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TERMOS DE REFERÊNCIA PARA CERTIFICAÇÃO DO QUILOMBO URBANO DO BECO

DE DOLA EM VITÓRIA DA CONQUISTA, BA

Ação realizada pela SEMDES, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, através da


Coordenação Municipal de Promoção da Igualdade Racial, em parceria com a comunidade
do Beco de Dola.

SHEILA LEMOS, prefeita municipal


MICHAEL FARIAS, secretário municipal de desenvolvimento social
MARIA OLINDA PEREIRA, coordenadora municipal de promoção da igualdade racial
AFONSO SILVESTRE, historiador, técnico responsável

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO
quilombos de conquista
Beco de Dôla
recortes de memória
relatórios das atividades

2. COLEÇÃO FOTOGRÁFICA

3. DOCUMENTOS
dissertação Flávio Passos
declaração de autorreconhecimento
ata da assembleia para aprovação da Carta

4. LINKS
TERMOS DE REFERÊNCIA PARA CERTIFICAÇÃO DA COMUNIDADE
QUILOMBOLA URBANA DO BECO DE DÔLA

1. INTRODUÇÃO: MEMÓRIA DAS CERTIFICAÇÕES QUILOMBOLAS NO


MUNICÍPIO DE VITÓRIA DA CONQUISTA

A Certificação Quilombola, embora esteja descrita na Constituição de 1988 como


necessidade fundamental para proporcionar visibilidade a essas povoações enquanto lugar
de memória, reconhecimento e reparação, veio a ser implementada no Brasil em 2003.
Trata-se de um processo que inicia-se com uma Declaração de Autorreconhecimento,
enviada à Fundação Cultural Palmares, juntamente com uma série de documentos e
comprovações como estudos e pesquisas, dados demográficos, fotografias e registros em
audiovisual.

Em Vitória da Conquista a experiência foi iniciada em 2004, primeiramente com trabalhos


de pesquisas e reconhecimento das características, entrevistas com moradores mais
velhos, atividades de especulação das memórias a partir das visões de diversas áreas do
conhecimento, entre elas a história, a psicologia, a linguística, a geografia, a arte, a
medicina e a enfermagem, a agronomia, a economia. Assim, no período de 2004 a 2006
foram feitas intervenções em 42 comunidades identificadas como remanescentes de
quilombos.

Uma 43ª comunidade foi identificada recentemente pelo Engenheiro Agronômico Marinaldo
Carvalho (quilombola do Velame), que trabalhou no processo de certificações em Conquista
entre 2004 e 2006. A comunidade está localizada na região de Campo Formoso (Distrito de
São João da Vitória), chamada Quilombo dos Crioulos. O técnico iniciou os trabalhos de
reconhecimento junto à comunidade e a documentação já foi enviada à Fundação
Palmares. Estão aguardando o retorno da Certificação da Carta e dos trabalhos realizados.

Naquele mesmo ano de 2006, iniciaram-se os recebimentos de certificações pela Fundação


Palmares. Daquele momento até o ano de 2012, após testada a metodologia, foram feitas
20 certificações dentro do Município de Vitória da Conquista, entre povoados certificados
individualmente ou territórios de identidade, com mais de uma localidade e com apenas
uma associação representando todas as integrantes, Sendo assim, embora haja 20
Certificações direcionadas a 20 associações que têm em sua abrangência 32 comunidades.

20 certificações; 20 associações; 31 comunidades em sua abrangência. Das 20


associações, 3 representam territórios:
O primeiro, LAGOA DE MELQUÍADES E AMÂNCIO, tem duas comunidades; o
território de LAGOA DE MARIA CLEMÊNCIA, com oito, e o território da
BATALHA, com três comunidades.
O primeiro originou-se de parte de uma fazenda doada no final do século XIX a
dois escravizados (que deram nome ao local) como prêmio por terem encontrado
uns animais perdidos. A segunda e a terceira, são comunidades de povos
originários que habitam o local há mais de 200 anos, ou seja, desde o século XVII.
Embora a Coordenação de Promoção da Igualdade Racial tenha sido instituída em 2013, e
houvesse ainda demandas para certificação, após esta data nenhum processo foi
encaminhado, e a coordenação passou a ter um caráter assistencial e reativo às demandas,
sem planejamento e sem atualização de bancos de dados ou interseccionalidade com
outras secretarias.

Em 2022 o Município retoma as certificações, primeiramente com um quilombo urbano, a


comunidade do Beco de Dôla, que está em processo de concepção da Carta de
Autorreconhecimento e produção de material para submissão à Fundação Palmares.

TITULAÇÃO DE TERRAS/ INCRA

Das comunidades certificadas, a única que obteve o relatório técnico de identificação e


demarcação foi o Velame, no ano de 2008. O processo de titulação continua em curso,
neste momento em fase de desapropriações.

