 43° aniversário, que por acaso também seria o dia anterior
ao Dia das Mães e uma semana antes do aniversário de minha tia Clara. Levei comigo
os presentes mais incaracterísticos que pude imaginar — coisas feitas à mão por mim,
que, como era bem sabido, não tinha talento nem paciência para trabalhos manuais. Meu
marido e meus filhos me acompanharam (eu nunca mais tinha visitado meus pais
sozinha, desde que me casara 13 anos antes), e amorteci ainda mais minha ansiedade
crescente tomando o primeiro tranqüilizante de minha vida e decidindo que nesta
primeira readmissão eu me concentraria em não cair em velhas armadilhas, mais do que
qualquer coisa em particular.
A visita de “readmissão” foi um grande sucesso como primeira jogada, embora
um tanto cooptada pela reação da família ao “retorno da filha pródiga”. Fui capaz de
responder com piadinhas a comentários que eu anteriormente teria rebatido ou
desaprovado silenciosamente. Meti novo interesse na história
297
familiar foi recompensado com informações sobre a família de meu pai (as perguntas
dirigidas a ele sendo quase todas respondidas por minha mãe), e a conversa foi mais
animada e a visita muitas horas mais longa do que o habitual. Sua reação calorosa a meu
novo comportamento e interesse foi a primeira de muitas ocasiões que me fizeram
pensar no quanto a distância e a superficialidade poderiam ser responsabilidade minha.
A DOENÇA DE MEU PAI
Quando telefonei para minha mãe na semana seguinte a minha “readmissão”, ela
estava bem disposta, apesar dela e meu pai estarem sofrendo de bronquite. Uma semana
depois, no Memorial Day, *(1) meu pai foi levado para o hospital com pneumonia, e
foram feitos testes para verificar se havia uma recaída do câncer que tinha sido
descoberto no ano anterior. Em 5 de junho de 1972, minha mãe me telefonou para
contar que os médicos tinham diagnosticado o câncer de meu pai como terminal
(linfossarcoma). Ele estava perdendo peso com rapidez, e os médicos planejaram
tratamentos de cobalto e quimioterapia para evitar uma operação nos rins que ele
poderia não ser forte o suficiente para suportar. Sob o estresse destas notícias, ambas
choramos por uns momentos, mas minha mãe se recompôs rapidamente e declarou
incisivamente: “É óbvio que ele não deve ficar sabendo. Todos seremos corajosos e
vamos continuar com nossa vida de sempre”.
O golpe desta notícia e a incerteza sobre quanto tempo ele teria de vida me
fizeram modificar meus planos e prioridades. Eu teria que ir diretamente a meu pai se
quisesse estabelecer algum contato com ele antes de sua morte. Embora minhas
emoções gritassem por distância deste cenário todo, eu esperava que, se conseguisse
controlar meus sentimentos e me aproximar ao invés de fugir, talvez me deparasse com
os outros membros da família mais disponíveis do que nos tempos de calma. Eu
também antecipava que os níveis de tensão de todos estariam altos, e que a tendência
automática de meu sistema familiar a se fechar sob estresse estaria em operação, como
anunciado por minha mãe.
Durante as sete semanas de hospitalização de meu pai, em junho e julho de
1972, fiz visitas freqüentes ao hospital sozinha, nos momentos em que sabia que outros
membros da família não estariam lá. Fiz uma lista de assuntos sobre os quais queria
conversar com ele. A aproximação de sua morte encabeçava a lista como o tópico mais
importante e o mais difícil. Eu também queria falar de questões não abordadas entre
nós, incluindo meu casamento e minha entrada no campo da assistência social após anos
ouvindo-o esbravejar contra os assistentes sociais que tinham interferido no trabalho
dele na reabilitação de deficientes físicos. Eu queria quebrar o tabu existente contra
discutir com meu pai a respeito das circunstâncias que cercaram sua aposentadoria, 10
anos antes, após uma batalha feroz contra seu primo pelo controle da empresa. Eu
queria saber
Nota de rodapé:
*(1). N de T. Dia em memória dos soldados mortos na guerra nos Estados Unidos,
geralmente 30 de maio.
298
Eu queria saber algo sobre sua mãe e seu pai, e como havia sido o início de sua vida
familiar. Eu queria me sentir livre para mencionar, se sentisse vontade, que meu marido
e eu às vezes tínhamos brigas e desentendimentos (apesar da regra familiar contra
conflitos explícitos) e que criar um filho com problemas neurológicos foi difícil para
nós (apesar da regra familiar contra queixas). Eu queria conhecer alguma coisa a
respeito dele como pessoa, e queria que ele conhecesse algo sobre mim como a adulta
que às vezes sou fora da família.
Antes de cada visita ao hospital, escolhi um destes tópicos e planejei
elaboradamente maneiras “casuais” de chegar a ele via algum assunto tangencial e
menos carregado. Antes de cada visita, eu também preparava cuidadosamente alguns
comentários que aludiam a sua doença e à aproximação da morte, tais como: “Eu sei
que o cobalto é uma coisa terrível, mas todos esperamos que ele vá lhe dar mais algum
tempo”, ou “Bem, você certamente é o membro mais calmo desta família, os outros
estão subindo as paredes de preocupação com sua morte”. Estruturei ainda mais minhas
visitas decidindo com antecedência a duração de cada uma delas, para que eu não
acabasse fugindo de tanto medo (cheguei até duas horas antes do fim das sete semanas).
Embora estas precauções pareçam bobas, não creio que eu poderia ter feito qualquer
coisa sem elas. Mesmo assim, uma vez entrei e saí da recepção do hospital três vezes
antes de conseguir me forçar a entrar no elevador, e eu geralmente tinha que entrar no
banheiro do quarto e me passar um sermão na frente do espelho antes de realmente
conseguir tocar em qualquer uma das questões que havia preparado. Estou rindo agora,
mas o rosto que me olhava de volta no espelho não estava sorrindo quando eu dizia para
mim mesma: “Você tem 43 anos de idade e está com medo de mencionar seu casamento
para seu pai. Você está preparada para viver com isso?”.
Por sua parte, a resistência de meu pai em discutir questões emocionais era tão
grande quanto a minha. Ele começava a ficar preocupado com minha “segurança neste
bairro” e a tentar me correr dali quase assim que eu chegava. Ele entrava em longas
discussões sobre tópicos seguros, como o dia-a-dia das crianças, ou sugeria que eu me
apressasse para chegar em casa a tempo para o jantar. Quando eu disse, em tom de
brincadeira, que se eu não soubesse que era sua filha favorita eu pensaria que ele estava
querendo se livrar de mim, ele riu e teve que parar um pouco com aquilo. Quando eu
insisti e mencionei minha questão, a duração de sua resposta teve a proporção inversa a
sua importância. Ele respondeu mais longa e detalhadamente sobre alguns assuntos, mas
limitou sua reação às alusões a sua morte a algo como: “Bem, todos temos nossa hora”.
Conquanto não estivéssemos exatamente tendo conversas longas e fluentes sobre
questões emocionais importantes, estava claro que eu e meu pai estávamos começando a
ter contato fora de um nível superficial. Ele sempre parecia mais alegre e disposto
quando eu ia embora, e seus cumprimentos a mim assumiram uma qualidade mais
calorosa e animada. Embora as visitas nunca tenham sido fáceis, elas ficaram mais
fáceis, e eu me sentia feliz depois delas. Durante este período, eu com freqüência ia
visitar minha mãe e minha tia em casa após sair do hospital e descobri que, sem
qualquer plano elaborado,
299
meu relacionamento com minha mãe estava se modificando quase que
automaticamente. Eu fazia referências constantes à morte de meu pai nas conversas com
minha mãe, e questionava minha tia sobre como ela estava enfrentando as coisas sempre
que tinha uma oportunidade. Também mantive uma sucessão rápida de conversas sobre
a morte de meu pai e o bem-estar de minha mãe com meu irmão e minha cunhada, e
percebi mudanças em minhas relações com eles também.
Com minha irmã, que mora na Europa há quase 10 anos, a história foi diferente.
Eu havia escrito para ela perguntando o que pensava sobre meu longo distanciamento
emocional da família. Isto, é claro, mexeu com ela devido a sua própria posição
distante, e ela contra-atacou com um sermão colérico por carta sobre como eu poderia
me dedicar a ser mais responsável em relação à família, ao invés de deixar tudo nas
mãos de meu irmão. Isto me pegou de jeito; novamente presa do sistema, eu não fui
