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11/4/2019 Dandara: ficção ou realidade?

- Geledés

Dandara: ficção ou realidade?


Vira e mexe, reacende a polêmica sobre a existência real das pessoas de Dandara, Luiza Mahin,
Chico Rei, entre outras reverenciadas pelos discursos populares. Mais do que oportunidade para
demonstrar erudição, uma boa conversa sobre isso serve para ressaltarmos o quanto a difusão e a
ampla apropriação dos estudos históricos são necessárias, importantes e podem encontrar terreno
fértil.

Por Nei Lopes, do Por falar em liberdade…


(https://porfalaremliberdade.blogspot.com.br/2016/11/dandara- ccao-ou-realidade_22.html)

A nal, a possibilidade de se alimentar mitos e lendas sobre personagens legendários e com forte
apelo social tem a ver com a trágica carência de informações sobre as experiências de segmentos
marginalizados e subalternizados ao longo da história deste país. As pessoas têm sede de saber,
por exemplo, como os homens e, cada vez mais, as mulheres negras levaram suas vidas. Daí, um
pequeno pedacinho de qualquer coisa vira tesouro, abrindo brecha para muitas apropriações,
umas mais legais outras nem tanto. Isso, em si, não é o maior dos problemas.

Sendo assim, nesta semana do 20 de Novembro, tendo em vista que o blog Meu Lote, do grande
mestre Nei Lopes, está em manutenção, pedi autorização para compartilhar o texto Dandara, a
“Noiva” de Zumbi, que ele escreveu há dois anos.

Bora levar adiante essa conversa, porque o homem sabe das coisas!

Dandara, a “Noiva” de Zumbi

Zezé Motta interpreta o personagem Dandara no lme Quilombo, de Cacá Diegues, de 1984.