Devido à metodologia aplicada pelo INCRA, os prazos são longos porque o instituto
trabalha com diálogo para evitar conflitos. Até o ano de 2012 as atividades e processos
eram acompanhados pelo Município, período em que outras solicitações foram
encaminhadas. Porém, a partir daquela data, esses trâmites passam a ser feitos
diretamente entre as associações e o INCRA.
TABELA 1:
datas de certificação, comunidades e territórios certificados, caráter da certificação

DATA COMUNIDADES OBSERVAÇÕES

2005 1. BOQUEIRÃO CERTIFICAÇÕES INDIVIDUAIS PARA


2. VELAME DOIS DOS TRÊS NÚCLEOS ORIGINAIS
DE QUILOMBOS EM CONQUISTA. O
TERCEIRO É A COMUNIDADE DO
FURADINHO, CERTIFICADA EM 2006

2006 3. CORTA LOTE INDIVIDUAL


4. TERRITÓRIO LAGOA DE MELQUÍADES: TERRITÓRIO:
BAIXA SECA + LAGOA DE MELQUÍADES 2 COMUNIDADES DESCENDENTES DE
ESCRAVIZADOS
5. QUATIS DOS FERNANDES INDIVIDUAL
6. LAGOA DOS PATOS INDIVIDUAL
7. SÃO JOAQUIM DE PAULO INDIVIDUAL
8. FURADINHO INDIVIDUAL
9. ALTO DA CABECEIRA INDIVIDUAL
10.TERRITÓRIO MARIA CLEMÊNCIA: TERRITÓRIO DE LAGOA DE MARIA
LAGOA DE MARIA CLEMÊNCIA + POÇO DE ANINHA + CLEMÊNCIA. 8 COMUNIDADES COM
CALDEIRÃO +OITEIRO + MANUEL ANTÔNIO + BAIXÃO + CARACTERÍSTICAS DOS HABITANTES
TABOA + MURITIBA ORIGINAIS DA REGIÃO.

11.TERRITÓRIO BATALHA: TERRITÓRIO DA BATALHA:


BATALHA, LAGOA DO ARROZ, RIBEIRÃO DO PANELEIRO 3 COMUNIDADES TAMBÉM COM
CARACTERÍSTICAS DE HABITANTES
ORIGINAIS, ESTES COM TRADIÇÃO
BICENTENÁRIA DE FEITURAS DE
PANELAS DE BARRO.

12.LAGOA DE VITORINO CERTIFICAÇÃO INDIVIDUAL


13.CACHOEIRA DO RIO PARDO CERTIFICAÇÃO INDIVIDUAL

2007 14. SINZOCA CERTIFICAÇÃO INDIVIDUAL

2011 15.BARREIRO DO RIO PARDO CERTIFICAÇÃO INDIVIDUAL

2012 16. S. JOAQUIM DO SERTÃO CERTIFICAÇÕES INDIVIDUAIS


17. LAMARÃO
18. CACHOEIRA DOS PORCOS *A comunidade das Barrocas solicitou
19.CACHOEIRA DAS ARARAS certificação fora do prazo. Ela faria parte
20.BARROCAS de um território composto com São
Joaquim de Paulo, mas negou-se
inicialmente por razões de auto
preconceito e desconhecimento.
Postularam depois, quando foi organizado
um grupo e a certificação foi feita em um
ano (2011). Este foi o último pedido de
reconhecimento enviado para a Fundação,
consolidado no ano seguinte

* como havia inconsistência nas informações da FPalmares, foi realizado o cruzamento dos dados com os da
Fundação Pedro Calmon e Sepromi e a memória institucional local para os ajustes de datas e inclusão de
observações
TABELA 2:
comunidades que compõem os territórios, número de famílias e localização.

1. LAGOA DE MELQUÍADES E AMÂNCIO

LOCAL FAMÍLIAS DISTRITO

BAIXA SECA 47 VEREDINHA

LAGOA DE MELQUÍADES 225 VEREDINHA

2. LAGOA DE MARIA CLEMÊNCIA

LOCAL FAMÍLIAS DISTRITO

LAGOA DE MARIA CLEMÊNCIA 205 SEDE

POÇO DE ANINHA 34 SEDE

CALDEIRÃO 11 SEDE

OITEIRO 107 SEDE

MANUEL ANTÔNIO 34 SEDE

BAIXÃO 374 SEDE

TABOA 10 SEDE

MURITIBA 42 SEDE

3. BATALHA

LOCAL FAMÍLIAS DISTRITO

BATALHA 38 SEDE

LAGOA DO ARROZ 63 SEDE

RIBEIRÃO DO PANELEIRO 55 SEDE


TABELA 3:
comunidades com certificações individuais.

