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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

REITOR
Valdiney Veloso Gouveia
VICE-REITORA
Liana Filgueira Albuquerque

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DIRETOR
Rodrigo Freire de Carvalho e Silva
VICE-DIRETOR
Marcelo Sitcovsky Santos Pereira

DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS


CHEFE
Hermano de França Rodrigues
VICE-CHEFE
Amanda Ramalho de Freitas Brito

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS


COORDENADORA
Daniela Maria Segabinazi
VICE-COORDENADORA
Fabiana Ferreira da Costa
Conselho Editorial - Coleção Pós Letras

Alessandra Soares Brandão (UFSC)


Ana Graça Canan (UFRN)
Ana Mafalda Leite (Universidade de Lisboa)
Anco Márcio Tenório Vieira (UFPE)
Anita Martins Rodrigues de Moraes (UFF)
Arnaldo Saraiva (Universidade do Porto)
Brenda Carlos de Andrade (UFRPE)
Gastón A. Alzate (California State University)
Inocência Mata (Universidade de Lisboa)
João Batista Pereira (UFRPE)
José Rodrigues Seabra Filho (USP)
Juliana Luna Freire (UFPB)
Juliana Pasquarelli Perez (USP)
Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne (UFPB)
Maria Nazareth de Lima Arrais (UFCG)
Maurizio Gnerre (Università di Napoli L’orientale)
Maximiliano Torres (UERJ)
Ramayana Lira (UFSC)
Regina Dalcastagnè (UnB)
Saulo Neiva (Université Blaise Pascal - Clermont-Ferrand)
Simone Schmidt (UFSC)
Suzi Frankl Sperber (UNICAMP)
Yuri Jivago Amorim Caribé (UFPE)

E-book financiado com recurso do projeto aprovado PVB13423-2020 no edital de Chamada de Produtividade
PROPESQ/PRPG/UFPB 03/2020)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Deplagne, Luciana Eleonara de Freitas Calado (org.)


D421 Mulheres em cena: protagonismo das mulheres na cultura popular / Luciana Eleonora de
Freitas Calado Deplagne (org.), Israela Rana Araújo Lacerda (org.), Yasmin de Andrade Lacerda (org.). –
João Pessoa: Editora CCTA / DigitalPub, 2022.
140p. : il. color.

E-book – Universidade Federal da Paraíba. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas.


Programa de Pós-graduação em Letras.
ISBN 978-65-992634-8-4 (e-book)

1. Cultura popular. 2. Mulher. 3. Cantos populares – cantos folclóricos. 4. Festas folclóricas.


I. Título.

CDU 398:396

Ficha catalográfica elaborado pelo Sistema Integrado da DigitalPub


Bibliotecário: Tirza Egito Rocha de Souza – CRB–15/ 0607
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................ 6

Mulheres em cena: resistência, empoderamento e decolonialidade ......................... 6


Israela Rana, Luciana Calado Deplagne, Yasmin Andrade

PARTE I - METODOLOGIAS E PRÁTICAS DECOLONIAIS SOBRE


MULHERES DA CULTURA POPULAR ............................................. 11
Registros e memórias de mulheres da cultura popular no Acervo Ayala (Mulheres
memoráveis em prosa e verso) ...................................................................................... 12
Maria Ignez Novais Ayala

Mulheres de repente: versos e vozes transgredindo o improviso ............................. 47


Laércio Queiroz

Cidades da Jurema e lugares de escuta: por uma metodologia feminista decolonial .... 76
Maria Gomes de Medeiros, Ana Cristina Marinho

PARTE II - SELETA MULHERES EM CENA: FOLHETO,


CONTO E XILOGRAVURA ............................................................ 89
Quão breve és tu, vida .................................................................................................... 90
Allini Paulini

Diga não ao machismo .................................................................................................... 93


Carla Montanha

Chegança .......................................................................................................................... 96
Catarina Calungueira

O velho do mar .................................................................................................................. 98


Cleusa Santo

Orgulho Nordestino ......................................................................................................... 99


Francine Maria
(Re)existência: viver em estado de poesia ................................................................. 100
Isis da Penha

O projeto Mulheres em Cena ....................................................................................... 103


Israela Rana

Nós ................................................................................................................................... 108


Júlia Juazeira

Vida e Arte ....................................................................................................................... 109


Maria Aparecida do Nascimento Silva

Essência e limites ........................................................................................................... 111


Maria Aparecida do Nascimento Silva

Força Negra .................................................................................................................... 112


Maria Aparecida do Nascimento Silva

Das nascentes ................................................................................................................ 115


Natália Honorato

Minha vó é mina d’água ............................................................................................... 116


Natália Honorato

Xilogravuras ................................................................................................................... 117


Nireuda Longobardi

AUTORAS, AUTORES E AUTORXS ............................................... 120

EQUIPE DO PROJETO DE EXTENSÃO MULHERES EM CENA:


PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR ....... 128

UMA HOMENAGEM ................................................................... 136


Salve, Penha, exímia cirandeira tecelã da cultura popular ..................................... 137
Alder Júlio Ferreira Calado
APRESENTAÇÃO
Mulheres em cena: resistência,
empoderamento e decolonialidade
Luciana Calado Deplagne
Israela Rana
Yasmin Andrade

Sou Auritha Tabajara,


Nascida longe da praia,
Fascinada pela rima
E melodia da jandaia,
No Ceará foi festa,
Meu leito foi a floresta,
Nas folhas de samambaia.

Os versos acima transcritos introduziram a fala/performance da cordelista cearense


da etnia Tabajara, Auritha Tabajara, na palestra de abertura do “I Colóquio internacional
Cultura popular e autoria feminina”, promovido pelo Projeto de Extensão Mulheres em
Cena: protagonismo de mulheres na cultura popular, em agosto de 2021. A escolha da
palestra de abertura diz muito da proposta do evento e da proposta do projeto de extensão,
que tem como principal objetivo divulgar a produção de mulheres atuantes nas várias
modalidades da cultura popular, valorizando igualmente a pluralidade do ser “mulher”.
Ao longo dos três anos de atuação do projeto, participaram de minicurso, palestras e
exposições - seja presencialmente no NUPPO (Núcleo de Pesquisa e Documentação da
Cultura Popular), seja de forma virtual - mulheres nordestinas, indígenas, lésbicas, trans,
quilombolas, educadoras, que generosamente apresentaram sua arte, suas pesquisas
na área da cultura popular: xilogravura, cerâmica, cordel, repente, contação de história,
romanceiro, coco de roda, ciranda, espiritualidades de matrizes afro-ameríndias.
Baseadas em práticas decoloniais e feministas, as ações do projeto foram pensadas
com o intuito de aproximar das escolas, das universidades e da sociedade, em geral,
reflexões acerca da pluralidade de gêneros da cultura popular, bem como um conhecimento
maior acerca do lugar das mulheres artistas promotoras da cultura popular na atualidade
e ao longo dos tempos. O foco do projeto, portanto, centrou-se na divulgação em escolas, em
centros de cultura e no próprio ambiente universitário, escrituras, vozes, performances
das culturas populares tradicionais produzidas por mulheres. Ao passo que buscamos
questionar a misoginia dos espaços escolares, das grades curriculares, do cânone literário,

6 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


procuramos igualmente levar às escolas um outro entendimento de cultura popular,
relacionado à ideia de sistema dinâmico, que através da movência, se reinventa e acompanha
a mentalidade de cada época, sem desaparecer, nem perder suas pecularidades. Como
aponta Ayala (1981, p.20):

As práticas culturais populares, na verdade, se modificam, juntamente


com o contexto social em que estão inseridas, sem que isso implique
necessariamente sua extinção. Apesar disso, muitos estudiosos, até hoje,
continuam acreditando em seu iminente desaparecimento.

Nesse sentido, acreditamos na importância de recuperar o percurso histórico da


inserção das mulheres cordelistas, repentistas no campo de produção, edição, publicação e
divulgação no Brasil. Como sabemos, a historiografia sobre literatura de cordel e literatura
oral, xilogravura e arte popular, em geral, bem como antologias, feiras e festivais de cultura
popular, promovem um lugar central à produção de autoria masculina em detrimento
da feminina, fator que constrói uma falsa ideia de inexistência ou de uma produção
insignificante de mulheres nesse meio. A misoginia presente nesses espaços, inclusive
nos escolares, traz graves consequências sociais na percepção valorativa entre sujeitos
masculinos e femininos, proporcionando relações hierárquicas de gênero, ao excluir as
marcas da produção feminina da memória cultural do país. Trazer à tona a problemática
de gênero na discussão sobre literatura popular enquanto manifestação não apenas da
memória de um povo, mas principalmente de formação da identidade e do pertencimento
social, é algo que se faz urgente para a mudança de mentalidade da nossa sociedade em
relação à produção e atuação das mulheres no contexto da cultura popular.
O conhecimento sobre as pioneiras cordelistas e repentistas, como Maria das Neves
Batista Pimentel, que usava o pseudônimo de Altino Alagoana, nos anos 30 do século XX, e
Chica Barrosa, repentista reconhecida na Paraíba, ainda no século XIX, é fundamental para
recuperar o “matrimônio” (Lemaire: 2018a, 2018b, 2020) da cultura popular no Brasil, ou
seja, o legado das mulheres no campo da cultura popular. Igualmente urgente é destacar
a intensa produção feminina na atualidade, os espaços alcançados em cada campo da
cultura popular, e identificar as novas temáticas que estão norteando o interesse das
cordelistas e repentistas nos últimos anos.
Em três anos de atuação do projeto, algumas mudanças já são possíveis de serem
constatadas no próprio espaço do NUPPO, situado no prédio da reitoria da UFPB: um maior
número de cordéis produzidos por mulheres, a aquisição de xilogravuras produzidas por
mulheres(antes inexistentes), a participação de xilogravadoras, como Márcia Carvalho e Rose
Catão; contadoras de história, como Emilie Andrade; mestras do coco de roda e da ciranda,
como Penha Cirandeira, em eventos promovidos pelo NUPPO, dentro e fora da Universidade.
Nesses últimos dois anos em que estivemos vivenciando a pandemia da COVID-19,
as ações promovidas pelo projeto Mulheres em cena aconteceram de forma virtual,
através do canal do youtube e do instagram. Porém, demos continuidade à divulgação do

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 7


protagonismo do sujeito feminino na cultura popular, buscando identificar as divergências
de temáticas e de perspectivas nos cordéis, cantorias, xilogravuras, cerâmicas de autoria
feminina em relação aos de autoria masculina.
Neste mesmo período observou-se uma efervescência de lives, mesas-redondas,
entrevistas e eventos em torno da temática de gênero, sobretudo após a polêmica virtual
desencadeada no Terceiro Encontro Paraibano de Cordelistas, em 2020. A fala da cordelista
Izabel Nascimento, pedagoga, poeta, presidente e fundadora da Academia Sergipana
de Cordel, acerca do machismo ainda existente no meio mais tradicionalista do cordel,
provocou reações de uma parte de ouvintes, descordantes da opinião da palestrante. O
fato obteve grande repercussão sobretudo pela reação de vários coletivos, escritoras,
cordelistas, agentes culturais que, em apoio a Izabel Nascimento, criaram o movimento
#cordelsemmachismo. Uma das vozes apoiadoras do movimento foi a de Julie Oliveira,
cordelista e fundadora do coletivo e selo editorial Cordel de Mulher e da Ganesha Edições.
A editora vem se destacando nos últimos anos pela atuação no incentivo e divulgação da
produção de mulheres. Grandes nomes da cena atual do cordel e da xilogravura, como
Daniela Bento, Nireuda Longobardi, Ísis da Penha, Paola Tôrres, já publicaram pela editora.
No mesmo ano em que surgiu o movimento Cordel sem machismo, tomou posse na
Academia Brasileira de Literatura de Cordel (ABLC) a cordelista Paola Tôrres, a primeira
mulher a ocupar o cargo.
Também em 2020, um outro movimento se formou em prol do reconhecimento e da
volta aos palcos da mestra do coco e da ciranda, Penha Cirandeira. O movimento, formado
por grupos de cultura popular como o coletivo Olho do tempo, o Grupo de Estudos Coco
de Roda Acauã, o Coletivo Jaraguá, a coordenação do Núcleo de Pesquisa e Documentação
da Cultura Popular, além de pesquisadores, jornalistas, artistas, professores e estudantes
promoveram uma série de ações a fim de divulgar a arte de Penha Cirandeira e mobilizar a
sociedade no sentido de transformar a realidade precária da artista, dando-lhe dignidade.
Os frutos desses dois anos de mobilização chegaram hoje, neste 22 de março de 2022,
dia em que a comissão julgadora do edital Lei Canhoto da Paraíba votou favorável ao
reconhecimento de Penha, como mestra da cultura popular, garantindo-lhe mensalmente
um valor necessário para que a mestra sobreviva de sua arte. A história de vida de Penha
foi escrita em cordel pelo educador popular Alder Júlio Calado. A homenagem em verso
encontra-se no final do e-book.
Vê-se, portanto, que nesse cenário triste de pandemia, medos, incertezas, face à
incompetência política, ao aumento das desigualdades sociais, aumento de casos de
violência doméstica, de violência policial, de racismo, de ecocídio, de LGBTQIA+fobia e
feminicídios, intensificaram-se também as articulações feministas, as redes sociais e
de apoio às minorias sociais mais vulneráveis , prestando-lhes solidariedade e dando
visibilidade às suas produções e atuações culturais. As discussões feministas no âmbito
da cultura popular nunca estiveram tão em evidência. E esse caminho não tem volta!
Citando os versos de Daniela Bento(2019: p.14): “O feminismo é a vacina/que o mundo
tem que usar”.

8 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Este e-book, que ora apresentamos, é o registro de algumas discussões e exposições
artísticas apresentadas no Minicurso “Cultura popular e autoria feminina” e no “I Colóquio
Internacional Mulheres da Cultura Popular”, nos anos de 2021 e 2022. A motivação primeira
dos eventos foi contribuir para mudanças na percepção da produção da cultura popular
no Brasil, buscando desviar o interesse predominante das pesquisas na área - a mulher
como alvo das representações masculinas, em uma cultura enraizada de valores religiosos
e tradicionais – a fim de incentivar mais pesquisas sobre a produção de autoria feminina
e sobre o protagonismo das mulheres, em ruptura com a proposta estagnante de uma
cultura única, centrada na figura masculina.
A diversidade de vozes de mulheres contribuiu para um debate enriquecedor e de
afeto. No último evento, por exemplo, abrimos as discussões com a cordelista indígena
Auritha Tabajara, como mencionado, e encerramos com a pesquisadora holandesa Ria
Lemaire, da Université de Poitiers, na França, em companhia das “Trovadoras itinerantes”,
Josy Correia e Luciana Costa, residentes em Portugal. Mulheres pesquisadoras, editoras,
contadoras de história, escritoras, produtoras culturais, xilogravadoras parceiras em prol
do empoderamento feminino e em busca de um mundo mais humano e justo.
O livro está dividido em duas partes. A primeira intitula-se Metodologias e práticas
decoloniais sobre mulheres da Cultura Popular. O texto de abertura, intitulado Registros
e memórias de mulheres da cultura popular no Acervo Ayala (Mulheres memoráveis
em prosa e verso), é de autoria de Maria Inez Ayala, uma das maiores pesquisadoras
da Cultura Popular no Brasil e ex-coordenadora do NUPPO. Neste texto, a pesquisadora
apresenta um rico material memorialistico e fotográfico, que está disponível no acervo
Ayala, fruto de mais de 40 anos de pesquisas sobre diversas manifestações culturais, sob
a sua coordenação, em parceria com Marcos Ayala e pesquisadores do Laboratório de
Estudos da Oralidade. Além de apresentar os pressupostos teórico-metodológico que
moldaram a maneira de fazer pesquisa no Laboratório, a pesquisadora compartilha suas
memórias de mulheres que atuavam nos anos 70 e 80 em diversas expressões populares
- festas do Divino, nas Congadas de Mogi das Cruzes, nos festivais do repente, nas rodas
de samba, no coco de roda e ciranda - ora em destaque, ora nos bastidores das festas.
Mulheres de repentes: versos e vozes transgredindo o improviso é o título do
segundo título, escrito por Laércio Queiroz. Trata-se de uma pesquisa que vem sendo
realizada pelo pesquisador há décadas sobre as mulheres no ambiente do improviso, nos
estados de Pernambuco e da Paraíba, sobretudo. Queiroz expõe um pouco da produção
das violeiras repentistas, além de apontar a desigualdade com que são tratadas. Para
a realização do trabalho, o autor recorreu tanto a uma importante coleta bibliográfica,
quanto à pesquisa de campo, a fim de registrar depoimentos de mulheres repentistas e
analisar os seus versos de improviso, nas variadas modalidades da cantoria.
O terceiro capítulo, intitulado Cidade da jurema e lugares da escuta: por uma
metodologia feminista decolonial, escrito pelas pesquisadoras Ana Marinho e Maria
Medeiros, expõe uma inovadora metodologia decolonial, a partir da contribuição de
feministas negras brasileiras acerca das epistemologias e produções de conhecimento

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 9


oriundas das experiências e vivências de amefricanidades (Gonzalez). As práticas
pedagógicas baseadas no feminismo decolonial acrescentam ao trabalho de campo uma
perspectiva crítica que possibilita construir “ferramentas eficazes contra a perpetuação dos
modos de dominação que se utilizam da destruição da experiência cultural e subjetiva de
contingentes significativos da população brasileira”. O resultado da pesquisa “Cartografias
das culturas populares: histórias de vida de mestras de religiões afro-ameríndias
(2018-2021)”1 corresponde a uma importante contribuição das pesquisas sobre os saberes
e narrativas de mulheres juremeiras desenvolvidas na linha de pesquisa Estudos decoloniais
e feministas do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB.
A segunda parte do livro é dedicada à arte das mulheres cordelistas e xilogravadoras que
participaram como protagonistas das ações do projeto Mulheres em cena, compartilhando
seus saberes e performances durante os dois anos de pandemia, através de exposições,
palestras, minicursos, entrevistas. Trata-se de uma seleção feminista, intitulada Seleta
Mulheres em Cena: folheto, conto e xilogravura, onde se encontram reunidos trabalhos
de 11 mulheres produtoras da cultura popular, sendo 12 folhetos de cordel, 1 conto
popular e 3 xilogravuras.
Que este trabalho possa inspirar vários outros projetos e publicações empenhados
na divulgação e valorização da produção de mulheres na Cultura popular!

Referências

AYALA, Maria Ignez Novais; AYALA, Marcos. Cultura Popular no Brasil. São Paulo: Ática, 1981.

AYALA, Maria Ignez Novais Ayala; AYALA, Marcos. Metodologia para a pesquisa das culturas
populares: uma experiência vivenciada. Crato: Edson Soares Martins Ed., 2015.

BENTO, Daniela. Machismo. O que precisa mudar. Poço Redondo/SE, Angola comunicação,
2019.

LEMAIRE, Ria. Patrimônio e Matrimônio I: proposta para uma nova historiografia da cultura
ocidental. Educar em Revista, n. 70, p. 17-33, 2018.

LEMAIRE, Ria. Patrimônio e Matrimônio II: Repensar a historiografia das literaturas


nacionais. Revista de Estudos Linguísticos e Literários, Salvador, n. 59, p. 54-72, 2018.

LEMAIRE, Ria. Patrimônio e Matrimônio III: Arqueologia e reinvenção do saber matrimonial.


Revista Graphos, 2020. v. 22 n. 3 (2020): Idade Média: Múltiplas Perspectivas, p.12-39.

1 Projeto de pesquisa desenvolvido com alunas do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em


Letras da UFPB, coordenado por Ana Cristina Marinho.

10 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


PARTE I

METODOLOGIAS E PRÁTICAS
DECOLONIAIS SOBRE MULHERES DA
CULTURA POPULAR

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 11


Registros e memórias de mulheres da cultura
popular no Acervo Ayala (Mulheres memoráveis em
prosa e verso)
Maria Ignez Novais Ayala

“Chegar em uma certa idade é algo vitorioso, mas é também ficar órfão.
Órfão de amigos da infância, de colegas do ginásio, colegial, do curso
de teatro, do inglês, órfão de lugares que você frequentou, órfão de um
mundo e de uma geração inteira que você viu e que não existe mais. Eu sou
uma mulher órfã de quase tudo isso e ainda da minha saudosa mãezinha
e do meu amado pai. Essa é a lei da vida e ninguém disse que o paraíso
era aqui”, reflete a atriz. Ela perdeu a mãe e o irmão para a covid-19. “Não
estou falando de saudosismo e nem deixando de encarar o novo – sou
uma mulher moderna, tá? –, as evoluções, o século XXI”, reforça. “Saúdo
a praticidade, a tecnologia e praticidade, a tecnologia e tudo de novo e
melhor que a vida nos apresenta. Estou apenas me referindo ao que a
vida já me entregou um dia, e que simplesmente, do nada, em um piscar
de olhos e um passar do tempo, essas coisas físicas desapareceram para
sempre”. (Zezé Mota, 14/08/2021) Disponível em https://tvefamosos.uol.
com.br/noticias/redacao/2021/08/14/zeze-motta-chegar-em-certa-idade-
e-vitorioso-mas-e-tambem-ficar-orfao.htm?cmpid=copiaecola Último
acesso em 15 de agosto de 2021

Encadeiam-se diferentes situações de afetividade presenciadas sempre que relembro


situações de pesquisa de campo. Aos poucos, com o passar do tempo, a lembrança
constante vai e volta, trazendo não só novos significados às diferentes formas de expressão
tradicionais estudadas, mas a reiteração de quão importante é saber ouvir o que nos dizem
nossos interlocutores. Ter aprendido a observar, a ver, a ouvir atentamente permite-me
expor um pouco de minha vivência com artistas populares. Suas falas, suas performances,
suas imagens permanecem, digamos, tatuadas em minha memória e brotam sempre
que sou solicitada a apresentar algo relacionado com a vivência das culturas populares.

A escuta e o diálogo como método

As mulheres memoráveis apresentadas logo mais são pessoas que têm (ou tiveram)
forte presença no cotidiano de suas comunidades e estão (ou estiveram) em cena de forma
singular, com carisma, arrebatando a atenção público e nossa, claro. Sem conversar com
elas, sem vê-las em cena deixaríamos de aprender muita coisa.
O procedimento metodológico no qual a escuta e o diálogo entre pesquisadores e
colaboradores ou colaboradoras, artistas e outras pessoas pertencentes a seu universo

12 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


cultural é adotado por muitos estudiosos, das diferentes áreas de Ciências Humanas e
Sociais. Pesquisadores, de História Oral, como Alessandro Portelli, de Psicologia Social,
como Ecléa Bosi, de Letras e Sociologia, como nós, constroem conhecimento que tem
como principal fonte sujeitos, pessoas, não objetos. Escutar atentamente e estabelecer
um diálogo a partir do que eles têm para contar (e querem contar) é fundamental. Nesse
tipo de pesquisa se lida com memória, experiências vividas, tempo e atuações no presente.
Estas pessoas têm muito a ensinar.
Ecléa Bosi desenvolveu muitos estudos sobre memória e tempo, desenraizamento
cultural, entre outros temas. Em O tempo vivo da memória (2004) encontramos o ensaio
Sugestões para um jovem pesquisador (BOSI, 2004, p.59-67) voltado para aqueles que
se iniciam à pesquisa com idosos. São valiosas suas observações para todos aqueles que
estudam as culturas orais. Vejamos como se refere ao espaço da entrevista:

Se o local da entrevista for a casa do depoente, estaremos mergulhados na


sua atmosfera familiar e beneficiados por sua hospitalidade. (Idem: p. 59)

Ecléa Bosi ressalta a criação de laços afetivos que deve ter uma duração longa:

A entrevista ideal é aquela que permite a formação de laços de amizade;


tenhamos sempre na lembrança que a relação não deveria ser efêmera.
Ela envolve responsabilidade pelo outro e deve durar quanto dura uma
amizade. Da qualidade do vínculo vai depender a qualidade da entrevista.
(Idem, p. 60)

Sobre os vínculos que se estabelecem durante a pesquisa:

O narrador e ouvinte irão participar de uma aventura comum e provarão,


no final, um sentimento de gratidão pelo que ocorreu: o ouvinte, pelo que
aprendeu; o narrador, pelo justo orgulho de ter um passado tão digno de
rememorar quanto o das pessoas ditas importantes. (Idem, p. 61)

Alessandro Portelli, desde o primeiro capítulo de História oral como arte da escuta
(2016) vai refletir sobre várias questões com as quais temos nos deparado, desde o início
dos estudos em dupla e, depois, em grupo, junto com nossos orientandos. Tivemos uma
compreensão semelhante à deste autor ao ressaltar a importância da escuta e do diálogo,
mencionando também a memória, questões também fundamentais para Ecléa Bosi.
Vejamos como Portelli se refere a estas questões:

(...) as fontes orais são utilizadas como o eixo de um outro tipo de trabalho
histórico, no qual questões ligadas à memória, narrativa, subjetividade e
diálogo moldam a própria agenda do historiador. (Portelli, 2016, p. 10)

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 13


Mais adiante afirma Portelli: “A história oral, então, é primordialmente uma arte da
escuta” Exemplifica com uma situação de pesquisa na qual o que disse a entrevistada
mudou o rumo de sua pesquisa. E continua:

Felizmente, eu tinha deixado a fita rodando. Embora pensasse que a


entrevista havia chegado ao fim, sabia que a arte da escuta envolve respeito
– e não se demonstra respeito desligando o gravador. (Idem, p. 11)
A história oral, no entanto, não diz respeito ao evento. Diz respeito ao lugar
e ao significado do evento dentro da vida dos narradores (Idem, p. 12)

A seguir aponta situações relacionadas com o diálogo:


1. A relação entre entrevistados e entrevistadores (diálogo)
2. A relação entre o tempo em que o diálogo acontece e o tempo histórico discutido
na entrevista (memória)
3. A relação entre a esfera pública e a privada, entre autobiografia e história – entre,
digamos, a História e as história
4. A relação entre a oralidade da fonte e a escrita do historiador.

