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CONFLITOS DE PRESSUPOSTOS NA

ANTROPOLOGIA DA ARTE
Relações entre pessoas, coisas e imagens
Pedro Cesarino
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo – SP, Brasil. E-mail: pncesarino@usp.br

DOI: http//dx.doi.org/10.17666/329306/2017

Coleções e exibições em retrospectiva como escrita/oralidade, mito/história, natureza/


cultura, simples/complexo e arte/artefato – esta
As relações entre arte e antropologia são an- última usada ao longo do século XIX para delimi-
tigas e ainda hoje marcadas por diversos dilemas tar a separação entre museus de belas artes e outras
conceituais, muitos dos quais referentes à própria instituições dedicadas aos artefatos etnográficos,
categoria “arte” e dois de seus pressupostos fun- supostamente desprovidos de beleza e dotados ape-
damentais: a noção de objeto e de sujeito cria- nas de função utilitária. Não tardou, porém, para
dor.1 Essas relações remontam tanto à formação que objetos provenientes das sociedades ditas pri-
da antropologia como disciplina científica quanto mitivas fossem também elevados à categoria da arte
à constituição das imagens de distinção do Oci- por conta de projeções unilaterais de critérios de
dente moderno com relação às outras sociedades. beleza e de complexidade técnica. É o caso das ar-
Para que seja possível detalhar a problematização tes dos Maya e de civilizações andinas, que eram
desses pressupostos, é necessário recapitular alguns alçadas à condição de obras de arte a partir do final
aspectos fundamentais – e persistentes – de tal do século XIX (Braun, 1993, pp. 35 ss.). Seja pelo
trajetória de formação. Como se sabe, a constitui- ponto de vista científico (interessado em estudar a
ção de dessas imagens é tributária de uma série de evolução humana por meio de séries de artefatos,
dicotomias que ainda marca a episteme ocidental, à maneira de Pitt-Rivers e de sua singular coleção
hoje reunida em Oxford),2 seja pelo ponto de vista
Artigo recebido em 12/01/2016 estético, o colecionismo ocidental era responsável
Aprovado em 02/08/2016 não apenas por remover objetos de suas sociedades
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e contextos (como no exemplo de Griaule e Leiris outros, que seriam aproveitadas por artistas e pen-
em sua famosa expedição Dakar-Djibouti)3 como, sadores como Georges Bataille. “Essas possibilida-
também, por promovê-los a esta ou àquela catego- des”, escreve Clifford, “baseavam-se em algo mais
ria (arte, artefato) de acordo com seus pressupostos do que um velho ‘orientalismo’; elas requeriam a
arbitrários. Ainda no final dos anos de 1940, o an- etnografia moderna” (1988, pp. 124-125), ou seja,
tropólogo Alfred Kroeber (1949) podia elevar de- uma etnografia distinta da técnica de pesquisa em-
terminadas peças arqueológicas (tais como as pro- pírica que serviu de base à etnologia francesa, à an-
venientes das culturas chavín, mochica e marajoara) tropologia social britânica e à antropologia cultural
ao panteão da história da arte por imaginar que norte-americana.
elas se destacavam entre toda uma outra série de O surrealismo etnográfico se aproximaria de
artefatos “inferiores”, supostamente desprovidos procedimentos comuns tanto à antropologia quan-
de beleza, fluidez, expressão e outras qualidades to às artes ocidentais do século XX: a desfamiliari-
adquiridas pelo controle técnico capaz de produ- zação e o estranhamento, produzidos pelo trabalho
zir obras-primas. Inspirado em pressupostos he- de campo em outras sociedades e pelas perambula-
gelianos, Kroeber vinculava tais obras de destaque ções surrealistas na cidade. Tal espírito, aliás, con-
à produção de prováveis artistas individualizados, taminaria o próprio Claude Lévi-Strauss, que dizia
capazes de proporcionar momentos de clímax em ter encontrado em Max Ernst a capacidade de reve-
determinadas tradições culturais sobre as quais se lar a “estranheza recíproca” dos fragmentos, no caso
projetava a ideia do atraso e da inferioridade. dos mitos ameríndios estudados pelo antropólogo
Ainda assim, essas mesmas apropriações uni- nas Mitológicas.5 Ainda assim, mesmo o surrealis-
laterais das expressões materiais alheias seriam res- mo etnográfico não se mostrava completamente
ponsáveis, a partir da segunda metade do século suficiente para desarmar as projeções estéticas e as
XIX, pelo estabelecimento de projetos institucio- replicações de dicotomias que persistiam na prática
nais e de discursos estéticos alternativos à con- e nos estudos artísticos. A despeito de sua origina-
cepção clássica de arte. Essas alternativas trariam lidade e potencial atualidade, muitas das formas de
contribuições fundamentais tanto para a reformu- apropriação dos referenciais não ocidentais realiza-
lação da antropologia (como no caso da demolição das por artistas modernos levavam mais ao estabe-
do evolucionismo empreendida por Franz Boas, do lecimento de analogias formais e à criação de mi-
ponto de vista teórico e expográfico4) quanto para tologias individuais ou nacionais (notável em casos
o realinhamento da própria estética ocidental, diversos como os de Joseph Albers, Joaquín Torres-
que passaria a ser transformada pelas experiências -García, Constantin Brancusi ou Alberto Giaco-
modernistas. Não por acaso, o antropólogo James metti) do que a um estudo efetivo dos horizontes in-
Clifford encontra na Paris do início do século XX telectuais e estéticos alheios. As apropriações e as
um ambiente artístico e intelectual propício para a invenções modernistas do Outro (e de seus obje-
formação do que ele chamou de um “surrealismo tos) não estavam, portanto, exatamente voltadas
etnográfico”, ou seja, uma fragmentação e justa- para desarmar as referidas dicotomias, mesmo que
posição de valores culturais marcada pelo espírito tentassem conferir status positivo ao “primitivo” em
crítico, pelo rebaixamento do cânone, pela desfa- suas estéticas e anseios de transgressão.
miliarização do real e outras subversões da experiên- Tampouco as exibições e as instituições de arte
cia para as quais a coleção heteróclita do Musée du conseguiriam superá-las ao longo do século XX,
Trocadéro e a atividade intelectual de figuras como apesar de esforços diversos e sempre submetidos
Marcel Mauss possuíam um papel central. Nesta a polêmicas, feito as que envolveram exposições
época, as produções materiais provenientes de so- como Magiciens de la Terre (Paris, Centre Georges
ciedades ditas primitivas passavam a ocupar cada Pompidou, 1989, curada por Jean-Hubert Martin),
vez mais o interesse europeu, seja por suas coleções Primitivism in 20th Century Art: Affinity of the
exibidas em posições de destaque, seja pelas fon- Modern and the Tribal (Nova York, MoMA, 1984,
tes etnográficas fornecidas por Mauss, Métraux e curada por William Rubin) e Art and Artifact (Bu-
Conflitos de pressupostos na antropologia da arte  3