LOCAL FAMÍLIAS DISTRITO

BOQUEIRÃO 260 JOSÉ GONÇALVES

VELAME 47 INHOBIM

CORTA LOTE 186 INHOBIM

QUATIS DOS FERNANDES 36 PRADOSO

LAGOA DOS PATOS 89 JOSÉ GONÇALVES

SÃO JOAQUIM DE PAULO 235 SEDE

FURADINHO 142 IGUÁ

ALTO DA CABECEIRA 110 JOSÉ GONÇALVES

LAGOA DE VITORINO 84 SEDE

CACHOEIRA DO RIO PARDO 83 INHOBIM

SINZOCA 93 JOSÉ GONÇALVES

BARREIRO DO RIO PARDO 51 INHOBIM

S. JOAQUIM DO SERTÃO 205 PRADOSO

BARROCAS 271 SEDE

LAMARÃO 103 VEREDINHA

CACHOEIRA DOS PORCOS 151 IGUÁ

CACHOEIRA DAS ARARAS 223 PRADOSO

LARANJEIRA 161 PRADOSO

MALHADA 262 SEDE


CONSIDERAÇÕES SOBRE A ORIGEM E MULTIPLICAÇÃO DOS QUILOMBOS

Quilombo é um termo ressignificado a partir dos antigos quilombos do período colonial e


imperial. Na contemporaneidade, o termo “quilombo” passa a significar local de resistência
onde se agrupam remanescentes da exclusão anterior à República, bem como aqueles
grupos de resistência e acolhimento que se formaram após a República.

Esses grupos podem ser de uma etnia apenas (negros, como no Boqueirão, Velame e
outros), indígenas (como nos territórios de Lagoa de Maria Clemência e Batalha) ou diversa,
como a grande maioria dos quilombos de Conquista.

Em geral, quilombos passam a ser aquelas comunidades onde grupos considerados


excluídos, expulsos de suas terras ou perseguidos, passam a conviver, compartilhar a terra
e os hábitos, passando esses costumes de geração a outra.

É muito comum encontrar, na mesma comunidade, descendentes de pessoas escravizadas,


de habitantes originais que encontravam acolhimento num momento da história em que
indígenas não domesticados eram exterminados, mas também o comerciante branco que
encontra nesses agrupamentos um local seguro para prosperar e criar sua família.

Os quilombos de Conquista originaram-se de três núcleos, basicamente formados por


escravizados fugidos ou alforriados: Furadinho, Velame e Boqueirão. À medida que esses
locais crescem em população, os recursos começam a ser insuficientes, e alguns
moradores migram e formam novos quilombos. Dessa forma, essas comunidades se
multiplicaram em proporção geométrica, chegando às 43 identificadas até então.

Mais ou menos no mesmo período, agruparam-se ao Norte, para além da Serra do Periperi,
alguns grupos dissidentes de Mongoiós que se assentaram formando o que hoje se
conhece pelos territórios de Lagoa de Maria Clemência e Batalha.

O BECO DE DOLA

Em meados dos anos de 1940, Vitória da Conquista apresentava índices de


desenvolvimento econômico que se destacavam no estado, ao mesmo tempo em que
crescia o número de pessoas indigentes, famílias sem teto e muitas crianças pedindo
esmolas nas ruas. O historiador Leôncio Basbaum, em sua obra autobiográfica “Uma vida
em seis tempos”, em sua passagem pela cidade descreve do seu ponto de vista cenas
tristes e trágicas de pobreza e abandono infantil. Enquanto isso, famílias prosperavam e
ocupavam a Rua Grande, sob os olhos da nova Catedral, construída vinte anos antes.

Maria Petronilha, a Vó Dola, tinha pouco mais de vinte anos quando, em busca de
sobrevivência, refúgio e sustento, instalou-se no alto da Serra do Periperi, passando a
explorar os recursos oferecidos pelo lugar. A madeira, a água, as pedras, tudo era vendido
ou trocado por mercadorias nas feiras. Ensinou suas filhas, que a acompanharam nas
labutas e caminhadas para coleta e comércio dos recursos, os modos e as lições de vida e
sobrevivência. Dola abriu caminho para outras mulheres e criou uma comunidade de
resistência, focada no poder feminino e que veio a ser referência de cultura, costume e
identidade para a cidade nas décadas seguintes.
Além da lida com o trabalho para o sustento, Vó Dola foi uma referência para toda a
comunidade que cresceu ao redor do Beco, seja espiritual, seja de comportamento, seja
como cuidadora e parteira, benzedeira, rezadeira. Sua vida foi o fio que conduziu a
formação dos seus descendentes e manteve sua relação forte com seu passado.

