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Formação Humanística

FORMAÇÃO HUMANÍSTICA

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Formação Humanística

FORMAÇÃO HUMANÍSTICA
2ª Edição

Antônio Marcelo Pacheco

Porto Alegre
2013

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Catalogação na Fonte
P116f Pacheco, Antônio Marcelo
Formação humanística / Antônio Marcelo Pacheco. –
2.ed. – Porto Alegre : Verbo Jurídico, 2013.
398 p. ; 21 cm.

ISBN: 978-85-7699-318-6

1. Filosofia do Direito. 2. Sociologia do Direito.


3. Política. 4. Direito e Ética. I. Título.

CDD 340.1

Bibliotecária Responsável
Ginamara DE Oliveira Lima
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Formação Humanística

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

Capítulo 1. FILOSOFIA DO DIREITO


1.1 O conceito de justiça .Considerações gerais ......................................... 15
1.2 Do conceito de justiça ............................................................................ 19
1.3 Sentido mais do que lato de justiça ........................................................ 33
1.4 Sentido lato de justiça ............................................................................ 33
1.5 Sentido estrito de justiça ........................................................................ 35
1.6 Das espécies de justiça.......................................................................... 40
1.7 Das três espécies – linhas gerais ........................................................... 41
1.8 Da justiça social ..................................................................................... 41
1.9 Da justiça distributiva ............................................................................. 42
1.10 Da justiça comutativa ........................................................................... 45
1.11 Da justiça universal.............................................................................. 49
1.12 Da justiça formal .................................................................................. 50
1.13 Da equidade ........................................................................................ 53
1.14 Do direito, da moral e da ética ............................................................. 59
1.15 Do direito, da moral e da ética a partir de uma breve visão do
positivismo ........................................................................................... 68
1.16 A interpretação do direito ..................................................................... 72
1.17 Da hermenêutica filosófica .................................................................. 80
1.18 Justiça em Marx................................................................................... 102
1.19 Do contrato em Rawls e do contraponto de Habermas ....................... 105

Capítulo 2. SOCIOLOGIA DO DIREITO


2.1 Introdução à sociologia da administração judiciária. Aspectos
gerenciais da atividade judiciária (administração e economia).
Gestão. Gestão de pessoas ................................................................ 115
2.2 Das Relações sociais e relações jurídicas. Controle social e o
Direito. Transformações sociais e o Direito ......................................... 124

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2.3 Do Conceito de Sociologia aplicado ao Direito .......................................129
2.4 Direito, Comunicação Social e opinião pública .......................................142
2.5 Introdução à sociologia da administração judiciária................................152
2.6 Conflitos sociais e mecanismos de resolução. Sistemas não
judiciais de composição de litígios .......................................................160
2.7 A importância de Augusto Comte para o pensamento sociológico e
a sua influência no positivismo jurídico ................................................174
2.8 Da crise do Estado, da Regulação e da Governamentalidade em
uma sociedade complexa .....................................................................183
2.8.1 O problema jurídico da regulação estatal enquanto ponto de
partida em relação à teoria do direito: crônica de uma morte
anunciada .............................................................................................183
2.8.2 A Posição Central do Estado no Normativismo Social-Jurídico ...........191
2.8.3 A Análise Econômica do Direito ...........................................................203
2.8.4 As Teorias Regulatórias Contemporâneas ..........................................206

2.8.5 A Explicação Da Regulação Jurídica Através Do Estado:


A ‘Responsividade’ Social.............................................................................209

Capítulo 3. TEORIA GERAL DO DIREITO E DA POLÍTICA


3.1 O conceito de política. Política e Direito .................................................213
3.2 Direito e política (ESTADO) ....................................................................229
3.3 Ideologia .................................................................................................232
3.4 Hegemonia .............................................................................................238
3.5 Da Declaração Universal dos direitos do homem ...................................243
3.6 Declaração Universal dos direitos humanos ...........................................245

Capítulo 4. TEORIA GERAL DO DIREITO


4.1 Direito Objetivo e Direito Subjetivo .........................................................283

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4.2 Fontes do Direito Objetivo ...................................................................... 287


4.3 Dos tipos de lei lato senso (artigo 59, CF/88) ........................................ 293
4.3.1 Das Emendas à Constituição .............................................................. 293
4.3.2 Das leis Complementares e das Leis Ordinárias ................................ 296
4.3.3 Do Processo Legislativo ordinário....................................................... 297
4.3.4 Das leis delegadas.............................................................................. 299
4.3.5 Das Medidas Provisórias .................................................................... 301
4.3.6 Dos decretos Legislativos ................................................................... 305
4.3.7 Das Resoluções .................................................................................. 305
4.4 Da Classificação da Lei ......................................................................... 311
4.4.1 Quanto a Analogia ............................................................................... 315
4.4.2 Quanto aos Costumes ........................................................................ 316
4.4.3 Quanto aos Princípios Gerais de Direito ............................................. 317
4.5 Das fontes não formais ou indiretas ...................................................... 319
4.5.1 Da jurisprudência ................................................................................. 319
4.5.2 Da doutrina ......................................................................................... 320
4.5.3 Da Súmula Vinculante ........................................................................ 327

Capítulo5. ÉTICA E ÉTICA DA MAGISTRATURA


5.1 Da Ética.................................................................................................. 339
5.2 Do Código de Ética da Magistratura – observações gerais.................... 353
5.3 Do Código de Ética da Magistratura ...................................................... 359
5.4 Anexo 1 – LEI ORGÂNICA DA MAGISTRATURA NACIONAL .............. 366
5.5 Questões dissertativas ........................................................................... 414

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................... 427

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Para Suzana e Eduarda, elas ainda sabem o quanto são


importantes para mim, hoje e sempre.

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INTRODUÇÃO

Tradicionalmente, os cursos de bacharelado em Ciências Jurídi-


cas e Sociais reservam os primeiros semestres ao estudo daquelas disci-
plinas conhecidas como propedêuticas, isto é, são disciplinas que tratam
da formação humanística, disciplinas que necessárias para uma mais
complexa formação do estudante de graduação.
Talvez porque ocorram no início da faculdade, talvez porque
muitos profissionais de ensino destas disciplinas ainda não tiveram a
oportunidade de refletir com qualidade sobre os temas que ali estão colo-
cados este conhecimento, em grande medida, se vê perdido ao longo dos
cinco anos de formação da graduação.
Preocupado com a qualidade do material humano que busca, a
partir do democrático processo de seleção pública o ingresso na carreira
da magistratura, na carreira do Ministério Público, na da Defensoria Pú-
blica o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) concluiu pela importância de
se incluir estes temas no processo seletivo.
Entre as inúmeras disciplinas a que são submetidos os candida-
tos, obrigados a conhecer (em grande medida mais decorar do que com-
preender) um vasto espectro de Leis, agora, ainda precisam se preparar
com a leitura de todo um conhecimento que não é fácil de ser apreendido
ou, mais ainda, compreendido (diga-se que tal compreensão nunca se dará
na sua totalidade, pois o conhecimento não se presta a esta escatologia
pretensiosa).
Os temas são difíceis. Construí-los obrigou a ter um norte rígido
e determinado, pois a tentação a digressões sem significados para os futu-
ros postulantes aos cargos do poder judiciário não interessaria neste mo-
mento de preparação ao concurso. Em muitos momentos a tentação de se
deixar seduzir pela vaidade lutou de forma aguerrida com o respeito aos
temas do edital, único porto seguro ao qual se deveria guardar este ‘ma-
nual’.
O conceito ‘manual’ carrega certa condição pejorativa, deprecia-
tiva, como se fosse uma excessiva redução do conhecimento, como se
fosse a exposição de verbetes e seus fáceis e inexatos significados. Mas
não! É um ‘manual’ no sentido em que busca conduzir o candidato, passo
a passo, pelos obstáculos do edital, quer dizer conduzi-los a numa lenta e

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segura viagem por uma arqueologia do saber, uma vez que todos eles são
‘intelectuais orgânicos’ na melhor acepção do que disse o pensador itali-
ano Antonio Gramsci.
Neste sentido, os temas são apresentados com certo grau de pro-
fundidade, mas nunca a ponto de se tornarem enfadonhos ou mesmo re-
dundantes. As discussões teóricas que se apresentam somente servem
como substrato teórico para o momento em que os postulantes, sozinhos,
tiverem que enfrentar as questões. Busca-se construir com a apresentação
dos temas aqui destacados os elementos para a dissertação da resposta ao
qual o futuro postulante do cargo público no poder judiciário será subme-
tido; é verdade que, em alguns momentos, se busca provocá-lo, pois ne-
nhuma leitura pode se dar sem um mínimo de prazer, pois sem este ingre-
diente se sabe que é praticamente impossível seduzir o leitor e permitir
com que ele possa digerir os conteúdos que são aqui apresentados.
Contudo, cada leitor carrega a sua expectativa, cada um trás o
seu próprio olhar e todo o olhar ao texto é sempre um olhar comprometi-
do, medido pelo seu interesse. Quer dizer que alguns vão encontrar neste
livro apenas mais um material para um difícil concurso, como todo e
qualquer concurso é hoje em dia – um conjunto de perguntas e respostas,
de preferência ao encontro do que quer o examinador; enquanto alguns
outros poderão encontrar o estímulo para buscar, mais tarde, um aprofun-
damento qualificado dos autores, das idéias aqui destacados.
Enfim, todos poderão encontrar uma bússola, que é o que se
espera, sinceramente. Mas é uma bússola incompleta, pois não há como
se operar milagres sem uma certa dose de cada um que passa pela impor-
tante condição da leitura dos temas, sempre buscando nela uma forma de
compreensão.
Não poderia deixar de destacar que este livro é o resultado de
uma insistência, mias uma vez, de uma crença e de uma determinação que
não passa por este autor. Devo, sinceramente, afirmar que este livro é
fruto da perseverança do Dr. Nylson Paim de Abreu Filho que sempre
acreditou no projeto e na capacidade do autor em buscar realizá-lo. Da
mesma forma, não se poderia deixar de lembrar o apoio e amizade do Dr.
Ricardo que, em muitas situações precisou suportar as dificuldades e
tensões apresentadas ao longo do devir deste livro, isto é, das limitações
do próprio autor.
Contudo, este livro, na sua segunda edição é também o resultado
e o reconhecimento dos alunos que o buscaram, que encontraram nas
intenções do autor a clareza de que se buscou construir um meio, um

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Formação Humanística

instrumento de auxílio para que nessa trajetória não se sentissem tão per-
didos. Mas importa afirmar que houve uma alteração significativa da
primeira edição para a segunda: a entrada do auto no Doutorado de Socio-
logia da UFRGS.
A experiência do doutorado, a partir das discussões com o pro-
fessor Doutor José Vicente Tavares dos Santos, do professor Alex Niche
Teixeira, do professor Raúl Rojo foram decisivas para que eu pudesse
repensar algumas afirmações.
Igualmente, a experiência como pesquisador do Grupo de Vio-
lência e Cidadania, da UFRGS, a partir de todos que ali labutam para a
construção de uma efetiva cidadania cidadã, especialmente na professora
doutora Rochelle Fellini Fachineto e na incrível e insuperável e impres-
sionante digna colega, secretária, amiga Luciana Santos me fortaleceram
a continuar a escrever esta segunda edição quando tudo parecia que não
conseguiria.
Mas, não posso deixar de citar o colega, amigo e ‘irmão’ Gabriel
Eidelwein Silveira, pela sempre incrível genialidade apesar da sua preco-
ce juventude, que me tem servido de apoio, aprendizagem e camaradagem
quando o desespero intelectual bate com força num cenário ainda tão
pobre de discussões.
A todos o meu muito obrigado!
O que se espera é que o sonho de se construir um conhecimento
que possa, realmente, ser útil, e não somente mais uma projeção da vaida-
de intelectual deste autor, uma vaidade que se não for servir aos sujeitos
não tem sentido de ficar guardada para apenas alguns iniciados, tenha
sido alcançado.
Também não posso deixar de destacar que as modificações que
aconteceram da primeira para a segunda edição resultam de um processo
de maturação que se deve muito ao fato de que cada vez mais acredito na
possibilidade de se construir um agente público responsável, sensível e
capaz de jamais perder o olhar para e pelo social.
Igualmente, esta segunda edição deste livro de Formação Huma-
nística permitiram-me uma condição mais privilegiada à reflexão a partir
das mudanças apresentadas pelas bancas examinadoras, que me obriga-
ram a construir novas abordagens, por exemplo, sobre Augusto Comte
que passaram a estarem presentes desde aquela primeira fase dos concur-
sos públicos para os dias atuais.
Repito, sou grato ao Grupo de Pesquisa e Violência da UFRGS,
mais uma vez em especial aos professores Doutores José Vicente Tavares

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dos Santos, Alex Niche Teixeira que com uma postura intelectual ética e
cidadã me mostraram o caminho para transformar o sonho de uma socie-
dade mais solidaria e responsável. O primeiro, um exemplo de intelectual
e ser humano, o segundo, não menos intelectual e ser humano, mas res-
ponsável pela minha saída do obscurantismo ao qual me havia imposto.
Sem estes dois professores, o primeiro o meu orientador e o segundo uma
espécie de co-orientador só posso dizer que sou eternamente grato.
Repito: também devo a todos os colegas desse grupo que são
uma família que luta, resiste e transforma unida o a esperança de construir
uma sociedade com maior segurança pública.
Por último, mas não menos importante, à minha esposa Suzana
Ávila Vieira, companheira que nunca criticou minhas inquietações, ao
contrário, quando tudo estava perdido, jamais desistiu, abriu mão de mim,
bem como a Eduarda Ávila Vieira Azambuja Pacheco, minha filha, minha
linda menina Down, que me oportunizou descobrir no coração, na pele o
real significado do preconceito e assim, me permitiu uma autodescoberta
que me levou a uma reconstrução sem a qual, eu não seria nada!
Esperamos, assim, que este livro, este ‘manual’, possa contribuir,
objetivamente ao longo, solitário, angustiante e decisivo processo de
preparação dos futuros pretendentes às carreiras jurídicas, mas, acima de
tudo, que lhes promova o mais importante neste que é reconhecido, pela
doutrina tradicional como os principais ‘operadores do direito’: a vontade
de conhecer para compreender e assim, talvez decidir de uma forma que
se não for mais justa, pelo menos, mais próxima não da verdade, ausente
do mundo jurídico, mas do bom senso, da cidadania, condições de uma
possível e responsável humanidade.

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Formação Humanística

Capítulo I

“Os homens não conhecem o que conhecem os deuses. O que, às


vezes, os homens consideram como uma verdadeira desgraça, nada
mais é que um verdadeiro bem para seu aperfeiçoamento moral”.
(Sócrates)

FILOSOFIA DO DIREITO

1.1 Do Conceito de Justiça - Considerações Gerais


Se por um lado o espaço social é um conjunto auto-suficiente
de sujeitos que em suas relações são obrigados e condicionados a
aceitar e a se submeter a uma existência de regras e condutas obrigató-
rias e permissivas, por outro lado essas obrigatoriedades na maioria
das vezes impostas se fazem realizáveis e obedecidas na medida em
que visam uma cooperação social condicionada para realização de um
princípio maior: o bem comum.
Nesse contexto de dever-ser surgem tanto a identidade como o
conflito de interesses entre as pessoas, pois tais podem acordar ou

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discordar pelos mais variados motivos quanto às formas de repartição
dos benefícios e do ônus gerado no convívio social.
Este espaço social, formado por pessoas, não a priori por hu-
manos, uma vez que somente em relação às pessoas é que se pode
compreender a existência do direito, da lei é ponto de tensão constante
entre pulsões individuais e regras sociais, coletivas.
Diante do aumento constante da violência urbana noticiada pela
mídia e cada vez mais próxima da realidade de toda e qualquer pessoa
quer em bairros e ‘cidades’ de zonas nobres, quer em bairros e cidades
onde a pobreza predomina, reduzindo cada vez mais a distância entre
sujeitos de condutas ‘boas’ e ‘ruins’, pela presença de crimes sem
nenhuma justificativa em que o medo transborda sem nenhum contro-
le, surge a indagação inevitável: afinal, o que é justiça? Qual seu papel
na sociedade? Ainda é possível alguma presença da justiça em socie-
dades complexas?
Tais questionamentos nos remetem a estudos desenvolvidos por
observadores das mais diversas áreas do conhecimento produzindo
não só respostas multidisciplinares, mas reflexões sobre os caminhos
que podem ser percorridos na busca da melhoria da qualidade de vida.
Pergunta-se, no primeiro momento sobre a possibilidade de mobilizar
a sociedade para atingir o nível de violência zero. Pode-se almejar
alcançá-la em período mais longo com resultados mais efetivos envol-
vendo toda a sociedade?
Num primeiro momento o que se destaca é que a única resposta
para todos estes questionamentos tem uma natureza negativa. A justi-
ça é um mito, ao qual o sujeito racional precisa romper, se libertar,
mesmo com todas as consequências que esta ‘descoberta do fogo’
possa acarretar. Espera-se que, pelo menos dessa vez nenhum PRO-
METEU se intrometa nesse processo particular do sujeito humano.
Contudo, ainda que esperando encontrar algum espaço para a
presença desse mito na sociedade, a atual, complexa em sua própria
complexidade, dá mostras de que o campo esperado para a justiça é

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Formação Humanística

cada vez mais reservado, escondido e envolto num crescente encanta-


mento, em brumas de difícil olhar.
Para tanto, examinaremos neste estudo, resumidamente, a teoria
da justiça de diversos autores em áreas diferenciadas que se comple-
mentam e têm evoluído acompanhando o desenvolvimento humano.
Por óbvio não se pode pretender o esgotamento de um tema tão rico e
repleto de contribuições diversas ao longo desses mais de 2000 anos,
porém, os limites do olhar deste texto estão na sua operacionalidade
aos candidatos a uma vaga na magistratura, o que busca legitimar a
sua condição sintética.
Nessa seara, na teoria da justiça, em regra, o cidadão deve pos-
suir três tipos de juízo: apreciar a justiça da legislação e da política
social; decidir sobre as soluções constitucionais que, de modo justo,
podem conciliar as opiniões contrárias quanto à justiça; e, ser capaz
de determinar os fundamentos e limites do dever e das obrigações
políticas.
Assim, a teoria da justiça relaciona-se com, pelo menos, três
questões básicas, sugerindo a aplicação dos seus princípios em planos
ou etapas distintos, que necessitam de um elemento constitutivo co-
mum, operacional e com capacidade de uni-los em torno de um proje-
to de ordem e segurança: O Direito, a Lei e, sobretudo, a Justiça, que
é o foco de interesse.
Com a aplicação dos princípios originais de justiça, as partes
realizam uma convenção para estabelecer uma Constituição que por
sua vez determina o sistema que contém uma estrutura e um conjunto
de funções do poder político e dos direitos fundamentais, respeitados
sempre os princípios de justiça já adotados originalmente.
Afirma-se, então, que a Constituição justa consiste num proces-
so justo, construído de modo a permitir resultados justos, vale dizer,
uma atividade política submetida à Constituição adequada aos princí-
pios de justiça, mas acima de tudo vinculada à realidade social e aos
anseios da população.

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Um conceito determinado de Constituição pode ser assim com-
preendido como um justo meio para a realização de uma sociedade
mais controlável, ainda que essa regra pareça estar se liquefazendo
atualmente.
O conceito de justiça é usado de forma diferenciada por mora-
listas e juristas, uma vez que os primeiros buscam na justiça uma qua-
lidade subjetiva do indivíduo, isto é, o exercício de sua vontade, uma
virtude; e, os juristas percebem na justiça uma exigência essencial da
vida social. É o caso do jurista Gustav Radbruch que chega a afirmar
que ao jurista só interessa a justiça, considerada em seu sentido obje-
tivo.
Para muitos autores tal conceito de justiça é um princípio supe-
rior da ordem social. Tal percepção, importante de ser destacada em
uma prova dissertativa de concurso, é uma mitologização, uma vez
que tal conceito é sempre uma idealização. (importa esse destaque na
medida em que nos limites de uma prova dissertativa de seleção, o
candidato ao cargo na magistratura deixe claro que toda a constru-
ção do ordenamento jurídico está condicionada à busca e à crença
neste conceito matriz do Poder Judiciário).
Buscando-se objetivá-la, por extensão, a palavra justiça é tam-
bém empregada como referência ao Poder Judiciário e aos seus órgãos
incumbidos de dar uma solução ‘justa’ aos casos que lhe são submeti-
dos.
É esse o sentido do vocábulo quando se assevera sobre recorrer
à “Justiça” ou quando se refere ao Diário da Justiça, Palácio da Justi-
ça, Tribunal de Justiça, Secretaria da Justiça, cartório, juizado, juízo
dentre outros.
Nesta busca de objetivação do conceito de justiça se pode ano-
tar uma normativização que se busca associar ao conceito certa carga
de dever-ser, isto é, de alguma força imperativa sobre as ações que se
espera dos sujeitos sociais. A justiça enquanto simples valor, ideal não
tem o condão de se justificar como instituto fundante da ordem social,

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Formação Humanística

na medida em que de alguma forma imperativa não faz parte ontológi-


ca do ser sujeito social. Ontológico, aqui, como existindo na própria
existência da pessoa.
Ela é, assim, um conceito que vai além da mera descrição, pois
ela não se presta a ser ‘verificável’, como os conceitos de LIBERDA-
DE, IGUALDADE, etc., conceitos abstratos e universais, mas que
mesmo a partir destas duas características se podem constatar no espa-
ço social.
A justiça não é uma ‘coisa’, muito menos ela é uma ‘coisa’ vi-
sível. Ela se impõe a partir da relação que mantém com os meios que
o Estado desenvolveu para estabelecer um monopólio do comando e
da governabilidade, impondo-se à pessoa a partir de normas proibiti-
vas e permissivas que passam a obrigar ou a permitir as ações do pró-
prio existir desta.

1.2 Do Conceito de Justiça


O conceito de justiça não é um termo de fácil definição, ao
contrário, ao longo da história recebeu uma complexa teia de signifi-
cados, de sentidos que foram elaborados pelos mais distintos teóricos
e ‘escolas’. Contudo, mesmo assim, alguns elementos podem ser co-
nhecidos por aqueles que pretendem enfrentar uma prova dissertativa
sobre tal tema.
Para se iniciar a discussão em torno desse conceito importa des-
tacar a contribuição de um dos primeiros a enfrentá-lo a partir de um
olhar metodológico, claro que estamos nos referindo a Aristóteles.
Sua importância aqui destacada não significa que foi o primeiro
a pensar tal conceito. Platão, anteriormente, já identificara a justiça
como um bem mais precioso do que o próprio ouro, identificando
uma sinonímia entre justiça e virtude, igualando os dois conceitos,
mas assim mantendo-os num espaço mais limitado que pouco permitia
a sua aplicabilidade às contradições da realidade, pois para ser possí-

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vel a sua visão do conceito ele precisou de uma sociedade igualmente
idealizada.
Platão buscou um olhar sobre uma existência além da própria
física, na medida em que não percebeu no meio em que se encontrava
as condições necessárias para a comprovação daquilo que pretendia
para os sujeitos. Seu mundo, ainda que antropocêntrico estava desde
sempre marcado por um paradoxo idealizante.
Foi, contudo, Aristóteles que marcou o pensamento ocidental
com um olhar muito próximo da mundanidade de seus conterrâneos,
condenados a representar o espaço experimental do seu olhar. Discí-
pulo de Platão e reconhecido por Augusto Comte como o ‘príncipe
dos filósofos’, foi um dos primeiros a constituir um olhar sobre o con-
ceito de justiça, contribuindo, assim, como um dos principais referen-
ciais em torno de tal conceito, uma vez que ele compreendia o concei-
to de justiça num sentido mais amplo, sem, contudo, perder a noção da
própria realidade social.
O mundo de Aristóteles era um mundo possível, formado não
por tipos ideais, mas por sujeitos que sobreviviam no seu dia-a-dia,
manifestando as suas contradições e conflitos, tanto em locais tão
comuns quanto ‘um mercado’, quanto em espaços de discussão reser-
vados aos mais capazes.
Particularmente na obra ÉTICA A NICÔMACOS, onde apre-
senta uma vigorosa observação e reflexão sobre a justiça, Aristóteles
funda os dados iniciais sobre o tema com tal intensidade que esse é
um dos livros mais conhecidos entre os juristas, fundamentalmente o
Livro V desta obra em que aprofunda a sua compreensão, num olhar
que beira a sociologia mais do que a própria filosofia.
Um dos primeiros aspectos que se pode perceber é a aproxima-
ção (não uma condição de sinonímia) que faz entre justiça e virtude,
uma vez que percebe esses dois conceitos a partir de uma facticidade
fenomenológica, pois toda a compreensão da justiça e da virtude está
na própria atividade do homem que revela ao mesmo tempo que cons-

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Formação Humanística

titui o seu modo de ser e agir, e nesse sentido a disposição do caráter


(o ser em relação aos outros e ao mundo) no desejo de buscar aquilo
que é justo, bem assim sofrendo com a realização do justo dos ‘ou-
tro(s)’.
É, portanto, a justiça não como uma qualidade particular de um
determinado sujeito ideal, naquilo que mais tarde o movimento do
cristianismo reduziu enquanto figura de um homem ‘correto’, de um
‘agir adequado’, de uma condição presente na fé, ao contrário, em
Aristóteles é muito mais. A justiça é o próprio modo de ser enquanto
sujeito consciente do entorno que o cerca e que com ele interage.
Este modo de ser não pressupõe um a priori religioso ou existencial
como quer o cristianismo que traduz como quer o aristotelismo.
Como já se afirmou em outro momento anterior ele age mais
como um antropólogo/sociólogo do que como um filósofo, já que
busca identificar as variantes do conceito de justiça em sua própria
cultura, na mundanidade do seu próprio espaço social. Isso é assim na
medida em que é na relação com o outro que pode compreender a
presença do agir justo e o seu alter ego: o injusto.
Desta feita, destaca que o injusto é um conceito utilizado para
constituir a figura daquele que transgride, contraria a Lei ou, ainda,
aquele que busca querer mais do que lhe é devido, portanto, é prática
do sujeito iníquo, que não compreende um agir a partir de um justo
meio, como afirma:
“O termo injusto se aplica tanto às pessoas que infringem a lei
quanto às pessoas ambiciosas (no sentido de quererem mais do
que aquilo a que têm direito) e iníquas, de tal forma que obviamen-
te as pessoas cumpridoras da lei e as pessoas corretas serão jus-
tas. O justo, então, é aquilo que é conforme a lei e correto, e o in-
1
justo é o ilegal e o iníquo”

1 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, p.132.

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Em outro sentido, o justo é quem observa a Lei, respeitando a
igualdade e a equidade. A equidade é aqui fundamento essencial para
a ideia de justiça em Aristóteles, pois ela consiste numa
adaptação/aplicação de uma regra existente a uma situação concreta,
e ao buscar essa adpatação sem perder os limites da igualdade e da
justiça a equidade permite uma melhor capacidade de adaptação da
regra a um caso específico, o que lhe permite ao fim deixá-la mais
justa.
Como destaca Aristóteles
“O equitativo é justo, superior a uma espécie de justiça – não à
justiça abosluta, mas ao erro proveniente do caráter absoluto da
disposição legal. E essa é a natureza do equitativo: uma correção
da lei quando ela é deficiente em razão de sua universalidade”

Percebe-se que a possibilidade de um agir justo, a partir da


medida de equidade se dá, somente, na condição de alteridade da
pessoa, pois sem uma outra pessoa não há justiça/injustiça, pois essa
é uma condição relacional.
Desta forma, a disposição justa é uma maior observância à Lei,
e a partir dessa observância é uma maior capacidade de realizar uma
melhor relação com o entorno (os outros e o ambiente em si, que é
uma outra forma de outro).
É por certo a justiça uma virtude perfeita em relação ao outro,
entendido aqui não somente como um outro ser, mas como tudo o que
interage com o sujeito em si. É neste particular que a justiça é
considerada como a virtude por excelência, porque ela é a prática
dessa mesma virtude que deve estar presente na relação da
pessoa/pessoa. A ausência total dessa condição não pode ser
concebida por derivar de uma irracionalidade que não é digna do ser
humano, enquanto pessoa, enquanto homem, mesmo que nem todos
alcancem um mesmo grau de reflexão sobre a sua condição e a dos
outro(s).

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Formação Humanística

“Pela mesma razão considera-se que a justiça, e somente ela


entre todas as formas de excelência moral, é o ‘bem dos outros’;
de fato, ela se relaciona com o próximo, pois faz o que é vantajoso
para os outros, quer se trate de um governante, quer se trate de
2
um companheiro da comu-nidade”.

OBS: mesmo que justiça e igualdade estejam relacionadas, bem


próximas uma da outra, elas não têm sentido idênticos, mas uma
condição em que a existência de uma compreende a relação com a
existência da outra!

O justo e o injusto, limites de significado e existência da justiça


determinam-se no espaço das relações dos sujeitos e são mediadas por
todos os bens exteriores que permitem o exercício do agir justo e do
agir injusto.
Tércio Sampaio Ferraz Junior afirma que se trata de um campo
(agir justo e agir injusto) da ação humana em que justiça e injustiça
são aplicadas particularmente e que corresponde à esfera da honra, do
dinheiro, da segurança (exemplos de bens exteriores), onde a injustiça
tem em vista o prazer fruto do ganho ilícito e a justiça, o prazer fruto
do ganho equitativo. É esse o espaço em que Aristóteles denomina de
‘bens exteriores, pois são os que interessam à prosperidade e à ad-
versidade’.3
Uma vez que a justiça está numa prática, numa existência dos
sujeitos é que se pode constatar a distinção entre o ‘melhor’ e o ‘pior’
dos homens, pois o primeiro é aquele que coloca em sua prática exis-
tencial a virtude no seu agir com os outros e não somente em relação a
si próprio, enquanto o pior dos homens é o que pratica uma ação numa
natureza de deficiência moral, tanto em relação aos outros quanto em

2 Idem, p.130.
3 JUNIOR, Tércio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. Reflexões sobre o poder, a liber-
dade, a injustiça e o direito. Editora Atlas, 2003, p.180-181.

23
relação a si próprio, pois a iniquidade é o fundamento de sua percep-
ção do entorno (os outros e o ambiente).
Importa destacar que a justiça e a virtude, como a justiça e a i-
gualdade também não são elementos absolutamente iguais, pois na
essência são distintas: a primeira, a justiça, é uma disposição do ser
em sua existência primeira, isto é, em relação a um agir em relação a
outro; já a virtude é certa disposição do ser em não ser iníquo com o
outro, isto é, uma condição da pessoa enquanto sujeito de uma ideia
universalizante de homem, de um sentimento de humanidade.
Tem a justiça, portanto, um caráter prático, objetivo, já que está
numa condição de relacionamento do ser com o ser. Ela é uma virtude
completa, e aqui completa não significa que ela é em absoluto, irres-
trita em abstrato, mas na relação do sujeito com os outros sujeitos ela
tem o escopo de realizar essa relação com um controle mínimo desta
mesma relação.
Prática, a justiça compreende todas as virtudes na medida em
que ela se compreende como referencial de todos os atos exteriores e,
a partir desses atos exteriores se faz compreender ao sujeito, isto é, na
forma ao qual se espera do seu agir em sociedade ao qual se pode
fundar alguma base para o seu julgamento, tanto o que é realizado
pelo grupo, quanto o que ele mesmo realiza a partir de uma maior ou
menor autocrítica.
A virtude requer repetição, hábito, costume e a esses hábitos,
repetições e costumes se insere a presença da justiça, no que resulta
em uma virtude completa, quer isto é, exercitável pelos sujeitos na sua
relação com os outros e com o mundo que os cerca ao mesmo tempo
em que é assim porque reconhecidos pela pessoa enquanto individua-
lidade e o homem enquanto coletivo.
É aqui que se pode constatar o papel da Lei, pois como a Poéti-
ca ela se constitui em uma Paideia (em certo sentido, formação, edu-
cação) da pessoa/cidadão. A Lei é como um instrumento para auxiliar
ao homem na construção do seu caráter (relação do sujeito com o

24
Formação Humanística

outro), na sua virtude. A Lei educa, (in)forma e realiza o sujeito em


relação ao(s) outro(s).
A Lei é uma possibilidade de experimento da vida ética, pois a
felicidade dos sujeitos somente se encontra numa condição de existên-
cia ética e esta existência só pode se realizar sob o domínio de uma
comunidade ao mesmo tempo ética e política, fundamentada sob um
regime político, qual seja, uma Constituição, a Lei, que em muitos
sentidos é a razão de sua própria existência. E esta Lei é a condição
fundamental para a realização da justiça entre as pessoas.
A Lei é uma condição do existir ético que por sua vez é a reali-
zação da felicidade a partir de um agir justo, igual e marcado pela
equidade.
A justiça é realizável, desta forma, tanto num sentido normati-
vo, isto é, a partir de uma experiência da Lei e que permite o julga-
mento das relações dos sujeitos com os outros, bem assim como tam-
bém num sentido de igualdade, restrito às ações daquelas relações que
buscam a distribuição e a pretensão daqueles bens constitutivos da
própria condição da relação humana.
“A justiça no primeiro sentido, normativo, constitui para Aris-
tóteles, o que ele denomina ‘a virtude completa’, quer dizer, a
justiça total. Entretanto, a justiça no sentido de ‘igualdade’ é
uma parte sumamente importante da justiça, que se enquadra-
ria com o que nós entendemos pelo campo propriamente jurídi-
co.”4

Desta forma e resumidamente, a justiça é em Aristóteles um


conjunto particular de significações individuais/sociais:
a) Igualdade
b) Equidade

4 GAURIGLIA, Osvaldo. Ética y Política según Aristóteles. Buenos Aires: Centro Editor de
América Latina, 1992, p.184.

25
c) Alteridade (que será elaborado logo a seguir)
d) Categórica
e) Concreta
f) Relacional
g) Virtude

Importa ainda destacar, além do olhar de Aristóteles, que o


conceito de justiça se mantém intimamente relacionado não somente
com o conceito de bem, mas ainda mais com o conceito de direito
(tanto no seu sentido legal, quanto moral).
Buscando a contribuição de Rawls para isso, não se pode es-
quecer que uma ação, norma, política ou qualquer atividade do sujeito
(reconhecido por ele como sujeito de ‘carne e osso’) é justa quando os
efeitos destas para os sujeitos significam que estes têm direitos a
determinados benefícios sobre o resultado desta ação, norma, política
ou atividade.
Na mesma medida que alguns têm benefícios, outros tantos têm
o dever de não interferir, impedir, prejudicar com ações que busquem
impor ao direito de alguns as suas próprias necessidades.
A teoria de Rawls sobre a justiça está assentada numa tentativa
de unificação teórica que ele veio a realizar com a sua reflexão, isto
é, com a tentativa dele em buscar unir duas matrizes que historicamen-
te determinaram duas regiões distintas física e culturalmente: aquela
da tolerância e da liberdade individual, típicas representantes da ma-
triz Norte Americana, e aquela da igualdade econômica e social, de-
fendidas de forma mais potencial no velho mundo, a Europa Ociden-
tal.
Por óbvio que a matriz usualmente relacionada a cada uma des-
sas duas regiões não é indiferente ora a uma e ora a outra em maior ou
menor medida. De qualquer modo, é razoável de se afirmar que os
Estados Unidos carregam o mito de usualmente serem identificados

26
Formação Humanística

aos princípios de liberdade individual, bem assim, pela própria parti-


cularidade do seu devir histórico os países europeus apresentaram-se
mais sensíveis aos problemas referentes aos temas da desigualdade
social, das diferenças econômicas entre os grupos sociais, os reveses
da revolução industrial.
Desta forma, a tentativa daquela possível (re)união entre as li-
berdades individuais e a igualdade social se faz presente e potencial-
mente atuante naqueles dois princípios básicos que representam o
conceito de justiça em Rawls:
a) Todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente
satisfatório de direitos e liberdades básicas iguais para todos, pro-
jeto este compatível com todos os demais; e, nesse projeto, as li-
berdades políticas, e somente estas, deverão ter seu valor equita-
tivo garantido.

b) As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois


requisitos: primeiro, devem estar vinculadas a posições e cargos
abertos a todos, em condições de igualdade equitativa de oportu-
nidades; e, segundo, devem representar o maior benefício possível
aos membros menos privilegiados da sociedade.

A partir desses dois princípios e sua conhecida ‘escala de prio-


ridades’ (‘a’ tem prioridade sobre ‘b’; e ‘b’, primeira parte sobre ‘b’,
segunda parte), Rawls busca que a sua teoria da justiça alcance uma
coexistência de concepções de vida diversas, ampliando o espaço de
sua própria ingerência.
Um conceito de justiça de natureza procedimental, contudo, é
algo diferente dessas duas concepções, já que Rawls se preocupa com
uma justiça de natureza institucional ((e não pessoal ou individual), e
que tem num objeto primário o que ele chama de uma estrutura básica
da sociedade, isto é, “a maneira pela qual as instituições sociais mais
importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam
a divisão de vantagens da cooperação social”.

27
A questão da justiça é, assim, resultante de um conjunto de rei-
vindicações que surgem entre os sujeitos na medida em que eles estão
tradicionalmente numa relação de contrato entre eles, o que representa
uma manifesta declaração de necessidades e expectativas que se busca
alcançar na relação de um com o outro.
Em nome de destas expectativas cada sujeito desenvolve meca-
nismos de resistência e defesa para o caso da ação de um outro sujeito
buscar frustrar aquilo que foi acordado direta ou indiretamente. A
justiça é neste sentido um meio de realização contratante entre os
indivíduos obrigados que estão a se compartilhar uns com os outros.
“As questões de justiça surgem quando são apresentadas reivindi-
cações contratantes sobre o planejamento de uma atividade e se
admite previamente que cada um defenderá, enquanto isso lhe for
5
possível, o que ele considera ser seu direito”

Hume, antes de Rawls, mas dele previamente próximo destaca


que esta necessidade de um meio para proteção das condições de ex-
pectativa e estratégias de resistência que se concentra na ideia de jus-
tiça estão, em muitos sentidos, determinadas pela relação frágil entre
recursos (expectativas) e necessidades (desejos) dos homens entre si e
com o meio circundante.
“É apenas no egoísmo e na limitada generosidade dos homens –
juntamente com os escassos recursos que a natureza colocou à
disposição para as suas necessidades – que a justiça tem suas o-
rigens... Aumentai a bondade dos homens ou a abundância da na-
tureza em grau suficiente e tereis tornado inútil a Justiça, substitu-
6
indo-a com virtudes mais nobres e com bênçãos mais preciosas.”

5 RAWLS, J. p.172
6 HUME, D. Tratado da Natureza Humana.

28
Formação Humanística

A partir desses primeiros aspectos apresentados, Rawls ainda


compreende que se faz necessário um maior aprofundamento do pró-
prio conceito de justiça, o que lhe permite destacar três princípios
específicos àqueles conceitos unificadores gerais:
a) Princípio da liberdade igual: A sociedade deve assegurar a
máxima liberdade para cada pessoa compatível com uma liber-
dade igual para todos os outros.
b) Princípio da diferença: A sociedade deve promover a dis-
tribuição igual da riqueza, exceto se a existência de desigualda-
des econômicas e sociais gerar o maior benefício para os menos
favorecidos.
c) Princípio da oportunidade justa: As desigualdades eco-
nômicas e sociais devem estar ligadas a postos e posições aces-
síveis a todos em condições de justa igualdade de oportunida-
des.

A partir desses três princípios específicos, ele busca criar con-


dições para realizar a presença da justiça no seio dos conflitos dos
sujeitos reais, o que não nos permite afirmar que a importância desses
esteja colocada em uma condição de hierarquia horizontal, ao contrá-
rio, ele os compreende a partir de uma hierarquia vertical, pois o pri-
meiro desses três princípios se sobrepõe aos outros dois, consequen-
temente, o segundo também está sobreposto ao terceiro.
Isso é assim na medida em que os próprios conflitos dos sujei-
tos de ‘carne e osso’ não são uniformes em suas manifestações, o que
obriga a certa escolha de atuação da aplicação da justiça que não pode
perder de vista o princípio da equidade para a sua capacidade legiti-
madora.
Esta equidade na aplicação da justiça em Rawls ainda é impor-
tante na medida em que ela é meio para se enfrentar as condições
daquilo que ele chamou de “véu da ignorância”:

29
a) Que cada parceiro conheça o suficiente da natureza humana;
b) Todos os parceiros devem dispor dos bens sociais primários;

c) Todos os parceiros devem conhecer os princípios de justiça


que estão em jogo;

d) Todos os parceiros devem ser iguais em informação;

e) O contrato será assumido como obrigatório na vida real.

O ponto principal deste reconhecimento por Rawls acontece


sobre a questão de se saber o que devem os indivíduos conhecer sob
aquele “véu de ignorância”, a fim de que da sua escolha resultem
consequentemente distribuições de natureza equitativas de vantagens e
desvantagens nesta sociedade real em que, por detrás dos direitos,
estão os interesses em jogo.
Em relação à primeira condição, “que cada parceiro conheça o
suficiente da natureza humana”, significa que cada parceiro tenha um
conhecimento suficiente da psicologia geral da humanidade no que
respeita às paixões e motivações fundamentais. Ele (re)conhece fran-
camente que a sua antropologia filosófica está muito próxima do pen-
samento de Hume elaborado no Tratado da Natureza Humana, fun-
damentalmente no Livro 3º, no que respeita a necessidades, interesses,
fins, reivindicações conflituais, etc.
Já em relação à segunda, “todos os parceiros devem dispor dos
bens sociais primários” isso significa que sem tal conhecimento não é
possível pretender a própria justiça, na medida em que este ‘saber’
permite uma escolha livre, pois sem os quais o exercício da liberdade
seria uma reivindicação vazia. Importa destacar aqui que o “respeito
por si” pertence a esta lista de bens primários.
No que diz respeito ao terceiro, “todos os parceiros devem co-
nhecer os princípios de justiça que estão em jogo”, significa que a
escolha entre as várias concepções da justiça, obriga aos parceiros ter
uma informação conveniente a respeito dos princípios dessa mesma

30
Formação Humanística

justiça que está em jogo. Eles precisam conhecer os argumentos utili-


taristas e, como óbvios, os princípios elaborados por Rawls sobre a
justiça uma vez que a escolha não é entre leis particulares, mas sim
entre aquelas concepções globais de justiça. A deliberação consiste
precisamente em atribuir um grau hierárquico às teorias alternativas
da justiça.
Em relação ao quarto, espera-se que “todos os parceiros devem
ser iguais em informação”, ou seja, que a apresentação das alternati-
vas e dos argumentos oferecidos deve ser pública, na medida da equi-
dade.
Finalmente, “o contrato será assumido como obrigatório na vi-
da real”, pois é essa obrigatoriedade que permite a Rawls chamar a
‘estabilidade’ do contrato, quer dizer, na possibilidade da antecipação
de que o contrato será sempre obrigatório na vida real, independente
de quaisquer que sejam as circunstâncias prevalecentes, os participan-
tes têm uma boa noção daquilo que os espera e dessa forma, maior
espaço de liberdade de escolha. Contudo, importa destacar que foi esta
condição obrigacional que Rawls suspeitou quanto a uma condição
suficientemente irrealista que o levou a guardar em suspenso a questão
das circunstâncias de aplicação de um contrato supostamente válido.
Mas o que fica evidente nesse breve olhar em Rawls é a forte
presença que Hume exerceu sobre a sua reflexão, pois, já anteriormen-
te, ele demonstrara que os problemas relativos à justiça aparecem nos
grupos sociais exatamente porque estão interessados em si mesmos e
os bens compartilháveis por eles são escassos se comparados aos inte-
resses dos indivíduos, o que os obriga a uma busca pelo ideal da justi-
ça sem se perder a particularidade do próprio conflito no espaço soci-
al.
À parte a linguagem poética, Hume percebe que a Justiça é uma
necessidade constante da competição a que os sujeitos sociais são
obrigados a realizar, uma vez que convivem com outros tantos sujeitos
que, com potencialidades distintas, disputam os recursos necessário à
própria existência.

31
Os recursos aqui não podem ser compreendidos apenas como
aqueles presentes na natureza, mas são todos os que necessários para a
existência do indivíduo, ainda mais aqueles que estão dispostos no
espaço social, como os recursos econômicos, políticos, culturais, etc.
Nesta busca pela presença da justiça pelos sujeitos que não es-
tão em condições iguais, os quais nem mesmo encontram recursos em
condições ideais, Hume reconhece o papel fundamental desta justiça
como elemento que permite uma certa organização neste cenário de
conflito tradicionalmente natural. A justiça é um aspecto tão vital que
ele chega a afirmar que
“É impossível para os homens assassinar uns aos outros sem
estatutos, máximas e uma ideia de justiça e de honra”

Ela é assim mais do que uma mera ideia de justiça, quer dizer, a
própria ideia de justiça traz uma essencialidade ontológica, já que está
para homem assim como este está para a capacidade de se reconhecer
existente. Justiça não é somente o legal, o condizente com a Lei, mas
um estado de coisas, um conjunto de regras, uma série de disposições
cotidianas que organizam, regulamente, pacificam, justificam e consti-
tuem as próprias condições de materialidade do espaço social.

1.3 Sentido mais do que lato de justiça


Aqui, a justiça é uma ideia ideal, pois ela seria um conjunto
complexo de todas as virtudes experimentadas pelos sujeitos (tais
como amizade, temperança, honestidade, igualdade, equidade etc.).
Neste caso ela está mais para uma condição de existência de um sujei-
to ideal que encontra neste agir absolutamente justo uma condição
categórica de existir. Ela é a “justiça perfeita porque é a prática da
justiça perfeita, perfeita porque quem a possui pode usá-la para com
o outro”.7

7 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos, p.109.

32
Formação Humanística

É categórica na medida em que um sujeito não busca o seu uso


apenas em seu próprio benefício, mas igualmente na relação com os
outros. Aqui, a justiça é algo compartilhado, pois se realiza na condi-
ção de realizar-se em si e no outro, numa capacidade absoluta de cons-
tituir-se como uma ‘transitividade social’, quer dizer, como condição
para a própria relação individual/social.
A justiça não traz em si, mesmo neste sentido mais do que lato
(latíssimo) a exclusividade desta ‘transitividade social’, pois esta é
uma condição que se atribui, necessariamente, a todas as demais vir-
tudes éticas. Mas, mesmo assim, como a ‘transitividade social’ pres-
supõe o agir de um sujeito nos outros e no próprio entorno que o cir-
cunda, o conjunto dessas virtudes éticas são, de alguma maneira, for-
mas de justiça em sentido mais do que lato.
Assim,
“Ao investigar a natureza da justiça, assinala que, em certo senti-
do, é ‘a mais perfeita’ das excelências e que nela se dão juntas to-
das as demais, pois toda a excelência possui um aspecto de rela-
ção com o outro, é dizer, uma faceta social. Enquanto se relaciona
com os outros, toda a excelência merece o nome de justiça. Aristó-
teles parece estar afirmando que, consagrada a ocupações e inte-
resses solitários, sem a excelência que consiste em considerar de-
vidamente o bem dos demais, a pessoa humana não apenas priva-
se de um bem importante, como de todas as excelências, pois to-
das e cada uma são ‘com relação aos outros’, assim como ‘com re-
8
lação a um mesmo’”.