ffalo Museum of Science, 1989, curada por Susan e penso que esse ‘imbróglio’ [...] é o que chamo de
Vogel), entre outras.6 Basta, para tanto, recorrer um ‘mal-entendido produtivo’” (2012, p. 114).
também à trajetória de passagem do Musée de Sem mencionar diretamente o que, na antropologia
l’Homme ao Musée du quai Branly, marcada pela contemporânea, se entende por tal expressão con-
sucessão do paradigma científico e acadêmico por ceitual fundamental, Dufrêne imagina que o mal-
outro estético e espetacular. Apesar de ainda abrigar -entendido produzido pela Magiciens foi responsá-
setores de pesquisa em etnologia, o Musée Branly vel por “embaralhar as fronteiras entre o museu de
atribui novamente valor aurático às “obras-primas” etnografia e o museu de arte contemporânea, tor-
não ocidentais, antes submetidas ao olhar classifi- nando possível assim a criação do Museu do quai
catório científico e, agora, selecionadas e marcadas Branly” (Idem, p. 115) e sinalizando uma série de
pela encenação exótica de um primitivo de apelo utilizações ainda recentes, mesmo após a conheci-
turístico (então chamado de “primeiro”) e bastan- da crítica de Hal Foster em The return of the real, da
te distinto, portanto, daquele inventado pelos pri- figura do artista-etnógrafo capaz de “questionar
mitivistas modernos em seu desejo de ruptura e o seu próprio universo cultural” (Idem, p. 116).
transgressão. O Branly tipifica de maneira bastante Esse movimento de retomada da aproximação en-
clara, também, ao menos outros dois pressupostos tre antropologia e arte corresponderia, pois, a uma
com os quais a antropologia vem se debatendo nos nova edição do mal-entendido produtivo que, ain-
últimos tempos: a transferência da categoria “arte” da de acordo com Dufrêne, “teve por resultado
para regimes de pensamento alheios e a imposição que, agora [...], um objeto etnográfico e um objeto
de um programa estético voltado para o destaque de artístico surgem como as duas faces conjugadas de
objetos (De L’Estoile, 2007). uma realidade cultural” (Idem, p. 118). Vemos aí
Essa trajetória do colecionismo e das exibições, como a separação entre categorias de objetos não
aqui brevemente condensada, torna notável a tena- foi desfeita, mas, mais uma vez, reconfigurada em
cidade dos pressupostos ontológicos modernos e nova solução produzida apenas por um dos lados
seu poder de captura e de recategorização das coisas de tal (supostamente única?) realidade cultural.
e modos expressivos alheios. Um desses pressupos- Dufrêne indica, ainda, um campo de confluên-
tos, já mencionado no caso de Kroeber, está assen- cia entre a antropologia e a história da arte, ao sina-
tado na construção do artista individual (e mutatis lizar uma partilha de procedimentos marcada pela
mutandis na própria noção de indivíduo), que seria produção de autores como Michael Baxandall. Essa
responsável por se destacar de seu meio cultural via partilha consistiria em considerar o “objeto de arte
sua maestria técnica e elevação criativa e/ou espiri- não apenas como um signo em uma comunicação
tual. Não é por acaso que a exposição Magiciens de entre produtor e consumidor/espectador, mas como
la Terre, na tentativa de oferecer um contraponto a um objeto composto de intencionalidades múlti-
tal pressuposto, terminava por prolongá-lo e redefi- plas produzido e utilizado no seio de relações so-
ni-lo pela noção dos “magos” da terra, como consi- ciais complexas” (Idem, p. 119). Em uma perspec-
dera o curador Pablo Lafuente: “a agência do artis- tiva mais crítica da trajetória “estetizante” em que
ta, para escapar das problemáticas do modernismo se inserem exposições e instituições como a Magi-
e de sua determinação sociocultural, é reformulada ciens e o Museu do quai Branly, Lafuente prevê a
como a agência do mago – aquele indivíduo que possibilidade de uma antropologia capaz de “pensar
estabelece uma relação privilegiada com um grupo objetos como dotados de sua própria agência, no
e com um local e que, graças a tal privilégio, con- mesmo nível daquela dos artistas e dos curadores,
quista a sua individualidade” (Lafuente, 2013, p. abrindo assim caminho para outra categoria de
16).7 Ao revisar as diversas críticas já realizadas à ex- exibições nas quais objetos não sejam nem deter-
posição, o historiador da arte Thierry Dufrêne, por minados pelo contexto e nem descontextualizados:
sua vez, terminou por considerar a Magiciens de la nas quais objetos possam fazer e desfazer relações,
Terre nos seguintes termos: “a exposição [...] deu incluindo relações com o sistema que os torna pos-
origem a um ‘imbróglio’ do qual ainda não saímos, síveis” (Idem, 20). Muito embora Lafuente pareça
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se aproximar das considerações de Gell, sobre as As críticas do estetismo


quais falaremos em seguida, vemos persistir outro
pressuposto tenaz: aquele do próprio objeto como A propósito da inclusão de uma rede de caça
entidade basilar do sistema das artes visuais, passível azande em uma exposição de arte curada pela afri-
ou não de ter a sua agência ou intencionalidade re- canista Susan Vogel (Art/Artifact), o antropólogo
conhecidas. Marcado como foco de matrizes esté- Alfred Gell mostrava como o filósofo Arthur Danto
ticas ou reconfigurado por uma visada crítica e rela- ainda estava impregnado de pressupostos hegelianos
cional, ele, o objeto, de toda forma permanece como ao estabelecer uma distinção entre arte e artefato.
algo que jaz ali, jogado adiante do sujeito, com quem Para sustentar seu argumento em favor de tal distin-
estabelece uma relação tensa. ção, Danto se ancorava no grau maior ou menor de
Não se trata de insinuar algum erro ou im- retenção de significado por parte de um determina-
pertinência desses pressupostos, como se tal fosse do objeto (produzido pelos sábios da tribo, análo-
uma questão plausível. Afinal, poderíamos definir gos aos nossos artistas e intelectuais), que seria con-
a própria noção de ontologia como o conjunto de siderado capaz de ultrapassar o mero emprego
pressupostos sobre o que existe, ainda que passí- cotidiano e atingir certa universalidade caracterís-
veis de se submeterem a ajustes, transformações e tica da obra de arte. Ao contrário de Danto, para
acordos pragmáticos, como sugeriu recentemente Gell não serão exatamente o significado e a expres-
Mauro Almeida (2013, p. 9). Trata-se, no entanto, são do espírito absoluto aquilo que transforma algo
de desenvolver uma reflexão antropológica mar- em arte – critérios marcados por uma estetização
cada pela desestabilização permanente de tais as- etnocêntrica similar àquela realizada por Kroeber e
sunções sobre o que existe ou, antes, pela variação tantos outros. Uma obra de arte (seja ela uma rede
especulativa em torno de múltiplas possibilidades ou uma instalação de Rebecca Horn) será, então,
de existência (justamente aquelas eclipsadas ou co- algo capaz de evocar “intencionalidades complexas”
biçadas pelo colonialismo) para as quais entidades, (Gell, 1999, p. 211). Dessa forma, Gell se vale da
tais como “objetos” e “indivíduos”, talvez não se- dissolução da essência distintiva do objeto artístico,
jam pertinentes ou, ao menos, não da mesma ma- que já havia sido realizada por Marcel Duchamp, a
neira como são em geral pensadas e repensadas por fim de descartar o pressuposto estético, mas, ainda
intelectuais ocidentais. Esta seria, então, como se assim, mantendo um sentido possível da noção de
verá, a diferença constitutiva entre a reflexão aqui arte para a antropologia.
proposta e aquele encontro entre a antropologia e a O autor estende esse mesmo tipo de crítica para
história da arte imaginado por Dufrêne: análises de outros estudos, nos quais a presunção de significado –
desentendimentos produtivos ou de equivocidades assim como a própria validade da “arte” como cate-
tradutórias, como as realizadas e pensadas por auto- goria transcultural assentada em sua suposta superio-
res como Marshall Sahlins (1981, 1995) e Eduardo ridade espiritual – é abandonada em favor de uma
Viveiros de Castro (2002, 2004), só se tornam pos- análise de sua eficácia técnica. O papel da técnica já
síveis quando suspendemos pressupostos e pontos se fazia presente na reflexão sobre a habilidade (skill)
de partida, a fim de produzir uma experiência de elaborada por Franz Boas no clássico Primitive art,
pensamento em torno da variação de modos de mas, com Gell, ela passa a ser evocada em paralelo
existência. Dessa forma, deixa de fazer sentido uma com as operações mágicas. A eficácia estaria na pro-
antropologia da arte centrada, por exemplo, na ci- dução de uma guerra psicológica, pela qual o espec-
são sujeito/objeto e suas transformações; não seria tador permanece em posição assimétrica com rela-
o caso, mais ainda, de mobilizar a reflexão antro- ção à agência extraordinária do produtor de objetos
pológica para um fim determinado, ou seja, a arte complexos. De fato, essa mesma mobilização de ín-
e suas transformações contemporâneas. A reflexão dices materiais como receptáculos de agências e, des-
antropológica partiria, antes, de tal tarefa mediado- sa forma, como mediadores de redes de intenciona-
ra (Wagner, 1981) para construir um outro campo lidades, será explorada de maneira mais aprofundada
de complexidade. em Art and agency. Nesta obra póstuma editada em
Conflitos de pressupostos na antropologia da arte  5