Após Dola, quatro gerações estiveram participando de maneira fundamental na formação


dos costumes da cidade de Vitória da Conquista. Primeiro, ao trabalhar nas casas dos
homens bons ao redor da Rua Grande, as mulheres do Beco levavam em latas na cabeça a
água do Poço Escuro para abastecer os lares. Eram arrumadeiras, cozinheiras, cuidadoras
das crianças e, eventualmente, rezadeiras e benzedeiras. Continuaram trabalhando nas
casas, e acumularam a partir da segunda geração a responsabilidade de influenciar a
cidade em seus carnavais e festas com sua música e dança que era apresentada nos
blocos.

Embora as mulheres da primeira geração tenham abastecido as casas das famílias mas
abastadas e cuidado do seu asseio e dos seus filhos, as memórias das pessoas mais
velhas e os arquivos do Fórum João Mangabeira dão conta de muitos abusos e violências
sofridas. Não obstante tenham cuidado das casas há várias gerações, ainda hoje as
pessoas precisam mentir sobre o lugar onde moram para conseguir um emprego, por conta
do estigma que o Bairro das Pedrinhas vem sofrendo há algumas décadas.

Com isto, pode-se concluir que, a partir do conhecimento de algumas particularidades da


relação histórica que a cidade tem com o Beco, ela tem uma dívida imensa com o lugar e
não sabe. Faz-se necessário, portanto, dar visibilidade a todo o bairro a partir da
comunidade do Beco de Dola, onde estão fincadas as origens das Pedrinhas. É importante
dar visibilidade à memória das pessoas, das suas manifestações através da dança, do
samba de roda, das atividades do Terreiro, pois ali estão contidos muitos elementos da
história e da memória do Município de Vitória da Conquista.

SOBRE AS ATIVIDADES PARA A CERTIFICAÇÃO

Esta ação teve como principal referência o trabalho do professor Flávio Passos (anexo) e o
acúmulo dos registros durante as visitas e encontros no local ao longo dos anos, sejam
festas, ensaios, reuniões do Terreiro e reuniões para encaminhamento de ações políticas
para melhorias na vida do Beco. A partir desses entendimentos acumulados,
organizaram-se as reuniões e rodas de conversa a partir do mês de março de 2022.

A psicóloga Monalisa Cirino coordenou a roda “A memória através dos objetos” onde, numa
dinâmica com um grupo de mulheres e meninas as memórias do Beco foram sendo
construídas através dos objetos de uso cotidiano. A partir deles, o estímulo da memória
afetiva permite que, em grupo, se organizem memórias para contar um fio, um trajeto de
memória de si mesmas e do lugar em que vivem.

Com esta primeira atividade aberta, as pessoas sentiram-se mais envolvidas pelo processo
de autorreconhecimento. Foram realizadas entrevistas com Zita, Marielza e Ninga, filhos de
Dola, onde eles reafirmaram, dos seus pontos de vista, as memórias de alegrias e tristezas,
conquistas e perdas ao longo das décadas. Chama atenção observar Zita, a filha mais velha
de Dola, ter, da infância, muitas memórias de trabalho e nenhuma de brincadeiras.
Em 29 de abril, houve um encontro das irmãs Laiz e Cota, netas de Dola, com o engenheiro
agronômico Marinaldo Carvalho, quilombola do Velame e realizador de processos de
certificação em vários estados. O agrônomo explicou os processos referentes às novas
diretrizes da Fundação Palmares para Certificação, formação da associação, planejamento
da assembleia e possibilidades de recursos para desenvolvimento dos quilombos.

Duas rodas de conversa também foram bastante significativas para o autorreconhecimento


dos moradores do Beco de Dola, tanto para a questão da identidade cultural quanto para o
entendimento dos próprios direitos. A primeira com o historiador Alberto Bomfim, sobre a
relação do Beco com o samba e os antigos carnavais, onde ficou claro o protagonismo do
Beco na organização de muitos carnavais em Vitória da Conquista. A segunda foi com a
advogada e representante do Núcleo de Direitos Humanos da OAB, Cida Carvalho, sobre
direitos da mulher periférica e negra. Nesta conversa foram identificadas algumas situações
de abuso, desrespeito aos direitos humanos e de trabalhadoras e algumas questões
pontuais que foram encaminhadas pela advogada através da Ordem.

AGRICULTURA URBANA

A professora da UFBA Patrícia Baier-Krepsky conduziu uma conversa sobre agricultura


urbana como prática que contribui para a segurança alimentar e nutricional, promoção de
saúde física e mental, valorização da cultura local quanto aos hábitos alimentares, uso de
plantas medicinais e modos de cultivo do solo. Os participantes da conversa demonstraram
profundo conhecimento herdado sobre os assuntos trabalhados. Nota-se que, mesmo não
tendo mais lugar para plantio, todas têm memória bastante rica sobre as vivências com trato
e uso de plantas. Fortaleceu-se neste encontro o desejo de retorno a essas memórias com
a ideia de plantio coletivo de espécies, seguindo as orientações da professora.