capaz de fazer nada além de conversar superficialmente com ela ou evitá-la durante uma
breve visita que ela fez para ver meu pai no verão de 1972, durante a qual se queixou
para um amigo comum que eu era uma chata que sempre queria saber o que se passava
dentro das pessoas e dizer a elas o que eu pensava, ao invés de deixá-las em paz.
Após a alta do hospital em julho de 1972, meu pai pareceu se recuperar por uns
tempos. Ele ganhou peso e se sentia melhor do que nas últimas semanas. Meu irmão e
eu planejamos uma festa de três gerações na casa dele, em agosto, para comemorar os
aniversários de meu pai, de meu irmão e de meu sobrinho. Durante a festa, meu pai
parecia deprimido e apático, e horrorizou a família perguntando se a marca de um dos
presentes era o nome de uma casa funerária. Fez-se um silêncio estarrecido. Fiz uma
piadinha sobre seu humor negro, e a conversa seguiu em frente rápida e nervosamente.
Mais uma vez, ele pareceu melhorar em setembro e outubro, recuperando a disposição,
e chegou-se a mencionar uma viagem para a Flórida no inverno. Entretanto, nesta
época, também havia um inchaço no abdômen de meu pai, e sua memória começou a
falhar.
No inicio de novembro de 1972, ele voltou ao hospital para verificar seu inchaço
abdominal. Tendo tido poucas oportunidades para conversar com ele a sós desde sua
última hospitalização, fiz o mesmo tipo de plano de continuar tentando conversar com
ele. Desta vez foi mais fácil, e eu ficava muito mais à vontade com ele do que antes. Em
minha primeira visita, ele me contou que ia ser operado dentro de alguns dias para a
remoção de um rim. Comecei a chorar e disse que tinha medo de que ele morresse. Ele
pegou minha mão, secou uma lágrima de seu olho e passamos as horas seguintes na
melhor conversa que já tivéramos. Ele fez uma espécie de revisão de sua vida,
concentrando-se principalmente na grande satisfação que tinha tido com seu trabalho.
Ele prosseguiu falando, com verdadeira facilidade, de muitos tópicos familiares, alguns
deles elaborações de questões que eu havia cautelosamente levantado durante sua
hospitalização anterior, e ele me escutou e respondeu de uma maneira nova. Quando eu
estava indo embora naquela noite, ele sorriu para mim e disse: “Você cresceu”, e me
chamou por um apelido que não usara por quase 30 anos. Chorei durante toda a volta
para casa. Tivemos duas outras visitas
300
como esta antes da cirurgia. Na última, ele anunciou que agora se sentia pronto para a
operação, ao contrário do verão, quando tivera certeza de que iria morrer. “E eu estou
pronto para esta possibilidade também”, acrescentou.
No dia marcado para a operação, minha mãe, meu irmão e eu ficamos mais ou
menos quatro horas com meu pai antes de sermos informados de que a cirurgia havia
sido cancelada e remarcada para o dia seguinte. No outro dia, ele já estava na sala de
operações quando nós chegamos, e ficamos várias horas em seu quarto esperando os
resultados. Introduzi dezenas de tópicos familiares na conversa, reunindo informações
enquanto esperávamos. Sempre que eu ficava ansiosa ou sentia que eles ficavam
preocupados com meu pai, eu falava sobre ele e a operação, ou murmurava algo sobre
os “malditos médicos que nem vêm nos dizer se ele está vivo ou morto”. O relatório do
resultado imediato veio na forma de meu pai sendo trazido de volta para o quarto em
uma cadeira de rodas, semiconsciente e gemendo. Quando ele foi colocado na cama, nós
nos reunimos em volta dele. Ele abriu os olhos e disse brincando, sobre seus gemidos:
“Desculpem a sinfonia. Espero estar afinado”. Os médicos se disseram surpresos com
sua força e suas condições. O rim não estava tomado pelo câncer, que ainda estava
aparentemente em remissão temporária, mas inchara como conseqüência de um
problema congênito independente.
Após a operação meu pai permaneceu no hospital por várias semanas, ganhando
forças e disposição. Continuamos nossas conversas durante minhas visitas ao hospital,
embora ambos nos retraíssemos um pouco após a remoção da ameaça imediata de sua
morte. Sua memória continuava a falhar, mas não havia mais a desorientação no
presente que o tinha dominado diversas vezes antes da cirurgia. Eu me sentia segura o
suficiente para planejar mostrar as fotos de meu casamento para o clã reunido na festa
de Ação de Graças ou de Natal, bem como filmes de infância que não haviam sido
mostrados durante anos porque muitos membros da família que apareciam neles já
estavam mortos. Mas, neste ponto, relaxando minha vigilância após a tensão da
operação de meu pai, não estive alerta o bastante para levar a melhor sobre o sistema.
No Dia de Ação de Graças, meu pai ainda estava no hospital e minha mãe e minha tia
não quiseram participar, alegando estarem exaustas. No Natal, embora meu pai estivesse
em casa e passando bem, eles também declinaram o convite de meu irmão para
comemorarmos juntos. Em retrospecto, penso que, sem me dar conta, caí na armadilha
familiar de “agüentar as festas”. Na verdade, somente quando escrevi este texto foi que
me dei conta de quantas das catástrofes familiares tinham ocorrido em datas festivas e
aniversários, detonadas parcialmente, talvez, pela enorme tensão engendrada por nossas
tentativas de negar ou suprimir tudo o que fosse desagradável nestas ocasiões, sob o
pretexto de proteger “os outros”. De qualquer modo, a família de meu irmão e a minha
se reuniram no Dia de Ação de Graças e no Natal e eu tive conversas longas, abertas e
calorosas em ambas as ocasiões com meu irmão e minha cunhada.
No dia de Natal de 1972, quando telefonamos para meu pai da casa de meu
irmão, minha mãe nos informou que ele sentira dores severas o dia inteiro. Foi uma
virada súbita para o pior, e continuou a ocorrer em certas horas dos
301
dias que se seguiram. Minha mãe contou tristemente que dois médicos tinham
confirmado seus temores de que “a dor nos ossos havia começado”, e o nível de
ansiedade foi às alturas na família toda. Meu pai estava, mais uma vez, apático e
desanimado. A idéia da festa familiar que eu estava nutrindo, para comemorar o 45°
aniversário de casamento de meus pais em fevereiro, parecia uma idéia maluca quando
me sentei na sala da casa deles em janeiro, assistindo a meu pai se desligar e se
consumir perante nossos olhos. Ele não lia mais, nem comentava as notícias da
televisão, e passava a maior parte do dia dormindo e tomando sua medicação para a dor,
para o problema dos rins e assim por diante.
A FESTA DO ANIVERSÁRIO DE CASAMENTO
Um tanto para minha surpresa (porque eu estava novamente meio presa na
reação provável do sistema a minha idéia de comemoração naquele momento como
ultrajante), meu irmão concordou prontamente com minha proposta de que
organizássemos uma festa-surpresa para o aniversário de casamento de meus pais, em
fevereiro de 1973. Ele concordou que teria que ser uma surpresa pois, de outra forma,
eles a vetariam, e que tia Clara também teria que ser “surpreendida”, ou então iria
objetar ao plano em nome deles. Decidimos fazer a festa na casa de meus pais, uma vez
que nenhuma artimanha faria com que eles fossem a qualquer lugar com meu pai nas
presentes condições. Depois desta conversa, meu irmão, que é piloto comercial, teve
que viajar por vários dias, deixando a organização da festa a cargo de sua esposa, Mary,
e de mim. Mary e eu nos divertimos muitíssimo planejando a festa. A resolução
bastante simples de refrear minha “mandonice” natural com ela, e não prestar atenção à
dela comigo, tinha forjado uma mudança dramática em nosso relacionamento, e eu não
conseguia mais entender por que eu costumava ficar tão irritada com ela no passado.
Embora, sob muitos aspectos, ela tivesse se tornado parte de nosso sistema familiar nos
17 anos de seu casamento com meu irmão, e, em alguns casos, soubesse melhor do que
eu quais eram as reações de diferentes parentes uns aos outros, ela também estava de
fora o suficiente para ser capaz e estar disposta a se mover em algumas partes do
sistema mais livremente do que eu, após anos de rompimento com muitos da família.
Primeiro, decidimos o menu e dividimos as responsabilidades pela comida e o
champanhe. Depois, fizemos uma lista de todos os membros vivos da família que
conhecíamos, na geração de meus pais e na nossa, incluindo a empregada de uma tia