Para Portelli, durante a pesquisa fundamentada na oralidade, se cria uma relação


de confiança, se nota a importância da memória e também se refere à responsabilidade
narrativa:

A história oral oferece acesso à historicidade das vidas privadas - mas, mais
importante ainda, ela nos força a redefinir nossas ações pré-concebidas
sobre a geografia do espaço público e do espaço privado, e da relação
entre eles. (Idem, p. 13)

Memória

A história oral, então, é história dos eventos, história da memória e história


da interpretação dos eventos através da memória. (Idem, p. 18)

Responsabilidade narrativa

Assim como a memória, a própria narrativa também não é um texto fixo e


um depósito de informações, mas sim um processo e uma performance.
Como escreve Walter J. Ong (1982, p. 10-5), a oralidade não gera textos,
mas performances: na oralidade, não estamos lidando com um discurso
finalizado, mas com o discurso em processo (na verdade com o discurso
dialógico em processo). Portanto, quando falamos em história oral
deveríamos pensar mais em termos de verbos do que de substantivos:
rememorar mais do que memória; contar mais do que conto. Dessa maneira,
podemos pensar nas fontes orais como algo que acontece no presente
em vez de apenas um testemunho do passado (Idem, p. 19)

14 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


(...) percebemos que rememorar e contar são, de fato, ações influenciadas
pelo contexto histórico e pelos quadros sociais da memória (Halbwachs,
1963), mas também são filtradas pela responsabilidade individual. (Idem,
p. 20)

Marcos Ayala e eu sempre lembramos a nossos alunos e orientandos que é fundamental


saber ver-ouvir, saber perguntar e saber se deixar conhecer, pois

Acreditamos ser fundamental a confiança que se constrói entre


pesquisador-pesquisado, pois queremos ter colaboradores de pesquisa,
não ‘informantes’. Sabemos que a empatia, a cumplicidade entre os
pesquisadores e seus colaboradores cria vínculos, que ultrapassam de
longe, a duração temporal da pesquisa. (AYALA e AYALA: 2015, p. 125)

Neste e-book, apresentamos os pressupostos teórico-metodológico que moldaram


nosso modo de pesquisar ao longo do tempo. É uma amostra das pesquisas que fiz
individualmente, em dupla com Marcos Ayala e pesquisas coletivas com jovens pesquisadores
do Laboratório de Estudos da Oralidade coordenadas por mim e por Marcos Ayala. Este e
outros estudos, registros sonoros, fotos e vídeos editados estão disponíveis para consulta
no site www.acervoayala.com

As mulheres memoráveis

Para esta exposição, serão postos à reflexão elementos guardados em minha memória,
desde 1972 ou 1973, em registros fotográficos, sonoros de Marcos e meus ou em minhas
anotações em cadernos, cadernetas ou em papel avulso.
Trazemos na memória muitas mulheres, idosas, mais novas, meninas e homens velhos,
moços e meninos com diferentes atuações relacionadas a danças e religiosidade do que
se conhecia como expressões do catolicismo popular nos anos 1970 e 1980 em São Paulo
e eventualmente no Nordeste. De 1978 para cá, morando em João Pessoa, passamos a
acompanhar e a buscar diferentes formas de expressão do Patrimônio Imaterial da Paraíba
e de outros estados do Nordeste.
Algumas destas mulheres se destacavam no cotidiano em suas comunidades em São
Paulo, mas também aparecerão mulheres das culturas populares existentes na Paraíba,
repentistas, cantadoras, dançadoras de coco e ciranda, que, por sua atuação em suas
comunidades ou em palcos, são referências culturais do Patrimônio Imaterial paraibano
e brasileiro.
Três questões direcionam a seleção para nossa conversa:
1. O que fazem as mulheres das culturas populares a ponto de se tornarem
memoráveis para nós, de modo a vir à tona sempre lembranças e recordação?
2. Como elas habitam a minha memória? O que me faz lembrar delas?

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 15


3. Quem são estas mulheres? O que as tornaram memoráveis para mim, para nós?

Os exemplos também estão centrados na escuta, na atmosfera familiar, na hospitalidade,


na liderança, entre outras questões.

Invisibilidade e visibilidade na Festa do Divino de Mogi das Cruzes, SP

Em termos gerais, as mulheres participam das formas de expressão das culturas


populares em situações de invisibilidade ou em cena, isto é, visíveis ou não diante de um
público.
A invisibilidade se dá quando trabalham nos bastidores das festas familiares,
comunitárias ou de cidade, fazendo comida, preparando o espaço da festa. Tive a
oportunidade de conhecer a cozinha da Festa do Divino de 1976, quinto ano de idas anuais
a Mogi das Cruzes, SP para observar os grupos e os vários espaços desta festa. As mulheres
que faziam doces assumiam suas atividades semanas antes da novena e do ponto alto da
Festa do Divino, o sábado conhecido com Entrada dos palmitos, antes do encerramento
no domingo. Embora atuassem nos bastidores da Festa permaneciam invisíveis a todos,
com exceção das comissões deorganização da festa que com elas conviviam.
Muitas outras mulheres permanecem na invisibilidade dos bastidores das cenas. É
o caso de mães, irmãs, esposas e parentes de participantes de grupos de danças; são
elas que fazem as vestimentas, que arrumam e mantêm limpos os trajes. Algumas estão
em cena, ganham visibilidade por levar a bandeira dos grupos de danças religiosas, por
ser princesa ou rainha de congadas. Outras exercem atividades de destaque individual
ou em grupo tocando instrumentos, como mestra ou contramestra. Nas comunidades
a que pertencem, em seus grupos de parentesco e comunitários suas atividades têm a
visibilidade. O público em geral parece ver superficialmente, sem identificar pessoas ou o
grupo. Só a observação em dias festivos não permite perceber a existência de uma rede
de solidariedade que dá suporte para a participação dos grupos de dança populares. Para
começar a conhecer a complexidade das cenas, de atuação cotidiana das mulheres no
espaço privado são fundamentais as conversas.
Creio que no título desta palestra a palavra prosa começa a ganhar um significado. Não
se trata de prosa de ficção, mas de conversa, de comentários ou explicações que ampliam
a percepção inicial dos pesquisadores. Trata-se de outros tipos de prosa: a conversa, os
relatos, história de vida... que se encaixa no que aprendemos com M. Bakhtin: são outros
gêneros de discurso oral.
Quanto aos espaços de atuação, reitero que algumas destas mulheres estão sempre
em cena, seja no espaço cotidiano, seja no espaço da festa, do palco.

16 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Dona Nitinha (Benedita Cardoso)

Quando penso no espaço cotidiano, a casa, me vem à tona a lembrança de Dona


Nitinha, Benedita Cardoso, de Mogi das Cruzes. A família era conhecida como os Fiúza.
Irmã de Dito Fiúza e Luiz Fiúza, dançadores de um dos grupos de Moçambique tradicionais
da cidade, do Mestre Conrado. Eles também eram mestre e contramestre em Dança de
São Gonçalo. Dona Nitinha gostava muito destas danças devocionais populares de que
participavam os irmãos. Morava em uma casa abaixo do nível da rua e nos fundos desta
casa havia a construção de cômodos, ocupados pelos irmãos dançadores, um solteiro,
outro casado, com mulher e filhos.
Aí, neste ambiente de recursos financeiros escassos, sobrava solidariedade. Deste
modo, lembrar de Dona Nitinha é lembrar de algumas das principais lições que aprendi:
ali as pessoas eram solidárias, se ajudavam mutuamente, tanto no dia-a-dia, quanto nos
de festa. Para tudo havia um mutirão.
Seu cotidiano era cheio de estórias, fomos percebendo – vendo e ouvindo. Na sala tinha
dois oratórios. Um com vários santos, outro pequenininho com uma imagem minúscula de
Santo Onofre, com um dedal na frente. Perguntei por que aquele santo estava separado dos
demais e por que tinha um oratório só para ele. Ela disse, sorrindo, meio envergonhada,
que aquele era Santo Onofre, ele não podia ficar com os outros porque os outros davam
uma sova nele, pinguço, sempre aparecia deitado. “Sozinho ele não perturba ninguém”.
O dedal era para pôr “um golinho de pinga pra ele proteger a casa”. Se observarmos as
imagens de Santo Onofre, veremos que em geral têm uma bolinha sob o pedestal, que
as deixa meio pensas, fácil de cair. Depois desta estória entendi por que desta saliência
sob o pedestal deste santo de devoção popular.
Outras estórias das quais sempre lembro é a da Mãe de Ouro, do Corpo Seco e a
do João de Brito, um dos dançadores de São Gonçalo, que sempre acompanhavam seus
irmãos. Tenho anotada em caderneta a de João de Brito. Ela contava que a Mãe de ouro é
uma bola de fogo que cai num lugar. Dizia que aquele que achar onde caiu fica rico, pois
tem ouro lá. Mas tem que cortar um dedo da mão pra conseguir. “Eu não conheço ninguém
que achou”. A estória do Corpo Seco, foi contada como causo, isto é, como acontecimento
extraordinário, fantástico. Estávamos lá na sala, quando chegou um conhecido no portão
de entrada. Ela foi atender e nós, Marcos e eu, ouvimos a conversa. O senhor estava se
queixando das dificuldades, de como tudo estava caro, ela concordou e disse: “Tão dizendo
que está aparecendo um Corpo Seco lá na Praça do Carmo. Se conseguir pegar é levar
pra Aparecida do Norte, que ganha um bom dinheiro”. E riram muito.
De volta à sala ela contou para nós que o Corpo Seco era uma assombração muito
feia. Um morto, que ficou só pele, ossos e o cabelo e unhas não paravam de crescer. Só
uma pessoa muito valente ia conseguir por ele dentro do saco e carregar, nas costas até
Aparecida do Norte. A pé, sem largar nem olhar, acontecesse o que acontecesse.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 17


Eram muito engraçadas as estórias de Dona Nitinha. Era uma brincadeira que fazia rir,
mas do jeito que eram contadas, de um modo sério, só depois de terminada a narrativa
é que se esboçava em seu rosto um sorrisinho matreiro.
Outra história, um causo verdadeiro, como se diz, que Marcos e eu conseguimos
memorizar e, depois, escrevemos na caderneta está disponível no site Acervo Ayala.
Encontra-se no capítulo 7, “O que guardam as antigas cadernetas de campo? (Fragmentos
de uma metodologia em construção), do livro Metodologia para a pesquisa das culturas
populares (2015) subitem Narrativas em cadernetas. Foram incluídos marcadores de
pausa, espanto ou questionamentos e mantive as marcas a oralidade na transcrição do
manuscrito em caderneta. Passemos ao texto:

Mogi das Cruzes, 22/06/1975


Conversa com Dona Benedita (Dona Nitinha, irmã de Luiz e Dito Fiúza)
Sobre sua atuação em rezas disse: “Quando tô no meio sô um sino”.
Durante a conversa foi narrada uma situação jocosa que envolveu João de
Brito, um dos “folgazões de São Gonçalo”, como eram chamados aqueles
que participavam do grupo constituído pelo mestre e contramestre, tipe
e contra(l)to, que faziam as vozes em resposta e os demais dançadores
que iam com o mestre. Passemos à narrativa:
Numa festa de São Gonçalo, em pagamento de uma promessa do compadre
Dito Irmão, que eu fiz aqui em casa, no tempo que minha mãe inda era
viva, havia um galo branco que era um cachorro policial de tão brabo que
era. Pra ir ao banheiro, tinha que ir com um pau.
Na festa, aqui junto da casa, perto de onde era o galinheiro, fizemo um
banco comprido. Encostado nas taquaras do galinheiro tava o João de Brito
com a viola mais outro violeiro e os forgazão. Todos esperando o armoço
que minha tinha prometido. O João de Brito que tava sentado tocando a
viola. O galo branco porque não tinha podido dormir por causa da festa,
não sei como se enveredou por meio das taquaras e meteu o bico bem
na bunda de João de Brito.
O João que tava tocando a viola na hora que o galo bicô ele disse: “Tá cum
fome vai comê mio, tar coisa”. E lá do bar da esquina o povo escutava o
grito do João de Brito.
A hora que foram chama ele pra armoçá, quedê o João de Brito – já tava
lá na Ponte Grande.

Dona Nitinha me ensinou que as estórias fantásticas tidas como lendas e mitos nos
livros de Folclore brasileiro viviam no cotidiano feito estórias embutidas nas conversas
como se fosse realidade, mas difícil de acreditar. O sorrisinho deixava a dúvida ou a certeza
de que era brincadeira.
Aprendi com ela que o tipo de narrativa conhecida como causo, isto é, como caso
ocorrido é lembrado porque o acontecimento era engraçado ou deixou uma pessoa
conhecida em uma condição trágica e cômica ao mesmo tempo. Lembrança que era dela
e se tornou minha, tanto que anotei para não esquecer.

18 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Dona Nitinha é memorável pela solidariedade. Vimos, percebemos ali como uma
pessoa se torna imprescindível para sua família, para os moradores da vizinhança, a ponto
de assumir parte da liderança para solucionar o problema. Tinha um casal com crianças,
mas a mãe morreu e o pai não queria se casar e dar uma madrasta para os filhos. Ela
e várias mulheres combinaram de cuidar das crianças durante o tempo em que ele se
ausentava da casa para trabalhar. Se revezavam para cuidar das crianças. Aprendi que
assim ocorria o que o Plínio Marcos chamava de “mutirão da vida”. Este mutirão da vida,
ou seja, esta solidariedade se encontra em muitas comunidades deste país. Se falta comida,
se juntam e ajudam, “dividem o pão”, os grãos de feijão, os fios de macarrão. Isto não é
linguagem figurada. É a realidade contínua neste país desigual.

As mulheres em performance nos grupos de dança da Festa do Divino


de Mogi das Cruzes

As Congadas de Mogi das Cruzes, em sua maioria, tinham a presença masculina nos
papéis de representação do grupo e como tocadores de instrumentos. Além das que
portavam as bandeiras dos grupos, havia crianças, jovens e senhoras, como rainha e
princesa que participavam do cortejo e faziam coro aos versos cantados. Nos Moçambiques
a presença feminina se limitava a portar a bandeira do grupo. A partir de meados dos 1980
começaram a surgir cada vez mais moças e senhoras entre os dançadores, com o manejo
elaborado de bastões, em coreografia complexa desta dança. Passaram a receber elogios
dos mestres. Nas Congadas as mulheres também tocam instrumentos de percussão e
chegam a assumir até a chefia de um dos grupos. Como em outros grupos tradicionais
brasileiros as mulheres foram conquistando espaços antes ocupados apenas por homens.

As matriarcas da Vila das Palmeiras do samba-lenço e do batuque


paulista

Estas senhoras habitam minha memória e de Marcos de diferentes maneiras. Com


elas aprendemos a força da mulher na reza cantada, nos versos dos sambas, a consciência
da ancestralidade africana e baiana, que lhes deu vários saberes religiosos e poéticos.
Tinham uma dignidade e a postura de quem tem várias responsabilidades. Aprendemos
com elas, sambadeiras, o que é assumir lugar de destaque no espaço invisível para nós do
cotidiano, da devoção, dos grupos de dança em festas de comunidade e em apresentações
públicas. No site www.acervoayala.com Marcos Ayala disponibilizou sua dissertação para
consulta e download gratuito. (Ver os links referentes ao samba-lenço e batuques em
Referências Bibliográficas e Links)

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 19


As mulheres repentistas

Apresentei minhas primeiras reflexões sobre as mulheres repentistas no I Encontro


Nacional sobre a Presença da Mulher na Literatura, ocorrido em João Pessoa, 20 de outubro
de 1987, uma Comunicação com o título Entre o lar e a viola (agruras da mulher repentista).
Até aquela data tinha me encontrado com apenas 3 repentistas: Maria da Soledade
[Maria da Soledade Leite], em uma cantoria na área rural de Guarabira, em 11 de outubro
de 1980; Santinha Maurício [Josefa Maria da Silva], entrevistada em 20 de novembro de
1981, quando residia em São Paulo e Terezinha de Jesus [Terezinha Guiomar de Jesus], ex-
repentista, entrevistada em 22 de abril de 1985, que fez diversas cantorias em São Paulo,
entre 1971 e 1973, voltando a cantar por volta de 1984, depois de ficar viúva.
Procurei a repentista Terezinha de Jesus por um bom tempo, para entrevistá-la
enquanto estava traçando a história da cantoria em São Paulo. Sabia que ela cantara nos
bares de cantoria do bairro do Brás e em programas de rádio. Sabia de sua existência
através de entrevistas de cantadores e de notícias em jornal, nas quais apareceu em
fotos, cantando com José Ferreira, cearense, também residente naquela época em São
Paulo. Passaram-se muitos anos até que fui a uma cantoria e ela estava assistindo, como
eu. Através dos versos dos cantadores, que costumeiramente fazem a apresentação dos
presentes em seu auditório, soube que ela estava ali e que voltara a cantar.
Marquei uma entrevista, da qual destaco o seguinte trecho:

De brincadeira... sabe essa casa do Norte tem essa trave de janela. Então,
inclusive esse irmão que mora aqui comigo, nós começávamos a tocar
fazendo da trave da janela a viola. Então ele fazia um verso, eu fazia outro.
Nós rimávamos assim Brasília com Maria. Era uma coisa incrível! Que eu
não sabia, né? Então aí nós começávamos a treinar, nós achávamos que
tava muito bom, bonito, né? Depois Manoel Lourenço é que começou a
pôr na linha. Eu segui. Ele não.

Terezinha de Jesus começou a cantar no Nordeste em 1967 e continuou a atuar na


profissão de 1971 a 1975, quando casou.
Santinha Maurício, pernambucana de Abreu e Lima, começou a cantar com a irmã,
Mocinha Maurício, em 1966, como profissional no Nordeste, entre 1968 e 1978 participou
de congressos de repentistas, apenas como atração especial, nunca competindo. Também
participava de programas de rádio, gravou um disco com um cantador e tem faixa gravada
no LP Nordeste: Cordel, Repente e Viola (1975), trilha sonora do filme antológico da
cineasta Tânia Quaresma. Está em cena neste filme Nordeste: Cordel, Repente e Viola
(1975), disponível no Youtube em https://www.youtube.com/watch?v=cUiWcGvFSoM.
Em situação semelhante à de Terezinha de Jesus, Santinha Maurício interrompeu sua
profissão ao se casar. Em São Paulo assistia às cantorias acompanhada por seu marido
e cantava apenas quando era convidada por repentistas que a reconheciam em meio ao
público.

20 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Maria da Soledade sempre ressalta que criou as três filhas no braço da viola,
enfrentando restrições da família e do marido, até que se separou dele. (Ver link de seu
livro em Referências Bibliográficas e Links)
A vida destas e de outras repentistas de sua geração sempre enfrentou muitas
adversidades, entre elas não serem convidadas para competirem em festivais, nem com
cantador nem com outra violeira; por serem mulheres bonitas e perspicazes a ponto
de fazer os versos obedecendo as normas do repente como os homens, despertavam
nos parceiros de dupla uma espécie de ciúme ou constrangimento caso atraíssem mais
aplausos para seus improvisos. Muitas repentistas, além destas três, comentaram que os
repentistas se incomodavam de cantar com uma mulher violeira e por ela receber, durante
a cantoria, mais aplausos do que ele. Os cantadores mantinham a viola afinada para a voz
masculina. Muitas passaram a preferir cantar com outra repentista, pois a performance
vocal ficava mais agradável.
Nos anos 1990 Maria da Soledade passou a organizar Festivais e Encontros de Mulheres
repentista em Alagoa Grande e em João Pessoa, além de eventos a convite, em que muitas
vezes formava dupla com Minervina Ferreira.
A resiliência destas mulheres repentistas que já eram reconhecidas como profissionais
nos anos 1970 e 1980 continuou sempre e hoje com a Internet reúne-se em pouco tempo
muitos exemplos de performances destas veteranas e de outras mais jovens que foram
surgindo nos vários estados nordestinos e ganharam evidência a ponto de cantadores
organizarem Encontros de Mulheres Repentistas em diferentes cidades de Pernambuco,
Paraíba, Ceará, Piauí.

As mulheres do Coco e Ciranda

Não posso deixar de mencionar as muitas mulheres cantadoras de Coco e Ciranda,


tais quais Dona Joinha (Torre), Dona Teca e sua mãe Dona Domerina (Cabedelo), Odete
de Pilar [Odete Josefa da Conceição Souza] (Pilar), Dona Nina [Avelina Ana da Conceição]
(Várzea Nova, Santa Rita), Dona Lenira [Lenira Lina do Nascimento], e Dona Lenita [Lenita
Lina do Nascimento Santos] e outras mulheres de Gurugi, (Conde), Dona Zezé [Maria
José Gonçalves do Nascimento], Dona Analice [Analice do Nascimento Santos] de Jacumã,
Dona Edite [Edite José da Silva] e outras mulheres de Caiana dos Crioulos (Alagoa Grande),
Vó Mera ( João Pessoa), entre outras da Paraíba e de outros estados nordestinos.
Todas elas deram continuidade à tradição familiar e têm um lugar em cena e na
memória do coco e da ciranda da Paraíba. Antes delas destacavam-se seus pais e hoje as
filhas, filhos, afilhadas, entre outras pessoas.
Quando iniciamos a pesquisa dos cocos em 1992, o coco era uma brincadeira que tinha
visibilidade apenas nos locais onde residiam os dançadores e dançadoras, cantadores e
cantadoras. A maioria dessas mulheres sabia tocar ganzá e bumbo.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 21


O livro Cocos: alegria e devoção (2000; 2015) e o CD com o mesmo título, resultam da
pesquisa coletiva que envolveu mais de duas dezenas de jovens pesquisadores graduandos,
recém graduados e pós-graduandos. A partir daí as pesquisas ganham novas ações para
dar mais visibilidade a cantadores, a cantadores e seus grupos de várias localidades, de
diferentes municípios. Passados quase trinta anos das pesquisas iniciadas em 1992 no
Laboratório de Estudos da Oralidade da Universidade Federal da Paraíba LEO-UFPB),
hoje se conta com uma bibliografia acadêmica expressiva, em várias áreas da Ciências
Humanas, além de registros sonoros e audiovisuais divulgados em CDs, DVDs, em sites
e blogs da Internet, representativos do que ocorre em todos estados do Nordeste. As
mulheres dessas formas de expressão de canto e dança tradicionais do Nordeste, têm
um papel importante como líderes em suas comunidades, como cantadoras, dançadoras;
algumas tocam seus bumbos e ganzás.
As mulheres que conheci foram marcantes pela beleza da voz, dos versos, da delicadeza
da dança, o modo de compor, tocar, tirar ou atirar o coco, de responder na roda, da altivez
com que se põem em cena.
Tive a oportunidade de dar visibilidade a várias delas. Todas elas mostradas em cena,
em fotos, em amostras sonoras são memoráveis. Provavelmente Odete, do município
paraibano de Pilar, conhecida como Dona Odete de Pilar, tome o maior espaço em minhas
memórias, desde que a conheci, em sua casa na Lagoa do Gonçalo, zona rural de Pilar, PB.
O primeiro contato causou grande impacto. Aquela mulher, com aquela voz, contando sua
história, que era filha de um cirandeiro e cantador de coco, que ela acompanhara desde
cedo, cantava versos totalmente diferentes de outros cocos e cirandas que conheci. Com
a morte do pai, os filhos se desfizeram dos instrumentos, pois a falta dele os impedia de
tocar e cantar. Quando a conheci ela não dispunha de um bumbo e sequer uma lata para
bater, para dar o ritmo a suas melodias. Até que me levou, junto com o jovem pesquisador
que me acompanhava, João Balula, a uma sala com uma mesa de fórmica, que tinha
apenas três pernas e estava escorada numa parede. Ali batucou e cantou lindamente.
Anos depois, voltei lá com Marcos Ayala, Rosemeire Gondim, fotógrafa que foi bolsista do
Laboratório de Estudos da Oralidade, e Carlos Sandroni, etnomusicólogo, professor da
UFPE, que fez as primeiras gravações profissionais dos cocos, parte delas divulgada no
CD Cocos: alegria e devoção (2000). Depois disso, sempre com intervalo temporal grande
aparecia por lá e conseguia convencê-la a se apresentar em vários locais, na capital ou
em outros estados, como por exemplo, o SESC do Ceará.
O grupo musical A Barca, de São Paulo, gravou sua voz e imagem, em 2005, na
Lagoa do Gonçalo, em Pilar, PB, convidou-a para participar do show deles e incluiu os
registros sonoros e audiovisuais na caixa Trilha Toada e Tripé, composta por 3 CDs e um
DVD. Nesta documentação do Projeto Turista Aprendiz realizada em 9 estados, além de
Odete de Pilar, aparecem as mulheres de Caiana dos Crioulos, de Alagoa Grande com
destaque a Dona Edite, e a Barca de Mandacaru (João Pessoa), de Mestre Deda. Todos os
registros editados em vídeo e CD estão disponíveis no site http://barca.com.br/acervo/. O

22 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


CD Turista Aprendiz completo eremasterizado está disponível em https://www.youtube.
com/watch?v=Hdj3ICP6vPQ.
Depois disso começaram a aparecer cada vez mais convites ao longo do tempo, a
ponto de ser uma das principais referências do coco e ciranda da Paraíba com projeção
nacional. Considero Odete uma artista singular como compositora, como cantadora de
coco e ciranda, tocando seu bumbo em sua performance sedutora. Fiquei muito feliz,
certo dia, em que vi no Youtube um documentário recente sobre ela e perguntaram se ela
lembrava de alguém com relação a sua carreira. Ela mencionou meu nome e o de Marcos
Ayala. É difícil o pesquisador ou pesquisadora saber que está na lembrança de artistas
populares que passaram a fazer parte da história de cada um. Para mim foi um presente
muito precioso saber que também fazemos parte da sua memória afetiva.
Outra pessoa que ajudei a introduzir em apresentações públicas foi Vó Mera,
apresentada a mim em 2001 ou 2002, por Paulo Anchieta F. Cunha, orientando de extensão
de Ana Marinho e, depois, meu orientando de Iniciação Científica. Não dar visibilidade
a estas mulheres de diferentes localidades seria um egoísmo enorme. Acho que os
resultados da pesquisa coletiva dos Cocos, realizada no LEO-UFPB, Laboratório de Estudos
da Oralidade da UFPB têm colaborado bastante para dar visibilidade a diferentes formas
de expressão das culturas populares da Paraíba.

