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REITOR
Valdiney Veloso Gouveia
VICE-REITORA
Liana Filgueira Albuquerque
E-book financiado com recurso do projeto aprovado PVB13423-2020 no edital de Chamada de Produtividade
PROPESQ/PRPG/UFPB 03/2020)
CDU 398:396
APRESENTAÇÃO ............................................................................ 6
Cidades da Jurema e lugares de escuta: por uma metodologia feminista decolonial .... 76
Maria Gomes de Medeiros, Ana Cristina Marinho
Chegança .......................................................................................................................... 96
Catarina Calungueira
Referências
AYALA, Maria Ignez Novais; AYALA, Marcos. Cultura Popular no Brasil. São Paulo: Ática, 1981.
AYALA, Maria Ignez Novais Ayala; AYALA, Marcos. Metodologia para a pesquisa das culturas
populares: uma experiência vivenciada. Crato: Edson Soares Martins Ed., 2015.
BENTO, Daniela. Machismo. O que precisa mudar. Poço Redondo/SE, Angola comunicação,
2019.
LEMAIRE, Ria. Patrimônio e Matrimônio I: proposta para uma nova historiografia da cultura
ocidental. Educar em Revista, n. 70, p. 17-33, 2018.
METODOLOGIAS E PRÁTICAS
DECOLONIAIS SOBRE MULHERES DA
CULTURA POPULAR
“Chegar em uma certa idade é algo vitorioso, mas é também ficar órfão.
Órfão de amigos da infância, de colegas do ginásio, colegial, do curso
de teatro, do inglês, órfão de lugares que você frequentou, órfão de um
mundo e de uma geração inteira que você viu e que não existe mais. Eu sou
uma mulher órfã de quase tudo isso e ainda da minha saudosa mãezinha
e do meu amado pai. Essa é a lei da vida e ninguém disse que o paraíso
era aqui”, reflete a atriz. Ela perdeu a mãe e o irmão para a covid-19. “Não
estou falando de saudosismo e nem deixando de encarar o novo – sou
uma mulher moderna, tá? –, as evoluções, o século XXI”, reforça. “Saúdo
a praticidade, a tecnologia e praticidade, a tecnologia e tudo de novo e
melhor que a vida nos apresenta. Estou apenas me referindo ao que a
vida já me entregou um dia, e que simplesmente, do nada, em um piscar
de olhos e um passar do tempo, essas coisas físicas desapareceram para
sempre”. (Zezé Mota, 14/08/2021) Disponível em https://tvefamosos.uol.
com.br/noticias/redacao/2021/08/14/zeze-motta-chegar-em-certa-idade-
e-vitorioso-mas-e-tambem-ficar-orfao.htm?cmpid=copiaecola Último
acesso em 15 de agosto de 2021
As mulheres memoráveis apresentadas logo mais são pessoas que têm (ou tiveram)
forte presença no cotidiano de suas comunidades e estão (ou estiveram) em cena de forma
singular, com carisma, arrebatando a atenção público e nossa, claro. Sem conversar com
elas, sem vê-las em cena deixaríamos de aprender muita coisa.
O procedimento metodológico no qual a escuta e o diálogo entre pesquisadores e
colaboradores ou colaboradoras, artistas e outras pessoas pertencentes a seu universo
Ecléa Bosi ressalta a criação de laços afetivos que deve ter uma duração longa:
Alessandro Portelli, desde o primeiro capítulo de História oral como arte da escuta
(2016) vai refletir sobre várias questões com as quais temos nos deparado, desde o início
dos estudos em dupla e, depois, em grupo, junto com nossos orientandos. Tivemos uma
compreensão semelhante à deste autor ao ressaltar a importância da escuta e do diálogo,
mencionando também a memória, questões também fundamentais para Ecléa Bosi.
Vejamos como Portelli se refere a estas questões:
(...) as fontes orais são utilizadas como o eixo de um outro tipo de trabalho
histórico, no qual questões ligadas à memória, narrativa, subjetividade e
diálogo moldam a própria agenda do historiador. (Portelli, 2016, p. 10)
A história oral oferece acesso à historicidade das vidas privadas - mas, mais
importante ainda, ela nos força a redefinir nossas ações pré-concebidas
sobre a geografia do espaço público e do espaço privado, e da relação
entre eles. (Idem, p. 13)
Memória
Responsabilidade narrativa
As mulheres memoráveis
Para esta exposição, serão postos à reflexão elementos guardados em minha memória,
desde 1972 ou 1973, em registros fotográficos, sonoros de Marcos e meus ou em minhas
anotações em cadernos, cadernetas ou em papel avulso.
Trazemos na memória muitas mulheres, idosas, mais novas, meninas e homens velhos,
moços e meninos com diferentes atuações relacionadas a danças e religiosidade do que
se conhecia como expressões do catolicismo popular nos anos 1970 e 1980 em São Paulo
e eventualmente no Nordeste. De 1978 para cá, morando em João Pessoa, passamos a
acompanhar e a buscar diferentes formas de expressão do Patrimônio Imaterial da Paraíba
e de outros estados do Nordeste.
Algumas destas mulheres se destacavam no cotidiano em suas comunidades em São
Paulo, mas também aparecerão mulheres das culturas populares existentes na Paraíba,
repentistas, cantadoras, dançadoras de coco e ciranda, que, por sua atuação em suas
comunidades ou em palcos, são referências culturais do Patrimônio Imaterial paraibano
e brasileiro.
Três questões direcionam a seleção para nossa conversa:
1. O que fazem as mulheres das culturas populares a ponto de se tornarem
memoráveis para nós, de modo a vir à tona sempre lembranças e recordação?
2. Como elas habitam a minha memória? O que me faz lembrar delas?
Dona Nitinha me ensinou que as estórias fantásticas tidas como lendas e mitos nos
livros de Folclore brasileiro viviam no cotidiano feito estórias embutidas nas conversas
como se fosse realidade, mas difícil de acreditar. O sorrisinho deixava a dúvida ou a certeza
de que era brincadeira.
Aprendi com ela que o tipo de narrativa conhecida como causo, isto é, como caso
ocorrido é lembrado porque o acontecimento era engraçado ou deixou uma pessoa
conhecida em uma condição trágica e cômica ao mesmo tempo. Lembrança que era dela
e se tornou minha, tanto que anotei para não esquecer.
