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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE ARTES E LETRAS

ANO 20 • NÚMERO 2 • ISSN 1516-9340

EXPRESSÃO
REVISTA DO CENTRO DE ARTES E LETRAS

EXPRESSÃO • CAL/UFSM • Santa Maria • Ano 20 • Nº 2 • Jul./Dez. 2016


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Expressão / Universidade Federal de Santa Maria


Centro de Artes e Letras – Vol. 2 (2015)
___________. – Santa Maria, 2015

Semestral
Expressão - Revista do Centro de Artes e Letras
Número 1 – Março/1996

1. Artes. 2. Letras. 3. Música.


CDU: 7/8 (05)

Ficha catalográfica elaborada por Luzia de Lima Sant’Anna, CRB-10/728


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Sumário
DO SOCIAL AO SIMBÓLICO: O ESPAÇO PRATICADO PELA MULHER EM DAMAS DE COPAS, DE CECÍLIA COSTA........7
Ana Luiza Nunes Almeida (UFRGS)

A (IN)DISCIPLINA DO CORPO EM “AVENTURA DE SABER”.......................................................................................... 17


Dileane Fagundes de Oliveira (UFSM) • Vera Lucia Lenz Vianna (UFSM)

A SEMENTE DA LIBERTAÇÃO FEMININA NO CONTO COLHEITA DE NÉLIDA PIÑON ............................................. 27


Dileane Fagundes de Oliveira

DOCUMENTOS OFICIAIS: DESAFIOS PARA A SOCIOLINGUÍSTICA HISTÓRICA......................................................... 37


Veridiana Veleda Pereira • Evellyne P. F. S. Costa

A METODOLOGIA DO JOGO DE RIVALIDADES: UMA PROPOSTA DE KNOW-HOW ASSESSORIAL


PARA A (RE) EDUCAÇÃO LINGUOLITERÁRIA NO ENSINO MÉDIO.............................................................................. 47
Felipe Freitag • Marcos Gustavo Richter

ROCK, CONTRACULTURA E REPRESSÃO NO BRASIL DO INÍCIO DOS ANOS SETENTA


NAS PRIMEIRAS CANÇÕES DA BANDA O TERÇO................................................................................................................. 59
Gérson Werlang • Edemilson Antônio Brambilla

A CONSTITUIÇÃO DO DISCURSO PARÓDICO EM O REMORSO DE BALTAZAR SERAPIÃO, DE VALTER HUGO MÃE.......... 71


Raquel Trentin Oliveira • Giseli Caroline Seeger da Silva

UMA INDEPENDÊNCIA QUE NÃO ELIMINOU A DEPENDÊNCIA: NEIGHBOURS, DE LÍLIA MOMPLÉ.................. 83


Maria Aparecida Nascimento de Almeida • Rosilda Alves Bezerra

GERA ENCONTRO: LOUCURA E ARTE NA CIDADE, UMA EXPERIÊNCIA CULTURAL NA SAÚDE MENTAL.......... 95
Régis Waechter Gonçalves • Katia S. Barfknecht

VIDA DO APOSTÓLICO PADRE ANTÔNIO VIEIRA: UMA PERSPECTIVA RETÓRICA.................................................... 107


Angelo Moreno Bidigaray Sanches • Marcus De Martini

ESTUDO FILOLÓGICO DE DOCUMENTOS DA BRIGADA MILITAR DO RIO GRANDE DO SUL DO INÍCIO DO SÉCULO XX... 121
Tatiana Keller • Betina Bernardi

ANNE GILCHRIST E WALT WHITMAN: AN ENGLISHWOMAN’S ESTIMATE OF WALT WHITMAN............................ 135


Daniela do Canto • Anselmo Peres Alós

METAPOEMAS E CONFORMAÇÃO CRÍTICA EM RICARDO REIS.................................................................................... 149


Andrea do Roccio Souto • Dario T. de Almeida Filho

A BELEZA EM “O RETRATO DE DORIAN GRAY”: O SENTIMENTO DE BELO COMO MÁSCARA............................. 153


Andrea do Roccio Souto • Débora Spanamberg Wink

EDIÇÃO E ANÁLISE PALEOGRÁFICA DE DOCUMENTOS DA CIDADE DE SANTA MARIA DO INÍCIO DO SÉCULO XX..... 159
Tatiana Keller • Jessica Hock

L’ART POÉTIQUE D’ANDRÉE CHEDID.................................................................................................................................. 173


Daniela Lindenmeyer Kunze • Anselmo Peres Alós

ASPECTOS PALEOGRÁFICOS DE MANUSCRITOS DO INÍCIO DO SÉCULO XX DO MUNICÍPIO DE SANTA MARIA, RS..... 185
Otávio Perufo Carloto • Tatiana Keller

RESENHAS
A HIPOCRISIA EM A BÍBLIA DO CHE, DE MIGUEL SANCHES NETO........................................................................... 201
Maria Cristina Ferreira dos Santos

Flores....................................................................................................................................................................................... 205
Samla Borges Canilha

A infância a quatro mãos............................................................................................................................................... 209


Vivian Castro de Miranda

NORMAS PARA A SUBMISSÃO DE CONTRIBUIÇÕES....................................................................................................... 213


DO SOCIAL AO SIMBÓLICO: O ESPAÇO PRATICADO PELA
MULHER EM DAMAS DE COPAS, DE CECÍLIA COSTA

Ana Luiza Nunes Almeida (UFRGS)1

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo analisar as práticas discursivas femininas no romance
Damas de copas (2003), de Cecília Costa. Levando em consideração as acepções de Gaston Bache-
lard (1978) e Michel de Certeau (1998), o espaço será pensado como parte fundamental de tais
práticas, uma vez que o mesmo se organiza a partir de padrões culturais segregadores. A escrita
feminina, nesse sentido, possibilita um discurso distinto da cultura hegemônica, uma vez que se
orienta a partir de uma perspectiva que dá conta de especificidades negligenciadas, as quais permi-
tem a pluralização interpretativa do fato narrado. Em consonância com esse pensamento, os estudos
de Michel Foucault (2013) e Judith Butler (2013) se somam a este estudo, uma vez que iluminam a
legitimação da possibilidade de uma multiplicidade discursiva. Nesse sentido, é pretensão refletir
sobre a possibilidade de pensar o gênero a partir da subversão de uma de suas matrizes de inteli-
gibilidade, guiada pelo heteropatriarcado, pensando, então, na importância do corpo em trânsito
pelos diversos espaços em um processo de reconstrução subjetiva e, também, na legitimação dos
discursos que são oprimidos pela normatização falocêntrica.
PALAVRAS-CHAVE: Espaço. Feminino. Discurso. Damas de copas.

ABSTRACT: This study aims to analyse the female discoursive practice in the novel Damas de copas
(2003), by Cecília Costa. Taking into account the ideas of Gaston Bachelard (1978) and Michel de
Certeau (1998), the space will be thinking as a fundamental part of those practices, once that the
space organize itself from segregating cultural patterns. The feminine writing, in this sense allows
a different discourse from the hegemonic culture, once it guides by a perspective that account the
neglected specificities, which allow the pluralization interpretative of the fact narrated. According to
this thought, the studies from Michel Foucault (2013) and Judith Butler (2013) are combined to this
study, since illuminate the possibility of legitimation of a discursive multiplicity. In this sense, in-
tends to reflect about the possibility of thinking the gender from as a subversion of its intelligibility
arrays, guides by the heteropatriarchy, thinking, then, about the importance of the body in transit by
the various spaces in a subjective reconstruction process, and also the legitimacy of the discourses
that are oppressed by phallogocentric regulation.
KEYWORDS: Space. Female. Discourse. Damas de copas.

A palavra é uma faca, uma bofetada, mas também pode ser uma
carícia, uma brisa, um toque, uma ruptura.
(Cecília Costa)

Os estudos culturais buscam novas interpretações da literatura e da cultura, levando em con-


sideração vozes silenciadas que ocupam posições marginalizadas e destituindo a legitimidade
do cânone e o seu caráter naturalizado. Aliada à esta necessidade de ressignificação discursi-
va, a teoria feminista entende que uma representação política feminina é necessária, a fim de

1 Doutoranda em Literatura Comparada (UFRGS), sob orientação da Profª Dra. Rita Terezinha Schmidt.
O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.
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produzir um discurso capaz de representar as biológicos. Desse modo, os conceitos de sexo


mulheres que antes eram mal representadas e de gênero contribuem para a construção de
ou destituídas de representação. Entretanto, identidade, visto que já condicionam o indi-
de acordo com a concepção de Judith Butler víduo a seguir um modelo preestabelecido,
(2013), os termos “representação” e “políti- podendo ser entendidos tanto como o pro-
ca” são polêmicos, uma vez que enquanto a duto quanto como o processo de sua repre-
representação busca legitimar e possibilitar a sentação.
visibilidade das mulheres no âmbito discursi- Partindo da prerrogativa butleriana, é
vo, também pode desenvolver função norma- possível afirmar que o conceito de “mulher”
tiva, a qual restringe a categoria de mulher à é elaborado sob a concepção cultural pa-
uma verdade arbitrária. triarcal, revelando-se discursivamente cons-
Butler retoma o argumento de Foucault, truído a partir de um sistema que determina
ao se referir à crítica genealógica que dá con- a inteligibilidade de gênero de acordo com
ta das relações de poder, através de técnicas uma perspectiva relacional de dominação.
de controle e disciplina dos discursos. Inves- Tal construção, portanto, unifica a identi-
tiga o caráter político-ideológico que origina dade feminina sem levar em consideração
o conceito de identidade, tendo como foco as as especificidades de sexo, de gênero e de
definições de sexo e de gênero, as quais têm sexualidade – além de outros dispositivos
significados problemáticos em termos rela- que estão agregados às relações de poder
cionais. A genealogia feminista, proposta por – e desqualifica o indivíduo como produ-
Butler, se alicerça no sistema binário para tor de uma identidade subjetiva. A propos-
lançar a sua hipótese de que tanto sexo quan- ta da crítica feminista, nesse sentido, vai ao
to gênero são construções sociais oriundas encontro à subversão da tradição literária,
de dispositivos discursivos que, sustentados entendendo a necessidade de revisar e re-
pela cultura heteropatriarcal, legitimam a escrever a representação do feminino nos
naturalização do masculino e consequen- textos literários, desconstruindo o caráter
te marcação (e submissão) do feminino. De naturalizador das identidades de gênero. No
acordo com Butler, “colocar a dualidade do entanto, a subversão não resulta na simples
sexo num domínio pré-discursivo é uma das substituição de uma representação canôni-
maneiras pelas quais a estabilidade interna ca por outra, mas na conscientização acerca
e a estrutura binária do sexo são assegura- das práticas discursivas institucionalizadas
das” (BUTLER, 2013, p. 25). Assim, seguindo e ressignificação do cânone literário a partir
essa perspectiva, além do gênero, o entendi- de interpretações alternativas de identidade.
mento acerca do sexo também deriva de uma Butler sinaliza para a desconstrução das
construção social, pois, “supondo por um identidades fixas, propondo uma ressignifi-
momento a estabilidade do sexo binário, não cação delas a partir da crítica ao conserva-
decorre daí que a construção de ‘homens’ dorismo identitário, o qual aprisiona o con-
aplique-se exclusivamente a corpos mascu- ceito de sexo em uma natureza questionável,
linos, ou que o termo ‘mulheres’ interprete argumentando que o gênero é performático
somente corpos femininos” (BUTLER, 2013, e múltiplo, identificando-se mais com ações
p, 24). A cultura determina e condiciona tan- sociais e não com identidades totalitárias e
to a definição de sexo quanto a de gênero, e, permitindo, portanto, a desconstrução da
assim, ambos os conceitos podem ser livres ilusória evidência do sexo biológico como
ou fixos, já que dependem dos discursos que demarcador dos limites identitários. Segun-
os legitimam, ou seja, a sua construção é de- do a concepção da autora, o sujeito constru-
terminada a partir de fatores culturais e não ído legitima ou exclui determinadas ações,
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as quais passam a servir de modelos positi- das pelo patriarcado. Ainda que tenha reivin-
vos ou negativos para o meio social no qual dicado o direito de expressão, a mulher tem
estão inseridos, isto é, o indivíduo está con- a sua liberdade cerceada social e simbolica-
dicionado a desenvolver uma performance mente, uma vez que o seu discurso é forjado
estabelecida socialmente para se adequar pelos valores dominantes, os quais refletem
aos padrões vigentes e, assim, perde a sua na sua escrita e a sujeitam a uma tradição
identidade subjetiva. A ordem compulsória que não a representa. Sob a mesma ótica, Vir-
de sexo e de gênero institui um discurso cul- gínia Woolf (2014) reflete sobre a forma que
turalmente determinado, no qual a estabili- o papel social atribuído a cada sexo interfere
dade da estrutura binária está assegurada, na produção intelectual feminina, discorren-
legitimando, portanto, a heterossexualidade do sobre a imunidade masculina e os lugares
compulsória e, consequentemente, excluin- de segregação feminina ao longo dos anos e
do os modelos desviantes que não se encai- afirma que “a liberdade intelectual depende
xam na padronização estabelecida. A unida- de coisas materiais” (WOOLF, 2014, p. 151)
de proposta ao conceito de identidade reite- quando defende que uma mulher necessita
ra a determinação dos binarismos de sexo e de um espaço próprio para escrever ficção.
de gênero e legitima o poder heteronormati- Não dispondo de um espaço seguro de ex-
zante. Entretanto, as reflexões sobre gênero, pressão, a mulher ainda reivindica maiores
devido à sua complexidade, não devem se re- oportunidades de produção literária. Aque-
duzir a essa normatização impositiva, visto las que romperam com a barreira do silêncio
que “uma coalização aberta afirmaria iden- precisaram se adequar a uma tradição falo-
tidades alternativamente instituídas e aban- cêntrica e os efeitos dessa normatização são
donadas, segundo as propostas em curso; percebidos em suas narrativas na medida
tratar-se-á de uma assembleia que permita em que não há uma tradição outra em que
múltiplas convergências e divergências, sem se apoiar. Assim sendo, a voz feminina pre-
obediência a um telos normativo e definidor” cisa validar o seu discurso para ser ouvida e
(BUTLER, 2013, p. 37). para isso tem que buscar no discurso domi-
O espaço literário traz consigo caracte- nante referências que possam reforçá-lo ou
rísticas de uma cultura primordialmente subvertê-lo. Todavia, a mulher pleiteou o seu
machista. Por muitos anos somente homens espaço na literatura e conquistou a possibili-
tinham o poder da escrita e, por conseguinte, dade de narrar a sua própria história e, nessa
interpretavam suas narrativas e tipificavam nova etapa, teve que revisitar as narrativas
seus personagens sob perspectivas patriar- pregressas e ressignificar a identidade que
cais. As mulheres, tardiamente alfabetizadas, havia sido imposta sobre sí. Com essa mesma
eram passivas às suas histórias e relegadas à perspectiva Cecília Costa escreveu o roman-
marginalidade – na ficção e na realidade – a ce Damas de copas (2003), construindo um
fim de sustentar o domínio masculino em to- palimpsesto de histórias que se sobrepõem e
das dimensões. dialogam em uma nova possibilidade de re-
Os privilégios do homem na sociedade presentação e expressão feminina.
produziram uma imagem estereotipada e A história narrada no romance se passa
submissa da mulher no âmbito literário. no período de redemocratização do Brasil,
Sendo representada sob o olhar do outro, ela no Rio de Janeiro. É protagonizada por qua-
não foi somente retratada pelo outro sexo, tro personagens femininas que moram jun-
mas também de acordo com sua relação com tas em um sobrado e se organizam em uma
o outro sexo, assegurando, dessa forma, a composição familiar sem parentescos gene-
sua coisificação a partir de regras estipula- alógicos, alheia às convenções tradicionais;
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e se desenvolve a partir das relações que es- duas interagem – naquela privacidade, Maria
tabelecem entre si, priorizando as suas in- confia em Marta para desabafar sobre suas
terpretações e pensamentos sobre os acon- dores e intimidades, mas restringe o diálogo
tecimentos que as circundam. Narrado em ao plano oral, visto que quando a narradora
primeira pessoa por Marta, o romance se transpõe para a literatura todo o convívio
desenvolve a partir da construção de outro compartilhado, incomoda a amiga, provocan-
romance – dentro do espaço diegético – o do o seu afastamento.
qual surge da necessidade que a narradora As outras duas moradoras do sobrado são
tem de tornar pública a experiência femi- Beth e Carla. A primeira é amiga de Marta de
nina que se delineia no espaço privado. As um tempo anterior à mudança para a casa.
primeiras palavras do prólogo explicam o Descrita como possessiva pela narradora,
seu desejo: Beth sempre teve um posicionamento forte
tanto no espaço privado quanto no público, o
Carrego este livro dentro de mim há muitos que ocasionou diversas turbulências nas suas
e muitos anos. Uma criança que hoje já se- relações interpessoais. Já Carla se mantinha
ria mulher. Na realidade, a vida, neste caso, alheia à sua realidade e pouco se posiciona-
estranhamente nasceu de um livro. A fic- va sobre questões domésticas e até mesmo
ção construiu a realidade. Pois foi um livro sociais. Marta e Beth moraram juntas em ou-
descosturado, apenas esboçado, que macu- tra residência antes da mudança para o so-
lara com sua perigosa inocência algumas brado, entretanto, devido ao comportamen-
virgens folhas brancas, que fez explodir a to intempestivo de Beth, ambas romperam
vida. Hedionda, convulsa, espantosamente com a convivência e passaram longo período
bela. Ódios reprimidos, amores silencia- sem contato. Em um momento em que Beth
dos, roucos de dor e de desejo, amizades adoeceu, um amigo sugeriu a reaproximação
mal compreendidas, gestos. Tudo aflorou das amigas e propôs que voltassem a morar
por causa dele. O livro que já foi escrito tan- juntas, trazendo outra companheira que pu-
tas e tantas vezes intermináveis, dentro de desse dar suporte às dificuldades que as duas
mim – minha alma é seu pergaminho –, sem encontravam na convivência. Carla se tornou
que eu nunca tivesse a coragem de escrevê- essencial no equilíbrio da casa:
-lo até o fim. (COSTA, 2003, p. 7).
Carla, é claro, tu bem o sabes, Maria, era a
Maria é a interlocutora de Marta – é para ela nossa terceira companheira de casa. Aque-
quem a narradora reporta a sua intenção de la minha amiga jornalista que viera morar
escrever um romance. As duas personagens conosco para amenizar os choques entre
moram juntas e desenvolvem um relaciona- mim e Beth, a pessoa que tínhamos decidi-
mento que beira à homoafetividade, sem que do arrumar, se é que o verbo pode ser usado
haja a sua concretização física. Maria, que foi neste caso – mais que arrumação e ordem,
militante na ditadura e carrega consigo mar- Carla era a abulia e a desordem –, para es-
cas da tortura, é idealizada pela narradora e friar os embates que haviam deixado um
descrita com melancolia tanto na narrativa saldo meio negativo entre nós duas desde
sobre o livro quanto na transcriação da sua os problemas ocorridos na cozinha do apar-
história para a narrativa que Marta escreve. tamento de Laranjeiras. E, fossem quais fos-
A relação de ambas se iniciou quando Maria sem as suas características, que só viríamos
se separou do marido e pediu para ficar no a conhecer melhor com a convivência, sua
sobrado por um tempo, no quarto vizinho à vinda funcionou. (COSTA, 2003, p. 81-2).
lavanderia; e é neste espaço periférico que as
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O sobrado, lugar em que as quatro per- duzir o leitor ao estado de leitura suspensa”
sonagens moram, é parte fundamental da (BACHELARD, 1978, p. 206), uma vez que a
história. Ele possui grande significação na imaginação reforça a lembrança vivida e se
composição narrativa, pois simboliza o lugar agrega à memória. A casa, portanto, é um
de exploração identitária das protagonistas. espaço de reflexão da intimidade porque “é
Escolhido por Beth para morar inicialmente a própria pessoa, sua forma e seu esforço
somente com Marta, se tornou aconchegante mais imediato” (BACHELARD, 1978, p. 263).
e acolhedor às suas moradoras, uma vez que Nessa mesma perspectiva, é possível perce-
potencializou a descoberta e a afirmação de ber que a casa descrita em Damas de copas
suas personalidades e possibilitou o questio- representa a subjetividade de suas habitan-
namento de valores externos ao ambiente, tes – suas agruras e seus anseios – e reflete,
mas comuns na sociedade. O espaço, por sua inclusive, um sistema social opressivo que se
expansão e arquitetura labiríntica, auxiliou tenta combater na narrativa.
na reconstrução da amizade entre as duas Isolado do meio social, o sobrado é um
antigas companheiras e muitas vezes regeu espaço de expressão de suas moradoras. En-
ou acontecimentos que lá sucederam. Beth tretanto, essa expressão se dá, primordial-
continuava centralizando a autoridade da mente, no ambiente interno e se ajusta às
casa e impunha as suas vontades arbitraria- convenções estabelecidas socialmente. Ain-
mente, Carla estava “quase que perdida em da que admitissem viver em precária domes-
si mesma, ou na falta de rumo na vida” (COS- ticidade, as personagens travavam alguns
TA, 2003, p. 84) e não sabia como usufruir embates na cozinha, reivindicando o poder e
da liberdade que conquistou ao sair da casa a administração do lugar – a narradora expli-
dos pais e Maria, também intimidada com a ca a sua surpresa em relação a animosidade
sua condição emancipatória, ocupou “aque- inesperada, mas complementa a sua reflexão
le quarto que não era quarto, mas que, ao com um discurso um pouco sexista:
lado da pequenez acanhada de teu aparta-
mento com teu marido, era uma verdadeira Só muito tempo depois eu entenderia como
suíte, com vista para a lua” (COSTA, 2003, p. as mulheres, liberadas ou não, ainda têm
81) e expandia o isolamento e a inferiorida- o pé – e o ventre e a cabeça – na cozinha.
de que lhe foram impostos ao se resguardar Nas chamas violáceas do fogão. Adoram
em um quarto isolado dos outros cômodos administrar a cozinha, dar ordens. É o es-
e localizado em uma área subalterna. Marta paço do poder. Não importa que a mulher
sentiu-se em casa no momento em que viu trabalhe fora. Toda mulher, descobri com o
a casa cinquentenária de vila e aquele espa- tempo e também me autodescobrindo, gos-
ço lhe despertou sentimentos que até então ta de dominar sua cozinha, suas panelas,
não explorara e deu ênfase naqueles que ha- seus temperos, e só a entrega a outrem por
via tentado se desprender no passado. É um concessão. Mesmo aquelas que não sabem
lugar, portanto, que as protege da opressão disso, as que creem odiar a cozinha, as que
exterior e lhes permite o devaneio, dando dizem a querer à distância. (COSTA, 2003,
a sensação de pertencimento do mundo ao p. 49-50).
possibilitar a expressão.
Gaston Bachelard, em A poética do espa- A cozinha se associa à ideia de deprecia-
ço (1978), discorre sobre a alegoria da casa, ção – incutida socialmente e reproduzida
evidenciando o seu caráter protetor e inti- na literatura – da mulher. O espaço remete
mista. Afirma que “para evocar os valores à servilidade imposta à mulher e, ao ser en-
de intimidade é preciso, paradoxalmente, in- tendido como “espaço do poder”, corrobora
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com a percepção de que é um lugar próprio trazendo para o seu interior valores impreg-
dela. Na casa, de modo, geral, são validados nados na sua construção identitária.
valores que somam à percepção da submis- O espaço habitado, nessa perspectiva, so-
são que as protagonistas desempenham, brepõe-se ao espaço geométrico. É relatado
pois, embora elas tenham certeza sobre as de acordo com a perspectiva de quem o narra
suas escolhas e atitudes, preferem fazê-las e carrega significações que são construídas a
no espaço privado. É evidente, todavia, que partir das experiências de quem o interpreta.
tal conduta é oriunda da dificuldade de ex- Michel de Certeau (1998) se apoia nessa pre-
pressão feminina no espaço público, porém missa para dissertar sobre a sua teoria de lu-
a sua reprodução dentro da casa é resulta- gar praticado e os efeitos que as práticas de
do da internalização e naturalização de tais espaço causam nas operações cotidianas. Traz
valores pelas próprias protagonistas. Um à tona, então, que a cultura articula conflitos e
exemplo latente dessa contradição é na se- legitima um lugar através de práticas comuns
gregação conferida ao possível relaciona- e relatos que o tornam cotidiano, entenden-
mento homoafetivo da trama – Marta e Ma- do que “toda sociedade mostra sempre, em
ria desenvolvem a sua relação no quarto da algum lugar, as formalidades a que suas práti-
segunda, alheio ao convívio social, o qual fica cas obedecem” (CERTEAU, 1998, p. 83).
próximo à área de serviço, alcançado por de- Os relatos organizam lugares e por isso é
graus espiralados que a narradora nomeia possível notar a arbitrariedade das práticas
de mansarda. A divisão entre os mundos é de espaço, uma vez que é a cultura domi-
simbolizada pelas escadas e a afetividade nante que as produzem, estabelecendo um
entre mulheres é deslocada para um espaço padrão a ser seguido. No caso de Damas de
marginal, seja na arquitetura da casa ou na copas, o lugar é relatado por mulheres que
exploração do sentimento entre as persona- têm voz ativa e falam sobre elas, mas a cul-
gens, visto que não é possível concluir, pelo tura que as circunda dá base aos seus relatos
ponto de vista de quem narra, se a não-con- e, mesmo através da sua negação, se mantem
cretização da relação é produto da vontade presente no cotidiano.
de ambas ou da pressão social.
O sobrado é uma alegoria da condição fe- A figura atual de uma marginalidade não é
minina. Edificado em três andares, possuía mais a de pequenos grupos, mas uma mar-
vastos espaços de convívio, mas era habi- ginalidade de massa; atividade cultural dos
tado essencialmente em seus cantos, nos não produtores de cultura, uma atividade
quais desfrutava-se a segurança da solidão, não assinada, não legível, mas simboliza-
isolando o universo exterior. Parece que nele da, e que é a única possível a todos aqueles
há uma necessidade de devoção, justamente que no entanto pagam, comprando-os, os
para fomentar o devaneio que Bachelard in- produtos-espetáculos onde se soletra uma
siste que o espaço provoca e se afirmar como economia produtivista. Ela se universaliza.
um centro de proteção para a expressão fe- Essa marginalidade se tornou maioria si-
minina. “Toda grande imagem é reveladora lenciosa. (CERTEAU, 1998, p. 44).
de um estado de alma. A casa, mais ainda
que a paisagem, é ‘um estado de alma’” (BA- Em consonância com o pensamento de
CHELARD, 1978, p. 243) e a casa narrada no Certeau, tem-se a nítida compreensão da
romance age como um espelho que reflete a marginalidade silenciosa que condiciona os
mulher no seu cotidiano expressando a sua relatos das protagonistas do romance estu-
subjetividade e, mesmo que seja contraditó- dado. As simbologias dos espaços habitados
rio aos ideais da maioria feminina, também e a estereotipação das personagens femini-
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 13

nas em suas relações são oriundas de insti- qual for) segundo a qual se distribuem ele-
tuições normativas que estão impregnadas mentos nas relações de coexistências. [...] é
na sociedade, de modo geral. Há momentos portanto uma configuração instantânea de
da narrativa em que Marta descreve situa- posições. Implica uma indicação de estabi-
ções que subjugam a mulher e corroboram lidade” (CERTEAU, 1998, p. 201) e o espaço
com o conceito padronizado do feminino – a “é o efeito produzido pelas operações que o
narradora ora internaliza essas concepções orientam, o circunstanciam, o temporalizam
estereotipadas, ora as questiona e evidencia e o levam a funcionar em unidade polivalen-
a heterogeneidade feminina. te de programas conflituais ou de proximida-
des contratuais” (CERTEAU, 1998, p. 202) e,
Sim, a gente contava, contava, e de certa por conseguinte, o espaço é entendido como
forma sofria ainda, pensando nas inúmeras um lugar praticado.
bobagens e nos preconceitos que havía- O entendimento de espaço, nessa concep-
mos suportado, no passado. Sofríamos mas ção, só é possível a partir da sua vivência,
nos libertávamos, com nossas narrativas e ou seja, de seu relato. A transformação de
brincadeiras – porque havia situações que lugares em espaços se realiza na medida em
eram de rir para não chorar –, de lembran- que os indivíduos transitam e se relacionam,
ças há muito tempo guardadas, escondidas apropriando-se das suas posições e poten-
bem no fundo nas gavetas do armário de cializando as suas relações. Nesse sentido, o
nossas memórias. (COSTA, 2003, p. 134). lugar praticado é possível quando a palavra
é relatada e, consequentemente, atualizada;
Assim, o que se percebe é que a narrati- sendo produto de necessidades individuais
va, no seu relato, age como contestadora da de ressignificar experiências coletivas. Cer-
cultura dominante. Há ainda uma dificulda- teau explica:
de de romper com os conceitos que definem
as práticas discursivas, mas o importante é Num exame das práticas do dia-a-dia que
a possibilidade de expressão que esse relato articulam essa experiência, a oposição entre
oferece e a pluralidade de leituras que o tex- “lugar” e “espaço” há de remeter sobretudo,
to oferece. De acordo com Certeau “o impor- nos relatos, a duas espécies de determina-
tante não é mais o dito (um conteúdo) nem o ções: uma, por objetos que seriam no fim das
dizer (um ato), mas a transformação, e a in- contas reduzíveis ao estar-aí de um morto,
venção dos dispositivos que permitem mul- lei de um “lugar”; [...] a outra, por operações
tiplicar as transformações” (CERTEAU, 1998, que, atribuídas a uma pedra, a uma árvore
p. 245) e o que se vê é a literatura como re- ou a um ser humano, especificam “espaços”
curso de representação de um cotidiano que pelas ações de sujeitos históricos (parece que
busca subverter a norma. um movimento sempre condiciona a produ-
A subversão em Damas de copas começa a ção de um espaço e o associa a uma história).
partir da possibilidade de uma narradora fe- (CERTEAU, 1998, pp. 202-3).
minina dominar a sua voz, definindo o lugar
de seu discurso e o espaço de seu desenvol- A palavra relatada pelas personagens
vimento. Certeau disserta sobre as configu- femininas do romance, a partir da voz da
rações de lugar e de espaço, estabelecendo narradora Marta, demonstra a heterogenei-
uma distinção entre os conceitos, em que dade de sentidos existentes para as práticas
define o primeiro em uma posição estável e comuns no cotidiano. Ainda que se sistema-
o segundo como uma emancipação desta es- tizem de acordo com um código discursivo
tabilidade. Para ele, o lugar “é a ordem (seja dominante, a possibilidade de expressão
14 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

dessa minoria reprimida já é um rompimen- para regulá-lo. Identifica, já no início de seu


to com o padrão – minoria esta que se apoia pronunciamento, que existem discursos
na palavra escrita a fim de encontrar um que são institucionalizados e ritualizados
meio de transformar-se em uma unidade de com o intuito de dar ênfase às técnicas de
sentido, ou seja, validar a sua identidade na controle e, por conseguinte, estabelecendo
sociedade. Na medida em que se regulariza o domínio de quem os detém. Nesse senti-
o discurso através da palavra escrita, se dá do, para um discurso adquirir esse caráter
credibilidade àquilo que está sendo narrado, de normalidade, outros são preteridos, evi-
e, portanto, a perspectiva feminina ganha um denciando que a formação discursiva está
aliado quando se associa à literatura para a conectada com processos ideológicos e que
narrar a sua experiência. “o discurso não é simplesmente aquilo que
Os livros são apenas as metáforas do cor- traduz as letras ou os sistemas de domina-
po e se apoiam naquilo que é calado. É, dessa ção, mas aquilo porque, pelo que se luta,
forma, “uma ‘ficção’ do corpo escrevível: é o poder do qual nos queremos apoderar”
um ‘cenário’ construído pela prospectiva que (FOUCAULT, 2013, p. 10).
visa fazer do corpo aquilo que uma socieda- Na concepção foucaultiana, portanto, o
de pode escrever” (CERTEAU, 1998, p. 300). conceito de verdade é apenas uma perspec-
A casa do romance é a representação do cor- tiva guiada pelos discursos, uma vez que o
po relatado, é o lugar praticado que organiza próprio conhecimento é produto de deter-
a linguagem e delineia a narrativa – nela se minadas perspectivas e deriva de relações
torna possível a expressão feminina: em seus de poder. Tais conceitos são arbitrários e
cantos, suportando os silêncios castradores; são sustentados por sistemas instituciona-
na dialética do interior e do exterior, ao per- lizados que os regulam e os organizam de
mitir o trânsito de vivências e experiências, acordo com os seus interesses; e, sendo as-
numa espécie de festa do corpo, de celebra- sim, o acesso à realidade é dado a partir do
ção da multiplicidade. discurso, ou seja, sob a ótica de vozes do-
No despertar de seu lugar fixo, saindo minantes que interditam, separam e rejei-
de uma marginalidade estável e pleiteando tam os discursos que se opõem às suas re-
a sua emancipação a um espaço relatado, a gulamentações. Os discursos destituídos de
mulher ressignifica o lugar que a constitui voz – que são separados e rejeitados –, por
e o espaço que habita. De acordo com Jean sua vez, são representados de acordo com
Franco (2005), existem inúmeras narrativas a interpretação dos discursos dominantes,
escritas por mulheres que buscam refletir, de podendo-se concluir, portanto, que a verda-
alguma forma, a experiência feminina e defi- de se deslocou do ato da enunciação para o
nir o seu espaço dentro do campo literário, próprio enunciado.
uma vez que tal possibilidade ainda é privi- Entendendo, pois, o discurso como um lu-
légio masculino. Portanto, em decorrência gar estratégico e o conceito de verdade como
do novo contexto literário que se apresenta, um dispositivo que legitima o domínio de
as mulheres promovem uma releitura da re- uma prática discursiva, é possível compreen-
presentação do feminino, relatando os seus der a explanação de Foucault quando propõe
silêncios e tornando públicas as suas vivên- pensar nos discursos como resultados de um
cias que, anteriormente, se restringiam ao condicionamento ao que se deve entender
espaço privado. como verdade, a qual não existe de modo na-
Em A ordem do discurso (2013), Foucault tural, mas é oriunda dos jogos de poder a que
tece uma análise sobre o discurso a partir os discursos estão submetidos. Há, em cada
das relações de poder que se estabelecem época ou momento histórico, o que o filósofo
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 15

chama de dispositivo, isto é, uma estrutura percebe que o discurso literário exige que se
que detém um conjunto de elementos hete- responda quem o escreveu, prescrevendo o
rogêneos – discursos, instituições, leis, enun- autor como um indicador de verdade – para
ciados científicos e proposições filosóficas –, ele “o autor é aquele que dá à inquietante lin-
que é absorvido pelo meio social e estabele- guagem da ficção suas unidades, seus nós de
ce um controle às práticas discursivas. coerência, sua inserção no real” (FOUCAULT,
No âmbito literário, o discurso também 2013, p. 17). Entretanto, o conceito de real
é regulado por sistemas de autoridade, os é oriundo de práticas discursivas institucio-
quais legitimam, a partir de definições arbi- nalizadas e, nesse sentido, valorizar somen-
trárias, práticas discursivas que se adéquam te o discurso literário de quem se propõe a
ao posicionamento ideológico dominante e, reproduzir a realidade criada, é limitar a li-
portanto, são institucionalizadas dentro do teratura a um caráter reprodutor discursivo,
cânone literário. A literatura, por vezes, é descredenciando a multiplicidade discursiva
disciplinada para conservar e reproduzir a que permite novas ressignificações e contes-
“verdade” instituída, sendo uma das respon- tações dos discursos dominantes.
sáveis pela manutenção da arbitrariedade A partir do momento que a expressão
discursiva que se alastrou. Foucault reflete feminina se tornou pública, narrar o priva-
que a literatura ocidental “teve de buscar do pode ser considerada uma ação política,
apoio, durante séculos, no natural, no ve- visto que evidencia a opressão a qual as mu-
rossímil, na sinceridade, na ciência também lheres são submetidas. É importante levar
– em suma, no discurso verdadeiro” (FOU- em consideração nesse estudo, portanto, a
CAULT, 2013, p. 17) e se manteve controlada segunda narrativa que é proposta em Damas
e reduzida às normas impostas pelos discur- de copas – a expressão de Marta não se dá
sos legitimados. O autor discute a importân- somente no relato de sua vida e na inten-
cia dos campos do saber – em que a literatu- ção de escrever um romance, mas também
ra faz parte – como sendo fixadores da hege- através da consumação dessa intenção, nas
monia discursiva e ritualizadores da palavra linhas em itálico que estão escritas dentro
dominante. Contesta, então, a objetividade da narrativa principal. Essa parte da história
da verdade, e propõe a desconstrução dis- pode ser interpretada como um devaneio ou
cursiva a partir do rompimento com os pres- fluxo desvairado de histórias, imagens e liris-
supostos de verdade. Entende que se limitar mos; todavia, há também a possibilidade de
só no conteúdo do discurso é uma forma de se tratar da efetivação da escrita da narrado-
legitimar o discurso dominante – a violência ra e a construção narrativa que ela se propôs
do discurso está na sua formulação, sendo desde o prólogo do romance.
necessário analisar o não-dito que tornou As duas histórias paralelas servem para
possível o que foi dito e observar as lacunas despertar a consciência sobre a voz femini-
e contradições dos discursos, ou seja, explo- na e traz questionamentos que refletem essa
rar o discurso a partir da sua especificidade, necessidade de afirmação da mulher tanto
desconstituído de totalitarismo. no espaço social quanto no simbólico, visto
Trazendo as proposições foucaultianas que ambos são representados no romance e
para a literatura, é possível repensar as ques- ambos são criticados por contribuírem com
tões relativas às práticas teórico-críticas na a segregação feminina. Marta – narradora e
academia, entendendo a necessidade de rup- escritora – tem a intenção de contar a expe-
tura com os sistemas naturalizados, passando riência feminina vivida no sobrado porque
a questionar a arbitrariedade do conceito de percebe um vazio dessa expressão no espa-
valor, tão caro ao discurso literário. Foucault ço literário. A protagonista nota que em sua
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maioria o que se vê são relatos do outro so-


bre a mulher, os quais não levam em consi-
deração subjetividades que trazem múltiplas
interpretações para o ser feminino.
Damas de copas explora mais do que relatos
cotidianos. O romance se constrói a partir da
pluralidade que a expressão feminina permi-
te, sem julgamentos ou pretensão de ser tido
como uma interpretação verdadeira do real. A
crítica do livro foca no espaço – social e simbóli-
co – e na forma como ele conduz as práticas dis-
cursivas, agindo como opressor ou libertador,
dependendo de quem o habita e o relata.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, G. A filosofia do não; O novo espírito


científico; A poética do espaço. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo


e subversão da identidade. Tradução de Rena-
to Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra, 2013.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 3ª


edição. Petrópolis: Vozes, 1998.

COSTA, Cecília. Damas de copas. Rio de Janeiro:


Record, 2003.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Tradu-


ção de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São
Paulo: Edições Loyola, 2013.

FRANCO, Jean. Invadindo o espaço público:


transformando o espaço privado. In: Marcar
diferenças, cruzar fronteiras. Florianópolis:
Editora Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas,
2005.

WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. São Paulo:


Tordesilhas, 2014.
A (IN)DISCIPLINA DO CORPO EM “AVENTURA DE SABER”
Dileane Fagundes de Oliveira (UFSM)
Vera Lucia Lenz Vianna (UFSM)

RESUMO: O presente estudo busca apontar alguns dos papéis e condutas impostos à personagem da
escritora brasileira Nélida Piñon no conto “Aventura de saber”, presente no livro Tempo das frutas
(1997). Para tanto, foi elaborada uma discussão a partir da perspectiva feminista e de gênero, a fim
de averiguar de que maneira a escritora utilizou-se de um perfil feminino, naturalizado no discurso
social, para construir outro - desviante e subversivo - em relação ao modelo de representação
idealizado para as mulheres.
PALAVRAS- CHAVE: autoria feminina, gênero, sexualidade, poder, subversão.

ABSTRACT: This study investigates some of the features and behavior which characterize the cen-
tral character in “Aventura de saber”, a short story by the Brazilian writer Nélida Piñon. The story
is included in Piñon’s book titled Tempo das Frutas ( 1997). To do so, a discussion in the light of
gender and the feminist perspective was conducted to observe which way Piñon represents the na-
turalization of a feminine profile through social discourse to forge another one - non-compliant and
transgressive - with regard to the traditional and idealized model of woman representation.
KEYWORDS: feminine authorship, gender, sexuality, power, transgression

INTRODUÇÃO
A literatura de autoria feminina continua ganhando cada vez mais espaço no cenário literário
brasileiro, como um lugar de representação e problematização de sujeitos interpelados pelas
configurações socioculturais da pós-modernidade. No Brasil, Nélida Piñon configura-se como
uma das grandes representantes da literatura de autoria feminina pela qualidade literária de
sua escrita e pelo valor simbólico de suas reflexões a respeito da mulher. Em sua narrativa,
Piñon articula a rede complexa que envolve a inadequação do sujeito a seus papéis na socieda-
de, tratando de problemas que aparecem, sob um pano de fundo psicológico, mas que mantêm
relações com configurações sociais de determinado momento histórico e que, por conseguinte,
influenciam a construção da identidade da personagem e a maneira como ela vivencia sua se-
xualidade.
É nesse sentido que pensar a sexualidade torna-se bastante problemático, uma vez que, ape-
sar de parecer um assunto privado e individual, esse tema remete a uma coletividade que o
constrói e desconstrói continuamente, uma invenção social que se constitui a partir de múl-
tiplos discursos: por vezes consagrados, por outras censurados. A partir de tal entendimento,
pode-se pensar a sexualidade não mais como um dado natural, universal a todos os seres hu-
manos, mas como uma construção social carregada de historicidade, constituída simbólica e
culturalmente, mediada pelas linhas de força do poder, conforme sugere Foucault. Esses efeitos
das linhas de força do poder sobre a sexualidade feminina interessam investigar, considerando
que se mostram um campo frutífero para analisar construções socialmente cristalizadas.
O presente artigo analisa os discursos que permeiam a sexualidade da personagem mulher,
da escritora carioca Nélida Piñon, e busca evidenciar de que forma a construção literária do
conto “Aventura de saber” (1997), cuja protagonista central é uma professora, representa o
universo escolar e o poder normativo exercido em seu corpo.
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BREVE TRAJETÓRIA DA MULHER coordenadas do sistema sociocultural ainda


NA LITERATURA BRASILEIRA vigente estabelecem profundas diferenças
No Brasil, a literatura de autoria feminina vem entre o ser-homem e o ser-mulher.
ganhando espaço no panorama literário, pro- No artigo A literatura feminina no Brasil:
porcionando um corpus mais abrangente e di- panorama histórico-literário, presente no li-
verso do que se tinha em fases anteriores aos vro Dicionário crítico de escritoras brasileiras
anos 1970. Com esse representativo aumen- (2002), Coelho afirma que a literatura é um
to, torna-se relevante reavaliar e repensar as verdadeiro sismógrafo a registrar na nascen-
concepções literárias, e até mesmo o cânone te todos os movimentos de convulsão, revolu-
literário brasileiro, bem como lançar um olhar ção, imobilismo que, através dos tempos, tem
mais cuidadoso em relação à representação transformado as relações homem-mundo.
da mulher no referido contexto. Nesse sen- Para a autora, como se está vivendo em
tido, a crítica feminista passa a ter um papel um desses momentos de apocalipse e gêne-
extremamente relevante na representação e se, a literatura vem se oferecendo como um
ampliação de seu objeto de estudo. dos instrumentos mais fiéis de auscultação e
De acordo com Heloísa Buarque de Holan- registro do caos de valores em que o mun-
da (1994), a Crítica Literária Feminista con- do mergulhou no pós-naufrágio da razão e
solida-se no início dos anos sessenta, no ex- do sistema patriarcal herdado, sem que ne-
terior e no Brasil, com base em publicações nhum outro tivesse surgido no horizonte
críticas que se destinam ao estudo específico para substituí-lo.
de obras de autoria feminina. O objetivo é A pesquisadora elucida sua problemati-
dar visibilidade à autoria feminina, além de zação com a pergunta: por que privilegiar a
obter elementos com base na qualidade da literatura escrita por mulheres para auscul-
produção, visando sua inserção nos estudos tar o caos?
acadêmicos. Claro que a causa primeira não é exclu-
Coelho (1993) explica ainda que não se po- sivamente literária (discussões sobre dife-
deria falar em literatura feminina antes que renças de valor entre criação literária de
o termo fosse cunhado, na década de 1960, homens e de mulheres são inócuas...). Nes-
como uma espécie de respiração, de sopro vi- sa esfera, o que distingue o valor da obra é o
tal, de silêncios densos, algo meio mágico, que talento do criador ou da criadora, não o seu
diferenciaria a voz da mulher, pois, se fosse sexo. A resposta para esta escolha estaria,
mapeado o percurso da mulher na história, pois, numa evidência incontestável: se nes-
será possível observar que, a partir da revo- se naufrágio de valores as coisas mudaram
lução do movimento feminista, ela passa a de maneira irreversível para o homem, em
buscar seu espaço e a reivindicar direitos que relação à mulher, tais mudanças evoluíram
antes não lhe eram favoráveis. Como conse- em proporção geométrica e alteram não só
quência, a mulher vê na escrita uma forma de seu lugar na sociedade, mas principalmente
reivindicação de seu lugar e de autoafirmação sua consciência do próprio eu, em relação a
como sujeito da própria liberdade. imagem -de- mulher da tradição e em face do
Ao discorrer sobre a existência de uma mundo em transformação (ivi, p.17).
voz de autoria feminina, Coelho (1993) en- Segundo Coelho (2002), não há dúvida de
tende que a questão da escritura é de or- que o atual interesse pela literatura escrita por
dem cultural e estabelecida pela sociedade mulheres está visceralmente ligado à transfor-
patriarcal. É através dessa perspectiva que, mação cultural-social-ética-existencial em pro-
sem dúvida, pode-se falar em uma literatura cesso, e que vem expressando-se na poesia, no
feminina e uma literatura masculina, pois as romance, na ficção, no teatro, no ensaio. No en-
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 19

tanto, como essa metamorfose não é um fenô- GÊNERO E SEXUALIDADE


meno em si, mas o resultado de algo que vem CAMINHOS POSSÍVEIS
de muito longe, a literatura feminina do pas- É interessante refletir como os processos de
sado ganhou também um novo interesse: nela construção corporal sexuada têm buscado
está a memória dos tempos em que os valores, normatizar as mulheres, sua postura diante
hoje questionados ou deteriorados, foram ins- do mundo, suas ações e reações, sua socia-
taurados como ideais a serem vividos. bilidade. A sexualização dos corpos não se
A partir dos anos setenta do século XX, dá pela anatomia, mas pelo enquadramento
conforme dados revelados pela estudiosa, em uma ordem social normativa. As práticas
a produção literária da mulher é crescente. discursivas refletem e produzem corpos e
Esse fato caracteriza-se pela inegável emer- comportamentos. Nesse sentido, deseja-se
gência do diferente, da descoberta da alte- destacar a não linearidade de um proces-
ridade, das vozes divergentes – muitas ve- so que inclui violência simbólica e que tem
zes, sufocadas ou oprimidas pelo sistema de encontrado, por um lado, resistências per-
valores dominante. Não há dúvida de que o sistentes das mulheres para romper com
crescimento da produção literária de autoria tal ordem sociossexual. Uma das formas de
feminina no Brasil traz alterações ao mundo resistência das mulheres ganhou força e ex-
herdado do passado. pressividade com o advento do feminismo.
Ultrapassando a barreira do silêncio a que As reivindicações feministas abriram novas
se viu historicamente condenada, a mulher possibilidades para pensar as práticas cultu-
veio, lentamente, inserindo-se em diversos rais atuantes.
caminhos, entre eles o da produção literária. Pode-se dizer que o final da década 1960
Agora, não mais como objeto de representa- e as décadas seguintes, 1970 e 1980, são mo-
ção ou do desejo, mas como sujeito agente, ar- mentos nos quais as diferenças entre os sexos
ticulando-se através de uma voz, de uma lin- passam a ser explicadas em termos teóricos
guagem e de uma escrita próprias. Afinal, ao pelas feministas, que passam a compreender
inscreverem-se no discurso, as mulheres abri- o sujeito social em sua pluralidade, nas dife-
ram a discussão de seu papel na sociedade. rentes relações que estabelecem subjetiva-
Além disso, a presença de outras vozes dentro mente com a realidade, entre os espaços sim-
do discurso dominante colaborou para iniciar bólicos de representações que dão sentido ao
a desestabilização do sistema patriarcal. mundo, não mais, resumindo-se a explicações
A escrita de autoria feminina vem dando biológicas reducionistas. O que está em foco é
um novo rosto à literatura brasileira, seja a dinâmica das representações que são cons-
pelo resgate de textos de escritoras do sécu- truídas culturalmente. Com isso, a linguagem,
lo XIX, seja pelas escritoras contemporâneas em suas diferentes manifestações, passa a ser
representativas da literatura brasileira. Mu- entendida como prática, espaço utilizado pe-
lheres escritoras que, resistindo às críticas, los sujeitos para se comunicar com o mundo,
foram conquistando o espaço até então des- dotada de valores e julgamentos, e, portanto,
tinado aos homens, e questionando os pa- lugar de embates de poderes, que tanto pode
péis sociais que impõem às mulheres invisi- manter ou subverter discursos que fundam e
bilidade intelectual e social. A produção lite- legitimam noções naturalizadas de gênero e
rária de autoria feminina também constitui de sexualidade.
um dos lugares possíveis para acompanhar Para alicerçar a análise aqui proposta, é
o processo de sua des-historização e gradu- necessário retomar alguns conceitos de gê-
al arrancada política em direção a ruptura e nero, que, de acordo com Scott (1990), exis-
correção de valores arbitrários. tem duas proposições. Na primeira, “[...] o
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gênero é um elemento constitutivo de rela- gênero não está para a cultura como o sexo
ções sociais baseadas nas diferenças perce- para a natureza; ele também é um meio dis-
bidas entre os sexos” (ivi, p.86); na segunda, cursivo-cultural pelo qual a natureza sexuada
o gênero é “[...] forma primária de dar signi- ou o sexo natural é produzido e estabelecido
ficados às relações de poder” (ibidem). Essa como pré-discursivo, anterior à cultura uma
relação entre o gênero e as relações sociais, superfície neutra sobre a qual age a cultura.
segundo a autora, implica perceber como os Nesse sentido, a filósofa descontrói a con-
símbolos culturais circulam, em que contex- cepção de sexo como um dado natural do gê-
tos as “[...] representações simbólicas são nero, ao fazer sua distinção ela apresenta um
invocadas [...]” (ibidem), para com isso com- questionamento que direciona o olhar não
preender como os significados são historica- mais para a origem dessas categorias, mas
mente construídos e impostos em um deter- para os efeitos de poder que muitas institui-
minado contexto, em sua inevitável relação ções definidoras exercem sobre elas:
com o poder. Por conseguinte, Joan Scott
(1990) desnaturaliza as diferenças biológi- Explicar as categorias fundacionais de
cas entre os sexos, e afirma a necessidade de sexo, gênero e desejo como efeitos de uma
se pensar as categorizações que envolvem a formação específica de poder supõe uma
definição do que é ser homem e do que é ser forma de investigação crítica, a qual Fou-
mulher como instâncias instáveis e inacaba- cault, reformulando Nietzsche, chamou de
das, que se modificam conforme o contexto e “genealogia”. A crítica genealógica recusa-
a cultura em que estão inseridos. se a buscar as origens do gênero, a verdade
Para pensar criticamente sobre a proble- íntima do desejo feminino, uma identida-
mática dos gêneros é necessário “[...] explo- de sexual genuína ou autêntica que a re-
dir essa noção de fixidez, em descobrir a na- pressão impede de ver; em vez disso, ela
tureza do debate ou da repressão que leva a investiga as apostas políticas, designando
aparência de uma permanência intemporal como origem e causa categorias de identi-
na representação binária do gênero.” (ivi, p. dade que, na verdade, são efeitos de insti-
87). Por esse motivo, é relevante considerar tuições, práticas e discursos cujos pontos
o contexto em que estão inseridas determi- de origem são múltiplos e difusos. A tarefa
nadas noções sobre o homem e a mulher. dessa investigação é centrar-se – e descen-
Outra contribuição importante aos estu- trar-se – nessas instituições definidoras: o
dos de gênero pode ser encontrada no livro falocentrismo e a heterossexualidade com-
Problemas de gênero: o feminismo e a sub- pulsória (ivi, p. 9).
versão da identidade (2015), de Judith Butler.
Nessa obra, Butler descontrói algumas con- Butler ainda afirma que: como genealo-
cepções de sexo e gênero apresentadas por gia da ontologia do gênero, sua investigação
alguns teóricos e, nesse sentido, afirma que busca compreender a produção discursiva
se sexo é ele próprio, uma categoria tomada da plausibilidade da relação binária que con-
em seu gênero, não faz sentido definir o gêne- trapõe como opostos o “real” e o “autêntico”,
ro como uma interpretação cultural do sexo. e sugerir que certas configurações culturais
O gênero não deve ser meramente concebido do gênero assumem o lugar do “real” con-
como a inscrição cultural de significado em solidam e incrementam sua hegemonia por
um sexo previamente dado (uma concepção meio de uma autonaturalização apta e bem
jurídica); tem de designar também o apara- sucedida. É nesse sentido que se objetiva
to de produção mediante o qual os próprios apontar na presente análise, a forma como
sexos são estabelecidos. Resulta daí que o os discursos constituem a personagem do
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 21

conto em questão, e como os discursos do sa- uma determinada cultura e, portanto, com
ber oficial reforçam as estruturas compulsó- as marcas da mesma. Ainda acrescenta que
rias criadas pelas várias forças que policiam as identidades de gênero e sexuais são, por-
a aparência social do gênero. tanto, compostas e definidas por relações
Homens e mulheres não apresentam uma sociais, são moldadas pelas redes de poder
essência que os define e os separe, mas sim de uma sociedade:
práticas e representações cotidianas cons-
truídas e mediadas pelos indivíduos deten- se múltiplas instâncias sociais, entre elas
tores do poder simbólico. a escola, exercitam uma pedagogia da
Assim como o gênero a sexualidade tam- sexualidade e do gênero e colocam em
bém é um tema profícuo para pensar as re- ação várias tecnologias de governo, esses
lações de poder implicadas na constituição processos prosseguem e se completam
do sujeito feminino. O livro O corpo educado: através de tecnologias de autodisciplina-
Pedagogia da sexualidade (2001), de Guaci- mento e autogoverno que os sujeitos exer-
ra Lopes Louro, esclarece alguns aspectos a cem sobre si mesmos. Na constituição de
respeito do corpo e da sexualidade que são mulheres e homens, ainda que nem sem-
de total importância para o entendimento pre de forma evidente e consciente, há um
dessas categorias. Esse estudo coloca em investimento continuado e produtivo dos
evidencia o corpo e a sexualidade não como próprios sujeitos na determinação de suas
questões pessoais, mas compreendidos como formas de ser ou “jeitos de viver” sua sexu-
produções históricas. Nesse sentido, pode-se alidade e seu gênero (ivi, p.26).
acrescentar a pertinente afirmação da autora
de que as várias possibilidades de viver pra- Entre as determinações das formas de
zeres e desejos corporais são sempre suge- ser e viver, esses ambientes produzem e
ridas, anunciadas, promovidas socialmente, incentivam identidades fixas, modelos de
são renovadamente reguladas, condenadas identidade de gênero ditas “normais,” há
ou negadas. Para ela, desde os anos sessenta, uma vigilância constante aquelas que fo-
o debate sobre as identidades e as práticas gem a esses modelos sendo submetidos a
sexuais e de gênero ganham cada vez mais uma pedagogia da sexualidade que legitima
visibilidade, especialmente pelo movimento determinadas identidades e práticas sexu-
feminista, pelos movimentos gays e de lésbi- ais e reprime e marginaliza outras. Para
cas e por aqueles que se sentem ameaçados Louro, muitas outras instâncias sociais,
por tais manifestações. como a mídia, a igreja, a justiça dentre ou-
Essa concepção de sexualidade contra- tras, também praticam tal pedagogia, seja
ria aquelas que a veem como algo que ho- coincidindo na legitimação e denegação de
mens e mulheres possuem naturalmente, sujeitos, seja produzindo discursos disso-
inerente ao ser humano, vivida pelos cor- nantes e contraditórios.
pos de uma maneira universal, pois está É nesse sentido que, na contemporaneida-
mais ligada a processos culturais e plurais. de, identidades historicamente subjugadas
A autora sugere que “através de processos emergem socialmente, dando visibilidade
culturais, definimos o que é ou não natural; a discursos disciplinantes, com o intuito de
produzimos e transformamos a natureza e a evidenciar-lhes efeitos, desestabilizá-los e in-
biologia e, consequentemente, as tornamos serir em tal cenário a voz desses sujeitos re-
históricas” (ivi, p.11). Entende-se que a ins- escrevendo novas formas de representações
crição dos gêneros feminino ou masculino culturais.
nos corpos é feita, sempre, no contexto de
22 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

QUANDO SUBVERTER A escola, enquanto aparelho ideológico


TAMBÉM É SABER do estado funciona como uma das instâncias
Nélida Piñon nasceu no Rio de Janeiro, em que institui e dissemina um saber regulató-
03 de maio de 1937. Sua família é originária rio acerca da imagem da professora.
de Cotobade, região da Galícia, e radicada No conto, Nélida Piñon inicia a narrativa
no Brasil desde a década de 1920. Formou- enfatizando a imagem da personagem cen-
se em jornalismo na Universidade Federal tral como um ser devotado à profissão, des-
do Rio de Janeira e, em seguida, começou a corporificado e dessexualizado. Diz a narra-
trabalhar no jornal O Globo. Dedicou-se ao dora:
exercício literário, assim como à atividade
universitária. Em 1970, inaugurou a cadeira Recebida na escola, após a sua estranha
de criação literária, na Faculdade de Letras doença, disse-lhe o diretor: - É bom tê-la
da UFRJ. Em dezembro de 1996, tornou-se a de volta, professora. Embora amável, a
primeira mulher a presidir a Academia Bra- observação envergonhava. Anos de profis-
sileira de Letras, em cem anos de existência. são e ainda não dominara o sortilégio, os
O conto “Aventura de saber” faz parte do pequenos homens entregues a sua voraci-
livro Tempo das frutas, publicado em 1966. dade. Às vezes a vantagem comovia-a, de-
Em seu primeiro livro de contos, Nélida Piñon pois um ódio dominante, medo da infinita
mostra ser tão talentosa nas narrativas cur- liberdade degenerar quando se destinara
tas quanto no romance. Com sua linguagem a educar. Conhecia os limites, daí confun-
impecável e poética, explora os sentimentos dir-se. Reaproximando-se das coisas, para
mais profundos de cada personagem; em impor seu hábito antigo avistou o meni-
cada história ela constrói uma ressignificação no que se aproximava. Apenas um jardim
do feminino, suas personagens representam abandonado, e logo pressentiu que apesar
mulheres fortes que subvertem os estereó- do seu indomável desejo, ensinaria aquele
tipos associados ao feminino. Ao criar uma corpo a desistir, que esturgia dentro das
nova roupagem para as representações do roupas. [..]. Foi então que gritou, já não
feminino em Tempo das frutas, averigua-se a dispensava a rudeza para conviver com as
escrita militante de Nélida Piñon. coisas (ivi, p. 37).
No conto “Aventura de saber”, Nélida
Piñon desnuda a representação da mulher Após sua estranha doença, a professo-
professora, subvertendo o imaginário social ra retorna à escola, e logo se depara com o
que envolve as mulheres que exercem essa menino que a perturba. Em vão ela tenta,
profissão. Por meio da ótica da narradora, por meio de um comportamento insensível
percebe-se que os conflitos existenciais liga- para com ele, reprimir e negar essa atração.
dos tanto à descoberta de uma paixão, quan- Passa então a maltratá-lo, expulsá-lo da sala
to ao aflorar do desejo sexual decorrem dos sem ao menos ele entender o porquê, a sua
efeitos de um comportamento cerceado por rudeza o afasta não só de sua presença, mas
um poder normativo disciplinador que, por da escola.
muitos anos, perpetuou a conduta de mui- O comportamento da professora frente
tas mulheres professoras. Nélida constrói a à instituição e a reação repreensiva com o
narrativa alicerçada em alguns estereótipos aluno, pode ser, de certa forma, associada
recorrentes à profissão para justamente dar ao que Elódia Xavier denomina de corpo
conta de desestabilizá-los. A personagem só disciplinado, tipologia da representação
consegue a emancipação de sua sexualidade do corpo que ela desenvolve a partir do
quando rompe com esse poder. estudo densenvolvido por Arthur Frank. A
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 23

respeito da reação do corpo disciplinado a Sem magoar o que pertencia ao mundo, a


autora acrescenta: “Quando a disciplina in- professora tomou seu pulso, até o menino
terna não pode mais neutralizar o tema de corar. Percebia o perigo, que o interpreta
sua própria contingência, o corpo discipli- no gesto simples. E sendo isto o que man-
nado, migra para a dominação, subjugando cha a vida, tanto instalava-se entre eles. O
o corpo dos outros a um controle que ele menino abaixou a cabeça, com medo. Con-
não pode exercer sobre si mesmo” (Xavier, fundia-o o mundo que, embora aderisse à
2007, p. 67). sua pele envelhecendo-a, dera-lhe forma-
No momento em que a professora luta ção imperfeita. Você ainda não é homem,
contra o desejo que insiste em dominá-la, apesar dos indícios, dizia-lhe a consciência.
percebe-se o poder da assimilação de con- E nem os sinais sensíveis o comoviam. Pen-
dutas pré-estabelecidas que naturalizam sua sa então que a professora conhecia os seus
imagem como uma mulher distinta, severa, mistérios porque os dominara. E a cada
atenta, de intocável moralidade: descoberta, esta impressão o acompanhava
(ibidem, p. 37).
Na aula inicial, logo aquele rosto inquieto.
Teve medo de olhar, mas o menino a acom- A disciplina a que ela se submete se es-
panhara, parecendo seu o grito de que pre- garça aos poucos nos momentos em que ir-
cisava da vida. Àquela insistência, resistiu rompe a fantasia, momentos em que extra-
por muito tempo. Depois, porque se cansa- vasa seus desejos sexuais: “E também ima-
ra, olhou também, com severidade, impres- ginou nu, semelhante imagem perturbando.
sionada com a tristeza que o amolecia, em- Procurou desviar seus olhos, esquecê-lo,
bora suas convicções excluíssem piedade. mas o menino a dominava” (ivi, p. 39). Em
Não se afastaria de um sistema cruelmente outro momento, começa a ter sonhos eróti-
construído. (ivi, p. 38). cos, ambos estão assistindo a uma palestra
de um padre: trocam olhares em um jogo de
Nesse fragmento fica explícito o senti- sedução:
mento da professora com relação ao sistema
que denomina de “cruelmente construído”, Todo o olhar que dele recebia, era um olhar
mas é notório que, apesar de ter consciên- de homem e pensou estarem dentro de um
cia de sua condição, ainda mantém-se presa quarto, havia uma grande cama grudada à
a certos valores e práticas que corroboram parede. [...] E parecia-lhe, na sua visão, que
sua conduta pessoal e profissional: se amavam com ferocidade, a despeito da
invasão da pobreza do quarto, do suor que
Ela deveria ser disciplinadora de seus alu- os emagrecia pouco a pouco de perderem a
nos e alunas e, para tanto, precisava ter noção do dia [...] do quarto com uma gran-
disciplinado a si mesma. Seus gestos deve- de cama, encostada na parede, queria ofe-
riam ser contidos, seu olhar precisaria im- recer-lhe a sua incerta fidelidade, começou
por autoridade. Ela precisaria ter controle a gritar, enquanto ele, agora inexplicavel-
da classe, considerado um indicador de mente, pois antes estavam igualmente nus
eficiência ou de sucesso na função docente na cama, arrancava-lhe as roupas, rasgan-
(LOURO, 2007, p. 467). do o que ele se opunha, até ver a superfície
da sua pele, haveria de roçá-la como uma
No texto, a narradora mostra o contato en- carne se descontrola naquela lassidão es-
tre a professora e o aluno da seguinte forma: corregadia (ivi, p. 41-42).
24 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Esse fragmento evidencia por meio des- anseios sexuais e amorosos, foge ao modelo
sa atmosfera erótica, o anseio de concreti- legitimado à conduta de mestra. A mulher-
zar seus desejos sexuais com o menino. Aos -professora, ao exercer livremente sua se-
poucos, a autora descontrói imagens, rees- xualidade e seu poder de sedução subverte
crevendo novos sentidos a representação da muito dos padrões sociais da época, lem-
professora. Esses momentos, de certa forma, brando que o conto foi publicado em 1966,
preparam o terreno para uma mudança que período de efervescência política do feminis-
germina no interior da personagem. mo na luta pelos direitos das mulheres.
Quando retorna, professora e aluno, lon- Muito mais que uma aventura, há nessa
ge do controle do ambiente escolar, ou seja, narrativa, como o próprio título sugere,
afastados das normas, entregam-se de forma uma ‘aventura de saber’ em que professora
indisciplinada aos saberes do amor e da vida. e aluno são protagonistas de um outro jogo,
Ambos tornam-se aventureiros na busca de descobrem um outro saber sobre a vida. A
um pelo outro. Nesse relacionamento é a relação da professora/aluno permite à per-
mulher que direciona os caminhos a serem sonagem finalmente, controlar seu corpo,
seguidos, o menino ainda inexperiente en- resgatar sua sexualidade adormecida pela
volve-se, errante nesse novo universo, em- imposição do que Bourdieu (2012, p. 9) de-
bora ela o enxergue como um homem. nomina ‘eternização do arbitrário’ que, como
Apesar de a todo momento a protagonista viemos chamando a atenção, faz parte de um
sugerir a velhice de seu corpo, comparada a processo de elaboração e imposição de for-
juventude do menino, esses questionamen- mas de coerção concebidas no plano social,
tos aparecem como uma maneira de deses- político, ideológico, entre outros. No conto, a
tabilizar mais um discurso cristalizado pela única possibilidade de comportamento acei-
sociedade que recrimina relacionamentos to pela profissão, seria aquela da professo-
entre pessoas de diferentes idades. Há nes- ra disciplinada e disciplinadora. Apesar de
se contexto novas formas de viver a sexua- no final do conto a professora descobrir-se
lidade, indiferente à idade da mulher. Tanto apaixonada pelo menino, e perceber que de
seu comportamento quanto o cuidado com certa forma ela o havia perdido, o que preva-
a aparência mudam após essa experiência, lece é a experiência de subverter a imposição
refletindo também em nova maneira de en- de uma identidade forjada a priori.
carar a sala de aula.
A representação feminina criada por Nélida CONSIDERAÇÕES FINAIS
Piñon traz consigo os sentimentos de muitas Nas representações que figuram nas narra-
mulheres professoras e, por extensão de outras tivas literárias contemporâneas, é comum
mulheres, que foram impedidas de viver sua encontrarmos uma perspectiva distante das
sexualidade, pois o sistema educacional e social primeiras escritas femininas que reiteravam
construiu uma vigilância em torno da livre ex- padrões patriarcais de poder ou construíam
pressão da sexualidade, aspecto que confirma representações diferenciadas para as perso-
o processo de disciplina dos corpos que opera- nagens femininas de maneira ainda tímida.
ram como um exercício de poder e controle. Cabe à escritora contemporânea lançar-se a
Nesse conto, a escritora faz um movimen- novos temas, promover desassossegos cons-
to contrário à representação social estipula- tantes em suas criações literárias, represen-
da para as mulheres professoras, pois a per- tar a mulher e seu ‘território selvagem’- aqui
sonagem renegocia sua identidade quando pensado em termos de prazer, indisciplina,
transgride o imaginário social construído em agenciamento, asserção. Em “Aventura de sa-
torno de si, ao deixar-se envolver por seus ber”, Nélida Piñon desnuda a figura homoge-
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 25

neizada da mulher professora como sujeito REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


disciplinado limitado pela sociedade e cons-
trói outra, a da mulher que se aventura na bourdieu, Pierre. A Dominação Masculina.
paixão conduzindo o masculino à descoberta Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
da vida, do desejo quando também é condu-
zida a novas experiências. butler, J. Problemas de gênero: o feminismo e
Ao expor os conflitos decorrentes do pro- a subversão da identidade. Traduzido por Re-
cesso de disciplinamento que a personagem nato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
impõe ao seu corpo, a autora traz à tona os leira, 2015.
efeitos do poder regulatório exercido pela
escola. Ela dá visibilidade a esses construtos coelho, Nelly Novaes. A literatura feminina no
sociais, mostrando que eles, no entanto, são Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano,
passíveis de transformações, desde que os 1993.
sujeitos reconheçam sua capacidade de pro-
duzir estratégias de resistência. Na narrativa, ______. Dicionário de escritoras brasileiras. São
os conflitos vivenciados pela professora não Paulo: Escrituras, 2002.
se tornam públicos. Apesar de, em alguns
momentos, ela extravasar seus sentimentos, foucault, Michel. Microfísica do poder. 11ª. Ed.
os mesmos são, de certa forma, dissimula- Rio de Janeiro: Graal,1993.
dos, portanto, podemos dizer que o poder
que a instituição exerce sobre ela não é de hollanda, Heloisa Buarque. de (org). Tendên-
todo descartado. Ele continua operando, si- cias e impasses: o feminismo como crítica da
lenciosamente, mais em sua forma simbólica cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
do que através da palavra autoritária. Certos
comportamentos e condutas naturalizados louro, Guacira Lopes. Mulheres na sala de aula. In:
pela personagem mostram a dificuldade do del priore, m. (Org.). História das mulheres no
indivíduo de reverter valores ditos ‘univer- Brasil. São Paulo: Contexto, 2007. p. 443-481.
sais’. A aventura entre a professora e o aluno
é vivida longe do espaço escolar, o que tam- ______. O corpo educado: pedagogias da sexuali-
bém favorece uma abertura maior dos sen- dade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
tidos.
Acredita-se que a referida narrativa cum- piñon, Nélida. Tempo das frutas. Rio de Janeiro:
pre a função de, através do texto e do fazer Record, 1997.
literário conduzido pela mão de uma mulher,
problematizar discursos e práticas históri- scott, Joan. Gênero: uma categoria útil de análi-
cas, desestabilizando noções essencialistas a se histórica. Educação e Realidade.
fim de promover novos sentidos e valores. O
texto corrobora a ideia de que vozes e corpos Porto Alegre, vol. 15, n 2, jul/dez 1990, p. 71-99.
disciplinados podem resignificar suas práti-
cas através de um conhecimento e de uma xavier, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no
vivência mais humanizadores. Do mesmo imaginário feminino. Florianópolis: Editora
modo, o conto de Piñon nos faz perceber que Mulheres, 2007.
a construção e a articulação de novas formas
de identificação - longe do controle da vio-
lência física e simbólica - podem e devem ser
forjadas.
26 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Dileane Fagundes de Oliveira é graduado


em Letras pelo Centro Universitário Francis-
cano e mestranda em Estudos Literários no
Programa de Pós-Graduação da Universida-
de Federal de Santa Maria – RS, sob orienta-
ção da Profª. Dra. Vera Lucia Lenz.
Contato: dileanef@yahoo.com.br

Vera Lucia Lenz Vianna é doutora em Letras


pela Universidade Federal do Rio Grande
Do Sul, área de Literatura Comparada. Atua
como Professora Associada no Departamen-
to de Letras Estrangeiras Modernas e no Pós-
Graduação em Letras da Universidade Fede-
ral de Santa Maria. Pesquisa questões sobre
literatura e figurações da alteridade que
agrega estudos de autoria feminina , etnia e
questões de identidade cultural.
Contato: lenzvl@gmail.com
A SEMENTE DA LIBERTAÇÃO FEMININA NO CONTO
COLHEITA DE NÉLIDA PIÑON

Dileane Fagundes de Oliveira¹

RESUMO: A literatura é uma forma de expressão do homem, ou seja, um espaço para representações
do sujeito e das suas relações com a sociedade; e como a literatura acompanha o homem em suas
evoluções, acredita-se que o interesse crescente pela literatura de autoria feminina está visceral-
mente ligado às transformações culturais. A partir dessa questão, o presente estudo busca apontar
os papéis impostos à mulher pelo patriarcado e os efeitos desta opressão através da representação
do pensamento e das práticas sociais das personagens de Nélida Piñon no conto Colheita, presente
no livro Sala de armas (1973). Com isso, objetiva-se discutir a construção da identidade feminina a
partir das relações de gênero e consequentemente das relações de poder imbricadas nesse processo
através da ótica feminina. Desse modo, espera-se destacar o papel que a narrativa de Nélida Piñon
desempenha ao interferir no pensamento em torno do ‘eterno feminino’, inscrevendo na literatura
nacional questões que são fundamentais para a superação de modelos discriminatórios presentes
na sociedade brasileira.

PALAVRAS-CHAVE: Feminino. Identidade. Literatura.


ABSTRACT:Literature is a form of expression, a space for representations of the subject and of his
relations with society; and as literature follows the man into their developments, it is believed that
the icrease interest in literature written by women are viscerally attached to the cultural transfor-
mations. From this point, the present study points out the roles imposed on women by the patri-
archate and the effects of this oppression through the representation of thought and social practices
of the characters of Nélida Piñon in the tale Colheita, inserted in Sala de armas book (1973). With
that, the goal is to discuss construction of the female identity from gender relations and consequent-
ly the power relations in the process through the interwoven female perspective. Thus, it is expected
to highlight the role that the narrative of Nélida Piñon plays by interfering in thinking around the
‘eternal feminine’, enrolling in the national literature issues that are key to overcoming discrimina-
tory models present in Brazilian society.
KEYWORDS: Female. Identity. Literature.

