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Cadernos do Ateliê. Vol.1, n.5, fascículo 1, 2019.

Entre Humanismo, pragmatismo e complexidade:


Educação, Cultura e Trabalho no século XXI

Educação, Cultura e Trabalho no século XXI

Fascículo 1.
‘‘Outra ciência é possível!’’ Um apelo à Slow Science
Isabelle Stengers

ISSN: 2596-2566

https://ateliedehumanidades.com/cadernos-do-atelie/
CADERNOS DO ATELIÊ

Plano de convergência

Entre Humanismo, pragmatismo e complexidade: Educação, Cultura e Trabalho no século XXI

Cadernos do Ateliê. Vol.1, n.5, fascículo 1, 2019. ISSN: 2596-2566

O Ateliê de Humanidades é uma iniciativa que parte de um diagnóstico sobre


as crises de nosso tempo, incluindo a do pensamento, da cultura e das
universidades; nossa instituição de livre estudo e pesquisa é fundada em
ideias e valores fortes, vistos como um norte e uma resposta às crises. Neste
sentido, nosso Plano de convergência Entre humanismo, pragmatismo e
complexidade: educação, cultura e trabalho no século XXI nos é central, pois
oferece uma autorreflexão constante sobre onde estamos, o que somos, o
que queremos e para onde temos que ir.

Lançamos agora nos Cadernos do Ateliê uma primeira série que traz textos,
traduzidos e inéditos, que permitam diagnosticar nosso tempo, ao mesmo
tempo que refletir sobre o Ateliê e seus valores. No primeiro fascículo,
iniciamos com a proposta, à qual nos vinculamos, de uma slow science. Após
termos publicado no nosso site uma tradução do Manifesto por uma slow
science, trazemos agora o texto da filósofa e historiadora da ciência Isabelle
Stengers, “'Outra Ciência é possível!': Um apelo à Slow Science”, com
tradução e apresentação de Maryalua Meyer e André Magnelli.

Fascículo 1.
‘‘Outra ciência é possível!’’ Um apelo à Slow Science - Isabelle Stengers
Tradução - Maryalua Meyer
Apresentação e Revisão - André Magnelli

Produzido por: Ateliê de Humanidades l www.ateliedehumanidades.com


1

'Outra Ciência é possível!'


Um apelo à Slow Science

Isabelle Stengers1

Há alguns anos, muitas dissertações acadêmicas fo-


ram escritas sobre os direitos das futuras gerações em re-
lação ao caráter insustentável do que chamamos de de-
senvolvimento. Mas agora percebemos que o futuro está
vindo em nossa direção a toda velocidade. Pode-se dizer
que nós, que estamos aqui, estamos na posição de imagi-
nar como responderemos àqueles que não estão aqui, mas
que, no entanto, já existem. O que diremos às crianças
nascidas neste século quando perguntarem: "Você sabia
tudo o que precisava saber; o que você fez? Qualquer
adulto hoje pode imaginar ser perguntado sobre essa

1 Este texto é uma tradução de: STENGERS, Isabelle. ‘Another Sci-


ence is Possible!’ A Plea for Slow Science. In: STENGERS, I. (2018)
Another science is possible! A manifesto for slow science. Cambridge:
Polity Press. p. 106-132. A primeira versão, menos desenvolvida e
mais contextualizada, é encontrada em: STENGERS, Isabelle. (2013)
Une autre science est possible!: manifeste pour un ralentissement des
sciences. Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond/La Découverte.
p. 83-112. A presente tradução foi feita por Maryalua Meyer e revi-
sada por André Magnelli. Aproveitamos para agradecer à Isabelle
Stengers e à editora La Découverte por terem gentilmente nos auto-
rizado a publicação deste ensaio.
2

questão. No entanto, como acadêmicos, eu diria que esta-


mos em uma posição especial.
Pode acontecer de fato que algumas pessoas, fora da
academia, estejam confiantes de que nós, que somos sele-
cionados, treinados e pagos para pensar, imaginar, ante-
ver e propor, estamos de fato fazendo isso em relação ao
futuro que encaramos. E também pode haver jovens en-
trando na universidade com a estranha esperança de ob-
ter uma melhor compreensão do mundo ameaçador em
que vivemos.
Podemos consentir com essa confiança e permitir que
o poder nos afete? Ou responderemos com o triste conto
de que estamos, ou estivemos, muito ocupados com as
exigências implacáveis a que agora temos que nos confor-
mar para sobreviver?
Não estou falando aqui apenas da economia do co-
nhecimento e do imperativo de produzir conhecimento
que interessa aos competitivos jogos de guerra do mundo
corporativo. Mesmo os campos acadêmicos que não pro-
duzem patentes agora foram submetidos ao imperativo
geral da avaliação de benchmark. Eles têm que aceitar o
julgamento de um pseudo-mercado acadêmico gover-
nado pela concorrência cega.
Em resumo, devemos admitir que fomos compelidos
com sucesso a entregar uma grande parte de nossa liber-
dade de nos engajarmos em dissensos. Agora, temos que
3

dizer aos nossos alunos para escolherem assuntos que le-


varão à publicação rápida em revistas de alto nível, espe-
cializadas em questões profissionalmente reconhecidas –
questões que, em geral, não interessam a ninguém, exceto
outros colegas de publicação rápida. Temos que lhes di-
zer que, se quiserem sobreviver, precisam aprender a se
conformar aos quadros normativos impostos por essas
publicações.
Então, meu primeiro ponto é: seja qual for o futuro,
as instituições de pesquisa não estão preparadas para for-
mulá-lo, ou mesmo vislumbrá-lo, de uma maneira que sa-
tisfaça a confiança que algumas pessoas ainda possam ser
ingênuas o suficiente para colocar em nós.
Mas também sabemos que, em todos os lugares, os
mesmos processos de desempoderamento estão em ação.
Em todos os lugares, um corte semelhante é introduzido,
separando pessoas e coletivos de sua capacidade de vis-
lumbrar, sentir, pensar ou imaginar. Em todos os lugares,
o mesmo tipo de ataque foi lançado, o que pode ser carac-
terizado como uma forma de feitiçaria que obstinada, fur-
tiva e perversamente paralisa nossa capacidade de resis-
tir.
É por isso que, diante de nossa falta de resistência,
não falarei de culpa. Prefiro falar em vergonha, lem-
brando a observação de Gilles Deleuze de que "o senti-
mento de vergonha é um dos motivos mais poderosos da
4

filosofia".2 Tal motivo pode ser estendido muito além da


filosofia, para todos nós que sentimos essa vergonha.
Afirmaria que o tipo de futuro que enfrentamos cria
o que William James chamou de “opção genuína”3, uma
opção que não pode ser evitada porque não há lugar para
ficar fora das alternativas de consentir ou recusar o desa-
fio que ela oferece.
O processo de destruição da academia não é, em si
mesmo, suficiente para criar tal opção. Há dez anos, eu
estava pronta para admitir que ela era uma instituição
moribunda, merecendo fortemente seu destino. Hoje, no
entanto, essa destruição pode ser vista, juntamente com
inúmeras outras destruições, como uma erradicação sis-
temática de recursos que poderiam se dirigir ao futuro,
cortando sistematicamente nossa capacidade de pensar,
ou seja, de escapar do desespero e do cinismo. De um jeito
ou de outro, muito do que está sendo destruído pode ser
caracterizado, como a academia, como merecedora de seu
destino, mas o significado de tal caracterização mudou.
Tornou-se uma maneira de recusar o desafio pelo qual so-
mos confrontados.