Esta ação será possibilitada pela articulação com o Município para realizar a integração do
terreno anexo ao Beco, conforme foi conversado com o secretário de Desenvolvimento
Social e a prefeita na reunião que abriu os trabalhos para a concepção da Carta. Essas
terras foram anteriormente pertencentes a Vó Dola, e das quais teve de se desfazer para
garantir alimento para a família em tempos mais difíceis.

Esta necessidade ficou muito clara durante o encontro, como se poderá notar no relato
realizado pela professora, aqui reproduzido. Observa-se um fenômeno interessante que se
repetiu em Vitória da Conquista a partir dos anos de 1980, quando a cafeicultura passou a
mostrar-se um gerador de riqueza para poucos através da manutenção da pobreza para
muitas pessoas. Esses pequenos produtores foram levados a tentar a vida na cidade e,
uma vez privados da sua cultura, tiveram que optar por outras formas de ganho e sustento,
e encontraram no trabalho informal esta maneira emergencial. Estas famílias também
vieram a sofrer, 40 anos depois, a mesma privação à terra que sofreram as famílias do Beco
de Dola por uma razão parecida: a ocupação do mais rico que paga um preço mais baixo ao
pequeno proprietário que se encontra em condições de risco pessoal, financeiro, social.

Reproduz-se aqui o relato da professora sobre a roda de conversa, e suas percepções a


respeito da relação da comunidade do Beco de Dola com a terra.
Relato da roda de conversa sobre AGROECOLOGIA

Antes da abertura oficial da roda de conversa foram organizadas, no centro da sala,


amostras de algumas espécies vegetais medicinais e plantas alimentícias não
convencionais. As participantes, espontaneamente, iniciaram relatos sobre a
importância daquelas espécies medicinais. Percebeu-se, desta forma, o conhecimento
consolidado tanto sobre o uso quanto sobre o cultivo das espécies. Portanto, a
discussão teve início a partir das falas das mulheres presentes, dos seus próprios
conhecimentos.

Como exemplo de espécies sobre as quais foram relatados os modos de uso, podemos
citar folhas de colônia, arnica, babosa, sabugueira, raiz de palma, erva doce, alho,
gengibre, quebra pedra, boldo, romã, aroeira, trançagem, água de batatinha,
cana-de-macaco, limão, açafrão, canela.

Existe uma relação muito forte da comunidade com a questão do cultivo, isto se dá
possivelmente por conta das ligações que tem com suas origens e do hábito de cultivar
quintais biodiversos. Plantas são empregadas pela comunidade não apenas pelo seu
efeito medicinal, mas também em contexto religioso e como modo de ter prazer na vida.
Os participantes comentaram a respeito do prazer de acompanhar o desenvolvimento
dos plantios: “Ver a vida acontecendo debaixo de nossos olhos”.

Neste contexto, existe a demanda por plantas medicinais com qualidade compatível com
tais finalidades, de cura e espirituais, e seria muito importante que o cultivo na própria
comunidade, em horta comunitária. Houve discussão a respeito da possibilidade de
integração à área da comunidade, de terreno de propriedade de pessoas de fora do
quilombo, para implantação de horta.

A horta poderia favorecer a obtenção de plantas importantes para práticas tanto


religiosas quanto de cura do corpo físico. Ao passarem a cultivar e ter controle sobre a
produção dessas espécies, “elas poderão garantir a qualidade diferenciada necessária”.

Sobre o cultivo, as mulheres descreveram suas percepções sobre o que é um solo fértil.
Apontaram que maior fertilidade do solo pode ser encontrada em quintais localizados
onde antes havia mata, o que pode facilitar a realização de futuras oficinas
teórico-práticas sobre a aplicação de técnicas em agroecologia em hortas urbanas e
demonstra o conhecimento sobre o que é um solo fértil, com terra preta, ao contrário de
solos vermelhos, os quais são excessivamente argilosos.

No caso do terreno em frente à comunidade, o solo precisaria ser trabalhado, visto que
na época da realização da roda de conversa o terreno (...) encontrava-se com entulho.
Portanto, discutiu-se que provavelmente será importante algum processo de
remediação. Ou seja, é interessante descontaminar a área antes de iniciar o cultivo de
espécies para uso humano.

O grupo chegou à conclusão sobre as vantagens de iniciar as atividades plantando


espécies fitorremediadoras, ou seja, plantas que colaboram com a descontaminação do
solo, para ajudar a diminuir a toxicidade.