1998, Gell apresentava os contornos teóricos neces- imagens, que não se relacionam apenas ou exatamente
sários para distinguir a antropologia dos aportes de por meio do impacto cognitivo produzido por deter-
outras disciplinas que a determinaram nas décadas minada elaboração visual sobre o receptor. Em uma
anteriores (como no caso da influência da história direção similar ao que dirá também Strathern sobre
da arte em Boas via a noção de Kunstwöllen de Aloïs sociedades da mesma região, percebe-se que tais pro-
Riegl8 ou, mais tarde, dos pressupostos da semiologia duções materiais são mobilizadas, sobretudo, para a
nos estudos antropológicos sobre arte dos anos de produção de pessoas e de relações, e não para a ma-
1960 e seguintes9). A especificidade antropológica nutenção de processos de reificação e suas respectivas
estaria, de acordo com Gell, no estudo das relações instituições, tais como museus.
sociais. Dessa forma, tornava-se possível vincular sua Muitas das críticas dirigidas à teoria de Gell
teoria à tradição maussiana e considerar objetos de (como as de Morphy, 1994, e Layton, 1981) pare-
arte (não apenas os de sociedades tradicionais, vale cem mais preocupadas em demarcar uma diferença
frisar) como pessoas envolvidas em uma rede de re- de base com relação ao seu programa (o abandono da
lações – mas desde que se considerasse “pessoa” com premissa estética, por exemplo), bem como em es-
base em processos de relativização radical que a no- tabelecer pequenos ajustes de contas, do que em
ção sofreu pela reflexão antropológica, mais capaz de apontar problemas teóricos mais profundos. Exce-
lidar com teorias alternativas do que a tradição fi- ção, no entanto, é o argumento de James Leach em
losófica contemporânea. O problema antropológico torno da noção de abdução, que produziria uma
para a arte seria, assim, o de identificar os processos excessiva centralidade do indivíduo e da habilida-
pelos quais abduções de agência se estabelecem por de técnica, tributária de matrizes modernas e in-
intermédio de índices materiais capazes de produzir suficiente para a compreensão de outros modos de
relações assimétricas entre produtores e recipientes, criatividade orientados pela colaboração:
suficientemente potentes para capturar pessoas em
relações sociais. Assim, Art and agency oferece uma Gell precisa de objetos dos quais as pessoas pos-
perspectiva alternativa para a antropologia da arte, sam abduzir agência, mas, em sua teoria, essa
que deixa de ser um estudo voltado exclusivamente abdução sempre será atribuída ao criador que,
para as produções de sociedades não ocidentais. mediante a técnica ou a habilidade, estabelece sua
Gell oferece, ainda, uma solução para o problema influência por meio do objeto. A transcendência
da divisão entre interior (mente) e exterior (mundo) da conjugação vontade/intelecto ressoa a tendên-
que estrutura a noção de estética moderna e sua su- cia euroamericana de localizar a razão ou o co-
posta aplicabilidade transcultural. O autor já havia nhecimento na mente individual, reproduzindo,
refutado tal espécie de pressuposto ao dizer que o im- assim, o sujeito por suas operações no mundo ex-
pacto causado sobre um espectador por determinado terno. Gell se baseia nessa constituição da pessoa,
índice artístico (como no exemplo da elaboração grá- focada em um modo de criatividade particular.
fica das proas de canoas utilizadas pelos viajantes do Ao fim e ao cabo, ficamos com a mente indivi-
circuito do Kula) não deriva apenas ou exatamente dual e suas representações, e com a ideia de que
dos efeitos cognitivos da relação entre figura e fundo, os não humanos podem ser agentes apenas por
mas sim da abdução, por parte do receptor, da agência vizinhança: há sujeitos reais, nomeadamente nós
extraordinária do artista eclipsado pelo índice material mesmos, e há aqueles cidadãos de segunda classe
(Gell, 1999, pp. 159 ss.). Em outros termos, índices do império do Sujeito (ou seja, os objetos e seus
materiais (classificados por Gell como “arte”, mas para similares) (Leach, 2007, p. 183).
além do que arte implica no Ocidente) transformam-
-se em pessoas exatamente por sua capacidade de O autor aponta para um entrave de fato pre-
pressupor outras pessoas por trás de si. A suposição sente nos primeiros capítulos de Art and agency: a
de uma determinada agência extraordinária responsá- divisão entre agentes primários e secundários, tri-
vel pela elaboração do índice é, assim, o que instau- butária da centralidade do Sujeito e do velho in-
ra o vínculo social entre produtores e recipientes de cômodo ontológico moderno com relação aos não
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humanos. Veremos como o problema, que já se partida. Ela deveria, em suma, procurar pelas questões
fazia presente nas considerações anteriores sobre a colocadas pelos Navajo sobre suas pinturas de areia e
exposição Magiciens de la Terre, também ultrapassa suspender as suas próprias indagações. Isso se torna
a teoria de Gell e suas críticas. Ainda assim, Leach possível apenas a partir de um trabalho etnográfico in-
curiosamente não aprofunda a contaminação notá- tensivo, cujo resultado poderá ser capaz de fazer com
vel da etnografia da Melanésia e do Pacífico nos três que a antropologia lance uma perspectiva sobre seus
últimos capítulos da obra póstuma. Ali, o problema problemas de origem (sobre a natureza da imagem e
das pessoas embutidas umas nas outras, mediado da representação pictórica, por exemplo), mas com a
por índices materiais que transcendem o estatuto clareza de que se trata de suas questões, e não necessa-
de objeto inanimado, não pode ser visto apenas riamente das dos outros. Gow ilustra seu ponto pela
como uma mera projeção de premissas ocidentais. explicitação de Lévi-Strauss de seu próprio partido es-
Gell parece, antes, ter sido responsável por produ- tético logo no início de A via das máscaras, sem que tal
zir uma reflexão eclética potente, na qual a teoria partido, no entanto, pressuponha que as conexões por
semiológica (bem como sua crítica), as teorias ino- ele traçadas sejam as mesmas que preocupam os povos
vadoras da mente (os homúnculos de Dennett) e ameríndios.
os velhos pilares modernos (a habilidade e o indi- Em uma reflexão sobre os problemas da com-
víduo) se combinam de maneira mais ou menos paração, Strathern apontava para a inexistência de
evidente com os esboços de uma teoria etnográfica alguma escala automática prévia para comparar coi-
possível (do Pacífico e da Oceania) desenvolvidos sas, como se uma flauta (ou uma pintura de areia)
não apenas por ele, mas por outros especialistas na pudesse ser concebida universalmente como um
região tais como Marilyn Strathern, Roy Wagner, objeto (e a pintura como uma figura autônoma)
Suzanne Küchler, Jadran Mimica e Mark Mosko. passível de ser deslocado, com naturalidade, para
A recusa crítica e metodológica do “estetismo” um museu ou para a página de um livro. Semelhan-
não foi sugerida apenas por Gell. Peter Gow (apud In- te deslocamento só faz sentido de um ponto de vista
gold, 1994), por exemplo, refuta a proliferação de “et- acostumado a isolar objetos e figuras de pessoas, de
noestéticas” em estudos que tomam por pressuposta a modo que possam ser tratados como obras de arte.
categoria “arte” via argumentos similares. Para Gow, Mas e se, na Melanésia por exemplo, efígies, flautas
tais estudos importam para a antropologia problemas e canoas forem pessoas ou, antes, se conectassem
como a ideia de uma resposta universal a determina- à composição de pessoas por meio de outros pro-
dos estímulos sensoriais, pela qual se torna possível cessos que aqueles responsáveis pelo seu isolamento
estabelecer critérios de distinção: caberia ao antropó- e categorização como “cultura material”, “artefato”
logo, assim, investigar a variabilidade cultural desses ou “obra de arte”? Nesse caso, seria necessário ado-
critérios e comparar distintos sistemas estéticos, diga- tar outra postura metodológica e epistemológica,
mos, dos Yorubá, dos Yanomami ou dos Yolngu, via cujo ponto essencial pode ser percebido na seguinte
uma metateoria inventada pelo cientista social (uma frase da antropóloga: “não é a maneira pela qual os
posição que costuma ser defendida por autores como antropólogos controlam as analogias que está em
Howard Morphy, Robert Layton e Jeremy Coote – jogo, mas sim a maneira dos atores” ([1991] 2004,
críticos de Gell, aliás).10 Para Gow, esse projeto cor- p. 76). Como, no entanto, trazê-las ao plano prin-
responde sobretudo à vontade ocidental de inventar cipal? E quais seriam as consequências dessa opção?
uma estética para outros povos. Comparar e contras-
tar com vistas a produzir juízos de gosto não deveriam
ser problemas metodológicos de uma reflexão antro- Antropologias da imagem
pológica. Não se trata de dizer que determinadas pro-
duções (por exemplo, as pinturas de areia dos Navajo) Embora Gell tenha conseguido delimitar um
não sejam belas, capazes de produzir potência estética, campo conceitual para sua antropologia da arte,
de transmitir significado, mas sim que a antropolo- outros autores têm progressivamente se afastado de
gia não deveria tomar tais premissas como ponto de tal projeto. Em um artigo recente, Philippe Descola
Conflitos de pressupostos na antropologia da arte  7