2 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. What is Philosophy?, trans.


Graham Burchell and Hugh Tomlinson, London: Verso, 2003, p. 108.
3 N.T. JAMES, William.(1896) A vontade de crer. Tradução Cecília
Camargo Bartalotti. – São Paulo: Loyola, 2001.
5

Eu nomearia esse desafio de "barbárie", como o resul-


tado mais provável do que está acontecendo hoje. 4 Já sa-
bemos o sabor dessa barbárie, nas medidas ditas “difíceis
mas infelizmente necessárias”, que autoridades de todos
os tipos demandam que aceitemos, com consequências
que teriam julgado impensáveis ontem. Tais consequên-
cias, que já sabemos muito bem, só se multiplicarão e se
intensificarão no futuro. Isso está apenas começando.
Aceitar que se deve pensar, sentir e imaginar a neces-
sidade de enfrentar a barbárie significa recusar a ideia de
que outras figuras mais merecedoras cheguem para virar
a mesa. Hoje, as perspectivas messiânicas são tentadoras,
até mesmo na moda, mas esperar a salvação de algum
Grande Outro [Great Outside] só nos joga nas mãos da bar-
bárie, evitando o desafio que nos é endereçado agora.
Minha intervenção toma “slow science” como um
nome para o desafio que é endereçado a nós como acadê-
micos. Um nome que inclui também uma armadilha à que
temos que resistir; ou seja, o clamor de um acordo “para

4 Ver STENGERS, Isabelle. (2009) In Catastrophic Times: Resisting the


Coming Barbarism, Open Humanities Press/Meson Press, 2015. (tra-
dução para o português: STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes.
São Paulo: UBU, 2015).
6

voltar ao passado”, conforme expresso pelo The Slow Sci-


ence Manifesto, discutido no capítulo anterior.5 Como vi-
mos lá, ele conclui pedindo a uma audiência não especifi-
cada que deixe os cientistas em paz: “Não podemos dizer
continuamente o que nossa ciência significa e à qual bem
ela serve, porque simplesmente não sabemos ainda. A ci-
ência precisa de tempo. — Fique com a gente, enquanto nós
pensamos”.6
Resistir ao consenso sempre nos expõe a risos7, mas
vou expor minha posição ainda mais, ousando defender
a definição da tarefa da universidade dada pelo matemá-
tico e filósofo Alfred North Whitehead em 1935:
A tarefa de uma universidade é a criação do futuro, na me-
dida em que o pensamento racional e os modos civilizados
de apreciação possam afetar o assunto. O futuro é grande
com todas as possibilidades de conquistas e tragédias.8

5 N.T.: A autora remete ao capítulo anterior do livro: Ludwik Fleck,


Thomas Kuhn and the Challenge of Slowing Down the Sciences. p.
83-105.
6 N.T. Cf. Slow Science Academy, Berlim, Alemanha, 2010
(http://slow-science.org/). Publicado em Manifesto por uma Slow
Science. Ateliê de Humanidades, janeiro de 2018.
7 N.T. A tradução do termo snigger é ambigua por ser uma expressão
de uso informal na língua inglesa, remete a um riso de deboche, a
uma zombaria. Optamos por traduzir como riso, risinho ou mesmo
zombadores, de acordo com a construção do texto.
8 WHITEHEAD, A. N. Modes of Thought, New York: The Free Press,
1968, p. 171.
7

Podemos rir, na verdade, porque é fácil demais des-


construir a ideia de que as universidades já tiveram essa
tarefa. Mas este é precisamente o significado da noção de
William James de uma opção genuína. Como observei an-
teriormente, a destruição da academia não é em si mesma
suficiente para criar essa opção. Aqueles acadêmicos que
apenas pedem tempo para pensar – que não nomeiam
quem os pressiona, preferem abordar a “sociedade” e pe-
dir proteção – não sentem que existe uma opção em abso-
luto. Eles apenas sonham com um passado onde eles, e o
chamado conhecimento desinteressado que eles produzi-
ram, eram respeitados. A opção de “nos expor a zomba-
dores" exige que aceitemos que nós, acadêmicos, somos,
entre muitos outros, convocados a nosso papel na criação
do futuro. Não podemos evitar esse apelo alegando que
não merecemos desempenhar esse papel.
Além disso, o que acho interessante na proposta apa-
rentemente inócua de Whitehead é que ela não associa o
futuro nem ao avanço do conhecimento nem ao pro-
gresso, mas sim à incerteza radical. Não sabemos o que
será o nosso futuro, nem sabemos se, ou em que medida,
o que ele chama de pensamento racional e modos civili-
zados de apreciação podem afetar o assunto. Mas é por
isso que sua proposta é relevante hoje, mais do que nunca.
Primeiramente, enfatizarei que, já em 1935, a pro-
posta de Whitehead era algo como um apelo. De fato, o
que o transformou do matemático que era para o filósofo
em que ele se tornou não pode ser desvinculado de seu
8

profundo sentimento de ansiedade sobre os efeitos do


que ele caracterizou como uma descoberta importante
que marcou o século XIX:
a descoberta do método de treinamento de profissionais,
que se especializam em determinadas regiões do pensa-
mento e, assim, progressivamente adicionam à soma do
conhecimento dentro de suas respectivas limitações de as-
sunto.9

Deixe-me esclarecer, desde o início, que o ponto não


é criticar a especialização ou a abstração. Whitehead era
um matemático e, para ele, você simplesmente “não pode
pensar sem abstrações”. Ele nunca teria criticado o modo
como as ciências abstraem o que importa para cada uma
delas de um mundo sempre emaranhado. No entanto,
para ele, a racionalidade não era a capacidade de abstra-
ção, mas sim a capacidade de ser vigilante sobre as abs-
trações de alguém, de não ser cegamente conduzido por
elas. Como devemos lembrar, uma boa artesã não sabe
apenas como usar suas ferramentas, e não olhará para
uma situação em termos das exigências da ferramenta es-
pecífica a que está acostumada. Em vez disso, ela julgará
a adequação da ferramenta para a situação. Para Whi-
tehead, é o mesmo com o exercício do pensamento – você
precisa estar atento aos seus modos de abstração. Essa vi-

9 WHITEHEAD, A. N. (1925) Science and the Modern World. New York:


The Free Press, 1968. p. 196.
9

gilância é precisamente o que falta entre aqueles que Whi-


tehead caracteriza como profissionais, com suas “mentes
em um ritmo”:
Cada profissão progride, mas é progresso em seu próprio
ritmo... O ritmo evita a dispersão pelo país, e a abstração
abstrai de algo para o qual nenhuma atenção adicional é
dada... Claro, ninguém é meramente um matemático ou
apenas um advogado. As pessoas têm vidas fora de suas
profissões ou seus negócios. Mas o ponto é a restrição do
pensamento sério dentro de um ritmo. O restante da vida
é tratado superficialmente, com as categorias imperfeitas
de pensamento derivadas de uma profissão.10

Como tal, os profissionais, pessoas fixadas com deve-


res fixados, não são novidade no mundo. No entanto,
continua Whitehead:
no passado, os profissionais formaram castas não progres-
sivas. A questão é que o profissionalismo agora está asso-
ciado ao progresso. O mundo agora se depara com um sis-
tema de auto-evolução, que não pode parar.11

Não se pode parar os relógios, como Pascal Lamy12


uma vez observou.