Foi apresentado pela professora o fato de que existem muitas espécies que se
desenvolvem muito bem em terrenos com baixa fertilidade, ou seja, tais espécies
poderiam ser cultivadas inicialmente, com poucos recursos, com o objetivo de, aos
poucos, se atingir a terra preta. Por exemplo: girassol, andu, outros feijões, canjoão,
moringa, diversas espécies medicinais. As participantes relataram que já existe
desenvolvimento de espécies espontaneamente no terreno: tomate-cereja, abóbora,
melancia, demonstrando na prática a possibilidade de produção agrícola naquele local
com poucos recursos. Além disso, já houve cultivo de rosas, canjoão, mamão,
alfavaquinha muitos anos atrás, realizado por moradores locais.

Plantas alimentícias não convencionais também foram citadas como importantes


alimentos por serem muito nutritivas e, geralmente, de fácil cultivo como a ora-pro-nóbis,
moringa, língua de vaca. Portanto, também seriam uma excelente opção para compor a
horta comunitária.

Além da preocupação com a qualidade das plantas medicinais, foi relatada a


necessidade de água purificada, também no contexto religioso. Partindo desta fala foi
encaminhada discussão sobre a diminuição na disponibilidade de água com qualidade
nas cidades, assim como sobre a importância da preservação do meio ambiente a fim
de tentar diminuir a contaminação das águas, o que envolve a agroecologia, pois
trata-se do cultivo de alimentos e outros vegetais de modo a preservar o meio ambiente
entre outros objetivos.

Uma das técnicas muito importantes em agroecologia, a qual foi discutida com os
participantes, é a necessidade de cobertura do solo para manutenção da umidade e
aumento gradual da sua fertilidade. A cobertura pode ser realizada com deposição de
matéria orgânica ou pelo plantio de diferentes espécies. Os participantes mostraram-se
muito familiarizados com a observação do maior frescor da terra sob árvores. A partir
desta experiência deles as técnicas foram abordadas.

A fim de proteger o solo com material vegetal poderiam ser cultivadas no local espécies
que produzem muita matéria orgânica como: canjoão, margaridão e bananeiras.
Pseudocaule da bananeira cortado ao meio e organizado no solo fornece inclusive água
para o solo.

Outra conclusão foi a respeito das diversas possibilidades de regeneração do solo. Por
exemplo, através do uso de resíduos orgânicos provenientes das cozinhas sobre o solo
seguida da cobertura do solo com folhas, flores, galhos.

Outra técnica debatida foi o plantio de espécies vegetais em consórcio, otimizando o


aproveitamento do espaço assim como a vida no solo pela presença de raízes com
diferentes níveis de profundidade. Por exemplo: o cajoão poderia ter sob ele a colônia,
erva cidreira poderia ser plantada junto com babosa. Espécies da família dos feijões
contribuem para aumentar a quantidade de nitrogênio no solo, importante
macronutriente. Sendo que os feijões são espécies de ciclo de curto, as quais podem
ser plantadas no mesmo momento das árvores e outras espécies perenes, neste sentido
percebe-se a viabilidade de aplicar técnicas que fazem parte dos sistemas agroflorestais
sucessionais.

Tanto consórcio quanto cobertura contribuem para o aumento na vida do solo, gerando o
que se denomina bicrobiota do solo. Ou seja, da mesma forma como é fundamental
cuidarmos da nossa microbiota, assim o é para a microbiota do solo, a qual gera
fertilidade e saúde para os vegetais cultivados.

Como pode ser percebido durante as discussões, técnicas em agroecologia usam


prioritariamente recursos locais, aumentando a autossustentabilidade das comunidades
quanto ao cultivo. E as colheitas favorecem a segurança alimentar.

Foram apresentadas fotos de algumas experiências bem sucedidas de agricultura


urbana, ou seja, hortas comunitárias em áreas urbanas com benefícios para o meio
ambiente, para a saúde dos moradores e estética das cidades.
Falou-se também sobre questões correlatas, como a preocupação com a pureza da
água consumida, as questões dos resíduos sólidos e sua reciclagem, o desrespeito aos
profissionais da coleta, e outros aspectos que terão de ser pensados para assegurar a
sustentabilidade das ações. Assim, de maneira leve e com os participantes da roda
sentindo-se bastante à vontade, e de certa forma íntimos do assunto, ficou ainda melhor
compreendido que a agroecologia é um conjunto de métodos de cultivo sem uso de
agrotóxicos, com regeneração do solo, preservação do meio ambiente e valorização dos
conhecimentos locais.
2. COLEÇÃO FOTOGRÁFICA

Registros dos costumes e das atividades da Coordenação Municipal de Promoção da


Igualdade Racial no Beco de Dola. Na primeira parte, festas, reuniões e entrevistas
realizadas no Beco ao longo de 10 anos. Na segunda parte, registros das atividades para a
concepção da Carta de Autorreconhecimento.
3. DOCUMENTOS