Para concluir

Por que são memoráveis? Por diferentes motivos. Quando vi o coco dançado na
rua do Bairro da Torre, na sexta-feira da Paixão achei incrível. E daquele dia em diante
muitas mulheres e homens que participam de rodas de coco me encantaram e continuam
provocando boas emoções e lembranças. De mulher memorável, Dona Joinha, com seus
passos e presença linda no meio das ruas do Bairro da Torre em 1988, [Ver foto de Dona
Joinha no livro Cocos: alegria e devoção] O coco que ouvi em São Paulo cantado pelas
matriarcas do samba e batuque paulista, em um momento de descanso depois de um
terço de são Pedro, depois gravado na Vila das Palmeiras por Marcos Ayala, e a festa nas
ruas da Torre me levaram a estudar vários grupos da brincadeira dos cocos. No coco
paraibano aparecia um tipo de umbigada diferente do samba e batuque de São Paulo.
Com Dona Zezé, e um dançador de coco de Gurugi encontrei a umbigada, tão sedutora
quanto a dos sambas de São Paulo. [Ver fotos das mulheres do samba-de-umbigada,
tambú ou batuque e rezas cantadas, disponíveis em links do site www.acervoayala.com]
A memória de pesquisadores com muitos anos de leitura, experiência e vivência
da diversidade cultural brasileira aprende a criar pontes que lhes permitem comparar
e procurar exemplos de tempos anteriores e posteriores no sentido de entender
permanências, mudanças abandono, criação e retomada de versos e melodias que podem
estar em uma e outra forma de expressão. A pesquisa de campo adensa a experiência de

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 23


ouvir repertórios registrados em diferentes momentos do século XX e XXI e, sobretudo,
aprende-se a escutar – perguntar – conversar – observar atentamente – anotar e refletir.

Referências

AYALA, M. O samba-lenço de Mauá (Organização e práticas culturais de um grupo de


dança religiosa). Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Orientador Prof. Dr. Gabriel Cohn. Disponível em https://www.acervoayala.com/acervo/o-
samba-lenco-de-maua/ Último acesso em 30 de novembro de 2021.

AYALA, M.I.N. e AYALA, M. Metodologia para a pesquisa das culturas populares: uma
experiência vivenciada. Crato: Edson Soares Martins, 2015. Disponível em https://www.
acervoayala.com/acervo/metodologia_para_pesquisa_das_culturas_populares/ Último
acesso em 30 de novembro de 2021.

BOSI, E. O tempo vivo da memória; ensaios de Psicologia Social. 2.ed. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2004.

LEITE, Maria da Soledade Leite. Nossa história em poesia (poemas reunidos). Apresentação,
seleção e organização de textos Maria Ignez Novais Ayala e Josélio Paulo Macário de
Oliveira. Crato: Edson Soares Martins: 2016. Disponível em https://www.acervoayala.
com/acervo/nossa-historia-em-poesia-publicacao-digital-gratuita/ Último acesso em 30
de novembro de 2021.

PORTELLI, A. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2016.

Anexos

Links Externos

Acervo Ayala
https://www.acervoayala.com/

A Barca Acervo
http://barca.com.br/acervo/

24 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Livro Cocos: alegria e devoção
https://www.acervoayala.com/acervo/colecao-cocos-1992-2000/livro-cocos-alegria-e-
devocao/

CD Cocos: alegria e devoção


https://www.acervoayala.com/audios/cd-cocos-alegria-e-devocao/

Mulheres do coco de Gurugi


https://www.acervoayala.com/acervo/galeria-de-imagens-do-coco-de-gurugi/

Transcrição de festa de São Benedito na Casa de Dona Guilhermina – Vila das Palmeiras,
São Paulo, 14/05/1977; rezas cantada - cantochão; transcrição e áudio; fita número 58
https://www.acervoayala.com/acervo/colecao-1972-1995/series-tematicas-
colecao-1972-1995/formas-de-expressao/fita-58-transcricao-e-audio/

Transcrição de festa de São Benedito; batuque na casa de Seu Ageu, Barueri,


21/05/1977; transcrição e áudio; fita número 59
https://www.acervoayala.com/acervo/colecao-1972-1995/series-tematicas-
colecao-1972-1995/celebracoes/celebracoes-sp/fita-59-transcricao-e-audio/

Vídeo Hoje tem mulher no repente


https://www.acervoayala.com/acervo/video-hoje-tem-mulher-no-repente/

Registros fotográficos

Mulheres do Samba e Batuque


Samba Lenço de Mauá

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 25


26 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR
MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 27
28 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR
Grupos de Batuque ou Samba de Umbigada
Batuque em Festa do Divino de Piracicaba 1976

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 29


30 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR
MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 31
Cocos e Cirandas da Paraíba (1992-2014)
Coco da Sexta-feira Santa
1988
Bairro da Torre
(o encontro com a brincadeira)
Dona Joinha

32 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Coco de Sant’Ana – Gurugi 1992 ou 1993
Dona Zezé, de Jacumã

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 33


Mulheres Memoráveis dos Cocos e Ciranda
Dona Teca e Mestre Benedito em Cabedelo – 1992

Dona Nina – Várzea Nova

Dona Domerina, mãe de Mestra Teca, Cabedelo 1998 e Filhas de Mestra Teca, janeiro 1999

34 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Odete de Pilar

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 35


Dona Nina – Várzea Nova

36 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Mulheres do Coco de Roda Novo Quilombo – Gurugi– 1997 e 1999

Festa do Divino de Mogi das Cruzes(1972 a 1978 e 1995)

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 37


38 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR
MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 39
40 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR
Grupos de danças na Festa do Divino de Mogi das Cruzes, SP
Grupos de Moçambique / Grupos de Congada

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 41


42 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR
MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 43
44 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR
1978 - Marujada (Mestre Dico, Mestre Zé Baiano e outros) e Moçambique (Mestre Conrado
Majurada

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 45


1995 – Congada e Moçambique
Presença de mulheres como tocadoras de instrumentos, dançadoras, além de carregar a
bandeira

46 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Mulheres de repente: versos e vozes transgredindo
o improviso
Laércio Queiroz

Dentre as modalidades poéticas, o improviso desperta maior alumbramento, pois a


complexidade, durante a criação dos versos, segue regras rígidas que apenas a destreza
e a aparição dos artesãos da linguagem, no ambiente do improviso, serão capazes de
consolidar.
Versos e quadras sempre estiveram presentes em contextos vários: Qual criatura,
em momento de infida paixão, não se sentiu tentado a se aventurar na produção de um
poema ou mesmo um verso capaz de exprimir o sentimento? Muitos, com maestria ou
não, conseguiram. Entretanto, poucos se atreveram ou capazes foram de criar, no instante
impreciso, poemas decassílabos, sextilhas ou qualquer metrificação improvisada.
Se nos causa perplexidade o talento com que os poetas esgrimam seus versos,
intrigante é confirmar que, apenas há alguns anos, a presença feminina, nestes campos,
tem se efetivado e, não sem esforços, se consolidado.
A presença da mulher é recorrente na literatura popular, um vasto continente de
personagens femininas desfila pelas trovas, contudo por muito tempo, quase não se teve
notícias da mulher produtora desta modalidade artística.
Novidade não é que o mundo das mulheres foi, tradicionalmente, um universo
doméstico, e as qualidades atribuídas a elas, como honestidade, beleza, virtudes, foram
quase sempre cantadas sob a voz masculina. Esses estereótipos femininos são descritos
na literatura com um caráter pedagógico, ditando normas de conduta que devem ser
adotadas por elas.
Durante anos, os sentimentos, as visões do mundo, as aspirações femininas foram
recalcadas. A segregação da mulher e a sua vida em sociedade, no Brasil do séc. XIX, pouco
diferia da situação feminina descrita por historiadores da Idade Média. Infelizmente, até
os dias atuais, ainda podem ser verificadas facetas dessa condição (QUEIROZ, 2006).
A mulher apresenta maior visibilidade apenas no que se refere às práticas utilitárias,
sempre associadas ao espaço doméstico. Por esta razão, não podemos nos admirar por
ainda serem poucas as mulheres a ocuparem papéis de destaque no espaço público,
desde o universo das artes até, por exemplo, o campo jurídico, o legislativo e o executivo.
Sabe-se, por exemplo, que a região do Pajeú, no sertão pernambucano, celeiro de
poetas, realiza eventos vários cuja temática é a poesia. As mesas de glosas são espetáculos
festejados por artistas e apreciadores do gênero. Contudo, apenas nos últimos anos,
Dayane Rocha, Elenilda Amaral, Erivoneide Amaral, Francisca Araújo, Milene Augusto e
Thaynnara Queiroz têm conseguido, a duras penas, segundo esta, manter a participação
de mulheres nesses espaços, historicamente, dominados por homens.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 47


Disse-nos Thaynnara:

“[...] a poesia é um espaço a mais onde a gente convive com isso, a gente
vive numa sociedade feita por homens e para homens. Então, não é o
único espaço onde se convive com isso, é mais um desafio. De perceber,
em vários momentos, a carga desse machismo. Quando a gente não
esperava que fosse vir esse machismo. Ou alguns que já esperávamos. E
há muito a percorrer com o ideal de sociedade igual, não é? Mas isso não
faz a gente parar não, é combustível.”

Em outros ambientes, igualmente, há mulheres que desafiam a ordem vigente. No


universo do folheto, por exemplo, conhece-se a história da poetisa Maria das neves2, que
publicou poemas sob pseudônimo de Altino Alagoano. Embora os motivos da publicação
não tenham sido marcar posição de um discurso feminino, revelam a tentativa de
transgressão que vai de encontro ao convencional.
No Ceará, celeiro onde continuam a aparecer inúmeras poetisas, existem, entre outras,
as vozes engajadas de Alencar Pinheiro, Áurea Brito, Edianne Nobre, Jô Andrade, Maria
Rivaneide e Regilene Stéfanni, todas habitantes da região do Cariri.
Essa expressiva presença não busca ocupar o espaço do outro, porém, e principalmente,
ocupar o seu próprio espaço antes vazio, conforme costuma dizer a poetisa Minervina
Ferreira.
Mesmo conceituados pesquisadores a demanda de elementos para compor suas
vastas antologias, parecem desconhecer a existência de poetisas neste território. Todavia,
uma pesquisa minuciosa encontrará mulheres repentistas desde os primeiros momentos
do surgimento da cantoria.
A que se deve a quase ausência de poetisas repentistas em antologias? Ao total
desconhecimento dos antologistas, à falta de talento das artistas ou à tentativa arbitrária
de tentar apagar indícios de uma produção feminina? Ainda que a existência de mulheres
repentistas esteja comprovada em algumas referências bibliográficas, ainda há muito a
esmiuçar a respeito deste fenômeno para que possamos repensar preconceitos sexistas
existentes.

Alegra-nos que, embora ainda haja muito a desvendar, felizmente, a


existência de mulheres repentistas está comprovada, já há algum tempo,
em algumas obras, e um estudo mais meticuloso encontrará, dentre tantas,
uma certa Maria do Riachão, cabocla jovem e bela que segundo dizem
versava muito melhor que seus cortejadores (LUYTEN, 1981).
Leonardo Mota (2002), em seu Sertão Alegre, fala sobre Rita Medero ou
Rita Mêdera. Segundo ele, a cantadora residiu no Retiro da Boa Esperança,
município de Barras, Estado do Piauí e morreu sexagenária em 1901 ou
1902.

2 Maria das Neves publicava folhetos sob o pseudônimo Altino Alagoano. Ler sobre isso “MENDONÇA, Maristela
Barbosa. Uma voz feminina no mundo do folheto; Brasília: Thesauros, 1993.

48 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Em Vaqueiros e Cantadores, Luís da Câmara Cascudo (1986) escreve sobre Maria Tebana
(Rio Grande do Norte, século XIX) e afirma que ela possuía uma das mais fortes e lindas
vozes de que o Sertão se orgulhava.
De acordo com Wilson (1986), Francisca Maria da Conceição, Francisca Barrósa ou
Chica Barrósa, nasceu em Patos, Estado da Paraíba, e viveu do final do Século XIX e início
do Século XX. Não menos relevante é a existência de Zefinha do Chambocão, repentista
do Estado do Ceará (séc. XIX ).
A cantadora piauiense, Maria Ferreira, falou-nos ainda da lendária Maria Assunção
do Senhor, a Vovô Pangula, falecida no mês de setembro de 1990.
Em Dicionário bio-bibliográfico de repentistas e poetas de bancada, Átila Augusto de
Almeida e José Alves Sobrinho citam as seguintes poetisas: Anita Lopes de Almeida (1932),
de São José do Egito, Corina Torres de Andrade, Josefa Maria Anjos, Maria Benta de Araújo,
natural de Cacimba de dentro, Paraíba, a piauiense Terezinha Rodrigues, Iracema Gomes,
natural de Patos, Alayde Lima, a maranhense Camila Martinzão, Maria José de Oliveira,
Marinêz da Silva, Zaíra Dantas da Silva, Amélia Siriaco.
A poetisa Mocinha de Passira ainda cita Maria das Dores, falecida em 2003, com
quem cantou, por diversas vezes, e de quem tem recordações da destreza no improviso,
habilidade quase sem par, Morena Passarinho e Otília Soares, nascida em 2015, de Campina
Grande na Paraíba.
Santinha Maurício, poetisa que vive no munícipio de Abreu e Lima, citou ainda Lídia
Maria, Bernadete de Oliveira, Estelita José, Elizete Claudino, Maria Sabino, Zeza Barbosa e
Maria de Lurdes, as paraibanas Elza Galdino e Lita Cruz, Maria Lindalva, de Currais Novos,
e a cearense Lurdinha de Oliveira.
Sabe-se da existência de poetas que tentaram representar as vozes femininas, todavia,
mais relevante que a representação da mulher, no universo da cultura popular, é ter a
narrativa por elas mesmas. Aqui, a voz poética não é mais uma representação do discurso
do outro, contudo a voz que durante muito tempo se tentou calar e afinal insurgiu da
terrível clausura.

A cantoria

A cantoria também conhecida como repente é uma forma poético-musical geralmente


improvisada por um(a) ou dois(duas) poetas, como nos desafios entre cantadores(as)
que se revezam na criação dos versos sempre acompanhados(as) da viola, violão ou,
raramente, da rabeca. “Gênero poético musical nordestino [...] que tem sua expressão mais
frequente no canto de uma dupla de repentistas que se acompanha à viola, fazendo versos
de improviso, conforme uma extensa variedade de modalidades poéticas. (TRAVASSOS,
1987, p. 219)”.
Segue regras muito rígidas acompanhada de performance e participação dinâmica
do público que dialoga com o cantador (NOGUEIRA, 2003). Segundo Nogueira (2003),

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 49


Mário de Andrade chamava desafio a qualquer manifestação poética oral improvisada,
integrada numa cantoria ou como parte constitutiva de uma dança dramática ou de outra
manifestação popular.
Como afirma Araújo (2010), o objetivo do cantador é demonstrar habilidade no
discurso rimado, informar e entreter o público presente visando obter prestígio, dinheiro
ou algum outro bem que recompense seu empenho. Tais poetas violeiros(as)

[...] não devem ser confundidos com outras categorias de poetas populares
do Nordeste: escritores de folhetos ou emboladores. Os emboladores ou
coquistas, embora sejam também improvisadores, além de utilizarem
instrumentos de percussão, como o pandeiro e o ganzá, desenvolvem
gêneros poéticos diferentes dos que constituem a cantoria de viola. Os
cantadores de cocos apresentam-se em dupla, como os violeiros, mas
independem de convites para fazer suas disputas poéticas (AYALA, 1988,
p.15).

Os violeiros, geralmente, se apresentam em eventos previamente definidos: residências,


festas, teatros, congressos etc. A prática de versejar em coletivos, feiras e praias é criticada
por violeiros que pertencem ao cânone. Para eles, a ação de se cantar em qualquer
ambiente desvaloriza a arte do repente. Embora isso não tenha desaparecido, apenas
não acontece com todos cantadores. Mas aqueles que não têm tanto espaço de atuação
ainda cantam em ambientes sem serem convidados.

[...] a alternativa de cantar nas praias pedindo dinheiro em troca de


alguns versos [...] foi uma solução encontrada diante de descaminhos de
trajetória profissional de alguns poetas e que acabou instituindo um nicho
profissional especifico. Sozinhos ou em dupla, os cantadores dirigem-se
aos possíveis ouvintes, que a principio não estão naquele ambiente nem
para ouvir cantoria nem para pagar cantador (SAUTCHUK, 2009, p.228-229).

O folheto e a cantoria apresentam pontos de cruzamentos: a estrutura dos versos,


a métrica, e a rima3 são algumas delas. Contudo, embora ambos tenham raízes orais,
o folheto não é produzido de improviso, mas construído previamente para posterior
publicação impressa.
Os repentistas atuam, quase sempre, em dupla, embora existam também aqueles que
trabalham individualmente. Exemplo disso é o cantador Oliveira de Panelas que decidiu
trilhar um caminho solo neste universo. No entanto, como aponta Cascudo (1998, p.349),
“[...] o compasso musical [...] serve de acompanhamento no intervalo entre a pergunta
e a resposta enquanto um dos adversários prepara o verso seguinte.” Assim, ao cantar
sozinho, o poeta terá menos tempo para tecer os versos na mente antes de versificá-los
oralmente, e essa performance dará mais trabalho para que o cantador improvise.

3 Como já existem excessivos trabalhos que tratam dessa questão, não abordarei esse particular. Leia, por
exemplo, AYALA (1988).

50 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Durante a apresentação, o poeta altera o discurso, o tom, a entoação, o timbre de
voz e os gestos, de acordo com a recepção que pressente ou percebe nos presentes
(NOGUEIRA, 2003), pois, como dizem os cantadores, “o público é a chave da cantoria”, é
nele que reside o sentido do jogo poético.

Nas trincheiras ou dialogismo do ofício

Seguindo a mesma trilha, já desbravada por suas antecessoras, espalhadas por


diversos lugares brasileiros, algumas mulheres, a despeito dos preconceitos sexistas,
continuam a subverterem este ambiente machista, aventuram-se pelo campo da arte da
cantoria de improviso e mantém viva esta tradição mnemônica: Minervina Ferreira, Maria
da Soledade, Luzivan Matias, Neuma da Silva, Francisca Maria, da Paraíba; Severina Maria,
Terezinha Maria, Mocinha de Passira, Santinha Maurício, pernambucanas; Luzia dos Anjos,
Lucinha Saraiva, Toinha Brito e Damiana Pereira, do Ceará; Maria Ferreira e Francisca
Onofre, do Piauí; as maranhenses Rosinha Alves e Fabiane Ribeiro, e Rafaela Dantas, do
Rio Grande do Norte, são algumas cantadoras que militam nestas veredas, sempre em
demanda de uma oportunidade para se apresentarem em encontros, participarem de
pés-de-parede ou de qualquer evento onde aconteça a poesia improvisada.
Em congressos de cantadores, mesmo na contemporaneidade, a participação feminina
restrita ainda é. Não raro, limita-se à mera observação ou apenas à papel coadjuvante,
quase nunca podendo competir livremente em dupla com outro repentista ou com outra
violeira. Sem mencionar a existência de violeiros que se recusam a cantar com mulheres.
Assistimos, certa vez, no Município de Lagoa do Outeiro, em Pernambuco, a uma
cantoria solidária e, na ocasião, cantadoras que não estavam com seus instrumentos
tiveram que contar apenas com a solidariedade de poetisas, visto que os cantadores se
recusaram a emprestar suas violas, alegando que a desafinariam.
Maria Soledade nos contou que

“Nos congressos, a mulher não tem vez. Quando acontece de abrir


espaço, são duas humilhadas no meio daqueles homens todos. Um cachê
insignificante... É raro a mulher participar de congresso de cantadores e
quando aparece, geralmente é uma apresentação como especial. Especial
é sem competir, entendeu? E das mulheres, eu, a Minervina e a Mocinha
de Passira ainda fomos as que fizemos mais apresentações. As outras os
espaços delas ainda é menor que o nosso. ”

Ao falar deste particular, diz, igualmente, Santinha Maurício:

“Eu sinto uma tristeza é porque a gente não tem espaço, os homens são
muito machista, não dão vez a gente, as mulheres, além... Tinham muitas
mulheres no tempo quando eu comecei, mas hoje tem poucas, pois muitas

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 51


casaram e os maridos não deixaram, outras devido às humilhações da
profissão deixaram.”

As cantadoras Maria Ferreira e Francisca Onofre corroboram que:

O espaço da mulher é muito fraco na cantoria. Tem muitos cantadores,


mas eles dizem, alguns deles, não todos não, dizem que mulher não sabe
cantar nada. Só serve para o fogão. Eu tou acostumada a ouvir isso dos
cantadores homens, dos violeiros. Não é dos pequenos não, eu vejo é dos
grandes. Poucos querem ajudar a gente. Quando alguém que conhece diz:
“eu quero que você venha cantar aqui com poetisa fulana...” Eles botam
todo arrodeio pra não levar. Muitos fazem isso, poucos ajudam a gente.”
“A mulher violeira, se não tiver um protetor, é muito difícil vencer, é muito
difícil viver da profissão. [...] A maioria dos violeiros acham que se der
espaço a mulher vai se diminuir, por isso, eles, muitos deles, dificultam o
espaço da mulher.”

A cantadora Lucinha Saraiva também aponta que

“O preconceito contra a mulher não acabou, ainda existe, mesmo hoje que
a mulher já conquistou muitas coisas. Mas mesmo com o preconceito de
alguns homens, nós estamos aqui, seguimos mostrando a nossa arte. “

Uma das vozes mais recentes no universo da cantoria, Fabiane Ribeiro, falou-nos que

“O preconceito existe contra as mulheres. Porque, devido as mulheres


serem poucas na cantoria, o pessoal diz assim: “ah, não, mas mulher não
canta não.” Porque ah, eu nunca vi e tal, essas coisas... Mas, por outro lado,
tem toda receptividade do povo que quando sabe que é uma cantoria com
uma mulher diz: “ah! eu vou lá ver, quero conhecer...”

