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LEITURA – ASPECTOS E ABORDAGENS1

Maria Inez Matoso Silveira (UFAL)

Resumo – A leitura é, ao mesmo tempo, uma habilidade mental e uma atividade social. Além disso, ela pode ser
estudada sob vários outros aspectos que a caracterizam e que interferem no ato de ler e nas práticas sociais da
leitura. Neste artigo, a autora apresenta alguns desses aspectos, abordando, de forma sucinta, os fatores políticos e
sociais, culturais, psicológicos, ideológicos, semióticos, cognitivos e sociocognitivos, pedagógicos, históricos e
etnográficos que estão na base dessa complexa atividade. A autora conclui afirmando que todos os profissionais
cujo trabalho envolve a leitura e suas práticas (professores, jornalistas, bibliotecários, agentes culturais em geral),
devem procurar entender os diversos fatores que estão imbricados na leitura e suas práticas a fim de que possam
contribuir para a democratização da leitura na nossa sociedade.

Introdução

Num sentido muito amplo, a leitura é uma atividade extremamente complexa que se
desenvolve nos seres humanos desde que ele toma contato com o mundo que o cerca. Nossas
primeiras percepções e aprendizagens só ocorrem porque para viver e se desenvolver biológica e
socialmente, o ser humano tem que perceber, ler e compreender o que está ao seu redor, não
importando, aqui, a qualidade ou intensidade dessas “leituras”.
A compreensão do que percebemos através dos nossos sentidos está associada à
atribuição de significados que atribuímos a essas informações. Esse fato aparentemente óbvio
está na base da leitura. Mesmo em se tratando da leitura do texto escrito, não devemos nos
esquecer daquela célebre frase de Paulo Freire: “a leitura do mundo precede a leitura da palavra”.
Com efeito, os sentidos atribuídos ao que lemos depende dos nossos conhecimentos prévios.
Em se tratando especificamente do texto escrito, a leitura é uma habilidade que se
desenvolve com a prática, pois o domínio dessa habilidade passa pelo domínio de procedimentos
sucessivos (ou processamentos) que se iniciam com o conhecimento do código lingüístico escrito
e de certas convenções relativas à língua escrita e aos textos e seus usos socioculturais que se
fazem deles em determinada comunidade.
Mas o domínio dos processamentos, que são ligados aos aspectos internos,
mentalísticos, cognitivos do leitor ainda não é suficiente para se chegar à chamada proficiência
na leitura, embora esta seja uma etapa necessária e mesmo imprescindível para a efetivação
dessa habilidade. Assim sendo, muitos outros fatores externos, como os de natureza social,
cultural e política estão envolvidos no ato de ler, no sentido do desenvolvimento da leitura
proficiente e significativa.

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Este artigo foi publicado, originalmente, como capítulo do livro O Ensino da Língua Portuguesa nos Anos Iniciais
– Eventos e Práticas de Letramento, organizado por M. Auxiliadora S. Cavalcante e Marinaide L. Q. Freitas.
EDUFAL, 2008. A versão aqui apresentada foi um pouco ampliada.
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Sendo uma atividade extremamente complexa, a leitura como objeto de estudo e
reflexão pode ser apreciada, estudada e pesquisada sob vários aspectos e abordagens. Dentre os
vários aspectos (econômico, cultural, ideológico, etc.), um dos mais importantes é, sem dúvida, o
aspecto afetivo. Hoje em dia, discute-se muito a contribuição da família e da escola para o
desenvolvimento do chamado gosto pela leitura, ou do tão desejado prazer de ler. Com efeito,
sendo esse componente afetivo algo muito forte e decisivo, ele merece toda a atenção. Mas não
nos esqueçamos de que outros aspectos são também dignos de atenção.
Convém, também, lembrar que esses aspectos e abordagens são indubitavelmente
interdependentes, com interrelacionamentos até, às vezes, decisivos. Por exemplo, o fato de não
se gostar de ler pode estar ligado ao fato de não se ter uma fluência mínima na leitura, ou seja, ao
fato de se ter dificuldade de ler, até mesmo na decodificação. E isso pode estar relacionado ao
aspecto cognitivo ou procedimental do ato de ler. Noutras palavras, quando não se tem um
domínio de procedimentos cognitivos e estratégicos para efetivar o ato de ler, esta atividade se
transforma em algo extremamente penoso. Daí, evidentemente, passa a ser algo que traz mais
desprazer do que prazer, obviamente. Outro relacionamento importante é, por exemplo, o fato de
se gostar de ler e não se ter acesso a materiais de leitura, por várias razões (falta de recursos
financeiros, falta de bibliotecas, proibições, falta de condições físicas, de tempo, etc.).
A seguir, apresentamos a discussão sucinta dos vários aspectos que estão envolvidos
no estudo da leitura e que consideramos relevantes, além, naturalmente, do aspecto afetivo. A
bem da verdade, cada um desses aspectos podem ser considerados como verdadeiras abordagens
/para o estudo e a pesquisa sobre a leitura do texto escrito.

