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MANGUEL, Alberto. Leitura de Imagens. In: Uma História da Leitura.

São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.

Ricardo Menezes Barbosa

Introdução

Uma enciclopédia que refere-se a um mundo imaginário, escrita num alfabeto absurdo
e construída a partir de palavras e imagens que não remontam a nossa experiência ordinária.
Tal caracterização poderia ser utilizada para descrever uma enciclopédia francesa medieval,
por exemplo, repleta de imagens da ordem do fantástico e de uma escrita que, possivelmente,
precisaríamos recorrer a métodos especiais para garantir sua compreensão, como a
paleografia. Contudo, ao fazer descrição semelhante no início do capítulo A Leitura de
Imagens, Manguel refere-se, em verdade, ao Codex Seraphinianus, de Luigi Serafini, obra
muito mais contemporânea, a propósito. Este exemplo radical de obra que desafia os limites
da compreensão ao pretender uma leitura sem a criação ou a possessão de um “idioma”
comum pelo espectador põe, por outro lado, uma questão mais profunda: o que é possível
“ler” quando não sabemos ler?
É provável que nos vendo privados do “idioma comum”, impossibilitados de utilizar a
linguagem escrita, recorrêssemos a “leitura” das imagens. Quando criança era o que fazia-se
com os livros infantis, afinal, e qualquer turista que vá a China sem falar o idioma sabe que
está sujeito ao ridículo das mímicas quando as necessidades imperarem. Aprender a “ler”
com as imagens nos ensina, portanto, que muitas delas significam algo comum para muitas
pessoas, algumas passam até a designar comunidades, e é nesse sentido justamente que elas
possibilitam serem lidas. Talvez um exemplo concretize de forma mais clara o que o autor
pretende dizer: o destino das imagens cristãs. Sabemos que atualmente, ainda que o
cristianismo tenha relevância religiosa e histórica, seu conteúdo não se reproduz no cotidiano
com o mesmo impacto que reproduzia-se na idade média, por exemplo. Nossa cultura
secularizada retirou quase na integridade os conteúdos que davam a religião cristã uma
realidade narrativa totalizante, exemplo disso, muitos quadros que temos como obras primas
recontam histórias bíblicas, e apesar de sentirmos sua dimensão religiosa, eles nos aparecem
sem o destino pedagógico esperado pelo autor. Ao vermos uma mulher que corta a cabeça de
um homem sem ares de arrependimento ou horror, como em Judite e Holofernes de
Caravaggio, é provável que observemos, ao menos de imediato, sob uma perspectiva menos
religiosa do que a censura da época pretendia impor ao pintor, e, por fim, uma apreciação
estética da obra pode ser feita sem mesmo recorrer a seu conteúdo religioso.
Tais exemplos servem, sobretudo, para evidenciar o caráter singular de uma leitura
por imagens, e evidentemente no que difere-se de uma leitura através da escrita. A imagem
chega em lugares em que a letra não chega, isto é, a plasticidade das imagens permite uma
recondução mais livre de seu sentido pelo espectador em decorrência de um desprendimento
singular daquilo que nos é exibido do que é seu significado simbólico. Poderíamos não saber
ler na língua de Serafini, por exemplo, mas podemos criar toda uma narrativa através de suas
imagens. Contudo, tais concepções sobre a imagem nos são muito mais contemporâneas a
nível histórico, tendo ela passado por diversas ressignificações acerca de seus atributos e
funções. Buscarei nos próximos tópicos, a partir da reconstituição de Manguel, explicitar
algumas caracterizações que a imagem teve no decorrer da história.