Como nos ensina Bakhtin (1997), nunca se diz algo pela primeira vez, nosso enunciado
está sempre ordenado pelas palavras de outros, e corresponde às respostas que damos
a enunciados proferidos anteriormente, pois, ao nos posicionarmos, marcamos nosso
espaço.
Nos depoimentos acima, percebe-se que a condição feminina, no território do repente
é ainda adversa, existe muita discriminação contra a mulher que se aventura no território
do improviso.
As palavras das poetisas dialogam com várias mulheres que sofrem ou sofreram
discriminação por ocuparem o espaço em território onde a maioria é masculina. Igualmente
ocorre nos espaços sociais, no ambiente do repentismo, a mulher continua sua jornada
contra a sociedade discriminatória.
Talvez a principal razão de existirem poucas mulheres violeiras repentistas seja fruto,
sobretudo, da falta de oportunidade que se destina às mulheres no universo dessas

52 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


veredas. Essa particularidade também é citada por, praticamente, todas cantadoras. Ao
adentrar no universo da poesia, as mulheres encontram resistência dentro e fora do lar.
É comum, por exemplo, mulheres declinarem da arte por imposição do pai ou do marido,
ou mesmo pela necessidade de cuidar do lar e dos filhos. Sobre isso, há vários relatos.
As cantadoras são conscientes em reivindicar o espaço para as mulheres, importasse
que a mulher tenha uma atuação, representações do gênero se posicionando na sociedade.
Nos depoimentos, o dialogismo se revela. As outras vozes se projetam mesmo de
maneira oculta. “O diálogo recursivo é identificado na ação entre interlocutores, [...]
entre diferentes sujeitos sociais que, em espaços e tempos diversos, tomam a palavra ou
têm a voz representada, ressignificada” (MARCHEZAN, 2010, p.128). Segundo estudos de
Bakhtin (1997), ao falarmos, o objeto do discurso é igual ao de outros falantes. E as vozes
das repentistas se constituem em oposição ao discurso daqueles que defendem que ser
cantadora não é profissão para mulher.
Em confronto ao discurso daqueles que restringem a participação feminina, as vozes
das poetisas problematizam a posição defendida pela família e por muitos cantadores que
negam espaço à mulher repentista. Embora as vozes não sejam visíveis no enunciado,
elas fazem parte dele, pois o depoimento das cantadoras se constrói em oposição a elas.
As narrativas se contrapõem à discriminação que enfrenta as poetisas no mundo do
repente. Ao enfatizar isso, percebe-se que há uma dialogização interna, nas vozes das
entrevistadas, que vai ao encontro de outras poetisas ao denunciar a pouca oportunidade
que é dada a elas. Que todo discurso é heterogêneo já podemos constatar nos cruzamentos
que acontecem nesses depoimentos das artistas. Ao longo das narrativas, vozes se
misturam aos relatos que trata de acasos, circunstâncias e coincidências que se encontram.
Ayala [1988], ao investigar a iniciação de jovens repentistas, percebeu que estes
ampliam seus espaços e passam a participar de congressos que lhe dão maior projeção e,
posteriormente, gravam CD. Para as mulheres, os horizontes não se ampliam na mesma
proporção. Das poetisas, apenas Neuma da Silva, Luzivan Matias, Mocinha de Passira e,
mais recentemente, Fabiane Ribeiro transitam com certa desenvoltura nos espaços da
cantoria. Mocinha, por exemplo, para exercer a profissão, abdicou da vida doméstica.
Pelos discursos das depoentes, embora se observe uma individualidade na maneira de
sentir - pois cada uma é única e, portanto, as vivências e histórias de vida são diferentes nas
relações dialógicas – elas apresentam muitas semelhanças, principalmente, no que tange
às adversidades encontradas no campo do improviso que impedem a projeção feminina.
Inúmeros poetas desfilam pelo universo do repente, novos cantadores continuam
surgindo quase diariamente, porém o mesmo não ocorre com as mulheres, de certo devido
às adversidades enfrentadas. De 2000 até o presente, apenas vimos surgir seis cantadoras
repentistas, entre elas: Marcelane, Rafaela Dantas, Cristiane e Fabiane Ribeiro, esta tem
se projetado bastante, não é difícil encontrar, nas redes sociais, vídeos em desafio com
cantadores ou a cantar canções.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 53


Nos ambientes de improvisos

Até antes da pandemia, nos centros urbanos, o mais comum era mesmo as cantorias
acontecerem nos festivais, e, como afirma Hobsbawn (2008), a tradição tem por base a
ressignificação e adaptação às novas demandas sociais. Nessa modalidade, as duplas
se revezam para improvisarem motes previamente escolhidos por uma comissão que,
durante um tempo limitado, em média vinte minutos, julgará três modalidades poéticas.
O apresentador convida a dupla a comparecer ao palco, e, após a leitura da proposição,
inicia-se a cantoria.
No passado, os desafios eram entre rivais. Mas, na contemporaneidade, eles acontecem,
geralmente, entre parceiros amigos, o que se observa é um duelo de representação. Em
um festival, por exemplo, uma dupla canta em desafio, mas na realidade, duela com as
outras duplas.
Neste momento, a intenção é competitiva e a decisão poderá ser da comissão julgadora
ou, mais raramente, do público presente, como ocorreu em um encontro no Pátio de São
Pedro, na cidade do Recife, em comemoração ao dia Nacional da mulher, no ano de 2010,
quando o primeiro lugar ficou com as cantadoras Minervina Ferreira e Mocinha de Passira.
Além de repentistas, outros artistas podem se apresentar como atração especial:
emboladores de coco, declamadores e, algumas vezes, violeiras. Como registramos acima,
a presença feminina nestes espaços ainda é, proporcionalmente, reduzida.
Preocupada com a pouca projeção da mulher na cantoria, a poetisa e militante Maria
Soledade Leite se ocupa de organizar encontros de violeiras. Para retribuir a gentileza dos
poetas, segundo ela, costuma convidar uma dupla masculina na condição de participação
especial. Festivais, Congressos, Encontros são faces da mesma moeda, independente
do nome, cumprem papel de competição normativa que visa experimentar a habilidade
dos[as] repentistas e, quase sempre, eleger um[a] vencedor[a] do evento.
Todavia, nos eventos por Soledade organizados, não se consagra dupla vencedora,
o objetivo é confraternizassem através da cantoria improvisada e disseminar a poética
feminina.
Os encontros e festivais são importantes para as repentistas, entretanto é nas cantorias
de pé-de-parede que se configura a plenitude do universo do repente. Durante estas
apresentações, as poetisas estão em relação direta com o público numa situação dialógica.
Durante esse contexto, apologistas e admiradores do gênero se reúnem em um espaço
para desfrutar da poética. Na ocasião, apresentam-se uma ou mais duplas em desafios.
Geralmente não existem temas previamente escolhidos, nem tempo determinado para
os cantadores, o que permite que cada um seja livre para versejar o tempo que acreditar
necessário.
Diferente dos congressos, no pé-de-parede, geralmente, não há microfone ou qualquer
instrumento que amplie a voz, o que exige maior esforço dos participantes já que a maioria
não tem conhecimento de técnica vocal. No passado, o evento poderia durar uma noite.

54 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Segundo nos falou, há tempos, a cantadora Mocinha Mauricio4, hoje os pés-de-parede
não costumam durar mais que algumas horas, e a participação do público não é tão ativa
como no passado. Também, segundo a violeira, há ocasião em que os cantadores usam
microfone. Fato que pude observar em duas cantorias em bares da região metropolitana
do Recife.
Durante a apresentação, os convidados sugerem motes e temas a serem improvisados
pelos poetas. Enquanto versificam, os bilhetes com os pedidos vão sendo entregues aos
cantadores ou depositados em uma bandeja onde também colocam dinheiro.
Quando a cantoria ocorre em bares, às vezes se cobra um cover artístico ou vendem-
se ingressos, previamente, ou durante o evento. Mesmo assim, para manter a tradição,
não se relaxa, à frente da dupla, a bandeja. De acordo com Sautchuk (2009, p.208), “[...]
em algumas situações o cantador teme que o pagamento da bandeja seja ridicularizado
e comparado à esmola”, mas, no que se refere às cantadoras, jamais presenciei tal
preocupação. Sempre que participei de cantorias onde a repentista tinha voz de decisão,
solicitava a presença da bandeja ainda que houvesse pagamento de ingresso.
Em um pé-de-parede, há maior autenticidade, pois os poetas presentes se revezam
na disputa e, neste momento, o desafio é mais original. Esta cantoria é o grande momento
do repente, já que além de o público poder participar de maneira mais ativa, vivenciam-
se vários aspectos e modalidades da cantoria de viola, durante o pé-de-parede, o público
é coautor dos versos, já que constrói motes que serão versejados pelos cantadores(as).
Tradicionalmente, os repentistas iniciam com sextilhas e vão versificando outros gêneros.
Na cantoria de pé-de-parede, de acordo com SILVA (2010, p.173) identificam-se

[...] três momentos: a abertura, no qual os poetas cantam, sobretudo, para


agradecer o dono da casa pelo apoio à realização do evento, e também
para fazer a propaganda da dupla enquanto bons cantadores; o elogio,
que consiste no momento dos versos que louvam o nome de todos os
convidados adultos presentes no ambiente, que por sua vez, devem pagar
aos cantadores pelas estrofes enaltecedoras; e, por fim, a hora dos pedidos,
momento em que os convidados são autorizados a solicitar modalidades
poéticas e canção.

Essas três etapas são intercaladas por pequenos intervalos de cerca de 10 a 15 minutos,
durante os quais, se houver cantador profissional ou amador como convidado, continua
a ter produção de versos.
Quando os cantadores presentes já cantaram em desafio, é comum que um violeiro
inicie uma canção, em seguida outros o imitarão e começará um novo momento da
cantoria com declamações de poemas, quadras, canções, glosas e recitação improvisada.
Embora nos congressos haja maior público, é durante o pé-de-parede que se reconhece a
habilidade em versificar dos poetas. Durante o congresso, veem-se apenas três temáticas

4 Cantadora já falecida, irmã de Santinha Maurício, residia no município de Araçoiaba, Pernambuco.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 55


a serem cantadas pelas duplas, e não há possibilidade de o público interferir sugerindo
motes.

A “live”

Quando os meios de comunicação noticiaram que o vírus estava entre nós, aulas
foram suspensas, férias antecipadas e compromissos reformulados. O que deveria ter
sido apenas uma acomodação da vida, visto que o convívio social com a internet já era
bastante presente, tornou-se a caixa de Pandora e desnudou a fragilidade e inabilidade
de várias pessoas destreinadas ao mundo das novas tecnologias.
Mesmo assim, não sem esforços, igualmente a outros artistas e a sociedade em geral,
também a cantoria se sentiu obrigada a acessar o mundo das redes sociais de maneira
mais efetiva.
Antes do isolamento, algumas cantadoras já usavam “facebook”, “Instagram”, “youtube
como meio de divulgação. Porém, durante o isolamento, assistimos a uma variante do
pé-de-parede surgir: a “live”. Esta atualização do momento mais autêntico da cantoria
possibilitou um pouco mais de projeção às cantadoras. Destaca-se a Fabiane Ribeiro,
repentista das mais jovens. Vídeos vários podem ser encontrados onde ela canta com
sua irmã, Cristiane Ribeiro, Rafaela Dantas, Minervina Ferreira, Santinha Maurício, Toinha
Brito ou com outros repentistas.
Quando se pergunta o que pretende com sua poesia, Fabiana responde: “[...] eu quero
fazer com que a arte da cantoria seja ainda mais conhecida e divulgar, principalmente, a
poesia feminina. Ocupar nosso espaço no meio da cantoria de viola”. Afigura-nos que no
referente a tentativa de disseminação da poética feminina, a repentista tem conseguido.
A “live” segue a mesma estrutura do Pé-de-parede. Difere apenas, pelo menos no
período de isolamento, quando iniciou, quanto à ausência de público. Este assiste pelas
redes sociais mais populares.
Para efetivar o evento, o apologista - a poetisa Maria Soledade, por exemplo, organizou
três - precisa contar com alguém para cuidar das questões técnicas e realizar, com
colaboração dos poetas envolvidos, divulgação da cantoria.
Cartazes virtuais são produzidos onde se encontram os números das contas para
depósito, a paga dos versos, como acontece no pé-de-parede. Os pedidos e motes também
podem ser realizados pelo “chat”, ou, mais raramente, de viva voz, quando a cantoria
acontece pelo “meet” ou outra plataforma similar, porém ocorre raramente.
Embora a “live” tenha sido importante durante o período de isolamento, não se
pode garantir que ela veio para ficar, talvez o público da cantoria, embora não despreze a
participação virtual, prefira se fazer presente no ambiente onde acontecem as apresentações.

56 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Gêneros da cantoria

Inúmeros são os gêneros que se apresentam na cantoria de improviso: quadra,


sextilha, sete pés, décima, mourão, martelo, galope a beira mar, entre outros. Contudo,
mostraremos aqui, apenas aqueles que percebemos mais utilizados pelas repentistas.
Ao estudar os gêneros ou regras da cantoria, observamos que muitos deles apresentam
entre si apenas raras diferenças. Apesar de alguns terem mais de uma variante como é
o caso do mourão perguntado também chamado de mourão ao quadrão ou dez pés ao
quadrão.
Há quem diga que os primeiros cantadores se apresentavam cantando em quadras,
talvez pela simplicidade da cosntrução. Segundo Linhares e Batista (1976), foram
possivelmente Silvino Pirauá e Romano Caluête que introduziram a Sextilha na cantoria.

“[...]até à época da famosa peleja de francisco romano caluete com inácio


da catingueira, o estilo preferido pelos cantadores era a quadra. após isso,
apareceu a sextilha, pertencente à família dos setessílabos, modalidade
essa usada, não só nos grandes debates, mas, também, na abertura de
qualquer programa de viola. “é a deusa inspiradora dos poetas repentistas”
(linhares e batista, 1976).3

A Sextilha é uma estrofe com rimas deslocadas, formada por seis versos de sete
sílabas. Na Sextilha, rimam as linhas pares entre si, conservando as demais em versos
brancos. Vejamos os versos de Minervina Ferreira e Mocinha de Passira:

Minervina Ferreira:

O que vem acontecendo


Nesse querido Brasil,
É violência no campo
Mortalidade infantil
Espero que tudo mude
Depois do ano dois mil

Mocinha de Passira:
Nós vivemos o perfil
De um quadro bastante escuro
Com desarmonia interna
Deixando o povo inseguro
Não queremos que esse quadro
aconteça no futuro.5

Sete Linhas ou Sete Pés: configura um conjunto rimando os versos pares até o quarto,
como na Sextilha; o quinto rima com o sexto, e o sétimo com o segundo e o quarto. Os
versos são de Mocinha de Passira.
5 Transcrito do compact disc Mulheres de repente – Minervina Ferreira e Mocinha de Passira. São Paulo: UMES, 1999.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 57


“A vida se inicia
Sob o ventre maternal
O filho se liga à mãe
No cordão umbilical
Nasce, cresce, vive e ama
Depois a morte lha chama
Para cama sepulcral.” 6

Décima: Embora de origem clássica, é a Décima um estilo muito apreciado, desde os


primórdios da Poesia Popular, principalmente por ser o gênero escolhido para os motes,
onde os cantadores encerram cada estrofe com o mote sugerido, passando a estância
a receber a denominação de glosa. Como o próprio nome diz, Décima é uma estrofe ou
estância de dez versos de sete sílabas, assim distribuídos: o primeiro, rima com o quarto
e o quinto; o segundo, com o terceiro; o sexto, com o sétimo e o décimo, e o oitavo, com
o nono. O exemplo a seguir é da violeira Minervina Ferreira.

Se quer partir vá , sujeito


Eu fico no nosso abrigo
Só uma coisa eu lhe digo
Se voltar eu não aceito
Cada um tem o direito
De buscar sua melhora
Mas se surgir a piora
Procure um outro lugar
Não pense que eu vou chorar
Porque você foi embora.7

Mourão que Você Cai: Gênero muito apreciado, com versos de sete sílabas, como
nos demais, onde as estrofes aparecem com doze linhas, havendo quatro versos comuns
a elas: terceiro, sexto, nono e décimo segundo. O iniciante é responsável pela formação
dos versos: primeiro, segundo, terceiro, sétimo, oitavo, décimo, décimo primeiro e décimo
segundo. Ficando os demais a cargo do parceiro intercalante. Mocinha de Passira cantou:

A cantoria só presta
Misturando quente e frio
Conte um, dois, três
Minervina: Antes do meio da festa
Começou o desafio
Conte quatro, cinco, seis
Mocinha: Você não teve elogio
Nem de mãe, nem de pai
Minervina: Você cai!

6 Transcrito do compact disc Os grandes repentistas do Nordeste : cantoria de viola - Mocinha de Passira e
Sebastião Marinho. São Paulo: Pequizeiro.
7 Transcrito do compact disc A Mulher no repente - Minervina Ferreira e Maria Soledade. João Pessoa: Gravação
patrocinada pelo Governo do Estado da Paraíba, 2002.

58 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Mocinha: Caia cantando repente
Dez léguas na sua frente
Se for por dez pés lá vai.8

Meia Quadra: Estilo que apresenta estrofes com número de versos não determinados, e
com quatro linhas iguais na parte final. A estrofe seguinte é da poetisa Mocinha de Passira:

Se eu disser que é meio vício


Você diz que é meio cio
Se eu disser que é meio turvo
Você diz meio sombrio
Digo meio galaião
Você diz meio navio
Se eu disser meio navio
Diga meio galaião
Se eu disser que é meia veia
Você diz que é meio grão
Se eu disser que é meio grão
Você diz que é meia veia
Quando eu disser Meia Quadra
Você diz é Quadra e Meia
Quando eu disser Quadra e Meia
Você diz Meio Quadrão. 9

Quadrão: Diz-se que o Quadrão tem sido o gênero que se observou com o maior
número de alterações, não só na sua forma interna, mas, também, na estrutura das estrofes,
em geral. O Quadrão antigo é formado por uma estância de oito linhas, pertencente à
família dos Setessílabos, rimando o primeiro verso com o segundo e o terceiro; o quarto
com o oitavo, e o quinto com o sexto e o sétimo, contando, no final, o estribilho de sua
denominação. O improviso é de Maria Soledade:

Eu sou de Alagoa Grande


Cidade que se expande
Pra lá é de bem que eu mande
A voz do meu coração
Para o pedaço de chão
Na terra que eu fui nascida
Origem da minha vida
Nos oito pés a quadrão. 10

8 Transcrito do compact disc Mulheres de repente


9 Os grandes repentistas do Nordeste : cantoria de viola - Mocinha de Passira e Sebastião Marinho. São Paulo:
Pequizeiro.
10 A Mulher no repente - Minervina Ferreira e Maria Soledade. João Pessoa: Gravação patrocinada pelo Governo
do Estado da Paraíba, 2002.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 59


Gabinete: Gênero que, segundo se diz, foi muito apreciado pelo Cego Aderaldo,
porém de pouco uso atualmente. É cantado em versos de Sete sílabas, sem número de
linhas determinado, e com estribilhos nas linhas: sete, oito, nove, dez e nas duas últimas.
Ainda uma vez, o exemplo é de Mocinha de Passira:

Recife a Jaboatão
Caruaru a Pesqueira
Afogados da Ingazeira
Vitória de Santo Antão
De Salgueiro a Ribeirão
Carpina, Tracunhaem
Comprei um cartão
pra viajar no trem
Sem cartão ninguém vai
Sem cartão ninguém vem
Sem cartão ninguém dá
Sem cartão ninguém tem
Nem vem, nem vai
Nem vai, nem vem
Nem tem, nem dá
Nem dá, nem tem
Se quiser me imitar
Faça assim também
Notícia curta é lembrete
Quem não canta Gabinete
Não é cantador pra ninguém. 11

Toada Alagoana: gênero pouco usado, com rimas encadeadas e de agradável toada.
Sirvo-me mais uma vez de uns versos de Mocinha de Passira.

Outro canto eu não procuro


Mais seguro do que a minha cabana
Me acordo com os passarinhos
Nos seu ninhos todo dia da semana
No arrebol matinal
Mais um coral
Na Toada Alagoana. 12

Dez Pés de Queixo Caído: ainda bastante usado, este estilo está incluído na Décima,
apresentando, no final de cada estrofe, o refrão: “NOS DEZ DE QUEIXO CAÍDO”. Maria
Soledade canta:

11 Os grandes repentistas do Nordeste : cantoria de viola - Mocinha de Passira e Sebastião Marinho. São
Paulo: Pequizeiro.
12 idem

60 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Tenho contemplado o prado
A montanha e o planalto
O automóvel, o asfalto
O horizonte azulado
Sempre tenho procurado
Um pretexto evoluído
Nos campos que tenho ido
Com você me acompanhando
Sempre lhe venci cantando
Nos dez Queixo Caído 13

Gemedeira: estilo de poesia, caracterizado pela interposição de verso de quatro,


ou, raramente, de duas sílabas, entre a quinta e a sexta linhas da Sextilha, formado pelas
interjeições: “AI! E UI! OU AI! MEU DEUS!”. Segue versos de Minervina Ferreira:

O espaço da mulher,
Se amplia a cada momento,
Desde a comerciaria
A que faz medicamento
Em relação ao passado,
Ai!, ai!, ui!, ui!...
Mudou noventa por cento (...)

Tem mulher sendo manchete,


corpo lindo e sensual
Tem mulher trabalhadora
dentro da zona rural
Que nem sabe aonde fica,
Ai!, ai!, ui!, ui!...
O Distrito Federal

No campo policial,
tem delegada e bombeira
A promotora, juíza,
advogada, pedreira
Nosso espaço está abrindo,
Ai!, ai!, ui!, ui!...
Mesmo que o homem não queira. 14

Conforme dito, vários são os gêneros da cantoria, e pode-se verificar que algumas
modalidades são apenas variações de outras. No entanto, este artifício em lugar de
empobrecer o gênero, valoriza-o, aperfeiçoa-o.

13 A Mulher no repente - Minervina Ferreira e Maria Soledade. João Pessoa: Gravação patrocinada pelo Governo
do Estado da Paraíba, 2002.
14 idem

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 61


Apontamentos de campo: um baião na casa de D. Neta e Mané Piaba

No Loteamento Santana, em Camaragibe, Pernambuco, mensalmente, D. Nena e


Mané Piaba realizam cantoria em casa. Segue um registro colhido:
Durante o pé-de-parede na casa de Dona Nena e Mané Piaba, participaram as cantadoras
Santinha e Mocinha Maurício, e os cantadores Guriatã do Norte e Sebastião Barreto.
Segundo Dona Nena, mensalmente, ela e Mané Piaba organizam cantoria com a presença
de, no mínimo, dois cantadores. A ideia surgiu para relembrar momentos da infância dos
anfitriões que cresceram assistindo a contendas entre cantadores.
Chegamos à casa de seu Mané Piaba às dezenove horas. Ele me convidou a entrar e
me disse que Santinha me aguardava. Cheguei à cozinha e encontrei as irmãs e os dois
cantadores que logo mais se apresentariam. Jantavam e conversavam animados. A mesa
farta denotava um almoço de domingo em família. Havia refeição para todos os presentes,
embora apenas os cantadores e eu fôssemos convidados a sentar à mesa. O público
aguardava o início da cantoria, no quintal da casa, e eram servidos por Mané Piaba, Dona
Nena e a neta do casal, uma menina de presumíveis nove anos de idade.
Enquanto jantavam, solicitei ao casal que me fosse permitido filmar a festa e
fui autorizado, com a condição de não filmar a menina, preocupação visível do avô.
Tranquilizei-o afirmando que meu interesse era apenas na cantoria
Comecei a circular pelo espaço e, desde logo, constatei que a idade das pessoas do
público era superior a trinta anos e que todos conheciam os donos da casa. Contudo nem
todos os frequentavam sempre. Dona Nena me informou que, na semana da cantoria,
além de visitarem as casas das pessoas, convidando-as, utilizaram a transmissão da rádio
Guarani e ambientes comerciais para a divulgação da brincadeira.
Enquanto entrevistava as cantadoras, os cantadores começaram a cantoria. Após as
entrevistas, fui para o pátio onde havia quarenta pessoas que comiam, bebiam e, dentro
de uma cesta, depositavam motes. De repente, os poetas começaram a improvisar citando
os nomes ou características dos presentes, e o público se motivou. Logo, os violeiros se
aproveitaram da alegria e versificavam pedindo dinheiro. Após, aproximadamente uma
hora, as poetas foram convidadas a ocupar o espaço reservado para as apresentações.
O excesso de conversa atrapalhou a recepção, mas transcrevo um baião15 cantado pelas
irmãs Maurício:

Mocinha
A paixão eu não estranho
Que é muito gente da gente
Benedito que também
Está na festa excelente
Também o policial
que sentou-se em nossa frente

15 No contexto da cantoria, o termo baião significa a música que acompanha o gênero, não apresenta nenhuma
alusão ao gênero imortalizado por Luiz Gonzaga, o rei do baião.