10 WHITEHEAD, A. N. (1925) Science and the Modern World. op. cit. p.


197.
11 ibid. p. 205.
12N. T. Pascal Lamy é um político francês e ex-Diretor-Geral da OMC.
10

Embora Whitehead não se oponha à especialização


dos profissionais, ele os caracteriza como “falta de equilí-
brio” [lacking balance]. Seu treinamento, enquanto negli-
gencia “fortalecer os hábitos de apreciação concreta dos
fatos individuais em sua interação plena de valores emer-
gentes”13, deixa-os presos ao poder de um conjunto parti-
cular de abstrações, promovendo um valor particular.
Prefiro a formulação da “falta de equilíbrio”, por sua afi-
nidade com a imagem do "sonâmbulo", que acompanhou
a invenção do método de formação de cientistas e profis-
sionais durante o século XIX, no momento em que estava
sendo inventada o que chamo de “fast science”. O apelo de
Whitehead a respeito da tarefa das universidades visava
também a um “abrandamento” da ciência14, que é a con-
dição necessária para pensar com abstrações em vez de
obedecê-las.
Volto agora para a invenção desse tipo de treina-
mento, que se tornou o modelo geral em nossas universi-
dades. É notavelmente ilustrado pela redefinição radical
de Justus von Liebig do que é ser um químico.

13 WHITEHEAD, A. N. (1925) Science and the Modern World. op. cit. p.


198.
14 NT. Traduzimos aqui por “abrandamento” a ideia de “ralentisse-
ment” da ciência e do pensamento, que é defendida por Stengers em
várias partes de sua obra. Esta noção é aquela que fundamenta sua
reivindicação por uma slow science. Isso fica claro quando vemos que
se, na versão inglesa do livro do qual é extraído o presente texto, o
subtítulo é “a Manifesto for Slow Science”, na versão original lê-se: “ma-
nifeste pour un ralentissement des sciences”.
11

No verbete “química” da Enciclopédia de Diderot e


d'Alembert, o químico Gabriel François Venel caracteri-
zava a química como uma paixão “louca” [madman pas-
sion]. Demorou uma vida inteira, ele escreveu, para ad-
quirir o conhecimento prático e a capacidade de dominar
a grande variedade de operações químicas sutis, comple-
xas e muitas vezes perigosas pertencentes às muitas artes
ou ofícios da química, desde a dos perfumistas até a dos
metalúrgicos ou os farmacêuticos. No laboratório de Lie-
big, por outro lado, um estudante obteria seu doutorado
após quatro anos de treinamento intensivo. No entanto,
ele não aprenderia nada sobre esses muitos ofícios tradi-
cionais e suas operações. Ele usaria apenas reagentes pu-
rificados e bem identificados, e protocolos padronizados,
e aprenderia apenas os mais recentes métodos e técnicas
instrumentais. Liebig foi nomeado o 'criador químico', de-
vido às centenas de estudantes que foram treinados em
seu laboratório em Giessen entre 1824 e 1851. Muitos fun-
daram laboratórios universitários similares, enquanto ou-
tros desempenharam um papel crucial na criação do la-
boratório da nova indústria química. A invenção de Lie-
big daquilo que podemos chamar de “química rápida”
implicou um corte que dividiu não a química pura e apli-
cada, mas sim todo o continente de artesanato químico de
um lado e, de outro, a pesquisa acadêmica e a nova rede
de química industrial, os dois entretendo uma nova rela-
ção simbiótica, como cada um precisava e alimentava o
outro.
12

A simbiose, no entanto, é um equilíbrio que deve ser


mantido. É impressionante que Liebig, que desempenhou
um papel muito importante no desenvolvimento da quí-
mica industrial, também se tornou, desde 1863, um pro-
motor apaixonado da necessidade de pesquisa acadêmica
pura e autônoma. Ele é o pai do que hoje chamamos de
“modelo linear”, junto com o famoso argumento do
“ganso que colocou o ovo de ouro”: é de seu interesse que
a indústria mantenha distância da pesquisa acadêmica,
deixando a comunidade científica livre para determinar
suas próprias questões, porque somente os cientistas po-
dem dizer, a cada passo, quais questões serão frutíferas, o
que levará a um rápido desenvolvimento cumulativo e
que resultará apenas em alguma reunião empírica de fa-
tos que não levem a parte alguma. Para a indústria ditar
suas próprias questões, seria como matar o ganso e perder
os ovos.
Ouvimos múltiplas variáveis do mesmo argumento,
como um lema para o arranjo que muitos cientistas asso-
ciam à Idade de Ouro, quando a ciência foi reconhecida
como uma fonte gratuita de novidades que levariam à
inovação industrial, beneficiando em última análise toda
a humanidade. No entanto, alguns aspectos do argu-
mento raramente são desenvolvidos. O primeiro é a divi-
são, uma verdadeira divisão de classes, entre cientistas
que trabalham em território acadêmico protegido e aque-
les que, ao vender sua força de trabalho à indústria, geral-
mente têm negadas a autonomia e a liberdade de contri-
buir para o conhecimento público. O segundo é que o
13

ganso com a metáfora do ovo de ouro esconde um aspecto


importante do papel que o cientista treinado desempenha
agora como um profissional rápido da ciência.
A história oficial é que o ganso põe seus ovos e fica
feliz em saber que alguns deles ficaram dourados, em ter-
mos de desenvolvimento industrial. Ela espera que isso
acabe resultando em benefícios para a humanidade, po-
rém não pode ser responsabilizada por qualquer abuso.
Ela insiste que sua única lealdade é, e deve ser, para o
avanço do conhecimento e, assim, escreveu Whitehead,
ela tem o direito de tratar o restante “superficialmente,
com as categorias imperfeitas de pensamento derivadas
da [sua] profissão”. Isso corresponde à imagem da “torre
de marfim” da ciência acadêmica, e é reforçada pela outra
imagem atual da criatividade científica, a do sonâmbulo
caminhando em um cume estreito, sem medo ou verti-
gem, porque ele é cego para o perigo. Pedir aos cientistas
criativos que se preocupem ativamente com as conse-
quências de seu trabalho seria o equivalente a despertar
os sonâmbulos, conscientizando-os de que o mundo está
longe de obedecer às suas categorias. Atingidos pela dú-
vida, eles cairiam do cume para o pântano de opiniões
turvas. Isto é, eles estariam perdidos para a ciência. Essa
imagem da criatividade científica como, nos termos de
Whitehead, intrinsecamente sem equilíbrio, está profun-
damente enraizada na educação científica rápida. De um
modo ou de outro, explicitamente ou não, os cientistas
aprendem que as questões que dizem respeito ao mundo
14