1.4 Sentido lato de justiça


Aqui, em sentido lato, diferentemente do sentido anterior, a jus-
tiça tem não uma natureza geral, ao contrário, ela é somente um con-
junto daquelas virtudes sociais que fundamentam a base da relação do

8 NAUSBAUM, Martha Craven. La fragilidad del bien. Fortuna y ética em la tragédia y la filoso-
fia griega, p.441.

33
sujeito com outros, sendo, assim, uma condição necessária para a
sociedade humana existir.
Ela somente pode existir na condição de relacionamento, de
transitividade social’, pois ela tem o seu fundamento mesmo nessa
relação, já que somente pode ser julgada a partir das ações do sujeito
com o entorno que com ele mantém profunda relação. É a existência
de um, justiça, condicionado a existência do outro, a relação sujei-
to/outros.
No sentido lato, o papel do outro é condição essencial, pois é na
presença desse outro que toda e qualquer realização da virtude ética
acontece, existe na condição de que humano é tudo aquilo que diz
respeito à existência do outro, uma vez que o existir ético está na me-
dida das ações do sujeito com o outro, agindo em variadas e distintas
ações éticas e nas condições resultantes destas mesmas ações para si e
para os outros.
O sentido lato da justiça traz, portanto, a presença de uma fun-
damental alteridade. É essa alteridade que dá o tom e a caracterização
de todas as virtudes da ética, permitindo que todas estas virtudes se-
jam alguma forma de justiça, naquilo que Aristóteles chamou de ‘rai-
nha de todas as virtudes’.
“Nesse sentido, então, a justiça não é uma parte da excelência
moral, mas a excelência moral inteira... Portanto, a justiça é
frequentemente considerada a mais elevada forma de excelên-
cia moral, e ‘nem a estrela vespertina nem a matutina é tão ma-
ravilhosa; e também se diz proverbialmente que na ‘justiça se
resume toda a excelência’.”. 9

O outro aqui é presença condicional da própria existência da


justiça em sentido lato, pois não é um tipo abstrato, ideal, ao contrário
é um sujeito específico com as mesmas qualidades e potencialidades

9 ARISTÓTELES, p.33 a 39.

34
Formação Humanística

do ser. Portanto, não há de se pensar a justiça sem a condição de ser


uma relação entre sujeitos e destes com a comunidade.

1.5 Sentido estrito de justiça


Aqui, o conceito de justiça diz respeito à virtude como uma
condição especial. Quer dizer: sua condição essencial é dar a outrem o
que lhe é devido, numa condição de igualdade marcada por uma con-
dição de simplicidade e proporcionalidade. É uma relação aqui que
apresenta três características:
a) Dar a outrem (pluralidade e alteridade);
b) O que lhe é devido;
c) Segundo uma igualdade (que é uma qualidade).
Em relação à primeira característica já se desenvolveu reflexão,
pois como se afirmou anteriormente, a condição relacional da justiça
somente tem condições de existir a partir de uma pluralidade de sujei-
tos, uma vez que o sujeito somente se reconhece na medida em que
reconhecendo o outro pode se perceber. Isoladamente, qualquer indi-
víduo pode realizar virtudes tais como a coragem, a temperança e
mesmo a prudência, entretanto, a justiça, virtude por excelência não
ocorre em indivíduos isoladamente, pois ela está nos sujeitos bem
como no espaço social.
Quanto à segunda característica (*Quanto ao devido).
O devido deve ser compreendido a partir daquele espaço de o-
brigatoriedade e exigibilidade que a justiça, enquanto relação sujei-
to/outros/ambiente, precisa realizar-se.
Essa característica é fundamental na medida em que tal obriga-
toriedade e exigibilidade para a realização da justiça permitem que a
Lei exerça uma função de realizar o exigível, impondo condutas per-
missivas e proibidas aos indivíduos. É como se afirmar que a justiça
tem uma natureza de atributividade, que por sinal vem a ser uma das

35
características essenciais da norma jurídica. É o que se afirma como
um traço característico da justiça, o direito à exigibilidade.
Conforme Dabin,
“Em vez de estabelecer o dever de deixar à consciência do deve-
dor a efetividade do seu cumprimento, a justiça, para ser respeita-
da, exige, reclama, opondo-se à violação do Direito, perseguindo o
devedor faltoso, bem como impondo reparação por meio da utiliza-
ção de todos os meios proporcionados, inclusive a coação materi-
10
al.”

Deve ser exigido do particular somente aquilo que é o devido


legal, buscando-se com isso proibir quaisquer abusos ou excessos
indiscriminados por parte das instituições encarregadas da sua exigên-
cia.
Importa lembrar que nesse devido legal se deve ter uma cono-
tação, ou melhor, uma possibilidade de se constituir o objetivo do
“bem comum”, quer dizer, aquilo pelo qual se pode afirmar ser o obje-
tivo definitivo do espaço social. Ideologicamente, por tudo aquilo que
se entende como uma “finalidade última de toda lei” e o resultante
“objeto maior da justiça social”, enquanto valor essencial para uma
consolidação de uma sociedade que se quer justa, fraterna e solidária.
REALE destaca, a respeito disso que
“(...) bem comum’ só pode ser concebido, concretamente, como
um processo incessante de composição de valorações e de inte-
resses, tendo como base ou fulcro o valor condicionante da liber-
dade espiritual, a pessoa como fonte constitutiva da experiência é-
tico-jurídica”.

No que tange à terceira característica (* Quanto à igualdade):

1010 DABIN, J. A Filosofia da Ordem Jurídica Positiva. Porto Alegre, Sulina, 1978, p.94.

36
Formação Humanística

A igualdade é fundamental na condição em que permite o equi-


líbrio entre a alteridade e o devido, já que se utiliza de princípios nor-
mativos para garantir a realização daquelas outras duas características.
Ela é realizada de forma objetiva, concreta, pois é mais do que
uma ideia ideal, do que uma pretensão subjetiva. A igualdade na justi-
ça é o seu ‘justo meio’, como quer Aristóteles ou, de forma um tanto
equivocada o ‘meio termo’ escolástico medieval.
Não se pode confundir ‘meio termo’ com ‘justo meio’, não so-
mente porque são conceitos que pertencem a diferentes interpretações
filosóficas, bem como estão determinados por tempos históricos dis-
tintos, mas fundamentalmente porque no caso do primeiro se realiza a
justiça como um meio para se alcançar a ascese da alma em direção
aos preceitos católicos de bem e certo, enquanto no segundo, a justiça
é um meio para realizar a virtude do agir ético do sujeito em relação
ao outro e em relação a ele mesmo.
O ‘justo meio’ aristotélico é uma condição razoável entre dois
extremos equidistantes, independentes de quais venham a serem tais
extremos, já o meio termo é uma medida algébrica, racional e estraté-
gica, determinada pelas condições objetivas e concretas de cada sujei-
to quando decide uma dada situação.
Conforme Bittar,
“O justo meio é a equilibrada situação dos agentes numa posição
mediana de igualdade, seja proporcional, seja absoluta, em que
ambos compartilham de um status de coordenação, sem que um
tenha sua esfera individual invadida ou lesada pela ação do outro...
Portanto, não são dois vícios que se contrapõem por um meio ter-
mo, como ocorre com as outras virtudes, mas se trata de uma po-
sição mediana entre o possuir mais e o possuir menos, relativa-
11
mente a todo e qualquer bem que se possa conceber”.

1111 BITTAR, Eduardo. A justiça em Aristóteles. 2ªed. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2001, p.86-87.

37
Em sendo assim fundamental, a noção exata da justiça não pode
prescindir desta igualdade como condição das relações entre os sujei-
tos, mesmo porque tal igualdade, assim como a justiça é igualdade de
todos os indivíduos, constituindo-se, portanto, em direito fundamental
do homem.
Buscando justificar a sua condição de primazia social, a igual-
dade está presente na grande maioria das Constituições Ocidentais,
reafirmada na Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de
dezembro de 1948. A igualdade perante a lei realiza, assim, a possibi-
lidade de fundamentar a justiça nos ordenamentos jurídicos contempo-
râneos (veja-se, neste sentido, o caput, do artigo 5º, da Constituição
Federal de 1988).
Importa, em primeiro lugar salientar que toda e qualquer socie-
dade tem o dever de auxiliar na construção de um bem comum, por
mais mitológico que seja. E cada um dos seus membros – e também
ela própria – contribuirá proporcionalmente para a construção desse
bem comum, atentando-se para a ‘respectiva função e responsabilida-
de na vida social’.
É fundamental compreender a igualdade como proporcional.
Contribui-se dentro da necessidade da sociedade, ou comunidade (en-
quanto credora), atendo-se para a responsabilidade e possibilidade do
indivíduo-contribuidor (enquanto devedor).
Desse modo, o que se pode compreender é a sociedade ou a
comunidade como credora de um devido legal e o indivíduo como
devedor daquela obrigação.
André Franco Montoro destaca que é característica desta justiça
social “orientar ‘todas’ as virtudes para o bem comum”, dando com-
pletude aos atos das demais virtudes. Assim, a empresa, a pessoa jurí-
dica que paga um justo tributo pratica um ato de justiça distributiva
para com o Estado e de justiça social para com toda a coletividade que
acaba por ser favorecida por essa ação da pessoa jurídica; no mesmo
sentido, um juiz que resolve um litígio pratica um ato de justiça distri-

38
Formação Humanística

butiva para com as partes no processo e um ato de justiça social para


com a coletividade, pois sua ação tem o escopo de pacificar as rela-
ções sociais conflituosas entre os indivíduos que a (in)formam.
Dessa forma, conforme Montoro, todas as espécies de igualda-
de reclamadas nas diversas virtudes estão presentes na justiça social,
inclusive a igualdade proporcional presente nas eleições e na represen-
tação política dos Estados.
Vê-se, assim, que a finalidade da norma jurídica é a implanta-
ção de uma “ordem justa na vida social”.
Partindo da premissa de que toda lei tem como objetivo a satis-
fação de um bem comum e de que o princípio da legalidade rege os
atos administrativos lato sensu, pode-se afirmar que a justiça social
está presente em todo e qualquer ato estatal, tanto no legislador que
edita a lei, quanto no administrador que a executa e, bem assim, no
juiz que a aplica.
Concernente a isso, o indivíduo tem o dever de orientar suas
ações para a realização desse bem comum geral e singular, caracteri-
zado como um ato de solidariedade, independentemente mesmo de
uma determinação legal.
Essa solidariedade hoje é compreendida como a exigência para
que se (re)construa uma sociedade mais próxima da ideia de justa e,
talvez, involuntariamente, contribua também para uma sociedade pací-
fica.
O indivíduo que ao socorrer um outro menos afortunado que
ele, ao mesmo tempo em que busca dirimir a fome, a sede ou o frio,
ou que mesmo proporciona meios de satisfazer suas necessidades
fundamentais, afastando este da pobreza, da exclusão e da marginali-
dade – ou pelo menos mitigando seu sofrimento - que inibe qualquer
ação violenta daquele sujeito com menos condições de alcançar as
melhores condições para a sua subsistência.
A regra geral aqui é que se um sujeito se encontra satisfeito,
não precisará necessariamente atuar contrário à Lei; pois se ele se

39
encontra realizado em suas aspirações de sobrevivência, não precisará
matar para comer, roubar para fugir do frio; já que ao produzir algo e
por receber por esse trabalho uma retribuição, em tese não precisará
agir contrariando o ordenamento jurídico para garantir a sua subsis-
tência.
É vital destacar o fato de que a solidariedade pressupõe um de-
ver de cooperação que se caracteriza por uma “integração das forças
deficientes e reforço recíproco” e sendo esta solidariedade um fator
determinante para a lei fundamental de toda a vida em comum, exige
de todos os sujeitos contribuintes ou devedores um dever de coopera-
ção.
Contudo é necessário distinguir o ato justo do ato de benefi-
cência. Sem esta, o homem (com)vive, (co)opera, mas sem pressupos-
tos da justiça, o que vem a tornar a convivência e a cooperação como
institutos impossíveis. Assim, a beneficência não compõe o direito;
exclui-o por inteiro.
Em suma, a solidariedade contribui para o alcance de uma soci-
edade justa e pacífica, fundada no respeito e manutenção do “bem
comum”, através de um ato de cooperação.
Destaque-se que a solidariedade deve acontecer tanto no plano
interno quanto no plano externo, isto é, deve ser executada no/dentro
do próprio Estado, mas também na/dentro da comunidade internacio-
nal, fazendo com que os Estados se solidarizem de forma mútua, aju-
dando aqueles mais dependentes economicamente.

1.6 Das espécies de justiça


É possível, apesar de toda a problemática em torno deste con-
ceito estabelecer três espécies de justiça:
a) Social;
b) Distributiva;

c) Comutativa ou corretiva ou sinalagmática.

40
Formação Humanística

1.7 Das três espécies – linhas gerais


Em relação à primeira, esta, diferentemente da privada tem co-
mo escopo a realização do bem comum, na medida em que é a concre-
tização daqueles valores da justiça enquanto igualdade, alteridade,
virtude, etc. Portanto a justiça social é aquela que a “sociedade civil”
articula não somente como um bem a ser alcançado, mas igualmente
como um “sujeito” que busca a articulação de estratégias para realizar
o “bem da comunidade”, isto é, da sociedade, tanto em sentido geral
quanto para atender as suas especificidades.
Já a justiça comutativa e a justiça distributiva são tipos de uma
justiça privada, uma vez que o seu objetivo aqui é um determinado
bem privado.
Para Aristóteles, a justiça distributiva é aquela que regula as
ações da sociedade política em relação ao cidadão e tem por objetivo a
justa distribuição dos bens públicos, pautando-se pelo princípio da
igualdade; já a comutativa é aquela que tem por finalidade buscar
restabelecer o equilíbrio de uma situação moral ou jurídica que veio a
ser rompida pela ação de um sujeito qualquer.
Em linhas gerais, no primeiro caso se pode entender como aqui-
lo que a sociedade dá ao particular o que lhe é devido, enquanto no
segundo caso é aquilo que alguém dá a alguém o que lhe é devido.

1.8 Da justiça social


A justiça social pode ser compreendida como aquela virtude pe-
la qual os sujeitos dão à comunidade uma efetiva contribuição para a
realização do ‘bem comum’, desde que observando uma igualdade de
disposição geométrica.

41
Aqui há uma inversão do conceito da justiça distributiva onde
aquilo que é devido é aquilo que é dado pela comunidade ao particu-
lar. Na justiça social é o sujeito particular que figura na condição de
devedor, enquanto é a comunidade ou sociedade, que acaba estando
no polo ativo da relação, quer dizer, como credora.
É correto afirmar que a relação entre sujeitos, como se afirmou
acima, dá-se do particular para a sociedade ou da parte (o sujeito) para
o todo (a comunidade).
Da mesma forma que na justiça distributiva, por comunidade
ou sociedade se devem compreender todos aqueles entes que são por-
tadores de status de instituição com personalidade jurídica, tais como
o Estado, a família, uma associação de classe, sindical etc. No que diz
respeito aos particulares, a compreensão se estende a todas as pessoas
naturais e jurídicas que tenham alguma obrigação de contribuir para a
efetivação do “bem comum”, somando-se a estes sujeitos toda uma
coletividade que não é obrigatoriamente nacional, mas mesmo além
das fronteiras da nação.

1.9 Da justiça distributiva


Essa é a justiça que regula a relação da sociedade com os sujei-
tos que a constituem, organizando e racionalizando a aplicação dos
recursos da coletividade aos mais distintos espaços do social. Pode ser
compreendida como:
a) Fixação de impostos;
b) Progressividade dos impostos devidos;
c) Garantia do voto plural;
d) Participação dos empregados nos lucros das empresas;
e) Aplicação do salário, etc.

42
Formação Humanística

Observando-se os exemplos acima destacados se pode perceber


que a justiça distributiva está presente em alguns ramos do direito, tais
como o Direito Administrativo, Civil, do Trabalho, etc.
Aqui, a justiça distributiva pressupõe uma pluralidade de sujei-
tos que podem ser entendidos como o ‘todo’ social, incluindo-se aí a
comunidade e os particulares. É a sociedade devedora de dar ao indi-
víduo, o credor, aquilo que lhe é devido por ela.
Cabe à sociedade no todo ou a partir de sua compartimentação,
a comunidade assegurar aos sujeitos uma equitativa participação e
distribuição do bem comum. São atos da sociedade que elaboram os
benefícios sociais a serem obrigatoriamente distribuídos aos indiví-
duos.
Conforme destaca Montoro,
“A justiça distributiva, salvo nos casos excepcionais, não consiste
em partilhar, ainda que proporcionalmente, uma realidade homo-
gênea e quantificada, como uma soma de dinheiro, uma terra, atos
ou serviços, constituindo uma massa. É assegurar a todos os
membros da comunidade o conjunto de ‘condições sociais’ que lhe
permitam ter uma vida plenamente humana (...). Essas condições
sociais, esse estatuto geral, são devidas a cada um por justiça,
mas são coisas inteiramente diferentes de uma quantidade a parti-
12
lhar”.

Pode-se, destarte, destacar como principais aplicações da justi-


ça distributiva os seguintes aspectos:
a) Há um primeiro dever negativo e preliminar, que consiste
em respeitar os limites dos direitos fundamentais dos membros da
sociedade;

12 MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do Direito. São Paulo: Ed. Revista dos
Tribunais, 2000, p.124.

43
b) A sociedade deve garantir aos seus indivíduos as condições
de respeito desses direitos fundamentais diante de possíveis violên-
cias, degradações e atentados praticados pelos sujeitos e pelo próprio
Estado. Isto é: a sociedade deve garantir a ordem, a segurança e as
mínimas condições de paz social;
c) Os indivíduos devem ter garantias de uma repartição equita-
tiva dos benefícios de ordem material e moral que informam o concei-
to de bem comum. Não se há de falar na possibilidade de exclusão de
sujeitos;
d) A distribuição desse bem comum deve se dar a partir de
uma garantia de igualdade;
e) A distribuição do bem comum não é um objetivo apenas pa-
ra o tempo presente, mas igualmente nele deve estar subsumida uma
capacidade de distribuição para o futuro, já que a sociedade é um ins-
tituto temporal e o bem comum deve, apesar das particularidades do
momento histórico, sempre ser projetado para a realização das gera-
ções futuras.
Nesta justiça, portanto, a equidade e a igualdade são fundamen-
tais para a realização efetiva do bem comum, já que é a obrigação
precípua do social garantir as condições de ordem, paz e segurança
entre os seus membros sem perder-se de vista a regra da proporciona-
lidade do bem comum.
A doutrina admite, desta forma, como critérios para a aplicação
dessa justiça de tipo distributivo os seguintes:
a) Critério da Dignidade: é uma regra universal de toda a justi-
ça, não somente a distributiva e que significa que os bens sociais de-
vem ser distribuídos segundo a dignidade de cada um dos sujeitos
membros.
b) Critério da Capacidade: todos os sujeitos devem ter garanti-
dos o direito de serem testados na sua real capacidade, propiciando-se
condições iguais para que os desiguais possam disputar as benesses do
viver em sociedade.

44
Formação Humanística

c) Critério da Capacidade e da Necessidade: os encargos preci-


sam respeitar uma distribuição proporcional à capacidade e aos bens
necessários a cada um, isto é, quem pode mais, deve mais; que pode
menos recebe mais.
d) Critério do trabalho: os bens sociais devem adotar como cri-
tério de repartição o trabalho de cada sujeito, até ser possível realizar
essa distribuição por um critério geral.
e) Critério do bem comum e igualdade: há aqui a exigência da
realização do bem comum e da igualdade, aliás, elementos constituti-
vos da justiça como um todo. A distribuição do bem deve se dar a
partir de dois momentos: o primeiro, por aquele que necessita em
caráter de urgência do bem; em segundo lugar, a distribuição deve ser
dar pela aplicação da norma de igualdade aos sujeitos sociais.
Finalmente, a justiça distributiva deve ser compreendida como
uma espécie de justiça em que a sociedade entrega aos indivíduos uma
participação no bem comum, a partir de um critério de igualdade equi-
tativa; é uma espécie de devido legal do Estado à sociedade que a
partir dos seus membros pode usufruir do conjunto do bem comum. A
igualdade não é um absoluto, acontece a partir de uma limitação que
está na condição do indivíduo, na sua necessidade, no bem a ser dis-
tribuído, no tipo de sociedade em que ocorre essa distribuição e no
momento sócio-jurídico-político em que acontece a possibilidade
dessa distribuição.

1.10 Da justiça comutativa


No que diz respeito às exigências de uma prova dissertativa o
candidato precisa observar que essa nomenclatura é bastante contro-
vertida, já que sobre ela os teóricos associam diferentes significados.
O significado comutativo é uma influência do TOMISMO
(pensamento filosófico do final da Idade Média, representado por São
Tomás de Aquino), significando meramente uma condição de recipro-
cidade, a partir de uma sociedade baseada no justo a partir da realiza-

45
ção da fé e da Lei divina, que se impõe sobre a Lei humana, legiti-
mando, desta forma, as condições dessa justiça.
Observe-se que, em assim se definindo tal justiça, a partir do
critério de uma retribuição, pouco ou nada ela se distingue da anterior,
mas essa proximidade é aparente. Em verdade, esta é a justiça com-
preendida como aquela que rege a relação entre sujeitos, mas não no
que diz respeito à condição social igualitária destes, ou seja, ela não
leva em conta os sujeitos da relação, ao contrário, sua preocupação
está com as coisas da relação entre eles, que devem, estes bens, coisas
e objetos estarem em condição igualitária.
Uma vez que tem uma preocupação com as ‘coisas’ da relação
entre sujeitos é conhecida, igualmente, como justiça DIORTÓTICA.
Importa, portanto, aqui nesta forma de justiça medir as condições de
perdas e danos e não as condições dos sujeitos em si, isto é, os seus
méritos.
Conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior,
“justiça diortótica intervém nas transações individuais, voluntárias
ou involuntárias no sentido de consentidas e não consentidas. As
primeiras são as que os atos constituidores são, em sua origem,
fruto de desejo deliberado das partes: é o caso da compra e ven-
da, da locação, do depósito, da caução, etc. As segundas são as
que os atos constituidores são, em sua origem, contra a vontade
deliberada da parte lesada. As transações involuntárias, por sua
vez, subdividem-se em clandestinas, em que a oposição da parte
lesada é presumida desde o início da ação delituosa, mas só se
manifesta posteriormente – é o caso do furto, do adultério, do en-
venenamento, do falso testemunho, etc. – e violentas, em que a
oposição da parte lesada é clara e patente na origem do delito – é
o caso das vias de fato, do seqüestro, assassinato, roubo a mão
13
armada, mutilação, injúria, etc”.

13 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Estudos de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2003,
2ª ed., págs. 187/188

46
Formação Humanística

Suas características são:


a) Pluralidade de pessoas (alteridade);
b) Relação entre particulares;
c) Um devido rigoroso e estrito;
d) Uma igualdade de natureza simples ou absoluta (aritmética).

No dizer de Montoro,
“Essa é a estrutura fundamental da justiça comutativa, que é tam-
bém chamada de corretiva ou sinalagmática. Comutativa, do latim
comutare, porque versa sobre permutas ou trocas. Corretiva, por-
que seu objetivo é corrigir ou retificar a igualdade nas relações en-
14
tre particulares. Sinalagmática, porque bilateral”.

No que diz respeito à característica da pluralidade de pessoas


(alteridade), ela é plural na medida em que estabelece uma teia de
relações entre os sujeitos, entre particulares.
Particular aqui não tem significado apenas enquanto pessoa fí-
sica, mas igualmente jurídica, bem assim o Estado enquanto na quali-
dade de particular em relações que mantêm com a sociedade, isto é,
entre as pessoas jurídicas de direito público interno nas suas relações
com os indivíduos, já que em alguns casos os contratos administrati-
vos são regidos pelo Direito Privado sem que isso signifique necessa-
riamente a presença de uma supremacia do interesse público. Exemplo
disso ocorre quando a Administração Pública contrata uma locação de
prédio com um particular.
Igualmente, a presença desse tipo de justiça na relação de pes-
soa jurídica de direito público não é exclusividade do direito cogente
interno, pois tal alteridade se manifesta na justiça comutativa entre as

14 MONTORO, André Franco. Op.cit. p

47
pessoas jurídicas de direito público externo, quando, nas suas relações
internacionais, tratam de interesses com outras pessoas de mesma
natureza.
O devido é um devido rigoroso e estrito na medida em assegura
ao sujeito o respeito que lhe é devido, a garantia ao seu direito consti-
tuído. Nesse rol de garantias particulares devidas estão a vida, a digni-
dade, o direito ao trabalho, a integridade física, a honra, a imagem,
etc.
O devido na justiça comutativa pode ser compreendido a partir
de duas dimensões:
a) Em respeito à personalidade do próximo;
b) O cumprimento de obrigações de natureza positiva.
Em respeito à personalidade do próximo significa um dever de
natureza negativa, isto é, o de não contrariar, violentar e ofender a
subjetividade de um outro indivíduo.
Quanto ao cumprimento de obrigações de natureza positiva,
manifesta-se no dever de cumprir uma obrigação, conforme aquilo que
foi ajustado entre os sujeitos de uma relação. Tais obrigações podem
ter natureza contratual ou extracontratual. Contratual, quando se mate-
rializam em um contrato, ou quando abrangendo mais de um negócio
jurídico signifiquem uma série de relações obrigacionais. Extracontra-
tuais, quando forem resultantes de atos ilícitos, alheios, nesse sentido,
à vontade do(s) agente(s), conhecidos, nesse sentido, como atos invo-
luntários que decorrem, por exemplo, da indenização por perdas e
danos.
Montoro destaca também as obrigações legais como aquelas
que têm o dever de dar assistência a parentes, bem como as obrigações
naturais, como aquelas que decorrem da simples exigência da natureza
ou da equidade nos casos em que inexiste disposição legal impositiva.
Finalmente, a igualdade na justiça comutativa se manifesta de
forma simples ou aritmética conforme denominação que foi proposta

48
Formação Humanística

assim por Aristóteles. Também chamada de real, ou rei ad rem, pois


se iguala uma coisa a outra não importando a condição da pessoa, por
isso, conhecida como DIORTÓTICA.
Desta forma, se um determinado sujeito contribui com 50, ele
deverá receber 50. Quer dizer, implica uma permuta de bens e servi-
ços de forma a possibilitar a utilização da produção alheia, sendo ne-
cessária a retribuição segundo a quantidade a fim de que haja uma
equivalência entre os bens trocados pelos sujeitos da relação.
É a partir dessa troca de bens que tal tipo de justiça recebe i-
gualmente a denominação de “justiça corretiva”, uma vez que resulta
ao juiz-Estado corrigir possíveis desigualdades, assim: restituição ao
interessado do objeto pretendido conforme a relação, bem como de-
terminando o pagamento de uma dívida, etc.

1.11 Da justiça universal


Em relação à justiça universal esta corresponderia quer na visão
aristotélica, quer numa visão kantiana a um exercício de virtude com-
pleta e perfeita ou a existência possível dos imperativos categóricos
comuns ao homem.
Isso significa afirmar que ela se constitui numa virtude comple-
ta porque é exercida pelo indivíduo em relação não somente a si mes-
mo, mas igualmente ao próximo.
Importa destacar uma ressalva neste momento: quando se afir-
ma uma justiça exercida em relação a si próprio não se trata propria-
mente de ‘justiça’, uma vez que ninguém pode afirmar que está sendo
justo em relação a si mesmo, não baseando tal afirmação em um ar-
gumento de ‘justiça’, pois essa percepção individualista é resultante de
uma condição egocêntrica sustentada pela própria consciência que
nem sempre se deixa reger pela ideia social da justiça. Neste caso, não
se trata de justiça, mas apenas de uma disposição de caráter.

49
A justiça é sempre uma condição relacional, observada em re-
lação ao outro, marcadamente constituída pela alteridade mesmo
quando a partir de uma perspectiva íntima, auto-centrada, mas que tem
obrigatoriamente uma correlação, uma contrapartida em outro ser
humano. Ela é a realização de valores universais do homem e não de
um homem em especial, acontecendo na própria condição de existên-
cia da humanidade. E é isso que a diferencia de uma justiça de nature-
za particular, pois aqui há uma referência à distribuição de ‘bens’, isto
é, de honras, vantagens e coisas.

1.12 Da Justiça Formal


Conforme afirmou Aristóteles,
“Uma vez que aquele que viola a lei é, como vimos, injusto e aque-
le que respeita a lei é justo, é evidente que todas as ações legíti-
mas são em certo sentido justas, pois que ‘legítimo’ é o que o po-
der legislativo definiu como tal e nós chamamos ‘justo’ a todo o
15
procedimento legislativo particular.”

Desta forma, as ações legítimas são aquelas que são ações jus-
tas no sentido específico de que elas estão adequadas a um sistema
preexistente de uma lei positiva, aceita e imperativa sobre o espaço
social.
Conforme um determinado sistema preexistente de uma lei po-
sitiva, uma ação é justa quando é exigida ou permitida por normas
derivadas da legitimidade legislativa, e é injusta, se proibida por estas
mesmas normas preexistentes na lei positiva.
Isto é o que se pode afirmar como justiça formal ou legalidade,
princípio ao qual a nossa Constituição de 1988, em seu inciso II, arti-
go 5º, confirma enquanto direito fundamental, ainda que colocado de

15 ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco.

50
Formação Humanística

forma abstrata. Quer dizer: embora esteja colocado de forma descriti-


va em uma determinada Lei, tal princípio é tautológico e em certo
sentido, quase vazio, pois aos sujeitos as opções das suas ações não se
reduzem aos limites previstos na própria norma legal.
Ele não é totalmente vazio de objetividade porque traz uma
condição de dever-ser que pode ser sentido pelos sujeitos sociais,
quando proíbe aos sujeitos desobedecerem às normas substantivas que
estejam em vigor em um determinado momento.
Ao mesmo tempo, tal justiça formal exige dos que aplicam as
normas, os juízes, que atuem a partir de uma posição de certa maneira
‘imparcial’. Mesmo que admitindo tal imparcialidade como mitológi-
ca, um magistrado para alcançar uma decisão formalmente justa deve-
ria buscar ‘tratar os casos semelhantes de modo semelhante e os caso
distintos de modo distinto’, porém somente no sentido de que deveria
ter em conta as condições de semelhança e distinção dentre as caracte-
rísticas pessoais que a própria Lei, norma legal, determina e indicam
especificamente como relevantes e prioritárias para basear a sua deci-
são.
Aqui, se o magistrado se deixar influenciar por preferências
pessoais ou vier a ser corrompido por toda e qualquer forma de pres-
são ou influência a sua decisão será injusta. Óbvio que tal percepção
dessa justiça formal é historicamente datada, de forte viés racionalista,
uma vez que não se nega mais ao magistrado compreender a Lei, a
norma e o fato que deve ser a elas submetido a partir de certa indivi-
dualidade, ideologia do indivíduo magistrado, que compreende a nor-
ma a partir dele mesmo, constituindo aos sentidos da Lei aquilo que
ele é e traz enquanto sujeito de linguagem.
Entretanto, para o racionalismo, ainda forte no mundo jurídico,
a justiça formal tem condições de excluir as arbitrariedades, as prefe-
rências ideológicas e exige uma previsão não apenas de decisões judi-
ciárias, mas, igualmente, no exercício do campo político. É o que se
consagrou como: GOVERNO DE LEIS E NÃO DE HOMENS.

51
Aqui, as normas jurídicas podem ser justas ou injustas em seu
sentido formal. O único critério eficaz e capaz de distingui-las é aque-
le que se determina a partir do fato se elas foram postas em vigor con-
forme as normas de competência do sistema jurídico em si, como é o
caso das normas constitucionais.
No que diz respeito à Justiça Formal ela se aplica tanto às nor-
mas morais como àquelas jurídicas. Objetivamente se diz que o pró-
prio conceito de moralidade diz respeito a uma ideia de comportamen-
to dirigido e regido por normas e nele se origina o dever moral de
decidir qualquer eventualidade mais na base de um princípio ético
geral do que na base do seu valor específico.
A reciprocidade moral torna-se, portanto, um caso particular de
imparcialidade moral e as duas são exemplos de justiça for-
mal.16

É assim que em Hobbes e em outros tantos filósofos dos sécu-


los XVII a XIX, o conceito de justiça é usado exclusivamente em seu
sentido formal, quando não em sentido fundamentalmente jurídico.
Consequência da emergência da modernidade e de seus institutos, tais
como o Estado Nacional Absolutista, o racionalismo científico, o mé-
todo cartesiano, etc.
Desta forma, na conhecida expressão ‘estado de natureza’, este
é um estado sem leis e, em sendo sem leis, nada pode ser justo ou
injusto.
“As noções de moralmente bom e de moralmente mau, de Justiça
e injustiça não têm lugar nesse conceito... Portanto, antes que os
termos ‘justo’ e ‘injusto’ encontrem nele um lugar, deve haver um
certo poder que obrigue aos homens a obedecerem de maneira u-
niforme a suas convenções pelo terror, alguma punição de maior

1616 BOBBIO, Norbeto. Dicionário de Política. 4ª edição. Brasília: UnB, 1992, p.662.

52
Formação Humanística

importância do que os benefícios que poderiam esperar-se da rup-


17
tura de seu compromisso.”

Portanto, o agir justo é o agir conforme o respeito de tudo aqui-


lo que é comando da Lei, a partir do fato de que elas foram promulga-
das pelo poder legitimamente constituído e capaz de pertencer a uma
estrutura de fazê-las respeitar-se sobre a própria individualidade ego-
cêntrica do sujeito humano.

1.13 Da equidade
A equidade não é tem um significado fácil em matéria filosófi-
co–juridica. Isto porque tal conceito apresenta uma natureza de mul-
tissignificados, o que não a impede de ser percebida como uma cláu-
sula geral, isto é, como uma hipótese legal de ampla significação e
repercussão que está presente em amplas e absolutas experiências
jurídicas do mundo ocidental, fundamentalmente no que diz respeito à
interpretação jurídica.
Conforme Francisco dos Santos Amaral Neto, ela é “excepcio-
nal por natureza, pois somente aplicável nas hipóteses legais previa-
mente estabelecidas, tem vários significados, conforme sua imediata
função”.
Ela acontece em diferentes formas:
a) Equidade interpretativa: quando o juízo, perante a dificul-
dade de estabelecer o sentido e o alcance de um objeto jurídico, por
exemplo, numa relação contratual a partir do objeto do contrato, se vê
obrigado a decidir a partir de um justo comedimento;
b) Equidade corretiva: é aquela que contempla o “equilíbrio
das prestações, reduzindo, por exemplo, o valor da cláusula penal”;

1717 HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Editora Abril, 1992.

53
c) Equidade quantificadora: é a que atua na hipótese de fixa-
ção de um quantum indenizatório;
d) Equidade integrativa: esta se consolida quando a equidade
é a própria fonte da integração
e) Equidade processual: também compreendida como um ju-
ízo de equidade, isto é, como um conjunto de princípios e diretivas
que o juiz utiliza de modo alternativo, desde (e quando) que a lei auto-
riza ou permite que as partes a requeiram, que é o que acontece nos
casos de arbitragem
Importa destacar que, de início, que a sedes matérias da equi-
dade dizem respeito ao problema de uma realização integral da Justi-
ça, o que significa completar que a Justiça e a equidade são conceitos
inseparáveis.
A justiça é uma virtude que consiste em dar a “cada um o que é
seu”. Ela representa basicamente uma preocupação com a igualdade e
com a proporcionalidade. No que diz respeito à igualdade ela implica
numa ‘correta’ aplicação do Direito ao fato concreto, de modo a evitar
como consequência o arbítrio. Correta no sentido de que não pode
representar uma simples vontade do juiz, pois que além de sua própria
condição de intérprete privilegiado está a necessidade a ele imposta de
buscar realizar a conexão entre a vontade do sujeito com a vontade da
Lei, através dos meios de fundamentação e motivação.
Por sua vez a segunda, a proporcionalidade diz respeito ao
princípio que busca tratar de modo igual os iguais e de modo desigual
os desiguais na proporção de sua própria desigualdade e de acordo
com as condições de seu mérito. As condições de mérito, aqui, não
significam apenas as qualidades intrínsecas dos sujeitos, mas antes, as
suas condições físicas, psíquicas e (ir)racionais dos mesmos enquanto
agentes de ações que ora estão ao encontro da Lei, ora num (de)(s)
encontro conflituoso.

54
Formação Humanística

Conforme destaca Francisco dos Santos


“A exigência de igualdade de todos perante a lei, sob o ponto de
vista formal, não pode desconhecer a necessidade de uma decisão
também materialmente justa, de acordo com as circunstâncias. En-
tra aqui o conceito de equidade como critério interpretativo, que
permite adequar a norma ao caso concreto e chegar à solução jus-
ta. Diz-se, por isso, ser a equidade a justiça do caso concreto. E a
decisão será eqüitativa quando levar em conta as especiais cir-
cunstâncias do caso decidido e a situação pessoal dos respectivos
interessados.”

Inegavelmente a origem filosófica do conceito de equidade se


encontra no cenário grego, onde o conceito de epieikeia queria signifi-
car aquilo que é reto, quer dizer, equilibrado, bem como temperador
das exigências da Justiça e, finalmente, aquilo ao qual o legislador
teria dito se estivesse presente. A equidade é, assim, uma manifesta-
ção de justiça e igualmente a possibilidade de sua superação na cria-
ção do direito para um caso concreto.
Contudo, esta tradicional referência à epieikeia como uma jus-
tiça do caso concreto não tem uma correspondência exata com a reali-
dade. Isto é assim se observarmos os textos de Aristóteles.
Mesmo nele o conceito de equitativo é antes um TOPOI, isto é,
um espaço tradicional e comum na filosofia do Direito, uma condição-
fórmula da escolástica medieval, ao qual se pressupôs resumir o pen-
samento aristotélico sobre ela, realizando, desta forma, uma lamentá-
vel deformação, pois que a justiça, princípio prático por natureza, não
se realiza a não ser nas ações concretas, o que quer dizer que ela não
pode ser encontrada em condições ideais de uma ideia.
A equidade, na concepção aristotélica, que era uma concepção
fundamentalmente subjetivista, decorria de uma ideia de justiça, e dela
era uma aplicação pontual. As heranças desta concepção não prospera-
ram mais à frente.
Isto é assim no caso do mundo Romano. O que se pode perce-
ber em tempos mais idos, nos períodos conhecidos como arcaico e

55
pré-clássico, conforme destaca Pierre Vida é que “a rigidez das nor-
mas de Direito, principalmente do ius civile, era eventualmente con-
trariada e posta de lado em nome da aequitas”, que era um modelo
ideal de Justiça, bem assim como princípio com capacidade para ins-
pirar o Direito.
Uma amostra dessa condição eram as exceptiones que ocorriam
nos meios judiciais onde o pretor concedia a equitatividade como
estratégia para paralisar as actiones. Com tal estratégia ele visava
tornar ineficazes as pretensões baseadas em normas do ius civile.
A relação entre o direito (ius) e a aequitas era antes de proxi-
midade e conexão, do que de sinonímia, como se vê numa conhecida
passagem de Celso, “ius est ars boni et aequi” (o “Direito é a arte do
bom e do eqüitativo”). Ao definir assim o ius ele quis chamar a aten-
ção para a circunstância de que o Direito era intimamente penetrado
pela aequitas, quer dizer que se tratava de um Direito justo.
Desta forma, não é possível de se afirmar que a equidade e a
justiça são elementos iguais, ao contrário, são institutos distintos,
ainda que formem um mesmo gênero.
Para Aristóteles, existe um gênero de justo que envolve a Lei e
a equidade que são espécies desse gênero. Dessa forma, a Lei e a e-
quidade são penetradas pela ideia do justo, num espaço de justiça, mas
com ela não podem ser confundidos, pois não raro ele constata a exis-
tência de algo que não é justo, ainda assim ser bom e vice-versa.
O legislador não é onisciente e, assim, pode constituir uma Lei
que apresente uma lacuna que vem a ferir exercício de direitos subje-
tivos. Esta lacuna, fruto da ação do legislador pode se ocorrer pela
negligência do próprio legislador sem que isso represente a sua vonta-
de ou, reconhecendo que a Lei não pode ser absoluta, por sua vontade
ele estatui princípios gerais que fomentam a existência da lacuna.
Conforme afirma Aristóteles,
“quando a lei dispõe de um modo geral e surge um caso parti-
cular, algo excepcional, vendo que o legislador se cala ou que
se enganou por ter falado em termos absolutos, é imprescindí-

56
Formação Humanística

vel corrigir-lhe e suprir-lhe o silêncio e falar em seu lugar,


como o mesmo faria se estivesse presente, isto é, fazendo a lei
como ele poderia ter feito, se pudesse ter ciência dos casos
particulares de que se trata.”18

E em relação ao homem equitativo afirma


“Evidencia-se também pelo que dissemos quem seja o homem
equitativo: o homem que escolhe e pratica tais atos, que não se
aferra aos seus direitos em mau sentido, mas tende a tomar
menos do que seu quinhão embora tenha a lei por si, é equitati-
vo; e essa disposição de caráter é a qualidade que é uma espé-
cie de justiça e não uma diferente disposição de caráter.” 19

Ora, em sendo a Lei sempre um condicionante geral fica à ela


atender às condições excepcionais que acabam ocorrendo a partir da
imensa variedade das relações humanas e de sua conseqüente comple-
xidade.
Para poder se manter numa perspectiva universal é que a justiça
se mantém próxima da equidade, pois este é o justo independente da
Lei escrita, na verdade, é uma condição de existência da própria Lei
em relação ao espaço social distinto e indeterminável. Com a espécie
de equidade, a justiça pode desdobrar-se sem perder a capacidade de
guardada a sua condição de universalidade, perceber o particular, o
específico. É aí que ainda se justifica a ideia aristotélica de um homem
equitativo, pois é nele que se inicia a possibilidade de existir justo
meio capaz de constituir a presença da justiça.
Outro exemplo importante sobre a reflexão sobre a justiça é a
elaborada por Gustav Radbruch que é importante mais pelo momento
histórico em que se desenvolveu, já que ele é pioneiro num olhar do
direito mais como objeto de cultura do que mesmo de uma ciência

18 ARISTÓTELES. Ética á Nicômaco. Brasília: UnB.


19 Idem.

57
programática. Assim, ele compreende o direito a partir de três aspec-
tos, atitudes:
a) Atitude que refere realidades jurídicas a valores, conside-
rando o direito como fato cultural (atitude essencial da Ciência do
Direito);
b) Atitude valorativa que considera o direito como valor de
cultura (atitude precípua da Filosofia do Direito);
c) Atitude superadora dos valores (atitude da Filosofia Religi-
osa do Direito).

No que diz respeito ao conceito de Justiça, Radbruch a percebe


tanto a partir de um conteúdo formal, bem como de um conteúdo uni-
versal. Como ela visa um a priori, um fim predisposto, a justiça esta-
ria dotada de um conteúdo essencialmente político. É neste sentido
que o tema da segurança social se reporta enquanto uma garantia co-
gente de um direito estável e certo.
A justiça está como um elemento da ideia de direito, ao qual
exprime uma condição ideal da relação entre os sujeitos. Para alcançar
essa expressão ideal ela se apresenta a partir de dois sentidos que são
divergentes:
a) O sentido da Retidão
b) O sentido da Igualdade

Quanto ao sentido da Retidão se deve compreendê-lo como


uma aplicação rigorosa e fidedigna da Lei, sendo que essa aplicação,
para se consubstanciar em absoluta legitimidade deve ser realizada por
quem de direito: o juiz. Desta forma, a Retidão é a justiça que se pode
medir por uma mensuração de um direito positivo, estatal. No que diz
respeito à Igualdade é a justiça na qual o direito cogente precisa ser
aferido.

58
Formação Humanística

Sem conseguir determinar um sentido uniforme para o conceito


de igualdade, compreende-a como um instituto que se liga a bens ou a
pessoas, podendo ser percebida como uma igualdade absoluta ou i-
gualdade relativa.
A igualdade de natureza absoluta está correspondida como no
exemplo que vê uma condição bastante rigorosa de relação: a do salá-
rio igual ao trabalho realizado. Por sua vez, a igualdade relativa pode
ser entendida, por exemplo, quando da aplicação da pena correspon-
dente a um diferente grau de culpa do criminoso.
Importa destacar que Radbruch apresenta o seu modelo de jus-
tiça, igualmente, a partir da teoria desenvolvida por Aristóteles, pois
aceita a ideia de uma justiça distributiva como espécie de uma justiça
primitiva e que é própria das relações de subordinação, isto é, de uma
justiça de direito público a qual as normas são postas na observância
da heteronímia, já que o sujeito se obriga a Lei que é (im)posta pelo
Estado. Para ele, finalmente, a justiça comutativa está definida a partir
de uma ideia que a afirma como sendo uma justiça de direito privado,
fundada nas próprias relações de coordenação, na qual são criadas
normas e convenções pelos próprios sujeitos em suas variadas rela-
ções a partir de um modelo determinado: o dos contratos em geral

1.14 Do direito, da moral e da ética


Este é um outro caminho bastante espinhoso ao pensamento ju-
rídico. Como compreender a relação entre direito e moral? São ele-
mentos indispensáveis à existência de um e de outro? O direito é sem-
pre moral?
Conforme destacou Miguel Reale,
“Encontramo-nos, agora, diante de um dos problemas mais difíceis
e também dos mais belos da Filosofia Jurídica, o da diferença en-
tre a Moral e o Direito (...). Nesta matéria devemos lembrar-nos de
que a verdade, muitas vezes, consiste em distinguir as coisas, sem
separá-las (...). Muitas são as teorias sobre as relações entre o Di-

59
reito e a Moral, mas é possível limitar-nos a alguns pontos de refe-
rência essenciais, inclusive pelo papel que desempenharam no
20
processo histórico.”

Para o pensamento grego, os elementos do direito e da moral


ainda que não venham a se constituir como institutos obrigatoriamente
relacionados, em algumas situações se aproximavam, outras não.
Isso era assim porque para Aristóteles o caminho da ética e o
caminho do direito não eram exatamente iguais, uma vez que o cami-
nho da ética é marcado pela predominância da virtude, enquanto o do
direito é marcado pela presença da norma. Desde a antiguidade clássi-
ca, a relação desses elementos é assim tumultuada, o que gera um
conjunto de teorias ao longo dos séculos, que ora buscam compreen-
der o direito e a moral como institutos que não podem prescindir um
do outro, ora aceitam a distinção afirmando que direito e moral são
elementos distintos. Podem ser resumidas a partir destas seguintes
teses:
 Os mandamentos jurídicos e morais coincidem (tese da iden-
tidade);
 As regras jurídicas constituem o núcleo das regras morais (te-
se do direito como mínimo ético);
 As regras morais constituem o núcleo do direito que compre-
ende muitas normas moralmente indiferentes (tese da moral
como mínimo jurídico);
 As regras jurídicas são aparentadas com as morais, sendo im-
possível criar e interpretar o direito sem levar em consideração
a moral (tese da conexão);
 Entre ambos os ordenamentos há plena e absoluta separação
(tese da separação).

20 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito.