62 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Santinha
Cuidando do ambiente
Piaba (...)
Que pagaram a brincadeira
Convidou a mim e a tu
Para tomar das cachaças
Comendo muito peru

Mocinha
Piaba eu digo a tu
Piaba muito obrigada

Neste instante, um dos presentes se aproximou e falou ao ouvido de Mocinha. Ela


interrompeu a estrofe e em seguida cantou:

Aquele é Manuel
Pessoa civilizada
Eu ainda estou sentindo
O gosto da misturada

Santinha
Seu Manuel vende a parada
Ele é o dono do bar
Tem bebida pra vender
Tira gosto a mastigar
E é feliz a pessoa
Quando chega no seu lar

Mocinha
Seu Manuel é sem par
Eu vou dizer em seguida
Ele faz uma misturada
Muito boa na medida
Serve pra toda a doença
Que o cara sofrer na vida

Santinha
Ele prepara a bebida
(...)
Bota ali alecrim
E também manjericão
Que faz o velho animado
Lá na sua habitação

Mocinha
Raiz de toda a nação
Manuel quem bota nela

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 63


Levanta até o astral
Eu vou dizer com cautela
Até eu tomei um copo
Fiquei mais linda e mais bela

Santinha
Bota erva doce e canela
Bota (...) e pepino
Bota galho de angicos
(...)
Que um velho de oitenta anos
Ainda faz o serviço

Mocinha
Seu Manuel é divino
Pessoa civilizada
Sua comida é boa
E é muito temperada
Benedito é o catimbó
E seu Mané na misturada

Santinha
Pessoa bem educada
Que prepara da bebida
Bota tanta misturada
Compra erva na avenida
Que a mulher não aguenta
O marido na dormida

Mocinha
Gostei da sua bebida
Agora (...) meus pés
Quero falar em Bigode
Perante aos fieis
Porque ele e Paixão
Usa da camisa dez

Santinha
Entre os amigos fies
Bigode e a sua bela
Sua esposa e sua deusa
Que ele não abandona ela
Ela é louca por ele
E ele é louco por ela

Mocinha
Dona Maria tão bela
Cantei no seu ambiente

64 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Comi da carne de bote
Estava gostosa e estava quente
Bigode é camisa dez
E esse Paixão é pra frente

Santinha
[...]
Que Bibiu caboclo [...]
Ele gosta de ouvi
A tua cantiga e a minha
Quem canta pra esse povo
A vida é boa todinha

Mocinha
Bigode é gente fina
É gente civilizada
Aqui falei em Bigode
Meu amigo e camarada
Com a camisa do Santa
Pra ele não falta nada

Santinha
Bigode é meu camarada
No Arruda é valentão
Lá no campo do Santa
Vai lá ver a seleção
Ele tem muito prazer
Dentro do seu coração

Mocinha
Bigode é que tem razão
Gosta de ouvir meu grito
Gosta de carne de gado
De galinha e de cabrito
Com a camisa do Santa
Bigode fica mais bonito

Santinha
Ele tem bom gabarito
É um homem de cartaz
Usa camisa do Santa
Com o número dez atrás
Quando ele veste a camisa
Sua esposa ama mais

Mocinha
Ninguém lhe bota pra trás
Que Bigode é consciente

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 65


Nunca gostou de veado
Também não gosta de crente
Aviso a quem for corno
Não passar em seu ambiente

Breve pausa, Mocinha Maurício ponteia a viola e canta:

Mocinha
Essa viola eu garanto
Do amigo que cantou
Que é Sebastião [indecifrável]
Moreno da minha cor
E vamos cantar pra essa turma
Que ainda não escutou

Santinha
Quem ainda não pagou
Venha aqui e pague a mim
Que quem pagou a Guri
Eu não aceito
[indecifrável]

Mocinha
Quem já pagou a cantiga
Agora é diferente
Pagaram a Guriatan
Mas agora paga a gente
Já que mudou de dupla
Tem que pagar novamente

Santinha
Sei que Lourenço é decente
A sua esposa é Bela
Seu Paixão que também ver
Sem precisar de cautela
Eu vou passar o meu filme
Aqui na primeira tela

Mocinha
[indecifrável] É gente bela
De São Lourenço da Mata
Fernando pagou também
Que é uma pessoa grata
E agora vem Paixão
Pagar nossa serenata

66 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Santinha
Sei que Paixão não maltrata
Político de qualidade
[indecifrável]
Ele e seu partido
Que só da felicidade
[indecifrável]

Mocinha
Paixão é de qualidade
E Benedito aqui está
Tomando o seu uisque
Ouvindo a gente cantar
Gosta de ouvir cantiga
E também gosta de pagar

Santinha
Para beber e pagar
Benedito é alta linha
Veio ouvi hoje a Moça
Ao lado de Santinha
Mas tá tomando uisque
Com saudade de Claudinha

Mocinha
Claudinha está sozinha
Ele aqui está sozinho
Sem a companhia dela
Veio aqui com seu vizinho
com saudade de Claudinha
bebe o tempo todinho

Santinha
Paixão foi o meu padrinho
E agora estou postada
Ao lado aqui de Fernando
Eu quero dar obrigada
A Paixão e Benedito
Pessoa bem educada

Mocinha
Oh Paixão muito obrigada
Eu agradeço a Paixão
Que é muito civilizado
E prezo de coração
E Benedito também
Que pagou com atenção

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 67


Novo pontear de viola, e Santinha canta:

Santinha
Que Paixão está presente
eu estou muito feliz
ele com a sua turma
veio ouvir a cantatriz
eu canto pra este povo
beleza do meu país.

Mocinha Maurício
Hoje eu me acho feliz
com o povo arrodeada
hoje é a primeira vez
que canto nesta morada.
que na casa de Piaba
para mim não falta nada

Santinha
Pra Bigode e sua amada
nosso amigo Benedito,
Gustavo Ramos também
com que eu já sou [indecifrável]
cantei no seu ambiente
é homem de gabarito.

Mocinha Maurício
Ali é São Benedito
com a força de Jesus
pra Bigode [indecifrável] Maria
pra dizer que beija cruz
que Bigode está vestindo
a camisa do Santa Cruz

Santinha
Ele tem a sua luz
a Bigode eu dou valor
ele é do Santa Cruz
gosta de um jogador
que ganhando ou perdendo
ele é típico torcedor

Mocinha Maurício
Bigode é tricolor
eu sou tricolor também
nunca gostei do Sport
fica quem vai e quem vem
o torcedor do Sport

68 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


a nenhum direito tem
Santinha
Santa Cruz não me convém
nem torço pela Alemanha
nem Brasil que moro nele
ele é cheio de façanha
eu sou torço por aquele
que no dia ele ganha

Mocinha Maurício
O Santa Cruz não tem manha
vou lhe dizer com cuidado
perde, ganha, fica alegre
é jogador pra todo lado
o torcedor do Sport
para mim é bem mostrado

Santinha
Mas o Sport tem ganhado
e ganha do seu partido
ele é time dos meus filhos
e também o meu marido
eu só torço pela aquele
que dá resultado [...]

Mocinha Maurício
Vamos cantar garantido
para essa personagem
que gosta de [indecifrável]
sem precisar ter coragem
o torcedor do Sport
pra mim só tem papulagem

Santinha
Para mim não é vantagem
dizer assim para quem
eu gosto do Santa Cruz
e do Náutico quando vem
que torcedor de Sport
paga cantiga também

A modalidade é a sextilha, muito comum nas cantorias. Em geral, é corriqueiro que


o primeiro baião da cantoria seja agradecendo ao público pela presença, aos donos da
casa pelo convite e, em seguida, elogios e citações sobre a plateia. Foi o que fizeram as
cantadoras, citando alguns dos presentes que conheciam ou que foram oficiosamente
apresentados. Sabe-se que, comumente, durante o pé-de-parede, há convidados que se

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 69


ocupam de informar nomes e outras particularidades sobre os presentes a fim de facilitar
esse momento da cantoria.
Durante esse baião, as poetas também buscaram enaltecer as pessoas citadas para
ganhar delas a simpatia e convencê-las a contribuir com a cantoria, prática recorrente nos
pés-de-parede. Nesse momento, o diálogo entre as parceiras teve o mesmo objetivo, ou
seja, convencer os presentes a colaborarem com a cantoria. A estratégia, como se observa,
deve ser conjunta, pois, ao final, o valor arrecado seria partilhado entre os poetas, o elogio é
uma estratégia importante durante o pé-de-parede, é o momento de conquistar o público.
Sobre a paga dos versos, para os repentistas, colaborações muito baixas são consideradas
ofensas, pois a contribuição não deve ser entendida como esmola, mas espécie de tributo
que é direito do repentista. A bandeja, embora seja própria da tradição do pé-de parede,
pode apresentar perda para os repentistas que não conseguem precisar qual será o
rendimento da cantoria. No entanto, em alguns pés-de-parede do qual participei, mesmo
quando era cobrado um ingresso, não se relaxava a bandeja diante das poetas.
Penso que a bandeja está associada, principalmente, ao momento dos elogios, e
não há cantoria de pé-de-parede sem esse instante. Segundo Sautchuk (2009, p.117),
“[...] fala-se de um tempo em que eram comuns cantorias nas quais levava todo dinheiro
aquele que ganhasse mais palmas do povo ou que lançasse um assunto que o colega não
conseguisse acompanhar.”
O público se entusiasmou quando Mocinha trouxe para a contenda a temática do
futebol. Não houve, neste momento, variação de modalidade, o baião seguiu apenas com
motivos descritivos, e as poetas complementaram a ideia uma da outra estabelecendo
assim um diálogo. Ainda que não houvesse competição notória, como acontece nos
desafios, qualquer baião entre poetas apresenta, mesmo oculta, a competição (TAVARES,
2008).
Quando ponteiam seus instrumentos, ainda que sejam parceiras como acontece com
as repentistas em questão, o duelo é inevitável, pois a disputa é parte da cantoria. Qualquer
repentista que se apresente se emprenhará ao máximo para mostrar sua competência
poética. A dupla investiu no gracejo, desenvolveu o trabalho sobre futebol e conquistou
o público.
Convém destacar a habilidade de Santinha ao final do baião quando dar importância
aos três principais times pernambucanos. Naquele momento, não lhe pareceu prudente
polemizar sobre as qualidades de cada clube de futebol e sua preferência, pois sabia que
havia torcedores dos diversos times. Por isso, na estrofe final, o desfecho valorizou todos
para agradá-los, pois, como escreve Bakhtin (2010), o enunciado deve levar em conta o
destinatário. Penso que esse é o papel do parceiro: está atento ao suposto “deslize” do
companheiro e se possível consertá-lo. Naquele momento, para afagar os presentes, era
necessário valorizar qualquer time sem discriminação.
Como dito em depoimentos, na cantoria, é o público o mais importante. Entendo que
Santinha acreditou ser mais prudente enaltecer todos os times, sem expor sua preferência.
Como escreve Bakhtin (2003, p. 284), a palavra é carregada de sentido “[...] pode-se assumir

70 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


um tom mais seco ou mais respeitoso, mais frio ou mais caloroso, introduzir a entoação
de alegria etc”, ao dizê-la assumimos a carga significativa que lhe é própria, “a entonação
expressiva é um traço constitutivo do enunciado” (BAKHTIN, 2003, p. 290). Além disso,
segundo Bakhtin /Volochinov (2006), o enunciado carrega um sentido ideológico ou da
experiência de vida do sujeito.
Nesse sentido, as poetas cantaram o baião tendo por base, não apenas o momento
presente, mas também, de acordo com suas vivências, sabiam o que o público esperava,
e isso faz parte da natureza do pé-de-parede. “A palavra pode assumir vários sentidos
e representações, por isso, o sujeito apropria o enunciado ao contexto da enunciação.”
(BAKHTIN, 2003).
Os versos criados durante o baião são simples, mas como narra Xidieh (1993, p. 26),

[...] a produção [...] oral por mais que pareça simples divertimento encerra
sempre algo de utilidade, de preceito e de etiqueta [...] resultando num
conjunto de assaz complexo, não só por causa da sua diversidade quanto
à forma de comunicação como também pelo seu significado no contexto
da cultura popular.

Registro de campo da cantoria em casa de Terezinha Maria

A cantoria em casa de Terezinha aconteceu por solidariedade, pois a cantadora,


vitimada pela diabete, havia amputado a perna. Solidários, amigos decidiram organizar
uma cantoria com o objetivo de angariar uma importância a fim de contribuir na compra
de uma cadeira de rodas.
O horário previsto seria quatorze horas. Cheguei a Abreu e Lima às treze horas e,
tão logo embarquei na van, seguimos viagem. No carro, estávamos Santinha, sua irmã
Mocinha Maurício, seu irmão Lula, Dona Julieta, vizinha de Santinha, o motorista e eu.
Perguntei a dona Julieta se era apreciadora de cantoria há muito tempo e ela me
respondeu que não, apenas acompanhava Santinha para não ficar sozinha em casa. A
mesma pergunta fiz ao motorista e ele disse que gostava, porém não era grande admirador,
mas sempre que Santinha organizava algumas pessoas para um passeio e o solicitava,
ele estava à disposição. A caminho, conversou-se sobre cantoria, e Mocinha falava com
saudade do tempo que, segundo ela, toda semana ia à cantoria de pé-de-parede. Santinha
concordava e contava curiosidades sobre situações vivenciadas.
Após mais de uma hora de vigem, chegamos a Lagoa do Outeiro, distrito de Buenos
Aires. Já havia dois ônibus em frente à casa de Terezinha, alguns carros, cavalos e uma
multidão que aguardava o início do evento. Um som ensurdecedor era disputado por
pessoas que insistiam em ser o cicerone da tarde, mas foi dona Zefinha, moradora da
cidade de Carpina, quem centralizou o equipamento. Agradeceu a presença de todos,
em particular aos que vieram da cidade de Carpina, e convidou os cantadores a darem
início à cantoria.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 71


A rua estava repleta de pessoas. Alguns interessados na poesia de improviso e muitos
curiosos apenas com a aglomeração que se alojava dentro e fora da casa da poetisa
Terezinha Maria. Fiquei alguns momentos a observar a movimentação até que a anfitriã
me viu e solicitou que eu subisse para falar com ela. Com dificuldade, devido à escada estar
repleta de pessoas, subi e aproveitei para lhe entregar uma caixa com alguns discos. Ela
agradeceu emocionada e perguntou se eram daquela gravação no teatro. Pediu que uma
mulher me conduzisse à cozinha e me oferecesse uma refeição. Na mesa, havia sarapatel,
peixe frito, feijoada, dobradinha, galinha à cabidela, galinha assada, galinha guisada e
outras iguarias. Como disse que havia acabado de almoçar, a mulher me ofereceu uma
cerveja, e eu aceitei.
Voltei para o terraço e, neste momento, Mocinha de Passira e Edvaldo Zuzú testavam
o som para iniciar a cantoria. Mocinha reclamava da qualidade do equipamento e pedia
silêncio aos presentes que insistiam em conversar fazendo um barulho digno de campo
de futebol. Porém, a poetisa não se deixaria vencer. Solicitou que aumentassem o som
e disse que quem não tivesse interessado em ouvir que fosse conversar em outro lugar.
Aplausos foram escutados e, aos poucos, o som do silêncio predominou. Assim, os poetas
puderam pontear as violas.
Havia seis cantadoras: Mocinha de Passira, as irmãs Maurício, Severina Maria, Terezinha
Maria e Elizete Claudino. Esta última, segundo Santinha, estava afastada da cantoria há
anos, mas agora se reaproximava do universo do repente. Mas, quando indaguei à própria
se era poeta, disse-me que apenas cantava canções. De fato, durante a brincadeira,
apenas cantou canções no intervalo das contendas. Também estavam presentes mais
dois cantadores: Manuel Domingos Ramos e Pedrinho de Araçoiaba.
Embora a predominância fosse feminina, a maioria não levou viola e, na hora de se
apresentar, precisava contar com a “gentileza” daqueles que trouxeram o instrumento.
Neste momento, a deselegância era evidente, pois os repentistas se negavam a conceder
a viola às colegas; restou a solidariedade entre as poetas.
Não tardou que se trouxesse uma pequena bacia de alumínio onde se depositava
dinheiro. Dona Zefinha se encarregou de coletar os motes a serem pedidos aos improvisadores.
As duplas se revezavam, mas a temática era sempre relacionada à anfitriã. Versificavam
sobre as virtudes da poetisa tanto na vida quanto na arte. Todos enfocavam a afetividade
que nutriam por ela. Terezinha ouvia tudo, atentamente, e, em determinado momento,
solicitou a uma jovem que trouxesse o seu caderno. Quando lhe foi entregue, passou a
escrever motes e solicitava a alguém que depositasse na bacia ou apresentasse a um
cantador. Embora se seguisse a tradição quanto às modalidades, todos os trabalhos
desenvolvidos traziam a poetisa Terezinha por temática.
Por volta das dezoito horas, Elizete Claudino pegou uma viola e começou a cantar
canções. Ao parar de cantar, foi seguida por Mocinha de Passira que anunciou que cantaria
duas canções de Severino Pelado. Ao informar isso, ouviu-se em uníssono: “Canção do
lenço!” Não se fez de rogada e atendeu ao pedido do público. Outros intérpretes se
seguiram: Severina Maria, Manuel Domingos Ramos e Pedrinho de Araçoiaba, cada qual

72 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


ao seu tempo, cantaram canções. Diferente da cantoria na casa de Mané Piaba, o público
parecia mais habituado ao pé-de-parede, e a interação foi plena: sugestão de motes, paga
dos versos, aplausos, um animado pé-de-parede.
Aos poucos, os presentes foram deixando o espaço, um ou outro cantador empunhava a
viola, recitava um poema ou cantava uma canção. Sem ninguém anunciar o encerramento,
a cantoria terminou. Os que vieram da cidade de Carpina embarcaram nos ônibus, a
vizinhança voltou às casas, despedimo-nos de Terezinha, embarcamos na van e regressamos
a Abreu e Lima.
Durante a cantoria, constatei que, enquanto os cantadores parecem ter abandonado
alguns gêneros tradicionais, tais como toada gemedeira, coqueiro da Bahia, oitavão,
mourão voltado, dentre outros – as cantadoras se preocupam em manter a tradição e
seguem improvisando estes gêneros. Tal afirmativa também pode ser comprovada ao
ouvirmos CD de cantoria. Nos CD’s, quando a contenda é entre cantadores, não se vê a
manutenção da tradição das várias modalidades, há predominância apenas da sextilha.
Já se participarmos de um pé-de-parede onde apenas existam cantadoras, ouviremos
várias modalidades de cantoria.
Nos momentos em que estão presentes também violeiros, as cantadoras não parecem
tão desinibidas. Mesmo nas situações em que são atração principal, como ocorreu na
residência da cantadora Terezinha Maria, as repentistas, exceto Mocinha de Passira, não
se sentiram à vontade em encaminhar a brincadeira, seguiram orientações masculinas. No
Loteamento Santana, não foi diferente. Dona Nena e o esposo, Mané Piaba, convidaram
Santinha e Mocinha Maurício para realizarem a cantoria e estas convidaram os repentistas
Guriatã do Norte e Sinésio Pereira. Contudo, mesmo sendo a atração principal, permitiram
que os trabalhos fossem direcionados pelos cantadores.

Conclusão

Vários são os gêneros orais, e muito já se pesquisou sobre eles. Contudo, ainda
que, na contemporaneidade, a mulher venha conquistando espaço social. No mundo
do improviso, por exemplo, a presença feminina ainda é restrita. Nestes apontamentos,
parte de nossa tese, defendida no ano de 2014, apresentei aspectos do gênero cantoria
de improviso, além de narrar sobre a condição da mulher neste espaço.
A partir de fragmentos de depoimentos de poetisas, expus como transita a mulher no
território do repente, suas inspirações, as temáticas recorrentes, e as estratégias utilizadas
por elas para transitarem no espaço da poesia oral foram questões que tentei desvendar.
Desde logo, percebe-se que, embora estejam no mesmo campo de atuação, como
qualquer ambiente social, a mulher sofre adversidade para se inserir e construir sua
trajetória, é conferido ao homem repentista maior status quer por parte dos artistas ou
dos apreciadores dos gêneros.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 73


As mulheres, ao ocuparem determinadas posições, desafiam as qualidades de gênero
nelas investidas. Ainda que a entrada em novas posições represente uma conquista,
trilhar caminhos onde outrora era restrito a homens é algo que desencadeia tensões e
disputas, pois os modelos simbólicos que essencializam homens e mulheres, a partir de
classificações de gênero, são acionados para dificultar o acesso das mulheres a posições
de poder, por um lado, e por outro, para impedir que se quebrem as expectativas de
feminilidade e masculinidade vigentes.
Mesmo que essas discussões não se finalizem, minha intenção, para além de fornecer
respostas definitivas sobre a presença da mulher no repente, é fornecer futuros caminhos
a serem trilhados e esperar que este estudo tenha provocado reflexões sobre a presença
feminina no repente.

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MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 75


Cidades da Jurema e lugares de escuta: por uma
metodologia feminista decolonial
Maria Gomes de Medeiros
Ana Cristina Marinho

As ciências sociais feministas têm buscado oferecer respostas para o atual cenário de
desafios que as mulheres enfrentam na sociedade como um todo e, especificamente, na
universidade brasileira. Vivemos um período de avanço do conservadorismo e ascensão
de políticos de direita e extrema direita ao poder. A pauta conservadora tem um forte
polo mobilizador comum em reação aos direitos políticos conquistados por mulheres,
povo negro e LGBTQIA+, bem como contra estas agendas de lutas. Desta maneira, o
feminismo tem buscado oferecer respostas no que diz respeito à luta por justiça social e
igualdade de gênero.
A partir do final do século XX, o vácuo político-ideológico, a crise do capitalismo e
a intensificação do surgimento de credos religiosos institucionalizados, alinhados
ao pensamento neoliberal, expressos em ideias como a teologia da prosperidade e a
renovação carismática católica, possibilitaram o surgimento de um cenário de ódio e
novas cruzadas morais. As identidades de gênero e orientações sexuais desviantes da
norma, bem como a luta pelos direitos reprodutivos das mulheres, se tornaram alvo fácil
de um novo fundamentalismo político-empresarial que as tornam bodes expiatórios da
generalizada crise de esgotamento moral, impulsionada pela atuação de evangélicos,
ruralistas e católicos contra a suposta decadência moral. Assim sendo, as mulheres e
pessoas LGBTQIA+ precisam desenvolver um forte arsenal de criatividade epistêmica e
metodológica que possa oferecer alternativas ao cenário de cerceamento de direitos e
vidas.
A convocação à criatividade epistêmica é uma demanda elementar, pois entendemos,
como Donna Haraway (2016), que a ciência é marcada por uma “tradição do capitalismo
racista, dominado pelos homens; a tradição do progresso; a tradição da apropriação da
natureza como matéria para a produção da cultura; a tradição da reprodução do eu a partir
dos reflexos do outro” (HARAWAY, p.37). Todas essas tradições alienaram as mulheres,
bem como pessoas negras e comunidade LGBT, da sua condição de sujeitos da sociedade,
tornando-os os outros16 da cultura.
Entretanto, ainda que haja desafios externos à prática política e científica do feminismo,
como os citados acima, inquietações imanentes do próprio movimento buscam alternativas
às hegemonias que se perpetuaram no seio do próprio movimento feminista, tendo em
vista a posição social das mulheres diante de opressões estruturais como o patriarcado,
o colonialismo racista e a cisheteronormatividade.
16 Discussão inicialmente realizada pela filósofa Simone de Beauvoir em sua obra O segundo sexo (1949),
que investiga como o tornar-se mulher na sociedade patriarcal é um processo de construção de alteridade
em relação ao homem.

