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Folha de S.

Paulo - Lasch ataca elites com sensacionalismo - 11/1/1995 24/02/2021 18(06

São Paulo, quarta-feira, 11 de janeiro de 1995

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Lasch ataca elites com sensacionalismo


MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A atividade conhecida como "crítica cultural" –espécie de diagnóstico


das mazelas espirituais do nosso tempo, reclamação genérica diante
de decadências estéticas ou morais– tem sido privilégio de pensadores
de origem alemã.
Nietzsche e Spengler, para citar seus dois representantes mais
conhecidos, deram o tom da "Kulturkritik"; mais recentemente, de um
ponto de vista oposto, é a escola de Frankfurt, com Theodor Adorno à
frente, quem procurou articular o estado da sociedade com as misérias
do pensamento filosófico e do comportamento cotidiano.
Fenômeno alemão, a crítica da cultura teve reflexos em outros países:
veja-se a obra de Ortega y Gasset na Espanha, por exemplo.
Os Estados Unidos parecem ser, hoje, o país onde se exerce com mais
vigor essa modalidade de pessimismo intelectual. É enorme a
quantidade de ensaístas dispostos a fazer o processo jurídico da
cultura ocidental –seja no papel de acusadores ou de seus advogados
de defesa, e os dois se confundem.
Edward Said, Daniel Bell, Richard Sennett, Camille Paglia, Naomi
Wolf, Gore Vidal agem mais ou menos como franco-atiradores,
rigorosos ou não, no diagnóstico que pretendem fazer da cultura
ocidental.
Tivemos, no suplemento Mais! de domingo passado, um artigo de
Christopher Lasch, denominado "A Rebelião das Elites", que se insere
com estrépito na moda norte-americana de fazer crítica cultural.
Christopher Lasch, que morreu há pouco mais de um ano, deixou um
livro inédito a ser publicado pela W. W. Norton. Fizera sua fama com
livros brilhantes a respeito dos costumes contemporâneos: "A Cultura
do Narcisismo" e "O Mínimo Eu".
O artigo de Lasch publicado pela Folha domingo passado é um
testamento intelectual bastante deprimente. Trata-se de uma peça
acusatória contra as elites pensantes dos Estados Unidos: "Perderam a
fé nos valores do Ocidente", diz Lasch.
O autor considera que os intelectuais ou, de modo mais geral, os
mercadores de bens simbólicos –jornalistas, roteiristas de Hollywood,
liberais nova-iorquinos– perderam o senso de sacrifício, de
nacionalismo, de cavalheirismo nobre que justificava sua posição na

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elite do país.
O tom inteiro do artigo é inequivocamente reacionário. Lasch diz que,
enquanto as elites estão preocupadas com aborto, racismo, liberdade
sexual e progresso ilimitado, as "massas" é que sabem muito bem o
valor da estrutura familiar "como fonte de estabilidade num mundo
turbulento" e possuem "um sentido altamente desenvolvido dos
limites que Ortega y Gasset identificava com a civilização".
A nova elite, diz Lasch, tem "pouco senso de gratidão com os
ancestrais ou obrigação em cumprir com as responsabilidades
herdadas do passado. (...) Falta-lhe a continuidade que deriva de um
sentido de território e de padrões de conduta cultivados
restritivamente e passados de geração para geração".
Salta aos olhos o conservadorismo dessas considerações. Lasch está
apenas notando o seguinte: existe uma minoria da população
americana que não é nacionalista, que não tem preconceitos contra
homossexuais, que preza a liberdade individual e que confia numa
"liberação" do indivíduo frente aos tabus familiares, ao "american
way of life", ao fundamentalismo religioso.
É então que Lasch arranca os cabelos e, assumindo a pose de "crítico
cultural", ataca essa "elite", fazendo o elogio das classes médias e
baixas dos Estados Unidos, que têm vínculos de fidelidade ao passado
nacional, respeito às próprias tradições e inclinação para "fazer
sacrifícios".
O argumento de Lasch é ultraconservador, populista e inexato.
Começando de um ponto óbvio: por que acusar elites cosmopolitas e
liberais de renegar os valores do Ocidente? Se estes valores são a
família, a homofobia, a religião, Lasch está certo. Mas os valores do
Ocidente sempre ferem algo mais do que isto.
Dizem respeito à liberdade individual, ao debate de idéias, à busca
pela verdade, à crítica do preconceito. Não é na classe baixa
americana que encontraremos representantes de Freud e de Voltaire.
Seria possível dizer, até, que o ímpeto das "elites" americanas contra
o preconceito e a favor do "politicamente correto" é ele próprio
obscurantista, tolo e puritano. Mas o ponto de vista de Lasch é
oposto.
Escandaliza-se com a falta de "nacionalidade e de senso de sacrifício"
das camadas superiores da sociedade americana. Nacionalidade e
senso de sacrifício nunca significaram, a meu ver, outra coisa senão:
disposição para ser morto num campo de batalha.
Há um ponto, contudo, em que Lasch tem razão. Aplica-se tanto aos
Estados Unidos como ao Brasil. É o do progressivo distanciamento
entre classes baixas e classes altas –tanto do ponto de vista
econômico quanto do ponto de vista ético e cultural. Trata-se de lutar
contra isto. E Lasch está certo ao notar a extrema resistência das
"massas" em face de tudo o que signifique liberação sexual, aborto,
irreligiosidade, cosmopolitismo etc.
Nesse ponto, é claro que as "elites" –elas sim, representantes do
legado intelectual do Ocidente– se sentem frustradas. O povão
continua tão supersticioso, preconceituoso e crédulo quanto o era há
300 anos. Talvez um pouco menos.

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Em todo o caso, o problema a resolver seria o seguinte: por que o


liberalismo de costumes e de idéias não foi aceito com facilidade?
Quais os focos de resistência psíquica que garantem a sobrevivência
de fascistas, nacionalistas, fundamentalistas religiosos?
Trata-se, apenas, de uma cegueira das elites frente às realidades da
vida, como quer Lasch? Trata-se agora de defender, como quer Lasch,
a estupidez e o preconceito em nome da civilização ocidental?
Acho que não. É verdade que os esquerdistas são muito chatos nos
Estados Unidos –militantes homossexuais, negros, antifumo. O
universalismo é, nesse país, valor em baixa. O racionalismo também.
Lá como aqui é espantoso o número de intelectuais, de pessoas
instruídas que acreditam em gurus e mapas astrais. Que vêem novela
e embarcam nas piores porcarias da indústria cultural. Por aí, talvez, a
civilização ocidental esteja ameaçada. Não pelos falsos motivos que
Lasch, numa expectoração sensacionalista e lamentável, deu a
conhecer ao leitor brasileiro, na ótima tradução de Marilene Felinto.

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