Aqui estão anexados a dissertação do professor Flávio Passos, “Beco de (Vó) Dola:
territorialidade e ancestralidade negra em Vitória da Conquista”, marco teórico para o
desenvolvimento deste trabalho. Segue a Carta de Autorreconhecimento, concebida pela
comunidade a partir dos subsídios fornecidos pelos encontros e rodas de conversa e,
finalmente, a Ata de Leitura e Aprovação da Carta de Autorreconhecimento.
DISSERTAÇÃO
DECLARAÇÃO DE AUTORRECONHECIMENTO DO BECO DE DÔLA COMO
QUILOMBO URBANO NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA DA CONQUISTA, BAHIA.

lida em 10 de setembro de 2022 pela quilombola Laiz Gonçalves, neta de Vó


Dola, e aprovada na mesma data em Assembleia realizada no Beco de Dola com
participação de toda a família e seus descendentes em quatro gerações.

Nós, Mulheres, Homens e Crianças descendentes de Maria Petronilha Gonçalves,


moradores do Beco de Dôla, declaramos nos reconhecer como quilombolas
urbanos, moradores desde a década de 1940 quando Maria Petronilha, nossa
eterna vó Dôla, aqui se instalou em busca de refúgio e de sustento. Ensinou suas
filhas, nossas mães, Zita, Fátima e Elza, a conduzir sua força e ensinamento para
formar e educar a todos nós, seus filhos, netos, bisnetos e trinetos.

Crescemos sob um arranjo familiar focado nas mulheres como referência espiritual,
ética, moral. Vingamos e vencemos, nascemos e renascemos muitas vezes sob as
curas, os banhos, os chás, as rezas e benzeções ensinadas por Vó Dôla. Esses
ensinamentos e referências mantêm a nossa ligação com a identidade e a
ancestralidade difundida em nós por ela, a Grande Mãe de todos nós.

Somos filhas e filhos, netas e netos, bisnetas e bisnetos, trinetas e trinetos, de


gerações que, para nosso orgulho e razão, de pessoas que abasteceram a cidade
com a água sagrada do Poço Escuro, construíram as casas das famílias da cidade
com as pedras sagradas da Serra do Periperi. Pessoas que, para honra do nosso
quilombo, cuidaram dos filhos, netos, bisnetos e trinetos das famílias da cidade,
zelaram, mantiveram arrumadas e asseadas as casas, fizeram o alimento e
alimentaram essas famílias.

Parte da nossa memória abriga décadas de sofrimento, perseguição, violência,


desrespeito, negação de direitos, descaso, desprezo e outros abusos. Porém, por
vivermos em união física e espiritual, e fiéis aos ensinamentos da nossa
ancestralidade, aprendemos a nos proteger e seguir resilientes em nossos
costumes e ritos. E mesmo diante de tantas agruras que nos foram impostas por
uma sociedade racista e desigual, enfrentamos com coragem as máquinas de um
estado violento e perseguidor. Máquinas de matar que invadem, à margem da lei, as
casas, a privacidade, os direitos, as nossas vidas. Todos esses inconvenientes que
atrasam a vida e o conhecimento da cidade sobre si mesma estão registrados nas
memórias institucionais e nas lembranças de experiências próprias e herdadas.

Também fomos vítimas de patroas e patrões que cometiam abusos econômicos,


morais e físicos, fomos vítimas de uma sociedade que levou crianças e mulheres,
por mais de uma geração, ao trabalho de quebrar e transportar pedras, coletar e
transportar madeira e água que serviam de sustento e manutenção da vida na
cidade. Alimentamos e matamos a sede de feirantes e outros trabalhadores, fomos
responsáveis por parte importante da dinâmica da cidade, sua energia e seu
alicerce.

Mas somos do barracão de saudosa Mãe Fátima, que é lugar de abrigo, afetos e
acolhimento para muitas famílias do bairro das Pedrinhas. Lugar onde são geradas
as práticas de ajuda comunitária, de conhecimento e sabedoria difundida pelo
mestre Martim Parangolá. Somos quilombo gerador de saberes e tradições
religiosas, suporte para resistência de famílias negras que se agruparam ao redor
do Beco e das fontes naturais de sustento que a serra nos proporcionou.

Representamos a memória da forte presença de mais de 30 mulheres que, a partir


dos anos de 1940, ensinaram e comandaram o trabalho de extrair o sustento da
natureza. Servir à cidade o fruto do trabalho de quebrar as pedras, de transportar a
água para o comércio e as casas, cortar a lenha e lavar a roupa para as famílias.
Ensinaram o trabalho de parteira para suas filhas e netas ajudarem as filhas e filhos
da cidade a nascer. Nós, Beco de Dôla, parimos memórias importantes para a
história da Vitória da Conquista que se conhece hoje.