76 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


É neste sentido que Donna Haraway tece apontamentos elucidativos:

Tem-se tornado difícil nomear nosso feminismo por um único adjetivo - ou


até mesmo insistir na utilização desse nome, sob qualquer circunstância.
A consciência da exclusão que é produzida por meio do ato de nomeação
é aguda. As identidades parecem contraditórias, parciais e estratégicas.
Depois do reconhecimento, arduamente conquistado, de que o gênero, a
raça e a classe são social e historicamente constituídos, esses elementos
não podem mais formar a base da crença em uma unidade “essencial”. Não
existe nada no fato de ser “mulher” que naturalmente una as mulheres. Não
existe nem mesmo uma tal situação - “ser” mulher. Trata-se, ela própria,
de uma categoria altamente complexa, construída por meio de discursos
científicos sexuais e de outras práticas sociais questionáveis. A consciência
de classe, de raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta
pela terrível experiência histórica das realidades sociais contraditórias do
capitalismo, colonialismo e do patriarcado. (HARAWAY, 2016, p.47)

Dessa maneira, as taxonomias do feminismo não podem funcionar produzindo


epistemologias que policiem experiências que não estejam em conformidade com o
esperado pelo feminismo enquanto uma “experiência oficial” do que é ser mulher. Pelo
contrário, as políticas de aliança em torno do movimento e das ciências feministas devem
ser interpeladas pelas inúmeras sujeitas das diferenças sociais.
O feminismo brasileiro é referência quando pensamos nas insurgências de vozes
negras na luta contra hegemonias. Dentre essas vozes, Sueli Carneiro se destaca nos
convocando para enegrecer o nosso feminismo e instituir, na agenda do movimento de
mulheres, a questão racial como um aspecto essencial para entendermos a violência que
acomete as mulheres negras e suas famílias.
A este respeito, as políticas de alianças do feminismo, que são centradas nas diferenças,
desmentem mitos que reverberam essencialismos que revestem a identidade do ser
mulher em uma sociedade de classes e racista. Por exemplo, o mito da fragilidade, que a
ideologia patriarcal reservou especificamente para as mulheres brancas e privilegiadas,
pois sabemos que contingentes de mulheres negras estiveram em postos de luta diária
em meios às adversidades de um sistema de trabalho escravocrata.
Nas palavras de Sueli Carneiro:

Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente


a proteção paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres
estamos falando? Nós, mulheres negras, fazemos parte de um contingente
de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si
mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos
parte de um contingente de mulheres que trabalharam durante séculos
como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras, quituteiras,
prostitutas… Mulheres que não entenderam nada quando as feministas
disseram que as mulheres deveriam ganhar as ruas e trabalhar. Fazemos
parte de um contingente de mulheres com identidade de objeto. Ontem,

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 77


a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. (2019,
p.314)

Se levamos em conta o convite de Sueli Carneiro para enegrecermos o feminismo


como uma proposta metodológica da nossa prática enquanto pesquisadoras feministas,
entenderemos que a luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e raça
“desenha novos contornos para a ação política feminista e antirracista, enriquecendo
tanto a discursão da questão racial como a questão de gênero na sociedade brasileira”
(CARNEIRO, p.315). O feminismo não pode de maneira nenhuma ignorar o rico manancial de
conhecimento e as contribuições das intelectuais negras que fizeram do nosso feminismo
um instrumento de luta e análise, valioso para a compreensão da sociedade como um
todo. Nesse contexto, pensamos as contribuições pioneiras de Lélia Gonzalez, antropóloga,
professora e militante política.
Já no início da década de oitenta do século vinte, Lélia Gonzalez convidou-nos a
pensarmos com criticidade e radicalidade sobre a nossa condição de americanas da América
do Sul e do Caribe. A pensadora tinha em mente a necessidade de romper com a lógica
da colonialidade que busca perpetuar o ethos da branquitude. A branquitude conforma os
diversos mananciais de conhecimento de matrizes culturais de povos africanos, que foram
sequestrados de seus países de origem, e do povo originário destas terras, à latinidade
dos povos ibéricos que perpetraram a colonização luso-espanhola pelo território hoje
denominado América Latina.
Gonzalez entendia que a presença negra guarda marcas e especificidades comuns
na construção cultural do continente americano. Apesar de a contribuição do povo negro
e indígena ser elementar para a cultura da América, a subordinação à cultura branca
hegemônica se dá também em função de uma experiência histórica de hierarquização
que Espanha e Portugal adquiriram submetendo grupos étnicos diferentes como mouros
e judeus, ao julgo do sistema de valores eurocritã.
A dominação cultural branca perpetuou-se nas sociedades da América do Sul e Caribe
que, sobre a égide do controle e hierarquização das metrópoles, minaram a autoestima
e orgulho das nossas raízes africanas e indígenas. Neste sentido, Gonzalez salienta que:

todos os brasileiros (e não apenas os “pretos e pardos” do IBGE) são ladino-


amefricanos. Para um bom entendimento das artimanhas do racismo aqui
caracterizado, vale a pena recordar a categoria freudiana de denegação
(Verneinung): “Processo pelo qual o indivíduo, embora formulando um de
seus desejos, pensamentos ou sentimentos, até aí recalcado, continua a
defender-se dele negando que lhe pertença”. Como denegação de nossa
ladino-amefricanidade o racismo “à brasileira” se volta justamente contra
aqueles que são seu testemunho vivo (os negros), ao mesmo tempo que
diz não fazer isso (“democracia racial” brasileira”). (GONZALEZ, 2019, p.341)

78 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Destarte, entendemos que estudar e buscar compreender o contexto de produção
de conhecimento e as narrativas que dão sentido às experiências dos povos afro-
ameríndios nos possibilita construir ferramentas eficazes contra a perpetuação dos
modos de dominação que se utilizam da destruição da experiência cultural e subjetiva
de contingentes significativos da população brasileira.
Entendemos que o trabalho de campo realizado durante a pesquisa “Cartografias das
culturas populares: histórias de vida de mestras de religiões afro-ameríndias (2018-2021)”17,
é uma alternativa ao racismo epistêmico, tendo em vista a forma como tradicionalmente a
academia relegou ao lugar de marginalização saberes e narrativas das mulheres negras,
especificamente. Assim sendo, a busca por uma prática metodológica efetiva nas ciências
sociais feministas precisa romper com a colonização das nossas capacidades cognitivas.
Ao propor a amefricanidade como categoria político-cultural, Lélia Gonzalez traça
um pioneiro panorama a respeito de como o colonialismo sequestrou as capacidades
cognitivas e as nossas maneiras de pensar o mundo:

Sabemos que o colonialismo europeu, nos termos em que hoje o definimos,


configura-se no decorrer da metade do século XIX. Nesse mesmo período,
o racismo se constituía como a “ciência” da superioridade eurocristã
(branca e patriarcal), na medida em que se estruturava o modelo ariano
de explicação que viria a ser não apenas o referencial das classificações
triádicas do homem, como ainda hoje direciona o olhar para a produção
acadêmica ocidental. Vale notar que tal processo se desenvolveu no
terreno fértil de toda uma tradição etnocêntrico pré-colonialista (século
XV - século XIX), que considerava absurdas, supersticiosas ou exóticas as
manifestações culturais dos “povos selvagens”, daí a “naturalidade” com
que a violência etnocida e destruidora das forças do pré-colonialismo
europeu se fez abater sobre esses povos. (p.343)

Foi neste mesmo sentido que, algumas décadas depois, Boaventura de Sousa Santos
(2007), viria nomear de “epistemícidio” a destruição sistemática dos conhecimentos do
povo do Sul Global. O sociólogo de Coimbra argumenta que a ciência cartesiana europeia
se desenvolveu no sentido de estabelecer-se como único conhecimento capaz de entender
a realidade do mundo:

Refirome aos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses, ou


indígenas do outro lado da linha. Eles desaparecem como conhecimentos
relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo
do verdadeiro e do falso. É inimaginável aplicarlhes não só a distinção
científica entre verdadeiro e falso, mas também as verdades inverificáveis
da filosofia e da teologia que constituem o outro conhecimento aceitável
deste lado da linha. Do outro lado da linha, não há conhecimento real;
existem crenças, opiniões, magia, idolatria, entendimentos intuitivos ou

17 Projeto de pesquisa desenvolvido com alunas do curso de Letras e do Programa de Pós-Graduação em


Letras da UFPB, coordenado por Ana Cristina Marinho.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 79


subjectivos, que, na melhor das hipóteses, podem tornarse objectos ou
matériaprima para a inquirição científica. (SOUSA SANTOS, 2007, p.5)

O epistemícidio contra o conhecimento de povos historicamente oprimidos na sociedade


perpetua injustiças sociais e cognitivas. Entendemos que, apesar do conhecimento científico
hegemônico ter sua importância, a diversidade de experiência do mundo não pode ser
apreendida quando a enxergamos apenas através das lentes do conhecimento acadêmico,
branco e eurocêntrico.
Tendo em mente os questionamentos apontados pelas mulheres de cor, lésbicas, queer
e de outros grupos não hegemônicos do feminismo, devemos questionar, como Haraway,
a nossa participação “irrefletida na lógica, nas linguagens e nas práticas do humanismo
branco e na nossa busca de um fundamento único” (HARAWAY, p.58) para a dominação
das mulheres na sociedade em que vivemos. Pois, como apontaram as diversas sujeitas
da diferença, temos que romper com a lógica colonial e androcêntrica das ciências sociais
modernas, se quisermos pensar possibilidades reais de libertação para as mulheres.

A colonialidade do saber e do fazer acadêmico

As religiões de matrizes afro-ameríndias emergem no contexto colonial brasileiro


como exemplos de resistência dos povos colonizados e escravizados, constituindo-se em
universos múltiplos e multifacetados de saberes e práticas que, historicamente, resistiram
às formas de dominação europeias que impuseram a moral e a ética cristãs como preceitos
de humanidade, tendo as populações africanas sequestrados de seus países de origem
e aqui escravizadas e a população originária relegada à condição de sub-humanidade.
Os europeus forçaram os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos
dominadores em tudo o que fosse útil para a reprodução da dominação, seja no campo
da atividade material, tecnológica, como da atividade subjetiva, especialmente religiosa.
É este o caso da religiosidade judaico-cristã. Deste processo resultou a colonização das
perspectivas cognitivas, das formas de produção de sentido através de experiências
materiais e intersubjetivas e culturais, conforme explica Aníbal Quijano (2005). Como
sugere, também, Boaventura de Sousa Santos: “[...] o mundo colonial, o mundo da
sociabilidade colonial, é o mundo do “eles”, aqueles aos quais é inimaginável a existência
de qualquer equivalência ou reciprocidade, uma vez que não são totalmente humanos”
(SOUSA SANTOS, 2019, p.43). A precariedade imposta à população de terreiro é fruto
de uma tentativa de desumanização desta população por meio de políticas de estado
racistas. A tentativa de destruir todos os referenciais culturais do povo negro e indígena
é um exercício de manutenção do seu genocídio.
Pensando que a continuidade da lógica de colonização do saber perpetua-se também
nos estudos acadêmicos do feminismo, a teórica feminista e antropóloga social afro-
dominicana Ochy Curiel (2019), convoca a construção de metodologias científicas feministas

80 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


a partir do feminismo decolonial. A autora alerta-nos para o fato de que a maioria das
feministas pós-coloniais estão inseridas em espaços acadêmicos e, mesmo que estes
estejam sendo disputados por mulheres feministas, o distanciamento de movimentos
sociais e de narrativas e realidades de mulheres sem privilégios de raça, classe, sexualidade
e geopolítica, continua impondo limites às possibilidades de descolonização do saber.
Se a prática de pesquisa feminista se distancia de realidades de mulheres negras
e indígenas, centrando suas atenções e legitimando apenas as matrizes hegemônicas
eurocêntricas de conhecimento, estas continuam produzindo epistemicídios:

Uma das características da colonialidade do saber, é assumir que quem foi


definido como outrx, aqueles que representam a diferença colonial, são
geralmente os objetos das pesquisas: mulheres, negras, empobrecidas,
pobres, indígenas, migrantes do terceiro mundo - como se só fosse
possível realizar uma pesquisa feminista crítica e decolonial quando os
transformamos em matéria-prima. Normalmente, os privilégios de quem
produz conhecimentos sobre esses “outros” e essas “outras” parecem
inquestionáveis. (CURIEL, p.133)

Assim sendo, uma pesquisa que se queira realmente feminista e decolonial,


necessita romper com esta lógica de deslegitimação de saberes outros que não apenas
os consagrados na tradição acadêmica branca, masculina, heterossexual e capitalista. É a
partir dessa necessidade de radicalização da pesquisa feminista, que a autora entende que
seja necessário um desengajamento epistêmico com o que ela chama de antropologia da
dominação. Tal desengajamento consiste em “desvendar as formas, maneiras, estratégias,
discursos, que definem certos grupos sociais como “outros” e “outras”, a partir de certos
lugares de poder e dominação” (CURIEL, p.135). Precisamos recorrer ao permanente
questionamento de nossos métodos acadêmicos, entender as convergências que firmamos,
algumas vezes, com lógicas de pesquisa que exercem papel de dominação em relação
aos outros saberes não acadêmicos. Entender que estamos em campo buscando alianças,
buscando aprender com sujeitas de conhecimentos diferentes dos nossos e não com nosso
objeto de pesquisa. O processo de construção de conhecimento feminista pode e deve
ser horizontal e compartilhado em todos os níveis das pesquisas que estamos inseridas,
pois apenas assim romperemos com a lógica da colonialidade do saber.
Pensamos, em diálogo com Boaventura de Sousa Santos (2019), que o trabalho de
escuta em nosso campo deve diferenciar-se do que historicamente tem se cumprido no
extrativismo de conhecimento nas ciências sociais. Pois, o pesquisador extrativista “apenas
ouve o exterior quando não se está ouvindo exclusivamente a si próprio, e, mesmo quando
o faz, aplica uma economia de audição muito austera que visa extrair a máxima quantidade
de informação relevante no menor período de tempo” (p. 252).
Diante do que foi colocado, buscamos ocupar um lugar de escuta profunda e afetiva
que não assuma uma postura extrativista. Quando falamos em escuta profunda, seguimos
com o raciocínio de Sousa Santos que, ao se opor à ciência abissal e ao extrativismo das

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 81


ciências sociais, traça o comprometimento que o pesquisador pós-abissal deve ter com
uma experiência profunda dos sentidos:

No que se refere aos sentidos, ser investigador-pós abissal implica dois


compromissos. Primeiro, o investigador deve considerar que poderá estar
perante corpos desiguais e que, se não for controlada, a desigualdade
dos sentidos pode boicotar a sua investigação e o seu papel na luta.
Segundo, a investigação deve ser convertida numa pedagogia para a
libertação dos sentidos; as transcrições que produzem passividade têm
de ser questionadas a fim de criar espaço para transcrições alternativas.
Esse duplo compromisso permite ao investigador pós-abissal contribuir
para transformar corpos-vítimas em corpos-resistentes, sem que nesse
processo se tornem corpos-vítimas do investigador. (p.242)

Assumir esse lugar de escuta, em diálogo com teorias do feminismo negro, como
a do ponto de vista feminista18, nos coloca diante de questionamentos cotidianos sobre
a pressuposição de uma neutralidade do enunciador ou pesquisador, pois nossas
experiências de pertencimento a grupos sociais e históricos atravessam todas as nossas
práticas de pesquisa.

Saberes ancestrais que emergem a partir da escuta profunda

O desejo de trabalhar com as narrativas de mulheres juremeiras que vivem a cidade de


João Pessoa como terreiros de saber, surgiu da necessidade de romper com o silenciamento
que a academia, especialmente a área das letras, área que estamos inseridas, impõe aos
saberes dessa população. Narrativas que comportam as cosmovisões afroameríndias são
sistematicamente atacadas e excluídas pela lógica colonial que forma os textos canônicos
que acabam por tornarem-se referências culturais hegemônicas.
Quando estamos falando de Jurema Sagrada, ou ainda da Jurema cruzada com a
Umbanda, nos referimos ao culto da Jurema, que “é uma prática religiosa de tradição
indígena, especialmente das tribos do Nordeste, vinculada à árvore do mesmo nome
(jurema), a qual possui seu habitat no agreste e caatinga nordestina” (LIMA SANTOS, 2008,
p. 01). O cruzamento da Jurema com a Umbanda na Paraíba é fruto de um arranjo que
os povos de terreiro fizeram para escapar da violência e da criminalização das práticas
do Catimbó. Foi a partir da expansão da Umbanda e da militância organizada do povo
negro contra a criminalização de sua fé que o arranjo se deu, conforme elucida Idalina
Lima Santos (2008):

Em meados do século XX, no Estado paraibano, ocorre a aproximação do


Catimbó com a Umbanda em virtude do movimento de expansão desta

18 No Brasil, a filósofa e feminista negra Djamila Ribeiro (2017) acionou o conceito de lugar de fala para dar
conta da experiência feminista negra além da esfera individual, remetendo ao ponto de vista de grupos
sociais historicamente silenciados.

82 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


pelo país. Assim, foi se delineando a Umbanda cruzada com Jurema como
resultado da junção dos rituais da tradição juremeira/catimbozeira com a
Umbanda trazida oficialmente para o referido Estado nos fins de 1960. Até
essa época predominava na Paraíba a prática do Catimbó, tratado como
caso de polícia. Os catimbozeiros ou juremeiros desejosos de se libertarem
da pressão policial aceitaram se engajar na estrutura da nascente Federação
dos Cultos Africanos do Estado da Paraíba, encampadora da doutrina
umbandista. Contudo, a forte influência da jurema se fez presente na
reorganização sincrética dos elementos religiosos da umbanda paraibana.
(LIMA SANTOS, 2008, p.03)

Tendo em vista a dimensão de forte criminalização que os/as juremeiros/as/


catimbozeiros/as enfrentaram no contexto local da Paraíba, entendemos que as produções
de conhecimento advindas destas experiências promovem justiça cognitiva sobre a
temática invisibilizada, até mesmo dentro dos estudos das religiões afro-brasileiras,
segundo Sampaio:

Nesse contexto, a Jurema e o Catimbó, presentes no nordeste brasileiro,


especialmente na Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco, foram
relegadas não sendo tomadas como objeto de estudo. Devido à concentração
dos estudos na tradição jeje-nagô, o interesse pela Jurema ainda se mostra
mais tardio se comparado às demais religiões afro-brasileiras, pois mesmo
sua presença sendo notada nos denominados Candomblés de Caboclo
pelos autores pioneiros, passa, ainda assim, praticamente ignorada ou
despercebida por esses autores. (SAMPAIO, p. 04)

Foi pensando justamente neste processo de reelaboração dos cultos afro-ameríndios


do nordeste brasileiro que Luiz Assunção (2011) discorreu sobre a nova jurema, os
elementos tradicionais de origem indígena em terreiros de umbanda. Estes elementos
seriam o culto às entidades espirituais identificadas como pertencentes ao universo da
jurema: caboclos, índios e mestres. É neste sentido que o nosso interesse se volta para
as narrativas de vida de antigas juremeiras de João Pessoa, sobre suas relações com a
cidade e como os seus relatos são (re)construídos cotidianamente a partir desta relação.
Buscamos perceber como a memória mitológica (Sodré, 2018) destas senhoras constrói
espaços culturais outros, além dos que lhes foram imputados pela dinâmica patriarcal e
de forte herança colonial da cidade de João Pessoa.
O pesquisador da história oral Michael Pollak, em um artigo intitulado Memória
e Identidade Social (1992), buscou analisar como a memória de uma pessoa ou de um
povo era essencial para os processos de construção de pertencimento e, ainda, como a
construção dessa memória operava. O autor chegou à conclusão de que uma pessoa ou
um povo constroem memórias a partir da seletividade, as memórias são, portanto, textos
construídos e desconstruídos ao longo da existência:

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 83


A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado.
A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da
pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento
em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações
do momento constituem um elemento de estruturação da memória. Isso é
verdade também em relação à memória coletiva, ainda que esta seja bem
mais organizada. [...] Este último elemento da memória - a sua organização
em função das preocupações pessoais e políticas do momento - mostra
que a memória é um fenômeno construído. Quando falo em construção,
em nível individual, quero dizer que os modos de construção podem tanto
ser conscientes como inconscientes. O que a memória individual grava,
recalca, exclui, relembra, é evidentemente resultado de um verdadeiro
trabalho de organização. (POLLAK, 1992, p. 204)

Pensar a memória como construção narrativa implica entender também o viés político
que esses processos de subjetivação enfrentam. Se constituírem como sujeitas de sua
própria vida exige que as pessoas se tornem inteligíveis perante a sociedade da qual
fazem parte e, assim sendo, os relatos de vida são investimentos políticos, principalmente
quando pensamos o contexto de dupla opressão estrutural no qual estas mulheres estão
inseridas. “Não há criação de si (poiesis) fora de um modo de subjetivação (assujettisement)
e, portanto, não há criação de fora das normas que orquestram as formas possíveis que
o sujeito deve assumir”. (BUTLER, 2015, p.29)
O trabalho com a metodologia de campo da história oral e com a construção
de narrativas de si é uma empreitada pouco alicerçada em certezas que possam ser
apreendidas por metodologias positivistas de compreensão da realidade, enquanto objeto
estável e apreensível. Entendemos, pelo contrário, que estas senhoras são sujeitas de suas
vidas e suas histórias, imperativo ético que nos leva a estar diante delas, ao lado delas, na
busca por trocas de experiências que nos possibilitam traçar cartografias culturais para
além do ethos branco e patriarcal.
Assim sendo, entendemos que o relato que nos é oferecido pelas mulheres juremeiras
que vivem a cidade de João Pessoa como terreiros é fruto de processos de subjetivação
que as formaram enquanto sujeitas de suas próprias vidas. O empenho em construir
uma história permeada por coerência e sentido constrói marcas de suas vozes e de suas
lutas diante das condições de vida que estiveram (ex)postas. Buscamos redesenhar estas
marcas, trabalhar a partir delas, bem como perceber lacunas e contradições apresentadas
durante as entrevistas que se tornaram, desta maneira, lugares valiosos de compreensão.
Como nos alertou a filósofa norte-americana Judith Butler (2015), a compreensão
e construção da própria realidade pelo sujeito se dá em relação com o conjunto de
instituições de normas e agenciamentos sociais e coletivos. O relato de si mesmo é
impensável como narrativa individual e estável:

Desde o princípio, a relação que o “eu” vai assumir consigo mesmo,


como vai se engendrar em resposta a uma injunção, como vai se formar

84 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


e que trabalho vai realizar sobre si mesmo - tudo isso é um desafio, quiçá
uma pergunta em aberto. A injunção força o ato de criar a si mesmo ou
engendrar a si mesmo, ou seja, ela não age de maneira unilateral ou
determinística sobre o sujeito. Ela prepara o ambiente para a autocriação
do sujeito, que sempre acontece em relação a um conjunto de normas
impostas. A norma não produz o sujeito como seu efeito necessário,
tampouco o sujeito é totalmente livre para desprezar a norma que inaugura
sua reflexividade; o sujeito luta invariavelmente com condições de vida
que não poderia ter escolhido. (BUTLER, 2015, p.31)

Entender os processos de subjetivação de uma pessoa é também entender que a


construção de identidade passa por um esforço da pessoa de se fazer inteligível pela
sociedade. Sobre a memória e construção de sentido Pollak (1992) afirma que:

Nessa construção de identidade - e aí recorro à literatura da psicologia


social, e em parte da psicanálise - há três elementos essenciais. Há a
unidade física, ou seja, o sentimento de ter fronteiras físicas, no caso do
corpo da pessoa, ou fronteiras de pertencimento ao grupo, no caso de um
coletivo; há a continuidade dentro do tempo, no sentido físico da palavra,
mas também no sentido moral e psicológico; finalmente, há o sentimento
de coerência, ou seja, de que os diferentes elementos que formam um
indivíduo são efetivamente unificados. De tal modo isso é importante que,
se houver forte ruptura desse sentimento de unidade ou de continuidade,
podemos observar fenômenos patológicos. Podemos portanto dizer que
a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade,
tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência
de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução de si. (1992. p: 204)

No entanto, o trabalho com a memória não pode ser considerado em abstrato, pois
aqui entendemos que as mulheres juremeiras são sujeitas detentoras de conhecimento
que nós não possuímos. E se nós precisamos do conhecimento que elas têm a nos oferecer,
é necessário que tenhamos o máximo cuidado com suas narrativas. Sobre o tratamento
da memória como fonte na história oral, é Pollak ainda quem elucida essa questão que
permeia o imaginário do senso-comum sobre a validade dos depoimentos orais como
fonte de pesquisas:

Se a memória é socialmente construída, é óbvio que toda documentação


também o é. Para mim não há diferença fundamental entre fonte escrita
e fonte oral. A crítica da fonte, tal como todo historiador aprende a fazer,
deve, a meu ver ser aplicada a fontes de tudo quanto é tipo. Desse ponto
de vista, a fonte oral é exatamente comparável à fonte escrita. Nem a
fonte escrita pode ser tomada tal e qual ela se apresenta. (1992, p. 207)

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 85


Por mais que tenhamos noção que todo tipo de fonte seja passível de investigação,
contradição e dúvida, o modo abissal de fazer ciência historicamente descredibilizou o
conhecimento vindo de fontes orais, fruto da estratificação que a escrita (em detrimento
da oralidade de povos não ocidentais) adquire na sociedade. Não buscamos posturas de
neutralidades (impossíveis, como vimos) diante do que tentávamos compreender, pois
entendemos que não existe uma correlação de poderes simétrica na sociedade de herança
colonial, patriarcal e capitalista que vivemos. Existem, isso sim, grupos que historicamente
foram marginalizados pelos poderes que formam o conjunto da nossa sociedade. Assim
sendo, escolhemos ficar ao lado e aprender com as mulheres juremeiras cuja ausência
de direitos, de voz, de corpos de ainda é uma realidade quando pensamos a construção
de cidadania em nosso país.
Não buscamos ficar distantes, por entendermos que o positivismo acadêmico é
apenas um fetiche que aparta o pesquisador da realidade. Para nós, interessa mais a
troca de afetos como processo genuíno de compartilhamento de experiências, pois, no
contexto das entrevistas e da temática que estávamos analisando, elas tinham muito a
nos ensinar e nós tínhamos tudo a aprender. Dizer que buscamos a proximidade com
estas mulheres, por meio de conversas afetuosas, não quer dizer que as entrevistas foram
realizadas de forma leviana, estamos falando que proximidade e construção de confiança
mútua são necessárias, pois nos compreendemos como sujeitas dotadas de conhecimento
e subjetividades.
Estabelecer uma esfera de comunicação com Inês dos Santos, por exemplo, senhora
de 70 anos que nasceu em Caiana dos Crioulos, localizado no Brejo Paraibano, que precisou
migrar para a cidade de João Pessoa quando seus pais adotivos - que eram antigos
juremeiros – morreram, nos colocou diante do que menciona Larrosa sobre a construções
de nossas próprias histórias:

[...] la historia de nuestras vidas depende del conjunto de historias que


ya hemos oido y, en relación a las cuales, hemos aprendido a construir
la nuestra. La narrativa no es ele lugar de irrupción de la subjetividade,
sino la modalidade discursiva que establece la posición del sujeto y
las reglas de su construcción em una trama. Por tanto, el desarollo de
nuestra autocomprensíon dependerá de nuestra participación em redes
de comunicación donde se producen, se interpretan y se median historias.
(2004, p.19)

Assim sendo, entendemos que, para estar confortáveis e nos contarem algo, essas
mulheres devem entender que as suas histórias significam algo para nós; entender qual
o sentido de estarem conversando com duas pessoas19 que até pouco tempo atrás ela
sequer conhecia e ainda mais com um gravador ligado. Entendemos que a conversa
poderia fluir melhor se o regime de afetos fosse estabelecido entre nós, possibilitando
que as suas narrativas estivessem em contato com as nossas também. Pois, como afirma
19 As entrevistas aconteceram ainda com a presença de Marinaldo, pai de santo, amigos de muitos anos de
Inês e grande conhecedor do contexto da Jurema em João Pessoa, além das autoras desse texto.