também se refere aos entraves gerados pela mime- nicas que requerem a ordenação e o funcionamento
tização de certo modus operandi da história da arte. de uma tradição específica” (2007, p. 69). Ambos
As pesquisas eram até então dominadas pela “análi- os projetos apontam para essa tendência de uma an-
se das funções de tais objetos, do simbolismo a eles tropologia da imagem que, não por acaso, tem tam-
associado, das exigências formais às quais devem bém definido as reflexões recentes de Hans Belting
responder, das evoluções estilísticas que sofreram, ([2001] 2011, p. 32), para quem qualquer pergunta
das alterações de sentido que os afetam quando são pelo estatuto da imagem se torna insuficiente quan-
deslocados de seus ambientes de origem” (2010, do não considera noções de imagem provenientes
p. 25). Como alternativa a tais pressupostos, Des- de outras culturas, capazes de problematizar defi-
cola propõe uma “antropologia da figuração”, ca- nições realizadas no interior da tradição ocidental.
paz de ultrapassar os problemas da arte referente É o aporte da antropologia que, segundo o autor,
a determinados contextos históricos. Para o autor, a permite tornar mais complexas a compreensão das
figuração, ao contrário da arte, é “uma operação formas de relação entre imagens, corpos e mídias,
universal pela qual um objeto material qualquer é estudadas em An anthropology of images. Como
investido ostensivamente de uma ‘agência’ social- exemplo da importância desse aporte, Belting
mente definida”. Ecoando a persistência dos pres- (Idem, pp. 32-33) se refere à influência que a persis-
supostos modernos aqui apontados, ele sustenta, tência de fórmulas visuais no ritual de serpentes dos
ainda na mesma passagem, que se torna possível Pueblo exerceu sobre Warburg, assim impulsionan-
estudar a figuração via seus distintos modos de do sua elaboração da noção de nachleben em seu
identificação, “isto é, das formas de organização da estudo sobre as imagens no Renascimento (recente-
experiência do mundo correspondente às diversas mente reestudado por Didi-Huberman, 2002).
maneiras de inferir as qualidades nos existentes e, Mas isso ainda não seria suficiente para esgo-
assim, de reconhecê-los como dotados de certas tar o problema anunciado por Marilyn Strathern,
aptidões que os fariam capazes deste ou daquele ou seja, de uma etnografia que leve às últimas con-
tipo de ação” (Idem, p. 26) Ainda que mantenha sequências os pressupostos de pensamento ou as
uma base universalista, Descola se desfaz dos pro- analogias mobilizadas pelos próprios atores. O que
blemas tradicionalmente associados à antropologia ocorre, mais especificamente, é que a concepção
da arte. Seu programa é influenciado pela teoria de de etnografia não é mobilizada da mesma manei-
Gell, mas se dirige para o estudo das variações dos ra por distintos projetos intelectuais que, ademais,
modos de figuração em distintos regimes ontológi- não se interessam em desenvolver com mais radi-
cos a que se dedica de maneira mais detalhada em calidade uma autocrítica epistemológica. Sem es-
Par-delà nature et culture (2005). tabelecer grandes pesquisas sobre potenciais teorias
Carlo Severi, por sua vez, propõe uma antro- nativas, Warburg na realidade estava, em O ritual
pologia da memória para superar as contradições da serpente (2003 [1923]), interessado na maneira
derivadas da separação entre a antropologia da arte pela qual a iconografia e os rituais da serpente en-
e o estudo de tradições orais. O autor procura em tre os Pueblo impulsionavam suas reflexões sobre
Warburg as bases teóricas para a construção de uma a sobrevivência das imagens. Belting, por sua vez,
antropologia da memória, que termina também permanece em referências genéricas e pouco se en-
por ser, como a de Descola, uma antropologia da gaja em leituras mais aprofundadas de etnografias
imagem. Trata-se, para Severi, de pesquisar imagens que efetivamente levariam ao desenvolvimento de
dotadas de intensidade especial, a ponto de se tor- seus objetivos teóricos anunciados. As propostas
narem transmissíveis, dissemináveis e persistentes. de Severi e de Descola, por fim, examinam opera-
Dessa forma, ele pretende associar sua perspectiva ções cognitivas universais via um amplo conheci-
renovada sobre Warburg a uma investigação dos mento da etnografia, mas não exatamente de uma
“fundamentos psicológicos de toda cultura” para, conexão simétrica com outros critérios de pensa-
dessa maneira, entender as “operações cognitivas mento. A diferença entre esses procedimentos e ou-
que estão envolvidas no conjunto de práticas e téc- tros mais preocupados com a simetria está, como diz
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Eduardo Viveiros de Castro, em imaginar “uma Não há dificuldade, então, de demonstrar que
nova antropologia do conceito […] que contra- a ideia da personitude das figuras (ou, ao me-
-efetua um novo conceito de antropologia, a partir nos, de seu animismo) é tão viva no mundo
do qual a descrição das condições de autodetermi- moderno quanto já foi nas sociedades tradicio-
nação ontológica dos coletivos estudados prevalece nais. A dificuldade está em saber o que dizer
absolutamente sobre a redução do pensamento hu- em seguida. Como as atitudes tradicionais em
mano (e não humano) a um dispositivo de recogni- relação às imagens – idolatria, fetichismo, to-
ção: classificação, predicação, juízo, representação temismo – reaparecem as sociedades moder-
[…]” (2009, p. 7). Tal antropologia deve realizar nas? Nossa tarefa como críticos culturais está
algo que parece levar ainda mais adiante as suges- em desmistificar essas imagens, em esmagar os
tões apontadas por Gow: um trabalho de “ontogra- ídolos modernos, em expor os fetiches que es-
fia” (Holbraad, 2003), ou seja, um levantamento cravizam as pessoas? (Mitchell, 2005, p. 32).
das condições de possibilidade de um mundo outro
e de seus conceitos, entre os quais aqueles envolvi- Uma reflexão antropológica poderia responder
dos em suas formas expressivas. O desafio é simi- a essas questões de outra forma, já que precisaria
lar ao encontrado nas seguintes palavras de Bruno levar em consideração as duas direções da relação
Latour: “de toda forma, se eles [os cientistas sociais] ativada por Mitchell. Afinal, será que realmente
querem propor uma metafísica alternativa, eles pre- sabemos o suficiente sobre relações entre imagens
cisam primeiro se engajar na fabricação de mundos e processos de personificação nas ditas sociedades
de quem estudam” (2007, p. 57). tradicionais, colocadas pelo autor no passado? Até
Autores diversos (entre os quais o próprio Latour) que ponto categorias genéricas como idolatria, fe-
admitem que a antropologia tem se destacado entre ou- tichismo e totemismo de fato nos auxiliam a com-
tras disciplinas em sua tarefa de compreensão de preender, por exemplo, o estatuto da imagem para
outros mundos possíveis e dos problemas de cone- sociedades da Amazônia ou da Nova Guiné? Se tais
xão tradutória daí derivados. Outros, como W. J. T. categorias não são consensuais e nem suficientes
Mitchell, oferecem reflexões que recuperam modos para resumir as particularidades das teorias etno-
de relação com a imagem tradicionalmente estu- gráficas, como pensar a sua passagem para projetos
dados por antropólogos. Não por acaso, Mitchell de crítica da cultura e de teorizações sobre a ima-
(2005, p. 6n) reconhece, em um livro recente, sua gem tais como o proposto por Mitchell? A questão
afinidade com o pensamento de Gell ao tratar da não está apenas em dizer que a “personitude” de
vitalidade das imagens. Na mesma obra, o autor diz figuras é reelaborada nas sociedades modernas, mas
ainda que “as atitudes mágicas diante das imagens sim em investigar como ela se faz presente de ma-
são tão poderosas no mundo moderno quanto elas neira distinta nestas e em outras sociedades.
foram nas assim chamadas idades da fé, que, aliás, Falta algo nessa vontade contemporânea de
eram um pouco mais céticas do que imaginamos” aproximação com a antropologia: precisamente um
(Idem, p. 8). Em um argumento similar ao apre- conhecimento mais acurado e rigoroso de teorias
sentado por Latour em sua reflexão sobre o Icono- etnográficas, capazes de projetar uma conexão entre
clash e, também, sobre os fe(i)tiches (1996, 2001), imaginações conceituais distintas e suas respectivas
Mitchell revisa o papel de uma consciência críti- formas de expressão. Esse conhecimento parece ser
ca, supostamente capaz de se livrar de tais atitudes de fato fundamental para reformular grandes narra-
mágicas com relação às imagens que, mesmo nas tivas presentes, mesmo que de modo indireto, em re-
sociedades ocidentalizadas contemporâneas, po- flexões sobre arte contemporânea voltadas para a ca-
dem ser pensadas como se fossem dotadas de vida pacidade de pluralização de mundos propiciada pela
e capazes de lançar apelos às pessoas que com elas arte relacional. É o caso do influente estudo de Ni-
se relacionam. É o que podemos notar na seguinte colas Bourriaud, que não deixa de oferecer a seguinte
passagem: construção temporal em suas especulações: “essa his-
tória [do campo relacional], hoje, parece ter tomado
Conflitos de pressupostos na antropologia da arte  9