60
Formação Humanística

Somam-se a estas teses da relação do direito com a moral, as


escolas que buscaram compreender a ética e os seus efeitos, quando
possível, no direito:
a) AS NATURALISTAS, derivando do positivismo, sem es-
quecer Bergson e sua Lebensphilosophie;
b) AS HISTORICISTAS, derivando do culturalismo, aí incluí-
das suas vertentes hermenêuticas (Dilthey, Heidegger, Gadamer e Paul
Ricoeur), fenomenológicas (Husserl e Max Scheler) e existencialistas
(Kierkegaard, Jaspers e Sartre);
c) A DESCONSTRUTIVISTA, em grande parte advindo de
Nietzsche e do niilismo em geral, bem como de Freud e sua psicologi-
a.
Portanto, o universo de discussões é bastante amplo e ainda in-
definido. Importa uma breve visão para os que podem enfrentar esse
tema numa questão dissertativa.
Por tudo que se diz ao longo desse debate já exaustivo, por um
lado o direito é algo que está paralelo à ética ou mesmo pertence ao
seu espaço; por outro lado, ainda que se possa reconhecer a presença
do direito no campo da ética, sua estruturação é distinta àquela que
inspira a moral.
Moral e direito são duas regulamentações que objetivam o e-
xercício das ações humanas, e neste sentido, eles se inspiram nos valo-
res éticos para tal regulamentação. Esta inspiração comum, contudo,
não evita que estes mesmos valores éticos que apontam para o espaço
do direito, para o espaço jurídico venham a ser diferentes daqueles que
apontam para o espaço da moral.
Os espaços do direito, apesar de suas distintas ‘escolas’ teóricas
e doutrinas significam valorização das funções da existência humana
na medida em que entranham essas funções de significados valorati-
vos a partir da presença da norma. E este aspecto é fundamental: a

61
presença de valores no direito está dada a partir da existência da nor-
ma que é a condição para determinar um agir humano, impondo ora
um comportamento permitido, ora um comportamento proibido na
medida da experiência do sujeito com outros sujeitos, isto é, no espaço
social.
As definições jurídicas são definições do dever-ser, que exalam
uma determinada legalidade sócio-histórico-cultural, representada
pelo sistema normativo que funda as mínimas condições de convivên-
cia, aproximando condições de existência de um valor justo ou afas-
tando outras tantas condições desta perspectiva de justiça.
A moral pode significar um campo determinado de condutas
aceitas pelo grupo social, mas sem força normativa, pois que represen-
ta um juízo de valor do grupo que se impõe, em geral, ao indivíduo,
mas sobre ele não carrega nenhum terror efetivo sobre a possibilidade
de perda de algum ‘bem’ (concreto ou abstrato), mas é um julgamento
que trabalha no nível da consciência do grupo e do sujeito enquanto
membro do grupo.
A MORAL consiste numa instância de justificação da própria
conduta segundo valores experimentados pelos sujeitos, enquanto
indivíduos e, enquanto sujeitos sociais. Seu centro de legitimidade
está na própria vida do homem a partir de suas experiências repetidas
até o momento destas se tornarem uma memória coletiva do grupo e
do indivíduo (Morus).
O DIREITO, por sua vez, consiste numa instância de justifica-
ção da própria conduta segundo normas constituídas legalmente no
direito positivo e que exalam a força do Estado em se fazer soberano
do agir sócio-político.
A MORAL valoriza a conduta nela mesma, plenamente, man-
tendo uma relação com a condição do sujeito, sem qualquer limitação.
Por sua vez, o DIREITO valoriza a conduta a partir de uma relação
relativa, a Lei, buscando alcançar os sujeitos e a sociedade como um
todo.

62
Formação Humanística

A MORAL tem na consciência o seu espaço fundamental, en-


quanto no caso do DIREITO tal espaço é o do campo social, onde
ocorre a relação sujeito-sujeito.
A MORAL valoriza as ações dos indivíduos em si mesmas, en-
quanto no caso do DIREITO há uma ponderação das relações dos
sujeitos com os outros sujeitos, isto é, a partir de uma organização da
vida social.
Finalmente, o ‘moralmente devido’ e o ‘juridicamente devido’
não podem ser sinônimos. Isso porque além de não serem conceitos
sinônimos tais termos, igualmente, não são co-extensivos.
Em muitos casos aquilo que é moralmente devido necessaria-
mente não será juridicamente devido. O ‘moralmente devido’ também
não pode ser compreendido como um hipônimo daquilo que é ‘juridi-
camente devido’, isto é, compreendendo o hipônimo como uma pala-
vra ou frase cujo alcance semântico (significado) é incluído dentro de
outra palavra. Moralmente devido não é extensão e nem está contido
no juridicamente devido e vice-versa.
Como o que se busca aqui é reunir algumas reflexões funda-
mentais, não se poderia deixar de lado a realizada por David Hume
sobre o conceito de moral e as suas implicações, a partir daí, do seu
conceito de justiça exposto em seu “TRATADO DA NATUREZA HU-
MANA”.
A reflexão que ele desenvolveu sobre tal conceito tem grande
relevância tanto no que diz respeito aos seus aspectos originais, quan-
to na influência que tem exercido sobre tantas outras concepções sobre
a moral.
Para ele, não se pode perceber no vocabulário da moral a au-
sência do conceito de utilidade. Moral e utilidade estão necessaria-
mente unidas, em tal grau e intensidade que é praticamente impossível
desassociá-las. Segundo ele
a) A benevolência é aprovada por causa da sua utilidade;

63
b) A justiça é aprovada por causa da sua utilidade;
c) A obediência política e a castidade são aprovadas por causa
da sua utilidade.

Isto é assim porque não se pode derivar um ‘deve’ de um ‘é’,


quer dizer, o ‘deve’ compreendido como um enunciado moral e o ‘é’
percebido como um fato. Para Hume, a moral é fruto de um sentimen-
to, uma expressão destes, não da razão, o que a justificaria a priori (o
que não acontece para ele), pois ela somente se justifica a posteriori,
quando o sentido da virtude moral se justifica como útil ao ser huma-
no.
Desta maneira a aprovação moral não é um juízo racional, mas
antes uma reação emotiva, pois as avaliações morais não são juízos
sobre fatos, ao contrário, na experiência observada elas são conse-
quência de uma reação emotiva.
Esta condição de expressar os nossos sentimentos através da
experiência que justifica a sua utilidade não é resultante de uma von-
tade divina ou da condição de criatura do homem e criador de Deus. A
ideia da moral, enquanto sentimento humano é completamente secu-
lar, sem nenhuma referência a uma vontade teologicamente expressa
em uma onisciência de Deus.
A moral e a justiça são resultantes desses sentimentos humanos
constituídos a partir de uma convenção social, quer dizer, como axio-
mas reconhecidos pelo imaginário de um determinado grupo humano.
Ele destaca, portanto, que as estratégias anteriores a fundamen-
tação filosófica da moral, bem assim igualmente do direito correspon-
deram a uma busca, na própria natureza, de alguns daqueles valores
morais ditos fundantes. O êxito desta empreitada pelos valores morais
fundantes estaria garantido a um exercício de um logos que nos capa-
citasse a perceber o bem em si a partir dessa realização dos sentimen-
tos.

64
Formação Humanística

Tal compreensão se constrói em Hume porque a razão humana,


em si, é incapaz de nos mostrar o bem em si, já que a nossa racionali-
dade é apenas calculadora, pragmática.
A razão desenvolve estratégias e meios adequados para poder
alcançar os fins que escolhemos, mas ela é inútil para definir quais são
estes mesmos fins que ao mesmo tempo queremos e devemos buscar.
Os sentimentos morais, assim, diversamente dos valores mo-
rais, são empiricamente observáveis, já que o ser humano sente culpa,
indignação, vergonha, orgulho, etc..O que ele segue, desta maneira, é
uma inspiração essencialmente aristotélica que propõe que realizemos
uma análise indutiva, quer dizer, que ao mesmo tempo que avalie os
sentimentos procure, também, compreender a moralidade que eles
engendram.
O que interessa para Hume não é a questão de “como desco-
brimos que uma coisa é boa em si?”, porém, a questão que o preocupa
é “como chegamos a chamar algo de bom?”
Esta problemática assinala que quanto à própria noção de bem
esta é consequência de uma construção cultural, cujo devir histórico é
traço do agir humano em coletividade. Em relação ao direito, ele des-
taca que a dúvida estaria posta na seguinte situação: se não existe um
direito propriamente natural, como chegamos a chamar de naturais
certas normas?
Mesmo destacando a limitação da razão como fonte dos senti-
mentos morais, Hume é sujeito de sua própria época, o que significa
afirmar que ele está inserido dentro do imaginário da modernidade,
marcadamente racionalista. Desta forma ele somente pode responder
àquela pergunta através do uso da razão.
Contudo, tinha claro que os defensores do racionalismo acaba-
ram por abusar do conceito de razão, uma vez que o estenderam a um
nível de absoluto análogo ao discurso teológico, uma vez que a razão
veio a ser percebida como um ente ao qual se poderia mesmo extrair
valores diretamente da sua essência.

65
O que ele não esquece, corretamente, é que a possibilidade de
qualquer escolha valorativa é também irracional. Isso é assim porque
não há finalidades e valores racionalmente bons (quer dizer, bons em
si) já que é irracionalmente um absurdo pensar em algo racionalmente
bom, uma vez que a racionalidade diz respeito somente aos fatos e não
aos valores.
A razão calcula probabilidades, faz deduções lógicas, mas é in-
capaz de fundar uma moral porque ela não estabelece fins, apenas
esclarece os meios.
Desta forma, não existe um objetivo racional para o homem.
Embora a razão seja inata ao homem, isso não significa que há normas
e valores inatos, ainda mais quando se trata de sentimentos morais.
Desta forma, para poder sustentar a sua posição no que diz res-
peito à relação da sua teoria com o humano, ele utiliza os conceitos de
agente moral, paciente e espectador, que já eram anteriores a ele uma
vez que presentes na teoria de alguns teóricos contemporâneos dele.
O primeiro, o agente moral é aquele que age, realiza e desem-
penha uma determinada ação, expressando o seu sentimento no curso
desta, sentimento que é intimo dele mesmo. Por sua vez, o paciente é
quem vem a sofrer o resultado do agir daquele, uma vez que esta con-
dição de emergência da presença da moral se dá numa relação de alte-
ridade. Contudo, para que se possa estabelecer definitivamente o juízo
moral se faz necessário um terceiro participante: o espectador.
Este é quem observa o agir do primeiro no segundo e, a partir
de seu próprio espaço de sentimentos desaprova ou aprova a ação
realizada. Uma vez que este traz uma faculdade moral que é uma con-
sequência da sua própria convivência no grupo social, é esta faculdade
que lhe permite identificar as qualidades morais classificadas com
aquilo que ele sente, como ‘boas’ ou mesmo ‘más’.
Afirma Adam Smith ao encontro da ideia de Hume que
“Deve-se advertir, entretanto, que por mais benéficas, de um lado,
ou por mais danosas, por outro, que se possam ser as ações ou in-

66
Formação Humanística

tenções da pessoa que age para a outra pessoa sobre quem (se
me permitem a expressão) se atua, se, no primeiro caso, parece
não haver propriedade nos motivos do agente, se não pudermos
compartilhar dos efeitos que influenciaram sua conduta, teremos
pouca simpatia com a gratidão da pessoa que recebe o benefício.
Ou se, no outro caso, parece não haver impropriedade nos motivos
do agente, e se, o contrário, os afetos que influenciaram sua con-
duta são tais que necessariamente deles compartilhamos, não te-
remos nenhuma simpatia com o ressentimento do sofredor.”

A ação moral se inicia desta maneira, quando o agir do agente


moral afeta com sua ação o espaço do paciente que é por sua vez ob-
servado e apreendido pelo espectador. Estas ações são motivadas por
uma condição essencial do agente moral, o seu caráter determinado
não pelo domínio da razão, mas por traços de natureza virtuosos ou
viciados.
Quanto ao traço que marca o caráter do ser humano, no que diz
respeito a sua polaridade positiva, o traço da virtude pode ser assim
segmentada:
a) Instintivos ou naturais.
b) Adquiridos ou artificiais.

Exemplos do primeiro grupo são a benevolência, humildade,


caridade e a generosidade; do segundo grupo estão a justiça, o cum-
primento de promessas, lealdade e a modéstia.
Ele conclui, portanto, que ‘todo ato’ que é resultado das virtu-
des naturais pode produzir um prazer através da simpatia no especta-
dor; enquanto que atos que surgem de virtudes artificiais produzem
prazer por meio de simpatia somente na medida em que elas refletem
um esquema geral de ações vantajosas.

67
Importa destacar o fato de que no grupo das virtudes artificiais
ele incluiu a justiça, ao qual deu motivo a uma série de críticas de
inúmeros teóricos. É assim porque o senso de justiça não é fundado
naturalmente, porém é artificialmente derivado da educação e das
convenções dos seres humanos.
Igualmente às teses de Thomas Hobbes e Puffendorf, ele des-
creveu que a sensação de justiça tem sua emergência em sociedades
‘primitivas’, que experimentam um estado de natureza e na busca
pelas melhores condições de sobrevivência evoluem para sociedades
mais complexas. Em sendo assim, esta presença da justiça que traz
condições de força para proteger o bem público é alcançada quando os
seres humanos admitem-na como regra.
Conforme destaca, são três as regras essenciais da justiça:
a) Estabilidade da posse;
b) Transferência por consentimento;
c) Cumprimento de promessas.
Em síntese fundamental, destaca James Fieser,
“Os governos emergem como instrumentos tanto para nos proteger
em nossos acordos como para nos forçar a fazer alguns acordos
para nosso objetivo comum. Exatamente como inventamos as re-
gras de justiça para ajudar a servir nosso desejo de viver numa so-
ciedade pacífica, nós também inventamos obrigações civis que
constituem políticas de obediência assim como leis internacionais
de diplomacia”.

1.15 Do direito, da moral e da ética a partir de uma breve


visão do positivismo
Para o positivismo, ideologia que ainda mantém sua força ana-
lítica e pragmática no universo jurídico (apesar das cada vez mais
consistentes críticas realizadas pelas teorias da hermenêutica jurídica e
da teoria sistêmica), ao fato-realidade não se deve realizar nenhum
sistema valorativo, mas sim analisá-lo enquanto fato ‘jurídico’, isto é,

68
Formação Humanística

conforme esteja regulado por todo um sistema de regras ordenadas e


coativas, isto é, como um direito posto.
Não faz o positivismo um juízo de valor sobre o fato-realidade.
O que se busca com isso é a exclusão de qualquer elemento jusnatura-
lista uma vez que não cabe discutir qualquer questão da ‘justeza’ que
o direito comporte.
Ao contrário, o que se admite é que a partir de uma teoria da
legalidade se pode analisar o direito de um ponto de vista legal, isto é,
encarar a lei posta como ela é, e não como ela deveria ser segundo
algum critério de justiça subjetivo que somente vem a atrapalhar o
fundamento da ciência jurídica. É esta concepção ideológica a máxima
de que ‘o direito é Lei’.
E quanto à moral? Onde se pode antever a moral a partir desta
ideologia positivista? O direito regula condutas descritas num sistema
de normas: é, portanto, um sistema lógico, ordenado e coerente. Não é
o mesmo com a moral.
Diz Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, quando ex-
põe o método da ciência positivista que
“(...) a ciência jurídica não tem de legitimar o direito somente tem
de conhecê-lo e descrevê-lo.”

Quer dizer: Kelsen limita de forma racional e pragmática o ob-


jeto da ciência do direito, qual seja, é o de conhecer e descrever o
direito-posto pela Lei legalmente promulgada. É a partir dessa com-
preensão que ele distingue o direito da moral, isto é, pela presença da
coercibilidade.
O Direito e a Moral não são distinguidos, essencialmente, a
partir da referência à produção ou à aplicação das suas normas. Isto
porque tanto o direito quanto a moral têm a mesma fonte de criação, a
mesma origem: o costume.

69
Só se pode alcançar alguma distinção do direito da moral quan-
do se concebe o primeiro como uma ordem de coação. Isto é assim
porque a sanção moral apenas consiste na aprovação de uma conduta
conforme normas não coativas que levam a uma desaprovação da
conduta contrária às normas aceitas pelo grupo e que são, fundamen-
talmente sem emprego de qualquer força física.
Para conseguir distinguir estes dois elementos, Kelsen se funda
na natureza mesma da moral, a sua relatividade:
“(...) os vários sistemas morais possuem valores diferentes, a única
coisa que eles têm em comum é o fato de serem normas sociais”.

O que ele busca confirmar com a relatividade da moral é a cer-


teza de que não há uma moral absoluta e sim um conjunto, um espaço
de sistemas os mais distintos que ainda por cima têm a natureza de
variar no espaço e no tempo.

Deste modo, é desta relatividade da moral que tira a consequência


de que a ordem jurídica pode ou não coincidir com a ordem moral.

Em última análise a distinção é fundada nesta relatividade da


moral, separando-se do direito que não apresenta esta mesma nature-
za. Direito e moral são normas sociais, porém uma é legislada, coativa
e formalmente instituída, enquanto a outra não. Para Kelsen a tese de
que o direito, segundo sua própria essência, é moral, isto é, de que
somente uma ordem social moral é, obrigatoriamente, uma ordem de
direito é rejeitada pela Teoria Pura do Direito, exatamente porque
enquanto a moral é relativa (varia no espaço e no tempo), o direito não
apresenta esta mesma relativização.
O método de Kelsen não leva em conta a ‘moralidade’ da lei;
isto é, ele não considera como direito uma norma que é desprovida de
sanção e que não leva em consideração uma norma que não obedece a
critérios de validade preestabelecidos e legalmente instituídos.

70
Formação Humanística

Aceitando a relativização da moral, outro autor importante a-


qui, Hart, parte da distinção da moral e do direito a partir daquilo que
ele afirma serem truísmos, isto é, aquelas verdades tão evidentes e que
estão fundadas numa lógica evidente.
Desta forma todo o sistema normativo, seja de natureza moral,
ou seja, de natureza jurídica, há de conformar-se e confirmar-se nestes
truísmos que objetivam, em última instância, a construção de um sis-
tema de abstenções recíprocas tornando as sanções possíveis e neces-
sárias enquanto uma necessidade natural de proteção do indivíduo,
bem assim da propriedade e de todas as relações sociais. Tais truísmos
são os seguintes:
a) O da vulnerabilidade humana: a moral e o direito devem
restringir a violência utilizada para matar ou causar ofensas corporais
(restringir significa conferir a um número seleto o poder oficial de
matar ou causar lesões corporais – esse é o sentido), justamente por-
que o homem é vulnerável, o uso da violência não pode ser generali-
zado;
b) O da igualdade aproximada: a igualdade aproximada en-
tre os seres humanos torna óbvia a necessidade de abstenções mútuas;
c) O do altruísmo limitado: “o homem é meio termo entre
‘anjo’ e ‘demônio’, portanto, deve haver abstenções recíprocas”;
d) O dos recursos limitados: os recursos naturais limitados
fundamentam a instituição da propriedade privada e a livre contrata-
ção;
e) O da compreensão e força de vontades limitadas: todos
os homens são tentados por vezes a preferir os seus próprios interesses
imediatos e, na ausência de uma organização especial para a sua des-
coberta e punição, muitos sucumbiram à tentação do “Estado-Sanção”,
a qual se baseia na máxima de que os que obedecerem voluntariamen-
te não são sacrificados como aqueles que não o obedecem.

71
O que fundamenta tal teoria que busca a distinção entre a moral
e o direito, portanto, são estes truísmos, estas verdades elementares,
gerais, absolutas.

1.16 A interpretação do direito


O tema da interpretação do direito é de fundamental importân-
cia, tanto nos limites da teoria jurídica, quanto no da prática. Este
exercício de interpretar a Lei tem sido motivo de inúmeras discussões,
pois confrontam as tradicionais formas de conhecer a Lei com novas
que reconhecem a sua imensa e ainda indefinida complexidade.
Sem a interpretação não há de se falar em ordem jurídica. Mas
apenas interpretar não é suficiente. Importa buscar compreender a Lei,
o sistema e o conjunto de relações que se estabelecem no tecido soci-
al.
Interpretar é um verbo que se mantém próximo da teoria domi-
nante, a do positivismo. Para essa teoria o pretenso ‘operador do di-
reito’ não traz para a norma positivada nada mais do que a sua capaci-
dade cognitiva. Isto é, ele não mantém com a lei uma relação de com-
plementaridade, oposição e surpresa-estranhamento. Aqui, importa
preservar mitologias de que a Lei se basta, de que é fruto de uma ra-
cionalidade matemática, objetiva e com intensa capacidade de esgo-
tamento do fato a ela submetido.
Contudo, apenas como referência, pois aqui não é o momento,
novas teorias (não tão novas assim) como a Hermenêutica Filosófica e
a Teoria Sistêmica têm construído todo um novo caminho quanto à
capacidade de se ‘conversar’ com a Lei e com a norma jurídica.
A interpretação é um procedimento complexo, que reúne uma
série de esforços de quem tem por pretensão aplicar a teoria (Lei) à
realidade (fato). Isso é assim porque o ordenamento jurídico precisa
para justificar a sua própria existência manter com o espaço social
uma constante relação.

72
Formação Humanística

Uma vez que o direito é um fenômeno social, sua incidência no


espaço da existência dos sujeitos precisa se dar através daquilo que lhe
permite impor aos próprios sujeitos aquilo que é proibido, aquilo que é
permitido e a respectiva sanção quando ocorre o desafio ao conjunto
de normas que buscam disciplinar a relação sujeito-sujeito.
Sem a interferência e atuação do homem, o discurso jurídico se
reduz a um universo teológico, numa revelação determinada pela fé
dos que são os escolhidos, o que vai de encontro ao próprio processo
que levou à consolidação do racionalismo.
As normas jurídicas não são, não devem e não podem ambicio-
nar ser proposições científicas onde se pode, utilizando uma determi-
nada metodologia, definir o falso do verdadeiro, o certo do errado.
Normas jurídicas são atos de vontade (do legislador), e são instrumen-
tos voltados para a ação, isto é, são meios para se (re)produzir o espa-
ço social a partir daqueles referenciais histórico-culturais daquilo que
uma determinada sociedade compreende como o mais justo possível.
O direito positivo é sempre e necessariamente compreendido a
partir de um duplo sentido ou dimensão: as normas jurídicas são cons-
tituídas e elaboradas a partir do estímulo de certas experiências e ne-
cessidades desenvolvidas pela sociedade, em épocas determinadas e
sob o signo dos valores culturais que se podem encontrar quando da
sua emergência. Elas são o conjunto das urgências de certas circuns-
tância.
Entretanto, há outra dimensão: estas mesmas normas jurídicas
que são resultantes de uma determinada urgência social, ao mesmo
tempo que são modeladas pela sociedade, modelam, por sua vez, esta
sociedade, pois elas têm a capacidade de (re)produzir neste mesmo
espaço social em que elas surgem, precisamente, determinados resul-
tados e não quaisquer resultados. Neste ponto importa destacar o papel
da capacidade de interpretação-compreensão da Lei e das normas
jurídicas.

73
Igualmente, a ordem jurídica positiva não se constitui somente
de normas gerais, tais como a Constituição, Leis Complementares,
Leis Ordinárias, regulamentos, etc., mas também de normas de natu-
reza particular, tais como aquelas presentes nos negócios jurídicos,
nos estatutos, nos programas, etc., e daquelas compreendidas como
normas individualizadas ou concretas, isto é, sentenças judiciais e
resoluções administrativas. Há, ainda, uma intensa complexidade
relacional entre estes níveis.
Buscam-se criar normas gerais para que se possa legitimar
normas individuais ou mesmo normas particulares, uma vez que as
Leis são sempre uma obra não concluída, o que obriga, aqui, a presen-
ça daquele que avoca o direito de interpretá-las-compreendê-las.
É importante assumir a posição de que tal intérprete, em sendo
o magistrado ou qualquer outro que dedica a sua função ao ordena-
mento jurídico, criam múltiplas capacidades para a Lei e para o orde-
namento jurídico como um todo, quando buscam realizar o caminho
entre estes e o espaço social. O que reforça este papel do intérprete,
mesmo e ainda no caso do magistrado é que o direito positivo, o orde-
namento jurídico não é somente constituído das Leis e das normas,
mas igualmente da função jurisdicional.
No que nos interessa, aqui, o magistrado é uma peça essencial e
indescartável do ordenamento jurídico positivo. Mesmo mantendo
com as Leis uma relação de intérprete, ele não pode abrir mão de bus-
car a compreensão, pois elas não se operam por si mesmas a partir de
uma mera existência codificada.
Não há um método infalível para a interpretação-compreensão
da Lei e das normas jurídicas. Ainda que a tradição do raciocínio lógi-
co-dedutivo tenha sido e seja, apesar de tudo, dominante. Para isso,
apresentou alguns métodos específicos:
a) Método Literal: é aquele que se mantém fixo no significa-
do das palavras da Lei, do regulamento ou da doutrina fundada na
jurisprudência

74
Formação Humanística

b) Método Subjetivo: é aquele que trata de indagar qual foi de


fato a intenção do legislador, aquilo que ele pensou-realizou com a
criação da Lei, isto é, o que ele queria dizer e alcançar quando a nor-
ma veio a ser elaborada
c) Método Subjetivo-Objetivo: é aquele que consiste na in-
dagação do que pretendia o Legislador, na sua vontade de realizar uma
norma a partir de um fato concreto decidido por ele
d) Método Objetivo: é o que busca encontrar a causa que está
na existência mesma da Lei, em suas ideias e nas consequências que
nela estão implicadas, baseando-se na premissa de a ação criadora
humana e, neste sentido, a própria ação do legislador, possui a virtude
de dotar o seu produto (a norma) de um sentido mais profundo e de
mais longo alcance do que era mesmo pretendido pelo legislador
e) Método Consuetudinário: é aquele que busca observar
como os sujeitos compreenderam efetivamente o sentido da Lei e das
normas jurídicas a partir da interpretação pragmática que deram quan-
do da sua aplicabilidade concreta
f) Método Analógico: é aquele que busca primeiro estabelecer
uma condição de semelhança entre uma situação fática que está já
enquadrada na Lei a outro que não está ainda positivado pela norma e,
assim, investigar os critérios que permitirão a aplicação de um mesmo
critério de interpretação a estas duas situações
g) Método da equidade: busca encontrar um ponto de equilí-
brio, proporcionalidade e igualdade na aplicação da Lei e da norma
jurídica
h) Método da referência aos princípios gerais de Direito: é
aquele que busca uma legitimidade supra-legal ao ordenamento jurídi-
co, já que se funda naqueles princípios categóricos da existência do
próprio homem.
Mesmo que se reconheça a intensa busca por metodologias es-
pecíficas e bem definidas pela tradição racionalista, atualmente se

75
observa um processo de superação da ideia de que o direito é uma
forma de ciência.
E, mesmo diante de uma insistente resistência positivista que
mantém os ditos ‘operadores’ do direito, que estão como reféns de um
paradigma interpretativo que idolatra a supremacia das regras lógico-
dedutivas em detrimento de princípios constitucionais, o atual orde-
namento jurídico brasileiro, fruto da s influências de um novo texto
nascido do processo constituinte de 1986-1988 procura romper com os
modelos de Estado liberal-individualista e de Direito (apegado exa-
cerbadamente ao positivismo e à dogmática jurídica), a fim de viabili-
zar parâmetros para a instauração de um novo paradigma interpretati-
vo, o qual pretende conferir à própria Constituição a condição de legi-
timação de toda a juridicidade.
Todavia, para tanto, deve a mesma ser compreendida e interpre-
tada, porquanto sua aplicação depende da realização, por parte dos
juízes, de um processo hermenêutico. Tal funcionalidade é corrobora-
da pelo Estado Democrático de Direito que pretendeu, com certa mar-
gem de sucesso introduzir novos valores perante o imaginário social-
jurídico, transferindo ao judiciário a linha de tensão que até seu adven-
to pairava entre legislativo e executivo e que representa o verdadeiro
caráter hermenêutico assumido pelo direito.
Cumpre lembrar que o mote central da hermenêutica relaciona-
se com a busca da compreensão de algo, ou seja, com o processo de
tornar compreensível um texto, um gesto, etc., aproximando através
da linguagem (que é condição de possibilidade) o sujeito cognoscente
(que não instaura, mas é instaurado) do objeto investigado.

A compreensão é aqui e sempre uma condição de possibilidade do


sujeito em si e no mundo, sem a qual é inevitável um perdimento
trágico da própria condição de linguagem.

76
Formação Humanística

É importante que se diga que a hermenêutica filosófica, quando


recepcionada no Direito confere ao texto constitucional um status
diferenciado, isto é, permite-nos percebê-lo enquanto subsistema e ao
ordenamento como subsistemas dentro daquele. É enquanto interpre-
tação jurídica que se pretende a aproximação de uma realidade social,
e é a mesma que fomenta a necessidade de se encontrar uma resposta
(constitucionalmente) adequada para cada caso concreto a partir do
desvelamento (alétheia) do ser (sentido) da/na Constituição e da atua-
ção jurisdicional na apreciação (compreensão) das microhistórias
(lide) submetidas a sua influência.
Trata-se, como afirma Moreira Filho ao destacar uma posição
de Castanheira Neves, de se decidir com vistas à pragmática função de
resolver o conflito ou problema presente na situação concreta que se
deve solucionar juridicamente.
Por assim, urge que se busque uma jurisdição mais apta, mais
próxima dos anseios populares em um Estado que se firme democráti-
co, e que possibilite a efetividade da Constituição como um espaço
simbólico de resgate dos direitos fundamentais.
É nesse viés que o poder judiciário, através do processo, assu-
me ou deveria assumir a missão de implementar os valores substanti-
vos da Constituição, fundamentalmente quando enfrenta a obrigação
de decidir o direito material, o que irá culminar em sua própria valida-
de e legitimidade diante do sistema. E isso somente é possível a partir
da concretização dos princípios constitucionais e da filtragem herme-
nêutico-constitucional pelo judiciário no fenômeno da aplicação do
direito. Tal tarefa vai ao encontro da possibilidade (atualmente uma
necessidade) em encontrar respostas adequadas em direito, e, por que
não, a todo o ordenamento jurídico.
É importante salientar que a temática da busca por respostas
corretas em direito se dá a partir da matriz teórica da ontologia fun-
damental heideggeriana que busca em suas obras através de uma com-
preensão fenomenológica, o desvelamento daquilo que ocultamos de

77
nós mesmos, bem assim o exercício de uma transcendência, alertando
que somos aquilo que nos tornamos a partir da tradição.
Toda essa reflexão ainda é agudizada pelas críticas que o méto-
do de interpretação pela lógica do razoável realiza ao sistema lógico-
dedutivo:
“(...) os textos antes de tudo. Interpretar é descobrir o sentido exato
e verdadeiro da lei. Não é modificar, inovar, mas declarar, reco-
21
nhecer.”

É desta percepção mecânica do pensamento em que a sentença


era considerada um ato meramente mecânico, isto é, um simples exer-
cício de lógica dedutiva, sem qualquer valor e distante da própria
complexidade do fato que o método de interpretação lógica do razoá-
vel busca superar e afastar do espaço jurídico.
Esta interpretação mecânica se utiliza de um silogismo que já
não se faz mais suficiente frente a este mundo de segunda modernida-
de: a Lei seria a premissa maior e a premissa menor seria o caso con-
creto, o fato, apresentado à apreciação e a conclusão, o decisum.
Através da teoria do método de interpretação da Lógica do Ra-
zoável, há toda uma incidência de pontos de vista estimativos, de cri-
térios de valorização, de pautas axiológicas que ainda se agregam aos
resultados da experiência histórico-cultural dos grupos sociais, inci-
dindo na forma como se pretende relacionar a Lei com o caso concre-
to.
O que se quer com tal método da Lógica Razoável é, num pri-
meiro momento, superar todos os outros métodos de interpretação,
que não conseguem realizar uma melhor relação do ordenamento jurí-
dico com a realidade social; e, num segundo momento, buscar garantir

21 In LÍDIA REIS DE ALMEIDA PRADO, Alguns aspectos sobre a lógica do razoável na inter-
pretação do direito, Apud BETRAIZ DI GIORGI; CELSO FERNANDO CAMPILONGO e FLÁVIO
PIOVESAN. Direito, Cidadania e Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p.62.

78
Formação Humanística

ao magistrado interpretar a Lei de modo e conforme um método que


lhe permitisse alcançar uma decisão mais justa entre tantas possíveis.
Esta possibilidade de alcançar uma decisão mais justa entre ou-
tras possíveis permite a compreensão dos sentidos e dos nexos entre
muitas e distintas significações dos problemas dos sujeitos sociais,
bem assim, políticos, econômicos e jurídicos, realizando valorações
estabelecidas a partir do próprio fato concreto.
A função jurisdicional se veria, desta forma, a enfrentar não um
fato ideal, uma realidade pura, mas, ao contrário, fatos determinados
pela existência concreta dos sujeitos no seu espaço social. O magistra-
do tem, aqui, a possibilidade de criar a compreensão da aplicação da
Lei e da norma ao fato, sem que isso signifique abandonar o espaço do
ordenamento jurídico positivado.
“Estas teorias que se afastam da silogística e da concepção
subjuntiva da decisão judicial fundamentam-se na prudência,
na equidade e no sentimento do justo, ubicados no equilíbrio
da dimensão humana, que se denomina de razoável, em oposi-
ção ao racional. As decisões jurídicas, antes de serem racio-
nais, segundo a perspectiva lógico-subsuntiva, são razoáveis. A
este novo pensamento, vinculado à dimensão humana é que se
denomina o logos do razoável.” 22
É Luís Recaséns Siches que se apresenta como o principal teó-
rico dessa corrente de interpretação, pois ele compreende o ser huma-
no como um ser de livre arbítrio que age dentro de um campo limitado
pelas circunstâncias histórico-físico-culturais que o cercam, ainda que
o sujeito tenha direito a uma margem independente para escolher aqui-
lo que melhor lhe convém e inclui-se aí, o ato jurisdicional.
Esta decisão jurisdicional, fundada nos termos dessa lógica será
RAZOÁVEL, não importando o quanto de racional poderá vir a ser
também, se tal solução razoável for a mais humana possível, quer

22 COELHO, Luiz Fernando. Lógica jurídica e interpretação das leis. Rio de Janeiro: Forense,
1981.

79
dizer, ao encontro não da Lei ou da norma jurídica, mas da própria
condição mundana dos sujeitos submetidos ao exercício jurisdicional.
É tão relevante esta observação que aqui o sentido de uma pa-
lavra ou frase, sobremaneira nas normas jurídicas, nunca será absolu-
to, definitivamente determinado e definido, nem completo em todas as
suas dimensões, pois tal significado da norma jurídica existe somente
na relação complexa que mantém com o sistema enquanto um todo e a
singularidade do fato concreto, do próprio problema humano ao qual
deve se realizar para ter existência.
Destarte, esta teoria parte de cinco grandes pressupostos que a
justificam epistemologicamente:
a) Mutabilidade social;
b) Diversidade de obstáculos para materializar um valor em
determinada situação;
c) Experiência quanto à adequação de meios para materializar
um valor;
d) Prioridades emergentes das necessidades sociais, em função
da sua historicidade;
e) Multiplicidade de valores.

1.17 Da hermenêutica filosófica


“A pessoa não cria a realidade natural. O mundo a precede como um
primeiro nível de alteridade, necessário para a sua existência. Porém
não capta o mundo de modo neutro e objetivo, não acha os sentidos
na realidade, nem encontra os significados predefinidos nas coisas.
Ela é produtora de sentidos para o mundo que sai a seu encontro
como alteridade irredutível, mas também como materialidade aberta
à criação. A representação implica de modo paradoxal e conflitante a
alteridade do mundo e a potencialidade criadora do imaginário”.
(Castor Ruiz)

80
Formação Humanística

O sistema jurídico, tradicionalmente aceita a tese de que o sen-


tido do fato jurídico já está todo ele determinado no conjunto da pró-
pria Lei, como se naquela estrutura gramatical os sentidos pudessem
estar presos de forma onipotente. Isso é um absurdo, até porque reduz
a capacidade de compreensão do sujeito quando este mito consolida a
Lei como uma verdade inquestionável e absoluta.
Há em torno dessa problemática uma tentativa cruel de se justi-
ficar que os atos jurídicos não são atos mecânicos e automáticos, e
nesse sentido arbitrários, uma vez que exige a Lei a demonstração da
“inexorável necessidade”, para utilizar a expressão de Rafael Conforti.
Buscando esconderijo nesse juízo justificante, muitos afirmam
que tal operação jurisdicional atinente à aplicação da medida judicial
ao fato é ato de inteligência não simplesmente volitivo, mas ato vincu-
lado a normas precisas, “limitativas de qualquer arbítrio perigoso,
representando a segurança da realização do direito objetivo”.
O absurdo legitimador presente nessa crença equivocada não
impede, contudo, o confronto com a realidade: a decisão judicial, em
grande sentido, ainda é o resultado do tradicional princípio da razão
positivista em que “operadores de direito privilegiados”, isto é, os
juízes, continuam na velha e pretensiosa, mas não menos violenta e
perigosa “racio” de acreditarem que primeiro decidem para somente
depois buscar justificar essas mesmas decisões.
Sob essa ótica está uma necessidade intrínseca de julgador a-
creditar que alcançou o caminho correto para a verdade, como se essa
fosse apenas o resultado de sua capacidade procedimental cognitiva
em aplicar métodos, técnicas e razões determinadas ao que ele acredita
ser o fato real, o sujeito real.
Tal racionalidade é uma práxis que gera uma distância tão ex-
pressiva em relação ao que verdadeiramente ocorre que somente se
pode compreender a sua sobrevida no fato de que os juízes “pensam
ter encontrado uma espécie de atalho no processo de conhecimento,
por meio do qual o imaginam poder ultrapassar o abismo gnosiológi-

81
co que tem angustiado a humanidade desde que o logos suplantou o
mito. Assim, acreditam – e esse pensamento é ainda dominante no
seio da comunidade jurídica – na possibilidade de alcançar uma cog-
nição livre de (inter) mediações”.
Obrigatório, nesse sentido, é buscar o rompimento com essa
‘racio’ que tem a pretensão de justificar a relação de um sujeito sobe-
rano com o objeto que acredita encontrar em sua plenitude.
Em se conseguindo fazer tal ruptura é que se poderá pretender
diminuir um discurso carregado de déficits em relação ao corpo social
e que, já de há muito mantém uma perigosa e cada vez mais consoli-
dada tensão com o espaço social justificada num desprezo pelo fato
concreto e pelo sujeito enquanto ser e não somente enquanto um sujei-
to (in)determinado na lei.
Podemos afirmar que o critério estabelecido pelo legislador pa-
ra definir as condições que justificam a maior parte de suas decisões é
exemplo típico do paradigma epistemológico da filosofia da consciên-
cia que está na base da crise que está corroendo o modo de interpretar
o Direito.
Crise essa que justifica a tensão que ameaça esvaziar ainda
mais a legitimidade do próprio Estado, já que esse não consegue supe-
rar a crítica que se faz a sua intrínseca (in) capacidade de impor um
discurso que não apenas autoritário, bem assim de elite.
Não há que se negar que a interpretação jurídica no Brasil, em
grande medida, não conseguiu assimilar essa outra revolução coperni-
cana que foi a viragem linguística que ocorreu em meados do século
XX na passagem da filosofia da consciência para a filosofia da lin-
guagem, isto é, da hermenêutica clássica (AUSLEGUNG) para a her-
menêutica filosófica (SINNGEBUNG).
A crise experimentada pela filosofia da consciência refere-se ao
tradicional paradigma da interpretação e que é fundamentalmente
utilizado pela hermenêutica jurídica brasileira.

82
Formação Humanística

Por esse paradigma, a hermenêutica jurídica está fundada na


lógica do sujeito soberano cognoscente, ou seja, na capacidade daque-
le que se apresenta como o “intérprete onisciente em desvelar a ver-
dade absoluta”, bem como na equivocada DICOTOMIA EXISTENTE
ENTRE SUJEITO-OBJETO e que é entendida pela filosofia da cons-
ciência como única forma de compreensão possível.
O ‘logos’ da filosofia aqui está na figura do sujeito soberano e
onipotente enquanto ser com capacidade fundante de todo o sentido e
de todo o significado, o que justifica, assim, a sua incapacidade para
entender o que se denominou de viragem linguística de cunho pragmá-
tico-ontológico, onde vigora a relação sujeito-sujeito.
Em realidade, a filosofia da consciência somente pode ser refra-
tária a essa mudança operada pela hermenêutica filosófica, pois essa
última entende algo como algo, e não tem a pretensão de entender a
coisa em si por si, sem o como no mundo, pois se trata de falar do
mundo e “de nos darmos conta de que não podemos falar do mundo a
não ser falando da linguagem”, e isso porque somente podemos falar
do mundo a não ser falando da linguagem porque estamos no mundo
como linguagem.
Pode-se constatar, igualmente, que a hermenêutica jurídica bra-
sileira, em sua grande maioria está baseada ainda nas matrizes da
hermenêutica clássica, que se preocupava sobremaneira com o méto-
do, isto é, no como se dará a compreensão da norma, e em todos os
efeitos em torno dessa, isto é, quais serão as regras e as condições para
que se possa verificar o seu sentido e o seu significado.
Tal matriz é, por assim dizer, um desnudamento do direito de
todo o contexto em que esse deve estar situado, o que não se pode
aceitar.
O direito não pode ser visto e compreendido sem a presença
dessa tradição que o situa, igualmente, enquanto tempo e enquanto
linguagem. E vê-lo enquanto linguagem que é nos permite entender
“porque quando conhecemos um fato histórico, quando conhecemos

83
um fato do universo da cultura, não conseguimos separar inteiramen-
te o sujeito do objeto de que tratamos”.
Essa hermenêutica clássica é também denominada metodológi-
ca, já que se pretende desenvolver enquanto análise da relação do
sujeito-objeto universal, e devido a isto, estabeleceu-se que ela deveria
apresentar um método/caminho para percorrer, e que nesse sentido
seria igualmente universal, pois que na revelação de uma lógica com
uma interpretação abrangente os sujeitos poderiam ser recuperados em
figuras modelares e de consenso.
Em boa parte é essa a certeza da maioria das decisões jurídicas
que ocorrem, uma vez que, na sentença, o juiz acredita ter interpretado
o que acredita ser o fato, isolado de toda a sua contextualidade e pron-
to para ser emoldurado nos limites de sua razão e do seu “livre” con-
vencimento.

Tem-se, dessa maneira, uma moldura previamente existente, isola-


da na parede, isto é, do mundo. Na tela em branco, se pintam cores,
quer dizer, os fatos, sem que se percebam os detalhes inferidos
pelo contexto na própria existência desses, como se a aplicação da
lei fosse, exclusivamente, o resultado do ato criador de um artista
privilegiado e distante do mundo.

A lei, então, vem a reboque nesse exercício generalista e justi-


fica a pretensão de tentar impor à individualidade uma resposta geral.
Na sentença, na forma em que ela se dá tradicionalmente, o tempo é
sequestrado e condenado ao isolamento, tanto do ser, quanto do mun-
do onde o ser acontece. Logo, a sentença perde o contato com o real
(idade), e isso acontece pelo fato de que tal decisão (sentença) é ela-
borada sem a mínima preocupação com o seu contexto, com a sua
tradição. Dela, o tempo também não é contexto, mas está congelado
naquele momento absoluto que o julgador acredita representar o con-
creto, o real.

84
Formação Humanística

A hermenêutica é reduzida dessa maneira a um simples método


da filosofia, consistindo em uma técnica, em um instrumento, em uma
mera arte de interpretação de textos.
E, quando a hermenêutica fica restrita a uma atividade de co-
nhecer determinados objetos, para então dominá-los, ela pode ser
denominada como uma hermenêutica instrumental ou epistemológica
onde seu exercício somente pode se dar a partir de uma concepção em
que o conhecimento é dual, centrado nessa dualidade equivocada de
sujeito-objeto, e onde os espaços desses dois elementos não se encon-
tram, mas sim se antagonizam, à espera do “observador capaz”, por-
que único e dono da possibilidade de inferir sentido.
É correto dizer, então, que a hermenêutica clássica busca extrair
o sentido, o significado, no momento mesmo em que decompõe as
partes de um todo, já que pretende entender o todo em espaços distin-
tos e possíveis de serem descontextualizados.
Portanto, parte da ideia de que o sentido é algo fixo, algo dado,
já determinado e que apenas está aguardando o momento para ser
desvelado, descoberto. O sentido estaria no mundo à espera daquele
ser soberano que o encontra e que acaba invertendo a relação interpre-
tação/compreensão, pois por essa perspectiva o ser soberano compre-
ende para depois interpretar.
Ele, o operador privilegiado aplica, portanto, o método em bus-
ca do (in) seguro ‘cômo apofântico’. É, assim, uma concepção total-
mente metafísica em busca de uma ideal essência do ser e que passa a
ser uma “(...) simples metodologia ao pretender desvincular seu pro-
cedimento interpretativo do plano histórico, político, moral, como se
sua validade e autenticidade fossem asseguradas pela pretensa postu-
ra de neutralidade com relação ao que interpreta.” 23
Aproximadamente na segunda metade do século XX, a herme-
nêutica clássica passou por uma mudança significativa, já que se deu
início a novas abordagens da hermenêutica como consciência da filo-

23 Lênio Streck.

85
sofia da linguagem, paradigma da hermenêutica filosófica. Este pro-
cesso foi denominado de giro linguístico, ou viragem linguística.
É reconhecida à filosofia da linguagem a atribuição do sentido,
e ao mesmo tempo em que identificado esse se atenta para o fato de
que ela carrega em si toda uma tradição em que o tempo está tanto
nela, quanto no mundo, bem como nos sujeitos, bem assim no sentido.
Conforme Luiz Rohden,
“A hermenêutica filosófica não se limita ao entendimento instru-
mental dos significados dados. Ao ultrapassar a exploração do
âmbito das respostas dadas – bem ou mal interpretadas –, ela se
abre às possibilidades inesgotáveis do sentido se instaurar através
de um procedimento que não se atém à letra, mas àquilo que na
história se chamou de espírito (Geist)”.

E essa virada linguística é efeito da reflexão em torno do tema


da possibilidade da interpretação. Responder a essa possibilidade,
plantada numa nova relação do sujeito-ser no mundo, significou a
apresentação de um fundamento ontológico da hermenêutica e que
corresponde tal fundamento à ontologia fundamental, e que tem na
linguagem o seu principal fundamento existencial.
É a linguagem, agora, não mais entendida e reduzida a um obje-
to-instrumento, a uma terceira coisa objetificante e que se deve inter-
por entre sujeito e objeto, mas percebida como uma condição de pos-
sibilidade para a formação do próprio conhecimento, pois que elimina
a velha percepção dicotômica entre sujeito-objeto. A hermenêutica
filosófica fundamenta a afirmativa de que estes não podem ser separa-
dos ou cindidos na reflexão que observa.
Definitivos, nesse processo que ocorre com a filosofia e com a
filosofia da linguagem a partir da emergência do círculo hermenêutico
são as obras dos filósofos Martin Heidegger e Hans-Georg Gadamer.