86 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Larrosa (2004), a autocompreensão se dá em comunicação com os outros, através das
diversas mediações que fazemos.
Entre um toque de gira e outro; entre uma festa para o reinado do Caboclo Reis
Malunguinho, nas matas do quilombo do Catucá, na cidade de Abreu e Lima-PE, e uma festa
para Iemanjá no terreiro de pai Arnóbio, localizado no bairro do Geisel na cidade de João
Pessoa-PB, muitos foram os aprendizados que nos fizeram melhor tentar compreender
como o povo de Jurema tem sobrevivido ao extermínio cultural durante todos esses anos.
Os dilemas e conflitos dos terreiros, as trocas e solidariedade entre os filhos das casas,
além do acolhimento para conosco.
Nos terreiros, tambores são autoridades que abençoam: “minha benção ogã”. Saias
e vestidos são a memória de mães e pais de santo que já não vivem no plano físico, como
quando Inês nos disse que sempre carregava a madrinha de santo dela para as giras
em uma saia que a finada lhe deu. Entidades místicas estão presentes em conversas de
corredores como se fizessem parte da família carnal da pessoa: “mulher, esse teu menino20
tá muito danado, porque tu não coloca ele em um reforço”, ou ainda “minha Padilha tá
muito triste porque eu não cumpri a obrigação que ela me pediu.”
Os terreiros são lugares, assentamentos de aprendizados constantes, não por acaso
a cultura popular brasileira está edificada em conhecimentos macumbísticos vindos dos
terreiros, como o samba, ritmo mais popular do país, os toques de cocos e uma infinidade
de práticas de rezas e benzeduras que de tão incorporadas à cultura do catolicismo popular,
muitos devotos sequer sabem para quais santos estão rezando.
Dessa maneira, a experiência nos terreiros, a escuta profunda e afetiva de narrativas
de vida e de luta, em espaços da casa, nos fazem relembrar que não há hegemonia que
não possa ser driblada, que não há projeto de colonização que perdure sem resposta.
Experimentar, mesmo que a partir de uma distância considerável e irremediável, o contato
com a Arte Encantada e Sagrada da Jurema se consolidou como um convite à criatividade
exusíaca.

Referências

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caboclos e encantados. In: PRANDI, Reginaldo (Org.). Rio de Janeiro: Pallas, 2011, p. 182
- 215.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2016.

20 Senhoras conversando no intervalo de uma festa de Iemanjá e referindo-se às entidades Erês, que são
mestres espirituais crianças dotadas de muita sabedoria espiritual.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 87


BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Belo Horizonte: Autêntica
editora, 2015.

CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina


a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.).
Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo,
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CURIEL, Ochy. Construindo metodologias feministas a partir do feminismo decolonial.


In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de (Org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas
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GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da amefricanidade. In: HOLLANDA, Heloísa


Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar
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HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final


do século XX. In: TADEU, Tomaz (Org.). A antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-
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LIMA SANTIAGO, Idalina Maria Freitas. A Jurema Sagrada da Paraíba. In: QUALIT@S Revista
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88 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


PARTE II

SELETA MULHERES EM CENA:


CORDEL, CONTO E XILOGRAVURA

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 89


Quão breve és tu, vida
Allini Paulini

Desde o sopro da vida


Até a hora de morrer
Não sabemos quanto tempo
Nós teremos pra viver
Portanto, comece hoje
Por tudo agradecer.

E não esqueça de amar


Mesmo que não seja amado
Doe sempre o seu melhor
Especialize-se em cuidado
E trate todo mundo bem
Mesmo não sendo bem tratado.

Faça grandes aventuras


Com responsabilidade
E as escolhas que fizer
Deposite intensidade
E voe cada vez mais alto
Buscando felicidade.

Cuide das suas palavras


Exale sabedoria
Ajude quem mais precisa
E faça tudo com alegria
Crie relações saudáveis
E aja sempre com empatia.

Enfrente o que lhe amedronta


E impede de seguir em frente
Seja sempre otimista
E também muito resistente
E quando houver imprevistos
Seja firme e paciente.

90 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Faça novas amizades
Reconheça as que já tem
Valorize quem está perto
E os distantes também
Acolha os bons sentimentos
Independente de onde vem.

Doe o que tem de melhor


Mesmo sem reciprocidade
Respeite todas as pessoas
Não importando a idade
Busque ser só generoso
Evitando a vaidade.

Exercite o perdão
E não viva magoado
Pois o outro é um presente
Que todo dia nos é dado
Cure as suas emoções
E não viva preocupado.

Evite tantos julgamentos


Admire muito mais
Respeite o brilho alheio
E o teu instinto educais
Não viva corrigindo o mundo
Mas pra ser bom te esforçais.

Lembre do que lhe fez bem


Reative a sua memória
Tome uma dose de energia
E viva uma nova história
Faça tudo com amor
E deixe uma linda trajetória.

Dedique-se as suas crenças


Tenha em quem confiar
Acredite nas pessoas
Disponha-se a ajudar
Melhore o seu interior
Tenha motivos pra celebrar.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 91


Viva a sua finitude
Com muita inteligência
Faça tudo com prazer
Mas exercite a prudência
E busque ser reconhecido
Pela sua sapiência.

Por isso, antes que a vida


Tão terrena e passageira
Arduamente se encerre
De maneira traiçoeira
Desfrute profundamente
De alegrias verdadeiras.

92 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Diga não ao machismo
Carla Montanha

Eu vim por aqui falar


Em um grito permitido,
Que se escama da denúncia
E sai do peito, emitido,
Através de um cordel
Falando num tom sofrido.

O que tem acontecido


E precisa ser exposto,
A violência cruel
Que tenta apagar um rosto,
Nesse triste decorrer
Que nos traz tanto desgosto.

O machismo sobreposto
É problema que maltrata,
Saia já com seu achismo
A sua maldade mata,
Nunca será vitimismo
O crime que ela relata.

Coisa que ninguém acata


Entre marido e mulher,
É vê-la sendo agredida
E não meter a colher,
Chame ajuda e denuncie
Esteja onde estiver.

Na circunstância que houver


Deixar mulher padecer,
E o machismo te servir
Feminismo é para ter,
No direito essencial
De trabalhar e viver.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 93


O sistema pode ser
Verdadeiramente igual,
Quando o corpo feminino
Vinculado ao sexual,
Perder a conotação
Do selo patriarcal.

Não há de ser natural


Conviver com agressor,
Quem acha que armar é bom
Pode chamar de opressor!
E tenho total direito
De expressar o meu pavor.

Presidente, meu senhor


Quando é que seu mandato,
Enfim pode ser caçado?
Mesmo com protesto e ato,
Ainda não entendi
Como ganhasse de fato?

E aqui nesse relato


Deixo a voz vir ecoar,
Sou mulher em toda parte
Vou onde quiser chegar,
Meu lugar é um caminho
Que eu mesma posso trilhar.

E na chama a espalhar  
No fogo do coletivo,
Trago arte como forma
De agregar ao positivo,
Com orgulho faço parte
Desse poder efetivo.  

Louvo o valor expressivo


Das muitas que começaram,
O sangue de mudar pulsa
Contra os que nos forçaram,
Já que nessa trajetória
Mulheres nos inspiraram.

94 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Pelas que continuaram
Nossa voz não terá corte,
Mesmo que o choro venha
E o riso se desconforte,
Ninguém irá derrubar
Quem nasceu para ser forte!

Nessa luta temos porte


O sistema não nos cala,
E para continuar
A gente mantém a fala,
De nunca se contentar
Com o machismo que entala.

É esse grito que exala


Pelas vítimas espancadas,
Dentro de seus próprios lares
Com dores silenciadas,
Por maridos tão cruéis
Que estão livres nas calçadas.

Tirem eles das moradas,


Por prisão vamos bradar
A labuta é dia a dia,
Voz é feita pra usar!
Digo em versos de cordel
Nunca podem nos parar!

Sigo firme a caminhar,


Pois sou mulher consciente
Trago o peito aliviado
Termino o verso contente,
E como sou nordestina
Não votei no presidente.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 95


Chegança
Catarina Calungueira

Ô de dentro
Ô de fora
Peço licença
Pra fazer minha chegança...

Ah, eu vim de lá
Das terras de São Saruê
Da fartura e da bonança
Brinco que nem criança.

A barra do meu vestido


É tão linda parece ouro
Sou brinquedo e brincadeira
Diversão de Calungueira.

Nasci enredo popular


Construtora de sonhos
Me fiz mulher “caatingueira”
De mundos virei parideira

Sou a velhice e a mocidade


Tenho a idade do tempo
Comunicante universal
De resistência atemporal.

De identidade faceira
Me volto pro riso
No teatro popular
Onde a tolda é o meu lar.

Agradeço aos mestres


E as mestras também
Pelos saberes ofertados
Em corações compartilhados.

96 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Sou João Redondo
Calunga do teatro popular
Quem leva essa herança
Semeia esperança.

Ô de dentro
Ô de fora
Tô indo embora
Mas a volta não demora.

Assim eu me despeço
Foi boa a acolhida
Fico agradecida
Por sua companhia.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 97


O velho do mar
Cleusa Santo

Sebastião de Lourenço
Era um velho pescador,
Na cidade apelidado
De Sebastião doutor,
Pois conhecia a fúria
Do gigante Adamastor.

Sentado em frente ao mar


Começava a descrever:
Hoje o sol esta tinindo
Amanha irá chover,
Quem não respeitar o mar
Com certeza vai morrer.

Era um vidente das águas


Com um bom conhecimento,
Conversava com os peixes
Com a chuva, sol e vento.
O mar é um ser vivo
Respeite e fique atento.

Falava com a sua pesca:


Da licença divindade,
Temos que sobreviver
Eu e todos da cidade.
Peço perdão por favor,
Desta minha crueldade.

Ninguém sabe ninguém viu


O fim de Sebastião.
Dizem que sumiu no mar
Num lombo de um tubarão.
Que mora nas brancas ondas
Numa velha embarcação.

98 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Orgulho Nordestino
Francine Maria

Vou falar do Nordeste


Tem lugar mais bonito não
Do nosso mandacaru
Também do nosso gibão
Venha conhecer um pouco
Aqui o meu sertão.

Falo de um cangaceiro
Chamado Lampião
Era um cabra da peste
De raiz e tradição
Que fez muita história
Marcadas por nosso chão

O Nordeste teve a honra


De poder acompanhar
O nosso Rei do Baião
Que nasceu para brilhar
A sanfona adotou
Para todos conquistar

Sobre a nossa chuva


Tudo volta a florescer
O agricultor vai plantando
Pra depois vir a nascer
E a colheita é esperada
Pra depois poder comer

Cantei nosso lugar


Cantei seca constante
Nordestino, povo forte
Cantei navegante errante
Uma vida de outrora
Pau-de-arara, retirante

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 99


(Re)existência: viver em estado de poesia
Isis da Penha

Nesse mundo em que eu bebi


Do melhor leite materno
Colostro da poesia
Meu gemido é subalterno
A mão do destino pesa
Sou sombra de uma voz presa
Voz que ecoa de outras fêmeas,
Que mesmo com a voz calada
Educaram-me amostrada
Pra desfrutar das blasfêmias.

Faço o meu ninho nas palavras


Meu voo é compartilhado
Sendo essa maior memória
Do cordel que rendilhado
Feito acidente em minh’alma
Eu desfruto então com calma
Dos riscos desse mau tempo
Degusto dores, delícias
Afogo-me nas carícias,
Transcendendo noutrotempo.

Se foi aquele período


Em que as bocas se fechavam
Com as mordaças dos senhores
Que nossas vozes cercavam
Como o milho o céu aponta
E o feijão que forma manta
Semente de mulher brota
Vento bondoso carrega
Ela resiste e ele entrega
Florida, traçando rota.

100 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


É preciso que as raízes
Com gana se fortaleçam
Pela força da magia
Que As Fortes prevaleçam
Rindo quando canta o choro
Da marca do desaforo
Ser lugar e posição
Dando voz ao corpo estranho
Apanhando ainda arranho
A face dessa nação.

Do cordel os versos voam


Os céus se formam, que encanto!
Todos com ferros acesos
Denunciam, gritam tanto
Por sonhos silenciados
E versos não declamados
Ainda assim tão marcada
Pelo ferro de ancestrais Estes céus viscerais
É de poesia cravada.

E nesta luta de vozes


Fui rasgada e fui ferida
Nem última, nem primeira
Pelo machismo atingida
Minhas palavras não calam
Rimas entre elas escapam
Nos passos em que tropeço
Quem respira a poesia
É amparo e alegria
Eu caio, mas recomeço.

Na alvorada que acordo


São as lutas dessa vida,
Unindo tantas mulheres
Que de suas vozes duvida
Mas onde passa clareia
Vive, rima e relampeia
A resistência que guia
Ironias e cansaços
Esquentam herdados laços

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 101


Onde corre a ousadia.
Emprestamos face a voz
E exalamos rebeldia
Aquele que faz barulho
E sufoca a poesia
Por ser grito feminino
“Domestique” seu menino
Que minha voz é selvagem
Eu não vivo, eu aguento
No corpo carrego alento
No meu seio há coragem.

Que a mulher seja adorada


Por teu seio salvador
Que a princípio alimenta
A humanidade e a dor
Que mais dia menos dia
Cantará da alegria
Até que já não precise
Chorar e morrer gritando
Que até mesmo interditando
Nossa voz será marquise.

Aninhada em meus sertões


Em estado de poesia
Na arte de se viver
Eu quero ser travessia
Da palavra que em mim arde
Que queime, mate e retarde
De dentro esse meu sorriso
Pende bem aqui pra fora
No riso a poeta chora
Pois resistir é preciso.

102 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


O projeto Mulheres em Cena
Israela Rana

É o Mulheres em Cena
Projeto de extensão
Criado ano passado
Busca uma interação
Da nossa Universidade
Unindo a sociedade
Cultura e educação

Se alguém te pergunta
O que é cultura popular?
Tu acha que é só cordel
Mas tem o resto a espiar
Pois lhe digo, atenção
É maior a vastidão
E vai te arrebatar

Tem peleja, o repente


Romance, trova, cordel
Contação, xilogravura
Na madeira ou no papel
Peraí que ainda tem mais
Vou lhe contar outras mais
Anote com um pincel

Cerâmica, coco de roda


Pra compor o artesanato
Vou lhe dizer outra mais
Pra você ficar ligado
Tem a danada da xita
Que deixa a mulher bonita
Alinhada de bordado

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 103


Ah! Se for pr’eu dizer
A imensidão do imaginário
Passa de ser bonito
Chega a ser fabulário
Me perdoe se esqueci
Nem foi porqu’eu quis
Mas é grande o formulário

Na cultura popular
A mulher foi apagada
Com o patriarcalismo
Que lhe deixou separada
Não podendo falar
Pelejar declamar
Sua arte formulada
Pois o ‘home’ dizia
Que ela inferior
“Isso não é pra mulher”
“deixa pros proseador”
Surgindo o preconceito
Desmerecendo seus ‘feito’
De cantar com amor

Surgiu Mulheres em Cena


Com o objetivo pautado
De divulgar as artistas
Que tinha como trabalho
A arte disseminar
Na cultura popular
Foi por ela idealizado
Com muita dedicação
Criou-se essa ação
Graças a Luciana Calado

Criando esse espaço


Pra mulher poder falar
Sendo ela artista nata
Da cultura popular
Nada tirou sua alegria
Nem mesmo uma pandemia
Impediu-as de mostrar

104 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Junto às mídias sociais
Com a tecnologia
Se fez nosso projeto
De tamanha ousadia
Teve de se adaptar
No objetivo chegar
Divulgando a maestria
Pelas redes sociais
Artistas especiais
Fizemos as parcerias
No Instagram, YouTube
Eventos e Facebook
Tudo para não parar
De procurar valorizar
A mulher que compõe
O imaginário popular.

Nem mesmo a Covid


Para a Educação
Valorizar a cultura
É a nossa obrigação
Levantar outra mulher
Dando a ela nossa mão
Fornecendo seu espaço
Lhe dando a atenção
Mostrando a sociedade
Sua capacidade
De fazer sua atração

Cultura popular e
autoria feminina
É o nosso minicurso
Que debate e opina
Os diversos gêneros
Das protagonistas meninas
Lourdes Ramalho
A primeira
Dramaturga Nordestina
Do teatro popular
Que escreve com estima
Pra vir as repentistas

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 105


Maravilhosas artistas
Que proclama a ruína
Do repentista masculino
Achando que por ser menino
Peleja mais que menina
Coitado, ta enganado
Pois fique logo avisado
A repentista assina e ensina

Foi então o terceiro


Pra falar do cordel
Mulheres que declamam
Esse folhetinho de papel
Depois veio xilogravura
Esculpindo as figuras
Pra compor esse anel

Depois tem a contação


Das histórias populares
Mulheres que performam
Nos mais diversos lugares
Pra vir à memória mítica
Que traz a oralidade
Relembra ao interlocutor
A ancestralidade

Teve também romanceiras


E o nosso coco de roda
Pra terminar o momento
Não podemos ir embora
Sem trazer as calungueiras
Com sua arte faceira
Que nos coloca a prova
Pra ver suas criações
Bonecas feitas à mão
Compondo essa escola

106 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Pra terminar tem forró
Januárias são chamadas
Três moças que compõe
Essa banda arretada
Com a Julia Juazeira
Cordelista de primeira
Constroem essa empreitada
Nireuda e a xilogravura
Catarina na formosura
Suas calungas enfeitada
Termina então pra gente
Essas artes performadas.

E por aqui também fico


Eu fui muito tagarela
Mas tinha que declamar
Essa aglomeração bela
Desculpe nem me apresentei
Vou fazer bem singela
Pra dizer a quem quiser
Mulher fica onde quiser
Quem falou foi Israela.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 107


Nós
Júlia Juazeira

Resolveram decidir por nós


O que seria ser mulher
Por nós que só nos amarraram
De minha cabeça até seu pé
Nós apertados sem laços
Ser mulher no passo a passo
Eu ja nem sei mais o que é

Todos vieram de uma


Não se esqueça de lembrar
Maria bonita ou da Penha
Daqui ou de outro lugar
Respeito que é meu por direito
E ja não pode me faltar

Se for preciso eu vou gritar


Pra mudar tudo isso aqui
Deixa eu te contar, ja foi
Mas não vai continuar assim
Homi eu to bem do teu lado
Prometi e ta jurado
Agora eu que mando em mim

Então eu sou de onde quiser


E o corpo ainda é meu na rua
Eu não perguntei nada
Ainda que eu tivesse nua
Não se nasce mulher não
Mas toda hora morre uma.

108 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Vida e Arte
Maria Aparecida do Nascimento Silva

Às plantas são usadas


Como remédio meu irmão
Umas nos laboratórios
E outras em nossas mãos
Serve pra tudo
Que você está sentino
Pra xarope e até banho
Pra mulher e pro menino
Dra. Salete veio aqui
Só pra desenvolver
Um curso só pra mulher
Se quisesse aprender
A ACS e a enfermeira
Foram as primeiras a chegar
Pois tinha o ofício
Das doenças transformar
Ainda éramos postinho
E queríamos promover
Um grupo de mulheres
Para a comunidade fortalecer
A gente se encontrava
Uma vez por semana
E quando terminava
Era uma farra bacana
Os remédios que eram feitos
Vinham todos postinho
Para ser distribuído
com receita bem certinho
Tinha dr. Djacir
Que abraçou a nossa causa
E tornou a nossa vida
Bem descomplicada
A gente usava de tudo
Da salsa ao melão
Também usava Juá
Para fazer o sabão

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 109


Que serve para caspa
E também pra coceira
Tudo isso se fazia
No posto de mangabeira
A comunidade é rica
Em plantas medicinais
Espinho de cigano, mussanbe
Que nasce como capim
Pois disso ela é capaz
Tem cidreira e babosa
Aroeira e alecrim
Tem pitanga e amora
Insulina e o santo capim
Tudo isso tem serventia
Pro catarro é rouquidão
Pra coceira e ansiedade
Pra diabetes e hipertensão
A feira de saúde
Que foi feita na unidade
Fizemos o que podia
Para ajudar a comunidade
Pra mim é gratificante
Ver meu trabalho valorizado
E reconhecido num abraço
Um sorriso, um muito obrigado
Obrigada pelo tempo
Que prestaram atenção
Isso pra mim
Também é gratidão

110 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Essência e limites
Maria Aparecida do Nascimento Silva

Pesquisar e atuar
No serviço social
Teoria e prática
Não é nada desigual
Privilégio a liberdade
No núcleo transformador
E o código de ética
Reconhece esse valor
A atuação nesse serviço
Junto a políticas sociais
Unidade entre teoria e prática
Na sociedade de sujeitos livres e iguais
A efetiva participação
Na análise da formulação
Tem um grande destaque
Após o movimento da reconceituação
Liberdade e igualdade
Necessita consideração
Cada uma em especial
No seu modo de produção
Nas sociedades sem desenvolvimento
E nas comunidades primitivas
A liberdade se restringe ao trabalho
Porém é limitada a forças produtivas
A igualdade se expressava
Entre indivíduos iguais
Mas, em muitas sociedades
Havia no trabalho divisões sexuais
O trabalho é definido
Atividade consciente
Transformação da natureza
E fenômeno humano exclusivamente
A parte que me cabe
A liberdade a igualdade
A essência e os limites
De estar em sociedade

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 111


Força Negra
Maria Aparecida do Nascimento Silva

Em vinte de novembro
Vamos comemorar
A consciência negra
E a nossa história resgatar
Racismo é crime
Descriminação é injúria
Preconceito é uma coisa
Que destrói a criatura
Eu vejo no negro de hoje
A imagem de Zumbi
Quando entram numa luta
E não querem desistir
A história do meu povo
Não pode morrer aqui
Foi feita de guerras e lutas
E direitos devem garantir
Quem garante os direitos
É a constituição
A lei maior do País
Mas com organização
Queremos nossos direitos
Desistir não tem condição
Com luta e exigências
Com muita reivindicação
Zumbi dos palmares
Foi o herói da história
Mas o que posso contar
Não Teve um passado de glória
O sofrimento foi grande
Para conseguir o que queria
Nunca desistiu da luta
Era grande a agonia
Teve também as mulheres
Que fizeram a história surgir
Acotirene, Tereza e Luiza Mahim
Teve também Dandara, mulher de Zumbi

112 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


No quilombo dos palmares
Que ficava em Alagoas
Zumbi por lá foi herói
Pois plantava coisas boas
Na Serra da barriga
O quilombo de Zumbi
Ficava em Alagoas
Eu digo: meninos eu vi!
Eles eram organizados
Mas entre eles tinha um traidor
Seu nome era Ganga Zumba
O tio do bem feitor
Uniu-se com o governo
Ganga Zumba o traidor
Zumbi dos palmares não sabia
Que ia viver essa dor
Ô quilombo dos palmares
A divisão chegou aqui
Por vinte anos ainda
Ele pode resistir
O Domingos Jorge Velho
Tinha sede de vingança
Conseguiu destruir o quilombo
Com mulher, velho e criança
Inda à comunidade
Que são remanescentes
Quem mora lá hoje eu digo
Que é o povo bem carente
Carente de direitos
Com vontade de lutar e viver
Meus amigos eu lhes conto
Que da gosto a gente ver
A luta desse povo
Por saúde e educação
Alimento e moradia
E a paz por opção
A religião do meu povo
É o candomblé no terreiro
O povo canta e dança
Eita que povo festeiro
A festa da kizomba

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 113


É a alegria do meu povo
Eu desejo que se repita
Tudo isso aqui de novo
Obrigada a todos
Que vieram aqui
Tudo que aqui fizemos
Foi pra poder construir
Um mundo bem melhor
Para viverem aqui
O branco o índio o negro
Em harmonia e da luta não desisti

114 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Das nascentes
Natália Honorato

Vó,
sei quem é,
seu nome e fisionomia.
Vida de muita pobreza,
pouco carinho,
de onde ela vinha
dormia-se de cansaço.
Dentro de si,
era só uma menina,
que se fez grande
do jeito que deu.