INTRODUÇÃO
A literatura de autoria feminina vem ganhando cada vez mais espaço no cenário literário bra-
sileiro como um espaço de representação dos sujeitos interpelados pelas configurações socio-
culturais da pós-modernidade. Nélida Piñon é uma das principais representantes da literatura
de autoria feminina pela qualidade literária de sua escrita e pelo valor simbólico de suas re-
flexões a respeito da mulher em sua obra. Em sua narrativa, Piñon articula a rede complexa
que envolve a inadequação do sujeito a seus papéis na sociedade, tratando de problemas que
aparecem, sob um pano de fundo psicológico, mas que mantêm relações com configurações
sociais de determinado momento histórico e que, dessa forma, influenciam a construção da
identidade da personagem. Demonstrar a maneira como isso ocorre no conto Colheita (1973)
presente no livro Sala de Armas, da escritora Nélida Piñon, é o nosso propósito neste artigo.
28 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

1. O FEMININO NA LITERATURA das do sistema sociocultural ainda vigente


No Brasil a literatura de autoria feminina estabelecem profundas diferenças entre o
vem ganhando espaço no panorama literário ser-homem e o ser-mulher.
proporcionando um corpus mais abrangen- No artigo A literatura feminina no Brasil:
te e diverso do que se tinha em fases ante- panorama histórico-literário, presente no li-
riores aos anos 70. Com esse representativo vro Dicionário crítico de escritoras brasileiras
aumento, torna-se relevante reavaliar e re- (2002), Coelho afirma que a literatura é um
pensar as concepções literárias, e até mesmo verdadeiro sismógrafo a registrar na nascen-
o cânone literário brasileiro, bem como um te todos os movimentos de convulsão, revolu-
olhar mais cuidadoso em relação à represen- ção, imobilismo que, através dos tempos, têm
tação da mulher dentro desse contexto. Nes- transformado as relações homem-mundo.
se sentido, a crítica feminista passa a ter um Para a autora, como se está vivendo em
papel extremamente relevante na represen- um desses momentos de apocalipse e gêne-
tação e ampliação de seu objeto de estudo. se, a literatura vem se oferecendo como um
De acordo com Heloísa Buarque de Holan- dos instrumentos mais fiéis de auscultação e
da (1994), a Crítica Literária Feminista con- registro do caos de valores em que o mun-
solida-se no início dos anos sessenta, no ex- do mergulhou no pós-naufrágio da razão e
terior e no Brasil, com base em publicações do sistema patriarcal herdado, sem que ne-
críticas que se destinam ao estudo específico nhum outro tivesse surgido no horizonte
de obras de autoria feminina. O objetivo é o para substituí-lo.
de dar visibilidade à autoria feminina, além A pesquisadora elucida sua problematização
de obter elementos com base na qualidade com a pergunta: por que privilegiar a literatura
da produção, para poder propor sua inser- escrita por mulheres para auscultar o caos?
ção nos estudos acadêmicos.
Coelho (1993) explica ainda que não se po- Claro que a causa primeira não é exclusiva-
deria falar em literatura feminina antes que mente literária (discussões sobre diferenças
o termo fosse cunhado, na década de 1960, de valor entre criação literária de homens e
como uma espécie de respiração, de sopro vi- de mulheres são inócuas...). Nessa esfera, o
tal, de silêncios densos, algo meio mágico, que que distingue o valor da obra é o talento do
diferenciaria a voz da mulher, pois, se fosse criador ou da criadora, não o seu sexo. A res-
mapeado o percurso da mulher na história, posta para esta escolha estaria, pois, numa
observar-se-á que a partir da revolução do evidência incontestável: se nesse naufrágio
movimento feminista a mulher passa a buscar de valores as coisas mudaram de maneira
seu espaço e a reivindicação de direitos que irreversível para o homem, em relação à mu-
antes não lhe eram favoráveis. Como consequ- lher, tais mudanças evoluíram em proporção
ência disso, a mulher vê na escrita uma forma geométrica e alteram não só seu lugar na
de reivindicação de seu lugar e de autoafirma- sociedade, mas principalmente sua consci-
ção como sujeito de sua própria liberdade. ência do próprio eu, em relação a imagem
Ao discorrer sobre a existência de uma voz -de- mulher da tradição e em face do mundo
de autoria feminina, Coelho (1993) entende em transformação (COELHO, 2002, p.17).
que a questão da escritura é de ordem cul-
tural e está na condição masculina ou femi- Segundo Novaes (2002), não há dúvida
nina estabelecida pela sociedade patriarcal. de que o atual interesse pela literatura es-
É através dessa perspectiva que, sem dúvida, crita por mulheres está visceralmente ligado
pode-se falar em uma literatura feminina e a essa transformação cultural-social-ética-
uma literatura masculina, pois as coordena- -existencial em processo, e que vem expres-
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sando-se na poesia, no romance, na ficção, no 2. UM OLHAR SOBRE NÉLIDA PIÑON


teatro, no ensaio. No entanto, como essa me- NA LITERATURA BRASILEIRA
tamorfose não é um fenômeno em si, mas o Nélida Piñon, jornalista, romancista, contis-
resultado de algo que vem de muito longe, a ta, professora, carioca da Vila Isabel, Rio de
literatura feminina do passado ganhou tam- Janeiro, RJ, nasceu em 3 de maio de 1937.
bém um novo interesse: nela está a memória Sua família é originária da Galiza, radicada
dos tempos em que os valores, hoje questio- no Brasil desde a década de 1920. Foi a quar-
nados ou deteriorados, foram instaurados ta mulher a ser eleita para a Academia Bra-
como ideais a serem vividos. sileira de Letras (1990), em 27 de julho de
A partir dos anos setenta do século XX, con- 1989, para a Cadeira número 30, na sucessão
forme dados revelados por Novaes (1993), de Aurélio Buarque de Holanda; foi recebida
a produção literária da mulher é crescente. em 3 de maio de 1990, tendo, inclusive, a
Esse fato caracteriza-se pela inegável emer- honra de ser a primeira mulher presidente
gência do diferente, da descoberta da alteri- da Academia Brasileira de Letras.
dade, das vozes divergentes – muitas vezes, Importante representante da literatura de
sufocadas ou oprimidas pelo sistema de va- autoria feminina no Brasil, Nélida Piñon tem
lores dominante. Não há dúvida de que esse a condição feminina e a discriminação social
crescimento da produção literária de autoria da mulher como temas recorrentes em sua
feminina no Brasil traz alterações ao mundo vasta obra composta, sobretudo, de contos
herdado do passado. e romances, retomando-os em sua composi-
Ultrapassando a barreira do silêncio a que ção narrativa de forma crítica e contestado-
se viu historicamente condenada, a mulher ra, mas não panfletária, incomodando assim
veio, lentamente, inserindo-se em diversos ca- o pensamento ideológico de alguns críticos
minhos, entre eles o da produção literária, com que se calçam nos ideais patriarcas.
o objetivo de assumir uma voz própria, sua lin- Ao discorrer sobre a obra da autora, Coe-
guagem, sua escrita e seu discurso. Afinal, ao lho (1993) diz que Nélida Piñon é das vozes
inscreverem-se no discurso, as mulheres abri- que se destacam no panorama geral da ficção
ram a discussão de seu papel na sociedade. brasileira, seja pela natureza de sua proble-
Além disso, a presença de outras vozes dentro mática, pela força de sua linguagem insólita e
do discurso dominante colaborou para iniciar forte ou pela sintonia de sua arte com a trans-
a desestabilização do sistema patriarcal. formação em processo em nosso século.
A escrita de autoria feminina vem dando
um novo rosto à literatura brasileira, seja 3. (DES)ESTABILIZAÇÃO DA
pelo resgate de textos de escritoras do sécu- IDENTIDADE NA PÓS-MODERNIDADE
lo XIX seja pelas escritoras contemporâneas No mundo pós-moderno, globalizado, carac-
representativas da literatura brasileira. Mu- terizado pela fragmentação cultural, pelas
lheres escritoras que, resistindo às críticas, incertezas em que o ser humano se encon-
foram conquistando o espaço até então des- tra, a questão da identidade tem se tornado
tinado aos homens, e questionando os papéis um tema recorrente, pois se descobre que as
sociais que impõem às mulheres invisibilida- verdades que balizavam a questão das iden-
de intelectual e social. A produção literária tidades se tornaram frágeis e problematiza-
de autoria feminina é um dos lugares pos- das, exigindo olhares atentos e possibilida-
síveis para traçar-se uma história do papel des analíticas multidisciplinares.
desempenhado pelo feminino no contexto Portanto, acredita-se ser necessária uma
social e cultural através dos séculos, no qual compreensão desse sujeito e de como se dá
a mulher revela-se através de sua escrita. a construção de seus processos identifica-
30 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

tórios. Parte-se dos pressupostos de Hall discurso e do esquecimento de que elas são
(2001), o qual afirma que, na pós-moder- posições temporárias, passíveis de serem
nidade, surge um sujeito fragmentado, sem transformadas. Porém, a transformação é li-
identidade fixa permanente, que é formado mitada pelas modalidades disciplinares e re-
e transformado continuamente em relação gras. É esse conflito que ocorre com a perso-
às formas pelas quais ele é representado ou nagem analisada, a qual busca sair dos limites
interpelado. Para Hall (2001), as velhas iden- construídos para sua identidade.
tidades, que por tanto tempo estabilizaram É nesse contexto de crise da identidade
o mundo social, estão em declínio, fazendo que se insere a mulher, procurando o seu
surgir novas identidades e fragmentando o lugar na sociedade e a construção de sua
sujeito moderno, até aqui visto como um su- identidade, ou seja, de suas possibilidades
jeito unificado. de identificação, pois, como afirma Bauman
Em Nascimento e morte do sujeito moderno (2005), dentro do círculo de pertencimento,
(2001), Stuart Hall historiciza os marcos do poucos de nós, ou quase ninguém, está ex-
esfacelamento da ilusão de uma unidade do posto a apenas uma comunidade de ideias e
sujeito, o que permite falar a partir de uma princípios de cada vez, ou seja, cada pessoa
perspectiva pós-moderna. O feminismo é um carrega consigo diversas identidades. Hall
desses marcos, pois questionou acepções (2001) afirma que:
que asseguravam a falsa unidade do sujeito
pretensamente neutro. Ao problematizar o A assim chamada “crise de identidade” é
privado e o público e tratar da formação de vista como parte de um processo mais am-
uma identidade masculina ou feminina, o fe- plo de mudança, que está deslocando as
minismo estava movimentando as tensões estruturas e processos centrais das socie-
existentes nessa falsa unidade. dades modernas e abalando os quadros de
Em outro texto, Identidade e diferença referência que davam aos indivíduos uma
(2000), Hall explicita como o conceito de ancoragem estável no mundo social (p.7).
identidade é estratégico e posicional, e não
essencialista. Porém, compreender esse pro- Para Hall (2001), essa perda de um sen-
cesso não é nada pacífico para o sujeito, e, tido de si estável é chamada, algumas vezes,
sim, um processo bastante conflituoso. Afi- de deslocamento ou descentramento do su-
nal, segundo Hall, nós ainda parecemos acre- jeito, ou seja, o sujeito se fragmenta em vá-
ditar que as identidades têm uma origem rias identidades. Assim, a visão que se tinha a
com a qual se tem relação, quase de uma for- respeito da identidade feminina, das épocas
ma substancial, sem explicações. Hall explica passadas, não é a mesma apresentada na
que essa crença em uma essência de identi- sociedade pós-moderna, pois mudaram os
dade vem do imaginário e do simbólico com paradigmas e as velhas identidades entram
o qual se lida, sem perceber que eles são em declínio.
construídos também conforme as realidades Reportando para a questão da identidade
históricas, sociais e culturais específicas: feminina, pode-se perceber que houve uma
É assim que a representação da mulher é evolução em relação ao discurso feminino,
construída ao longo da história e os sujeitos pois as mulheres, a partir da revolução fe-
femininos se sentem partilhando desse imagi- minista de 1960, buscam cada vez mais seu
nário. No entanto, essa partilha é feita à custa espaço, não aceitando as identidades que lhe
de silenciamentos das contradições internas. são impostas: as mulheres não aceitam mais o
Segundo Hall, as identidades são construídas discurso patriarcal que as dominava e decidia
através da articulação do sujeito ao fluxo do o lugar delas na sociedade, ou seja, restrito ao
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 31

âmbito doméstico. As mulheres contemporâ- do excêntrico como uma saída com relação
neas modificam suas identificações de acordo à problemática de poder dos centros e às
com as interpelações do social, escolhendo-as oposições entre masculino e feminino” (HU-
diante de amplas possibilidades, pois o ser TCHEON, 1991, p. 35).
humano atual vive em permanente confronto
com uma multiplicidade enorme de identida- 4. IDENTIFICAÇÕES FEMININAS
des possíveis e cambiantes, com as quais tem- O conto Colheita, um dos 16 presentes no li-
porariamente pode se identificar. vro Sala de armas (1973), da escritora Nélida
Assim, acredita-se que, pelo seu valor re- Piñon nos permite fazer uma reflexão sobre
presentativo e discursivo, a literatura tem a representação mulher e seu papel na socie-
sido o espaço em que as localizações do sujei- dade. A análise do conto corrobora a visão
to e as construções da identidade emergem, de Coelho (1993), qual postula que, a partir
permitindo uma visualização e compreensão da revolução do movimento feminista, a mu-
de como os indivíduos de épocas diversas lher passa a buscar seu espaço e reivindicar
concebem e constroem suas identidades. direitos que antes lhe eram negados.
No caso da escrita de Nélida, uma leitura O conto é construído de uma forma me-
marcada pelo viés feminista parece muito tafórica e peculiar, não há referência aos
apropriada para analisar os conflitos inte- nomes dos personagens, lugares e época, o
riores vividos pela personagem feminina, e que propicia uma maior amplitude temática
como isso compromete a construção de sua a história; a narrativa se desenvolve em tor-
identidade. Nesse sentido, busca-se, tam- no de um casal que vive aparentemente em
bém, a compreensão da sociedade e da cul- perfeita harmonia conjugal, até que o marido
tura que permeia essa narrativa. parte em busca de aventuras com o pretex-
Para Hutcheon (1991), o que caracteriza to de que precisa ausentar-se, viajar sozinho
essas produções pós-modernas é a perda da para conhecer a vastidão do mundo, porém
noção de centro, ou seja, há uma intensa crí- certifica de que voltaria um dia.
tica ao denominado falo-etno-eurocentris- A esposa, aparentemente, parece ser con-
mo pelas margens que surgem questiona- descendente com os anseios do marido, acei-
doras, mas não excludentes. Isto quer dizer ta a situação que lhe é imposta com natura-
que vários grupos anteriormente relegados lidade, ficando reclusa ao/no lar, guardiã da
à margem como o das mulheres, dos índios, dignidade de ambos.
dos negros e dos gays promovem a ruptura Nesse sentido, como membros dessa so-
com os valores considerados ultrapassados: ciedade, tinham que obedecer às regras im-
“O circo com vários picadeiros passa a ser a postas e respeitar os seus respectivos papéis
metáfora pluralizada e paradoxal para um convencionais de homem e mulher e viver
mundo descentralizado onde só existe ex- de acordo com os valores pré-estabelecidos.
centricidade”. (HUTCHEON, 1991, p.88). Conforme a estrutura familiar vigente aos
Nesse contexto de emergência dos mo- preceitos patriarcais, ao homem é destinado
vimentos marginalizados é que surge a lite- o dever de sustento do lar e a posição de au-
ratura de autoria feminina, que assim como toridade máxima no âmbito familiar, já à mu-
outras literaturas de minoria, começa a cri- lher é reservado apenas o espaço doméstico,
ticar a ideia de identidade integral, originá- enquanto o homem é visto como aquele ca-
ria e unificada. De acordo com Hutcheon, paz de lutar por um lugar no mundo externo.
em Teorizando o pós-moderno rumo a uma De certa forma, isso se relaciona com o que
poética (1991): “As mulheres ajudaram a de- aponta Gilberto Freire (2003) acerca das nor-
senvolver a valorização [...] das margens e mas da sociedade patriarcal, ao mostrar que:
32 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

conforme as regras que lhe eram impos-


O padrão duplo de moralidade, caracterís- tas. Desse modo, ela mostra que, mesmo
tico do sistema patriarcal, dá também ao de longe, o marido se fazia presente e ela
homem todas as oportunidades de inicia- pertencia a ele.
tiva, de ação social, de contatos diversos, Diante desse contexto é importante res-
limitando as oportunidades da mulher saltar a visão de Beauvoir presente no livro
ao serviço e às artes doméstica (FREI- O Segundo Sexo (1980), no qual elucida que
RE,2003,p.208). a mulher assumiu, ao longo dos tempos, o
lugar do outro, da pura alteridade com valo-
A situação de submissão da mulher é um ração negativa, cuja identidade é determina-
fenômeno histórico, em que esta sofreu um da pelo homem. Também entende que a di-
processo de exclusão e diminuição de seu mensão humana é sempre paradoxal, já que
papel social. Elódia Xavier (1991) mencio- “o homem que constitui a mulher como um
na que historicamente a figura feminina foi Outro encontrara nela profundas cumplici-
sendo associada aos cuidados domésticos dades” (BEAUVOIR, 1980, p. 15).
e familiares, herança de uma sociedade pa- Na mesma linha de pensamento podemos
triarcal, tornando-a, assim, inferior dentro complementar com a afirmação de Bourdieu,
da hierarquia familiar e sacrificando, nessa na qual chama a atenção para o que denomi-
perspectiva, sua própria identidade. na paradoxo da doxa, ou seja, o fato de o do-
O marido é o primeiro a transgredir as minado consentir na dominação e a perma-
regras sociais ao abandonar a esposa ex- nência e aceitação da dominação:
posta ao olhar questionador da aldeia. Em
um primeiro momento, espera-se dela um Também sempre vi na dominação masculi-
comportamento de devoção ao marido, pois na, e no modo como é imposta e vivenciada,
a ele ela pertence assim como os objetos do o exemplo por excelência desta submissão
lar, mas com o passar do tempo a ausência paradoxal, resultante daquilo que eu cha-
do marido é recebida como um prenúncio mo de violência simbólica, violência suave,
de ruptura dos laços matrimoniais e por- insensível, invisível a suas próprias vítimas,
tanto ela torna-se objeto de desejo aos ho- que se exerce essencialmente pelas vias
mens da aldeia, aos olhos desses homens puramente simbólicas da comunicação e
ela torna-se uma mulher desimpedida a ser do conhecimento, ou, mais precisamente,
conquistada: do desconhecimento, do reconhecimen-
to ou, em última instância, do sentimento
[...] sempre que passavam pela casa da mu- (2005 p. 07-08).
lher faziam de conta que jamais ela per-
tencera a ele. Enviavam-lhe presentes [...] Percebe-se uma ênfase na representação
Para que ela interpretasse através daque- do comportamento da personagem que su-
les recursos o quanto a consideravam dis- gere a imagem de mulher submissa à onipre-
ponível, sem marca de boi e as iniciais do sença do homem e à sociedade, subjugada a
homem em sua pele (PIÑON, 1973, p. 173). um modelo de comportamento cristalizado
pela ideologia opressora vigorante na aldeia.
Ela, no entanto, parece assimilar sua Assim, a personagem parece ser construída
posição de boa esposa mantendo-se fiel ao conforme a ideologia patriarcal que, com a
retorno do marido, permitindo apenas que internalização dos valores e padrões vigen-
parentes entrassem na casa para ajudá-la tes, concorre para a reduplicação desses va-
e se certificarem de que ela estava vivendo lores.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 33

No decorrer da narrativa essa imagem vai Onde estive então nesta casa, ele perguntou.
ganhando novos contornos, expandindo-se Procure e em achando haveremos de con-
para novos pontos de fuga, percebe-se que, versar. O homem se sentiu atingido por tais
aos poucos, a personagem se conscientiza de palavras. Mas as peregrinações lhe haviam
sua condição e busca reverter essa situação. ensinado que mesmo para dentro de casa se
Sua mudança pode ser constatada em certas trazem os desafios (PIÑON, 1973, p. 176).
atitudes, como as elucidadas no fragmento
abaixo: Essa atitude de quebrar o retrato pode ser
interpretada como a ruptura de certos lia-
Mas, com o tempo, além de mudar a cor mes que os uniam, como a dependência e a
do vestido, antes triste agora sempre ver- influência, e, mais ainda, a desestabilização
melho, e alterar o penteado, pois decidira da divisão binária de gênero, que parece re-
manter os cabelos curtos, aparados à ca- gular-lhes a relação. É como se a força domi-
beça – decidiu por eliminar o retrato. Não nadora que ele exercia sobre a mulher tives-
foi fácil a decisão. Durante dias rondava o se se rompido.
retrato, sondou os olhos obscuros do ho- Desde sua chegada, a comunicação se dá
mem, ora o condenava, ora o absolvia: por- mais pela percepção simbólica da mudança,
que você precisou da sua rebeldia, eu vivo não há muito diálogo entre o casal. Então
só, não sei se a guerra tragou você, não sei após algum tempo, o homem fala: “vamos
sequer se devo comemorar sua morte com nos falar agora que eu preciso? Ele disse – te-
o sacrifício da minha vida (PIÑON, 1973, p. nho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a
174). terra, sabe e além do mais...” (PIÑON, 1973,
p.176).
A mudança começa no interior da mulher Até então o homem acredita ser o único
e lentamente se expande para suas atitudes detentor da palavra que a ele além de ser
que inicialmente são mais simbólicas. O pro- concedido o direito de viver experiências
cesso de mudança ocorre no conflito entre fora do âmbito doméstico as deve contar
suas atitudes e a conservação dos valores so- como verdades a serem compreendidas pela
ciais assimilados culturalmente. Isso mostra esposa. Porém, a mulher não o deixa falar e
como é conflituoso desvencilhar-se das en- apodera-se da palavra, símbolo de sua eman-
grenagens patriarcais e constituir-se como cipação.
sujeito de suas decisões. O discurso da mulher ao narrar suas his-
A enunciação da mulher como sujeito, an- tórias próprias e fascinantes sobre a rotina
tes submissa e subjugada ao marido, ocorre doméstica, aparentemente insípida, torna-se
logo após a chegada dele. Ela reage quando tão persuasivo ao olhar do esposo que leva
da sua volta, não se deixando dominar por a subverter o modelo pré-estabelecido de
ele, transgredindo regras que lhe eram im- papéis sociais de homem e de mulher, de tal
postas, ou seja, tendo um comportamento forma que, para sentir as mesmas coisas, ele
atípico em relação ao que o marido esperava. toma a vassoura e começa a tudo limpar, no
O marido desconfia do comportamento intuito de tentar captar o prazer daquele ato
da mulher ao perceber a ausência de seu que ela pintara com tanto encantamento.
retrato. Ele indaga pela ausência do retrato Ao incorporar esse universo, ele começa a
na casa e ela manda que ele o procure; já se fazer as tarefas domésticas, pois através des-
pode perceber uma mudança na enunciação tas e das palavras da mulher ele alcançaria
feminina: as “verdades” sobre o mundo e sobre si, que
pensou ter apreendido sozinho:
34 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Ela não cessava de se apoderar das pala-


ele [...]descascando frutas para a compota vras, pela primeira vez em tanto tempo
enquanto ela lhe fornecia histórias indis- explicava sua vida, tinha prazer de reco-
pensáveis ao mundo que precisaria apre- lher no ventre, como um tumor que coça
ender uma vez que a ele pretendia dedi- as paredes íntimas, o som de sua voz. (...)
car-se para sempre. Mas de tal modo agora Comprazia-se com a nova paixão, o mundo
arrebatava-se que parecia distraído, como antes obscurecido que ela descobriu ao re-
pudesse dispensar as palavras encantadas torno do homem (PIÑON, 1973, p. 179).
da mulher para adotar afinal o seu univer-
so (PIÑON, 1973, p. 179). Parece que nesse retorno, a personagem
passa a discernir a realidade feminina, histo-
Constata-se, assim, no desenrolar do ricamente enraizada aos limites do lar, como
seu relato, que mesmo confinada aos li- algo possível de ser transcendido a partir do
mites da casa, e a partir das atividades e próprio ato, portanto, do modo tradicional
problemas domésticos aparentemente ba- de se posicionar frente à questão: o ato de o
nais tornam-se esses um meio para atingir marido tomar a vassoura e lançar-se à limpe-
o conhecimento e emancipação, a mulher za, num desejo desesperado de vivenciar as
consegue extrair conhecimento e autoco- mesmas coisas que a esposa teria vivido, de-
nhecimento em grau muito mais intenso e votando-se às atividades domésticas, aponta
elevado do que o homem, que percorrera, também para a abertura de novos significa-
por anos, grande parte do mundo. Livre e dos masculinos.
longe da influência patriarcal do marido, A trajetória da personagem mostra como
do sufocamento psicológico e da submis- é difícil, mas possível, para uma mulher opri-
são, ela consegue libertar-se da ideologia mida libertar-se e tornar-se sujeito de suas
patriarcal. próprias identificações. A personagem não
Embora a protagonista demonstre, du- só rompe com o sistema que a colocou numa
rante a ausência do marido, amá-lo incon- posição de inferioridade, mas também im-
dicionalmente, criando no leitor a expec- prime um novo olhar para sua situação, e a
tativa de um final de aceitação e submis- partir disso desestabiliza os papéis sociais
são condizente com os pressupostos da cristalizados pela sociedade patriarcal.
ideologia patriarcal, com o regresso dele,
ela rompe com tal expectativa, rejeitando CONSIDERAÇÕES FINAIS
valorizar-lhe seu conhecimento, num mo- Acredita-se que Nélida Piñon, no conto ana-
vimento duplo: da personagem e do leitor lisado, conseguiu abordar a rede complexa
como dois vértices da emancipação, como que envolve a inadequação do sujeito a seus
projeto de escritura. papéis na sociedade, tratando de problemas
A ausência do homem propiciou à mulher que aparecem, sob um pano de fundo psico-
um olhar mais questionador. Ela passa a en- lógico, mas que mantêm relações com con-
tender melhor a si mesma e, a partir daí, a figurações sociais de determinado momento
vida e o mundo que a cerca em uma perspec- histórico e que, dessa forma, influenciam a
tiva mais existencial e crítica. Esse é o pre- construção da identidade da personagem.
núncio da liberação feminina das amarras Ao abordar a trajetória da protagonista,
sociais e o início do processo de autodesco- Piñon dá vazão a um conflito que fazia parte
berta e busca de identidade, que se confirma das preocupações de um segmento margina-
com o retorno do marido: lizado da sociedade, isto é, o das mulheres
criadas dentro de uma ideologia que lhes
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 35

destinava um único papel a ser seguido e ______. Dicionário de escritoras brasileiras. São
que, com as transformações daquele perío- Paulo: Escrituras, 2002.
do histórico, se sentiam mais do que nunca
deslocadas e desconfortáveis em seguir esse FREIRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: deca-
modelo. dência do patriarcado rural e desenvolvimento
A protagonista do conto Colheita semeia do urbano. São Paulo: Global, 2003.
a desconstrução da identidade que lhe é im-
posta, de sua definição como Outro. Sendo HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-mo-
assim, por meio da sua enunciação, consti- dernidade. 11.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
tui-se de forma diferente, emancipando suas
subjetividades das distorções infligidas pelo ______ Quem precisa da identidade? In: SILVA, Tomaz
sistema patriarcal a partir da reavaliação das Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a pers-
implicações socioculturais da dominação pectiva dos estudos culturais. 2. ed. Petrópolis:
masculina em sua formação indentitária. Vozes, 2000.
A narrativa de Nélida aponta, também, di-
recionamentos na busca por mudanças e por HOLLANDA, Heloisa Buarque. de (org). Tendên-
uma conquista de espaços mais igualitários cias e impasses: o feminismo como crítica da
dentro da sociedade. Dessa forma, acredita- cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
se que essa narrativa cumpre a função de,
através do texto e do fazer literário, repre- HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo:
sentar as práticas sociais históricas e como história, teoria, ficção. Trad. R. Cruz. Rio de Ja-
um espaço de representação do ser humano neiro: Imago, 1991.
é através desta que o feminino pode afir-
mar-se como sujeito do discurso, e por meio PIÑON, Nélida. Colheita. In: ______. Sala de armas.
desse, desnaturalizar as relações de poder e São Paulo: Círculo do livro, 1973.
opressão imbricadas no discurso patriarcal,
e dessa forma, inscrever novos conhecimen- XAVIER, Elódia Carvalho Formiga (org.). Tudo
tos no espaço cultural. no feminino: a presença da mulher na narra-
tiva brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1991.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro:Nova
Fronteira, 1980

BAUMAN, Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 2005.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tra-


dução de Maria Helena Kühner. 4 ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

COELHO, Nelly Novaes. A literatura feminina no


Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano,
1993.
DOCUMENTOS OFICIAIS:
DESAFIOS PARA A SOCIOLINGUÍSTICA HISTÓRICA

Veridiana Veleda Pereira


Evellyne P. F. S. Costa

RESUMO: Este artigo apresenta questões preliminares sobre o desafio de se trabalhar com documen-
tos oficiais sobre a perspectiva da sociolinguística histórica. Como o estudo baseado nessa perspectiva
é recente apresenta-se algumas questões teóricas com autores como Labov (1972), Paggio (2002) e
Lass (2000), assim como outros autores que contribuíram para estudo das línguas em suas sincronias
passadas. Este estudo da língua sob uma perspectiva histórica se faz possível através dos textos escritos
que são encontrados em arquivos e museus, porém, muitas vezes, a preservação e organização de tais
documentos é precária. Dessa forma, para melhor exemplificar faz-se menção a uma coleta de docu-
mentos manuscritos do século XIX, realizada no Museu da cidade de Santana do Livramento/ RS, des-
crevendo o processo de seleção, edição e categorização dos textos Como grande parte dos documentos
que compõem essa coleta é de caráter oficial fez-se necessário também abordar a importância de tal
tipo documental e sua contribuição para um estudo linguístico através da perspectiva sócio histórica.
PALAVRAS-CHAVE: Sociolinguística histórica. Manuscritos. Documentos oficiais. Arquivo. Gêneros textuais.

ABSTRACT: This article presents preliminary questions about the challenge of working with official do-
cuments about the historical sociolinguistic perspective. As the studies based on this kind of perspective
are recent, it presents some theoretical authors such as Labov (1972), Paggio (2002) and Lass (2000),
just as some other authors who contributed to the study of languages in their past synchronicity. This
language study under a historical perspective makes itself possible thanks to written texts that can be
found in museums and archives, however, in many occasions, the organization and preservation of these
documents are precarious. Thus, to better exemplify, mention is made to a collection of manuscripts from
the nineteenth century, held in the Santana do Livramento City´s museum / RS, describing the process
of selection, edition and categorization of these texts. Since big part of the documents which compose
this collection are of official character, it was necessary to also approach the importance of such kind of
document and its contribution to a linguistic study through the social and historic perspective.
KEY-WORDS: Historical sociolinguistic. Manuscripts. Official documents. Archive. Textual Genres.

RESUMEN: Este artículo presenta cuestiones preliminares sobre el desafío de trabajarse con documen-
tos oficiales sobre la perspectiva de la sociolingüística histórica. Como el estudio basado en esa pers-
pectiva es reciente, se presenta algunas cuestiones teóricas con autores como Labov (1972), Paggio
(2002) y Lass (2000), bien como otros autores que contribuyeron para el estudio de las lenguas en sus
sincronías pasadas. Este estudio de la lengua bajo una perspectiva histórica se hace posible a través de
los textos escritos que son encontrados en archivos y museos, sin embargo, muchas veces, la preser-
vación y organización de tales documentos es precaria. De esa forma, para mejor ejemplificar se hace
mención a una recolección de documentos manuscritos del siglo XIX, realizada en el Museo de la ciudad
de Santana do Livramento/RS, describiendo el proceso de selección, edición y categorización de los
textos. Como gran parte de los documentos que componen esa recolección es de carácter oficial se hace
necesario también tratar sobre la importancia de tal tipo documental y su contribución para un estudio
lingüístico a través de la perspectiva socio histórica.
PALABRAS CLAVE: Sociolingüística histórica. Manuscritos. Documentos oficiales. Archivo. Géneros textuales.
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O DESAFIO DO TRABALHO COM O presente trabalho busca relacionar a


DOCUMENTOS OFICIAIS: constituição do arquivo Banco de dados de
QUESTÕES PRELIMINARES textos escritos: Português Histórico do Rio
É sabido que olhar para o passado é de suma Grande do Sul (PHRS) com a Sociolinguísti-
importância para explicar o comportamento ca Histórica. A formação de tal banco parte
das línguas modernas. Autores como Poggio da justificativa de que não há, em todo o es-
(2002), Monaretto (2005), Castilho (2007), tado, um banco de dados de textos escritos
Berlinck, Lobo (2001), Barbosa e Marine que dê conta do Português Antigo. O pesqui-
(2008), entre outros, chamam a atenção para sador que pretende empreender pesquisas
a importância das fontes escritas para o es- com textos de estágios anteriores da língua
tudo da variação e da mudança linguística e portuguesa do estado do Rio Grande do Sul
para a explicação de fenômenos que perdu- precisará visitar museus e arquivos e obter
ram modernamente. Esses documentos são fac-símiles dos documentos para formar seu
importantes, inclusive para delinear sincro- corpus. Diante deste cenário, o PHRS visa
nias passadas e a história das comunidades não só disponibilizar dados diacrônicos para
linguísticas. De acordo com Poggio (2002), a comunidade acadêmica, mas também pro-
para estudar a mudança linguística, é neces- mover o resgate da história e memória cultu-
sário investigar estágios linguísticos diferen- ral do estado. A concretização do arquivo em
tes e empregar modelos e teorias desenvol- questão envolve a seleção e contato com as
vidos em pesquisas de fenômenos sincrôni- instituições detentoras de registros escritos
cos. Para tanto, o dado escrito é fundamental (arquivos históricos, museus); a coleta dos
na análise de estágios antigos de uma língua. manuscritos através de fotografia digital; a
Labov (1972) aponta para a atuação do transcrição em edição diplomática e a poste-
princípio do uniformitarismo, segundo o qual rior seleção e categorização dos textos a par-
mudanças ocorridas no passado podem vir a tir dos critérios de data, localidade e tipo de
acontecer no presente, para justificar a afir- produção escrita. A primeira fase conta com
mativa de que é preciso estudar o passado cartas de caráter oficial coletadas em mu-
para melhor explicar o presente. Com rela- seus e arquivos de Porto Alegre da época da
ção ao uso do texto escrito para o estudo da Revolução Farroupilha. As fases subsequen-
mudança, o autor diz que a investigação que tes, com levantamento de registros escritos
toma como fonte o dado escrito é uma tenta- na região da Campanha (Dom Pedrito), Fron-
tiva de “fazer o melhor uso de um dado ruim” teira (Santana do Livramento) e região Cen-
(LABOV, 1972). O dado escrito pode apresen- tral (Santa Maria).
tar características comuns à fala, entretanto, Este trabalho organiza-se da seguinte ma-
por conta do sistema ortográfico, contém neira: (i) relação entre Sociolinguística His-
registros que não são significativos linguis- tórica e a constituição de arquivos de textos;
ticamente. Por isso, para utilizar esse tipo de (ii) característica dos manuscritos; (iii) ne-
dado é necessário estabelecer critérios que cessidade de categorização; (iv) o desafio do
diferenciem questões de ortografia, caligra- trabalho com textos de caráter oficial.
fia, estilo, reflexos da fala, entre outras. Além
disso, conforme Lass (2000), é preciso dife- A SOCIOLINGUÍSTICA HISTÓRICA
renciar o dado que pode ser considerado lixo De acordo com Labov (2006), a língua é uma
ou condicionado por fatores ortográficos, que heterogeneidade ordenada. A abordagem,
não se presta para uma análise linguística, aqui, é de uma realidade “inerentemente
daquele que apresenta uma grafia significa- variável” tanto do ponto de vista sincrôni-
tiva e pode ser analisado fonologicamente. co quanto diacrônico. Rompe-se a fronteira
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 39

entre sincronia e diacronia quando se usa o to o trabalho do pesquisador que, além disso,
presente para explicar o passado (Princípio precisa fazer as edições fac-similadas e/ou
do Uniformitarismo). outras de acordo com a necessidade.
A concepção de língua que embasa a Teo-
ria da Variação Linguística desenvolvida por DOCUMENTOS OFICIAIS DE SANTA-
Labov, assim como a aplicação de seus mé- NA DO LIVRAMENTO
todos aos estudos diacrônicos desenharam No segundo semestre de 2016, foram coleta-
a Sociolinguística Histórica. Pesquisadores das através de fotografia (edição fac-similar)
como Suzane Romaine, Manfred Gorlach, 474 fólios dos manuscritos arquivados no
Mieko Ogura e Roger Lass vem contribuin- Museu David Canabarro na cidade de San-
do para desenvolver dos estudos na área. No tana do Livramento. Por ser uma instituição
mundo hispânico, podemos citar Menéndez colecionadora, o Museu tem por objetivo
(1995), com Sociolinguística Histórica, Fer- salvaguardar os bens culturais materiais e
nández (2005), com a obra Historia Social de imateriais que compõem seu acervo, porém
las Lenguas de Espana, dentre outros. no Museu David Canabarro, assim como em
A constituição do arquivo PHRS, atualmen- outros museus do Rio Grande do Sul, essa ta-
te, busca andar pari passu com estudos de refa é dificultada por vários fatores.
cunho sociohistórico. Outros arquivos se cons- Observando apenas o arquivo documental
tituíram dessa maneira, como cita Silvestre do Museu, uma vez que este foi a fonte que
(2007) – The Helsinki Corpus of English Texts contribuiu para a formação do corpus deste
e The Corpus of Early English Correspondence. artigo, pode-se citar uma série de elemen-
No Brasil, um dos primeiros trabalhos em tos nocivos à preservação dos documentos
Sociolinguística Histórica são os estudos de manuscritos. Fatores ambientais como calor,
Tânia Lobo com a tese intitulada Para uma luz e umidade, degradam diretamente a ce-
sociolinguística histórica do português no Brasil. lulose dos manuscritos. O prédio demasiado
Edição filológica e análise linguística de cartas antigo que sedia o Museu David Canabarro
particulares do recôncavo da Bahia, século XIX. apresenta infiltrações que, durante dias chu-
Rumeu (2013) trata da história do pro- vosos, umedecem todas as salas. As janelas
nome você no português brasileiro. A autora sem proteção adequada permitem a entrada
constitui o corpus de sua pesquisa a partir de direta de luz solar na sala reservada para o
edições semidiplomáticas de cartas pessoais arquivo documental esse cenário retrata as
trocadas pelos membros da família Pedreira péssimas condições em que se encontra o
Ferraz-Castro Magalhães séc. XIX e XX. O tra- museu e dá condições para o aparecimento
balho conta com cartas pessoais por ser esse de fatores biológicos como fungos e insetos.
o gênero textual que apesenta um “grau de Os danos ao arquivo são intensos e por ve-
clareza e fidelidade a uma realidade linguísti- zes irreversíveis, assim uma das medidas de
ca passada”. Um menor grau de formalidade e conservação destes documentos é a edição fac-
um maior grau de intimidade provavelmente similar que consiste na reprodução fiel do ma-
traz reflexos da fala que não estão presentes nuscrito original “neste tipo, apenas se repro-
em outros textos, como documentos públi- duz a imagem de um testemunho através de
cos, por exemplo. Coleções de cartas pessoais meios mecânicos, como fotografia, xerografia,
não são encontradas em todos os arquivos e escanerização, etc.” (CAMBRAIA, 2005, p.91).
museus. A grande maioria das instituições de- Assim, os documentos do Museu foram
tentoras dos textos possuem, em seu acervo, selecionados (deu-se prioridade aos docu-
documentos de caráter oficial e cartas parti- mentos manuscritos, porém havia também
culares sem catalogação, o que dificulta mui- no arquivo jornais e livros) e fotografados.
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Após essa etapa, fez-se necessária a catego- • ADMISSÃO: a admissão é um gênero que
rização desses manuscritos por gêneros tex- tem por finalidade de formalizar a admis-
tuais, uma vez que em sua maioria os docu- são do funcionário ou estudante. Apre-
mentos eram de cunho oficial apresentando senta-se escrita em linguagem formal,
forma, função e características específicas. em papel timbrado contendo Brasões
A primeira subdivisão dos 411 fólios deu- Oficiais, neste exemplo, da Secretaria do
se da seguinte maneira: Admissão, Ata, Ates- Estado da Marinha. Sempre consta uma
tado, Carta de Sesmaria, Carta Militar, Carta data para o ato de admissão, o nome do
Patente, Carta Pessoal, Demissão, Desone- funcionário admitido e assinatura do di-
ração, Estrato Bancário, Intimação, Jornal, retor responsável. Observa-se que este
Mapa, Nomeação, Ordem de despejo, Ordem documento possui texto pré-pronto devi-
do dia, Termo, Testamento, Testemunho, do ao seu caráter público.
Título de eleitor e Traslado.
No quadro 1, pode-se observar o número
fólios separados por gênero.

Gênero Número de fólios


Admissão 1
Ata 23
Atestado 4
Carta de Sesmaria 4
Carta Militar 26
Carta patente 19
Carta pessoal 89
Demissão 1
Desoneração 3
Extrato bancário 2
Intimação 3
Jornal 8
Mapa 1
Nomeação 16
Ordem de despejo 3
Ordem do dia 93
Síntese Histórica 46
Termo 35
Testamento 6
Testemunho 7
Título de eleitor 1
Traslado 20
TOTAL 411
Quadro 1 – Distribuição dos documentos por gênero e número de
fólios

Quanto à sua forma, função e característi-


cas específicas observa-se em cada gênero1
selecionado:

1 Selecionou-se, para este artigo, o primeiro fólio de cada gênero exempli-


ficado.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 41

• ATA: A ata é um gênero que tem por fi- • ATESTADO: o atestado tem por finalidade
nalidade registrar os acontecimentos e confirmar a veracidade de algo. O ates-
decisões de uma reunião. Nesse docu- tado é um documento manuscrito que
mento público faz-se presente informa- apresenta uma afirmação ou negação so-
ções como data, hora, local e participan- bre um determinado fato referente a uma
tes no início do texto. No corpo do texto pessoa, resume-se em uma declaração
registra-se os acontecimentos e demais simples e objetiva com linguagem formal.
informações sobre as reuniões. Há um
escrivão que registra os acontecimentos
na Ata e os demais participantes assinam
apenas no final do documento.
42 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

• CARTA MILITAR: a carta tem por finali- • DEMISSÃO: a demissão tem por finali-
dade proporcionar a comunicação entre dade dispensar alguém de seu compro-
duas pessoas a longas distancias. A carta misso com o serviço público ou privado.
militar, assim como a carta pessoal, apre- No cabeçalho apresenta quem está
senta vocativo, local e data de escritura, fornecendo a dispensa do funcionário
despedida e assinatura, porém não é uma com local e data definidos. No corpo do
carta que apresenta assunto de cunho texto há o motivo da liberação e o nome
pessoal. do funcionário. Por fim, a assinatura do
responsável pela demissão.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 43

• EXTRATO BANCÁRIO: apresenta no ca- • INTIMAÇÃO: tem por finalidade cobrar


beçalho de quem é a conta a ser descrita do intimado o cumprimento de determi-
seguida de data. Descreve-se nesse docu- nado dever civil, sob pena caso descum-
mento as movimentações monetárias do primento da intimação. As intimações
cliente com suas respectivas datas. No apresentavam um cabeçalho pré-pronto
final do documento, o responsável pelo no qual apresentava a instituição intima-
Banco assina. dora e inseria-se a data. O documento por
ser de cunho oficial é devidamente assi-
nado pelo responsável pela intimação.
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• ORDEM DO DIA: tem por finalidade des- • TERMO: o termo tem por finalidade es-
crever o cronograma das tarefas a serem pecificar as regras e decisões de um com-
cumpridas contendo todas as informa- promisso firmado. O termo é escrito e la-
ções necessárias para o adequado cum- vrado por um escrivão e, após escritura,
primento das ordens. No cabeçalho, fa- todos os interessados no acordo o assi-
z-se presente o nome da instituição (Ca- nam.
valaria do exército, no exemplo citado)
seguido de local e data. Fica expresso por
escrito o número da Ordem do Dia.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 45

• TRASLADO: o traslado tem por finalida- balho compreenderá a edição semidiplomá-


de firmar um contrato de transferência tica de todo o corpus. Para este trabalho, foi
entre comprador e vendedor. Neste caso, feito um recorte que apresenta o primeiro
o cabeçalho é pré-pronto, com símbolo fólio de cada texto.
oficial do Império do Brasil e o número Embora os manuscritos autógrafos, como
de registro do documento. No corpo do as cartas pessoais, por exemplo, ofereçam
texto, faz-se presente os interessados na mais dados para o estudo de fenômenos lin-
compra e venda e o objeto trasladado. guísticos por apresentar mais reflexos da
fala, os documentos oficiais constituem um
importante objeto de pesquisa.
Os desafios que esses textos oferecem são
notadamente linguísticos. O distanciamento
da fala é a principal problemática, pois es-
tamos falando de gêneros que apresentam,
inclusive, formas pré-prontas, como a ad-
missão e o traslado. A barreira ortográfica
também é mais evidente nos textos oficiais,
seja pelo apego do escrevente à ortografia
etimológica ou pseudoetimológica, ou pela
obediência às normas ortográficas organiza-
das a partir de 1911, no caso do português.
Entendemos que esses e outros desafios, as-
sim como questões metodológicas, merecem
ser mais bem discutidos.
No entanto, através do estudo desses tex-
tos, temos um testemunho da sociedade da
época, isto é, os documentos oficiais revelam
como a comunidade se organizava no âmbito
cultural, econômico, administrativo, militar,
político, religioso. Estudos que abarquem
esses documentos contribuem, desse modo,
Diante de uma coleta como a que descre- não só para a caracterização de sincronias
vemos acima, faz-se necessária uma seleção e passadas, mas também para a preservação
categorização dos documentos fac-similados. da memória cultural.
Esse trabalho é muito importante para que os
textos possam fazer parte de um arquivo que
prevê essas etapas, no caso o PHRS. As insti- REFERÊNCIAS
tuições nas quais os textos estão depositados LABOV, William (1972). Sociolinguistic Patterns.
raramente dispõem dessa organização. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
O presente corpus foi constituído obede-
cendo ao critério de data. Todos os documen- LASS, Roger. On explaining language change.
tos do século XIX foram fac-similados, assim New York: Cambridge, 1980.
como alguns textos da virada para o séc. XX.
A etapa seguinte compreendeu a categoriza- POGGIO, R. Processos de gramaticalização de pre-
ção do material por gênero, contabilizando o posições do latim ao português. Salvador: Edu-
número de fólios. Uma etapa futura do tra- fba, 2002.
46 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

RUMEU, Marcia Cristina de Brito. Língua e socie-


dade: a história do pronome “você” no portu-
guês brasileiro. Rio de Janeiro. Ítaca, 2013.

SILVESTRE, Juan Camilo Conde. Sociolinguística


histórica. Madrid, Editorial Gredos, 2007.
A METODOLOGIA DO JOGO DE RIVALIDADES:
UMA PROPOSTA DE KNOW-HOW ASSESSORIAL PARA A
(RE) EDUCAÇÃO LINGUOLITERÁRIA NO ENSINO MÉDIO
Felipe Freitag (autor)
Marcos Gustavo Richter (coautor)

RESUMO: A metodologia do jogo de rivalidades (FREITAG, 2015) utiliza a aliança didática (educa-
dor-educandos e educandos-educandos) e a indissociabilidade do pensar, sentir e fazer (valores,
condutas e afetos) para identificar e analisar a reverberação do entorno (real sociocultural dos edu-
candos) no sistema escola e escolarização, não atribuindo a isso uma “agressão” ao papel social do-
cente, ou ao conhecimento escolarizado. Os recursos e as estratégias utilizadas por tal metodologia
balizam-se na estereotipia adolescente presente em dado contexto educacional, que didatizada dá
vasão e corporeidade às características naturais dessa fase do desenvolvimento humano, como por
exemplo, o embate, a rivalidade e a grupalização. A metodologia do jogo de rivalidades norteia-se,
sobretudo pela Teoria Holística da Atividade (RICHTER, 2015), porque reformula os papéis sociais
de educador e de educandos (criação de pares profissionais), porque seleciona recursos, procedi-
mentos e conceitos segundo uma abordagem enquadrativa da prática professoral e segundo esco-
lhas criativas individuais do educador (também fundamentadas paradigmaticamente) e porque ela
consegue controlar o aprendizado dos seus educandos (instrumentos diagnósticos e (auto) moni-
toramento dos educandos). O Know-how especializado para docentes de como trabalhar a (re) edu-
cação linguoliterária (leitura, literatura e autoria literária) no Ensino Médio da Educação Básica, de
modo que, o ensino de Língua e de Literatura seja interdependente, somente é possível se entrecru-
zarmos a metodologia do jogo de rivalidades à primeira etapa do formato de curso storyline (DUBIN;
OLSHTAIN, 1986), ao organograma procedimental (FREITAG, 2015), à Pesquisa-ação (THIOLLENT,
1996), ao dialogismo problematizador freireano (FREIRE; FAUNDEZ, 1985) e, sobretudo, à Teoria
Holística da Atividade de Richter (2015), na medida em que esses procedimentos teórico-conceitu-
ais e metodológicos definem um percurso de busca do educador por uma visão enquadrativa da sua
docência individual (know-how metodológico), podendo servir como know-how na (re) construção
do lugar enquadrativo de outros docentes, sob a forma de coaching (assessor).
PALAVRAS-CHAVE: Metodologia do jogo de rivalidades. Teoria Holística da Atividade. Know-how
assessorial para a (re) educação linguoliterária no Ensino Médio.

ABSTRACT: The rivalry game methodology (FREITAG, 2015) uses the didactic alliance (educa-
tor-students and students-students) and the inseparability of thinking, feeling and doing (quality,
conduct and emotions) to identify and analyze the reverberation of medium (real social-cultural of
the students) in the school system and schooling, not attributing to this “aggression” to teaching
social role, or educated knowledge. Resources and strategies used by such methodology-mark out
of this stereotype teenager in a given educational context that gives didaticcism output-runoff and
corporeality to the natural characteristics of this phase of human development, such as the clash,
rivalry and groupiling. The methodology of the rivalry game is guided mainly by the Holistic The-
ory of Activity (RICHTER, 2015), because reshapes social roles of teacher and students (creation
of professional peers), because it selects resources, procedures and concepts according to a frame
approach the professorial practice and second personal creative choices of the educator (also based
paradigmatic) and because she can control the learning of their students (diagnostic instruments
48 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

and (self) monitoring of the students). The spe- Supervisionados, como um aspecto humano,
cialized know-how to teachers on how to work cognitivo, afetivo e identificatório, em que
to linguistic and literary (re) education (reading, deve haver no indivíduo em formação a von-
literature and literary authorship) in Basic Edu- tade e a capacidade de formar-se em estreita
cation High School, so that the teaching of lan- ligação com alguém que aceita essa sua von-
guage and literature is interdependent, is possi- tade e capacidade e, por isso mesmo, atrela
ble only if interlace the rivalry game methodolo- seu conhecimento teórico-prático de edu-
gy the first stage of the storyline course format cador formador às demandas do aprendiz,
(DUBIN; OLSHTAIN, 1986), the procedural orga- nesse processo transitório de descoberta de
nization chart (FREITAG, 2015), the Action-Re- um universo menosprezado: a confluência
search (THIOLLENT, 1996), the problem-solving teoria-prática como norte do ensino escolar.
Freirean dialogism (FREIRE; FAUNDEZ, 1985) Krug e Cristino (2006, p. 03) sustentam que
and, above all, the Holistic Theory of Activity of o ato formador do licenciando deve ser po-
the Richter (2015), to the extent that these theo- tencializado pela socialização intercambial
retical-conceptual and methodological procedu- de experiências, divergência e conciliação de
res define an educator search path by a frame concepções, processo de escolhas e decisões,
view of their personal teaching (methodological defrontamento e solução de conflitos e, so-
know-how) can serve as know-how in the (re) bretudo, busca reflexiva por soluções.
construction of to frame place of other teachers A esse respeito, Buber (1982) nos relata
in the form of coaching (advisor). um tipo de diálogo, que denomina autêntico
KEY-WORDS: Rivalry game methodology. Holis- e que é, por nós, tomado, como o diálogo es-
tic Theory of Activity. Know-how advisor to lin- sencial da relação orientador-orientando de
guistc and literary (re) education in High School. estágio: “Autêntico: onde cada um dos parti-
cipantes tem de fato em mente o outro, ou os
outros na sua presença e no seu modo de ser
CONSIDERAÇÕES INICIAIS e a eles se volta com a intenção de estabele-
Caracterizar o que seja formação profissio- cer entre eles e si próprio uma reciprocidade
nal é pensar no que é um ato formador. Po- viva”. Destacamos, então, que os educandos
demos dizer que, na formação docente, um têm um contato muito tardio com os sujeitos
ato formador é, geralmente, uma realidade e com as situações que irão trabalhar; que o
conceitual, logo, relacionada à aquisição de estágio curricular, tornou-se uma espécie de
conceitos, uma vez que, com raras exceções, pesquisa das atividades pedagógicas realiza-
as disciplinas curriculares de uma gradua- das no contexto escolar, antes e depois da re-
ção em licenciatura, associam seus conhe- gência do estagiário, que não se transforma
cimentos teórico-conceituais em relação em indicadores, ou dados de melhorias da
aos conhecimentos de ensino em contexto qualidade da educação devolvidos à escola,
escolar. Nessa perspectiva, a formação ini- isto é, a escola torna-se apenas um espaço de
cial docente seria uma atividade totalmente experimentação do estagiário, mas não rece-
técnica. Quando o licenciado se depara com be dele um feedback final sobre os resulta-
seu primeiro Estágio Supervisionado, é que dos obtidos com sua regência. Abib (1996)
ele dimensiona o quão mal preparado está afirma que os futuros professores (os estagi-
para o objetivo central de sua graduação (ser ários) já começam suas docências em estado
professor), via de regra, porque teve sepa- de desânimo, pois a licenciatura é vista como
radamente a formação conceitual e a forma- um curso desprezado diante dos de maior
ção didático-pedagógica. Definimos, então, a prestígio, por isso, com pior formação por
formação inicial docente, em seus Estágios parte dos docentes e em estado de desestí-
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 49

mulo, diante da insatisfação circulante pelas relatório final, o qual foi e está sendo corpus
condições de trabalho e pelos baixos salários de análise da pesquisa de doutorado da pro-
dos professores do mercado. fessora Liane Batistela Kist. Preliminarmente,
E como se dá a relação escola e universida- a doutoranda em questão, afirma que o PIBID
de no desenvolvimento da prática de forma- Letras Português UFSM implementou um DPC
ção inicial docente? Destacamos que, geral- (Desenvolvimento Profissional Corresponsá-
mente, a relação universidade-escola, sob as vel)1 entre universidade, escola e graduandos,
imagens de professor regente e estagiário, não na medida em que ela observa o enquadra-
se estabelecem como projetos de parceria te- mento da Teoria Holística da Atividade, uma
órico-conceitual e metodológico (por valores, das condições indispensáveis, a nosso ver,
condutas e afetos na Teoria Holística da Ativi- para a triangulação horizontalizada e por isso
dade), sendo o trabalho do estagiário como de cooperativa entre profissional da academia,
responsabilidade única da instituição forma- profissional do mercado e licenciandos. Kist
dora, sob a imagem do orientador de estágio. (2015, p. 99) destaca:
Pinto e Fontana (2012, p. 116) advertem para
o encontro e o desencontro entre professores Entre os resultados iniciais, pode-se dizer
da escola, professores da universidade e edu- que a proposta desenvolvida pelo PIBID/
cadores em formação, na medida em que, na Português no primeiro ano de seu funcio-
maioria das vezes, não há laços entre os co- namento, de acordo com o relatório das ati-
nhecimentos teórico-conceituais da academia vidades desenvolvidas pelo grupo, aporta
(orientadores de estágio e estagiários) e da aspectos relativos à inseparabilidade entre
escola (professores regentes), nem aquinho- conduta, conceito e valor no exercício pro-
amento entre suas histórias de vida e suas fissional na medida em que proporcionou
experiências individuais e coletivas na cons- não só a organização das intervenções a se-
trução de papel social docente comum (coleti- rem realizadas pelo grupo (fatores de me-
vo em seu lugar social, mas individual em seu diação), a sistemática de avaliação e ajustes
estilo de trabalho). Afirmamos que a experi- necessários ao desenvolvimento das ativi-
ência com o trabalho de campo na prática do dades programadas e realizadas (fatores
estágio deveria ser um significante de coadju- de controle), como também a reflexão so-
vação, tanto para a compreensão dos proces- bre as condutas profissionais, a formação
sos educacionais materializados nas escolas, ética e corresponsável de professores de
quanto para a compreensão da identidade Língua Materna (fatores de atribuição).
profissional, a partir da união e do choque en-
tre professores da academia, professores do Entretanto, a partir de Kist (2015), pre-
mercado e licenciandos em formação inicial, ambularmente, não identificamos evidên-
entretanto a colaboração, ou cooperação, ou cias de que os fatores de atribuição (práticas
partilha de compromissos e de responsabili- exercitivas, articulativas e constitutivas), os
dades entre professores do mercado (escola), fatores de mediação (recursos, procedimen-
professores da academia (orientadores de tos e conceitos) e os fatores de controle (atri-
estágio) e licenciandos, ainda é emergente, bucional, mediacional e sobre o controle)
aparecendo, principalmente em programas da Teoria Holística da Atividade (RICHTER,
governamentais, como, por exemplo, o PIBID 2015), utilizados pelo grupo de trabalho
(Programa Institucional de Bolsa de Iniciação do PIBID Letras UFSM, instituíram-se, para
à Docência). O PIBID Letras Português UFSM além de uma teoria e de uma metodologia,
(PROGRAD UFSM, 2015), iniciado em 2014,
1 “É uma comunidade molecular de prática profissional” (FREITAG; RICH-
teve, após seu primeiro ano de atividades, um TER, 2015, p, 06, material inédito).
50 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

como um incremento de know-how profissio- • Aplicar técnicas de escuta e de aconselha-


nal para o desenvolvimento docente, inicial e mento (ancoradas metodologicamente)
em serviço, isto é, como uma possibilidade, por parte de um profissional da academia
através do enquadramento de trabalho do- (nessa pesquisa, ele é visto e compreen-
cente, proposto pela THA, de insurgência de dido na triangulação, como um alter-ego
metodologias de ensino linguoliterário que do profissional do mercado), no sentido
se transfiguram na descoberta de outras me- de acolher os profissionais do mercado e
todologias de mesmo cunho, a partir dessa, os licenciandos em suas buscas e em seus
quando da criação de um grupo de trabalho questionamentos, enquanto docentes
composto pela triangulação horizontalizada formados por valores, condutas e afetos
entre professor da academia, professor do (seres integrais);
mercado e licenciandos em formação inicial.
Logo, como, em um DPC (Desenvolvimento • Utilizar o know-how (metodológico) ob-
Profissional Corresponsável), entre profes- tido pelo professor aconselhador, através
sor da academia, professor do mercado e de fundamentação paradigmática e de se-
licenciandos, em contexto de Ensino Médio leção criativa (imbricamento das esferas
da Educação Básica de escolas públicas, po- nomotéticas e idiográficas) como ensino
de-se integrar formação inicial (estágio) e de um percurso metodológico que pode
formação em serviço (mercado) no desen- ser aprendido pelo professor do mercado
volvimento de um know-how metodológico e pelo licenciando;
(linguoliterário) a partir de uma composição
assessorial (professor da academia)? • Possibilitar o desenvolvimento de um
A investigação do Desenvolvimento Pro- know-how metodológico individual, mas
fissional Corresponsável como uma neces- construído em conjunto (pelo saber-so-
sidade de capacitação profissional dos do- bre e pelo saber-como do profissional
centes, através da empatia enquadrativa em do mercado, pelo know-how individual já
contexto de triangulação de papéis sociais, consolidado pelo professor aconselhador
isto é, profissional da academia, profissional e pelas suas estratégias de escuta e acon-
do mercado e licenciandos horizontalizam- selhamento e pelos saberes teórico-práti-
se em uma aliança didática na busca por cos e pela postura de busca e apropriação
apropriação de papel social e de práticas do- do licenciando em formação);
centes comuns e enquadradas, mas com fins
a uma capacitação individual é tornar possí- • Investigar a eficiência do know-how de
vel os seguintes objetivos: aconselhamento a partir da escuta, utili-
zado no transcorrer do processo de pes-
• Formar uma aliança didática, de confian- quisa, como um know-how de assessora-
ça mútua, empatia enquadratória, empa- mento de professores de escola e de gra-
tia afetivo-identidicatória, e dialogismo duandos em formação inicial;
problematizador para otimizar pares
profissionais, ou grupo de trabalho den- • Criar momentos síncronos e assíncronos
tro de um DPC entre professor da acade- com o professor do mercado e com o li-
mia, professor do mercado e licenciado; cenciando para fundar-se em um projeto
pedagógico que vise a melhoria da educa-
• Desenvolver uma capacitação individual ção através da horizontalização colabora-
(do professor do mercado e do licencian- tiva entre professor da academia, profes-
do) para criar metodologias de ensino; sor do mercado e licenciandos.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 51

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA demia. Essa escuta está posta, em um primei-


Um profissional alter-ego , uma espécie de 2
ro plano, nos pressupostos freireanos de dia-
aconselhador, tem um saber assessorial e logismo (FREIRE; FAUNDEZ, 1985), ou seja,
um saber profissional para auxiliar os pro- os papéis sociais docentes hierarquizados são
fissionais do mercado e os licenciandos em rompidos, e tanto professor aconselhador,
formação inicial na descoberta e na criação quanto professores aconselhados dispõem-se
de metodologias de ensino e de tomadas de simetricamente na interação dialogal. Tam-
decisão frente à clientela. O seu saber profis- bém é uma escuta freireana, no sentido de re-
sional diz respeito ao percurso de tomadas flexão da e na ação, isto é, o saber educativo
de decisão frente à clientela e para os fins debatido nesse processo de escutar, é aceito
dessa pesquisa, esse saber é a metodologia incondicionalmente como ação e a partir do
do jogo de rivalidades (FREITAG, 2015). O seu acolhimento pelo professor aconselhador,
jogo de rivalidades é uma espécie de jogo, jo- é que os docentes podem refletir sobre tal
gado pelos dois grupos rivais da turma, em ação, interpretando-a segundo seus saberes
que existem duas etapas dentro dele; a pri- educacionais, de modo a intervir sobre ela.
meira é composta por comunicações orais Entretanto, a reflexão na e da ação não é rea-
de cada grupo (o grupo todo, ou o líder do lizada somente em termos de saberes educa-
grupo) acerca de pontos-chave (de um capí- tivos, mas também sob intersubjetividade, ou
tulo por semana) elaborados pelo educador seja, para transformar a ação, integralmente,
(acerca do processo de escrita-elementos de é necessário que a intersubjetividade discur-
roteiro e elementos de narração-e do proces- sivizada seja levada em conta, pois ela faz par-
so de produção individual-busca, pesquisa, te, também, dos valores, condutas e afetos do
aprimoramento), em que o educandos estão profissional docente (RICHTER, 2015).
separados, ou antagonizados (cada grupo Richter (FREITAG; RICHTER, 2015, p. 17,
produz sua própria narrativa em capítulos e material inédito) ao responder a pergunta
tenta autoafirmar-se por diferenciação, seja de Freitag sobre o grande potencial da Teoria
cognitiva, ou identitária); a segunda é com- Holística da Atividade em contexto de Educa-
posta pela escrita das narrativas em capítu- ção Básica e como viabilizá-lo, opina:
los, na qual, cada grupo tenta desenvolver
um texto mais verossímil e atrativo (para o Por meio de um procedimento formativo
público jovem) e dedica-se a projetar suas fundamental no DPC: a escuta dos colegas
identidades adolescentes nas narrativas em do mercado de trabalho. Trata-se de aban-
capítulos, seja em termos de temática, estru- donar a atitude dogmática e paternalista da
tura, ou desenho. Nesse jogar o jogo, a me- universidade em relação à escola e inverter
todologia do jogo de rivalidades proporciona o sentido das vozes, de modo que tudo co-
que, os educandos estejam juntos nas parti- meça com as questões levantadas a partir
das, mas separados na concorrência. da própria prática linguodidática contextu-
O seu saber assessorial diz respeito ao es- alizada. Cabe ao profissional da Academia
tabelecimento da escuta, em que ele acolhe os estabelecer, dentro do princípio psicodinâ-
problemas dos colegas do mercado e da licen- mico da base segura, as condições de escuta:
ciatura, ofertando um espaço para que eles empatia, congruência e acolhimento enqua-
construam soluções, assessorados pela aca- drativos, desde que haja aliança didática e
profissional de ambas as partes, além de um
2 Esse profissional alter-ego é um profissional da academia que teve em
dada prática contextual de ensino escolar um processamento conceitual, pro- investimento afetivo-identificatório princi-
cedimental e de recursos (materiais-input) articulado com tomadas de deci-
sões frente à clientela, produzindo uma metodologia de ensino, e, portanto, palmente por patê do supervisionado.
individualizando seu papel social docente dentro de um enquadramento de
trabalho.
52 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Baseados no diagolismo problematiza- o meu cliente, acompanhando-o nesse bus-


dor freireano e, depois, fundamentados na ca assustadora de si mesmo, onde ele agora
Teoria Holística da Atividade, de Richter, há se sente livre para ingressar”. O conceito de
uma necessidade de estabelecer a escuta no congruência de Carl R. Rogers é utilizada
âmbito da formação docente. Acreditamos por Richter (FREITAG; RICHTER, 2015, ma-
nessa escuta como um meio de assessoria, terial inédito) como uma condição da escuta
ou consultoria na relação entre graduação e entre profissional da academia, profissional
escola, que progride para o ensino e aprendi- do mercado e licenciando. Segundo Rogers
zado de metodologias de ensino via aconse- (2009, p. 325):
lhamento. Para a THA, o acolhimento pela es-
cuta se dá a partir da empatia (o outro só vai Para que a terapia tenha êxito, é necessá-
considerar-me como sujeito se eu acolho a rio que o terapeuta seja, na relação, uma
sua palavra, assim, o professor aconselhador, pessoa unificada, integrada e congruente.
recebe o outro como uma contínua pergunta, O que quero dizer com isso é que ele deve
acolhendo-o e acolhendo irrestritamente a ser na relação exatamente o que ele é-não
sua inquietação, desde que ele esteja dentro uma fachada, um papel ou uma ficação. Re-
de um papel que aceite ouvir). A empatia, en- corri ao termo “congruência” para designar
tão, trata da escuta como um ouvir para com- essa combinação precisa da vivência com a
preender: a) um pensar; b) um fazer e c) um consciência. Quando o terapeuta está com-
sentir; o que é nomeado na THA como inte- pleta e precisamente consciente do que
gralidade dos sujeitos, ou como indissociabi- está vivenciando num determinado mo-
lidade de valor, conduta e afeto. Para Rogers, mento da relação, então ele é plenamente
a empatia é uma aceitação incondicional (do congruente. Quanto menos congruência,
eu e do outro), tornando a escuta sensível, menos probabilidades existem de ocorrer
pois: uma aprendizagem significativa
Também acho que a relação é significativa
na medida em que sinto um desejo de com- Richter, fundamentado em Rogers (2009),
preender-uma empatia sensível com cada elabora o conceito de congruência enqua-
um dos sentimentos e comunicações do drativa para a Teoria Holística da Atividade
cliente como estes lhe parecem no momen- na versão que vem atualmente trabalhando.
to. Aceitação não significa muito até que A congruência enquadrativa da THA é ouvir
está envolva a compreensão. É somente à o outro a partir do e no enquadramento de
medida que compreendo os sentimentos trabalho docente, é o outro dizer-se dentro
e pensamentos que parecem tão terríveis dessa modelagem:
para você, ou tão fracos, ou tão sentimen-
tais, ou tão bizarros-é somente quando eu O conceito de congruência enquadrativa,
os vejo como você os vê, que você se sen- aqui, é sumamente importante. Cabe ao
te realmente livre para explorar todos os profissional com função assessorial abrir-
cantos recônditos e fendas assustadoras de se para a palavra do colega escolarizado
sua experiência interior e frequentemente enquanto sujeito integral. Mas por outro
enterrada (ROGERS, 2009, p. 38) lado, cabe a este aprender a dizer-se no
jargão profissional, sem o que não há como
É da empatia, via escuta, que deriva construir o indispensável espaço de assi-
a aliança didática e como afirma Rogers metria sistêmica, nem mesmo entrar no
(2009, p. 39): “Quando essas condições são enquadramento. Para isto, o colega asses-
alcançadas, torno-me uma companhia para sor conduzirá o diálogo problematizador
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 53

com a rotação dos quatro fluxos discursi- um novo eidos ontológico, um si-mesmo
vos, de forma a provocar insights do colega diferente em um mundo diferente. (CASTO-
do mercado para as relações entre vivência RIADIS, 1987, p. 420).
profissional e os parâmetros enquadrati-
vos (FREITAG; RICHTER, 2015, p. 17, ma- É essa capacidade criadora do pensamen-
terial inédito). to, que se transmuta em questionamento de
si, das leis sociais que regem seu imaginário
Sumariamente, a congruência é como eu e, portanto, de seus lugares ou papéis sociais,
consigo me dizer, enquanto eu. Nos termos que defendemos as práticas situadas dentro
da profissão docente, a congruência é como de um enquadramento de trabalho docente,
eu consigo me dizer como um professor pro- capaz de reformular o papel social docente
fissional enquadrado. Já entramos no tocante segundo as necessidades da clientela e capaz
à empatia e à congruência para o acolhimen- de reformular intervenções didáticas dos do-
to através da escuta. Esses são os dois pon- centes, também, de acordo com a demanda
tos iniciais para construir uma metodologia (através da ordem de sentido de Castoriadis
de escuta e assessoramento. Com a empatia e da lógica configuracional de González Rey)
e a congruência destacamos o como criamos criando, então, um estilo de trabalho indivi-
uma relação de ajuda. dual, apesar de ancorado em uma parametri-
Nossa fundamentação teórica, conta ain- zação, ou abordagem de trabalho docente.
da com outros dois autores: Castoriadis e Para tanto, são indispensáveis procedi-
González Rey. Castoriadis (1982) procura mentos metodológicos, que aqui concernem
resgatar a relação entre universal e singu- aos fatores de atribuição, de mediação e de
lar da subjetividade, de modo a afirmar que controle da Teoria Holística da Atividade
o imaginário como produção subjetiva é (RICHTER, 2015), ao dialogismo problema-
criado pelas significações sociais através da tizador freireano (FREIRE; FAUNDEZ, 1985),
dialética dos sujeitos com a sociedade. As- ao Paradigma Indiciário (GINZBURG, 1989),
sim, para o autor em questão “o sujeito se à Pesquisa-ação (THIOLLENT, 1996), à me-
constitui como tal instituindo um mundo todologia do jogo de rivalidades (FREITAG,
de significações, daí o conceito de ordem de 2015), às interfaces eletrônico-digitais (Fa-
sentido ser importante” (MOTTA; URT, 2009, cebook, WhatsApp, Appear, Skype, etc.)3 e ao
p. 627). O conceito de ordem de sentido, de campo de encontros de ajuda entre sujeitos
Castoriadis, liga-se ao conceito de lógica con- (BENJAMIN, 2011); esse último procedimen-
figuracional, de González Rey, que é a orga- to metodológico, também, atua em nossa
nização e significação da realidade em movi- pesquisa, como fundamento teórico. Come-
mento. Os dois autores atribuem aos sujeitos cemos por Benjamin4, que irá, mormente,
uma capacidade criadora do pensamento, in- subsidiar nossa metodologia de escuta e
separável do contexto e das formas a que os
3 Os encontros entre profissional da academia, profissional do mercado
sujeitos estão imersos, isto é, a organização e licenciandos em formação pode se dar através de ferramentas digitais.
Descobrimos a ferramenta digital Appear, que também é síncrona, mas tem
social. Essa capacidade de criar dos sujeitos uma vantagem em relação às duas outras síncronas mencionadas. Appear
é um site que possibilita videoconferências de até oito pessoas ao mesmo
os dá possibilidades de autonomia: tempo, e por essa razão, a elegemos como a mais apropriada aos propósitos
específicos dessa pesquisa, já que a interação dialogal nessa ferramenta é
semelhante a um encontro presencial (todos podem falar ao mesmo tempo),
além da sua execução ser mais abrangente (em computadores, em tablets,
[...] Abertura ontológica, pois ultrapassar em celulares, etc.)

essa clausura significa alterar o sistema 4 Benjamim (2011) trata da entrevista como ferramenta de trabalho, en-
tretanto, para os fins dessa pesquisa, haverão encontros entre sujeitos, que
cognitivo e organizacional já existente, por- não seguem, totalmente uma formatação de entrevista, mas que se ajustam
às etapas e aos recursos propostos pelo autor mencionado. Não podemos
tanto, constituir seu mundo e a si próprio definir o que serão esses encontros, na medida em que a metodologia de as-
sessoramento via escuta vai surgir das descobertas procedimentais desses e
segundo diferentes leis e, portanto, criar nesses encontros, semelhantes a entrevistas.
54 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

assessoramento, que será contextualmente problematizador freireano nos embasam no


materializada em reuniões síncronas, ou as- controle desses encontros, assim como as
síncronas, ou seja, de encontros presenciais suas interpretações são norteadas pelo Pa-
e encontros virtuais (via interfaces eletrôni- radigma indiciário (GINZBURG, 1989) e pela
co-digitais). O primeiro elemento destacado Pesquisa-ação (THIOLLENT, 1996).5
por Benjamim (2011) é o desejo de ajudar, Os encontros em si, sejam síncronos, ou
que direciona os encontros em suas condi- assíncronos devem obedecer a três estágios,
ções externas e internas, pois as internas segundo Benjamin (2011, p 39): “1.Abertu-
existem em nós e as externas emergiram do ra ou colocação do problema; 2.Desenvolvi-
diálogo. Ele afirma que existem duas condi- mento ou exploração e 3.Encerramento”. O
ções básicas para o desejo de ajudar: primeiro estágio é o assunto de motivação do
encontro. O segundo estágio é o exame do as-
1.Trazer para a entrevista precisamente sunto. O terceiro estágio é o compromisso em
tanto de nós mesmos quanto sejamos capa- procurar individualmente alternativas para o
zes, detendo-nos logicamente no ponto em assunto. Esses três estágios (o quarto elemen-
isso possa constituir obstáculo ao entrevis- to benjamineano), é importante frisar, conso-
tado ou negar a ajuda de que ele necessita. lidam-se por meio dos fatores de atribuição
2.Sentir dentro de nós mesmos que deseja- e de mediação da THA, uma vez que eles re-
mos ajuda-lo tanto quanto possível, e que gulam o papel docente e criam intervenções
nada naquele momento é mais importante. didáticas frente às necessidades da clientela.
O fato de mantermos tal atitude permitirá A metodologia do jogo de rivalidades de Fe-
que ele, no decorrer da entrevista, tome lipe Freitag, em seu percurso de elaboração,
consciência disso (BENJAMIN, 2011, p. 23). será, sobretudo, responsável por ajustar esses
três estágios, uma vez que ela é um saber pro-
O segundo elemento para um encontro de fissional em termos de tomadas de decisão.
ajuda entre sujeitos, ou um assessoramen- O dialogismo problematizador freireano ali-
to de escuta, é voltar-se a nós mesmos para mentará a dialogicidade entre os sujeitos do
sentirmos a vontade em nós de “ajudar aos encontro, de modo a refletirem e buscarem
outros a se sentirem bem consigo mesmos soluções adequadas ao assunto-problema.
e conosco. Além disso, porque estamos bem O quinto elemento corresponde a tipos
com o nosso self, menor será a tendência des- de mudança desejados e como estimulá-las.
te a interferir em nossa compreensão do self A mudança que o grupo de trabalho deseja
do outro” (BENJAMIM, 2011, p. 25). O tercei- deve ser considerada no campo das informa-
ro elemento é a honestidade recíproca que, ções cognitivas, ou emocionais obtidas, en-
“pode incluir, às vezes, dizer ao entrevistado quanto que o seu estímulo, afirma Benjamin
que não temos a solução para sua dificuldade. (2011, p. 62), deve partir do oferecimento de
Em vez de inibi-lo, tal franqueza pode enco- recursos por parte do aconselhador e da de-
rajá-lo a enfrentar sua situação mais vigoro- cisão de aplicabilidade por parte dos aconse-
samente” (BENJAMIN, 2011, p, 27). O quarto lhados: “Queremos ajudá-lo a aprender que a
elemento para um encontro de escuta entre mudança é possível, mas que cabe a ele deci-
sujeitos, para assessoramento, é o emprego dir quando e como mudar”. O sexto elemento
de formulários, segundo Benjamin (2011, é o papel do aconselhador (o que ele traz),
p. 35), no sentido de instrumentos diagnós- como ativo e vital para o funcionamento do
ticos orais e escritos dos encontros em ter-
5 Os formulários, ou instrumentos diagnósticos trazidos por Benjamin
mos de escuta e de assessoramento. Os fato- (2011) nas páginas 74 e 75, por serem bastante relacionados a entrevistas,
serão adaptados ao longo do trabalho de pesquisa, pelos pares profissionais:
res de controle da THA, junto do dialogismo professor da academia (aconselhador), professor do mercado e licenciando.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 55

trabalho conjunto com professor do merca- individual de metodologias), dentro dos pro-
do e licenciando: “Essencialmente, trazemos cedimentos metodológicos previstos, serão
nossos conhecimentos, experiência, habili- distribuídas aos docentes do mercado e em
dade profissional, as informações que possu- licenciamento, em formato digital por meio
ímos e os recursos à nossa disposição. Além de ferramentas “nuvem”, como Google Docs,
disso, trazemos a nós mesmos [...] nossa ca- Google Drive, Dropbox, etc.6
lor e estima” (BENJAMIN, 2011, p. 64). O sé-
timo elemento de um encontro de ajuda, ou CONSIDERAÇÕES FINAIS
de aconselhamento, proposto por Benjamin Como conclusão destacamos que a noção de
(2011), é humanizar a essência desse tra- enquadramento de trabalho docente da Te-
balho cooperativo entre pares profissionais oria Holística da Atividade em seus três fa-
da academia, do mercado e da graduação. tores, ou metafatores (atribuição, mediação
Quanto a essa humanização o autor retoma o e controle) permite transformar as dúvidas
conceito de congruência de Rogers (ROGERS, em tomadas de decisão profissional. Essas
2009) e alude ao aprendizado da escuta por tomadas de decisão nunca deixam de con-
todo o grupo de trabalho, não apenas pelo fluir para o senso finalístico do trabalho do-
professor aconselhador: cente em dado contexto, mas ganharam no-
vos contornos através das escolhas teórico-
Ser humano refere-se a alguma coisa-além metodológicas e criativas dos educadores.
do que já foi dito sobre respeito, interes- A importância das tomadas de decisões
se, ouvir, compreender, aceitar e empatia- paradigmatizadas está no domínio de pro-
de nosso próprio comportamento que dá fissionalização do trabalho docente em con-
substância a essas atitudes. Antes de mais traste com o status de profissão sem senso
nada, precisamos estar preparados para comum e povoada por leigos e semileigos
mostrar ao entrevistado quem somos, sem que a abastecem com escolhas didáticas ile-
nos ocultarmos, para que ele se sinta enco- gais e aleatórias. O enquadramento de traba-
rajado a olhar para o que ele é, sem reser- lho é tão importante que, até mesmo a Medi-
vas. [...] Se nos ouve e não sente nenhuma cina, profissão emancipada, que se autogere
mensagem contraditória por detrás de e, portanto tem Conselhos Federal e Estadu-
nossas palavras, poderá aprender a escutar al, necessitou repensar seu trabalho em ter-
genuinamente a si próprio e sem censura mos de metodologias de atendimento clíni-
(BENJAMIN, 2011, p. 82). co, a partir do “ato médico” (veiculado, for-
temente pela mídia em 2013). Após inúme-
O oitavo e último elemento proposto por ras pressões sociais acerca do atendimento
Alfred Benjamin é a interpretação dos dados, desumanizado de médicos, principalmente,
sejam eles orais, ou escritos. No que tange à em grandes cidades e em sistemas públicos
pesquisa que aqui estamos propondo, a in- de saúde, como, por exemplo, o SUS (Siste-
terpretação utiliza, mais detidamente, os fa- ma Único de Saúde), esses Conselhos médi-
tores de controle da THA (RICHTER, 2015), cos foram chamados pelo Senado brasileiro
o Paradigma indiciário (GINZBURG, 1989) a aprovar a regulamentação de uma série de
e a Pesquisa-ação (THIOLLENT, 1996) em normas médicas, desatualizadas desde 1931,
suas fases de reflexão na ação. E por fim, as que dizem respeito, sobretudo, a um con-
duas metodologias (know-how de elabora- junto de atividades e comportamentos para
ção individual de metodologias de ensino
6 As ferramentas “nuvem”, como as destacadas no texto, dizem respeito
e know-how de assessoramento via escuta à computação em nuvens, a qual dá a possibilidade de acesso e comparti-
lhamento de dados, ou de arquivos a partir de qualquer lugar conectado à
para o ensino desse know-how de elaboração internet.
56 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

diagnósticos, encaminhamento de pacientes Alunos autores no Ensino Médio: (re) educação


e sua prevenção de agravos e medicamenta- linguoliterária na Teoria Holística da Atividade
ção (LAMPERT, 2005)7. e instrumentalização docente através da Pes-
A THA propõe três efeitos de uma profis- quisa-ação, mostrando-lhes os aspectos, ou ín-
são emancipada: efeito de prestígio, efeito de dices que a demonstraram em contexto escolar,
legitimidade e efeito de verdade, em relação ou seja, os indícios discursivos em que me disse
à nossa profissão de licenciados. O efeito de um profissional docente dentro de um enqua-
prestígio dá ao profissional, via imagem e pa- dramento de trabalho. Portanto, essa pesquisa
lavra, “sabedoria, confiabilidade e relevância” futura apresenta: a) uma congruência enqua-
(FREITAG; RICHTER, 2015, p. 09), o efeito de dratória (know-how metodológico individual-
legitimidade dá ao profissional o seu campo jogo de rivalidades) conquistado em contexto
de atuação, “de modo que os não habilitados escolar da pesquisa de mestrado b) uma cons-
que tentarem exercê-la estarão incorrendo em trução de know-how de elaboração individual
exercício ilegal da profissão, um crime” (FREI- de metodologias de ensino para os docentes
TAG; RICHTER, 2015, p. 10) e o efeito de verda- do mercado e em formação a partir do know-
de dá ao profissional um lugar sociodiscursivo -how do jogo de rivalidades, c) uma elaboração
“como argumento de autoridade” (FREITAG; de metodologia de aconselhamento, ou asses-
RICHTER, 2015, p. 10). Em consequência des- soramento, através de estratégias de escuta,
ses três efeitos de uma profissão emancipada, para docentes profissionalmente enquadrados
ainda nos deparamos com o recinto de tios e e d) know-how de assessoramento, através de
tias, provedores de amor incondicional, que fa- escuta para ensinar o know-how de elaboração
zem escolhas didáticas incertas e ao acaso, com individual de metodologias de ensino.
a atuação ilegal da profissão de licenciado em
Letras e com o discurso social de culpabilização
dos professores pelos fracassos dos alunos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
A partir de um saber-sobre e de um saber-co-
mo (o percurso da elaboração da metodologia ABIB, M. L. V. dos S. A construção de conheci-
do jogo de rivalidades) conquistado pelo autor mentos sobre ensino na formação inicial
desse trabalho em seu projeto de mestrado em do professor de Física: “...agora, nós já te-
Estudos Linguísticos, ele pode ensinar profes- mos as perguntas”. Tese de Doutorado em
sores do mercado e licenciandos em formação Educação - Faculdade de Educação da Univer-
inicial o encadeamento de procedimentos uti- sidade de São Paulo/USP, 1996.
lizados por ele na elaboração dessa metodolo-
gia, de maneira a terem melhor controle sobre BENJAMIN, Alfred. A entrevista de ajuda. Tra-
as suas formas de intervenção. Esse ensino se dução de Urias Corrêa Arantes. São Paulo:
dará pela aderência por escuta e congruência WMF Martins Fontes, 2011.
enquadratórias entre professor da academia,
professor do mercado e licenciando. Nesses en- BUBER, Martin. Do diálogo e do diálogo. Tra-
contros síncronos e assíncronos, o autor desse dução de Marta Ekstein de Souza Quei-
trabalho atuará como professor aconselhador, roz e Regina Weinberg. São Paulo: Editora
que escuta os colegas de profissão, reconstruin- Pescpectiva, 1982.
do a sua congruência profissional na pesquisa
CASTORIADIS, C. Encruzilhadas do Labirinto
7 Não entraremos na discussão aprofundada da questão, uma vez que a II-Domínios do Homem. Tradução de José
utilizamos apenas como um argumento de autoridade para explanar a im-
portância de tomadas de decisão profissionalizadas em um paradigma de Oscar de Almeida Marques. Rio de Janeiro:
trabalho enquadrado, aludindo à emancipação ou regulamentação da profis-
são docente. Paz e Terra, 1987.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 57

FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pe- LAMPERT, Jadete Barbosa. Ato médio e a forma-
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2006. Santa Maria, RS, Brasil.
ROCK, CONTRACULTURA E REPRESSÃO NO BRASIL DO
INÍCIO DOS ANOS SETENTA NAS PRIMEIRAS CANÇÕES DA
BANDA O TERÇO
Gérson Werlang1
Edemilson Antônio Brambilla2

RESUMO: O objetivo deste estudo é analisar a relação entre a banda O Terço e os acontecimentos
sócio-históricos surgidos no período que compreende principalmente as décadas de 1960 e 1970,
fase que engloba desde o surgimento da banda, no final da década de 60, até seus principais trabalhos
na década seguinte. Fez-se um estudo detalhado sobre a ligação e posicionamento da banda perante
acontecimentos como a ditadura militar, com seu comportamento repressivo a qualquer manifesta-
ção considerada subversiva e que afrontasse os ideais do governo, dificultando o trabalho dos artistas
no período, forçando-os a buscar um meio de não serem alvo da censura imposta pelos militares, os
quais faziam uso dos atos institucionais, dentre os quais destaca-se o AI-5 que trata especificamente
da censura sobre qualquer produção cultural. Outro ponto abordado é a influência da contracultura
sobre o Terço, considerando o contraste entre a enorme repressão exercida pelos militares durante
o período ditatorial e a atitude de contestação e o anseio por liberdade, característica dos ideais
contraculturais que surgiram no Brasil na década de setenta. Além de analisarmos a influência di-
tatorial e contracultural sobre a banda, é de suma importância perceber o reflexo disso no processo
composicional d’O Terço, que assim como outros artistas retrataram essa influência em suas criações
musicais. Para tanto são considerados como base para análise os primeiros álbuns da banda, com-
preendidos no período entre 1970 e 1973, sendo: O Terço (1970) e O Terço II (1973), embora com
mais discrição que os álbuns seguintes da banda, retratam em algumas canções o desconforto com o
regime militar e a identificação com alguns ideais do movimento contracultural.
PALAVRAS-CHAVE: O Terço. Ditadura Militar. Contracultura.