um novo rumo: depois do campo das relações entre Comparação e tradução


Humanidade e divindade, a seguir entre Humani-
dade e objeto, a prática artística agora se concentra Mas então não faria mais sentido falar em arte
na esfera das relações inter-humanas […]” ([1998] ameríndia, melanésia ou africana, após a revisão do
2009, pp. 39-40, itálicos meus). Caberia perguntar o programa da antropologia da arte (e da própria antro-
que, nesse passado passe par tout, significariam mais pologia) por autores como Gow, Descola, Severi, Gell,
exatamente categorias tais como humanidade e di- Strathern e Viveiros de Castro? Teríamos apenas for-
vindade. Quem estaria, mais especificamente, con- mas expressivas ameríndias, regimes visuais distintos
templado em tal horizonte genérico anterior? Talvez ou coisa similar? Não se trata exatamente de aban-
apenas uma imagem espelhada, mais do que alguma donar o termo “arte”, tampouco de generalizá-lo
sociedade ou mundo potencialmente pensável para via algum projeto teórico (como no caso de Gell)
além de certo mecanismo narrativo? ou via alguma construção comparativa unilateral. O
Essas questões podem ser mais bem compreen- interesse estaria mais em estabelecer um campo de
didas pelas posições defendidas por uma coletânea conexão pela diferença entre distintos pressupostos,
recente de artigos dedicada a superar os pressupos- analogias e produções de sentido, pelo qual categorias
tos tradicionais do estudo de cultura material na como arte ou imagem poderiam ser reinvestidas de
antropologia, propondo uma aliança entre uma sentido; uma conexão comparativa e tradutória, por-
perspectiva ontológica e o estudo das “coisas” dos tanto, e não a seleção de um determinado conjunto de
outros. Em Thinking through things, Holbraad, fenômenos para a satisfação de um ponto de partida
Henare e Wastell (2007, p. 7) postulam “uma me- predeterminado. Perguntar, por exemplo, pelo estatu-
todologia na qual as ‘coisas’ propriamente ditas po- to dos objetos e do visível e suas distintas elaborações
dem impor uma pluralidade de ontologias” ou, em entre os Yanomami não precisa ser algo motivado pelo
outras palavras, “uma metodologia capaz de gerar desejo de convergência para a arte, como se este fosse
uma multiplicidade de teorias”, e não exatamente um interesse igualmente partilhado por tal sociedade
a redução de determinado conjunto de fenômenos amazônica. A pergunta, além do mais, não deveria
e/ou de formas expressivas às perspectivas de um ser pretexto para a busca, há tempos já abandona-
axioma teórico previamente elaborado pelo analis- da (Morphy, 1994, pp. 650-651), de categorias tais
ta. Partindo das reflexões de Wagner, Strathern e como “arte” ou “poesia” em outras línguas e configu-
Viveiros de Castro, os autores se alinham com um rações ontológicas. O questionamento pode servir, em
“construtivismo radical” próximo daquele já pro- um primeiro momento, para que nossos pressupostos
posto por Deleuze e Guattari, ou seja, uma tenta- sobre objetos e imagens (e sua elaboração pela agência
tiva de imaginar, por meio de um exercício heurís- artística) consigam ganhar uma perspectiva distinta
tico, a aliança estabelecida entre coisas e conceitos quando problematizados por outros pressupostos e
ou, em outros termos, o abandono da distinção en- produções possíveis de sentido. Em um segundo mo-
tre um regime de discurso variável e sua capacidade mento, tal ampliação de perspectiva conduziria a uma
de determinar um estado de coisas fixo, as things transformação do próprio conhecimento, produzida
out there a serem explicadas ou interpretadas por por uma forma de vínculo que ultrapassa as duas (ou
alguma posição teórica privilegiada (Idem, p. 13). mais) posições postas em relação. Mas como conquis-
Dessa forma, coisas (mas também outras formas tá-lo? Seria para tanto necessário produzir uma práti-
expressivas) são ou supõem imediatamente uma ca de conhecimento mais afinada com os dilemas da
conexão com determinados critérios especulativos comparação, tal como encontrados na seguinte passa-
correspondentes que indicam, assim, não apenas gem de Viveiros de Castro:
uma variação cultural ou epistemológica (variantes
internas, portanto, até então perseguidas pela an- Mas a comparabilidade direta não significa ne-
tropologia), mas também uma multiplicação pro- cessariamente tradutibilidade imediata, assim
priamente referencial a ser perseguida pela imagi- como a continuidade ontológica não implica em
nação etnográfica. transparência epistemológica. Como podemos
10  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 93