mais amplo, o mundo onde os ovos de ouro farão a dife-


rença, devem ser globalmente definidas como “não-cien-
tíficas”, mesmo que tais questões sejam objeto de muito
trabalho científico em outros departamentos que lidam
com problemas culturais, sociais ou econômicos. O inte-
resse no mundo em que vivemos se torna uma forma de
tentação de que os pesquisadores que “foram eleitos”15
sejam capazes de resistir.
A fast science não se refere tanto a uma questão de ve-
locidade, mas ao imperativo de não desacelerar, de não
perder tempo, ou então…. Pode ser tentador associar a
esse "outro", que evoca a perspectiva de uma queda, com
as exigências nobres de uma vocação, que os cientistas
trairiam se não dedicassem toda a sua vida ao seu cum-
primento. No entanto, a forma como essa tão chamada
devoção é obtida e mantida, através de um treinamento
que canaliza atenção e ansiedade ao mesmo tempo que
restringe a imaginação, não tem nada de nobre nisso. O
que Whitehead chamou de “treinamento de profissio-
nais” refere-se, antes, ao tipo de anestesia induzida, ge-
rada por um exército mobilizado em movimento, onde o
imperativo é ir o mais rápido possível. Tal exército não
vagueia nem se surpreende. O imperativo significa que a
paisagem por onde ele passa não será de interesse algum,
apenas os obstáculos que ele tem para se movimentar.

15 N.T. O termo “The right stuff” é de difícil tradução, em relação ao


texto podemos remeter à obra de mesmo nome escrita por Tom
Wolfe, que foi traduzida como “os eleitos”.
15

Aqueles no exército que se queixam do dano que o seu


avanço causa (destruir colheitas, roubar mercadorias, es-
tuprar mulheres...) certamente não têm as coisas certas.
Essas coisas não devem retardar o avanço. Os soldados
devem esquecer seus apegos às suas próprias colheitas,
bens e esposas. Da mesma forma, os cientistas descartam
uma questão como “não científica”.
Deste ponto de vista, os biólogos que defendem os
OGMs [organismos geneticamente modificados], por
exemplo, podem se sentir justificados em afirmar ter en-
contrado uma solução racional para o problema de ali-
mentar os famintos, ignorando silenciosamente as causas
sociais e econômicas da fome no mundo. Eles apenas se
mostram como verdadeiros cientistas, ignorando tudo o
que poderia atrasá-los ou colocar obstáculos no caminho
do progresso possibilitado por seus ovos de ouro.
Mas este último exemplo é também suficiente para re-
velar o que a história oficial escondeu. Nunca houve uma
torre de marfim para o ganso com os ovos de ouro. A va-
lorização de seu trabalho, o elo com aqueles capazes de
transformar seus ovos em ouro, sempre fez parte da ati-
vidade de cientistas acadêmicos, ainda que, como Pasteur
ou Marie Curie16, seu nome esteja associado à pesquisa

16N.T. Louis Pasteur foi um cientista francês, que fez importantes


contribuições para química e medicina; Marie Curie foi uma cientista
polonesa de naturalização francesa que conduziu pesquisas pioneiras
no ramo da radioatividade, sendo a primeira pessoa e única mulher
a ganhar o prêmio Nobel duas vezes.
16

desinteressada. O ganso é também um estrategista em-


preendedor. Ela está à procura daqueles que podem tirar
consequências douradas do que ela estabeleceu. O que ca-
racteriza a fast science não é isolamento, mas trabalhar em
um ambiente muito rarefeito, um ambiente dividido em
aliados que importam e aqueles que, sejam quais forem
suas preocupações e protestos, precisam reconhecer que
são os destinatários finais dos benefícios dourados e, por-
tanto, não devem perturbar o progresso da ciência. Já
quando fez o corte entre as artes e ofícios da química e a
química-em-atividade, Liebig eliminou também das pre-
ocupações sociais e práticas em que essas artes e ofícios
estavam incorporadas17 e às quais respondiam. Os únicos
verdadeiros interlocutores para os novos químicos acadê-
micos, os únicos que entendiam sua linguagem, eram
agora aqueles que habitavam o mundo industrializado,
também em formação.
E isso ainda corresponde ao equipamento intelectual
que o treinamento em fast science contemporânea fornece
aos cientistas. Eles irão facilmente dividir uma situação
em suas dimensões supostamente objetivas ou racionais e
o que seria simplesmente uma questão de complicações

17 Ao longo do texto, a autora utiliza um contraste entre dois tipos de


ciência, conhecimento e estratégias: embedded/desimbedded. Apesar do
termo ter uma tradução consolidada para o português, a partir da
obra de Karl Polanyi, para o contraste incrustrado/ desincrustrado,
optamos por traduzir como incorporado/ desincorporado, sentido
mais próximo do uso da autora.
17

contingentes e arbitrárias. E as dimensões que correspon-


dem às categorias da fast science são mais naturalmente
aquelas que são relevantes para o desenvolvimento in-
dustrial, já que ambas concordam em ignorar o mesmo
tipo de complicações. Nenhuma mobilização direta por
parte dos interesses industriais é necessária aqui; somente
esta relação simbiótica entre dois modos de abstração.
Mas hoje, até isso não é mais suficiente para os anti-
gos aliados da fast science. A economia do conhecimento
está agora destruindo a casa em que o ganso dos ovos es-
tava protegido. A relativa autonomia da pesquisa cientí-
fica, assegurada por Liebig e seus colegas, pertence ao
passado. Alguns podem ser tentados a afirmar que nunca
existiu, dada a íntima conexão entre a ciência acadêmica
acelerada e a indústria. Eu discordo, e afirmo que o que
está em processo de destruição é o próprio “tecido social”
da confiabilidade científica. No futuro, poderemos ver ci-
entistas trabalhando em todos os lugares, produzindo fa-
tos na velocidade que nossos novos instrumentos sofisti-
cados possibilitam; mas a forma como esses fatos serão
interpretados estará, em grande parte, de acordo com a
paisagem dos interesses investidos.
Como todos os cientistas que trabalham sabem, se
uma afirmação científica pode ser verdadeira como confi-
ável, não é porque os cientistas são objetivos, mas sim
porque a alegação foi exposta às exigentes objeções de co-
legas competentes, preocupados com sua confiabilidade.
E é essa preocupação compartilhada que pode muito bem
18