ABSTRACT: The objective of this study is to analyze the relationship between the band O Terço and
the socio-historical events arising in the period that mainly includes the decades of 1960 and 1970,
from the appearance of the band in the 60s, until her main works in the following decade. We made
a detailed study about the connection and positioning of the band before events such as the military
dictatorship, with its repressive behavior at any event considered subversive and if could affronts the
government’s ideals, hampering the artists’ work in the period, forcing them to seek a way of don’t be
target of censorship imposed by the military, which use of institutional acts, like the AI-5 that is spe-
cifically about the censorship of all cultural production. Another point showed is the influence of the
counterculture on the O Terço, considering the contrast between the massive military repression du-
ring the dictatorship period and the attitude of contestation and the wish for freedom, characteristic of
countercultural ideals that arising in Brazil in the seventies. We’ll analyze the dictatorial and counter-
cultural influence on the band, it is very important to realize the reflection of this in the compositional
process of O Terço, which like other artists have reflected this influence in their musical creations. So
we’ll consider as a basis to analyze the first albums of the band, both between 1970 and 1973, they
are: O Terço (1970) and O Terço II (1973), although more discretion that the following albums of the

1 ∗
Mestre em Música, Doutor em Letras. Professor do Departamento de Música da Universidade Federal de Santa Maria.

2 ∗∗
Graduando em Música pela Universidade de Passo Fundo.
60 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

band, portray in some songs discomfort with the 1. INTRODUÇÃO


military regime and identification with some ide- Considerada uma das bandas mais impor-
als of the counterculture movement. tantes na cena musical brasileira dos anos
KEYWORDS: O Terço. Military dictatorship. Cou- 1970, a banda O Terço marcou uma legião
nterculture. de fãs com sua música. Com seu estilo incon-
fundível, fazia com que amantes do rock da
RESUMEN: El objetivo de este estudio es analizar época se identificassem imediatamente com
la relación entre la banda O Terço y los aconteci- ela, envolvendo uma combinação de estilos
mientos sociohistóricos surgidos durante el perí- que variava entre MPB, rock rural, hard rock,
odo que comprende principalmente los años 1960 e até mesmo parcerias com orquestras sinfô-
y 1970, fase que comprende desde el surgimiento nicas. O conjunto acabou criando uma identi-
de la banda, en el final de la década de 60, hasta sus dade própria, um estilo peculiar, que somado
principales trabajos en la década siguiente. Se há ao talento dos músicos, vieram a transfor-
hecho um estudio detallado acerca de la conexión má-lo também em um sucesso de vendas, e
y posicionamiento de la banda frente a aconteci- embora tenham se passado mais de quatro
mientos como la dictadura militar, con su compor- décadas desde o seu surgimento, a banda
tamiento represivo a cualquier manifestación con- não caiu no esquecimento. Ainda em ativida-
siderada subversiva y que afrontasse los ideales de, faz shows e gravações, para regozijo de
del gobierno, dificultando el trabajo de los artistas admiradores que reconhecem a importância
en el período, obligándolos a buscar un medio de que a banda teve e ainda tem para o cenário
que no sean alvo de la censura impuesta por los musical brasileiro.
militares, los cuales hacían uso de los actos insti- Formada em 1968, O Terço teve sua forma-
tucionales, entre los cuales se destaca el AI-5 que ção clássica composta por Sérgio Hinds (gui-
trata específicamente de la censura acerca de cual- tarra, violão e vocal), Sérgio Magrão (baixo e
quier producción cultural. Otro punto abordado vocal), Luiz Moreno (bateria e vocal) e Flávio
es la influencia de la contracultura sobre el Terço, Venturini (piano, teclados e vocal) no ano de
considerando el contraste entre la enorme repre- 1975. Também contou, ao longo de sua traje-
sión ejercida por los militares durante el período tória, com músicos como Vinícius Cantuária
dictatorial y la actitud de contestación y lo deseo e Jorge Amiden, ambos fundadores da banda
de libertad, característica de los ideales contracul- juntamente com Sérgio Hinds.
turales que surgieron en el Brasil en la década de Em meio a nomes como Os Mutantes,
los setenta. Además de analizarmos la influencia Rita Lee & Tutti-Frutti, Secos e Molhados,
dictatorial y contracultural sobre la banda, es de entre outros, o Terço conquistou seu espaço
suma importancia percibir el reflejo de eso en el no meio musical da época, num cenário de
proceso composicional d’O Terço, que así como repressão e censura oriundos da ditadura
otros artistas retrataron esa influencia sus creacio- militar que se instalara no país a partir da
nes musicales. Para eso serán considerados como primeira metade de 1964, depois que vários
base para análisis los primeros álbumes de la ban- fatores fizeram com que João Goulart aban-
da, comprendidos en el período entre 1970 y 1973, donasse a presidência do país, resultando na
siendo: O Terço (1970) e O Terço II (1973), aunque tomada do poder por parte dos militares. Jul-
con más discreción que los álbumes siguientes de gada por muitos como uma tomada de poder
la banda, retratan en algunas canciones la incomo- preventiva, que terminaria por substituir um
didad con el régimen militar y la identificación con período experimental de democracia por um
algunos ideales del movimiento contracultural. longo período de autoritarismo, contrasta-
PALABRAS-CLAVE: O Terço. Dictadura Militar. ria, entretanto, com algumas influências que
Contracultura. chegariam ao país a partir de 1970, a exem-
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 61

plo do movimento da contracultura, cujas incompetência e de aproximação perigosa


principais características se opunham total- com os movimentos populares, que o pres-
mente às impostas pelos militares. sionavam. Era preciso, portanto, segundo os
Assim, o presente artigo tem como objeti- argumentos desses setores, conter o cresci-
vo principal analisar a relação entre a banda mento dos movimentos sociais reformistas
O Terço e os acontecimentos sócio-históri- e nacionalistas e por fim à experiência go-
cos surgidos no período que compreende vernamental de Jango que, por ser “dema-
principalmente as décadas de 1960 e 1970, gógica”, não conseguia conter os conflitos no
levando em conta tanto o período ditatorial interior de seu próprio governo. A “ameaça
quanto o movimento contracultural, que re- socialista” constituía-se em uma realidade
fletiram diretamente na sociedade e, no caso palpável. Urgia contê-la através de um golpe
dos músicos, nas suas criações. preventivo (DELGADO, 2004, p.21).
Desse modo, procuraremos entender um
pouco mais sobre esses acontecimentos his- Essa vulnerabilidade do governo Goulart
tóricos, e perceber possíveis reflexos disso pode ser percebida também no depoimento
no processo composicional da banda, tendo de outros autores, que atribuíram esse declí-
como base para análise o período que englo- nio principalmente à incompetência admi-
ba os dois primeiros LPs do grupo: O Terço nistrativa de Jango:
(1970) e Terço (1973). Para tanto o texto
buscará, num primeiro momento, compre- Cegueira e tibieza do governo João Goulart
ender o surgimento e as ideias que permea- permitiram e facilitaram essa espantosa
vam a ditadura militar e, contrapostos a ela, evolução. Ela não deve, contudo, ser atri-
os ideais do movimento da contracultura; buída àquelas situações. Tão pouco seria
num segundo momento, faremos uma análi- razoável debitar à desmobilização das
se dessas influências sobre O Terço, através massas alguma importância incentivado-
das letras das composições pertencentes aos ra. A massa respondera, do norte ao sul, ao
álbuns anteriormente citados. apelo de devolução do poder a João Gou-
lart. Ele e “seu dispositivo militar” abrem
2. CONTEXTO HISTÓRICO: dois elos. Um o da incompetência de um
O BRASIL NOS ANOS SESSENTA governo débil, que viu nascer e crescer a
As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas contrarrevolução e só tomou providências
pela ditadura militar, que se estendeu de inócuas... A bandeira da contrarrevolução
abril de 1964 a março de 1985, ocasionada tremulou sozinha... (FERNANDES apud
pelo golpe militar ocorrido em 31 de março DELGADO, 2004, p. 20).
de 1964, que acabou derrubando do poder
o presidente João Goulart (presidente entre O avanço das forças conservadoras não
1961 – 1964). Seu governo experimentava encontrou resistência nesse primeiro mo-
um constante declínio, o que foi um fator que mento, e a partir de 1º de abril de 1964 os
contribuiu para a eclosão do Golpe Militar, militares tomam o poder, poder esse que só
em meio a confrontos com as classes mais chegaria ao fim no governo de Ernesto Geisel
conservadoras e políticos aliados, e à aproxi- (1974 – 1979), já que seu sucessor, João Fi-
mação aos movimentos populares: gueiredo (1979-1985) conduziria o país aos
poucos à Abertura Política.
Esse quadro conflituoso teria fomentado for- O que sobreveio depois do golpe, foi, se-
te desconforto nos setores conservadores, gundo Delgado “o início de uma longa con-
que passaram a acusar o governo Goulart de juntura política, marcada por crescente
62 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

autoritarismo. Uma vez mais, na trajetória Havia sempre algum tipo de pressão, mui-
republicana brasileira, interrompeu-se uma to mais sobre os artistas conhecidos, com
experiência democrática através de uma uma grande expectativa em relação a sua
ação destinada a conter a organização autô- tomada de posição. Os Festivais, então,
noma da sociedade civil” (2004, p.26). Daí eram o espaço ideal para o confronto de
por diante passam pela presidência do país ideias e posições políticas. Lembrando que,
militares como o general Castello Branco mesmo no meio universitário, havia quem
(1964 – 1967), Costa e Silva (1967 – 1969), apoiasse o Regime. Desse modo, quase que
e Emílio Garrastazu Médici (1969 – 1974), a maioria absoluta dos compositores da
que acabou tendo seu governo considerado época produziu a chamada “música enga-
o mais repressivo, cujo período ficou conhe- jada”. Quanto aos mais jovens ainda não
cido como “anos de chumbo”. Com o recru- havia nenhuma pressão, apesar de alguns
descimento da ditadura, são criados os Atos mais radicais considerarem o movimento
Institucionais ─ decretos usados para dar rock como alienação (MERCÊS apud SAG-
plenos poderes aos militares ─ com desta- GIORATO, 2012, p.150).
que para o Ato Institucional n° 5 - AI-5.
Instituído no dia 13 de dezembro de 1968, A banda O Terço estava relacionada for-
durante o governo Costa e Silva, dava pode- temente com as questões políticas existen-
res quase absolutos aos militares, desem- tes durante o período da ditadura militar,
penhando um papel marcante também no colocando-se claramente a favor dos ideais
meio musical, pois o AI-5 foi responsável por esquerdistas. Cézar de Mercês comenta so-
determinar medidas que influenciaram dire- bre o posicionamento do grupo na época:
tamente toda a arte produzida no período. “Claro que estávamos totalmente identifi-
Dentre essas medidas estavam a liberdade cados com os ideais de esquerda, e o fato
vigiada, a proibição para frequentar deter- de fazermos rock em nada nos tornava alie-
minados lugares, e a censura sobre qualquer nados, ao contrário, podíamos através das
produção cultural, o que acabou cerceando a nossas atitudes de contestação acentuar o
produção artística da época. descontentamento de toda uma geração”.
A relação entre ditadura militar e a músi- (MERCÊS apud SAGGIORATO, 2012, p.151).
ca foi um tanto conturbada em todo o perío- O depoimento de Mercês retrata os ideais
do. O rock, por exemplo, sofreu enorme re- das bandas de rock do período, que apesar
pressão, principalmente durante o governo da forte censura imposta pelos militares re-
Médici (1969-1974), que com o poder dado tratavam o período em suas canções a es-
a ele pelo AI-5 facilmente censurava as músi- pera de mudanças tanto políticas quanto
cas que pareciam subversivas, e fossem con- comportamentais.
tra os ideais do governo ditatorial, algo não
muito difícil de ocorrer dentre as músicas 3. A CONTRACULTURA NO BRASIL
produzidas pelos roqueiros no período, já Tanto a repressão quanto a censura dos tem-
que eles se posicionavam claramente contra pos ditatoriais, embora não totalitárias e
o regime, compunham músicas que afron- por vezes ineficientes, se faziam presentes,
tavam os ideais do governo, fazendo deles contrastando com o momento vivido pelos
um forte alvo dos militares, que acabavam jovens. Influenciados por ideais como os
prendendo, torturando e mandando para o do movimento contracultural, que eclodiu
exílio, compositores e artistas considerados no país principalmente na década de 1970,
subversivos. Cézar de Mercês comenta sobre buscavam vivenciar novas experiências li-
a pressão sofrida pelos músicos do período: bertárias, longe da turbulência das grandes
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 63

cidades, pensamentos utópicos de uma ju- Vários foram os fatores que deram iní-
ventude que presenciava dois mundos com- cio a esse movimento. Na década de 1960 o
pletamente opostos. mundo vivia um período pós Segunda Guer-
Ao mesmo tempo em que a repressão e a ra Mundial, e os Estados Unidos buscavam
censura dominavam o país, o movimento da mostrar ao mundo sua hegemonia, levan-
contracultura, oriundo principalmente dos do além fronteiras o cinema, as empresas e
Estados Unidos e da Europa, chegava ao Bra- sua música. No esteio da ebulição mundial,
sil com toda força. Seus principais ideais ba- e também das contradições trazidas pelo ca-
seavam-se principalmente na crítica ao sis- pitalismo, emergem os primeiros traços da
tema capitalista e aos padrões de consumo, contracultura no Brasil, disseminando pelo
contestando os valores morais e estéticos da país adeptos da cultura hippie, com ideais
sociedade. Segundo Maciel: que se opunham claramente aos impostos
pelos militares como liberdade de expressão,
O termo “contracultura” foi inventado pela a vida comunitária, o uso de drogas e o sexo
imprensa norte-americana, nos anos 60, livre, expressões do movimento contracultu-
para designar um conjunto de manifesta- ral, chamado inicialmente no Brasil de movi-
ções culturais novas que floresceram, não mento underground.
só nos Estados Unidos, como em vários No Brasil, o comportamento hippie trouxe
outros países, especialmente na Europa e, consigo o surgimento de festivais de música
embora com menor intensidade e reper- e shows ao ar livre, muitas vezes com infra-
cussão, na América Latina. Na verdade, é estrutura deficiente, proporcionando um
um termo adequado porque uma das ca- palco para discussão da situação política do
racterísticas básicas do fenômeno é o fato país e do mundo na época. Também era um
de se opor, de diferentes maneiras, à cul- ambiente libertário, que escapava à repres-
tura vigente e oficializada pelas principais são vigente no país, proporcionando, para o
instituições das sociedades do Ocidente bem e para o mal, um local onde era possível
(MACIEL apud PEREIRA, 1986, p. 13). o consumo de álcool e drogas por parte dos
jovens, que viam ali um ambiente isolado e
A contracultura, conquanto tivesse nascido livre, propício para essas práticas, que eram
numa conformação multinacional, eclodindo parte do experimentalismo contracultural.
em vários países ao mesmo tempo, encontra- No mundo, o principal festival relacionado
rá no Brasil significados próprios, embora co- a esse movimento foi o festival de Woodstock,
mungue com as visões gerais do movimento. realizado em agosto de 1969, em Bethel, nos
Nesse sentido, Maria Helena Paes aponta que: arredores de Nova York. Em três dias, reuniu
quase meio milhão de pessoas, que presen-
[...] para milhões de jovens naquela déca- ciaram shows de artistas como Jimmy Hen-
da, a saída vislumbrada foi a busca de um drix, Janis Joplin, Santana, entre outros. Essa
mundo alternativo. Da recusa da cultura afluência desmedida de público, muito acima
dominante e da crítica ao establishment ou do esperado, contribuiu para que o festival
“sistema” (como então se dizia), nasceram se tornasse um marco musical e comporta-
novos significados: um novo modo de pen- mental, servindo de referência para a contra-
sar, de encarar o mundo, de se relacionar cultura.
com as outras pessoas. Da recusa surgia, No Brasil, influenciados por Woodstock e
na verdade, uma revolta cultural que con- outros do gênero, surgem na década seguin-
testou a cultura ocidental em seu âmago: a te festivais como o de Guarapari, Concerto
racionalidade (PAES, 1992, p. 22). Pirata, Banana Progressiva, etc., e o mais im-
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portante deles, o Festival de Águas Claras. Unidos os velhos bluesmen voltam à cena,
Realizado na Fazenda Santa Virgínia, na cida- trazidos por novos músicos e poetas, ao
de de Iacanga, interior de São Paulo, no ano mesmo tempo no Brasil o rock se consoli-
de 1975, o evento contou com a presença de da com o movimento tropicalista, com os
aproximadamente dez mil pessoas, e teve a “Novos Baianos”, “Mutantes”, “Terço”, etc.
participação de bandas como Os Mutantes, Em todos esses exemplos percebemos a es-
Som Nosso de Cada Dia e O Terço. Por vezes sencialidade da liberdade como motor im-
comparado ao festival de Woodstock, embo- pulsionando a criatividade (MERCÊS apud
ra não tenha atingido, nem de perto, as pro- SAGGIORATO, 2012, p. 162).
porções daquele, foi o suficiente para marcar
seu nome como símbolo da contracultura no De fato, entre um movimento e outro, boa
Brasil, além de acabar servindo para difun- parte dos músicos do período buscava os
dir os ideais hippies no país, e também como mesmos ideais. Mudanças políticas, compor-
uma forma de protesto contra os ideais im- tamentais, de pensamento, no vestuário, na
postos pelos governantes. música, no cinema, se faziam presentes, in-
fluenciando a população de modo geral. Os
4. CONTRACULTURA E TROPICÁLIA músicos, catalisadores dessas influências,
O Festival de Águas Claras colocava a força retratavam o momento nas letras de suas
da contracultura à prova, representada não canções, deixando claro seu posicionamento
somente pelos roqueiros do período, mas perante os pontos abordados. O Terço faz par-
representada também pelos adeptos da te desse conjunto de bandas que carregaram
Tropicália, movimento liderado por Caeta- para suas temáticas suas vivências e refletem
no Veloso e Gilberto Gil e surgido em 1967. as mesmas em seu processo composicional.
O auge do movimento ocorre nessa época e
dura somente até 1968, quando é instaura- 5. REFLEXOS NO PROCESSO
do o AI-5 e Caetano e Gil são presos e depois COMPOSICIONAL DA BANDA
de soltos partem para o exílio. Esse fato põe A contracultura era um movimento interna-
fim ao movimento, apesar da longa influên- cional, que acontecia no fim dos anos sessen-
cia posterior que a Tropicália teria na mú- ta em vários países, e com profunda influên-
sica brasileira, e também o fato de que seus cia na juventude da época. Dentre as caracte-
principais membros não considerassem que rísticas do movimento, estava a crítica social,
tivesse havido uma ruptura, mas sim uma enraizada desde os seus primórdios, e com
continuidade. consequências na produção cultural do perí-
Mercês (2012) aponta a ligação d’O Terço odo. Segundo Fiuza:
com o tropicalismo, e os ideais em comum no
meio musical do período, em diferentes par- Durante as décadas de 1960 e 1970 circu-
tes do mundo: laram por inúmeros países canções que
criticavam um estado de coisas de então: as
O rock foi um movimento que quebrou ditaduras, o autoritarismo, a violência, o im-
paradigmas, associando-se a outras mani- perialismo, o anticomunismo, a repressão
festações como as artes plásticas, cinema sexual e política, o conservadorismo, o mo-
experimental, poesia, regionalismos, etc. ralismo, a miséria, a fome, a desigualdade
Enquanto na Europa tínhamos “Yes”, “Ge- social, o atraso econômico, as guerras e as
nesis”, “Pink Floyd”, “King Crimson”, mis- armas, entre outros. Nos países em que ha-
turando canções folclóricas com música via censura, tais temas eram abordados tam-
erudita e riffs de rock-and-roll, nos Estados bém por meio de metáforas, dando origem
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a alguns semas comuns em diferentes rea- grado. Também a posição de Hinds na foto,
lidades nacionais. Os mais diversos termos sentado ao centro, o coloca no lugar que ge-
surgiram para denominar esta modalidade ralmente é ocupado pela figura de Cristo nas
de canção: política, engajada, de intervenção, igrejas. O aspecto visual de Hinds, com bar-
de protesto [...] (FIUZA, 2006, p. 42). ba e cabelos compridos, reforça essa ideia.
A capa do álbum recebeu críticas de setores
Assim, o contexto histórico exerceu gran- conservadores da sociedade da época, e de
de influencia sobre os músicos, influência forma geral o assunto foi tratado como uma
esta que acabou sendo incorporada em suas afronta à Igreja Católica.
composições. As letras, muitas vezes ambí-
guas, refletem um estado também ambíguo:
de defesa perante um contexto repressivo,
mas também de abertura para realidades
que escapassem a esse contexto. A banda O
Terço, a exemplo da maioria dos artistas do
mesmo período, incorporou essas influên-
cias em suas composições. Embora elas apa-
reçam de forma mais evidente nas canções
de seus principais álbuns, Criaturas da Noite
(1975) e Casa Encantada (1976), já em seus
primeiros trabalhos podemos perceber um
possível retrato do período e da sociedade
em que estavam inseridos.
Para melhor ilustrar essas influências
buscaremos entender como se deu esse pro-
cesso. O ano era 1970, O Terço, então for- Figura 1: capa do primeiro LP d’O Terço.

mado por Jorge Amiden (guitarra), Vinícius


Cantuária (bateria) e Sérgio Hinds (baixo), Em termos literários, podemos perceber
participava de festivais de música pelo país. em algumas de suas músicas a influência do
Em um deles, o importante Festival de Juiz contexto da época. Um desses casos é a can-
de Fora, a banda defendera a canção “Velhas ção “Longe Sem direção”, composição de P.
Histórias” composta por Guarabyra e Corrêa, Patrício e Jorge Amiden. Vejamos a letra:
que lhes rendeu a primeira colocação no fes-
tival, o que fez com que a música fosse lan- Longe Sem Direção
çada em um compacto simples, juntamente (P. Patrício e Jorge Amiden)
com a música “Edifício Avenida Central” de (O Terço, 1970)
Amiden e Hinds. Pouco tempo depois, em pa-
ralelo aos festivais a banda lança o primeiro Eu muito andei
LP homônimo contendo doze faixas. Eu já sofri pra lhe encontrar
O álbum permite algumas interpretações Perdi a paz e me achei demais
até mesmo em sua capa, chamando a aten- Longe sem direção, enfrentei o sol e o chão
ção para as vestes dos músicos, para o fato
de estarem em um lugar que se assemelha a Vi muitas maldades e guerras em vão
uma Igreja e estarem sentados próximos a E afinal descobri um mundo sem amor
um crucifixo. A semelhança com uma igreja Cheio de medo, de ódio e de dor
coloca a ideia de profanação de um lugar sa- Onde está você, amor?
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Com um estilo típico encontrável em mui- Fazem parte da sociedade,


tas letras do período, é possível perceber a Consumida
insatisfação contida (perdi a paz; vi muitas Comem a propaganda,
maldades; um mundo sem amor) no texto. A Mas não são
ambiguidade presente, também característica
da produção da época, reflete o momento da Para além do estilo incerto dos autores, de
ditadura, a censura como uma possibilidade quem ainda busca sua dicção, certo é que a
que ronda e cerceia os agentes que trabalham letra reflete a insatisfação geral do período
com a arte e a cultura. Daí a escolha da ampli- com o momento vivido. Momento que se tra-
tude, de certa distância guardada do objeto. duz nessa sociedade onde as pessoas “cami-
Luiz Tatit, em suas análises da canção bra- nham, falam, mas não são”, onde as pessoas
sileira, acentua que a dicção de cada autor “comem a propaganda, mas não são”.
define suas escolhas, sua maneira de abor- A busca por uma vivência mais orgânica
dar a canção. Segundo ele que é engolida pela repressão se traduz em
muitas letras dessa época, não apenas d’o
[...] o cancionista é um gesticulador sinuo- Terço3. Em “Imagem”, há a expressão desse
so com uma perícia intuitiva muitas vezes desejo, de algo que se tenta buscar, mas que
metaforizada com a figura do malandro, do se esvai ao primeiro toque:
apaixonado, do gozador, do oportunista, do
lírico, mas sempre um gesticulador que ma- Imagem
nobra sua oralidade, e cativa, melodicamen- (Sérgio Hinds e Jorge Amiden)
te, a confiança do ouvinte (TATIT, 2002, p. 9). (O Terço, 1970)
Imagem,
A escolha possível nesse momento é o dis- Grãos de areia formando você
tanciamento, a ambiguidade. As composições da Miragem,
banda oscilam nesse território tênue, onde não é No deserto a imagem é inútil querer
necessário nomear as coisas de forma direta. Viagem,
Ainda nesse LP, duas canções chamam a Eu ando contrário na selva de encontro
atenção, “Antes de você... eu” e “Imagem”, que
retratam, com a mesma ambiguidade, cer- Imagem,
ta vivência ou influência recebida. Vejamos Todas as vidas que eu sempre quis ver
uma dessas letras: Miragem,
Seus mantos encobrem um mundo irreal
Antes de você... eu Viagem, imagem, miragem
Sérgio Hinds, Jorge Amiden Meu medo é você.
(O Terço, 1970)
Esta temática retorna também nos com-
Andando pela rua pactos lançados entre o primeiro e o segun-
Procurando um alguém do LPs. A música “Adormeceu”, um dos su-
É inútil cessos do grupo na época, enfatiza uma vida
Aqui na rua não existe ninguém onde a rotina não traz paz, onde as pessoas
simplesmente existem e não podem viver
Os seres estão todos, propriamente.
Mas não são
Caminham, falam,
Mas não são 3 A esse propósito, ver SAGGIORATO, 2012, p. 141.
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Adormeceu Deus
(Jorge Amiden e Cezar de Mercês) (Mercês, Hinds e Cantuária)
(O Terço, 1971) (O Terço, 1973)

Adormeceu, antes do fim do dia Eu não vou mais parar,


Entre a rotina do lugar Eu não sou
Porém a vida ainda se faz, num fraco suspi- Deus
rar Dou um passo no ar,
Onde estou?
Reconheceu, a paz que ainda se esconde Deus
Por traz dos mantos da razão
Adormeceu pra não morrer Sigo a subir,
Meu caminho astral,
O tema de uma vida de insatisfação, in- Vou achar
completa, onde “a vida ainda se faz, num fra- Venha me seguir,
co suspirar”, se repete, através de metáforas Juntos descobrir
variadas, deixando entrever a influência dos Nosso
tempos sombrios que se vivia no país. Nessa Deus.
canção, o personagem adormece “para não
morrer”, numa clara vontade de desaparecer Ainda em tempos ditatoriais a banda re-
num período onde a realidade se faz por de- trata na música “Estrada Vazia” a espera pela
mais pesada. Nesse sentido, a temática con- paz, por liberdade e mudanças, algo que se
tracultural no rock brasileiro atinge outros aproxima do anseio pelo fim da repressão e
tópicos, para além (ou aquém, dependendo do controle autoritário:
do ponto de vista) da temática pacifista que
norteava grande parte do rock produzido Estrada Vazia
nos EUA e Inglaterra. De qualquer forma, a (Cantuária e Ezequiel Neves)
contracultura se estabelecia no Brasil de for- (O Terço, 1973)
ma peculiar devido à ditadura militar. Sou uma criança que ainda não sorriu
Venho cansado e sem encontrar
6. INFLUÊNCIAS DA CONTRACULTURA A paz
Em 1973 a banda lança o LP “Terço”, re-
tratando antes de tudo a clara mudança Meu corpo é o aberto caminho para você
na sonoridade do grupo, agora formado descobrir
por Cezar de Mercês (baixo), Sérgio Hinds Estrada deserta esperando você pra poder
(guitarras) e Vinícius Cantuária (bateria). resistir (...)
Nele podemos perceber além dos influxos Sou uma criança que ainda não sorriu,
da ditadura, a influência que a contracul- Venho cansado e sem encontrar
tura exerceu sobre a banda. Na canção que A paz.
abre o disco, chamada “Deus”, subentende-
se em uma suposta busca por outra “ver- Canção semelhante a já citada “Deus”, “La-
dade”, um caminho a ser seguido, um uni- goa das Lontras” lembra muito o compor-
verso paralelo, algo que fosse diferente de tamento hippie do período, dando enfoque
tudo o que os rodeava, características for- ao desejo de morar em um lugar sossegado,
tes do movimento contracultural: representação da felicidade e um ambiente
ideal para se viver:
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Lagoa das Lontras Conforme o depoimento de Fiuza apon-


(Cantuária e Hinds) ta, o mercado musical para bandas como o
(O Terço, 1973) próprio Terço, não é mais o mesmo, embora
seja preciso considerar que mesmo naquele
Agora vou dizer tempo em que essas bandas estavam em seu
Tudo o que me aconteceu auge, sua aceitação ainda assim não era ga-
Peguei muita chuva rantida.
E apesar de molhado não me resfriei
Andei muito a pé [...] Na realidade, os roqueiros brasileiros
Nem por isso me cansei eram desprezados pelos grandes meios de
comunicação e ignorados pelo grande pú-
Senti uma nova vida florescer blico, com raras exceções (Mutantes, Secos
As pessoas que lá estiveram, & Molhados e Raul Seixas). Os grupos sur-
Sentiram e me viram tremer (...) giam e desapareciam sem deixar rastros –
muitas vezes sem deixar registros em vinil
Sei que a Terra é muito grande, –, mostrando toda a incipiência do merca-
Mas em Lontras vou viver. do nacional para esse tipo de produção mu-
sical (BRANDÃO apud SAGGIORATO, 2012,
O ideário hippie aparece aqui em sua ple- p. 298).
nitude, com a representação do lugar ideal,
próximo à natureza, longe dos problemas Contudo, podemos afirmar que o rock
que afetavam a sociedade brasileira e mun- de maneira geral, desde o seu surgimento
dial do período. em 1950, foi muito além da música propria-
Embora com mensagens discretas, fazen- mente dita, caracterizando uma das mais
do com que os integrantes do Terço não fi- importantes fontes influenciadoras durante
cassem diretamente vigiados pelos militares, décadas, aliando-se a manifestações como
tratando-os como uma ameaça a seus ideais as artes plásticas, o cinema, etc., e a exemplo
de governo, é possível perceber desde os pri- do que acontecia em outras partes do mun-
meiros trabalhos o claro posicionamento da do, incorporaram ideais em suas produções
banda contra o regime militar, o desconten- que refletiram em toda sociedade. Segundo
tamento para com o rumo do país, e o desejo CIDREIRA (2008, p.38):
de liberdade.
[...] o rock, seja ele hippie, punk, dark, etc.,
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS pode ser considerado a forma cultural pós-
moderna mais representativa, na medida
Os nomes que despontaram na canção bra- em que personifica o paradoxo central da
sileira no auge dos festivais tiveram osci- cultura de massas contemporânea: o fato
lações em suas carreiras, mas ainda fazem de que possui um alcance e influência glo-
parte do complexo cenário musical brasi- bal unificadora, de um lado, e a tolerância e
leiro. É sabido que para a indústria fono- criação de pluralidades de estilos, de mídia,
gráfica, estes cantores não possibilitam as de identidades, do outro. Tal característica
grandes vendagens dos gêneros musicais aparece no rock desde o seu nascimento,
sazonais. Contudo, continuam vendendo pois desde então sempre foi capaz de se co-
por mais de trinta anos, tanto sua produ- nectar com a cultura juvenil como um todo;
ção contemporânea quanto seus discos de com a cultura das ruas, com a performance
catálogo (FIUZA, 2006, p. 301). e o espetáculo, com o estilo, com a moda...
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CIDREIRA (2008, p. 36) ainda aponta as FIUZA, Alexandre. Entre um samba e um fado: a
transformações promovidas por estes jovens censura e a repressão aos músicos no
roqueiros:
Brasil e em Portugal nas décadas de 1960 e 1970.
Movidos por sonhos, verdadeiras utopias, Ed. ASSIS, 2006. 360p.
os jovens agregaram em torno de si e de
seus ideais uma força gigantesca que foi GUIMARÃES, Felipe F. F. Contracultura nos esta-
capaz, de fato, de fissurar a estrutura até dos unidos e contracultura no Brasil: um estu-
então vigente, reivindicando uma inteira do comparado. 18p.
reversão do modo de ser da sociedade. Se
essa fissura não foi suficientemente capaz PAES, Maria Helena Simões. A década de 60: re-
de ruir o complexo já instalado, pelo me- beldia, contestação e repressão política. São
nos conseguiu impor algumas importantes Paulo: Ática, 1992.
transformações.
PEREIRA, Carlos A. M. O que é contracultura. Ed.
Esses fatores só contribuem para engran- Brasiliense, 1986. 4 ed. 100p.
decer ainda mais a história de bandas como
O Terço, que apesar da escassez de informa- RODRIGUES, Nélio. O Terço. In: O Terço. São Pau-
ções ligadas à música referente ao período, lo: Discobertas, 2010. CD, reedição do EP de
conseguiu marcar seu nome nesse tumultu- 1971.
ado cenário musical. Através de suas músi-
cas, o grupo fez-se ouvir, perdurando até os SAGGIORATO, Alexandre. Anos de Chumbo: Rock
dias atuais. Daí a importância em remontar e Repressão Durante o AI-5. Passo Fundo, RS.
parte desse período, por vezes pouco docu- Ed. Universidade de Passo Fundo, 2012. 184p.
mentado, mas que, conforme apontam os
exemplos citados, comprovam a ideia que SAGGIORATO, Alexandre. Rock brasileiro na dé-
norteava essa pesquisa, de que tanto O Ter- cada de 1970: contracultura e filosofia hippie.
ço quanto outras bandas da mesma época História: Debates e Tendências – v. 12, n. 2,
foram influenciadas consideravelmente pela jul./dez. 2012, p. 293-302.
ditadura militar, pela contracultura e outros
movimentos que surgiram no Brasil durante TATIT, Luiz. O Cancionista: Composição de Can-
as décadas de 1960 e 1970. ções no Brasil. São Paulo: Edusp, 2002. 2 ed.
322p.

REFERÊNCIAS

CIDREIRA, Renata Pitombo. A moda nos anos


60/70 (comportamento, aparência e estilo).
Revista do Centro de Artes, Humanidades e
Letras vol. 2 (1), 2008, p. 35-44.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. 1964: tem-


poralidade e interpretações. In: REIS, D. A.;
RIDENTI, M.; MOTTA, R. P. S. (orgs.). O golpe
e a ditadura militar: quarenta anos depois
(1964-2004). Florianópolis: EDUSC, 2004.
A CONSTITUIÇÃO DO DISCURSO PARÓDICO EM O REMORSO
DE BALTAZAR SERAPIÃO, DE VALTER HUGO MÃE

Raquel Trentin Oliveira1


Giseli Caroline Seeger da Silva2

RESUMO: Seguindo a proposta de Mikhail Bakhtin, de acordo com a qual o romance caracteriza-se
como um “híbrido intencional e consciente de linguagens”, o presente trabalho estará debruçado
sobre o romance o remorso de baltazar serapião, de valter hugo mãe (2006). O caráter combativo
da narrativa portuguesa contemporânea será encarado especialmente a partir da noção bakhtinia-
na de plurilinguismo, que defende a estratificação interna da língua em sua existência histórica.
Na narrativa de valter hugo mãe, a constituição paródica atende ao questionamento da realidade
sócio-histórica responsável por postular uma hierarquia de gêneros. Materializando um discurso
antifeminino cujo tom arcaico remete a um ambiente medieval, ao mesmo tempo em que possibilita
um dedutível recorte contemporâneo, ligado naturalmente ao seu contexto de produção, a narrativa
propõe a relativização do discurso alheio e a deslegitimação de premissas tradicionalmente aceitas.
Para isso concorre um entrecruzamento de vozes e perspectivas que põe em choque, mesmo que
subliminarmente, pontos de vista dissonantes.
PALAVRAS-CHAVE: Mikhail Bakhtin. Plurilinguismo. Narrativa portuguesa contemporânea. valter
hugo mãe. Costituição paródica.

ABSTRACT: In line with the Mikhail Bakhtin’s proposal, according to which the novel is an
“intentional and conscious hybrid of languages”, this paper will be oriented to the novel o
remorso de baltazar serapião, by valter hugo mãe (2006). The combative quality of contem-
poray Portuguese novel will be examided especially from bakhtinian concept of plurilinguis-
me, which support the internal stratification of language in its historical existence. In val-
ter hugo mãe’s narrative, the parodic constitution attend to the critique of socio-historical
reality which postulates an hierarchy of genres. Through materialization of an antifeminin
discourse whose archaic tone remit to an unlocated medieval ambiance, at the same time
that makes possible a deductible contemporary approach, naturally related to its context of
production, the narrative proposes the relativization of the discourse of the other and the
delegitimization of traditionally accepted premises. In view of this, appeals to an intertwi-
ning of voices and perspectives that confronts, even subliminally, dissonant points of view.
KEYWORDS: Mikhail Bakhtin. Plurilinguisme. Contemporary Portuguese novel. valter hugo
mãe. Parodic constitution.

RESUMÉN: Según la propuesta de Mikhail Bakhtin, de acuerdo con la cual el romance se caracte-
riza como “híbrido intencional y consciente de lenguajes”, el presente trabajo se aboca al romance
o remorso de baltazar serapião, de valter hugo mãe (2006). El carácter combativo de la narrativa
portuguesa contemporánea será encarado especialmente a partir de la noción bakhtiniana de plu-
rilingüismo, que defiende la estratificación interna de la lengua en su existencia histórica. En la
narrativa de valter hugo mãe, la constitución paródica atiende al cuestionamiento de la realidad

1 Raquel Trentin Oliveira é professora do departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

2 Giseli Caroline Seeger da Silva é graduanda do curso de Bacharelado em Letras da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e bolsista CNPq/PIBIC do
projeto Vozes e perspectivas no romance português contemporâneo.
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socio-histórica responsable por postular una je- adas na raça, na etnia, na classe e no gênero.
rarquía de géneros. Materializando un discurso Em Portugal, tal crise instaurou-se de vez no
antifemenino cuyo tono arcaico remite a un am- período pós-Revolução dos Cravos, em que a
biente medieval, al mismo tiempo que permite literatura acabou por também assumir o papel
un deducible recorte contemporáneo, conecta- de repensar narrativas identitárias, especial-
do naturalmente a su contexto de producción, mente ligadas à imagem de nação. Para tanto,
la narrativa propone la relativización del dis- um dos primeiros passos foi integrar no ro-
curso ajeno y la deslegitimización de premisas mance dimensões que acentuavam o caráter
tradicionalmente aceptas. Para eso converge un textual específico do discurso histórico oficial,
entrecruzamiento de voces y perspectivas que contaminando o passado objectual pelo pre-
pone en choque, mismo que subliminalmente, sente crítico e perspectivante e revelando sua
puntos de vista disonantes. natureza contraditória e incompleta.
PALABRAS-CLAVE: Mikhail Bakhtin. Plurilin- A professora Maria Luíza Ritzel Remédios,
güismo. Narrativa portuguesa contemporánea. no texto O romance português contempo-
valter hugo mãe. Constitución paródica. râneo, ocupou-se da trajetória do narrador
na ficção portuguesa produzida de 1940 a
1970, recortando dois romances exemplares
INTRODUÇÃO de cada década e propondo uma tipologia do
A forma narrativa predominante na produ- processo narrativo em relação com transfor-
ção de autores como José Saramago (1922- mações sócio-político-econômicas. Segundo
2010), Agustina Bessa-Luís (1922), Almeida a autora, nesse período, o romance portu-
Faria (1943), António Lobo Antunes (1942), guês desenvolve-se entre dois polos: do mais
Lídia Jorge (1946) e, mais contemporane- monológico ao mais dialógico (1986, p.231).
amente, na produção de valter hugo mãe Nessa linha de evolução, com o declínio da
(1971, escrito em letras capitais minúsculas, censura ditatorial e por meio do diálogo com
de acordo com a proposta do autor) deixa diversas correntes fomentadas no contexto
entrever a construção de uma prosa marca- pós-modernista e pós-colonial, a tendência
da, regular e intensamente, pelo cruzamento dialógica diagnosticada permanece e chega a
de vozes e perspectivas, pela ironia, por am- um alto grau no romance pós-74.
biguidades, pela variedade de estilos e pela Com efeito, a produção narrativa portu-
indefinição de planos espaço-temporais, que guesa desenvolvida a partir da metade final
apontam, em larga medida, à dialogização do século XX parece ter deixado cada vez
interna do discurso. Tais marcas vêm sendo mais em evidência a concepção bakhtiniana
apontadas e reconhecidas por diversos e im- do romance como fenômeno “pluriestilístico,
portantes críticos da literatura portuguesa plurilíngue e plurivocal” (2002, p.71). Her-
contemporânea, como Nelly Novaes Coelho deiro da Geração de Abril, representada por
(1973), Roxane Eminescu (1983), Álvaro nomes supra referidos, valter hugo mãe vem
Cardoso Gomes (1993), Cristina Robalo Cor- se destacando na esfera cultural portuguesa,
deiro (1997), Maria Alzira Seixo (1984), Ana e é sobre seu romance o remorso de baltazar
Paula Arnaut (2002) e Carlos Reis (2006). serapião (2006), merecedor da crítica elo-
Naturalmente, essas características da giosa de José Saramago, que este artigo se
enunciação romanesca têm a ver com o con- debruça. Pretendemos estudar a materiali-
texto geral de crise de ideologias dominantes dade discursiva desse romance, mais espe-
de nossa época, com a tendência de deslegi- cificamente a forma paródica de que lança
timar verdades impostas e derrubar hierar- mão, em diálogo com os possíveis vetores
quias tradicionalmente aceitas, como as base- semânticos e axiológicos acionados.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 73

A PALAVRA DO ROMANCE COMO incorpora, pois, a variedade de línguas que o


ESPAÇO DE TROCA contorna. Nele, “cada palavra evoca um con-
Ao introduzir a discussão a respeito do dis- texto ou contextos nos quais ela viveu sua vida
curso do romance, Bakhtin põe em primeiro socialmente tensa; todas as palavras e formas
plano o tom social básico que fundamenta são povoadas de intenções” (ibidem, p. 94), e
o gênero e, debruçando-se sobre as tensões o discurso do narrador, das personagens ou
que permeiam todas as esferas semânticas dos gêneros intercalados são unidades pelas
do romance, aponta à necessidade de uma quais a variedade de línguas se instaura no
estilística que preconize a relação primor- romance. Conforme Moura Vieira e Campos
dial entre as “harmônicas individuais do es- (1999, p. 64), “para construir o plurilinguis-
tilo” e os “caminhos sociais e fundamentais mo, o romancista espalha-se, costurando a
da vida do discurso” (BAKHTIN, 2002, p. 71). representação literária da linguagem social
Conforme o teórico, o discurso romanesco do homem com a imagem da linguagem des-
traz consigo “toda estratificação interna de se mesmo homem”. Portanto, de acordo com
cada língua em cada momento dado da sua o objeto da representação, a narração reflete
existência histórica” (ibidem, p. 74). Assim, e refrata as diversas camadas da linguagem
segundo sua concepção, escrita ou falada de determinado tempo:

O romance é uma diversidade social de lin- essa linguagem comumente falada e escrita
guagens organizadas artisticamente, às ve- pela média de um dado ambiente é toma-
zes de línguas e de vozes individuais. [...] O da pelo autor precisamente como a opinião
discurso do autor, os discursos dos narra- corrente, a atitude verbal para com seres e
dores, os gêneros intercalados, os discursos coisas, normal para um certo meio social, o
das personagens não passam de unidades ponto de vista e o juízo correntes. De uma
básicas de composição com a ajuda das forma ou de outra, o autor se afasta dessa
quais o plurilinguismo se introduz no ro- linguagem comum, põe-se de lado e objeti-
mance. Cada um deles admite uma varieda- viza-a, obrigando-a a que suas intenções se
de de vozes sociais e de diferentes ligações e refranjam através do meio da opinião pú-
correlações (sempre dialogizadas em maior blica (sempre superficial e frequentemente
ou menor grau). Estas ligações e correlações hipócrita), encarnado em sua linguagem.
especiais entre as enunciações e as línguas [...] ora mais, ora menos, o autor deforma
(paroles – langues), este movimento do tema parodicamente alguns momentos da “lin-
que passa através de línguas e discursos, a guagem comum”, ou revela de maneira
sua segmentação em filetes e gotas de pluri- abrupta a sua inadequação ao objeto. Às
linguismo social, sua dialogização, enfim, eis vezes, ao contrário, como que se solidariza
a singularidade fundamental da estilística com ela, apenas mantendo uma distância
romanesca (ibidem, p. 74-76). mínima, e, de vez em quando, fazendo res-
soar diretamente nela a própria “verdade”,
Dessa maneira, na tese bakhtiniana, a no- isto é, confundindo inteiramente a sua voz
ção de “plurilinguismo” aparece ligada à rela- com a dela (BAKHTIN, 2002, p. 108).
ção entre o mundo social, real, e o mundo do
discurso escrito. Este se encontra imerso na Conforme Bakhtin (ibidem), “nós adivi-
variedade de línguas do mundo exterior, no nhamos os acentos do autor que se encon-
“plurilinguismo real”, que por sua vez apon- tram tanto no objeto da narração como nela
ta para “estratificação e contradições reais” própria e na representação do narrador. [...]
próprias da dinâmica da língua. O romance Não perceber esse segundo plano intencio-
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nalmente acentuado do autor significa não mance através da parodização de linguagens


compreender a obra”. Segundo o teórico, o solenes, hipócritas, empoladas, etc. da opi-
romance, enquanto fenômeno intrinseca- nião corrente do grupo social a que perten-
mente ligado à vida social, é um “híbrido cem grande parte das personagens, o teórico
intencional e consciente de linguagens” (ibi- faz uso de conceitos úteis à análise do discur-
dem, p. 157), uma vez que a própria essên- so empregada nesta análise, dentre os quais o
cia da língua é dada pelas relações sociais, de “construção híbrida”, definida como
via interação verbal, realizada por meio da
enunciação ou das enunciações. Portanto, o o enunciado que, segundo índices gramati-
discurso, como forma concreta de manifes- cais (sintáticos) e composicionais, pertence
tação da língua, jamais poderia constituir-se a um único falante, mas onde, na realidade,
num fenômeno individual, já que se realiza estão confundidos dois enunciados, dois
entre, pelo menos, dois interlocutores, seres modos de falar, dois estilos, duas “lingua-
fundamentalmente sociais: o autor e o leitor. gens”, duas perspectivas semânticas e axio-
Dessa concepção deriva a proposição bakh- lógicas. [...] entre esses enunciados, estilos,
tiniana de dialogismo, bem ilustrada na sua linguagens e perspectivas, não há nenhuma
noção de recepção/compreensão ativa, na fronteira formal, composicional e sintática:
qual o locutor enuncia em função da exis- a divisão das vozes e das linguagens ocorre
tência de um interlocutor real ou virtual, de nos limites de um único conjunto sintático,
quem é requerida uma atitude responsiva. frequentemente nos limites de uma propo-
De acordo com Bakhtin, somente é possível sição simples, frequentemente também, um
tornar compreensível a enunciação porque mesmo discurso pertence simultaneamen-
a colocamos em movimento dialógico, con- te às duas línguas, às duas perspectivas que
frontando nossos enunciados com enuncia- se cruzam numa construção híbrida, e, por
dos alheios. conseguinte, tem dois estilos divergentes,
dois tons (ibidem, p. 110).
Por isso, sua orientação [do falante] para o
ouvinte é a orientação para um círculo par- O emprego de uma construção híbrida, na
ticular, para o mundo particular do ouvin- qual são postas duas opiniões que se relacio-
te, introduzindo elementos completamente nam visando ao desmascaramento de deter-
novos no seu discurso: pois para isto con- minada linguagem corrente e à refração do
corre a interação dos diversos contextos, ponto de vista autoral, aparece, desse modo,
diversos pontos de vista, diversos horizon- associado a formas como a paródia, a polê-
tes, diversos sistemas de expressão e de mica, o skaz e a réplica (ibidem, p. 84, grifo
orientação, diversas “falas sociais”. [...] O meu). A primeira, ponto de partida para a
locutor penetra no horizonte alheio de seu análise de o remorso de baltazar serapião,
ouvinte, constrói a sua enunciação no terri-
tório de outrem, sobre o fundo aperceptivo afasta ainda mais o autor de sua linguagem,
de seu ouvinte (BAKHTIN, 2002, p. 91). complica ainda mais a relação dele com as
linguagens literárias de seu tempo, sobre o
Ao analisar alguns exemplos do romance próprio território do romance. O discurso
humorístico Little Dorrit, de Dickens, Bakhtin romanesco predominante naquela época
fornece importantes dados para a análise da torna-se ele próprio um objeto e se trans-
realização da dialogicidade interna dos enun- forma num meio de refração das novas in-
ciados do romance. Na identificação da varie- tenções do autor (idem).
dade de vozes, tons e estilos inseridos no ro-
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 75

Como bem assinala Alavarce (2009, p. obra narra e protagoniza os eventos que se
64), a paródia “reproduz um choque e deve, passam, em sua maior parte, na proprieda-
pois, ser fruto de uma diferença de postura de rural de d. afonso (os nomes das perso-
entre dois planos [e] tal choque deve ser per- nagens são grafados em iniciais minúsculas
cebido pelo leitor”. Assim, sem a apreensão também em consonância com a proposta do
do “pano de fundo”, dos acentos autorais pre- autor3), vassalo do rei de Portugal. baltazar
sentes no discurso, torna-se insatisfatória a serapião é um dos três filhos da família sar-
compreensão da obra. ga, assim alcunhada pelo povo em decorrên-
cia da estreita relação com sarga, a vaca da
AS VOZES SOB o remorso de balta- família. Depois de casar-se com ermesinda,
zar serapião baltazar passa a ser atormentado pelo ciúme
Valter hugo mãe, escritor português nascido decorrente da suposição de que ela teria se
em Angola em 1971, tem se mostrado uma deixado seduzir por dom afonso, iniciando
das vozes mais proeminentes da literatura um gradual processo de mutilação da es-
portuguesa atual. Além de escritor, é artista posa, que pouco a pouco assume postura e
plástico, músico e editor. Sua obra é composta feições desfiguradas. Em determinado ponto
pela poesia e pela prosa, rendendo-lhe a pri- da narrativa, serapião, que acompanhava o
meira, em 2012, o Prêmio de Poesia Almeida irmão aldegundes, pintor hábil, ao palácio de
Garret. Sua produção narrativa, entretanto, é El-Rei D. Dinis é amaldiçoado por gertrudes,
o que lhe tem possibilitado a inserção no pa- “a mulher queimada”, ficando sujeito a um
norama da literatura lusófona. Desde a con- feitiço que o leva a incinerar a si e ao espaço
quista do prêmio literário José Saramago, em ao redor caso se afaste do irmão e do amigo
2007, mãe vem adquirindo reconhecimento dagoberto. Sem conseguirem livrar-se do fei-
público e aprovação crítica com títulos como tiço, acabam os três isolados da localidade,
o nosso reino (2004), o remorso de baltazar sendo mais tarde encontrados por ermesin-
serapião (2006), o apocalipse dos trabalha- da, que, já quase completamente descom-
dores (2008), a máquina de fazer espanhóis posta, torna-se vítima fatal dos abusos de
(2010), O Filho de Mil Homens (2011) e A De- aldegundes e dagoberto. Aturdido pela cena
sumanização (2013). presenciada, serapião mata os outros dois e
Seu segundo romance, o remorso de bal- tenta chegar até sarga, que lança um mugido
tazar serapião, publicado em 2006, explora lancinante.
a condição feminina reunindo linguagens, Em o remorso de baltazar serapião, mãe in-
temáticas, personagens e espaços arcaicos troduz já na escolha pela exploração da condi-
e, concomitantemente, um recorte narrati- ção feminina “o discurso de outrem na lingua-
vo, em diversos sentidos, atual. Dispensando gem de outrem”. Inseridas numa medievalida-
limites temporais e espaciais precisos, o ro- de deveras atual, as mulheres da narrativa são
mance narra as vivências da família serapião, constantemente inferiorizadas, violentadas e
ou, como é conhecida pela população local, silenciadas, e a parodização do discurso predo-
família sarga. Pela perspectiva de serapião, o minante, do qual se apropria o autor, é elucida-
leitor é imerso em um ambiente em que as tiva do encontro não explicitamente marcado
relações de poder – nos mais diversos senti- de vozes e perspectivas dissonantes. Tal dis-
dos que o termo pode assumir – determinam
3 o nosso reino (2004), o remorso de baltazar serapião (2006), o apocalip-
as condições de vida e a tragicidade dos des- se dos trabalhadores (2008) e a máquina de fazer espanhóis (2010), primei-
ros romances de valter hugo mãe, integram a sua chamada “tetralogia das
tinos, especialmente do destino da mulher. minúsculas”. Nela, a abolição das maiúsculas se estende, inclusive, ao nome
do autor. Visando a uma “limpeza formal do texto”, mãe justifica sua escolha
O romance obedece à seguinte linha nar- através da tese de que a simplificação sintática e gráfica permite a chegada a
uma escrita mais próxima da oralidade, assim como a abolição da distinção
rativa: a personagem que integra o título da hierárquica entre as classes de palavras.
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curso, dado na narrativa como opinião corren- materializam o discurso misógino com o qual
te, constitui-se, se nos detivermos à superfície não se solidariza o autor e através do qual a
do romance, como a representação da cultura sua crítica é refrangida. Para que a refração
misógina medieval, revelando, em um segundo de seu ponto de vista seja efetivada, o autor
plano, a opinião depreciatória que até nossos rompe com a maneira corrente de problema-
dias endossa o discurso antifeminino. tização, e o discurso antifeminino ganha ma-
Em grande parte de sua obra, Bakhtin terialização em uma linguagem ilocalizável
(2002, p. 127) define paródia como um “fê- espacial e temporalmente. Vale ressaltar que
nomeno bivocal e bilíngue de natureza me- são comuns, no romance, termos em desuso,
talinguística”, visto que sua palavra, voltada inversões sintáticas, metáforas, pleonasmos,
para o objeto do discurso e para o discurso entre outros recursos linguísticos que con-
alheio, possui sentido duplo. Desse modo, na ferem ao discurso um tom arcaico, que, não
paródia, as intenções do discurso do roman- obstante, aparece sob uma forma marcada-
ce não coincidem com os objetivos do discur- mente experimental assinalada pela ausên-
so extraliterário representado, e a linguagem cia de maiúsculas e pela supressão de dois
paródica faz uso do discurso parodiado a fim pontos, aspas ou travessões:
de desconstruí-lo. Tal como sucede no trecho
que segue, o discurso que considera a mu- quando voltámos a casa com a sarga, era a?
lher “a pior das armadilhas preparadas pelo cara da minha ermesinda a ver-nos que me
inimigo”, “a raiz do mal, fruto de todos os ví- dizia do acabamento que estava no seu co-
cios” ganha contornos bastante definidos ao ração. estás apaixonada por ele, ermesinda.
longo de todo o romance de valter hugo mãe: não, baltazar, só te amo a ti, disse rápida,
sem espera. e porque sofres tanto, pergun-
uma mulher é ser de pouca fala, como se tei. porque me deixou de conversas dom
quer, parideira e calada, explicava o meu afonso, para que me mantenhas o corpo
pai, ajeitada nos atributos, procriadora, (MÃE, 2014, p. 150, grifo nosso).
cuidadosa com as crianças e calada para
não estragar os filhos com os seus erros. Pode-se considerar que a constituição
[...] o mundo que as mulheres imaginavam dos contornos que contribuem para a cons-
era torpe e falacioso, viam coisas e conven- trução do discurso do romance enquanto
ciam-se de estupidez por opção, a suspira- discurso paródico aparece apoiada em me-
rem em segredos inconfessáveis, cheias de canismos linguísticos específicos: conforme
vício de sonho como delírios de gente acor- se pode observar da parte inicial do trecho
dada, como se bebessem de mais ou tives- (grifada), as vozes de baltazar-personagem
sem sido envenenadas por cobra má (MÃE, e de ermesinda interpõem-se ao discurso de
2014, p. 17). baltazar-narrador sem nenhuma indicação
formal prévia, como dois pontos, travessões
Na passagem, as vozes do narrador au- ou aspas, o que resulta no fato de que as en-
todiegético e do pai, em discurso indireto, tonações e os acentos cabem à dedução por
as quais apresentam autonomia semântico- parte leitor, visto que o texto abole pontos de
verbal e, em algum grau, perspectiva própria, exclamação e interrogação. Trata-se, pois do
servem fundamentalmente à estratificação que Authier-Revuz (1990, p. 26) denominou
da linguagem do romance. Atuando em prol “heterogeneidade mostrada não marcada”.
da construção do discurso paródico, a lin- Para a autora, a heterogeneidade mostrada
guagem de baltazar serapião, narrador-pro- relaciona-se às “formas linguísticas de re-
tagonista, e do pai, personagem-secundária, presentação de diferentes modos de nego-
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ciação do sujeito falante com a heterogenei- tersecção entre os dois mundos, possibili-
dade constitutiva do seu discurso”. Para que tando ao autor afastar-se da linguagem co-
seja “marcada”, essa heterogeneidade deve mum, objetificando-a e sobre ela infundindo
conter marcas linguísticas explícitas, como a sua crítica. A compreensão do que aqui se
aspas, dois pontos ou travessões, o que não considera “linguagem comum” ou “opinião
ocorre na narrativa em questão, na qual, ape- corrente” no romance pode ser entrevista
sar de ser possível a dedução da variedade através da noção de “motivação pseudo-ob-
e da descontinuidade das vozes, não há ne- jetiva”, umas das variantes ilustradas por
nhuma sinalização gráfica das mudanças de Bakhtin ao tratar das construções híbridas
turno da voz do narrador para as persona- do discurso romanesco. Nesta construção,
gens ou vice-versa. ocorre a “naturalização” de determinando
Manifestada sobre o dualismo contempo- discurso, que passa a ser veiculado como
râneo versus arcaico, a paródia em o remorso verdade irrefutável, ou, mais objetivamen-
de baltazar serapião tem grande parte de sua te, como argumento lógico: “por isso, eram
base assentada ao nível da localização espa- instáveis, temperamentais, aflitas de coisas
ço-temporal. Aragão (1980, p.19 apud ALA- secretas e imaginárias, a prepararem vidas
VARCE, 2009, p. 59 ) assinala que “geralmen- só delas sem sentido à lógica. tinham artefa-
te, o recurso de falar de outras épocas, de tos e maneiras de parecer gente sem quere-
culturas ultrapassadas, é empregado como rem perder tudo o que deviam perder. eram,
crítica à ideologia vigente em sua própria como sabíamos tão bem, perigosas.” Segundo
época”. Assim, embora o romance de valter apontam os índices formais do enunciado, o
hugo mãe não apresente nenhuma indicação narrador solidariza-se com a proposição de
suficientemente definidora do tempo e do que as mulheres eram instáveis, tempera-
espaço dos eventos narrativos, os indícios mentais, etc, colocando-se na perspectiva da
estilísticos do discurso do narrador auto- opinião corrente (dos habitantes da aldeia).
diegético e das personagens, assim como as Entretanto, conforme propõe o teórico rus-
particularidades do modo de vida destes, os so,
quais levam à apreensão de uma Idade Média
mais ou menos situada, servem à construção as conjunções subordinativas e coordenati-
de um paralelo entre a contemporaneidade vas (pois, porque, por causa de, apesar de,
e a Idade das Trevas. Ao encontrar persona- etc.), todas as palavras de introdução lógi-
gens cujo modo de vida subordina-se ao sis- cas (assim, por conseguinte, etc.) perdem a
tema feudal de organização, uma linguagem intenção direta do autor, têm um sabor de
em certa medida arcaica e um imaginário re- linguagem estrangeira, tornam-se refratá-
ligioso comum ao universo medieval, o leitor rias ou até totalmente objetais (BAKHTIN,
é levado à projeção de um tempo que pouco 2002, p. 111).
teria em semelhança aos nossos dias se não
houvesse atualmente a manutenção da mes- Tal recurso implica, além disso, a ruptu-
ma problemática, isto é, da condição na qual ra com a tradicional maneira de narrar, dado
o silenciamento, a mutilação dos corpos, o que é rompida a hierarquia própria do dis-
veto à decisão, entre outros agravos, incidem curso direto e monopolizado do narrador,
sobre a realidade da mulher. sendo permitido que a opinião corrente fale
A objetificação, a demonização e a bru- através de “sua própria voz”. Desse modo,
talidade sobre a figura feminina, represen- o tratamento da “opinião corrente” no con-
tadas através de um exagero que recai, por texto da narrativa requer a compreensão da
vezes, no grotesco, permitem, assim, a in- identidade das vozes proeminentes no ro-
78 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

mance, sendo necessário, para fazê-lo, a in- medieval, por vezes interpõe-se à narrativa
vestigação das raízes do pensamento encar- de serapião, dissolvendo-se logo em segui-
nado na voz e perspectiva das personagens e da como ilhas que eventualmente emergem
do narrador. Vale colocar aqui em evidência e logo se ocultam sob o oceano do discurso
que, se tais raízes aparecem espelhadas na uno da opinião hegemônica. Graças a esses
narrativa, o estranhamento por elas desper- fugazes protestos, ganha evidência na nar-
tado resulta da forma linguística do roman- rativa a extrema perspectiva misógina do
ce, alicerçada enfaticamente na sintaxe elíp- discurso de baltazar serapião. No fragmento,
tica e nos constantes recursos ao insólito, ao é sintomático o silenciamento impingido à
exagero e ao grotesco das relações. mulher queimada, já que a rejeição dos ma-
O trecho a seguir, por ser elucidativo de um ridos e a sabedoria acerca da aplicação de
confronto de duas opiniões, serve a uma cla- ervas e plantas são logo associadas à bruxa-
ra demonstração do contexto sócio-histórico ria – e tal associação, tomada como indubitá-
invocado pelo discurso de baltazar serapião. vel, acaba por tornar-se o motor dos demais
eventos narrativos, dado que o suposto feiti-
sabes coisas de bruxa, disse eu à mulher ço de Gertrudes é o responsável pela desven-
queimada, espero que venda de alma não tura final da família serapião.
nos aconteça por nos amigarmos contigo. Russel e Alexander, ao traçar uma “His-
estarás seguro de vendas, nada tenho com tória da bruxaria”, assinalam que, embora a
o diabo [...] tenho medo de falas tuas [...] e bruxaria seja tomada como uma prática ca-
por que temes tu assim a voz das mulheres, racterística da Idade Média, “as acusações de
perguntou-me ela. ao que respondi, por ser bruxaria diabólica somente emergiram bem
verdade que se iludem e procuram a irreali- no final da Idade Média, ocorrendo que “as
dade como falta de inteligência [...]. por que grandes perseguições às bruxas” se deram
haveríamos de querer o que não existe. [...] “durante a Renascença, a Reforma e o sécu-
é que às mulheres deus dá conhecimento de lo XVI” (RUSSEL e ALEXANDER, 2008, p. 10).
algo que não dá aos homens, como a concep- O equívoco presente na visão sobre a Ida-
ção e sinais imperceptíveis que os homens de Média tem, entretanto, uma justificativa
não conseguem ver [...]. isso é conversa de plausível: o final desse período trouxe consi-
bruxa. bruxa ou não, mulher alguma precisa go a atribuição do caráter herético à feitiça-
de feitiço para saber coisas que só a ela com- ria: entre os séculos XII a XV, a figura do de-
pete. dizes isso ao envio do diabo, cala-te, já mônio assume um caráter ameaçador. Se até
te disse que segues calada ou ficas em berma então a visão popular e religiosa postulava
que ponha cão raivoso ou lobo feroz em cima a imagem de um demônio grotesco, porém
(MÃE, 2014, p. 112-113). familiar e até mesmo vencível, a tomada do
modelo narrativo do Oriente próximo pro-
Nele, a voz de Gertrudes, que por acusa- move uma mudança profunda na concepção
ção de assassinato dos maridos, é queimada dessa figura:
viva, assevera o papel discordante que pos-
sui em relação ao discurso corrente no enre- Uma ajuda importante no processo de di-
do, imperado por ideais tipicamente medie- vulgação da imagem de um diabo [...] que
vais. Assim como se dá com a personagem castiga os seres humanos com a permissão
de Teodolindo, capaz de perceber a sabedo- de Deus, foi [...] a tomada de empréstimo
ria das mulheres, o discurso moderno dessa do modelo narrativo do Oriente próximo:
personagem, dado à contestação das hierar- o mito cósmico do combate entre deuses,
quias estabelecidas pelo inferido contexto construindo-se no Ocidente a figura do
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 79

Satã rebelde que se opõe a Deus e faz da mais se fazia confusão, mais se apagava a
Terra extensão de seu império, dominan- minha mãe, rápida e vazia a fechar olhos e
do os homens. Esta imagem foi importante corpo todo, não mais era ali o caminho para
não apenas para os religiosos, mas também a sua alma, não mais a ela acederíamos por
para todos os governantes, interessados, aquele infeliz animal que, morto, seria só
naquele momento, em constituir uma Eu- deitado à terra para que desaparecesse
ropa unificada e forte – renovando os so- (MÃE, 2014, p. 75).
nhos imperiais herdados da Roma antiga
(CERQUEIRA, 2005, p. 244). A violência aplicada contra as mulheres é
transferida de pai para filho, sendo tomada,
Com base na proposta de Muchembeld conforme evidencia o trecho, como necessá-
(2001), Cerqueira (2005) assinala que tal ria à purgação dos pecados da alma. O “en-
mudança implicou ainda a crença em uma sinamento” a que deve ser submetida a mu-
associação entre diabo e matéria, pressu- lher (“e a minha mãe como pediria que não
posto difundido pela própria medicina do fosse bruto com ela [ermesinda]. era porque
período, que fez recair enfaticamente sobre lhe entortara o pé meu pai, descabido com
as mulheres a crença na suscetibilidade ao ela num tempo em que eu era muito novo, e
elemento maligno: assim a ensinou de modos para sempre, to-
mada de respeitos por ele” (MÃE, 2014, p.
a medicina [...] auxiliou a espalhar a crença 47)) aparece ancorado no pressuposto da
de que ele é capaz de encarnar em animais inferioridade racional do sexo feminino. A
e no homem (principalmente nas mulheres, disposição da mulher ao pecado, cujas raízes
as quais se transformam em sinônimo de bíblicas fariam imperar ao longo dos séculos
pecado e periculosidade), elemento impor- o discurso que qualificava quase como espé-
tante para o início da caça às feiticeiras. [...] cies distintas o homem e a mulher, fortalecia-
Durante este período, o diabo transfere-se, se nos séculos finais da Idade Média.
definitivamente, para o meio da humanida- A ideia de que as mulheres “se iludem e
de, virando mania a busca por sinais e mar- procuram a irrealidade como falta de inteli-
cas nas mulheres, as quais comprovariam o gência” estaria em vigor ainda no século XIX,
envolvimento sexual delas com o demônio então ancorada nos “avanços” da biologia:
(CERQUEIRA, 2005, p. 244). “Aos homens, o cérebro (muito mais impor-
tante do que o falo), a inteligência, a razão lú-
Predispostas todas ao mal, as mulheres da cida, a capacidade de decisão. Às mulheres,
narrativa de valter hugo mãe são frequente- o coração, a sensibilidade, os sentimentos”
mente punidas, beirando o insólito as agres- (PERROT, 1988, p. 177). Incapazes do discer-
sões de que são vítimas: nimento entre bem e mal, as mulheres deve-
riam ter, portanto, sua sexualidade, seus ges-
e foi no dia em que o povo se preparava tos e sua conduta controlados, assumindo a
para queimar mulher que se portara mal Igreja um papel importante nesta tarefa:
que o meu pai rebentou braço dentro o
ventre da minha mãe e arrancou mão pró- [...] a religião cristã institucionalizada in-
pria o que alguém ali deixara. e gritou, se- troduz uma grande novidade no Ocidente:
rás amaldiçoado para sempre. depois es- a transformação do pecado original em pe-
talou-o no chão e pôs pé nu em cima, sen- cado sexual. Uma mudança que é uma no-
tindo-lhe carnes e sangues esguicharem de vidade para o próprio cristianismo, já que,
morte tão esmagada. e, como se gritava e em seus primórdios, não aparece traço al-
80 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

gum de uma tal equivalência, assim como do. Sua presença na aldeia é assegurada pelos
nenhum termo dessa equação figura no próprios habitantes, que, em troca dos favo-
Antigo Testamento da Bíblia. O pecado ori- res sexuais, asseguram seu sustento. Como
ginal, que expulsa Adão e Eva do Paraíso, é é possível observar na passagem citada, sua
um pecado de curiosidade e de orgulho (LE caracterização afasta-se significativamente
GOFF, p. 49 apud ROIZ, p. 1). da imagem humana. Os traços animalescos
e diabólicos a ela atribuídos, se constituem
Nesse período, surge o casamento enquan- uma personagem à beira da sobrenaturalida-
to medida controladora dos impulsos sexuais, de, acentuam a deformação preconceituosa
e à mulher passam a ser estabelecidas proi- que sua personalidade sofre. A presença de
bições como relacionar-se sexualmente com o diaba na narrativa dialoga com a forte tensão
marido durante o período da menstruação ou entre bem e mal que recaía sobre a mulher
durante a gravidez. Também eram considera- durante a Idade Média. Tal tensão vai ao en-
das condenáveis algumas posições sexuais e a contro da tese de que “o culto do corpo da An-
postura ativa da mulher durante o ato sexual, tiguidade cede lugar, na Idade Média, a uma
cabendo ao sexo apenas a função procriatória. derrocada do corpo na vida social” (LE GOFF,
Nesse sentido, a renúncia da carne aproxima- 2006, p. 37 apud Roiz, 2010 p. 7).
ria homens e mulheres de Deus, representan- O corpo feminino transitaria, assim, entre
do qualquer transgressão a tais proibições dois polos opostos: se, por um lado, era sím-
uma abertura a impulsos demoníacos. No ro- bolo da castidade, compensatória dos peca-
mance, é teresa diaba quem incorpora o papel dos, do cuidado familiar, manifesto na figura
transgressor: exemplar da virgem Maria, e da procriação,
justificação única do ato sexual; de outro, en-
a teresa diaba já não era filha de ninguém. carnava a sexualidade, i.e., o sexo enquanto
[...] era disforme em pequeno, ponto pe- desejo sexual sem vistas à procriação, mas à
queno, já feia para assustar as pessoas, e prostituição, à luxúria e à perversão da alma.
menina, diziam, vai ser bicho do diabo a Ambos os polos convivem em ermesinda, e
distribuir o pecado em carne tão azarada. resulta da ambígua perspectiva de baltazar
[...] diaba, grunhindo e zurzindo em busca sobre ela a constante coexistência de sagra-
de prazer, pendurada em galho de homem do e profano, conforme demonstra a própria
o dia inteiro, batendo os raquíticos braços escolha lexical:
como asas, sem poder voar, sem andar di-
reito, nada. todos lho diziam, anda, animal, puta, calada de segredos fundos, satisfeita
some-te daqui a ver se te enfias numa toca com ser refeição de um velho tão feio. ela
e não levas uma pedrada. e ela sorria na sua arreada de escadas na volta, posta de pés
meia loucura e rondava quem lhe falasse. na erva em direção aos queijos, sem levan-
[...] ela, saia levantada, grunhia risos e pe- tar cabeça ou denunciar que procurava
dia-me que entrasse, entra aqui como de algo ou alguém [...]. seguia sem ver senão
costume, estou com saudades tuas, meu os pés, como eu a sabia de sempre na rua,
amor (MÃE, 2014, p. 57-58). discreta e segura, como recatada mulher,
pura (MÃE, 2014, p. 64, grifo nosso).
teresa diaba, conforme a própria alcunha foi como lhe procurei pé que viesse a mão
indica, representa, pois, na narrativa, um mo- e lho torci, e gritei, que puta em minha casa
delo de promiscuidade. Exercendo ativamen- era coisa de rastejar, e ao invés de lhe con-
te sua sexualidade, é responsável pela inicia- seguir estragar novo pé, virei-lhe braço que
ção sexual de baltazar, aldegundes e teodolin- agarrrei e aproveitei de o escolher. [...] foi
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como ficou, nada desfeada, apenas mais tica profunda, os autores portugueses de, a
confusa no arrumo do corpo, a minha po- partir da metade final do século XX, inves-
bre mulher mal educada e não preparada tem no rompimento com o estilo linear de
para o casamento, o anjo mais belo que eu transmissão da palavra, que, dentre outras
já vira, por sorte tão incrível, minha esposa, discrepâncias em relação à narrativa tradi-
amor meu (ibidem, p. 65, grifo nosso). cional, passa a figurar através de formas pe-
culiares de organização sintática, nas quais
O convívio das duas perspectivas anta- são reduzidas as fronteiras entre discur-
gônicas, no entanto, não deixa de ser extre- so direto e indireto, e alteradas as formas
mamente hostil a ermesinda e elucida os de pontuação. Além disso, a relativização
sentimentos conflitantes de serapião: por semântica passa a ser desempenhada por
um lado, jovem marido e amante, e, por ou- processos como a ironia e a paródia, que as-
tro, herdeiro do peso de uma tradição que sumem papéis importantes na figuração de
postula a desconfiança e a educação pelo vozes perspectivas em conflito.
matrimônio – “[...] só lhe importava o des- Tais vicissitudes, segundo o que se pôde
membramento da minha mulher, da minha verificar neste estudo, aparecem claramente
mulher, como reiterei, a que me competia acentuadas em remorso de baltazar serapião,
educar de valores familiares para mãe de sobretudo através da constituição paródica
filhos que já não haveríamos de ter” (MÃE, do seu discurso. Nele, a representação de
2014, p. 151). uma cultura medieval não nomeada deixa
Além disso, enquanto o sistema de vas- entrevista a intenção crítica perante a opi-
salagem determinava a organização social nião depreciatória que atravessou séculos,
através da troca da servidão pelo sustento, muitas vezes reproduzida literariamente, e
a organização patriarcal determinava a or- ainda sustenta o discurso antifeminino. Ne-
ganização familiar, servindo o matrimônio gando-a, o romance cumpre a função comba-
de moeda de troca para a integração social. tiva assumida pelo romance contemporâneo
Caberia, assim, à mulher, o cumprimento do português, reiterando, através da reconside-
destino a ela proposto: passar da custódia do ração de mecanismos tradicionais da ficção,
pai à do marido, tornar-se esposa e mãe, e, o aspecto social que fundamenta o gênero
enquanto ao vassalo caberia a adequação às romanesco.
exigências de trabalho do senhor, à mulher
caberia a “educação” para o casamento: “A
mulher deve aprender em silêncio e ser sub- REFERÊNCIAS
missa – Não admitido que a mulher dê lições
ou ordens ao homem. Esteja calada, pois, ALAVARCE, CS. A ironia e suas refrações: um
Adão foi criado primeiro e Eva depois” (São estudo sobre a dissonância na paródia e no
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dência atual do romance português, mos-
tra-se uma das formas mais eficazes na des- ARNAUT, Ana Paula. Post-Modernismo no ro-
ligitimação de verdades tradicionalmente mance português contemporâneo. Coim-
aceitas. Visando transpor para o romance a bra: Almedina, 2002.
consciência de uma crise ideológica e polí-
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UMA INDEPENDÊNCIA QUE NÃO ELIMINOU
A DEPENDÊNCIA: NEIGHBOURS, DE LÍLIA MOMPLÉ

Maria Aparecida Nascimento de Almeida1


Rosilda Alves Bezerra2

RESUMO: Em Moçambique o período pós-independência foi marcado pela atuação de grupos inconforma-
dos com a descolonização. A obra literária Neighbours, de autoria da moçambicana Lília Momplé, narra as
investidas sul-africanas contra o país, destacando dois aspectos da intervenção dos vizinhos nos rumos da
nação: o patrocínio a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique) e a atuação direta dos defensores do
apartheid a fim de desestabilizar o governo da FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). O objetivo
deste estudo é evidenciar o vínculo realidade-ficção em Neighbours, uma vez que os múltiplos espaços
narrativos convergem para essa perspectiva de abordagem. O macroespaço geográfico, a cidade de Mapu-
to, apresenta o contexto político, social e econômico de Moçambique no ano de 1985. Os microespaços, os
flats, oportunizam conhecer ambientes restritos onde se constroem relações particulares de poder, as quais
ilustram a subjugação do “ser” feminino aos resquícios do poder colonial e à cultura patriarcalista local.
PALAVRAS-CHAVE: Moçambique. África do Sul. Lília Momplé. Violência. Racismo.