restaurar as analogias traçadas por povos amazô- sos tais como a produção de uma criança, o cultivo
nicos a partir dos termos de nossas analogias? O de inhames ou a circulação e exibição de adornos.
que acontece com as nossas comparações quando Não se esgotam assim tão facilmente, entretan-
as comparamos com as comparações indígenas? to, as consequências dessa brevíssima interpolação
(2004, p. 4). da teoria etnográfica melanésia com as considera-
ções de Viveiros de Castro sobre as comparações,
Ao exibir o corpo paramentado, adornado com que apontam para a necessidade de contemplar ou-
conchas-valores, a pessoa na Melanésia não é um tros critérios comparativos postos em conexão com
indivíduo que expressa sua criatividade interna os nossos. Mas de que se valem afinal das contas
através de uma expressão visual externa (Strathern, tais critérios? Novamente, de distintos conjuntos
2013). Ela não se constitui por uma exterioridade de pressupostos, cuja compreensão passa a ser fun-
criativa capaz de singularizá-la, por meio do estilo damental para a espécie de reflexão antropológica
artístico, como um indivíduo destacado dos de- aqui imaginada. Não se pretende, com isso, sus-
mais. As analogias e as comparações almejadas pela tentar uma espécie de criptologia etnográfica, a
pessoa em um ritual de transação de dons transfor- ser contrastada, como argumento de autoridade,
mam-na em uma coisa, especula Marilyn Strathern. à criptologia conceitual acadêmica. Trata-se, em
Sua coisificação nada tem a ver, no entanto, com a um primeiro momento, de colocar em contraste
transformação da pessoa em produto de consumo distintos léxicos privilegiados por este ou aquele
pelas ontologias capitalistas. A pessoa é certamente modo de existência, sem os quais não se compre-
uma coisa (o conjunto de adornos que perfazem o ende o próprio estatuto do conhecimento e da ex-
seu corpo), mas coisas são índices para fluxos de pressão. Isso não implica, ademais, em reiterar uma
transação entre pessoas. Por isso, a pessoa não se aliança direta entre linguagem e mundo, como já se
singulariza como indivíduo recoberto por sua más- discutiu ad nauseam desde as críticas ao relativismo
cara de pigmentos, como teria se equivocado o fo- linguístico, ainda que o problema da tradução e da
tógrafo Malcom Kirk em sua série de retratos de variabilidade ontológica siga sendo um desafio cor-
nativos da Papua Nova Guiné produzidos nos anos rente para a antropologia (Severi e Hanks, 2014).
de 1970. Ela faz sentido apenas em conjunto: não Termos conceituais isolados, como yochin (pano),
como parte de uma totalidade social, que a rigor utupë (yanomami) ou karon (jê), não podem ser
não existe, mas como uma escala de uma configu- traduzidos diretamente por outros, como “ima-
ração fractal, na qual um e muitos se tornam posi- gem” ou “figuração”, sem que se leve em considera-
ções homólogas umas das outras. É por essa razão ção a constelação de outros termos e pressupostos a
que, ao recortar e isolar indivíduos contra um pano partir dos quais eles estabelecem sentido; sem que
de fundo neutro, ao transformar e isolar corpos em se leve em consideração, mais ainda, suas articula-
itens retratísticos, Kirk produzia um equívoco visual ções essenciais com aspectos sensoriais e performa-
por ignorar aquilo que o corpo paramentado tem de tivos que extrapolam as próprias categorias da lin-
mais fundamental na Melanésia: a visualização guagem. Do contrário, poder-se-ia imaginar que o
de relações, a capacidade de fazer com que cone- termo empregado por um Marubo para se referir a
xões sociais se externem através do corpo. O uso do uma sombra e a uma fotografia (yochin) se traduzi-
termo “estética” usado por Strathern em The gender ria sem muitos problemas pela ideia de “figuração”,
of the gift é, a rigor, uma estratégia tradutória para tendo em vista um suposto universalismo da repre-
dar conta desse problema, de uma potencial teoria sentação por semelhança. Seria possível sustentar,
visual da Melanésia (2013, p. 10),11 e não de juízos mais ainda, que tal noção está assentada em uma
de gosto ou de uma ciência dos princípios da sen- economia dos objetos destinada à permanência
sibilidade. Trata-se de traduzir a complexa tensão da materialidade capaz de produzir fruição estética,
entre ocultamento e manifestação de resultados de memória e concentração política, o que efetivamente
relações fundamentais de economias da dádiva na não é o caso das terras baixas sul-americanas (Bar-
Melanésia, que se tornam visíveis através de proces- celos Neto, 2008). Além do mais, as categorias
Conflitos de pressupostos na antropologia da arte  11

geralmente associadas ao que se traduz por ima- vias de desaparecer. […] Uma vez mortos, sere-
gem não possuem exatamente um valor icônico, mos expostos nas caixas de vidro de um museu?
mas sim indicativo, como bem mostrou Viveiros […]. Ao levar [os adornos yanomami] consigo,
de Castro (2007) em seu estudo sobre a noção de os brancos capturam também as suas imagens
imagem-espírito entre os Yanomami. e as guardam muito distante de nossa floresta.
Torna-se, assim, necessário ir além do proble- É isso que terminará por nos deixar tão feios
ma (ainda assim fundamental) de tradução de en- quanto inábeis na caça (2010, pp. 458-459).
tidades linguísticas, pois uma reflexão etnográfica
envolve certamente controle do léxico conceitual Parece que Kopenawa não se refere exatamente
dos dois lados postos em relação (ou seja, de seus à imagem icônica das coisas, potencialmente retra-
potenciais campos semânticos, de suas trajetórias e táveis pelos brancos (Cesarino, 2014, p. 210). A
de suas variações pragmáticas) mas, também, a ma- imagem interrompida pelos colecionadores de coi-
neira como tais léxicos se relacionam com pessoas, sas alheias é, a rigor, outra. Seguindo a sugestão de
de como se articulam em relações de socialidade e Viveiros de Castro (2007), ela se referiria antes ao
em produções de experiência. O que efetivamente seu aspecto indicativo (seu utupë), a uma espécie de
fazem (ou o que se faz de) pessoas nas quais (ou duplo agentivo atrelado a determinadas extensões
pelas quais) determinados pressupostos são pensá- corpóreas, capaz de produzir efeitos nos viventes
veis? Quais agenciamentos aí se produzem, se vale que com elas se relacionam.
empregar a noção de Deleuze e Guattari? O que Eis algo similar ao que me explicou certa vez
efetivamente projeta um mundo no qual catego- um xamã marubo (Cesarino, 2011, pp. 183 ss.), ao
rias como utupë ocupam lugar central? Nas terras dizer como uma determinada coisa, quando extra-
baixas da América do Sul, esses agenciamentos pre- viada de seu dono, pode causar mal ao extraviador.
veem a existência de pessoas múltiplas, decorrentes É que as “coisas”, assim como os “bichos” (yoinni) e
da destruição do indivíduo vivente, que, como no os humanos visíveis (yora), são, a rigor, compostas
caso do xamanismo yanomami, deve ter seus olhos por seu aspecto “carcaça” (shaká) e seu aspecto duplo
(sua visão) mortos pela experiência de ingestão do (vaká).12 Os duplos, assim, podem ser meras réplicas
psicoativo yãkoana (Virola sp.), a fim de que seja visuais (kayakavi keskáma) ou similares a humanoi-
adquirido outro sentido proveniente de sua prolife- des (kayakavi keská), muitos deles existentes desde os
ração na multiplicidade infinitesimal das imagens- tempos primeiros, tal como os xapiri dos Yanomami.
-espírito xapiripë. É isso que se depreende da leitura Em ambas as opções serão espécies de imagens-duplo,
de trechos de La chute du ciel, de Davi Kopenawa e mas certamente distintas de imagens mentais ou
Bruce Albert. A antropologia especulativa aí desen- representações subjetivas que compõem as metafísi-
volvida é capaz de oferecer tanto os contornos de cas modernas. Ao roubar uma determinada coisa, o
um outro modo de existência (via um trabalho in- duplo personificado que a ela se anexa lembra-se de
tenso de mediação tradutória realizado em parceria seu dono e envia males (venenos, projéteis invisíveis,
com Albert) quanto uma compreensão do próprio falas sopradas) para a pessoa que a retirou de seu lu-
regime de materialidade e de classificação ociden- gar de origem, assim fazendo com que ela adoeça.
tal. É o que vemos na seguinte passagem, na qual Temos aí, novamente, uma configuração indicativa,
Kopenawa, em uma visita a Paris, reflete sobre o pois o duplo não necessariamente se assemelha à sua
que os brancos chamam de “museu” e sobre o que, extensão corporal. Duplos de pássaros, por exemplo,
afinal das contas, pode ser uma “coisa”: são pessoas que vivem no que concebem para si mes-
mos como suas casas (ninhos em copas de árvores,
Por fim, por tanto ver as coisas desse museu, por exemplo) e revidam agressões aos “seus bichos”
terminei por me perguntar se os brancos não (awen yoini) ou às “suas carcaças” (awen shaká) quan-
haviam já começado a adquirir não apenas os do agredidos; coisas como equipamentos eletrônicos
nossos objetos, mas também nós mesmos, possuem duplos humanoides similares aos brancos,
os Yanomami, justamente porque estamos em também capazes de retaliar quando suas extensões
12  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 93