ser destruída se esses colegas forem ligados principal-


mente a interesses industriais, isto é, limitados pela neces-
sidade de manter as promessas que atraem seus parceiros
industriais.
A máxima que pode bem prevalecer, então, é que
você não corte o ramo em que está sentado junto com to-
dos os outros. Ninguém se oporá muito se as objeções à
fraqueza de uma reivindicação particular levarem a um
enfraquecimento geral das promessas de um campo. Vo-
zes dissidentes serão então desclassificadas como visões
de minorias que não precisam ser levadas em conta, pois
representam problemas desnecessários. O que aconte-
cerá, então, já tem um nome: a “economia prometida”, na
qual o que une os protagonistas não é mais um ovo cien-
tífico confiável que pode se tornar ouro para a indústria,
mas possibilidades cintilantes cuja força ninguém está in-
teressado em avaliar por mais tempo. Em outras palavras,
sob o disfarce da “economia do conhecimento”, a econo-
mia especulativa, a economia da bolha e do colapso, con-
seguiu recrutar a produção de conhecimento científico.
É por isso que podemos simpatizar com o sonho do
Manifesto da Slow Science de um retorno à Idade de Ouro,
quando a autonomia da pesquisa científica era respeitada.
Porém temos que lembrar que, embora a autonomia da
fast science possa ter protegido a confiabilidade das afir-
mações científicas, nunca garantiu a confiabilidade de um
modo de desenvolvimento que agora somos vergonhosa-
mente forçados a reconhecer como tendo sido, e ainda
19

sendo, radicalmente insustentável. Isto não é de forma al-


guma um acidente. A confiabilidade dos resultados da
fast science é relativa a experimentos de laboratório purifi-
cados e bem controlados. E as objeções competentes são
competentes apenas em relação a tais ambientes controla-
dos. O que significa que a confiabilidade científica está si-
tuada, ligada às restrições de sua produção. O que signi-
fica também que, quando os ovos deixam seu ambiente
nativo e se tornam dourados, eles terão deixado para trás
essa confiabilidade e robustez específicas. A pergunta so-
bre qual é a confiabilidade que eles têm agora não é mais
apenas uma questão de julgamento científico, mas sim
uma questão social e política.
Por exemplo, os aviões são seguros o suficiente por
causa da existência de um consenso sobre a necessidade
de evitar colisões a todo custo. Em contraste, a preocupa-
ção com a sustentabilidade de nosso modo de desenvol-
vimento, que está longe de ser nova, até recentemente foi
tudo, menos consensual. As pessoas que se opunham a
essas razões nem sequer foram ouvidas, mas foram ataca-
das e ridicularizadas como se elas quisessem nos mandar
de volta para a caverna! Não há dúvida de que o serviço
prestado foi pago ao fato de que algumas inovações po-
dem ter consequências indesejadas, mas, acrescentou-se,
o progresso tecnocientífico está fadado a encontrar uma
maneira de consertar o dano. Duvidar disso é duvidar do
progresso! E, como sabemos, essa dúvida é blasfêmia.
Aqui, podemos reconhecer um eco do ponto de vista de
Whitehead sobre o pensamento profissional ser preso em
20

um ritmo, enquanto que o restante da vida é tratado su-


perficialmente. E a resposta de vários cientistas é muito
superficial quando afirmam que não têm culpa pela sus-
tentabilidade não ser uma preocupação pública, pois eles
não poderiam ser responsabilizados pela maneira como a
“sociedade” decide usar o que eles produzem. Essa é a
resposta típica do ganso. Como de costume, ignora o fato
de que o alegado uso irresponsável de seus produtos
nunca impediu cientistas acadêmicos de associar o pro-
gresso científico ao progresso social; de juntar-se aos in-
sultos "de volta à caverna"; de apresentar sua ciência
como oferecendo, enfim, soluções racionais para proble-
mas de interesse geral; ou de formular objeções em ter-
mos de uma simples oposição entre ciência e valor – como
se todos os aspectos de uma situação concreta com a qual
eles não estivessem preparados pudessem ser reduzidos
a uma questão de valor! Para colocar de forma educada,
não temos memória de um clamor coletivo de cientistas
escandalizados, denunciando publicamente um de seus
colegas por se entregar a tais pretextos.
Mas a slow science não é – enfaticamente não – sobre o
ganso se tornar uma inteligência onisciente, capaz de vi-
sualizar as consequências das inovações que sua ciência
torna possível. Pelo contrário, coincide com a definição,
aparentemente modesta, dada por Whitehead a respeito
do que as universidades deveriam promover: o pensa-
mento racional e os modos civilizados de apreciação. Pen-
samento racional significaria estar ativamente lúcido so-
21

bre o que é realmente conhecido, evitando qualquer con-


fusão entre as questões que podem ser respondidas em
um ambiente purificado ou restrito e aquelas que inevita-
velmente surgirão no ambiente mais amplo e confuso.
Um modo de apreciação civilizado implicaria nunca iden-
tificar o que é bem controlado e limpo com alguma ver-
dade que transcende a confusão. O que é confuso do
ponto de vista da fast science nada mais é do que a intera-
ção irredutível e sempre incorporada de processos, práti-
cas, experiências e formas de conhecer e valorizar que
compõem o nosso mundo comum.
Esse pode ser o desafio que a slow science deve respon-
der, permitindo aos cientistas aceitar que o que é confuso
não é defeituoso, mas sim aquilo que temos simplesmente
de aprender a viver e a pensar. A simbiose entre fast sci-
ence e indústria tem privilegiado o conhecimento desin-
corporado; e as estratégias de desincorporamento tem
sido abstraídas das complicações confusas deste mundo.
Porém, ao ignorar a confusão e sonhar com sua erradica-
ção, descobrimos que confundimos o mundo. Então, eu
caracterizaria a slow science como a operação exigente que
reativa18 a arte de lidar com o que os cientistas muitas ve-
zes consideram confuso, ou seja, de lidar com o que es-
capa das categorias gerais, chamadas de objetivas.

18 N.T. A respeito do verbo reclaim e seus derivados reclaiming/reclai-


med, optamos pela mesma tradução que foi utilizada no texto STEN-
GERS, Isabelle. Reativar o animismo. In. Caderno de Leituras, n.62,
22

O termo “reativar”, como usado por ativistas dos


EUA, refere-se a operações de cura que reapropriariam
aquilo do qual nos separamos, recuperando [recovering]
ou reinventando o que essa separação destruiu. Reativar
sempre começa aceitando que estamos doentes em vez de
culpados, e entendendo como nosso ambiente nos deixa
doentes. A partir dessa perspectiva, poderíamos conside-
rar a maneira pela qual nossas universidades, tão orgu-
lhosas de sua autonomia, têm aceitado em nome do mer-
cado o imperativo da competição e da avaliação do bench-
marking. Da mesma forma, [poderíamos considerar] a ma-
neira pela qual os pesquisadores aceitaram sem muita re-
sistência a redefinição da pesquisa pela economia do co-
nhecimento. Quaisquer que sejam as explicações que pos-
samos oferecer, todas elas atestam a profunda vulnerabi-
lidade daquilo do qual uma vez nos orgulhamos tanto –
o arranjo que promoveu a fast science, a ciência desincor-
porada, como modelo para a pesquisa científica, deixou-
nos doentes demais para defendê-la. Jogando o ganso, os
pesquisadores aceitaram um papel que os obrigava a ig-
norar o fato de que conquistar, destruir e objetivar cega-
mente nunca teve a necessidade de conhecimento confiá-
vel. Agora, no entanto, eles entendem que a competição é