As Congadas de Mogi das Cruzes, em sua maioria, tinham a presença masculina nos
papéis de representação do grupo e como tocadores de instrumentos. Além das que
portavam as bandeiras dos grupos, havia crianças, jovens e senhoras, como rainha e
princesa que participavam do cortejo e faziam coro aos versos cantados. Nos Moçambiques
a presença feminina se limitava a portar a bandeira do grupo. A partir de meados dos 1980
começaram a surgir cada vez mais moças e senhoras entre os dançadores, com o manejo
elaborado de bastões, em coreografia complexa desta dança. Passaram a receber elogios
dos mestres. Nas Congadas as mulheres também tocam instrumentos de percussão e
chegam a assumir até a chefia de um dos grupos. Como em outros grupos tradicionais
brasileiros as mulheres foram conquistando espaços antes ocupados apenas por homens.
De brincadeira... sabe essa casa do Norte tem essa trave de janela. Então,
inclusive esse irmão que mora aqui comigo, nós começávamos a tocar
fazendo da trave da janela a viola. Então ele fazia um verso, eu fazia outro.
Nós rimávamos assim Brasília com Maria. Era uma coisa incrível! Que eu
não sabia, né? Então aí nós começávamos a treinar, nós achávamos que
tava muito bom, bonito, né? Depois Manoel Lourenço é que começou a
pôr na linha. Eu segui. Ele não.
Para concluir
Por que são memoráveis? Por diferentes motivos. Quando vi o coco dançado na
rua do Bairro da Torre, na sexta-feira da Paixão achei incrível. E daquele dia em diante
muitas mulheres e homens que participam de rodas de coco me encantaram e continuam
provocando boas emoções e lembranças. De mulher memorável, Dona Joinha, com seus
passos e presença linda no meio das ruas do Bairro da Torre em 1988, [Ver foto de Dona
Joinha no livro Cocos: alegria e devoção] O coco que ouvi em São Paulo cantado pelas
matriarcas do samba e batuque paulista, em um momento de descanso depois de um
terço de são Pedro, depois gravado na Vila das Palmeiras por Marcos Ayala, e a festa nas
ruas da Torre me levaram a estudar vários grupos da brincadeira dos cocos. No coco
paraibano aparecia um tipo de umbigada diferente do samba e batuque de São Paulo.
Com Dona Zezé, e um dançador de coco de Gurugi encontrei a umbigada, tão sedutora
quanto a dos sambas de São Paulo. [Ver fotos das mulheres do samba-de-umbigada,
tambú ou batuque e rezas cantadas, disponíveis em links do site www.acervoayala.com]
A memória de pesquisadores com muitos anos de leitura, experiência e vivência
da diversidade cultural brasileira aprende a criar pontes que lhes permitem comparar
e procurar exemplos de tempos anteriores e posteriores no sentido de entender
permanências, mudanças abandono, criação e retomada de versos e melodias que podem
estar em uma e outra forma de expressão. A pesquisa de campo adensa a experiência de
Referências
AYALA, M.I.N. e AYALA, M. Metodologia para a pesquisa das culturas populares: uma
experiência vivenciada. Crato: Edson Soares Martins, 2015. Disponível em https://www.
acervoayala.com/acervo/metodologia_para_pesquisa_das_culturas_populares/ Último
acesso em 30 de novembro de 2021.
BOSI, E. O tempo vivo da memória; ensaios de Psicologia Social. 2.ed. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004.
LEITE, Maria da Soledade Leite. Nossa história em poesia (poemas reunidos). Apresentação,
seleção e organização de textos Maria Ignez Novais Ayala e Josélio Paulo Macário de
Oliveira. Crato: Edson Soares Martins: 2016. Disponível em https://www.acervoayala.
com/acervo/nossa-historia-em-poesia-publicacao-digital-gratuita/ Último acesso em 30
de novembro de 2021.
PORTELLI, A. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.
Anexos
Links Externos
Acervo Ayala
https://www.acervoayala.com/
A Barca Acervo
http://barca.com.br/acervo/
Transcrição de festa de São Benedito na Casa de Dona Guilhermina – Vila das Palmeiras,
São Paulo, 14/05/1977; rezas cantada - cantochão; transcrição e áudio; fita número 58
https://www.acervoayala.com/acervo/colecao-1972-1995/series-tematicas-
colecao-1972-1995/formas-de-expressao/fita-58-transcricao-e-audio/
Registros fotográficos
Dona Domerina, mãe de Mestra Teca, Cabedelo 1998 e Filhas de Mestra Teca, janeiro 1999
“[...] a poesia é um espaço a mais onde a gente convive com isso, a gente
vive numa sociedade feita por homens e para homens. Então, não é o
único espaço onde se convive com isso, é mais um desafio. De perceber,
em vários momentos, a carga desse machismo. Quando a gente não
esperava que fosse vir esse machismo. Ou alguns que já esperávamos. E
há muito a percorrer com o ideal de sociedade igual, não é? Mas isso não
faz a gente parar não, é combustível.”
2 Maria das Neves publicava folhetos sob o pseudônimo Altino Alagoano. Ler sobre isso “MENDONÇA, Maristela
Barbosa. Uma voz feminina no mundo do folheto; Brasília: Thesauros, 1993.
A cantoria
[...] não devem ser confundidos com outras categorias de poetas populares
do Nordeste: escritores de folhetos ou emboladores. Os emboladores ou
coquistas, embora sejam também improvisadores, além de utilizarem
instrumentos de percussão, como o pandeiro e o ganzá, desenvolvem
gêneros poéticos diferentes dos que constituem a cantoria de viola. Os
cantadores de cocos apresentam-se em dupla, como os violeiros, mas
independem de convites para fazer suas disputas poéticas (AYALA, 1988,
p.15).
3 Como já existem excessivos trabalhos que tratam dessa questão, não abordarei esse particular. Leia, por
exemplo, AYALA (1988).
“Eu sinto uma tristeza é porque a gente não tem espaço, os homens são
muito machista, não dão vez a gente, as mulheres, além... Tinham muitas
mulheres no tempo quando eu comecei, mas hoje tem poucas, pois muitas
“O preconceito contra a mulher não acabou, ainda existe, mesmo hoje que
a mulher já conquistou muitas coisas. Mas mesmo com o preconceito de
alguns homens, nós estamos aqui, seguimos mostrando a nossa arte. “
Uma das vozes mais recentes no universo da cantoria, Fabiane Ribeiro, falou-nos que
Como nos ensina Bakhtin (1997), nunca se diz algo pela primeira vez, nosso enunciado
está sempre ordenado pelas palavras de outros, e corresponde às respostas que damos
a enunciados proferidos anteriormente, pois, ao nos posicionarmos, marcamos nosso
espaço.
Nos depoimentos acima, percebe-se que a condição feminina, no território do repente
é ainda adversa, existe muita discriminação contra a mulher que se aventura no território
do improviso.