ABSTRACT: The post-independence period in Mozambique was marked by the acting of groups discontent
with the decolonization. The literary work Neighbours, written by the Mozambican author Lília Momplé, nar-
rates the South African attacks against the country: the sponsorship of RENAMO (Resistência Nacional de Mo-
çambique)and the direct acting from the apertheid defensors aiming to destabilize the government from FRE-
LIMO (Frente de Libertação de Moçambique). This study goal is to highlight the link reality-fiction in Neighbou-
rs, once the multiple narritive spaces converge to this approach perspective. The geographical macro space,
the city of Maputo, presents the political, social and economic context of Maputo in the year of 1985. The micro
spaces, the flats, nurture to know the restrict environments where private power relations are built, which
illustrates the subjugation of feminine “being” to the colonial power remains and to the patriarchy local culture.
KEYWORDS: Mozambique. South Africa. Lília Momplé. Violence. Racism.

RESUMEN: En Mozambique el periodo posterior a la independencia se caracterizó por la atuación de los


grupos descontentos con la descolonización. La obra literaria Neighbours, de la escritora de Mozambique
Lília Momplé, le disse de los ataques de Sudáfrica contra el país, poniendo de relieve dos aspectos de la
intervención de los vecinos en la dirección de la nación: el patrocinio a la RENAMO (Resistência Nacional
de Moçambique) y la acción directa de los defensores del apartheid para desestabilizar el gobierno de la
FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique). La meta de este estúdio es poner de relieve el vínculo
realidad-ficción en Neighbours, una vez que los múltiplos espacios narrativos convergen para esa pers-
pectiva de enfoque. El macroespacio geográfico, la ciudad de Maputo, apresenta el contexto político, social
y economico de Mozambique en el año de 1985. Los microespacios, los flats, oportunizam dan la oportunidad
de conocer a los entornos restringidos donde se construyen relaciones particulares de poder, que ilustran el
sometimiento del “ser” femenino a los restos del poder colonial y a la cultura patriarcalista local.
PALAVRAS-CHAVE: Mozambique. África del Sur. Lília Momplé. Violencia. Racismo.

1 *
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI/UEPB)

2 *Professora do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade (PPGLI) da Universidade Estadual da Paraíba, no Campus I, Campina Gran-
de, leciona a disciplina Poéticas da Africanidade. Docente permanente do Mestrado Profissional em Letras – PROFLETRAS, no Campus III da UEPB, na cidade
de Guarabira, onde também leciona as disciplinas Literaturas Africanas e Literatura Afro-Brasilera na Graduação em Letras.
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1. NEIGHBOURS: INIMIGOS EXTERNOS residências, cujos moradores não se conhe-


No território sul-africano insurgiram-se os cem, tendo seus destinos entrelaçados pelos
responsáveis pelas imediatas tentativas de segregacionistas.
neocolonização do país vizinho, por meio de As histórias são apresentadas alternada-
planos de desestabilização contra Moçambi- mente pela voz narrativa que percorre as
que financiados pela Rodésia do Sul e África três residências às “19 HORAS”, “21 HORAS”,
do Sul, conforme apontam Maria Fernan- “23 HORAS” e a “1 HORA”, essa estratégia
da Afonso (2004) e Omar Ribeiro Thomaz aliada as digressões possibilitam a compre-
(2006). A incômoda vizinhança do apartheid ensão de dramas particulares que se entre-
tematiza as narrativas que compõem o ro- laçam culminando em um trágico fim às “8
mance Neighbours. Zuleide Duarte apresenta HORAS”, quando são apresentados “os mor-
a obra: tos e os vivos”.
Em Neighbours os espaços narrativos
Lília parte de um fato acontecido no mês de evidenciam as funções desempenhadas pe-
maio de 1985, na sequência de vários ata- las personagens na trama. Relegada a am-
ques do governo do apartheid, objetivando bientes restritos em sua casa, Mena ilustra a
a desestabilização do governo moçambica- mulher subserviente que se dedica aos afa-
no. Com a liberdade inerente ao ato criati- zeres domésticos na cozinha ou recolhe-se
vo, a autora vai além do ocorrido e traça os ao quarto, enquanto a sala é ocupada pelos
perfis dos personagens envolvidos nessa homens que representam a supremacia, po-
estória que se apresenta tripartida, para, rém, a personagem, secundada pelo esposo,
no final, atar-se em um único e trágico fei- Dupont, e pelos visitantes, Zaluía e Romu,
xe. (DUARTE, 2012, p. 21) que têm suas histórias narradas em subca-
pítulos específicos na sessão às “21 HORAS”,
As narrativas de Neighbours podem ser é protagonista a partir da “1 HORA”, quando
lidas de forma independente ou sequencial, toma o controle da situação denunciando a
como os contos que compõem as antologias conspiração.
Ninguém matou Suhura e Os olhos da co- Os espaços reservados às mulheres nas
bra verde, também de autoria de Lília Mom- três residências permitem ressaltar o so-
plé, uma vez que os acontecimentos “Em casa frimento pela submissão conjugal, familiar
de Narguiss”, “Em casa de Leia e Januário” e e social, pois Leia só pudera transitar li-
“Em casa de Mena e Dupont” são distintos. vremente pelos cômodos quando ocupou o
Ao expor “Breves informações sobre o “flat” da amiga, uma vez que na residência
título do livro”, Lília Momplé confessa lhe da mãe, onde morou com o esposo, o clima
impressionar a constante e trágica atuação era de opressão. Narguiss lamenta a ausência
de uma minoria racista sul-africana em seu do esposo em meio aos afazeres domésticos,
país, “[...] na década de oitenta, incontáveis seus ambientes de atuação são a cozinha e
moçambicanos viram o rumo de suas vidas o quarto. Quando a personagem resolve ul-
desviado, ou, [...] deixaram de existir, por trapassar os recintos que lhes são restritos é
vontade e por ordem de defensores do apar- alvejada por um tiro. A liberdade, metafori-
theid”. (MOMPLÉ, 2012, p. 7); adverte ser a zada pela varanda, não lhe é permitida e Nar-
obra inspirada em fatos reais e, prossegue guiss é punida com a morte por testemunhar
informando, a narrativa é ambientada em o assassinato de Leia e Januário.
Maputo onde, ao longo das 19 horas de uma À medida que produzia essa obra, Lília
noite de maio às 8 horas da manhã seguin- Momplé inquietava-se, pois objetivava atri-
te são descritos fatos transcorridos em três buir-lhe um título significativo, não restrito
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a determinado episódio, uma designação ca- imposto às mulheres em Moçambique. En-


paz de “[...] exprimir a sensação de constan- tretanto, duas personagens sinalizam atitu-
te asfixia e extrema vulnerabilidade perante des de resistência, Leia, que não aceita sub-
forças tão poderosas e hostis e simultanea- meter-se ao assédio sexual do patrão, e Mun-
mente tão próximas que a sua sanha mortífe- taz, filha de Narguiss, descrita como uma
ra se podia abater [...] da forma mais impre- moça moderna que recusa os pretendentes,
visível e brutal” (MOMPLÉ, 2012, p. 7). pois seu objetivo é estudar, o que preocupa
Ao apreciar a exposição da pintora Catari- sua mãe.
na Temporário, a escritora apercebeu-se que A verossimilhança no romance é alcan-
o título da narrativa só podia ser Neighbou- çada por meio da associação entre perso-
rs, pois um quadro assim intitulado “[...] nagens e enredo. No caso de Lília Momplé,
transmitia uma sensação de agressividade que ficcionalizou um período da história mo-
difícil de suportar”. (MOMPLÉ, 2012, p. 8). çambicana, são inevitáveis as relações en-
Consultada, a artista expositora prontamen- tre “ser vivo e ser fictício” pois, mesmo não
te concordou. correspondendo aos seres reais, as persona-
gens inspiram-se nos humanos com os quais
2. DAS 19 ÀS 8 HORAS: conviveram os escritores, conforme defende
ENTRE MORTOS E VIVOS Antonio Candido (1968, p. 51): “[...] Há uma
Temporalizadas dez anos após a “Indepen- relação estrita entre a personagem e o autor.
dência de Moçambique”, as narrativas que Este a tira de si [...] como realização de vir-
compõem a obra Neighbours evocam a his- tualidades, que não são projeção de traços,
tória do país apresentando um panorama da mas sempre modificações, pois o romance
colonização, descolonização e tentativa de transfigura a vida”. Corrobora essa proposi-
neocolonização sul-africana, pois o narra- ção a biografia da autora, que confere à sua
dor onisciente expõe as cruéis facetas desses escrita um caráter testemunhal dos massa-
processos. Passado e presente dialogam nes- cres, destruição, guerra, fome e morte que
se romance de Lília Momplé. presenciou em seu país.
No entanto, a técnica do flashback é
utilizada, sobretudo, para construção das 2.1 “Em casa de Narguiss”
personagens masculinas, fixadas no espaço Às 19 horas, Narguiss, protagonista dessa
por meio de um processo memorialístico que narrativa, sente-se duplamente incomoda-
objetiva justificar a crueldade de Dupont, da, pela ausência do esposo, evidenciada no
Zaluía e Romu, bem como evidenciar o ca- subtítulo, e a obrigação de comemorar o Ide3
ráter de Januário que apesar do sofrimento fora de época, por imposição sul-africana,
passado não se tornou uma pessoa rancoro- “Uma pissoa nem sabe como fazer... Féstejar
sa. Essas personagens ilustram a tendência Ide sem sair Lua, não tem pecado?”, interro-
do romance a partir do século XVIII, que diz ga-se ela. [...] – Há de sair, mãe. Na África do
respeito “[...] a passagem do enredo compli- Sul já apareceu – responde a filha com bran-
cado com personagens simples, para o enre- dura”. (MOMPLÉ, 2012, p. 11).
do simples (coerente, uno) com personagens O diálogo segue entre as reclamações de
complicadas”. (CANDIDO, 1968, p. 45). Narguiss e a paciência de Muntaz, persona-
As personagens femininas não dispõem gens que organizam os festejos religiosos,
de subcapítulos específicos, seus dramas são porém há relutância da genitora em prepa-
narrados coletivamente, em tempo cronoló- rar a comemoração antes de sair a lua nova
gico, com breves flashbacks que enfatizam o
processo de subalternização historicamente 3 Festa religiosa dos maometanos, comemorativa do fim do Ramadã.
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no céu de seu país, situação que ressalta ter rados sem bandeira, vendo “[...] suas possi-
sido a interferência sul-africana em Moçam- bilidades de ascensão no mundo da política
bique também cultural. restritas pelo fato de o país se afirmar mais
Segundo a tradição mulçumana, o Rama- e mais como terra de pretos [...]”. (THOMAZ,
dã, nono mês do calendário lunar islâmico, 2006, p. 260).
constitui um período de reflexão, penitência, No caso dos assimilados, registra-se os
oração, solidariedade e união. Acredita-se anticolonialistas e os inconformados com a
ter sido revelado nesse mês o Alcorão, livro descolonização, como a prima Fauzia, perso-
sagrado da religião. A preocupação de Nar- nagem que viera ajudar nos preparativos do
guiss acerca do aparecimento da lua advém Ide às “21 HORAS”. Seu desejo de partir para
do fato desta ser imprescindível para o iní- Portugal irrita extremamente Muntaz, pois
cio e fim do jejum. O Ide é um momento de não é a instabilidade econômica do país sua
confraternização familiar e a ausência de motivação, mas o desprezo pelos compatrio-
Abdul faz a protagonista entender que este tas; já que, apesar das dificuldades, o retor-
já não se considera integrante da família. no dos portugueses após a “independência”
A afronta à tradição por parte dos vizi- propiciou ao esposo da prima uma impor-
nhos enfatiza o desespero de Narguiss, pois o tante colocação no banco onde trabalha.
esposo jamais se ausentara do lar nesta im- A “libertação de Moçambique” é contes-
portante data. O motivo do distanciamento é tada por Fauzia, que confessa preferir es-
a amante, Zena, mulher que “seduzira” Abdul, molar em Portugal a continuar vivendo no
passando a habitar a antiga casa do casal após país. Filha de indianos mestiços, a persona-
Narguiss e as filhas irem morar em Maputo gem foi surpreendida pela “independência”.
para que Muntaz pudesse cursar medicina. “[...] Perfeitamente adaptada à sua condição
Para além dos preparativos, a contragos- de colonizada com alguns privilégios, a ideia
to, e da espera pelo marido, a difícil tarefa de Pátria é demasiado ampla para encontrar
de sobreviver em Moçambique é salientada eco no seu horizonte estreito, onde só cabe
pela filha no intuito de fazer Narguiss esque- o pequeno círculo de familiares”. (MOMPLÉ,
cer a infidelidade do pai, 2012, p. 39). Quando os parentes partiram,
Fauzia não conteve a vontade de partir
— [...] A mãe deve está contente por ter tanta também.
coisa para cozinhar. A maior parte das pesso- A descolonização do país ocasionara o
as aqui não tem nada. Festejam com uspwa retorno dos portugueses e a migração dos
e repolho, mais nada – diz Muntaz, com uma moçambicanos colonialistas para a ex-me-
ironia amarga [...] — Principalmente os pre- trópole. O desentendimento entre as primas
tos e também os mistos como nós. Os india- revela a atuação daqueles que lucraram com
nos puros, esses sempre arranjam qualquer o regresso para Portugal, como os familiares
coisa [...]. (MOMPLÉ, 2012, p. 12). de Fauzia, que enriqueceram por meios ilíci-
tos, conforme acusa Muntaz.
As tensas relações raciais no Moçambique Um dos cunhados da personagem assimi-
colonial permaneceram no pós-independên- lada conseguiu fortuna em Lisboa a aplicar
cia, pois os mistos, grupo intermediário, vi- golpes nos “[...] retornados mais ignorantes
venciavam a estagnação social, não fosse a e inseguros, extorquindo-lhes parte do di-
“ladinice” de Abdul, de certo a família tam- nheiro que recebiam do IARNE.” (MOMPLÉ,
bém passaria privações. O fato de serem 2012, p. 40) Da mesma forma, o IARNE, ins-
mestiços torna-os indivíduos apátridas, pois tituto de apoio aos egressos das ex-colônias
nem brancos nem pretos, estes são conside- em Portugal, era enganado pela atuação dos
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golpistas que se envolviam em negociatas Os assassinatos e raptos reativam a dis-


com o tráfico de drogas. cussão entre Fauzia e Muntaz, ao que Nar-
Além do cunhado, a irmã primogênita de guiss mais uma vez intervém. Dado o adian-
Fauzia também atuava criminosamente fin- tado da hora, as mulheres se recolhem aos
gindo-se “bruxa na metrópole”, assumindo a quartos. Adormecida em meio a lembranças
identidade negra apenas por interesse, pois de um primeiro casamento infeliz e da infi-
no período colonial “[...] uma das clivagens a delidade do atual esposo, a “1 HORA” a pro-
separar os brancos dos pretos é o uso ou não tagonista acorda: tivera um pesadelo, mas o
da feitiçaria [...]”. (THOMAZ, 2006, p. 257). barulho que ouve lhe certifica que algo está
Pensamento que persiste no pós-indepen- a acontecer.
dência. Ao aproximar-se da varanda, Narguiss tes-
A intervenção de Narguiss finaliza a dis- temunha o assassinato do casal que habita o
cussão mas, às “23 HORAS”, os problemas prédio à frente. Desesperada, a personagem
locais voltam a repercutir na família a par- põe-se a gritar, porém, atingida pelos com-
tir da informação transmitida pelo xirico4. O parsas dos assassinos que os aguardavam no
locutor leva ao conhecimento da população térreo, desfalece, sentindo uma “[...] infinita
que aproximadamente trinta pessoas - ho- paz [...]. Já nada a faz sofrer, nem o Ide sem
mens, mulheres e crianças - foram assassi- ver a Lua, nem as filhas sem casar, nem Ab-
nadas e um número desconhecido raptadas dul.” (MOMPLÉ, 2012, p. 137)
por criminosos que atacaram uma condução. Na África do Sul, nação governada pela
“[..] o grupo era constituído por cerca de cin- minoria branca de origem holandesa, o
quenta elementos, fortemente armados, na apartheid era legitimado pela constituição.
sua maioria crianças dos doze aos dezesseis Refúgio dos racistas, o território abrigava os
anos [...]” (MOMPLÉ, 2012, p. 104). inconformados com a independência de Mo-
Os guerrilheiros são militantes da RENA- çambique que decidiram se unir aos sul-afri-
MO (Resistência Nacional de Moçambique). canos para desestruturar a administração do
Omar Ribeiro Thomaz (2006, p. 266) destaca país, ou àqueles que fugiram para não serem
a nefasta atuação do grupo no país, onde é punidos pelos crimes cometidos, como a per-
recorrente a referência “[...] aos sequestros sonagem Rui, moçambicano de ascendência
de crianças moçambicanas pelas forças sul- portuguesa, sujeito de má índole que se van-
-africanas, logo devolvidas como guerrilhei- gloriava por ter participado do massacre de
ros da Renamo, ou ainda à origem do mate- “07 de setembro”. (MOMPLÉ, 2012, p. 125)
rial bélico usado pelos bandidos armados: Além de Rui e da personagem designada
armas e uniformes do exército sul-africano”. “sul-africano mesmo”, que coordenam a ope-
Em Neighbours, a intrusão dos vizinhos ração terrorista que culmina na morte de
os torna inimigos externos que conspiram Leia, Januário e Narguiss, participam do raid
contra a população de Moçambique a fim de Virgílio Dupont, moçambicano filho de mau-
atingir o governo do país. Os sórdidos planos ricianos que se considera de raça superior
das personagens são constatados ao conhe- aos conterrâneos, conforme evidencia a nar-
cermos os acontecimentos da casa de Mena rativa, Romualdo e Zaluía, também naturais
e Dupont, onde articulam-se os terroristas de Moçambique. Os três comparsas repre-
motivados por dinheiro, vingança, racismo e sentam a ganância, o preconceito e a vingan-
a defesa de interesses políticos da África do ça, personificando a ideologia do apartheid,
Sul. regime racista que vigorou na África do Sul e
se alastrou pelos territórios vizinhos até fins
4 Rádio portátil de uso comum em Moçambique. do século XX.
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2.2 “Em casa de Leia e Januário” No entanto, a lembrança do constrange-


Jovem casal, Leia e Januário enfrentaram inú- dor assédio torna-se insignificante ao recor-
meras dificuldades para constituir família. dar como Januário sofreu, talvez por isso a
Íris, fruto da união, é uma criança agradável, upswa5 com repolho o satisfaça.
porém, no trágico dia em que tornar-se-ia
órfã, parece inquieta, como se pressentisse o [...] a farinha de milho e o repolho e, por ve-
pior, o que sugere o pai sob os protestos da zes, o carapau congelado, têm sido, durante
mãe. os últimos três anos, os únicos produtos
As privações sempre fizeram parte do co- acessíveis no mercado de Maputo. Quan-
tidiano desse casal que, sem residência pró- to ao resto, ou não existe ou é vendido na
pria, abrigara-se na casa da mãe de Leia, mas candonga e na Interfranca a cooperantes e
o recanto de acolhimento tornou-se local de a uns tantos moçambicanos privilegiados
desentendimento. Pela falta de privacidade e ou ladrões. O trabalhador comum tem de
olhares desconfiados das cunhadas, Januário contentar-se, diariamente, com a infalível
e Leia decidem se submeter às constantes upswa e o repolho [...] (MOMPLÉ, 2012, p.
e humilhantes peregrinações impostas aos 45)
que objetivam alugar um imóvel em Maputo
na década de 1980. Mesmo trabalhando na firma e na escola,
Após tentativas frustradas, a protagonis- como professor noturno, o esposo de Leia
ta dessa narrativa (Leia) decide solicitar a não consegue oferecer uma vida digna à fa-
intervenção do diretor-geral da empresa mília devido à instabilidade econômica do
onde trabalha, pois soubera da influência país no pós-independência, porém, as priva-
deste com os da APIE (Administração do ções não o tornam uma pessoa melancólica,
Parque Imobiliário do Estado). Receosa e incentivam-no a buscar melhores condições
determinada, a funcionária pede ajuda ao de sobrevivência em meio à adversidade.
patrão, porém, a resposta que obtém é o as- Ainda assim a mobília de “segunda mão” e
sédio sexual: “Tu tens o teu problema, mas um local para morar são indícios de privilé-
eu tenho o meu problema. Parece que pode- gio se compararmos as personagens aos ha-
mos ajudar-nos um ao outro [...]. Eu resolvo bitantes do Caniço6, que viviam em extrema
o teu e tu resolves o meu, correto? (MOM- miséria.
PLÉ, 2012, p. 24). O silêncio que seguira a Januário nasceu em uma aldeia distante
proposta foi tomado como ofensa, de forma e, aos quatorze anos, a pedido da mãe, que
que o diretor-geral traduziu em atos o que temia ser aplicada ao filho a Lei do Chibalo7,
a funcionária fingira não compreender por abandonou a família. Vagando sem destino,
palavras. A fuga foi a alternativa encontrada o jovem encontrou trabalho na residência
por Leia. de D. Florinda que, observando sua dedica-
Ao contemplar a casa onde a família re- ção aos estudos, o incentivava a prosseguir,
side, a personagem recorda as humilhações enquanto as atitudes racistas do patrão ten-
que passara até conseguir aquele lugar para tavam inibi-lo. “- Então, agora você também
seu lar. Prevendo a dificuldade em conse- quer ser doutor. Você não sabe que preto
guir alugar um imóvel quando retornassem nunca pode ser doutor? Tem cabeça dura
da temporada de estudos no exterior para a como macaco”. (MOMPLÉ, 2012, p. 52).
qual tinha sido selecionado o marido, uma
amiga de Leia propôs que esta e Januário 5 upswa – farinha de milho cozida com água, sal e leite de coco.

passassem a habitar seu “flat”, proposta que 6 Bairro de terra batida localizado na periferia de Maputo.

Leia aceitou prontamente. 7 Lei do trabalho forçado


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A persistência de Januário foi recompen- que davam acolhida ao CNA e a Swapo eram
sada pela patroa, pois, com os prenúncios da igualmente vítimas de constantes raids sul-
independência, D. Florinda, a esta altura viú- -africanos”. (VICENTINI, 2014, p. 141)
va, precisou partir para Portugal ao encontro
da família, mas não o fez antes de deixar o jo- 2.3 “Em casa de Mena e Dupont”
vem devidamente empregado em uma firma. “Em casa de Mena e Dupont”, antes do casal
Apesar de tantas humilhações, a causa conhecemos os visitantes Romu e Zaluía,
do maior sofrimento de Januário foi a mor- presenças incômodas à senhora que percebe
te dos pais, ocasionada pelos guerrilheiros ser aquela escusa reunião uma conspiração;
da RENAMO; a personagem soube da trágica o esposo, embora irritado com os olhares co-
história por meio do tio Assane, que escapara biçosos dirigidos por Romu à mulher, divide-
da atuação dos matsangas8, assaltantes cru- se entre nervosismo e servilismo.
éis que atuavam em grupos saqueando e in- Silenciada pela violência doméstica, Mena
cendiando as palhotas, poupavam a vida dos procura resignar-se, porém sabe ser a fartura
adolescentes, homens e mulheres jovens, en- em meio à miséria em que vivem os moçam-
quanto velhos, crianças e mulheres grávidas bicanos, indício de negociatas criminosas. Ao
eram queimados vivos, como foram os pais descobrir que os três homens esperam ansio-
de Januário. A atuação criminosa dos Matsan- samente sul-africanos, a esposa desesperada
gas também é retratada na antologia de con- enfatiza a periculosidade dos vizinhos:
tos Os olhos da cobra verde, obra na qual
Lília Momplé ficcionaliza os conflitos que se- Sul-africanos?... – Pergunta Mena, sentindo-
guiram a independência até a assinatura do se desfalecer – Mas o que vem sul-africanos
Acordo de Paz em Roma no ano de 1992. brancos fazer à nossa casa? [...] Essa gente
Se os sul-africanos foram responsáveis in- só traz complicações. É um perigo... agora já
diretos pela morte dos pais de Januário, uma percebo porque é que não queres que fale
vez que patrocinavam a RENAMO, foram cul- deles a ninguém. Vem clandestinos, não é?
pados diretos pelo extermínio desta perso- Por favor, não... – Cala-te antes que te dê
nagem e de sua esposa Leia, pois articularam porrada agora mesmo – interrompe Du-
“Em casa de Mena e Dupont” um atentado pont, [...] – Sul-africanos é como qualquer
cujo objetivo não era assassinar os refugia- outra pessoa. (MOMPLÉ, 2012, p. 32)
dos do ANC9, mas um casal vizinho, a fim de
causar instabilidade entre a população e o A nacionalidade e, sobretudo, a raça dos
governo moçambicano que aceitara acolher visitantes, preocupavam Mena, pois na Áfri-
os que lutavam contra o apartheid. ca do Sul persistia um cruel regime de segre-
Segundo Paulo Fagundes Visentini (2014) gação racial, herança do colonialismo que se
o Levante de Soweto, a mobilização negra prolongou de 1948 a 1994. A agressividade
e os atentados do Congresso Nacional Afri- dos defensores do apartheid amedrontava a
cano, intensificou a “guerra não declarada” protagonista por estender-se a Moçambique,
que a África do Sul moveu contra os países país que refugiava os militantes do Congres-
da África Austral, obrigando-os a organiza- so Nacional Africano, fato que tornava sua
rem a chamada Linha de Frente, integrada população vulnerável à ação terrorista.
por Moçambique, cujo principal objetivo era A obra literária Neighbours apenas apon-
a segurança coletiva, pois “[...] os vizinhos ta a ligação entre os sul-africanos e os guerri-
lheiros da RENAMO, porém, a versão , apre-
8 matsangas – bandidos armados da RENAMO.
sentada por Maria Fernanda Afonso (2004,
9 Congresso Nacional Africano – movimento que há décadas combatia o
regime do Apartheid. p. 28), enfatiza o apoio da Rodésia do Sul ao
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grupo armado, mais especificamente do regi- 70), uma ideologia pautada na “hierarquia
me de Ian Smith, o qual “[...] criou com o apoio das capacidades das raças”, ideia que justi-
de elementos africanos das unidades de elite ficaria a subordinação das raças tidas como
do antigo exército colonial e de alguns por- inferiores, pelas consideradas superiores.
tugueses que partiram de Moçambique, um Em Neighbours, os conflitos raciais no
movimento político e militar, destinado a de- pós-independência são perceptíveis por
sestabilizar a Frelimo, [...] a Renamo – [...]”. meio da ideologia de várias personagens,
No entanto a ascensão de um governo ne- dentre as quais se destaca Dupont, que de-
gro na Rodésia do Sul, posteriormente deno- monstra a “[...] vergonha de ter casado com
minada Zimbábue, deixou a África do Sul iso- uma mulata” (MOMPLÉ, 2012, p. 67) agre-
lada na região, o que motivou a perseguição dindo-a constantemente. A violência contra a
deste país aos vizinhos. Em Moçambique, “[...] esposa alivia sua raiva, mas ela não é o único
a Renamo atuava em conjunto com comandos motivo da insatisfação, a condição financeira
sul-africanos, destruindo estradas, ferrovias dos irmãos o incomodava pelo fato de ser o
e oleodutos e dispersando os camponeses, o único que não conseguiu prosperar. A inveja
que arrasou a agricultura e formou bandos torna Dupont obcecado por dinheiro, forte
de refugiados”. (VISENTINI, 2014, p. 141) candidato ao recrutamento sul-africano:
O atentado à casa de Leia e Januário
exemplifica a perseguição sul-africana aos Na verdade, mais breve e direto Romu não
membros do Congresso Nacional Africano. poderia ser. Informou, sem rebuços, que
Entretanto, nesse caso, o objetivo dos cons- era um agente da África do Sul, ‘um país
piradores é instigar a população a culpar o formidável, um país adiantado em tudo,
governo moçambicano pela insegurança. En- governado por gente que sabe o que faz
quanto Dupont, Romu e Zaluía aguardam os e que só quer ajudar os moçambicanos a
compassas, a voz narrativa traça o perfil das sair do atraso’. Por isso, ele, Romu, tinha
personagens de forma a evidenciar as mo- orgulho em ser agente ‘de um país tão for-
tivações para participação no atentado que midável’ e que, felizmente, fica tão perto
ceifaria a vida do casal. de Moçambique, esta trampa. A sua missão
Virgílio Dupont é mauriciano, conhece era também recrutar mais agentes moçam-
Mena quando é transferido pelos correios bicanos. (MOMPLÉ, 2012, P. 71)
para Agoche, atraído por este “ser”, segundo
suas convicções de raça inferior, objetivava A hesitação inicial torna-se convicção ao
com ela um relacionamento sem compromis- ser assegurado por Romu que não atuaria
so. No entanto, a perspicácia da protagonista como guerrilheiro da RENAMO, seria estra-
leva-o a casar-se, embora sob os protestos da tegista como ele, porém Mena “[...] jamais
família, que não aceitava seu relacionamen- saberá que o que levou Dupont a tornar-se
to com uma mulata10. Omar Ribeiro Thomaz cúmplice dos outros dois foi a ganância por
(2006, p. 265) destaca que, em Moçambique, dinheiro”. (MOMPLÉ, 2012, p. 73)
nação, ocupação, status e poder estão vincu- Zaluía nasceu após a partida do pai para
lados à noção biológica de raça, concepção as minas de Johanesburgo. Diante da expec-
que perpassa o período colonial e pós-co- tativa do trabalho forçado sem remuneração
lonial, pois os racistas defendem, conforme na colônia sob o domínio português, a ida
aponta Paulo Fagundes Visentini (2014, P. para as minas e as farmes da África do Sul e
da Rodésia do Sul constituía a única possi-
10 Em Moçambique, o termo mulato é utilizado com naturalidade. No Bra- bilidade de qualquer forma de acumulação.
sil, evita-se esse registro pelo sentido pejorativo que o relaciona à palavra
mula. (THOMAZ, 2006, p. 264).
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As narrativas não elucidam a forma de re- má-lo enquanto cristão e cidadão, conforme
crutamento, mas a história informa-nos que, evidencia a voz narrativa:
sob as vias legais ou não, no ano da indepen-
dência milhares de moçambicanos encontra- Para Zaluía foi então a volúpia de mandar
vam-se a trabalhar nas fazendas, minas e in- prender maruses lindas para as violar nas
dústrias rodesianas e sul-africanas. Segundo imundas celas da cadeia, e indianos ricos
Maria Fernanda Afonso (2004, p. 22) no pe- para lhe comprarem a liberdade com apa-
ríodo colonial, a maioria dos moçambicanos relhagens de alto preço e chorudas quan-
preferia o trabalho clandestino ao recruta- tias em dinheiro, e maridos de mulheres
mento legal na África do Sul, uma vez que os desejáveis para estas lhe pagarem com o
acordos trabalhistas regulamentavam o con- próprio corpo a soltura de seus homens,
fisco de metade dos seus rendimentos, pagos e traficantes de suruma para se introduzir
em ouro ao governo português. nas suas redes e partilhar dos seus lucros, e
Inquieta com a possibilidade de perder o professores da Escola Secundária para lhes
filho, supostamente apossado pelo espírito extorquir notas falsas nas provas de exame.
da mulher com a qual vivia o marido, Theasse (MOMPLÉ, 2012, p. 83)
apela para a fé católica: “Senhor padre, não
quer levar o meu filho Zaluía para aprender Entretanto, os abusos de autoridade foram
na Missão? (MOMPLÉ, 2012, p. 77). Pedido punidos quando Zaluía prendeu o diretor da
que surpreende o reverendo, pois as famílias escola onde estudava sob a acusação de desa-
costumavam recusar a oferta de educação cato. Na verdade, o gestor apenas o enfrentara
dos missionários. A intervenção religiosa, ca- em defesa dos professores que sofriam cons-
tólica e protestante, fora fundamental para a tantes ameaças por parte desse aluno relapso
formação dos moçambicanos assimilados ou que os pressionava por boas notas. A atitude
mestiços, dentre os quais insurgiram-se os corajosa do gestor o sujeitou a dezenove dias
primeiros anticolonialistas. de prisão, após os quais a intervenção do di-
Educado pelos padres, que lhe consegui- retor provincial da PIC ordenara sua liberta-
ram um emprego em Lourenço Marques, atu- ção. A repercussão do caso influenciou outras
al Maputo, Zaluía transitou do entusiasmo à vítimas a denunciarem Zaluía, que foi preso e
frustração, pois a função servil que desempe- expulso dos quadros da polícia.
nhava o incomodava: “[...] Zaluía chegou a fa- Após cumprir pena, o ex-policial passou a
zer planos de emigrar para o Jhon, como o pai. viver na cidade de Maputo em constante em-
Detinha-o apenas o receio do trabalho duro briaguez. Esta personagem não hesitou ao
nas minas, ao qual, tinha consciência, dificil- ser abordado pelo agente da África do Sul e
mente se adaptaria. (MOMPLÉ, 2012, p. 81). replicou “- Não é o dinheiro que me interessa
Não encontrando solução imediata, deses- mais. O que gramo mesmo é de um gajo po-
perado diante da possibilidade de uma vida der vingar-se deste Governo de merda. Quan-
miserável, a personagem resolve, mesmo a do é a primeira operação? – disse ele, selan-
contragosto, retomar os estudos; esforço re- do assim o macabro pacto”. (MOMPLÉ, 2012,
compensado, pois é selecionada para atuar p. 87). Mas Mena, também desconhece que a
nos quadros da polícia, oportunidade ímpar motivação de Zaluía para tornar-se cúmplice
de dispor da autoridade almejada. Eficiente, de Romu e do esposo foi “[...] a voraz sede de
Zaluía é indicado para chefiar a PIC (Polícia vingança”. (MOMPLÉ, 2012, p. 87).
de Investigação Criminal) em Nacala; suas Romualdo, desde que descobrira as trai-
atitudes subsequentes denotam terem sido ções da mãe, estabelecera com ela e os ir-
os seis anos de missão insuficientes para for- mãos uma conturbada relação. O menino
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cresceu entre os mimos do padrasto, que o É sem remorso e com orgulho que a
considerava filho, e a desconfiança da geni- personagem rememora as crueldades.
tora, temerosa em ser delatada por Romu, A Revolução dos Cravos, prenúncio da
que sabia aproveitar-se da situação. libertação, tornou-se para Romualdo um pe-
O desinteresse pelos estudos instigou o sadelo, pois a personagem tinha consciência
padrasto a lhe conseguir emprego. A perso- de ser inútil seu prestígio no pós-indepen-
nagem fora admitida na firma M. B. Fortes dência. Por isso, aliou-se aos sul-africanos
em uma época em que o Governo colonial em missões terroristas contra seu país. Mena
considerava providencial a admissão de um também não conhece a história do homem
negro, a fim de contrariar a luta da FRELIMO, que a deseja, nem saberá que Romu tornara-
exibindo “[...] um ou outro ‘escurinho’ ocu- se cúmplice do esposo e de Zaluía motivado
pando posições de certo nível, mesmo em pelo “[...] ódio desvairado à sua própria raça”.
empresas privadas”. (MOMPLÉ, 2012, p. 92). (MOMPLÉ, 2012, p. 99).
A eficiência de Romu orgulhava o padras- Omar Ribeiro Thomaz (2006, p. 265),
to, por isso, a convocação do enteado para o ao dissertar acerca das relações raciais em
serviço militar deixou o Sr. Purgas contraria- Moçambique, enfatiza as peculiaridades do
do e feliz, “Para ele que, como todos os mu- segregacionismo “à portuguesa”, o qual im-
latos do seu tempo, fora impedido de cum- punha fronteiras imprecisas entre brancos
prir o serviço militar, pelo simples fato de ser e negros, segundo constatado por meio do
mulato, ter um filho na tropa, como qualquer relato de um trabalhador moçambicano com
branco, constituía motivo de muito orgulho o qual o pesquisador conversou acerca do
[...].” (MOMPLÉ, 2012, p. 93). Segundo Omar apartheid: “Lá [ na África do Sul] sabíamos
Ribeiro Thomaz (2006), em consonância onde podíamos e onde não podíamos ir, o
com o nacionalista Machado da Graça, o apa- que podíamos fazer ou não; em Moçambi-
rente privilégio da não convocação para o que, sabíamos, mas sem sempre era claro, e
serviço militar, constituía-se um ato segre- era mais fácil, assim, levar uma bofetada”. A
gacionista motivado pela suspeita de que os obra Mompleana remete a inúmeras situa-
mestiços seriam potenciais traidores. ções conflituosas e humilhantes ocasionadas
Na tropa, Romualdo foi designado para o pelo racismo, conforme verificado ao longo
grupo de elite e foi com fúria que combateu desse estudo que indica a verossimilhança.
os compatriotas, considerados pela perso-
nagem “[...] ‘corja de negros miseráveis’ [...]” 3. DO FICCIONAL AO REAL
(MOMPLÉ, 2012, p. 93) que desejavam a in- Apenas às “23 HORAS”, com a chegada dos
dependência quando deveriam agradecer dois sul-africanos, Mena compreende o que
aos portugueses por governá-los. Dizia-se está por acontecer. A voz narrativa enfatiza
um negro que sabia das coisas e reconhecia, ser um deles boer, branco de origem holande-
“[...] tudo daria para ser branco [...]” (MOM- sa, referendado como “sul-africano mesmo”,
PLÉ, 2012, p. 93). Essas convicções o quali- contrapondo-o a Rui, moçambicano filho de
ficavam para exercer o comando, pois Romu portugueses refugiado na África do Sul após
não apenas renegava sua raça como a odiava. a chacina de “07 de setembro de 1974”, data
Ódio que o instigou a cometer as piores em que colonos assimilados, tentando for-
atrocidades, como “[...] Incendiar palhota mar um governo neocolonial, “[...] tomaram
com gente viva lá dentro, estripar mulheres de assalto a Rádio Clube e realizaram uma
grávidas e matar crianças, atirando-as ao ar verdadeira caça ao negro. Só ele deu cabo de
e esventrando-as então com a ponta da baio- oitenta e dois negros, contados friamente um
neta [...]. ” (MOMPLÉ, 2012, p. 94). a um”. (MOMPLÉ, 2012, p. 125).
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 93

A personagem boer, militar de carreira, 07 de setembro. A participação nessa barbá-


especializou-se em ações de desestabiliza- rie o levou a refugiar-se na África do Sul após
ção dos governos moçambicano e angolano escapar da multidão de negros que vingavam
após a independência dos países, seus mortos atacando todos os brancos que
encontrasse à paulada, pedrada ou facada.
Boers e ingleses são evidentemente consi- A salvo, Rui envolveu-se imediatamen-
derados como elementos externos ao corpo te nos planos contra o governo de Moçam-
nacional, mas não estão ausentes da guer- bique, apoiando grupos especializados em
ra. Para além do fato de parte das interpre- massacres a civis e destruição de estruturas
tações acadêmicas da guerra enfatizar a sociais. Em relação ao lindo homem, a quem
agressão externa da Rodésia de Ian Smith e atrai e por quem se sente atraída, Mena nada
da África do Sul do apartheid, a agressão es- sabe, porém, a voz narrativa descreve-o como
trangeira faz parte da memória dos moçam- um ser perverso e calculista. Apenas após o
bicanos, pelo menos em algumas regiões do jantar, do qual os sul-africanos recusaram-se
país. Assim falar sobre a guerra é também a participar, a protagonista ouve em surdina
falar sobre os boers e os anglófonos, so- os sórdidos planos. Percebendo a conspira-
bre os brancos do outro lado da fronteira. ção, Mena tentar convencer Dupont a não
Aqueles que bombardearam os subúrbios participar do atentado, no entanto a agressi-
do Chimoio procurando atingir os guerri- vidade do esposo demonstra ser a denúncia,
lheiros do movimento de libertação zim- a única forma de impedir os assassinatos.
babuano e acabaram por matar dezenas de A “1 HORA”, Mena entra em contato com a
moçambicanos, ou aqueles que, da mesma polícia, porém o desfecho só é conhecido às
forma, bombardearam a cidade de Matola, “8 HORAS” através do noticiário que reper-
atrás dos militantes do Congresso Nacional cute a execução de Leia, Januário e Narguiss
Africano. (THOMAZ, 2006, p. 266) como se os crimes tivessem acontecido por
engano: “O Governo deve mandar embora
A presença incômoda de sul-africanos em esses do ANC. Ou então que lhes arranje um
Moçambique, os planos de desestabilização lugar isolado para ficarem, pois é muito peri-
do governo e os ataques aos refugiados do goso morar perto deles. ” (MOMPLÉ, 2012, p.
ANC permitem evidenciar o caráter mimé- 150). O medo foi instaurado e, dos cinco cri-
tico de Neighbours, conforme constatado a minosos, três foram presos e dois assinados.
partir da voz narrativa que sonda os pensa- A narrativa é concluída sem que Mena
mentos do “sul-africano mesmo”, defensor saiba acerca da morte de Dupont. No entan-
do apartheid, que anseia, to, a partir da denúncia, a personagem tem
consciência da impossibilidade de manter o
[...] se livrar dos três moçambicanos ‘black’ relacionamento. É com calma que a viúva re-
que, nesta sala exígua, parece roubar-lhe o ar cebe e acompanha os policias a fim de pres-
e o espaço. Dá graças ao seu deus branco por tar esclarecimentos, com a sensação de estar
não perceber o que os ‘blacks’ dizem, pois, encerrando um ciclo e iniciando um caminho
assim, consegue isolar-se deles mentalmen- cujo rumo é incerto.
te, já que é obrigado a suportar-lhes a pre- A intrusão sul-africana é pretexto para um
sença física. (MOMPLÉ, 2012, p. 121-122) percurso na história de Moçambique no último
quartel do século XX, uma vez que as digressões
Compartilhando dessa ideologia, Rui, exí- da voz narrativa remontam ao período colonial
mio caçador, usa os dotes para perseguir e e a descolonização de forma a ressaltar dramas
assassinar os negros, como fizera no trágico individuais e calamidades sociais. Porém, enfa-
94 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

tiza-se, sobretudo, a violência e a instabilidade


no período pós-colonial, ressaltando que a li-
bertação do jugo português não significou in-
dependência e progresso.
A narrativa de Lília Momplé é definida como
romance, em consonância com a crítica literária
que assim a classifica, entretanto, apresenta
características da novela, como a exposição de
vários enredos e a linearidade, pois, embora se
valendo do processo memorialístico, a voz nar-
rativa onisciente enfatiza o presente a fim de
conectar os acontecimentos dos três espaços
que funcionam como núcleos.

REFERÊNCIAS

AFONSO, Maria Fernanda. O conto moçambicano:


escritas pós-coloniais. Lisboa: Editorial Cami-
nho, 2004.

CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção.


São Paulo: Editora Perspectiva, 1968.

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uma história contada com lágrimas. [On
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ratas.blogspot.com.br>. Acesso em: 17 de
fevereiro de 2016.

MOMPLÉ, Lília. Neighbours. Porto: Porto Edi-


tora, 2012.

THOMAZ, Omar Ribeiro. “Raça, nação e sta-


tus: histórias de guerra e “relações ra-
ciais” em Moçambique. [On line]. Dispo-
nível em: <http://www.revistas.usp.br/
revusp/article/viewFile/13496/15314>.
Acesso em: 20 de agosto de 2016.

VISENTINI, Paulo Fagundes. História da Áfri-


ca e dos Africanos. In: PEREIRA, Analúcia
Danilevicz, RIBEIRO, Luiz Dario Teixeira;
VISENTINI, Paulo Fagundes (Org.). Petró-
polis: Vozes, 2014.
GERA ENCONTRO: LOUCURA E ARTE NA CIDADE,
UMA EXPERIÊNCIA CULTURAL NA SAÚDE MENTAL

Régis Waechter Gonçalves1


Katia S. Barfknecht2

RESUMO: O presente artigo é um relato da experiência de um residente da Escola de Saúde Pública


do Rio Grande do Sul – Programa de Residência Integrada com ênfase em Saúde Mental, realizado
juntamente ao seu campo de prática GerAção/POA, relatando o processo de construção do 1º e 2º
Gera Encontro, lugar onde a arte, a cultura e cidadania se convergem a fim de potencializar a vida.
Descreve-se o contexto da Reforma Psiquiátrica Brasileira e as relações entre loucura e arte, refletin-
do sobre as relações estratégicas em rede que visam o empoderamento do usuário de saúde mental
junto à cidade.
PALAVRAS-CHAVE: Saúde Mental – Cultura, Arte e Loucura – Cidade.

ABSTRACT: This paper is a case study from an Escola de Saúde Pública do Rio Grande do Sul’s
residente doing his “Programa de Residência Integrada com Ênfase em Saúde Mental”, realized
in his practical field named GerAção/POA and their ramifications, narrating the construction
experience of 1st and 2nd Gera Encontro and his consequences in art and culture production. The
context of Psychiatrych Reform Context is described as well as their relations with art, culture
and mental health, reflecting on the strategic relations networked vision empowerment of the
mental health by the city.
KEYWORDS: Mental Health – Culture, Art and Madness – City

INTRODUÇÃO
Quem é louco? Quem é normal?
Que olhar o denuncia? O da direita, o da esquerda,
Ou aquele que olha, perturbado, a fotografia?
(Antonin Artaud)

A substituição do hospital psiquiátrico, a superação da lógica manicomial e a busca de novas


formas de relação da sociedade com a doença mental são questões presentes que inspiram a
formulação de um projeto Antimanicomial no Brasil. Em Porto Alegre, a Rede de Saúde Men-
tal organiza-se através da atenção básica e dos serviços especializados tais como os CAPS
(Centros de Atenção Psicossocial), os CAPS AD (Centros de Atenção Psicossocial Álcool e
Drogas), o Serviço Residencial Terapêutico, as Equipes de Saúde Mental e também o GerA-
ção/POA – Oficina Saúde e Trabalho3, que promove a inclusão social através do trabalho en-
quanto produtor de cidadania, amparada nos preceitos da Economia Solidária.

1 Arte-Educador com Licenciatura em Teatro e Especialista pela Residência em Saúde Mental Coletiva/ESP-RS, foi residente do GerAção/Poa.

2 Terapeuta Ocupacional do GerAção/Poa, Especialista em Saúde Mental Coletiva e em Saúde e Trabalho, Mestre em Psicologia Social e Institucional/UFRGS.

3 GerAção/POA - Oficina de Saúde e Trabalho, inserido dentro da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) como um importante dispositivo de saúde mental. A
proposta deste serviço é a de investir na afirmação de direitos, dentre eles o trabalho e a promoção de cidadania. É um espaço de passagem, onde são vividas
experiências de trabalho, pautadas principalmente no âmbito da economia solidária, mas visando, também, a inserção desses sujeitos em espaços do mercado
de trabalho formal. Acreditando também na vivência da cidade e das relações sociais, como essenciais para a construção de autonomia na vida dos usuários, O
GerAção/POA investe também em ações culturais e na geração de arte.
96 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

A partir de uma concepção ampliada e dança reestruturadora da compreensão dos


integral da saúde na cidade, e do desejo de hospitais psiquiátricos através do princípio
mais espaços de troca onde estivessem pre- do confinamento e do ideal da normatização
sentes a arte e a cultura, foi construído co- do sujeito descrito como “louco” (FOUCAULT,
letivamente, com usuários, trabalhadores e 1978).
residentes do GerAção/POA o GERA ENCON- Na concepção estrita mais tradicional e
TRO, um espaço que se pudesse construir um antiga da Medicina, o processo de loucura de
“encontro” para compartilhar criatividade, “enlouquecimento” de sujeitos considerados
diálogo, cultura e arte. O 1º Gera Encontro problemáticos do ponto de vista político e/
ocorreu em 18 de maio de 2015, na sede do ou produtivo, na ótica de Michel Foucault)
GerAção/POA, no Dia da Luta Antimanico- teve um papel estratégico, uma vez que se
mial, e o 2º Gera Encontro ocorreu no dia 07 torna sinônimo de “erro”; algo que não mais
de novembro, na Cinemateca Capitólio em se situa na ordem do sobrenatural, mas sim
Porto Alegre. na esfera de algo que se coloca como estra-
Abrindo as janelas e portas da saúde para nho ou estrangeiro à razão. Se a loucura pas-
a cidade e a arte. Estiveram junto familiares e sa a ser compreendida como uma desordem
curiosos, bem com pedestres que passavam da norma (a razão), a alienação deixa de ser
por ali; cidadãos de uma cidade, de manei- algo da ordem do sagrado, do místico e do
ra a ocupar espaço para fazer saúde através sobrenatural, e passa a ser entendida como
de arte e cultura. Constituindo um diálogo, um distúrbio. O “alienado” é aquele sujeito
onde se falou sobre os desafios e retrocessos que passa a ser visto como um sujeito “fora
da Reforma Psiquiátrica, da Saúde, da arte e de si”, fora da realidade, fora dos parâmetros
a cidade. Através da arte e cultura, comparti- arrazoados da normalidade.
lhamos poemas, músicas, fotos, rimas, filmes, Passados alguns anos desde o início do
arte e saúde, possibilitando novos olhares e processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira,
percepções, de maneira a gerar e potenciali- com importantes avanços e conquistas, que
zar novos afetos e encontros. não estão garantidas, haja vista o cenário
O presente artigo refere-se a um relato da atual (atravessado por inúmeras dificulda-
experiência de construir e fazer parte desses des), faz-se necessária uma reflexão acerca
dois encontros, e tem como objetivo uma re- do retrocesso na política nacional de saúde
flexão teórica e crítica, dando conta do relato mental. Estamos em um momento em que
da realização destes eventos, no contexto das muitas conquistas de nossa sociedade estão
importantes conquistas do campo da Saúde sendo postas em cheque: o exemplo mais re-
Mental. cente é dado pelos manifestantes que ocupa-
ram as principais cidades do Brasil, claman-
A REFORMA PSIQUIÁTRICA: do pela volta do regime militar, exigindo o
LOUCURA, ARTE E CULTURA retorno dos efeitos danosos de uma ditadu-
Em seu livro seminal intitulado História da ra violenta, que torturou, matou e confinou
Loucura na Idade Clássica, Michel Foucault incontáveis brasileiros; ou então a possibi-
(1978) inverte a explicação científica da re- lidade de vitória da redução da maioridade
organização institucional, demonstrando penal, a derrota da ética e a desmoralização
como as instituições surgem de necessida- do Congresso Nacional. Nesse contexto, o
des sociais, e não de descobertas científicas SUS sofre um boicote sistemático de vários
ou do aprimoramento do conhecimento. As setores da sociedade, que comprometem sua
reflexões de Foucault (1978) sobre a institu- consolidação. Muitas são as possibilidades
cionalização da loucura levaram a uma mu- de retrocesso junto a este cenário. Também
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 97

constatamos que não é suficiente fechar os dimensões que se revelam simultâneas e in-
Manicômios e abrir Centros de Atenção Psi- terconectadas, envolvendo diferentes, movi-
cossocial, mas que é necessário mudar tam- mentos, atores sociais singulares e conflitos
bém a concepção da loucura. Pensando as- (quando não conflituosos), bem como a com-
sim, no lugar de objetivar a modernização ou preensão de que nenhum método cognitivo
o aperfeiçoamento do modelo assistencial ou teórico alcança a compreensão ou a tota-
psiquiátrico, deve-se buscar a transformação lidade do referido processo. O princípio da
das relações entre a sociedade e a loucura, complexidade da Saúde Mental é reforçado
uma vez que a noção de Reforma Psiquiátrica pelas deliberações da Conferência Regional
deve ser reiteradamente vista e revista como para a Reestruturação Psiquiátrica na Amé-
“um processo social complexo” (ROTElLI e rica Latina, da Organização Panamericana de
MAURI, 2013, p. 39). Saúde (OPA/OMS), realizado em 1990 e cujas
Com a ruptura do modelo Manicomial, e resoluções foram nominadas sob o título de
o fim dos hospitais psiquiátricos que ainda Declaração de Caracas (DIAS et all, 2002).
não foi totalmente concluída dentro da refor- Dentro da perspectiva de lutas, tais como
ma psiquiátrica (GUIMARÂES 2011), surgem o Movimento de Luta Antimanicomial, for-
os serviços substitutivos que formam a Rede mado por trabalhadores em saúde mental,
de Atenção Psicossocial (RAPS). Esses servi- usuários e familiares, no Estado do Rio Gran-
ços de Saúde Mental devem ter uma estrutu- de do Sul, merece destaque o Fórum Gaúcho
ra bastante flexível, para que não se tornem de Saúde Mental, responsável por grandes
espaços burocratizados repetitivos, pois tais avanços na Reforma Psiquiátrica do Estado.
atitudes estariam deixando de lidar com as Enfrentando uma série de dificuldades, o Rio
pessoas, e tão somente com as doenças. Es- Grande do Sul apresentou um cenário favo-
tes lugares devem possibilitar o acolhimento rável às mudanças na área de Saúde Mental,
integral ambulatorial ao usuário, e também norteado pelos princípios de inclusão social,
podem oferecer leitos de suporte nos quais intersetoralidade e cidadania, buscando ga-
as pessoas possam ser internadas por um rantir a ampliação dos direitos dos usuários,
período breve. Assim, várias modalidades de além de estar dentro dos princípios de hu-
serviços foram instituídas no Brasil, dentre manização do Sistema Único de Saúde (SUS),
os quais os leitos de saúde mental em hospi- formando assim uma Rede Integral de Saúde
tais gerais, as oficinas terapêuticas, as resi- Mental diversificada e cada vez mais presen-
dências terapêuticas, as oficinas de geração te em um grande número de municípios do
de renda e os Centros de Atenção Psicosso- Rio Grande do Sul.
cial (CAPS), além de outros dispositivos. Como marco importante no Estado, me-
A Reforma Psiquiátrica no Brasil iniciou rece destaque a Lei nº 9.716, de 1992 (de-
na década de 1980, sendo caracterizada nominada Lei da Reforma Psiquiátrica), que
como um movimento de inclusão social e proíbe a construção e ampliação do núme-
promoção da cidadania, estabelecendo um ro de leitos nos hospitais psiquiátricos por
novo paradigma no campo da saúde mental, redes de atenção integral de saúde mental,
substituindo o modelo “hospitalocêntrico” e determinando regras de proteção aos que
de medicalização do sujeito portador de so- padecem de sofrimento psíquico, especial-
frimento psíquico, modelo hegemônico no mente quanto às internações psiquiátricas
contexto brasileiro até inicios da década de compulsórias. No plano federal, destaca-se a
1980. De acordo com Amarante (2003), o aprovação, pelo Congresso Nacional, da Lei
processo social complexo é aquele que se de- nº 10.216, de seis de abril de 2001, que dis-
lineia em função da articulação de diferentes põe sobre a proteção e os direitos das pesso-
98 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

as portadoras de transtornos mentais, redi- que ganharam destaque por tomarem as


recionando o modelo assistencial em Saúde suas próprias “loucuras” como objeto de sua
Mental no cenário nacional brasileiro. arte, Arhur Bispo do Rosário e Qorpo Santo.
Pensando na dimensão sociocultural da Segundo Lima (2012), duas experiências
Reforma Psiquiátrica e suas vertentes no no Brasil merecem destaque por suas dife-
campo da cultura, temos, segundo Amaran- renças de perspectiva: a experiência de Osó-
te (2015), como um aspecto importante, a rio Cézar, psiquiatra ligado ao movimento
participação social nas políticas e na rein- modernista, no Hospital Psiquiátrico de Ju-
venção da própria sociedade, agregando os queri (SP), que acreditava que a manifesta-
familiares, usuários e as lideranças políticas ção artística era uma necessidade indispen-
de vários movimentos que lutam por direi- sável à vida de enclausuramento a que esta-
tos sociais, humanos e políticos. Sendo este vam submetidos os internos, possibilitando
processo lento, com mudanças nas relações que se refugiassem em um mundo de beleza.
de diversidade e alteridade, situa-se aí o “ter- Osório Cézar considerava que os trabalhos
ritório da polis”. A cidade ganha importância eram de valor inestimável, conferindo a esta
fundamental, transformando o dia-a-dia e as produção um valor estético. Em 1929, Osó-
relações das pessoas, sejam elas “loucas” ou rio Cézar publicou A expressão artística nos
não. Em um contexto de mudança paradig- alienados, livro que seria um marco nos estu-
mática da compreensão da especificidade dos referentes à relação entre arte e loucura
conceitual de “doença mental”, sustentado no Brasil. Outra experiência foi a de Nise da
por instrumentos jurídicos e políticas pú- Silveira (2005), que tomou a arte como meio
blicas, não há mais espaço para se pensar os terapêutico. Desde o início de seus trabalhos,
transtornos mentais e os sofrimentos psíqui- a psiquiatra construiu um trabalho com uma
cos unicamente no eixo binário saúde/doen- orientação própria (a da terapia ocupacio-
ça. Substitui-se assim o paradigma manico- nal), que tinha como objetivo encontrar ati-
mial por um novo, abrindo espaço para uma vidades que servissem como meio de expres-
Rede de Atenção Integral à Saúde, que pode são. A partir do trabalho de Nise da Silveira,
ultrapassar muitas vezes os serviços especí- passamos a entender que a produção plásti-
ficos da saúde, territorializados pela cidade. ca dos psicóticos (ou de qualquer artista) vai
Outra vertente se encontra no trabalho muito além das representações distorcidas
da arte e cultura no campo da saúde mental, de conteúdos pessoais reprimidos.
onde a arte tradicionalmente tem sido utili- Segundo a convenção da diversidade cul-
zada como instrumento terapêutico para pes- tural realizada pela Unesco em 2005, Diver-
soas com transtornos mentais. A arte sempre sidade cultural refere-se à multiplicidade de
esteve ligada à loucura. Ao longo da história, formas pelas quais as culturas dos grupos e
grandes artistas estiveram aprisionados em sociedades encontram sua expressão. Tais
hospícios, ou foram vítimas de internações expressões são transmitidas entre e dentro
não consentidas em hospitais psiquiátricos. dos grupos e sociedades. A diversidade cul-
Através da arte, conseguiam superar o isola- tural se manifesta não apenas nas variadas
mento, a violência e a diferença social à qual formas pelas quais se expressa, se enriquece
estavam submersos, sendo grandes exem- e se transmite o patrimônio cultural da hu-
plos o pintor Van Gogh e o artista de teatro manidade, mas também através dos diversos
Antonin Artaud. Tais artistas tiveram seu modos de criação, produção, difusão, distri-
reconhecimento no mundo através de suas buição e fruição das expressões culturais,
mais puras expressões de loucura. Também quaisquer que sejam os meios e tecnologias
podemos citar, entre os artistas brasileiros empregados.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 99

No processo de Reforma Psiquiátrica Bra- para o deslocamento da sociedade às práticas


sileira, a Arte e Cultura há alguns anos são e intervenções culturais, como forma de não
utilizadas como um recurso, desmistificando se pensar apenas a doença e sim no sujeito
e transformando a concepção que a socie- demarcando a dimensão sociocultural da Re-
dade criou sobre a loucura. Podemos citar forma Psiquiátrica Brasileira.
os seguintes grupos musicais que nasceram
através de associações, grupos ou nos pró- O I GERA ENCONTRO
prios serviços de saúde mental, São eles: No início do ano de 2015, com vistas ao de-
Harmonia que Enlouquece (Rio/RJ), Som sejo de se fazer um evento cultural no GerA-
(Volta Redonda/ RJ), Lokonaboa (Assis/SP), ção/Poa, foi apresentado para nós, residen-
Viajar (Santo André/SP), Trem Tan Tan (Belo tes que estávamos entrando neste serviço, a
Horizonte/MG), Zé do Poço (Ribeirão das Ne- ideia de se fazer um encontro onde pudésse-
ves/MG), Sistemas Nervoso Alterado (Rio/ mos vender os produtos do GerAção/Poa e
RJ), Cancioneiros do Ipub (UFRJ), Impacientes ao mesmo tempo estarmos falando de arte,
(Juiz de Fora/ MG). cultura e saúde, fazendo trocas com a cida-
Ainda temos no Teatro, como expressão de de e criando novas zonas de convívios. Como
arte e da loucura, os seguintes grupos: Pirei da o dia 18 de Maio4 se aproximava, tivemos a
Cena, que vem do teatro do oprimido de Au- ideia de unir o desejo de um espaço de cria-
gusto Boal, também no Rio/RJ, os grupos: Os ção e exposição de artes. Desejamos um en-
Nômades e o Camisa de Força. Isso demonstra contro onde pudéssemos estar discutindo a
a dimensão sociocultural destes grupos, fun- Reforma Psiquiátrica, em um momento de
damentada na participação social e política grandes retrocessos.
de todos os atores sociais envolvidos no pro- A noção de território tem grande impor-
cesso da Reforma Psiquiátrica. Outro exem- tância nessa discussão, pois, para Basaglia
plo da dimensão da Arte e Cultura dentro da (2015), o território é o lugar onde a loucura
Rede de Saúde Mental, que cujas atividades deve encontrar acolhimento, sendo a própria
acompanhei ao longo de um mês em meu es- cidade o lugar da reabilitação. Ora, cidadão,
tágio optativo durante os meses de fevereiro assim como cidadania, são conceitos etimo-
e março de 2016 é o Suricato, em Belo Hori- logicamente derivados de cidade, de “polis”,
zonte, uma associação de trabalho e produção do espaço da cidade, espaço esse entendido
solidária formada por pessoas que se utili- como o espaço público das trocas sociais,
zam de um sistema inovador de tratamento políticas e econômicas entre os membros de
em saúde mental. Desde a década de 1990, o uma comunidade.
Suricato busca saídas para a ocupação de um Estas expressões nos apontam o desloca-
outro lugar no mundo do trabalho, pautadas mento da sociedade às práticas e interven-
na liberdade. Em 2011, o Suricato lançou sua ções culturais, como forma de não se pensar
marca como espaço cultural, em uma casa apenas a doença e sim no sujeito, apontando
show-room, se consolidando em 2014 como para uma dimensão sociocultural possibili-
um espaço artístico e cultural. O grupo reali- tada a partir da Reforma Psiquiátrica Brasi-
za eventos e oficinas de arte e cultura, ofici-
nas de arte e cultura, performances artísticas, 4 O Movimento da Luta Antimanicomial teve seu início marcado em 1987,
em continuidade a ações de luta política na área da saúde pública no Brasil por
gastronomia, cinema, rodas de conversas e parte de profissionais de saúde que contribuíram na própria constituição do
lançamentos de livros. Esta experiência sin- SUS. Naquele ano a discussão sobre a possibilidade de uma intervenção social
para o problema da saúde mental, especificamente, dos absurdos que aconte-
gular demonstra como a loucura pode sair ciam nos manicômios ganhou relevância, permitindo o surgimento específico
da saúde para tomar conta da cidade através deste movimento. Em 1987 estabeleceu-se o lema do movimento: “Por uma
sociedade sem manicômios”, e o 18 de maio foi definido como o Dia Nacional
da arte e cultura. Estas expressões apontam da Luta Antimanicomial, data comemorada desde então em todo o país.
100 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

leira. Assim nasce o I Gera Encontro, com a vidualidade, incluindo o seu respeito e sua
necessidade e desejo de abrir a GerAçã/Poa, vontade; tem que se ter clara sempre a posi-
“abrindo suas portas e janelas” e convidando ção de que cada um tem seu tempo, sua per-
usuários e trabalhadores de vários serviços cepção própria. O trabalho aqui se dá em um
de Porto Alegre, além de familiares, amigos, tempo muito dilatado, e saber compreender
curiosos e demais loucos para uma nova vi- esta própria dinâmica faz parte do trabalho
vência com nosso território, ou seja, nossa dentro da saúde mental. Assim como diz os
cidade, gerando novas formas de trocas e versos da música de Caetano Veloso: Tempo,
afetos. Foi assim construída uma comissão tempo, tempo, tempo / Compositor de destinos
de usuários, profissionais e residentes onde / Tambor de todos os ritmos / Tempo, tempo,
começamos a pensar em um nome em que tempo, tempo / Entro num acordo contigo /
refletisse tudo aquilo que estávamos queren- Tempo, tempo, tempo, tempo / Por seres tão
do e sentindo com a proposta de fazer este inventivo / E pareceres contínuo...
encontro. De vários trocadilhos, misturas de Para a Conversa no Gera Encontro sobre
palavras, sons e ideias surgiu o nome “GERA a Reforma Psiquiátrica, foi convidada uma
ENCONTRO”, onde o Geração vem da pró- pesquisadora e professora universitária mi-
pria GerAção/Poa, como Oficina de Saúde e litante da Luta Antimanicomial que acom-
Trabalho, e do próprio significado da pala- panhou todas as conquistas e avanços da
vra Gera, de gerar = produzir e construir. Da Reforma Psiquiátrica no Estado, e também
palavra encontro, resgatamos os sentidos de um usuário, que faz parte da associação de
convivência e da reunião (o encontro com os usuários da Saúde Mental. Também convida-
outros), localização e conscientização (o en- do o grupo Tocante, composto por usuários
contro consigo mesmo). do CAPSad, e também foram exibidas obras
Sempre de forma conjunta, começamos a de arte produzidas pelos usuários.
pensar em um cartaz, para o I Gera Encon- Discutimos a Reforma Psiquiátrica em
tro, e como faríamos esta conversa sobre a uma roda de conversa, juntamente com os
Reforma Psiquiátrica e o que iríamos expor convidados, falando da história da luta An-
neste dia! timanicomial, dos avanços e dos atuais re-
trocessos vividos, através da diminuição do
Recorta daqui, puxa de lá, amplia e copia e incentivo a rede de Atenção Psicossocial, e o
vai surgindo um novo desenho... Agora apa- grande investimento nos hospitais psiquiá-
receram rostos, máscaras ou deuses, o quê tricos, como forma de tratamento não huma-
será? Agora vamos ver o desenho das le- nizado em uma conjuntura atual da Política
tras, qual será que fica melhor para o Gera de Estado de Saúde Mental do Rio Grande
Encontro? Contraposição... Tecnologia: do Sul. Cantamos com o grupo Tocantante,
esta é dada pela máquina, e intricadamente exemplo de como a arte pode fazer parte
pelo homem., a Manual, em um outro tem- da saúde, estando presente dentro da rede
po e espaço, em outro lugar. Seriam estas do serviço substitutivo de saúde mental, e
trocas mais reais, já que em tempos de tec- compartilhamos poesias, músicas e rimas...
nologia virtual temos tantas dificuldades Mostramos a arte que se faz, e expomos os
das trocas reais. (Diário pessoal de pesquisa produtos feitos pelas oficinas do Geração
de campo –30 de abril de 2015). Poa. Enfim, vivenciamos outra forma de se
fazer saúde, com cultura e arte, que dá certo
Para nós que acreditamos na Reforma e dá resultados, diferente daquela que já foi
Psiquiátrica, a liberdade terapêutica auxilia imposta às pessoas com sofrimento mental:
o usuário na conquista de sua própria indi- a do Manicômio.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 101

O II GERA ENCONTRO encontrados arquivos pessoais de críticos e


Com a necessidade de expandir, estabelecer cineastas, alem do Arquivo da Cinemateca
novas trocas e dialogar com a cidade sobre o Capitólio compostos por roteiros de filmes,
lugar e a importância da intercessão da arte sinopses de filmes, recortes de jornais e re-
e da saúde na cidade, foi construído o II Gera vistas, correspondências, relatórios, foto-
Encontro. A partir da experiência da constru- grafias, cartazes, entrevistas entre outros
ção do I Gera Encontro, vimos a necessidade documentos que ajudam a contar a história
de ocupar outros espaços da cidade, onde do cinema gaúcho (Disponível em: <http://
se pudesse fazer uma rede de trocas ainda cinematecacapitolio.blogspot.com.br/>.
maiores com a cidade. A Cinemateca Capitólio aceso em: 29 de novembro de 2015).
aparece como um destes lugares de potência
para a criação artística, e também como rede Temos na cultura e na arte uma estraté-
para pensar saúde além dos padrões de me- gia importante que nos aponta um caminho,
dicalização da vida. Para isso, através de uma um dispositivo potente de atenção na saúde
comissão de trabalho formada por usuários, mental, fortalecendo as práticas no campo
técnicos e residentes, buscamos a parceria sociocultural. Ao se propor uma clínica não
com a Secretaria Municipal de Cultura (SMC), mais voltada ao sintoma e à ideia de cura
que através da Cinemateca Capitólio partici- individual, mas sim na produção de vida e
pou ativamente durante dois meses que an- saúde no plano coletivo e podemos pensar,
tecederam o evento, recebendo e guiando os problematizar e propor novos modos de vi-
Usuários do Geração/POA na Cineamateca. ver, de sentir e, por consequência, novas sen-
Foi construída uma “apropriação” do es- sibilidades serão possíveis.
paço, conhecendo-se assim as histórias do
Capitólio, do Cinema e da própria cidade, pelo O que eu vejo no meu caminho? Quais os
olhar e a procura de novos ângulos, surgiram caminhos que me levam ao Capitólio ???
assim novas imagens, gerando mais de 200 Hoje deitamos no chão e através da moldu-
fotos da Cinemateca Capitólio e de seu entor- ra enxergamos um outro Capitólio. Naque-
no feito pelos usuários do GerAção/Poa. le momento, nossos olhares se cruzavam
como se pudéssemos parar o tempo: novos
A Cinemateca Capitólio é um Espaço Cultu- ângulos e novas formas de se ver! (Diário
ral de Porto Alegre que tem como função pessoal de pesquisa de campo – 8 de outubro
principal a preservação, o armazenamento de 2015).
e a difusão da memória do cinema e do au-
diovisual do Rio Grande do Sul. A conclu- Durante dois meses fizemos semanalmen-
são das obras da Cinemateca Capitólio re- te “os caminhos que levam ao Capitólio”, jun-
presentou um momento histórico na vida tando assim amigos usuários, técnicos, ami-
cultural de Porto Alegre.. O Espaço Cultural gos, cidadãos fazendo uma discussão com a
foi inaugurado em 27 de março de 2015, cidade e seu entorno... Fomos fotografando
sendo composto por uma sala de cinema assim a cidade e a Cinemateca Capitólio, em
com 164 lugares, sala de exposições, um es- uma pausa em um minuto, como se a cidade
paço para cafeteria, salas de pesquisa, sala pudesse ser capturada e mobilizada em um
multimídia e um Centro de Documentação instante de sua frenética rotina.
composto por uma Biblioteca especializada Para Franco Basaglia (2015), a ciência psi-
em cinema, Acervos de Filmes em Pelícu- quiátrica colocou o sujeito entre parênteses
la, Acervo de Filmes em Vídeos (VHS, DVD, para se ocupar da doença, e assim constituir
Blu-ray,etc.) e Acervo arquivístico onde são uma série de classificações, de síndromes e
102 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

definições, produzindo como consequência o trabalho em maio de 2013, que “navega” pe-
afastamento da experiência concreta dos su- las águas da saúde mental a partir do fazer
jeitos. Ele propõe então que o que deveria ser teatral, misturando aprendizado, criação,
colocado entre parênteses é a doença, para cuidado, produção de subjetividade, auto-
que fosse possível se ocupar das pessoas. A nomia e cidadania. Onde são exploradores
partir desta proposta de se colocar a doença do próprio destino que lançados ao mar da
entre parênteses para cuidar de um sujeito loucura, reinventam a arte através da arte.
concreto, com suas necessidades, o objeto O filme é de 2015, com direção de Emiliano
da psiquiatria desloca-se da doença mental Cunha, Thaís Fernandes e Lívia Pasqual.
para a experiência do sujeito em relação com Junto ao grupo Nau da Liberdade assisti-
o corpo social. Na prática de Basaglia (2015), mos os dois curtas, nos emocionando junto
não tinha importância, nem lugar central a com a plateia que acompanhou atentamen-
“cura” da loucura, mas a transformação da te o trabalho e que, no final, afetuosamente
relação social da loucura. foi reverberada com som de Marinheiro Só
No dia 7 de novembro ocorreu este encon- e Prece ao Vento, canções entoadas em uma
tro, resultado de um processo de dois meses improvisação que envolveu cada integrante
de discussões, artes e trabalho, gerando um do público com palmas e vozes, diante tam-
acontecimento na cidade, provocando e mul- bém do cenário de retrocessos da Política Es-
tiplicando formas de pensar, sentir, e compre- tadual de Saúde Mental.
ender, desfazendo estigmas e ensinando com O Nau da Liberdade é um grupo de Teatro
as diferenças de forma mais digna e sensível. formado por usuários e profissionais da rede
O Gera Encontro nos revela talentos em diver- de saúde mental que tem o objetivo de for-
sas áreas culturais, produzindo uma arte de talecer o processo de desinstitucionalização
qualidade e essencialmente uma diversidade dos moradores e ex-moradores do Hospital
de olhares, buscando um espaço na sociedade, Psiquiátrico São Pedro. Desde sua criação
mostrando talentos artísticos, que por muitos em 2013, o grupo já realizou 27 apresenta-
anos estiveram abafados dentro da clínica ções em 19 municípios do Estado, além de
psiquiátrica, que com uma visão ampliada da uma em Curitiba e outra no Rio de Janeiro.
saúde mental podem dar novos voos. Nasceu em continuidade à proposta do es-
Encontramo-nos para ver a apresentação petáculo “Azul como a Liberdade”, montado
dos filmes Arte da Loucura e Navegantes, a partir de uma residência artística da com-
o último exibido com exclusividade, antes panhia italiana Accademia Della Follia em
mesmo do lançamento. Segundo título da Porto Alegre, em 2013, sendo criado em 27
trilogia sobre loucura das diretoras gaúchas de maio daquele ano. Hoje em dia, após ter
Karine Emerich e Mirela Kruel, o média-me- perdido seu espaço de ensaio e não ser mais
tragem Arte da Loucura é o resultado de re- reconhecido pela atual política estadual de
gistros do trabalho da Residência Artística saúde mental, o Nau segue navegando inde-
do grupo de teatro italiano Accademia Della pendentemente com os usuários que estão
Follia, realizado em 2013 com integrantes da fora do Hospital Psquiátrico São Pedro.
Companhia e artistas, estudantes, funcioná- Após muitos afetos com a apresentação
rios e usuários da área de saúde mental do dos filmes, ocorreu o Debate em forma de ba-
Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto te-papo sobre arte, saúde e cidade, com a par-
Alegre. Este filme foi vencedor do I Prêmio ticipação de um historiador e artista visual, de
Diversidade RS, na categoria de direitos hu- um artesão e usuário, de uma socióloga e usu-
manos. O curta Navegantes conta a história ária, do cineasta do próprio filme e da minha
da Nau da Liberdade, grupo que começou o colega, artista e residente em saúde mental.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 103

Defensor da luta antimanicomial, Cunha saúde mental de Porto Alegre, sendo nestas
denominou a produção do filme de “afeto” oficinas realizada a criação através da seri-
e “coletivo”. “O enfoque da luta antimani- grafia, costura, papel artesanal, e confecção
comial é a atenção no sujeito, permitindo de velas.
que ele acolha e seja acolhido, sem barrei- As visitas à Cinemateca Capitólio e a cap-
ras, com o cuidado necessário para o trata- tura de imagens fizeram surgir a exposição
mento psíquico, mas vendo-o de igual para fotográfica Caminhos do Capitólio, que foi
igual”, explicou. “A proposta do Navegantes uma exposição de fotos feitas a partir das
foi estar com eles, ter esse olhar muito pró- inúmeras visitas à Cinemateca Capitólio,
ximo, mas nunca impositivo ou discursivo. de usuários do Geração/Poa que através de
A partir da igualdade no olhar, de estar no sua singularidade buscaram mostrar uma
mar junto a eles, mostrar quem são, como visão do espaço, capturando ângulos e mo-
são e como querem ser”, destacou o pro- tivos com um outro olhar deste local e que
dutor. a partir deste material foi feita uma seleção
Socióloga de formação, Jacqueline desen- de 25 imagens que originaram a mostra, e
volveu esquizofrenia aos 24 anos, em 1991. foram expostas no II Gera Encontro. Em ima-
Desde então, precisou de acompanhamen- gens, mostrou-se maneiras diferentes de se
to e, atualmente, frequenta o curso de papel olhar. Sem equipamentos fotográficos muito
artesanal. “É muito bom, porque trabalha- avançados, e sem tratamentos em imagens,
mos em equipe e temos contato com outras conseguimos colocar o nosso olhar de uma
pessoas. É bem diferente do trabalho nos forma única e diferenciada, uma construção
moldes capitalistas, sem rigidez nos horá- coletiva e que, ao mesmo tempo, permite a
rios e na produção”, conta. Agendas, mar- expressão da individualidade de cada um
cadores de página, porta-retratos, blocos e com a produção de subjetividade.
cadernos surgem do trabalho conjunto dos
artistas (reportagem sobre o evento vin- Se eu me colocar a arte apenas como uma
culada no portal da Prefeitura Municipal técnica, e dizer que o usuário tem que fa-
de Porto Alegre. Disponível em : <http:// zer porque estou falando deste ângulo,
www2.portoalegre.rs.gov.br/cs/default. desta técnica específica, meu trabalho cai
php?p_noticia=182248>. Acesso em: 27 de por terra, tenho que afetar através da arte.
abril de 2016). (Diário pessoal de Pesquisa de campo, 22 de
outubro de 2015).
No Gera Encontro, revela-se o protagonis-
mo dos usuários do serviço de saúde mental Durante dois meses, acompanhei estes
e portadores de sofrimentos mentais, que ali grupos que percorreram os “Caminhos do
se mostram como artistas, público, apren- Capitólio”: discutimos a cidade, falamos de
dizes, vendedores, artesãos, recepcionistas, nossas histórias, encontramos novos jeitos
assistentes, cada um da forma que lhe é pos- de olhar. Como residente de saúde mental,
sível! E com muita arte e alegria que também sendo da área de Artes, este trabalho rever-
foram criados, tendo como inspiração as vi- berou uma compreensão estendida de saúde
sitas ao Capitólio, foi confeccionada uma li- mental, e o lugar do usuário na cidade, como
nha de produtos alusiva ao Gera Encontro e pertencente a ela, em oposição a um mode-
à Cinemateca Capitólio, que foram vendidos lo manicomial. Sempre me pergunto até que
nesse dia. Todos os produtos foram desen- ponto se pode dizer “para quê um usuário
volvidos dentro das oficinas de trabalho e deve tomar remédio”? Pois se os momentos
geração de renda para usuários da rede de mais significativos de encontro com a arte
104 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

não estavam relacionados ao uso da medica- peito às diferenças, o olhar despido de pre-
ção, será que durante uma crise não se pode conceito, a delicadeza da escuta se tornam
achar um ponto de equilíbrio? prioridades em nossos encontros.
O protagonismo dos usuários, agora artis-
tas e fotógrafos, viu-se no resultado da expo- CONSIDERAÇÕES FINAIS
sição, tanto na aceitação por parte do público,
que deixando se afetar pelas fotografias, as Porque, somente se continuarmos a repetir
quiseram comprar, dando valores espontâ- que não sabemos nada sobre a loucura, é
neos para a compra dessas imagens, que não que podemos abrir nosso olhar, abrir nossa
tinham sido feitas com este intuito. Tanto na mente, abrir nosso corpo, e abrir a cidade
qualidade de imagens de alta qualidade poé- aos loucos. E a partir deste ato, poderemos
tica, transformadas pela imaginação, que dia- começar finalmente nossa história (RO-
logam muito com conceitos da Arte Contem- TELLI, 2013)
porânea. De acordo com Gaston Bacherlard,
em seu livro A poética do espaço, afirma que É chegado o fim da Residência Multiprofis-
a imaginação é a “faculdade de produzir ima- sional Integrada em Saúde (RIS) da Escola de
gens”. Ele ainda escreve: “propomos que se Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul
considere a imaginação como um poder maior (SES/RS), que ao longo de pouco mais de dois
da natureza humana” (BACHELARD, 1972, p. anos me proporcionou diversas itinerâncias,
17) e “a imaginação, em suas ações vivas, nos intensas vivências e a ampliação dos olhares
desliga ao mesmo tempo do passado e da re- em relação à saúde, à educação, à assistência
alidade. Aponta para o futuro” (BACHELARD, social e outros setores importantes, que en-
1972, p. 17). É também ele quem completa: tram em jogo, na organização do cuidado no
campo da saúde coletiva. Além disso, a Resi-
A imagem poética não está submetida a um dência Multiprofissional Integrada possibilita
impulso. Não é eco de um passado. É antes mudanças significativas com relação ao ser
o inverso pela explosão de uma imagem, o cidadão e ao convívio social, bem como a pro-
passado longínquo ressoa em ecos e não se blematização do que caracteriza a “saúde” e
vê mais em que profundidade esses ecos a “normalidade” dos seres humanos. Esta ex-
vão repercutir e cessar. Por sua novidade, periência é uma grande “travessia”, que possi-
por sua atividade, a imagem poética tem bilita também, de maneira muito significativa,
um ser próprio, um dinamismo próprio um novo e disruptivo olhar sobre o papel das
(BACHELARD, 1972, p. 5). artes, um deixar-se contaminar pelo campo
da Saúde Mental Coletiva, transgredindo, des-
Tais reflexões sobre as imagens fazem re- locando e reconfigurando tanto a trajetória da
verberar todo este processo, que me coloca, formação profissional do artista quanto o das
enquanto residente, artista e profissional da profissões tradicionalmente ligadas à área
saúde mental, na disposição de servir como mais específica da saúde.
ponte, de construir caminhos junto aos usu- Este artigo, além de trazer o relato de
ários. Começamos assim a ver a cidade de experiência destes dois encontros, também
outros ângulos e constituir algo novo no carrega em sua essência um pouco da cons-
percurso. Diante disto, nossa demanda é por trução de conhecimentos e ideias ao longo
ampliação de espaços que priorizem a cida- desta formação. No segundo ano de forma-
dania, a liberdade e o acolhimento. Já que ção dentro do Programa da Residência, tive
aprendemos que a cidade e o “viver” nela é a o prazer de estar junto à equipe do Geração/
melhor saída para cuidar das pessoas. O res- Poa, onde pude vivenciar um serviço substi-
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 105

tutivo da Rede de Saúde Mental de Porto Ale- BRASIL. Lei n.º 10.216, de 06 de abril de
gre. Muitos questionamentos se fazem e per- 2001. Dispõe sobre a proteção e os direi-
manecem sem respostas com relação à arte e tos das pessoas portadoras de transtornos
à saúde mental e, com isso, o que temos que mentais e redireciona o modelo assistencial
pensar em relação aos desejos e singularida- em saúde mental. Disponível em: http://
des do sujeito usuário dos serviços da saú- www.planalto.gov.br/dirhum/ccvil_03/leis/
de mental? Conseguimos hoje, imersos em leis_2001/l10216.htm. Acesso em 17 de ja-
tantas questões, estarmos disponíveis para neiro de 2016.
ouvir a dimensão existencial, deste usuário?
Esses questionamentos nunca devem BRASIL. Saúde Mental no SUS: Os Centros de
ter fim, pois é por meio da reflexão diária e Atenção Psicossocial. Brasília: Ministério da
permanente que as mudanças acontecem, e Saúde, 2004a.
para que isto ocorra, é preciso estar integral-
mente disposto a questionar e a refletir so- DIAS, Miriam et all. Seguimento e avaliação da
bre as práticas e experiências que são cons- reforma psiquiatríca no Hospital Psiquiátri-
truídas no nosso dia a dia, e mantermo-nos co São Pedro. In: FERLA, A. e FAGUNDES, S
atentos às diversas correntezas, pela frente, (Orgs.). O fazer em saúde coletiva: inova-
que ainda teremos de atravessar. ções à saúde do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Da Casa: Escola de Saúde Pública/RS,
2002. p. 133-142.
REFERÊNCIAS
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AMARANTE, P. e CAMPOS, F. N. (Orgs.). Saúde Idade clássica. Tradução de José Texeira
Mental e Arte: práticas, saberes e debates. Coelho Netto. 1. Ed. São Paulo: Perspectiva,
São Paulo: Zagodoni, 2012. 1978.