86
Formação Humanística

Indispensável e inegável é a contribuição de Heidegger para o


salto qualitativo da filosofia da linguagem e para a virada ontológica
que veio a sofrer o pensamento filosófico do século XX, todavia, co-
mo as dimensões desse trabalho buscam uma mera aproximação de
temas a partir dos elementos previstos no edital, escolhemos abordar
alguns fundamentos do pensamento de Gadamer.
Bem assim igualmente porque, a hermenêutica filosófica, é de
matriz gadameriana, ainda que se reconhecendo que essa tem por base
pressupostos heideggerianos, mas que se destaca por atribuir um sen-
tido ou dar um sentido ao tema que significa um passo à frente nessa
perspectiva da hermenêutica da linguagem.
Com Gadamer, na esteira da reflexão desenvolvida por Heideg-
ger, a situação interpretativa não é mais a de um sujeito soberano que
interroga e a de um objeto que é interrogado, exigindo-se, como antes
se defendia, daquele que o interroga a obrigação de construir métodos
racionais que tornem o caminho para se chegar ao objeto mais acessí-
vel, revelando-o numa perspectiva do ‘como apofântico’.
Em verdade, com esse autor, ocorre o contrário, pois aquele que
interroga descobre-se como sendo também o ser que é interrogado
pelo tema, pois no ‘como hermenêutico’ o ser no mundo é um estar
familiarizado com uma totalidade de significados, de linguagem.
Logo, o Dasein (o ser aí) é significado, pois para existir ele se
vê obrigado a se interpretar e nesse sentido o “ser aí” também está no
mundo na forma de um projeto, pois o “ser aí” se obriga a conjugar-se
em toda a sua existência, constantemente e indefinidamente.
No processo, o Dasein é e traz em si a tradição que se soma à-
quela do ser e que tem como efeito a historicidade fundamental para
buscar compreender o mundo a partir do olhar do ser que é olhado
pelo/no mundo.

87
O esquema clássico do sujeito-objeto cai por terra dessa forma por-
que o sujeito acaba tornando-se, igualmente, objeto, e esse um
“outro” sujeito. O método é apenas um desocultar, um desvelar de
um aspecto da coisa.

Por seu turno, a dialética hermenêutica se encarrega da revela-


ção das coisas no seu ser (por meio da linguisticidade da compreen-
são). E nesse processo, anota-se a presença de uma circularidade, uma
vez que o momento hermenêutico sujeito-sujeito acaba por estar situ-
ado no círculo da compreensão da linguagem.
E esse é um círculo espiral, com capacidade para engendrar um
novo, sem abandonar o tradicional, mas detendo condições para per-
ceber o novo como novo que traz certa tradição que o envolve sem
determiná-lo a uma prisão do tempo passado.
Tal círculo é um dos grandes desafios do pensamento gadame-
riano, pois olhar o novo sem que o olhar venha a ser determinado pelo
velho é dar à própria tradição a oportunidade de não se evaporar en-
quanto referência da linguagem mesma.
Afirma Custódio Luís S. de Almeida que
“Isso significa que compreender não é uma atividade linear da qual
simplesmente se exige a busca genética e teleológica do que se
quer compreender, mas que requer a presença no mundo do ente
que compreende. A circularidade é o núcleo da compreensão pos-
sível que transpõe qualquer noção fixa de começo e fim e se situa
no centro da linguagem – no presente; isso significa que o princípio
e o fim sempre podem ser referidos, em qualquer esforço de com-
preensão.”

Nesse sentido, a linguagem é a totalidade no interior da qual o


ser, isto é, o DASEIN se localiza e age.

88
Formação Humanística

Correto igualmente afirmar que o acesso ao mundo do ser se dá


pela linguagem, pois o ser está no mundo para dar significação ao ente
que é sempre ente de um ser. Na ‘presentação’ do ente, o ser é sempre
histórico, pois compreender historicamente é realizar uma mediação,
quer dizer, é reanimar-se em um contexto entre conceitos do tempo
passado e o pensamento/reflexão próprio do presente.
A compreensão não se constitui em mais um processo subjetivo
do ser em face de um objeto, mas sim como um modo- de -ser do
próprio sujeito-homem.
A apropriação desta totalidade linguística é possível pela inter-
pretação. “Ser que pode ser compreendido é linguagem” – este é o nó
górdio do pensamento de Gadamer e que quer dizer que não há senti-
do em perguntar sobre a efetiva existência do ser, pois somente tem
algum sentido perguntar acerca do ser enquanto interpreta-
do/sentido/compreendido num mundo que é linguagem.
Por meio da linguagem é possível a compreensão, que traz em
si a possibilidade de simbolizando-se, apresentar um real. E tudo aqui-
lo que se encontra fora do meu mundo de pré-juízos somente é com-
preensível através da linguagem, instrumento privilegiado para com-
por a realidade do ser aí no mundo.
Desta maneira, entre o ser aí e o mundo estão as palavras, con-
textualizadas em seu devir histórico e que detém o controle da relação
intersubjetiva do ser no mundo, do Dasein.
É assim que tudo aquilo que é dito, na verdade, é ordenado por
um significado mais lato com base em aspectos que não dominamos
totalmente, mas sim experimentamos historicamente.
E esse dito está no ser e no mundo, compondo o imaginário em
que conceitos e palavras emergem e estão relacionados com o mundo
e com o ser. Isso acontece “porque já sempre se interpôs entre a lin-
guagem com que nos encaminhamos para os objetos e os objetos, todo
o mundo da cultura, todo o mundo da história”. E é nessa relação que
se pode introduzir a figura da interpretação, pois na (in)capacidade das

89
estruturas lógicas esgotarem todo o nosso modo de ser conhecedor das
coisas e dos objetos é que se justifica a ação da interpretação.
Nesse sentido, Ernildo Stein coloca que
“a interpretação é hermenêutica, é compreensão, portanto, o fato
de nós não termos simplesmente o acesso aos objetos via signifi-
cado, mas via significado num mundo histórico determinado, numa
cultura determinada, faz com que a estrutura lógica nunca dê conta
inteira do conhecimento, de que não podemos dar conta pela aná-
lise de todo o processo do conhecimento. Ao lado da forma lógica
dos processos cognitivos precisamos colocar a interpretação”.

Logo, a mais pura reposição de sentido exige como pano de


fundo algo que nunca é totalmente objetificável. Não possuímos nem
controlamos a linguagem, antes a aprendemos e nos adaptamos às
suas regras.
Assim, porque pertencemos à linguagem e o texto pertence à
linguagem, torna-se possível um horizonte comum que Gadamer de-
nomina de fusão de horizontes, pois ocorre devido à consciência histo-
ricamente operativa. E essa somente pode se fazer reconhecer quando
se realiza a interpretação que resultado da compreensão ocupa os es-
paços da tensão que surge entre o ser no mundo e a linguagem.
Conforme já destacou Gadamer, tudo, na medida em que tenta
fazer-se compreender e ser compreendido se divide, separa o dito do
não-dito, o passado do presente; destarte, a auto-apresentação e o tor-
nar-se compreensível são características universais.
A linguagem, dessa forma, possui um caráter especulativo que
é finito e histórico, já ela põe em jogo uma totalidade de sentido sem
que possa dizê-lo totalmente.
“O ente que compreende é aquele marcado estruturalmente pela
possibilidade de compreender. Não há projeto de compreensão
possível sem a possibilidade como nomeação ontológica. Os acon-

90
Formação Humanística

tecimentos da vida, o conhecimento do mundo, a formação de juí-


zos linguísticos e tudo o mais, que pode vir-a-ser têm como ante-
cedente necessário a possibilidade de ser”

Reforce-se que no tocante à interpretação temos que ela sempre


trabalha com um a priori, isto é, com conceitos prévios, cuja tendên-
cia é a de serem substituídos por outros mais adequados, progressiva-
mente, já que ao pré-juízo se soma a relação com o contexto.
Não existe, portanto, uma visão ou compreensão pura da histó-
ria que prescinda de alguma referência ao presente. O a priori é a
certeza de que o projeto da interpretação não ocorre no procedimento
de uma dualidade entre sujeito e objeto, ao contrário, reconhecer a
possibilidade de pré-compreensão presente no ser é reconhecer que na
busca dessa significação ele traz em si a sua tradição que o obriga a
complementar-se com tudo aquilo que busca comprometer-se, isto é,
que busca compreender.
O presente é somente visto e compreendido através das inten-
ções, modos de ver e preconceitos que o passado transmitiu. Ele está,
portanto, em uma relação constante de dialética com aquele.
O passado constitui um (in) fluxo em que nos movemos e de
onde partimos e participamos em todo o longo ato de compreensão. E
com a tradição, conceito precioso que foi resgatado por Gadamer está
o algo em que nos situamos e pelo qual existimos, pois ela representa
uma entrega, uma transmissão daquele patrimônio cultural/linguístico
que identifica o ser no mundo e que pode ser por ele identificado.
O ato de interpretar, deste modo, consiste em uma produção de
um novo sentido, mediante essa adição de sentido que o intérprete lhe
dá e que lhe é dado quando realiza a compreensão. Assim a adição de
sentido decorre da consciência histórico-efeitual na qual o intérprete
está possuído e que igualmente o possui, e não de uma pretensão fun-
dante de um ser soberano órfão dessa tradição elementar.

91
Firma-se, por conseguinte, uma certeza: a de que não existe
uma situação hermenêutica, uma consciência hermenêutica se não
existir uma consciência histórico-efeitual, isto é, uma consciência de
que o ser está determinado pelos fatos históricos ao mesmo tempo em
que estes são por aquele reconhecidos como agentes presentes em sua
própria tradição.
Assim, o ser é sempre ser mundano, no sentido de ser no mun-
do, com uma constante presença no mundo, quer dizer, com uma par-
ticipação efetiva do ser na história.
O mundo ao qual o ser está aí lhe pertence e o determina, desde
o momento em que o ser olha, escuta e experimenta. O mundo é um
mundo de possibilidades ao ser no mundo. Se assim não fosse, ele
seria um ser (do) ente, isto é, isolado de tudo aquilo que lhe é referên-
cia e onde ele reconhece e é reconhecido.
Não pode o homem, assim, colocar-se acima da relatividade da
história, e a compreensão se apresenta obrigatoriamente nas três mo-
dalidades da temporalidade: passado, presente e futuro. Para a com-
preensão histórica isto quer dizer que o passado nunca pode ser visto
como objeto no passado, separando-se totalmente do sujeito no pre-
sente, bem como do futuro.
É nessa linha temporal que surge a historicidade da compreen-
são, pois que a historicidade é uma a temporalidade intrínseca da pró-
pria compreensão na medida em que o mundo é visto e se vê em ter-
mos de passado, presente e futuro, e nesse sentido é tradição, é tempo
e é contexto, todos esses, elementos existenciais para o projeto de
constituir-se do homem.
Diz Stein que,
“o homem tem muitos existenciais. A faticidade, a possibilidade, a
compreensão são alguns desses existenciais. Trata-se, portanto,
de analisar a estrutura deste compreender. Como diz a definição, o
compreender não é só um compreender abstrato de si mesmo.
Mas é um compreender de suas possibilidades.”

92
Formação Humanística

Desta forma, o ser é existencial e não como queria a hermenêu-


tica clássica um ser categorial, pois o ser aí é o ser homem conjugado
na sua existência temporal, e não como mera categoria de análise de
uma metodologia metafísica, enfim, um ser descolado do mundo.
Na presença dessa relatividade da história em suas três linhas
que se inter-relacionam é disponível, portanto, a realização de uma
gama incomensurável de possibilidades para constituir a compreensão
e isso se dá no ser no mundo e na própria linguagem que sofre efeitos
constantes desse existencial.
Portanto, não é errado se afirmar que o tempo é o nome do ser,
e que esse é submetido a uma constante transformação em nome de
sua temporalidade intrínseca. E é nesse reconhecimento/submissão ao
tempo que está fundada a possibilidade de sua existência.
Como consequência da historicidade da compreensão se tem,
primeiramente, a questão do juízo prévio, da presença da pré-
compreensão no qual a compreensão só alcança suas verdadeiras pos-
sibilidades quando as opiniões prévias com as que se inicia não são
arbitrárias.
O intérprete, nesse sentido, deve dirigir-se ao texto examinando
a legitimação destas opiniões quanto à sua origem e validade.
Premente reconhecer que, mais uma vez, é Gadamer quem re-
cupera esse conceito de pré-juízos (assim como o de autoridade e
tradição), pois o mesmo havia sido relegado a um sentido potencial-
mente negativo na tradição clássico-iluminista, fruto da influência de
uma racionalidade kantiana, que em muitos sentidos, engessou a pró-
pria razão.
Agora, reconhecendo-se à temporalidade o papel de existência
condicional no ser e na linguagem é imprescindível dar-se espaço a
tudo aquilo que o ser traz em si, enquanto componente histórico de
seu próprio devir. O pré-juízo já é, assim, a linguagem em exercício
no próprio ser aí.

93
Não há nenhuma obrigação para que o ser venha a esquecer a-
quelas opiniões e percepções prévias que ele carrega já desde sempre,
pois ao se realizar a interpretação o que se exige é um estar atento à
opinião do(s) outro(s) ou do(s) texto(s) e ao entrechoque resultante das
historicidades que convergem em busca de uma significação.
Inexorável para essa disposição do ser que haja uma abertura
com certa dose de elasticidade. Portanto, é necessário que se coloque a
opinião que é encontrada no outro ou que se encontra no texto em
contato com alguma(s) categoria(s) dessa relação com o conjunto de
opiniões próprias, isto é, que um se coloque em certa relação com as
do outro.
Aquele que pretende compreender deve estar disposto a abrir-se
ao que o outro ou o texto pode vir a lhe dizer, não esquecendo é claro,
de considerar aquelas suas opiniões prévias, ao mesmo tempo em que
se mantém favorável/aberto ao fato de que esgotar o outro ou o texto
não é possível devido aos limites que eles encerram, sendo isso uma
consequência da sua particular contextualização.
Tanto o outro, quanto o texto trazem uma fala, que é limitada
na própria existência do texto, mas que pode se comunicar com o ser
que exerce sobre ele alguma forma de interpretação. A interpretação,
por sua vez, já traz a tensão possibilidade/limitação do próprio ser em
relação ao outro e ao texto, mas que sem esquecer os seus pré-juízos, é
a base para a convergência do enlace linguístico.
Já no tocante à questão da distância temporal, é importante sali-
entar que se trata do reconhecimento da distância de tempo como uma
possibilidade positiva e produtiva de compreender. Somente com o
tempo se fará com o que seja significativo se destaque daquilo que não
o é.
Isso porque é a função do tempo eliminar aquilo que não é es-
sencial, deixando que o verdadeiro significado oculto na coisa se torne
evidente. Só com o passar do tempo pode-se alcançar o que diz o ou-
tro, bem como o texto.

94
Formação Humanística

É o tempo que desmascara os labirintos de tudo aquilo que não


foi dito, não um método qualquer em busca do exercício do poder
fundante de um ser soberano.
E, a partir desse momento, surge outra consequência: o proble-
ma da aplicação, que se constitui na função da interpretação na relação
de um texto com o presente, e que acabou por ser, durante muito tem-
po, bastante desprezada na hermenêutica histórica e literária, enfim, na
hermenêutica clássica.
O problema hermenêutico estava, assim, dividido em três ní-
veis:
a) subtilitas intelligendi (compreensão),
b) subtilitas explicandi (interpretação),
c) subtilitas applicandi (aplicação).

Recebem o nome de subtilitas porque se compreendem menos


como um método sobre o qual se dispõe do que como um fazer que
requer uma particular finura de espírito (uma sutileza).
Assim, em relação à hermenêutica clássica o problema herme-
nêutico estava centrado na figura dos dois elementos tradicionais, isto
é, na compreensão e na interpretação. Tanto em Schleiermacher, em
Droysen ou em Dilthey, para citar os principais nomes da hermenêuti-
ca romântica, o que se afirma é a unidade interna dos dois primeiros –
compreender é sempre interpretar, e a interpretação é a forma explícita
da compreensão. A concentração da análise em torno desses conceitos
trouxe como consequência a completa desconexão do terceiro momen-
to, o da aplicação no contexto da hermenêutica.
Gadamer, ao contrário, recupera o conceito aristotélico de apli-
cação como problema hermenêutico fundamental, pois considera o
conceito de aplicação como essencial ao momento do processo her-
menêutico, assim como a interpretação e a compreensão de modo que
a aplicação deve estar inserida no cerne do processo hermenêutico.

95
“Exatamente porque esse conceito traz à tona a dificuldade que deve
ser superada em cada situação concreta nova, na qual se quer com-
preender algo. A ‘aplicação’ é uma exigência hermenêutica que pro-
voca o movimento contínuo no círculo da compreensão”.
A interpretação de um texto, de uma Lei, de uma mensagem ou
de uma obra do passado não se dá, portanto, apenas como o resultado
simplificado de uma aplicação metódica de técnicas, pois ela não é um
invólucro que guarda um sentido que pode ser simplesmente reprodu-
zido. Trata-se de algo que se abre ao ser intérprete como indetermina-
ção e que precisa do instituto da aplicação para uma situação concreta.
Afirma Gadamer a respeito que,
“a aplicação (Applikation) não quer dizer aplicação ulterior de uma
generalidade dada, voltada primeira para si mesma, como a um
caso concreto; mas ela é a primeira verdadeira compreensão da
generalidade que cada texto dado vem a ser para nós. A compre-
ensão é uma forma de efetivação e se sabe a si mesma como efe-
tiva”.

Na compreensão sempre ocorre algo como uma aplicação do


texto a ser compreendido à situação atual do intérprete que sobre a-
quele lança o seu olhar. Na interpretação histórica a compreensão
deve desempenhar a função de aplicação ao fato de que se expressa e
que conscientemente faz com que aceitemos o significado incluso do
texto, construindo, portanto, um caminho sobre a distância temporal
que separa o intérprete do texto; assim, ultrapassa por meio da aplica-
ção, a alienação de significados que pode ocorrer no texto.
Nesse contexto, a consciência verdadeiramente histórica, para
Gadamer, não vê o presente como o ponto culminante da verdade, mas
se mantém aberta à exigência de que a verdade da obra pode fazer ao
ser intérprete. Aqui, nessa concepção, insere-se o conceito fundamen-
tal da experiência, e que pode ser compreendido como uma estrutura
da consciência histórico-efeitual.

96
Formação Humanística

Esse conceito de experiência encontra em Gadamer um trata-


mento privilegiado, pois a experiência é a justificativa para o estatuto
histórico da hermenêutica.
A experiência deixa antever que qualquer compreensão não tem
o poder de esgotar o sentido de um texto ou de um algo como algo.
Isso porque não é possível realizar mais de uma vez a mesma experi-
ência, não porque se pode perder o objeto observado pelo objeto
mesmo, mas porque se pode perder o objeto observado uma vez que o
ser que o observa já não é mais o mesmo que iniciou tal projeto.
Desta maneira a experiência para Gadamer é uma acumulação
da compreensão não objetificada e largamente não objetificável a que
muitas vezes chamamos sabedoria/saber.
A experiência ensina-nos a conhecer que não somos senhores
do tempo. O homem experiente é aquele que conhece os limites de
toda a antecipação, a insegurança de todos os planos humanos. O ho-
mem experiente não é rígido nem dogmático.
É insegurança porque não se pode afirmar que toda experiência
se inicia com uma pergunta, mas que para ser verdadeiramente uma
pergunta não pode já trazer em si uma resposta, pois essa já seria uma
antecipação, o que permitiria a dualidade clássica do sujeito-objeto.
A experiência é uma abertura constante ao novo, visto enquanto
novo, mas sem quebrar a dívida que todo ser tem com a sua própria
temporalidade.
E é aqui que Gadamer mantém vivo o diálogo que acontece a
partir dessa experiência que abre as portas ao ser no mundo. O diálogo
é sempre um diálogo com o outro, com o texto e com o próprio ser,
pois ao interpelar o mundo esse ao mesmo tempo também interpela.
É assim que o ser no mundo se desconstrói para se reconstruir
na linguagem, ainda que tal processo carregue em si certo traço de
resistência positivista, vez que tal processo não é absoluto.

97
Ao encontrar a observação, a experiência, o ser tem o seu pa-
trimônio de pré-juízos colocados em suspenso, colocados em jogo, o
que cria todo um espaço de insegurança que permite a busca pelo
significado.
Diz Custódio de Almeida que,
“podemos entender, a partir desse ponto, que o encontro com o
outro, com o estranho conduz o intérprete a uma tríplice revelação:
ele se revela para si mesmo (através dos seus próprios preconcei-
tos); o outro (aquilo pelo qual o intérprete se pergunta) se manifes-
ta para ele, e a tradição se mostra como o lugar comum do intér-
prete e do interpretado. Essas três instâncias formam o círculo
hermenêutico; todas são igualmente necessárias à compreensão;
nelas imbricam-se passado, presente e futuro.”

Finalmente, é através da e pela experiência que podemos buscar


alcançar o futuro que esperamos, e considerando que a experiência
passada nos ensina como todos os planos são incompletos, encontra-
se, portanto, presente a estrutura da historicidade.
Experiência é linguagem, é a relação do ser-mundo-ser. É o
projeto do Dasein acontecendo na temporalidade do ser aí no mundo.
Fundamental para esse projeto é deixar falar o texto, a obra, o
algo como algo, mantendo-se o leitor em constante abertura ao texto, a
obra, ao algo como algo para que possa vir a ser um sujeito pleno de
direito, mais do que ser apenas como um objeto. Essa estrutura ser-
mundo-ser é dialética, e como já se afirmou, sugere para a sua exis-
tência uma relação de diálogo. Assim, a interpretação/compre-
ensão/aplicação é sempre um evento histórico, dialético e lingüístico.
Na teoria hermenêutica do romantismo de Schleiermacher e
Dilthey, “se pensava a compreensão como reprodução de uma produ-
ção originária. Por isso, podia-se colocar-se sob a divisa de que é
possível se compreender um autor melhor do que ele mesmo se com-
preendia”, mas na perspectiva da hermenêutica de Gadamer, a com-

98
Formação Humanística

preensão é mostrada como compreendendo um modo diferente, isto é,


todo o intérprete compreende algo sempre a partir de seus próprios
pré-juízos, quando, ao tomar distância deles, projeta-os produtivamen-
te, sendo por essa distância igualmente projetada naquela relação ser-
mundo-ser.
Assim, se pode afirmar que toda nova produção é nova e não
apenas uma simples reprodução inexorável de um olhar velho sobre o
novo.
Por conseguinte, a hermenêutica é a percepção de uma fenome-
nologia e de uma ontologia da compreensão, pois essa somente pode
se dar no mundo e no próprio ser aí que está no mundo.
E a compreensão se constitui, fundamentalmente, com os insti-
tutos da participação e da abertura, e não com a manipulação e o con-
trole do objeto interpretado. A compreensão se dá com o instituto da
experiência, da presença nessa de uma tradição, e não com o simples
produzir de conhecimento. Ela é resultado de uma dialética, em con-
traposição àquela tradicional metodologia positivista e metafísica.
Em sendo assim, é obrigatório declarar que o escopo da herme-
nêutica filosófica não é estipular um conjunto de regras para uma
compreensão objetiva/objetificada válida, mas sim conceber a própria
compreensão num espaço o mais amplo possível já que ela retorna ao
próprio ser no mundo.
Com Gadamer, a hermenêutica libertou-se da tendência que
pretendia reduzi-la à figura de uma deontologia presente num método
dominante de aplicação à leitura do(s) texto(s), do(s) outro(s).
Considerável, entretanto, é a sobrevida daquela hermenêutica
clássica, e que justifica, em grande medida, as limitações porque passa
o discurso jurídico, que se mantém agarrado ainda à figura de uma
hermenêutica que acredita realizar a mais completa exegese do texto,
já que entende o seu papel de exegese a partir da figura dualista sujei-
to-objeto.

99
E, como já se disse, essa hermenêutica clássica, mesmo com fô-
lego para resistir à crítica, não consegue mais se apresentar legítima
em relação aos conflitos que envolvem os sujeitos em seu espaço so-
cial, já que ela busca uma verdade absoluta, a partir de um ser sobera-
no e fundante do significado e do sentido.
Bastante comum, assim, é a posição da maior parte dos julga-
dores que acreditam fielmente que primeiro tomam a decisão, que
resulta numa aplicação da lei, em sua manifestação geral, para em
seguida fundamentar tal decisão sob um olhar superficial do caso
concreto.
Em relação a esse procedimento estandardizado, e que deve ser
enfrentado por todos os que sofrem com essa “sagrada” decisão, bem
como aqueles que se pretendem a uma outra hermenêutica, Lênio
Streck afirma que
“Na verdade, aquilo que chamam de ‘fundamento’ nada mais é do
que a explicitação de um standard (vetor) de racionalidade de se-
gundo nível, de caráter argumentativo. Ora, pretender alçar a retó-
rica e/ou a argumentação a um status de ‘condição de possibilida-
de’ do processo interpretativo nada mais é do que uma derivação
da (velha) dualidade metafísica que sustenta a busca da verdade a
partir da revolução moderna do método, no momento em que o
método passa a representar o modo de resolução do problema do
conhecimento, problemática que ex-surge com a passagem da fi-
losofia como problema do conhecimento para uma metafísica do
conhecimento.”

Fundamental é resgatar a presença da hermenêutica filosófica


que pode encontrar o estímulo necessário para superar os desafios
desse mundo complexo que observa o ser, ainda mais no espaço jurí-
dico. Até porque é essa hermenêutica que mais se coaduna com o
paradigma da linguagem, e nesse sentido, está na linguagem o espaço
para que o próprio discurso jurídico reencontre o ser que, infelizmen-

100
Formação Humanística

te, ainda é somente percebido enquanto reflexo de um modelo pronto,


isto é, enquanto sujeito da lei e não enquanto sujeito a partir de seu
espaço no mundo real.
Profunda é a certeza de que a interpretação jurídica, enfim, o
discurso jurídico como um todo, vive uma crise mais aguda, até por-
que presente em nossa própria observação no momento presente.
Ao mesmo tempo em que se reconhece tal situação, é possível
observar o aumento da elaboração da formulação de leis que, total-
mente desvinculadas do contexto histórico (e constitucional) em que
se encontram, aumentam a distância e o esvaziamento do direito na-
quilo que “ele tem/deve ter de transformador”.
Destarte, se coloca este olhar de uma nova compreensão jurídi-
ca que desvela o confronto entre a prática tradicional de elaborar a lei
e interpretá-la, com a força da hermenêutica, o que permitirá que ve-
nhamos a enfrentar a crítica que se fazem às raízes da crise do direito
na forma em que ele ainda predomina em nosso dia- a -dia.
Esta crise é presente. Mesmo que já mitificada por aqueles que
buscam enfrentá-la, está mais do que nunca atual. Evidente que o
sistema não se mantém inerte reage com estratégias previstas no pró-
prio sistema. Mas este embate não parece pender para a vitória do
tradicional, da teoria pragmática.
Nem mesmo com o constitucionalismo entrando em sua fase
mais necessária e conexa com a importância da sobrevivência do Es-
tado Democrático de Direito, o ordenamento jurídico ainda está num
lento processo de descolamento do social, o que traz verdadeiras e
sérias ameaças à ideologia do bloco histórico dominante, na medida
em que mesmo com uma Constituição de natureza flagrantemente
dirigente, as práticas discursivas se fragmentam em maior velocidade
do que conseguem realizar uma idêntica uniformização.
Identificado com esse olhar responsável a esta crise do discurso
jurídico, Lênio Streck destaca com sensibilidade que o novo constitu-

101
cionalismo ainda não aconteceu em nosso país, fundamentalmente por
que
a) Continuamos a pensar que a lei é a única fonte, bastando,
v.g., ver o que fizemos com o mandado de injunção, “exigindo” uma
“lei regulamentadora”, ignorando que a própria Constituição é a
nova fonte;
b) Continuamos a acreditar no mundo ficcional das regras,
ignorando que a (velha) teoria da norma necessita recepcionar a era
dos princípios, que, fundamentalmente, introduzem no Direito a reali-
dade escamoteada historicamente pelo mundo das regras do positi-
vismo;
c) Não nos damos conta de que o esquema sujeito-objeto, sus-
tentador do modo dedutivo-subsuntivo de interpretar, sucumbiu em
face do giro linguístico-ontológico (em especial, a hermenêutica, sem
olvidar a importância das teorias discursivas);
d) Porque atrelados ao esquema sujeito-objeto, não consegui-
mos compreender a relação entre texto e norma, isto é, do objetivismo
simplificador partimos em direção aos diversos axiologismos. Como
consequência, estabeleceu-se um “ceticismo hermenêutico”, cujo
resultado é a arbitrariedade interpretativa.

1.18 Justiça em Marx


Como curiosidade cabe algumas palavras sobre a ideia que
Marx desenvolve sobre o conceito de justiça.
A justiça, no imaginário de Marx não está enraizada na condi-
ção do sujeito individual, quer dizer, não é na sua relação comparti-
mentada com outro sujeito dentro do contexto social que ele a com-
preende. Ao contrário, nestas condições ela é meio que justifica as
formas de dominação de classe.
A justiça tem para ele uma forma de existência social, na medi-
da em que ela se caracteriza assim quando do processo revolucionário

102
Formação Humanística

que tem como escopo transformar a atual sociedade capitalismo em


uma sociedade sem a presença dos meios de dominação/produção, na
qual os valores da troca, essencialmente burgueses, não permitem uma
condição de repartição equitativa.
Esta repartição equitativa que não está presente na sociedade
capitalista não é uma criação sua, mas como ele mesmo alerta, a soci-
edade burguês-capitalista afirma realizar tal condição de equidade sem
que isto seja verdadeiro, mas apenas como resultante de uma estraté-
gia de dominação e controle.
“Que é ‘repartição equitativa’? Não afirmam os burgueses que a
atual repartição é ‘equitativa’? E não é esta, com efeito, a única re-
partição ‘equitativa’ cabível, sobre a base da forma atual de produ-
ção? Acaso as relações econômicas são reguladas pelos concei-
tos jurídicos? Pelo contrário, não são as relações jurídicas que
surgem das relações econômicas?”

A real possibilidade de uma justiça calcada numa repartição


equitativa, para Marx somente acontece a partir da fase socialista na
medida em que nesta a igualdade consiste na utilização do trabalho
como unidade de medida comum para uma troca equitativa, não como
um meio de remuneração, controle e produção concentrada da riqueza.
Para Marx a sua ideia de justiça diz respeito a um indivíduo so-
cial, não aquele indivíduo-átomo preconizado pelo Liberalismo e pelo
capitalismo. A condição para a avaliação dos sujeitos não pode ser o
incentivo ao individualismo, pois este justifica uma desigualdade que
ao abrigo da Lei, que se afirma como meio de justiça, na verdade não
promove uma plena condição de igualdade.
Em sua escatologia, Marx busca com essa ideia de justiça supe-
rar os dois nexos fundamentais da sociabilidade capitalista-moderna: a
indiferença e a suposta equivalência burguesa.
A indiferença se dá na medida em que o homem-trabalhador é
alienado e coisificado, esquecendo de se reconhecer tanto como o

103
produtor do objeto, como um possível consumidor. O que Marx per-
cebe é um descolamento no proletariado da sua condição de ser.
A equivalência burguesa se construiu a partir da maior capaci-
dade do seu discurso ideológico justificar a própria sociedade de clas-
ses, usando de vários subterfúgios, entre eles, o discurso jurídico.
A Lei se apresenta como estratégia de dominação ao criar o fal-
so mito de que todos poderão encontrar ao seu abrigo, uma condição
de equidade, na qual trabalhador e patrão receberão um mesmo e justo
tratamento.
Quer dizer, a justiça é, para Marx, uma nova forma de equilí-
brio social, estando, em realidade, tal justiça, além da justiça.
Afirma Marx que
“Na fase superior da sociedade comunista, quando houver desapa-
recido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do
trabalho e, com ela, a oposição entre o trabalho intelectual e o tra-
balho manual; quando o trabalho não for somente um meio de vi-
da, mas a primeira necessidade vital; quando, com o desenvolvi-
mento dos indivíduos em todos os seus aspectos, crescerem tam-
bém as forças produtivas e jorrarem em caudais os mananciais da
riqueza coletiva, só então será possível ultrapassar totalmente o
estreito horizonte do direito burguês e a sociedade poderá inscre-
ver em suas bandeiras: ‘de cada qual segundo sua capacidade, a
cada qual segundo as suas necessidades.”

Não é mais uma métrica do equivalente, fundada na ideia bur-


guesa de equivalência que deve se constituir no argumento da justiça,
mas sim a partir desse momento em que a equivalência não seria mais
imposta, mas sentida, experimentada por todos numa medida capaz de
romper com os elementos da ideologia do capitalismo. É um momento
da virtude social, que é capaz de não aceitar a sujeição da ideologia
burguesa, rompendo as amarras de todo o sistema jurídico-ideológico
de dominação.

104
Formação Humanística

Esta justiça somente seria possível e aceitável a partir de novos


parâmetros calcados em novas condições sociais, com novas exigên-
cias sociais para o favorecimento do homem virtuoso, sujeito essencial
de Marx que ele identifica como aquele que foi e é o responsável pela
produção da riqueza.

1.19 Do Contrato em J. Rawls e do contraponto de Habermas


J. Rawls tem atraído a atenção dos teóricos por muitas razões,
uma dela diz respeito à questão em torno da possibilidade de se consi-
derar Rawls um contratualista, não naquela imagem compreendida
como tradicional, mas sim, ao contrário compreendido como um tipo
de contratualismo que se desenvolve a partir de seu conteúdo ético-
moral, isto é, ao cuidado de certos valores e prioridades aos quais se
denomina de institucionalismo ético.
Desta maneira, a idéia do acordo ou pacto inicial, para Rawls
vem marcada pela idéia de uma igualdade original que busca optar por
direitos e deveres aos sujeitos sociais.
O que se tem em verdade é uma possibilidade para se escolher
no momento do pacto inicial a estrutura fundamental de uma socie-
dade bem ordenada, isto é, o olhar sobre todos aqueles alicerces éti-
co-morais que consubstanciam o pacto inaugural da sociedade.
O contrato nesse autor carrega esta presença importante da
moral, na medida em que tal contrato é uma adesão dirigida a essa
determinada moralidade (ou o que se entende como uma intuição mo-
ral) ao qual, todos os cidadãos devem aderir quando pretende buscar
um tratamento equitativo entre eles e deles com o aquilo que constitu-
em de sociedade organizada.
O que ele busca, portanto, é esta identificação na posição
original ou condição primitiva dos pactuantes daquele momento de
igualdade primeira que alicerça e sustenta o suporte ético-moral das
instituições políticas, sociais e jurídicas construindo as condições para

105
um tratamento equitativo, base epistemológica da sociedade que se
constitui.
Conforme Eduardo Bittar:
Este momento de igualdade na teoria de Rawls, que leva ao con-
trato de adesão é pura hipótese. Não se trata de um acordo his-
tórico, e sim hipotético. Esse acordo vem marcado pela idéia de
uma igualdade original para optar por direitos e deveres; é essa
igualdade o pilar de toda teoria. Mais que isso, a idéia de recorrer
ao contrato social, e de estudar os sujeitos pactuantes na origem
da sociedade numa posição original, não tem outro fito senão o
de demonstrar a necessidade de se visualizarem as partes num
momento de igualdade inicial. Eis aí a eqüidade (fairness) de sua
teoria.

Desta maneira, o contrato em J. Rawls é percebido nas condi-


ções em que é estruturado em cima de dois princípios-base, que são
aqueles princípios que governam a estrutura básica da sociedade:

a) O primeiro princípio, o princípio liberal, também conhecido


como o princípio da igual liberdade ou princípio da equidade,
concede a todos os cidadãos iguais liberdades subjetivas de a-
ção;
b) O segundo principio, o principio ético-moral que enseja a bus-
ca dos sujeitos pela organização de um espaço social em que
possam fundar as condições de suas relações intrasubjetivas e
intersubjetivas.

Afirma Rawls: “Cada pessoa deve ter um direito igual ao


mais extenso sistema de liberdades básicas que seja compatível
com um sistema de liberdades idêntico para as outras” (Rawls,
2008: 68).

106
Formação Humanística

A adesão ao contrato é uma ação hipotética com o único re-


curso do institucionalismo moral uma vez que este princípio liberal
define aquele conjunto de liberdades (tais como a liberdade de opinião
e de crença, a liberdade de locomoção, a liberdade de associação, a
liberdade de voto, política, de expressão, de reunião, de consciência,
etc.) as quais a pessoa se encontra em certo sentido, ignorante.
Tal sistema lógico traz uma série de limitações ao próprio
contrato de adesão, que segundo o teórico Bjarne Melkevik tem o
“objetivo preciso de eliminar qualquer opção diferente daquela que
ele preconiza”. É neste sentido que Rawls, por exemplo, chama a
atenção para o fato de que o único motivo para se restringir as liber-
dades básicas é evitar que elas interfiram e anulem umas às outras.
É, assim, que segundo Melkevik, Rawls rebate o significado
moderno da autonomia do indivíduo, sobretudo as suas características
de externalidade e publicidade, o que vem acompanhado de um aban-
dono do aspecto político que transforma os indivíduos em cidadãos
autênticos.
Desta forma, o único motivo para se restringir as liberdades
básicas é evitar que elas interfiram e anulem umas às outras, o que traz
como significado um prejuízo ao modelo ético-moral individualista
que se vê isento de postulados políticos e igualmente democráticos.
Diz Melkevik que “A LÓGICA DA ADESÃO DE RAWLS
REPOUSA ASSIM, DESTA MANEIRA, SOBRE UM IDIOTA”, que
é aquele que não deseja saber nada sobre a cidade, sobre as condições
existências da sociedade e que opta pela preferência dessa ilusão igno-
rante à sua própria convicção ético-moral.
Portanto, no olhar de Rawls faltaria às partes uma capacidade
de observação das coisas a partir de uma perspectiva moral, ou seja,
sobre o que é “bom para todos”, ou seja, o que é tido como univer-
salmente correto, correspondendo ao interesse homogêneo de todos e
não aquilo que é “bom para mim” ou, na melhor das hipóteses “bom
para nós”, sendo o nós aí um grupo social particular. É por isso que

107
Rawls afirma que às partes no momento do contrato de adesão preci-
sariam realizar a imparcialidade. Conforme Melkevik:
“Visando preservar a eqüidade na escolha dos princípios e não
fazer com que intervenham as contingências naturais e sociais,
os parceiros ignoram certos tipos de fatos particulares (...). Entre-
tanto eles conhecem todos os fatos gerais que afetam a escolha
dos princípios de justiça’. Por isso a barganha e as relações de
força não podem intervir e a imparcialidade é constitutiva da jus-
tiça”.

É assim que o objetivo deste manto da ignorância é fazer


com que as partes, que não sabem que posições e situações ocuparão
concretamente no futuro da sociedade, e que, naquele momento, estão
livres e iguais, venham a refletir acerca do que seja universalmente
bom para todos e de forma uniforme. No desconhecimento da situa-
ção futura é que se pode falar em justiça na criação de tal regula-
ção social.
É por isso que Melkevik afirma que a exigência democrática
perdeu, assim, em Rawls, todo o seu sentido. Mesmo em relação aos
princípios, que ele afirma serem ‘almas institucionais’, estes estão
dados num sentido ético-moral e não num sentido democrático, ainda
mais, estes princípios rawlsenianos excluem toda a questão da sobera-
nia popular.
Conclui Melkevik afirmando que a democracia em Rawls se
converte em um instrumento para a realização do contrato social, de
toda a sorte que este funciona como uma liberdade negativa para a
democracia. Esta, enfim, está submetida ao contrato social, e a partir
desta desqualificação do espaço público e dos processos democráticos
que igualmente são menosprezados que só restam-lhe os tribunais.
Afirma este autor: “os juízes tomam assim os postos vagos
por trás do retiro forçado da democracia e atuam como guardiães do
chamado ‘contrato moral’ inicial, como garantidores de uma tradi-
ção moral que será intocável de agora em diante”. Em certo sentido,

108
Formação Humanística

é o que Cárcova observou naqueles países que Guilherme O’Donnel


denominou pelo conceito de novas democracias.
O contratualismo de Rawls, afirma Melkevik não pode se
justificar senão dentro de um Estado de direito não democrático, na
medida em que a democracia é um processo. Quer dizer, a democracia
instrumental ocupará o lugar do contratualismo pretendido.
Importa, agora, trazer como contraponto a Rawls a posição
que é elaborada por Habermas. Para Habermas, na medida em que ele
retoma o tema iluminista e da modernidade que é o da afirmação do
sujeito que inventa a sociedade civil frente ao Estado, a democracia é
importante elemento constitutivo do agir social.
Ele observa neste processo de subjetivação a identidade de
um ‘eu’ que se efetiva na relação dialética do sujeito com o outro,
numa capacidade de intersubjetividade.
Para Habermas, tal conceito de subjetividade se dá no social,
pois o homem somente adquire consciência de si mesmo através de
um outro, ou seja, ao desenvolver uma interação reflexiva, através da
linguagem (ação comunicativa), e em relação com e na construção de
um mundo objetivo.
O contratualismo se vê, assim, substituído pela lógica do
discurso democrático que funda a condição dos processos democráti-
cos. O discurso democrático deve ser compreendido como público e
criador de um espaço aberto de controvérsia de deliberação e mobili-
zação.
Em Habermas a democracia adquire valor nela mesma, pois
aquilo que deseja ver-se aceita em uma proposição normativa digna de
ser considerada como válida ou legitimada, deve ser submetida ao
processo democrático para obter o consentimento dos demais.
A democracia, portanto, obriga-nos a ver a questão da legiti-
midade como uma obra política de todos. O estado democrático subs-
titui, assim, todo o estado de natureza sem que seja preciso obliterar a
vontade popular.

109
E a democracia tem a tenacidade em substituir o contratua-
lismo na medida em que, assegura Habermas, naquela condição origi-
nária a simples capacidade de tomar decisões racionais não tem força
suficiente para superar a presença de um egoísmo racional que na
teoria contratualista se vê prevalecer.
Para Habermas, os direitos não são bens que podem ser dis-
poníveis pelos sujeitos, mas liberdades fundamentais dos sujeitos, na
medida em que tais direitos são antes normas, do que valores.
Em ‘Direito e Democracia: entre facticidade e validade’,
Habermas apresenta uma importante diferenciação do conceito de
normas e valores, em que
“Princípios ou normas mais elevadas, em cuja luz outras normas
podem ser justificadas, possuem um sentido deontológico, ao
passo que os valores têm um sentido teleológico. Normas válidas
obrigam seus destinatários, sem exceção e em igual medida, a
um comportamento que preenche expectativas generalizadas, ao
passo que os valores devem ser entendidos como preferências
compartilhadas intersubjetivamente [...]. Normas surgem com
uma pretensão de validade binária, podendo ser válidas ou invá-
lidas [...]. Os valores, ao contrário, determinam relações de prefe-
rência, as quais significam que determinados bens são mais atra-
tivos do que outros [...]. Portanto, normas e valores distinguem-
se, em primeiro lugar, através de suas respectivas referências ao
agir obrigatório ou teleológico; em segundo lugar, através da co-
dificação binária ou gradual de sua pretensão de validade; em
terceiro lugar, através da obrigatoriedade absoluta ou relativa e,
em quarto lugar, através dos critérios aos quais o conjunto de
sistemas de normas ou de valores deve satisfazer. Por se distin-
guirem segundo essas qualidades lógicas, eles não podem ser
aplicados da mesma maneira”.

Normas, não valores, pois a democracia não pode ser mais do


que a busca da igualdade por meio dos processos democráticos, inclu-
sive, é no centro desses processos democráticos que se deve situar a

110
Formação Humanística

concepção do direito, uma vez que neles se situam os sujeitos de direi-


tos e os seus interesses.
Os sujeitos se utilizam dos processos democráticos para se
afirmarem, concretamente, como autores de seus próprios direitos.
Desta forma, quando elaborou uma teoria da democracia e do direito,
a intenção de Habermas era (e ainda é) conseguir alcançar um enten-
dimento entre falantes e ouvintes, que seja absolutamente isento de
qualquer tipo de coação.
Neste sentido, o critério para se chegar à verdade de um e-
nunciado seria a possibilidade de se obter consenso entre os partici-
pantes de uma situação de comunicação, ou seja, a possibilidade de se
chegar a um acordo sobre seu conteúdo. Mas somente valeriam como
verdadeiros os “consensos fundamentados” em que seriam apresen-
tados razões ou fundamentos aceitos como válidos por qualquer pes-
soa. Para isso, exige-se aqui uma validade universal.
Diz Habermas em a Inclusão do Outro: “operacionalização
do ponto de vista moral de modo diferente se realiza através de
uma práxis argumentativa que acate as severas pressuposições do
uso público da razão e que não descarte já de antemão o pluralis-
mo das convicções e cosmovisões”
Desta maneira, para ele a concepção de direito está ligada ao
processo democrático, há mesmo um nexo causal entre o projeto jurí-
dico moderno e o processo democrático. Isso é assim, entre outros
fatores, porque os sujeitos se utilizam dos processos democráticos
para se afirmarem concretamente como autores de seus direitos, o que
obriga, igualmente, a se abandonar a concepção de um juiz-inspetor
(Hobbes, Rawls), por um juiz mediador.
Destaca ainda Melkevik que: “o abandono do contratualis-
mo, então, não consiste unicamente na condenação da tradição
fundamentalista das instituições (e do direito). Consiste no signo de
uma filosofia de direito que de agora em diante acompanhará na
prática aos sujeitos de direito. É desta maneira que ela estará no

111
futuro intrinsecamente ligada aos processos democráticos, fazendo
referência aos argumentos e as razões sopesadas”.
Portanto, o que se exige agora, é que os princípios que a priori
foram estruturados e fundamentados, passem, nesse momento posteri-
or a partir dos processo democráticos, pelo crivo dos cidadãos e, de
forma inerente, por todas as críticas que eventualmente venham a
sofrer.
É neste sentido que se reconhece o objetivo do “uso público
da razão”, ou seja, é fazer com que as determinações políticas expe-
rimentem a convivência e as exigências do pluralismo, seja ele, políti-
co, cultural, social, econômico, religioso, étnico ou intelectual.
Assim, é que a democracia de Habermas consiste numa em-
presa democrática que busca ampliar e dar autonomia a formação da
opinião e a vontade, que como já se disse estão ligados ao espaço
público.
Outra observação de Habermas a partir da formação da opini-
ão e da vontade democrática é a introdução da perspectiva de uma co-
originalidade entre a autonomia privada e a autonomia pública em
relação com o direito.
Para Habermas a co-originalidade “se trata de um nexo in-
terno que insiste em que os sujeitos de direito não podem desfrutar
da igualdade em matéria de liberdades subjetivas sem que exista
entre eles um acordo acerca do grau e do sentido destas ‘liberdade
subjetivas’ reconhecidas de uma parte a outra, obtidas mediante os
processos democráticos. Concretamente os sujeitos de direito devem
avaliar os aspectos pertinentes em virtude dos quais aquilo que é
similar, deverá ser tratado de uma maneira similar e o que é diferen-
te de uma maneira diferente”.
É, assim, que a síntese entre o conteúdo normativo do proces-
so democrático e o direito somente pode se realizar através de pessoas
jurídicas e não apenas daqueles sujeitos tomados pelo manto da igno-

112
Formação Humanística

rância que prescinde de certa forma dessas pessoas jurídicas que são
constitutivas da emergência e surgimento do espaço social.

113
114
Formação Humanística

Capítulo II

“Para a modernização, a adequação do Judiciário aos dias de hoje,


é sempre oportuna a observação de Roscoe Pound: ‘Nossa adminis-
tração da Justiça não está decadente. “Está, apenas, atrasada no
tempo’”.