As palavras das poetisas dialogam com várias mulheres que sofrem ou sofreram
discriminação por ocuparem o espaço em território onde a maioria é masculina. Igualmente
ocorre nos espaços sociais, no ambiente do repentismo, a mulher continua sua jornada
contra a sociedade discriminatória.
Talvez a principal razão de existirem poucas mulheres violeiras repentistas seja fruto,
sobretudo, da falta de oportunidade que se destina às mulheres no universo dessas
Até antes da pandemia, nos centros urbanos, o mais comum era mesmo as cantorias
acontecerem nos festivais, e, como afirma Hobsbawn (2008), a tradição tem por base a
ressignificação e adaptação às novas demandas sociais. Nessa modalidade, as duplas
se revezam para improvisarem motes previamente escolhidos por uma comissão que,
durante um tempo limitado, em média vinte minutos, julgará três modalidades poéticas.
O apresentador convida a dupla a comparecer ao palco, e, após a leitura da proposição,
inicia-se a cantoria.
No passado, os desafios eram entre rivais. Mas, na contemporaneidade, eles acontecem,
geralmente, entre parceiros amigos, o que se observa é um duelo de representação. Em
um festival, por exemplo, uma dupla canta em desafio, mas na realidade, duela com as
outras duplas.
Neste momento, a intenção é competitiva e a decisão poderá ser da comissão julgadora
ou, mais raramente, do público presente, como ocorreu em um encontro no Pátio de São
Pedro, na cidade do Recife, em comemoração ao dia Nacional da mulher, no ano de 2010,
quando o primeiro lugar ficou com as cantadoras Minervina Ferreira e Mocinha de Passira.
Além de repentistas, outros artistas podem se apresentar como atração especial:
emboladores de coco, declamadores e, algumas vezes, violeiras. Como registramos acima,
a presença feminina nestes espaços ainda é, proporcionalmente, reduzida.
Preocupada com a pouca projeção da mulher na cantoria, a poetisa e militante Maria
Soledade Leite se ocupa de organizar encontros de violeiras. Para retribuir a gentileza dos
poetas, segundo ela, costuma convidar uma dupla masculina na condição de participação
especial. Festivais, Congressos, Encontros são faces da mesma moeda, independente
do nome, cumprem papel de competição normativa que visa experimentar a habilidade
dos[as] repentistas e, quase sempre, eleger um[a] vencedor[a] do evento.
Todavia, nos eventos por Soledade organizados, não se consagra dupla vencedora,
o objetivo é confraternizassem através da cantoria improvisada e disseminar a poética
feminina.
Os encontros e festivais são importantes para as repentistas, entretanto é nas cantorias
de pé-de-parede que se configura a plenitude do universo do repente. Durante estas
apresentações, as poetisas estão em relação direta com o público numa situação dialógica.
Durante esse contexto, apologistas e admiradores do gênero se reúnem em um espaço
para desfrutar da poética. Na ocasião, apresentam-se uma ou mais duplas em desafios.
Geralmente não existem temas previamente escolhidos, nem tempo determinado para
os cantadores, o que permite que cada um seja livre para versejar o tempo que acreditar
necessário.
Diferente dos congressos, no pé-de-parede, geralmente, não há microfone ou qualquer
instrumento que amplie a voz, o que exige maior esforço dos participantes já que a maioria
não tem conhecimento de técnica vocal. No passado, o evento poderia durar uma noite.
Essas três etapas são intercaladas por pequenos intervalos de cerca de 10 a 15 minutos,
durante os quais, se houver cantador profissional ou amador como convidado, continua
a ter produção de versos.
Quando os cantadores presentes já cantaram em desafio, é comum que um violeiro
inicie uma canção, em seguida outros o imitarão e começará um novo momento da
cantoria com declamações de poemas, quadras, canções, glosas e recitação improvisada.
Embora nos congressos haja maior público, é durante o pé-de-parede que se reconhece a
habilidade em versificar dos poetas. Durante o congresso, veem-se apenas três temáticas
A “live”
Quando os meios de comunicação noticiaram que o vírus estava entre nós, aulas
foram suspensas, férias antecipadas e compromissos reformulados. O que deveria ter
sido apenas uma acomodação da vida, visto que o convívio social com a internet já era
bastante presente, tornou-se a caixa de Pandora e desnudou a fragilidade e inabilidade
de várias pessoas destreinadas ao mundo das novas tecnologias.
Mesmo assim, não sem esforços, igualmente a outros artistas e a sociedade em geral,
também a cantoria se sentiu obrigada a acessar o mundo das redes sociais de maneira
mais efetiva.
Antes do isolamento, algumas cantadoras já usavam “facebook”, “Instagram”, “youtube
como meio de divulgação. Porém, durante o isolamento, assistimos a uma variante do
pé-de-parede surgir: a “live”. Esta atualização do momento mais autêntico da cantoria
possibilitou um pouco mais de projeção às cantadoras. Destaca-se a Fabiane Ribeiro,
repentista das mais jovens. Vídeos vários podem ser encontrados onde ela canta com
sua irmã, Cristiane Ribeiro, Rafaela Dantas, Minervina Ferreira, Santinha Maurício, Toinha
Brito ou com outros repentistas.
Quando se pergunta o que pretende com sua poesia, Fabiana responde: “[...] eu quero
fazer com que a arte da cantoria seja ainda mais conhecida e divulgar, principalmente, a
poesia feminina. Ocupar nosso espaço no meio da cantoria de viola”. Afigura-nos que no
referente a tentativa de disseminação da poética feminina, a repentista tem conseguido.
A “live” segue a mesma estrutura do Pé-de-parede. Difere apenas, pelo menos no
período de isolamento, quando iniciou, quanto à ausência de público. Este assiste pelas
redes sociais mais populares.
Para efetivar o evento, o apologista - a poetisa Maria Soledade, por exemplo, organizou
três - precisa contar com alguém para cuidar das questões técnicas e realizar, com
colaboração dos poetas envolvidos, divulgação da cantoria.
Cartazes virtuais são produzidos onde se encontram os números das contas para
depósito, a paga dos versos, como acontece no pé-de-parede. Os pedidos e motes também
podem ser realizados pelo “chat”, ou, mais raramente, de viva voz, quando a cantoria
acontece pelo “meet” ou outra plataforma similar, porém ocorre raramente.
Embora a “live” tenha sido importante durante o período de isolamento, não se
pode garantir que ela veio para ficar, talvez o público da cantoria, embora não despreze a
participação virtual, prefira se fazer presente no ambiente onde acontecem as apresentações.