2017 (ver: nota 2, p. 8 do texto). Como explicitado pela tradutora Ja-


mille Pinheiro Dias, podemos compreender o verbo reclaim em ao
menos três sentidos: como reativar, recuperar ou reclamar. Optare-
mos por um ou outro sentido conforme o emprego. Nas únicas ocor-
rências em que houver recuperar/recuperando/recuperado sem ser
tradução de reclaim/reclaiming/reclaimed, indicaremos qual é o termo
do qual se trata colocando-o entre colchetes.
23

geralmente indiferente a conquistas, tais como a produ-


ção coletiva de conhecimento confiável; o que se requer,
em vez disso, é a “flexibilidade”: isto é, cientistas que
aceitem que o conhecimento produzido por eles só é bom
o suficiente desde que leve a patentes e satisfaça às partes
interessadas.
Pode ser que, se tivéssemos que contar o conto de
como cientistas e acadêmicos foram incapazes de defen-
der as condições que lhes permitem existir, teríamos que
relatar como eles foram finalmente vítimas da mentira
que os tornou modernos, permitindo-lhes reivindicar
uma autoridade geral, ao passo que a especificidade de
sua prática recuou em segundo plano. As operações de
reativação nunca são fáceis. Se recuperar a pesquisa cien-
tífica significa reincorporar as ciências em um mundo
confuso, não é apenas uma questão de aceitar esse mundo
como tal, mas de apreciá-lo positivamente, de aprender
como cultivar e fortalecer, nas palavras de Whitehead, “os
hábitos de valorização concreta dos fatos individuais em
sua plena interação de valores emergentes”.19 Isso, como
já enfatizei, não implica evitar a especialização e a abstra-
ção, que têm um óbvio valor próprio. Mas a apreciação
concreta não significa apenas abster-se de tratar como um
mero remanescente, independentemente do que nossas
abstrações foram abstraídas, ou de abster-se de julgá-las.
Precisamos aprender também como situar ativamente

19 WHITEHEAD, A. N. (1925) Science and the Modern World. op. cit. p.


246.
24

nossas abstrações no que Whitehead chama de “interação


de valores emergentes”. Reativar nunca é apenas uma
questão de boa vontade, do beijo da paz transformando o
sapo decepcionante em um príncipe simpático, educado
e construtivo. O aprendizado é necessário para se interes-
sar pelo próprio sapo, isto é, pela confusão em que todos,
incluindo os cientistas, são participantes.
Aqui, novamente, tocamos no conhecimento radical-
mente assimétrico desenvolvido sob o modelo da fast sci-
ence. Sabemos muito sobre o desenvolvimento de materi-
ais (e sobre as tão chamadas tecnologias imateriais), mas
quando se trata de técnicas muito mais antigas – o tipo de
técnica necessária no momento em que as pessoas estão
divididas sobre um assunto e têm que aprender umas
com as outras através de seus desacordos –, não somos
muito bons em tudo, pois perdemos aquilo que uma vez
conhecemos, isso que outros povos chamariam de “civili-
zação”. Basta pensar na tecnologia presente no Power-
Point, que está se tornando um imperativo de comunica-
ção, vendo o modo como permite que alguém faça uma
observação de maneira marcante, autoritária e esquema-
tizada. Em “balas”, nada menos do que isso (apenas ouça
essa palavra...). Pense também no tédio ao qual todos es-
tão acostumados quando, silenciosa e pacientemente,
meio que ouvimos um querido colega falando por uma
hora. Temos nossos departamentos de psicologia, psico-
logia social, pedagogia e assim por diante, mas não apren-
demos nem mesmo uma fração do que os ativistas que
estão envolvidos em operações de recuperação precisam
25

aprender quando querem trabalhar em conjunto com os


outros sem afirmar sua autoridade. De fato, eles aprende-
ram a considerar cada encontro como o que, segundo
Whitehead, eu chamaria de “fato individual”, ou seja,
como sendo dependente da interação de valores emer-
gentes; valores que podem surgir apenas porque os parti-
cipantes aprenderam como permitir que se torne impor-
tante a questão que está presente no coração de seu en-
contro com o poder, o poder de conectar todos os presen-
tes.
Produzir conhecimento sobre tais fatos individuais,
sem dúvida, exige uma abordagem que não esteja de
acordo com o modelo da fast science. Momentos em que os
valores emergem não podem ser desincorporados e sub-
metidos a categorias gerais; por exemplo, o momento em
que alguém se sente transformado por ter entendido a
perspectiva de outra pessoa; ou o encontro que descobre
o poder transformador de seus participantes pensando
juntos; ou a experiência de que algo que até agora parecia
insignificante pode de fato importar. Tais momentos fo-
ram tratados superficialmente, com categorias inadequa-
das derivadas do imperativo da reprodutibilidade. Eles
têm sido julgados impróprios para o conhecimento, ou
pior, relegados ao irracional e, portanto, considerados in-
dignos de nossa atenção. Mas pode ser que a abordagem
da qual eles precisam seja apenas um pouco diferente,
que o que precisamos aprender não é como defini-los,
mas sim como cultivá-los. Precisamos descobrir o que os
apoia e sustenta, e o que os frustra ou envenena: ganhar
26

algo como o conhecimento lento do jardineiro, em oposi-


ção ao rápido conhecimento da agricultura industrial “ra-
cionalizada”. A esse respeito, o tipo de conhecimento pro-
duzido em nossas universidades é, de fato, radicalmente
desprovido de equilíbrio, e todos nós estamos pagando o
preço por isso.
Novamente, reativar significa, antes de mais nada, re-
conhecer que estamos doentes e precisamos nos curar. A
slow science não fornece uma resposta pronta; não é uma
pílula. É o nome para um movimento no qual podem se
juntar muitos caminhos rumo à recuperação [to recovery].
Quanto a nós acadêmicos, que tal introduzir reuniões len-
tas, isto é, reuniões organizadas de tal maneira que a par-
ticipação não seja apenas formal? Que tal conversas len-
tas, não apenas convidando pessoas que alguém real-
mente deseja ouvir, mas também lendo e discutindo de
antemão, para que a reunião não seja reduzida ao ritual
de assistir a uma palestra preparada que termina com al-
gumas perguntas banais? Que tal exigir que, quando os
colegas falam ou escrevem sobre questões que estão além
de sua área de especialização, eles apresentem as infor-
mações, o aprendizado e as colaborações que lhes permi-
tiram fazê-lo? Que tal assegurar, quando é necessária es-
pecialização numa questão de interesse comum, que os
co-especialistas estejam presentes e sejam capazes de re-
presentar eficazmente as muitas dimensões relevantes
para a questão? Do ponto de vista dos cientistas rápidos,
todas essas propostas têm um defeito comum. Todos eles
envolvem perder tempo, ou pior, romper com a relação
27