AMARANTE, Paulo. Saúde Mental e Atenção GUIMARÃES, Andréa Noeremberg. A prática


Psicossocial. 4. Edição revista e ampliada. em saúde mental do modelo manicomial
Rio de Janeiro: Fiocruz, 2015. ao psicossocial: história contada por pro-
fissionais de enfermagem. Dissertação de
BACHERLARD, G. A poética do espaço. Rio de Mestrado em Saúde Coletiva. Curitiba, UFPR,
Janeiro: Eldorado, 1972. PPG-Enfermagem, 2011. 212f.

BASAGLIA, Franco. Saúde/doença. In: AMARAN- RIO GRANDE DO SUL. Lei n° 9.716, 07 de
TE, P. (Org.). Saúde mental, formação e crí- agosto de 1992. Dispõe sobre a Reforma
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nível em: http://www.mprs.mp.br/dirhum/
BRASIL. Convenção sobre a Proteção e Promo- legislacao/id326.htm. Acesso em: 20 de no-
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rais. Disponível em:
ROTELLI, F.; DE LEONARDIS, O.; MAURI, D. De-
http://www.cultura.gov.br/politicas5//asset_pu- sinstitucionalização, uma outra via. In: _____.
blisher/WORBGxCla6bB/content/convencao-so- Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec,
bre-a-protecao-e-promocao-da-diversidade-das- 1990. p. 7-18.
-expressoes-culturais/10913. Acesso em 17 de
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106 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

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dos S. Abrindo portas e janelas: gerando en-
contros e afetos. Intervenções em reabili-
tação psicossocial. Porto Alegre: Prefeitura
Municipal de Porto Alegre /CAPS Cais Mental
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YASUI, SILVIO. A atenção psicossocial e os desa-


fios do contemporâneo: um outro mundo é
possível. Cad. Bras. Saúde Mental, Vol. 1, n.
1, jan.-abr. 2009 (CD-ROM). Disponível em:
www.cbsm.org.br/artigos/artigos/11_SilvioYasui.
pdf. Acesso em: 29 de novembro de 2015.
VIDA DO APOSTÓLICO PADRE ANTÔNIO VIEIRA:
UMA PERSPECTIVA RETÓRICA

Angelo Moreno Bidigaray Sanches1


Marcus De Martini2

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo apresentar uma análise retórica da primeira biogra-
fia do Padre Antônio Vieira (1608-1697). Publicada pelo também padre jesuíta e acadêmico da Aca-
demia Real da História Portuguesa André de Barros (1675-1754), Vida do Apostólico Padre Antônio
Vieira narra a trajetória de vida de Vieira, enfocando sua atuação Religiosa. Da Silva (2009) aponta
que obras como essa, dentro da perspectiva da Academia Real da História Portuguesa, têm a função
de legitimar o poder monárquico. Por outro lado, Oliveira (2011) explica que a produção de biogra-
fias era uma tática de preservação jesuítica. A partir desses pressupostos, mostraram-se, através
de Aristóteles (2012) e Reboul (2004), os recursos retóricos utilizados pelo autor para persuadir o
leitor da benevolência do biografado. Dessa forma, Barros se vale da retórica para corresponder aos
anseios das instituições as quais estava vinculado.
PALAVRAS-CHAVE: Antônio Vieira. Biografia. Retórica.

ABSTRACT: This work aims to present a rhetorical analysis of the first biography of Father Antonio
Vieira. Published by the also jesuit and academic of the Royal Academy of Portuguese History André
de Barros, Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira reports Vieira’s life, focusing on his religious
activities. Da Silva (2009) states that works like that, on the perspective of the Royal Academy of
Portuguese History, had the function of legitimizing the monarchical power. Alternatively, Oliveira
(2011) explains that the composing of biographies was a Jesuit preservation strategy. From these
assumptions, based on Aristotle (2012) and Reboul (2004), the rhetorical resources used by the
author to persuade the reader of Viera’s kindness were analyzed. Thus, Barros uses rhetoric to fulfill
the needs of the institutions to which he was affiliated.
KEYWORDS: Antônio Vieira. Biography. Rhetoric.

RESUMEN: El presente trabajo tiene por objetivo presentar un análisis retórico de la primera bio-
grafía del Padre Antônio Vieira (1608-1697). Publicada por el también padre jesuita y académico de
la Academia Real de la Historia portuguesa André de Barros, Vida do apostólico Padre Antônio Viei-
ra cuenta la trayectoria de vida de Vieira, centrándose en sus actividades religiosas. Da Silva (2009)
señala que obras como ésta, dentro de la perspectiva de la Academia Real de la Historia Portuguesa,
tienen la función de legitimar el poder monárquico. Por otro lado, Oliveira (2011) explica que la
producción de biografías era una táctica de preservación jesuítica. A partir de estos presupuestos,
se mostraron, a través de Aristóteles (2012) y Reboul (2004), los recursos retóricos utilizados por
el autor para persuadir al lector de la benevolencia del biografiado. De esta forma, Barros usa la re-
tórica para corresponder a los anhelos de las instituciones a las que estaba vinculado.
PALABRAS-CLAVE: Antônio Vieira. Biografía. Retórica.

1 Bacharel em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria.

2 Professor adjunto do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria.


108 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

A BIOGRAFIA narrado na biografia. Nota-se que Barros,


Antecedida por um introito longo, contendo apesar de estar vinculado a uma organização
introdução, notas e os pareceres dos censo- acadêmica que preconizava a modernização
res, Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira da escrita historiográfica, exprime o tema do
se subdivide em cinco livros. Os primeiros seu relato por meio de um clássico discurso
quatro livros se dedicam a contar de forma ornamental, semelhante ao que chamar-se-ia
linear a história de Vieira. O Livro V enume- hoje de “literário”. Percebe-se essa ornamen-
ra vários predicados do biografado e os fatos tação “literária” no modo como o biógrafo
que os comprovam. Cada parágrafo da bio- metaforiza Vieira através de imagens como
grafia é precedido pelo seu número equiva- a do “baixel”, da “Águia”, do “herói”, exprimin-
lente em algarismos romanos; há também do de forma cifrada o assunto da sua obra.
notas explicativas nas margens. Pode-se, então, inferir que a voz narrativa de
Barros, ao revelar o objeto do seu relato, André de Barros representa um meio termo
emite: entre a austeridade da linguagem científica,
devido a sua posição como historiador4, e a
Em termos concisos (como em mappa liberdade criadora da linguagem “literária”.
abbreviado) lerão aqui os curiosos huma Esse registro linguístico permeará toda a
temeroza alternativa da fortuna, ou para biografia. Os fatos narrados, através das pro-
melhor dizer da Providencia. Lerão hum vas que o estudioso apresenta (testemunhas,
possante báxel sulcando victorioso as on- cartas, documentos...), pretendem dar à obra
das; e logo quase soçobrado feitoludibrio um caráter imparcial, entretanto, é de consi-
dellas. Lerão huma Águia remontando-se derar-se que, pelo menos numa concepção
sobre as nuvens; e logo metida em trevas, moderna, a narração com excesso de ornatos
como se fosse crime fitar mais fortemente prejudica essa compreensão, aproximando
os ólhos no Sol. Lerão hum elevado enten- o relato do discurso literário. Dessa forma,
dimento, já tido por nescio, já venerado por tem-se uma obra um tanto híbrida. Por um
Oraculo; Lerão hum coração mayor que o lado, a narrativa é histórica porque se trata
mundo, provocado com afrontas; e em bre- de uma biografia baseada em provas e escri-
ve elogiado com todos os alentos da clamo- ta por um historiador, por outro se asseme-
rosa fama. Lerão hum espirito Apostolico lha a uma criação literária devido ao modo
divulgando a Fé entre a Gentilidade; e logo como os fatos são relatados. Isso se deve
pelos Christãos á vista dos mesmos Gentios ao fato de que a escrita da história, à época,
calumniado. Lerão hum raro Heróe adorna- assim como da poesia, tinham uma mesma
do de virtudes summas, por ellas invejado, base: a retórica.
e injustamente perseguido. Lerão emfim De posse desse estilo, Barros empreende
huma Vida, que correndo larga entre as ro- sua narração. Nos primeiros quatros livros, o
das da fortuna vária, descansou acclamada relato se dá de forma linear, começando com
por santa com o portentoso brado de huma o nascimento do jesuíta em Lisboa e finali-
língua do Ceo. Este o tosco desenho, do que zando com sua morte na Bahia. Assim sendo,
já entro a escrever. (1746, p.2-3)3. os livros de I a IV da biografia não se dedi-
cam a explicar eventos específicos da vida de
No excerto, o autor, através de uma série Vieira e nem mesmo estabelecem algum tipo
de imagens retóricas, expressa o que será
4 Pode-se averiguar a “posição” de André de Barros na Notícia Prévia
que precede o relato biográfico. O autor diz: “Sendo pois a verdade alma da
3 A letra “s”, quando ocorrida no início e meio dos vocábulos, é grafada Historia, não escrevemos couza, que não tirássemos de documentos dignos
com um caractere semelhante à letra “f”. Nas citações, esse símbolo foi trans- de toda a fé: o que não tinha para comnosco esta authoridade, totalmente o
formado no “s” atual. Ademais, optou-se por registrar-se o texto com a orto- deixámos, querendo antes calar ilustres glorias, que escrevêlas menos averi-
grafia original. guadas.” (1746, p.0).
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 109

de periodização da existência do biografado, nomes de indígenas5); a organização dos


mas servem para organizar, em alguma medi- missionários nas aldeias; a perseguição que
da, a narração. O Livro V foge desse parâme- sofria dos portugueses escravocratas; as ex-
tro, pois possui um tema definido: um elogio pedições pela floresta... Enfim, os fatos que
do religioso através de suas várias virtudes. considera relevantes ocorridos na missão.No
A última parte de Vida do apostólico padre Velho Mundo, ressalta a sua atuação em favor
Antônio Vieira delineia o prisma adotado por do catolicismo; a sua eloquência parenética;
Barros para construir sua narrativa. O livro é a admiração que despertava; o seu sofrimen-
composto de subtítulos, cada qual designan- to com doenças e acidentes; e o seu sábio ar-
do uma qualidade de Vieira. Como exemplos bítrio nos negócios da Coroa Lusitana.
desses subtítulos, pode-se citar: Sua oração; Ao sublinhar o aspecto religioso da vida
De sua fé; Zelo da fé contra o Judaísmo; Zelo do biografado, André de Barros relega a um
da fé contra o gentilismo; Seu amor, e servi- segundo plano a narração da vida pública e
ços à pátria; De sua esperança; Sua caridade das questões polêmicas que envolveram o je-
e amor de Deus; De sua religiosa pobreza, De suíta. Percebe-se isso quando se atenta para
sua obediência; Sua humildade... Ao refletir- a maneira díspar pela qual o biógrafo relata
se sobre o teor dessas denominações, perce- a atividade de Vieira no Brasil e o processo
be-se que todas elas têm um sentido comum. inquisitorial que seu objeto de pesquisa so-
São qualidades religiosas, que poderiam freu. Apenas para se descrever o Maranhão,
ser associadas à imagem do “bom cristão”. foram gastos 41 parágrafos6 do Livro I, nos
A grande maioria dos predicados elencados quais o autor enumera rios, vegetais, animais,
pelo biógrafo adotará esse tom durante todo minerais, povos e a contribuição jesuítica na
o longo Livro V, sinalizando, dessa forma, que conquista do estado. Em contraposição, o
a figura de Vieira que o autor concebe é a de episódio de Vieira perante o Santo Ofício, tão
um religioso exemplar, um homem dotado de rememorado e discutido hoje, foi descrito em
dons divinais, zeloso pela pátria e, sobretu- 13 parágrafos7 do Livro III. Esse trecho não
do, pela fé. descreve pormenorizadamente o andamento
O fato de haver um livro na biografia com do certame; prefere enfocar o sofrimento do
o propósito exclusivo de louvar seu objeto de biografado e o seu ânimo imperturbável. Des-
investigação constata a característica mais se modo, ao edificar a imagem sacra do padre
saliente da obra. Vida do apostólico Padre Antônio Vieira e ao preterir o relato de pontos
Antônio Vieira se trata de um texto laudati- controversos ou, a seu ver, desnecessários,
vo, no qual seu autor buscará, durante toda Barros solidifica o caráter panegírico da sua
a narrativa, provar a benevolência do jesuíta. narrativa.
Entretanto, conforme denotam os subtítulos Apesar de Vieira ser o personagem prin-
do quinto livro, Barros louva um tipo especí- cipal da biografia, existem determinados tre-
fico de benevolência. A de matriz devota, pia; chos, durante o relato, em que o autor deixa
visualizando, desse modo, em Vieira, quase em segundo plano a narrativa da vida do bio-
a imagem de um santo. Por causa disso, a grafado para narrar histórias relacionadas
perspectiva ressaltada na biografia é o perfil direta ou indiretamente com ele. Nesses tre-
religioso do jesuíta.
Na América Portuguesa, o biógrafo des- 5 “falou com cauteloso segredo ao Principal dos índios Joacaba Mitagay”
(BARROS, 1746, p. 98); “Contra tudo se animou, e offereceo heroicamente
taca a atuação do Padre Antônio Vieira nas hum índio Tobajará, chamado Francisco Mororeiba.” (Ibid., p. 218); “Tatu-
guaçú (Indio, que tinha hido ao Maranhão) era cabeça de huma destas esqua-
missões jesuíticas, detalhando seus compa- dras” (Ibid., p. 224).

nheiros de missão; os povos nativos do Ma- 6 Do parágrafo CXLV ao CLXXXVI.

ranhão e Grão-Pará (chegando a mencionar 7 Do parágrafo CLVII ao CLXX.


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chos, que se encontram, sobretudo, na parte Respondeo: Que não tinha S.Magestade tan-
em que Vieira atua como missionário, figu- tas Mitras em toda a sua Monarchia, pelas
ram os padres da Companhia de Jesus tra- quaes ele houvesse de trocar a pobre roupeta
balhando entre os índios e mostrando seus da Companhia de JESUS; e que se chegasse a
esforços em favor da pátria e da Fé. ser tão grande a sua desgraça, que a Compa-
Nos parágrafos que tratam da descrição nhia o despedisse, da parte de fora de suás
do Maranhão, por exemplo, Barros narra a portas senão apartaria já mais, perseveran-
atuação dos padres da Companhia de Jesus do em pedir ser outra vez admitido nella, se-
Lopo do Couto e Benedicto Amodey, na res- não para Religioso, ao menos para servo dos
tauração de 1642 do Maranhão, reconhecen- que o erão. (1746, p. 25, grifo do autor).
do-os tacitamente como os responsáveis por
levar a cabo essa façanha8. No Livro II, o bió- Embora o escritor de Vida do Apostólico
grafo escreve sobre as conquistas dos padres Padre Antônio Vieira ressalte o caráter reli-
Francisco Velozo e Tomé Ribeiro entre os gioso do biografado, não foi esse o fator que
índios Tupinambás, Cátingas, Gárajus e Po- diretamente consagrou o jesuíta até os dias
tiguares9; relata o trabalho missionário do atuais12. Foram seus sermões que, indepen-
Padre João de Sotto-Mayor na guerra contra dentes de sua função religiosa, tornaram-se
os Nhengaíbas e, na Jornada do Ouro, entre uma das melhores manifestações da oratória
os índios Pacajás e Pirapés10; narra o desve- barroca. Entretanto, dentro de sua propos-
lo e sofrimento dos Padres Antônio Ribeiro ta, Barros exalta constantemente o entendi-
e Pedro Pedroza na conquista dificultosa da mento e a eloquência de Antônio Vieira. Foi o
Serra de Ibiapaba11; entre outras histórias primeiro a relatar o mítico caso do “estalo de
semelhantes. Vieira”, segundo o qual, ao fazer sua tradicio-
Nesses trechos, Vieira aparece de for- nal oração à Mãe de Deus, o religioso sentiu
ma coadjuvante, celebrando as conquistas um forte impacto na cabeça, despertando-se,
dos missionários ou organizando os padres a partir daí, seu intelecto engenhoso. Expri-
nas missões. O espaço dado à narrativa dos me que seus sermões comoviam as massas,
serviços dos filhos de Santo Inácio denota a despertando admiração e inveja. É o caso
intenção de André de Barros de não louvar do Sermão da Sexagésima. Por esses termos,
apenas a figura de Antônio Vieira individu- Barros narra os efeitos da loquacidade de
almente, mas a da Companhia de Jesus como Antônio Vieira, na ocasião:
um todo. Até mesmo quando o biografado é o
personagem central, Barros não se exime de Logo na Dominga da Sexagésima (que então
proclamar a benevolência da sua ordem re- foy a 19 de Fevereiro de 1655) appareceo no
ligiosa. Exemplo claro disso é o episódio em púlpito o Apostolico Varão; e como Mestre
que Vieira é suspeito de tentar “introduzir de Pregadores Evangelicos, e agora com os
novidades na Companhia de Jesus”. Barros, exercicios de Missionario, soltou aquela por-
ao falar sobre o caso, transcreve um escrito tentóza Oração de Semen est verbum Dei, as-
de Vieira em que se lê: sombro de facundia, de sabedoria, e de zelo;
mas esta milagrosa constellação compósta
de luzes, e de chammas, ao mesmo passo,
8 “He certo, que não houve no Maranhão, quem não confessasse, que a
restauração daquele Estado se devia a dous generosos Filhos de Santo Igna- que suspendeo toda a sabedoria, ferio os
cio, á indústria do Padre Lopo do Couto, e ás orações, e penitencia do Padre
Benedicto Amodey, conhecido, e venerado por santo.” (BARROS, 1746, p.98) ólhos da inveja.(1746, p. 164, grifo do autor)
9 Do parágrafo CXXIV ao CXLIV.
12 Em decorrência disso, percebe-se o porquê da biografia de André de
10 Do parágrafo CXLV ao CLXXXII. Barros não ter tido um papel fundamental para a formação da imagem que
se tem sobre Vieira atualmente, contando apenas com uma edição e sendo
11 Do parágrafo CLXLIX ao CCLI. mencionada raramente.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 111

O estilo ornado e retórico da escrita do mento-chave no mito necessário para dar à


biógrafo possui uma finalidade: persuadir o ordem seu sentido de localização no esquema
leitor de que o jesuíta não é de um religioso maior das coisas” (O’MALLEY, 2004, p. 107).
qualquer. Embora Barros não atribua o pre- Como se percebe, a Companhia de Jesus,
dicado a Vieira, a representação feita é como em seus anos iniciais, já se valia da narrativa
a de um santo: imune a falhas, o biografado é historiográfica para seu proveito. A Autobio-
um indivíduo dotado de faculdades divinais grafia de Inácio de Loyola é a precursora do
que sofre e triunfa penitentemente por Por- que pode ser considerado de historiografia
tugal e pela fé católica. Em termos sucintos, jesuítica. Durante os séculos que se seguiram,
pode-se dizer que esse é o Antônio Vieira os jesuítas produziram relatos da vida dos
que Barros apresenta. Retrato, talvez, não membros mais destacados da Companhia,
crível hoje, mas totalmente compreensível sempre com o propósito de zelar por sua or-
para um sujeito que é membro da Academia dem religiosa. É o que explicita Oliveira:
Real da História Portuguesa e da Companhia
de Jesus. Para se entender, então, a gênese da Voltada para si própria, a historiografia je-
primeira biografia de Vieira, faz-se necessá- suítica é celebrativa. Em grande parte, as
rio refletir a respeito dessas instituições. obras históricas foram concebidas e escri-
tas em momentos comemorativos para a
AS INSTITUIÇÕES Companhia. Nesses momentos o espírito
A Companhia de Jesus, no quadro eclesiásti- de certo passado retorna, pelas mãos dos
co dos quinhentos, diferenciou-se das outras historiadores educados por santo Inácio,
ordens religiosas. Enquanto, em geral, as de- para exorcizar e/ou glorificar o presente
mais ordens eram de caráter contemplativo (2011, p. 269)
e monástico, os jesuítas se espalhavam pelo
mundo para disseminar o Evangelho. Confor- Desse modo, quanto se encara a produção
me O’Malley, os jesuítas diferiam dos outros da Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira pelo
seguimentos religiosos claramente “porque prisma da filiação do autor à Companhia de
sua ‘melhor casa’ eram suas peregrinações e Jesus, percebe-se que a finalidade de exaltar o
suas ‘missões’, isto é, suas caminhadas para os Padre Antônio Vieira é, ao cabo, uma tentativa
ministérios” (2004, p.110). Essa diferenciação de louvar a Companhia e, consequentemen-
rendeu problemas aos Filhos de Santo Inácio. te, defendê-la dos seus algozes. Assim sendo,
Eram acusados de franciscanos espirituais, entende-se o motivo de Barros preterir algu-
chamados de padres reformadores, confun- mas vezes a narração da vida de Vieira para
didos com teatinos, denominados apóstolos, relatar extensamente as façanhas de outros
destituídos, assim, de uma identidade. religiosos da ordem e o porquê do esforço do
O primeiro passo dado para a criação de biógrafo em envolver sempre a Companhia de
uma identificação jesuítica foi a composição Jesus nos elogios que tece ao jesuíta14.
da Autobiografia de Inácio de Loyola13. Os A outra instituição a se levar em conside-
membros da Companhia acreditavam que ração na criação de Vida do Apostólico Padre
olhando para a história do fundador era pos- Antônio Vieira é a Academia Real da Histó-
sível vislumbrar-se a essência de ser jesuíta. ria Portuguesa. Conforme explica Da Silva
Desse modo, “a história de Inácio foi um ele- (2009), um dos aspectos que singularizavam
a Academia dentre as agremiações que exis-
13 A autobiografia de Inácio de Loyola foi ditada em três períodos entre
1553 e 1555 ao padre português Luís Gonçalves da Câmara. É de ressaltar-se tiam na Europa eram o patrocínio e o apoio
que a Autobiografia não é, ao todo, um relato fiel das palavras do fundador
da Companhia, mas uma paráfrase delas. Na maior parte do período, Câmara
ouvia previamente as narrações das memórias de Inácio e só posteriormente 14 No subtítulo “AMOR, que teve há Companhia de JESUS”, do Livro V, vê-se
escrevia algumas notas do que ouvira. claramente a associação que Barros faz entre Vieira e a Companhia de Jesus.
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do rei D. João V. O mecenato real prestou o au- André de Barros, portanto, erige a sua
xílio financeiro para os acadêmicos e facilitou narrativa biográfica com o fim de satisfazer
todos os trâmites necessários para o registro o desejo dessas duas instituições. Primei-
da história portuguesa. Através do apoio de ramente, corresponder ao seu papel de his-
D. João V, os acadêmicos tinham acesso faci- toriador da Academia Real da História Por-
litado aos documentos e arquivos do reino e tuguesa e, através do relato da vida de um
não necessitavam passar pelo crivo de outros grande homem português, expor a glória da
censores a não ser os da própria instituição. nação portuguesa. Em segundo lugar, como
Como se pode deduzir, o patrocínio de padre da Companhia de Jesus, compor uma
D. João V à Academia não foi simplesmente obra em que se veja espelhada a benevolên-
motivado pela interseção de Manuel Caetano cia da Companhia através das ações de um
de Sousa, idealizador da instituição, ou pelo grande homem, preservando, assim, a insti-
gosto real da ciência histórica. Segundo Da tuição de ataques que possa sofrer. O homem
Silva, o apoio do rei delimitou a escrita histo- escolhido para servir a essas necessidades é
riográfica da agremiação que deveria, então, Antônio Vieira, e o instrumento para que a
zelar através de suas produções pela manu- obra cumpra seu fim é a retórica.
tenção da legitimidade e soberania do reina-
do de D. João V: RETÓRICA
É possível leitores modernos de Barros criti-
O patrocínio da Academia Real da História carem seu estilo de escrita. Argumentariam
Portuguesa, combinado com as demais tá- que seu registro, muito empolado e pompo-
ticas de afirmação da figura real, expressou so, não combina com a imparcialidade neces-
uma estratégia de construção imagética do sária para a execução de uma tarefa preten-
monarca. Em conjunto com as práticas de samente científica, como é a escrita da his-
exaltação da figura real, a reflexão historio- tória. Entretanto, a objetividade do registro
gráfica na academia esteve completamente historiográfico é uma premissa relativamen-
vinculada à simbologia de legitimação da te atual. Até o advento do Romantismo16, vi-
soberania formando, com os demais gê- goravam preceitos retóricos que norteavam
neros retóricos de representação do rei, a a composição dos textos.
unidade do discurso de consagração régia. É Aristóteles, na obra intitulada Retóri-
17
(DA SILVA, 2009, p. 207) ca , que sistematiza a técnica e a define:
“entendamos por retórica a capacidade de
Dessa forma, delimitaram-se as linhas de descobrir o que é adequado a cada caso com
atuação dos acadêmicos. As obras produzi- o fim de persuadir” (2012, p.12). Com isso,
das deveriam atestar os sucessos passados Aristóteles entende que a retórica não cria
e presentes dos reinados portugueses, con- a persuasão, como afirmavam os sofistas18,
tribuindo, assim, para a exaltação da figura mas é capaz de distinguir os métodos para se
real. Como a primeira biografia do Padre An- chegar ao convencimento.
tônio Vieira foi publicada já no período final Conforme o filósofo, caso alguém deseje
da vida de D. João V, não se vê uma tentativa fazer um discurso retórico, deve, antes de
explícita do autor de louvar o rei especifica- tudo, percorrer algumas etapas. Pelas desig-
mente. O que ocorre é uma exaltação da pá-
16 O Romantismo introduziu a ideia de originalidade, segundo a qual o au-
tria através do grande desvelo do jesuíta pela tor não estaria limitado pelos preceitos de imitação clássicos, mas livre para

sua terra natal15.


produzir sua obra conforme seus próprios critérios.

17 Em grego, Τέχνη ρητορική.

15 No subtítulo “SEU AMOR, E SERVIÇOS á pátria”, do Livro V, percebe-se 18 Mestres da eloquência que vendiam argumentos pretensamente irrefu-
Barros louvando à pátria ao mesmo tempo que elogia Antônio Vieira. táveis.
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nações latinas, elas são chamadas inventio, dor, nesse caso, elogia a virtude ou censura
dispositio, elocutio e actio. Na invenção (in- os vícios de determinado fato presente. Atra-
ventio), o orador buscará compreender a ma- vés da amplificação, argumento típico desse
téria em questão e elaborar todos os argu- gênero, quem profere o discurso intentará
mentos possíveis que possam ser utilizados vituperar ou enaltecer a matéria abordada.
no discurso. Na disposição (dispositio), o au- Como já constatado, Vida do Apostólico
tor deve ordenar os argumentos nas partes Padre Antônio Vieira se trata de um texto
da oração. Conforme explica Reboul (2004), laudativo. André de Barros, o autor, elogia
os autores propuseram vários padrões divi- o engenho e as virtudes religiosas de Vieira,
sórios do discurso; o mais clássico deles se assemelhando-o a um santo. Dessa forma,
divide em quatro partes: exordium, narratio, pode-se facilmente classificar o escrito do
confirmatio e peroratio19. Na elocução (elo- biógrafo no gênero epidítico.
cutio), deve-se redigir o discurso. Por fim, na A imagem sacralizada de Antônio Vieira
ação (actio), o orador executa a sua fala. condiz perfeitamente com o conteúdo pres-
Aristóteles prevê que o discurso, para ser crito à retórica panegírica. Aristóteles prevê
verossímil, deve vir baseado em provas. Dessa o belo como o fim do discurso epidítico, argu-
forma, o filósofo distingue dois tipos de provas. mentando que o louvor à virtude se encaixa
A primeira categoria são as provas não técni- nessa finalidade. Por virtude, o filósofo defi-
cas20. Essas provas não são produzidas pelo ne “o poder de produzir e conservar os bens,
orador. Exemplo: testemunhos, documentos, a faculdade de prestar muitos e relevantes
confissões. O outro tipo de provas são as téc- serviços de toda a sorte e em todos os casos”
nicas21. Essas provas são criadas pelo autor. A (2012, p. 46). Como se entende, portanto,
persuasão por provas técnicas é feita a partir o esforço do acadêmico em demonstrar as
de três fatores. Do ethos, que é o caráter do virtudes de Vieira circunscreve a biografia
orador; do pathos, que é a disposição emo- no gênero epidítico e expressa a beleza da
cional do ouvinte; e do logos, que é o conteú- matéria abordada, justificando, assim, o seu
do do discurso em si. discurso laudativo, pois, conforme Aristóte-
Todos esses preceitos são aplicáveis às ora- les, “o belo é o que, sendo preferível por si
ções retóricas. Aristóteles divide esses discur- mesmo, é digno de louvor” (2012, p. 45).
sos em três gêneros: deliberativo, judicial e André de Barros, na biografia, apresenta
epidítico22. No discurso deliberativo, o orador, inúmeros exemplos do tipo de concepção de
perante uma assembleia, aconselha ou desa- virtude que Aristóteles defende. Vejam-se os
conselha sobre o conveniente ou prejudicial a trechos: “Como era incomparavel o seu zelo
respeito de um tema futuro. Os argumentos, em servir a pátria, não perdia instante, nem
nesse caso, são os exemplos. O discurso ju- lhe fugia dos olhos couza, que pudesse con-
dicial é proferido diante um tribunal. Nele, o tribuir á suá conservaçao, e gloria” (BARROS,
orador acusa ou defende baseado em fatos 1746, p. 33) e “Resolveose com coração, e
passados. Os argumentos utilizados aqui são desengano heróico a cortar por tudo de hum
os entimemas23. O discurso epidítico é exe- golpe, trocando a Corte pelas brenhas, e pas-
cutado na presença de um espectador. O ora- sar-se, e dedicar-se para sempre ás Missões
do Maranhão.” (BARROS, 1746, p. 53). Como é
19 Ou conclusio. perceptível nos excertos, o biógrafo demons-
20 Ou inartísticas. tra a solicitude de Vieira em cuidar dos negó-
21 Ou artísticas. cios da pátria e de Deus. O caráter prestativo
22 Ou, respectivamente, político, forense e demonstrativo. do jesuíta é um exemplo de como Barros ade-
23 Silogismo retórico. re à concepção aristotélica de virtude, que é a
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capacidade de prestar serviços. Ao adotar es- Através da captatio benevolentiae, André


ses preceitos, o biógrafo associa o seu relato à de Barros articula dois fatores que servem
teoria retórica de Aristóteles, categorizando, como provas técnicas, o ethos e o pathos.
então, a sua narrativa no gênero epidítico. Ao colocar-se numa posição de humildade
Os dois primeiros parágrafos do Livro ante ao seu relato e exprimir que compõe
I consistem na primeira parte retórica do a narrativa para corresponder aos “desejos
discurso panegírico de Barros, o exordium. da pátria”24, Barros corresponde ao decoro
Essa parte tem como função introduzir o as- clássico do bom historiador. Assim sendo, o
sunto e tornar o auditório dócil e atento ao caráter do orador, o ethos, toma um valor po-
discurso. Em seu exordium, André de Barros sitivo diante dos ouvintes, o que lhe outorga
expressa a grandeza do tema de sua obra, ex- mais credibilidade, e torna, por conseguin-
primindo que até aquele momento não ouve te, a mensagem mais persuasiva. É isso que
ânimo capaz de aventurar-se a contar a vida afirma Aristóteles: “Persuade-se pelo caráter
do excepcional Vieira: quando o discurso é proferido de tal maneira
que deixa a impressão de o orador ser digno
Detiverão-se até agora os animos, e tremê- de fé” (2012, p. 13).
rão as penas desta escritura; ou medrozos Como se percebe, o objetivo de apresentar
da variedade dos successos, ou da grandeza um ethos positivo é mexer com a disposição
do sugeito. Julgárão que só o silencio era o emocional dos ouvintes, ou seja, com o pa-
mayor brado do imortal VIEYRA; ou que a thos. Suscitando a benevolência, através da
escrever-se de hum Varão tao sublime de- captatio benevolentiae, o autor tenta trans-
via ser com os rayos do Sol, ou com a sua formar o estado emotivo inicial do auditório
penna. Nao merecia menos estatuario, que para um que lhe é benéfico. Outra forma de
Phidias, nem menor pincel, que o de Apel- alcançar a disposição dos ouvintes que Bar-
les, Portuguez tao illustre. Nós porêm, não ros utiliza está implícita no trecho em que
para dar luz, mas para a receber do mesmo expressa que Portugal é uma região feliz por
argumento, offerecemos aos desejos da pá- sempre produzir homens como Vieira. Pro-
tria este pequeno retrato, que dirá em mu- vavelmente, os principais leitores da biogra-
das vozes ao Universo ser a Lusitania região fia serão os portugueses. Desse modo, quan-
tão feliz, que em todas as idades costuma do se elogia a nação lusitana, o ouvinte por-
produzir homens gigantes. (1746, p. 2) tuguês, pode sentir-se, indiretamente, agra-
ciado por participar de um povo tão distinto,
O acadêmico, no trecho, demonstra que, e, por causa dessa disposição emocional, dar
assim como os demais historiadores, não tem mais credibilidade ao orador e ao discurso.
o interesse de ilustrar com suas palavras as Aristóteles já previa esse recurso: “Nos dis-
ações sublimes do grande Vieira, mas que, ao cursos epidíticos, é necessário fazer o ouvin-
escrever sobre ele, busca apresentar um breve te pensar que partilha do elogio” (2012, p.
retrato, recebendo, através do relato, as luzes 220). Por fim, nota-se o apelo de Barros ao
advindas de uma vida tão eminente. Essa pos- pathos no segundo parágrafo25 do exordium.
tura humilde em que Barros se coloca perante Como explica Reboul, é no exordium que se
a tarefa de narrar a vida do jesuíta é tipicamen- deve despertar a atenção do público. Barros
te retórica; chama-se captatio benevolentiae. faz isso no segundo parágrafo através do uso
Conforme explica Aristóteles, o orador, atra-
24 Curtius (2013) explica que, quando um autor emite que o relato só foi
vés desse recurso, busca obter a benevolência feito por obrigação ou para satisfazer os desejos de alguém, ele está valendo-
se de um topos (lugar-comum) clássico de falsa modéstia largamente utiliza-
do público, tentando tornar, assim, o auditório do na idade média.

mais receptível ao seu discurso. 25 O parágrafo referido já foi citado na página 2.


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anafórico do verbo “Lerão” no início das sen- verdadeiro Religioso da Companhia de JE-
tenças. Nesses períodos, o biógrafo enuncia SUS, vestido (por necessidade do negocio, e
de várias formas diferentes o que será narra- do paiz ) em trajes de secular luzidamente,
do, mostrando todas as dificuldades e aven- vivendo, e tratando-se entre Cavalheiros
turas que Vieira enfrentará. Esse parágrafo illustres, assistindo ás funções politicas, a
se assemelha aos trailers dos filmes moder- que o precisava o tempo, e mais circums-
nos. Busca despertar a emoção do leitor para tancias, assim triunfava de todo o vao, e
a história que ainda não leram, suscitando mundano, que com grato rendimento se es-
assim sua atenção para o que será narrado. cusou do exercício de Ministro publico do
Após Aristóteles, autores propuseram no- seu Principe, dando por, causa ser huma tal
vos padrões divisórios do discurso. Alguns occupação couza muito alhêa da humilda-
desses padrões incluíam uma parte chamada de, que professava. (BARROS, 1746, p. 34)
propositio. A propositio se dá dentro do exor-
dium e enuncia qual o tema que será aborda- Conforme explica Aristóteles, a amplifica-
do no discurso. Quando se observa o primeiro ção consiste em narrar os fatos de maneira
parágrafo da biografia, nota-se que as pri- que as circunstâncias envolvidas contribuam
meiras sentenças já compõem a propositio. O para aumentar o aspecto positivo ou negati-
trecho sintetiza bem os principais elementos vo do tema do discurso. No trecho supracita-
que serão louvados na biografia: Antônio Viei- do, pode-se perceber que essa é a intenção
ra, Portugal e a Companhia de Jesus. Veja-se: de Barros. O excerto narra basicamente que
Vieira recusou um cargo importante ofereci-
Proponho ao Mundo hum dos mayores ho- do pelo rei D. João IV. Entretanto, essa men-
mens de Portugal, e proponho a Portugal o sagem simples, através da retórica panegíri-
mayor homem, que em muitas idades ele ca do biógrafo, é reportada de forma que o
deo ao Mundo. O Padre ANTONIO VlEYRA, ato dê destaque à virtude de Vieira.
gloria da nossa Nação, inveja das estranhas, Barros, seguindo o preceito aristotélico,
lustre immortal da Companhia de JESUS, he articula elementos circunstanciais para que
o elevado assumpto desta Historia. (BAR- seja amplificado o caráter positivo de Vieira.
ROS, 1746, p. 1) Dessa forma, o biógrafo alude que o cargo
que lhe foi oferecido foi graças a sua boa con-
Por se tratar de uma biografia, a narratio, dução dos negócios portugueses; menciona
exposição dos fatos, é a parte retórica com que Vieira, como um verdadeiro religioso da
maior extensão. Inicia no terceiro parágrafo Companhia de Jesus, é moderado e humilde;
do primeiro livro e termina no fim do Livro que o jesuíta só estava naquela posição des-
IV. Nessa porção, Barros trabalha mais o lo- tacada de embaixador por causa de ordens
gos que o ethos e o pathos, valendo-se para superiores; que o renunciar à oportunidade
isso das provas não técnicas e do argumento é triunfar contra o que é vão e mundano. To-
típico do gênero epíditico, a amplificação. das essas circunstâncias são narradas com
o fim de amplificar o caráter virtuoso de
Quanto ao demais da cõmissao, que del Rey Vieira, demonstrado no momento em que o
levava naquella Corte, elle a tratou com tão jesuíta recusa a oferta do rei. É dessa forma
fublime comprehensao, e conveniencias que, durante toda a narratio, Barros articula
de Portugal, que S. Magestade lhe mandou o logos. Amplifica com elementos circuns-
carta de crença, para ficar no lugar de Fran- tanciais a virtude de Vieira, para fortalecer a
cisco de Souza Coutinho: mas aquelle Gran- própria narração dos fatos, tornando, assim,
de homem, throno excelso da moderação, e o discurso mais persuasivo.
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Outra forma de amplificação consiste na Antônio Vieira. Dessa forma, Barros aproxi-
comparação. Aristóteles expressa que “se ma o jesuíta de um parâmetro clássico con-
nele [no que se é louvado] não se encontrar sensual de sabedoria, tentando outorgar ao
matéria suficiente para o elogio, é necessário seu biografado os predicados do filósofo e,
compará-lo com outros” (2012, p. 51). Con- consequentemente, produzir um argumento
forme esse preceito, então, quando não for que comprove a sua tese. Outra comparação
possível evocar fatos circunstanciais para o retórica, embora indireta, dá-se no momento
louvor do objeto do discurso epidítico, é ne- em que Barros intitula os negócios de Vieira
cessário executarem-se comparações. Esse de campanhas de Minerva. Mais uma vez, o
recurso é muito utilizado na primeira bio- acadêmico busca um referencial clássico de
grafia do Padre Antônio Vieira: sapiência, no caso a deusa latina da sabedo-
ria, para redimensionar o tamanho do enten-
Aqui se remontou a Águia sobre si mesma. dimento do jesuíta. As comparações abun-
Vio-se nas escolas hum novo Aristoteles. A dam na biografia, mesmo Barros encontran-
presteza, com que percebia as difficuldades, do matéria para elogio.
a agudeza, com que as penetrava, a subtile- Além das provas técnicas, produzidas
za, e viveza, com que arguia, foy assombro através da amplificação, o biógrafo se vale
nas aulas da América, e o fora nas mais ce- de provas não técnicas. Aquelas que, confor-
lebradas de Europa. Não pudemos alcançar me o Estagirita, são elementos exteriores ao
casos particulares de fuás victorias nestas discurso, como testemunhos, confissões, do-
campanhas de Minerva, em que muitos en- cumentos, mas que servem ao propósito da
genhos poderião hoje contar por triunfo persuasão:
ter contendido, e cedido ao incomparável
de VIEYRA. Jazem debaixo do pezo de hum Assim disse o Grande, e fogozo Chrysosto-
seculo tantas luzes. (BARROS, 1746, p. 16) mo de Portugal: e depois de outra diversa
reflexão rompeo neste ardentissimo cla-
O fragmento acima faz referência ao episó- mor: Não se envergonhe já a Barra de Ar-
dio em que Vieira é encarregado de assumir gel, de que entrem por ella os Sacerdotes de
a disciplina de filosofia do Colégio da Com- Christo cativos, e prezos; pois o mesmo se vio
panhia. O biógrafo expressa que o jesuíta se em nossos dias na Barra de Lisboa. Oh que
destacou pela sua sabedoria no desempenho bem empregado prodigio fora neste caso,
da função. Entretanto, faz apenas menções se fugindo daquela Barra o mar, e voltado
genéricas sobre esse desempenho, sem es- atrás o Tejo, lhe pudéssemos dizer, como ao
pecificá-los, pois, como admite ao final, não rio, e ao mar, da terra, que então começava
pôde averiguar pormenorizadamente os su- a ser santa: Quid est tibi mare, quod fugisti,
cessos. Nesse sentido, Barros aplica o precei- & tu Jordanis, quia conversus es retrosum?
to aristotélico de amplificação: não achando E prosseguindo este sentido affecto com a
matéria para o elogio, passa a compará-lo mesma energîa, pouco depois concluîo com
com personalidades e símbolos consagra- temeroso brádo: Desengane-se porêm Lis-
dos. A primeira comparação se dá na forma boa; que o mesmo mar lhe está lançando em
de metáfora. Fazendo alusão à águia, o aca- rosto o sofrimento de tamanho escandalo;
dêmico compara o elevado entendimento de e que as ondas, com que escumando de ira
Vieira à ave que é tradicionalmente conheci- bate ás suas prayas, são brádos com que lhe
da por sua altivez e visão aguçada. Ainda por está dizendo as mesmas injurias, que antiga-
meio de metáfora, a segunda comparação mente a Sydonia: Erubesce Sydon, ait mare.
retórica coloca no mesmo nível Aristóteles e (BARROS, 1746, p. 336, grifo do autor).
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 117

O fragmento acima consiste em um trecho tulos. A grande maioria deles enumera uma
de um sermão que Vieira prega na Capela qualidade de Vieira26. Após cada subtítulo, o
Real logo após ser expulso do Maranhão com autor apresenta um pequeno texto contendo
outros padres. Barros, ao narrar esse episó- os fatos que comprovam a veracidade do pre-
dio, expressa o tamanho da violência desse dicado do jesuíta. Além disso, eventualmen-
golpe. Para atestar, assim, como foi terrível a te, Barros refuta críticas feitas ao biografado.
expulsão dos filhos de Santo Inácio do Mara- Dessa forma, como se trata de comprovar
nhão, o biógrafo transcreve o testemunho de através de provas factuais, o convencimento
um dos padres que viveu essa situação. Des- na confirmatio se dá principalmente pelo lo-
sa forma, através das palavras de uma das gos, ou seja, pelo discurso que, por parecer
vítimas, fica comprovada a tese do acadêmi- verossímil, torna-se mais persuasivo.
co. Esse testemunho de Antônio Vieira é um
exemplo da utilização de provas não técnicas Sendo o Padre ANTONIO VIEYRA dotado de
na argumentação do discurso epidítico. tão relevantes talentos, ainda mais os real-
No decorrer de toda a narratio, há a trans- çou com os repetidos actos, em que se mos-
crição de muitos testemunhos, cartas e ou- trou, ou escondeo humilde. Debaixo da ter-
tros documentos que servem como provas ra poz a natureza o ouro; no profundo do
não técnicas. Essas provas, juntamente com mar as pérolas. Quando começou a parecer
as provas discursivas obtidas através da am- sublime o seu engenho, logo ao entrar nas
plificação, são articuladas por Barros com o escólas, elle (como deixámos escrito) se
fim de fortalecer o logos, isto é, o conteúdo confessava rude discipulo dos companhei-
do próprio discurso, outorgando, dessa for- ros. Jactancia sua nunca se ouvio na sua
ma, mais poder de persuasão à oração. boca: mas sendo obrigado em justa defeza
Quando o Livro IV chega ao seu termo, fin- a fallar de si, portou-se com aquelles ter-
da-se a narração da vida do Padre Antônio mos, em que se fecha a modestia, que são
Vieira. Uma biografia comum encerraria aí. os da pura, e despida verdade. Porisso não
Contudo o relato de André de Barros inclui temos por certo, nem ainda por provavel,
mais um livro. O quinto livro, como já referido, o que refere certo Escritor moderno dis-
consiste no levantamento de várias virtudes séra o Padre Vieyra, e he: que fallando de
do jesuíta e os fatos que as comprovam. É uma hum Pregador (o qual nomêa, e então era
parte explicitamente laudativa que vem con- celebrado na Corte) que se tivera melhor
firmar as virtudes já indicadas na narratio. expressao no dizer, só este o igualaria. Não
O intervalo que compreende o início do cabe este dito na boca de hum Varão tão
Livro V até o parágrafo CCLXXV se denomi- modesto, como o Padre ANTONIO VIEYRA.
na retoricamente confirmatio. Segundo Re- (BARROS, 1746, p. 611-612)
boul, a confirmatio consiste em um conjunto
de provas que vêm acompanhadas por uma O trecho acima, na biografia, é precedido
refutação dos argumentos do adversário, co- pelo subtítulo Sua Humildade. No primeiro
nhecida por confutatio. Dessa forma, a con- período, Barros enuncia a virtude de Vieira,
firmatio é a confirmação através de provas amplificando o sentido de sua afirmação ao
dos pressupostos da narratio, sucedida pela exprimir que seus “relevantes talentos” fi-
refutação dos oponentes. cam mais destacados por causa do seu porte
Em Barros, o procedimento da confirma- humilde. Logo em seguida, utiliza também
tio é semelhante ao da narratio. Percebe-se
26 Alguns poucos subtítulos não se referem diretamente a predicados de
isso na organização do Livro V. A quinta par- Vieira. Exemplo: ALTO CONCEITO, E ESTIMAÇÃO, que fizérão do Padre António
Vieyra claríssimos Sugeitos; ABRE-SE A SEPULTURA do Padre António Vieyra, e
te da biografia se subdivide em vários subtí- caso notável, que ali succede; HE PERSEGUIDO EM seus escritos.
118 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

como prova técnica a comparação da humil- dos argumentos, a parte mais fortalecida.
dade do jesuíta com a terra e o mar, que guar- Nesse sentido, a confirmatio objetiva provar
dam tesouros. Logo após, emprega uma pe- explicitamente as virtudes já observadas na
quena narração. Afirma que Vieira, mesmo narratio.
sendo superior intelectualmente, conside- A última parte do discurso de Barros é a
rava-se “rude discípulo dos companheiros”. peroração. Inicia no subtítulo REFLEXÃO DO
Através dessa narração amplificada, Barros AUTHOR e termina com o fim do Livro V30.
tenta produzir um argumento que comprove Aristóteles prevê que na peroratio o orador
a humildade de Vieira. Depois de produzido deve recapitular a matéria e mover as paixões
esse argumento, passa à confutatio, isto é, ao seu favor, amplificando ou minimizando a
à refutação das objeções alheias. Alega que gravidade dos fatos já narrados. A peroratio
Vieira nunca se exaltou, mas, se algo seme- de Barros, nesse sentido, é bem peculiar. Ela
lhante aconteceu, é porque foi obrigado a fa- não aborda em particular o pathos e o ethos,
lar a verdade sobre si. Desse modo, Barros elementos mais trabalhados nessa parte, mas
afirma que o determinado dito atribuído a dá um panorama da família do Padre Antônio
Vieira, em que se proclama quase inigualá- Vieira. Entretanto, é possível notarem-se al-
vel, é totalmente despido de credibilidade. guns elementos típicos da peroratio no fecho
Esse episódio exemplifica bem como se de Barros:
desenvolve a argumentação na confirmatio.
Barros exprime a qualidade de Vieira; faz Este foy aquelle Grande VIEYRA, de quem
uma pequena narração de fatos amplificados até aqui escrevemos, digno Heróe de outro
como comprovação da virtude e, a partir dis- Historiador, e cujas virtudes, e façanhas
so, refuta as críticas que possam haver. Outro merecião mais elevada penna. A cantarem-
elemento utilizado largamente na confutatio, se suas proezas a números atados, nem os
principalmente na parte dos escritos de Viei- Homéros Gregos, nem os Virgilios Latinos
ra, é o parecer de autoridades. Essas provas tinhao éstro digno de tao heroico assump-
não técnicas ocorrem várias vezes no Livro to. A gravissima facúndia de Livio, e a ga-
V. Pode-se citar: a avaliação do Padre Fr. Ja- lhardia de Sallustio podião ter inveja a este
cyntho Sanctaromana, do Padre André Semi- argumento. (BARROS, 1746, p. 663)
ri e do Padre Carlos Antônio Casnedi sobre
a Clavis Prophetarum27; o parecer do Padre Os dois primeiros parágrafos da perora-
Fr. Raymundo Capizuchi, do Padre Annibal tio consistem numa explicação de Barros do
Adami, do Padre D. Rafael Bluteau, e da Ma- motivo de ter empreendido a narração da
dre D. Feliciana Maria de Milão dos discursos vida do Padre Antônio Vieira. Na sua expli-
das cinco pedras de Davi28; a apreciação do cação, o autor toma uma posição humilde
Padre Bartholomeu do Quental sobre o tomo perante a sua obra. Afirma que as façanhas
do Rosário e sobre o caráter de Vieira29; en- de Vieira mereciam ser escritas por um his-
tre outros pareceres. toriador mais habilitado. Esse procedimento
Como é perceptível, na confirmatio, o mo- é semelhante ao que acontece no exordium.
vimento de confirmação ocorre junto com o Barros adota um caráter modesto para cap-
de refutação, sem essas partes estarem me- tar a benevolência do público. Dessa forma,
todicamente separadas. O logos é, através ele dá ao seu ethos o feitio adequado à figura
do historiador: alguém que, mesmo dotados
27 Do parágrafo CCXII ao CCXXI. de predicados intelectuais, não se envaidece
28 Do parágrafo CLXV ao CLXXVI.
30 Do parágrafo CCLXXVI ao CCLXLI (com esse último algarismo, quis o au-
29 Do parágrafo CCXLIX ao CCL. tor representar o parágrafo 291).
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 119

disso. Entretanto, Barros acena que não foi REFERÊNCIAS


sua imperícia que não o faz a pessoa mais ARISTÓTELES. Retórica. São Paulo: Martins
adequada a relatar a vida do jesuíta, mas o Fontes, 2012.
fato da grandiosidade de Vieira não poder
ser colocada em palavras. É desta forma que BARROS, André de. Vida do apostólico padre
o autor toma uma posição humilde, sem, ao Antonio Vieira. Lisboa: Na nova Oficina Sil-
mesmo tempo, desvalorizar a si mesmo. Essa viana, 1746.
persona retórica de Barros tem o objetivo de
captar a benevolência do público, ou seja, CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e
afetar o pathos do auditório, fazendo com idade média latina. 3. ed. São Paulo: EDUSP,
que esses dois elementos, ethos e pathos, tra- 2013.
balhem juntos a favor da persuasão do dis-
curso. Após explicar o porquê de ter empre- DA SILVA, Taise Tatiana Quadros. Poder e episte-
endido a narração da vida de Vieira, o bió- me na erudição do Portugal setecentista: uma
grafo finaliza sua obra, narrando os sucessos abordagem do programa historiográfico da
relacionados aos familiares do jesuíta. Des- Academia Real da História Portuguesa (1720-
sa forma, a peroratio de Barros consiste em 1721). História da Historiografia, Ouro Pre-
um breve apelo ao ethos e ao pathos, através to, n.3, p. 204-215, Set. 2009.
da captatio benevolentiae, e em uma narra-
ção. Um indicativo de que, mesmo devendo LOYOLA, Inácio de. A autobiografia de Inácio
observar as regras de composição retóricas de Loyola. São Paulo: Edições Loyola, 1978.
clássicas, o autor poderia ordenar seu dis-
curso como entendesse melhor. OLIVEIRA, Paulo Rogério Melo de. Um estilo je-
suítico de escrita da história: notas sobre es-
CONSIDERAÇÕES FINAIS tilo e história na historiografia jesuítica. His-
Vida do Apostólico Padre Antônio Vieira é a tória da Historiografia, Ouro Preto, n.7, p.
obra precursora das biografias que se fize- 266-278, Nov/Dez. 2011.
ram sobre o jesuíta. Embora seja muito pou-
co mencionada, serviu de base às consultas O’MALLEY, John W. Os primeiros jesuítas. São
de outros biógrafos e, assim, contribuiu para Leopoldo: Editora UNISINOS; Bauru: EDUSC,
a preservação da história do maior nome da 2004.
oratória barroca no Brasil. André de Barros,
seu autor, ao exaltar a imagem do jesuíta ten- PLATÃO. Górgias. Disponível em: <http://bocc.
ta ao mesmo tempo corresponder às deman- ubi.pt/~fidalgo/retorica/platao- gorgias.
das da Companhia de Jesus e da Academia pdf>. Acesso em: 10 de outubro de 2016.
Real da História Portuguesa. Para essa ta-
refa dupla, Barros recorre a um instrumen- REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. 2. ed.
to clássico, a retórica. Produz um discurso São Paulo: Martins Fontes, 2004.
epidítico, articulando todos os recursos que
a técnica prevê para persuadir o leitor. É des-
se modo que se concebe Vida do Apostólico
Padre Antônio Vieira. Obra que encontrou na
retórica um meio de tonar o discurso, além
de útil, belo.
ESTUDO FILOLÓGICO DE DOCUMENTOS
DA BRIGADA MILITAR DO RIO GRANDE DO SUL
DO INÍCIO DO SÉCULO XX
Tatiana Keller
Betina Bernardi

RESUMO: O presente trabalho tem como finalidade analisar, no âmbito dos estudos filológicos e
paleográficos, quatro documentos redigidos entre os anos de 1900 e 1909, pertencentes à Brigada
Militar do Rio Grande do Sul. À vista disso, é apresentada a edição diplomática (transcrição rigorosa
de todos os elementos presentes no manuscrito) dos documentos, seguida dos comentários paleo-
gráficos - que se baseiam nas divergências da ortografia antiga em relação à ortografia atual no que
se refere ao uso do sistema vocálico (substituição vocálica) e do consonantal (consoantes gemina-
das, uso do h, encontros e substituição consonantais impróprios), dos diacríticos (uso do acento
agudo, circunflexo e apóstrofo), das abreviaturas (por apócope, síncope, e letras sobrepostas) e do
uso de letras maiúsculas. Tanto na edição diplomática, quanto nos comentários paleográficos foram
utilizadas gramáticas normativas atuais, bem como, artigos da área de filologia e os critérios de edi-
ção de Cambraia (2005). Os resultados demonstram a importância dos estudos linguísticos, princi-
palmente os filológicos, uma vez que eles oportunizam resgatar e preservar a história do português
brasileiro.
PALAVRAS CHAVES: Filologia. Paleografia. Brigada Militar. Edições.

ABSTRACT: The present work has the purpose of analyzing, in the scope of the philological and
paleographic studies, four documents drafted between the years 1900 and 1909, belonging to the
Brigada Militar of Rio Grande do Sul. By virtue of this, the article presents the diplomatic edition
(rigorous transcription of all the elements present in the manuscript) of the documents, followed by
the paleographic comments - which are based on the divergences of the old orthography in relation
to the current orthography regarding the use of the vowel system (consonant vowel), consonantal
(double consonants, use of h, improper meetings and consonantal substitution), diacritics (use of
the acute accent, circumflex accent and apostrophe), abbreviations (by apocope, syncope, and over-
lapping letters) and the use of capital letters. Both in the diplomatic edition and in the paleographic
comments were used, besides current normative grammars and articles of the philological area, the
editing criteria elaborated by Cambraia (2005). The results verified in this analysis demonstrate the
importance of the linguistic studies, especially the philological ones, once they allow to rescue and
to preserve the history of Brazilian Portuguese.
KEYWORDS: Philologia. Paleographia. Brigada Militar. Edition.

RESUMEN: El presente trabajo tiene como finalidad analizar, en el ámbito de los estudios filológicos
y paleográficos, cuatro documentos redactados entre los años 1900 y 1909, pertenecientes a la Bri-
gada Militar del Rio Grande del Sur. En vista de eso, es presentada la edición diplomática (transcrip-
ción rigurosa de todos los elementos presentes en el manuscrito) de los documentos, seguidas de los
comentarios paleográficos – que se basan en las divergencias de la ortográfica antigua en relación
a la ortografía actual en lo que se refiere al uso del sistema vocálico (sustitución vocálica), del con-
sonántico (consonantes geminadas, uso del h, encuentros y sustitución consonánticos impropios),
de loas diacríticos (uso del acento agudo, circunflejo y apóstrofo), de las abreviaturas (por apó-
122 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

cope, síncope, y letras sobre puestas) y del uso auxilia o texto a se tornar acessível ao leitor,
de letras mayúsculas. Tanto en la edición diplo- já que “assegura sua subsistência através
mática, como en los comentarios paleográficos de registro em novos e modernos suportes
fueron utilizados, además de gramáticas norma- materiais, que aumentarão sua longevida-
tivas actuales y artículos del área filológica, los de” (CAMBRAIA, 2005, p.20). Desse modo, a
criterios de edición elaborados por Cambraia importância deste tipo de estudo é oferecer
(2005). Los resultados constatados en este aná- subsídios para os campos de estudos relati-
lisis demuestran la importancia de los estudios vos à linguística, assim como para os estudos
lingüísticos, principalmente los filológicos, una literários.
vez que ellos posibilitan rescatar y preservar la Nessa perspectiva, a transcrição de um
historia del portugués brasileño. documento antigo requer, primeiramente, e
PALABRAS-CLAVE: Filológia. Paleográfia. Briga- escolha de um tipo de edição, além de uma
da Militar. Edición. atenção cautelosa às propriedades de cada
texto. Ao levar isso em conta, o crítico tex-
tual deve considerar alguns fatores, como o
1. INTRODUÇÃO público alvo e a existência de outras edições
O objetivo deste artigo é apresentar um estu- deste mesmo documento.
do filológico de quatro documentos manus- Os tipos de edições dividem-se em dois
critos, referentes a ordens do dia expedidas grupos principais: as monotestemunhais,
pela Brigada Militar, em Porto Alegre, no iní- que são fundamentadas em um único tes-
cio do século XX. Os documentos estâo dis- temunho, e as politestemunhais, que se ba-
poníveis no Centro Histórico Coronel Pillar, seiam em mais de um testemunho. Neste
em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Três de- estudo, trabalhar-se-á apenas com as mono-
les são datados do ano de 1900 e assinados testemunhais que se segmentam em: edições
pelo Major Comandante José Natalino Mar- fac-similares, diplomáticas, paleográficas e
tins, e um é datado de 1909 e assinado pelo interpretativas.
Major Comandante João Alves de Oliveira, o A edição fac-similar é aquela que possui,
que totaliza, deste modo, quatro fólios. conforme Cambraia (2005), um grau zero de
Na análise, apresentamos a edição diplo- mediação, isto é, é apenas a reprodução da
mática de cada documento, seguida de um imagem do testemunho, que pode ser feita
exame paleográfico. através de fotografias, escanerização, etc. A
O intuito desse estudo é o de colaborar vantagem deste tipo de edição é o acesso di-
com o enriquecimento dos estudos linguísti- reto ao documento, o que concede ao leitor
cos, além de explanar algumas das mudanças certa autonomia em sua intepretação. Quan-
no português brasileiro ao longo do tempo. to à sua desvantagem, esse tipo de edição só
pode ser consultada por um especialista.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Na edição diplomática, segundo Cambraia
Segundo Cambraia (2005), um estudo no (2005), tem-se a primeira forma de media-
âmbito da crítica textual tem como principal ção feita pelo crítico, apresentando, assim,
objetivo restituir a forma original dos textos, um grau baixo de medição. Dessa forma,
restaurando tanto a sua forma física, quanto a mediação feita pelo crítico textual é limi-
o seu conteúdo. Com base nisso, a recupe- tada, já que esse tipo de edição exige uma
ração do texto escrito necessita que ele seja transcrição rigorosa do documento, devendo
reproduzido - o que colabora, também, para preservar, por isso, todos os elementos do
a transmissão e a preservação do patrimô- testemunho, como os sinais de abreviatura,
nio histórico e cultural de um povo, ou seja, de pontuação e a paragrafação. A vantagem
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 123

dessa edição é a simplificação da leitura; escrita e dos sinais abreviativos;


no entanto, sua desvantagem, assim como a c. descrição dos outros elementos não-al-
das edições fac-similares, é a necessidade da fabéticos existentes e de seu valor geral:
consulta por um especialista, uma vez que números, diacríticos, sinais de pontua-
todos os elementos do testemunho devem ção, separação vocabular intralinear e
ser conservados. translinear, paragrafação, etc.;
A edição paleográfica, também denominada d. descrição de pontos de dificuldade na lei-
de edição semidiplomática, paradiplomática tura e as soluções adotadas.
ou diplomática-interpretativa, possui um
grau médio de mediação. Nela, são efetua- As questões e os comentários paleográ-
das algumas alterações para tornar o ma- ficos observados neste estudo estão rela-
nuscrito acessível a um público que não é cionados ao sistema vocálico (substituições
especializado. O crítico textual, nesta edição, vocálicas – u/o, i/e), ao sistema consonan-
possui mais liberdade, isto é, ele pode inter- tal (encontros consonantais impróprios –
ferir no texto original, desenvolvendo abre- ct e gn–, consoantes duplas – mm ff, tt, ll –,
viaturas, por exemplo. Por intervir em alguns substituições consonantais – s/z e uso do h)
elementos do texto, a vantagem da edição aos diacríticos (acento agudo, circunflexo e
paleográfica é, justamente, facilitar a leitura apóstrofo), às abreviaturas e ao uso de mai-
de um público menos especializado, além de úsculas.
corrigir evidentes falhas do texto.
Por fim, a edição interpretativa possui 3. METODOLOGIA
grau máximo de mediação, já que o crítico O corpus utilizado na análise deste estudo é
textual desenvolve abreviaturas e insere con- composto por quatro documentos oriundos
jecturas, “realizando um processo de unifor- do Comando do 1º Regimento da Brigada
mização gráfica” (CAMBRAIA,2005, p.97) no Militar do Estado do Rio Grande do Sul, e ca-
documento. Sua vantagem é, assim como na racterizados como ordem do dia. Os manus-
edição diplomática, facilitar o acesso à leitu- critos são datados entre os anos de 1900 e
ra, porém sua desvantagem é ser uma versão 1909 e foram coletados no Centro Histórico
subjetiva, pois há uma forte interpretação do Coronel Pillar.
editor sobre o texto original. O primeiro manuscrito foi assinado pelo
Major Comandante Interino José Natalino
2.2 Paleografia Martins. O documento foi redigido entre os
Para Cambraia (2005), a paleografia pode dias 16, 17 e 21 do mês de fevereiro do ano
ser genericamente definida como o estudo de 1900, e contém a ordem do dia de número
das escritas antigas, tendo um propósito tan- 392, referente a uma carga, de número 394,
to teórico, quanto pragmático. No teórico, há referente a um alistamento e a uma exclusão,
uma preocupação em apreender o desenvol- e a de número 394 que prossegue no docu-
vimento sócio-histórico do sistema de escri- mento seguinte.
ta, enquanto no pragmático procura-se des- O segundo documento dá prosseguimento
complicar a leitura dos documentos. à ordem do dia de número 394, na qual foi
Para que se desenvolva um estudo paleo- descrita um rebaixamento e uma carga. Na
gráfico faz-se necessário, segundo Cambraia sequência, há a ordem do dia de número 396,
(2005), abordar alguns aspectos, como: redigida em 27 de fevereiro, referente a uma
a. classificação da escrita, localização e da- transferência e a uma transcrição, e a ordem
tação; do dia de número 397, datada de 1º de mar-
b. descrição sucinta de características da ço, referente a uma exclusão.
124 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

O terceiro documento também é datado 4. EDIÇÕES


em 1900 e assinado pelo Comandante In- Nesta seção, são apresentadas as edições di-
terino José Natalino Martins. O manuscrito plomáticas dos manuscritos, precedidas de
descreve uma confirmação de sentença, uma um cabeçalho que contém o local, a data, a
prisão e um rebaixamento, além de conter a cota (onde está arquivado o manuscrito) e o
ordem do dia de número 395, datada de 23 tipo de documento analisado. Para facilitar
de fevereiro, referente a um alistamento, um as observações que serão feitas nos comen-
reengajamento e uma baixa. tários paleográficos (seção 5), optou-se por
O quarto e último documento está assi- denominar os manuscritos de Ms.1, Ms.2,
nado pelo Major Comandante João Alves de Ms.3 e Ms.4, correspondente à ordem em
Oliveira e foi redigido no ano de 1909, con- que eles estão dispostos, respectivamente.
tendo duas ordens do dia, datadas de 7 e 10
de abril, respectivamente. A primeira ordem,
de número 25, intitulada comando do esqua-
drão, diz respeito a uma nova nomeação de
comandante do batalhão e a troca do tesou-
reiro. A segunda ordem, de número 27, refe-
re-se a uma transcrição.

3.1 Normas de Transcrição


Conforme Cambraia (2005), o processo de
edição de um texto requer alguns procedi-
mentos técnicos, isto é, algumas normas de
edição. As normas de transcrição que com-
preendem a edição diplomática usadas neste
trabalho são:
a. Transcrever caracteres romanos redon-
dos, diferenciar maiúsculas e minúsculas.
Manter diferenças entre alógrafos.
b. Transcrever fielmente os sinais abrevia-
tivos, diacríticos, sinais de pontuação,
paragrafação, separação vocabular e pa-
ragrafação.
c. Transcrever caracteres de leitura duvido-
sa: utilizar parênteses redondos simples
( ).
d. Transcrever caracteres de leitura impos-
sível: utilizar colchetes precedidos por
cruz [...]
e. Informar em nota: mudança de punho,
mudança de tinta, caracteres apagados
ou modificados.
f. Não realizar inserções, supressões ou
conjecturas.
g. Numerar as linhas de 5 em 5 na margem
esquerda.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 125

4.1 Edição diplomática do manuscrito um (Ms.1)


Local: Porto Alegre
Data: 16/02/1900
Cota: Centro Histórico Coronel Pillar
Tipo de Documento: Ordem do dia

Commando do 1º Regimento de cavallaria da Brigada Militar


do Estado em Porto Alegre, 16 de Fevereiro de 1900.

Ordem do dia nº 392


5 Publico para conhecimento do regimento e devida execução o seguinte
Carga
O Senhor Alferes Quartel - mestre carregue no respectivo mappa 400
argolas de quatro e meio centimetros de diametro, 2400 (ditos) de quatro
centimetros de diametro 4400 de trez centimetros. 1600 de dois e meio
10 centimetros 100 de oito centimetros, 115 (pilhas) mestres e 47 (sobras) [.....]
que recebeu hontem da arrecadação geral da Brigada
José Natalino Martins
MorComteInto
________________________________________
15 Commando do 1º Regimento de cavallaria Brigada Militar
do Estado em Porto Alegre, 17 de Fevereiro de 1900.

Ordem do dia nº 393


Publico para conhecimento do regimento e devida execução o seguinte
20 Alistamento
Seja incluido no estado effectivo do regimento e do 3º esquadrão o indi
viduo de nome Luiz Antonio José Goularte filho de Antonio Fran
cisco dos Santos nascido neste Estado em 29 de Agosto de 1858 côr in
diatica, cabellos pretos olhos castanhos sem officio viuvo nesta data
25 alistado para servir pelo tempo de 5 anos.
Excluzão
Seja excluido do estado effectivo do regimento o soldado do 1º esqua
dão Lucas Ferreira por ter completado 1º dezerção agravada hoje
José Natalino Martins
30 MorComteInto
____________________________________
Commando do 1º Regimento de cavallaria da Brigada Militar
do Estado em Porto Alegre, 21 de Fevereiro de 1900.

35 Ordem do dia nº 394


Publico para conhecimento do regimento e devida execução o seguinte
126 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

4.2 Edição diplomática do manuscrito dois (Ms.2)


Local: Porto Alegre
Data: 17/02/1900
Cota: Centro Histórico Coronel Pillar
Tipo de Documento: Ordem do dia

Rebaixamento
Seja rebaixado do posto in definidamente1 o cabo João Henrique de
Oliveira como (em) (curso) no artigo 191 § 6º combinado com artigo 187 §§ 1º
2º e 5º do regulamento.
5 Carga
O Sr Alferes Quartel-Mestre carregue no respectivo mappa 8 (.....
...), 8 (......) verdes e 30 (.........) que recebeu hoje da arreca=
dação geral da Brigada.
José Natalino Martins
10 MorComteInto
_______________________________________
Commando do 1º Regimento da cavallaria da Brigada Militar
do Estado em Porto Alegre, 27 de Fevereiro de 1900.

15 Ordem do dia nº 396


Publico para o conhecimento do regimento e devida execução o seguinte
Transferencia
Sejam transferidos do 4º esquadrão o 3º o 2º sargento rebaixa-
do indefinidamente Ezequiel Machado de Oliveira e do 3º para
20 o 4º o cabo rebaixado João Henrique de Oliveira.
Transcripção
É do theor seguinte a ordem do dia do comando da Brigada sob
nº 271 de hoje: Estado do Rio Grande do Sul Secretaria do Estado
dos Negocios do Interior e exterior Porto Alegre 27 de Fevereiro de
25 1900. Repartição Central 2ª directoria nº 272 ao senhor coronel
commandante da Brigada Militar. Tendo cessado os motivos deter=
minantes da ordem expedida em officio de 14 do corrente mez rela=
tivamente ao horario regulamentar. Saude e fraternidade (Assigna=
do) Dr João Abbot assignado no impedimento do Senhor Coronel
30 commandante Joaquim Fernandes de Oliveira Tenente coronel.
José Natalino Martins
MorComteInto
________________________________________
Commando do 1º Regimento da cavallaria da Brigada Militar
35 do Estado em Porto Alegre, 1º de Março de 1900.

Ordem do dia nº 397


Publico para o conhecimento do regimento e devida execução o seguinte
Excluzões
40 Seja excluido do estado effectivo do regimento e do 2º esquadrão o sol
dado Manuel Antonio da Silva por ter completado 2º dizerção sim
ples hontem e do 3º esquadrão o dito Fermiano Moreira por ser do

1 Aqui, optou-se deixar o prefixo “in” separado do resto do vocábulo, para preservar o estilo da caligrafia do escrevente. A mesma palavra aparece na linha
19, deste mesmo manuscrito, escrita da maneira correta. Por esse motivo, concluiu-se que a grafia do vocábulo -com o prefixo separado- não é um problema de
hiposseguimentação.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 127

4.3 Edição diplomática do manuscrito três (Ms.3)


Local: Porto Alegre
Data: 27/02/1900
Cota: Centro Histórico Coronel Pillar
Tipo de Documento: Ordem do dia

Carga
O cidadão Alferes Quartel - mestre (....) carregue no competente
mappa duas calças de panno fino, dois dolmans de dito (ippes) de
dito um (.....) (hellicon) e um (....) (helíaco) que rece=
5 beu da arrecadação geral da Brigada.
Confirmação d’Sentença
A ordem do dia do commando da Brigada sob nº 269 de hoje
é do theor seguinte. O Sr Dr Prezidente do Estado em data de hon=
tem confirmou a sentença do conselho de guerra o que respondeu
10 o Sr Tenente Lydio Neves.
Prizão e rebaixamento
Seja prezo por 25 dias e rebaixado indefinidamente o 2º Sargento
Ezequiel Machado de Oliveira por ter embriagado-se na noite de 17
para 18 do corrente quando se (debocha) de (rondante) dos patrulhas
15 deixando por isto, de cumprir com seus deveres, e entrando em (bai-
les), dançando manifestando com isso pessima conduta e alto
Grão de indisciplina. Essas (transgreções) acham-se combinadas
no art: 191 § 19 e 31 segunda parte com a combinação do artigo 187
§ 1º-2º 4º e 5º do regulamento.
20 José Natalino Martins
MorComteInto

________________________________
Commando do 1º Regimento de cavallaria da Brigada Militar do
25 Estado em Porto Alegre. 23 de Fevereiro de 1900.