A Sextilha é uma estrofe com rimas deslocadas, formada por seis versos de sete
sílabas. Na Sextilha, rimam as linhas pares entre si, conservando as demais em versos
brancos. Vejamos os versos de Minervina Ferreira e Mocinha de Passira:
Minervina Ferreira:
Mocinha de Passira:
Nós vivemos o perfil
De um quadro bastante escuro
Com desarmonia interna
Deixando o povo inseguro
Não queremos que esse quadro
aconteça no futuro.5
Sete Linhas ou Sete Pés: configura um conjunto rimando os versos pares até o quarto,
como na Sextilha; o quinto rima com o sexto, e o sétimo com o segundo e o quarto. Os
versos são de Mocinha de Passira.
5 Transcrito do compact disc Mulheres de repente – Minervina Ferreira e Mocinha de Passira. São Paulo: UMES, 1999.
Mourão que Você Cai: Gênero muito apreciado, com versos de sete sílabas, como
nos demais, onde as estrofes aparecem com doze linhas, havendo quatro versos comuns
a elas: terceiro, sexto, nono e décimo segundo. O iniciante é responsável pela formação
dos versos: primeiro, segundo, terceiro, sétimo, oitavo, décimo, décimo primeiro e décimo
segundo. Ficando os demais a cargo do parceiro intercalante. Mocinha de Passira cantou:
A cantoria só presta
Misturando quente e frio
Conte um, dois, três
Minervina: Antes do meio da festa
Começou o desafio
Conte quatro, cinco, seis
Mocinha: Você não teve elogio
Nem de mãe, nem de pai
Minervina: Você cai!
6 Transcrito do compact disc Os grandes repentistas do Nordeste : cantoria de viola - Mocinha de Passira e
Sebastião Marinho. São Paulo: Pequizeiro.
7 Transcrito do compact disc A Mulher no repente - Minervina Ferreira e Maria Soledade. João Pessoa: Gravação
patrocinada pelo Governo do Estado da Paraíba, 2002.
Meia Quadra: Estilo que apresenta estrofes com número de versos não determinados, e
com quatro linhas iguais na parte final. A estrofe seguinte é da poetisa Mocinha de Passira:
Quadrão: Diz-se que o Quadrão tem sido o gênero que se observou com o maior
número de alterações, não só na sua forma interna, mas, também, na estrutura das estrofes,
em geral. O Quadrão antigo é formado por uma estância de oito linhas, pertencente à
família dos Setessílabos, rimando o primeiro verso com o segundo e o terceiro; o quarto
com o oitavo, e o quinto com o sexto e o sétimo, contando, no final, o estribilho de sua
denominação. O improviso é de Maria Soledade:
Recife a Jaboatão
Caruaru a Pesqueira
Afogados da Ingazeira
Vitória de Santo Antão
De Salgueiro a Ribeirão
Carpina, Tracunhaem
Comprei um cartão
pra viajar no trem
Sem cartão ninguém vai
Sem cartão ninguém vem
Sem cartão ninguém dá
Sem cartão ninguém tem
Nem vem, nem vai
Nem vai, nem vem
Nem tem, nem dá
Nem dá, nem tem
Se quiser me imitar
Faça assim também
Notícia curta é lembrete
Quem não canta Gabinete
Não é cantador pra ninguém. 11
Toada Alagoana: gênero pouco usado, com rimas encadeadas e de agradável toada.
Sirvo-me mais uma vez de uns versos de Mocinha de Passira.
Dez Pés de Queixo Caído: ainda bastante usado, este estilo está incluído na Décima,
apresentando, no final de cada estrofe, o refrão: “NOS DEZ DE QUEIXO CAÍDO”. Maria
Soledade canta:
11 Os grandes repentistas do Nordeste : cantoria de viola - Mocinha de Passira e Sebastião Marinho. São
Paulo: Pequizeiro.
12 idem
O espaço da mulher,
Se amplia a cada momento,
Desde a comerciaria
A que faz medicamento
Em relação ao passado,
Ai!, ai!, ui!, ui!...
Mudou noventa por cento (...)
No campo policial,
tem delegada e bombeira
A promotora, juíza,
advogada, pedreira
Nosso espaço está abrindo,
Ai!, ai!, ui!, ui!...
Mesmo que o homem não queira. 14
Conforme dito, vários são os gêneros da cantoria, e pode-se verificar que algumas
modalidades são apenas variações de outras. No entanto, este artifício em lugar de
empobrecer o gênero, valoriza-o, aperfeiçoa-o.
13 A Mulher no repente - Minervina Ferreira e Maria Soledade. João Pessoa: Gravação patrocinada pelo Governo
do Estado da Paraíba, 2002.
14 idem
Mocinha
A paixão eu não estranho
Que é muito gente da gente
Benedito que também
Está na festa excelente
Também o policial
que sentou-se em nossa frente
15 No contexto da cantoria, o termo baião significa a música que acompanha o gênero, não apresenta nenhuma
alusão ao gênero imortalizado por Luiz Gonzaga, o rei do baião.
Mocinha
Piaba eu digo a tu
Piaba muito obrigada
Aquele é Manuel
Pessoa civilizada
Eu ainda estou sentindo
O gosto da misturada
Santinha
Seu Manuel vende a parada
Ele é o dono do bar
Tem bebida pra vender
Tira gosto a mastigar
E é feliz a pessoa
Quando chega no seu lar
Mocinha
Seu Manuel é sem par
Eu vou dizer em seguida
Ele faz uma misturada
Muito boa na medida
Serve pra toda a doença
Que o cara sofrer na vida
Santinha
Ele prepara a bebida
(...)
Bota ali alecrim
E também manjericão
Que faz o velho animado
Lá na sua habitação
Mocinha
Raiz de toda a nação
Manuel quem bota nela
Santinha
Bota erva doce e canela
Bota (...) e pepino
Bota galho de angicos
(...)
Que um velho de oitenta anos
Ainda faz o serviço
Mocinha
Seu Manuel é divino
Pessoa civilizada
Sua comida é boa
E é muito temperada
Benedito é o catimbó
E seu Mané na misturada
Santinha
Pessoa bem educada
Que prepara da bebida
Bota tanta misturada
Compra erva na avenida
Que a mulher não aguenta
O marido na dormida
Mocinha
Gostei da sua bebida
Agora (...) meus pés
Quero falar em Bigode
Perante aos fieis
Porque ele e Paixão
Usa da camisa dez
Santinha
Entre os amigos fies
Bigode e a sua bela
Sua esposa e sua deusa
Que ele não abandona ela
Ela é louca por ele
E ele é louco por ela
Mocinha
Dona Maria tão bela
Cantei no seu ambiente
Santinha
[...]
Que Bibiu caboclo [...]