SOCIOLOGIA DO DIREITO

2.1 Introdução à sociologia da administração judiciária. As-


pectos gerenciais da atividade judiciária (administração e e-
conomia). Gestão. Gestão de pessoas
A segunda modernidade, conceito ao qual se é mais simpático
do que simplesmente pós-modernidade tem sido marcada pela poten-
cial capacidade de alterar, transformar institutos, valores, discursos
com uma velocidade surpreendente e não raro, de efeitos indefinidos.
A sociedade tornou-se uma sociedade de espetáculo de grande veloci-
dade.
A velocidade das mudanças de rumo, da emergência das infor-
mações acompanha paralelamente a consolidação de uma sociedade
marcadamente dominada pelo ‘modismo’. Ondas de valores e exigên-

115
cias que surgem, com força avassaladora ou não, mas que partem na
mesma instantaneidade.
Se a sociedade civil é o cenário tradicional dessa passarela de
transformações, o Estado, a sociedade política não conseguiu estabe-
lecer resistências a todo esse processo da segunda modernidade. Tam-
bém ele é assaltado por modismos que nem sempre representam uma
transformação positiva. É o caso do legislador que é pressionado pela
sociedade a criar Leis conforme os seus interesses imediatos e, conse-
qüentemente, é o caso do Poder Judiciário.
Conforme Alexandre Costa de Luna Freire
“O modismo é uma situação que não se limita apenas ao mercado
de consumo. Na política, nas artes, na literatura e no vestuário,
também. A modernidade, entre outras novidades, trouxe o modis-
mo na Administração Pública, embora em cada eleição sempre ha-
ja políticos momentâneos e, mesmo caindo de moda, alguns deles,
criam moda. Estilistas de pronta entrega, costuram as situações ao
prazer da encomenda (...). Voltando ao modismo, a bola da vez é a
Administração Judiciária, embora parte da mídia tenha assestado
as baterias contra os Juízes, como acontece na “sociedade espe-
táculo”.É nua e crua a realidade da Administração Judiciária que
não se confunde com o ofício de julgar, de administrar a tramitação
processual, de proferir decisões rápidas, de conciliar conflitos, de
assegurar igualdade, ou melhor, desigualdade aos desiguais. Ad-
ministração Judiciária é um ramo novo da Ciência da Administra-
ção, ainda incipiente, cujo objeto não está bem definido e a grande
maioria dos Juízes e funcionários o desconhece. Há algumas inici-
ativas visando aperfeiçoá-la, difundi-la, ensiná-la e, principalmente,
aplicá-la intensivamente. Não se concebe em plena era virtual
descrever as maravilhas da internet, ou a força da multimídia (das
várias mídias) com formulários obsoletos para comunicação dos
atos processuais, principalmente, quando a leis processuais são
continuamente alteradas por Medidas Provisórias. Não fosse o
THEOTÔNIO NEGRÃO, indispensável nas mesas de todos os ‘o-

116
Formação Humanística

peradores do direito’, os despachos e decisões urgentes, talvez,


não chegassem a tempo e modo com tantas “janelas” de informa-
ção.”

E, finaliza com uma crítica observação:


“A situação, à compreensão popular, é análoga a de um restauran-
te à La carte que obtivesse, por igual, a franquia do MCDO-
NALDS. Pratos de urgência, e pedidos requintados, as funções de
gerente e mâitre cometidas aos mesmos quadros. Por isso que as
pièce de resistance sejam demoradas e os sanduíches, servidos
com garfo e faca, e sempre com garbo. A súmula vinculante. Ah!
Antes disso, qualquer profissional com alguns anos de convívio
com o Direito e com o Judiciário, há de convir que o Supremo Tri-
bunal Federal não deve ser uma usina de despachos/decisão-
padrão. Filigranas processuais, obstacular sinuosidades recursais
protelatórias, negar seguimento a irresignações diante do óbvio ju-
rídico, manuseio de peças processuais acauteladas em superposi-
ção de capas de autos, e, ao mesmo tempo, defrontar-se com de-
cisões definitivas e relevantíssimas, com repercussões duradouras
na ordem constitucional não encontram na súmula vinculante, na
mera clonagem formal, o respaldo ao valor e mérito do papel exer-
cido pela Suprema Corte. O formalismo inútil e exagerado que do-
mina a legislação processual é uma realidade a ser encarada”. (gri-
fei)

O estado atual é ainda confuso, pois as alterações movidas à


pressão popular não foram em grande parte digeridas pelos institutos e
operadores do ordenamento jurídico. Se junta a esta situação interna o
fato de que a população em grande medida desconhece não somente a
estrutura interna do Poder Judiciário, como seus próprios direitos e
garantias, e como desconhecem, igualmente, o próprio processo legis-
lativo e a atuação do Legislador (que em nossa sociedade atual é esco-

117
lhido pelo cidadão através do exercício do voto), tudo isso acaba faci-
litando o efeito da dispersão, fragmentação e descolamento da socie-
dade com a Lei, com o Poder Judiciário e com o próprio Estado, en-
quanto um todo movimento assimétrico e anti-sistemático.
Entretanto, a ‘moda’ não está na figura da pressão exercida pela
sociedade no Poder Judiciário quanto ao atendimento mais qualifica-
do, célere e eficaz de suas necessidades determinada pelo século XXI.
Este processo já se iniciara anteriormente, no período em que a pró-
pria condição política de nosso país se transformava com o crescimen-
to da crítica à ditadura e a exigência pela volta da democracia.
No que diz respeito ao nosso interesse, isto é, o tema da admi-
nistração judiciária, as mudanças se tornaram mais ‘necessárias’ a
partir de todo um movimento que ao longo da década de 70 coincidiu
com a crise de vários regimes autoritários e o conseqüente processo de
maior acesso ao judiciário.
Este processo de transformação sentido pelo Poder Judiciário
em nosso país é consequência, ainda que tardia de um movimento que
ocorri fora do Brasil, pois se podia notar em diversos países do mun-
do, o movimento em defesa do “access-to-justice movement”, o qual,
no espaço da academia norte-americana e européia havia legitimado o
“Florence Project”, que veio a ser coordenado por dois dos grandes
teóricos contemporâneos: Mauro Capelletti e Bryant Garth.
Inegável que apesar das limitações desse movimento, ele apor-
tou e se consolidou em nosso país, mas diferentemente do que ocorria
em países que experimentaram uma transformação do Estado liberal
capitalista moderno em busca de uma expansão ao Estado do welfare
state, bem como diferente da necessidade de se tornarem efetivos os
novos direitos conquistados, principalmente, a partir dos anos de 1960
pelas “minorias” étnicas e sexuais.
Ao contrário, em nosso país, a questão fundamental dizia res-
peito a temas mais triviais a serem conquistado, tais como os relacio-
nados aos direitos básicos da população ao qual a maioria ainda não

118
Formação Humanística

tinha um razoável acesso, por exemplo: como saneamento básico,


ensino de qualidade, alimentação necessária e fundamental, assistên-
cia à saúde e acesso ao judiciário.
Era, assim, em razão da tradição liberal-individualista do orde-
namento jurídico brasileiro, bem como em consequência da tradição
histórica de marginalização sócio-econômica dos setores subalterniza-
dos e da exclusão político-jurídica provocada pelo regime pós-64 que
estas novidades conseguiram se consolidar em nosso país.
Mais além, a própria experiência histórica do Brasil, país es-
sencialmente de viés patrimonialista e patriarcalista justificava as
limitações, a partir da presença de condições tão triviais quanto neces-
sárias, para as outras reivindicações típicas do Florence Project.
A exigência para uma modernização da administração judiciá-
ria, para uma nova experiência de gestão neste ramo do Poder do Es-
tado é fruto da transição política, isso parece ser inconteste, na medida
em que o enfrentamento social pelo fim da ditadura militar permitiu
um certo amadurecimento do imaginário social, ao qual percebeu
igualmente um judiciário com velhos e absurdos entraves burocráti-
cos, bem assim entraves quanto ao próprio papel dos seus operadores
enquanto agentes sociais.
É a condição de exclusão de boa parte da sociedade ao exercí-
cio dos direitos fundamentais que condiciona o processo de crítica e a
exigência pela transformação da ‘maquina’ do judiciário. O discurso
que propõe o retorno à democracia, à liberdade de imprensa, à livre
manifestação do pensamento, ao fim das eleições indiretas, se confun-
de com aquele que se revela crítico de um judiciário viciado em tradi-
ções sagradas e distanciado da população.
Não por acaso a Constituição de 1988 nasceu sob o signo de
tantas expectativas.
O problema que se apresentava, então, era bastante grave, não
limitado ao reconhecimento de novas vias de acesso pura e simples-
mente, ao contrário, antes desse tema o desafio estava em se poder

119
preparar e amadurecer um ordenamento jurídico tradicionalmente
organizado na defesa dos direitos individuais clássicos para uma soci-
edade que reconhecia uma complexidade de direitos coletivos e difu-
sos, abstratos em uma potência que não presente nosso país apesar do
despertar dessas novas naturezas associadas ao conflito político da
metade final da década de 1970.
Conforme destaca Eliane Botelho Junqueira,
“Se a questão prática do ‘welfare state’ não estava presente na-
quele momento -- tornando absolutamente fora de lugar preocupa-
ções com experiências de conciliação e informalização da Justiça
tais como ocorriam nos países centrais e que, na esteira desse
movimento, vão gerar, logo em seguida, o ‘alternative dispute re-
solution movement’ nos Estados Unidos --, as reflexões brasilei-
ras possuíam outra matriz organizadora. A forte presença do pen-
samento marxista nas ciências sociais de então e a influência dos
trabalhos desenvolvidos por Boaventura de Sousa Santos -- facili-
tada tanto por sua estada no Brasil no início dos anos 70, como
pela acessibilidade de seus artigos, escritos em nosso quase mor-
to idioma -- fizeram com que o tema do pluralismo jurídico fosse
transplantado para as investigações que, indiretamente, se volta-
vam para o tema do acesso à Justiça. Tanto os trabalhos de Boa-
ventura de Sousa Santos, como as pesquisas empíricas desenvol-
vidas no campo, provavelmente porque tomavam como um dado a
própria inacessibilidade da Justiça para os setores populares, não
abordavam explicitamente o tema do acesso à Justiça, mas sim
procedimentos estatais e não estatais de resolução de conflitos.
Mesmo assim, o tema do acesso à Justiça emerge em toda esta
produção”.

Inegável a contribuição que se anota com os estudos de Boa-


ventura em nosso país sobre o nosso sistema jurídico. A ideia de um
pluralismo jurídico (“como contradições interclassistas e intraclassis-
tas que, reveladoras dos diferentes modos como se reproduz a domi-

120
Formação Humanística

nação político-jurídica, se condensam na “criação de espaços sociais,


mais ou menos segregados, no seio dos quais se geram litígios ou
disputas processados com base em recursos normativos e institucio-
nais internos”), de um direito de Pasárgada, fruto da influência da
obra “Discurso e Poder” desperta a sociedade jurídica brasileira para
um rol de situações complexas inimagináveis que estavam postas além
do tema da própria transição política brasileira.
O direito brasileiro, positivista e formalista, fruto de uma tradi-
ção de poder político e carismático se viu provocado com a real reali-
dade de exclusão dos setores mais pobres e periféricos desse mesma
sistema de Leis tão calcado em um ideal liberal positivista. A ideia de
um direito do asfalto (oficial) em contraposição com um direito do
chão (não oficial) passou a exigir uma resposta mais determinada a
esta situação.
O rompimento desse paradigma teórico do direito brasileiro a-
inda é acompanhado pela grande reforma promovida na Administra-
ção Pública brasileira ao longo do final dos anos de 1970 a partir das
transformações que o próprio Estado sofria com a crise da ditadura
militar. Bresser Pereira destaca a necessidade de se constituir canais
mais efetivos à sociedade na medida em que as mudanças políticas
repercutiam, cada vez com maior intensidade, na própria legitimidade
do Estado, compreendido como incapaz em atender uma série de no-
vas demandas fruto da democratização.
Estas transformações alcançam o espaço mais amplo do campo
jurídico, quer dizer, são alterações que se referem tanto aos vocábulos
judicial e judiciário. Os dois conceitos não são sinônimos, uma vez
que por ‘judicial’ se considera somente aqueles serviços que são ine-
rentes à natureza intrínseca do processo, tais como os atos de jurisdi-
ção decorrentes da função e da natureza das atividades dos órgãos do
Poder Judiciário inserido no processo.
Por sua vez o vocábulo ‘judiciário’ está localizado mais num
plano de ‘gestão’ do processo, independente do nível da Jurisdição,

121
seja um ou um conjunto de ‘ações’ que são (re)(a)presentadas ao Po-
der Judiciário.
A distinção é difícil, mesmo sutil e, geralmente ela não está
possível à percepção ou compreensão daqueles que estão menos acos-
tumados com a atividade da Justiça. Assim, se pode compreender os
atos de ‘administração judicial’ inerentes ao processo como aqueles
atos que baseados em um método legal fundamentam o conjunto de
atos da jurisdição onde a ‘ação judicial’ se desenvolve, e na qual a
atividade física e ‘administrativa’ da tramitação dos atos cartorários,
secretarias, de comunicação, da elaboração dos ‘juízos’ nos despachos
não se limita a um mero expediente tradicional de um ‘Cite-se’ ou
‘Cumpra-se’ ou ‘Comunique-se’.
Igualmente, se considera atos administrativos aquele volume de
serviços e atendimentos de todas aquelas ‘demandas’ ou ‘consultas’
ou mesmo ‘informações’ as quais os sujeitos buscam no poder judiciá-
rio. São também atos de administração judicial aqueles relativos ao
patrimônio, aos bens, no processo civil, penal, concursal, de falência e
concordata, de jurisdição voluntária, atividade empresarial etc. Final-
mente, são relativos à administração os bens e materiais, orçamentos e
de pessoal, relativos ao funcionamento de todo o ordenamento jurídi-
co, mesmo em esferas e competências distintas.
Desta forma, esses processos de mudança, alimentados origina-
riamente a partir das transformações políticas pelos quais experimenta
o Brasil e que vai resultar na exposição dos limites do próprio Poder
Judiciário enquanto meio de exclusão, vêm obrigando este mesmo
poder a uma série de transformações nos últimos 20 anos, o que não é
nenhuma coincidência ser este o período de vida da atual Constitui-
ção.
Estas mudanças, marcadas pela ‘moda’, nem sempre necessá-
rias, outras vezes sim, encontram ou não alguma vontade política que
dependendo do ibope do tema é encampado e assim realizado no Con-
gresso Nacional. Mas, infelizmente, a maior parte das modificações
obedeceu aos interesses mediatos do Legislador, interessado em trans-

122
Formação Humanística

formar reivindicação por mudança em mero voto, isto é, em poder,


deixando de lado mudanças consistentemente necessárias tais como:
a) Simplificação das leis processuais que versem ações com o
Poder Público. O Código de Processo Civil está sistematicamente bem
estruturado e nos mais de vinte anos de sua aplicação atende razoa-
velmente à realidade judiciária. Necessita de outras modificações,
além das recentemente introduzidas, principalmente na comunicação
dos atos processuais, para atender às transformações tecnológicas e a
publicização das serventias judiciais, à unificação dos autos processu-
ais, à uniformização de prazos processuais segundo critérios mais
objetivos e modernos;
b) Formularização da maioria dos atos e termos processuais de
modo mais objetivo (a legislação tributária e previdenciária já adota
racionalmente esta prática);
c) Implantação de recursos tecnológicos em todas as Comarcas
do País, com alocação e treinamento na área de recursos humanos, à
semelhança do projeto de implantação do voto eletrônico;
d) Reciclagem, aperfeiçoamento e especialização de Juízes e
funcionários do Poder Judiciário a nível nacional, a partir de um pro-
grama de metas, com a expansão dos programas das escolas de magis-
tratura e de administração judiciária;
e) Estrutura orçamentária compatível com as necessidades e
realidade de cada unidade relacionada a cada órgão do Poder Judiciá-
rio, em qualquer nível, ou fração;
f) Representação dos órgãos de primeira instância nos colegi-
ados de 2º grau em matéria administrativa, no que diz respeito ao
planejamento e gestão orçamentária;
g) Estudos sistemáticos sobre os efeitos da explosão de de-
mandas, a nível regional, circunscrição, natureza da matéria, entre
outras variáveis;

123
h) Estudos de custos e orçamentários adequados a cada reali-
dade, a partir de critérios objetivamente definidos;
i) Criação periódica de varas e realização de concursos para
Juiz e funcionários, atendendo-se à realidade de cada órgão.

Enquanto não é possível o atendimento destas condições de a-


proximação do Poder Judiciário ao que é fundamentalmente relevante
à sociedade, o que se alcançou, além do Novo Código Civil, das novas
formas de resolução de conflitos tais como os JECCs, arbitragem e
mediação, bem como a possibilidade do processo pela via da internet,
ainda não consegue diminuir as distâncias entre o direito do asfalto
daquele do chão. Em verdade, apesar da importância, são paliativos
que representam, como está bem destacado na Emenda Constitucional
de n.45/04, aqueles elementos visíveis pela população e que marcam o
seu condicionamento através de pressões nem sempre espontâneas,
mas sem dúvida, mudanças de ‘moda’.
Sem tempo para assimilar todo esse processo, que em verdade
somente tem trinta anos, os operadores do direito estão correndo atrás,
sem uma estratégia simétrica e um discurso efetivamente democrático
já que as medidas tomadas ainda ocorrem de cima para baixo.

2.2 Das relações sociais e relações jurídicas. Controle social e


o Direito. Transformações sociais e o Direito
Falar do fenômeno jurídico é falar, obrigatoriamente, de rela-
ções sociais. O fato, ainda que praticado pelo sujeito e ungido de certa
singularidade é sempre um fato que para a sua existência se faz social.
Somente há direito enquanto realização no espaço social. Portanto, as
relações sociais e jurídicas estão profundamente imbricadas umas nas
outras.
Um exemplo que por ser o contrário do que foi dita acima, mas
o ilustra muito bem é o romance de Daniel Defoe, Robinson Cruzoé.

124
Formação Humanística

Isolado numa ilha, sem a presença de outro homem, já que o


personagem de ‘sexta-feira’ representa a figura do colonizado, ainda
em seu estado natural e, portanto, momento anterior ao do mitológico
contrato social, não se pode afirmar que ali, naquela ilha se pode per-
ceber a presença do sistema jurídico, pois aquilo que se confunde com
as ordens do branco europeu não podem ser discutidas com o nativo, o
que impede a presença de qualquer manifestação de uma norma jurí-
dica legítima.
A existência da relação jurídica passa pela correspondente rela-
ção social dos sujeitos no espaço social. Compreender a sociedade é
exigir um domínio de todos os discursos que a formam, entre eles, o
direito, isto é, uma sociologia do direito que representa o local de
encontro destes espaços civilizacionais.
A sociologia jurídica é uma sociologia aplicada que tem como
fundamento primeiro a compreensão da realidade deontológica que se
impõe a partir da necessidade de se justificar a ideia de civilização. O
grupo social necessita deste discurso próprio para justificar a sua pró-
pria mundanidade e sobrevivência.
O direito é, neste sentido, um processo que possibilita, não to-
talmente em se tratando de sujeitos singulares, uma interação social,
permitindo aquele conjunto de hábitos que aceitos pelo grupo se cons-
tituem ao longo do devir histórico em ‘morus’ legítimos e normativi-
zados pelos fenômenos que solidificam as necessidades e as estraté-
gias de superação desta quando se existe socialmente.
A sociologia jurídica, assim, observa o fenômeno social jurídi-
co, buscando compreender as condições do discurso jurídico, de suas
organizações, de seus agentes e dos papéis que cumprem, bem assim
das relações de controle e dominação que se podem exercer sobre o
espaço social e nos agentes. Importa, igualmente, as manifestações
morfológicas do direito, isto é, a existência tornada FATO (ser) e o
comando sobre o fato, a NORMA (dever-ser), bem assim, todas aque-
las relações prescritas, os comportamentos de submissão e de resistên-
cia dos sujeitos sociais à eficácia das normas.

125
Este amplo espaço obriga aos sujeitos identificados pelo termo
arrogante de ‘operadores’ do direito a sintetizar a tensão entre todos
estes efeitos complexos que exsurgem da relação do discurso jurídico
com e no espaço social. Esta estabilidade é medida, por exemplo,
pelos magistrados quando se veem na difícil tarefa de buscar uma
racionalidade e contingência frente ao fato social para explicá-lo e
controlá-lo frente a doutrina, a jurisprudência, a analogia, os princí-
pios gerais de direito e a Lei.
Ao mesmo tempo em que se realiza esta tarefa de ‘enquadra-
mento-compreensão’, se busca com a sociologia do direito o entendi-
mento daquelas condições que permitem a existência e a reprodução
do controle social dos sujeitos, bem como o estabelecimento dos sig-
nificados míticos de ordem, paz e preservação da estrutura social.
Mesmo que se submetendo a um discurso racionalista que e-
mergiu ao longo dos séculos XVI a XIX, não é tarefa fácil observar
esta estrutura social a partir da sua relação com a Lei e com as normas
jurídicas, a não ser a partir de diferentes teorias que comprometidas
com os seus próprios fins justificam, criticam e afirmam superar os
limites apresentados pelas outras teorias (positivismo, funcionalismo,
liberalismo, marxismo, realismo, etc.).
O que se constata, contudo, é que pelo sim, pelo não, encon-
tramos um espaço social organizado, mesmo com a sua dose de desor-
ganização que é inerente àquela, mas que apesar de sua existência não
nos permite alcançar a plenitude do seu significado, o que nos leva a
compreender o porquê de tantas teorias que se justificam em explicá-
lo(as).
Escolhemos, aqui, como um exemplo, a percepção de Max
Weber sobre aquilo que ele denominou de ‘idealtipos’ do direito a
partir da sua presença/relação com o espaço social:
a) O direito irracional-material;
b) O direito irracional-formal;
c) O direito racional-material;
d) O direito racional-formal.

126
Formação Humanística

No que diz respeito ao primeiro, o direito irracional-material, é


aquele que se dá o julgamento e a Lei pela vontade e poder do déspo-
ta, sem se preocupar com os (e)feitos no espaço social; o segundo, o
direito irracional-formal ele o compreende a partir da prática medieval
das ordálias, aquele sistema de julgamento que buscava, estruturado
na figura divina e na fé a ela, reconhecer o culpado como infiel e o
inocente como crente; o direito é racional-material quando está fun-
damentado em uma ideologia que beira ao sagrado e que justifica a
vontade do detentor do poder político, que é tomado, aquele livro
sagrado como fonte da Lei e da Justiça; finalmente, o direito racional-
formal é o que afirma que a Lei e a justiça estão consagradas em con-
ceitos abstratos e lógicos frutos de uma sistemática jurídica burocrati-
zada e eficiente.
Em outros teóricos, por exemplo, Pound, Cardozo, Radbruch,
etc., o sistema jurídico se dá a partir de um elemento constitutivo ide-
al, qual seja, o de justiça ou aqueles valores ‘espirituais’ que definem
o sujeito na sua relação com a Lei.
Mas, todos, e independente de qual corrente a que foram asso-
ciados pelos seus intérpretes, nesta busca neurótica do cartesianismo
de enquadrar sujeitos, conceitos, significados em grupos para a sua
melhor interpretação (não necessariamente melhor compreensão acei-
tam), o fato de que a sociologia jurídica busca relevar o comportamen-
to social, os fenômenos sociais, as ideologias, as funções e estruturas a
partir de sua condição jurídica.
O existir em grupo obrigou aos sujeitos a uma necessidade de
institucionalização de padrões gerais de comportamento que, sem
aniquilar as ações singulares, sobre elas determinam os valores justifi-
cantes. Esta institucionalização sempre se manteve associada ao con-
trole e ao poder, ao prestígio e à eficiente liderança

127
Esta relação entre o direito e a sociedade, ainda que obrigatória
para a sobrevivência de ambos se desenvolveu em distintos momen-
tos, nem sempre pacíficos em relação às conclusões que os seus repre-
sentantes chegaram, mas que podem ser assim sintetizados:
a) O período dos ensaios, ainda que sem qualquer rigor por
parte dos seus primeiros teóricos (ao longo da segunda metade do
século XVIII). Aqui não se pode afirmar ainda numa ‘ciência’ socio-
logia, ainda mais numa sociologia jurídica, ainda que teóricos como
Montesquieu tenham se preocupado em compreender este fenômeno
associado à sociedade
b) O período consolidado pelo método e pela lógica (dos fins
do século XIX até a 2ª Guerra Mundial). Nesta fase é indiscutível o
surgimento da sociologia, com o fim de justificar as contradições da
sociedade europeia industrializada e que passava por agudas transfor-
mações. Entre os teóricos da sociologia que realizaram profundos
estudos neste período se pode destacar: Durkheim, Marx, Ehrlich,
Weber, Comte, etc.
c) O período da consolidação é aquele que se desenvolve do
final da 2ª Guerra até os meados da década de 70. Consagra definiti-
vamente a sociologia como ciência. Ainda que consagrada em méto-
dos de aplicabilidade racionais, a sociologia busca explicar as trans-
formações de uma sociedade que sofre profundas transformações a
partir da revolução tecnológica, informacional e das mudanças com-
portamentais a partir de uma industrialização que impulsiona o indivi-
dualismo e o descolamento ideológico. São exemplos dessa fase: Ros-
coe Pound, Gurvitch, Parsons, os membros da Escola de Frankfurt
(Adorno, Habermas, etc.)
d) O período de crise do capitalismo diz respeito à década de
1970 até meados do final da década de 80, período que foi determina-
do pela limitação da expansão econômica e consequente recessão, o
que levou a uma série de disjunções e conflitos variados. Exemplos
desta fase: Pierre Bourdieu, Ralph Daherdorf, Giddens, Foucault, Boa
Ventura, etc.

128
Formação Humanística

e) O período dos discursos fragmentados e desconstrutivis-


ta é marcado pelo período da década de 90 até a emergência do século
XXI, onde se pode avistar discussões sobre pós-modernidade, segunda
modernidade, fragmentação, caos, teoria do risco, etc. Exemplos desse
momento são François Jullien, Boa Ventura, Baumann, Luhmann, etc.

2.3 Do Conceito de Sociologia aplicado ao Direito


Compreendido como fenômeno social, o direito passa a receber
no seu significado a contribuição de sociólogos que ampliam a sua
capacidade fundante e justificadora do e no espaço social.
Por exemplo, Henri Lévy Bruhl afirma:
“O direito é o conjunto das normas obrigatórias que determi-
nam as relações sociais impostas a todo o momento pelo grupo ao
qual se pertence.” 24

A partir dessa definição, destaca os três elementos constitutivos


do direito compreendido enquanto fenômeno social:
a) Normas obrigatórias;
b) Normas impostas pelo grupo social;
c) Normas que se modificam sempre.
No que diz respeito ao primeiro, a obrigação é, sem dúvida, e-
lemento constitutivo fundamental do direito, na medida em que ele se
impõe sobre o agir humano, determinando a sua obrigatoriedade, a sua
possibilidade e as consequentes sanções que decorrem da resistência a
esses comandos normativos.
Aqui, importa destacar a natureza das sanções que estão impli-
cadas nessa obrigatoriedade: para serem de natureza jurídica as san-
ções devem ter um efeito concreto, pragmático no plano terrestre-

24 BRUHL, Henri Lévy. Sociologia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.20.

129
físico e social, isto é, significam uma modificação da condição dos
sujeitos mesmos e de seu patrimônio.
Em relação ao segundo elemento, já se afirmou que toda a soci-
edade tem o seu direito, pois as normas jurídicas são sempre resultan-
tes desse espaço de cultura, de capital simbólico que constitui o ima-
ginário do grupo ao qual se pertence. Contudo, não é qualquer socie-
dade, mas uma sociedade organizada politicamente, o que não signifi-
ca a presença de um Estado como hoje reconhecemos. Política aqui
significa uma mínima divisão do exercício político com funções de-
terminadas, mesmo que determinadas por fatos específicos. Esta é a
posição, de certa forma, defendida pela TEORIA MONISTA, distinta
da ESCOLA PLURALISTA que não vê na presença de uma organiza-
ção política a condição para a presença do direito (qualquer conjunto
de indivíduos, minimamente organizados pode apresentar o direito).
O direito, enquanto fenômeno social, não pode se encastelar no
tempo, pois se ele é um fenômeno social e este é um fenômeno tempo-
ral, o direito também tem a capacidade de se alterar conforme as alte-
rações da sociedade.
As normas jurídicas não têm um caráter perpétuo e imutável,
pois não há direito sem o domínio do tempo. E esta relação não é uma
relação fácil e sem a presença de conflitos.
O sistema jurídico tem profunda participação na definição que
se faz do sujeito e da sociedade. Isto por que regula a relação entre
singularidades, entre identidades individualizadas que estão obrigadas
a manter entre si alguma forma de envolvimento-existência, alguma
forma de contato.
Inevitavelmente ele conduziu-nos a algumas das opções psíqui-
cas em que foi-nos possível reconhecer o ‘outro’, aqui observado não
apenas como outro sujeito, mas na relação deste com o sistema social.
Na jornada mediada pelo direito em direção a construção do eu
- indivíduo, tal jornada resultou da imposição de regras discursivas

130
Formação Humanística

que foram emanadas em grande parte pelo sistema jurídico e entendi-


das estas como o sistema normativo em um determinado momento.
Para legitimá-las, tal sistema jurídico necessitou desenvolver-se
ora enquanto continuidade, ora enquanto possibilidade possível de
alteração. Portanto, é bastante plausível perceber que mesmo como
tradição, ou como ruptura, o sistema jurídico precisou organizar-se
enquanto um discurso temporal e assim agir sobre o dia-a-dia dos
sujeitos, bem como na sociedade.
Necessitando constituir-se em regras concretas e temporais para
se fazer valer enquanto deontologia, o sistema jurídico apresenta(ou)
constantes dificuldades em acompanhar as mudanças em torno do
conceito de tempo e, igualmente em torno do conceito de espaço.
Mais agora nessa época de tempo e de espaços virtuais, de glo-
balização de mercados e culturas, de velocidade dos conceitos e na
medida dessa dificuldade, qualquer reação é um questionamento ao
seu papel, enfim, a sua (i)legitimidade, não apenas como sistema jurí-
dico, mas como forma consagrada e tradicional de discurso fundante
do imaginário social.
Neste sentido, a forma e o conteúdo parecem se mostrar indis-
sociáveis a quaisquer possibilidades de uma indefinida e atemporal
adaptação, o que neste momento de estranhamento da tradição gera
um aprofundamento da crise conceitual.
Desta forma, não há como se justificar nenhum princípio de di-
reito que seja universal e eterno. Mesmo quando se pensa no tema das
cláusulas pétreas, estas apresentam na sua própria normativização uma
possibilidade de alteração, conforme se pode compreender com a lei-
tura do artigo 60, §4º, de nossa Constituição Federal.
Já em Durkheim o direito é compreendido como um dos ins-
trumentos constitutivos da solidariedade social que permite a sua pró-
pria existência. O sistema jurídico é uma manifestação que permite a
existência do espaço social, uma vez que define comportamentos e
papéis definidos aos agentes que dele fazem parte. A presença das

131
sanções jurídicas tem, assim, uma apreensão diferenciada no grupo
social a partir da sua natureza constitutiva:
a) As sanções civis ou retributivas significam uma condição de
estado frágil da consciência coletiva, pois a sua lesão não repercute
com intensa ojeriza nos indivíduos;
b) As sanções penais, por outro lado, por produzirem uma rea-
ção violenta nos indivíduos, ainda mais a partir do tipo de delito co-
metido que varia conforme a importância configurada pelo grupo
social.
Assim, Durkheim se utiliza no seu estudo da sociologia jurídica
de um método funcionalista, ao qual a sociologia em seu período se
deixou seduzir, e que emprega quando olha o direito pela sociologia.
Sua reflexão, neste sentido, está concentrada na inegável rela-
ção íntima entre o sistema jurídico e o espaço social, enfatizando a
partir dessa relação a condição de estabilidade e de durabilidade das
condições que sustentam essa mesma organização social.
Ele busca para a sua apreensão duas dimensões epistemológi-
cas: uma dimensão teórica e outra, uma dimensão empírica, sem que
nunca se esqueça da condição metodológica para o estabelecimento
desse olhar.
Neste sentido, ele problematiza as condições da manutenção da
ordem social para oferecer a solução de sua própria sobrevivência.
A proposta para este problema se encontra no reconhecimento
de uma existência-presença em toda sociedade, isto é, em um conjunto
de normas, que é denominado de direito e que tem o poder de regular
a ação dos sujeitos sociais.
É assim que Durkheim, em sua teoria estrutural-funcionalista
do controle social, as condições para a sobrevivência do espaço social
estão fundadas no consenso dos sujeitos a respeito do direito, da Lei e
do ordenamento jurídico como símbolos de coesão social, mais forte

132
Formação Humanística

que a própria capacidade dos conflitos sociais em ameaçar a possibili-


dade de existência da sociedade.
Durkheim destaca em sua teoria dois tipos de estrutura social as
quais correspondem dois tipos de direito:
a) Sociedade de direito mecânica;
b) Sociedade de direito orgânica.

É a primeira estrutura mais primitiva e onde se percebe que é


caracterizada pelos interesses e valores que são compartilhados pelos
membros da sociedade na medida em que aceitos por eles. Nessa fase
de sociedade de direito mecânica não se pode afirmar a presença de
uma diferença bem definida entre o direito e a moral.
Já em relação à segunda, esta se estrutura a partir da definição
das funções entre os diferentes grupos sociais que, apesar de suas
variadas condições são especializados na medida de seu espaço social,
o que tem como consequência uma formação estrutural social marca-
damente diferenciada e complexa na mesma medida em que comple-
mentar. Como Durkheim constata uma inevitável passagem de um
tipo de estrutura social à outra, destaca que tal transformação se reali-
za mediante um constante e gradual aumento na natureza da divisão
do social do trabalho, o que permite igualmente a passagem de um
direito meramente repressivo para um direito restitutivo.
Já Gurvitch compreende o direito como uma tentativa para rea-
lizar, numa certa ambiência social a ideia de justiça, entendendo-o
como um universal a priori. Isso porque ele afirmou uma pluralidade
de fontes de criação do direito, bem como uma existência de um direi-
to social, que é de natureza extra-estatal, baseado em fatos normativos
que se sustentam em valores, em fins e em objetivos de cada grupo
social, que são os ao mesmo tempo geradores e fontes de validade de
direitos na sociedade. Outra estruturação desse modelo do direito
social foi proposta por Duguit, importante autor que inspirado numa
ideia de natureza durkheimiana de solidariedade social, bem assim

133
também numa crítica ao formalismo jurídico, compreendeu o direito
como um produto da natureza do próprio desenvolvimento social, já
que afirmou que o direito estatal apenas reconhece e institucionaliza
as regras da vida social.
Importa, mais uma vez, destacar a contribuição de Karl Marx,
nunca esquecendo, entretanto, que ele não escreveu especificamente
sobre o direito, mas o compreendeu como um dos instrumentos mais
fundamentais para aquilo que identificou como controle, dominação
de uma classe social sobre outra.
A sua maior contribuição para uma sociologia jurídica está na
sua compreensão de que no espaço social há uma teoria do conflito
constante, teoria esta que estabelece necessariamente como instrumen-
tos de dominação as relações entre o direito, o Estado, a economia e
sociedade.
Esta teoria do conflito constante é móvel que justifica a condi-
ção privilegiada pela qual o ordenamento jurídico cumpre uma função
de pacificação e controle dos conflitos sociais.
A sua percepção sobre o social e a realidade foi calcada na dia-
lética hegeliana, que fortemente o influenciou ainda que ele tenha
rompido com os limites e significados elaborados por aquele.
Fundamental para a sua originalidade foi a utilização de um
método, ao qual ele denominou de método do materialismo histórico-
dialético, essencial para construir o arcabouço da sua teoria social a
partir dos seus objetivos teleológicos e, onde encontramos vestígios de
uma sociologia jurídica.
É desta forma que ao se utilizar de tal método percebe que no
modo de produção capitalista (o presente de sua aventura reflexiva), a
classe dominante, ao qual ele nomeou de burguesia, é a detentora dos
meios de produção, o que lhe permite impor os seus interesses (ideo-
logia) econômicos à outra classe essencial: o proletariado.
Desta feita, frente à existência de uma infraestrutura social con-
flituosa, se constitui outra, ao qual ele denomina de superestrutura

134
Formação Humanística

jurídica e estatal a fim de consolidar e manter uma constante domina-


ção de classes.
Portanto, o direito e o Estado, como variáveis que são da estru-
tura econômica e da relação de dominação de uma classe detentora
sobre outras, aparecem como instrumentos de coerção dessa mesma
classe dominante, restando-lhes a função, portanto, de servir à imposi-
ção de sua ideologia, isto é, como instrumentos de dominação e con-
trole social.
Se Marx tem uma importância tangencial, mas significativa do
ponto de vista do pensamento geral da sociologia jurídica, o marxis-
mo, por outro lado, veio a se constituir em uma importante fonte de
referencia teórica para dois movimentos críticos de grande relevância
e que trouxeram severas reflexões sobre o rumo e o papel do direito:
a) O movimento conhecido como Associação Crítica do Direito;
b) O movimento do Critical Legal Studies.
Em relação ao primeiro movimento, o da Associação Crítica do
Direito, ele foi estruturada por volta dos anos de 1970, mais exata-
mente, em 1978, por docentes das faculdades de direito da frança tais
como: Michel Villey, A.J. Arnaud, Nicos Poulantzas e M. Miaille.
Seu projeto, inicialmente de natureza pedagógico-científico, era
reconstruir uma teoria geral do direito, ao qual as influências marxis-
tas se completavam com outras tantas que apesar de se posicionarem
como críticas do capitalismo, já apontavam um discernimento opositor
ao próprio marxismo mais tacanho, praticado por países como a China
e a ex-URSS. Os conflitos político-ideológicos na Europa, conturba-
dos pela influência da crise europeia, levaram-no a uma fragmentação
epistemológica e revisionista.
Já em relação ao outro movimento, este se deu ao longo dos
anos de 1980, e teve como base a analise teórica marxista do jogo
concreto dos mecanismos jurídicos na sociedade capitalista, isto é,
burguesa.

135
Foi conhecido nos Estados Unidos da América como Critical
Legal Studies (CLS), e desde o seu início este movimento se dedicou à
compreensão e crítica das condições antiliberais dos fenômenos jurí-
dicos. Para isso o Critical Legal Studies se utilizou de uma variada
gama de movimentos e referências teóricas, tais como: o realismo
jurídico, o feminismo, o estruturalismo e, fundamentalmente, do mar-
xismo.
Destacando de forma peremptória o empirismo das ciências so-
ciais e econômicas norte-americanos, o Critical Legal Srudies se a-
proximou da historiografia interpretativa e humanista, o que lhe per-
mitiu estruturar o direito como uma superestrutura relativamente autô-
noma, ao qual Sumner chamou de ideologia, Hyde de legitimação ou,
como Duncan Kennedy, força hegemônica (em clara referência aos
estudos realizados por Antonio Gramsci, no início do século XX, na
Itália).
É relevante destacar algumas palavras para a contribuição da
escola do realismo jurídico, fundamentalmente a escola escandinava.
Esta corrente é constituída por teóricos escandinavos. Entre eles
se percebem preferencialmente os suecos da conhecida escola de Upp-
sala. Na qual se destacam Axel Hagerstrom, Anders Vilhelm Ludstedt
e Karl Olivecrona, assim como o dinamarquês Alf Ross.
O elemento que é comum a este grupo enquadrado enquanto
escola de pensamento é a sua atitude antimetafísica radical, já que eles
concordam que a única realidade a qual correspondem os fenômenos
jurídicos é a realidade psicológica.
A atitude antimetafísica é radical: “a possibilidade do pensa-
mento depende do mundo empírico num tempo e num espaço, conce-
bido como o contexto coerente ao lado do qual nenhum outro é con-
cebido”. Ou seja, não se pode perceber a construção de sentido a prio-
ri, mas somente no seu contexto ontológico.
Isso significa que não pode haver uma ciência que tenha por
objeto outra coisa que não as realidades espaço-temporais, e entre

136
Formação Humanística

elas, certamente não se pode encontrar aquilo que se conhece pelo


termo de valores.
Os valores não constituem uma qualidade dos objetos, mas sim
são reações psicológicas de um caráter sentimental, isto é: “ou bem ou
mau, uma vez que enquanto epítetos dados aos objetos ou aos atos,
eles não têm sentido para nós mais do que a medida desses atos ou
desses objetos nos inspirem ao prazer ou ao desgosto ou mesmo ao
qual atribuímos algum interesse”.
“Portanto”, assevera Lundestedt, “não existe justiça. Tampouco
não existe nenhum’dever-ser’ objetivo e, em consequência, tampouco
se dá um direito objetivo, quer dizer, preceitos jurídicos”.
Deste modo, toda a ideologia, incluindo as faculdades e os de-
veres dos sujeitos, a licitude e a ilicitude se dissolve em fumaça. É
certo afirmar que por detrás da ideologia jurídica existem algumas
realidades. Mas isto inclusive é uma superestrutura formada em cima
de realidades edificadas sem um controle empírico, isto é, na imagina-
ção.
A única realidade que corresponde verdadeiramente às palavras
faculdade e dever, licitude e ilicitude é uma realidade psicológica.
Destarte, a axiologia da escola de Uppsala é conhecida, corretamente,
como niilismo dos valores.
O direito, na percepção dos realistas escandinavos, uma vez que
partem de pressupostos antimetafísicos é compreendido não propria-
mente como o direito positivo, mas sim como o direito vigente, ou
seja, aquele que a teoria alemã do século XIX conhecia como ‘GEL-
TENDES RECHT’, e que se pode compreender como o direito válido e
vigente, isto é, o direito que é aceito tanto pelos juízes quanto pelos
sujeitos sociais.
Com efeito, esta escola de direito não se pergunta como nasce
formalmente o direito e por quais fontes ele tem origem, mas se per-
gunta quando e por que determinadas normas sociais são consideradas
como direitos por juízes e sujeitos sociais.

137
A escola de Uppsala desenvolveu-se a partir do ponto de vista
do positivismo filosófico uma crítica contundente, sobretudo, à dou-
trina que defende a existência de uma decisão valorativa e dos chama-
dos conceitos jurídicos fundamentais metafísicos e determinantes da
moral, tais como o conceito de direito subjetivo, de obrigação jurídica,
de contrato, de ordem jurídica etc.
Para o realismo escandinavo todos esses conceitos se situam
num grande vazio, pois o que existe realmente no espaço da vida jurí-
dica são os fatos psicológicos e sociais, assim como certas formas de
comportamento social.
Desta feita, não se poder defender a existência de obrigações
jurídicas ou mesmo contratuais. O que existe, realmente, são as san-
ções coativas realizadas, desta forma, realmente efetivas. Ou seja, a
ciência jurídica se prende a conceitos em vez de se ocupar de fatos e
disso decorre, essencialmente, a sua não cientificidade.
Não menos importante é a escola do Realismo norte-americano.
Segundo observa Norberto Bobbio, o Juiz da Suprema Corte, Oliver
Wendell Holmes, pode ser considerado sem equívoco o primeiro,
precisamente no exercício das suas funções de juiz, a desclassificar o
tradicionalismo jurídico das cortes, e a introduzir uma interpretação
evolutiva do direito, quer dizer, mais sensível às mudanças da consci-
ência social.
Em 1897, Holmes fez uma conferência, intitulada “The Path of
the Law”, na Escola de Direito da Universidade de Boston e a sua
repercussão acabou por provocar uma profunda renovação dos estudos
jurídicos nos Estado Unidos da América.
O enfoque inédito dado por Holmes diz respeito ao tema dos
fenômenos jurídicos aos quais propõe se adotar o ponto de vista do
bad man, quando enfrenta as consequências prováveis daquilo que se
reconhece como uma determinada conduta. Para o bad man o impor-
tante é saber se a ação programada ocasionará a reação positiva de um
órgão do Estado, e a condição legítima dessa reação é o direito, a Lei.

138
Formação Humanística

Afirma Kelsen, que não ficou insensível ao surgimento desse


movimento, que
“No famoso artigo ‘The Path of the Law’, ele [HOLMES] explica: ‘As
pessoas querem saber sob que circunstâncias e até que ponto cor-
rerão o risco de ir contra o que é tão mais forte que elas mesmas,
e, portanto, torna-se um objetivo descobrir quando esse perigo de-
ve ser temido. O objeto de nosso estudo, então, é previsão, a pre-
visão da incidência da força pública através do instrumento dos tri-
bunais.’ Assim, a sua definição de Direito, que é verdadeiramente
uma definição da ciência do Direito, é: ‘As profecias do que os tri-
bunais farão, de fato, e nada de mais pretensioso, são o que quero
designar como Direito.’ Em conformidade com essa visão, ele defi-
ne os conceitos de dever e Direito do seguinte modo: ‘Os direitos e
deveres primários com os quais se ocupa a jurisprudência, nova-
mente, nada mais são que profecias.’ ‘Um dever jurídico propria-
mente dito nada mais é que uma previsão do que, se um homem
fizer ou se abstiver de certas coisas, ele terá de sofrer, dessa ou
daquela maneira, por meio do tribunal; e um direito jurídico pode
ser definido de modo semelhante.’ ‘O dever de manter um contrato
no Direito comum significa uma previsão de que você terá de pa-
gar os danos caso não o mantenha, e nada mais”

A partir das considerações feitas pelo magistrado estadudinen-


se, em especial quanto às razões ocultas nas decisões judiciais, o rea-
lismo norte-americano assume com outro autor uma condição ainda
mais radical. Este vem a ser Jerome Frank.
Para Frank, as sentenças judiciais são elaboradas de forma re-
trospectiva e a partir daquele conjunto de conclusões previamente
formuladas; desta forma não se pode aceitar a tese que representa o
juiz como alguém que “(...) aplicando leis e princípios aos fatos, isto
é, tomando alguma regra ou princípio (...) como premissa maior,
empregando os fatos do caso como premissa menor e então chegando
à sua resolução mediante processos de puro raciocínio”. Assim, defi-

139
nitivamente, as decisões judiciais estão baseadas nos impulsos do
juízo, e estas decisões são extraídas não das leis e dos princípios ge-
rais de direito, mas, sobretudo daqueles fatores individuais que, toda-
via são os elementos mais significativos do que qualquer outra coisa
que se possa vir a ser descrita como pré-juízos políticos, econômicos,
ou morais.
Para Bobbio, inegável o papel e a contribuição de Frank, como
ele destaca,
“(...) a escola realista, cujo principal impulsionador foi Jerome
Frank, foi bem mais adiante dos princípios que podem ser deduzi-
dos de Holmes e Pound. A tese principal da escola realista é esta:
não existe direito objetivo, no sentido de objetivamente dedutível
de fatos reais, oferecidos pelo costume, pela lei ou pelos antece-
dentes judiciais; o direito é uma permanente criação do juiz no
momento em que decide uma controvérsia. Assim se derruba o
princípio tradicional da certeza do direito; pois qual pode ser a pos-
sibilidade de prever as consequências de um comportamento? — e
nisto consiste a certeza — se o direito é uma permanente criação
do juiz? Para Frank, com efeito, a certeza, um dos pilares dos or-
denamentos jurídicos continentais, é um mito derivado de uma es-
pécie de aceitação infantil frente ao princípio de autoridade”.

Outro espaço de reflexão da sociologia jurídica vem de uma


metodologia de natureza funcionalista.
Aqui, se faz obrigatório distinguir duas percepções que, ainda
que inseridas nessa metodologia funcionalista, não podem ser reduzi-
das completamente a ela:
a) Perspectiva objetivista;
b) Perspectiva subjetivista.