Nei Lopes – 20/11/2014

“Nome de Dandara nasceu no fundo das eras mais profundas do que o mar. Velhos manfus [?]
contavam que no tempo em que a grande cachoeira ainda pertencia ao poderoso n’gombe, existiu
uma orixá de peitos sempre pejados chamada Dandara. Um dia a orixá, famosa caçadora de
rinocerontes, acuou num tenebroso socavão da oresta de Ogum uma presa acompanhada de cria
nova. Percebendo que o pequeno animal tinha fome, Dandara largou por terra a lança a ada,
agachou-se e aconchegou-o aos peitos fartos, mas, enquanto amamentava, a fêmea enfurecida e
investiu, matando Dandara e a própria cria”…
E assim foi que, no texto delirantemente fantástico de seu romance épico “Ganga-Zumba” (Edições
de Ouro, s/d, cap. 86, p. 138), em que mistura mitos, expressões lingüísticas e origens étnicas
diferentes e distantes no mesmo ambiente; foi assim que o grande escritor mineiro João Felício dos
Santos (1911-1989), certamente sem querer, criou um dos maiores mitos da História do Brasil – a
lenda de Dandara, o amor de Zumbi. Vejamos por quê.
https://www.geledes.org.br/dandara-ficcao-ou-realidade/ 1/3
Os textos que fundamentam a História dos quilombos de
11/4/2019 Palmares
Dandara: ficçãobaseiam-se
ou realidade? - em relatórios
Geledés
militares encomendados pelas autoridades coloniais. Foram escritos sob a ótica dos dominadores,
repressores daquela subversão, e serviam principalmente para exaltar não as façanhas dos
aquilombados, mas a atuação dos integrantes das expedições de captura ou extermínio. Esses,
sim, são citados nominalmente; enquanto que os quilombolas nominados são, salvo engano,
apenas aqueles que deram nomes a suas comunidades, como era comum na Angola colonial:
Dambrabanga, Andalaquituxe, Ganga Zumba, Zumbi, etc.
Falamos em Angola; porque o “quilombo” é uma instituição social congo-angolana. E aí
apontamos a primeira armadilha da cção de João Felício: ele associa o nome “Dandara” ao de um
orixá, quando sabemos que o termo “orixá”, bem como sua conceituação, não pertence ao universo
banto, angolo-conguês, e sim ao iorubano, da atual República da Nigéria, no Golfo da Guiné.
E dizemos mais: num contexto profundamente sexista, quanto era o do século XVII, no Brasil e na
Europa, em relatórios de guerra, salvo eventuais exceções, mulheres são citadas apenas como
registro estatístico. Exemplo: “Constam os Palmares de negros que fugiram a seus senhores (…) e
com mulheres e lhos habitam em um bosque de tão excessiva grandeza que fará maior do que
todo o reino de Portugal” (relatório em M.M. Freitas, “Reino negro de Palmares”, Bibliex, 1988, p.
345).
Na História palmarina, a única menção a mulher de que temos notícia, salvo prova em contrário, é
a feita à idosa “Madalena, negra de Angola”, que seria “sogra” de um dos lhos do “rei” Ganga-
Zumba (cf. Benjamin Péret. “O quilombo de Palmares”, Lisboa, Fenda Edições, 1988, p. 26).
Observemos, ainda, que esse livro do francês Péret estampa uma farta nominata; mas toda ela
referente ao período em que a liderança de Palmares era exercida por Ganga-Zumba e não por
Zumbi, que comandou a decisiva dissidência do grupo.
Sobre isso assim escreve o historiador Ivan Alves Filho: “No mês de novembro de 1678, à frente de
um grupo de 140 pessoas, Ganga-Zumba se deslocou para Recife a m de formalizar o acordo de
paz. Ele foi nomeado o cial do exército português e dois de seus lhos foram adotados pelo
Governador (…). Assim, Ganga-Zumba e seus partidários vão viver em Cucaú, uma região situada
a 32 quilômetros de Serinhaém” (in “Memorial dos Palmares”, Brasília, Fundação Astrojildo
Pereira/Editorial Abaré, 2008, p.103).
Esse fato histórico nos remete de pronto ao ocorrido no Congo, cerca de duzentos anos antes,
quando, em seus primeiros contatos com os exploradores portugueses, a corte do poderoso Reino
concorda em receber os sacramentos católicos e nomes cristãos como Afonso (ex-Nzinga
Mbemba), Pedro (ex-Nkanga Mbemba), Francisco (Nzinga Mpudi), Diogo (Nkumbi-a-Mpudi), etc.
As rainhas e princesas não mereceram nenhum registro histórico.
Vejamos, também, que o fato de Ganga-Zumba ter fechado acordo com os colonialistas fez com
que sua época fosse mais detalhada nos documentos, inclusive com menções heróicas tais como a
uma pistola de prata com que teria cometido suicídio, versão mais tarde substituída por homicídio
mediante envenenamento. Já Zumbi não era “nobre”, nem “herói”: era “bandido, terrorista,
guerrilheiro”. Como seus ancestrais africanos, que resistiram até não poder mais à cobiça e às
armas lusitanas.
O “Zumbi” de João Felício dos Santos é um herói mítico, inclusive confundido com Ganga-Zumba.
Seus quilombolas ora falam quimbundo e quicongo (idiomas bantos), ora falam iorubá. Cultuam
orixás (forças naturais nagôs, iorubanas) com cantigas do vasto universo congo. E sua “Dandara”
é, como visto acima, uma clara referencia a Oiá-Iansã, nome tutelar do trecho nigeriano do rio
Níger, que lá é chamado “Odo-Oya” (rio de Oiá).
Reforçamos dizendo que, anos atrás, em um trabalho intitulado “Onomástica Palmarina”
(publicado na revista “Carta”, Brasília, Senado Federal, Gabinete do Senador Darcy Ribeiro, n. 13,
nov. 1994, pp. 55-62) conseguimos estabelecer, pelo menos em hipóteses, explicações
etimológicas para quase todos os nomes próprios, de personagens da saga quilombola. Exceto o
de “Dandara”.
Sobre esse nome, para nós, o que ecoa próximo é apenas o de Elesbão Dandará, um dos lideres da
Revolta dos Malês, em 1835. Mas “Dandará” é um nome hauçá, língua em que o elemento “dan”
corresponde ao árabe “ibn” e ao hebraico “ben”, com o signi cado de “ lho de”.
Acreditamos, então, salvo prova em contrário, que a “Dandara” de Zumbi é um personagem ctício.
O que, entretanto, não nos impede de louvar e apoiar o esforço das mulheres afro-brasileiras no
sentido de termos, cada vez mais, no panteão das heroínas afrodescendentes, guras exemplares,
merecedoras de reverência e até mesmo veneração. Elas existiram e existem, sim. E não são
poucas.
Fonte: Meu Lote no Facebook
(https://www.facebook.com/MeuLote/photos/a.492800690790495.1073741828.447514621985769/754830704587491/?
https://www.geledes.org.br/dandara-ficcao-ou-realidade/ 2/3
type=3&hc_location=u )
11/4/2019 Dandara: ficção ou realidade? - Geledés
Aproveitando, segue o link para os lmes Ganga Zumba (https://youtu.be/uOnK0r6ah4k) (1963)
e Quilombo (https://youtu.be/pwbmkM7xQS0) (1984),dirigidos por Cacá Diegues, para os quais
colaborou José Felicio dos Santos.

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Lazaro Costa Neto


Lembrei da atriz Dandara Mariana que tá dando um show na novela das oito.
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Eliana Batista da Silva


Dandara Ayane
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Cibelle Rodrigues
Fernanda Dandara Abreu Rosa lê aí
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Mauricio Dos Santos Souza


"Forte, guerreira, que lutou por nós"

https://www.youtube.com/watch?v=WPLFVkxC6n4
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Vanessa Silva Amaral


Kimberly Amaral Aisha Amaral
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