Ele gosta de ouvi
A tua cantiga e a minha
Quem canta pra esse povo
A vida é boa todinha
Mocinha
Bigode é gente fina
É gente civilizada
Aqui falei em Bigode
Meu amigo e camarada
Com a camisa do Santa
Pra ele não falta nada
Santinha
Bigode é meu camarada
No Arruda é valentão
Lá no campo do Santa
Vai lá ver a seleção
Ele tem muito prazer
Dentro do seu coração
Mocinha
Bigode é que tem razão
Gosta de ouvir meu grito
Gosta de carne de gado
De galinha e de cabrito
Com a camisa do Santa
Bigode fica mais bonito
Santinha
Ele tem bom gabarito
É um homem de cartaz
Usa camisa do Santa
Com o número dez atrás
Quando ele veste a camisa
Sua esposa ama mais
Mocinha
Ninguém lhe bota pra trás
Que Bigode é consciente
Mocinha
Essa viola eu garanto
Do amigo que cantou
Que é Sebastião [indecifrável]
Moreno da minha cor
E vamos cantar pra essa turma
Que ainda não escutou
Santinha
Quem ainda não pagou
Venha aqui e pague a mim
Que quem pagou a Guri
Eu não aceito
[indecifrável]
Mocinha
Quem já pagou a cantiga
Agora é diferente
Pagaram a Guriatan
Mas agora paga a gente
Já que mudou de dupla
Tem que pagar novamente
Santinha
Sei que Lourenço é decente
A sua esposa é Bela
Seu Paixão que também ver
Sem precisar de cautela
Eu vou passar o meu filme
Aqui na primeira tela
Mocinha
[indecifrável] É gente bela
De São Lourenço da Mata
Fernando pagou também
Que é uma pessoa grata
E agora vem Paixão
Pagar nossa serenata
Mocinha
Paixão é de qualidade
E Benedito aqui está
Tomando o seu uisque
Ouvindo a gente cantar
Gosta de ouvir cantiga
E também gosta de pagar
Santinha
Para beber e pagar
Benedito é alta linha
Veio ouvi hoje a Moça
Ao lado de Santinha
Mas tá tomando uisque
Com saudade de Claudinha
Mocinha
Claudinha está sozinha
Ele aqui está sozinho
Sem a companhia dela
Veio aqui com seu vizinho
com saudade de Claudinha
bebe o tempo todinho
Santinha
Paixão foi o meu padrinho
E agora estou postada
Ao lado aqui de Fernando
Eu quero dar obrigada
A Paixão e Benedito
Pessoa bem educada
Mocinha
Oh Paixão muito obrigada
Eu agradeço a Paixão
Que é muito civilizado
E prezo de coração
E Benedito também
Que pagou com atenção
Santinha
Que Paixão está presente
eu estou muito feliz
ele com a sua turma
veio ouvir a cantatriz
eu canto pra este povo
beleza do meu país.
Mocinha Maurício
Hoje eu me acho feliz
com o povo arrodeada
hoje é a primeira vez
que canto nesta morada.
que na casa de Piaba
para mim não falta nada
Santinha
Pra Bigode e sua amada
nosso amigo Benedito,
Gustavo Ramos também
com que eu já sou [indecifrável]
cantei no seu ambiente
é homem de gabarito.
Mocinha Maurício
Ali é São Benedito
com a força de Jesus
pra Bigode [indecifrável] Maria
pra dizer que beija cruz
que Bigode está vestindo
a camisa do Santa Cruz
Santinha
Ele tem a sua luz
a Bigode eu dou valor
ele é do Santa Cruz
gosta de um jogador
que ganhando ou perdendo
ele é típico torcedor
Mocinha Maurício
Bigode é tricolor
eu sou tricolor também
nunca gostei do Sport
fica quem vai e quem vem
o torcedor do Sport
Mocinha Maurício
O Santa Cruz não tem manha
vou lhe dizer com cuidado
perde, ganha, fica alegre
é jogador pra todo lado
o torcedor do Sport
para mim é bem mostrado
Santinha
Mas o Sport tem ganhado
e ganha do seu partido
ele é time dos meus filhos
e também o meu marido
eu só torço pela aquele
que dá resultado [...]
Mocinha Maurício
Vamos cantar garantido
para essa personagem
que gosta de [indecifrável]
sem precisar ter coragem
o torcedor do Sport
pra mim só tem papulagem
Santinha
Para mim não é vantagem
dizer assim para quem
eu gosto do Santa Cruz
e do Náutico quando vem
que torcedor de Sport
paga cantiga também
[...] a produção [...] oral por mais que pareça simples divertimento encerra
sempre algo de utilidade, de preceito e de etiqueta [...] resultando num
conjunto de assaz complexo, não só por causa da sua diversidade quanto
à forma de comunicação como também pelo seu significado no contexto
da cultura popular.
Conclusão
Vários são os gêneros orais, e muito já se pesquisou sobre eles. Contudo, ainda
que, na contemporaneidade, a mulher venha conquistando espaço social. No mundo
do improviso, por exemplo, a presença feminina ainda é restrita. Nestes apontamentos,
parte de nossa tese, defendida no ano de 2014, apresentei aspectos do gênero cantoria
de improviso, além de narrar sobre a condição da mulher neste espaço.
A partir de fragmentos de depoimentos de poetisas, expus como transita a mulher no
território do repente, suas inspirações, as temáticas recorrentes, e as estratégias utilizadas
por elas para transitarem no espaço da poesia oral foram questões que tentei desvendar.
Desde logo, percebe-se que, embora estejam no mesmo campo de atuação, como
qualquer ambiente social, a mulher sofre adversidade para se inserir e construir sua
trajetória, é conferido ao homem repentista maior status quer por parte dos artistas ou
dos apreciadores dos gêneros.
Referências
ARAÚJO, João Mauro Barreto de. Voz, viola e desafio: experiências de repentistas e
amantes da cantoria nordestina.2010.100f. Dissertação (Mestrado em História Social)
- Universidade de São Paulo, Programa de Pós-Graduação em História, São Paulo, 2010.
AYALA, Maria Ignez Novais. No arranco do grito. (Aspectos da cantoria nordestina). São
Paulo: Ática, 1988.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BATISTA, Otacílio; LINHARES, José. Antologia ilustrada dos cantadores. Fortaleza: ABC
Editora, 1976.
HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. In: HOBSBAWN, Eric ; RANGER, Terence (Orgs.).
A invenção das tradições. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
SILVA, Simone. “A gente não esquece porque a gente sabe o que vai dizer”: uma
etnografia da cantoria de pé-de-parede da zona da mata de Pernambuco.2010. 160f. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa
de Pós-Graduação em Antropologia, Rio de Janeiro, 2010.