corporais são roubadas. É provável que, para os Ma- view from above) ([1991] 2004, p. 32). Ao se valer
rubo, a recíproca também seja verdadeira, como pare- do Manifesto Ciborgue de Donna Haraway, Stra-
ce ser para Kopenawa: as “coisas” anexadas a pessoas thern pretendia ir além, por um lado, das perspecti-
(por exemplo, entre os Marubo, são os inaladores de vas teóricas comparativas produzidas por um ponto
rapé, os adornos de conchas aruá e as próprias casas), de vista de Sirius e, por outro, da condenação de
quando retiradas dessa conexão, provocam então al- toda forma de perspectiva pela antropologia pós-
gum desejo de retaliação por parte de seus duplos. -moderna. Diluir qualquer possibilidade de consti-
De toda forma, elas deixam de ser componen- tuição de uma posição produtora de conhecimento
tes de corpos múltiplos para se transformarem em em uma rede polifônica, marcada pelo descentra-
objetos reclassificados pelas categorias do império. mento radical produzido pela destruição da autori-
Tratamos, assim, de outros acoplamentos entre dade narrativa, implicaria em cometer um suicídio
pessoas, coisas e imagens, irredutíveis às categorias epistemológico característico do pensamento pós-
classificatórias produzidas por um regime de obje- -moderno e pós-colonial. Reiterar a posição do su-
tificação como o ocidental; um regime que retira jeito autocentrado, por outro lado, implicaria em
as coisas dos outros de sua zona nebulosa, poten- remendar a clássica posição moderna de autoridade
cialmente ameaçadora, e as objetifica, capturando- produtora de grandes narrativas, ainda em voga no
-as por outras dinâmicas de discurso e de controle pensamento contemporâneo. A alternativa, para
(Mitchell, 2005, pp. 145 ss.; Serres apud Latour, Strathern, estaria na metáfora do Ciborgue, que
1994, p. 82). Mas como conectar outras formas produz seu centro por meio de uma corporalida-
de acoplamento e seus critérios de comparação aos de híbrida, constituída por compatibilidades entre
nossos? Que estatuto de conhecimento poderia ser capacidades distintas, e não pelo isolamento e pri-
imaginado a partir daí, uma vez processadas as ne- vilégio comparativo. Torna-se assim possível imagi-
cessárias críticas à produção, no dizer de Mitchell, nar uma corporalidade que nada tem a ver com as
dos “maus objetos” do império e suas categorias cisões entre interior e exterior, mas sim com um es-
de contraste (fetichismo, totemismo e idolatria)? tado alternativo de experiência produzido por aco-
Como não se deixar paralisar pela exacerbação plamentos entre complexidades. Compatibilidade e
de outra crítica, a desencantadora, que, como ar- não comparabilidade, portanto, seria o desafio em
gumentava Latour (1996, 2001), terminaria por questão; constituição de um corpo conectivo como
esvaziar toda e qualquer forma de mediação, im- modo de afetação entre configurações de mundo
pedindo assim uma compreensão mais afinada e distintas e suas distintas produções de sentido.
adensada das formas potenciais de acoplamento Mas, ainda assim, como essa imagem da cor-
e seus desafios ao conhecimento? poralidade conectiva se relacionaria com o pro-
blema mais específico de compreensão de outros
regimes ontológicos e suas respectivas formas
Conexão e compatibilização expressivas? No final de Partial connections, Stra-
thern sugere que a pessoa na Melanésia poderia ser
O problema da comparação, como postulado compreendida como uma espécie de Ciborgue: a
por Viveiros de Castro, deve produzir uma trans- pessoa não se encerra em uma totalidade ou em
formação radical nos dois lados postos em relação, indivíduos; seus limites são compostos pelas cone-
em vez se constituir por algum ponto de vista ex- xões entre corpos que se singularizam em posições
terno privilegiado, supostamente capaz de selecio- marcadas por acoplamentos e extensões transespe-
nar um determinado conjunto de dados passíveis cíficas (inhames como agentes sociais, exibidos e
de serem explicados por suas narrativas ou premis- paramentados como manifestações de relações, por
sas teóricas. A questão é novamente repensada por exemplo). Não seria inoportuno empregar tal re-
Strathern em Partial connections na seguinte frase curso heurístico para a compreensão de outras for-
inspiradora: “a vista de um corpo ao invés da vista mas de complexidade, produzidas, por exemplo, na
de um cume” (the view from a body rather than the Amazônia. Noções de corpo-dono como yora, entre
Conflitos de pressupostos na antropologia da arte  13

os Marubo (Cesarino, 2011), e warah-, entre os estabelecido na zona de interconexão entre imagina-
Kanamari (Costa, 2010), também são compostas ções distintas, mas não da projeção ou da pressuposi-
por homologias escalares e extensões transespecífi- ção de uma totalidade. Trata-se, então, da capacidade
cas, mas com base em dilemas ontológicos distin- de produzir uma zona de complexidade que pode ser
tos daqueles que caracterizam a pessoa melanésia. motivada por formas distintas de expressão pela ima-
No final, essas noções revelam um rendimento da gem, pela palavra ou pela materialidade. Essa produ-
complexidade irredutível às produções de modelos ção seria então dependente do trabalho de ontografia,
teóricos comparativos e grandes narrativas explica- fundamental para que se estabeleça um vínculo imagi-
tivas. O que isso quer dizer mais especificamente? nativo com outros regimes de conhecimento e de ex-
Que a compreensão do problema da pessoa e do pressão. É isso que produzirá efeitos em um campo de
corpo entre os Marubo (e com isso entenda-se a sua reflexão que, talvez, não seja mais propriamente nosso
extensão em padrões gráficos, parafernálias rituais ou dos outros, mas sim constituído pela conexão entre
como inaladores de rapé e cajados, além de sua ex- distintas capacidades.
tensão em uma rede de outros corpos produzidos
pelo parentesco e passíveis de ultrapassar o que os
modernos entendem por “humano”) agencia uma Notas
complexidade irredutível a modelos explicativos
baseados em premissas ecológicas, cognitivas, es- 1 Entre os títulos mais recentes sobre o assunto, ver
téticas, sociológicas ou linguísticas. Ela certamente Layton (1981) para um estudo geral; Morphy (1994)
necessita dessas premissas para sua compreensão, para uma revisão sucinta; Morphy e Perkins (2006)
para uma seleção dos principais textos de referência;
mas também de outras potencialmente envolvidas
Coote e Shelton (1992) para uma coletânea de arti-
e, sobretudo, daquelas postuladas pelos próprios
gos; Pinney e Thomas (2001) para outra coletânea de-
Marubo, Kanamari ou Yanomami. dicada a absorver o pensamento de Alfred Gell.
O panorama produzido por essa constatação é
2 Para um estudo sobre a coleção e o pensamento de
certamente vertiginoso, como na imagem da Poeira de Pitt-Rivers, ver Chapman (1985).
Cantor empregada por Strathern em Partial connec-
3 Price (1989) realiza uma reflexão crítica sobre a expe-
tions para tratar de um dilema similar – o da estreiteza
dição Dakar-Djibouti.
de perspectiva teórica das etnografias da Melanésia.
4 A esse respeito, ver Jacknis (1985).
Mas ele indica, também, uma maneira de fazer com
que o conhecimento etnográfico adquira a densidade 5 Ver Lévi-Strauss (1986, pp. 341 ss.).
necessária e merecedora da compreensão das formas 6 James Clifford (1988) oferece uma revisão crítica da
alheias de produção de sentido. Essa perspectiva re- polêmica exposição Primitivism in the 20th Century
Art. Desde então, outras tantas exposições, como a
vela, em suma, que a compreensão tradutória das re-
Animism (Antuérpia, 2010), a Histoires de Voir (Fon-
des de categorias conceituais nativas e suas respectivas
dation Cartier, Paris, 2012) e a Documenta 13, têm
expressões não tem propriamente uma solução final, retomado as discussões sobre a relação entre antropo-
não se detém nesta ou naquela generalização teórica logia, artes visuais e artes não ocidentais. O crítico e
(Quimeras capazes de produzir e movimentar o co- curador brasileiro Moacir dos Anjos (2005) faz uma
nhecimento tradicional? Índices passíveis de desenca- breve síntese de algumas dessas exposições, que mere-
dear abduções e suas respectivas relações sociais? Sim, ceriam um estudo à parte, dedicado, também, a ou-
talvez, mas o que mais?). O problema demanda, antes, tros projetos brasileiros, como as exposições Histórias
um exercício perpétuo de pensamento, de variação ou Mestiças (2014), Panorama da Arte Contemporânea
de ensaio em torno das ramificações produzidas pe- Brasileira (2015) e 32a Bienal de São Paulo (2016).
los acoplamentos de complexidades, cujos caminhos 7 Neste artigo, são minhas todas as traduções de citações
são ainda bastante desconhecidos pela etnologia. O que constem em língua estrangeira na bibliografia.
conhecimento etnográfico seria, então, aquele que se 8 A noção de Kunstwöllen, cuja tradução é disputada
produz a partir de um corpo, e não de um ponto de por especialistas (ver por exemplo o estudo introdu-
vista distanciado, superior ou privilegiado. Um corpo tório de Otto Pächt a uma edição francesa de Riegl
14  REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 32 N° 93