simbiótica que liga o “verdadeiro progresso” à inovação


industrial.
Estas são apenas sugestões, e devo admitir que passei
muito mais tempo falando sobre a fast science do que sobre
o que seria a slow science. Acompanhando aqueles que
hoje insistem que “outra ciência é possível”, meu traba-
lho, como filósofa, é tentar ativar a imaginação, que en-
volve ir além da questão da atual mobilização da pesquisa
tão chamada “economia do conhecimento” para exami-
nar as consequências da mobilização mais antiga. A po-
derosa apreensão dessas consequências em nossos recur-
sos imaginativos tem que ser desafiada.
Tentei confrontar o que tem sido chamado de “auto-
nomia”, vendo isso como um presente venenoso. O nome
do veneno é progresso, mobilização para o avanço do co-
nhecimento como um fim em si mesmo, e sua consequên-
cia é o extraordinário contraste entre, de um lado, a coo-
peração imaginativa e exigente entre colegas para quem a
confiabilidade é o valor primordial e, de outro, a maneira
fácil e arrogante pela qual esses mesmos colegas descar-
tam ou ignoram o mundo, que é reduzido a um campo de
operação para o progresso racional.
A mobilização desafiadora – que é o que separa os ci-
entistas de seu poder de pensar, imaginar e conectar, de-
finindo qualquer coisa que a atrapalhe como sendo neces-
sariamente secundária, pois o que seria desacelerado é
progresso – implica repensar e reinventar instituições ci-
28

entíficas. Mas quero abordar agora a questão de outro ân-


gulo, sem me antecipar a essa reinvenção, que não é mi-
nha tarefa como filósofa, mas sim ativando outra imagi-
nação complementar, que diz respeito àqueles campos
acadêmicos sem quaisquer ovos de ouro, a saber, as hu-
manidades.
De fato, ouvi dizer com certa frequência que o que
falta aos cientistas dos ovos de ouro é a reflexividade, es-
pecificamente a reflexividade crítica cultivada pelas hu-
manidades. Eu até ouvi dizer que, se as humanidades es-
tão hoje drasticamente sub-financiadas, é porque essa re-
flexividade crítica deve ser mantida à distância, uma vez
que representa uma ameaça à mobilização. Minha alega-
ção, no entanto, é que essa reflexividade pode também ter
de ser recuperada como parte do problema, e não da so-
lução, ao menos na medida em que isso também se define
como algo que falta a “outros”, garantindo assim às hu-
manidades o autoproclamado ponto de vista privilegi-
ado: eles acreditam, mas sabemos melhor; e melhor e me-
lhor a cada nova virada teórica.
Minha posição não deve ser confundida com “acrí-
tica”.20 Mas pretendo, certamente, dar voz à minha pro-
funda frustração com a relação quase constitutiva entre
reflexividade crítica e suspeita, em que desmascarar ou

20 Em “Experimenting with Refrains: Subjectivity and the Challenge


of Escaping Modern Dualism”, Subjectivity, 22 (2008). p. 38–59, pro-
pus uma distinção entre crítica e discriminação, duas palavras com a
mesma raiz etimológica.
29

desconstruir aparecem como realizações em si mesmas.


Isso fala para mim de uma mobilização de sua própria es-
pécie, implicando que uma distância deve ser mantida em
relação ao que os outros apresentam como realmente im-
portante para eles.
Whitehead, como citei acima, definiu a tarefa da uni-
versidade como a criação do futuro, na medida em que o
pensamento racional e os modos civilizados de aprecia-
ção podem afetar a questão. A reflexividade crítica, para
resumir, não me parece estar envolvida com a questão de
como suas próprias intervenções são passíveis de “afetar
a questão”. Na verdade, parece ser muitas vezes uma ten-
tativa de obrigar os outros – por exemplo, aqueles que le-
vantam questões relativas à criação de um futuro que vale
a pena viver – a reconhecer que eles estão uma ou muitas
viradas teóricas atrasados demais. Não é a luta de Van-
dana Shiva21 contra o patenteamento ou a industrializa-
ção da vida, ignorando a virada antiessencialista? No en-
tanto, observei que hoje em dia a assustadora questão da
mudança climática se tornou um tópico popular para os
pensadores críticos, sob o tema do “Antropoceno”. Mui-
tas viradas teóricas rivais estão em gestação, caçando no-
vos bodes expiatórios, incluindo quaisquer colegas que
possam estar associados ao “antropocentrismo” por te-
rem ignorado o desafio teórico de lidar com a nossa espé-
cie como uma “força geológica”. Pode ser bem que tais

21 N.T. Vandana Shiva é uma estudiosa indiana, física, ecofeminista


e ativista ambiental e anti-globalização.
30

pensadores críticos considerem as lutas ambientais, polí-


ticas e sociais de muitos ativistas como irremediavel-
mente “antropocêntricas”.
Recuperar o pensamento racional em relação à mobi-
lização, e recuperar os modos civilizados de apreciação
em relação à sua tentação de contrastar a si mesmos com
os outros que necessitam de esclarecimento (qualquer luz
que um campo acadêmico alega prover), claramente não
é suficiente. Também temos que recuperar o desconhe-
cido que figura na definição de Whitehead: “na medida
em que [o que assim reativamos] pode afetar a questão”,
isto é, pode afetar outras lutas que visam a criação de um
futuro digno de ser vivido. Isso, eu argumentaria, não é
uma questão de reflexividade. Em vez disso, ela exige o
que eu chamaria de uma “ecologia de conexões parciais”,
que requer aprender com os outros, ser transformado
pelo que é aprendido e reconhecer nossa dívida para com
essa experiência transformadora enquanto exploramos
seus impactos problematizantes em nossos próprios ter-
mos.
Fazer conexões parciais significa antes de tudo aceitar
estar situado. As operações de recuperação, sejam elas re-
alizadas por ativistas, acadêmicos, camponeses indianos,
feministas ou outros, são sempre particulares e parciais,
porque estão sempre situadas, começando exatamente no
ponto em que fomos humilhados, isto é, separados de
nosso poder para pensar, sentir, imaginar e agir. E esta é
a principal razão pela qual os participantes precisam uns
31

dos outros e podem se conectar uns com os outros; ou me-


lhor, precisam aprender como se conectar uns com os ou-
tros para aprender e tirar novas consequências da experi-
ência um do outro.
É por isso que, citando os Mil Platôs de Deleuze &
Guattari, eu diria que as operações de reativação nos fa-
lam de “um povo ambulante de retransmissão, em vez de
uma sociedade modelo”.22 Referindo a William James, eu
diria que sua lógica é a de fazer um pluriverso, ou, nos
termos de Mario Blaser23, [é a lógica da] tecelagem do que
sempre será mais do que um, mas menos do que muitos.
O teste, aqui, poderia muito bem existir se pudermos
recuperar, para aquelas ideias que nos fazem sentir e pen-
sar, a capacidade de “adicionar” algo à realidade, ao invés
de considerar ideias e conhecimento em termos de ver-
dade, explicação ou objetividade. Retransmitir nunca é
“refletir sobre”, mas sempre “adicionar”, e assim comu-
nicar com o que William James definiu como a “ótima
questão” associada a um pluriverso em formação: o que
fez com o que nós transmitimos “com nossas adições,