TRAVASSOS, Elizabete. Encontro com a palavra cantada; Fortaleza: ABC Editora, 2002.
XIDIEH, Oswaldo Elias. Narrativas populares. São Paulo: Editora da USP, 1993.
As ciências sociais feministas têm buscado oferecer respostas para o atual cenário de
desafios que as mulheres enfrentam na sociedade como um todo e, especificamente, na
universidade brasileira. Vivemos um período de avanço do conservadorismo e ascensão
de políticos de direita e extrema direita ao poder. A pauta conservadora tem um forte
polo mobilizador comum em reação aos direitos políticos conquistados por mulheres,
povo negro e LGBTQIA+, bem como contra estas agendas de lutas. Desta maneira, o
feminismo tem buscado oferecer respostas no que diz respeito à luta por justiça social e
igualdade de gênero.
A partir do final do século XX, o vácuo político-ideológico, a crise do capitalismo e
a intensificação do surgimento de credos religiosos institucionalizados, alinhados
ao pensamento neoliberal, expressos em ideias como a teologia da prosperidade e a
renovação carismática católica, possibilitaram o surgimento de um cenário de ódio e
novas cruzadas morais. As identidades de gênero e orientações sexuais desviantes da
norma, bem como a luta pelos direitos reprodutivos das mulheres, se tornaram alvo fácil
de um novo fundamentalismo político-empresarial que as tornam bodes expiatórios da
generalizada crise de esgotamento moral, impulsionada pela atuação de evangélicos,
ruralistas e católicos contra a suposta decadência moral. Assim sendo, as mulheres e
pessoas LGBTQIA+ precisam desenvolver um forte arsenal de criatividade epistêmica e
metodológica que possa oferecer alternativas ao cenário de cerceamento de direitos e
vidas.
A convocação à criatividade epistêmica é uma demanda elementar, pois entendemos,
como Donna Haraway (2016), que a ciência é marcada por uma “tradição do capitalismo
racista, dominado pelos homens; a tradição do progresso; a tradição da apropriação da
natureza como matéria para a produção da cultura; a tradição da reprodução do eu a partir
dos reflexos do outro” (HARAWAY, p.37). Todas essas tradições alienaram as mulheres,
bem como pessoas negras e comunidade LGBT, da sua condição de sujeitos da sociedade,
tornando-os os outros16 da cultura.
Entretanto, ainda que haja desafios externos à prática política e científica do feminismo,
como os citados acima, inquietações imanentes do próprio movimento buscam alternativas
às hegemonias que se perpetuaram no seio do próprio movimento feminista, tendo em
vista a posição social das mulheres diante de opressões estruturais como o patriarcado,
o colonialismo racista e a cisheteronormatividade.
16 Discussão inicialmente realizada pela filósofa Simone de Beauvoir em sua obra O segundo sexo (1949),
que investiga como o tornar-se mulher na sociedade patriarcal é um processo de construção de alteridade
em relação ao homem.
Foi neste mesmo sentido que, algumas décadas depois, Boaventura de Sousa Santos
(2007), viria nomear de “epistemícidio” a destruição sistemática dos conhecimentos do
povo do Sul Global. O sociólogo de Coimbra argumenta que a ciência cartesiana europeia
se desenvolveu no sentido de estabelecer-se como único conhecimento capaz de entender
a realidade do mundo:
Assumir esse lugar de escuta, em diálogo com teorias do feminismo negro, como
a do ponto de vista feminista18, nos coloca diante de questionamentos cotidianos sobre
a pressuposição de uma neutralidade do enunciador ou pesquisador, pois nossas
experiências de pertencimento a grupos sociais e históricos atravessam todas as nossas
práticas de pesquisa.
18 No Brasil, a filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro (2017) acionou o conceito de lugar de fala para dar
conta da experiência feminista negra além da esfera individual, remetendo ao ponto de vista de grupos
sociais historicamente silenciados.
Pensar a memória como construção narrativa implica entender também o viés político
que esses processos de subjetivação enfrentam. Se constituírem como sujeitas de sua
própria vida exige que as pessoas se tornem inteligíveis perante a sociedade da qual
fazem parte e, assim sendo, os relatos de vida são investimentos políticos, principalmente
quando pensamos o contexto de dupla opressão estrutural no qual estas mulheres estão
inseridas. “Não há criação de si (poiesis) fora de um modo de subjetivação (assujettisement)
e, portanto, não há criação de fora das normas que orquestram as formas possíveis que
o sujeito deve assumir”. (BUTLER, 2015, p.29)
O trabalho com a metodologia de campo da história oral e com a construção
de narrativas de si é uma empreitada pouco alicerçada em certezas que possam ser
apreendidas por metodologias positivistas de compreensão da realidade, enquanto objeto
estável e apreensível. Entendemos, pelo contrário, que estas senhoras são sujeitas de suas
vidas e suas histórias, imperativo ético que nos leva a estar diante delas, ao lado delas, na
busca por trocas de experiências que nos possibilitam traçar cartografias culturais para
além do ethos branco e patriarcal.
Assim sendo, entendemos que o relato que nos é oferecido pelas mulheres juremeiras
que vivem a cidade de João Pessoa como terreiros é fruto de processos de subjetivação
que as formaram enquanto sujeitas de suas próprias vidas. O empenho em construir
uma história permeada por coerência e sentido constrói marcas de suas vozes e de suas
lutas diante das condições de vida que estiveram (ex)postas. Buscamos redesenhar estas
marcas, trabalhar a partir delas, bem como perceber lacunas e contradições apresentadas
durante as entrevistas que se tornaram, desta maneira, lugares valiosos de compreensão.
Como nos alertou a filósofa norte-americana Judith Butler (2015), a compreensão
e construção da própria realidade pelo sujeito se dá em relação com o conjunto de
instituições de normas e agenciamentos sociais e coletivos. O relato de si mesmo é
impensável como narrativa individual e estável:
No entanto, o trabalho com a memória não pode ser considerado em abstrato, pois
aqui entendemos que as mulheres juremeiras são sujeitas detentoras de conhecimento
que nós não possuímos. E se nós precisamos do conhecimento que elas têm a nos oferecer,
é necessário que tenhamos o máximo cuidado com suas narrativas. Sobre o tratamento
da memória como fonte na história oral, é Pollak ainda quem elucida essa questão que
permeia o imaginário do senso-comum sobre a validade dos depoimentos orais como
fonte de pesquisas:
Assim sendo, entendemos que, para estar confortáveis e nos contarem algo, essas
mulheres devem entender que as suas histórias significam algo para nós; entender qual
o sentido de estarem conversando com duas pessoas19 que até pouco tempo atrás ela
sequer conhecia e ainda mais com um gravador ligado. Entendemos que a conversa
poderia fluir melhor se o regime de afetos fosse estabelecido entre nós, possibilitando
que as suas narrativas estivessem em contato com as nossas também. Pois, como afirma
19 As entrevistas aconteceram ainda com a presença de Marinaldo, pai de santo, amigos de muitos anos de
Inês e grande conhecedor do contexto da Jurema em João Pessoa, além das autoras desse texto.