que morrera há muito tempo e que tinha mantido contato com minha mãe e o marido e a
nova esposa de uma prima já falecida. Havia uma série de pessoas a serem convidadas
que eu nunca havia encontrado, e outras — primos, tias e tios — que eu não tinha visto
nos últimos 20 anos.
Dos oito irmãos da família de meu pai, somente ele, um irmão mais velho, Pat, e
a irmã mais nova, Meg, ainda estavam vivos. Pat, Meg e seus cônjuges estavam na
Flórida. Meg, aquela que havia tentado o suicídio muitos anos atrás e mantivera
contatos apenas esporádicos com a família desde então, estava “deprimida demais para
vir ao telefone” durante o último contato de minha
302
mãe com eles, no Natal. Mary concordou em colocá-la a cargo de garantir que Pat e sua
esposa viessem da Flórida. Tia Meg, quando finalmente concordou em vir ao telefone,
adorou a idéia da festa e de pressionar Pat (que tinha 84 anos) e sua esposa para que
viessem. Neste meio tempo, telefonei para a irmã mais velha de minha mãe, Sarah, no
convento do meio-oeste onde ela vive e leciona, e lhe disse que, embora algumas
pessoas da família temessem que ela contasse a minha mãe sobre a surpresa, eu sabia
que ela não o faria, e pedi que ela conseguisse permissão do convento para comparecer.
Ela jurou que guardaria o segredo e disse que, embora fosse difícil conseguir permissão
para ir para casa tão pouco tempo depois do Natal, ela iria tentar e me manteria
informada. Como ela estava sendo tão receptiva, perguntei se ela tinha alguma idéia
sobre a recusa de minha tia Ellen em vir, porque era o aniversário de seu casamento
com meu falecido tio Tim, o irmão predileto de minha mãe. Ela disse que ia escrever
para Ellen naquele mesmo dia.
Meu irmão ligou para minha irmã em Londres, e pediu que ela tentasse
comparecer. Ela disse que tentaria. E assim fomos passando por toda a lista: primos que
não haviam tido contato com ninguém por 20 anos, e uma velha tia e suas três filhas
solteiras, que estavam afastadas da família há tempos. A maioria deles reagiu com
aparente entusiasmo e disse que viria. Na verdade, quando uma onda de frio se abateu
sobre Nova York alguns dias antes da festa, o contingente idoso da Flórida deu para
trás. Minha tia, a freira, tinha conseguido permissão para vir, mas tinha pego uma gripe,
assim como minha irmã em Londres. Tia Ellen não veio nem telefonou para se
desculpar. Aqueles que realmente compareceram moravam na área de Nova York,
Staten Island, Long Island e Nova Jersey, e foram quase 30 pessoas, incluindo nós.
Todos os que não vieram, exceto tia Ellen, telefonaram durante a festa.
A festa foi uma surpresa total para meus pais. A campainha não parava de tocar
e mais e mais pessoas chegavam. Quando já havia visitas inesperadas demais para que
fosse impossível continuar fingindo uma coincidência, nós os levamos até a sala de
jantar, onde tínhamos arrumado silenciosamente a mesa para a festa. Houve, entretanto,
um deslize. Meu irmão me saudou na porta com a notícia: “Você não vai acreditar, mas
a tia Clara foi a uma festa”. Tia Clara quase nunca sai nos fins de semana, e nós não
esperávamos por isso. Descobri onde ela estava, na festa de despedida do diretor de sua
escola, que estava se aposentando, em um hotel próximo, e telefonei para lá. Ela ficou
furiosa comigo por não ter lhe contado. Eu disse que não conseguia entender por que ela
não tinha gostado de ter sido poupada do peso deste segredo e da organização da festa, e
que faria o possível para cuidar de minha mãe até ela chegar. Ela respondeu,
ressentidamente, que ia demorar bastante para voltar, e desligamos. Eu imediatamente
comecei a circular pela festa contando a todos que ela estava furiosa e perguntando o
que deveríamos fazer quando ela chegasse. Quando ela finalmente apareceu, assisti
minha cunhada Mary fazendo o que eu costumava fazer — discutir com ela sobre a
situação — enquanto eu reclamava em tom de brincadeira por ela ter demorado tanto
para vir para casa, e repetia minha surpresa com sua falta de apreciação por tudo o que
tínhamos
303
feito sem incomodá-la. Meu marido lhe disse que tinha tentado nos convencer a avisá-
la, mas que não o escutáramos.
No fim da noite, tia Clara sentou-se ao meu lado e começou a me contar como
tinha ficado magoada com o retraimento de tia Ellen em relação à família desde a morte
do tio Tim. Quando Mary comentou que Bobby, um de nossos primos há muito
perdidos que tinha aparecido na festa, não havia nem mesmo ido ao seu casamento, eu
disse, bem alto: “Bobby não foi ao seu casamento? Ninguém da família foi ao meu!”.
Tia Clara, que havia ficado muito brava na época do casamento, disse alegremente:
“Bem, eu iria se fosse hoje”. Com isso, gritei para meu marido que devíamos considerar
um novo casamento para dar à família uma segunda chance de nos mandar presentes.
Na hora de abrir os presentes, fiz um brinde jocoso para meus pais que repassava
uma lista de atributos deles que costumavam me incomodar, mas que agora não mais
me afetavam. “o boato sobre o divórcio de meus pais”, anunciei, “não é verdadeiro.
Mamãe reclama milito, mas está tentando cuidar melhor de papai; e papai odeia ser
cuidado, especialmente por mulheres, mas está tentando deixá-la fazer isso”, etc., etc.,
com o acompanhamento de muitos risos da família. Terminei com o anúncio de que
meu irmão, Jack, ia fazer um longo e chato discurso. Jack, para não ficar para trás,
começou dizendo: “Por algum motivo, as palavras sempre me escaparam na presença de
minha irmã mais velha ...“. Rimos um do outro, e uma batalha de 40 anos foi
compreendida e sepultada quando meu marido acrescentou: “Puxa, Jack, eu pensava
que era o único que tinha problemas com a tagarelice dela”.
Durante a festa, tentei trazer à tona, de alguma forma, a questão da morte
iminente de meu pai, que estava na cabeça de todos, com comentários do tipo: “Bem,
papai, todos eles teriam que vir ao seu funeral, então, por que não a sua festa?”, ou
“Festas de aniversário de casamento são mais divertidas do que velórios, você não
acha?”. Meu pai riu e replicou: “Especialmente para a vítima”, e eu disse: “Achei que
você ia pensar assim, papai”. Das diversas pessoas que nos ouviram, somente a nova
esposa, que estava conhecendo a família pela primeira vez, fez um comentário: “Ela
está certa, sabe. Você a educou bem”.
No momento em que escrevo isto, em março de 1973, meu pai está
misteriosamente passando bem de novo. Ele recomeçou a pintar (seu passatempo
favorito) pela primeira vez desde que ficou doente em maio passado. Ele lê novamente
com interesse, e se irrita com as notícias da televisão. Está comendo bem e não está
tomando mais remédios para a dor ou para os rins, Minha mãe diz que ele não sente
dores “há mais ou menos um mês”. Clara atribui sua notável melhora aos óculos novos
que ele comprou há um mês, que lhe possibilitaram ler mais.
Em toda a família, o convívio está sendo renovado. Meu primo predileto me
telefonou para comentar a festa, sugerir planos para futuras reuniões familiares. Minha
mãe mandou cartões de agradecimento a todos e recebeu inúmeras respostas.
Durante este ano, houve uma redução progressiva da tensão entre meu marido e
eu, e entre nós e nossos filhos. Nosso filho deficiente está passando
304
bem de novo, após alguns problemas no início do ano. Minha insônia desapareceu,
juntamente com as dores nas costas, e eu estou apreciando meu trabalho novamente. Tia
Clara nos acompanhou pela primeira vez em uma visita à escola especial de nosso filho,
e quer voltar lá em breve. Estou me sentindo menos sobrecarregada e meu marido e eu
estamos planejando nossas primeiras férias sem as crianças em 12 anos. Sei que ainda
há muito a fazer, especialmente com minha irmã, mas isto não parece provocar nem de
longe a mesma ansiedade que antes. E, é claro, suponho que devo mencionar que,
embora ainda ache que fazer terapia de família é um trabalho difícil, não tenho mais
tanta dificuldade em evitar tomar partido emocionalmente dentro das famílias.
Seis semanas após eu ter apresentado este trabalha, meu pai morreu. Subsequentemente,
com graus variados de “sucesso”, continuei meus esforços para ter um relacionamento
pessoal adulto com minha mãe (que morreu em 1981), com meu irmão e minha irmã e
com minha tia Clara, que se tornou uma importante presença e fonte de apoio em minha
vida.
305