Ordem do dia nº 395


Publico para conhecimento do regimento e devida execução o seguinte
Alistamento
30 Seja incluido no estado effectivo do regimento e no 2º esquadrão o in=
dividuo nome José Joaquim Machado filho de Joaquim Machado
Brazileiro com 22 anos de idade côr parda cabellos e olhos pretos,
sem officio solteiro nesta data alistado para servir pelo tempo de
5 anos.
35 Reeingajamento
Seja reengajado para servir por mais dois anos a contar da data
em que terminou seu engajamento o soldado Paulino Espindu=
la visto haver sido julgado o posto para o serviço na inspeção de
saude a que foi submettido hoje.
40 Baixa
Seja excluido do estado effectivo do regimento o soldado do 3º esqua=
dão Anizio Ignacio da Silva por concluzão de tempo de serviço con
forme o artigo 82 dos apontamentos do commando da Brigada de hoje
128 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

4.4 Edição diplomática do manuscrito quatro (Ms.4)


Local: Porto Alegre
Data: 17/02/1900
Cota: Centro Histórico Coronel Pillar
Tipo de Documento: Ordem do dia

Quartel do Commando do 1º Regimento


da Brigada Militar em Porto Alegre,7 de Abril
de 1909.
Ordem do dia nº. 25
5 Publico para o conhecimento do Regimento e devi
da execução o seguinte
Commando de esquadrão
Sendo-se apresentad o hoje a este Regimento
o Tenente João Paulo de Macedo Pires determino o
10 que assume o commando do 1º esquadrão dis-
pensando dessa função o Alferes Belarminno
Garcia Dutra.
Thesoureiro
Passa a exercer as funções de thesoureiro
15 do conselho administrativo o tenente João Paulo
de Macedo Pires ficando dispensado dessa fun-
ção o Alferes Belarminno Garcia Dutra
João Alves de Oliveira
Major Commandante
20 Quartel do Commando do 1º Regimento
da Brigada Militar em Porto Alegre,10 de Abril de 1909.
Ordem do dia nº 26
Publico para o conhecimento do Regimento e
devida execução o seguinte.
25 Transcripção
É do teôr seguinte a ordem do dia de hoje do Com-
mando da Brigada, sob nº 7.
Commando do 2º Batalhão
Tendo regressado de sua vigem do interior
30 do Estado o Senhor Tenente Coronel Affranio
Emilio Massot reassuma o commando
do. 2º Batalhão de Infantaria – Assigna-
do.- Cypriano da Costa Ferreira
João Alves de Oliveira
35 Major Commandante
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 129

5. COMENTÁRIOS PALEOGRÁFICOS 5.1 Sistema Vocálico


Depois de apresentadas as edições dos docu- 5.1.1 Substituições vocálicas
mentos, são feitos, nesta seção, comentários Nos quatro documentos analisados, foram
paleográficos sobre os manuscritos. O parâ- encontrados dois vocábulos com substitui-
metro de análise tem como base as divergên- ção vocálica. O primeiro situa-se no Ms.2
cias constatadas entre a ortografia antiga e a (l.42), com o vocábulo, “dizerção”, no qual
ortografia atual. O Quadro 1 apresenta todas ocorre a troca da vogal e pela vogal i. No en-
as palavras presentes no corpus que diver- tanto, esse mesmo vocábulo é grafado com e,
gem da escrita atual. no Ms.1 (l.28), “dezerção”, o que demonstra
que possivelmente o escrevente não tinha
Quadro 1: palavras presentes no corpus que certeza da grafia correta da palavra em ques-
divergem da escrita atual. tão. O segundo vocábulo encontra-se no Ms.3
Grafia antiga Grafia atual (l.17), no qual há a substituição da vogal u
Commando Comando por o, na palavra “grao”.
Cavallaria Cavalaria
Mappa Mapa 5.2 Sistema consonantal
Centimetro Centímetro Nos documentos analisados, diversos vocá-
Diametro Diâmetro bulos apresentam ocorrências de consoantes
Trez Três geminadas, encontros consonantais impró-
Hontem Ontem prios, uso do h e substituições consonantais.
Effectivo Efetivo
Côr Cor
5.2.1 Consoantes geminadas
Cabellos Cabelos
Segundo Júnior, Caetano e Gomes (2015), as
Officio Ofício
consoantes geminadas são oriundas da gra-
Viuvo Viúvo
Excluzão Exclusão
fia latina, as quais se reduziram, e, hoje em
Dezerção Deserção dia, mantêm-se somente nas consoantes r e
Transferencia Transferência s, já que elas possuem valor sonoro diferente
Transcripção Transcrição das outras duplicações já extintas. Conforme
Theor Teor os autores, não existiam padronização e nor-
Negocios Negócios matização no uso das consoantes geminadas,
Directoria Diretoria pois elas, muitas vezes, eram utilizadas con-
Commandante Comandante forme a vontade do escrevente. No corpus
Horario Horário analisado, foi encontrada uma quantidade
Assignado Assinado significativa de vocábulos com consoantes
Panno Pano geminadas, como pode ser observado no
Prezidente Presidente
Quadro 2 a seguir.
Prizão Prisão
Prezo Preso
Pessima Péssima
Grão Grau
Submetiddo Submetido
Concluzão Conclusão
Thesoureiro Tesoureiro
Teor Teor
Brazileiro Brasileiro
Saude Saúde
Excluido Excluído
130 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Quadro 2: Consoantes geminadas Quadro 3: Encontros consonantais impróprios


Consoantes Vocábulo Manuscrito Encontro
Vocábulo Manuscrito
Ms.1 (l.1,15,32); consonantal
Ms.2 (l.12,34,); Ms.3 Ms.1 (l.21,27); Ms.2
commando Effectivo
(l.24,43) ; Ms.4 (l.40), Ms.3 (l.30,41).
mm ct
(l.1,7,20,28,31). Directoria Ms.2 (l.25).
Ms.2 (l.26) e Ms.4
commandante Ms.2 (l.21); Ms. 4 (l.
(l.19, 35) pç Transcripção
Ms.1 (l.1,15,32); Ms.2 25).
cavallaria Ms.2 (l. 29); Ms.4 (l.
(l.12,34); Ms.3 (l.24). gn Assignado
ll 32/33).
Ms.1 (l. 24) e Ms.3 (l.
cabellos
32).

pp mappa
Ms.1(l.7) ; Ms.2 (l.6); 5.2.3 Uso do h
Ms.3 (l.3). Foram encontrados nos documentos alguns
Ms.1 (l.21,27); Ms.2 vocábulos grafados com “h” que divergem do
effectivo
(l.40); Ms.3 (l.30,41); uso atual. No vocábulo hontem (Ms.1 (l.11) e
ff
Ms.1 (l. 24); Ms.2 Ms.2 (l.42)), há o uso do “h” no início da pala-
officio
(l.27); Ms.3 (l.33) vra. Essa ocorrência, possivelmente, foi usa-
nn panno Ms.3 (l.3)
da por analogia a hoje (do latim, hodiei, com
tt submettido Ms.3 (l.39)
h inicial), já que ambos pertencem ao mesmo
campo semântico de tempo.
5.2.2 Encontros consonantais impróprios Nos vocábulos theor (Ms.2 (l.22) e Ms.3
Dentro do sistema consonantal há, também, (l.8)) e thesoureiro (Ms 4 (l.13,14), o uso do
encontros consonantais considerados im- “h” acontece entre a consoante t e a vogal e.
próprios (ct, gn, tm, dv, etc.). Este tipo de en- Esse tipo de ocorrência deriva da etimologia
contro acontece, conforme Donadel (2007), das palavras, uma vez que theor, do grego, é
porque a sequência consonantal não é for- grafado como “theoria” e thesoureiro, do la-
mada por uma obstruinte mais uma líquida tim é grafado “thesaurus”.
como nos vocábulos significar, aptidão e ad-
jetivo. Esse tipo de sequência era corriquei- 5.2.4 Substituições consonantais
ra no latim, mas passou por mudanças “na Todas as substituições encontradas nos do-
passagem para o português no sentido de cumentos ocorrem entre as consoantes “s” e
eliminação de uma das consoantes, normal- “z”. As trocas que ocorrem no final vocábulo,
mente a primeira” (DONADEL, 2007, p.20). como em “trez” e “mez”, estão relacionadas
Nos documentos analisados, foi encontrada com a falta de normatização ortográfica da
em alguns vocábulos a ocorrência de encon- época, assim como as que ocorrem no meio
tros consonantais impróprios como se vê no dos vocábulos como “excluzão”, “prezidente”,
Quadro 3: etc. Além da falta de normatização, esse tipo
de substituição no meio do vocábulo pode
ocorrer, também, pela familiaridade sonora
entre as consoantes, já que “s” intervocálico
tem a mesma pronúncia de “z”, como nos vo-
cábulos casa, peso, etc. As palavras em que há
substituição consonantal são apresentadas
no Quadro 4.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 131

Quadro 4: Substituições consonantais


Quadro 5: Vocábulos sem acento agudo
Substituição Diacrítico Vocábulo Manuscrito
Vocábulo Manuscrito
consonantal Centimetro Ms.1(l.8,9,10).
Trez Ms.1 (l. 9) Ms.1 (l.21/22); Ms.3
Individuo
Ms.1 (l. 28); (l.30/31).
Dezerção/Dizerção
Ms.2 (l.41) Ms.1 (l.24); Ms.2 (l.27);
officio
Mez Ms.2 (l.27).. Ms.3 (l.33).
Ms. 1 (l.26); viuvo Ms.1 (l.24).
S  Z Excluzão (ões) Acento Ms.1 (l.27); Ms.2 (l.40);
Ms.2 (l.39). excluido
Agudo Ms.3 (l.41).
Prezidente Ms.3 (l. 8).
negocios Ms.2 (l.24).
Prizão Ms.3 (l.11).
horario Ms.2 (l.28).
Prezo Ms.3 (l.12).
Concluzão Ms.3 (l.42). Saude Ms.2 (l.28); Ms.3 (l.39).
pessima Ms.3 (l.16).
5.3 Diacríticos Incluido Ms. 1 (l.21); Ms.3 (l.30).
Os diacríticos são sinais gráficos ( ´, ^, ~, ),
isto é, caracteres não-alfabéticos, que são 5.3.2 Acento circunflexo
acrescentados às palavras, para indicar uma A não-utilização do acento circunflexo nos
mudança de pronúncia. Nos documentos documentos ocorreu nos vocábulos diametro
analisados, foram encontradas ocorrências (Ms.1 (l.8)), transferencia (Ms.2 (l.17)) e Mez
dos diacríticos acento agudo, acento circun- (Ms.2 (l. 27)) Essas palavras, atualmente, são
flexo e apóstrofe. gafadas com este diacrítico, conforme a posição
da sílaba tônica no vocábulo. Sendo assim, con-
5.3.1 Acento agudo forme a regra atual, o vocábulo: “diametro” de-
O não-uso do acento agudo foi o mais inciden- veria ser acentuado, pois é uma proparoxítona,
te na análise dos documentos. Antigamente, “transferencia” porque é uma paroxítona ter-
este diacrítico era utilizado para marcar so- minada em ditongo crescente e “mez” recebe
mente o timbre das palavras. Atualmente, acento por ser um monossílabo tônico.
ele serve para marcar a tonicidade, ou seja, Já nos vocábulos côr (Ms.1 (l. 23) e Ms.3
o acento é usado para marcar a posição da (l.32)) e teôr (Ms.4 (l. 26)), o acento é, pos-
sílaba tônica. Os vocábulos encontrados sem sivelmente, posto para indicar as vogais fe-
o uso do acento são em sua maioria proparo- chadas na pronúncia. No entanto, esses vo-
xítonas, como se vê no Quadro 5: cábulos, na ortografia vigente, não recebem
acentuação.

5.3.3 Apóstrofe
O apóstrofe, atualmente, é empregado, con-
forme Lima (2010), em palavras compostas
pela preposição “de” seguidas de outra vo-
gal, como na expressão linguística d’água.
Nos documentos analisados, encontrou-se
somente um caso em que este diacrítico foi
utilizado, na palavra d’ Sentença no manus-
crito Ms.3 (l.6). No entanto, em “d’Sentença”
o uso do apóstrofo diverge da regra ortográ-
fica atual, pois o vocábulo “sentença” é ini-
ciado por uma consoante.
132 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

5.4 Abreviaturas (como Senhor, Vossa Excelência) e nas pala-


Segundo Spina (1977), as abreviaturas são vras referentes a nomes sagrados.
muito importantes na interpretação paleográ- Nos documentos analisados, alguns vo-
fica de documentos. Originariamente, seu uso cábulos apresentaram o uso de maiúscula
era necessário para economizar espaço nas pá- como se vê na ortografia atual, como no iní-
ginas, devido ao custo elevado de materiais de cio de frase “Publico para conhecimento[...]
escrita. Na análise dos documentos, encontra- (Ms.1; Ms.2; Ms.3, Ms.4), nomes de pessoas
ram-se três tipos de abreviaturas: as por apó- “José Natalino Martins” (Ms.1; Ms.2 e Ms.3),
cope, por síncope e por letras sobrepostas. “Luiz Antonio José Goularte” (Ms.1), nomes
Conforme Spina (1977), as abreviaturas de lugares “Porto Alegre (Ms.1 Ms.2; Ms.3,
por apócope ocorrem quando se verifica a Ms.4), títulos em geral “Alferes” (Ms.1; Ms.2;
supressão de elementos finais do vocábulo. Ms.3), tratamento de reverência, como “Se-
Já as feitas por síncope formam-se median- nhor/ Sr” (Ms.1; Ms.2; Ms.3, Ms.4).
te a supressão de letras localizadas no meio Entretanto, verificou-se, que, nos quatro
do vocábulo, ainda que algumas letras sejam manuscritos, os meses do ano foram grafa-
conservadas para favorecer o entendimento dos por letra maiúscula, como aparece no
do termo. Por fim, as feitas por letras sobre- Quadro 7:
postas - tipo de abreviatura que se generali-
zou a partir da escrita visigótica- é constituí- Quadro 7: uso de maiúsculas
da da sobreposição de letras que fazem parte Vocábulos Manuscrito
da sequência da palavra suprimida. Fevereiro Ms.1 (l.2,16,33), Ms.2 (l.13) Ms.3 (l. 25).
Nos documentos analisados, foram en- Agosto Ms.1 (l.23).
contradas abreviaturas por apócope - no vo- Março Ms.2 (l.35).
cábulo “artigo”, grafado como “Art.” (Ms.3) e Abril Ms.4 (l.2,21).
abreviaturas por síncope e por letras sobre-
postas, como vemos no Quadro 6: Além dos meses, o vocábulo “brasileiro”, no
Ms.3 (l. 32), aparece grafado com letra maiús-
Quadro 6: Abreviaturas cula, o que diverge também da regra atual.
Desdobramento
Abreviatura Manuscrito
das abreviaturas 5.6 Pontos de dificuldade e soluções
Ms.2 (l. 29) ; adotadas
Dr Doutor
Ms.3 (l. 8) Apesar de alguns vocábulos possuírem uma
Ms.2 (l.6); leitura duvidosa, ou impossível, principal-
Sr Senhor
Ms.3 (l.8) mente no Ms.3, as transcrições, no geral, não
Ms.1 (l. 12, 30); apresentaram dificuldades que comprome-
Major Comandan-
MorComteInto Ms.2 (l.11, 32) tessem o andamento do estudo paleográfico.
te Interino
Ms.3 l. 21) No entanto, algumas dúvidas e questiona-
mentos surgiram ao longo das análises.
5.5 Uso de maiúsculas O primeiro ponto de dificuldade identifi-
Segundo Lima (2010), na ortografia atual, cado foi a assinatura do Major Comandante
emprega-se letra inicial maiúscula no co- Interino, José Natalino Martins, que assina os
meço de frases, versos, citações e depois de manuscritos Ms.1, Ms.2 e Ms.3. A letra “n” de
ponto final; nos substantivos próprios: no- Natalino parece ser, em um primeiro momen-
mes de pessoas, de lugares, títulos em geral to, um “r”. Entretanto, verificou-se que se tra-
(como Papa, Cardeal, Tesouro Nacional, etc); tava de um “n”, porque no segundo sobreno-
em pronomes de tratamento de reverência me, Martins, a letra “m” assemelhasse ao “n”.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 133

No Ms.1, o vocábulo “indiatico” também mais recorrente, sobretudo nas palavras que,
causou questionamentos. As dúvidas surgi- atualmente, seguem a regra das proparoxíto-
ram tanto na grafia, em razão do prefixo “in” nas. Em relação aos outros diacríticos, acento
estar no limite da página, quanto no signifi- circunflexo e apóstrofe, foram verificadas so-
cado da palavra, já que se trata de uma forma mente algumas ocorrências. Nas abreviatu-
regionalista pouco utilizada atualmente. ras, pode-se perceber o uso das por apócope,
O uso das letras maiúsculas e minúsculas síncope e das por letras sobrepostas. Por fim,
também causou dificuldades na transcrição. no uso das maiúsculas, observaram-se apenas
A esse respeito, a solução utilizada para di- dois casos que divergem da regra ortográfica
ferenciar uma de outra foi a comparação da atual, o uso de maiúsculas nos meses do ano e
proporção assumida pela letra em relação às no vocábulo “brasileiro”.
demais que constituíam a palavra, bem como Em síntese, após analisar os aspectos or-
a analogia de palavras em que se tinha certe- tográficos nos documentos, percebe-se que
za de que estavam grafadas com a primeira as ocorrências constatadas podem dar-se
letra maiúscula. pelo fato de não existir normatização do uso
Outro ponto de dúvida encontrado foi en- da língua portuguesa no início do século XX.
tre a semelhança gráfica das letras “r” e “s” Por isso, um exame paleográfico possibilita
minúsculas. Exemplo disso é a palavra “regi- um resgate tanto histórico, quanto linguís-
mento” (Ms.1, Ms.2 e Ms.3), que, inicialmente tico do português brasileiro antigo, além de
se achou que era o vocábulo “seguimento”. A uma significativa contribuição para os estu-
solução encontrada foi comparar os vocábu- dos referentes à língua portuguesa.
los que se tinha dúvida com aqueles em que
se tinha certeza de que a grafia era com “s”
ou com “r”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica
textual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
Com base na análise paleográfica dos quatro DONADEL, Gabriela. Grupos consonantais im-
documentos transcritos da Brigada Militar próprios: estudo diacrônico com base em
do Rio Grande do Sul, pode-se verificar que a gramáticas. 2007. 145 p. Dissertação de mes-
ortografia do português brasileiro passou por trado – Universidade Federal do Rio Grande
algumas transformações ao longo dos anos. do Sul, Porto Alegre, 2007.
Através da edição diplomática dos manus-
critos, constatou-se que: no sistema vocálico, JÚNIOR. Hélio, Y. S.; CAETANO, Eva Mara; GOMES,
os documentos apresentaram substituições Nataniel, S. Almanack corumbaense: o desu-
entre as vogais, sendo elas as de e por i e o por so das consoantes geminadas no português
u. Já no sistema consonantal, ocorreram as contemporâneo. [On line]. Disponível em:
maiores divergências entre a ortografia antiga <http://www2.unemat.br/avepalavra/atual/Ar-
e atual, principalmente no uso das consoantes quivos/silvajr> Acesso em: 11 de junho de 2017.
geminadas (como em “commando”), nas subs-
tituições de consoantes, como em s por z e nos LIMA, Rocha. Gramática normativa da lín-
encontros consonantais impróprios, como em gua portuguesa. 48º ed. Rio de Janeiro: José
“assignado”, além do uso do h, grafado nos vo- Olympio, 2010.
cábulos por razões etimológicas, como em
“thesoureiro”. No que diz respeito aos dia- SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crí-
críticos, a não utilização do acento agudo foi tica textual. São Paulo: Cultrix, EDUSP, 1977.
ANNE GILCHRIST E WALT WHITMAN:
AN ENGLISHWOMAN’S ESTIMATE OF WALT WHITMAN

Daniela do Canto1
Anselmo Peres Alós2

RESUMO: Depois de terminar de criar os quatro filhos sozinha e de finalizar a biografia de William
Blake iniciada pelo marido, mas interrompida com a sua prematura morte aos trinta e três anos,
Anne Gilchrist conhece a obra de Walt Whitman através dos amigos Ford Madox Brown e William
Michael Rossetti. Ao ler o impactante Leaves of Grass pela primeira vez, Anne foi arrebatada pelas
palavras do poeta norte-americano, acreditando que se tratava de sua cara metade. Em 1870 Anne
publica, com a ajuda e o incentivo de William Rossetti, suas impressões sobre os poemas, sob o tí-
tulo de A Woman’s Estimate of Walt Whitman, o que fez de Anne a primeira grande crítica de Walt
Whitman. As cartas trocadas com o poeta amplificaram a admiração que Anne nutria por Whitman,
fazendo com que ela viaje para os Estados Unidos na esperança de que teria no poeta um compa-
nheiro para o resto de sua vida. A estadia nos Estados Unidos não rendeu a Anne o casamento que
ela esperava, mas uma amizade incondicional que duraria pelo resto de suas vidas.
Palavras-chave: Anne Gilchrist; Walt Whitman; cartas; Estados Unidos.

ABSTRACT: After bringing up her children and finishing the biography of William Blake that her
husband was unable to finish, due to his premature death at the age of thirty-three, Anne Gilchrist
was introduced to Walt Whitman’s work by her friends Ford Madox Brown and William Michael Ros-
setti. Reading the impressive Leaves of Grass for the first time, Anne was raptured by the words of
the North American poet, leading her to believe that he was her better half. In 1870 Anne publishes,
with the help and the encouragement of William Rossetti, her impressions on the poems, entitled A
Woman’s Estimate of Walt Whitman, turning Anne into the first important critic of Walt Whitman’s
works. The letters she exchanged with the poet amplified her admiration of Whitman, and encoura-
ged her to travel to the United States hoping that she would have in the poet a partner for the rest of
her life. Her stay in the United States did not give Anne the marriage that she hoped for, but a lifelong
unconditional friendship.
Keywords: Anne Gilchrist; Walt Whitman; letters; United States.

Filha de John Parker Burrows e Henrietta Carwardine, Anne Gilchrist nasce Anne Burrows,
em 1828, na cidade de Londres. Pelo lado materno, Anne descende de uma tradicional famí-
lia de Essex, e de seu pai ela herda a paixão pela leitura e pelos estudos. Sempre foi uma aluna
brilhante, no que teve total apoio de seus pais, que a incentivaram a continuar seus estudos
em casa após a conclusão dos cursos na escola regular para moças, aos dezesseis anos. Anne
lia muito e nutria especial interesse por filosofia e ciências.

1 Graduada em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria, realizou especialização em Ensino de Língua Inglesa e Uso de Novas Tecnologias pela
Universidade Gama Filho e mestrado em Estudos Literários pelo PPG-Letras da Universidade Federal de Santa Maria. Doutoranda em Estudos Literários pela
PPG-Letras da UFSM, na linha de pesquisa Literatura, cultura e interdisciplinaridade. Servidora da Universidade Federal de Santa Maria no cargo de Tradutora
de Língua Inglesa. E-mail: danidocanto@hotmail.com.

2 Doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor Adjunto III no Departamento de Letras Vernáculas da UFSM. Docente Perma-
nente do Programa de Pós-Graduação em Letras dessa mesma instituição. realizou Estágio Pós-Doutoral no PPG-Letras da Universidade Federal de Pernambu-
co como bolsista do Plano Nacional de Pós-Doutoramento (PNPD/CAPES), sob supervisão do Prof. Dr. Roland Walter. E-mail: anselmoperesalos@hotmail.com.
136 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Aos 23 anos, depois de um período de Londres, em 1856, o casal já tinha os dois


dois anos de noivado, Anne casa-se com o filhos mais velhos, Percy, nascido em 1853 e
jovem advogado Alexander Gilchrist, um jo- Beatrice, em 1854. Os dois filhos mais novos
vem de mesma idade que a sua. Sobre sua nasceram em seguida, Herbert em 1857, e
união com Alexander, Marion Alcaro (1991), Grace, em 1859.
biógrafa de Anne, diz que no início ela não Em 1861, já passados seis anos desde o
pensava em casamento, havendo inclusive início das pesquisas para a biografia de Blake,
recusado o primeiro pedido de Alexander, e Alexander não havia conseguido entregar
que havia apenas decidido casar-se com ele o prometido manuscrito aos Macmillan. Já
pelos laços intelectuais que os uniam: “when esgotado pelo trabalho, começa a sentir seu
Alexander Gilchrist came wooing once again, corpo debilitado. Neste mesmo ano, a filha
begging her ‘with passionate entreaties’ it Beatrice contrai escarlatina, obrigando Anne
is not surprising that she reconsidered his a deixar seus trabalhos de auxiliar do marido
proposal. For even though he inspired only e dedicar-se exclusivamente aos cuidados da
sisterly affection, his tastes were intellectual filha. Alcaro (1991) explica:
and he was deeply interested in arts” (ALCA-
RO, 1991, p. 57)3. Scarlet fever was the scourge of the nine-
Esses laços eram realmente muito fortes, teenth century, raging through worldwi-
e Alexander sempre a incentivou a escrever, de populations and, for those who survi-
arte que Anne tanto gostava e que lhe foi de ved, often leaving tragic aftereffects like
grande valia no futuro. Nos dez anos em que elephantiasis. In an epidemic in 1863, thir-
foi casada com Alexander, Anne, além de se ty thousand people died in England alone.
tornar mãe de quatro filhos, foi auxiliar do In October 1861, Beatrice came down with
marido nas suas pesquisas, publicou cinco this dread disease. For six weeks she was
artigos científicos e escreveu um livro infan- seriously, then dangerously ill. Anne remai-
til. Quando Alexander e Anne casaram-se, ned in the sickroom night and day, isolating
Alexander estava ocupado com as pesquisas herself from the other members of the fa-
para sua biografia Life of Etty, publicada em mily (p. 89)4.
1855. Logo após a publicação dessa primei-
ra obra biográfica, Alexander rapidamente É durante a doença da filha que Alexan-
decide-se por seguir a vida de escritor, aban- der escreve aos irmãos Macmillan, explican-
donando a carreira de advogado, no que teve do que em função da doença da filha, não
apoio de sua esposa, tão apaixonada pelas conseguiria entregar os capítulos na data
artes quanto ele. O casal muda-se para Lon- prometida. Curiosamente, essa carta seria a
dres, a fim de facilitar as pesquisas para esta última de sua vida. Pouco tempo após a me-
segunda biografia, desta vez sobre um gra- lhora de Beatrice, Alexander também contrai
vurista, pintor e escritor, com uma reputação a doença, mas seu corpo frágil não consegue
não menos controversa que Etty, chamado reagir e a doença o leva à morte em pouco
William Blake. Anne torna-se uma impor- tempo. Ao morrer, em uma noite de muita
tante auxiliar do marido, organizando suas chuva e vento do mês de novembro de 1861,
pesquisas, copiando seus manuscritos e con- Alexander Gilchrist deixa sua esposa Anne
ferindo fatos e datas. Ao se mudarem para com os quatro filhos pequenos e um belíssi-

4 “Escarlatina era o flagelo do século XIX, alastrando-se pela população


3 “[...] quando Alexander Gilchrist veio querendo namoro novamente, mundial, e naqueles que sobreviviam, deixava sequelas trágicas, como a ele-
‘implorando com apelos apaixonados’, não é de admirar que ela tenha recon- fantíase. Na epidemia de 1863, somente na Inglaterra, foram trinta mil mor-
siderado sua proposta. Pois mesmo que ele apenas inspirasse sentimentos tes. Em outubro de 1861, Beatrice contrai a temida doença. Por seis semanas
fraternos, seu gosto era intelectual e ele era profundamente interessado nas ela ficou séria e perigosamente doente. Anne ficou ao seu lado noite e dia,
artes” (tradução nossa). isolando-se do restante da família” (tradução nossa).
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mo trabalho pesquisado e escrito, mas ina- setti e emprestada a ela em 1869, oito anos
cabado. Anne imediatamente resolve termi- após a morte de Alexander, pelo amigo e fu-
nar o trabalho do marido, escrevendo aos turo sogro de Rossetti, Ford Madox Brown. É
Macmillan e pedindo-lhes um pouco mais através desse trabalho que Anne conhece e
de tempo para entregar os manuscritos pro- se encanta pelo poeta, e é a partir desse pri-
metidos, explicando-lhes que, sendo auxiliar meiro encontro com a obra de Whitman que
de Gilchrist e conhecedora do seu trabalho, surge uma grande admiração e uma inaba-
poderia completar o que estava faltando, ter- lável amizade, que terá seus primeiros anos
minando a biografia dentro de pouco tempo. baseados em cartas e que terá como grande
Anne muda-se então, com os quatro filhos, episódio a ida de Anne e dos filhos para a
para uma pequena vila chamada Shottermill, América.
mesmo contra a vontade dos bons amigos A primeira edição de Leaves of Grass, que
que deixa em Londres. Desses amigos, são os foi impressa em 1855, contou com apenas
irmãos Dante Gabriel e William Rossetti que 795 cópias e foi totalmente custeada pelo
se oferecem para ajudá-la na finalização da próprio autor. A obra não foi muito bem re-
obra mais importante da carreira de escritor cebida pelo público e pelos críticos estaduni-
do falecido marido. Holmes (2013) salienta denses, que a consideravam muito “aberta”
que o compromisso de finalizar a biografia com relação a assuntos sexuais e considera-
talvez não fosse somente uma homenagem a vam tanto a forma do poeta escrever quanto
Alexander, mas que havia um je ne se quoi que o assunto abordado demasiadamente angus-
Anne escreveu anos após a morte do marido tiantes. Mesmo assim, em fevereiro de 1860,
que daria a entender ser também um pedido em meio a uma grave crise, onde a possibi-
de desculpas. Segundo Holmes, Anne escre- lidade de uma guerra civil nos Estados Uni-
vera que, ao encontrar-se ao lado do caixão dos se fazia cada vez mais próxima, Whitman
do marido, sentia-se culpada, como se não recebe uma proposta dos editores William
tivesse cuidado dele como deveria, como se Thayer e Charles Eldridge, oferecendo-se
não o tivesse amado como ele merecia. Com para publicarem a nova edição de Leaves of
a ajuda dos Rossetti, Anne Gilchrist consegue Grass. Diante da possibilidade de receber
completar a biografia, e The Life of William royalties pela sua obra, Whitman pronta-
Blake: Pictor Ignotus é publicada em 1863. mente aceita, e assim o livro de mais de 450
A biografia, a primeira de William Blake, foi páginas, cuidadosamente supervisionado e
fundamental para a recepção do artista no revisado pelo autor, é publicado.
século XIX, desmistificando a imagem de in- Apesar do choque inicial sofrido por al-
sano pela qual era lembrado e colocando-o guns leitores ao ler pela primeira vez o Lea-
como um gênio de uma imaginação extraor- ves of Grass, Ed Folson, M. Robertson e Ken-
dinária, sendo, até hoje, uma referência para neth M. Price, no seu texto “Walt Whitman”,
todos os estudos acerca da vida e da obra do disponível no The Walt Whitman Archive, ex-
autor. plicam que esse não era o objetivo do livro:
Apesar do sucesso imediato e dos vários
elogios recebidos por sua participação na Leaves of Grass was not a book that set out
publicação de The Life of Blake: Pictor Igno- to shock the reader so much as to mer-
tus, Anne Gilchrist é conhecida na literatura ge with the reader and make him or her
estadunidense como a mulher inglesa que se more aware of the body each reader inha-
apaixonou perdidamente por Walt Whitman bited, to convince us that the body and soul
ao ler Leaves of Grass em uma seleção dos were conjoined and inseparable, just as
poemas compilada por William Michael Ros- Whitman’s ideas were embodied in words
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that had physical body in the ink and paper Mesmo não tendo uma recepção muito
that readers held physically in their hands. positiva pelos seus conterrâneos, a Ingla-
Ideas, Whitman’s poems insist, pass from terra recebeu o poeta muito bem, tendo no-
one person to another not in some ethere- mes como Dante Gabriel Rossetti e Algernon
al process, but through the bodies of texts, Charles Swinburne entre os escritores que
through the muscular operations of ton- admiravam o seu trabalho. Mas de todos os
gues and hands and eyes, through the ma- admiradores ingleses, Anne Gilchrist foi a
terial objects of books (Folson, Robertson que mais causou impacto em Whitman.
and Price, 2006, p. 147-148)5. O filho Herbert Gilchrist, no prefácio da
biografia que escreveu da mãe, afirma que
A edição de 1860 foi muito bem recebida, algumas das cartas mais lindas escritas pela
principalmente pelo público leitor feminino mãe foram endereçadas a seu amigo Walt
que, segundo os autores, ficaram mais ra- Whitman. Herbert afirma que, ao pedir per-
diantes do que ofendidas pela forma com que missão para publicar algumas dessas cartas,
Whitman tratou o corpo e o sexo, na tentati- o poeta teria respondido que ele preferiria
va de igualar homens e mulheres. A Guerra manter o conteúdo dessas cartas apenas
Civil Americana, que eclodiu em 1861, fez para ele, mas que não poderia deixar de di-
com que qualquer investimento financeiro zer que de todas as mulheres perfeitas que
no período fosse um tanto arriscado, e al- ele conheceu (e ele teve a sorte de conhecer
gumas decisões erradas levaram os editores várias), a mais perfeita em todos os sentidos
Thayer e Eldridge à falência. A venda dos fora a amiga querida Anne Gilchrist:
direitos de impressão de Leaves of Grass ao
editor Richard Worthington, que continuou “I do not know”, he says in a late letter to
a comercializar as muitas cópias impressas me, “that I can furnish any good reason, but
pelos antigos editores do livro ainda durante I feel to keep these utterances exclusively
vários anos, tornou a edição de 1860 muito to myself. But I cannot let your book go to
comum, diminuindo o impacto e, consequen- press without at least saying-and wishing
temente, as vendas de novas edições. it put in record-that among the perfect wo-
Durante cinco anos a Guerra Civil castigou men I have known (and it has been my uns-
os Estados Unidos, e nesse tempo Whitman peakably good fortune to have had every
trabalhou em hospitais, cuidando dos doen- best, for mother, sisters and friends) I have
tes e feridos, servindo-lhes de companhia e known none more perfect than my dear,
apoio, mas descuidando de sua própria saú- dear friend, Anne Gilchrist”6 (GILCHRIST,
de e situação financeira. Em 1873, já com a 1887, p. v e vi).
saúde bastante debilitada e financeiramente
arruinado, Whitman sofre um derrame, dei- O primeiro contato de Anne Gilchrist com
xando seu lado esquerdo parcialmente pa- as obras do poeta deu-se através de uma se-
ralisado, mudando-se, então, para a casa de leção dos poemas de Whitman que foi ‘cen-
seu irmão George e de sua esposa Lou, em surada’ por William Rossetti, em uma tenta-
Camden, New Jersey. tiva de adaptar os poemas ao público conser-
vador inglês. Apesar de Rossetti orgulhar-se
5 “A proposta inicial de Leaves of Grass não era a de chocar o leitor, mas
sim de fundir-se com o leitor, e torná-lo consciente do corpo em que habita,
convencer-nos de que corpo e alma eram unidos e inseparáveis, assim como 6 “’Eu não sei’ ele disse em uma carta a mim, ‘se eu posso fornecer alguma
as ideias de Whitman eram incorporadas em palavras que continham cor- boa razão, mas sinto que preciso manter essas declarações exclusivamente
po físico na tinta e no papel que os leitores seguravam fisicamente em suas para mim mesmo. Mas não posso deixá-lo publicar seu livro sem ao menos
mãos. As ideias, os poemas de Whitman insistem, passam de uma pessoa à dizer – e desejo que seja registrado – que entre as mulheres perfeitas que
outra não de como um processo etéreo, mas através do corpo dos textos, atra- conheci (e tive a sorte de ter as melhores como mãe, irmãs e amigas) não co-
vés das operações musculares das línguas e mãos e olhos, através dos objetos nheci uma mais perfeita que minha querida, querida amiga Anne Gilchrist’”
materiais dos livros” (tradução nossa). (tradução nossa).
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 139

em dizer que manteve os poemas em sua point of view this is even blameless; but
forma original, a versão de Leaves of Grass from another, the modern reader’s point of
editada por Rossetti apresentava várias al- view, it is quite intolerable (ALCARO, 1991,
terações, incluindo troca ou omissão de pa- p. 116-117)9.
lavras e mudanças de títulos. Alcaro (1991)
escreve: Ao ler Leaves of Grass, Anne Gilchrist
prontamente o reconheceu como uma gran-
Although Rossetti prided himself on prin- de obra de arte, apesar da obra conter pa-
ting the poems used in the selections wi- lavras e expressões que escandalizariam a
thout any omissions or changes, neverthe- maior parte dos conservadores vitorianos.
less he had fussed over the volume like a Alcaro (1991) ainda explica que, ao ler a se-
pursed-lipped English nanny in order to leção completa dos poemas, Anne sentiu um
make the work acceptable to the British impacto emocional enorme, fazendo com
public – changing titles, altering Walt’s que muitas vezes ela pensasse que não con-
arrangement of the poems, leaving words seguiria ler os poemas até o final, e que, mui-
like womb and prostitute out of the 1855 tas vezes, fosse obrigada a largar o livro por
preface (ALCARO, 1991, p. 119)7. algum tempo antes de retomar a leitura.
Anne escreve a William Rossetti, agrade-
Segundo Alcaro, o propósito de Rossetti ao cendo-o por tê-la apresentado ao trabalho de
editar a seleção dos poemas de Whitman era Whitman e dizendo que, desde que começou
o de apresentar ao público inglês um poeta a ler os poemas, não consegue ler nada além
a quem ele considerava “a few steps below deles. Rossetti sugere à amiga que publique
Shakespeare on the throne of immortality” suas impressões sobre o trabalho de Whit-
(ALCARO, 1991, p. 116)8, mas que estava re- man, pois aprecia muito sua forma de pensar
freado em seu país de origem. Em uma carta e de escrever sobre o americano, sentindo
endereçada a Anne Gilchrist e transcrita no que seria exatamente desse tipo de admi-
livro Walt Whitman’s Mrs. G., de Marion Wa- ração que o poeta estaria necessitando. Nas
lker Alcaro, William Rossetti atribui a dificul- cartas trocadas entre Anne e Rossetti sobre
dade de aceitação dos poemas de Whitman à o assunto e publicadas pelo filho na biogra-
forma franca e direta com a qual ele fala dos fia de Anne Gilchrist, pode-se notar certo re-
assuntos físicos: ceio, certa insegurança por parte de Anne em
publicar suas impressões. Anne compartilha
The sort of thing that people object to in com o amigo Rossetti que não seria uma boa
Whitman’s writings is not so easily sur- crítica, coisa da qual, aliás, ela era contrária:
mised until one sees them. It might be ex- “You know I am but a poor critic – indeed ad-
pressed thus – that he puts into print phy- verse to criticism; what I like, I grasp firmly
sical matters with the same bluntness and but silently; what I do not like I prefer to let
directness almost as that with which they go silently, too...” (GILCHRIST 1887, p. 182)
present themselves to the eye and mind, or 10
.
are half worded in the thought. From one
9 “As coisas que as pessoas desaprovam nos escritos de Whitman não são
facilmente supostas até que se tenha contato com eles. Pode ser considerado
7 “Apesar de Rossetti e orgulhar em ter impresso os poemas usados nas então, que ele expressa os assuntos físicos com a mesma franqueza e objetivi-
seleções sem mudanças ou omissões, não obstante ele teria remexido no vo- dade quase como eles se apresentam ao olho ou à mente, ou como meias-pa-
lume como uma reprovadora babá inglesa, com o intuito de tornar o trabalho lavras nos pensamentos. De um ponto de vista isso chega a ser inocente; mas
aceitável ao público inglês – mudando títulos, alterando os arranjos que Walt de outro, do ponto de vista do leitor moderno, é praticamente intolerável”
havia feito dos poemas, deixando de fora palavras como útero e prostituta do (tradução nossa).
prefácio de 1855” (tradução nossa).
10 “Você sabe que sou uma crítica mediana – de fato adversa às críticas; às
8 “[...] poucos passos abaixo de Shakespeare no trono da imortalidade” coisas das quais gosto, me agarro em silêncio; e do que não gosto, me desa-
(tradução nossa). pego, também em silêncio” (tradução nossa).
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Devido à insistência de Rossetti, Anne outros tantos papéis. Alcaro (1991) salienta
acaba cedendo, dizendo que fará o melhor que há uma diferença entre a reação de Su-
que puder para escrever algo sobre Walt san Smith e a de Anne Gilchrist: “What Susan
Whitman, tentando “clear away the clouds of from Hartford seems to have had in mind was
misapprehension that now hide Walt Whit- a melodramatic but brief encounter. Anne’s
man from men’s eyes’11 (GILCHRIST 1887, response was love with many dimensions”
p. 183). E é assim que, em 1870, Anne Gil- (p. 121)16.
christ publica, anonimamente em Boston, A Anne Gilchrist também não foi a primei-
Woman’s Estimate of Walt Whitman, tendo o ra mulher a defender a obra de Whitman em
título mudado posteriormente por Herbert forma de artigo. Sara Payson Willis Eldridge
Gilchrist, em 1887, para An Englishwoman’s Farrington Parton, que assinava como Fan-
Estimate of Walt Whitman. Essa resenha bri- ny Ferm, também escreveu sobre Leaves of
lhante do trabalho de Whitman fez de Anne Grass em sua coluna no New York Ledger no
a primeira grande crítica de Leaves of Grass e dia 10 de maio de 1856. A resenha, no en-
foi realmente muito cara a Whitman, por ter tanto, ao contrário do intencionado, não
sido publicada quando o poeta passava por exerceu um impacto favorável no público.
um período muito ruim de sua carreira. Logo após a publicação da edição de 1860,
Ao ler Leaves of Grass, Anne percebeu fi- Juliette Hayward Beach publicou em The Sa-
nalmente o que havia faltado em seu casa- turday Press uma resenha muito favorável de
mento com Alexander. Whitman dizia que o Leaves of Grass, assinando apenas como “A
sexo deveria ser “a glorious experience for Woman”17 e proclamando Whitman como o
both male and female” (ALCARO, 1990, p. novo gênio nacional. No dia três de junho de
119)12. Pela primeira vez Anne pôde men- 1860, outra resenha é publicada no New York
surar a frustração sexual que a acompanhou Sunday Mercury, essa assinada por Adah Isa-
por toda sua vida adulta. Essa percepção fez acs Menken, descrita por Alcaro (1990) como
com que ela direcionasse a Whitman uma poetisa e atriz extravagante. Adah escreveu
paixão nunca antes experimentada, deposi- que Whitman estava séculos à frente dos
tando nessa relação uma entrega absoluta de seus contemporâneos, e o comparou ao po-
corpo e alma, o que ela deixava transparecer eta Edgar Allan Poe, primeiro incompreendi-
nas cartas enviadas ao poeta. do para depois ser aclamado. Alcaro (1990)
Alcaro (1990) lembra que Anne Gilchrist ressalta que, por mais sinceros e valorosos
não foi a única mulher a responder “orgas- que tenham sido os seus argumentos dessas
mically”13 (p. 120) à poesia de Whitman. Em mulheres a favor de Whitman, nenhuma se
1860, uma mulher chamada Susan Garnet compara a Anne Gilchrist:
Smith14 de Hartford, Connecticut, enviou
uma carta ao poeta expondo o seu amor. In addition to defending Whitman’s work
Após ler a carta, Whitman escreveu no en- against the charges most commonly leve-
velope insane asylum15 e a guardou junto à led against it – sensuality, indecency, the
lack of a “poetic” diction and form – “Esti-
11 “[...] abrir caminho através das nuvens de equívocos que escondem Walt
Whitman dos olhos dos homens” (tradução nossa). mate” is a thoughtful and penetrating con-
12 “Uma experiência gloriosa para homem e mulher” (tradução nossa). sideration not only of what he wrote, but
13 “Orgasmicamente” (tradução nossa). how and why. It explores and defines his
14 Até hoje não se sabe ao certo quem foi Susan Garnet Smith e também
não há registros de como a carta chegou às mãos de Walt Whitman, pois o
envelope não estava endereçado ou carimbado. Alcaro (1990, p. 248) men- 16 “O que Susan Hartford parece ter tido em mente era um encontro casual
ciona que quando questionado sobre a origem da carta, Whitman respondia melodramático. A resposta de Anne era amor em muitas dimensões” (tradu-
de uma forma evasiva. ção nossa).

15 “Hospício” (tradução nossa). 17 “Uma Mulher” (tradução nossa).


revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 141

philosophy and analyzes in depth the clo- inclusive por ele próprio, criando imagens e
se relationship between Walt’s poetry and denominações para si em suas poesias. A au-
science. And it contains an eloquent plea tora, no entanto, diz que Anne também não
for new understanding of the physical na- se menosprezava, e que ela era ciente de sua
ture and needs of women. In its structure, capacidade intelectual e literária, ao contrá-
in the management of its varying tensions rio da grande maioria das mulheres de sua
in the sure touch that creates crescendo af- época, que tinham poucas oportunidades de
ter crescendo without loss of control, in the estudo e de liberdade de expressão. Anne sa-
logical progression of points that are made, bia-se à altura de Whitman intelectualmente
and in its persuasive skill, Anne’s essay is a e sexualmente (ALCARO, 1990, p. 21).
flawless piece of expository writing18 (AL- A crítica favorável e entusiasta de Anne à
CARO, 1990, p. 130). obra de Whitman fez com que Rossetti en-
frentasse um dilema. Ao mesmo tempo em
Talvez Anne não estivesse mesmo apaixo- que sabia que as cartas de Anne eram exata-
nada por Whitman como ela pensava estar. O mente o que o poeta precisava naquele mo-
fato de ter finalmente conseguido extravasar mento em que sua carreira sofria um grande
uma sexualidade reprimida durante toda a desgaste (e que uma opinião tão fortemente
sua vida certamente a fez “amar” Whitman; favorável de uma mulher culturalmente re-
se não pelo homem, o amou pelo poeta, pelo finada e intelectualmente capacitada como
artista. Por suas palavras e não pelos ges- Anne Gilchrist seriam de valor inestimável),
tos. Ela estava apaixonada pelo mito, e não Rossetti receava que a poesia de Whitman,
pelo homem. Era um amor quase alucina- considerada por muitos como indecente e
tório, uma espécie de loucura. A autora cita desrespeitosa, poderia causar algum tipo
que Freud descreve o estar apaixonado como de constrangimento a Anne e à sua família,
um protótipo normal da psicose, e bem lem- e considerava sua obrigação proteger a ima-
brou em seu artigo que, ao conhecer a obra gem de Anne, a quem tinha como uma irmã.
do poeta, Anne já era viúva havia oito anos, Por essa razão, Rossetti aconselhou Anne a
durante os quais ela esteve absorvida nos publicar A Woman’s Estimate of Walt Whit-
cuidados da casa e dos filhos, e também no man de forma anônima, protegendo, assim,
término da biografia de Blake que Gilchrist sua reputação.
havia deixada inacabada ao morrer. A ideia A Woman’s Estimate of Walt Whitman foi
de um homem que poderia fazer com que ex- submetido primeiramente à revista Gala-
perimentasse sensações que ela jamais havia xy, mas os editores recusaram-se a publicar
experimentado a fez entregar-se a uma pai- o artigo, dizendo que ele não seria do inte-
xão que ela julgava real. Anne criou uma ima- resse do seu público leitor. Alcaro (1990, p.
gem perfeita de Whitman, não restam dúvi- 127) explica, no entanto, que provavelmen-
das quanto a isso, e Alcaro (1990) lembra te o verdadeiro motivo da negativa foi que
que o poeta era também ovacionado pelos a Galaxy era notoriamente desfavorável aos
seus amigos e por seus futuros biógrafos, e direitos femininos, e portanto, não estavam
dispostos a se envolver em tais questões. O
18 “Além de defender a obra de Whitman contra as acusações comumente artigo foi então submetido à revista Radical
levantadas contra ela – sensualidade, indecência, falta de fluência e forma
‘poética’ – “Estimate” é uma análise atenciosa e penetrante não somente do e publicado em 1870.
que ele escreveu, mas como e por quais motivos. Explora e define sua filoso-
fia e analisa a fundo a relação estreita que existe entre a poesia de Walt e a As cartas de Anne ao amigo Rossetti, que
ciência. Contém um eloquente apelo à nova compreensão da natureza física e
necessidades das mulheres. Em sua estrutura, na administração de suas ten- basearam o texto publicado em 1870, foram
sões variáveis no toque certeiro, criando crescendo após crescendo sem per-
der o controle, na progressão lógica de afirmações feitas e na sua habilidade fundamentais para que o poeta pudesse re-
persuasiva, o texto de Anne é um exemplo de escrita informativa impecável”
(tradução nossa). erguer-se, e Whitman agradece ao escritor
142 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

anônimo através de Rossetti. Ela resolve encontrar-se finalmente com o poeta que ela
então, no ano seguinte, escrever uma carta acreditava ser o grande amor da sua vida.
endereçada diretamente ao poeta, apresen- Anne escreve então à Whitman, dizendo
tando-se, confessando seu amor e dizendo que ela e os filhos, com exceção de Percy, o
que acreditava ser o par ideal para ele. Por mais velho, embarcariam em breve para a
seis anos após a publicação de A Woman’s América. Alcaro (1991) conta que o poeta
Estimate of Walt Whitman, Anne e Whitman entrou em pânico ao receber tal notícia, e
trocaram correspondências. Segundo Ma- chegou a escrever uma carta à Anne desen-
rion Alcaro (1991), eram de Anne as cartas corajando-a a realizar a jornada, dizendo
mais longas e frequentes. Nelas, a viúva de que havia todo tipo de crueldade na América
Gilchrist descrevia seu casamento como en- e pedindo que ela não tomasse providência
fadonho, e também as dificuldades que teve alguma sem antes ouvir notícias dele20. Os
para criar sozinha os quatro filhos, após a pedidos do poeta não a comovem. Anne já
morte de Alexander19. Desde a primeira cor- havia ponderado muito a respeito dessa de-
respondência, fica claro para Whitman que cisão e ela já estava tomada. Alcaro (1991)
se tratava de uma mulher extraordinária, acrescenta que, além do fato de Anne acre-
intelectual e espiritualmente, e suas cartas ditar que ela e Whitman apaixonar-se-iam
eram guardadas como tesouros pelo poeta. no momento em que se encontrassem pela
As primeiras cartas de Whitman para Anne primeira vez, ela também estava certa de que
eram educadas e atenciosas, mas aos poucos morar nos Estados Unidos beneficiaria seus
foram tornando-se mais íntimas e cheias de filhos. Beatrice poderia ir para a Escola de
afeição. Em certa ocasião, o poeta envia um Medicina e completar os estudos iniciados
anel de ouro tirado de seu próprio dedo para em Londres, pois as leis na Inglaterra não
Anne, e havia se tornado comum que Anne permitiam que as moças obtivessem um di-
fosse a primeira a ler os manuscritos de seus ploma em Medicina e Anne sabia que a Wo-
novos poemas. A iniciativa de Whitman em man’s Medical College of Pennsylvania daria a
enviar o anel à Anne não teria o significado oportunidade de Beatrice realizar seu sonho
convencional. Para eles, o poeta quis que o de se tornar médica. Para o filho Herbert, a
anel fosse símbolo não de um amor românti- América disponibilizaria novos rumos aos
co, mas de um amor fraterno e de uma ami- seus estudos em Artes e para a caçula Grace,
zade incondicional que ele estava disposto a a viagem proporcionaria conhecer um mun-
partilhar com ela. Whitman também pedia a do totalmente novo, e ela embarcava nessa
amigos estadunidenses que estivessem em jornada cheia de felicidade e curiosidade.
Londres para visitar Anne, conferindo se ela Foi assim então que, em 30 de agosto de
precisava de algo. Até aquele momento pare- 1876, Anne embarca, no porto de Liverpool,
cia que um encontro real entre os dois seria junto dos filhos Beatrice, Herbert e Grace, no
uma coisa muito pouco provável de aconte- navio Ohio, com destino à Filadélfia. As re-
cer. Até que, em 1876, com a morte da mãe, servas do amigo Rossetti a respeito da jor-
de quem Anne cuidava, e com seu filho mais nada dos Gilchrist e o ressentimento do filho
velho, Percy, trabalhando e com o casamento mais velho, Percy, não desencorajaram Anne,
marcado, Anne resolve que não há mais nada
que a impeça de ir para os Estados Unidos 20 “My dearest friend, I do not approve of your American trans-settlement.
I see so many things here you have no idea of – the social, and almost every
other kind of crudeness, meagerness here (at least in appearance). Don’t do
19 “She describes her marriage to colorless, pedantic Alex; his death from anything towards it nor resolve in it nor make any move at all in it within
scarlet fever at the age of thirty-three, leaving her with four young children; further advice from me” (ALCARO, 1991, p. 154) [Minha querida amiga, eu
her struggle to bring them up” (ALCARO 1991, p. 153). [Ela descreve seu ca- não aprovo sua resolução de vir à America. Vejo tantas coisas por aqui que
samento com o pálido e enfadonho Alex; sua morte de escarlatina aos trinta não fazes ideia – o social, e todas outras formas de rudeza, miséria (pelo me-
e três anos, deixando-a com quatro filhos pequenos; sua luta para criá-los nos aparentemente). Não faça nada e não tome providências a respeito disso
sozinha] (tradução nossa). antes de ouvir mais informações de minha parte] (tradução nossa).
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que chegou à América no dia 10 de setembro speculation – and of so many conflicting


de 1876, levando seus pertences pessoais, opinions about what happened – as the
seus livros, sua porcelana e seus móveis. first meeting of Anne Gilchrist and Walt
O filho Herbert, na biografia da mãe, con- Whitman. Each had a preconceived image
ta que ao chegar à Filadélfia, Anne escreve of the other. For each it was meeting both
ao amigo Rossetti, dizendo que eles fizeram a total stranger and a singularly intimate
uma boa viagem, e que ela estava muito bem friend. For each it was an intensely dramat-
impressionada pela pitoresca cidade21. O en- ic moment23 (ALCARO 1989, p. 159-160).
contro de Anne com Walt Whitman, que du-
rante tantos anos havia povoado a mente dos O que realmente aconteceu neste primei-
dois de curiosidades e fantasias – pelo que se ro encontro não é claro, e existem várias
tem registrado, mais da parte dela – aconte- versões, defendidas por diferentes autores.
ceu poucos dias após a chegada dos Gilchrist Alcaro diz, no entanto, que, em um ponto,
à Filadélfia. não há dúvidas: Whitman simpatizou ime-
A família já estava acomodada no Montgo- diatamente com os Gilchrist, admirando tan-
mery House, provavelmente recomendado to a mãe, “with her gracious manners and
por algum amigo inglês, pois segundo Alca- gentle dignity” (1991, p. 160)24, quanto os
ro (1991) não há registros de que Whitman filhos, sentindo-se confortável com eles des-
tenha enviado sugestões de pensões, como de o primeiro momento. Sabe-se que Anne
Anne havia pedido por carta. Assim que nutria um amor pelo poeta baseado no que
chegaram ao hotel, os Gilchrist conheceram ele escrevia, acreditando que um homem
John Burroughs, com quem Anne já havia se com aquela sensibilidade só poderia ser um
correspondido em prol de arrecadar fundos companheiro perfeito. Já Whitman admirava
para Whitman, nos dias de maior necessi- Anne por sua inteligência e sua capacidade
dade do poeta. A impressão que Burroughs de entender os seus poemas como ninguém.
teve dos Gilchrist, especialmente de Anne, foi Há várias histórias a respeito desse primeiro
a melhor possível. Em carta escrita à esposa encontro, da impressão que cada um causou
e transcrita no livro de Marion Alcaro (1991, no outro, ainda segundo Alcaro (1991). Há
p. 159), Burroughs diz que “Mrs. Gilchrist is a uma unanimidade, no entanto, no que diz
rosy woman without a gray hair in her head. respeito à impressão causada por Anne em
I like her much”22. Alcaro destaca que foi pro- Whitman. O poeta viu-se frente a uma bela
vavelmente Burroughs que avisou Whitman e educada mulher inglesa, com filhos tão be-
da chegada dos amigos à América, pois no los e educados quanto a mãe, dando ao poeta
dia 13 de setembro o poeta saiu de Camden, uma agradável sensação de aconchego fami-
onde morava com o irmão e a cunhada, para liar e de carinho que imediatamente o arre-
o tão esperado encontro com os Gilchrist no batou.
Montgomery House. Alcaro (1991) segue dizendo que é na re-
Marion Alcaro escreve: ação de Anne que se encontram as divergên-
cias. Alguns estudiosos de Whitman afirmam
In the history of letters, few meetings have que Anne Gilchrist aos poucos se desiludiu
been the subject of so much conjecture and e abandonou sua paixão por Whitman. Ou-

23 “Na história das cartas, poucos encontros foram tão sujeitos a conjectu-
21 “A fairly good voyage. Favourably impressed by Philadelphia, a fine pic- ras e especulações – e de tantas opiniões conflitantes sobre o que realmente
turesque city” (GILCHRIST 1887, p. 227) [Uma viagem bastante agradável. aconteceu – do que o primeiro encontro de Anne Gilchrist e Walt Whitman.
Favoravelmente impressionada pela Filadélfia, uma cidade boa e pitoresca] Cada um tinha uma imagem pré-concebida do outro. Para ambos, era como
(tradução nossa). conhecer um total estranho e, ao mesmo tempo, um amigo íntimo. Para am-
bos, era um momento intensamente dramático” (tradução nossa).
22 “A Sra. Gilchrist é uma mulher rosada, sem um fio de cabelo branco na
cabeça. Eu gostei muito dela” (tradução nossa). 24 “[...] com sua educação graciosa e gentil dignidade” (tradução nossa).
144 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

tros a colocam abandonando tudo e voltando Os Gilchrist contaram com a ajuda do novo
para a Inglaterra “desiludida” ou “derrotada”. amigo John Burroughs para procurar uma
Há ainda os que dizem que, enquanto esteve casa na Filadélfia, e acabaram por se acomo-
nos Estados Unidos, Anne continuou a inves- dar em uma residência localizada no número
tir em um romance com Whitman. Segundo 1929 da 22nd North Street. Os cômodos fo-
a biógrafa, existe um estudioso que diz que ram devidamente ocupados com os móveis e
Whitman teve que fugir de Anne para esca- os demais pertences trazidos pela família da
par de suas investidas. No entanto, o que há Inglaterra. No final de setembro, Whitman
de mais plausível, segundo Alcaro (1991, p. hospeda-se pela primeira vez com os amigos,
162) é que Anne tenha imediatamente se visita essa que seria a primeira de muitas du-
dado conta do terrível engano que cometeu rante a estada deles no país. O poeta tornou-
ao achar que Whitman seria seu companhei- se um hóspede tão regular que, em dezem-
ro perfeito e de que os dois viveriam uma lin- bro daquele ano, segundo Alcaro (1991), ele
da história de amor. O homem parado na sua escreve à Anne sugerindo que fosse colocado
frente estava longe de ser uma figura sem um fogão à lenha no quarto que seria ocupa-
graça, mas também não era em nada o protó- do por ele, e pedindo ainda que Herbert pro-
tipo do amante irreprovável que ela tinha em videnciasse lenha para ser colocada junto ao
mente. Desde o primeiro aperto de mão, fi- fogão. Pediu também que lhe fosse avisado
cou claro para Anne que, apesar do poeta pa- quando tudo estivesse pronto, pois se sentia
recer genuinamente feliz em conhecê-la, sua muito só e desejava juntar-se a eles o quanto
esperança de um grande amor correspondi- antes.
do não se concretizaria. O que Anne via ali Nos anos que os Gilchrist passaram nos
era um homem velho e abatido, com a saúde Estados Unidos, Whitman passou grande
debilitada, arrastando o pé esquerdo parali- parte com eles, tornando-se parte da família
sado por um derrame e parecendo bem mais e desenvolvendo um grande afeto pelos fi-
velho que ela. Imediatamente, todo aquele lhos de Anne, no que foi retribuído em igual
amor platônico que Anne havia alimentado medida. Em especial o menino Herbert, que
durante anos nas suas fantasias deu lugar a aspirava a seguir uma carreira nas Artes e
uma imensa amizade e um carinho sem pro- via em Whitman um grande mestre, toman-
porções, que fizeram deles companheiros na do notas de suas conversas e idealizando-o
amizade pelo resto de suas vidas (ALCARO, quase como um pai. Whitman teria dito em
1991, p. 163). certa ocasião ao amigo Traubel que eles
eram como uma família feliz, e Alcaro (1991)
diz que este sentimento de ser uma família
foi capturado no quadro The Tea Party (Figu-
ra 2), pintado por Herbert Gilchrist em 1884.
Nele, aparecem Whitman, Anne e Grace, sen-
tados à mesa, tomando chá.

Figura 1: retrato de Walt Whitman.


Disponível em: <http://www.poetryfoundation.org/bio/walt-whitman>.
Acesso em: 10 de abril de 2016.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 145

delicadeza feminina. Nos quase dois anos em


que conviveram, Anne e Whitman desenvol-
veram uma cumplicidade muito grande. Eles
discutiam de tudo: música, artes, política e fi-
losofia, nem sempre concordando, mas nun-
ca se desentendendo.
Anne cuidou de Whitman como quem cui-
da de um grande amor, e dedicou-se nesse
tempo em que esteve nos Estados Unidos a
ele com uma fidelidade de esposa. Alguns
amigos, e também a filha Grace, que ajudava
a mãe nos afazeres da casa, acreditavam que
Whitman abusava da caridade de Anne, e se
preocupavam com seu bem estar, achando-a
cansada e esgotada. Alcaro (1991) afirma, no
entanto, que Anne era uma mulher inteligen-
te demais para não ter se dado conta disso.
Figura 2: The Tea Party, de Herbert Gilchrist (1884). A pin- Certamente, assim como outros admiradores
tura original localiza-se na The Walt Whitman Collection, no
Department of Special Collections, Van Pelt Library, Univer- de Walt Whitman, ela foi conscientemente ví-
sity of Pennsylvania. Disponível em: <https://www.library. tima do seu charme e pagou esse preço pelo
upenn.edu/collections/rbm/mss/gilchrist/gilchrist.html>.
Acesso em 10 de abril de 2016. prazer da companhia do homem que um dia
ela pensara ser sua “cara metade”, mas que
Era na casa da rua 22nd North que Whit- se tornara um grande amigo e companheiro.
man sentia-se melhor. Sua saúde, debilitada A biógrafa ainda aposta na possibilidade de
durante anos, melhorara consideravelmente que o instinto maternal de Anne teria falado
sob os cuidados de Anne e de seus filhos. Os mais alto ao confrontar-se com aquele gran-
amigos admiravam-se em ver o quanto Whit- de homem com alma de criança.
man estava feliz e saudável. Alcaro (1991) Em março de 1878, Beatrice recebe seu
diz que Whitman sentia-se tão “em casa” na diploma de médica pela Woman’s Medical
residência dos Gilchrist que, em várias oca- College e foi aceita para realizar seu estágio
siões, convidou seus amigos para visitá-lo no New England Hospital for Women and Chil-
como se fosse o dono da casa. Anne recebia dren. Anne então resolve que está na hora de
a todos com muita hospitalidade e simpatia. partir. Ela distribui seus quadros e seus mó-
As noites na casa dos Gilchrist muitas ve- veis e embala seus livros e suas porcelanas.
zes terminavam com Anne ao piano e Whit- Em abril, Herbert vai para New York estudar
man declamando, ou então com a família Arte, Beatrice parte para iniciar seu estágio
toda sentada na sala conversando. Eram es- em Boston, e Anne vai com a filha mais nova,
sas conversas, especialmente as que travava Grace, para Massachusetts, para passar o ve-
com Anne, que Whitman mais gostava. Ele di- rão. Três anos mais tarde, Anne teria se refe-
zia que gostava de ouvi-la falar, que ela falava rido a este período como um “episódio estra-
com perfeição, e que, com Anne, não era pre- nho na minha vida” (ALCARO 1991, p. 167).
ciso baixar o conteúdo da conversa para que Os Gilchrist voltaram para a Inglaterra a
se adequasse a uma “mente limitada femi- bordo do navio Circassia no dia sete de junho
nina” (Alcaro, 1991, p. 178). Acima de tudo, de 1879. Na biografia de Alcaro, constam
ela admirava a sua independência, sua força duas versões do adeus de Anne e Whitman.
e sua coragem, sem nunca deixar de lado a As duas versões concordam com o fato de
146 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

que o encontro na casa de J. H. Johnston em REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


nada lembrou a intimidade familiar da Fila- ALCARO, M. W. Walt Whitman and Mrs. G. Walt
délfia. A primeira dá conta de que os amigos Whitman Quarterly Review, n. 6 (Spring
teriam tido uma longa conversa em particu- 1989), p. 153-171. Disponível em: <http://dx.
lar e, após, eles teriam se reunido com a fa- doi.org/10.13008/2153-3695.1222>. Acesso
mília, um tanto abalada. O que se passou en- em: 02 de julho de 2016.
tre eles, bem como o teor da conversa, nunca
foi revelado. A segunda versão, bem menos ALCARO, M. W. Walt Whitman’s Mrs. G.: A Biog-
dramática, diz que Whitman teria se despe- raphy of Anne Gilchrist. New Jersey: Associat-
dido de cada um com um beijo – todos me- ed University Press, 1991.
nos Grace, que não aceitava os carinhos do
poeta – e saído lentamente. GILCHRIST, H. Anne Gilchrist: Her Life and Her
O que se sabe é que Anne Gilchrist e Walt Writings. London: T. Fischer Unwin, 1887.
Whitman nunca mais se encontraram. A
distância, porém, não diminuiu o cuidado e GILCHRIST, Anne. A Woman’s Estimate of Walt
a preocupação de Anne em relação a Whit- Whitman. The Radical (1865-1872), May 1870,
man. Até a doença lhe impossibilitar, ela con- v. 5, n. 7, p. 1-15. Disponível em: <http://www.
tinuava a ser uma figura importantíssima sas.upenn.edu/~cavitch/pdf-library/Gilchrist_
nas campanhas para arrecadar fundos para Whitman.pdf>. Acesso em: 02 de junho de 2016.
o poeta americano. Anne morreu vítima de
câncer de mama no dia 29 de novembro de GILCHRIST, Alexander. The Life of William
1885. Para alguns estudiosos, Anne foi a pri- Blake: Pictor Ignotus. London: Macmillan,
meira grande crítica de Leaves of Grass e uma 1863.
ajuda imensurável na vida do poeta america-
no. Outros a chamam de “patética”, dizendo GILCHRIST, Alexander. The Life of William Etty.
que sua viagem aos Estados Unidos apenas London: D. Bogue, 1855.
serviu como “espetáculo” para alguns e “co-
média” para outros. Walt Whitman, no en- GOULD, Elisabeth Porter. Anne Gilchrist and
tanto, sempre deixou explícita a sua admira- Walt Whitman. Philadelphia: David McKay
ção por Anne e a importância que ela teve na Publisher, 1900.
sua vida e na sua carreira, sendo sem sombra
de dúvida o relacionamento mais longo que HARNED, Thomas B. (Ed.). The Letters of Anne
ele teve com uma mulher. Anne Gilchrist foi Gilchrist. New York: Doubleday, 1918.
uma mulher além do seu tempo, uma cora-
josa mãe e profissional, que resolveu seguir HOLMES, R. Saving Blake. The Guardian, Unit-
seus instintos e seu coração em uma jornada ed Kingdom, May 29th, 2004. Disponível em:
que, aos olhos de muitos, seria loucura total. <http://www.theguardian.com/books/2004/
Como disse certa vez Walt Whitman a respei- may/29/classics.williamblake> Acesso em: 10
to da amiga, Anne era uma mulher “gifted in de julho de 2015.
a rare degree with a necessary don’t-care-a-
damntiveness” (Alcaro, 1989, p. 163)25. PERRY, Bliss. Whalt Whitman’s complex love af-
fairs. The New York Times, November 3rd,
1918. Disponível em: <http://query.nytimes.
com/mem/archive-free/pdf ?res=9D01E1D-
F1239E13ABC4B53DFB7678383609EDE>.
25 “[...] dotada de um raro grau de necessário ‘não-me-importo-nem-um-
-pouco’” (tradução nossa). Acesso em: 02 de junho de 2016.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 147

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WHITMAN, Walt. Leaves of Grass. The Original


1855 Edition. Mineola: New York: Dover Pub-
lications, Inc., 2007.
METAPOEMAS E CONFORMAÇÃO CRÍTICA
EM RICARDO REIS

Andrea do Roccio Souto1


Dario T. de Almeida Filho*

RESUMO: Dentro do projeto heteronímico de Fernando Pessoa, Ricardo Reis é identificado, formal
e espiritualmente, com o mundo clássico ocidental. Implica isso a retomada, em sua poética, de uma
espécie literária da poesia clássica (a ode) e da temática a ela subjacente. Embora incontornáveis
para a leitura de Reis, a forma horaciana e o influxo estoico-epicurista em sua obra não constituem,
de fato, o substrato de sua poética: entendemos encontrar tal fundamento em seus textos ensaísti-
cos e críticos, a que os tópicos aludidos estão, na verdade, subordinados. Assentados nessa hipótese,
buscamos, no presente artigo, rastrear, em dois metapoemas de Ricardo Reis, a constituição desses
textos ensaísticos e críticos como princípios artísticos que alicerçam a produção poética do hete-
rônimo pessoano. Concluímos, a partir desse exercício, que há uma indissociável relação entre tais
atividades, a de crítico e a de poeta, podendo ser seus metapoemas entendidos como expressões
poéticas de um processo crítico concomitante.
PALAVRAS-CHAVE: Fernando Pessoa. Ricardo Reis. Crítica. Metapoesia.

ABSTRACT: Within the Fernando Pessoa’s heteronymous project, Ricardo Reis is identified, formally
and spiritually, with the classic Western world. This implies the resumption, in his poetics, of a lite-
rary species of classical poetry (the ode) and the subject matter underlying it. Although essential to
the reading of Reis, the Horacian form and the Stoic-Epicurean influence in his work do not in fact
constitute the substratum of his poetics: we intend to find such a basis in his essayistic and critical
texts, to which the topics are, in fact, subordinates. Based on this hypothesis, we seek, in this article,
to trace, in three Ricardo Reis’ metapoems, the constitution of these essayistic and critical texts as
artistic principles that underpin the poetic production of the heteronymous person. We conclude
from this exercise that there is an inseparable relationship between such activities, that of critic and
poet, and their metapoems can be understood as poetic expressions of a concomitant critical process.
KEYWORDS: Fernando Pessoa. Ricardo Reis. Critic. Metapoetry.

1. O REGRESSO DA FORMA:
BASE NO SENTIMENTO, EXPRESSÃO PELA INTELIGÊNCIA
Relativamente às odes de Ricardo Reis, são poucas aquelas em que ele reflete sobre seu proces-
so criativo. Se quisermos compreender com maior precisão esse aspecto de sua obra, devemos
recorrer não aos seus textos filosóficos, geralmente de censura ao “cristismo” e de reflexões de
possibilidade de reconstrução de um paganismo primevo, mas sim aos seus textos ensaísticos
e críticos. Ao retornar às odes, perceberemos que elas são nítidas expressões poéticas de um
exercício crítico. Vejamos um trecho desses textos em que Reis rejeita a poesia metafísica:

[...] a poesia não é um produto exclusivamente intelectual. Baseia-se no sentimento, ainda que se
exprima pela inteligência. A inteligência deve servir-lhe apenas para interpretar o sentimento. Tudo
o mais é, ou pensado com o sentimento, ou sentido com a inteligência. Pensar com o sentimento,

1 Universidade Federal de Santa Maria


150 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

sentir com a inteligência — qualquer des- A linguagem foi deixando de ser experi-
tas coisas é doentia (PESSOA, 1996, p. 400). mentada como instrumento, mediação,
representação da presença, para ser enca-
Do que se depreende do trecho acima, rada como falta-de-ser. […] Por ser a expe-
a concepção poética é entendida, por Reis, riência mais radical da linguagem, a poesia
como uma operação harmônica entre o pen- atesta essa ausência de modo mais intenso.
sar e o sentir; razão pela qual muitas de suas Na modernidade, a essa experiência vem
odes serem sintaticamente concisas e seman- juntar-se a consciência, por auto-reflexão,
ticamente exatas. Se pensarmos em termos da natureza e dos processos da própria
da opera aperta de Umberto Eco (2003, pp. linguagem. A função metalingüística acen-
37 e ss.), perceberemos que há uma delibera- tuou-se nas obras poéticas, a linguagem
da repressão dos índices de abertura de suas poética passou a ser o próprio tema da
odes (versos aforísticos, modo imperativo, ri- poesia, num movimento ‘suicida’ que Mau-
gidez semântica, ritmo calculado, estrofação rice Blanchot comparou ao do escorpião
sintética); se, para Reis, “a arte consiste na or- que pica sua própria cauda. Como resulta-
ganização ideal da matéria” (LOPES, 1990, p. do dessa reflexão metalingüística, o sujei-
407), o que fica posto é, em última análise, o to poético é o primeiro a desmascarar-se
desejo de ordenação do mundo, desencontra- como falta e ausência (PERRONE-MOISÉS,
do desde a ascensão do Cristianismo. Reto- 2001, p. 123-124).
mando a formulação de Eco, parece-nos lícito
afirmar que, na arte, a contenção da forma é Assim sendo, no processo mesmo de
equivalente à contenção do caos, representa- compor metapoemas, Reis revela uma fa-
da pela indeterminação poética modernista ceta que, em verdade, é de seu criador –
e, hoje, pós-modernista. Fernando Pessoa. Não surpreende que, em
Nesse aspecto, Ricardo Reis avulta como uma ode, Reis afirme que “Nossa vontade
exemplo daquilo que o ortônimo falara: “o e o nosso pensamento / São as mãos pelas
poeta é um fingidor” (PESSOA, 1977, pp. 164- quais outros nos guiam / Para onde eles
165). Diz ele: “A arte existe, não, como quer querem / E nós não desejamos” (PESSOA,
Campos, para substituir a vida, senão para 1977, p. 265). Reis, sub-repticiamente não
a completar. Tudo na vida, excepto o desejo esconde ser ele próprio apenas um produto
do homem, é irracional e imperfeito; na arte da imaginação.
o homem projecta o seu desejo e a vontade de
perfeição que há nele” (LOPES, 1990, p. 411, 2. A PROPÓSITO DE DOIS METAPO-
grifo nosso). Portanto, não é que Reis fosse (e EMAS DE RICARDO REIS
ele o reconhece) um fiel seguidor do conteú- Observemos, a seguir, de que modo, na obra
do (e das formas) de suas odes: ao contrário, ricardiana, alguns metapoemas (metaodes,
sua produção poética constitui-se mais como se o neologismo é-nos permitido) tornam-se
tentativa “fingida” de organização sistemáti- versificações de seus textos críticos:
ca em meio a uma civilização decadente.
Heterônimo clássico, não nos esqueçamos Severo narro. Quanto sinto, penso.
que Reis, ainda assim, é produto criativo de Palavras são idéias.
um poeta moderno, figura que, segundo Leyla Múrmuro, o rio passa, e o que não passa,
Perrone-Moisés, caracteriza-se pela “consci- Que é nosso, não do rio.
ência de uma despersonalização substancial, Assim quisesse o verso: meu e alheio
inerente a seu ofício, da perda fatal do Eu na E por mim mesmo lido (PESSOA, 1977, p. 288).
linguagem” (2001, p. 123), motivo pelo qual:
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 151

Notável, em Reis, que se constrói artistica- Outra ode em que a visão da poesia de
mente como poeta, é a apropriação do verbo Reis fica evidente:
narrar, típico da prosa. O verbo empregado
comporta, pelo menos, duas dimensões: a Vivem em nós inúmeros;
primeira está relacionada à progressão tem- Se penso ou sinto, ignoro
poral que implica uma narração (não assim Quem é que pensa ou sente.
fosse, seria descrição), obsessão de Reis, cujas Sou somente o lugar
odes, muitas, são marcadas pela expressão Onde se sente ou pensa.
virgiliana, que se torna preceito formular ne-
oclássico, tempus fugit; a segunda vincula-se à Tenho mais almas que uma.
objetividade típica do narrador (pelo menos Há mais eus do que eu mesmo.
do épico): distanciamento da realidade, que Existo todavia
é ideal ricardiano, heterônimo espectador do Indiferente a todos.
mundo. Ao empregar o verbo narrar, pois, não Faço-os calar: eu falo.
é que ele esteja sugerindo prosa em verso; an-
tes, é para sublinhar sua consciência diante da Os impulsos cruzados
brevidade da vida e da consequente inutilida- Do que sinto ou não sinto
de da ação humana sobre ela: resta ao poeta Disputam em quem sou.
“narrar” (e narrar é organizar, selecionar), Ignoro-os. Nada ditam
com sereno apartamento, aquilo que o cerca. A quem me sei: eu ‘screvo (PESSOA, 1977,
O verso seguinte também é profícuo na p. 291).
questão aqui investigada. Segundo Reis, a
palavra contém três dimensões: a ideia, a Ora, vemos aí não apenas um metapoe-
imagem e o ritmo, “porque toda palavra re- ma de Reis, mas também a manifestação do
presenta uma ideia, projecta uma imagem e modo como ele se relaciona dentro do proje-
tem um som” (LOPES, 1990, p. 407). No pros- to sensacionista pessoano. O pensamento e o
seguir da ode, um vocábulo como “múrmuro”, sentimento (que a antítese é central em Reis,
palavra sobremaneira musical, dada sua na- claro já está) não são oriundos de si mesmo;
tureza aliterativa, imediatamente vincula-se quando o heterônimo expressa o silencia-
a “rio”, unindo som e imagem. É circular, que mento de seus intermináveis eus em favor de
múrmuro remete necessariamente a rio e rio sua fala, significa que a conformação do sen-
necessariamente a múrmuro. Para compor a timento ao pensamento não se configura em
ode, o poeta desmembra (ou desdobra) as três uma simples complementação binária, cons-
dimensões, tomando uma ideia e concretizan- tituindo-se em complexo exercício de con-
do-a por meio de um vocábulo que representa tenção de uma subjetividade que extrapola
o som dessa ideia (múrmuro) e outro que re- a unidade almejada (por vezes, malogrado):
presenta sua respectiva imagem (rio). por esse viés, pode-se explicar por que ele se
Burilando seus sentimentos, Reis trans- vê como epicurista e estoico, filosofias rivais:
forma, por meio do pensamento, suas ideias “por mim, se em mim posso falar, quero ser
sobre arte em odes. É como um exercício das ao mesmo tempo epicurista e estoico” (PES-
formas: suas ideias artísticas são expressas SOA, 1996, p. 322).
em prosa, mas também o são em verso. O que Portanto, tal ode expressa, para além da
lembra Horácio, que, embora tenha engen- concretização disciplinar no ato da escritura,
drado epístolas para o que viria a constituir a postura sensacionista ricardiana; postura
a Ars Poetica (circa 14/13 a.C.), fê-las em ver- essa que exige disciplina daquele que o sente
sos hexâmetros. talvez por se impor como o agente sintético
152 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

de todas as almas e de todos os eus que ema- REFERÊNCIAS


nam do poeta: é exercício sensacionista de ECO, Umberto. Obra Aberta. 9. ed. São Paulo:
contenção, expressão oposta à irreprimível Perspectiva, 2003.
“fome de mundo” de Álvaro de Campos.
LOPES, Teresa Rita. Pessoa por Conhecer – Textos
3. CONCLUSÃO para um Novo Mapa. Lisboa: Estampa, 1990.
Neste artigo, tentamos evidenciar, por meio
de um breve percurso pelos textos críticos PERRONE-MOISÉS, Leyla. Aquém do Eu, Além do
de Ricardo Reis, que, em sua poética, o pen- Outro. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
samento está a serviço do sentimento; assim,
propõe ele a retomada do exercício intelec- PESSOA, Fernando. Obra Poética. 7. ed. Rio de Ja-
tual no ato mesmo da construção poética, neiro: Nova Aguilar, 1977.
que corresponde à tentativa de contenção
do caos da decadente civilização cristã, ma- _____. Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Lis-
triz da poesia sentimental que busca purgar: boa: Ática, 1996.
purgação essa que se configura como meio
único pelo qual o sentimento pode trans- SEABRA, José Augusto. Fernando Pessoa ou o Poe-
plantar a ingenuidade pueril, restolho desse todrama. São Paulo: Perspectiva, 1982.
sentimentalismo afetado, e tornar-se arte.
É “objetivismo subjetivo”, na leitura de José
Augusto Seabra (1960, p. 121).
Não se atendo, porém, à teorética da sua
concepção artística, Reis compôs metapo-
emas que ilustram suas ideias sobre a arte,
“espaço” privilegiado em que podemos iden-
tificar seu processo criativo em ação enquan-
to reflete sobre esse processo. Por fim, como
também destacamos, a investigação por trás
da conformação crítica nas odes de Ricardo
Reis não interessa apenas à compreensão
de sua poética propriamente dita: contribui,
além disso, para situar o heterônimo dentro
do projeto sensacionista de Fernando Pes-
soa.
A BELEZA EM “O RETRATO DE DORIAN GRAY”:
O SENTIMENTO DE BELO COMO MÁSCARA

Drª. Andrea do Roccio Souto1


Débora Spanamberg Wink2

RESUMO: A temática da essência versus aparência é importante em “O Retrato de Dorian Gray”,


romance de Oscar Wilde, publicado em 1891. Com isso em mente, investiga-se, neste artigo, como
o conceito de Beleza é trabalhado ao longo dessa narrativa. A análise é feita com base na concepção
platônica do Belo, discutida em “O Banquete” e em “Fedro”, e na visão de arte e beleza do próprio
Wilde, a partir de seu ensaio “A decadência da mentira”, 1889. O escritor afirma que a beleza de uma
obra artística só existe quando essa esconde as imperfeições da realidade – pensamento reiterado
na narrativa e que opõe-se ao Belo de Platão, o qual é relacionado com o que é Bom e Verdadeiro.
Nesse romance, embora boa parte das personagens compartilhem da concepção platônica de Bele-
za, é possível concluir que a aparência e o sentimento de Belo funcionam como máscaras, que escon-
dem personalidades egoístas, atitudes cruéis e acontecimentos trágicos.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura. Estética. Belo.