140
Formação Humanística

Primeiramente, a perspectiva objetivista tem como escopo es-


tudar a contribuição do órgão para a totalidade orgânica, da parte ou
na relação com o todo, a partir de uma série de conceitos que não os
tradicionais da sociologia até então. Destacam-se aqui os estudos de
Talcot Parsons, os quais derivaram-se em duas posições distintas:
Jürgen Habermas e Niklas Luhmann.
Importa destacar este segundo, não porque é mais relevante do
que o primeiro, mas porque sua percepção ainda está desconhecida de
grande parte da comunidade jurídica em nosso país.
Para Luhmann, o sistema jurídico não é um campo estanque,
imobilizado pela armadura conceitual que nos acostumamos a vestir
sem questionar. Ao contrário é um sistema parcial, vivo, auto-
reflexivo e auto-reprodutivo, e se deve entendê-lo sob o prisma de
operações que acontecem faticamente, isto é, enquanto fenômenos-
comunicações dele com ele mesmo, com outros sistemas do espaço
social, que na linguagem de Luhmann são conhecidos como subsiste-
mas, bem como com o ambiente que o envolve. A teoria dos sistemas
supera algumas das dificuldades que ao longo das décadas nos acos-
tumamos a conviver sem enfrentar.
Ele nos conduz, portanto, a uma caminhada aonde ao direito se
abrem inúmeras possibilidades. O direito é um sistema que por si só
ocupa um espaço e onde não quer ver a interferência do sujeito, da
sociedade, mas sim, quer ver a (re)apresentação da realidade jurídica,
do direito mesmo para esse próprio indivíduo, para que dessa forma
possa ser revigorado enquanto conceito mais elástico na medida em
que busca estabelecer uma compreensão com o ambiente-realidade
sem que isso signifique fazê-lo ser somente observação de um indiví-
duo em particular, ou como afirma Luhmann, ser apenas resultado de
uma observação.
O que se nos oferece é a possibilidade de antever o sistema ju-
rídico como auto-reflexivo (autopoiético), atuante e capaz de romper
com a visão de um direito fadado a uma existência meramente con-

141
templativa, entregue aos desígnios dos indivíduos, ou, quando muito,
justificado pelo direito positivo de forte matriz sociológica.
Em relação à perspectiva subjetivista, interessa destacar que ela
se volta para a contribuição esperada dos elementos sobre o sistema,
isto é, em sua correspondência como um projeto de ação, o que aca-
bou por influenciar a reflexão de Weber, mais adiante Giddens, Tour-
raine e Ferrari.
Desse modo, o que se destaca desta influência funcionalista são
as análises objetivistas, responsáveis por aquelas explicações ontoló-
gico-aprioristicas, bem assim metafísicas quanto às funções dos ele-
mentos de um sistema social-jurídico.
Em última instância, a análise funcional como método socioló-
gico importa na medida em que rejeita apriorismos cognitivos e se liga
à perspectiva subjetiva de análise, quer dizer, no sentido de importar
menos a funcionalidade estrutural e o equilíbrio social do que os pro-
jetos individuais e a complexidade dos desequilíbrios e conflitos.
Especificamente no espaço do ordenamento jurídico esse olhar
funcional-teleológico, no qual podemos destacar a presença de Nor-
berto Bobbio, estruturou o seu objeto como o meio que dispõe a ação
jurídica para influenciar a conduta alheia. Desta forma, tal teoria tende
a refletir as funções do direito a partir de mecanismos de uma ação
jurídica, muito mais do que de seus resultados, o que leva à constata-
ção das funções de natureza repressiva e promocional.
Estes são alguns poucos exemplos do papel que o direito assu-
miu na sociologia ao longo do tempo e que nem sempre se confun-
dem, ainda que destacam em comum a necessária associação do sis-
tema jurídico com o espaço social.

2.4 Direito, comunicação social e opinião pública


O fenômeno da informatização dos Tribunais do Brasil é um
fenômeno recente, ainda não consolidado e que traz uma série de re-

142
Formação Humanística

flexões que se mantêm abertas. Tal processo carrega uma série de


questões, de problemas e dúvidas no âmbito da sociologia jurídica.
Para compreender esse processo se faz necessário olhar a própria
transformação da modernidade.
A modernidade não é entendida aqui como aquele corte mera-
mente didático do discurso histórico que a transformou em uma fase
da evolução humana. Ela é uma forma de representação da realidade,
estabelecida sob certas estratégias discursivas que em muito ainda não
foram superadas.
Estas estratégias discursivas manifestadas a partir de conceitos
no imaginário ainda se reproduzem na atualidade criando um parado-
xo no espaço da ciência, pois por um lado, com a entrada do novo
século, se admite a entrada também de uma era pós-moderna, mas por
outro lado, observando-se mais de perto os sujeitos sociais muitos
grupos ainda nem mesmo superaram a falta de condições de higiene,
moradia, habitação e saúdes básicas, encontrando-se, assim, numa
existência que em tudo não conseguiu superar a ‘antiga’ modernidade.
Neste sentido, Marshall Berman afirma que
“A moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência e
vazio de valores, mas, ao mesmo tempo, em meio a uma descon-
certante abundância de possibilidades... O pensamento moderno,
desde Marx e Nietzsche, cresceu e se desenvolveu de vários mo-
dos; não obstante, nosso pensamento acerca da modernidade pa-
25
rece ter estagnado e regredido.”

Para Lyotard, essa nova modernidade, segunda modernidade é


uma pós-modernidade que tem como principal significado ser uma
crise manifesta no saber, na mercantilização de toda a forma do saber

25 In: Berman, Marshall. Tudo que é sólido se desmancha no ar. A aventura da modernidade.
São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p.23.

143
e num grau tão intenso que é reduzido ao mercado como um produto
qualquer.
Os efeitos desta redução são nefastos, pois atingem a própria
gênese produtora dos sentidos. Impossível que a natureza do saber
reste intacta, mesmo quando se fala do espaço jurídico e de sua pró-
pria reflexão.
Isso porque a complexidade do sistema jurídico, que é o que
nos interessa aqui, não tem como se submeter e acompanhar os novos
canais de produção e exigência da Lei, ao mesmo tempo em que se
quer tornar operacional a todo o espaço social, a não ser que o conhe-
cimento jurídico possa ser traduzido em quantidades de informação.
Pode-se então prever que tudo o que no saber constituído não é tradu-
zível será abandonado, e que a orientação de novas pesquisas se su-
bordinará à condição de tradutibilidade dos resultados eventuais em
linguagem de máquina.
Tanto os tradicionais ‘produtores’ do saber jurídico como seus
consumidores efetivos devem e deverão ter os meios de traduzir nestas
linguagens o que alguns buscam inventar e outros apreender com as
novas formações do poder estatal e da capacidade fragmentária dos
novos espaços sociais (o caso das periferias).
Pode-se então esperar uma explosiva exteriorização deste saber
jurídico em relação ao sujeito que pretende saber (o velho operador de
direito de Kelsen) em qualquer ponto que este se encontre no processo
de conhecimento.
Outra abordagem que importa destacar aqui diz respeito à posi-
ção adotada por Ulrich Beck quanto à teoria da cisão da modernidade
em duas fases distintas: a) a primeira, compreendendo aquele período
que se estende entre o século XVIII até o fim do século XX, cujas
características determinantes foram desde uma sociedade estatal e
nacional, passando por estruturas coletivas, de pleno emprego, de
rápida industrialização e exploração da natureza não visível, até um

144
Formação Humanística

mercado virtual sem natureza nacional definida e com interesses vol-


tados para um indivíduo descolado de qualquer relação política.
A segunda fase, mais contemporânea, e que é delimitada pelo
efeito da globalização, e dos seus principais conceitos sociológicos: a
individualização, o desemprego, o subemprego, a revolução dos gêne-
ros e os riscos globais da crise ecológica, pela turbulência dos merca-
dos financeiros, pelo egocentrismo e por uma crescente e neurótica
preocupação com o ambiente. Esta segunda fase da modernidade para
Beck seria aquela conhecida como radical ou reflexiva.
É uma modernidade marcada pelo abandono de laços de confi-
ança como a família, a vizinhança, a religião, o feudo, e o direito, a
Lei e a norma, para dar lugar a novos traços de comunhão e fragmen-
tação os quais possibilitaram uma sucessão de desencontros e
(re)encontros do/no tempo e do/no espaço.
Encerra-se a fase da crença a qual se vê substituída por uma fa-
se de (des)confiança. (Des)Confiança de que, a priori , o sujeito-
homem poderia, através do uso da razão dominar a natureza, trans-
formando-a partir de seus desígnios e vontades, ao mesmo tempo que
justificando legalmente esse processo com um rol de defesa de direitos
fundamentais previstos na Constituição, como se quer no nosso orde-
namento a partir do artigo 225 da CF/88.
Ainda, conforme já demonstrado previamente em Baker e Si-
mon, desde a emergência da modernidade até o início dos anos oiten-
ta, alguns poucos videntes reivindicavam que a segurança jurídica
detinha a capacidade de incorporar uma superioridade da ciência e da
tecnologia sobre todo o sistema de justificativas presentes na tradição
ocidental.
Portanto, retornando a uma matriz teórica Weberiana, chega-
mos ao conceito de ‘sistemas peritos’, isto é, um dos mecanismos de
desencaixe identificados por Anthony Giddens quando pensa o mundo
contemporâneo dessa segunda modernidade.

145
Ao mesmo tempo, estas reflexões que expõem a transformação
da modernidade também nos permitem uma oportunidade de constatar
um fenômeno que se apresenta inicialmente como uma enigmática
contradição: se, de um lado, a vida humana é mais segura na contem-
poraneidade do que era na primeira fase da modernidade, fruto de
todas as transformações na ciência e nas relações jurídicas, porque
aquela época foi marcada pela certeza e a atual pelo risco?
Este é o desafio que é lançado por Ulrich Beck, e ponto de ob-
servação privilegiado de onde podemos vislumbrar o processo de
informatização do Poder Judiciário no Brasil, pois é sob seu ângulo
que se farão as luzes necessárias à fuga do dilema de Abraham Ka-
plan:
“Se eu perdi as chaves no escuro, não as encontrarei embaixo
do poste, somente porque este está iluminado.”

O fenômeno da informatização dos tribunais é um fenômeno


como muitos que poderíamos citar. E entre aqueles alguns ainda muito
mais paradigmáticos. Contudo, é este campo de observação que per-
mite o encaixe do espaço social dos tribunais com este contexto con-
juntural e estrutural ao qual nos referimos.
Marcado pela velocidade presente como princípio matriz da
nova sociedade midiática, o sistema jurídico busca (re)encontrar um
lugar mais apropriado à mudança do tempo e do espaço, isso porque
ao mesmo tempo que é ameaçado por esta nova velocidade de trans-
missão de informações é visto como único espaço possível de guardar
alguma ideia de continuidade, de segurança.
Essa contradição pode ser compreendida por qualquer um que
perceba o sentido que causou no mundo do ser humano a passagem do
velho mundo agrário-teocêntrico e temporalmente marcado por uma
velocidade controlada para um mundo globalizado, reunido numa
comunidade de informação que penetra com certa eficiência todo e
qualquer espaço privado.

146
Formação Humanística

Realmente, como se deu a epopeia cosmopolita que encontra


seu corolário no mundo contemporâneo? Teria sido a racionalidade
fator tão preponderante no desvio de paradigma de toda uma civiliza-
ção?
Podemos encontrar uma importante base para algumas de nos-
sas perguntas em conceitos desenvolvidos por Max Weber. Para We-
ber, a racionalidade humana se revela a partir da adequação entre mei-
os e fins no planejamento da ação. Isto é: a mudança das noções de
velocidade, tempo e espaço obrigaram o Estado e os seus instrumen-
tos, entre eles o direito e a organização judiciária a uma transformação
de conteúdo, ou seja, a uma necessidade de se questionar, autocriticar
e modernizar mesmo sob o risco de pôr em contradição o ‘mistério do
ministério’.
É desta forma que Weber rejeita o real concebido holisticamen-
te por expoentes do iluminismo e vem a comentar e a destacar a exis-
tência de várias realidades, criadas a partir de parâmetros que vão
balizar a ação social, o discurso jurídico no sentido da elaboração do
planejamento desta ação para as novas realidades sociais.
Se nos valesse o esforço de buscar em Weber a máxima literal
do que se disse acima, poderíamos destacar com legitimidade essa
passagem:
“Aquele, dentre nós, que entra num trem não tem noção alguma do
mecanismo que permite ao veículo pôr-se em marcha – Exceto se
for um físico de profissão. Aliás, não temos necessidade de conhe-
cer aquele mecanismo. Basta-nos poder ‘contar’ com o trem e ori-
entar, consequentemente, nosso comportamento; (...)”

É certo que com a assertiva acima ele expressa muito mais que
uma proposta epistemológica, mas a própria essência de sua teoria das
relações sociais. A metáfora do trem é, assim, um exemplo isolado, da
mesma forma e de outra maneira em que em outro contexto diverso,
Weber se referira à moda e à regularidade na formação de preços no

147
mercado como tipos ideais, bem assim quanto ao papel da Lei e da
norma como controle típico do espaço social, fundamentalmente a
partir de sua burocratização crescente.
Por tipos ideais se deve buscar compreender aquilo que é o pre-
visível, o hodierno, o contínuo, ou seja, aquela racionalidade
(re)definida como uma adequação entre os meios e os fins. Como ele
afirma:
“conceitos abstratos de relações, que concebemos como relações
estáveis no fluxo do devir, como indivíduos históricos nos quais se
processam desenvolvimentos”

Anthony Giddens sistematizou teoricamente os mecanismos


específicos que, na sua visão, foram as ferramentas para o desvio de
paradigma de que tratamos: a substituição da crença pela confiança, a
necessidade de uma crença na lei em uma lei mais e mais informatiza-
da e técnica. O triunfo da razão e da ciência sobre a religião e a velha
condição do ordenamento jurídico revelado.

Porém, Giddens não se deixou envolver pela cilada normativista


que nos faria entender a transição para a modernidade como um
processo local, temporal, a-histórico e unívoco no tempo e no espa-
ço.

Contudo, este trem weberiano e o reconhecimento de que mes-


mo as estruturas tradicionais do Estado sofrem com a modernização,
no caso, a transformação das condições operacionais do acesso ao
poder judiciário, com a crescente informatização, esta não tem o con-
dão de impedir todos os conflitos desse processo num espaço de poder
tão tradicional quanto este do Poder Judiciário.

148
Formação Humanística

Isto é assim porque o Poder Judiciário, que foi concebido en-


quanto espaço de organização político-operacional e materializado por
um conjunto de práticas reconhecidamente profissionais, é um espaço
que se apresenta como estanque na sua (in)capacidade de diálogo que
mantém com o conjunto da sociedade e com todas as demais institui-
ções que a compõem.
Esta assertiva entra em conflito direto com o processo de in-
formatização, uma vez que este é o veículo privilegiado que se destaca
no processo de modernização dos tribunais.
Contudo, é importante destacar este ponto de tensão na medida
em que serve de explicação para a compreensão de que em algum
momento algum espaço da estrutura do Poder Judiciário precisou ser
“degelado” para que esta modernidade dita reflexiva conseguisse ga-
nhar caminho, por outro os efeitos desse degelo não foram ainda bem
percebidos.
Repita-se: as consequências desse “degelo”, perceptível no a-
cesso virtual das ações interpostas pela via eletrônica, ainda não estão
todas claras, já que tal modernidade judicial ainda exige um profundo
caminho de experiências que não se pode prever.
A questão, desta maneira, fica numa condição de indefinição,
pois a sociedade exige uma via alternativa na sua relação com o espa-
ço jurídico, na mesma medida em o próprio espaço jurídico não tem
como condicionar todos os efeitos que para a sua própria natureza esta
alteração nos caminhos do diálogo entre ele e a sociedade podem re-
percutir em sua condição.
Conforme destaca Fernando de Castro Fontainha em preciosa
reflexão:
“Mas o quadro de pensamento ao qual nos apegamos para nos
manter firmes na hipótese é o exposto por Bourdieu, para o qual o
campo jurídico ergue uma barreira entre os neófitos e os iniciados
no Direito, instituindo verdadeiro monopólio [2001, pp. 225-35].
Barreira esta que em verdade distingue e desloca o real em pres-

149
supostos e intenções expressivas, criando assim, mercê da cons-
trução de uma nova visão de mundo, uma relação simbólica de
poder. A interação pode ser fatal para este construto social e para
a manutenção de um mercado de compra e venda de mercadorias
peculiares, que são os serviços jurídicos.

Até um curto passeio pelo fórum sem um guia experiente induz ao


“não-iniciado” uma sensação de antropoemia, o aparente caos e ir-
racionalidade parecem querer vomitá-lo para fora do ambiente.
Também impressiona como o neófito rapidamente sente os efeitos
da antropofagia exercida pelo campo jurídico. A manifestação sen-
sível captada por Bourdieu acerca de sua assertiva se manifesta
na linguagem jurídica. Profissionais são profissionais, porém uma
mesa de bar onde se reúnem iniciados no Direito, sendo o assunto
futebol, sexo ou televisão não escapam das bocas expressões
como ‘salvo melhor juízo’ ou ‘em tese’. Isto se deve a um fenôme-
no linguístico chamado colisão homonímica, que no campo jurídico
é frequente e nítida manifestação de um monopólio sobre um
campo semântico apartado do, digamos, secular. Não se trata de
algo semelhante às designações técnicas da engenharia ou cientí-
ficas da medicina. Para um juiz ou advogado, palavras como ‘ape-
lar’, ‘agravo’, ‘ação’ e “compensação” têm um significado especial,
independente do léxico, que aciona a chave para algum ato espe-
cífico de sua prática profissional. Certa vez, quando falava em uma
conversa informal sobre colisão homonímica, uma funcionária anti-
ga de um tribunal retrucou:

“É assim mesmo! Você não sabe o que aconteceu num juizado um


dia desses!” E contou a estória de um popular que foi ao balcão de
um juizado especial cível saber do andamento do processo que
moveu contra uma concessionária que lhe vendera um carro defei-
tuoso. O funcionário explicou que a ação estava ganha, e que só
estava faltando executar. O popular respondeu de pronto: “Sabe
que foi a primeira coisa que eu pensei, mas minha mulher me con-
venceu que eu deveria fazer tudo direitinho”.

150
Formação Humanística

Assim, ainda que seja inevitável a informatização do espaço do


Poder Judiciário, o que cria toda uma série de ‘novas’ dificuldades
entre tal espaço e o espaço social, esse processo se torna inevitável.
Pois, se por um lado, não é mais possível evitar a marcha deste trem
no que tange às inevitáveis modificações do acesso ao judiciário, por
outro lado uma consequência disso é a evidência da existência de um
conflito entre o direito, enquanto sistema comunicacional, e a socie-
dade enquanto campo que envolve tal sistema.
Há um estranhamento entre aquelas tradicionais operações co-
municacionais jurídicas como as que são produzidas no espaço social,
resultando num afastamento que amplia a ruptura do espaço ocupado
pelo direito em relação ao tecido social.
Ocorre, definitivamente, uma crise no antigo paradigma racio-
nalista da dita ciência jurídica, já que estamos a experimentar um
momento de transição paradigmática. A tradicional concepção racio-
nalista da ciência quanto ao tempo e espaço tradicionais vêm sofrendo
uma alteração na sua própria essência, uma vez que o mundo virtual,
caracterizado aqui como se afirmou com a possibilidade de interposi-
ção de petições pela via da internet caracteriza-se por uma nova apre-
ensão de fatos e de conhecimentos.
Segundo Boaventura de Sousa Santos há muito produzindo in-
tensamente sobre as relações da ciência jurídica com a sociologia
jurídica, as possibilidades dessa transformação a partir de um novo
paradigma ao campo do direito estão abertas a um espaço de grande
indefinição definida pela tensão constante entre a prerrogativa do
direito fundamental do acesso de todos ao Poder Judiciário, ao mesmo
tempo em que se busca a compreensão dessas novas vias de acesso e o
que isso acarreta ao próprio Poder Judiciário.
No mesmo caminho, Antonio Carlos Wolkmer destaca os des-
dobramentos sobre História do Direito, Pluralismo Jurídico e Teoria

151
dos Novos Direitos, temas que se configuram segundo a perspectiva
de um novo paradigma científico, o paradigma pós-moderno.
Nesta perspectiva, Volkmer percebe a crescente pluralidade do
discurso jurídico, o qual não pode mais ficar reduzido a um discurso
formalmente procedimental e normativo. As novas tecnologias de
comunicação em muito explicam toda esta emergente complexidade
de cenários de contato entre a sociedade e o campo jurídico.
No que diz respeito ao direito, à comunicação social e à opinião
pública o acesso à justiça e a transição paradigmática do tradicional
modelo racionalista encontram íntima relação com o aperfeiçoamento
processual e da própria instituição do Poder Judiciário para uma me-
lhor compreensão da totalidade da crise atual da justiça. Portanto, se
pode dizer que ocorre uma pluralização da prática do direito a partir
da inclusão de novos sujeitos e de novas formas de se proceder, par-
tindo-se não mais da concepção do fenômeno jurídico apenas como lei
ou instituição física, mas sim como prática de um complexo espaço
social a partir da prerrogativa da exigência de um amplo acesso ao
Poder Judiciário.
No dizer de Capelletti e Garth,
“A expressão ‘acesso à Justiça’ é reconhecidamente de difícil defi-
nição, mas serve para determinar duas finalidades básicas do sis-
tema jurídico – o sistema pelo qual as pessoas podem reivindicar
seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os auspícios do Esta-
do. Primeiro, o sistema deve ser igualmente acessível a todos; se-
gundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e social-
mente justo.”

2.5 Introdução à sociologia da administração judiciária


A administração judiciária não é um tema isolado, isto é, que
ocorre tão somente no espaço do Poder Judiciário. Ao contrário, ela
está inserida num contexto histórico geral e igualmente nacional.

152
Formação Humanística

Não é de hoje que se destaca a questão gerencial da atividade


judiciária. Este objeto está intimamente relacionado ao processo que
determinou a maturação deste Poder a partir da modernidade e das
transformações sofridas pelo Estado como um todo, quando da crise
do seu modelo absolutista.
Em Montesquieu já se percebe uma preocupação com a inde-
pendência da atividade judiciária, uma vez que na queda do absolu-
tismo a (re)organização do Estado pós-revolução obrigou aos revolu-
cionários reordenar uma nova capacidade administrativa do Judiciário.
Em sua obra, “O Espírito das Leis”, se anota uma preocupação
quanto a capacidade de auto-gestão do Poder Judiciário, na medida em
que o novo Estado precisaria se tornar, tal como uma empresa, uma
estrutura capacitada e qualificada para administrar o espaço social que
fora profundamente excitado pelo processo revolucionário.
Entretanto, na mesma medida em que já compreendia a neces-
sidade de uma independência estrutural do Poder Judiciário, no que
diz respeito à sua independência política, Montesquieu seguia os ru-
mos de seu tempo, uma vez que a Revolução Francesa não percebia
com bons olhos uma total independência desse poder. Não por acaso
ele acabou submetido aos Poderes Executivo e Legislativo, fundamen-
talmente, ao primeiro, como se percebe no ‘Período Jacobino’, co-
nhecido como ‘Fase do Terror’ (1793-1795).
Igualmente Alexis de Tocqueville, ao conhecer os Estados Uni-
dos da América, percebeu as condições de existência do Poder Judici-
ário daquele país, fruto também de uma outra revolução, mas com
características distintas.
Nos EUA, o processo de revolução em torno da independência
da Inglaterra permitiu uma experiência democrática única, criando
uma forte ideologia deste princípio em relação à própria condição de
organização do Estado. É, assim, que neste país da América, o Poder
Judiciário já se organizava em bases administrativas e econômicas de

153
forma independente, criando uma prática de autogestão importante
para a ideologia do novo país.
A condição do Poder Judiciário como espaço administrativo e
econômico, em grande medida independente dos outros dois poderes,
apesar da crítica cruel firmada por Tocqueville à idealização da De-
mocracia nos EUA, permitiu-lhe observar aspectos positivos presentes
no novo país. Não por acaso, ao retornar a França ele retoma a tese da
independência do Poder Judiciário de forma ainda mais incisiva.
Sua posição teórica, vivenciada a partir dos EUA, estava ao en-
contro das reformas promovidas, desde o início do século XIX, por
Napoleão Bonaparte. Este fora responsável não somente pela codifi-
cação, pela racionalização da norma na França, mas igualmente por
uma reorganização do Poder Judiciário que, se por um lado ainda o
mantinha atado ao Poder Executivo, compreendido como o Estado
como um todo, já previa uma capacidade de autogestão.
Ao longo do século XIX, as transformações sofridas pela soci-
edade liberal e pelo modo de produção capitalista, a partir dos efeitos
da 2ª Revolução Industrial, obrigaram ao Poder Judiciário a uma cres-
cente burocratização, uma vez que o espaço da Lei, do direito, preci-
sava se constituir enquanto cenário capaz de absorver os conflitos
sociais sem que isso significasse alguma possibilidade de quebra do
contrato social vigente.
As críticas contundentes da nova ideologia surgida, essencial-
mente com Marx, a partir de 1848, quando este publica “O Manifesto
Comunista”, o que leva a uma substancialização dos sindicatos e de
uma mais organizada reação ao modelo liberal-capitalista, fazem e-
mergir discursos de defesa desse modelo que pregam uma maior pre-
sença da racionalidade alienante, bem como a partir desta uma maior
complexidade na auto-organização do Poder Judiciário.
Nesse sentido, as contribuições de Augusto Comte e Hans Kel-
sen, este ao final do século XIX, início do XX, reforçam o papel do
espaço jurídico como campo privilegiado para suportar, ao mesmo

154
Formação Humanística

tempo em que condicionar e controlar, o conflito social. Para melhor


realizar essa exigência de dominação, tal Poder Judiciário viu a sua
burocratização crescer em capacidade administrativa e econômica.
Ainda que se constituísse em cenário privilegiado para a solu-
ção dos conflitos, o poder deste campo do Judiciário estava propor-
cionalmente relacionado com o fato de que sua estrutura, sua lingua-
gem, seus agentes e seus procedimentos se constituíam aos simples
mortais como um mistério do ministério.
Importa realçar a (in)capacidade de compreensão mesmo que
limitada da organização desse Poder, por parte daqueles que não estão
a ele relacionados diretamente, bem como das fontes de suas receitas e
dos meandros da sua organização administrativa.
Com certeza, nesse processo de complexidade do Poder Judici-
ário, como igualmente na ampliação de sua própria independência
institucional Max Weber tem importante destaque.
Weber identificou três bases do Direito: os costumes, o carisma
e a Lei.
a) Costumes: A partir do Morus social, isto é, de suas constan-
tes regularidades um determinado grupo tem a condição de estabelecer
sua memória dos fatos, criando-lhes um sistema valorativo que permi-
te ao grupo reconhecer tais regularidades como fundantes do agir so-
cial. O agir social, consolidado pelo reconhecimento de que encarnam
um valor que define a ação social torna-se um costume aos quais os
grupos passam a aceitar como determinantes para toda e qualquer
conduta. Estes costumes, regularmente experimentados passam a ga-
nhar uma dimensão sagrada, instaurando-se, a partir daí, um poder do
tradicional, que em muitos sentidos serviu em diferentes momentos
históricos para organizar, controlar e dominar o espaço social.
b) Carisma: A autoridade não pode ser completamente impos-
ta. Ao contrário, a autoridade somente imposta gera resistência dos
sujeitos sociais na medida em que com ela eles não se identificam. A
possibilidade de dedicação à autoridade está nas qualidades de sedu-

155
ção, de aceitação e de carisma que o sujeito ou o grupo podem apre-
sentar e que garantem o poder da autoridade
c) Lei: A necessidade de uma organização mais impessoal a-
caba sendo uma condição do processo histórico, presente em todas as
sociedades. Esta organização mais impessoal não pode ser reduzida a
uma mera vontade de um sujeito específico. Ao contrário, seu proces-
so de produção precisa ser descolado de tal forma que mesmo criado
por alguns possa significar para todos um mesmo papel e significado.
Essa ideologização de que através da máxima razão se poderia consti-
tuir a legalidade, a legitimidade permitiu a melhor obediência e sub-
missão. É na Lei que o processo de controle e dominação encontra a
sua condição mais elaborada, permitindo a estruturação do Estado
moderno como ente artificial, mas ainda com capacidade de ser sujeito
de todos os sujeitos a partir de um espaço mitologizado, isto é, o espa-
ço jurídico.
Weber percebeu que o fenômeno jurídico sofreu um longo pro-
cesso de racionalização, iniciando a partir de um poder fundado no
costume e no carisma (fase mítico-irracional) até a fase da ‘Lei-Norma
racional’. É assim que ele caracteriza três sistemas jurídicos distintos
a partir de sua orientação quanto aos elementos que justificam o po-
der:
a) Mágico-religioso: o poder está aí fundado no ‘sobrenatu-
ral’, a partir de uma capacidade de crença naturalista do homem e na
sua força carismática que o tornam autoridade frente aos fatos da vida
e da morte.
b) Tradicional: este é um poder que está num processo de
transição na medida em que já dá mostras de certa racionalização,
fruto do controle do patrimônio, da propriedade, mas que ainda aqui
se encontram mantendo laços com aspectos teológicos.
c) Secularizados: Neste momento, o que impera enquanto
fundamento do poder é a razão, medida de toda e qualquer forma de
organização na qual o poder não é identificado a um sujeito ou grupo

156
Formação Humanística

específico de sujeitos, mas como resultante de toda certa complexida-


de social.
Somam-se a essas contribuições de Weber o fato de que ele
compreendeu a necessidade de toda uma condição de independência
ao Poder Judiciário, uma vez que a racionalidade não poderia deixar
de determinar as condições dos próprios poderes num Estado seculari-
zado. Defendia, desta forma, um Judiciário capaz de ser completamen-
te autônomo e independente dos outros poderes na medida em que
somente através de uma completa autogestão administrativa e finan-
ceira estaria apto a responder aos conflitos surgidos em sociedades
organizadas como a moderna sociedade capitalista.
Ele defendia a rigor:
a) Que a seleção aos membros do Poder Judiciário se desse de
forma impessoal e aberta a todos, mediando-se por uma seleção em
que os melhores iriam se sobressair, ao qual a via do concurso público
se prestou como melhor alternativa;
b) A separação do poder patrimonial do agente do poder (pú-
blico) jurídico do patrimônio público;
c) Hierarquia interna estabelecendo um procedimento de pro-
gressão de carreira através de condições claramente determinadas por
critérios racionais, tais como: antiguidade e merecimento;
d) Remuneração adequada à atividade do servidor para que o
Estado viesse a ser reconhecido como única fonte de sobrevivência;
e) Conhecimento cognitivo técnico e especializado por parte
do agente do Poder público-jurídico;
f) Capacidade de se recorrer das decisões tomadas em deter-
minadas esferas em instâncias superiores, com o poder de reformar ou
confirmar tais decisões;
g) Concentração da fonte criadora da Lei em uma única esfera
estatal

157
Estas são algumas das contribuições de Weber para o processo
de organização do Poder Judiciário, uma vez que este autor é muito
presente em nosso ordenamento jurídico. Contudo, não é este espaço o
mais adequado para um olhar aprofundado sobre tal teórico da socio-
logia jurídica. Importa, agora, estabelecer algumas observações sobre
o Poder Judiciário em nosso país.
As transformações sofridas pelo Poder Judiciário no Brasil não
se dão descoladas de todo um cenário maior que envolve transforma-
ções do próprio país. Nos últimos 30 anos o Estado brasileiro como
um todo se viu obrigado a significativas modificações frente a neces-
sidades internas e externas que lhe foram impostas.
Em nosso país a percepção de que havia uma crise de grandes
dimensões, seguida de uma obrigatória e imperiosa necessidade de
reformar o Estado (e a sociedade) ocorreu de forma acidentada e con-
traditória, em meio ao desenrolar da própria crise pela qual os espaços
políticos e econômicos passaram ao longo da década de 1970.
A crise do petróleo em 1973 trouxe uma necessidade de se re-
pensar os rumos da economia e do regime num país que baseava o seu
controle político-jurídico exatamente numa ditadura militar que se
apresentava como promotora de um grande desenvolvimento econô-
mico.
O quadro se vê agravado no período de 1979 a 1994, ao qual o
Brasil viveu um período de estagnação da renda per capita, alta de
inflação, fim dos presidentes militares, planos econômicos, constituin-
te, eleições diretas depois de mais de 20 anos e queda de um presiden-
te eleito pelo voto popular.
O esforço de reconstrução nacional se deu em todos os espaços,
incluindo-se aí o do Poder Judiciário, uma vez que fundamentalmente
toda essa crise foi uma crise do Estado e da sociedade.
O Estado experimentou uma crise na sua capacidade fiscal, na
sua capacidade de coordenação e intervenção, no seu papel burocráti-
co e político, o que nos obrigou a reconstruí-lo a partir de vários cam-

158
Formação Humanística

pos, incluindo-se o Judiciário. Nesse cenário é que se pode compreen-


der a dimensão da Constituição de 1988.
O país precisava reorganizar-se na sua capacidade de espaço
privilegiado de imposição da soberania, uma vez que as condições
sociais estavam em franco processo de deterioração. Não apenas as
condições econômicas, mas as condições jurídicas necessitavam ser
modernizadas para receber um país que se via pressionado por uma
nova ordem mundial e por uma indefinida revolução tecno-
comunicacional.
A Constituição veio como uma resposta a esta crise de eficácia
do Estado, mas ao mesmo tempo, pelas rupturas que trouxe com os
novos princípios ideológicos nela presentes trouxe igualmente a ne-
cessidade de se implantar uma moderna administração pública buro-
crática capaz de responder às modificações sofridas pela sociedade.
Diz-nos Bresser Pereira que
“A crise da administração pública burocrática começou ainda
no regime militar não apenas porque não foi capaz de extirpar
o patrimonialismo que sempre a vitimou, mas também porque
esse regime, ao invés de consolidar uma burocracia profissio-
nal no país, através da redefinição das carreiras e de um pro-
cesso sistemático de abertura de concursos públicos para a al-
ta administração, preferiu o caminho mais curto do recruta-
mento de administradores através das empresas estatais. Esta
estratégia oportunista do regime militar, que resolveu adotar o
caminho mais fácil da contratação de altos administradores a-
través das empresas, inviabilizou a construção no país de uma
burocracia civil forte e capaz.”

Desta forma, o Estado e os seus poderes não puderam conservar


as formas tradicionais de sua organização, incluindo-se, aí, as formas
de seu recrutamento.

159
No espaço do Poder Judiciário a Constituição de 1988 inaugu-
rou a necessidade de sua transformação, até mesmo para poder aplicar
os princípios que estavam nela previstos. Ou seja, partindo-se de um
Judiciário independente não somente quanto ao espaço político, mas
fundamentalmente no espaço econômico, este se abria como campo
para oferecer a sociedade brasileira uma nova capacidade de resolução
dos problemas, ao mesmo tempo em que se oferecia como aprendiza-
do para erradicar as tradicionais instituições do patrimonialismo e do
patriarcalismo.
Tanto a Magistratura, quanto o Ministério Público, bem assim a
Advocacia, a Defensoria Pública, a Advocacia Geral da União recebe-
ram amplos espaços de competência e legitimidade para se reorgani-
zarem sob os auspícios da Constituição de 1988.
Desta forma, nesses 22 anos o que se presenciou foi uma lenta,
mas gradual capacidade de reinvenção do Estado e dos seus poderes,
incluindo-se aí de forma vital o Poder Judiciário. Entende-se, desta
forma, a responsabilidade que veio a ser depositada na Constituição,
necessária incondicional a ser a força restauradora da legitimidade dos
direitos fundamentais e do Estado Democrático de Direito.
O cumprimento dessas exigências exigiu um Poder Judiciário
que ao mesmo tempo em que buscasse se aparelhar com novas tecno-
logias e com novos agentes escolhidos a partir de um processo de
seleção mais e mais competitivo, não se deixasse levar apenas pelas
necessidades formais, mas que viesse a representar um campo de e-
xercício pleno dos cidadãos.

2.6 Conflitos sociais e mecanismos de resolução. Sistemas


não judiciais de composição de litígios
Os conflitos sociais se complexificaram. Não na medida de que
em tempos anteriores esta complexidade fosse ausente, mas sim dife-
rente. Nesta medida o Poder Judiciário se vê impingido a novas for-
mas de resolução que, se por um lado obrigam a novas formas de

160
Formação Humanística

atuação, por outro não se pode abandonar todo o espetáculo judicial


tradicional, o que se não for mantido pode significar uma profunda
fenda na capacidade de controle e domínio do campo jurídico.
Inegável que o sistema jurídico ainda traz a funcionalidade de
todo um arcabouço que diz respeito a um imaginário social que, de-
marcado historicamente, reproduz suas operações discursivas sem
querer aceitar as novas condições em que a velocidade do tempo dos
sujeitos acontece.
É verdade que ele não conseguiu acompanhar as transforma-
ções ocorridas após a segunda guerra mundial, transformações estas
que subverteram dogmas que cientificamente já estavam consagrados
e aceitos como definitivos pelos grandes metarelatos. Contudo, mes-
mo assim, o sistema jurídico resiste em sua funcionalidade e, por isso,
sobrevive como sistema no espaço social. Buscando sobreviver ele se
viu obrigado a aceitar e desenvolver outros sistemas que não somente
judiciais para a composição dos litígios sociais.
Conforme Cappelletti e Garth,
“O novo enfoque do acesso à justiça proposto na terceira onda
tem alcance bem mais amplo que as duas primeiras ondas, uma
vez que centra sua atenção no conjunto geral de instituições e
mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para proces-
sar e prevenir as disputas da sociedade moderna”.

Esta terceira onda é resultante de todos aqueles eventos que o-


brigaram o Estado e os Poderes desenvolverem atuações na sociedade
dita dromológica, para poder acompanhar o movimento deste campo
social determinado pelas novas tecnologias de informação e comuni-
cação.
Com as novas técnicas que assaltaram o espaço social, novos
direitos surgiram que não tinham como ser enfrentados pelas técnicas
tradicionais de composição dos litígios, isso porque os sujeitos passa-

161
ram a um estímulo de confronto e estranhamento com o tradicional
tempo de resposta das vias tradicionais.
Este estranhamento não diz respeito somente à legitimidade
sancionadora do direito na medida em que impõe a regra, mas princi-
palmente quando se olha o afastamento do tempo do direito do tempo
social.
Esta disfunção de tempo entre direito e espaço social não é uma
novidade, mas colocada frente aos efeitos do que se entende agora
como sociedade virtual, realidade virtual, velocidade virtual, o confli-
to é novo.
A pretensão do direito vista à luz da dogmática sempre foi bus-
car contextualizar o universo social, naquilo que se entende como
mundo da experiência natural, cotidiana do homem, sem possibilida-
des neste sentido, de prever ou anteceder ao fato, à ação.
O direito sempre buscou, ao contrário, estabelecer um fluxo
temporal determinado, pois através do controle do presente, sempre
consolidado num olhar reflexivo sobre o passado dos fatos, encontrar
aqueles elementos que projetam a observação em direção ao futuro.
Tal caminho temporal culmina com a ‘sentença’, ato de nature-
za decisória que traz sempre um símbolo de certeza naquilo que o
direito entendeu como espaço do indefinido social, isto é, o movimen-
to do sujeito. Mas mesmo esta função ordenadora está colocada frente
a situações que hodiernamente o sistema jurídico não consegue expli-
car.
Reconhecendo-se o papel da complexidade no imaginário soci-
al, se pode dizer que a capacidade temporal do direito não detém mais
a pretensão matemática que em muitos sentidos justificou a sua impo-
sição política na modernidade, sobre o sujeito, e que na soma destas
duas situações o direito enquanto discurso, apesar de manter a sua
reprodutividade, está em um momento de ruptura de paradigmas.
Partindo do princípio que os novos direitos frequentemente e-
xigem novos mecanismos procedimentais que os tornem exequíveis,

162
Formação Humanística

esse enfoque encoraja a exploração de uma ampla variedade de refor-


mas, incluindo alterações nas formas do procedimento, bem como nas
mudanças na estrutura dos tribunais ou mesmo na criação de novos
tribunais, no uso de pessoas leigas ou paraprofissionais, tanto como
juízes quanto como defensores, e, igualmente, modificações no direito
substantivo que estão destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solu-
ção e a utilização de mecanismos privados ou informais para a solução
daqueles.
Como se poder perceber, toda essa nova percepção sobre a atu-
ação e o sentido do sistema jurídico necessita de uma alteração que
não pode ser apenas na forma, mas inclusive quanto ao próprio existir
do espaço jurídico.
Em certas áreas ou espécies de litígios, a solução dita tradicio-
nal – aquele do processo litigioso em juízo – pode não ser o melhor
caminho para ensejar a (rei)vindicação efetiva de direitos, portanto, a
sociedade moderna determinada por uma nova velocidade quanto ao
seu próprio exercício do direito subjetivo possui razões para buscar
tantas outras alternativas que fazem parte da essência do movimento
de acesso à justiça, proposição confirmada, inclusive, pelo inciso
XXXV, do artigo 5º, da CF/88, ao qual confirma um processo judicial
acessível a toda a população, ou que nesse sentido do texto constitu-
cional deveria ser, como possibilidade de solução dos conflitos até
mesmo fora do sistema reconhecido como formal.
Afirma Gladys Alvaréz que os objetivos desta chamada terceira
onda é buscar minimizar um acúmulo de processos nos tribunais;
reduzir os custos da demora; incrementar a participação da comunida-
de nos processos de resolução de conflitos; facilitar o acesso à justiça;
fornecer à sociedade uma forma mais efetiva de resolução de confli-
tos, para através desses efeitos, tentar afastar a crise na relação entre o
espaço jurídico e o espaço social.
No seu entender, estas seriam algumas das vantagens para o sis-
tema jurídico a partir da adoção de meios alternativos:

163
a) Rápidas: pois ao invés de demorar anos, pode terminar com
o problema em poucas semanas ou talvez em até apenas uma audiên-
cia de poucas horas;
b) Confidenciais: devido ao seu caráter privado; informal: e-
xistem procedimentos sim, porém sem o rígido formalismo; flexível:
pois as soluções não estão predispostas em precedentes legais, possibi-
litando que haja justiça baseada nos fatos únicos do caso;
c) Econômicas: oferecem custos diversos, mas sempre são
mais baratos que o litígio dentro do sistema formal;
d) Justas: pois se adapta mais às necessidades concretas e par-
ticulares das partes; exitosas: vez que os resultados são muito satisfa-
tórios.
Já Cappelletti destaca a existência de outras questões bastante
complicadas a serem enfrentadas, tais como:
a) Quais as instituições a promover os procedimentos simplifi-
cados?
b) Quais as pessoas para trabalhar nessas instituições?
c) Quais os padrões e garantias mínimos a serem mantidos nos
meios alternativos de solução de conflitos?
Em relação à primeira questão destacada pelo autor se constata
a possibilidade da arbitragem como uma das instituições utilizadas
para promover a solução alternativa dos litígios, e da mesma forma
que alguns outros institutos, ela é um meio paraestatal de solução de
conflitos que são retirados da esfera judicial e entregue a um particular
para serem resolvidos. Esta entrega a um particular visa não somente
responder com maior velocidade ao litígio, como, também, permitir às
partes uma economia de esforços variados numa área extrajudicial.
Ao mesmo tempo em que para o sistema jurídico brasileiro ela
é uma novidade, enquanto instituição é bastante antiga, portanto con-
sagrada em outros sistemas jurídicos, o que permitiria certa segurança
quanto a sua capacidade. A arbitragem traz uma série de vantagens à

164
Formação Humanística

sociedade, pois possui procedimentos informais, bem como julgadores


com formação técnica ou jurídica, com decisões que não sendo de
caráter definitivo podem vir a sofrer recurso, ainda que de forma limi-
tada, bem como possui como característica essencial, fundamental-
mente, o fato de que as partes da controvérsia escolhem livremente
quem vai decidi-la conferindo aos mesmos poder e autoridade para tal
decisão.
Como percebe Alexandre de Freitas Câmara, a arbitragem é
“Uma técnica para solução de controvérsias através da intervenção
de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma con-
venção privada, decidindo com base nesta convenção, sem inter-
venção do Estado, sendo a decisão destinada a assumir eficácia
de sentença judicial.”

Importa destacar que nenhum dos meios alternativos propostos


para essa renovação do sistema jurídico quanto às expectativas da
sociedade, incluindo-se aí a arbitragem, não tem como escopo buscar
substituir a jurisdição tradicional, isto é, estatal, bem como não pre-
tende concorrer com ela. Ao contrário, tais institutos alternativos bus-
cam ampliar redes de auxílio à jurisdição estatal, desafogando os tra-
dicionais operadores de uma série de conflitos que podem se ajustar
pela via extrajudicial, ainda mais no caso da arbitragem em que se dá
uma manifestação de vontade das partes em litígio que, ao conferir a
um terceiro a capacidade para a solução da lide, estão, num primeiro
momento, dispondo legalmente sobre direitos que a lei considera dis-
poníveis a estas mesmas partes.
No mesmo escopo que a arbitragem, outro instituto que busca
promover, da mesma forma, procedimentos simplificados como meio
alternativo a efetivação do acesso à justiça, é a mediação.
A mediação é um meio extrajudicial de resolução de conflitos
que permite que um terceiro venha a ser chamado para encaminhar as
partes que estão em condição de conflito a alcançarem uma solução ou

165
mesmo acordo; para que isso ocorra elas são orientadas e conduzidas a
buscar realizar acordos, sem que haja uma necessária interferência real
daquele mediador, o que permite-nos afirmar que a resolução da con-
trovérsia estará sempre no espaço das partes.
O objetivo da mediação é, assim, a responsabilização dos pro-
tagonistas, que são capazes de elaborar, eles mesmos, acordos durá-
veis através da restauração e (re) construção do diálogo e da comuni-
cação, o que lhes permite alcançar a possibilidade de uma pacificação
duradoura.
Entretanto a mediação não pode ser percebida como um institu-
to jurídico, mas antes ela é uma técnica de solução alternativa de con-
flitos que propõe mudanças culturais na forma de enfrentar o conflito,
isto é, descolando o conflito como única natureza da diferença entre
direitos e deveres, já que permite às partes envolvidas, por um lado,
um reconhecimento das suas diferenças, e por outro lado, possibilita-
lhes encontrar soluções viáveis para alcançar a satisfação dos interes-
ses envolvidos no processo em questão.
Ainda que a nossa legislação não contemple a possibilidade de
mediação nada impede, porém, a sua aplicação, pois ela tem como
objetivo principal não a busca do direito a ser aplicado ao conflito,
mas, ao contrário, a busca do apaziguamento das partes envolvidas.
Para Luis Alberto Warat,
“As práticas sociais de mediação se configuram num instrumento
ao exercício da cidadania, na medida em que educam, facilitam e
ajudam a produzir diferenças e a realizar tomadas de decisões
sem a intervenção de terceiros que decidem pelos afetados por um
conflito. Falar de autonomia, de democracia e de cidadania, em um
certo sentido, é se ocupar da capacidade das pessoas para se au-
to determinarem em relação e com os outros; se auto-
determinarem na produção da diferença (produção do tempo com
o outro). A autonomia como uma forma de produzir diferenças e

166
Formação Humanística

tomar decisões com relação a conflitividade que nos determina e


configura, em termos de identidade e cidadania.”

