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Quando a favela fala, é

melhor ouvir
Risco de caos social não é ameaça, é alerta
20.mar.2021 às 23h15

Celso Athayde
Fundador da Cufa (Central Única das Favelas)
Preto Zezé
Presidente da Cufa
Edu Lyra
Fundador e presidente da Gerando Falcões

A devastação da segunda onda da pandemia levou as duas maiores


organizações não governamentais focadas em ações sociais nas
favelas a juntar esforços. Se a sensação de horror é geral, a
desventura tem no pobre o seu alvo preferencial.
Ele está na rua, trabalhando no sacrifício, no risco de ser infectado,
porque não pode abrir mão de tentar garantir seu sustento e o de
sua família. E se está em casa, na comunidade, não tem as condições
necessárias para observar as regras básicas de proteção contra o
coronavírus. Lavar as mãos com sabonete e manter distanciamento
social não é só para quem quer —é para quem pode.

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Favela isolada na zona oeste do Rio recebe doações durante a pandemia

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Sem caminhão para realizar as entregas, centro cultural da comunidade


Cinco Marias, na zona oeste do Rio, teve que recorrer a José Roberto, 56
anos, dono de uma carroça Tércio Teixeira/Folhapress/

Muitos não podem. Nós —os 11,4 milhões de pretos, pobres e pardos
espalhados nas 7.000 favelas do Brasil— somos maiores que uma
Suíça, com seus 8,5 milhões de habitantes. É uma comparação que
seria absurda não fosse o fato de que o contraste abissal entre as
nossas quebradas e as estações de esqui poderia sensibilizar a
sociedade para a triste desigualdade da qual somos todos vítimas.

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Todos, sim, porque ninguém estará seguro se vierem, quando
vierem, o caos social e suas consequências nefastas. Não é ameaça —
é alerta.
Lotamos ônibus e trens, fazemos faxina, armamos barraquinhas nas
estações de metrô, catamos papel e garrafas pet, guardamos carros,
estamos em todos os lugares públicos —e ainda assim continuamos
invisíveis. A dor que não tem rosto dói menos nos que não a sentem
na pele. O sofrimento anônimo não comove, pois não oferece
elementos a uma narrativa. Uma morte é o fim de um sonho
interrompido, o adeus solitário na tela do celular, a saudade de
quem fica. Um morto é demais. Mais de um quarto de milhão de
mortos é estatística.
A repetição do horror anestesia a sociedade. Narcotizados pela
desesperança, transformamos o embotamento da empatia em
estratégia de sobrevivência psicológica. Há um custo alto para quem
está na base da pirâmide. As manifestações de solidariedade do
início da pandemia, envolvendo pessoas e empresas, foram
essenciais, mas perderam o ímpeto com o auxílio emergencial, e não
voltaram a mobilizar a sociedade quando a transferência do governo
foi suspensa.

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Famílias carentes do DF ficam sem caixões

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Moacyr Baptista da Silva perdeu a esposa por conta do coronavírus e


teve que dificuldades para pagar o enterro. A Secretaria de
Desenvolvimento Social do Distrito Federal está desde junho sem caixão
para entregar às famílias carentes. Por conta disso, disponibiliza R$ 450
reais para que os parentes das vítimas comprem o caixão. No entanto, o
mais barato no mercado custa R$ 706 Pedro Ladeira/Folhapress

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Entendemos que o grau de exaustão e o comprometimento geral da
renda tenham afetado a disponibilidade. Mas os favelados
continuam insistindo em comer todos os dias, querem se higienizar
de acordo com os protocolos, desejam máscaras.
A Cufa (Central Única das Favelas) e a Gerando Falcões demandam
medidas urgentes. Não queremos politizar ainda mais a pandemia,
até porque quem sempre politiza é o outro, o que não pensa como a
gente. Diante da hecatombe social, o debate ideológico está fora de
lugar. Esse outro vírus, o da politização, se espalha, sem dar espaço
para a construção de uma agenda voltada para os moradores de
favelas e periferias.
Não podemos continuar fracassando, como país e sociedade, na
construção de uma coalizão política, social e empresarial para
vencer a Covid-19. Por isso queremos ações que tenham efeito
prático.
Queremos uma campanha oficial que explique a importância da
vacina para a preservação da vida. Sim, porque a cultura da
desinformação está disseminada. Segundo pesquisa do DataFavela,
em parceria com o Instituto Locomotiva, mais da metade dos
moradores das comunidades (53%) teme que a vacina não faça
efeito, enquanto quase um terço (31%) tem medo de se infectar com
o imunizante e mais de um quinto (22%) acha que a vacina pode
alterar o DNA ou instalar um chip no organismo —enfim, todo o
infame repertório de fake news.

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Diário da privação: Chorei, de chorar, de lágrima mesmo, tá ligado?

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Herbet Douglas Santos da Silva, 24, sua esposa, Regina Santos Silva, 24,
e os filhos Isac e Isabela; moradores de Paraisópolis na zona sul de São
Paulo, fazem parte de um contingente que sofre as consequências da crise
no meio da pandemia do coronavírus Jardiel Carvalho/Folhapress

Queremos critérios de vacinação que levem em conta a condição


social. Quem limpa o chão do hospital deveria receber tratamento
tão prioritário quanto os médicos. Nas escolas, as merendeiras não
estão menos expostas do que os professores.

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Queremos uma campanha emergencial de doações e transferências
de renda —do governo, de empresas, das pessoas— que estanque a
carnificina. Esses quereres não esgotam a pauta. O pronto
atendimento a essas demandas é suficiente apenas para nos
mantermos com o nariz acima da linha da água.

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