ABSTRACT: The theme of the essence versus appearance is important in “The Picture of Dorian
Gray”, Oscar Wilde’s novel, published in 1891. With this in mind, we investigate, in this article, how
the concept of Beauty is worked out through this narrative. The analysis is based on the platonic
conception of Beauty, discussed in “The Banquet” and in “Phaedrus”, and on Wilde’s art and beauty
perception, from his essay “The Decay of Lying”, 1889. The writer states that the beauty of an artis-
tic work only exists when it hides the imperfections of reality - thought reiterated in the narrative
opposing from Plato’s Beauty, which is related to what is Good and True. In this novel, although most
of the characters share the Platonic conception of Beauty, it is possible to conclude that the appea-
rance and the feeling of Beauty work as masks, which hide selfish personalities, cruel attitudes and
tragic events.
KEYWORDS: Literature. Aesthetic. Beauty.

RESUMEN: La temática de la esencia versus apariencia es importante en “El retrato de Dorian Gray”,
una novela de Oscar Wilde, publicada en 1891. Con esto en mente, se investiga, en este artículo,
como el concepto de la belleza es trabajado a lo largo de esta historia. Este análisis es efectuada con
basis en la concepcíon platónica del Bello, analizada en “El Banquete” y en “Fedro”, y también en la
visión de arte y belleza del próprio Wilde, a partir de su ensayo “La decadencia de la mentira”, 1889.
El escritor afirma que la belleza de una obra artística solamente existe cuando esa no muestra las
imperfecciones de la realidad – pensamiento reiterado en la historia y que oponerse al Bello del
Platón, el cual tienes relación (conexión) con el que eres Bueno y Verdarero. En ese romance, aun-
que buena parte de las personajes compartan de la concepción platónica de la Belleza, eres posible
concluir que la aparencia y el sentimiento de Bello funcionan cómo mascarillas, las cuáles ocultan
personalidades egoístas, actitudes crueles y desastrosos acontecimientos.
PALABRAS-CLAVE: Literatura. Estética. Bello.

1 Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

2 Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).


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1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS tre essência e aparência. Afinal, o objeto do-


Este artigo investiga como a Beleza é tra- tado de beleza física, necessariamente, tam-
balhada no romance “O Retrato de Dorian bém possui beleza de espírito? Essa é uma
Gray”, com base nas concepções de Belo de das temáticas abordadas por Oscar Wilde
Platão e de Oscar Wilde. em seu único romance, “O Retrato de Dorian
Para tanto, o texto organiza-se desta for- Gray”, publicado em livro, pela primeira vez,
ma: a seção Da Beleza e de “O Retrato de Do- em 1891.
rian Gray” introduz a disciplina da Estética e o A narrativa gira em torno de Dorian Gray,
conceito de Belo, além de uma breve sinopse rapaz que se descobre dotado de grande be-
do romance analisado, destacando a impor- leza física, quando observa um retrato seu,
tância da temática da aparência versus es- pintado por Basil Hallward. Quanto a sua
sência na narrativa. Na seção Belo, explicam- personalidade, no início da trama, Dorian
se a Teoria do Belo, de Platão, e as noções de era um jovem “natural, simples e terno [...] a
Beleza de Oscar Wilde e são reproduzidos menos enxovalhada das criaturas” (WILDE,
trechos do romance para mostrar como cada 2009, p. 108), nas palavras do pintor. Esta
conceito é afirmado ou contraposto texto. As harmonia entre a bela aparência e a virtuo-
Considerações Finais retomam a análise re- sa personalidade de Dorian levam o artista a
alizada e expõe as conclusões a respeito da elegê-lo como sua maior inspiração artística.
Beleza, que, nesse romance, funciona como No dia em que a produção do retrato é
máscara. concluída, Lorde Henry Wotton, aristocra-
ta sarcástico e hedonista, conhece Dorian,
2. DA BELEZA E DE “O RETRATO DE e chega a compará-lo a Adônis. Através dos
DORIAN GRAY” discursos daquele, Dorian compreende a efe-
Segundo Bosi (1991), o sentimento de Belo é meridade de sua aparência e, em uma espécie
uma sensação que a arte pode provocar em de oração, deseja ter eternamente o rosto en-
seu observador. A definição do Belo é uma cantador da pintura. Seu pedido é misteriosa-
das questões abordadas pela Estética, área mente atendido: ao longo de toda a narrativa,
de estudo que, de acordo com Kathrin Ro- mesmo com o passar dos anos, o protagonis-
senfield (2006, p. 7-8), se preocupa com “as ta mantém uma aparência juvenil e encanta-
produções (artísticas ou não) da sensibilida- dora; sua personalidade, entretanto, torna-se
de”, tendo seu início como disciplina somen- egoísta, superficial e cruel, e, enquanto ele
te no século XVIII. Apesar disto, o conceito de vive corruptamente, é o quadro que carrega
Beleza e de Belo é investigado desde a Anti- as marcas da idade e dos pecados.
guidade.
Platão preocupava-se principalmente com 3. BELO
a formação do cidadão da pólis; consequen- 3.1. Platão
temente, suas teorias carregavam um viés Platão reconhecia a existência de um Mundo
ético, inclusive a sua Teoria do Belo. Para o das Ideias, em que se encontravam as verda-
filósofo, o Ser superior possuiria e transmiti- deiras essências, e de um Mundo Sensível,
ria aos cidadãos a Beleza Absoluta: combina- este em que vivemos, que é uma cópia do ou-
ção entre o Belo, o Bom e o Verdadeiro. tro. A alma humana, antes de vir para o nos-
Embora outras concepções tenham sido so mundo, conheceria as verdades existentes
propostas ao longo dos séculos, a Teoria do no outro; através do exercício intelectual, ao
Belo continuou presente no imaginário so- observar a aparência de um objeto, ela se
cial; as manifestações artísticas, entretanto, lembraria da Verdade que conheceu no Mun-
questionavam a ideia através do embate en- do das Ideias.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 155

É neste mundo que a essência da Beleza pados, de alguma maneira, na fisionomia do


encontra-se. Pela visão ser o sentido humano sujeito. A boa aparência física de Dorian, bem
mais sensível, primeiro o homem contempla- como seu comportamento elegante e sua alta
ria a beleza física; em seguida, contemplaria posição social, inocentam-no dos estranhos
a beleza da alma; após, a dos ofícios e das rumores que são ditos a seu respeito poste-
leis; seguiria assim até contemplar a beleza riormente: “com teu semblante puro, límpi-
da sabedoria. A partir da contemplação da do, inocente, com tua soberba e inalterada
verdadeira Beleza, o homem agiria virtuosa- juventude, nada apresentas que me permita
mente: suspeitar contra ti” (WILDE, 2009, p. 145),
declara o pintor. Quando Dorian diz a uma jo-
[...] somente então, quando vir o belo com vem que é mau, ela ri, pois, a seu ver, “os maus
aquilo com que este pode ser visto, ocor- eram sempre muito velhos e muito feios”
rer-lhe-á produzir não sombras de virtude, (WILDE, 2009, p. 208), não correspondendo
porque não é em sombra que estará tocan- aos traços juvenis e belos do protagonista.
do, mas nas reais virtudes, porque é no real Todavia, a Teoria do Belo aparece no ro-
que estará tocando. (PLATÃO, 1972, p. 49) mance para ser desconstruída, principal-
mente por Lorde Henry e pelo próprio Do-
Os mesmos princípios serviam para de- rian Gray. Este opõe-se a ela quando desfaz-
finir a Beleza da arte. Segundo Alfredo Bosi se o equilíbrio que tinha entre aparência
(1991, p. 30), o filósofo compreendia que as bela e essência virtuosa; o outro, quando a
produções artísticas deveriam desenvolver questiona através de seus discursos.
as virtudes dos homens, “serenando-lhes as Logo no primeiro capítulo, o hedonista
paixões e elevando os seus sentimentos para desassocia Beleza e Virtude, desvinculando-
o Bem”. Portanto, a Beleza, para Platão, está -a da Inteligência. Basil é descrito como inte-
além da aparência física e relaciona-se com a ligente, mas de traços rudes; Dorian é belo,
ética e a moral. portanto, para Lorde Henry, é alguém que
O pensamento de Basil mostra-se bastan- “nunca pensou” (WILDE, 2009, p. 15). Essa
te platônico, porque torna Dorian um ídolo separação entre Beleza e Virtude também
artístico justamente porque o jovem concre- ocorre quando outros personagens são des-
tiza a Teoria do Belo. Explica o artista a Lor- critos com o foco narrativo de Henry: caráter
de Henry: bom vem acompanhado de defeito estético.
Por exemplo:
Inconscientemente, ele define para mim as
linhas de uma escola que uniria a paixão do Lorde Henry inventou uma desculpa qual-
espírito romântico à perfeição do espírito quer e, assentando-se na cadeira desocu-
grego. A harmonia do corpo e da alma, pada junto dela [sua tia], olhou os convi-
que sonho!... [...] Dorian Gray, para mim, é vas. [...] Em frente, achava-se a Duquesa de
simplesmente um motivo de arte; tu nada Harley, mulher de um natural admirável e
verás nele; eu nele vejo tudo. (WILDE, um excelente caráter, amada de todos os
2009, p. 21) [grifos meus] que a conheciam, possuindo essas propor-
ções amplas e arquiteturais que os nossos
A associação entre Belo, Bem e Verdade historiadores contemporâneos chamam
também está presente no imaginário de ou- obesidade, quando não se trata de uma
tras personagens do romance. Basil, assim duquesa. [...] A vizinha de Lorde Henry era
como outros contemporâneos de Dorian, Mrs. Vandeleur, uma das velhas amigas de
acreditavam que os vícios estariam estam- sua tia, uma santa entre as mulheres, mas
156 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

tão ridiculamente vestida que lembrava um serva entre ela e a realidade uma barreira
livro de rezas mal encadernado. Felizmen- intransponível de belo estilo, de método de-
te para Lorde Henry, ela tinha a seu lado corativo ou ideal. (WILDE, 1992, p. 39)
Lorde Faudel, mediocridade inteligente e
entre duas idades, tão calvo como uma ex- Wilde é enquadrado no movimento ar-
posição ministerial à Câmara dos Comuns tístico denominado Esteticismo, que procu-
[...]. (WILDE, 2009, p. 44) rava desresponsabilizar a arte de questões
morais, porque esta seria a atmosfera do re-
A visão de Henry foca-se na obesidade, na lativismo ético (CARPEAUX, 2012, p. 23), o
calvície e no mau gosto para roupas em vez que se opõe ao fim social que Platão atribuía
de no caráter ou na inteligência dos compa- a essa atividade. O romance causou muita
nheiros. Pela forma como esses personagens polêmica em sua época de lançamento, por
são descritos, as qualidades parecem estar trazer um protagonista que transitava livre-
ali justamente para serem desestabilizadas mente entre a alta sociedade, sem ser pena-
pelas aparências inadequadas. lizado por seus crimes. Para se defender, na
Dorian Gray, ao longo da narrativa, passa segunda edição da obra, Wilde acrescentou
a ser a desconstrução da Teoria do Belo con- um prefácio, em que, entre outras declara-
cretizada em personagem literário. Sua apa- ções, afirmava:
rência Bela passa uma imagem falsa do Bom.
Ao final do capítulo XI, após Dorian analisar O artista é criador de coisas belas.
as trajetórias de personagens históricas, que [...]
eram um misto entre honras e infâmias, di- Um livro não é, de modo algum, moral ou
z-se pela voz do narrador: “Havia momentos imoral. Os livros são bem ou mal escritos.
em que [Dorian Gray] considerava simples- Eis tudo.
mente o mal como um elemento necessário à [...]
realização do seu conceito da beleza” (WIL- O artista jamais é mórbido. O artista tudo
DE, 2009, p. 142). pode exprimir.
Pensamento e linguagem são para o artista
3.2. Oscar Wilde instrumentos de uma arte.
Enquanto a Teoria do Belo é desconstruída, Vício e virtude são para o artista materiais
outra concepção de Belo é reafirmada no para uma arte. (WILDE, 1981, p. 7-8)
romance: a do próprio Oscar Wilde. Em seu
ensaio “A Decadência da Mentira” (1889), o Tendo em vista essas ideias, é natural que
escritor critica as estéticas realista e natura- os personagens deste romance existam em
lista, porque estas objetivam uma imitação um ambiente imoral. Para Dorian, foi possí-
do mundo ordinário. Em seu ponto de vista, vel ter uma vida dupla graças à sua beleza,
a arte não deveria reproduzir a realidade tal seguindo o pensamento de Wilde, que apare-
qual é, porque esta possui imperfeições de- ce mais claramente neste trecho do romance:
mais para ser considerada bela, e arte, sem
beleza, não é arte. Todo artista seria, portan- [...] as regras da sociedade refinada são
to, um mentiroso, pois ou poderiam ser iguais às da arte. A for-
ma é, neste caso, absolutamente essencial.
A Arte apanha a Vida entre os materiais Tudo admitiria a dignidade de um cerimo-
brutos, fá-la de novo, refunde-a sob novas nial, assim como sua irrealidade, e poder-
formas e, absolutamente indiferente ao se-ia combinar o caráter fictício de uma
próprio fato, inventa, imagina, sonha, e con- peça romântica com o espírito e a beleza
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 157

que nos tornam deliciosas semelhantes DE, 2009, p. 31). Dorian Gray é considerado
peças. A insinceridade será uma caracterís- belo, por Basil, pela aparência encantadora e
tica tão alarmante? Não parece. É simples- pela bondosa personalidade. Quando esta é
mente um método, com auxílio do qual po- perdida, o pintor perde, também, o seu ideal
demos multiplicar nossas personalidades. de arte. Já Lorde Henry valoriza somente a
Tal era, ao menos, a opinião de Dorian Gray. aparência física de Dorian.
(WILDE, 2009, p. 138) [grifos meus] Ao longo da narrativa, a beleza do prota-
gonista deixa de associar-se à Teoria do Belo
Se, para o autor, o Belo esconde as vulga- para representar o Belo de Oscar Wilde. Em
ridades da realidade, é este o papel da beleza “O Retrato de Dorian Gray”, o aspecto agra-
de Dorian Gray. No excerto acima reprodu- dável do protagonista mascara seus defeitos
zido, o raciocínio exposto em “A Decadência aos olhos dos outros personagens, além de
da Mentira” transfere-se para as relações so- disfarçar as consequências trágicas de seu
ciais. Assim, o Belo consiste em uma máscara comportamento egoísta. Assim, Dorian é um
que vai esconder a essência do protagonista. mentiroso, e, como afirma Wilde, o objetivo
do mentiroso, ou do artista, “é simplesmen-
A sociedade ultracivilizada, pelo menos, te encantar, fascinar, proporcionar o agrado”
dificilmente crê ou admite a maldade dos (WILDE, 1992, p. 44), sem influenciar moral-
que são ricos e belos. Ela concebe instin- mente seu observador.
tivamente que as aparências são de muito O único romance de Oscar Wilde trabalha
maior importância que a moral, e, a seus profundamente a questão do Belo. A narrati-
olhos, o mais puro exemplo de respeitabi- va também apresenta críticas à sociedade vi-
lidade é de muito menor valor que a posse toriana, reflexões sobre a arte e os movimen-
de um bom chefe. (WILDE, 2009, p. 138) tos estéticos, além de, ironicamente, ques-
tionamentos de caráter moral. Pouco mais
Além disso, o Belo também servirá para de um século depois da primeira edição, “O
amenizar o sofrimento causado por situa- Retrato de Dorian Gray” continua sendo um
ções trágicas da vida de Dorian. O suicídio de texto fundamental para o repertório de qual-
Sibyl Vane, motivado pelo amor não corres- quer leitor, por tratar de temas que continu-
pondido, causa no protagonista sentimento am sendo atuais. A arte literária que Wilde
semelhante à catarse provocada por uma produziu, portanto, atravessou décadas, em
peça teatral. Por se assemelhar tanto à arte, acordo com o que Wilde entendia por arte:
sua morte não comove Dorian, como se fosse qualquer obra de qualidade mostrará mais
“a incrível beleza de uma tragédia grega, na do que sua própria época, por isso será pos-
qual eu chegasse a tomar parte, sem ser ao sível que gerações futuras compreendam-na.
menos ferido de leve” (WILDE, 2009, p. 101).
Deste modo, a morte de Sibyl é suavizada Depois, o que desperta interesse entre a
pela máscara artística da situação. gente de boa sociedade (...) é a máscara
de todos, e não a realidade oculta por esta
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS máscara. A confissão é humilhante, mas
Desde o começo do romance, a Beleza é to- nós somos todos do mesmo estofo! Em
mada como uma qualidade singular, inde- Falstaff há qualquer coisa de Hamleto e em
pendente de virtudes. Lorde Henry define- Hamleto há um pouco de Falstaff. O rotun-
-a como “uma das formas do Gênio, a mais do borracho é, às vezes, melancólico e o jo-
alta mesmo, pois não precisa ser explicada; vem príncipe tem seus instantes de grave
é um dos fatos absolutos do mundo” (WIL- alegria. A nossa diferença de uns para ou-
158 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

tros está somente em detalhes acessórios: REFERÊNCIAS


as vestes, as maneiras, o som da voz, a re- BOSI, Alfredo. Reflexões sobre a arte. 4. ed. São
ligião, o exterior, os tiques costumeiros, e o Paulo: Ática, 1991. (Princípios)
resto. (WILDE, 1992, p. 34)
CARPEAUX, Otto Maria. Fin du Siécle. São Paulo:
Por fim, o trecho acima, de “A Decadência Leya, 2012. vol. 8. (História da Literatura Oci-
da Mentira”, define a Beleza em “O Retrato dental)
de Dorian Gray”. A posse de riquezas, a re-
ligião, a elegância, a aparência física, enfim, PLATÃO. Fedro. Tradução de Pinharanda Gomes.
são camadas superficiais dos homens, ser- 6. ed. Lisboa: Guimarães Editores, 2000. (Filo-
vindo apenas para disfarçar a semelhança sofia & Ensaios)
que os seres humanos possuem entre si. In-
dependentemente das aparências, as pesso- PLATÃO. O Banquete. Tradução de José Cavalcan-
as podem ser boas ou más, ou ambos simul- te de Souza. In: _____. Diálogos. Traduções de
taneamente. Como pensava Dorian Gray, “o José Cavalcante de Souza, Jorge Paleikat e João
homem era um ser composto de miríades de Cruz Costa. São Paulo: Abril Cultural, 1972. p.
vidas e miríades de sensações, uma comple- 7-59 (Os Pensadores)
xa e multiforme criatura” (p. 138).
ROSENFIELD, Kathrin. Estética. Rio de Janeiro:
Zahar, 2006. (Passo-a-passo)

SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. 9. ed. Rio


de Janeiro: José Olympio, 2008.

WILDE, Oscar. A Decadência da Mentira. In: _____.


A Decadência da Mentira e outros ensaios. Tra-
dução e apresentação de João do Rio. Rio de
Janeiro: Imago Editora, 1992. (Lazuli)

WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Tradu-


ção de João do Rio. São Paulo: Martin Claret,
2009. (A Obra-prima de Cada Autor)

WILDE, Oscar. Prefácio. In: _____. O Retrato de Do-


rian Gray. Tradução de Oscar Mendes. São
Paulo: Abril Cultural, 1981. p. 7-8.
EDIÇÃO E ANÁLISE PALEOGRÁFICA DE DOCUMENTOS DA
CIDADE DE SANTA MARIA DO INÍCIO DO SÉCULO XX

Tatiana Keller
Jessica Hock

RESUMO: O presente artigo tem como objetivo o estudo filológico de oito manuscritos pertencen-
tes ao Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, datados do início do século
XX. Com a apresentação das edições fac-similada e diplomática seguida da análise de suas carac-
terísticas paleográficas, pretende-se verificar algumas mudanças ocorridas na língua portuguesa.
Utilizou-se como referência teórica alguns princípios da Filologia e da Crítica textual, segundo as
abordagens de Cambraia (2005) e de Spina (1977). Este estudo justifica-se por sua importância
linguística, histórica e social além de fornecer subsídios para futuras pesquisas em diversas áreas.
PALAVRAS-CHAVE: Filologia. Manuscritos. Século XX. Santa Maria/RS.

ABSTRACT: This article aims a philological study of eight manuscripts belonging to Santa Maria
Municipal Historical Archive, in the state of Rio Grande do Sul, dated from the beginning of the 20th
century. Based on the presentation of facsimile and diplomatic editions followed by an analysis of
their paleographic characteristics this research intends to verify some language changes in Portu-
guese. Some principles from Philology and Textual Criticism are used here as theoretical references,
in accordance with Cambraia (2005) and Spina (1977). Besides providing subsidies to future rese-
arches in different fields, this study can be explained by its historical and social importance.
KEYWORDS: Philology. Manuscripts. 20th century. Santa Maria/RS.

RESUMEN: El presente artículo tiene como objetivo el estudio filológico de ocho manuscritos per-
tenecientes al Archivo Histórico Municipal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, del inicio del siglo XX.
Con la presentación de las ediciones fac-simile y diplomática y con los posteriores análisis de sus ca-
racteristicas paleográficas se pretende verificar algunos cambios en la lengua portuguesa. Se utilizó
como referencial teórico principios de la Filología y de la Crítica Textual, respectivamente, de acuer-
do con Cambraia (2005) y Spina (1977). Este estudio se justifica por su relevancia histórica y social,
además de presentar subsidios para futuras investigaciones en diversas áreas del conocimiento.
PALABRAS CLAVE: Filología. Manuscritos. Siglo XX. Santa Maria/RS.

INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objeto de pesquisa oito manuscritos pertencentes ao Arquivo Histórico
Municipal de Santa Maria (doravante, AHMSM). Apresenta-se um estudo filológico desses
documentos produzidos no início do século XX, com base em alguns conceitos da Crítica Tex-
tual, a qual visa à preservação da memória e auxilia futuras pesquisas em diferentes áreas
através da fixação e transmissão de textos antigos.
Nas páginas seguintes, desenvolvemos a fundamentação teórica da pesquisa, com base em
Spina (1977) e Cambraia (2005). Posteriormente, foi feita a transcrição dos manuscritos, ou
seja, o conteúdo foi transferido de um suporte fotográfico (edição fac-similar) para um tipo-
gráfico (edição diplomática) sem, contudo, alterar as informações contidas nos documentos,
160 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

respeitando-se a forma original do texto. Por Na edição diplomática, faz-se uma trans-
fim, serão comentários paleográficos em que crição rigorosa e conservadora do manus-
comparamos as formas linguísticas do por- crito, como se fosse uma cópia perfeita do
tuguês antigo com as do português atual. original. Como vantagem deste tipo de edi-
ção, Cambraia (2005) destaca a facilidade de
1. EDIÇÕES leitura que propicia, porque dispensa o leitor
Spina (1977), ao apresentar as formas de re- da árdua tarefa de decifrar as formas gráfi-
produção de um texto, afirma que editar um cas da escrita original. Porém, como desvan-
texto consiste em reproduzi-lo em um supor- tagem apresenta o fato da manutenção de
te diferente. Além disso, o autor ressalta que certas características, como por exemplo, os
a reconstituição textual corresponde à etapa sinais abreviativos, que podem dificultar a
mais importante da função substantiva da leitura por um não especialista. “Mesmo sen-
filologia, em que “concentra no texto para do bastante rigorosa, uma edição diplomáti-
explicá-lo, restituí-lo à sua forma genuína e ca já constitui uma interpretação subjetiva,
prepará-lo tecnicamente para publicação” pois deriva da leitura que um especialista faz
(SPINA, 1977, p.77). Para tanto, há, conforme do modelo” (CAMBRAIA, 2005, p. 94).
Cambraia (2005), diversas formas de tornar Na edição paleográfica, também chama-
um texto acessível ao público. Segundo o au- da de semidiplomática, paradiplomática ou
tor, “a grande diversidade de tipos de edição, diplomático-interpretativa, o editor atua de
porém, pode ser organizada em um restrito forma mais interventiva, através de opera-
número de categorias, de acordo com o cri- ções como desenvolvimento de sinais abre-
tério que subjaz à sua caracterização” (CAM- viativos, inserção ou supressão de elemen-
BRAIA, 2005, p. 87). Portanto, cada edição tos por conjectura. Os principais objetivos
apresenta características específicas e, por dessas operações são de facilitar ainda mais
isso, a escolha dependerá do tipo de público a leitura do texto, tornando-o mais acessível
a que é destinada e com qual finalidade. ao público, e também tentar retificar falhas
no processo de cópia do texto, como supres-
1.1 Definição dos tipos de edição são ou repetição de letras. Essas edições são
As edições são divididas essencialmente em comuns quando se trata de documentos jurí-
quatro tipos: edição fac-similar, edição di- dicos e também, têm sido adotadas na edição
plomática, edição paleográfica e edição in- de documentos para o estudo da história da
terpretativa. língua portuguesa.
A edição fac-similar é a reprodução da Já na edição interpretativa, o texto passa
imagem de testemunho através de meios me- por um forte processo de uniformização grá-
cânicos, como fotografia e xerografia, tam- fica, vai mais longe na interpretação do origi-
bém chamada de fac-símile, fac-similada ou nal, pois representa uma tentativa de melho-
mecânica. Para Cambraia (2005), este tipo ramento do texto. Cambraia (2005) ressalta
de edição tem como vantagem permitir o que “neste tipo de edição, a uniformização é
acesso ao texto de forma praticamente dire- essencialmente gráfica, não se uniformizam
ta, possibilitando autonomia e liberdade do variantes fonológicas, morfológicas, sintáti-
consulente na interpretação do testemunho. cas e lexicais” (CAMBRAIA, 2005, p. 97).
A desvantagem é a de poder ser consultada Neste trabalho, optou-se pelas edições
por um número pequeno de especialistas, fac-similar e diplomática dos manuscritos,
porque se pressupõe que quanto mais antiga porque preservam as características linguís-
for a escrita do texto original, mais conheci- ticas do original, tais como, sinais de pontua-
mento se fará necessário. ção, paragrafação e separação vocabular.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 161

2. METODOLOGIA 6. Informar em nota caracteres apagados,


Os procedimentos metodológicos para a ela- modificados, nas entrelinhas ou nas mar-
boração deste estudo compõem-se pela cole- gens;
ta e transcrição dos documentos. Inicialmen- 7. Reproduzir fielmente a separação voca-
te, foram realizadas visitas ao Arquivo Histó- bular;
rico Municipal de Santa Maria para verificar 8. Reproduzir fielmente a paragrafação;
a disponibilidade de acesso a documentos 9. Não realizar inserções conjecturais;
do início do século XX, período em que pela 10. Não realizar supressões conjecturais;
primeira vez um modelo ortográfico de refe- 11. Informar em margem de cabeça, em itá-
rência para as publicações oficiais e para o lico e entre colchetes simples mudança
ensino, no Brasil, foi proposto1. O próximo de fólio, face e coluna;
passo foi realizar a seleção de documentos 12. Informar em nota mudança de punho;
que ocorreu de forma aleatória dentro do 13. Informar em nota qualquer outra parti-
conjunto documental ofertado pelo AHMSM. cularidade;
Os critérios de escolha foram legibilidade e 14. Inserir na margem externa a numeração
boa conservação dos manuscritos. Após a das linhas, contando de 5 em 5, de forma
triagem dos registros, foi realizada a leitura, contínua em todo o texto.
a interpretação e a transcrição dos documen-
tos. Na sequência, deu-se início à análise dos A ordem das edições dos manuscritos se-
manuscritos no âmbito da paleografia. Fo- gue respectivamente, a fac-similar, antece-
ram observados aspectos gráficos, materiais dida de um cabeçalho com local, data, fonte
(referente ao suporte no qual a informação e tipo de documento, seguida de uma breve
foi registrada) e complementares (aspectos descrição do manuscrito. A seguir, apresen-
como a data, procedência e localização do ta-se a edição diplomática.
documento). Nos comentários paleográficos os aspec-
tos que serão analisados dizem respeito ao
2.1 Critérios que serão observados no sistema vocálico, ao sistema consonantal,
estudo paleográfico aos diacríticos, às abreviaturas e à separação
Em todo processo de edição de um texto, há vocabular.
uma série de normas que são adotadas. Nes-
te trabalho, de acordo com Cambraia (2005)
a edição diplomática dos manuscritos adota-
rá os seguintes critérios:

1. Transcrever fielmente os sinais abrevia-


tivos;
2. Transcrever fielmente os diacríticos;
3. Transcrever fielmente os sinais de pon-
tuação;
4. Transcrever entre parênteses redondo
simples caracteres de leitura duvidosa;
5. Transcrever como pontos dentro de col-
chetes precedidos pela cruz † caracteres
de leitura impossível;

1 Em 1911, em Portugal, a Comissão de Reforma Ortográfica estabeleceu


uma ortografia simplificada a ser usada nas publicações oficiais e no ensino.
162 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

3. EDIÇÕES FAC-SIMILARES E DIPLOMÁTICAS DOS MANUSCRITOS

Manuscrito 1 (M1)
Local: 5° distrito (Santa Maria)
Data: 10 de maio de 1899
Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria
Tipo de documento: Atestado

O documento datado de 10 de maio de 1899, denominado manuscrito 1, partiu do 5° dis-


trito da cidade de Santa Maria/RS. Justifica não ter mandioca necessária para fazer farinha.

Attesto que o Snr. Antonio Cani


de Medeiros, este anno não tem mandio
para faser farinha; e por ser verdade e [†..]
ter pedido passo o prezente que assigno
5 5° Districto 10 de Maio de 1899
Adolpho Rolim de Barros
Sub- intendente

Manuscrito 2 (M2)
Local: Santa Maria
Data: 20 de novembro de 1902
Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria
Tipo de documento: Pedido

O documento datado de 20 de novembro de 1902, denominado manuscrito 2, partiu do


município de Santa Maria/RS. João Agostinho solicita autorização para fazer um passeio em
frente a sua casa.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 163

Cidadão Intendente
Como requer, pagando o respectivo imposto
Santa Maria, 20 de novembro de 1902
Scherer
5 João Agostinho estabelecido a rua
2 de Desembro, pretendendo manda2
faser o passeio da frente de sua cas3
vem pedir-vos licença para fasel-o
Assin
10 P. Deferimento
Santa Maria 20 de Novembro 1902
João Agostinho

Manuscrito 3 (M3)
Local: Santa Maria
Data: 1° de agosto de 1902
Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria
Tipo de documento: Pedido

O documento datado de 1° de agosto de 1902, denominado manuscrito 3, partiu do 1°


distrito de Santa Maria/RS. Luiz Germani solicita a suspensão da multa que recebeu.

2 Caractere final apagado

3 Caractere final apagado


164 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Cidadão Intenden4
Attendido
SMa 1 de Agosto 902
Scherer
5 Luis Germani estabelecido com ne
gocio neste 1° Districto achando-5
incurso em multa por circunsta6
cias alheias à sua vontade, vem so7
citar vos a relevação da multa a
10 que está sujeito
Assin
E. R. Ma
Santa Maria 1° d’ Agosto de 1902
Luiz Germani

Manuscrito 4 (M4)
Local: Santa Maria
Data: 10 de agosto de 1902
Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria
Tipo de documento: Pedido

4 A sílaba final “te” está cortada no documento.

5 A partícula “se” está cortada no documento.

6 A letra ‘n’ está apagada.

7 A sílaba ‘li’ está apagada.


revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 165

O documento datado de 10 de agosto de 1902, denominado manuscrito 4, partiu do muni-


cípio de Santa Maria/RS. Solicita a paralização dos serviços prestados.

Cidadão Intendente Municipal


Dê-se-lhe a bacha
SMa 10 de Agosto de 1902
Scherer
5 O abaixo assignado pedevos o favor
de lhe mandar dar baixa no im
posto de impleiteiro, visto não
querer impleitar mais serviços
E. R. Ma
10 Santa Ma 10 Agosto 1902
Adelino Basso Dias

Manuscrito 5 (M5)

Local Silveira Martins


Data 12 de março de 1901
Fonte Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria
Tipo de documento Relato

O documento datado de 12 de março de 1901, denominado manuscrito 5, partiu da colô-


nia Silveira Martins e foi enviado para o intendente do município de Santa Maria/RS. Relata
a tentativa de acordo para a criação de uma estrada.
166 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Colonia Silveira Marttins 12 de Março de 1901


Ao Digno Intendente de Sta Maria da Bca do Mo8
Fui a caza de Constante Beltrame a ver se
o mesmo Constante concentise abrir a referida
5 estrada que e exigida por Angelo Boza oqual
eu não pode arumar nada, e apena 200 metro de largura
e ê Linha da Frente das Colonias e consta estar descri-
minada no Mapa da colonia, [†] estrada intimei as ordens ao agre-
gado Antonio Ventura que mora nas terras de Angelo
10 Boza, o qual não quiz asseitar dizendo-me quehoge
(hi) intender-se com o Snr, visto Antonio Ventura ter
Caza que pode mudar-se eu dei a Antonio 8 dias de
prazo para elle mudar-se e mais tarde colher as
plantas e quando elle quizer.
15 Saude ê Fraternidade
Rodolpho Möring Niederauer

8 As letras ‘nte’ estão apagadas.


revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 167

Manuscrito 6 (M6)
Local: Silveira Martins
Data: 18 de setembro de 1902
Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria
Tipo de documento: Pedido

O documento datado de 18 de setembro de 1902, denominado manuscrito 6, partiu da


colônia Silveira Martins e foi enviado para o município de Santa Maria/RS. Pontelli Tomaso
solicita ao Major José Claro de Oliveira para enviar uma lista de artigos pertencentes a ele.

Colonia Silveira Martins 18 de 7bro 1902


Illmo Snr Int:te do Municipio de Sta Maria
Ao portador da presente
Snr Major José Claro de Oliveira peco-vos
5 o especial favor de entregar os artigos a mim
pertencentes de volta da Exposição Estadual, quaes
são:
1 Veo de ceda preta
1 idem branca
10 1 Dito estreito cor ouro e
4 Amostras fio ceda trabalhado
Juncto a estes obejectos rogo mandar-me o Diploma
Desde já ficando-vos muito grato firmo-me
De V. S.
15 Cdo e Oblg.
Pontelli Tomaso
168 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Manuscrito 7 (M7)
Local: Pinhal
Data: 29 de dezembro de 1902
Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria
Tipo de documento: Pedido

O documento datado de 29 de dezembro de 1902, denominado manuscrito 7, partiu do


distrito de Pinhal para o município de Santa Maria/RS. Luiz Krauchenberg pede a baixa da
matrícula de sua casa de negócios.

O abaixo assignado pede a Intendencia do municipio de


Santa Maria baixa da matricula de sua caza de negocio
de 4° classe que tem no Pinhal, em vista d ter fechado
a mesma.
5 Pinhal 29 d Dezembro d 1902
Luiz Krauchenberg9

Manuscrito 8 (M8)
Local: Santa Maria
Data: 15 de janeiro de 1902
Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria
Tipo de documento: Pedido

O documento datado de 15 de janeiro de 1902, denominado manuscrito 8, partiu do mu-


nicípio de Santa Maria/RS. Pedro Falkemberg solicita iluminação na sua fábrica de cerveja
para colocar em funcionamento seu negócio.

9 Mudança de punho.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 169

Illmo Snr Intendente Municipal


De-se-lhe a baixa requerida
SMa 15 de Janeiro de 1902
Scherer
5 Pedro Falkenberg vem reque
rer-vos a elliminação de sua fa
brica de cerveja para o corrente
exercicio
Santa Maria 15 de Janeiro de 1902
10 Pedro Falkemberg

4. COMENTÁRIOS PALEOGRÁFICOS
Segundo Spina (1977), a Paleografia dedica- A paleografia fornece subsídios para obser-
se ao “estudo das antigas escritas e evolução var e compreender as mudanças que a escrita
dos tipos caligráficos em documentos, isto é, pode sofrer no decorrer do tempo. Dessa for-
em material perecível, como o papiro, perga- ma, neste trabalho, com base nos manuscritos
minho e papel” (SPINA, 1977, p 18). Confor- datados do início do século XX, observaram-
me Cambraia (2005), essa ciência apresenta se algumas alterações linguísticas, tais como,
duas finalidades: uma teórica e uma prag- substituições vocálicas, epêntese vocálica,
mática. A teórica preocupa-se em entender monotongação, substituições consonantais,
como os sistemas de escrita constituem-se duplicação de consoantes, ocorrência de en-
sócio-historicamente, e a pragmática visa à contros consonantais impróprios, separações
capacitação dos leitores modernos para ava- vocabulares indevidas, dentre outras.
liar a autenticidade de um documento com Os documentos estão identificados no tra-
base na sua escrita e para interpretar ade- balho como M1, M2, M3, M4, M5, M6, M7 e M8,
quadamente as escritas do passado. são constituídos de 6 a 17 linhas, em média,
170 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

e são escritos em parágrafos únicos. Em três (M5, linha13 e 14) e anno (M1), em lugar
manuscritos, M2, M3 e M7, pôde notar-se mu- de atendido, atesto, Martins, elimina-
dança de punho, ou seja, a pessoa que redigiu ção, ele e ano.
não foi a mesma que assinou o documento. c. ocorrência de encontros consonantais im-
próprios (encontros de consoantes dife-
4.1 Sistema vocálico rentes de oclusivas seguidas de l ou r (DO-
Quanto ao sistema vocálico, observou-se: NADEL, 2007)), tais como ct e gn nas pala-
vras Districto (M1, M3), obejectos (M6),
a. a substituição da vogal u por o, como juncto (M6), assigno (M1) e assignado
na palavra veo (M6), ao invés de véu; e (M7), no lugar de distrito, objetos, junto,
de i por e nas palavras impleitar (M4), assino e assinado, respectivamente.
impleiteiro (M4), intender-se (M5) e
quaes (M6), em vez de empreitar, em- 4.3. Diacríticos – Ausência e presença de
preiteiro, entender-se e quais, respec- acentos
tivamente. Em relação aos diacríticos, observou-se:
b. monotongação, isto é, apagamento da
semivogal em um ditongo, como obser- a. o não-uso de acento agudo nas palavras
va na palavra bacha (M4) ao invés de saude (M5,), negocio (M7), município
baixa. (M6), matricula (M7), fabrica (M8),
c. epêntese vocálica, ou seja, inserção de exercicio (M8) e de acento circunflexo
uma vogal entre duas consoantes, como nas palavras circunstancia (M3, linha
em obejectos (M6) em vez de objetos. 7/8)10, colonia (M5), Angelo (M5), Anto-
nio (M5) e intendencia (M7,).
4.2. Sistema consonantal b. o não-uso do cedilha na palavra peco-vos
Quanto ao sistema consonantal, é possível (M6), em vez de peço-vos.
perceber: c. o uso do apóstrofo em d’agosto (M3)
para sinalizar o apagamento da vogal e
a. a substituição das consoantes j por g da preposição de antes da palavra agos-
em hoge (M5), em vez de hoje; de s por to que começa por vogal. Esse processo é
c em ceda (M6), ao invés de seda; de chamado de elisão.
s por z nas palavras faser (M1, M2) e d. o uso de sinal indicativo de crase em
Desembro (M2, M7), ao invés de fazer alheias à sua vontade (M3).
e Dezembro, respectivamente; de z
por s nas palavras prezente (M1, linha 4.4. Separação vocabular
4), caza (M5, M7), quizer (M5) e quiz A divisão silábica é assinalada com hífen sim-
(M5), em vez de presente, casa, quiser ples, como em fasel-o (M2), peco-vos (M6)
e quis, respectivamente; de c por s e de e firmo-me (M6). Pôde-se observar também
s por ss em concentise (M5), em vez de separação vocabular indevida em pedevos
consentisse; de c por ss em asseitar (M4) e oqual (M5) em que houve união de
(M5), ao invés de aceitar. Por fim, há a palavras que deveriam estar separadas entre
troca de r por l em impleitar (M4) e im- si por um hífen ou por um espaço em branco,
pleiteiro (M4), em lugar de empreitar respectivamente. Esse fenômeno é chamado
e empreiteiro. de hipossegmentação.
b. a duplicação das consoantes tt, ll, nn nas
palavras attendido (M3), attesto (M1),
Marttins (M5), elliminação (M8), elle 10 A barra diagonal (/) indica mudança de linha nas transcrições.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 171

4.5. Abreviaturas CONSIDERAÇÕES FINAIS


O uso de abreviatura, ou seja, da forma redu- Um dos objetivos da filologia, segundo Spina
zida de uma palavra, é muito frequente em (1977), é o estudo da língua, sob a perspec-
documentos antigos devido à necessidade de tiva histórica, e a preservação da memória,
economia de espaço, em virtude da escassez através da fixação e transmissão de textos
e do alto custo dos materiais necessários à antigos. Neste trabalho, alcançamos este ob-
escrita. Conforme Spina (1977), as abrevia- jetivo ao fazermos a edição fac-similar e a
turas podem ser classificadas em: Sigla, em diplomática de 8 manuscritos redigidos em
que a palavra é representada apenas pela Santa Maria no início do século XX e a análise
letra inicial; Síncope, em que há supressão de suas características linguísticas.
de alguns elementos gráficos no interior do
vocábulo; Numeral, abreviatura de numera-
ções, designativa de quantidades e de mar- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
cos cronológicos; Sobreposição, em que as CAMBRAIA,  C. N.  Introdução  à  crítica  tex-
letras são grafadas em tamanho menor na tual. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
parte superior da palavra; e, por fim, a Apó-
cope que é a supressão de elementos gráficos DONADEL, G. Grupos consonantais impróprios:
no final da palavra. Nos manuscritos em aná- Estudo diacrônico com base em gramáticas.
lise foram encontrados os seguintes tipos de Porto Alegre, 2007.
abreviaturas, como se vê na Tabela 1:
SPINA, Segismundo. Introdução à Edótica: crítica
Tabela 1: Tipos de abreviatura textual. São Paulo, Cultrix, ed. da Universidade
Abreviatura Tipo de abreviatura Desdobramento de São Paulo, 1977.
Snr (M1, Síncope Senhor
M6, M8)

P. (M2) Sigla Para ou Por

Assin (M2, Síncope Assinatura


M3)
SMa (M3, Sigla e Santa Maria
M4, M8) sobreposição
Síncope e
Ma (M4) Maria
sobreposição

Sta (M5, M6) Síncope e Santa


sobreposição
Síncope e
Snr (M5) Senhor
sobreposição
Síncope e
Bca (M5) Boca
sobreposição
Illmo (M6, Síncope e Ilustríssimo
M8) sobreposição
Int.te (M6, Síncope e Intendente
M8) sobreposição
Número e
7bro (M6) Setembro
sobreposição

V.S. (M6) Sigla Vossa Senhoria

Illmo (M8) Síncope Ilustríssimo


L’ART POÉTIQUE D’ANDRÉE CHEDID
A arte poética de Andrée Chedid

Daniela Lindenmeyer Kunze1


Anselmo Peres Alós2

Resumé : cet travail a pour objectif de révéler et d’analyser la poétique de l’auteure francophone
Andrée Chedid à travers ses poèmes consacrés à l’analyse de la poésie et de la création poétique –
des métapoèmes. Auteure de poésie, roman, nouvelle et pièce de théâtre, son œuvre est reconnue
en France par des nombreux prix littéraires. Son écriture poétique est marquée par deux aspects
majeurs : la présence dans sa poésie des traces du multiculturalisme et de la relation interculturelle
qui sont influences de sa propre vie, et la présence au sein de sa poétique de la tendance critique
qu’elle met en œuvre dans sa métapoésie.
Mots-clés : Andrée Chedid ; art poétique ; Métapoesie.

Resumo: este trabalho tem como objetivo revelar e analisar a poética da escritora francófona An-
drée Chedid, dando destaque a seus poemas dedicados à análise da poesia e da criação poética – os
metapoemas. Autora de poemas, romances, contos e peças de teatro, o seu trabalho é reconhecido
na França por inúmeros prêmios literários. Sua escrita poética é marcada por dois aspectos princi-
pais: a presença de traços do multiculturalismo e da relação intercultural que ela estabelece entre
as suas raízes culturais e a tendência crítica presente no seio de sua proposta lírica – revelada em
sua metapoesia.
Palavras-chave: Andrée Chedid; arte poética; metapoesia.

Le nombre considérable de métapoèmes dans les livres d’Andrée Chedid sont révélateurs du
besoin ressenti par la poète de problématiser la poésie et le langage poétique. Cette grande
quantité de métapoèmes et la richesse de la critique qu’ils développent nous ont motivé à
penser la possibilité de création d’un art poétique3, avec une sélection des métapoèmes les
plus significatifs de l’auteure.
A partir de cette hypothèse de départ plusieurs questions se sont créées et celles-ci ont mo-
tivé toute notre recherche. Pour arriver à ce que nous concevons comme l’art poétique4 d’An-
drée Chedid, il nous fallait comprendre sa métapoésie dès sa dimension la plus générale à la
plus spécifique – en tenant compte de ses généralités mais aussi de ses nuances thématiques,
c’est-à-dire de tous les aspects de l’écriture poétique qu’elle révèle. Il nous fallait également
trouver ses possibles origines et ses pairs dans le contexte littéraire où elle s’insère.
Certains poètes se sont aventurés à décrire la poésie dans des textes théoriques, d’autres
ont inséré leurs réflexions critiques dans leur propre création artistique. Depuis toujours, la
création poétique, la genèse du poème paraît enchanter les poètes et nombreux sont ceux qui

1 Doutora em Letras pela PUCRS. Professora de Francês do Departamento de Letras da UFPE.

2 Doutor em Letras pela UFRGS. Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM.

3 Dans cette discussion le terme « art poétique » est utilisé dans sa connotation moderne et contemporaine – comme l’illustre les ouvrages de Paul Verlaine,
de Raimond Queneau et de Guillevic (entre autres).

4 Le terme « art poétique » sera utilisé en italique à chaque fois que nous faisons référence à celui de Chedid, dans la mesure où il s’agit d’une appellation
donnée spécifiquement dans cet travail – nous avons rencontré ce terme appliqué à un des métapoèmes de l’auteure dans le chapitre du livre Andrée Chedid,
Racines et liberté écrit par Marc Kober – mais nous n’avons pas rencontré de références à une sélection ou réunion des métapoèmes de l’auteure avec l’objectif
de constituer un art poétique.
174 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

ont traduit cet enchantement en vers ou en rains, comme Jacques Dupin, André du Bou-
prose. Cette tendance critique gagne une im- chet, Guillevic et Philippe Jaccottet. Chacun
portance de plus-en-plus grande à partir de possédant une écriture poétique et un re-
la poésie moderne pour arriver à son som- gard critique propre, ce qui fait la richesse
met dans la poésie contemporaine. de la métapoésie de cette génération.
En France, on peut observer l’avènement Il sera considéré comme poète critique
d’une critique littéraire faite par des poètes tout poète ayant des réflexions critiques
avec les essais critiques de Charles Baude- sur la poésie, qu’elles soient insérées dans
laire. Ils marquent le début d’une tradition des textes en prose, comme essais, corres-
française de poètes critiques, dont nombre pondances et proses poétiques, ou dans des
de théoriciens reconnaissent la portée pour textes en vers, des métapoèmes. Les notions
la poésie française et mondiale. A partir de de métapoésie et de métapoème seront uti-
Baudelaire, de grands poètes de la fin du XIXe lisées pour classer toute poésie  au sujet de
et du XXe siècle ont écrit des textes critiques la poésie et du langage poétique. Il s’agit d’un
en prose ou en vers très importants pour les néologisme qui n’est pas utilisé par les théo-
études littéraires. riciens étudiés dans cette recherche, mais
Ces textes ont également un grand poids qui nous a paru s’appliquer parfaitement à
dans la consolidation d’une métapoésie mar- cette poésie qui parle d’elle-même, suivant le
quante dans la poésie contemporaine de même principe d’autres mots formés à partir
langue française. Depuis René Char et Francis du préfixe -méta.
Ponge la métapoésie est de plus en plus fré- Dans l’œuvre d’Andrée Chedid, la mé-
quente dans l’œuvre de beaucoup de poètes tapoésie a une place fondamentale. On
francophones contemporains et l’image du trouve une grande quantité de métapoèmes
poète critique, préconisé par Paul Valéry, est dans tous ses recueils. Appartenant à une
de plus en plus forte chez les contemporains. génération très marquée par cette ten-
Dans son « Panorama de la poésie française dance critique, Chedid arrive à dépasser ses
contemporaine », Delaveau confirme l’im- contemporains par le nombre et la richesse
portance et l’ampleur de la métapoésie dans de ses métapoèmes. Pour Mireille Calle-Gru-
la poésie des années 1980 en France, ainsi ber, l’œuvre d’Andrée Chedid possède de
que sa croissance et sa diversité : nombreuses traces caractéristiques de la
poésie de sa génération, mais reste, en même
[…] l’une des tendances actuelles les plus temps, unique5 parmi ses pairs. Deux aspects
répandues c’est une poésie au sujet de principaux font l’originalité de la poétique
la poésie et du langage poétique. […] De- de l’auteure : d’un côté cette métapoésie
puis quelques années déjà, cette tendance riche et abondante et de l’autre le caractère
anime, sous bien des formes, le panorama interculturel6 de son écriture :
littéraire en France ; […] Cependant, ce qui
est nouveau, et ce qui surprend, même en Il faut désamorcer le piège qui sacre la poé-
France, c’est le développement, l’étendue, sie. Celle-ci n’est ni transcendante, ni mo-
l’ampleur sans cesse croissante du phéno- ralisante.
mène (DELAVEAU, 1988, p. 23). Prenant corps dans le souffle, elle affronte

5 « Unique » a été l’adjectif utilisé par l’écrivaine, professeure et critique


Dans cette production poétique, des an- littéraire Mireille Calle-Gruber, lors d’un de mes entretiens avec elle à l’Uni-
versité Paris III en novembre 2012.
nées 1960 aux années 2000, se situe la partie
6 Le terme « interculturel » nous paraît plus approprié pour parler de
la plus importante de la métapoésie d’Andrée l’écriture de Chedid – que celui de « multiculturalisme » – dans la mesure où
l’interculturel exprime la relation entre les cultures, n’étant pas restreint au
Chedid et de celle d’autres poètes contempo- fait de posséder/accumuler plusieurs cultures.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 175

l’inconnu, ne se réduit ni au poème, ni au marquer la différence entre un auteur fran-


poète. çais ou un auteur francophone. On sait que
*** cette différence n’est pas toujours appliquée,
Ces approches ne sont jamais des affirma- puisque, comme le fait remarquer Mitterand,
tions. Discutables, contestables, elles peu- certains ouvrages critiques et anthologies
vent être ressenties tout autrement. poétiques classent les principaux auteurs
C’est le privilège du poète de ne jamais dé- francophones dans la catégorie poésie fran-
tenir la vérité (CHEDID, 1999, p. 128). çaise. Ainsi, des poètes francophones comme
Andrée Chedid, Léopold Sédar Senghor et
Andrée Chedid est une écrivaine franco- Aimé Césaire figurent comme poètes fran-
phone née en Egypte d’une famille d’origine çais dans les anthologies Poètes français des
libanaise qui a passé la plupart de sa vie à XIXe et XXe siècles (2001), de Daniel Leuwers,
Paris. Très tôt, elle choisit le français comme Anthologie de la poésie française du XXe siècle
langue d’expression artistique et de création (2001) de Jean-Baptiste Para et A poèmes
littéraire et devient un nom important de la ouverts – 50 poètes français d’aujourd’hui
littérature française contemporaine. Elle a (2008) de Jean-Pierre Siméon. Dans l’ou-
écrit de la poésie, des romans, des nouvelles, vrage de Leuwers, il y a un chapitre destiné
des pièces de théâtre et des chansons, a par- aux voix de la francophonie et dans celui de
ticipé à des émissions radio, a enregistré Para leur inclusion est justifiée dans la note
des poèmes et fait l’objet de colloques et de de l’éditeur, l’accent étant mis dans les deux
manifestations culturelles à Paris, en Egypte cas sur la langue française :
et au Liban. A part un premier recueil de
poèmes écrit en anglais et publié en Egypte, C’est désormais une évidence : passant du
la totalité de son œuvre est écrite en français Québec au Liban, de la Suisse à Madagascar,
et publiée en France. de la Belgique au Maghreb, les chemins et
On emploie l’adjectif « francophone » pour les routes de la poésie de langue françai-
faire référence à des auteurs qui comme Che- se se rient des latitudes et des longitudes.
did ne sont pas nés en France, mais écrivent Aussi avons-nous franchi à maintes repri-
en français. Dans la plupart des cas, ces au- ses les frontières de l’Hexagone (PARA,
teurs francophones vivent ou ont vécu en 2000, p. 16).
France et ont leurs principaux ouvrages pu-
bliés en France, comme le souligne Henri Dans les ouvrages théoriques nous avons
Mitterand quand il parle des écrivains issus rencontré des titres comme La poésie en
des pays francophones : France du surréalisme à nos jours (1996) de
Marie-Claire Bancquart et La poésie contem-
[…] leurs meilleurs écrivains, la plupart du poraine de langue française depuis 1945
temps édités en France, s’intègrent à la lit- (1973) de Serge Brindeau, intégrant tous les
térature française, et jouent parfois un rôle deux, dans leur corpus, les ouvrages écrits
capital dans son histoire […] la France les a en français et publiés en France. Nous utili-
comme « aspirés », en leur offrant l’accueil serons ainsi, poésie francophone ou poésie de
de ses éditeurs et le soutien de ses revues langue française pour faire référence à l’en-
(MITTERAND, 2013, p. 75). semble dont Andrée Chedid fait partie. Dans
le corpus littéraire de cette thèse nous comp-
Dans ce même sens, les expressions « poé- terons aussi avec la présence de deux autres
sie francophone » ou « poésie de langue fran- poètes francophones appartenant à la même
çaise » sont utilisées dans la littérature pour génération de Chedid, Lorand Gaspar, né en
176 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Transylvanie et auteur du livre Approche de édités ces dernières années en France. Les ou-
la parole (1978) et Philippe Jaccottet, né en vrages collectifs Andrée Chedid et son œuvre
Suisse. (2003) dirigé par Jacqueline Michel, Aux
Un autre concept utilisé pour contextua- frontière des deux genres (2003), dirigé par
liser l’œuvre de Chedid est celui de poésie Carmen Boustani et Andrée Chedid, racines
contemporaine. Il paraît ne pas exister un et liberté (2004), dirigé par Jacques Girault
consensus, dans les textes théoriques étudiés et Bernard Lecherbonnier sont les fruits des
lors de cette recherche, pour délimiter exac- colloques internationaux organisés autour
tement l’ère contemporaine en poésie. Hen- de l’œuvre en vers et en prose de l’auteure.
ri Mitterand (2013) distingue l’existence de Elle compte également avec le livre Andrée
trois générations de poètes contemporains Chedid (2004), écrit par le poète et critique
en France qui commencerait également par Jacques Izoard et publié dans l’importante
la génération de Char et Ponge : collection Poètes d’aujourd’hui et elle est un
des poètes étudiés dans l’ouvrage Jouissance
De grands poètes qui avaient traversé le des déserts dans la poésie contemporaine
siècle sont morts au cours des années (1998) de Jacqueline Michel. Elle est égale-
[19]80 : Michaux en 1984, Char et Ponge ment citée dans des ouvrages importants sur
en 1988, Soupault en 1990. La génération la poésie contemporaine de langue française
suivante est celle des poètes nés entre comme ceux de Serge Brindeau (1973), de
1920 et 1930 : Bonnefoy, Jaccottet, Du Bou- Marie-Claire Bancquart (1996), d’Henri Mit-
chet, Dupin, Deguy, Jean-Claude Renard, terand (2013), de Philippe Delaveau (1988),
Claude Michel Cluny toujours à l’œuvre. ainsi que dans des anthologies de la poésie
La jeune poésie – hommes et femmes nés francophone contemporaine, comme celle
après 1950 – est vivace, savante, sensible, de Jean-Baptiste Para (2000) et celle de Jean-
amoureuse du verbe (MITTERAND, 2013, Pierre Siméon (2008).
p. 105). Son œuvre est également l’objet de treize
thèses réalisées en France7. Ces travaux aca-
Nous adoptons cette même conception de démiques concernent, pour la plupart, les
« poésie contemporaine » et dans nos corpus romans de l’auteure. Sa poésie est moins étu-
littéraires nous priorisons les poètes contem- diée et il existe une seule thèse traitant de la
porains de la génération de Chedid, nés entre « dimension métatextuelle »8 dans sa poésie,
1920 et 1930, à l’exception de Guillevic et de mais aussi dans ses romans. Cette thèse a été
Jean Tardieu, nés entre 1900 et 1910. La plu- soutenue à l’Université Stendhal de Grenoble
part des poètes de ces deux périodes ont pu- et est seulement disponible dans la biblio-
blié des livres jusque dans les années 2000, thèque de l’université. Aucune recherche,
comme c’est le cas d’Andrée Chedid dont pour le moment, ne traite spécifiquement
le dernier recueil de poésie a été publié en de sa métapoésie, alors que celle-ci occupe
2011, l’année de sa mort. Jacques Dupin est une grande place parmi les éléments qui for-
décédé en 2012 et Deguy et Gaspar sont en- ment l’univers poétique d’Andrée Chedid. La
core vivants. Les poètes de cette génération poète revient, dans chacun de ses livres, aux
dont les principaux représentants ont eu une réflexions sur la création poétique et la défi-
grande longévité ont continué à écrire et à nition de la poésie.
publier jusqu’à la fin de leurs vies.
7 Ces thèses sont répertoriées dans le site internet du Système Universi-
Malgré le fait d’être une écrivaine contem- taire de Documentation – Sudoc : <http://www.sudoc.abes.fr/>.

poraine, Andrée Chedid, par son œuvre, fait 8 MESPLE, Marie José Le Corre. L’écriture d’Andrée Chedid et sa dimension
metatextuelle. Sous la diréction de Claudette Oriol Boyer, 1996. Thèse de Docto-
sujet dans les ouvrages critiques importants rat en Littérature Française (version d’origine), Université Grenoble III, 1996.
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La grande majorité des livres de poèmes p. 687). De ce fait, il nous a paru plus per-
de l’auteure ont des titres qui évoquent tinent de prioriser les textes critiques pro-
déjà la métapoésie (Textes pour un poème, duits par des poètes, au détriment de textes
Poèmes pour un texte, Rythmes, Par delà les écrits par des théoriciens. Avec les textes
mots, Territoires du souffle) donnant ainsi un critiques de Charles Baudelaire on remarque
indice appréciable de la tendance critique la naissance d’une tradition française dans
qui se fera présente dans toute son œuvre. la critique littéraire faite par des écrivains.
Cet indice évident marque non seulement la Cette tradition se consolide avec des textes
présence, mais surtout l’importance que ces significatifs de poètes modernes, puis gagne
réflexions métapoétiques ont pour l’auteure. force avec la substantielle production des
Ce point de départ a généré des questionne- poètes du XXe siècle. Cette critique est consi-
ments autour de l’écriture métapoétique de dérée singulière par des théoriciens comme
Chedid et le premier concernait la possibili- Mireille Calle-Gruber (2001) car, selon elle,
té de réunir, dans un vaste corpus composé on y remarque une certaine préoccupation
des métapoèmes de presque tous ses livres, esthétique mais aussi un regard différent et
un ensemble de métapoèmes justifiant la va- unique sur la poésie et la création poétique.
leur que l’appellation d’art poétique a reçu Parmi les poètes de la génération de Che-
depuis la modernité et notamment chez les did, cette préoccupation critique a généré,
contemporains. Les autres questionnements au-delà d’une riche métapoésie, des textes
étaient sur le contenu de sa métapoésie, par théoriques singuliers, se situant entre es-
exemple : dans quelle mesure ils étaient si- sai et prose poétique. La série de livres sur
gnificatifs ? Quelles conceptions de la poésie la poésie de Jean-Michel Maulpoix (2002),
ils révèlent  ? Et finalement quelle est leur ainsi que les ouvrages emblématiques : La
importance et leur place dans la poésie fran- poésie n’est pas seule (1987), de Michel De-
çaise contemporaine ? guy, Approche de la parole (1978), de Lorand
Les conceptions de la poésie, ainsi que Gaspar et Notes sur la poésie (1970), de Jean-
celles de la création poétique, révélées dans Claude Renard sont des références impor-
les métapoèmes de Chedid sont très proches tantes pour comprendre la conception de
de celles de Paul Valéry. Ce poète a laissé des poésie et le rôle des poètes critiques dans la
textes critiques conséquents pour la théorie poésie contemporaine française.
littéraire. Valéry dans Poésie et pensée abs- Il est également important de com-
traite (2002) propose des définitions de la prendre le poids et les caractéristiques de la
poésie, de la création poétique et du poète, métapoésie dans la poésie française contem-
emblématiques pour leur époque et qui ré- poraine, afin d’essayer de situer Chedid dans
sonnent encore dans les études littéraires un contexte littéraire et dans la tradition
et la poésie contemporaine. Les marques de française d’une poésie tournée vers elle-
l’héritage critique de Valéry sont évidentes même. Dans l’impossibilité de prendre en
dans la poésie d’Andrée Chedid et cette compte toute la métapoésie contemporaine
constatation justifie la place significative de française pour en faire un panorama, nous
son texte théorique dans l’élaboration de avons choisi certains poètes ayant produit
cette discussion. des métapoèmes significatifs et qui peuvent
Valéry, dans l’essai mentionné précé- donner une idée de la production des poètes
demment, défend le regard critique que le contemporains d’Andrée Chedid. Parmi une
poète doit avoir envers son propre art. Pour longue liste de poètes contemporains dont
lui, « tout véritable poète est nécessaire- l’œuvre contient au moins quelques mé-
ment un critique de premier ordre » (2002, tapoèmes, nous avons choisi Guillevic, Jean
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Tardieu, Jacques Dupin, André du Bouchet On a également affaire à une grande quanti-
et Philippe Jaccottet. Ce choix a été motivé té de métapoèmes où l’on relève quelques
par le fait que leur métapoésie est reconnue exemples expressifs pour en faire l’analyse. A
comme emblématique de cette génération partir de l’étude de la métapoésie de Chedid,
par des théoriciens consacrés à la poésie mais aussi de celle d’autres poètes, on cons-
contemporaine, tel que Mireille Calle-Gru- tate quelques tendances ou subdivisions de
ber, Daniel Briolet, Serge Brindeau, Philippe ce phénomène, on trouve ainsi des métapoè-
Delaveau et Jean-Michel Maulpoix dont les mes qui cherchent à définir la poésie, l’écritu-
ouvrages ont guidé cette étude. re poétique et la démarche du propre poète,
Il sera question, principalement, de com- d’autres qui évoquent le rôle du poète et d’au-
prendre la conception de la poésie exprimée tres encore, élucidant le processus d’écriture
par la métapoésie de Chedid, ainsi que son du poème ou sa genèse. Dans l’ensemble de
écriture-même : l’alliance entre les notions la métapoésie de Chedid, on rencontre des
critiques et l’écriture poétique, afin de pen- exemples de toutes ces tendances.
ser sa métapoésie comme un art poetique. Les réflexions critiques de l’auteure
Pour cela, les réflexions critiques de Chedid dépassent également le cadre de sa
seront confrontées, principalement, à cel- métapoésie et sont souvent objet de discus-
les exposées dans Poésie et pensée abstraite sion lorsqu’elle parle de son œuvre ou de sa
(2002) de Paul Valéry et à des textes criti- vie. La préoccupation de Chedid de définir
ques de certains poètes français contempo- la poésie et d’expliciter son processus créa-
rains comme Jean-Claude Renard, Lorand tif est aussi présente quand elle parle de son
Gaspar et Jean-Michel Maulpoix. œuvre, dans des colloques ou des entretiens.
Jacques Izoard met en évidence le caractère Les titres de ces livres – Textes pour un
unique de l’écriture  de Chedid: un lyrisme poème (1949-1970), Poèmes pour un texte
« lissé, dense et simple » (2004, p. 10) – sans (1970-1991), Par-delà les mots, Territoires
détournements ou déformations de langage du souffle et Rythmes – sont très révélateurs,
–, mais très musical, un héritage intercultu- ils évoquent tous cette réflexion autour de
rel composant avec la culture française et une la poésie et fournissent un riche matériel
tendance critique de réflexion – un question- d’analyse sur la métapoésie de Chedid. Cette
nement sur la poésie et le processus créatif. dernière partie compte, ainsi, achever avec
L’objectif étant de comprendre la notion de la description et l’analyse détaillées de l’art
poète critique à travers les textes théoriques poétique de cette auteure originale, certes,
sur la poésie produits par des poètes de Bau- mais en même temps représentative de la
delaire à Valéry. Il est aussi question d’analy- poésie française contemporaine.
ser les concepts de poésie et de poète critique Chedid, famille d’artistes commençant
présentés par l’essai Poésie et pensée abstraite par Andrée, écrivaine multiple, mais surtout
de Valéry. Certains de ces concepts sont repris poète unique. Andrée Chedid écrit d’abord
dans les métapoèmes de Chedid et dans l’en- des poèmes, puis passe à l’écriture des textes
tretien de l’auteure publié dans le livre Entre en prose – des nouvelles, puis de romans et
Nil et Seine, laissant clair l’héritage de la cri- finalement des pièces de théâtre. Dans son
tique de Valéry dans l’œuvre d’Andrée Chedid. œuvre littéraire, c’est sa poésie que, depuis
Dans la critique des poètes contemporains, le premier contact, attire notre attention. An-
il est parfois difficile de déterminer de ma- drée Chedid a six livres de poèmes publiés
nière précise les limites entre théorie et méta- en France et plusieurs prix littéraires cou-
poésie, on a affaire à des textes hybrides com- ronnent sa production – comme le Prix Gon-
me Approche de la parole de Lorand Gaspar. court de la poésie de 2002.
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Parmi les caractéristiques qui marquent sa En ce qui concerne les thématiques chères
poésie, nous rencontrons une forte tendance à l’auteure, à part celle de la critique de la
critique qui se révèle par l’utilisation, fré- poésie présentée par ses métapoèmes, sa
quente dans tous ses livres, de la métapoésie. poésie aborde, principalement, des thèmes
Cette constatation est l’élément déclencheur universels comme ceux de la mort ou du
de notre recherche. Devant l’abondance et la passage du temps. Des éléments de la nature
richesse de la métapoésie de Chedid, nous peuplent également ses poèmes et inspirent
nous sommes interrogés initialement la les images suggérées. Des notions ou des
question sur la possibilité de voir, dans les mots clefs se répètent dans tous les livres
réflexions critiques insérées dans ses mé- et démontrent par leurs poids symboliques,
tapoèmes la création d’un art poétique, selon l’univers poétique de Chedid.
les connotations moderne et contemporaine Les notions de « mystère » et d’« énigme »
de l’expression. Par conséquent, d’autres sont associées à la vie ou à l’écriture. Elles
questionnements se sont imposés – par rap- sont alors fréquentes dans sa métapoésie et
port aux contenus de sa critique, mais aussi évoquent tantôt une dimension mystique de
par rapport à son importance et à sa place l’écriture poétique – comme la révélation, la
dans la poésie française et plus précisément délivrance ou la recherche de son essence –
dans le contexte littéraire de Chedid – la poé- tantôt le côté indéfinissable et insaisissable
sie francophone contemporaine : de la poésie. Leurs interprétations appliquées
à des exemples de l’art poétique de l’auteure
V illustrent ces possibilités et contribuent à la
compréhension de la poétique de l’auteure.
Ainsi chemine D’autres mots comme «  chant  », «  souffle  »
Le langage ou « parole » se répètent également dans la
De terre en terre métapoésie de l’auteure et nous offrent éga-
De voix en voix lement plusieurs possibilités d’interpréta-
tion. Ces mots apparaissent aussi dans notre
Ainsi nous devance proposition de l’art poétique de Chedid et,
Le poème faisant partie de certains métapoèmes de ses
Plus tenace que la soif contemporains, contribuent pareillement
Plus affranchi que le vent ! (CHEDID, à aider à cerner les rapports que les poètes
2003, 33). contemporains établissent à travers leurs
critiques – ce que nous motive à penser à
Analysant la totalité de l’œuvre poétique la dimension contemporaine de cet art poé-
de l’auteure, on constate que l’écriture de tique en tant que miroir de son époque.
Chedid a souffert quelques transformations Un lyrisme musical, interculturel et cri-
d’un recueil à l’autre, mais qu’elle n’a pas en- tique est celui de cette auteure égyptienne
trepris des changements plus expressifs. Sa qui a choisi d’écrire en français. Toute la ri-
poésie garde quelques caractéristiques for- chesse de la dimension interculturelle de
melles et surtout thématiques qui se répètent l’écriture de Chedid – et nous choisissons ce
d’un livre à l’autre et que nous suggèrent une terme en détriment de la notion de « mul-
certaine unité dans son écriture. La grande ticulturalisme », dans la mesure où nous
majorité de ses poèmes sont écrits en vers croyons que l’interculturel fait référence à
et gardent une forte musicalité. Sa poésie est quelque chose de plus vaste : à la relation
marquée par des vers et des poèmes courts que les multiples cultures de l’auteure éta-
et rythmés. blissent entre elles pour donner naissance à
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une œuvre où ces cultures se mélangent et Nous avons trouvé, dans l’essai Poésie et
s’interpénètrent sans aucun rapport de force pensée abstraite de Valéry (2002, p. 657-
ou sans que l’une écrase l’autre, tout simple- 691), un nombre important des propos qui
ment contribuant, chacune avec son éclat, à trouvaient leur écho dans la métapoésie de
la construction d’une sensibilité différente, Chedid et qui justifiaient le rapprochement
d’un regard unique. que nous avons fait entre les ouvrages de ces
Poésie unique, selon la professeure deux poètes critiques. Nous avons constaté
Mireille Calle-Gruber, mais en même temps que sous plusieurs aspects la métapoésie de
si ancrée dans la scène littéraire contem- Chedid et celle de ses contemporains font
poraine de langue française. Et cela est dû, preuve de l’héritage de la critique de Valé-
principalement, à son goût pour la critique ry – ce que nous avons exposé dans une dé-
et à la lucidité de ses réflexions sur la poé- marche comparative entre les propos les plus
sie et la poétique. De ce fait, Andrée Chedid significatifs de Poésie et pensée abstraite et
perpétue et approfondie – ou creuse da- ceux contenus dans la métapoésie de Chedid
vantage, utilisant les mots de l’auteure – le et dans l’entretien de l’auteure publié dans le
penchant de la poésie française contempo- livre Entre Nil et Seine (2006).
raine à une poésie au sujet d’elle-même – la Comme Valéry, l’auteure francophone af-
métapoésie. «  Mon langage regarde que le firme l’importance du travail conscient du
langage regarde le langage !  », a déjà dit poète sur le langage. Les noyaux de sa mé-
Jean Tardieu à L’écran-langage (TARDIEU, tapoésie sont les définitions de la poésie et
2009, p. 60). l’explicitation du travail sur le langage opéré
Nous avons pu constater que Chedid par le poète dans le passage de l’inspiration
appartient à une génération de poètes pour ou de l’état de poésie au poème. Elle fait, tout
laquelle la critique paraît indissociable du comme Valéry, une opposition très marquée
processus d’écriture poétique. Les poètes de entre l’inspiration et le travail du poète sur
cette génération ont, dans un nombre sig- le langage.
nificatif, écrit des textes critiques en prose Dans sa métapoésie, Chedid parle de la
– des essais – et principalement des textes poésie et de la poétique d’une manière im-
en vers – des métapoèmes. Nous avons ainsi personnelle, mais parle également de sa
découvert une critique faite par des poètes propre écriture et de sa propre poétique :
contemporains, mais qui a ses origines dans
une tradition des poètes critiques inaugu- Visage premier
rée, dans la poésie française, par Baudelaire.
Nous avons également constaté combien cet- Avec la passion du concret, à travers l’épreu-
te critique était plus en accord avec la méta- ve de la lucidité, reconnaître, renommer,
poésie et les réflexions critiques de Chedid. célébrer – sans abandon – le Visage. Parce
La certitude de Jean-Michel Maulpoix (2004) qu’il est vie, qu’il est source. Parce qu’il est
que seulement la critique des poètes peut nous, dans sa nudité, à la racine du sensib-
penser et analyser la poésie contemporaine, le ; sans doute aussi dans sa cohérence et sa
s’est confirmée pour nous, à partir de l’étude signification.
des essais de Paul Valéry. Nous avons cons-
taté alors les correspondances que l’on peut Poésie, mouvement sans finale qui nous han-
établir entre la critique de ce poète et celle te, comme un rythme, depuis le début des
de Chedid et combien l’on peut voir, dans la temps. Chemin recommencé, avec ses passe-
métapoésie de Chedid, l’héritage de la criti- relles où se joignent rêve et quotidien, sai-
que de Valéry. sissable-invisible, l’instant et l’ailleurs. Poé-
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sie qui construit le regard  ; fait surgir, par et les nuances thématiques qu’elles puissent
bribes, du monde exigu, anecdotique, de nos avoir, nous pouvons voir dans la métapoésie
existences, ce fond des fonds de nous : VISA- de Chedid un reflet de la pensée des poètes
GE PREMIER. contemporains. De ce fait, l’art poétique de
« Le JE de la poésie est à tous. » Chedid serait, pour nous, contemporain dans
La Terre est. Nous la touchons. un double sens : selon la connotation que ce
La Poésie – évidence, mais qui reste en sus- terme a reçu à partir de la modernité (tenant
pens – n’attend que nous, pour devenir compte des exemples modernes et contem-
(CHEDID, 1991, p. 13). porains des arts poétiques), mais aussi
comme étant le reflet d’une idée de poé-
Dans certains métapoèmes, elle livre au tique partagée par les poètes francophones
lecteur son processus de création et les dé- contemporains :
tails d’écriture de ses poèmes, démontrant
ainsi que sa conception de la poésie, passe par POESIE
son ressenti personnel et par son expérience
en tant que poète, comme le fait Valéry dans Par-delà les mots
un propos emblématique de Poésie et pen- Elle sécrète la parole
sée abstraite : « il n’est pas de théorie qui ne
soit un fragment, soigneusement préparé, de En deçà du verbe
quelque autobiographie » (2002, p. 666). Elle questionne l’univers
A part les correspondances que l’on peut
établir entre la métapoésie de Chedid et la Au-delà des murailles
théorie de Valéry, nous trouvons également Elle nomme la liberté
des rapports étroits entre la métapoésie de
l’auteure et celles de ses contemporains. En deçà de chaque flot
Malgré les différentes écritures, certains Elle révèle l’océan
thèmes reviennent dans l’œuvre métapoé-
tique de poètes de la génération de Chedid, Désertant les conquêtes
comme on a pu observer dans l’étude de la Elle promet l’équipée
métapoésie et de la critique de quelques
poètes contemporains, comme Jean-Claude Elle remue le souffle
Renard, Lorand Gaspar, Guillevic, Jean Sacre l’humble outil
Tardieu, Philippe Jaccottet, Jacques Dupin et
André du Bouchet. Parmi ces poètes, Guille- Elle assemble les fragments
vic est celui dont la métapoésie est la plus Du visage dispersé
proche de celle de Chedid, autant par rap-
port à la forme qu’au fond. Guillevic a une Et désigne le mystère
écriture assez proche de celle de Chedid et Qui demeure entier (CHEDID, 1995, p. 7).
aborde également des sujets présents dans la
métapoésie de l’auteure. En ce qui concerne L’abondance de métapoèmes dans son
les autres poètes mentionnés, nous avons œuvre poétique ainsi que la richesse des ré-
conclu que même s’il existe certains écarts flexions critiques qu’ils exposent nous ont
entre leurs métapoésies et celle de Chedid, il démontré la pertinence d’établir ce que nous
est toujours possible de trouver quelques as- considérons son art poétique. L’analyse cet
pects communs entre elles. Ce que nous dé- art poétique, nous a montré que les mêmes
montre que, malgré les variations d’écriture propos critiques se répétaient dans plusieurs
182 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

métapoèmes, révélant ainsi, des aspects fon- ce, il suggère des concepts très proches des
damentaux de sa conception de poésie. Par- ceux exprimés par la critique de Paul Valéry
mi ces aspects, on relève d’abord le fait que et partage, sous certains aspects, les mêmes
la poésie pour Chedid est indissociable de la visions de poésie et de création poétique
vie, la poète l’associe de manière fréquente à des poètes contemporains. Dans ce sens, son
la vie et à l’amour universel. La poésie gagne, étude nous a été très enrichissante et nous
pour l’auteure, une force vitale et devient espérons qu’il puisse être suivi d’autres re-
alors indispensable – elle ne conçoit pas la cherches en France ou au Brésil, donnant à
vie sans la poésie, celle-ci donne du sens au l’art poétique d’Andrée Chedid le rayonne-
monde. ment qu’il mérite.
Un autre aspect qui se dégage de sa mé-
tapoésie est le pouvoir libérateur de la poé-
sie, souvent révélé par l’utilisation du verbe RÉFERENCES
« délivrer ». Pour Chedid la poésie délivre le
poète et le lecteur. La poésie est aussi, pour BLANCQUART, Marie-Claire. La poésie en Fran-
l’auteur un espace d’accueil et de générosité, ce du surréalisme à nos jours. Paris : Ellipses,
dans la mesure où elle doit être accessible à 1996.
tous par son langage et concerner à tous par
sa thématique : BOUSTANI, Carmen (Dir.). Aux frontières des deux
genres, en hommage à Andrée Chedid. Paris :
Le poète fait songer à ces feuilles qui, avant Karthala, 2003.
de se détacher du grand arbre, lui aban-
donnent ce qu’elles possèdent de plus vif. BRINDEAU, Serge. La poésie contemporaine de
langue française depuis 1945. Paris : Saint-
Leur chute, alors, se fait légère ; et la mort Germain-des-Prés, 1973.
ne recueille que cette forme qui les limitait
(CHEDID, 1987, p. 119-128). CALLE-GRUBER, Mireille. Histoire de la littératu-
re française du XXe siècle ou Les repentirs de la
L’art poétique de Chedid aborde égale- littérature. Paris : Honoré Champion, 2001.
ment, de manière fréquente, l’importance de
la genèse du poème, des choix entrepris par CHEDID, Andrée. Entre Nil et Seine. Andrée Che-
le poète dans l’alliance entre sens et sons. did – entretiens avec Brigitte Kernel. Paris
Pour l’auteure, cet accord entre les deux as- Belfond, 2006.
pects du langage doit être parfait, la poésie
de Chedid étant basée sur le désir de trans- _____. Textes pour un poème. Textes pour un poème
mette un message et de « composer une mu- (1949-1970). Paris : Flammarion, 1987.
sique » (2006, p. 67).
Pour Marc Kober, l’art poétique de Che- _____. Poèmes pour un texte (1970-1991). Paris:
did est un art poétique de « amour confon- Flammarion, 1991.
du avec la vie » (KOBER, 2004, p. 39), à cela
nous ajoutons qu’il est également un art po- _____. Rythmes. Rythmes. Paris: Gallimard, 2003.
étique de la liberté et aussi de la générosité,
du partage et de la communion des hommes _____. Par delà les mots. Paris: Flammarion, 1995.
avec le monde et des hommes entre eux. Il
est aussi représentatif de la poésie de langue _____. Territoires du souffle. Paris: Flammarion,
française, dans la mesure où, dans son essen- 1999.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 183

DELAVEAU, Philippe. La poésie française au tour- 2003.


nant des années 1980. Paris : Corti, 1988.
MITTERAND, Henri. La littérature française du
DEGUY, Michel. La poésie n’est pas seule. Paris : XXe siècle. Paris : Armand Colin, 2013.
Seuil, 1987.
PARA, Jean-Baptiste. Anthologie de la poésie fran-
GASPAR, Lorand. Approche de la parole. Paris : çaise du XXe siècle, T2. Paris : Gallimard, 2000.
Gallimard, 1978.
RENARD, Jean-Claude. Notes sur la poésie. Paris :
GIRAULT, Jacques et LECHERBONNIER, Bernard Seuil, 1970.
(Dir.). Andrée Chedid, racines et liberté. Paris :
L’Harmattan, 2004. SIMEON, Jean-Pierre. A poèmes ouverts – 50 poè-
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IZOARD, Jacques. Andrée Chedid. Paris : Seghers,
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KOBER, Marc. « Lieux poétiques, espaces
d’accueil d’Andrée Chédid ». In  : GIRAULT, VALÉRY, Paul. Variété III, IV et V. Paris: Gallimard,
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Andrée Chedid, racines et liberté. Paris : L’Har-
mattan, 2004. p. 29-40.