Morte na família: Sobrevivendo às perdas

W223m WalshMorte na família: sobrevivendo às perdas / Froma Walsh e Monica


McGoldrick: trad. Cláudia Oliveira Dornelles. Porto Alegre: ArtMed. 1998.

1. Psicoterapia — Perdas. I. McGoldrick, Monica. II.

Título.

CDU 615.851

Catalogação na publicação: Mônica Bailejo Canto - CRB 10/1023

ISBN 85-7307-402-7

Froma Walsh, Ph.D.

Professor. School of Social Service Administration & Department ofPsychiatry.

Co-Director. Center for Family Health, University of Chicago, Chicago, Illnois.

Monica McGoldrick, A.C.S.W., Ph.D.

Director, Family Institute ofNew Jersey, Metuchen, New Jersey.

Associate Professor of Clinical Psychiatr, Robert Wood Johnson Medical School,

New Brunswick, New Jersey.

Morte na Família: Sobrevivendo às Perdas


Tradução: Cláudia Oliveira Dornelles Consultoria, supervisão e revisão técnica desta
edição: Helena Centeno Hintz Psicológa clínica e psicoterapeuta de casais e família.
Membro fundador e integrante da Equipe de Coordenação do DOMUS (Centro de
Terapia de Casal e Família). Profèssora e supervisora do CEAPIA (Centro de Estudos.
Atendimentoe Pesquisa da Infãncia e Adolescência), Porto Alegre. RS.