Warat, assim, relaciona a experiência da mediação, como novo


espaço de realização entre litigantes, com a experiência da democraci-
a, uma vez que em ambas o agir do sujeito é o principal condicionante
de sua capacidade em buscar soluções que ao mesmo tempo em que
terminam conflitos numa velocidade maior (mediação), também per-
mite uma maior capacidade de alternar rumos político (democracia).
Ainda,
“à diferença do que ocorre em um processo judicial, no qual na
realidade são os advogados que intervêm e manejam o conflito, na
mediação são as partes os principais atores, as donas do conflito
que mantêm, em todos os momentos, o controle do mesmo, dizen-
do quais são as questões que estão envolvidas, assim como o
modo de resolvê-las. O acordo decorrente de uma mediação, satis-
faz, em melhores condições, as necessidades e os desejos das
partes, já que estas podem reclamar o que verdadeiramente preci-
sam e não o que a lei lhes reconheceria. Permite o encontro de al-
ternativas que escapam das possibilidades que a justiça ou o árbi-
tro podem oferecer, limitados pelas disposições legais e jurispru-
denciais”.

Enquanto instituto, mesmo que não de natureza jurídica, a me-


diação apresenta os seguintes elementos:
a) Sigilo, pois não tem o caráter da publicidade tal como ocor-
re na justiça comum;
b) Controvérsia solucionada via mediação fica adstrita ao co-
nhecimento das partes envolvidas e do mediador;

167
c) Informalidade do Procedimento, em oposição ao forma-
lismo existente no procedimento judicial, eis que não requer formula-
ção de pedidos ou defesas na forma escrita;
d) Economia Processual, resultante do fato de que com a me-
diação o único gasto é para com a figura do mediador, o qual deverá
ser pago por ambas as partes, não há despesas judiciais, não há custas
a serem pagas e nem mesmo honorários advocatícios eis que a partici-
pação de advogados não se faz obrigatória;
e) Celeridade na solução do conflito, resultante da própria in-
formalidade, salientando-se que a maior celeridade será obtida nas
hipóteses de menor conflituosidade emocional entre as partes envolvi-
das;
f) Preservação do desgaste emocional das partes, pois o
mediador tem o condão de facilitar a conversação dos indivíduos de
modo que possam de uma forma pacífica sem cargas emocionais che-
garem a um acordo.
Desde 1998 está em trâmite projeto de lei, autoria da Deputada
Federal Zulaiê Cobra, para a regulamentação da mediação. Tal projeto
de lei ao mesmo tempo em que busca incentivar o instituto de media-
ção extrajudicial, preservando plenamente a atuação das instituições
entidades e pessoas especializadas, por outro lado se preocupa- em
construir uma ponte entre a mediação e o Poder Judiciário, permitindo
que este a reconheça no seu espaço por intermédio daquilo que se
denomina de uma “mediação paraprocessual”.
Este projeto de Lei destaca duas espécies de mediação: uma,
denominada mediação prévia (que será sempre de natureza facultati-
va) e que poderá ser extrajudicial ou judicial, e que tem como escopo
incentivar as partes interessadas a buscar o meio consensual da media-
ção; a outra, denominada incidental (ao qual a tentativa tem natureza
obrigatória), pois terá lugar sempre que for distribuída demanda sem a
anterior e prévia tentativa de mediação, extrajudicial ou judicial, ao

168
Formação Humanística

qual, obtido o acordo, não haverá necessidade de nenhuma interven-


ção de um juízo estatal.
As espécies de conciliação e mediação não são idênticas, como
se pode perceber, já que se distinguem no fato de que na primeira, o
conciliador, após ouvir as partes conflitantes, tem como sugerir uma
solução consensual do litígio, enquanto que na segunda espécie o
mediador (não o conciliador) explora positivamente o conflito, tentan-
do permitir as partes que descubram as causas, e a partir desta desco-
berta removê-las o que lhes permite a partir daí à prevenção ou solu-
ção da própria controvérsia.
Independente de quais os tipos e elementos a serem utilizados,
importa o fato de que eles devem sempre buscar a resolução através de
um acordo entre as partes, através de um procedimento simplificado,
que requer o abandono do formalismo, ao qual o princípio da oralida-
de é o meio fundamental para que tal procedimento alcance seu obje-
tivo de forma rápida e eficaz.
No que tange à segunda questão apresentada por Cappelletti,
quais as pessoas para trabalhar nesses procedimentos alternativos, a
resposta que se vislumbra está na utilização de juízes leigos, isso por-
que qualquer possibilidade de sucesso dessa justiça coexistencial está,
fundamentalmente, na própria figura do conciliador, o qual não deve
ser uma autoridade oficial do juiz, ao contrário, deve ser uma autori-
dade social, já que não se quer a confusão do Estado no espaço de
conflito extrajudicial das partes.
Isto é assim porque tal forma de participação popular na admi-
nistração da justiça tem como finalidade consolidar a legitimação
democrática da função jurisdicional, sem entregar todo esse espaço ao
Estado, uma vez que o processo com participação de juízes leigos
perde o caráter esotérico que o torna estranho e incompreensível ao
espaço social; bem como é uma economia de esforços e, igualmente,
visa a uma eficiência mais democrática, uma vez que subtraem da
justiça ordinária as causas que não necessitam de um juiz profissional

169
e, portanto, um procedimento tradicionalmente mais caro e mais for-
mal.
Esta tem sido uma tendência do processo civil moderno, que es-
tá cada vez mais incrementando a participação popular na prestação da
tutela jurisdicional, como forma alternativa de busca da composição
dos conflitos de interesses, através da transação ou conciliação.
Neste sentido, destaca Warat que
“(...)tiene como función el ayudar a cada persona, envuelta en un
conflicto, para que puedan aprovecharlo como oportunidad vital, un
punto de apoyo para renacer, hablarse a sí mismo, reflexionar e
impulsionar mecanismos interiores que los sitúen en una posición
activa delante de sus problemas. El mediador estimula a cada mi-
embro del conflicto para que encuentrem, juntos, el rumbo que van
a seguir salir de la encrucijada y recomenzar a andar por la vida
com outra disposición”

Finalmente, no que diz respeito ao terceiro questionamento


proposto por Cappelletti, e que diz respeito às garantias mínimas a
serem mantidas nos meios alternativos de solução de conflitos, uma
vez que mesmo nesse espaço alternativo se faz fundamental respeitar
as garantias públicas previstas pela Constituição, se destaca em pri-
meiro lugar, a garantia da independência do juiz, que deverá respeitar
o princípio mitológico da imparcialidade, mas não inerte/passivo, uma
vez que é seu dever o desenvolvimento rápido, regular e leal do pro-
cesso.
Um outro princípio constitucional a ser respeitado diz respeito a
garantia do Devido Processo Legal, em especial quanto ao direito das
partes a serem ouvidas, bem como também a terem todo um sistema
adequado de comunicação, um prazo considerado suficiente, um direi-
to a toda e qualquer prova aceita legalmente, e a possibilidade da im-
pugnação de qualquer prova adversa, ao mesmo tempo que garantida

170
Formação Humanística

às partes a prevenção aos excessos e abusos, pois tal Devido Processo


Legal é um fundamental corolário do Estado Democrático de Direito.
Mesmo que seja necessário o desenvolvimento de outros cam-
pos para solução do litígio, ainda que sempre associados de alguma
forma ao espaço jurisdicional tradicional, inegável que o próprio Esta-
do que se vê obrigado a incentivar estas vias alternativas traz dentro
dele grandes ranços de resistência.
Isso é assim porque o discurso jurídico, enquanto discurso ca-
paz de oferecer certa solução ao problema do conflito social não é
muito acostumado a abrir esferas do seu poder, incluindo-se aí um
Estado Democrático de Direito. Toda e qualquer ruptura de paradigma
não se dá sem retrocessos que, ao mesmo tempo em que experimen-
tam a força das ‘novidades’, talham a sua força e obstinação em sedu-
zir aos sujeitos a uma nova condição mundana.
O excessivo e necessário processo de burocratização do Poder
Judiciário é em si um paradoxo, na medida em que quer renovar-se
para continuar a realizar-se, emperra esse mesmo renovar na manuten-
ção do tradicional.
Este ponto de tensão marca os horizontes do sistema jurídico
não somente no século XXI, mudar e conservar, alterar sem perder o
seu significado essencial. Conforme Cappelletti,
“Devemos estar conscientes de nossa responsabilidade: é nosso
dever contribuir para fazer que o direito e os remédios legais refli-
tam as necessidades, problemas e aspirações atuais da sociedade
civil: entre essas necessidades estão seguramente as de desen-
volver alternativas aos métodos e remédios, tradicionais, sempre
que sejam demasiado caros, lentos e inacessíveis ao povo: daí o
dever de encontrar alternativas capazes de melhor atender às ur-
gentes demandas de um tempo de transformações sociais em rit-
mo de velocidade sem precedente.”

171
Eis uma reflexão de Cappelletti que sintetiza de forma crucial
toda essa questão experimentada pelo sistema jurídico nesses dias
presentes:
“se é verdade que, em certo sentido, nada é novo sob o sol, não é
menos verdade que tudo é novo, porque nada se repete perfeita-
mente”

Esta reflexão tem um significado que, num primeiro momento,


pode ser esquecido ou não compreendido pelo observador às vezes
desatento. O sistema jurídico foi elaborado a partir de institutos gerais,
até por que os sujeitos não podiam ser percebidos como singularidades
isoladas. Suas ações e atos foram, desta forma, reduzidos ao espaço da
norma jurídica.
A norma jurídica congela no tempo e no espaço uma determi-
nada ação, criando a partir deste momento uma figura ideal, tanto da
ação em si, quanto dos agentes nela envolvidos. O poder e o limite da
codificação se encontra neste ponto de tensão: por um lado, a norma
codificada é representação formalmente escrita num campo gramatical
e léxico definido, e cria uma idealização-coisificação do agir do sujei-
to na realidade; por outro lado, na medida em que é uma representação
a priori, entenda-se aqui a riqueza desta condição a priori, a norma
tem dificuldades de compreender a complexidade de novos ações que
são e estão já existentes no ordenamento jurídico.
Na mesma medida em que a tipicidade, a anterioridade é fonte
de legitimidade e legalidade, não consegue, no fundo, resgatar toda a
complexidade do agir humano que, apesar de sua existência normati-
va, apesar de suas características e essencialidades, é sempre uma
nova ação, um novo agir.
Na medida em que a idealização da ação humana veio a ser en-
quadrada num campo imóvel do Código, através da norma jurídica,
processo este que se deu em um contexto determinado, isto é, ao longo
dos séculos XVI a XIX, marcado por um excessivo culto a racionali-

172
Formação Humanística

dade, a matemática, a uma lógica cartesiana, com a transformação


deste contexto a força de representação, de significação da norma em
relação à realidade se viu diminuir na proporção do crescimento da
complexidade e de novos signos que assaltaram o universo das ciên-
cias sociais aplicadas.
Este é um ponto vital, o nó górdio de uma crise no discurso ju-
rídico que não parece estar próximo de se realizar: o tempo e o espaço,
bem como o significado do agir, da ação humana, uma vez que já
estão colados, congelados na Lei, ainda podem enfrentar novos signos,
novas formas de significação de ações que apenas aparentemente se
parecem semelhantes?
E, não conseguindo sustentar essa generalização, mas se vendo
obrigado a reconhecer a individualidade, a particularidade, poderá o
ordenamento jurídico ainda ser um espaço privilegiado para reagir e
resolver o conflito dos sujeitos?
As respostas não parecem definitivas, na medida em que esta-
mos assaltados por tantas teorias e percepções que todas as respostas
são possíveis. É esta riqueza de opções de significação, uma limitação
ao desafio proposto ao ordenamento jurídico, mesmo que muitos ope-
radores do direito ainda se agarrem ao sagrado da norma, à revelação
dos códigos como verdades inquestionáveis.
A questão colocada se mantém aberta e indefinida, para o bem,
para o mal.
É neste espaço de (in)definições que o sistema jurídico busca
justificar-se numa transformação do Poder Judiciário, ora num proces-
so populista de desburocratização, importante e simpático, ora numa
silenciosa luta para guardar a tradição e a pompa, enfim, o “mistério
do ministério”, o que por si só é tradicional na sua longa trajetória
marcada pelo patrimonialismo e patriarcalismo.
Talvez, necessariamente, a indefinição seja o que de melhor
pode acontecer para todo o campo do Direito, pois nesta tensão cons-
tante entre tradição/novo reside a sua (in)capacidade de ser definiti-

173
vamente o espaço de controle e (re)(des)organização dos conflitos
sociais.

2.7 A importância de Augusto Comte para o pensamento


sociológico e a sua influência no positivismo jurídico

a) Augusto Comte. (1798/1857)

A partir da leitura das obras de Augusto Comte (entre elas,


“Opúsculos de Filosofia Social; Considerações sobre o poder espiri-
tual; Curso de Filosofia Positiva; Sistema de Política Positiva ou
Tratado de Sociologia instituindo a Religião da Humanidade”), se
pode observar a presença de um método de análise social que se estru-
tura em três pressupostos:

1) As ciências deixam de ser analíticas e passam a ser sintéticas;


2) Uma ideia evolucionista;
3) Uma ideia universal.
Em relação ao primeiro pressuposto se pode compreendê-lo
como uma tentativa de Comte em renunciar a um olhar parcial, um
olhar recortado da realidade. Para ele, a percepção sobre o real deveri-
a, sempre, respeitar o todo e não recortes, uma vez que a sociedade
para ser melhor compreendida exige esse olhar mais absoluto de sua
própria manifestação. De forma crítica, Comte afirmava que à história
se deveria deixar o estudo limitado do fato e do sujeito envolvidos no
devir, enquanto a sociologia deveria não só incluir estes como ir além.
Em relação ao segundo pressuposto, é inegável a influência
que ele sofreu de Darwin e do pensamento evolucionista que este
autor impôs ao pensamento do século XIX em variados terrenos do
conhecimento. Entretanto, não se pode afirmar que o conceito de ‘evo-
lução’ estava presente em Comte, mas sim, sua consequência ideoló-
gica, o conceito de ‘evolucionismo’.
O conceito de evolução evoca uma idéia processual, um pro-
cesso, um movimento constante e indefinido. A evolução é um siste-
ma em constante transformação na qual a previsão é uma improprie-

174
Formação Humanística

dade. Já o evolucionismo é eminentemente teleológico, quer dizer,


traz uma definição prévia de um fim, de um local, de um ponto aonde
se quer e se acredita chegar.
Esta idéia de evolucionismo que não é sinônimo de evolução
é um efeito perverso do pensamento darwinista e que se pode observar
na maioria dos grande pensadores da sociologia ao longo do século
XIX (este também é o caso de Karl Marx).
Para Augusto Comte, a condição de progresso da sociedade
obrigatoriamente a conduz para a vitória e consagração de uma socie-
dade positiva, burguesa e capitalista, estágios definitivos do movimen-
to social a partir da superação de sociedades tradicionais e ultrapassa-
das.
Finalmente, o terceiro pressuposto é uma herança do pensa-
mento ocidental aos quais os pensadores que emergiram neste contex-
to cultural não conseguiram (e até hoje não conseguem) evitar.
O universalismo é herdeiro uma tradição que remonta as raí-
zes gregas e romanas, bem como remonta a tradição da própria Igreja
Católica, que se propôs desde a sua origem a buscar o universal, ao
todo humano. O condicionamento à esta universalidade impôs sua
força e determinação ao olhar da Europa Ocidental de tal forma que
mesmo quando se fala em direitos humanos se esquece desta triste
sina, os direitos humanos ditos universais são eminentemente resulta-
do de um processo cultural que não raro desconhece as particularida-
des do resto do mundo e, não só desconhece como julga e condena
tudo aquilo que não se incorpora a essa condição epistemológica de
ser do pensamento europeu ocidental.
Estando, assim, situado em pleno século XIX, seu pensamen-
to parte da seguinte crise:

a) O desaparecimento de uma sociedade teológica e militar

b) para o surgimento de uma Sociedade industrial científica.

175
Como ele mesmo afirma:
“Os cientistas e os industriais substituem os sacerdotes e os mi-
litares e passam a fornecer as idéias correspondentes aos prin-
cípios da ordem social”.

Desta maneira, importa destacar que o seu olhar sociológico


está marcado pela presença das condições, efeitos e transformações
oriundas da Revolução industrial que, de forma sintética pode ser
compreendida por seis (06) elementos característicos que influenciam
a epistemologia das ciências no século XIX:

a) A indústria se baseia na organização científica do trabalho (quer


dizer, não é o costume que determina a produção, mas o rendimento
máximo do trabalho realizado a partir de uma medida racionalizada);

b) É destacado o papel da ciência e de sua aplicação à organização do


trabalho, pois é graças a essa aplicação que ocorre um desenvolvimen-
to dos recursos econômicos, na medida em que os problemas podem
ser enfrentados com medidas objetivas e não mágicas ou teológicas;

c) A produção industrial leva à concentração dos trabalhadores nas


fábricas e nas periferias das cidades, o que leva a um novo fenômeno
social: as massas proletárias que reúnem em pequenos espaços, as
cidades, uma grande concentração de energia e de recursos, os traba-
lhadores (em última instância tal concentração traz uma condição
paradoxal: ao mesmo tempo em que desvaloriza o produto ‘mão de
obra’, ao concentrá-la, permite a sua educação e conscientização, ain-
da mais com o surgimento do marxismo e dos sindicatos);

d) Tais concentrações de trabalhadores nos locais de trabalho determi-


nam o surgimento de uma oposição, latente ou aberta, entre emprega-
dos e empregadores, entre proletários e burgueses ou capitalistas, tais
oposições marcarão a história da revolução industrial ao longo de todo
o século XIX, levando os países mais industrializados a desenvolver
estratégias para reagrupar o descontentamento e a oposição político
ideológica a seu prazer, diminuindo-lhe o potencial revolucionário e
de ruptura;

176
Formação Humanística

e) Enquanto a riqueza, fruto da aplicação da ciência à produção (re-


cursos e trabalho), não para de aumentar, multiplicam-se as crises de
superprodução, que geram, paradoxalmente, a pobreza no campo de
uma incrível abundância. Há recessão em um espaço de ampliação de
técnicas, produtos e recursos e esta condição de paradoxo obriga o
Estado e a burguesia a desenvolverem novas estratégias de reagrupa-
mento e controle, entre estas, o direito passa a ocupar um papel de
destaque, principalmente o direito constitucional a partir da emergên-
cia da segunda dimensão dos direitos;

f) O sistema econômico, associado à organização industrial e científi-


ca do trabalho se caracteriza pela liberdade de trocas e pela busca do
lucro por parte dos empresários e comerciantes, na mesma medida em
que se dá sob uma base que desfavorece o material humano. Tal con-
dição de desvalorização, somada a exploração de recursos naturais e
disputa entre as nações por esses mesmos recursos levará o mundo ao
período da primeira e segunda guerra mundial.

Contudo, mesmo que situando Comte nesta perspectiva da


tradição do século XIX não se pode aceitar àquelas afirmações que o
colocam como exemplo típico do pensamento liberal em oposição ao
pensamento socialista. Comte não era simpático a nenhuma destas
duas correntes do pensamento, ainda que numa prova objetiva se pos-
sa considerar como mais correto dizer que apesar das críticas ele se
alinhava mais próximo do liberalismo do que do socialismo, ao qual,
não há como estabelecer uma condição de aproximação.

a) Em relação ao liberalismo: para Comte o Liberalismo não é a


essência possível de uma nova sociedade, mas, ao contrário, ele é um
elemento patológico da crise do desenvolvimento de uma organização
que será muito mais estável do que aquela fundada no livre jogo da
concorrência. Comte afirmava que os economistas liberais se pareci-
am como sujeitos metafísicos quando buscavam em suas análises
interrogar os temas do valor, bem como quando se esforçavam por
determinar, em abstrato, o funcionamento do sistema, uma vez que
para isso eles acabavam por romper e cindir o todo social. Finalmente

177
ele os acusa de superestimar a eficácia dos mecanismos de troca e de
competição no desenvolvimento da riqueza;

b) Em relação ao socialismo: para ele o pensamento dos socialistas,


preferencialmente o de Karl Marx, pela sua importância metodológica,
é um pensamento marcado por uma disfunção científica, já que o ma-
terialismo dialético marxiano não parece compreender as condições
evolutivas da sociedade uma vez que após buscar olhá-la e compreen-
dê-la propõe não uma evolução, mas sim uma ruptura que não pode
ser para ele nem funcional e muito menos determinista, já que parece
desconhecer o devenir do conhecimento humano, que para Comte não
pressupõe uma ruptura de tal porte. À Comte não interessava a dife-
rença entre propriedade privada e propriedade pública, uma vez que
em ambas, como demonstra o devir histórico, é sempre um pequeno
grupo que comanda e controla ambas as propriedades, e isso tem sido
assim ao longo de todos os momentos históricos da sociedade .

Pode-se, desta maneira, afirmar que Comte propõe, portan-


to, uma idéia de sociedade que não é nem uma sociedade liberal,
nem uma sociedade socialista, mas uma sociedade que tem numa
teoria da organização social, racional, científica e universal as
suas condições de existir e de ser realista e pragmática. Pretende,
portanto, uma sociedade industrial alinhada a uma coordenação
racional de toda a série fundamental dos diferentes acontecimen-
tos humanos, acontecimentos esses organizados segundo um de-
sígnio único: a passagem da sociedade tradicional para uma soci-
edade industrial.
Para Comte, assim, a sociologia tem como função compre-
ender o devenir necessário, isto é, aquele devenir indispensável e
inevitável da história, de modo que ajude na realização de uma or-
dem fundamental ao qual a sociedade inevitavelmente está deter-
minada.
Para isso, ele estabelece a Lei dos três estados (lei que explica
a passagem da idade TEOLÓGICA para a idade METAFÍSICA
para a idade POSITIVA:

178
Formação Humanística

1. O Espírito humano explica os fenômenos atribuindo-os a seres ou


forças comparáveis ao homem – FASE TELEOLÓGICA;

2. O Espírito humano invoca entidades abstratas como a natureza –


FASE METAFÍSICA;

3. O homem se limita a observar os fenômenos e a fixar a relação


regular que podem existir entre eles, seja num momento dado, seja no
curso do tempo (aqui ele renuncia a descobrir as causas dos fatos e se
contenta em estabelecer as leis que as governam) – FASE POSITIVA

Buscando compreender alguma relação entre a Lei dos 03


estados/ciências, Comte se vê obrigado a abandonar o que chamamos
mais acima de olhar analítico para buscar o que ele denomina de olhar
sintético, ou seja: para ele não interessa o corte, o fato isolado, o
organismo individualizado em partes, mas sim o todo, isto é, a úni-
ca forma possível de se conseguir perceber os detalhes da socieda-
de em constante movimento.
Essa idéia da primazia do todo sobre os elementos deve ser
transposta para a SOCIOLOGIA. Diz Comte que “É impossível
compreender o estado de um fenômeno social particular se não o
recolocarmos no todo social”. Quer dizer, não se pode observar e
compreender a situação da religião ou a forma precisa do Estado ou a
necessária presença do Direito numa sociedade particularizada e par-
cialmente estudada sem considerar o conjunto dessa sociedade, pois
no todo é está possibilidade dessa condição de ser do social.
Para Comte esta condição de buscar o todo para a sociologia
determina-lhe uma ausência de consciência, quer dizer, no olhar do
todo, o que se tem é que tal método serve para se determinar o que é,
o que será e o que deve ser.
Desta maneira, a sociologia é uma ciência do todo históri-
co, ela determina não só o que foi e o que é, mas também, o que
será no sentido da necessidade do determinismo ao qual somente
com o olhar sintético se pode pretender alcançar.
Porém, esta lei dos três estados somente pode ganhar sen-
tido lógico racional quando estes estados são combinados com as
ciências (física, matemática, biologia, sociologia, etc.), pois a or-

179
dem segundo a qual são ordenadas as diversas ciências revela a
ordem em que a inteligência se torna positiva nos vários domínios
da razão humana e social.
Comte afirma, então, que a sociologia é o resultado dessa
combinação (a lei dos 03 estados/ciências). Por isso ele defende a
tese de que há uma unidade da história humana que somente pelo
método sintético e universal pode ser percebida. Para que a história
humana seja uma e una só é preciso que:

a) O homem tenha certa natureza reconhecível e definível, através de


todos os tempos e de todas as sociedades e mesmo nas diferentes fases
da história se possa reconhecer essa natureza comum e presente em
todos;

b) Que toda a sociedade comporte uma ordem essencial que se possa


reconhecer através da diversidade das organizações sociais, pois é essa
ordem essencial que realiza o devenir histórico de evolucionismo
observado na sociedade européia ocidental;

c) Essa natureza humana e essa natureza social sejam tais que possa-
mos inferir delas as principais características do devenir histórico.

Portanto, o ponto de partida de Comte é uma reflexão sobre a


contradição interna da sociedade do seu tempo, entre o tipo teológico-
militar e o tipo científico-industrial. A sociologia que ele busca criar
não é aquela sociologia prudente pretendida pelo pensamento de
Montesquieu, nem mesmo é aquela sociologia revolucionária defen-
dida por Karl Marx, ao contrário, é uma sociologia pragmática, objeti-
va e científica capaz de resolver a crise do mundo moderno, isto é,
fornecer o sistema de idéias científicas que presidirá à reorganização
social apesar de suas inúmeras limitações apresentada ao longo do
século XIX.
Desta forma a sociologia de Comte é, incontestavelmente,
uma ciência sintética, ciência que partindo de leis mais gerais, das leis
fundamentais da evolução humana, busca encontrar e justificar um
determinismo global aos quais os homens podem, de certa maneira, se

180
Formação Humanística

utilizarem, segundo a expressão positivista, numa "fatalidade modi-


ficável".
Uma sociedade somente se mantém na medida em que seus
membros têm as mesmas crenças ou um mesmo acordo possível dos
espíritos. Ou seja, é a maneira de pensar que caracteriza as diferentes
etapas da humanidade e a etapa final será marcada pela generalização
triunfante da organização do pensamento positivo.
Os três grandes temas da filosofia de Augusto Comte:

a) A Sociedade Europeia é exemplar;

b) Há uma dupla universalidade do pensamento científico;

c) É possível explicar a diversidade se a natureza humana é basi-


camente a mesma, se a ordem social é basicamente a mesma? Para
responder a este tema ele afirma que: 1) A sociedade que se desenvol-
ve no Ocidente é exemplar e será seguida como modelo por toda a
humanidade; 2) A história da humanidade é a história do espírito en-
quanto devenir do pensamento positivo ou enquanto aprendizado do
positivismo pelo conjunto da humanidade; 3) A história da humanida-
de é o desenvolvimento da natureza humana.

Portanto, estes são os elementos teóricos gerais do pensamen-


to que se identifica em Augusto Comte:

a) O desejo de manter a propriedade privada e transformar o seu senti-


do, quer dizer, mesmo controlada por poucos ela deve cumprir a sua
função social;
b) Além da ordem temporal, que comanda o poder, há uma ordem
espiritual que é a dos méritos morais, condição que manifesta o mere-
cimento;

c) O objetivo de todos deve ser alcançar os méritos morais, não o


poder;

d) Aceitação de uma ordem temporal, autoritária e hierárquica (Hob-


bes);

181
e) Superposição de uma ordem espiritual à hierarquia temporal (Kant);

f) A organização científica do trabalho é superior a guerra;

g) A uma idéia aceita de um progresso do espírito humano, que é o


fundamento da evolução das sociedades humanas;

h) A evolução do espírito humano é uma e definitiva (tanto podendo


ser determinada por Deus, quanto pela própria razão do homem);

i) O espírito humano é o objetivo último do devenir do homem;

j) O espírito positivo observa os fenômenos, analisa-os e descobre as


leis que comandam as suas relações, pois o progresso necessário do
espírito humano é o aspecto essencial da história da humanidade;

k) A estática e a dinâmica são as duas categorias centrais da sociologia


positivista de Comte: a estática é o estudo do consenso, do todo social;
já a dinâmica é apenas o ponto de partida, é apenas a descrição das
etapas sucessivas percorridas pelas sociedades humanas. A segunda
(dinâmica) está subordinada à primeira (estática);

l) Primado da Força na organização prática da sociedade.

Finalmente, ele declara que: “O sociólogo é uma espécie de


profeta pacífico, que instrui os espíritos, congrega as almas e, se-
cundariamente, atua como grande sacerdote da religião sociológi-
ca”.
Em um olhar de síntese, ao qual não se pode esquecer em uma
questão mais dissertativa, a filosófica da ciência em Augusto Comte
pressupõe: a) uma ciência que é uma fonte de dogmas; b) um conteú-
do essencial da verdade científica que é representado pelo que se
chama de leis, isto é, as relações necessárias entre fenômenos ou fatos
dominantes ou constantes, característicos de certo tipo de ser; c) a
certeza de um dado real: a hierarquia entre os seres é um dado da natu-
reza humana, é uma estrutura imutável que permite olhar do mais

182
Formação Humanística

simples ao mais complexo; da natureza inorgânica à natureza orgâni-


ca; dos seres vivos ao homem; d) a certeza de que há uma ameaça
constante sobre as ciências: e) a tendência a uma dispersão, que é a
perda da síntese pela presença da análise, ou seja, a primazia da parte
sobre a fundamental condição do todo; e, finalmente, f) a condição de
uma sociologia enquanto convergência de todas as ciências, na medida
em que ela é a ciência do entendimento humano.

“A sociologia é também a ciência do entendimento porque o modo de


pensar e a atividade do espírito são, em todos os momentos, solidá-
rios com o contexto social. Não há um eu transcendental que se pu-
desse apreender pela análise reflexiva fora do contexto social”.
(Augusto Comte)

2.8 Da crise do Estado, da Regulação e da


Governamentalidade em uma sociedade complexa

2.8.1 O problema jurídico da regulação estatal enquanto


ponto de partida em relação à teoria do direito: crônica de
uma morte anunciada

“Nós devemos sempre estar preparados para estabelecer a verdade


da maneira que a vemos, mas nós nunca devemos recusar enxer-
gar além dessa verdade e de afirmar isso, só porque no passado
nos comprometemos com uma afirmação que agora nos parece
imperfeita.”
John Hicks (Critical Essays in Monetary Theory)

“Metidos em redes globais de turbulentos fluxos financeiros, os


governos são cada vez menos capazes de controlar a política e-
conômica nacional, já não podem dar a seus cidadãos as vanta-
gens tradicionais do estado de bem-estar social”.
(Fritjof Capra)

183
A atual e necessária questão acerca da efetividade da
regulação jurídica passa, obrigatoriamente, pela revisão do papel
regulatório do Estado na contemporaneidade26. A óbvia, e talvez por
isso tão evitada discussão acerca das formas, dos limites e dos
possíveis conteúdos da regulação estatal através do sistema jurídico
encontra na legitimação o primeiro obstáculo a ser enfrentado27.
Assim, qualquer diálogo nesse contexto deve partir de uma
análise dos diversos discursos herméticos que compõem a sociedade,
salientando a posição dos poderes estatais (Executivo, Legislativo e
Judiciário) na tentativa nem sempre bem-sucedida de atender e
representar tais interesses que se caracterizam por serem plurais e
fragmentados e, não raro, contraditórios em uma sociedade não menos
plural e não menos contraditória.
Em socorro a esta tarefa convém recordar uma obra de
Gabriel Garcia Márquez intitulada Crônica de uma Morte
Anunciada28. Em resumo: em um vilarejo, na costa caribenha da
Colômbia festejava-se um casamento. Contudo, na própria noite de
núpcias ocorre uma desgraça. A bela moça que se casara na véspera
fora devolvida à casa dos pais porque o marido viu que não era
virgem. Logo, decide-se que o “malfeitor” da pobre moça deve morrer
para que a família “lavasse sua honra com sangue”. E quem deve
executá-lo são os irmãos da noiva que nada são estranhos ao
indivíduo, ao contrário, o conhecem desde sempre.
O impressionante na crônica é que todos os moradores no
vilarejo sabem que o crime é iminente, e todos querem evitá-lo,
inclusive aqueles encarregados do assassinato. Contudo, os fatos se
desenvolvem e todos os personagens são conduzidos mesmo contra
vontade íntima, mas de acordo com uma vontade coletiva que nenhum

26 A efetividade da regulação jurídica, e, portanto a efetividade do próprio Direito, deve ser


compreendida aqui no sentido tanto da observância das normas jurídicas quanto também da
sua eficácia social empiricamente constatada.
27 No decorrer do texto optou-se pela referência ao conceito de legitimação, em detrimento de
legitimidade, por entender que esta só é possível a partir de um processo, de um vir a ser, não
se constituindo em uma espécie de característica inata de algo, que pode conduzir a uma
postura antitética linear, metafísica e reducionista de: ou se tem legitimidade, ou não. Contudo,
manter-se-á o uso gráfico de legitimidade na referência as ideias de autores que aludem a essa
grafia, em respeito a suas conotações. No mesmo sentido LUHMANN, Niklas. Legitimação pelo
procedimento. Brasília: UNB, 1980.
28 GARCIA MARQUEZ, Gabriel. Crônica de uma morte anunciada. Record: Rio de Janeiro,
2001.

184
Formação Humanística

deles consegue evitar, até a cena prevista, na qual a vítima será


“retalhada como um porco”.
Dá-se na trama uma espécie de self-fulfilling prophecy:
todos sabiam o que estava para acontecer, todos sabiam que o
assassinato era um crime proibido pela ordem jurídica local, todos
tinham consciência da pena aos que ousassem transgredir e mesmo
que nenhum deles desejasse intimamente que o crime se consumasse,
contudo, o crime acontece exatamente como previsto e todos aqueles
que tentaram evitá-lo de alguma forma, ao final, contribuíram
decisivamente para a sua realização.
Mesmo que todos os envolvidos tivessem consciência da
gravidade do fato, do peso da sanção e da alta probabilidade de que
ela viesse a ser imposta, ou seja, por um lado, reconheciam a
existência daquelas normas jurídicas que proibiam o assassinato e que
essas normas seriam, posteriormente, aplicadas; por outro lado, a
existência dessas normas repressoras do ato não é ilegítima, na medida
em que o grupo percebe nelas a presença de sentidos que identificam
na própria moral do grupo que se constitui na ética societal. Mas, por
que não desistiram do ato? Por que realizar o cumprimento de uma
profecia contrária à regulação jurídica? Por que agiram contrariando
os seus próprios interesses individuais? Por que a
governamentalidade29 não lhes impediu o agir que em síntese a
ameaça?
Num mundo tão cansativamente globalizado à globalização,
conceito que de tanto recortado e colado a tantos e variados discursos
já não diz muito, é a violência a aposta esperada pelo coletivo
traumatizado. É preciso inventar a culpa e o culpado ao mesmo tempo
em que se busca absolver a responsabilidade de aceitar as condições
impostas pelo espaço público tradicional para que a coletividade
incitada reencontre a (a)normalidade perdida.
Mas a morte anunciada quando consumada não põe fim ao
desrespeito à ordem jurídica; antes o contrário, dá início ao próprio

29Diz Foucault que o conceito de governamentalidade “É, portanto, o conceito que permite
recortar um domínio específico de relações de poder, em relação ao problema do Estado [...] a
palavra já não designa somente as práticas governamentais constitutivas de um regime de
poder particular (Estado de polícia, ou governo mínimo liberal), mas as maneiras como se
conduz a conduta dos homens...”. in: FOUCAULT, Michel. Segurança, Território e População.
São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 532.

185
processo que reconhece o desrespeito às normas estatais. È o que se
constata ao final, quando depois de presos e processados, os
assassinos são absolvidos unanimemente do crime perante o tribunal
do júri, tribunal dos seus pares.
A comunidade local os absolve de um crime em que todos
foram testemunhas e, muitos dentre eles, até mesmo participaram da
ação em um crime premeditado, com materialidade e autoria
evidentes. É o senso comum que nega aos assassinos a sanção jurídica
que todos sabiam ser devida (e, até que ponto, devida por quem? Pelo
Estado, desafiado? Ou pela sociedade, subvertida e subvertendo a
própria ordem?) e que o ordenamento legítimo impunha. Por que a lei,
o sistema jurídico não foi capaz de evitar o crime? Mais grave: por
que a lei, o sistema jurídico com toda a sua linguagem não é
observado nem mesmo depois do crime cometido?
Como explicar, do ponto de vista de uma teoria do direito,
de uma teoria da governamentalidade a assustadora e diminuta
efetividade da lei neste vilarejo da Colômbia? Como explicar os
desvios coletivos dos habitantes do vilarejo em relação à norma?
Mais ainda: servindo-nos desse pequeno cadinho do mundo,
como explicar a crise que assombra a efetividade da lei no incrível
emaranhado de coletividades humanas que num dado momento as
aproxima quanto a esta paradoxal condição de enfrentamento a
vontade do Estado?
A resposta geral a todas estas questões aparece subsumida
na própria história: a existência de uma orientação normativa
concorrente com a proveniente do Estado que ameaça não só o poder
de regulamentação, mas a própria idéia da governamentalidade, pois é
construído um senso comum sobre a ordenação social-cultural oficial:
aquela determinava a morte do “malfeitor” a todo custo, mesmo que
ao custo de entrar diretamente em choque com a disposição jurídica; a
segunda, que não pode associar-se com a primeira, exige que os
‘justiceiros’ respondam pelo que todos compreendem como a única
ação a ser feita para reordenar as relações sociais abaladas.
Em certo sentido, a resposta do grupo de moradores, ao
natural, age para contrariar o Estado e a sua capacidade de governo e
de governamentalidade, pois se insurgem contra ela, contra o fato de
que ela é “(...) entendida no sentido amplo de técnicas e

186
Formação Humanística

procedimentos destinados a dirigir a conduta dos homens. Governo


dos filhos, governo das almas ou das consciências, governo de uma
casa, de um Estado ou de si mesmo”. (Foucault, 2008: 532)
O sujeito se insurge contra uma idéia de si em si mesmo,
pois se vê obrigado a (re)agir contra uma condição aceita na própria
ação. Em certo sentido, ressignificam a idéia de população
abandonando-se no conceito de povo, o que representa uma nova
condição para a ação do grupo na qual esta se reagrupa numa certa
vontade dos habitantes do vilarejo que rompem com a épistémè
reconhecida por Foucault quando observa as transformações pelas
quais passou o Estado. A épistémè que se reconhece é a da violência,
da ação direta, de uma vendeta moral capaz de ser jurisdicializada na
medida em que o dever-ser é assaltado pelo desafio da vontade social
à vontade estatal.
É, assim, de certa forma, uma emergência do não dito, de uma
descontinuidade na resiliencia da continuidade histórica, uma ruptura,
de algo que em tese não poderia estar, isto é, ser devolvido ao nível da
consciência coletiva, contrariando aquele contínuo histórico-social
que fundamenta a idéia do Estado moderno.
O agir dos moradores do vilarejo é mais do que uma tomada
de consciência, é uma ruptura com toda uma presentalidade social.
Como observaria Foucault, é um despojamento.
“É preciso abandonar essas críticas fabricadas, esses
agrupamentos que são aceitos antes de qualquer exame, essas
ligações cuja validade é admitida de saída; rejeitar as formas e
forças obscuras pelas quais se tem o hábito de ligar entre si os
pensamentos dos homens e dos seus discursos; aceitar ter
relações apenas, em primeira instância, com uma população de
30
acontecimentos diversos”.

A obra de Garcia Marquez denuncia de forma lúdica, a crise


regulatória do direito na sociedade contemporânea ao admitir o
conflito entre normas jurídicas oficiais e não oficiais. E, na
emergência cotidiana destas últimas, denuncia a crise e o conflito da
governamentalidade estatal, bem como a força apocalíptica da

30 FOUCAULT. Michel. Arqueologia das ciências e história dos sistemas de pensamento /


Michel Foucault; organização e seleção de textos Manoel Barros da Motta; tradução Elisa
Monteiro – 2ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008, p. 88.

187
violência, ao mesmo tempo redenção e rendição. Conflito esse que
parece ter passado despercebido pelos desenvolvimentos jurídicos em
matéria de teoria do direito, mas que fazem parte da grande discussão
internacional dos últimos quinze anos.
Movimentos como o do Critical Legal Studies31 e da Legal
Deconstruction32, entre outros, colocaram fim na discussão acerca de
qual a orientação a ser seguida: o intervencionismo ou o liberalismo;
princípios individuais ou coletivos; racionalidade material ou formal;
substancialismo ou procedimentalismo.
Apesar de esse debate esvaziar-se totalmente de sentido,
principalmente tendo em vista a desconstrução que esses movimentos
possibilitaram da diferença entre âmbitos privado e público de
regulação, os juristas permanecem nesse dualismo, mesmo que de
forma inconsciente. Tal panorama se deve, em muito, a vetusta
discussão teórica travada nas raias do normativismo e da teoria da
norma jurídica entre correntes neo-positivistas e um renovado jus
naturalismo deontológico que em si já carrega toda a sua fragilidade
frente a uma sociedade que de tão opaca, já não se recria, está, assim,
como quer Giddens, reflexiva, mas na percepção de Boaventura, na
crítica pela crítica em um estado cruel de tautologia.
Ao mesmo tempo, na sociedade, tanto uma ordem global
básica, quanto uma ordem nacional que sejam juridicamente
vinculantes e territorialmente definidas não são mais perceptíveis. As
bases de sustentação do sistema jurídico moderno são abaladas pelas
ondas de choques causadas pela desgastante palavra-conceito
globalização e pela privatização33.
Da mesma forma, cada vez mais atividades sociais são
dirigidas por grupos não governamentais, ONG´s, empresas privadas,
grupos comunitários, etc. Afirmam-se tendências de auto-regulação
social, trabalhando não de forma paralela ao Estado, mas obrigando-o

31 KENNEDY, Duncan. Critique of adjudication. Cambridge: Harvard University Press, 1997.


UNGER, Roberto Mangabeira. What should legal analysis become? Londres: Verso, 1996.
32 DERRIDA, Jacques. Fuerza de ley: el “fundamento místico de la autoridad”. Madrid: Editorial
Tecnos, 2002.
33TEUBNER, Gunther. “Reencontro com ‘il buon governo’”. In: TEUBNER, Gunther. Direito,
sistema e policontexturalidade. Piracicaba: Unimep, 2005. p. 271

188
Formação Humanística

a cumprir determinadas decisões em dimensão local ou regional34 num


sistema de tomada de decisões complexas que fogem do clássico
sistema top dowm e que são tratadas pelo nome sugestivo de
governança35.
O ‘local’ ressurge de alguma forma, manifestando a sua
importância que parecia perdida.
Toda esta complexidade ainda tem o poder de subverter as
condições de disciplina, lei e segurança que se viram constituídas nas
transformações das relações do Estado com a sociedade. Inclusive
quanto à força da própria presença da segurança. O que se observa
nesta crise é a emergência de nova tecnologia do poder, na medida em
que o espaço social parece produzir novas respostas a novas opções de
reação ao que violenta a emergência da violência.
O espaço social contemporâneo, recontextualizando a obra
de Garcia Marquez reapresenta um desafio à capacidade de regulação
da população, desafio que tem a sua capilarização decisivamente
marcada pela globalização. O sujeito pode estar assim, estimulado a
desafiar aquilo que Foucault nomeia de sociedade de segurança,
radicalizando inclusive o que ele mesmo já colocava: “(...)
poderíamos dizer que em nossas sociedades a economia geral de
poder está se tornando a ordem da segurança?”36
Tanto os problemas trazidos pela globalização, quanto às
novas possibilidades esboçadas pela Private Governance apontam
para o fato de que a distinção reducionista substancialismo versus
procedimentalismo já não serve mais de orientação segura. Dessa
forma, o sistema jurídico, a lei, a governança e a governamentalidade
perdem suas diferenças diretrizes, suas unidades, fragmentando-se em
um sem número de discursos diferentes. Os respectivos fundamentos

34ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização. Rio de Janeiro: Renovar,


1999. ARNAUD, André-Jean; FARIÑAS DULCE, María José. Introdução à análise sociológica
dos sistemas jurídicos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
35COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPÉIAS. Livro branco da governança européia.
Bruxelas, 25.7.2001 [COM(2001) 428 final] e COMMISSION ON GLOBAL GOVERNANCE. Our
global neighborhood. New York: Oxford University Press, 1995. Para maiores detalhes, relató-
rios e documentos relevantes a respeito da Governança ver os sites da ONU
http://www.un.org/issues/m-gov.asp e da União Européia
http://europa.eu.int/comm/governance/index_en.htm
36 FOUCUALT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p.
516.

189
da ordem estatal-jurídica são abalados e as construções teóricas
normativistas já não se sustentam como condição de possibilidade de
uma compreensão adequada da realidade, de uma compreensão do
fenômeno jurídico, e, muito menos, do fenômeno social da violência.
A fragmentação discursiva da sociedade, seja ela efeito da
globalização ou do surgimento de movimentos sociais, reflete-se
numa espécie de estilhaçamento jurídico interno37.
Contemporaneamente, o maior desafio do Estado e de sua capacidade
de governamentalidade é a perda de uma unidade romântica e a
consequente desconstrução imposta por vários sistemas particulares de
regulação que compõem a arena global.
Lex mercatoria, lex laboralis, lex sportiva internationalis,
entre outros tipos de regulação normativa social constituem-se em
políticas de lei sem ou para além do Estado. Eles são produtos de uma
série de discursos altamente especializados, frutos do
desenvolvimento de regimes privados de governança e que conservam
certa autonomia do sistema jurídico nacional e do sistema jurídico
internacional público38.
Tais fenômenos sociais têm o condão de exercer tarefas
administrativas regulativas e de solução de conflitos em novas áreas e
sob novas formas, que tendem a escapar da estrutura e da burocracia
estatais. São novas áreas na medida em que sempre estiveram ali, mas
não foram contempladas pelo discurso oficial. A sua emergência se
deu, por um lado, pela ampliação das prerrogativas do consumo, dos
direitos exercidos pelos consumidores que foram ampliados
equivocadamente pelo crescimento do status dos direitos
fundamentais, e por outro lado, pela espacialidade diversificada da
violência que deixou de ser restrita aos espaços tradicionais e invadiu
áreas que se acreditava estarem imunes a sua presença.
Contudo, a perda da unidade da governamentalidade deixa
vulneráveis seus âmbitos de regulação, disciplina e segurança,
permitindo que assumam lógicas racionais de outros sistemas sociais,
como a economia ou, perversamente, uma lógica universalista dos

37 Nesse sentido, abordando a tendência de fragmentação dos conceitos, o estilhaçamento


dos conceitos jurídicos ou do direito – zersplieterung –, ver a contribuição de Erik Jayme.
JAYME, Erik. “Visões para uma teoria pós-moderna do direito comparado”. Revista dos Tribu-
nais. São Paulo, n.º 759, 1999, p. 36.
38 TEUBNER, Gunther. “Reencontro com ‘il buon governo’”. In: TEUBNER, Gunther. Direito,
sistema e policontexturalidade, p. 276.

190
Formação Humanística

direitos fundamentais. Nessa perspectiva o grande desafio do Estado


surge como a necessidade de desenvolvimento teórico-prático de uma
adequada regulação jurídica, que seja capaz de corresponder à
situação atual, ou seja, que compreenda a possibilidade de quebra do
monopólio regulativo e da segurança, a definição das áreas de
abrangência e dos limites da atuação estatal e de sua cada vez mais
contestada capacidade de poder.

