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Folha de S.Paulo - Marcelo Coelho: "Bravo!

" é revista de bordo com ensaístas de mau humor - 11/03/98 27/02/2021 15(38

São Paulo, quarta, 11 de março de 1998

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"Bravo!" é revista de bordo com


ensaístas de mau humor
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

A revista "Bravo!" chega a seu sexto número, com artigos


muito bons sobre Salvador Dalí, Anselm Kiefer, de Chirico e
Fernando Botero, pintores que, a partir deste mês, terão
exposições no Rio ou em São Paulo. A revista "Cult" dedica
seu oitavo número ao escritor Michel Tournier e ao
centenário do poeta simbolista Cruz e Sousa.
Como é possível? Há menos de um ano, se me dissessem
que teríamos nas bancas duas boas revistas culturais,
coloridas, com boa distribuição e aparentemente viáveis do
ponto de vista econômico, eu reagiria com ceticismo. Mas a
boa notícia está aí: revistas não apenas legíveis, mas
"guardáveis", aparecem nas bancas e se dedicam a uma
divulgação cultural de bom nível.
Na verdade, isso não seria de estranhar. Acredito que a
exposição de Rodin, há uns dois anos, foi um marco. As filas
formadas na Pinacoteca estavam demonstrando que uma
cidade como São Paulo já entrava numa nova fase de
consumo cultural. É a fase em que mesmo a cultura de elite
se transforma em atração de massas.
Depois de Rodin, tivemos Monet e Camille Claudel; no
campo da música erudita, grandes nomes como Kissin,
Pogorelich, a orquestra do Gewandhaus, sei lá mais o quê,
acabam aparecendo por aqui.
Vantagens da globalização e da moeda "forte": importamos
carros japoneses e voltamos aos bons tempos do café,
quando as grandes estrelas da ópera -Caruso, Gigli etc-
passavam pelo Rio, por São Paulo e Buenos Aires.
O fato é que o simples crescimento demográfico autoriza o
aparecimento de uma camada de consumidores culturais
mais sofisticados, a que revistas como "Bravo!" e "Cult" vêm
atender.
Mas aí aparecem as contradições. A revista "Bravo!"
explicita, de forma até meio ridícula, o dilema entre a alta
cultura e o mercado. Tento explicar o que acontece.

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"Bravo!" é uma revista grande, com cerca de 150 páginas,


impressa em papel brilhante, cheia de fotos bonitas. Aborda
o "top de linha" em termos culturais, Léger, Woody Allen,
Clarice Lispector, Richard Serra, Arvo Paart. Mas todo esse
apuro, todo esse formato, toda essa seleção, em que coisa
ruim não entra, confere a "Bravo!" um ar de revista de
bordo. É como se fosse uma espécie de "Ícaro", a publicação
gratuita da Varig, tanto do ponto de vista gráfico, quanto do
ponto de vista editorial.
"Bravo!" tem por norma não pichar ninguém. As excelentes
tabelas que publica -há quadros sinóticos de artes plásticas,
de música, de literatura, precedidos de uma tabela geral da
edição, intitulada "Bravograma"- oscilam apenas do nível
máximo ("não perca") ao tímido e comportado "fique de
olho". Ou seja, não há nada equivalente a "fuja", "desista",
nenhuma crítica dizendo: "é porcaria". Tudo o que "Bravo!"
seleciona é bom ou pelo menos vale a pena.
Até aí, tudo bem. Estamos no espírito de uma revista de
bordo, que seleciona só o que há de bom para se ver na
cidade em que seu avião vai pousar.
Mas o estranho é que, antes de entrarmos na leitura de bordo
proposta, "Bravo!" apresenta uma seção denominada
"Ensaio". Seus colaboradores habituais são Bruno Tolentino,
Olavo de Carvalho, Sérgio Augusto, Jorge Caldeira,
Fernando de Barros e Silva e Sérgio Augusto de Andrade.
Aí é que a coisa complica. Quase todos se colocam "contra o
mercado". Há um espírito de contestação, de polêmica, de
insulto no ar. A aeromoça é solícita, serve salgadinhos,
promete uma culinária de primeira, mas o piloto, o co-piloto,
o comissário de bordo estão de mau humor e se entregam a
vagas acusações.
Neste último número de "Bravo!", por exemplo, Olavo de
Carvalho se mostra descontente com a lista dos convidados
brasileiros para o Salão do Livro em Paris. Os franceses
escolheram Paulo Coelho, Jorge Amado, João Ubaldo, Frei
Betto, Chico Buarque, entre outros. A lista não é respeitável
em sua integridade, concordo. Mas Olavo de Carvalho
propõe uma outra, na qual se incluem Meira Penna, Miguel
Reale, Amaral Vieira, Edino Krieger e Wilson Martins.
Há algo de ridículo nessa intervenção. Não vejo como a lista
de Olavo de Carvalho seria mais eloquente do que a lista
feita pelos franceses. Há uma razão, contudo: a lista dos
franceses foi feita muito mais "pelo mercado" do que por
critérios de "qualidade" -embora a qualidade de Amaral
Vieira e de Meira Penna ainda esteja a ser provada.
É também contra "o mercado" que se insurge Bruno
Tolentino, defendendo a poesia de alguns ilustres
desconhecidos como o poeta Jairo José Xavier, de "A Idade
do Urânio", ou Octavio Mora de "Ausência Viva". Não tenho
nada contra esses autores, que nunca li. Mas eis a linguagem