22 DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. A Thousand Plateaus, trans.


Brian Massumi, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1987, p.
377.
23 Mario Blaser é associate Professor Tier II Canada Research Chair
in Aboriginal Studies. Academics. Ph.D. McMaster University, 2003
32

suba ou desça de valor? As adições são dignas ou indig-


nas?”.24
A transmissão é apenas um exemplo. Indo além
disso, estou convencida de que reativar, para nós acadê-
micos, exige que nós aprendamos coletivamente como
pensar, a partir da pergunta do James: o que nossas ideias
acrescentam ao que elas intervêm (ou presidem)? Longe
de lutar para manter nossos antigos privilégios, devemos
nos atrever a pensar na possibilidade de podermos fazer
valiosos acréscimos à tecelagem de situações que nos ca-
pacitarão a resistir à barbárie vindoura. E esta pode muito
bem ser a versão mais exigente do que chamei, com Ja-
mes, uma “opção genuína”, o desafio de consentir ou fu-
gir. Eu descrevi a definição de Whitehead da tarefa da
universidade como sendo exposta à zombaria. Aqui, te-
mos que encarar e sentir o risinho dentro de nós, a voz
triste que sussurra: ”quem vocês pensam que são?”. E
essa é uma voz que facilmente assume o tom da reflexivi-
dade crítica.
A pergunta de James é um teste; e consentir com isso
significa antes de tudo levar a questão a sério, sabendo
que nenhuma teoria ditará ou autenticará a resposta, e
que não é tarefa de ninguém fazê-la. O valor de aquisição,
ou mesmo a possibilidade de atribuir qualquer valor à
aquisição como tal, não é, contudo, uma questão de fé

24 JAMES, William. (1907) Pragmatism: A New Name for Some Old Ways
of Thinking. New York: Longman Green and Co. p. 98.
33

cega. E a questão não é silenciar a voz crítica com algum


retumbante obamiano: “Sim, nós podemos!”.25 Consentir
ao teste significa antes de tudo medir o quanto temos que
aprender para escapar dessa alternativa infernal: ou sen-
tindo-se autorizado ou confiando na fé cega.
Ativistas podem realmente nos ajudar. Estou pen-
sando aqui, por exemplo, nas operações de reativação de
ativistas neopagãos e nos rituais que eles experimentam
para se tornarem capazes de fazer o que chamam de “obra
da deusa”. Mas podemos pensar também nos rituais dos
Quakers. Os Quakers não se abalaram diante de seu Deus,
mas sim antes do perigo de silenciar a experiência que re-
velaria o que lhes estava sendo pedido em uma situação
particular, antes do perigo de responder à essa situação
em termos de crenças e convicções predeterminadas. O
ponto crucial em ambos os casos não é, parece-me, a
crença em alguma inspiração sobrenatural a que pode-
mos nos sentir livres para rir. O ponto é a eficácia do ri-
tual, um aspecto estético, reforçando o que Whitehead
chamou de “apreciação concreta dos fatos individuais em
sua interação plena com valores emergentes”; ou a valo-
rização dessa situação, sempre concreta, acompanhada
do halo do que poderia se tornar possível.

25 N.T.: com a expressão “obamiano”, a autora alude ao ex-Presidente


dos EUA Barack Obama e seu slogan de campanha presidencial.
34

Podemos entender essa eficácia em termos do que De-


leuze e Guattari chamaram de “agenciamento” [agence-
ment]26, lembrando que, para eles, a maneira de pensar e
sentir nossa existência é nossa própria participação em
agenciamentos. O canto ritual das bruxas em reativação –
“Ela muda tudo o que ela toca, e tudo o que Ela toca
muda” – poderia ser, certamente, comentado em termos
de agenciamentos criados artesanalmente para resistir à
atribuição desmembradora da agência. A mudança per-
tenceu à deusa como “agente” ou àquela que muda
quando tocada? Mas a primeira eficácia do refrão está no
“Ela toca”. Resistir ao desmembramento não é conceitual.
É parte de uma experiência que afirma que o poder de
mudar NÃO deve ser atribuído a nós mesmos, nem ser
reduzido a algo “natural” ou “cultural”. Faz parte de uma
experiência que honra a mudança como criação. Além
disso, o ponto não é comentar. O refrão deve ser cantado;
é parte e parcela da prática da adoração.
O ponto, portanto, não é teorizar os agenciamentos,
mas sim aceitar que nós mesmos fazemos parte dos agen-
ciamentos acadêmicos que nos induzem e nos permitem
comentar e dissecar criticamente. Levar a sério a pergunta
de William James pode muito bem exigir que aprenda-
mos a viver sem a proteção desses agenciamentos e a criar
artesanalmente outros diferentes: atraindo agenciamen-
tos, atraindo-nos para o que Whitehead chamou de “apre-
ciação concreta”. Como um ato de desafio, pode ser que

26 NT: O termo assemblage


35

devamos, ao falar da eficácia de tais agenciamentos, ousar


usar a palavra que as próprias bruxas reativadoras usam:
magia [magic].
Mas nós, que não somos bruxas, não precisamos imi-
tar seu ofício. O que eles exploram não é uma via rápida
a ser entusiasticamente apressada, como mais um desses
famosos turnos acadêmicos. Qualquer que seja o modo
como podemos reivindicar a capacidade de honrar a mu-
dança, ela deve resistir à pressão de dentro da academia:
a de nossos queridos colegas que objetarão que não esta-
mos sendo suficientemente objetivos ou críticos, ou de pe-
riódicos que insistem na necessidade de respeitar suas
normas, a necessidade de começar expondo “Materiais e
Métodos” (ou a Revisão da Literatura!). Assim, eu reivin-
dicaria que, se nós, acadêmicos, desejamos recuperar nos-
sas práticas como dignas, precisamos também nos tornar
ativistas reivindicadores à nossa própria maneira, inven-
tando nossas próprias maneiras de responder à barbárie
que ganha terreno toda vez que nos curvamos diante da
necessidade, incluindo a necessidade de aceitar as regras
do jogo ou de ser excluído dele.
Mais uma vez, reconhecer que estamos infectados e
que podemos estar espalhando a infecção não é uma
questão de culpa a ser expiada, mas sim de aprender
como criar meios de proteção. Temos que aprender, tal
como fizeram as bruxas, como fazer círculos que nos pro-
tejam de nosso meio insalubre e infeccioso, sem nos isolar
36

do trabalho a ser feito, das situações concretas que preci-


sam ser enfrentadas. Nossa preocupação pragmática e
empírica exigiria então cultivar, junto com aqueles em
quem confiamos, uma arte informada de deslealdade, a
arte de desmantelar discretamente hábitos acadêmicos,
de confundir o olhar dos inquisidores, de formas regene-
radoras de honrar o que nos faz pensar e sentir e imagi-
nar. Como enfatizei, cada operação de reativação é parti-
cular. Ou seja, cada um tem que inventar seus próprios
meios, criar seus próprios interstícios, seus próprios
meios de se proteger e fazer os outros sentirem que a re-
sistência é possível. Isso pode ser o que devemos inventar
com colegas de confiança e ensinar aos nossos alunos ou
aos alunos em quem confiamos. É também, a propósito,
que movimentos de resistência no terreno aprenderam a
fazer durante a Segunda Guerra Mundial na Europa. Isso,
no mínimo, é o tipo de conto que poderíamos contar às
crianças nascidas neste século, quando perguntam: “Você
sabia o que você fez?”.

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