[1978]), se mostrava influente no clássico Primitive BIBLIOGRAFIA


art de Franz Boas, de 1927, para quem a vontade de
produzir um resultado estético era fundamental para a ALMEIDA, Mauro William Barbosa de. (2013),
compreensão da estabilidade formal e do estilo (Boas
“Caipora e outros conflitos ontológicos”. R@u,
([1927] 1955, pp. 11-12).
5 (1): 7-28.
9 Diferentes exemplos de abordagens marcadas pela se- BARCELOS NETO, Aristóteles. (2008), “Choses
miologia podem ser encontrados em Munn (1973),
(in)visibles et (im)périssables: temporalité et
Geertz (1980, 1983), em diversos artigos reunidos em
Forge (1973), em Vidal (1992) e Ribeiro (1987), en-
materialité des objets rituels dans les Andes et
tre outros. A semiologia como paradigma dominante en Amazonie”. Gradhiva, 8: 112-129.
para o estudo da arte e da imagem tem sido questio- BELTING, Hans. ([2001] 2011), An anthropolo-
nada não apenas por Gell, mas por outros tantos auto- gy of images. Princeton, Princeton University
res como Debray (1992), Cauquelin (2007), Belting Press.
(2011) e Mitchell (1994). BOAS, Franz. ([1927] 1955), Primitive art. Nova
10 Semelhante estrutura argumentativa, aliás, foi mui- York, Dover Publications.
to bem desmontada por Latour (1991) e Viveiros de BOURRIAUD, Nicolas. ([1998] 2009), Estética
Castro (2002), que encaminham alternativas episte- relacional. São Paulo, Martins Fontes.
mológicas para as soluções tradicionais do relativismo BRAUN, Barbara. (1993), Pre-Columbian art and
de base universalista, marcados pela pressuposição de the post-Columbian world: ancient American
uma natureza ou realidade para a qual converge a
sources of modern art. Nova York, Harry N.
multiplicidade de culturas ou de crenças.
Abrams Publishing.
11 É importante atentar para o uso heurístico da noção
CAUQUELIN, Anne. (2007), Les théories de l’art.
de “teoria” em Strathern, como se percebe na seguinte
Paris, PUF.
passagem: “Ainda assim, o que andei dizendo real-
mente indica uma teoria visual indígena? Quais se- CESARINO, Pedro de Niemeyer. (2011), Oniska:
riam os seus elementos? Eles não precisam, evidente- poética do xamanismo na Amazônia. São Paulo,
mente, de uma teoria [...]. Na realidade, a questão é Perspectiva/Fapesp.
uma maneira de formular o que o antropólogo euroa- _______. (2014), “Ontological conflicts and sha-
mericano precisa construir como uma teoria para des- manistic speculations in Davi Kopenawa’s The
crever esses artefatos, assim servindo de contraponto falling sky”. HAU – Journal of Ethnographic
para o que ele ou ela, não fosse por isto, poderia tomar Theory, 4: 289-295.
por pressuposto. [...] O que estou atribuindo às prá- CLIFFORD, James. (1988), The predicament
ticas da Papua Nova Guiné integra uma tentativa de
of culture. Cambridge, Harvard University
me fazer (de nos fazer) ‘ver’ de maneira diferente. [...]
Press.
Em outras palavras [...]. não se trata exatamente de
dizer que o mundo construído por essas conferências CHAPMAN, William. (1985), “Arranging ethno-
é o mundo que os Melanésios veem (esses artefatos logy: A. H. L. F. Pitt-Rivers and the typolo-
não são dedicados para a descrição de ‘um mundo’). gical tradition”, in G. Stocking Jr. (org.), Ob-
É que, sem essa construção, ‘nosso’ mundo (no qual jects and others: essays on museums and material
nós estamos implicados) será tudo o que ‘nós’ vemos” culture. Madison, The University of Winscosin
(2013, p. 145) Press, pp. 15-49.
12 “Coisa” é o termo que emprego na falta de outro me- COOTE, Jeremy & SHELTON, Anthony (eds.).
lhor, pois, em marubo, awe não se refere exatamente (1992), Anthropology, art and aesthetics.
ao problema filosófico das substâncias ou “coisas lá Oxford, Clarendon Press.
fora” (objectus, algo posto diante do sujeito) mas sim COSTA, Luiz Antonio Lino da Silva. (2010), “The
ao conjunto de (coisas?) acopladas à pessoa (noken Kanamari body-owner: predation and feeding
awe, “as nossas coisas”, portanto, em uma tradução
in western Amazonia”. Journal de la Société des
aproximada) e que a define como configuração proto-
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RESUMOS / ABSTRACTS / RESUMÉS  17

CONFLITOS DE PRESSUPOSTOS CONFLICTS OF CONFLITS D’HYPOTHÈSES EN


NA ANTROPOLOGIA DA ARTE: PRESUPPOSITIONS IN THE ANTHROPOLOGIE DE L’ART:
EM TORNO DE PESSOAS, COISAS ANTHROPOLOGY OF ART: AUTOUR DES PERSONNES, DES
E IMAGENS PERSONS, THINGS AND IMAGES CHOSES ET DES IMAGES

Pedro Cesarino Pedro Cesarino Pedro Cesarino

Palavras-chave: Arte; Antropologia; Ob- Keywords: Art; Anthropology; Object; Mots clés: Art; Anthropologie; Objet;
jeto; Imagem; Comparação. Image; Comparison. Image; Comparaison.

O artigo propõe uma revisão crítica de es- This article proposes a critical revision of L’article propose une révision critique
tudos antropológicos da arte e de estudos the anthropological studies on art as well d’études anthropologiques de l’art et
selecionados de arte relacionados à antro- as of selected art studies related to anthro- d’études sélectionnées de l’art liées à
pologia. Recuperando aspectos fundamen- pology. Recovering key aspects of Western l’anthropologie. Tout en récupérant des
tais dos modos de compreensão e categori- categorizations of non-western expressive aspects fondamentaux des modes de
zação de formas expressivas não ocidentais, forms, this article maps the persistence of compréhension et de classification des
busca-se apontar para a persistência de ontological presuppositions (such as the formes expressives non-occidentales,
determinados pressupostos ontológicos notion of object and of the individual nous voulons indiquer la persistance de
(tais como a centralidade do objeto e do creator) that hinders the understanding certaines hypothèses ontologiques (telles
indivíduo criador) e seus entraves para o of ethnographic complexities. This study que la centralité de l’objet et de l’individu
entendimento de complexidades etnográ- also aims to offer alternatives to a reflec- créateur) et de ces obstacles à la compré-
ficas não modernas. Pretende-se, por fim, tion on other people’s expressive forms hension des complexités ethnographiques
oferecer alternativas para uma reflexão so- that goes beyond the notion of art, taking non modernes. Nous tentons également
bre formas expressivas diversas que escape into account recent anthropological re- de proposer des alternatives pour une ré-
dos entraves gerados pela categoria “arte”, flections on the problems of comparison flexion sur les diverses formes expressives
valendo-se de perspectivas recentes sobre o and translation. qui s’échappent des obstacles générés par
problema da comparação e da tradução na la catégorie « art », à l’aide de perspectives
antropologia. récentes sur le problème de la comparai-
son et de la traduction en anthropologie.

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