Referências
ASSUNÇÃO, Luiz. Os Mestres da Jurema. In: Encantaria brasileira: o livro dos mestres,
caboclos e encantados. In: PRANDI, Reginaldo (Org.). Rio de Janeiro: Pallas, 2011, p. 182
- 215.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016.
20 Senhoras conversando no intervalo de uma festa de Iemanjá e referindo-se às entidades Erês, que são
mestres espirituais crianças dotadas de muita sabedoria espiritual.
LIMA SANTIAGO, Idalina Maria Freitas. A Jurema Sagrada da Paraíba. In: QUALIT@S Revista
Eletrônica. ISSN 1677-4280 v.7, n.1, 2008.
RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.
SAMPAIO, Dilaine Soares. Concepções e ritos de morte na Jurema paraibana. In: Religare,
ISSN: 19826605, v.12, n.2, dez. 2015, p.344-369.
SOUSA SANTOS, Boaventura de. O fim do império cognitivo: a afirmação das epistemologias
do sul. 1.ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2019.
SOUSA SANTOS, Boaventura. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a
uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, outubro, 2007, p 3-46
Exercite o perdão
E não viva magoado
Pois o outro é um presente
Que todo dia nos é dado
Cure as suas emoções
E não viva preocupado.
O machismo sobreposto
É problema que maltrata,
Saia já com seu achismo
A sua maldade mata,
Nunca será vitimismo
O crime que ela relata.
E na chama a espalhar
No fogo do coletivo,
Trago arte como forma
De agregar ao positivo,
Com orgulho faço parte
Desse poder efetivo.
Ô de dentro
Ô de fora
Peço licença
Pra fazer minha chegança...
Ah, eu vim de lá
Das terras de São Saruê
Da fartura e da bonança
Brinco que nem criança.
De identidade faceira
Me volto pro riso
No teatro popular
Onde a tolda é o meu lar.
Ô de dentro
Ô de fora
Tô indo embora
Mas a volta não demora.
Assim eu me despeço
Foi boa a acolhida
Fico agradecida
Por sua companhia.
Sebastião de Lourenço
Era um velho pescador,
Na cidade apelidado
De Sebastião doutor,
Pois conhecia a fúria
Do gigante Adamastor.
Falo de um cangaceiro
Chamado Lampião
Era um cabra da peste
De raiz e tradição
Que fez muita história
Marcadas por nosso chão
É o Mulheres em Cena
Projeto de extensão
Criado ano passado
Busca uma interação
Da nossa Universidade
Unindo a sociedade
Cultura e educação
Se alguém te pergunta
O que é cultura popular?
Tu acha que é só cordel
Mas tem o resto a espiar
Pois lhe digo, atenção
É maior a vastidão
E vai te arrebatar
Na cultura popular
A mulher foi apagada
Com o patriarcalismo
Que lhe deixou separada
Não podendo falar
Pelejar declamar
Sua arte formulada
Pois o ‘home’ dizia
Que ela inferior
“Isso não é pra mulher”
“deixa pros proseador”
Surgindo o preconceito
Desmerecendo seus ‘feito’
De cantar com amor
Cultura popular e
autoria feminina
É o nosso minicurso
Que debate e opina
Os diversos gêneros
Das protagonistas meninas
Lourdes Ramalho
A primeira
Dramaturga Nordestina
Do teatro popular
Que escreve com estima
Pra vir as repentistas
Pesquisar e atuar
No serviço social
Teoria e prática
Não é nada desigual
Privilégio a liberdade
No núcleo transformador
E o código de ética
Reconhece esse valor
A atuação nesse serviço
Junto a políticas sociais
Unidade entre teoria e prática
Na sociedade de sujeitos livres e iguais
A efetiva participação
Na análise da formulação
Tem um grande destaque
Após o movimento da reconceituação
Liberdade e igualdade
Necessita consideração
Cada uma em especial
No seu modo de produção
Nas sociedades sem desenvolvimento
E nas comunidades primitivas
A liberdade se restringe ao trabalho
Porém é limitada a forças produtivas
A igualdade se expressava
Entre indivíduos iguais
Mas, em muitas sociedades
Havia no trabalho divisões sexuais
O trabalho é definido
Atividade consciente
Transformação da natureza
E fenômeno humano exclusivamente
A parte que me cabe
A liberdade a igualdade
A essência e os limites
De estar em sociedade
Em vinte de novembro
Vamos comemorar
A consciência negra
E a nossa história resgatar
Racismo é crime
Descriminação é injúria
Preconceito é uma coisa
Que destrói a criatura
Eu vejo no negro de hoje
A imagem de Zumbi
Quando entram numa luta
E não querem desistir
A história do meu povo
Não pode morrer aqui
Foi feita de guerras e lutas
E direitos devem garantir
Quem garante os direitos
É a constituição
A lei maior do País
Mas com organização
Queremos nossos direitos
Desistir não tem condição
Com luta e exigências
Com muita reivindicação
Zumbi dos palmares
Foi o herói da história
Mas o que posso contar
Não Teve um passado de glória
O sofrimento foi grande
Para conseguir o que queria
Nunca desistiu da luta
Era grande a agonia
Teve também as mulheres
Que fizeram a história surgir
Acotirene, Tereza e Luiza Mahim
Teve também Dandara, mulher de Zumbi
Vó,
sei quem é,
seu nome e fisionomia.
Vida de muita pobreza,
pouco carinho,
de onde ela vinha
dormia-se de cansaço.
Dentro de si,
era só uma menina,
que se fez grande
do jeito que deu.
Quando minha bisavó deixou sua terra natal, ainda levava consigo o coração como
de costume, mas a cada passo que dava, rumo ao que ainda não se sabia, ele apertava e
apertava mais. Havia muitas malas e toda uma porção de coisas para dar conta, preparar
a comida, vigiar as crianças, que causava tamanha irritação ter aquela coisa inútil lhe
pesando o peito. Durante a caminhada, passavam por muitos rios e quando ela se viu
diante de um com águas turvas, não pensou duas vezes – arrancou aquele peso como um
dentista arranca um dente podre e jogou-o na água. Não fazia sentido carregá-lo mais, em
diante, tudo aquilo que ela era, tudo aquilo ia sendo engolido por um destino insensível.