A imagem doutrinária

Já é difundida a problemática que as religiões, principalmente monoteístas,


enfrentaram e enfrentam com relação as imagens. Nem o cristianismo nem o islamismo, por
exemplo, tiveram uma relação harmoniosa com as pretensões de representar artisticamente
seus profetas, anjos, santos, etc. Contudo, ao afirmarem-se enquanto religiões que pretendiam
difusão universal de seus conceitos e práticas, convertendo outrora pagãos ou guerreando
contra os infiéis, elas precisaram doutrina-los deparando-se com a realidade de que a maioria
desse contingente de convertidos não sabia ler nem escrever.
No século V d.C. São Nilo já buscava solucionar tal problemática ao perceber nas
imagens uma potência pedagógica ainda não tão explorada pelo cristianismo (vale lembrar
que todo o conhecido conflito acerca da iconoclastia na igreja cristã do oriente só ocorreria
dois séculos depois). Segundo o relato trazido no capítulo em questão, ao olhar para a
decoração eclesiástica de sua capela, expectando que ela pudesse servir como “livros para os
iletrados”, São Nilo também fazia uma espécie de julgamento estético-doutrinário ao
recomendar a representação estritamente de temas ligados ao velho e ao novo testamento,
deixando implícito, portanto, duas vias no que diz respeito à função das imagens no contexto
explicitado: primeiramente, elas não seriam meros adornos, isto é, não pretendiam
simplesmente com sua presença embelezar ou enfatizar o discurso escrito; por outro lado, a
imagem tornava-se uma dimensão portadora dos conceitos centrais do cristianismo, seja do
amor, da piedade, do apocalipse, etc. A resolução de São Nilo torna-se, por fim, coerente
dentro dos desafios cristãos no que diz respeito a conversão ou doutrinação dos fiéis partindo,
sobretudo, da noção de que a leitura das imagens teria valor similar a leitura de um texto
escrito, sendo a imagem pensada essencialmente enquanto veículo de transmissão dos
ensinamentos documentais.

A duplicidade da Imagem

Existiria, contudo, uma outra forma de mobilização da imagem que estaria além dos
controles e expectativas dos epígonos da igreja católica. Como exemplo, podemos citar duas
culturas que agiram conforme essa, por assim dizer, atitude alternativa. Os judeus,
primeiramente, já que impossibilitados, segundo código de Moisés, de criar imagens
correspondentes “com o céu e a terra”, optavam em representar de forma anímica, assim
dentro dos conformes da lei, suas entidades sagradas. Contudo, imaginemos que um escultor
deseja recriar Noé e escolha pôr no lugar de seu rosto uma cabeça de tartaruga.
Evidentemente, esse imediato estranhamento nos faria perguntar a motivação de tal escolha,
ou seja, “por qual motivo foi escolhida uma tartaruga e não um leão, por exemplo?”.
Poderíamos especular, entretanto, que a tartaruga teria qualidades similares ao personagem
em questão, como a longevidade, a força, a resiliência, etc. Mas, para além da atribuição de
significado que o animal dá a Noé, o animal mesmo passa a incorporar em seu sentido
próprio as histórias de Noé; algo similar ocorre em reis e rainhas que utilizam-se de alcunhas
como no caso de Richard, the lionheart. O hieróglifo dos egípcios possuía funcionamento
semelhante: ao utilizar-se de determinado animal (ou símbolo) para representar determinado
deus dar-se-ia não só a Ideia uma presença terrena, mas ao próprio terreno um lugar na Ideia.
Dessa forma, esse caráter duplo da imagem permite alcançar uma noção ainda não
antevista pela maioria das autoridades eclesiásticas medievais: transformando-se através do
procedimento descrito em símbolo, a particularidade, representada pelo animal, ganha maior
autonomia diante da unilateralidade de sua conceitualização imediata, isto é, ao assumir uma
forma relacional com outras entidades ele passa a ganhar sentidos diversos, passando mesmo
a assumir dimensões mais abstratas, ainda que a princípio seja um ente inequivocamente
terreno. Do contrário, por quê certos símbolos como a criança, o cordeiro, o corvo, por
exemplo, haveriam de aparecer já de imediato tão carregados de significado que não
precisaríamos remetê-los a um exame tão aprofundado para descobrir seus significados sem
antes sentirmos as sensações justamente provocadas pelas Ideias que esses entes terrenos
significam?
Ainda que não inteiramente ciente das possibilidades suscitadas pela imagem ao
assumir a noção de símbolo, em certo sentido, o cristianismo contribuiu para sua formação.
Em seu movimento circular, subjaz no símbolo um trânsito entre a parte e o todo, o velho e o
novo, que já era uma expectativa estética implícita aos cristãos quando desejavam representar
em suas obras de arte uma narrativa totalizante que pudesse unir o Antigo e o Novo
Testamento. Enquanto trajeto que há de se cumprir num fim, sendo este o dia do julgamento
final, é preciso que os eventos sem arrumados de forma a demonstrar sua condução imanente
à finalidade última, que evidentemente já estava posta desde o começo. Nas palavras de
Mateus: “Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor falou pelo profeta”.
Por ser capaz de erigir uma totalidade que permita um intercâmbio entre as partes, a
noção de símbolo poderia ser capaz de dar maior liberdade a representação dos objetos, mas
também aos intentos religiosos e políticos de unificação dos dois testamentos sagrados. A
perspectiva dogmática da imagem, como discutida no tópico anterior, apesar de ser uma
doutrina estética eclesiástica, punha-se inconscientemente contra seus próprios objetivos.
Seria possível dizer, por fim, que a autonomia do artista e suas representações imagéticas
poderiam realizar de forma mais qualificada, ao desautorizar a ortodoxia dos estetas
católicos, suas expectativas mais institucionais. Noutro sentido, é como se os artistas em sua
inovação pudessem ser mais cristãos do que os próprios papas.