Artmed

Porto Alegre, 1998

Obra originalmente publicada sob o titulo : Living beyond Loss

Froma Walsh and Monica McGoldrick,1991.

Primeira publicação em paperback, pela Norton, 1995.

ISNB 0- 393- 70203-O

Capa:

Joaquim da Fonseca

Preparação do Original:

Maria Rita Quintella

Sandro W. Andretta

Supervisão Editorial

Letícia Bispo de Lima

Composição e arte:

Com Texto Editoração Eletrônica.

Este livro é dedicado à memória daqueles que mais nos ensinaram a respeito da morte

Por Monica
Joseph D. McGoldrick

Margaret R. Phiffer Bush

Mary Gertrude Cahalane

John Michael Zamborsky

Don Mc Cook

Hughie Mc Goldrick

Por Froma

Mary Jo Bourassa Weisberg

George L. Weisberg

E ao brilhante professor que nos indicou o caminho

Murray Bowen

1913-1990

Colaboradores

BETTY CARTER, M.S.W.

Director, Family Institute of Westcester Mount Vernon, New York.

DAVID EPSTON

Co-Director, Family Therapy Centre, Auckland, New Zealand.

ELLIOT ROSEN, Ed.D

Faculty, Family Institute Westchester, Mount Vernon, NewYork.

Consulting Psychologist Jansen Memorial Hospice, Tuekahoe, New York.


EVAN IMBER-BLACK, Ph.D.

Director, Family & Group Studies.

Professor, Department of Psychiatry, Albert Einstein College of Medicine, Bronx, New


York.

EVELYN LEE, Ed.D.

Associate Clinical Professor, Department of Psychiatry, University of California, San


Francisco, California.

GEORGE H. GROSSER, Ph.D.

Former Instructor, Department of Psychiatry, Harvard Medical School, Cambridge,


Massachusetts.

JOHN BYNG-HALL, F. R. C. PSYCH.

Tavistock Clinic, London, England.

JOHN S. ROLLAND, M.D.

Associate Professor of Clinical Psychiatry, Pritzker School of Medicine.

Co-Director, Center for Family Health, University of Chicago, Chicago, Illinois.

MURRAY BOWEN, M.D.

Clinical Professor, Georgetown University Medical Center.

Director, Georgetown University Family Center.

NYDIA GARCIA PRETO A.C.S.W.

Clinical Director.

Faculty, Family Institute of New Jersey, Metuchen, New Jersey.


NORMAN PAUL, M.D.

Lecturer, Department of Psychiatry havard medical Scholl, Cambridge, Massachusetts.

PAULETTE MOORE HINES, Ph. D.

Director, Prevention Services, university of Medicine e Dentistry of New Jersey.

University of Mental Health Services, Piscataway, New Jersey.

Faculty, Family Institute of New Jersey, Metuchen, New York.

RHEA ALMEIDA, M.S.W.

Director, Institute for family Services, Somerset, New Jersey.

Adjunct Instructor, Rutgers Graduate School of Social Work, New Brunswick, New
Jersey.

SANDRA B. COLEMAN, PHD.

Director, Behaviorial Medicine Family Practice Residency Program, Eastern Maine


Medical Center,

Bangor, Maine.

STEVEN E. GUTSTEIN, Ph.D.

Private Practice, Houston, Texas.

Agradecimentos

Muitas pessoas merecem um agradecimento especial por suas sugestões, diretas


e indiretas, a este livro: Peter Sterling Mueller, um generoso e complacente mentor e
colega de muitos anos, cujo entendimento profundo do impacto da perda nas famílias
influenciou profundamente meu próprio trabalho; Norman Paul, cuja disposição
corajosa de enfrentar a perda com as famílias e cujo pensamento original e generosidade
como professor foram extremamente úteis para mim ao longo de muitos anos; Murray
Bowen, cujas brilhantes idéias vão iluminar nossos caminhos futuros e cuja
generosidade pessoal com seu tempo e com seus pensamentos sempre que o procurei
nos últimos 17 anos foi profundamente apreciada. Ele influenciou muito meu trabalho,
e sua morte, no momento em que este livro estava no prelo, trouxe-me muita dor.
Espero que meus esforços neste trabalho reflitam bem minha dívida com ele (embora,
sem dúvida nenhuma, nunca tivesse desejado este agradecimento).
Agradeço a minha mãe, Helen McGoldrick, minhas irmãs, Neale e Morna,
minha tia, Mildred McGoldrick Cook, juntamente com meus amigos, Betty Carter,
Joyce Richardson, Carol Anderson, Meyer Rothberg, Michael Rohrbaugh, Rich Simon,
Imelda McCarthy, Nollaig Byrne, Sandy Leiblum, Jane Sufian, Charlotte Fremon
Danielson, Nydia Preto, Paulette Hines e Evan Imber-Black, seu apoio de tantas formas
ao longo de tantos anos, e especificamente por me ajudarem a compreender o sentido da
vida e o sentido da morte. Também agradeço a Jcannine Stone e Gary Lamson, do
UMDNJ-CMHC, de Piscataway; Henry Murphree, M.D., Diretor do Departamento de
Psiquiatria da Robert Wood Johnson Medical School — UMDNJ; e Mary Scanlon,
Diretora de Biblio- tecas da UMI)NJ — Biblioteca RWJ de Ciências da Saúde, por sua
ajuda generosa. Minha irmã Neale não ofereceu somente um enorme apoio emocional,
mas um auxílio incansável com os aspectos técnicos deste livro — genogramas e
trabalhos em informática.

Agradeço também a meu marido, Sophocles, e a meu filho, John, a paciência


pelas horas que este livro lhes roubou. Vicky Varra e a equipe da Yellow

IX

Brick Road proporcionaram a meu filho dois lares carinhosos e enriquecedores


fora de casa, que foram uma grande fonte de tranqüilidade para mim em meu trabalho,
enquanto Cherie Allen, Aimee Copp e Halia Yevtushenko propiciaram o tão necessário
apoio doméstico.

Monica McGoldrick

É difícil destacar somente alguns dos muitos colegas, amigos e membros da


família que contribuíram de tantas formas para minhas idéias a respeito da morte e da
perda e para o desenvolvimento deste livro. Gostaria especialmente de agradecer a
diversos colegas da Universidade de Chicago. Margareth Waller, minha assistente de
ensino, ofereceu um feedback valioso, e Young Chang, meu assistente de pesquisa,
prestou uma assistência editorial muito qualificada. Devo muito a Bertram Cohler,
mentor, colega e amigo de longa data, que recentemente perdeu sua esposa, Ann. Jeanne
Marsh, reitora da Escola de Administração em Serviço Social, e Bennett Leventhal,
Chefe da Psiquiatria Infantil e da Adolescência, apoiaram entusiasticamente a criação
do Centro para a Saúde da Família, que dirijo juntamente com John Rolland, para a
pesquisa e a formação clínica na abordagem dos desafios da vida familiar. John, meu
marido e colega, enriqueceu enormemente minha perspectiva sobre a perda através de
nossas muitas discussões, compartilhando seu próprio trabalho e suas reflexões a
respeito de suas experiências críticas de vida.