Até hoje eu me pergunto se o que carrego é um coração ou uma ausência insistente.
Minha vó senta no sofá e passa longas horas olhando para a televisão, penso se ela tenta
assim, enganar o futuro, se ela acha que tão quietinha, ele vai finalmente deixá-la em paz
e ela poderá ficar onde está, mesmo que já nem saiba mais o que seja isso. Minha vó se
esconde, sempre quis vê-la sair ali de dentro do que parece ser ela. Ninguém pode ser só
isso, só esse silêncio todo. Vó, quando você morrer, eu vou abrir seu peito para saber o
que a gente tem dentro. Às seis horas da tarde, ela sai para o culto, não concordo com o
que aquele cara de terno e gravata diz, mas ele é o único para quem ela chora, é o único
que a vê saindo, mesmo que bem baixinho. Eu me pergunto para quem ela reza, se deseja
mesmo ir para esse lugar que os pastores falam, será que a morte não a assusta ao ponto
dela preferir ficar engasgada no tempo? Vó, pessoas sem coração entram no céu? Porque
eu prefiro ficar aqui ou ir voltando. E se a gente descobrisse o rumo de casa? Vó, eu não
quero que esse Deus venha buscar minha alma, se ela é minha mesmo, vou segurá-la bem
forte: ninguém vai nos tirar mais nada! Minha vó não diz nenhuma palavra e algo em
mim aperta. Ela calmamente me olha, quase que sumindo do que eu chamo de presente,
de matéria nítida, e paira em cima do que passou, mas não foi embora. O silêncio é um
grande chão que se abre e não tem nada segurando. Por que eu me sinto sufocada? Se
eu pudesse escrever sobre mim, descreveria-me como a menina que pisava em ovos.
Talvez se tivessem me falado que esse mundo também era meu, eu sentiria mais firmeza
ao pisá-lo. Minha vó nunca foi colo, terra demarcada, nasceu com o coração espalhado na
água coberto por toda a dureza que tem nessa terra, mas ela sabe que em algum lugar
ele toca e põem-se bem quieta a escutá-lo... Minha vó é mina d’água.
Allini Paulini
Allini Paulini é Pernambucana, formada e
Bibliotecária (UFPE) | 2012). Especialista em
Educação Especial e Inclusiva (UNINTER) |
2019). Aprovada no Mestrado em CI (UFPB |
2022), escritora, cordelista, poeta e ativista
Carla Montanha
dos direitos das mulheres na cultura
popular. Instagram: @cordelar Carla Montanha, 24 anos, Pernambucana,
nascida no Município de Garanhuns. É
Poeta, Produtora Cultural, Atriz e Pedagoga
pela Universidade Federal do Agreste de
Pernambuco (UFAPE). Está envolvida na
produção de projetos voltados pra poesia,
audiovisual, artes digitais, fotografia e
teatro. É uma das Poetisas, da Antologia
Internacional ‘’Mulheres Poetas’’, lançada
em 29 de maio de 2021, pela editora Mente
Ana Cristina Marinho Lucio Aberta, disponível na Amazon. Foi uma das
Professora do Departamento de Letras 4 mulheres com obras selecionadas, pelo
Clássicas e Vernáculas e do Programa de Pós- II Edital de Publicação do Clube do Cordel,
Graduação em Letras da UFPB. Graduada em divulgado em agosto de 2021. É Poeta,
História (1993) e doutora em Letras (2001) Diretora, e idealizadora, juntamente com
pela UFPB. Desenvolve pesquisas sobre Ewa Jansen desde 2020, com o Projeto
estudos culturais e de gênero, poéticas orais Cultural independente ‘’Vozes e Lentes’’,
e ensino de literatura. Foi vice-presidente da através do Instagram e Youtube, realizando
ABRALIC - Gestão 2012 - 2013, coordenadora uma produção de vídeos foto-poéticos.
do PROEXT - Contos da tradição popular: Atualmente escreve Cordel, poemas livres
edição e acessibilidade (2013), editora da e o que mais sua entranha criativa lhe
Revista Brasileira de Literatura Comparada chamar.
(2012-2013) e coordenadora do Programa
de Pós-Graduação em Letras da UFPB
(2017 - 2021). Hoje coordena o projeto
Francine Maria
A cantora, poetisa, compositora, multi-
instrumentista, escritora cearense Francine
Maria, filha dos professores Aurilene Pessoa
e Francivaldo, começou sua vida artística
aos sete anos de idade (2014), ingressou ao
Cleusa Santo declamar poesias nordestinas e embarcou
Cleusa Santo é cordelista e arte-educadora no mundo da música. Aprendendo acordeon,
no Centro de Referência do Idoso, onde violão, ukulele, teclado violino, bandolim,
orienta o grupo: O Poder do Conto, desde xilofone, sax alto, pandeiro e piano vendo
2008. É formada em letras pela Faculdade vídeos aulas na internet. Participou da Bienal
Sumaré, pós-graduada em contação de do Ceará em Fortaleza nos anos de 2017 e
Israela Rana
Graduanda em Letras - Língua Portuguesa
pela Universidade Federal da Paraíba -
UFPB; Membro do Grupo de Pesquisa em
Antropologia Literária GEAL/CNPq/UFPB;
Membro do Grupo de Pesquisa Christine de
Pizan (CNPq/UFPB); Bolsista da Extensão:
"Mulheres em cena: protagonismo das
mulheres na cultura popular"- 2020/2021
Isis da Penha - 2021/2022 (PROEX-UFPB), vinculado
Poeta cordelista e graduanda em Letras ao Núcleo de Documentação e Pesquisa
Vernáculas pela Universidade Federal de da Cultura Popular (NUPPO); Revisora
Sergipe (UFS), Isis é Membro efetivo do de textos como a redação dissertativa-
Movimento Cultural Via Láctea (MVL/AGL) e argumentativa do ENEM e outros tipos
membro do grupo de estudos “Laboratório textuais na plataforma Imaginie Redação
de Estudos em Texto e Tecnologia” (LETTEC/ Educação; Professora, Monitora e Corretora
UFS) da Universidade Federal de Sergipe. na Assessoria de Redação do ENEM,
Pesquisadora bolsista PIBIC/CNPq/2018- Concursos e Reforço Escolar - Argumentar
PS: Estes versos se inspiram na carta elaborada por diversos órgãos da cultura, das
artes e do ensino da Paraíba, em prol da campanha para aprovação da mestra Penha
Cirandeira na lei Rema/Canhoto da Paraíba. ( #penhanaleicanhoto )