Somos todas e todos filhas e filhos dos ensinamentos, herdeiros de Dôla, Zita,
Fátima e Elza. Somos parte deste conjunto vivo de memória e cultura, de saberes,
ensinamentos e aprendizados, agrupamentos de referências, quatro gerações que
pulsam, aqui, ali e acolá, pulsam em todo lugar. Pulsam nas memórias dos
carnavais de Conquista, na memória das relações de trabalho e das relações
sociais, pulsam em momentos tristes e alegres da história desta cidade. Pulsam, e,
como tudo o que é vivo e pulsa, quer viver, quer ser visto, reconhecido e respeitado.

Ao longo da nossa existência, coletamos, carregamos e abastecemos a cidade com


água, pedras, lenha, lavamos roupas, benzemos, fomos chapas na Rio Bahia desde
seu início, colhemos café, fomos protagonistas dos carnavais durante mais de uma
década. Cuidamos de velhos, crianças e casas. Somos as filhas e filhos dos braços
de Vó Dola, da força dos seus músculos, da sua coragem, do seu suor.

Valorizamos, reconhecemos e assumimos os ensinamentos e as condutas


recebidas e passamos aos nossos filhos. Honramos os nomes de

Dola, Zita, Fátima, Elza, Maria Antônia, Duca, Arcanja, Rosa, Vitória
de Carolina, Orminda, Lô Véia, Iazinha, Tuzinha, Maria Pirata, Eva,
Maria de Jesus, Ana de Tevino, Tia Maria de Zé Polia, Maria de Zé
Mário, Sabina, Vó Marcela, Dona Amélia, Otaviana, Júlia, Kalu
Lavadeira, Mestre Vane, Juraci, Luiz, Dionísio, Lubião, Paulo
Pereira, Enedino, Guina, Pai Zelito, Pai Santinho Sete Diabos, Kalu
Lavadeira, Mãe Vitória de Carolina, Ninga, Tinga, Enedino,

a quem devemos não apenas o nosso respeito, mas a nossa existência enquanto
família e enquanto referência de vida e de conduta. E é em nome dessas pessoas
que queremos celebrar e afirmar a nossa identidade, o nosso autorreconhecimento,
a nossa força enquanto povo de santo, povo de resistência e povo sobrevivente. E
queremos também celebrar a nossa alegria e nosso orgulho por sermos quem
somos.

Por isso, nós, os filhos de Vó Dola, afirmamos nossa ancestralidade, nossa


ascendência e filiação da força, da resistência, da resiliência. Ocupamos o Alto das
Pedrinhas, dominamos a natureza, aprendemos a domar as plantas, seja para
remédio, comida ou reza, enfrentamos as adversidades. Levamos o resultado do
nosso trabalho suado e compartilhamos, comercializando com as famílias da cidade
ali embaixo. Sempre foi muito difícil. Enfrentamos todo tipo de violência e injustiça,
ao longo da nossa história. Mas sempre encaramos a vida com muita festa, porque
somos gratos. Festejamos, celebramos, agradecemos tudo aquilo que a vida nos
dá. Porque sim, também somos os filhos da festa, e ela é uma das nossas forças,
nossos momentos de celebrar o que somos:

QUILOMBOLAS URBANOS DO BECO DE DÔLA, FILHAS E FILHOS DE VÓ


DOLA, NOSSA GRANDE MATRIARCA, LIDERANÇA E ETERNA REFERÊNCIA.
ATA
4. LINKS

● 10 DEZ 2021: reunião da comunidade com a prefeita, secretário e


coordenadora.

https://www.pmvc.ba.gov.br/prefeita-reafirma-compromisso-do-governo-com-os-mais
-vulneraveis-em-visita-ao-beco-de-dola-no-bairro-pedrinhas/

● 16 DEZ 2021: sobre reunião da comunidade com a prefeita, secretário e


coordenadora.

https://revistagambiarra.com.br/terreiro-de-xango-toca-o-coracao-da-prefeita/

● 21 MAR 2022: reunião para apresentação do Plano de Trabalho para a


Certificação.

https://www.pmvc.ba.gov.br/prefeitura-de-vitoria-da-conquista-reforca-compromisso-c
om-a-luta-contra-a-discriminacao-racial/

● 13 ABR 2022: primeiro encontro para certificação, com a oficina A Memória


Através dos Objetos, pela psicóloga Monalisa Cirino.

https://www.pmvc.ba.gov.br/prefeitura-inicia-processo-de-autorreconhecimento-da-co
munidade-do-beco-de-dola-como-quilombo/

● 3 MAI 2022: sobre retomada das certificações quilombolas em Vitória da


Conquista 10 anos depois.

https://revistagambiarra.com.br/opiniao-conquista-retoma-certificacao-quilombola-por
-afonso-silvestre/

● 18 MAI 2022: roda de conversa sobre agroecologia.

https://www.pmvc.ba.gov.br/quilombo-urbano-beco-de-dola-debate-agroecologia-com
-professora-da-ufba/

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