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de Bruno Tolentino: para ele, um poeta de verdade é "algo


cuja elusiva presença em tudo emula a presença da água
vivificadora... ora, toda fonte é oculta, subterrânea; seus
arroios (...), quando surgem à superfície, já se gestaram nas
profundezas, seu fluir é sempre uma abrupta surpresa."
Estamos diante do kitsch. E esse kitsch, como todo kitsch
aliás, é ressentido: aponta para injustiças da "mídia" e do
"mercado". Sérgio Augusto propõe a extinção dos cadernos
culturais na imprensa diária. Elegem-se "safados" como
Gramsci, e heróis, como Roberto Schwarz, conforme o
bestunto de cada um. Os ensaístas de "Bravo!" se comportam
como altos contestadores da "cultura estabelecida" numa
publicação que expressa a pura cultura de mercado elitizada.
Tudo se torna uma conspiração embuçada, tudo é objeto de
contestação, numa revista que representa o mais tranquilo
"mainstream" cultural. Há aqui um caso de esquizofrenia,
que se eu fosse articulista de "Bravo!" já estaria relacionando
com Quincas Borba ou Policarpo Quaresma.
Ou seja: teatraliza-se o inconformismo, o contracultural, a
"oposição", num veículo que nada tem de partidário, de
ideológico ou de opositor. Sua reação ao mercado é
mercadológica também. Faz-se uma iconoclastia
conservadora; defendendo os valores consagrados, Clarice,
Guimarães, Euclides etc, finge-se uma descoberta da
pólvora, a pólvora da "verdadeira modernidade", da
"verdadeira contestação", da "verdadeira literatura". Tudo
isso chove no molhado, por uma razão bem simples.
É que a cultura brasileira vive de uma unanimidade enorme.
Bandeira, Drummond, Cabral, Guimarães Rosa são
incontestáveis. Não há polêmica possível. A polêmica se
exerce marginalmente, numa espécie de indignação virtual.
Disso vivem os ensaístas de "Bravo!", contestando o
"mercado" que sustenta o sucesso da revista. Tudo se torna
nebuloso e impessoal, magoado e denunciativo, oracular,
integrado e marginal. Como hoje em dia falta uma posição
partidária e programática, política e sectária na cultura, faz-
se o sectarismo de um antimercado que é, em si mesmo,
mercadológico e gratuito; é hipercrítico e não se toca; roda a
baiana, mas roda em falso; é conservador contra a corrente,
indignado tirando o chapéu. Digo tudo isso porque, em parte,
me reconheço nos ensaístas de "Bravo!". Cabe fugir desse
ridículo, em que todo crítico cultural cai frequentemente.

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