1. Aspectos políticos e sociais

Podem ser relacionados às políticas públicas para o acesso a materiais de leitura, à


criação e manutenção de bibliotecas públicas e escolares, de órgãos oficiais e não-
governamentais, além das campanhas de alfabetização, do financiamento e distribuição de livros
didáticos e paradidáticos, de incentivos à publicação e barateamento desses materiais, etc.
A questão da leitura e seu domínio, a distribuição das oportunidades para o acesso a
níveis de proficiência compatíveis ao mundo do trabalho e da academia tem sido de interesse dos
governos, principalmente dos países emergentes, pois quanto mais letrado um povo, melhores
índices sociais este povo apresenta. Esse testemunho pode ser verificado através do fato de os
países mais desenvolvidos serem também os que apresentam os melhores níveis de letramento do
seu povo. Sendo uma prática social, a leitura muito tem a contribuir para o letramento e a
cidadania.
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Os aspectos sócio-políticos também têm a ver com a questão da censura, das políticas
editoriais, as promoções de eventos e de agentes produtores de materiais de leitura, de
associações promotoras de escritores, jornalistas, bibliotecários e demais profissionais ligados à
leitura e seus usos sociais.
Há de se considerar, também, que os aspectos sócio-políticos estão imbricados na
questão econômica. Não há como negar que os portadores ou suportes textuais (livro, revista,
jornal, computador, etc.) são objetos de consumo, são mercadorias, e isso implica necessidade de
se ter condição financeira para a aquisição desses itens. Assim sendo, quanto maior o poder
aquisitivo, maiores as possibilidades de as pessoas terem acesso a esses bens de consumo.

2. Aspectos culturais

Têm a ver com a valorização da leitura como um bem cultural que deve ser estendido
a todos. Tem a ver também com o professor como agente promotor de leitura como prazer, como
instrumento e como contributo para a formação do caráter, da personalidade e da identidade
cultural dos educandos. A transmissão e a preservação cultural têm sido realizadas,
principalmente, através da língua escrita. O acesso à leitura dos textos que asseguram a
identidade cultural de um povo é uma obrigação dos intelectuais e agentes culturais para com as
novas gerações.

3. Aspectos psicológicos, físicos e situacionais

Estão diretamente relacionados às condições físicas e aos estados emocionais tanto


negativos (barulho, nervosismo, luz insuficiente, pressa, sono, ansiedade, aborrecimento,
desconforto, cansaço, situação de estresse, esforço penoso e sofrido), quanto a fatores positivos
(necessidade, motivação, prazer, curiosidade, incentivo, busca). Sem dúvida, esses fatores afetam
de uma maneira ou de outra o ato de ler. Todos nós conhecemos ou já vivenciamos situações
desse tipo.
Existem, entretanto, dois grandes fatores de ordem psicológica ou comportamental
que são decisivos para a efetivação da leitura: a motivação e a concentração. Sem essas duas
condições, o indivíduo não consegue se engajar no ato de ler e realizar na sua mente os
processamentos necessários à decodificação e ao entendimento do que está lendo. Há muitas
pesquisas que atribuem o fracasso e a deficiência na leitura exatamente à falta de motivação (e de
incentivação, obviamente) e à distração, ao déficit de atenção, à hiperatividade física e mental.

4. Aspectos ideológicos
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Sendo uma poderosa forma de conhecimento e de desenvolvimento de consciência


crítica e, por outro lado, uma via muito eficiente para a manipulação de corações e mentes, tanto
para o lado positivo, bem intencionado, como para fins excusos, a leitura e sua prática está muito
relacionada aos aspectos ideológicos e aos mecanismos, geralmente sutis, de poder e opressão.
Aliás, essa propriedade já está nos próprios usos da línguagem. A leitura da palavra, através dos
vários gêneros textuais que circulam em vários suportes (livros, jornais, revistas, panfletos,
mídias impressas e eletrônicas em geral) potencializa esses aspectos ideológicos que permeiam
as práticas e interações sociais.