Conclusão. Imagem e palavra: o “marginal” descoberto por Lessing

No século XVIII, trabalhando na biblioteca de um nobre, o escritor alemão Lessing


descobre nas margens de uma bíblia uma anotação que parecia indicar, em latim, que ela
destinava-se aos pobres. Apesar de Lessing logo ter percebido que um camponês daqueles
tempos jamais poderia adquirir livro de tamanho capricho, enveredou por uma reflexão mais
profunda ao questionar-se por que, ainda assim, ela era dedicada aos pobres. Formada em sua
integridade de imagens que ilustravam eventos descritos na bíblia, o escritor percebe a
semelhança entre a bíblia dos pobres e os vitrais góticos que também aparentavam ter o
mesmo objetivo, isto é, disseminar por outra via que não a escrita os ensinamentos cristãos. A
pergunta mais importante a se fazer, contudo, era, primeiramente “para quê transpor os vitrais
para um livro”, o que consequentemente leva ao sagaz questionamento que ele não deixou de
se fazer: “qual seria, por fim, a diferença entre um aprendizado por imagens e um
aprendizado pela escrita?”
É evidente que a bíblia, enquanto livro escrito nos limites de determinado gênero,
possuía certas características que suscitavam um tipo de leitura. Permitia certa
descontinuidade ao leitor, isto é, reflexões demoradas sobre determinadas frases ou mesmo
leituras mais rápidas como consequência de seu caráter mais fragmentário que um gênero
moderno como o romance, por exemplo. A leitura bíblica e mesmo seus mais distintos
interpretes não podiam oferecer ao leitor, portanto, algo que naqueles tempos a Imagem já
começava a poder oferecer: uma visão imediata da Ideia. A leitura pressupõe um
descompasso, um retorno constante ao texto, um caminho parcelar rumo a uma compreensão
qualificada. As imagens, por outro lado, ofereciam-se totalmente. A história que em um livro
seria contada em muitas páginas poderia aparecer numa representação pictórica como um
aglomerado da Ideia, numa rápida visão, bastando ao leitor captar aquele sentido
reconstituindo o movimento da obra.
Era possível a um camponês, portanto, captar o que dizia o cristianismo sobre as
hierarquias do céu e da terra desconhecendo os grandes representantes de sua filosofia, por
exemplo. Mais importante que isso, a imagem, que podia oferecer-se sem a necessidade de
um mediador, como o padre que lia para os fiéis, podia ser recomposta através da atribuição
dum sentido próprio advindo das experiências daquelas pessoas. Assim, vendo Jesus com as
vestes nas mesmas situações das que usavam era possível não só identificar-se com esse
personagem, mas reconfigurar autonomamente a narrativa pictórica a partir da ideia
subjacente de que a humildade, os votos de pobreza, estão mais propensos a participar do
reino de Deus, sendo eles próprios esses humildes e estrupidados.
O cristianismo em suas pretensões universais, evidentemente, objetivava disseminar
suas doutrinas entre todos. É claro que precisava lidar com uma maioria mundial de iletrados,
e desde que percebeu nas imagens uma possibilidade de levar a muitos suas ideias,
inconscientemente possibilitou que as próprias ideias deslocassem-se a muitos. O que fica
implícito nas considerações de Manguel sobre esta pequena história das funções da imagem e
de seus contextos sociais, é que o desenvolvimento da autonomia estética, seja na sua
sensibilidade pelo espectador ou pelo realizador, caminhava junto à uma desvinculação da
figura do mediador ou do pensamento doutrinário para as reflexões e experiências estéticas
da população como um todo. Isto é, talvez seja possível dizer que refletindo sobre a diferença
entre a leitura de imagens e a leitura de textos escritos, Lessing percebeu a relação entre
autonomia estética e a possibilidade aí imanente de autonomia política. Percebeu também
que, por fim, a leitura desses marginais tinha sua singularidade, ou seja, não sabendo ler pelas
palavras e aprendendo a ler pelas imagens puderam levar a cabo enfim o objetivo católico de
juntar o antigo e o novo testamento: analfabetos, conseguiam por fim realizar uma narrativa
totalizante.

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