Nunca esquecerei daqueles amigos que me apoiaram nos momentos de perda e


em situações de ameaça à vida. Elza Bergeron Gross, minha ex-colega de quarto nos
Peace Corps, ficou ao meu lado nas doenças e funerais de meus pais. George Walsh pôs
seu trabalho de lado para cuidar de mim após um acidente de carro quase fatal, lendo
para mim toda a trilogia de Tolkien. Mary Zaglifa, compartilhando generosamente sua
experiência, ensinou-me mais do que qualquer médico sobre a recuperação da meningite
e me deu coragem e humor nas horas difíceis. Carol Anderson, Celia Falicov, Michele
Scheinkman, Janet Murphy, Karen Countryman e Katherine Goldberg sempre estiveram
ao meu lado, como, espero, estarei ao lado delas FromaWalsh

Este livro reflete para nós duas nosso interesse comum e colaboração por mais
de duas décadas. Enriquecemos com nossa amizade extraordinária, que continua a
crescer e a se aprofundar com a passagem de nosso ciclo de vida. Juntas, queremos
agradecer a Susan Barrows seu apoio e eficiência em todos os aspectos da produção
deste livro. Ela foi uma colega soberba. Finalmente, queremos expressar nossa
apreciação às famílias que atendemos, aos colegas, amigos e a nossas próprias familias,
cujas experiências de vida serviram para ilustrar os casos de adaptação familiar à perda.
Frorna Walsh e Monica McGoldrick

Prefácio
Há dois anos, um amigo meu faleceu abruptamente. Ele morreu na Argentina e,
na verdade, eu sequer fora informado de sua breve enfermidade antes de sua morte. Ele
era, cronologicamente falando, meu amigo mais antigo fora da família: tínhamos sido
co1egas de jardim de infância. Os labirintos de nossas respectivas trajetórias de vida
permaneceram distanciados por três décadas, mas, há mais ou menos vinte anos,
recuperamos a velha intimidade. Trocávamos cartas ocasionais; entretanto, como
vivíamos a 6000 milhas um outro, somente nos víamos umas duas vezes por ano,
sempre que nossas vidas nômades nos colocavam a uma distância razoável. Em cada
ocasião, levávamos mais do alguns minutos para reacender o vínculo, para nos
sentirmos novamente em casa na velha, confortável, confiante e calorosa amizade.

Sua morte me privou de muitas coisas valiosas: ele era um repositório de minha
identidade (“Oi, Carlos!”) e de minha história (“Você se lembra quando...”), além de
uma fonte valiosa de estímulo emocional (“Que bom te ver”), de feedback social
(“Quando você fez X, eu me senti ...”) e de preocupação com minha saúde (“Você
parece cansado. Você está cuidando bem de sua saúde?”). A relação era recíproca e,
assim, ofereceu-me a experiência tranqüilizadora de ser também o repositório de sua
identidade e história, bem como um recurso para sua estimulação emocional, feedback
e preocupação. Foi uma amizade duradoura com um rico fundo de lembranças comuns
que podiam ser despertados por qualquer um de nós; algumas reminiscências — talvez
um cenário trivial compartilhado somente por nós dois — vão permanecer adormecidas
em mim a partir de sua morte, pois não haverá ninguém para ativá-las. Ele era amigo de
muitos de meus amigos, e sua ausência implicará a inevitável perda da conexão que eu
mantinha com eles por meio dele e que se demonstrava a cada vez que falávamos sobre
os amigos, combinávamos encontrá-los e assim por diante. A dor de uma perda torna
mais evidente a felicidade que possuíamos.Estendo-me nesta experiência complexa
porque, por mais insubstituível que esta relação possa ser, a maioria de seus atributos
não era peculiar a ela; é

XI

certo que ninguém pode compartilhar comigo aquelas lembranças de Herr Sultzberger,
nosso aterrorizante professor de Música do jardim de infância, mas posso listar algumas
amizades gratificantes, duradouras e íntimas além dessa, todas únicas, todas lembradas
com carinho, todas intrínseca e individualmente não-essenciais para minha
sobrevivência. A tempestade causada pela morte de meu amigo é paradigmática do
efeito de algumas das muitas perdas que sofremos ao longo de nossas vidas, e das quais
geralmente emergimos inteiros, embora de alguma forma modificados.

O vácuo — de identidade, de história e continuidade, de estimulação emocional,


de feedback social, de preocupação com a saúde, de validação, de responsabilidade —
produzido pela perda de um dos elos que constituem nosso self-em-contexto é uma
experiência universal. Para alguns, é a perda de uma relação preciosa — a morte de um
dos pais, de um velho amigo, de um mascote fiel; para outros pode ser um atributo
físico ou uma parte do corpo — uma pele jovem e lisa que começa a enrugar, ou um
membro perdido em um acidente; pode ser o desaparecimento de uma projeção feita no
futuro — a súbita consciência de que um sonho jamais será realizado — ou no passado
— quando descobrimos que uma figura idealizada de nossa infância era corrupta.
Outros são destituídos de um objeto querido ou propriedade valiosa — nosso primeiro
carro foi roubado, um incêndio queimou todos os nossos álbuns de fotografias; ou vêem
valores que lhes são caros desaparecerem — o exército de nosso país invade um país
estrangeiro, ou Kennedy é assassinado. E tantos entre nós passam por mudanças de
contexto — emigramos, deixando para trás ícones, marcadores e amigos. As perdas são
o fantasma de todas as propriedades, materiais ou imateriais.

Qual é o processo pelo qual nos curamos desta experiência de sofrimento, pelo
qual esta intolerável ausência se torna tolerável, pelo qual este vazio existencial é
preenchido? E mesmo se despirmos essas perguntas de toda a sua carga de drama e nos
detivermos no destino de uma perda menor, a pergunta ainda permanece intrigante.
Qual é o papel das introjeções e das outras pessoas — familiares, amigos, conhecidos
— no processo de luto? E onde acontece a cura? No território íntimo do imaginário
individual? Na arena consensualmente validada do modo como as coisas são contadas e
a realidade é construída? Na complexa galeria de espelhos do mundo interpessoal? E,
dentro deste mundo, o processo está na trama interativa íntima e intensa de nossa
família imediata ou no tecido mais amplo de nossa rede social?