5. Aspectos históricos e etnográficos

A história e a evolução da leitura está intrinsecamente ligada à história da escrita,


seus usos e suas funções sociais desde os primórdios da civilização e ao longo dos séculos.
Convém lembrar que a escrita foi inventada há mais ou menos 5.000 anos e serviu
primeiramente para ajudar os seres humanos na tarefa de registro e documentação da produção
agrícola, dos eventos religiosos, fatos e transações sociais na vida da comunidade.
Evidentemente, o acesso à aprendizagem da leitura, ou seja, à alfabetização, sempre teve um
caráter elitista: só aos filhos dos nobres e abastados é que tinham esse direito. Efetivamente, a
leitura, ao longo dos séculos, sempre foi revestida de uma aura de sacralidade e,
consequentemente, de atrelamento às várias formas de poder e controle social, político e
religioso.
Foi a partir da Revolução Francesa, nos finais do século XVIII, com o início da
democratização da educação escolar, que a leitura passou a ser mais disseminada nos países
desenvolvidos. Hoje em dia, apesar de ainda haver muitas pessoas analfabetas no mundo e no
nosso país, deve-se reconhecer que as sociedades modernas são extremamente grafocêntricas, em
que a língua escrita e a leitura mediam e organizam inúmeras atividades produtivas,
comunicacionais, lúdicas, científicas, artísticas e humanísticas. Dentre essas atividades,
destaque-se o poder das mídias impressas e também digitais. Esses usos da leitura e da escrita
praticamente conduzem as crenças, as opiniões, os valores e, consequentemente, as visões e os
estilos de vida nas sociedades atuais.
Do ponto de vista sócio-etnográfico, ou seja, dos usos e funções sociais da leitura no
mundo moderno, pelo menos no mundo ocidental, pode-se dizer que a leitura realiza funções
como ler para deleite ou fruição; auto-ajuda, instrumentalidade, entretenimento, reflexão
filosófica, atividade acadêmico-científica e inúmeras outras.
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6. Aspectos semióticos

A leitura, no sentido lato, se efetiva a partir do momento em que o leitor decodifica


informações sensoriais, na maioria das vezes, informações visuais. Mas para que a leitura venha
a ser significativa, essas informações visuais (traços, letras, palavras, figuras, imagens, etc.)
devem fazer sentido para o leitor. Aqui entram os processos semióticos de sentido e significação
se realizam através de signos, símbolos, ícones, indícios e vários tipos de representação da
realidade que são carregados de significados e que dão sentido à cultura e à convivência social.
Diante disso, há de se considerar a leitura da imagem e de outras modalidades de
comunicação que circulam à nossa volta, como o som, o movimento, as cores e todas as formas
pictóricas e imagéticas. Aliás, hoje em dia, o uso das mídias eletrônicas (a televisão, o cinema, o
computador) utilizam textos que são em grande parte, multimodais; ou seja, cada vez mais, eles
veiculam várias modalidades de expressão ao mesmo tempo.

7. Aspectos cognitivos e sociocognitivos

A leitura está diretamente relacionada à cognição, ao conhecimento, sua gênese e seu


desenvolvimento. Assim, os aspectos cognitivos relacionam-se aos elementos que constituem os
processamentos cognitivos e metacognitivos que ocorrem na mente quando estamos lendo um
texto. A esse respeito, muito se tem escrito, a exemplo de Kato (1985), Kleiman (1989a, 1989b)
e Silveira (2005). Entretanto, os estudos das relações entre leitura e cognição humana ainda não
são bem disseminados entre os professores e educadores no nosso país.
Os aspectos cognitivos envolvem elementos como o sentido da visão e a percepção
visual; os vários tipos de memória (de curto, médio e longo prazo), o conhecimento do código
linguístico e a ativação do conhecimento prévio do leitor. Nesse sentido, a leitura é uma
atividade que demanda do leitor uma série de processos que geram estratégias que buscam a
compreensão, como se o leitor estivesse empenhado numa solução de problema.
Geralmente, essas estratégias são inconscientes e se desenvolvem com a prática da
leitura, podendo ser entendidas como operações mentais que realizamos sempre que buscamos a
compreensão do texto. A inferência é uma das estratégias de leitura mais importantes.
Existem dois processamentos estratégicos básicos que são usados pelo leitor
proficiente: um processo ascendente, que parte da informação visual (decodificação) para daí
obter-se o significado; e o processamento descendente, que parte do conhecimento prévio e
busca confirmação na informação visual.
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Quando se diz que durante o ato de ler o indivíduo aciona seus conhecimentos
prévios (conhecimento de mundo, da cultura, da língua, dos textos, das práticas discursivas e
seus diversos gêneros), convém frisar que esses conhecimentos são construídos socialmente.
Desse modo, os aspectos cognitivos podem ser caracterizados como aspectos sociocognitivos.