Minha vó não me contou história,


Mas devo a ela a minha.

Dedicado à Raimunda Ferraz de Alencar, Granito-PE;


e Doralice Marques, João Pessoa - PB

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 115


Minha vó é mina d’água
Natália Honorato

Quando minha bisavó deixou sua terra natal, ainda levava consigo o coração como
de costume, mas a cada passo que dava, rumo ao que ainda não se sabia, ele apertava e
apertava mais. Havia muitas malas e toda uma porção de coisas para dar conta, preparar
a comida, vigiar as crianças, que causava tamanha irritação ter aquela coisa inútil lhe
pesando o peito. Durante a caminhada, passavam por muitos rios e quando ela se viu
diante de um com águas turvas, não pensou duas vezes – arrancou aquele peso como um
dentista arranca um dente podre e jogou-o na água. Não fazia sentido carregá-lo mais, em
diante, tudo aquilo que ela era, tudo aquilo ia sendo engolido por um destino insensível.
Até hoje eu me pergunto se o que carrego é um coração ou uma ausência insistente.
Minha vó senta no sofá e passa longas horas olhando para a televisão, penso se ela tenta
assim, enganar o futuro, se ela acha que tão quietinha, ele vai finalmente deixá-la em paz
e ela poderá ficar onde está, mesmo que já nem saiba mais o que seja isso. Minha vó se
esconde, sempre quis vê-la sair ali de dentro do que parece ser ela. Ninguém pode ser só
isso, só esse silêncio todo. Vó, quando você morrer, eu vou abrir seu peito para saber o
que a gente tem dentro. Às seis horas da tarde, ela sai para o culto, não concordo com o
que aquele cara de terno e gravata diz, mas ele é o único para quem ela chora, é o único
que a vê saindo, mesmo que bem baixinho. Eu me pergunto para quem ela reza, se deseja
mesmo ir para esse lugar que os pastores falam, será que a morte não a assusta ao ponto
dela preferir ficar engasgada no tempo? Vó, pessoas sem coração entram no céu? Porque
eu prefiro ficar aqui ou ir voltando. E se a gente descobrisse o rumo de casa? Vó, eu não
quero que esse Deus venha buscar minha alma, se ela é minha mesmo, vou segurá-la bem
forte: ninguém vai nos tirar mais nada! Minha vó não diz nenhuma palavra e algo em
mim aperta. Ela calmamente me olha, quase que sumindo do que eu chamo de presente,
de matéria nítida, e paira em cima do que passou, mas não foi embora. O silêncio é um
grande chão que se abre e não tem nada segurando. Por que eu me sinto sufocada? Se
eu pudesse escrever sobre mim, descreveria-me como a menina que pisava em ovos.
Talvez se tivessem me falado que esse mundo também era meu, eu sentiria mais firmeza
ao pisá-lo. Minha vó nunca foi colo, terra demarcada, nasceu com o coração espalhado na
água coberto por toda a dureza que tem nessa terra, mas ela sabe que em algum lugar
ele toca e põem-se bem quieta a escutá-lo... Minha vó é mina d’água.

Dedicado à minha bisavó Maria José Marques, João Pessoa -PB,


e a todas as outras mulheres que migraram.

116 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Xilogravuras
Nireuda Longobardi

Cordel “Justiça Violada”, escrito pelo coletivo “Teodoras do Cordel SP”

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 117


Cordel “Luta contra a violência feminina” escrito por Dani Almeida

118 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Xilogravura “Poeta na praça” capa do livro “80 anos de publicações femininas na literatura de
cordel” Editora Cordelaria Castro.

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 119


AUTORAS, AUTORES E AUTORXS

120 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


CAPES-PRINT - “Concepções de espaços,
territórios e redes em contextos marcados
pela diversidade” e realiza estágio de pós-
doutoramento no Centro de Estudos Sociais
da Universidade de Coimbra.

Allini Paulini
Allini Paulini é Pernambucana, formada e
Bibliotecária (UFPE) | 2012). Especialista em
Educação Especial e Inclusiva (UNINTER) |
2019). Aprovada no Mestrado em CI (UFPB |
2022), escritora, cordelista, poeta e ativista
Carla Montanha
dos direitos das mulheres na cultura
popular. Instagram: @cordelar Carla Montanha, 24 anos, Pernambucana,
nascida no Município de Garanhuns. É
Poeta, Produtora Cultural, Atriz e Pedagoga
pela Universidade Federal do Agreste de
Pernambuco (UFAPE). Está envolvida na
produção de projetos voltados pra poesia,
audiovisual, artes digitais, fotografia e
teatro. É uma das Poetisas, da Antologia
Internacional ‘’Mulheres Poetas’’, lançada
em 29 de maio de 2021, pela editora Mente
Ana Cristina Marinho Lucio Aberta, disponível na Amazon. Foi uma das
Professora do Departamento de Letras 4 mulheres com obras selecionadas, pelo
Clássicas e Vernáculas e do Programa de Pós- II Edital de Publicação do Clube do Cordel,
Graduação em Letras da UFPB. Graduada em divulgado em agosto de 2021. É Poeta,
História (1993) e doutora em Letras (2001) Diretora, e idealizadora, juntamente com
pela UFPB. Desenvolve pesquisas sobre Ewa Jansen desde 2020, com o Projeto
estudos culturais e de gênero, poéticas orais Cultural independente ‘’Vozes e Lentes’’,
e ensino de literatura. Foi vice-presidente da através do Instagram e Youtube, realizando
ABRALIC - Gestão 2012 - 2013, coordenadora uma produção de vídeos foto-poéticos.
do PROEXT - Contos da tradição popular: Atualmente escreve Cordel, poemas livres
edição e acessibilidade (2013), editora da e o que mais sua entranha criativa lhe
Revista Brasileira de Literatura Comparada chamar.
(2012-2013) e coordenadora do Programa
de Pós-Graduação em Letras da UFPB
(2017 - 2021). Hoje coordena o projeto

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 121


histórias pela Faculdade Paulista de
Arte. Atua como cordelista e contadora
de histórias, integra o grupo Cordel na
República e o SPCordel. Tem 13 folhetos
em literatura de cordel infantil publicados
pela editora Luzeiro, editora Areia Dourada
e Editora Nordestina, sendo um deles
premiado: Rino o rato que roeu a roupa
do rei de Roma. Também tem cordéis
Catarina Calungueira gravados pela editora livros falantes (áudio
Catarina Calungueira é mãe, artista visual, livros). Atuou ainda fazendo o circuito dos
brincante de calungas, educadora popular, CEUS SP em 2018 com os projetos: Cordel
graduada em pedagogia e especialista que vai Sorriso que Vem e Saracura, onde
em arte-educação. Ministra oficinas de circulou diversas bibliotecas da periferia
construção e brincadeiras com calungas. de São Paulo. Cleusa também ministra
É editora da Revista de Brincantes de João oficinas de literatura de cordel e contação
Redondo, organiza o Festival de Artes de histórias e já foi homenageada com o
de Ipueira-RN e o Festival de Mulheres prêmio Soroptismista internacional 2016 só
Bonequeiras do RN. Tem um curta sobre para mulheres (Viva seu sonho).
as Bonequeiras do RN, pesquisa e escreve
sobre educação, arte e cultura popular.
Catarina também faz parte da Associação
Potiguar de Teatro de Bonecos, da Rede
de Bonequeiras Brasileiras e da Rede de
Bonequeiras do RN.

Francine Maria
A cantora, poetisa, compositora, multi-
instrumentista, escritora cearense Francine
Maria, filha dos professores Aurilene Pessoa
e Francivaldo, começou sua vida artística
aos sete anos de idade (2014), ingressou ao
Cleusa Santo declamar poesias nordestinas e embarcou
Cleusa Santo é cordelista e arte-educadora no mundo da música. Aprendendo acordeon,
no Centro de Referência do Idoso, onde violão, ukulele, teclado violino, bandolim,
orienta o grupo: O Poder do Conto, desde xilofone, sax alto, pandeiro e piano vendo
2008. É formada em letras pela Faculdade vídeos aulas na internet. Participou da Bienal
Sumaré, pós-graduada em contação de do Ceará em Fortaleza nos anos de 2017 e

122 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


2019. Já esteve no Festival Mi De Música 2019 e bolsista PIBIC/CNPq/2019-2020
Da Ibiapaba – CE, nos anos de 2017, 2018 envolvida com projetos focados em
e 2019, participou de algumas edições do Linguística de Texto, com ênfase na teoria
Cariri Cangaço em Pernambuco e Fortaleza. da referenciação, argumentação, Gêneros
Já recebeu o Troféu Centenário de Luiz Textuais e Ensino. Tem desenvolvido,
Gonzaga em Fortaleza, participou também também, trabalhos em estudos sobre Cordel
de eventos na Casa José de Alencar, pelo com ênfase nos estudos do texto e discurso,
grupo Chocalho, incentivando crianças a ler interseccionalidade e gênero. Tem três livros
no Congressinho Infanto Juvenil e alguns publicados e dois folhetos de cordel, dentre
programas de TV de Fortaleza, como por eles, “Das Neves às Nuvens – I Antologia das
exemplo, Tony Nunes, TV Assembleia, TV Mulheres do Cordel Sergipano”. para saber
Fortaleza e no CETV no dia das crianças. mais de seus trabalhos como cordelista
Em fevereiro de 2020, esteve no evento acesse @isisdapenha.
mundial sobre o folclore brasileiro – IOV
– Organização Internacional de Folclore
e Artes Populares, no Rio Grande do Sul.
Participou em março de 2020 do Programa
Eliana, representando o Nordeste. E dia 11
de dezembro de 2020 participei na Rede
Globo do programa Globo Repórter no
quarto bloco nos 50 anos da TV Verdes
Mares.

Israela Rana
Graduanda em Letras - Língua Portuguesa
pela Universidade Federal da Paraíba -
UFPB; Membro do Grupo de Pesquisa em
Antropologia Literária GEAL/CNPq/UFPB;
Membro do Grupo de Pesquisa Christine de
Pizan (CNPq/UFPB); Bolsista da Extensão:
"Mulheres em cena: protagonismo das
mulheres na cultura popular"- 2020/2021
Isis da Penha - 2021/2022 (PROEX-UFPB), vinculado
Poeta cordelista e graduanda em Letras ao Núcleo de Documentação e Pesquisa
Vernáculas pela Universidade Federal de da Cultura Popular (NUPPO); Revisora
Sergipe (UFS), Isis é Membro efetivo do de textos como a redação dissertativa-
Movimento Cultural Via Láctea (MVL/AGL) e argumentativa do ENEM e outros tipos
membro do grupo de estudos “Laboratório textuais na plataforma Imaginie Redação
de Estudos em Texto e Tecnologia” (LETTEC/ Educação; Professora, Monitora e Corretora
UFS) da Universidade Federal de Sergipe. na Assessoria de Redação do ENEM,
Pesquisadora bolsista PIBIC/CNPq/2018- Concursos e Reforço Escolar - Argumentar

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 123


- Itaporanga-PB (2021-atual). Demonstra seus versos de cordel pertencente ao
interesse nas áreas de Literatura de Autoria projeto “Cordel Sim Senhora”. São cordéis
Feminina, Cultura Popular Feminina, Teorias autorais impressos em serigrafias feitas
Decoloniais, Literatura e Erotismo, Crítica a partir de escrita manual, tendo como
Feminista, Teoria do Efeito Estético e Ensino suporte o algodão cru. Esse projeto contou
de Literatura. Produz cordéis por hobbie e com a colaboração de 197 benfeitores,
amor. e graças a eles, se tornou realidade. O
objetivo é mostrar ao mundo o poder do
povo nordestino, que não precisa seguir
as expectativas esperadas pelo resto do
mundo, mas seguir o próprio caminho.
Apesar de ter apenas 24 anos, Júlia diz que
desde a infância sempre soube que seria
artista. Seu projeto, Cordel Sim Senhora,
é apenas o início de muitas campanhas
que virão por aí. Além disso, Júlia não para
quieta. Canta, dança (a artista faz parte da
banda ‘Aquela Jararaca’), grava, e planeja
Júlia Juazeira suas novas ideias.
Artista, atriz, diretora de arte e de conteúdo
– é assim que Júlia se define em suas redes
sociais. Porém, ela não é apenas isso, é
cordelista também, e ouso escrever, Júlia
tem uma singularidade e pluralidade que
não é encontrada em qualquer lugar. Neta
de professores, um de educação artística
e outro de português, Júlia iniciou cedo no
caminho das artes. Começou pela escola de
música Villa Lobos com a professora Arlinda
Laércio Queiroz
e a partir das aulas, dentro do mesmo Professor da rede particular de ensino,
espaço, ela conheceu também capoeira, atualmente, professor substituto do
dança e o teatro. Ela define esse espaço Instituto Federal de Educação (IFPE),
como fundamental na sua construção integrante da Comissão Pernambucana
afetiva e artística. Formada em Artes pela do Folclore e, sob a égide desta, realiza
Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisas sobre poéticas da oralidade
Júlia atualmente mora no Rio de Janeiro feminina. Doutorado em Linguística (UFPB),
e desenvolve as habilidades artísticas por Mestrado em Teoria da Literatura (UFPE),
lá, compartilhando tudo através das suas Especialista em Antropologia (UFPE),
redes sociais. Nascida em Recife e criada Graduação em Letras (FACHO). professor
em Juazeiro, Júlia carrega em seu sangue da rede particular de ensino deste 1995,
a cultura ‘pernambaiana’, expressos nos diretor da Comissão Pernambucana

124 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


de Folclore. Tem experiência na área de tradução do livro A Cidade das Damas, de
Letras, com ênfase em Literatura e exerce Christine de Pizan, publicada em 2012, pela
pesquisas sobre cultura popular através do Editora Mulheres. Suas pesquisas têm foco
seu trabalho mais emblemático: Mulheres em obras de autoria feminina, em especial
repentistas: Cantadoras, emboladoras e de escritoras medievais, com perspectiva
mestras de maracatu de baque solto. teórica na área da crítica feminista, da
tradução literária, dos estudos sobre
utopismos e dos estudos decoloniais.

Luciana Calado Maria Ignez Novais Ayala


Doutora em Teoria da Literatura pela UFPE,
Possui graduação em Letras pela Universidade
com estágio doutoral na Université Blaise-
de São Paulo (1972), mestrado em Letras
Pascal - Clermont-Ferrand/França. Tem
(Teoria Literária e Literatura Comparada)
Pós-Doutorado pela Universidade Nova de
pela Universidade de São Paulo (1976),
Lisboa. É professora do Departamento de
doutorado em Letras (Teoria Literária
Letras Clássicas e Vernáculas da UFPB. No
e Literatura Comparada) (1983) e pós-
Programa de Pós Graduação em Letras/
doutorado (1990) pela Universidade de São
UFPB, atua em duas linhas de pesquisa:
Paulo, sempre com a orientação do Prof. Dr.
Estudos Medievais e Estudos Decoloniais
João Alexandre Barbosa. É pesquisadora
e Feministas. É coordenadora do Grupo
do CNPq desde 1988, com vários projetos
Christine de Pizan (CNPq), membro do
concluídos e em andamento, dedicados à
GT da ANPOLL, Mulher e Literatura, e da
literatura e cultura brasileira, especialmente
Associação Brasileira de Estudos Medievais
de tradição oral, muitos deles como bolsista
(ABREM). Paralelamente às pesquisas, atua
nível 1 do CNPq. Também coordenou
em edição de periódicos. Coordenadora do
projetos com apoio de outras instituições
Projeto Mulheres em Cena: protagonismo
(CAPES, IPHAN, BNB). Tem desenvolvido
das mulheres na cultura popular 2019;
várias atividades de pesquisa voltadas
2020; 2021 - (PROEX-UFPB). É editora-chefe
para o patrimônio imaterial brasileiro e
da SIGNUM (Revista da ABREM) e uma
de preservação de repertório de mestres
das editoras da Revista Ártemis (Revista
tradicionais, entre os quais o projeto de
interdisciplinar de divulgação de Estudos
pesquisa: “Registros de resistência: a
de Gênero, Feminismos e Sexualidades).
cultura popular tradicional em palavra, som
É autora, dentre outras publicações, da
e imagem” (2ª. fase), concluído, e “Saberes

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 125


e fazeres não institucionais”, iniciado em
2013, com a primeira fase concluída em 2016,
ambos com bolsa do CNPq. Integra o corpo
docente do Programa de Pós-Graduação
em Linguística da Universidade Federal
da Paraíba, em que desenvolve pesquisa,
ensino e orientação de doutorandos, como
professora colaboradora aposentada. Tem
experiência na área de Letras, com ênfase Natália Honorato
em Teoria Literária, atuando principalmente
Natália é cria do cerrado, neta de migrantes
nos seguintes temas: cultura popular,
nordestinos e escritora, aprendeu que
literatura oral, cultura brasileira, literatura
palavra é chão firme e guardadora de
popular e literatura brasileira. Participa do
caminhos sinceros, nasce de dentro para
Grupo de Pesquisa do CNPq: como líder,
fora. Nasceu em Itapaci, interior de Goiás,
junto com Marcos Ayala, no grupo Memória
veio ser filha de Edilene e Cornélio. No
e Cultura, da UFPB.
ano de 2020, lançou seu primeiro livro:
Solidão e tanta gente, que também é
Tromba d’água – dois livros em um. Hoje
atua como professora, oficinas de escrita e
mediação de leitura. Na infância, aprendeu
com sua comunidade, o poder da roda – do
sentar junto para uma prosa solta, e vem
confirmando essa sabedoria milenar em
sua aprendizagem com a Pedagogia Griô,
na qual certificou-se como educadora griô
Maria Medeiros e griô aprendiz. Hoje atua com oficinas de
Professora de Língua Portuguesa. Possui escrita e mediação de leitura. Instagram:
graduação em Letras - Língua Portuguesa nataliahonoratoalencar
pela Universidade Federal da Paraíba (2019)
e ensino-medio-segundo-graupela Sesi
(2013). Tem experiência na área de Letras,
com ênfase em Literatura Brasileira e Cultura
Popular. Atualmente é mestranda do PPGL
da UFPB, com a pesquisa: CARTOGRAFIAS
DAS VOZES E DE ENCANTAMENTOS:
HISTÓRIAS DE VIDA E MEMÓRIAS DE UMA
MESTRA JUREMEIRA VIVENDO A CIDADE DE
JOÃO PESSOA.

126 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


de Ilustração de Bratislava, Eslováquia. O
seu livro "O homem sem alma" (Editora
do Brasil) recebeu em 2019 o selo Seleção
Cátedra UNESCO de Leitura PUC, Rio, e
em 2020, o Altamente Recomendável pela
Fundação Nacional do Livro. Participa de
coletivos Teodoras do Cordel SP, grupo
de estudo Estante Feminista, Mulheres
em Cena, Cordel de Mulher, Mulherio das
Letras e do Movimento Nacional do Cordel
Nireuda Longobardi sem Machismo. Tem ilustrado capas de
Nireuda é potiguar, mora na cidade de cordéis escrito por mulheres, é uma série
São Paulo com a família, atualmente de xilogravuras de mulheres.
trabalha em seu ateliê como arte
educadora, escritora e ilustradora.
Além de livros, ilustra capas de
cordéis com a técnica xilogravura,
que consiste no entalhe do desenho
em uma placa de madeira, em
seguida recebe uma camada tinta,
finalizando com a impressão sobre
o papel. Utiliza outras técnicas de
ilustração, entre elas, o Kiriê, técnica
de origem oriental, assim como a
xilogravura. Nireuda ministra oficinas
em instituições culturais, escolas,
feiras de livros, bibliotecas e bienais.
Graduada em Educação Artística e
Artes Plásticas pela Faculdade de Belas
Artes de São Paulo, é pós graduada
em educação ambiental e cursa pós
em arteterapia. Tem vários livros
editados por diversas editoras, seus
livros participam de programas de
governo, feiras de referência, como
Bologna e Frankfurt. Em 2017 as suas
xilogravuras que ilustram o livro "A
canção do tio Dito" (Paulus) foram
selecionadas pela FNLIJ - Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil para
representar o Brasil na BIB - Bienal

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 127


EQUIPE DO PROJETO DE EXTENSÃO
MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO
DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR

128 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 129
130 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR
MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 131
132 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR
MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 133
134 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR
MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 135
UMA
HOMENAGEM

136 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


Salve, Penha, exímia cirandeira
tecelã da cultura popular
Alder Júlio Ferreira Calado

Paraíba acolheu-te desde cedo


de Goiana trazida a esta terra
uma fecunda história tua vida encerra
Com teus pais, tu tens um belo enredo
Mesmo tendo que enfrentar momento azedo
Com teu pai aprendeste a trabalhar
pois nas lides da roça, era exemplar
Dona Eunice te faz ser Canoeira
Salve, Penha, exímia cirandeira
tecelã da cultura popular!

Entre o mangue e as marés, tu recolhias


Algo mais que moluscos e siris
Te inspirando o combate a forças vis
Te dedicas às lutas e alegrias
Que provém de Caiana e aprecias
Na ciranda e no coco a mergulhar
Retomando cultura secular
Recobrando a raiz alvissareira
Salve, Penha, exímia cirandeira
tecelã da cultura popular!

Tu te juntas a grupos de raiz


Liderando empreitada audaciosa
De cirandas, de coco, verso e prosa
Celebrando a memória, povo feliz
Superando as astúcias, os ardis
Que “os de cima” não cessam de armar
Qual marisco prensado por rocha e mar
Eis que vens radiante e altaneira
Salve, Penha, exímia cirandeira
tecelã da cultura popular!

MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR 137


Mais e mais conhecida, segue Penha
Ao contar com ajuda de órgãos vários
A mostrar, em seu amplo itinerário
No Nordeste e Sudeste, ela se empenha
exibindo qualidade de sua “lenha”.
Paraiba! - de volta ao doce lar
Com seu grupo seguindo a atuar
Salve, Penha, exímia cirandeira
tecelã da cultura popular!

Eis que a crise se instala no país


e pro Rio vai Penha, qual migrante
da família o sustento não garante
vacas magras enfrenta, infeliz
con seus filhos e netos, sem raiz
pelas ruas chegando a mendigar
que sufoco pra esta artista suportar
ao lembrar seu passado, seu lutar
de quem luta a vitória é companheira
Salve, Penha, exímia cirandeira
tecelã da cultura popular!

Ao tomarem ciência do problema


os amigos de Penha, desde então
solidários, se unem em mutirão
Este barco ao socorro assim já rema
Coletivos traçando um bom esquema
E, com base na lei a amparar
Submetem um projeto regular
Requerendo à Instância mais Certeira
Salve, Penha, exímia cirandeira
tecelã da cultura popular!

138 MULHERES EM CENA: PROTAGONISMO DAS MULHERES NA CULTURA POPULAR


O citado Projeto, para tanto
Se dirige a setores diferentes
Entidades de artistas, várias gentes
Professores e grêmios, canto a canto
Convencidos de que o nosso encanto
O direito persegue e vai ganhar
Na ciranda do povo, em seu lutar
A justiça é ótima conselheira
Salve, Penha, exímia cirandeira
tecelã da cultura popular!

João Pessoa, 07 de novembro de 2020

PS: Estes versos se inspiram na carta elaborada por diversos órgãos da cultura, das
artes e do ensino da Paraíba, em prol da campanha para aprovação da mestra Penha
Cirandeira na lei Rema/Canhoto da Paraíba. ( #penhanaleicanhoto )

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