Ela ocorre em todos esses lugares, ou, mais precisamente, a experiência é


totalmente singular para cada indivíduo-em-contexto, e a conceitualização do processo é
uma função dos construtos do narrador/observador: os modelos são as redes ideológicas
que apreendem, organizam e atribuem sentido ao que está lá fora. As experiências, por
mais quentes que possam ser quando são sentidas, são esfriadas pelo efeito mediador da
linguagem, o qual, por sua vez, é organizado por modelos conceituais implícitos ou
explícitos.

O quente e o frio exaltam um ao outro neste livro. Enquanto estive imerso nestas
páginas, descobri-me vivenciando emoções intensas evocadas pelos temas e
personagens que habitam seus capítulos, além de um rico prazer estético ao visitar os
multiplos modelos pelos quais os processos são discutidos pelas organizadoras, Froma
Walsh e Monica McGoldrick, e pelos diversos colaboradores desta obra. Por vezes, eu
gravitava em direção a uma poltrona aconchegante, onde, aninhado em uma colcha
quase pesada demais, e com Mahler propiciando a ambientação adequada, lia partes
deste livro como um romance.

XII

Houve capítulos, não tenho dúvidas, nos quais EU era o personagem principal
— pelo menos essa era minha impressão —, enquanto outros aludiam a um ou outro de
meus pacientes — provavelmente intrigados agora com por que tantas lágrimas, por que
tantos rituais.

Este livro foi para mim tanto uma aventura de autodescoberta quanto uma
experiência profissional enriquecedora e desafiante. Ele expandiu minha capacidade de
pensar e, assim, de falar e, então, de observar e, então, de agir e, portanto, de refletir a
respeito de um dos temas universais da experiência humana. Eu não poderia desejar
uma melhor jornada para o leitor.

Carlos E.

Sluzki, M.D.

Chairman,Department of Psychiatry

Berkshire Medical Center

XIII

Algumas Reflexões Pessoais sobre a Perda


Ano passado foi o vigésimo aniversário da morte de minha mãe. Seu
falecimento, é claro, não encerrou nosso relacionamento, e eu nunca deixei de sentir sua
falta. Eu queria encontrar uma maneira significativa de comemorar sua perda. Seus dons
de pianista e organista e o amor pela música que tínhamos em comum me fizeram
recordar os sinos do carrilhão da Capela Rockefeller do meu campus na Universidade
de Chicago. Marquei um concerto simples de sinos para a noite do aniversário. Meu
marido, John, minha filha, Claire, e eu subimos até o topo da torre dos sinos, onde está
o órgão do carrilhão, e observamos a vista da cidade enquanto os sinos dobravam
harmoniosamente no ar revígorante da noite.

Eu não estava em absoluto preparada para a prolongada doença de minha mãe,


que aconteceu em meados de meus 20 anos. Perfeitamente enquadrada na descrição de
Erikson do adulto jovem normal, eu tinha saído de casa, estava desenvolvendo com
sucesso minha própria carreira e prestes a assumir o compromisso do casamento. Como
muitos de meus pares, eu estava em um intenso programa de estudos de graduação, a
2000 milhas da casa de meus pais. Somente mais tarde minha formação em
desenvolvimento humano veio me proporcionar uma perspectiva normativa útil dos
imperativos inerentemente incompatíveis do ciclo de vida (os quais descrevi em meu
capítulo sobre a vida adulta na obra As mudanças no ciclo de vida familiar. Porto
Alegre: ArtMed, 1995). Naquela época, meu conflito foi intensificado por minha
consciência — e pelo comentário de minha mãe de que eu estava muito ocupada como
profissional ajudando famílias no setting clínico, mas sequer estava por perto quando
minha própria família precisava de apoio, conflito este agravado por minha posição de
filha única. Antes e depois da morte de minha mãe, fui elogiada por meus colegas de
profissão e supervisores por minha “força”, “resiliência” e bom funcionamento, pois
não deixei de cumprir nenhuma das exigências de meu prosso de formação. Meus
novos sogros, impossibilitados de irem ao funeral e desejosos de nos poupar de uma
interação dolorosa, nunca mencionaram a morte de minha mãe em nossos encontros.

XV

A negação de nossa cultura do impacto da perda, combinada com o mito de que


os adultos jovens são desapegados de seus pais, contribuiu para a minimização da
importância de minha ligação e minha perda. As questões não-resolvidas ficaram
ocultas, emergindo em meus outros relacionamentos, até que resolvi ir em busca de meu
próprio trabalho de família de origem, facilitado em parte por Jeanette Kranier e por
muitas conversas com Monica sobre nossas famílias. A partir dessa experiência aprendi
a aconselhar meus alunos e outros a reservarem um tempo em suas vidas frenéticas e
compromissos excessivos para o que pode ser a última oportunidade de passar algum
tempo com um ente querido que está morrendo, ou, após uma morte, a acharem tempo e
espaço para o apoio familiar mútuo e a atenção pa suas próprias questões relativas à
perda.

Minha experiência com a morte de minha mãe me ensinou a agir de forma


diferente com relação a meu pai. Com o ímpeto adicional do filme “I Never Sang for
my Father “, mostrado em um Simpósio do Instituto da Família de Georgetow parei de
adiar os esforços que sempre tinha querido fazer para melhorar nos relacionamento e
conhecê-lo melhor. A orientação valiosa de Murray Bowen uma viagem de uma ponta à
outra do país com Monica prepararam o caminho. Meu relacionamento com ele tinha se
aprofundado muito quando, alguns anos antes, ele tinha recebido um diagnóstico de
câncer e uma previsão de apenas alguns meses de vida. Meu comprometimento não era
menor a 1000 milhas de distância, com um novo cargo de reitora, um casamento e um
bebê de 10 meses. Ironicamente, eu estava enfrentando a mesma situação de morte de
um dos avós, coincidindo com o nascimento de um filho que Monica e eu tínhamos
investigado em projetos de pesquisa clínica. Tínhamos observado o estresse inerente às
tarefas conflitantes do ciclo de vida: cuidar de um pai que está morrendo e fazer seu luto
justaposto às exigências da maternidade e ao apego a um filho nascido na mesma época.
Em contraste com as famílias com bom funcionamento que vivenciavam uma perda e
um nascimento coincidentes, as famílias mais disfuncionais não conseguiam fazer o
luto. Quando me vi subitamente envolvida no mesmo dilema, a pesquisa reforçou
minha percepção da importância crucial de dedicar atenção à questões da perda,
equilibrando os dois conjuntos de exigências. Coloquei o trabalho de lado e mobilizei
recursos em casa para poder ficar com meu pai, acompanhar suas hospitalizações,
desocupar seu apartamento e organizar seus pertences, colocá-lo em uma residência
com cuidados especializados e organizar seu funeral — um conjunto exaustivo de
desafios para uma filha única sem parentes vívendo próximos. A certeza de que meu
filho estava sendo bem cuidado em minha ausência aliviou as dificuldades inerentes.
Embora sofrendo com a perda de meu pai, e estava em paz com nosso relacionamento e
grata por aqueles longos dias que passava sentada em silêncio ao lado de sua cama.
Fiquei triste, e até mesmo com raiva por algum tempo, porque o irmão de meu
pai não veio vê-lo em seus últimos dias, nem me deu seu apoio. Mas depois me dei
conta de que as súbitas palpitações cardíacas que o fizeram cancelar sua viagem (e
desapareceram logo depois do funeral) devem ter expressado a dor em seu coração pela
perda iminente do último irmão que lhe restava, uma vez que o terceiro havia sido
assassinado a tiros, alguns anos antes, em um assalto à empresa que ambos
administravam juntos. Ainda mais insuportável havia sido a recente doença e morte de
sua jovem nora, com um impacto devastador sobre seu filho (um veterano do Vietnã) e
três netos pequenos, que ele amava muito. Superamos tais problemas e renovamos
nossa intimidade.