LEUWERS, Daniel. Poètes français des XIXe et XXe


siècles. Paris : Lgf, 2001.

MAULPOIX, Jean-Michel. Le poète perplexe. Pa-


ris : José Corti, 2002.

_____. Adieux au poème. Paris : José Corti, 2005.

_____. Pour un lyrisme critique. Paris : José Corti,


2004.

MESPLE, Marie José Le Corre. L’écriture d’An-


drée Chedid et sa dimension metatextuelle.
Sous la diréction de Claudette Oriol Boyer,
1996. Thèse de Doctorat en Littérature Fran-
çaise (version d’origine), Université Grenoble
III, 1996.

MICHEL, Jacqueline. Jouissance des déserts dans


la poésie contemporaine. Paris : Lettres Mo-
dernes, 1998.

MICHEL, Jacqueline (Dir.). Andrée Chedid et son


œuvre, une quête d’humanité. Paris : Publisud,
ASPECTOS PALEOGRÁFICOS DE MANUSCRITOS DO INÍCIO
DO SÉCULO XX DO MUNICÍPIO DE SANTA MARIA, RS

Otávio Perufo Carloto1


Tatiana Keller2

RESUMO: Este trabalho tem como objetivo apresentar análise de manuscritos datados do primeiro
decênio do século XX, de Santa Maria/RS, no âmbito da filologia e da paleografia. O estudo filoló-
gico aqui realizado conta com as edições diplomáticas dos manuscritos supracitados, que foram
coletados no acervo digital do Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria. A análise dos aspectos
paleográficos, por sua vez, trata dos principais elementos linguísticos encontrados nos documen-
tos, como a alternância de vogais dentro dos vocábulos, a presença de consoantes geminadas, a
alternância de consoantes nos vocábulos, a ocorrência de encontros consonantais impróprios, a
não-ocorrência de acentos agudos, de acentos circunflexos e de acentos graves, e o uso de após-
trofo, de abreviaturas e de maiúsculas. Por fim, salientamos que nosso intuito é o de apresentar ao
leitor interessado as divergências entre a ortografia antiga e a ortografia atual brasileira, uma vez
que, à época dos manuscritos analisados, não havia normatização acerca de como os vocábulos
deveriam ser escritos.
PALAVRAS-CHAVE: Análise linguística. Filologia. Manuscritos do século XX. Paleografia.

ABSTRACT: This essay aims to present an analysis of four manuscripts dated back to the first
decade of the 20th century, from Santa Maria/RS, in the fields of philology and paleography. The
philological study depends on the diplomatic editions of the aforementioned manuscripts, which
were collected from the digital archive of the Municipal Historical Archive of Santa Maria. There-
fore, the analysis of the paleographic aspects deals with the main linguistic elements found in the
documents, such as the vowel alternation within words, the presence of gemination, the consonant
alternation, the occurrence of impermissible consonant clusters, the non-occurrence of the acute
accent, the circumflex accent and the grave accent, and the usage of the apostrophe, the abbrevia-
tion and the capital letter. Lastly, we wish to stress out the fact that our intention is to show the
differences between the old and the current Brazilian spellings to the interested reader, since there
was not a normalization about how words should have been written at that time.
KEYWORDS: 20th century manuscripts. Linguistic analysis. Paleography. Philology.

RESUMEN: Este trabajo tiene como objetivo presentar un análisis de manuscritos datados del
primer decenio del siglo XX, de Santa María/RS, en el ámbito de la filología y de la paleografía.
El estudio filológico aquí realizado cuenta con las ediciones diplomáticas de los manuscritos su-
pra citados, que fueron colectados en el acervo digital del Archivo Histórico Municipal de Santa
María. El análisis de los aspectos paleográficos, a su vez, trata de los principales lingüísticos en-
contrados en los documentos, como la alternancia de vocales dentro de los vocablos, la presencia
de consonantes geminadas, la alternancia de consonantes en los vocablos, la ocurrencia de en-
cuentros consonantares impropios, la no ocurrencia de acentos agudos, de acentos circunflejos
y de acentos graves, y el uso del apostrofe, de abreviaturas y de mayúsculas. Por fin, destacamos

1 Aluno do curso de Bacharelado em Letras - Português/Literaturas da Universidade Federal de Santa Maria.

2 Professora Adjunta do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria.


186 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

que nuestro intuito es el de presentar al lector 2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA


interesado las divergencias entre la ortografía Editar um texto ou documento significa pu-
antigua y la ortografía actual brasileña, una blicá-lo através de algum tipo de reprodução
vez que, en la época de los manuscritos anali- – como, por exemplo, a impressão –, a fim de
zados, no existían normativas acerca de cómo transmitir uma obra para um determinado
los vocablos tendrían de ser escritos. público-alvo. No campo da crítica textual, o
PALABRAS-CLAVE: Análisis lingüístico. Filolo- objetivo da edição e da reedição de documen-
gía. Manuscritos del siglo XX. Paleografía. tos é a “restituição da forma genuína dos tex-
tos” (CAMBRAIA, 2005, p. 1). Esse campo de
trabalho é importante para o estudo da língua
1. INTRODUÇÃO e da literatura, visto que, em uma investiga-
A filologia é um importante campo dos estu- ção dos aspectos linguísticos de épocas ante-
dos linguísticos que visa restaurar, explicar, riores, documentos antigos podem ser utili-
comentar e catalogar obras e documentos an- zados como objeto de pesquisa, assim como
tigos. Iniciada pelos gregos e posteriormente manuscritos de obras literárias. Ainda, outra
preservada pelos romanos, a filologia perde motivação relevante para que se editem tex-
espaço durante a Idade Média, sendo, mais tos e documentos antigos é a preservação do
tarde, retomada pelos renascentistas no sécu- patrimônio cultural em que estão inseridos.
lo XVI. A partir do século XIX, entretanto, há Assim, desenvolveram-se diferentes tipos de
o surgimento de novos princípios científicos, edição, que são separados em dois grandes
cunhados de Crítica textual moderna, através grupos: (i) as edições monotestemunhais, que
do filólogo e crítico alemão Karl Lachmann. são baseadas em um único testemunho, e (ii)
Com base nas ideias de Lachmann, praticar as edições politestemunhais, que são basea-
filologia é explicar um texto antigo através da das em mais de um testemunho.
restituição de sua genuinidade, isto é, aproxi- Neste estudo, são abordadas apenas as
mar o texto à última vontade do autor. edições do primeiro grupo, as quais podem
No presente artigo, nosso objetivo é o de ser divididas em fac-símiles, diplomáticas,
transcrever e analisar documentos coletados paleográficas (ou, ainda, semidiplomáticas)
no acervo digital do Arquivo Histórico Muni- e interpretativas.
cipal de Santa Maria, a fim de preservá-los e As edições fac-símiles são, grosso modo,
torná-los acessíveis para o público interes- uma reprodução fotomecânica de uma ima-
sado. Para alcançarmos esse propósito, em gem ou de um documento. Geralmente veicu-
primeiro lugar, descrevemos a fundamenta- ladas de forma impressa, também podem ser
ção teórica que norteia os nossos estudos, arquivadas digitalmente. As vantagens desse
enumerando, sobretudo, as características tipo de edição incluem, sobretudo, o grau
dos diferentes tipos de edição. Em segundo zero de interferência por parte do editor, já
lugar, apresentamos o corpus, as normas de que ela reproduz o texto exatamente em suas
transcrição e os aspectos linguísticos que condições originais, permitindo acesso dire-
são observados durante a análise. Em tercei- to ao documento e autonomia para quem o
ro lugar, exibimos as edições diplomáticas consulta. Por outro lado, tais edições só po-
dos documentos analisados, que conservam dem ser consultadas por especialistas, devi-
em sua originalidade todos os elementos tex- do à dificuldade de se ler um documento em
tuais dos manuscritos antigos. Por fim, faze- sua escrita original.
mos os comentários paleográficos, seção na As edições diplomáticas são as transcri-
qual ocorre a análise propriamente dita dos ções literais dos textos, isto é, que conser-
documentos coletados. vam de modo preciso todos os elementos
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 187

originais do documento. As vantagens das da, as conjecturas ultrapassam a correção de


edições diplomáticas incluem o grau mínimo falhas óbvias, a fim de aproximar o texto ao
de interferência por parte do editor, uma vez máximo de sua forma genuína. A vantagem
que se trata de uma transcrição fiel do texto desse tipo de edição é o acesso à leitura do
original, o que facilita a leitura dos documen- texto, que se torna inteligível para qualquer
tos ao dispensar os leitores de decifrarem os leitor. Entretanto, tal nível de acessibilidade
seus sinais gráficos. Entretanto, assim como também acarreta alto grau de subjetividade
as edições fac-símiles, também as diplomáti- por parte do editor, que preenche as “lacu-
cas só podem ser consultadas por especialis- nas” do texto a partir de suas próprias infe-
tas, devido ao conhecimento necessário por rências, o que evidencia não ser acidental o
parte do leitor para identificar e interpretar nome desse tipo de edição.
os sinais gráficos presentes nos documentos. Levando em conta a relevância da deco-
As edições paleográficas, ou semidiplo- dificação da escrita presente nos diversos
máticas, são as transcrições formuladas a tipos de testemunhos, tanto para as edições
partir de mudanças textuais que têm o obje- que buscam apenas tornar o texto acessível
tivo de tornar o texto compreensível para o para o público não especializado, quanto
público não especializado. Dessa forma, há para aquelas que buscam aproximar o texto
maior interferência por parte do editor, que a sua versão genuína, se faz necessário o es-
procura desenvolver os sinais abreviativos e tudo da paleografia. Logo, a paleografia é a
inserir ou suprimir elementos por conjectu- ciência que estuda as escritas antigas, a fim
ra, havendo, entretanto, a indicação de que de compreender a sua constituição. Ademais,
tais operações foram realizadas através de os estudos paleográficos também auxiliam a
notas de rodapé. As vantagens das edições interpretação das escritas do passado, além
paleográficas incluem a facilitação da leitura de avaliar a autenticidade dos documentos
e um maior nível de acessibilidade do texto, através da escrita utilizada.
além de corrigir falhas textuais óbvias decor- Nos estudos paleográficos, também se
ridas ao longo do processo de cópia do docu- observam os aspectos linguísticos que fa-
mento, como, por exemplo, a supressão ou a zem parte do texto dos documentos antigos,
repetição de letras. Contudo, devido ao grau que podem ser classificados em diferentes
médio de interferência do editor, as edições grupos:
paleográficas não são aceitas como objeto de
estudo linguístico, visto que suas proprieda- I. Sistema vocálico: alternância entre vo-
des originais são alteradas durante o proces- gais dentro dos vocábulos (p.ex.: judi-
so de modificação. ciaes) e uso de h em hiatos (p.ex.: sahi);
As edições interpretativas, assim como II. Sistema consonantal: ocorrência de
as edições paleográficas, visam tornar o tex- consoantes geminadas (p.ex.: effeitos),
to mais acessível para um número maior de de alternância entre consoantes (p.ex.:
pessoas, utilizando mais recursos para che- dusentos) e de encontros consonantais
gar nesse objetivo. Assim, a interferência do impróprios (p.ex.: facto);
editor alcança o grau máximo, pois além do III. Diacríticos: ocorrência ou não-ocor-
desenvolvimento dos sinais abreviativos e da rência de acentos, como o agudo (p.ex.:
inserção ou supressão de elementos por con- debito), o circunflexo (p.ex.: colonia) e
jectura, o texto também é submetido a um o grave (p.ex.: as), além de outros si-
processo de uniformização gráfica, eliminan- nais gráficos, como o apóstrofo (p.ex.:
do as possíveis dificuldades que poderiam n’aquelle), o hífen (p.ex.: livrar se), o
estar presentes nas edições anteriores. Ain- cedilha (p.ex.: fiança), entre outros;
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IV. Abreviaturas: utilização da forma re- III. Os caracteres de leitura duvidosa serão
duzida de alguns vocábulos por sigla transcritos entre parênteses redondos
(p.ex.: D.), apócope (p.ex.: In.), síncope simples, enquanto os caracteres de lei-
(p.ex.: Sr.), letras sobrepostas (p.ex.: tura impossível serão transcritos como
Sta), entre outros (cf. SPINA, 1977, p. pontos dentro de colchetes precedidos
44-49); pelo caractere †;
V. Uso de maiúsculas: ocorrência de le- IV. Os caracteres apagados ou modificados
tras maiúsculas no início de vocábulos, serão informados em nota;
como meses (p.ex.: Março) e axiônimos V. A separação vocabular (intra e interli-
(p.ex.: Cidadão). near) e a paragrafação serão reprodu-
zidas fielmente;
3. METODOLOGIA VI. As inserções e as supressões conjectu-
O corpus utilizado no presente artigo é com- rais não serão realizadas;
posto por edições diplomáticas de docu- VII. As mudanças de fólio, face, coluna, pu-
mentos redigidos no início do século XX, em nho, tinta ou de qualquer outra nature-
Santa Maria, Rio Grande do Sul, transcritas za serão informadas em nota;
a partir de manuscritos coletados no acervo VIII. A numeração de linha será feita na
digital do Arquivo Histórico Municipal de margem externa, contando de cinco em
Santa Maria. O primeiro documento, datado cinco, de forma contínua até o fim do
de 12 de fevereiro de 1910, é um depósito texto.
feito em nome de Alberto Leite de Castro, a
fim de pagar fiança em um processo crimi- Listamos, a seguir, os aspectos linguísti-
nal movido por Gabriel Martinês. O segundo cos que são observados durante o estudo pa-
documento, datado de 4 de junho de 1910, leográfico:
é um relatório de exame cadavérico e auto
de autópsia realizado durante o processo I. Sistema vocálico: substituição da vogal
de João Horta. O terceiro documento, data- i pela vogal e;
do de 3 de junho de 1910, é composto por II. Sistema consonantal: ocorrência de
duas páginas e se trata de um relatório feito consoantes geminadas (ll, cc, ff, vv, mm,
durante o processo de João Horta. tt), de alternância entre consonantes
Para realizar a análise paleográfica dos (z e s, r e l) e de encontros consonan-
elementos textuais dos manuscritos su- tais impróprios (ct);
pracitados, as edições diplomáticas foram III. Diacríticos: não-ocorrência de acentos
transcritas de acordo com as normas pro- agudos, de acentos circunflexos e de
postas por Cambraia (2005). Essas normas acentos graves, e uso de apóstrofo em
de transcrição são as que seguem: vocábulos;
IV. Abreviaturas: utilização da forma re-
I. Os caracteres alfabéticos serão trans- duzida de alguns vocábulos por siglas,
critos como caracteres romanos re- apócope, síncope e letras sobrepostas.
dondos, e as diferenças de módulo e V. Uso de maiúsculas: ocorrência de le-
dos alógrafos serão reproduzidas fiel- tras maiúsculas no início de vocábulos,
mente; como meses, axiônimos, cargos e ins-
II. Os sinais abreviativos e de pontua- tituições.
ção serão transcritos fielmente, assim
como os diacríticos;
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 189

4. EDIÇÕES
Nesta seção, apresentamos os manuscritos
que são analisados durante os comentários
paleográficos. Como descrito na metodolo-
gia, utilizamos três documentos provenien-
tes do início do século XX, coletados no acer-
vo digital do Arquivo Histórico Municipal
de Santa Maria, localizado no município de
mesmo nome, no estado do Rio Grande do
Sul. As edições são dispostas em sua versão
diplomática, acompanhadas de cabeçalhos
que especificam suas características.

LOCAL: Santa Maria


DATA: 12 de fevereiro de 1910
COTA: Arquivo Histórico Municipal de Santa
Maria Acervo digital (processo Alberto Leite
Castro e Gabriel Martinês, número 017: 151)
TIPO DE DOCUMENTO: Depósito

Depositos judiciaes
Decreto n.º 1292 de 24 de Março de 1908
Exercicio de 1910

5 A folhas 1 do livro Caixa de depositos judiciaes fica


lançada em debito a quantia de dusentos mil
reis 200$000 que
entregou o Sr. Alberto Leite de Castro
relativa ao deposito proveniente de fiança pa-
10 ra livrar se solto no pro-
cesso criminal que lhe
move, digo, que lhe está
sendo instaurado por fe-
rimento praticado em
15 Gabriel Martinês.

E para constar se lhe dá este conhecimento, competen-


temente firmado,
Collectoria do Estado em Santa Maria, de
20 12 Fevereiro de 1910

O Collector O escrivão
Fran.cod’AbreuValeMachado LucasSousa
190 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

LOCAL: Santa Maria


DATA: 4 de junho de 1910
COTA: Arquivo Histórico Municipal de Santa
Maria Acervo digital (processo João Horta,
número 010: 104)
TIPO DE DOCUMENTO: Relatório de exame
cadavérico e auto de autópsia

Estado do Rio Grande do Sul


Delegacia de Policia em Santa Maria,
4 de junho de 1910
Ao Cidadão Dr Ernesto Barros
5 In. D. Promotor Publico da Comarca
Ilm.º Sr

Com o presente vos remetto o


relatorio, exame cadaverico e auto de autopsia,
10 procedidos no dia 28 do passado, no Hospital
de Caridade, no cadaver de Juvenal Rodrigues,
facto casual occorrido na tarde do dia anterior,
no lugar chamado “Allemoâ 3 ”, arrabaldes desta cida-
de, quando João Horta examinava um revvolver,
15 que pretendia comprar de Romano Belfone, negoci-
ante n’aquelle arrabalde, para os devidos effeitos.

Saude e fraternidade

20 O Delegado de Policia:
JoséPereiradAmaral

3 No manuscrito original, o nome do local é grafado com o acento circun-


flexo sobre a última letra do vocábulo; por se tratar de uma edição diplomá-
tica, mantemos a grafia presente no documento de origem.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 191

LOCAL: Santa Maria


DATA: 3 de junho de 1910
COTA: Arquivo Histórico Municipal de Santa
Maria Acervo digital (processo João Horta,
número 010: 105)
TIPO DE DOCUMENTO: Relatório

Relatorio

No dia vinte e sete do findo 4 as trez ho-


ras da tarde, no lugar chamado “Al-
5 lemoâ” nesta cidade, estrada da
Colonia em uma casa de negocios
do cidadão Romano Belfone foi fe-
rido por projectil de arma de fogo
um individuo chamado Juvenal Ro-
10 drigues, sendo autor do ferimento Jo-
ão Horta e vindo a victima a fa-
llecer do ferimento recebido. A respei-
to do facto ouvi trez testemunhas,
sendo uma de vista e que referem
15 ter sido o facto casual. Apurei
ter João Horta chegado as oito ho-
ras da manhã do dia referido
na casa de negocio citada onde
vendeu um sacco de milho. Em se-
20 guida disendo que desejava com-
prar um revvolver entrava em nego-
cio com o dono da caza que tinha
um de seu uso. Vindo, então, para
a cidade João Horta deixou pa-
25 ra resolver o negocio na sua vol-
ta o que effectivamente fez. As trez
horas da tarde chegando de
volta da cidade comprou a ar-
ma sendo-lhe entregue carrega-
30 da pelo dono da venda que re-
commendou o maximo cuidado.
No momento da transação a vi-
ctima estava junto ao barcão da

4 No manuscrito original, a expressão “do findo” aparece totalmente so-


brescrita ao vocábulo posterior, “as”.
192 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

LOCAL: Santa Maria


DATA: 3 de junho de 1910
COTA: Arquivo Histórico Municipal de Santa
Maria Acervo digital (processo João Horta,
número 010: 105)
TIPO DE DOCUMENTO: Relatório5

da venda e João Horta tomando
da arma, talves por descuido
deixasse-a disparar indo a bala
ferir a victima. São testemunhas
5 do facto os Senhores Romano Bel-
fone, negociante residente na es-
trada da Colonia, Frederico Leopol-
do Bossol, socio de Romano e Ave-
lim Miguel José Massa, trabalha-
10 dor da mesma casa.
Santa Maria, 3 de junho de 1910.
O Delegado de Policia
JoséPereiradAmaral

15 Registra-se e remette-se os
sr. representante do ministerio pu-
blico.
StaMaria 6 , 3 de junho de 1910

PereiradAmaral

5. COMENTÁRIOS PALEOGRÁFICOS
A partir dos aspectos paleográficos que são agudos, de acentos circunflexos e de acentos
comentados nesta seção, temos como obje- graves, e o uso de apóstrofo, de abreviaturas
tivo expor ao leitor as diferentes grafias dos e de maiúsculas.
vocábulos encontrados durante a análise dos Salientamos, ainda, que a divergência en-
documentos. Em primeiro lugar, listamos to- tre a ortografia antiga e a ortografia atual se
das as palavras que possuem grafia diferente dá – além do intervalo temporal de um sécu-
da atual e, mais tarde, relacionamos tais gra- lo – pela falta de normatização que havia du-
fias com os aspectos linguísticos encontra- rante a primeira metade do século passado.
dos, como a alternância de vogais dentro dos Em Portugal, houve o primeiro acordo orto-
vocábulos, a presença de consoantes gemi- gráfico no ano de 1911; no Brasil, contudo,
nadas, a alternância de consoantes nos vocá- foi apenas em 1943 que se tentou uniformi-
bulos, a ocorrência de encontros consonan- zar a escrita.
tais impróprios, a não-ocorrência de acentos

5 Continuação direta do documento anterior.

6 O nome da cidade de Santa Maria encontra-se abreviado, com os carac-


teres “ta” sobrescritos após o “S”.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 193

Quadro 1: Relação entre a ortografia antiga


e a ortografia atual dos vocábulos

Ortografia antiga Ortografia atual Ortografia antiga Ortografia atual


Allemôa Alemôa maximo máximo
as às ministerio ministério
barcão balcão n’aquelle naquele
cadaver cadáver negocio negócio
cadaverico cadavérico occorrido ocorrido
caza casa policia polícia
collector coletor projectil projétil
collectoria coletoria publico público
colonia colônia recommendou recomendou
debito débito reis réis
deposito depósito relatorio relatório
disendo dizendo remette remete
Dr Dr. remetto remeto
dusentos duzentos revvolver revólver
effectivamente efetivamente sacco saco
effeitos efeitos saude saúde
exercicio exercício socio sócio
facto fato Sr Sr.
fallecer falecer talves talvez
individuo indivíduo trez três
judiciaes judiciais victima vítima

5.1. Sistema vocálico


No que diz respeito ao sistema vocálico, ob- cia na escrita devido à visão “etimológica”
servou-se apenas o fenômeno da alternância que havia da língua portuguesa: buscava-se
entre vogais, encontrado no primeiro ma- aproximar os vocábulos portugueses de suas
nuscrito com a troca da vogal i pela vogal e. fontes latinas, isto é, havia o desejo de se vol-
tar ao latim para grafar os itens lexicais do
Quadro 2: Sistema vocálico – Alternância português e das outras línguas românicas.
entre vogais

i→e Manuscrito, linha


judiciaes Ms. 1, 1, 5

5.2. Sistema consonantal


Com relação ao sistema consonantal, foram
verificados três aspectos linguísticos: as con-
soantes geminadas (ll, cc, ff, vv, mm, tt), as
alternâncias entre consoantes (z → s, s → z, r
→ l) e os encontros consonantais impróprios
(ct). Esses aspectos ocorriam com frequên-
194 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Quadro 3: Sistema consonantal – Con-


soantes geminadas

ll Manuscrito, cc Manuscrito, ff Manuscrito,


linha linha linha
Collectoria Ms. 1, 19 occorrido Ms. 2, 12 effeitos Ms. 2, 16
Collector Ms. 1, 22 sacco Ms. 3, 19 effectivamente Ms. 3, 26
Allemoâ Ms. 2, 13
Ms. 3, 5
n’aquelle Ms. 2, 16
fallecer Ms. 3, 11, 12
vv Manuscrito, mm Manucristo, tt Manucristo,
linha linha linha
revvolver Ms. 2, 14 recommendou Ms. 3, 30, 31 remetto Ms. 2, 8
Ms. 3, 21
remette Ms. 4, 15

Quadro 4: Sistema consonantal – Alter-


nância entre consoantes

z→s Manuscrito, linha s→z Manuscrito, linha l→r Manuscrito, linha


dusentos Ms. 1, 6 trez Ms. 3, 3, 13, 26 barcão Ms. 3, 33
disendo Ms. 3, 20 caza Ms. 3, 22
talves Ms. 4, 2

Quadro 5: Sistema consonantal – Encon- (~), a cedilha (¸), o apóstrofo (‘) e o hífen (-),
tros consonantais impróprios esse último podendo ser considerado um dia-
crítico de pontuação (cf. CAMBRAIA, 2005, p.
ct Manuscrito, linha 121). Dentre eles, analisamos as não-ocor-
Collectoria Ms. 1, 19 rências dos acentos agudo, circunflexo e gra-
Collector Ms. 1, 22 ve, além da ocorrência do apóstrofo.
facto Ms. 2, 12
Ms. 3, 13, 15 5.3.1. Acento agudo
Ms. 4, 5
O acento agudo (´) pode ser necessário em
projectil Ms. 3, 8
diferentes aspectos, como relata Cambraia
victima Ms. 3, 11, 32, 33 (cf. ibidem, p. 122); entretanto, a função
Ms. 4, 4
mais comum desse sinal gráfico é marcar as
effectivamente Ms. 3, 26
vogais abertas. Nos documentos analisados,
percebemos a não-ocorrência dos acentos
5.3. Diacríticos agudos em diversos vocábulos.
Os diacríticos são, de acordo com Cambraia,
os sinais gráficos que conferem valores espe-
cíficos aos vocábulos, sendo os encontrados
em nossos manuscritos: o acento agudo (´), o
acento circunflexo (^), o acento grave (`), o til
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 195

Quadro 6: Diacríticos – Não-ocorrência


do acento agudo

a Manuscrito, linha e Manuscrito, linha


cadaver Ms. 2, 11 debito Ms. 1, 6
maximo Ms. 3, 31 reis Ms. 1, 7
cadaverico Ms. 2, 9
ministerio Ms. 4, 16
i Manuscrito, linha o Manuscrito, linha
Exercicio Ms. 1, 3 deposito Ms. 1, 1, 5, 9
Policia Ms. 2, 2, 20 relatorio Ms. 2, 9
Ms. 4, 12 Ms. 3, 1
individuo Ms. 3, 9 revvolver Ms. 2, 14
Ms. 3, 21
victima Ms. 3, 11, 32, 33 negocio Ms. 3, 6, 18, 25
Ms. 4, 4
socio Ms. 4, 8
u Manuscrito, linha
publico Ms. 2, 5 5.3.3. Acento grave
Ms. 4, 16, 17 O acento grave (`) aparece na língua portu-
Saude Ms. 2, 18 guesa quando ocorre o encontro da preposi-
ção a com o artigo a. Nos documentos ana-
5.3.2. Acento circunflexo lisados, houve, novamente, a não-ocorrência
O acento circunflexo (^) é utilizado para do sinal gráfico.
marcar a tonicidade de uma sílaba ou a pre-
sença de vogais fechadas. Nos manuscritos, Quadro 8: Diacríticos – Não-ocorrência
houve a não-ocorrência do acento circunfle- do acento grave
xo nos vocábulos, assim como ocorreu com o
acento agudo. à Manuscrito, linha
as Ms. 3, 3, 16, 26
Quadro 7: Diacríticos – Não-ocorrência
do acento circunflexo
5.3.4. Apóstrofo
e Manuscrito, o Manuscrito, O apóstrofo (‘) é utilizado na língua para
linha linha
marcar a ocorrência da elisão em vocábulos
trez Ms. 3, 3, 13, 26 Colonia Ms. 3, 6
que perdem fonemas. Nos documentos ana-
Ms. 4, 7
lisados, encontramos apenas dois usos do
apóstrofo, sendo um deles na assinatura de
Contudo, o acento circunflexo foi encon- um dos manuscritos.
trado no substantivo próprio “Allemoâ” (pre-
sente no manuscrito 2, linha 13 e no manus- Quadro 9: Diacríticos – Uso do apóstrofo
crito 3, linha 5), mas não será aqui analisado
por se tratar, possivelmente, de uma escolha (’) Manuscrito, linha
de estilo, uma vez que é possível inferirmos d’Abreu Ms. 1, 23
que o acento circunflexo era, à época, grafa- n’aquelle Ms. 2, 16
do sobre o o.
196 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

5.4. Abreviaturas 5.5. Uso de maiúsculas


As abreviaturas, segundo Spina (1977), O uso de letras maiúsculas, em nossos manus-
são empregadas em manuscritos desde critos, aparece tanto de forma semelhante à
os tempos anteriores à república romana, ortografia brasileira atual, quanto discrepante.
devido à escassez de materiais e o custo Listaremos, a seguir, a ocorrência de letras mai-
elevado para produzi-los. É dessa forma úsculas no início de vocábulos – como meses,
que, séculos mais tarde, as abreviaturas axiônimos, cargos e instituições –, os quais são
tornam-se figura recorrente em todos os divergentes da ortografia em vigor. Atualmente,
documentos escritos da Idade Média até o de acordo com a norma padrão da língua, não
Renascimento, quando, finalmente, é cria- se inicia mês do ano com letra maiúscula (p.ex.:
da a imprensa; contudo, o uso das abre- Março, Fevereiro); essa mesma regra é aplicada
viaturas é recorrente até os dias atuais (cf. para cargos públicos e instituições (p.ex.: Collec-
SPINA, 1977, p. 44-45). Esse autor classifi- tor, Comarca, Promotor Publico, Delegado, Poli-
ca as abreviaturas em diferentes tipos: (i) cia) e axiônimos (p.ex.: Cidadão, Senhores).
por siglas, ao reproduzir a palavra através
de sua letra inicial; (ii) por apócope, ao su- Quadro 11: Uso de maiúsculas discre-
primir as letras finais do vocábulo; (iii) por pantes da ortografia atual brasileira
síncope, ao suprimir as letras mediais do
vocábulo; (iv) por letras sobrepostas, ao Maiúscula Manuscrito, linha
reproduzir os caracteres finais da palavra Março Ms. 1, 2
de forma condensada acima dela; (v) por Fevereiro Ms. 1, 20
signos especiais, ao utilizar a letra inicial Collector Ms. 1, 22
do vocábulo e sintetizar o restante através Cidadão Ms. 2, 4
de símbolos e (vi) por letras numerais, ao Comarca Ms. 2, 5
designar quantidades e marcos cronológi- Promotor Publico Ms. 2, 5
cos. Em nossos manuscritos, encontramos Delegado Ms. 2, 20
apenas os quatro primeiros tipos de abre- Ms. 4, 12
viaturas descritos por Spina. Policia Ms. 2, 20
Ms. 4, 20
Senhores Ms. 4, 5
Quadro 10: Abreviaturas por siglas, apó-
cope, síncope e letras sobrepostas

Siglas Manuscrito, linha Apócope Manuscrito, linha


n.º Ms. 1, 2 In. Ms. 2, 5
D. Ms. 2, 5
Síncope Manuscrito, linha Letras sobrepostas Manuscrito, linha
Sr / Sr. Ms. 1, 8 Fran.co Ms. 1, 23
Ms. 2, 6
Ms. 4, 16
Fran.co Ms. 1, 23 Ilm.º Ms. 2, 6
Dr Ms. 2, 4 Sta Ms. 4, 18
Ilm.º Ms. 2, 6
Sta Ms. 4, 18
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 197

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica


Neste estudo, apresentamos um breve resu- textual. São Paulo, SP: Cultrix, 1977.
mo dos objetivos e das técnicas de trabalho do
campo da filologia e da paleografia, focando
em análises de manuscritos antigos, datados
do início do século XX e coletados no acervo
digital do Arquivo Histórico Municipal de San-
ta Maria. Desse modo, o principal propósito
deste artigo foi apontar os aspectos linguísti-
cos presentes nos documentos que diferem da
ortografia atual brasileira. Aqui, ressaltamos a
falta de normatização da ortografia da época
como fator determinante para a presença dos
aspectos paleográficos que foram analisados
ao longo da seção anterior.
Na análise, encontramos, principalmente,
vocábulos que diferem da ortografia vigen-
te em relação ao sistema consonantal e aos
diacríticos, uma vez que, acerca do sistema
vocálico, das abreviaturas e do uso de maiús-
culas, os dados coletados estavam presentes
em menor número. Com base nesse estudo,
podemos notar que a não-ocorrência do
acento agudo nos vocábulos foi a maior des-
coberta em nossa pesquisa, assim como as
consoantes geminadas e os encontros con-
sonantais impróprios, o que, mais uma vez,
enfatiza o desejo de se voltar ao latim para
grafar os vocábulos portugueses.
Por fim, nosso artigo, que buscou agregar
conhecimento aos estudos da área da filologia,
também visou disponibilizar a análise de ma-
nuscritos antigos ao leitor interessado, além
de apontar a “evolução” de diversas palavras
da língua portuguesa, que, outrora, eram gra-
fadas de maneira divergente da atual.

REFERÊNCIAS
ARQUIVO HISTÓRICO MUNICIPAL DE SANTA MA-
RIA. Acervo digital. Santa Maria, 2017. Dispo-
nível em: <http://web2.santamaria.rs.gov.br/
arquivohistorico/>. Acesso em: 30 abr. 2017.

CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à crítica


textual. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2005.
RESENHAS
A HIPOCRISIA EM A BÍBLIA DO CHE,
DE MIGUEL SANCHES NETO

Maria Cristina Ferreira dos Santos1

RESUMO: Miguel Sanches Neto, escritor, professor e crítico literário, em seu último romance, A Bí-
blia de Che (2016), narra a história de Carlos Eduardo Pessoa, personagem que já aparecera em
narrativa anterior, a saber, A primeira mulher. Assim como em outras obras do autor, o suspense e
o enredo cinematográfico envolvem o leitor numa trama instigante sobre a busca a uma espécie de
tesouro dos comunistas e simpatizantes de Che Guevara, sobre paixão, traição, corrupção, consu-
mismo e, mormente, a importância dos mitos. O romance tem como pano de fundo temas delicados
e sempre atuais como a hipocrisia política, que é demonstrada de forma exímia. Dessa forma, a rese-
nha tem como escopo discutir algumas das questões que o romance suscita bem como motivar sua
leitura e, assim, novas discussões.
PALAVRAS-CHAVE: hipocrisia, mito, consumismo.

ABSTRACT: Miguel Sanches Neto, writer, professor and literary critic, in his latest novel, Che’s Bible
(2016), tells the story of Carlos Eduardo Pessoa, a character who had already appeared in a previous
narrative, namely, The First Woman. As in other works by the author, the suspense and the cinema-
tographic plot involve the reader in an intriguing plot about the search for a treasure of communists
and Che Guevara’s sympathizers, about passion, betrayal, corruption, consumerism and, mostly, the
importance of myths. The novel has as its background delicate and always current issues such as
political hypocrisy, which is demonstrated in an exalted way. Thus, the review aims to discuss some
of the issues that the novel elicits as well as motivate its reading and, thus, new discussions.
KEY WORDS: hypocrisy, myth, consumerism.

RESUMEN: Miguel Sanches Neto, escritor, profesor y crítico literario, en su última novela, la Biblia
del Che (2016), cuenta la historia de Carlos Eduardo Pessoa, un personaje que ya había aparecido
en el relato anterior, es decir, La primera mujer. Al igual que en otras obras del autor, la película de
suspenso y la trama cinematográfica envuelve al lector en una intrigante trama sobre la búsqueda de
un tesoro de comunistas y simpatizantes de Che Guevara, sobre la pasión, la traición, la corrupción,
el consumidor y, sobretodo, la importância de los mitos. La novela tiene como plano de fondo cues-
tiones políticas delicadas y siempre de actualidad como la hipocresía, lo que se demuestra de una
manera exaltada. Por lo tanto, la revisión tiene como objetivo discutir algunos de los problemas que
provoca la novela, así como motivar a su lectura y, por lo tanto, nuevas discusiones.
PALABRAS CLAVE: hipocresía, mito, el consumismo.

O grande tema do novo romance de Miguel Sanches Neto, A Bíblia do Che, é a hipocrisia, apa-
recendo em suas diferentes materializações, seja política, amorosa ou profissional. Além de
uma certa ojeriza, demonstrada pelo protagonista, pelo consumismo e pelos modos burgue-
ses em geral.

1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)


202 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

A personagem principal é Carlos Eduardo mara, num bando de turistas indiferentes


Pessoa, ser dialético que, apesar de odiar os a tudo que não seja a satisfação rasa. Viajar
costumes burgueses, vive uma vida de benefí- sem sair das próprias identidades. O gran-
cios por ter recebido uma herança e por parti- de deslocamento de gente fútil, de consu-
cipar, indiretamente, de trabalhos corruptos, mistas voltando com malas abarrotadas de
pelos quais é muito bem pago. Ele é um ex- produtos de grife, na maioria falsos. Essa
-professor universitário que se afastou do car- merda toda (NETO 2016, p.32).
go devido a um processo de assédio sexual:
Outro exemplo de sua irritabilidade quan-
Eu me demiti para fugir de um processo in- to à modernidade e seus modismos burgue-
terno em que me acusavam, com provas in- ses, está na crítica à constante renovação:
questionáveis, de assédio sexual às alunas.
E também porque tinha condições finan- É inadmissível não se atualizar. Ficou proi-
ceiras de chutar aquela carreira. Ganhara bido ser velho. E tudo fazem para reforçar
um bom dinheiro por ter desvendado um isso. Trocar os móveis a cada temporada,
caso que comprometia uma deputada de reformar as casas substituindo azulejos e
minhas relações (NETO, 2016, p.203). pisos, derrubando paredes, desfazer-se das
coisas queridas. As casas burguesas sofrem
Por uma década, Carlos Eduardo viveu tantas atualizações quanto seus donos,
isolado, limitando suas atividades a leituras com plásticas, silicone, implante de cabelo,
e masturbações. Nas palavras da persona- lipoaspiração, etc (NETO, 2016, p.40).
gem, vemos “Faz dez anos que não encontro
ninguém” (NETO, 2016, p.10). Até que algo Até mesmo a ato, tão difundido na atuali-
inesperado acontece e muda seus hábitos, dade, de fotografar os lugares famosos visi-
tornando-o ainda mais dialético. tados, é alvo de crítica pelo protagonista, na
Tratando de sua aversão aos trejeitos ca- medida em que, em uma viagem que fez de-
pitalistas, vemos que ele odeia o hábito de vido ao serviço que está realizando para um
se alimentar bem, praticado pela maioria da corrupto, ao ser indagado se quer tirar uma
população, ou seja, aqueles que frequentam foto, reflete:
restaurantes como turistas, e não como se-
res destinados a saciar a fome. O ato de com- - Não trouxemos máquina – expliquei.
prar, é, para ele “[...]a coisa mais obscena que Ele me olhou sem entender uma heresia
uma pessoa pode fazer. Sempre me deprimo dessas. Viajar a uma remota área turística
quando sou obrigado a isso” (NETO, 2016, sem o principal equipamento de explora-
p.12). É como se o protagonista resumisse a ção. Era uma traição ao lugar, como se não
maioria dos costumes modernos ao ridículo, déssemos valor a ele (NETO, 2016, p.233).
como é o caso das viagens e da necessidade
de realizá-las: Além disso, à moda machadiana, o protago-
nista critica o ato de ter filhos, considerando-
Fui me irritando aos poucos com a mania -o degradante e uma forma típica de se inserir
pós-moderna de viagem. Idiotas cruzando no mundo burguês e no universo do consu-
o oceano para um fim de semana conven- mismo: “Ir tendo um filho. Escola. Reunião de
cional em Paris. Visitam monumentos e pais. Festa de criança. Praia. Clube. Shoppings.
restaurantes da moda, passando rapida- Não, muito obrigado. Não deixar descendên-
mente pelos pontos turísticos históricos. cia é a única atitude verdadeiramente ecológi-
Era nisso que a humanidade se transfor- ca. Explodir a ponte” (NETO, 2016, p.15).
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 203

Porém, não só de críticas ao capitalismo to que pertencera ao Che, sua Bíblia. Celina,
é composto o enredo de A Bíblia do Che, a como é chamada, mostra-se, dessa forma, tão
personagem principal, Carlos Eduardo Pes- dialética quanto Carlos Eduardo, uma vez que
soa, leva sua vida pacata e reclusa, quando ambos vivem de forma capitalista e corrupta,
recebe a visita de um conhecido de alhures, mas sentem-se culpados por isso, não econo-
Jacinto, para quem já havia prestado serviço mizando palavras para desmerecer todos os
corrupto e que lhe solicita uma nova tarefa, costumes da modernidade: “Vivia um conflito
a saber, encontrar a bíblia que pertencera ao entre as coisas boas que o dinheiro dá e sua
revolucionário Che Guevara e que fora deixa- consciência social” (NETO, 2016, p.280).
da em sua passagem por Curitiba, na década Para fazer o trabalho de recuperar um ob-
de sessenta do século vinte: “Em 1966, an- jeto do mitológico Che Guevara e, destarte,
tes de seguir para a Bolívia e para a morte, enaltecê-lo, Carlos Eduardo aceita dinheiro
Che Guevara passou um tempo em Curitiba sujo de Jacinto e, depois de sua morte, aceita
(NETO, 2016, p.29). do legado de sua esposa: “A primeira parcela,
Adicionado ao novo serviço, aparecem no- paga imediatamente. Dinheiro sem fisco, vin-
vos elementos que fazem o enredo ficar mui- do da sonegação de impostos, da corrupção
to interessante e o leitor, por sua vez, cada ou de outros crimes” (NETO, 2016, p.31).
vez mais envolvido na trama. Logo Carlos Ao se envolver com Carlos Eduardo, Celina
Eduardo descobre que Jacinto fora assassi- relata que uma das maiores decepções de sua
nado, possivelmente pelo seu envolvimento vida foi uma viagem que fez com seu mari-
com atividades ilícitas: do à Havana. O intuito era se embrenhar na
atmosfera igualitária de Che Guevara, muito
Ele estava cada vez mais envolvido com o embora o que percebeu foi que lá o capitalis-
superfaturamento de obras do governo, o mo é tão ou mais exacerbado que em outros
financiamento ilícito de campanhas, subor- lugares: “Ali, ninguém mais vivia a Revolução.
nos. Era o operador, quem distribuía o di- Todos viviam da Revolução. Durante essa se-
nheiro para as partes do esquema. Muitos mana de férias, demos mais propinas do que
ganhavam igual ou mais do que ele, mas na em um ano no Brasil” (NETO, 2016, p.104).
hora de pagar pelos desvios, se acontecesse Outro episódio que ressalta o aspecto
algo – tanta gente estava sendo presa -, o dialético de Celina é quando Carlos Eduardo
culpado seria Jacinto (NETO, 2016, p.279). vai ao seu apartamento, onde vivera com seu
esposo, e encontro obras plásticas valiosíssi-
Então Carlos Eduardo descobre que a mas, que além de serem, por si sós, uma men-
pessoa que desejava a Bíblia era a esposa de ção ao capitalismo extremo, foram adquiridas
Jacinto, a jovem, bela e sedutora Francelina. de forma ilícita: “Ela se aproximou de uma
É óbvio que pelas características supramen- tela caída. Um Portinari. Aqueles quadros va-
cionadas acerca do protagonista, é de se pre- liam muito. Todos comprados com dinheiro
ver que ele se envolve com a viúva, não ape- sujo. Funcionavam como depósitos bancá-
nas fisicamente, mas ideologicamente, pois rios. Apareceriam como herança em decla-
ambos têm repulsa ao consumismo. rações de imposto de renda e poderiam ser
Francelina nutre uma paixão, que beira vendidos em leilões. A casa funcionava como
ao infantilismo, pelo revolucionário, e, muito uma conta na Suíça” (NETO, 2016, p.117).
embora proclame ser adepta de seus precei- E o mais interessante do enredo de A Bí-
tos de igualdade e desprendimento material, blia do Che é que, apesar de ter como centro
vive da fortuna deixada por seu marido cor- norteador a crítica ao capitalismo e o enalte-
rupto e faz de tudo para conseguir um obje- cimento do quase esquecido mitológico Che
204 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Guevara, não é um romance piegas, moralista


ou romantizado, pois, além de mostrar que
mesmo os adeptos do comunismo se sentem
atraídos pelo capitalismo, admoesta que não
fosse a aparência deslumbrante do revolu-
cionário, ele não teria convencido multidões
sobre seus ideais, tampouco se perpetuado
historicamente: “Jacinto havia dito que se
Che Guevara não fosse um homem tão belo, a
Revolução Cubana não teria o mesmo encan-
to internacional” (NETO, 2016, p.104).

REFERÊNCIAS

NETO, Miguel Saches. A bíblia do Che. São Paulo:


Companhia das Letras, 2016.
FLORES
Samla Borges Canilha

Além de premiado escritor, o português Afonso Cruz é ilustrador, realizador de filmes de


animação e músico. Sua obra literária é bastante extensa – considerando-se que começou a
ser publicada em 2008 – e recebeu diversos prêmios. Em Flores, um dos seus mais recentes
romances, são narradas as histórias de duas personagens, ambas a partir da perspectiva de
uma delas, o narrador-protagonista: a primeira é o esfacelamento do casamento deste e o
desgaste da relação com a filha; a segunda, a investigação do passado do sr. Ulme, seu vizinho
do lado, que perdeu parte da memória após um aneurisma.
O narrador construído por Cruz é um jornalista de meia idade, machista e egocêntrico,
preocupado muito mais com o aumento da circunferência de sua cintura que com os pro-
blemas que lhe rodeiam. Sua frieza, no que diz respeito às relações afetivas, e sua tenta-
tiva constante de fugir dos problemas são características apresentadas já na abertura do
romance, quando do enterro de seu pai; nesse momento fúnebre e (espera-se) de dor, a
personagem atenta para a prima, desejando-a: “Atrás dos meus óculos escuros via as pes-
soas no enterro, a Carla estava tão bonita, de preto, com a dor no rosto, os cabelos lisos e as
coxas a sair do vestido curto, mas não podia pensar naquilo, era o enterro do pai, ainda por
cima a Carla é minha prima direita” (CRUZ, 2015, p. 15). Ao mesmo tempo em que deseja
outras mulheres, o casamento da personagem com Clarisse se desfaz lentamente, desgas-
tado pela rotina:

Nos últimos tempos, quando sinto os lábios da Clarisse a tocarem os meus, comprovo que não têm
história, já não convocam o primeiro beijo que demos. Creio que, numa relação, o beijo terá sempre
de manter a densidade do primeiro, a história de uma vida, os pores-do-sol, todas as palavras mur-
muradas no escuro, toda a certeza do amor. Mas já não é assim. Agora sabem às vacinas que tínha-
mos de dar à cadela (já morreu), às conversas com o director da escola, à loiça por lavar, à lâmpada
que falta mudar, às infiltrações no tecto, às reuniões de condóminos. Toco levemente os lábios dela
e sabe-me à rotina, às finanças, ao barulho da máquina de lavar roupa. Beijamo-nos como quem faz
a cama (CRUZ, 2015, p. 25).

Um índice claro de que o relacionamento com a esposa já não é mais o mesmo e de que
não há mais atenção um ao outro está na permanência de um chapéu abandonado sobre a
cama do quarto de hóspedes − o narrador espera que a esposa, atenta a suas superstições,
guarde-o, mas ela não o faz, deixando o objeto abandonado ao longo de vários dias, a ponto
de tornar-se, para o protagonista, “uma presença densa e lúgubre, como um cadáver em de-
composição” (CRUZ, 2015, p. 34). Em tal cadáver tornou-se também o casamento dos dois.
Apesar desse sinal, o protagonista-narrador não se esforça em sustentar o relacionamento,
aumentando a distância entre ele e Clarisse ao ignorar o que esta diz. Seu alheamento chega
ao ponto de descobrir por terceiros sobre sua demissão.
Outro objeto a ser considerado, ao se analisar esse relacionamento em crise, é a mala na
qual Clarisse leva embora suas coisas e as da filha, Beatriz. Carregada de lembranças posi-
tivas, como as das viagens feitas junto, levá-la é, simbolicamente, carregar embora os bons
momentos juntos, tornando-os memórias individuais, não mais compartilhadas:
206 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

Uma hora depois a Clarisse saiu do quarto ma que suas atividades – e em consequência,
da Beatriz, entrou no quarto de hóspedes a narrativa – dedicam-se, em grande parte,
e tirou uma mala enorme, a mala que uti- ao vizinho. Este talvez seja, aliás, uma figu-
lizávamos nas férias, em cima da qual nos ra mais fascinante que o protagonista. Após
sentámos à espera de um autocarro junto sofrer um aneurisma, o idoso perde parte da
ao deserto jordano, a mesmo mala que ficou memória: “o senhor Ulme foi operado há dois
ao nosso lado quando, em Amã, jantámos meses. Não se lembra de uma parte da vida.
queijo com tâmaras e uvas e doces, a mes- Consegue fazer tudo o que fazia, mas não se
ma mala que trouxe haxixe de Marraquexe lembra do passado. Sabe o nome das plantas
e que dormiu connosco nas praias da Cos- todas, mas não se lembra que foi criança”
ta Rica. Se fizermos uma autópsia à mala (CRUZ, 2015, p. 46). Comovido com a ausên-
encontramos as veias do nosso casamento, cia de lembrança de uma mulher nua (ou,
quando ainda não precisávamos de acen- mais provavelmente, fugindo dos próprios
der a luz para nos iluminar, quando ainda problemas)1, o narrador decide empreender
éramos dois corpos a boiar numa piscina a uma investigação sobre quem foi o vizinho,
andaluza, quando habitávamos, mais do que de forma a dar-lhe de volta as lembranças
num apartamento, nos mais profundos pen- perdidas. Essa busca torna-se o centro da
samentos um do outro (CRUZ, 2015, p. 119). narrativa, uma vez que se torna, também, o
centro dos interesses do narrador.
Antes do fim definitivo do casamento, ou- Apesar de haver perdido sua memória
tra relação familiar do protagonista é des- afetiva, principalmente, o sr. Ulme continua
gastada: a com a filha, que presencia a rela- a lembrar de informações sobre diversos as-
ção sexual do pai com Samadhi, uma colega suntos. Entre elas, está um verso do “Cântico
de trabalho, quando Clarisse viaja para visi- espiritual”, poema de São João da Cruz, “En-
tar os pais. A partir disso, a menina deixa de tremos mais adentro na espessura”, o qual
falar com ele, restringindo-se a, no máximo, repete constantemente. A insistência da per-
algumas respostas monossilábicas (“sim” ou sonagem nesse verso está, provavelmente,
“não”). O que mantém a relação entre os dois relacionada à preocupação constante e ao
é o apego da menina ao sr. Ulme, uma vez que incômodo que catástrofes que acontecem
as visitas ao pai servem unicamente para a no mundo lhe provocam − preocupação esta
visita ao idoso, que se torna uma figura mui- que é elemento importante na reconstituição
to mais atuante em sua vida que o pai, inclu- do seu passado, pois, ao longo dos anos, ele
sive em sua formação: “Quando o cavalheiro construiu um golem com reportagens de tra-
não está, vou a sua casa, a sua bela esposa gédias, a partir de uma coleção de recortes
serve-me um chá e eu pago a gentileza com que demonstravam a maldade humana. Sua
uma boa dose de informação, que é coisa que ideia era que “a palavra verdade não basta-
as crianças não aprendem na fábrica” (CRUZ, ria para acordar esse homem artificial, eram
2015, p. 83). Ao protagonista resta apenas precisos exemplos, recolher tantos que seria
assistir à interação entre os dois, sem nela uma vergonha para os homens ver como po-
interferir: “Sou um espectador da vida da mi- dem ser construídos de uma matéria tão ne-
nha filha, mais do que um pai. Ontem passou gra” (CRUZ, 2015, p. 163). A criatura de cerca
a tarde com ele e eu fiquei sentado a assistir”
(CRUZ, 2015, p. 180). 1 Essa atenção maior à história do vizinho, fazendo com que ocorra, até
certo ponto, o apagamento de Clarisse e dos problemas com a filha, pode ser
Apesar de o protagonista narrador não uma forma de fuga dos problemas pelo narrador-protagonista: “Como não
conseguia resolver a minha vida, decidi continuar a recuperar a do sr. Ulme”
admitir claramente, o senhor Ulme torna-se, (CRUZ, 2015, p. 150). Assim, uma vez que a narração é realizada justamente
por essa personagem que foge, é natural que o livro se torne, de certa forma,
para ele, também muito importante, de for- muito mais a história do sr. Ulme que a sua.
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 207

de dez metros, escondida em um armazém que a denúncia fora realizada pelo próprio
na cidade da infância do idoso, que conti- sr. Ulme − o que materializa, de certa forma,
nuou a carregar a chave consigo (sem saber o que uma das pessoas entrevistadas pelo
para que servia), impressiona o narrador; a narrador protagonista adiantara: diversas
reação esperada é nele despertada, enquan- facetas do senhor seriam descobertas. Por
to a comunidade local que antes tanto te- isso, o corcunda que, no presente diegético,
mia o que pudesse estar escondido no local, mora com Margarida, motivado por um sen-
não reage como o esperado: “Limitaram-se timento de vingança, tenta, diversas vezes,
a gritar mais uns insultos e, passadas umas atropelar o idoso − mas este, como não se
horas, já nem queriam saber, até achavam lembra de seus atos passados, nada entende.
piada ao monstro, o mesmo que momentos A história de vida de Margarida Flores serve
antes ameaçava trazer-lhes o fim do mundo” também para abordar a história recente de
(CRUZ, 2015, p. 246): Portugal – neste caso, o período da ditadura
salazarista, em especial – tema caro à litera-
Se Deus não fizesse nada ao ver aquilo, tura portuguesa contemporânea.
ficaria mais do que provada a sua indife- No decorrer da narrativa, a saúde do sr.
rença eterna. Mas, acima de tudo e sem Ulme torna-se cada vez mais frágil. Acome-
qualquer dúvida, a simples presença de um tido por uma ataxia cerebelar, ele perde, aos
mostrengo daqueles deveria ser suficiente poucos, os movimentos, tendo que, por fim,
para fazer com que os homens agissem, se deslocar-se em uma cadeira de rodas e preci-
levantassem dos túmulos em que viviam sar de “intérpretes” capazes de compreender
(apartamentos, sofás?), da apatia letal, do o que diz, pois a ataxia acaba comprometen-
sono sem sonhos em que circulavam pela do também os músculos do rosto. Essa tarefa
vida, e tivessem vontade de mudar a puta é desempenhada por Beatriz, mas o idoso é
da sociedade, comportamentos, o mundo compreendido, não raro, por outras pessoas;
(CRUZ, 2015, p. 243). o único que não o compreende é justamente
o narrador, o que o faz sentir-se incomodado.
Uma possível leitura para essa passagem Disso, podemos questionar: até que ponto,
é de que o protagonista narrador, sem sur- de fato, o protagonista vinculou-se ao idoso?
preender, não percebe que está falando de si, Seu interesse pelo vizinho é mesmo um sen-
que vive apaticamente e não faz questão de timento sincero? Questionamentos como es-
se tornar alguém melhor. A mudança que lhe ses talvez corroborem a ideia de que o obje-
ocorrerá talvez decorra dessa conclusão que tivo do narrador, afinal, é fugir dos próprios
tira sobre os outros, mas que não parece lhe problemas – sugestão que se mantém até o
servir. encerramento do livro.
Outro acontecimento importante no pas- É interessante como as personagens cen-
sado do idoso é seu relacionamento com trais do romance (o narrador e o sr. Ulme)
Margarida Flores, que, durante a infância, se opõem, no que diz respeito à personali-
pertencia a uma classe social mais baixa que dade e à relação com a memória. O primei-
a do Sr. Ulme. Apesar de o patriarca da família ro, apesar de manter sua memória afetiva,
Ulme financiar os estudos dela e das irmãs, principalmente de momentos já “perdidos”,
ele se opôs ao relacionamento do filho com de certa forma, como a infância e o início do
a jovem, de forma que esta acreditou, por casamento, interage com o mundo de forma
muitos anos, que fora ele quem a denunciara fria, distanciada, quase apática. O sr. Ulme,
à PIDE, fazendo com que fosse presa. Entre- por outro lado, apesar de não possuir essa
tanto, no decorrer da narrativa, descobrimos memória e, por conseguinte, não saber quem
208 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

é e o que lhe fizeram ou o que fez, mostra- Ulme, em diversos relatos, é apontado como
se carinhoso e atento aos outros. A própria alguém também insensível. Além disso, cabe
indignação da personagem demonstra sua destacar como o narrador defende que a me-
preocupação com o bem no mundo, enquan- mória pode ser, de certa forma, buscada e re-
to o narrador protagonista (que, como o jor- criada por nós: “Não é preciso ser minucioso,
nalista que é, deveria estar atento ao mundo não precisamos nos entregar à verdade fac-
e a seus problemas), reage apaticamente. No tual, partilhada, mas àquela que sentimos.
que nos aproximamos do final da história, Podemos (devemos) saber inventar passa-
percebemos que o protagonista finalmente dos melhores do que aqueles que o destino
cria laços com alguém, pois, além de se em- nos oferece” (CRUZ, 2015, p. 103). Se o nar-
penhar na investigação do passado do idoso, rador pudesse alterar sua memória, quem se
passa a cuidar deste. Sua transformação, en- tornaria? Jogar com essa possibilidade, pare-
tretanto, não anula o incômodo causado por ce-nos, é o que tenta fazer o protagonista ao
sua indiferença e sua frieza ao longo da tra- narrar a sua história e a do sr.Ulme: redimir-
ma – até mesmo porque sua transformação se de seu egoísmo ao revelar quem é o ou-
não é muito convincente. tro, fornecendo-lhe uma memória melhor de
É significativo abordar como as flores do quem realmente é. Entretanto, essa intenção
título estão na narrativa. Além de ser Flores não se concretiza totalmente, pois ele não
o sobrenome das mulheres que encantavam é capaz de se livrar completamente de seus
o menino Ulme e seus amigos na infância − defeitos.
cujos nomes são nomes de flores: Margarida,
Violeta e Dália −, elas estão também − e prin-
cipalmente − em diversas imagens e metáfo-
ras; nestas, estão incluídos também outros REFERÊNCIAS
termos relacionados ao mesmo campo se-
mântico da natureza e do jardim: “pai, gosta- CRUZ, Afonso. Flores. Lisboa: Penguin Random
va de ter um jardineiro, um velho jardineiro, House/Companhia das Letras, 2015. 277 p.
corcunda e sábio, que fizesse florir os meus
canteiros, pois como sabes, pai, as minhas
flores morrem muito, não tenho jeito para as
fazer medrar” (CRUZ, 2015, p. 100-101).
Temos em Flores, portanto, uma lingua-
gem bastante objetiva, mas que não deixa de
apresentar imagens e passagens delicadas −
principalmente a partir do momento em que
a saúde do sr. Ulme se torna mais frágil. Des-
taca-se que a delicadeza das flores faça parte
da narração de uma figura aparentemente
tão pouco afetuosa como é o protagonista,
mas isso talvez seja um recurso para mostrar
que – assim como se tratou de evidenciar, ao
longo das entrevistas sobre o passado do
vizinho – o ser humano é, afinal, múltimo e,
muitas vezes, paradoxal; assim como a deli-
cadeza da narrativa contrasta com a frieza
da personalidade do narrador, o afetuoso sr.
A INFÂNCIA A QUATRO MÃOS.
GIL, Isabel; SORIANO, Marcelo. CantoPoemas: Sobre Meninos e Pássaros. Maputo: Alcance Editores,
2011.

Vivian Castro de Miranda1

Marcelo Soriano é um escritor santa-mariense que em conjunto com Isabel Gil, escritora
moçambicana, publicaram o livro CantoPoemas (2011). Esse conjunto de textos líricos apre-
senta a visão de dois autores sobre a temática da infância, cada qual, devido às suas especifi-
cidades, com um olhar distinto, mas emocionante, tendo em comum a escolha por retratar a
realidade das crianças das classes mais desfavorecidas. O livro está dividido em duas partes:
a primeira, de autoria de Soriano, é intitulada A Cidadela dos Mufanas, sendo a segunda parte
atribuída a Gil, com o título Pé-de-Moleque.
Os poemas apresentam em comum o intercâmbio de terminologias pertencentes à língua
um do outro (moleque no lugar de mufana, e vice-versa), como se tomassem de empréstimo
algo que se torna, ao mesmo tempo, o elo entre os autores e os textos, para mostrar que as
realidades, mesmo distantes, podem se encontrar em um ponto: o falar da infância. Quanto
à questão linguística, percebe-se a influência da Changana, língua autóctone (nativa) de Mo-
çambique, mais especificamente falada na região de Maputo (capital). Apesar da linguagem
oficial2, há línguas autóctones em cada região, e tais referências são incorporadas aos poe-
mas, sobretudo por Gil.
A tematização dos poemas chama a atenção por apresentar, de certo modo, um olhar me-
lancólico e por vezes triste acerca da infância sofrida. É possível compreender um pouco sobre
a representação da infância no Brasil, por meio do olhar de Soriano, para quem a vida dos me-
ninos em A Cidadela dos Mufanas se passa nas ruas de Santa Maria (As estações do ano, p. 29):

Frio é o que menino não sente.


Bate queixo.
Arrocha os beiços.
Encaranga os dedos.
Mas frio que é frio, nunca.
[...]

No geral, o texto poético discorre sobre a vida do pobre menino abandonado _ “meninís-
simos de rua” (SORIANO, 2011, p. 13), marginalizado (a violência que incide), para quem os
sonhos não se realizam. Nesse sentido, focaliza na discussão o aspecto econômico-social que
distancia as crianças pobres dos centros urbanos, das demais. Nesse contexto, dá vida e voz
aos meninos Lucinho chorão, Zeno Bola Oito (Nego Bola), Lico voz de bambu rachado, perso-
nagens de um espaço urbano assinalado na ambiência dos poemas, com as marcas da urba-
nidade presentes no texto, como a Cidadela, a rua, a quadra, o engarrafamento, as marquises.

1 Bacharel em Desenho Industrial, Especialista em Arte e Visualidade e Mestre em Comunicação (UFSM). Interessada em estudos multidisciplinares, tem se
dedicado à pesquisa das interfaces entre o visual e o verbal. Bolsista de Iniciação Científica (PROBIC/UFSM) no projeto de pesquisa Ressonâncias e dissonâncias
no romance lusófono contemporâneo, sob a orientação do Prof. Dr. Anselmo Peres Alós. Pesquisa financiada pela FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio Grande do Sul), com bolsa de Iniciação Científica, vigência 2015-2016.

2 Moçambique faz parte dos PALOP __ expressão usada como referência aos países africanos que têm a língua portuguesa como oficial. São eles: Angola, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, além da Guiné Equatorial, que adotou o idioma recentemente.
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Para Gil, não somente o espaço é mostra- plena de obstáculos à participação da mu-
do de modo mais amplo, do urbano para o lher” que ocasiona a sua exclusão, e em pleno
rural (Machamba – Campo lavrado), é tam- século XXI, algumas metas ainda caminham
bém ampliada a discussão sobre temas da lado a lado nos documentos oficiais, como a
infância que não afligem apenas as crianças erradicação da fome e o acesso da mulher à
“desvalidas”, para usar o termo de Calane da matrícula na escola primária e secundária.
Silva (2010, p. 3). A tematização da pobreza As personagens de Gil, além do acréscimo
se desloca para outras questões que atra- da representação feminina, possuem outro
vessam a vida da criança em Moçambique, tratamento, muitas vezes levado ao anoni-
e ameaçam seu dia a dia e seu futuro, como mato. Para problematizar outras tantas ques-
o machismo e o preconceito. Assim, em Gil, tões que permeiam a infância, parece evocar
os poemas apontam também para questões que criança é criança, é qualquer uma, repor-
político-culturais de Moçambique. Ao citar a tando a personagens simplesmente como “o
personagem Mariazinha, procura mostrar a menino” ou “a menina” (“a menina da areia”_
interrupção do sonho da menina (Carne de Carreirinho Azul, p. 60). No posfácio (GIL &
goiaba, p.58-59): SORIANO, p.63) há uma pista sobre esse fato,
afirmando que “Menino mufana moleque é
[...] lucinho é sandrinha e zeno e jair zico maria-
Mariazinha não sabe zinha ou não tem nome porque nome é só
mas amanhã letras” (nota-se os nomes escritos em letras
a caminho da machamba minúsculas).
há-de aparecer Sr. Noronha Também observa-se em várias passagens
e amigas da pracinha vão ficar à espera dela a voz infantil que evidencia e alivia o peso
pra sempre do discurso, no texto dos dois autores, re-
[...] metendo a situações divertidas e corriquei-
ras da vida infanto-juvenil, como aconte-
Assim, aspecto importante de se ressal- ce nos poemas: O Lico da primeira quadra
tar é a incorporação por Gil de personagens (SORIANO, 2011, p. 17), Giz a galope (GIL,
femininas, lançando um olhar para a proble- 2011, p. 45), As duas listas (GIL, 2011, p. 57).
mática da mulher junto ao tema da infância. Neles, os conflitos com os adultos, mote de
Nota-se, nesse sentido, a problematização e grande parte dos conflitos descritos, ou são
a inserção de personagens que não apare- minimizados, tratados com um tom diferen-
cem em A Cidadela dos Mufanas __ o univer- ciado, ou ainda não são desenvolvidos, para
so dos meninos, de Soriano. Isso demonstra falar da própria infância: “Ô menino de fala
provavelmente uma preocupação em discor- dupla! De manhazinha parece que engoliu
rer e posicionar-se politicamente frente à um homem! Mas de tarde dá de desafinar o
situação vivida pela mulher, que é bastante som da voz...Lico virou voz de bambu racha-
complicada, não somente em Moçambique do” (Lico e a voz de bambu rachado, SORIA-
como na África em geral. NO, 2011, p. 23).
Segundo Iglésias (2007, p. 134), pesqui- O que há de aproximação nessa proposta
sadora da história africana e especialmente de falar dos “miúdos” se explica na possibili-
sobre a condição e o papel feminino nessa dade não só de pensar as crianças que vivem
sociedade, “constata-se ainda a situação de nos escritores e leitores, mas, como diz Ca-
opressão e de marginalização em que se en- lane da Silva (2010, p. 3) na introdução da
contra a mulher africana de hoje”. Para a pes- obra, existe uma aproximação entre os textos
quisadora, é a constituição da sociedade “tão que se dá “na mesma semântica de entendi-
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016 211

mento, numa mesma língua cruzada de ma- o enfrentamento da questão do “imperialis-


res e continentes [...]”. A obra partiu da von- mo cultural”, ainda vigente (PRAWER, 1973).
tade de dois escritores de países diferentes É interessante, por exemplo, observar o
em pensar a infância, do ponto de vista das modo como Gil inclui na categoria de perso-
suas dificuldades, principalmente. nagens figuras importantes de Moçambique,
Indo além e destacando o conteúdo que remetendo a um pano de fundo histórico das
nos é apresentado, as semelhanças entre as lutas pela independência, como o primeiro
representações nos dois universos poéticos presidente Samora Machel – citado como
não só une os discursos, mas coloca em foco estátua no poema Tunduru (“pés de samo-
muito do cenário contemporâneo no que diz ra-senhor-presidente”, p. 46), de modo a
respeito às problemáticas humanas. Se, por assinalar o papel que a literatura teve e ain-
várias razões, é importante ressaltar as dife- da tem de promover as discussões sobre a
renças literárias que perpassam a produção questão anticolonial africana. A manutenção
lusófona em sua especificidade, esse livro de uma memória que revive nas passagens
dirige também o olhar para o que é comum, do texto demonstra que ainda é importante
para o que é tocante tanto aqui como lá. Uma para o contexto moçambicano, e porque não
divisão geográfica que na verdade escon- dizer africano, a presença dos acontecimen-
de muitas e possíveis interfaces. O texto em tos passados no dia a dia e na história que se
questão, promovido inicialmente pela apro- mistura ainda com o recente – o povo ainda
ximação da língua portuguesa, aproxima ce- vive as consequências desses acontecimen-
nários que são distintos na sua acepção de tos, em que o menino e a estátua estão no
“pós-coloniais”, mas nem tanto assim, con- mesmo jardim, sem ninguém ver.
forme o que é possível apreciar na condição CantoPoemas (2011) não é um texto para
da criança, da realidade econômico-social, e crianças, e sim para o público adulto – as
das dificuldades de lidar com a solução de crianças são alegres, mas sofridas; os versos
problemas ainda hoje. aqui presentes problematizam uma reali-
Nessa perspectiva, a literatura aqui pre- dade tanto brasileira quanto moçambicana.
sente parece ter esse duplo papel, de aproxi- Trata-se de um bom trabalho para pensar as
mar e diferir, se assim quisermos lançar um narrativas que enfocam a criança como temá-
olhar comparatista para esse material, ao tica, mas sob um viés diferenciado – sobre a
atentar para o modo como a matéria linguís- infância, mas não para os pequenos leitores.
tica se apresenta em uma e outra parte, para
o modo como a tematização sobre a infância
é aproveitada pelos autores para desenvol- Referências Bibliográficas
ver outras discussões, enfatizando o mun- IGLÉSIAS, Olga. África, a Mulher Moçambicana
do dos meninos por Soriano ou inserindo a e a NEPAD. Campus Social, 3/4, 133-151. Lis-
questão feminina por Gil, e assim por diante. boa: ULHT, 2007. Disponível em:
É oportunidade para percorrer os caminhos
do literário em diferentes locais, permitindo <http://recil.grupolusofona.pt/dspace/bitstre-
ao leitor conhecer tradições distintas no con- am/handle/10437/1935/artigos8.pdf ?se-
tato com uma produção que está sob a égide quence=1>
de uma “mesma” língua apenas a priori. Ao
mesmo tempo, enquanto exercício analítico, PRAWER, S. S. (1973). O que é literatura compa-
oportuniza expandir o olhar para literaturas rada? In: Literatura comparada: textos funda-
que não estão no foco das preocupações eu- dores. COUTINHO, Eduardo F.; CARVALHAL,
rocêntricas, sendo um ato que contribui para Tania Franco. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
212 revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.2 - jul./dez. 2016

SILVA, Calane da. Introdução. In: GIL, Isabel; SO-


RIANO, Marcelo. CantoPoemas: Sobre Meninos
e Pássaros. Maputo: Alcance Editores, 2011.
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tado em itálico, corpo 12, fonte Times New radas, de modo sequencial, em algarismos
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corpo 10, iniciando à margem esquerda, ali-
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A seção inicia dois espaços abaixo do resu- cia, tanto no texto quanto no rodapé, deve ser
mo, à margem esquerda, em corpo 12, com sobrescrito. Os títulos das seções, sempre à
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las, itálico e negrito, seguida de dois-pontos. anterior e posterior:
Admitem-se até cinco palavras-chave, em
corpo 12, separadas entre si por ponto. a. TÍTULOS DE SEÇÕES PRIMÁRIAS: MAI-
ÚSCULAS, NEGRITO, CORPO 12;
Abstract/Keywords – Resumen/ b. Títulos de seções secundárias: inician-
Palabras-clave do a primeira palavra em maiúscula,
Seguir os mesmos padrões elencados para o negrito, corpo 12;
resumo e para as palavras-chave. É obriga-
tória a inclusão de versão do resumo e das Anexos
palavras-chave em inglês e em espanhol. A seção anexos, quando houver, deve ser
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Corpo do trabalho textual, da palavra ANEXOS, centralizada,
Deve ser disposto em forma sequencial, em maiúsculas, itálico e negrito, corpo 12,
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linhas de 1,5, corpo 12 e fonte Times New separados entre si por 2 espaços.
Roman. A sinalização dos parágrafos corres-
ponde a 1 toque de tabulação (1,25 cm). As Referências
citações com até 3 linhas devem ser incor- A palavra REFERÊNCIAS deve ser digitada
poradas, com aspas, ao texto e seguidas do a 3 espaços da última linha textual ou dos
nome do autor, ano da obra e páginas, entre anexos, centralizada, em maiúsculas, itálico,
parênteses. Exemplo: x x x “[...] kshwj fiwf negrito e corpo 12, seguida, 2 espaços após,
jfisjd” (PARRET, 1988, p. 24). das referências bibliográficas. Inserir ape-
As citações com mais de 3 linhas devem nas as obras citadas, e não a totalidade
ser apresentadas, sem aspas, em margem das obras consultadas. Tais referências
própria de 4 cm, espaçamento simples, cor- devem ter corpo 12, fonte Times New Ro-
po 10, seguidas da referência bibliográfica man e ser ordenadas alfabeticamente, em
entre parênteses conforme exemplo acima. espaçamento 1,5 cm, à margem esquerda,
Tabelas, gráficos e ilustrações, quando pre- conforme exemplos que seguem. Observa-
sentes devem vir inseridos em sua posição ção importante: independentemente da lín-
definitiva no texto, com resolução mínima de gua de origem da obra citada, apenas a pri-
300 dpi, em formato .jpeg. A revista ­publica meira palavra dos títulos deve ser ­grafada
revista expressão - cal - ufsm - ano 20 - n.1 - jan./jun. 2016 215

com maiúscula; exceção feita, por razões Filmes


óbvias, para substantivos próprios que es- MADAME SATÃ. Direção e roteiro: Karim Aïnouz.
tejam inseridos como parte dos títulos, ou Elenco: Lázaro Ramos, Marcélia Cartaxo e
para substantivos em língua alemã. Flávio Bauraqui. Trilha sonora (não original):
Bruno Barteli, Ismael Silva e Francisco Alves.
Livros com um autor Brasil, 2001, color., 105 min, 35 mm.
ALÓS, Anselmo Peres. A letra, o corpo e o de-
sejo: masculinidades subversivas no romance
latino-americano. Florianópolis: Mulheres,
2013.

Livros com até três autores


ORLANDI, Eni; GUIMARÃES, Eduardo; TARALLO,
Fernando. Vozes e contrastes. São Paulo: Cor-
tez, 1989.

Livros com mais de três autores


DUBOIS, Jean et alii. Dicionário de linguística. São
Paulo: Cultrix, 1987.

Capítulo de livro de um autor


ETIEMBLE, René. Crise de la littérature compa-
ré? In: . Comparaison n’est pas raison. Pa-
ris: Gallimard, 1963. p. 23-58.

Capítulo de obra coletiva


FERREIRA, Maria Cristina Leandro. A antítese da
vantagem e do jeitinho na terra em que Deus é
brasileiro. In: ORLANDI, Eni P. (Org.). Discurso
fundador: a formação do país e a construção
da identidade nacional. Campinas: Pontes,
1993. p. 31-45.

Artigo de periódico
MATEUS, Maria Helena Mira. Unidade e varia-
ção na língua portuguesa: memória coletiva e
memória fraccionada. Organon, Porto Alegre
(UFRGS), v. 8, n. 21, p. 35-42, jan. 1994.

Documentos de internet (não utili-


zar sublinhado para os hiperlinks)
ALVES, L. R. G.; PRETTO, N. “Escola: espaço para
a produção de conhecimento”. Disponível em:
<http://www.lynn.pro.br/admin/files/lyn_
artigo/282955d83a.pdf> Acesso em: 02 de agos-
to de 2013.

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