8. Aspectos pedagógicos e instrucionais

Tradicionalmente, a escola tem sido a agência institucionalmente legitimada para


promover o ensino da leitura. A etapa da escolarização em que ocorre o ensino e a aprendizagem
da leitura é chamada de alfabetização, que é, antes de tudo, a aprendizagem e a aquisição dos
aspectos técnicos da leitura, em que o indivíduo precisa aprender as regularidades e as anomalias
dos sistemas alfabético, silábico e ortográfico e da representação grafofônica (consciência
fonológica) e desenvolver algumas habilidades básicas relativas às estratégias cognitivas que
envolvem, além do conhecimento e reconhecimento tácito e automático das letras e palavras,
algumas habilidades metacognitivas imprescindíveis à leitura, conhecidas como as consciências
morfológica e sintática e as demais convenções da língua escrita.
Ao lado e além do processo da alfabetização, o indivíduo deve também desenvolver-
se em direção ao letramento, que pode ser entendido como a capacidade de uso social da língua
escrita nos diversos contextos da interação humana. A noção de letramento está intrinsecamente
ligada à atual noção de gêneros textuais/discursivos: quanto mais familiarizado com os gêneros
textuais de uso mais corrente nas esferas sociais, mais letrado se torna o indivíduo.
Ao longo dos tempos, o ensino da leitura tem sido influenciado pelas diversas
concepções de linguagem, de leitura e de aprendizagem que têm aflorado nas ciências da
linguagem, na psicologia cognitiva, na psicolingüística, na pedagogia, e na sociologia
educacional. No momento atual, vivemos alguns conflitos de abordagem de ensino de
alfabetização em que se discutem importantes questões relativas aos métodos de alfabetização e,
principalmente, a uma tendência defendida pela abordagem construtivista em que verifica a
chamada “desmetodização” das aprendizagens iniciais da língua escrita.
Convém lembrar, efetivamente, que os diversos profissionais que têm,
tradicionalmente, se envolvido com a alfabetização e o desenvolvimento da leitura adotam, de
alguma forma, visões diversificadas sobre a questão: os psicólogos e psicolinguistas se
preocupam com o processamento cognitivo da leitura; os pedagogos e sociólogos da educação se
preocupam com os aspectos políticos e com os entornos sociais e ambientais da alfabetização; os
linguistas defendem o ensino explícito do funcionamento do sistema da língua como prioridade e
os professores se preocupam com a questão metodológica da alfabetização. Isso mostra a
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complexidade de tal campo de estudos, para o qual, sensatamente, deve-se adotar uma atitude de
se ponderar e assumir, de forma complementar e não excludente, as principais tendências e
visões existentes.

Considerações Finais

A leitura pode ser um prazer individual, uma necessidade pessoal, uma forma de
inserção social e cultural e um instrumento extremamente útil para o cumprimento dos inúmeros
papéis sociais que exercemos no nosso dia-a-dia, principalmente na vida moderna, em que as
atividades sociais, principalmente as escolares, acadêmicas e profissionais são muito valorizadas.
E é desejável que ela assim seja encarada por todos que a ela devem ter acesso. Nesse sentido,
numa sociedade centrada na língua escrita, uma das grandes violências que se praticam é a
negação do direito de aprender a ler e de ser leitor minimamente proficiente. Evidentemente,
para que possamos trabalhar com mais segurança e mais propriedade, todos nós, profissionais da
palavra, principalmente os professores e educadores, devemos envidar esforços no sentido de
desvendar e entender os vários aspectos da leitura acima discutidos (e outros, obviamente) para
que possamos trabalhar de forma mais eficaz nas diversas instâncias em que a leitura se torna
uma prática extremamente decisiva, de capital importância, como ocorre no processo de
escolarização nos seus diversos níveis, na academia, na vida profissional, no mundo do trabalho,
além de ser um fator importante de formação e realização pessoal.

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REFERÊNCIAS

KATO, Mary A. O Aprendizado da Leitura. São Paulo, Martins Fontes, 1985.

KLEIMAN, Angela B. Leitura - Ensino e Pesquisa. Campinas, Pontes, 1989a.

KEIMAN, Ângela B. Texto e Leitor - Aspectos cognitivos da leitura. Campinas, Pontes,


1989b

SILVEIRA, M. Inez Matoso. Modelos Teóricos e Estratégias de Leitura – suas implicações


no ensino. Maceió, EdUFAL, 2005.

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