XVI

Minha filha aprendeu pela primeira vez sobre a morte e a perda na maravilhosa
história Cliarlotte’s Web, em uma fita de vídeo que ganhou de Monica, que é sua
madrinha, em seu quarto aniversário. A história, a que assistimos muitas, muitas vezes,
motivou belas conversas a respeito da relação especial entre a aranha e o porco, a
normalidade da morte no ciclo da vida, a tristeza da perda e a importância de conservar
as lembranças e formar novos laços.

Tambem aprendi muito com todas as vezes em que eu mesma estive próxima da
morte, forçando-me a confrontar o terror de minha própria mortalidade e me
surpreendendo com uma maior (e, por vezes, desconfortável) clareza de visão. Tais
experiências, juntamente com a perda dos seres amados, fizeram-me mais consciente de
quão precioso é o tempo, aguçaram meu sentido de prioridade, diminuíram minha
tolerância a bobagens e catalisaram mudanças no curso de minha vida, afirmando
valores e ligações humanas mais profundas.

Froma Walsh

Embora fôssemos irlandeses, minha família cresceu tentando ser WASP*(1) e,


talvez por esta razão, parecia ter uma atitude “sem frescuras”, de evitação quanto à
morte. Quando eu estava no segundo grau, meu professor predileto morreu de
melanoma. A família dele e a minha eram amigas íntimas, mas tínhamos recém nos
mudado e por isso não fomos ao funeral. Eu não tive chance de elaborar essa
experiência — com a família dele, seus amigos e os meus. Em 1961, logo após ter
retornado de meu primeiro ano na faculdade, minha babá morreu, após um derrame.
Ninguém tinha me contado que ela estava morrendo, e eu não cheguei a vê-la antes de
morrer. Ela tinha me criado desde o nascimento, trançado meu cabelo todos os dias,
conhecido os segredos de minha infância e me ensinado tudo o que sabia por 17 anos,
mas eu fui protegida de vê-la antes de morrer. Seu funeral foi presidido por um padre
que não a conhecia, e nós não fomos ao enterro. Por meses eu ficava imaginando que a
via na rua. Somente visitei sua sepultura 27 anos depois, quando pedi que sua sobrïnha
me levasse até lá e finalmente soube qual era seu nome do meio.

Em abril de 1964, meu namorado da faculdade morreu em um acidente de carro.


Seu melhor amigo e eu, ambos devastados pela experiência, decidimos não ir ao funeral
— ele foi sepultado muito longe, nós não conhecíamos sua famifia e ninguém nos
estimulou a ir. Eu levei dois anos para ir. até sua cidade natal, de Allentown, na
Pennsylvania, e visitar seu túmulo. Minha fantasia era de que eu ia encontrar um
pequeno cemitério rural e caminhar entre as lápídes até encontrar a dele. Mas eu não
teria tanta sorte, o que descobri ao chegar lá e me deparar com uma grossa lista
telefônica com numerosas igrejas listadas.

*(1) N.de T. . White Anglo Saxon Protestant: protestantes brancos e anglo—saxões, a


classe dominante nos Estados Unidos.

XVII

Telefonei para a mãe dele, que agiu como se estivesse me esperando o tempo
todo e soubesse exatamente do que eu precisava. Ela veio ao meu encontro
imediatamente e me mostrou o local do acidente no caminho até o cemitério. Ela me
contou a história da morte dele e me deixou a sós por algum tempo em frente ao túmulo,
antes de me levar para sua casa, onde conheci outros membros da família. Ela até
mesmo se desculpou depois por não ter me preparado para o choque dc conhecer o
irmão de meu namorado morto, que era extremamente parecido com ele. Essa
experiência serviu para que eu elaborasse algo que tinha sido uma obsessão por dois
anos. Dei-me conta da diferença crítica que faz sentir-se enlutado e compartilhar o luto.
Quando minha avó morreu, em 1966, só fui informada de seu falecimento duas
semanas depois e, por isso, não fui ao funeral, apesar de morar muito próxima. Em
março de 1971, Mamie, minha tia favorita, morreu de velhice em uma clínica geriátrica
em Staten lsland. Ela tinha sido o Papai Noel da minha infância, chegando para nos
visitar com sacolas de livros e balas. Ela, mais do que ninguém, era a historiadora da
família. Ela nos falava de seus irmãos Din, Tim, Tom, Dan e Jack, e principalmente de
meu avô Neil. E ela nos contava a respeito de nossos muitos primos, que amava como a
seus filhos, e sobre o que eles andavam fazendo. Ela também falava com freqüência de
sua própria morte, e sempre dizia: “Quero que meu cortejo saia da Casey, e quero estar
de óculos, para poder ver quem vai estar lá”. Eu fui a primeira a chegar na casa
funerária de Casey* (1) para o velório. Ela não estava de óculos, e pedi ao responsável
que os buscasse. Ela sabia como era importante que as pessoas viessem — para
compartilhar e fazer parte do luto. Era um pedido essencial, que devia ser honrado.
Minha família parece ter mudado muito sua atitude em relação à morte desde
aqueles primeiros anos. Quando meu pai morreu, em 1978, compartilhei sua morte com
minha mãe. Eu fiquei sozinha com ele durante as horas anteriores ao seu falecimento e,
no momento de sua morte, quis certificar-me de que a janela estava aberta para que seu
espírito pudesse sair, de acordo com a antiga superstição irlandesa. Minha mãe, minhas
irmãs e os amigos da família estavam envolvidos em planejar uma despedida que
refletisse o que ele significava para todos nós. As idéias deste livro se desenvolveram
em mim por 30 anos a partir dessas experiências formativas.

Monica McGoldrick

*(1) N. de T. Nos países anglo-saxões, os el rios, são realizados em casas funerárias


especializadas, e de lá o féretro é levado em cortejo para o cemitério, diferentemente da
tradição brasileira de velar o corpo nas capelas dos cemitérios.

XVIII

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