2.8.2 A Posição Central do Estado no Normativismo


Social-Jurídico

“De maneira geral, a questão que se coloca será a de saber


como, no fundo, manter um tipo de criminalidade, ou seja, o roubo,
dentro de limites que sejam social e economicamente aceitáveis e em
torno de uma média que vai ser considerada, digamos, ótima para o
funcionamento social dado. A lei como mecanismo disciplinar”.
(Foucault, 2008: 08)

Seguindo essa óptica, Zagrebelsky comenta a importância


da re-visão de três instâncias indispensáveis para o sistema jurídico: a
teoria das fontes, a teoria das normas e a interpretação jurídica. Ao
longo dos anos, este sistema de leis pareceu resolver a questão do
papel do Estado, e, por conseguinte a questão da regulação e da
segurança, recorrendo-se a uma teoria hierárquica das fontes.
‘Fonte de direito’ passou então a ser o fundamento último, a
condição de última instância. O fundamento era buscado no Estado e
na sua capacidade de governamentalidade, numa concepção
contratualista própria da compreensão da sociedade moderna. Tendo
essa origem variado de acordo com a evolução do fenômeno jurídico.
No momento em que se aceita uma expressão múltipla da
ordem jurídica, naturalmente surge uma nova questão: se a fonte de
direito não é única, qual a fonte última? Qual a fonte principal da qual
decorrem logicamente todas as demais? Na tentativa de se responder a
tal pergunta a teoria do direito recorreu a vários tratamentos
diferenciados originando o que se passou a chamar de teoria das
fontes.

191
A construção mais influente (ou ao menos a mais
tradicional) passou a ser representada por uma ordem escalonada de
fontes: a ordem eterna, a ordem natural e a ordem humana. No início
da Idade Média surge a necessidade de mais uma instância de
representação do fundamento jurídico: a ordem divina. Direito
eternos, direito divinos, direito naturais, direito Positivos e direitos
fundamentais conformam-se, assim, nas bases fundamentais do
sistema jurídico, da lei. Com a falta de fundamento atribuída à ordem
eterna – porque seus mistérios eram incompreensíveis ao ser humano
– e à ordem divina – como resultado da afirmação da racionalidade
instrumental-científica moderna – direito natural e direito positivo
passam a disputar a posição de destaque na definição ontológica de
Direito, isso, pelo menos, ao longo dos séculos XIX e XX.
Num determinado momento do desenvolvimento do sistema
jurídico, tanto os direitos positivo quanto o Natural convergem sobre
um determinado ponto: a identificação de leis. A lei seja ela expressa
ou escrita pela mão do homem ou deduzível tacitamente pela física ou
pela lógica matemática assume a primazia sobre as demais formas de
expressão da lei. O custo desta pretensão foi a prática de se renegar os
costumes, os dogmas conceituais e os princípios gerais para um
âmbito subsidiário na definição do jurídico.
A existência da lei passa a ser, concomitantemente a
expressão última e o fundamento primeiro do sistema jurídico e da
própria governamentalidade, assim como a forma clássica de
regulação social encontrada pelo Estado. O fato social se vê, desta
forma, compreendido idealmente no espaço da lei, reapresentado
enquanto lógica formal gramatical, sem que se perdesse com tal
absurdo positivista reducionista uma incrível ampliação do sistema
legal na medida em que concentra a regulamentação, a segurança e a
governamentalidade estatal. Como coloca Foucault sobre tal
ampliação:

“Retomem agora todo o conjunto da legislação que vai dizer respeito


não apenas ao roubo, mas ao roubo cometido pelas crianças, ao
estatuto penal das crianças, às responsabilidades por razões mentais,
todo o conjunto de legislativo que diz respeito ao que é chamada,
justamente, de medidas de segurança, a vigilância dos indivíduos

192
Formação Humanística

depois de sua instituição: vocês vão ver que há uma verdadeira


inflação legal, inflação do código jurídico-legal para fazer esse
sistema de segurança funcionar... e o que consiste algumas destas
tecnologias de segurança”.
(Foucault, 2008:11)

Em latim legitimus não quer dizer mais que a conformidade


com a lex, contudo, nas línguas modernas o conceito de lei aparece
mais diferenciado e, como consequência, também o de conformidade
a ela39.
A passagem ao Estado moderno, i.e., parte como resultado
da industrialização, mas mais pela inclusão da agricultura na
economia monetária e, finalmente, pela Revolução Francesa,
substituiu gradativamente a legitimidade pela legalidade, até subjugá-
la a pura legalidade constitucional. A redução, do ponto de vista da
teoria, culminaria com a conhecida obra de Hans Kelsen:
“O princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida até
a sua validade terminar por um modo determinado através des-
ta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade
de uma outra norma desta ordem jurídica, é o princípio da legi-
40
timidade.”

Tal pensamento de um positivismo extremo recebeu


correções no pensamento alemão, mormente em Weber e sua distinção
entre legitimidade carismática, tradicional e racional. Num primeiro
plano estabelece-se uma correspondência entre os tipos de ação e
respectivas legitimidades, cada uma delas buscando uma forma
específica de validade41. Num outro prisma, tem-se a divisão da
legitimidade racional em racional com relação a valores e legal,
ficando a aceitação da última baseada na vigência do estatuído
positivamente.
Não obstante, Ayuso destaca duas diferenças importantes entre a
legitimidade weberiana e a kelsiana destacando que, por um lado,

39 AYUSO, Miguel. De la ley a la ley. Madrid: Marcial Pons, 2001. p. 15


40 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 233
41 Para os tipos de ação ver WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología com-
prensiva. Traduzido por José Medina Echavarría. 2. ed. Bogotá: Fondo de Cultura Económica,
1977.

193
abre-se a possibilidade de distinguir entre legalidade e legitimidade no
caso de um poder socialmente não aceito, ou tirânico, enquanto que
por outro se aponta levemente a possibilidade de se considerar uma
legitimidade não legal por via de admissão de um direito natural
residual e minimamente operante42.
Contudo, Weber ainda se mantém no domínio com base
numa legitimidade judicialmente sancionada, ou seja, aproximando o
conceito de legitimidade do de legalidade.
Até o início do século XX a criação de uma teoria das fontes
e a supremacia da lei mostram-se como a solução do Estado Moderno
para a questão da regulação e da confirmação de sua capacidade de
governamentalidade. Tal solução, apesar de fortemente contestada
durante longo tempo apenas encontrou outra forma de representação
através da ascensão do normativismo e o desenvolvimento de uma
teoria da norma, por mais formal e mecanicista que tal teoria tenha
vindo a representar.
O problema da regulação e da segurança social encontra,
assim, a partir do início do século passado uma nova resposta: a
norma jurídica. Surgem, então, algumas teorias jurídicas inovadoras,
todas elas considerando o conceito de norma como o conceito
fundamental do sistema jurídico e até de uma ciência jurídica. A
norma jurídica passa a ser até mesmo um indicador do espaço social,
uma vez que ela reagrupa a ação do sujeito social a partir dos seus
limites ideológicos.
Durante todo o século vinte, construções teóricas diferentes,
e até mesmo aparentemente contraditórias, se reúnem sobre a idéia de
norma. Ela passa a representar a unidade perdida do sistema jurídico;
e a normatividade a sua “essência”.
“Com o termo ‘norma’ se quer significar que algo deve ser ou
acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de
determinada maneira. É este o sentido que possuem determi-
nados atos humanos que intencionalmente se dirigem à condu-
ta de outrem. Dizemos que se dirigem intencionalmente à con-
duta de outrem não só quando, em conformidade com o seu
sentido, prescrevem (comandam) essa conduta, mas também
quando a permitem e, especialmente, quando conferem o po-

42Tal legitimidade parece estar relacionada diretamente às ações racionais com relação aos
valores. Ver AYUSO, Miguel. De la ley a la ley. Madrid: Marcial Pons, 2001. p. 20

194
Formação Humanística

der de realizá-la, isto é, quando a outrem é atribuído um deter-


minado poder, especialmente o poder de ele próprio estabele-
43
cer normas”.

A centralidade do conceito de norma jurídica determina a


compreensão do direito e da lei, bem assim da própria sociedade. A
ponto de se afirmar que a experiência jurídica é uma experiência
normativa44, bem assim, uma experiência social. A norma prescreve o
que deve ser. Abre-se assim uma distinção importante entre fatos e
normas pela qual o fato pode ser julgado conforme ou discrepante à
norma. Ainda, possibilita sua identificação com o estado de direito
analisado por Weber com o uso do conceito de dominação legal.
Nesse tipo de dominação, se obedece às normas e não à pessoa45.
Contudo, uma norma nunca tem uma existência de forma
isolada, sempre está presente num contexto de normas que pressupõe
relações entre si, sendo talvez a principal delas a relação de validade
sobre a qual se deterá no decorrer do texto.
O que importa é que se analisarmos o ordenamento apenas
como um conjunto disperso de normas se corre o risco de que existam
normas contraditórias, que se excluam mutuamente. Tais normas não
alcançariam o objetivo último a que se propõem, isto é, a orientação
de uma conduta humana.
Julgando as normas apenas por sua finalidade, normas
contraditórias não serviriam para o ordenamento, antes ao contrário,
poderiam provocar sua ruína. Assim, para o normativismo não era
suficiente determinar o conceito de norma como o conceito
fundamental, pois era preciso também garantir um mínimo de
coerência interna. Para tanto, fez-se uso da noção de sistema. Assim,
direito passou a ser sinônimo de sistema normativo. Sistema
que, nas palavras de Bobbio é definido por uma totalidade ordenada,
um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem46. Um

43KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6ª. ed. Traduzido por João Baptista Machado. São
Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 5.
44 BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Traduzido por Fernando Pavan Baptista e
Ariani Bueno Sudatti. 3 ed. Bauru: EDIPRO, 2005. p. 23.
45 WEBER, Max. Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva. Traduzido por
José Medina Echavarría. 2. ed. Bogotá: Fondo de Cultura Económica, 1977, p. 173
46 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento. 10ª ed. Traduzido por Maria Celeste Cordeiro
C. Leite dos Santos. Brasília: UNB, 1999. p. 71.

195
sistema jurídico pressupõe uma ordem e uma unidade e ambas devem
ter um fundamento comum.47
O interesse no prisma regulatório remete às concepções de
sistema jurídico que se inserem num paradigma da norma ou que
possam por ele ser influenciadas delimitando consideravelmente a
reflexão. A reunião das características expostas passa a atender pelo
que aqui denominaremos como normativismo. Ou seja, certo modo de
abordar o estudo, uma certa teoria e, até mesmo, uma certa ideologia
do sistema jurídico e da lei na quais se fazem presentes a centralidade
do conceito de norma, a referência a um sistema normativo, a
preocupação com uma linguagem precisa e rigorosa e uma idéia de
governamentalidade estatal.
Tais características reúnem vertentes chamadas de
neopositivismo ou positivismo deontológico ou ainda positivismo
neokantiano. A originalidade dessas correntes positivistas mais
contemporâneas está no seu critério de juridicidade.
A normatividade afasta o sistema jurídico do critério
estritamente legal (positivismo clássico), assim como do critério de
justiça (jus naturalismo). Contudo, na escolha da normatividade como
característica definidora do jurídico, separa-o sobremaneira da
eficácia, do comportamento efetivo de uma comunidade e das ações
humanas concretas (realismo). Essa espécie de assepsia teórica
busca como objetivo a elaboração de um conceito de lei e de direito
que não remete a nenhuma esfera alheia ao mundo formal-jurídico, e,
portanto, a nenhum fundamento externo, ou seja, social. No lugar de
justiça ou eficácia surge a validade como critério próprio, no qual
norma jurídica não é necessariamente justa ou eficaz, mas válida.
“A validade de uma norma jurídica indica a qualidade de tal
norma, segundo a qual existe na esfera do direito ou, em ou-
tros termos, existe como norma jurídica. Dizer que uma norma
jurídica é válida significa dizer que tal norma faz parte de um
ordenamento jurídico real, efetivamente existente numa dada
48
sociedade”.

47O uso do termo “sistema” por inúmeras teorias jurídicas não é algo novo, quer na doutrina
estrangeira (Savigny) quer na doutrina nacional (Pontes de Miranda). No âmbito da ciência
jurídica, não se pode olvidar que o termo tem uma longa história, que não deve ser esquecida,
mas que não se pretende aqui percorrer.
48 BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone,
1995. p. 136-137.

196
Formação Humanística

Estabelece-se, assim, uma correlação entre validade e a


existência qualificada da norma. Contudo, surge a pergunta: o que faz
uma norma pertencer ao ordenamento jurídico? E na mesma medida
poder ser creditada para além do social? Excluídas justiça e eficácia, a
resposta só pode ser dada a partir da origem da norma49.
A pergunta pela origem da norma e as soluções apontadas
pelo normativismo surgem como a resposta jurídica para a questão do
fundamento. E muito dessa resposta se deve ao papel da
governamentalidade do Estado.
O verdadeiro fundamento de validade de uma norma passa a
ser outra norma superior, e desta outra ainda mais superior até a idéia
de uma lei fundamental ou de princípios fundamentais. O fundamento
de uma norma passa a ser outra, numa cadeia autoprodutiva que tem
no topo de seu sistema a Constituição, ou seja, a norma originária
fundadora do Estado. O objetivo, então, é demonstrar como o
normativismo tenta definir o sistema jurídico como um sistema
normativo autofundado, através de uma norma suprema, numa
resposta técnica a necessidade prática de confirmação de alguns
padrões modernos de segurança, certeza e verdade.
Na busca por diferenciar norma jurídica de lei, Kelsen
coloca a primeira no nível de uma metalinguagem, consubstanciando a
diferença ontológica entre ser e dever ser (Sollen). Essa diferenciação
entre mundo dos fatos e mundo das normas apoiou-se de forma
diversa no decorrer da formação do pensamento kelsiano. No primeiro
momento, na primeira edição alemã da Teoria pura do direito (1934),
o dever-ser vinha fundamentado como uma categoria transcendental
kantiana. Em momento posterior, já na segunda edição da mesma
obra, o Sollen vem definido como um conceito simples, no sentido de
Moore, ou seja, que não pode ser analisado nem definido.
É justamente neste deslocamento do mundo do ser para o do
dever ser que se traça um conceito definitivo para o normativismo: a
validade. A norma, por pertencer ao mundo do dever ser pode ser
apenas válida ou inválida, não verdadeira ou falsa.

49 BARZOTTO, Luis Fernando. O positivismo jurídico contemporâneo: uma introdução a


Kelsen, Ross e Hart. São Leopoldo: Unisinos, 1999. p. 20.

197
Em Kelsen, o termo validade (Geltung) apresenta pelo
menos quatro sentidos50, que estão todos diretamente implicados.
Primeiramente, validade é a qualidade que expressa a própria
existência da norma. Designando a existência específica de uma
norma como a sua “validade”, exprime-se o modo particular no qual
essa norma nos é dada à diferença do existir dos fatos naturais51.
Depois, Kelsen usa o termo validade para significar a
pertinência a um ordenamento jurídico. Não existem normas jurídicas
isoladas, elas se apresentam num sistema normativo. A norma que
pertence a determinado ordenamento é, por si, uma norma válida52. O
termo validade também aparece com o sentido de norma criada na
forma prevista pelo sistema, ou seja, uma norma será válida quando
criada de acordo com outra norma (auto-validação). E, por fim,
validade também é usada por Kelsen com o sentido de
obrigatoriedade, ou seja, como consequência de uma norma válida
(efeito). Dizer que uma norma que se refere à conduta de um
indivíduo “vale”, significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se
deve conduzir do modo prescrito na norma53.
Esses vários sentidos de validade54 exigem da teoria
kelsiana um fundamento comum. Assim, para Kelsen, a racionalidade
do sistema é determinada por uma hierarquia normativa, na qual a
validade de uma norma é determinada por uma norma
hierarquicamente superior que determina sua integração ao sistema55.
Assim, será válida a norma que estiver de acordo com uma norma
superior, e esta será também valida se conformada com outra norma
superior a ela. A ordem jurídica apresentaria uma estrutura escalonada

50 NINO, Carlos Santiago. Introducción al análisis del derecho. Buenos Aires: Astrea, 1993. p.
136.
51 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 11.
52 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 33. No mesmo sentido em BOBBIO, Norberto.
Teoria do ordenamento, p. 60.
53 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 215.
54 Norberto Bobbio, na defesa do conceito de validade normativista chega a identificar passos
metodológicos para se identificar a validade de uma determinada norma. Em particular, para
decidir se uma norma é válida (isto é, como regra jurídica pertencente a um determinado
sistema) é necessário com frequência realizar três operações: i) averiguar se a autoridade de
quem ela emanou tinha poder legítimo para emanar normas jurídicas; ii) averiguar se não foi
ab-rogada; iii) averiguar se não é incompatível com outras normas do sistema, particularmente
com uma norma hierarquicamente superior ou com uma norma posterior. BOBBIO, Norberto.
Teoria da norma jurídica, p. 47.
55 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 246 e ss.

198
Formação Humanística

de normas, onde uma norma busca o seu fundamento de validade na


norma imediatamente superior.
Esse processo de subsunção deveria ser aplicado em todos
os tipos de normas fazendo sempre que a norma individual buscasse o
seu fundamento de validade em uma norma geral que lhe dá validade.
Essa cadeia de validação, que poderia seguir infinitamente, é
interrompida num dado momento, através da eleição arbitrária de uma
norma última, uma norma fundamental.
Kelsen resolve o problema do regressus ad infinitum sobre a
condição de validade da norma última através de uma Grundnorm, ou
seja, uma norma hipotética fundamental não positivada que estaria
fora do sistema jurídico e que, por óbvio, não se confunde com a
Constituição56.
A norma fundamental como base da ordem jurídica dar-se-
ia em razão da sua pressuposição normativa. Ela traduz-se numa
ficção necessariamente útil, uma meta-norma, um hipotético
categórico ao estilo de Kant que não pode ser colocada em questão
sobre sua própria validade, não podendo ser reconduzida a nenhuma
outra norma.
Sua proposta para a pressuposição de uma norma lógico-
transcendental seria a base para o normativismo fazendo com que o
seu fundamento deixe de ser reconduzível a autoridades
metajurídicas, como Deus ou a natureza57, mas, em certo sentido,
elegendo outra em seu lugar.
Utilizando-se então desse fundamento da validade Kelsen
aponta dois tipos diferentes de sistemas de normas: o estático e o
dinâmico. O primeiro é o motivo pelo qual as normas do ordenamento
devem ser consideradas válidas e nesse aspecto, a norma fundamental
desempenha o papel único de atribuir validade ao ordenamento
jurídico. O fato de que as normas do ordenamento serem deduzidas

56 “Assim, em Kelsen não se pode confundir o fundamento de validade do sistema jurídico,


que é a Constituição, com o fundamento de validade da Constituição (que é a Grundnorm ou
um als ob, como queiram)”. STRECK, Lenio Luiz. “Hermenêutica (jurídica): compreendemos
porque interpretamos ou interpretamos porque compreendemos? Uma resposta a partir do
Ontological Turn”, p. 234-5. In: Anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado
e Doutorado. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2003.
57 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, p. 225.

199
logicamente de uma norma fundamental, pressuposta, caracteriza o
sistema estático de normas58.
Quanto ao sistema dinâmico, entende ser a forma pela qual
é outorgado poderes e competências para a instituição de normas, ou
seja, permite a criação de normas por um determinado processo e sob
a custódia de uma determinada autoridade competente. Através do
sistema dinâmico que se constata a forma de criação de normas gerais
e individuais, desde que o processo atenda a prescrição da norma
fundamental, encontrando nela o seu fundamento de validade.
Neste sentido, o conteúdo normativo sempre será valido
desde que formulado pela autoridade competente e pela forma
prescrita, ficando ao critério discricionário do legislador o seu
conteúdo normativo. Assim, o conteúdo do dever-ser prescrito pela
autoridade legislativa não pode ser questionado quando a sua validade,
desde que esta possa ser buscada na norma imediatamente superior
numa cadeia lógica até a norma fundamental, ou seja, desde que seja
uma norma vigente e válida.
O sistema dinâmico ao estabelecer a forma de criação da
norma, consequentemente, apresenta a ordem jurídica a sua forma de
modificação, dando dinamismo para que o conteúdo possa ser alterado
sempre que o legislador competente entender assim necessário.
Kelsen ainda destaca a possibilidade de uma norma
apresentar o princípio estático e o dinâmico, sempre que, além de
valer como fundamento do ordenamento, estipular a forma e a
competência para a produção legislativa. Assim, poderia a norma
fundamental estipular que a Constituição se apresentasse como
fundamento de um ordenamento positivo, atribuindo a ela o poder de
regular a forma e a competência de produção legislativa. Nesse
aspecto, a norma fundamental teria outorgado ao constituinte o poder
de instituir uma fonte positiva com a regulamentação da forma de
validade das normas jurídicas.
Sob este aspecto, o ordenamento teria uma unidade lógica,
onde a norma fundamental estipula que a validade de todas as normas
deve ser submetida à forma e à autoridade competente
constitucionalmente prevista. Contudo, o fundamento de validade do

58 KELSEN, Hans. idem, p. 218.

200
Formação Humanística

ordenamento não se transfere da norma fundamental pressuposta para


uma norma posta, eis que as normas postas terão a possibilidade de
verificação de sua validade de forma objetiva na Constituição, e esta,
subjetivamente, na norma fundamental.
Na ordem positiva, a Constituição representa o escalão de
direito positivo mais elevado59, encontrando as demais normas do
ordenamento positivo a sua validade nela, revelando, a já mencionada,
estrutura escalonada. Por estar baseada na norma fundamental que
valida o ordenamento, a Constituição estabelece o processo dinâmico
das normas, desenvolvendo o papel de estabilizador da ordem60 e
controlador da produção normativa. Este controle normativo dá-se
mediante a atribuição de competência a determinados órgãos com o
papel de criar e controlar a produção da norma jurídica.
Assim, toda a base do projeto regulatório da teoria do
direito dos últimos séculos – seja num primeiro momento legalista, até
os desenvolvimentos normativistas – está umbilicalmente ligados ao
uso legítimo da força e da autoridade por parte do Estado; conclusão
que se chega partindo tanto do conceito de legitimidade quanto da
noção de validade formal. É na compreensão moderna do ente estatal
que o sistema jurídico busca a sua indispensável legitimidade
regulatória.
Contudo, este projeto regulatório não tem a força de se
deixar reconhecer enquanto discurso. Para sofrimento dos pruristas, a
normatividade regulatória nada mais é do que um outro livro, entre
tantos que buscam incessantemente encerrar a ação do sujeito.
Lembra Foucault que,
“O livro se compraz em se oferecer como objeto que se tem na
mão; satisfaz-se em compactar-se nesse pequeno
paralelepípedo que o fecha; sua unidade é variável e relativa:
ela não se constrói, não se indica e, consequentemente,
apenas pode ser descrita a partir de um campo discursivo”.
(Foucault, 2008, 89)

A normatividade, incansavelmente construída como condição


para a regulamentação do Estado, bem como condição para o seu

59 KELSEN, Hans. idem, p.247.


60 KELSEN, Hans. idem, p.248.

201
exercício de governamentalidade é, assim, um discurso que não
consegue evitar estar, como todo o discurso, a residir secretamente em
um já dito, na medida em que consagra a análise histórica do discurso
a ser uma procura e repetição de uma origem que escapa a qualquer
determinação em torno da origem.
Em outras palavras: a norma, instituto fundamental para a
regulamentação e segurança do Estado busca reciclar a condição do
ser social na medida em que busca mitologizar a sua presença sobre
este mesmo social através de um ministério do mistério ao qual o
espaço social tem dificuldade de se reconhecer como o único espaço
capaz de realizar as experiências necessárias para a existência da
própria lei, do sistema jurídico e do próprio poder do Estado.
Todo o esforço teórico de Kelsen se vê, desta maneira,
ameaçado, no caso daqueles moradores do vilarejo colombiano a ruir
completamente, na medida em que a ação que os motiva afronta a
própria capacidade da lei ser a lógica privilegiada para a condução do
agir social.
É um desafio que rompe com a longa emergência ‘de
tecnologias de segurança no interior, seja de mecanismos que são
propriamente mecanismos de controle social, como no caso da
penalidade, seja dos mecanismos que têm por função modificar em
algo o destino biológico da espécie’, uma vez que rompem o
monopólio em torno da idéia da construção de segurança e de
capacidade regulamentar estatal. O desafio da ação daqueles agentes
que lavam a honra aceita pelo grupo social não é uma crise aleatória,
mas uma manobra causal que no exemplo que se fortalece pelo e no
grupo ameaça a quebra da correlação entre a técnica de segurança e a
constituição controlada da população.
Afirma Foucault:
“É preciso renunciar a todos esses temas que tem por função
garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta
presença em si mesmo no jogo da ausência sempre
reconduzida. É preciso acolher cada momento do discurso em
sua irrupção de acontecimento; na pontualidade em que ele
aparece e na dispersão temporal que lhes permite ser repetido,
sabido, esquecido, transformado, apagado até em seus menores
traços, enterrado, bem longe de qualquer olhar, na poeira dos
livros. Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da

202
Formação Humanística

origem; é preciso tratá-lo no jogo próprio da instância própria de


cada um”. (Foucault, 2008: 91)

Mais do que uma crônica de uma morte anunciada, o que


descobre é a ruptura com toda uma tradição monopolizadora que veio
sendo construída e importada apesar das especificidades, pela
ascensão da cultura eurocêntrica. O vilarejo da Colômbia, por mais
ficcional e periférico representa uma ruptura significativa de uma
formação discursiva que buscou na seleção e codificação dos
conceitos, esconder a condição ontológica da ação humana,
imprevisível na medida em que fruto de uma experiência sempre
contingencial.

2.8.3 A Análise Econômica do Direito


Antes de se perceber porque as atuais teorias da regulação não
resolvem o problema de legitimidade, antes o contrário, convém des-
tacar algumas construções científicas que são objeto do atual debate
internacional. Neste âmbito, as possibilidades teóricas apontadas con-
vergem no sentido de entregar de vez as relações jurídicas a uma ra-
cionalidade econômica: os estudos da Laws and Economics.
A análise econômica do direito61 tem alcançado grande desta-
que nos estudos jurídicos contemporâneos, principalmente nos Esta-
dos Unidos e na Europa. A abordagem tem sido a mais variada possí-
vel, e suas contribuições têm merecido destaque nas áreas de defesa da
concorrência, desenvolvendo sistemas antitruste, no direito contratual,
na liability law, estudando leis de responsabilidade civil, e na teoria
econômica do crime, entre outras.
Tais estudos têm como ponto de observação o sistema eco-
nômico, suas influências e repercussões em virtude da elaboração de
leis e da aplicação prática de sentenças judiciais. Utiliza-se de recur-

61 Em função do grande desenvolvimento teórico alcançado pela Análise Econômica do Direi-


to, ou Law and Economics, nos Estados Unidos, pode-se destacar dois centros de produção
intelectual nesta área: a Escola de Harvard e a Escola da Chicago. A primeira tem como desta-
que as obras de Madison e está mais ligada à defesa da livre concorrência, suas normas e
organismos encarregados de fiscalizá-la, adotando o modelo workable competicion. Por outro
lado, a Escola de Chicago concentra seus estudos principalmente na busca da eficiência
econômica do sistema jurídico, tendo como principais autores Richard Posner e Ronald Coase.
Para um acompanhamento mais detalhado, ver a obra clássica POSNER, Richard A. The
economics of justice. Cambridge: Harvard University Press, 1983.

203
sos da teoria econômica, cálculos estatísticos, teoremas econômicos,
teoria dos jogos ou mesmo instrumentos de tomada de decisão política
(public choice). O objeto principal de seus estudos é a análise sistemá-
tica da eficácia das normas jurídicas na qual as sanções encontram
equivalente funcional no preço a pagar pelo exercício das condutas
ilícitas ou proibitórias (custo de oportunidade).
Diante dessa lógica, se o custo é menor que o ganho trazido
pelo exercício dessa oportunidade, a conduta passa necessariamente a
ser avalizada, mesmo que juridicamente proibida. Os aportes dessa
análise percebem-se na disseminação de leis de incentivo em matéria
de responsabilidade civil62 e na diminuição dos custos de transação de
bens63, seja através da diminuição de restrições jurídicas à apropriação
de determinados bens ou da redução das formalidades legais na aqui-
sição e na transferência dos mesmos.
Em certo sentido, esta lógica vai ao encontro da compreensão
de Foucault quando ele destaca que,
“É muito mais a realidade do cereal do que o medo da escassez
alimentar que vai ser o acontecimento que vamos procurar en-
tender. E é nessa realidade do cereal, em toda a sua história e
como todos os vaivens e acontecimentos que podem de certo
modo fazer sua história oscilar ou se mexer em relação a uma li-
nha ideal, é nessa realidade que se vai tentar enxertar um dispo-
sitivo graças ao qual as oscilações da abundância e do preço
baixo, da escassez e da carestia vão se ver, não impedidas de
antemão, não proibidas por um sistema jurídico e disciplinar, que,
impedindo isto, forçando aquilo, deve evitar que elas ocorram [...]
é um trabalho no próprio elemento dessa realidade que é a osci-
lação abundância/escassez, carestia/preço baixo, é apoiando-se
nessa realidade, e não tentando impedir previamente, que um
dispositivo vai ser instalado, um dispositivo que é precisamente,
a meu ver, um dispositivo de segurança e não mais um sistema
jurídico-disciplinar”. (Foucault, 2008: 49)

62 Aqui se percebe a grande contribuição de Guido Calabresi (Universidade de Yale) na conso-


lidação dos padrões regulatórios para a adoção de leis de responsabilidade: no liability rule,
strict liability rule e negligence rule. CALABRESI, Guido. The costs of accidents: a legal and
economic analysis. New Haven: Yale University Press, 1970.
63 Convém destacar o Teorema de Coase: “Quando os custos de transação ou negociação
forem nulos, os direitos de propriedade serão transferidos aos agentes que atribuam maior
valor a eles”. Ronald Coase, prêmio Nobel de Economia em 1991 (Universidade de Chicago).
COASE, R. H. La empresa, el mercado y la ley. Traduzido por Guillermo Concome y Borel.
Madrid: Alianza Editorial, 1994.

204
Formação Humanística

Vislumbram-se, por tais meios, a preocupação algumas vezes


assumida, outras não, de deixar o caminho livre para a regulação pri-
vativa da ‘mão invisível’ do mercado, aceitando-se sua lógica como a
única “justa” ou racional em tais casos. Mas na mesma medida em que
se faz ‘mão invisível’, demonstra uma impressionante justificativa
ideológica do papel do Estado em intervir e agir, sem que esta mesma
capacidade possa vir a se constituir numa condição onipresente do
próprio Estado.
Os efeitos econômicos das leis e decisões jurídicas devem re-
almente ser elemento importante a ser considerado nos processos de
tomada de decisão, sejam elas políticas ou, em menor escala, jurídicas.
Contudo, não podem ser o único ou o principal fator de convencimen-
to. Tais decisões não podem ser reduzidas à racionalidade econômica,
nem transformadas em equações matemáticas de custo/benefício.
As opções políticas devem ser livres (até porque não seriam
opções se não o fossem) e não pré-determinadas economicamente. No
que diz respeito às decisões jurídicas e à aplicação prática das normas
o caso é ainda mais grave. O sistema jurídico tem uma importante
função no mundo globalizado: garantir e proteger os diversos discur-
sos da sociedade. Manter a diferença numa sociedade que tende a
totalitarismos, muitos, totalitarismos democratizantes, mas não menos
totalitários.
As lógicas de outros sistemas como a arte, a educação e as re-
lações afetivas devem ser respeitadas e levadas a serio. A lei e o direi-
to, através do processo de tomada de decisão jurídica não podem ser-
vir como instrumento final de imposição da contabilização econômica
sobre tais sistemas. A análise econômica do direito peca tanto por ser
extremamente reducionista, fixando a efetividade como único padrão
confiável para as relações jurídicas, sejam elas privadas ou não, quan-
to por isolar tais relações das influências, ainda que indiretas, de ou-
tros discursos, fundamentalmente, discursos representativos dos gru-
pos sociais.

205
Apesar de ter destaque em outras partes do mundo, tais estu-
dos ainda não alcançaram posição de destaque no Brasil, infelizmente
mais por desconhecimento do que propriamente por opção teórica64.

2.8.4 As Teorias Regulatórias Contemporâneas


Conforme o que se viu, a lei e uma teoria do direito estatal
permanecem numa espécie de limbo conceitual no que diz respeito ao
problema da regulação social: de uma fase inicial na qual o Estado
desempenhava um papel de destaque – seja através da legitimidade
formal representada pela lei, seja através de uma legitimidade material
(validade) representada pela norma jurídica – a uma fase em que o
papel do Estado não aparece bem definido ou mesmo é contestado
abertamente pela própria sociedade que parecia subsumida no interior
da própria monopolização da segurança.
A falta de preocupação da condição estatal na regulação
jurídica através da jurisprudence, efeito direto da desconstrução
jurídica e dos estudos críticos do Direito deixaram a teoria regulatória
refém da lógica exclusiva de mercado (análise econômica do direito)
ou da lógica da tomada de decisões políticas.
Em tal perspectiva o direito e o Estado lançam-se de uma
postura originalmente condicional (se e quando) a uma postura
finalista, reduzindo consideravelmente sua capacidade normativa e,
consequentemente, regulatória.
Nessa dobra, surgem teorias regulatórias que têm como
ponto de referência a ordem político-social ou a ordem econômica,
mas não surgem “novas” teorias regulatórias predominantemente
jurídicas para além do positivismo ou do normativismo, quer dizer,
sociais. Apesar da insuficiência de tais abordagens regulatórias ser
perceptível, deve-se destacar a sua incapacidade tanto na explicação
do fenômeno regulatório como na substituição eficiente do modelo
jurídico condicional e do seu tradicional afastamento de uma
perspectiva sociológica.

Teoria Político-Social da Regulação:

64 Os estudos jurídicos ainda são incipientes na área e nenhum revela uma abordagem crítica
relevante.

206
Formação Humanística

A primeira teoria regulatória desenvolvida atende pelo nome


de teoria do interesse público e tem como base dois pressupostos
básicos: a) os mercados são extremamente frágeis e estão prontos para
funcionar de maneira bastante ineficiente (ou não equitativamente) se
deixados à própria sorte; b) e os custos da regulação estatal são
praticamente nulos65.
Baseado em tais pressupostos, tal teoria sustenta que a
regulação é criada em resposta a uma demanda do público por
correção das práticas de mercado ineficientes ou não equitativas.
Por esta perspectiva parece muito fácil legitimar a intervenção
estatal na economia através de proteção dos sindicatos, leis
trabalhistas, regulação de serviços públicos de infraestrutura e
transporte, subsídios agrícolas, licenças ocupacionais, salário mínimo
e até mesmo tarifas de importação. Contudo, duas décadas de
pesquisas sociais (principalmente econômicas) demonstraram que os
pressupostos sobre os quais se baseava tal teoria estavam ambos
equivocados, ou seja, os mercados nem sempre funcionam de maneira
ineficiente e sempre há custos consideráveis na regulação estatal.
Assim, tal teoria é logo substituída pela chamada teoria da
captura.
Compartilhada por uma mistura excêntrica de liberais,
ativistas políticos, marxistas e economistas de livre mercado, essa
teoria afirma que a regulação é formulada em resposta às demandas de
grupos de interesse se digladiando para maximizar os benefícios de
seus próprios membros.Para tal posição, destaca-se a importância de
grupos de interesse privados na sociedade.
Essa teoria – que o termo captura descreve bem – afirma
que, com o passar do tempo, as agências reguladoras acabam sendo
dominadas pelo mercado regulado, destacando o papel prevalecente
de empresas na batalha por influenciar a legislação estatal66.
Infelizmente, a teoria da regulação de caráter político-social ainda é
insatisfatória, tendo em vista que não consegue explicar porque

65 POSNER, Richard A. “Teorias da regulação econômica”, p. 49-80. In: MATTOS, Paulo


(coord.). Regulação econômica e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Editora
34, 2004. p. 50-51.
66 Idem p. 49-80.

207
determinados interesses são efetivamente representados no processo
político e outros não, e foi progressivamente substituída por teorias da
regulação econômica.

Teoria Econômica da Regulação:

O que se chama de Teoria Econômica da Regulação, foi


originalmente proposta por George Stigler67 em um artigo
revolucionário, e revista posteriormente por Richard Posner68.
Essa teoria rejeita a condição do inexplicado e
frequentemente falso pressuposto do propósito virtuoso e probo da
legislação; admite possibilidade de ‘captura’ por outros grupos de
interesse que não as empresas reguladas; mas insiste que a regulação
econômica favorece interesses privados de grupos politicamente
influentes. Nesse sentido o Estado é visto como uma potencial fonte
de recursos ou de ameaças a toda atividade econômica da sociedade.
Contudo, tal construção aparece mais como a reunião de
casos empíricos e insiste em que a regulação seja explicada como um
produto de forças de oferta e procura, resultado simples de uma
racionalidade econômica.
A disseminação isolada dessas teorias regulatórias, aliadas a
sua ineficiência tanto em descrever a atuação do Estado quanto dos
sistemas político e econômico, constituiu-se num dos pontos
essenciais na delimitação da discussão tradicionalmente abordada pelo
tema crise ou crises do Estado69.
Acerca-se a esta ou estas crises uma de caráter regulatório.
Estará ainda o Estado apto a regular a sociedade? Ele ainda possui o
monopólio do uso do poder legítimo? Porque a lei colombiana não

67 STIGLER, George J. “A teoria da regulação econômica”, p. 23-48. In: MATTOS, Paulo


(coord.). Regulação econômica e democracia: o debate norte-americano. São Paulo: Editora
34, 2004.
68 POSNER, Richard A. “Teorias da regulação econômica”, p. 49-80. In: MATTOS, Paulo
(coord.). Regulação econômica e democracia: o debate norte-amerciano. São Paulo: Editora
34, 2004.
69 Neste aspecto e apresentando um trabalho exaustivo e eficiente na identificação não de
apenas uma crise, mas de diversas crises do Estado Moderno ver, BOLZAN DE MORAIS, José
Luis. As crises do estado e da constituição e a transformação espacial dos direitos humanos.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 23-57. Ainda, STRECK, Lênio Luiz; BOLZAN DE
MORAIS, José Luis. Ciência política e teoria geral do estado. 4 ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004. p. 128-148.

208
Formação Humanística

consegue regular as relações sociais naquele pequeno vilarejo da obra


de Gabriel Garcia Marquez?

2.8.5 A Explicação Da Regulação Jurídica Através Do


Estado: A ‘Responsividade’ Social
Para que se possa compreender como ainda é possível a
regulação jurídica, e em qual medida ela ainda poderá buscar
legitimidade através do Estado nacional, mesmo em uma era de forte
globalização, faz-se necessário dar um passo além na reflexão sócio-
jurídica, buscando numa idéia de ‘Direito Responsivo’ as bases
teóricas para tal enfrentamento.
Nonet e Selznick identificaram três modalidades ou estágios
básicos do ‘direito na sociedade’: 1) o direito servindo ao poder
repressivo; 2) o direito como uma instituição capaz de efetuar a
repressão e proteger sua própria integridade; e 3) Direito como um
facilitador de resposta a necessidades e aspirações sociais70. Dentro
desta divisão, tem-se, respectivamente: a presença de um direito
repressivo, um direito autônomo e um direito responsivo.
Em poucas palavras, Nonet e Selznick oferecem uma teoria
de respostas e limitações institucionais dentro do sistema jurídico cujo
ponto principal é que se pode encontrar uma determinada disposição à
mudança ao se observar que as forças sistemáticas que se põe em
movimento em uma etapa são as mesmas que produzem resultados
característicos em outra71. Por exemplo, na primeira de suas
três etapas, o direito repressivo serve para legitimar o poder, mas esta
mesma função gera pressões no interior do sistema legal repressivo
que mudam suas estruturas específicas e conduzem ao surgimento de
um novo tipo de direito, o direito autônomo.
De forma similar, o direito autônomo desenvolve modos
internos de processamento e conceitos de participação que rompem
com as fronteiras do pensamento formal e geram pressões para a
transformação a um novo tipo mais responsivo.
Contudo, convém salientar que tais instâncias podem
aparecer e normalmente aparecem conjuntamente num mesmo sistema

70 NONET, Philippe; SELZNICK, Philip. Law and society in transition: toward responsive law.
2ed. New Brunswick: Transaction Publishers, 2005. p. 14-15.
71Idem, p. 20.

209
jurídico, variando âmbitos de direito repressivo, autônomo ou
responsivo.
O direito responsivo busca uma maior ênfase na defesa e
proteção efetiva de interesses sociais, tido como instrumento para a
intervenção na sociedade de forma finalista, orientado a busca de fins
concretos.
Nessa busca ele tende a ser mais aberto e ao mesmo tempo
mais particularista que o direito formal clássico, apoiando-se em
princípios gerais e conceitos abertos, bem assim em cláusulas gerais.
Tais estruturas além de permitir uma maior capacidade de adaptação,
também possibilitam não a intervenção direta em outros sistemas
sociais, mas permitem a regulação indireta, reflexiva.
O Direito Responsivo busca responder as necessidades
sociais e realizar os objetivos estatais de justiça material através de
estruturas reflexivas capazes de agir indiretamente sobre os interesses
de grupos sociais díspares e contraditórios, deflagrando, assim, uma
função integradora do direito, do Estado e da sociedade.
Como afirma Arnaud:
“É forçoso constatar que não podemos mais falar de regulação social,
de regulação jurídica, de produção normativa, de produção do direi-
to, de tomada de decisão política... sem levar em consideração a
fragmentação da soberania e a segmentação do poder que caracteri-
zam as sociedades contemporâneas”.72

Portanto, compreender na exata medida as possibilidades


trazidas por um direito responsivo implica ter em mente a lição de
Van Creveld de que governo e Estado não são sinônimos:

“O primeiro é uma pessoa ou grupo que pacifica, faz guerra, promul-


ga leis, exerce a justiça, eleva a receita, define a moeda e cuida da
segurança em nome de toda a sociedade, sempre tentando oferecer
um foco para a lealdade das pessoas e também, talvez, um pouco de
bem-estar social. O segundo é apenas uma das formas que, historica-
mente, a organização do governo assume e que, em consequência

72 ARNAUD, André-Jean. O direito entre modernidade e globalização. Rio de Janeiro: Reno-


var, 1999. p. 172.

210
Formação Humanística

disso, não precisa ser considerado mais eterno e auto evidente do que
as anteriores”.73

Contudo e apesar desta lição, distancia-se aqui da visão


apocalíptica do autor. Ver o Estado e sua capacidade de
governamentalidade como uma organização limitada histórica e
materialmente não implica reconhecer seu fim. O término do
monopólio estatal em matéria regulatória, principalmente em países
em desenvolvimento como o Brasil, ou seja, lugares onde o Estado do
bem-estar não se consolidou integralmente e tal monopólio sempre
apresentou matizes e exceções, não implica no final do Estado nem no
final de sua capacidade de regular as relações sociais ou mesmo na sua
capacidade de propor o monopólio da segurança. Antes pelo contrário.
A questão passa por determinar esferas regulatórias ou esferas de
regulação social.
Nessa perspectiva, ao Estado, através de sua esfera de
regulação (o direito nacional) caberá um papel primordial. Tal
incumbência não será a de definir ou demarcar a esfera de regulação
pertencente a cada entidade, sistema ou grupo social (atividade
identificada através da noção criticada de monopólio estatal).
A demarcação de âmbitos autônomos de regulação caberá
aos próprios grupos ou sistemas sociais a que se referem. Contudo,
mas caberá sim ao sistema jurídico tradicional regular a comunicação
necessária entre esses diversos âmbitos autônomos de regulação.
E essa atuação responsiva poderá se dar de duas formas
básicas, uma externa e outra interna a tais âmbitos: 1) externamente,
através da garantia formal de um procedimento comum (due process
of law); e 2) internamente, através da busca de uma justiça material,
representada por valores adicionais mínimos a serem observados
conjuntamente com os valores próprios de cada organismo ou grupo
ou sistema social.
Todavia, todas estas estratégias não tem força para impedir
a crise da própria condição da governamentalidade estatal e da
produção da segurança da população na medida em que as sociedades

73 VAN CREVELD, Martin. Ascensão e declínio do estado. Traduzido por Jussara Simões. São
Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 595.

211
globalizadas realizam-se mais e mais em sua contingência e
diversidade. De um vilarejo colombiano às transformações reais na
China, nos EUA até a crise no Quebec, ainda canadense, a sociedade
teima em desafiar a gramática correta da lei e do sistema jurídico,
enfrentando a capacidade técnica do Estado e da lei em representar o
sujeito ao próprio sujeito.

“Fazer aparecer em sua pureza o espaço onde se dispersam os


acontecimentos discursivos não é pretender estabelecê-lo em um corte
que nada poderia superar, é, ao contrário, tornar-se livre para
descrever, entre ele e outros sistemas que lhe são exteriores, um jogo
de relações. Relações que devem ser estabelecidas sem passar pela
forma geral da língua, nem pela consciência singular dos sujeitos
falantes no campo dos acontecimentos”.
(Foucault, 2008: 93)

Os acontecimentos podem, assim, colocar ao pastor, apesar


de conhecer todas e cada uma das ovelhas, frente ao risco de se ver
colocado no desafio da navalha de Ockham, ou seja, colocado na
possibilidade não de perder uma ou todas as ovelhas, mas de ser por
elas abandonado, simplesmente porque elas podem não reconhecê-lo
mais e nesse estranhamento, buscarem outro pastor.
Assim, ao contrário de vermos a profecia se cumprir e nos
sentirmos como os moradores daquela pequena vila na Colômbia onde
nada podia ser feito a não ser contribuir para que a morte anunciada se
realizasse, podemos retomar – ao menos em parte – os rumos desta
crônica para anunciar: o Estado morreu, viva o Estado!

212
Formação Humanística

Capítulo III

TEORIA GERAL DO DIREITO E DA POLÍTICA

3.1 O conceito de Política. Política e Direito


O conceito de política traz uma série de sentidos conforme o
autor que o enfrentou e o momento cultural em que estava inserido
quando apresentou a sua percepção sobre o tema. Entretanto, inevitá-
vel afirmar que o homem é um sujeito político, simplesmente porque é
inevitável desenvolver uma visão sobre a realidade, qualquer visão.
Em um primeiro ato de aproximação ao conceito, política car-
rega enquanto significado originário o agir na PÓLIS, ou seja, é todo e
qualquer ‘agir’ no espaço da Cidade, da CIVITAS.
Aqui, fundamentalmente, está destacada a sua primeira essenci-
alidade: é uma ação naquilo que é o espaço urbano, civil, público,
social num espaço determinado e dimensões delimitadas.
Exemplo primeiro dessa significação emerge no antigo mundo
grego, organizado em suas cidades-estado, na qual o cidadão tinha
como privilégio esse agir político. Ainda que já estivesse presente no
pensamento de Platão, o termo POLÍTICA se viu ampliado pela obra
de Aristóteles, reconhecidamente compreendido como o primeiro
tratado organizado sobre o conceito.

213
Aqui, Aristóteles expande o significado do conceito, pois o
compreende não somente como um agir do cidadão na PÓLIS, mas
como uma forma de se compreender a natureza, as funções e divisão
do Estado, bem como sobre as várias formas de Governo às quais ele
instituiu uma polaridade positiva e negativa.
Se a Monarquia, a Aristocracia e o Governo Constitucional (po-
litéia) receberam dele uma polaridade positiva, por outro lado, a Tira-
nia, a Oligarquia e a Democracia foram compreendidas a partir de
uma polaridade negativa, como ele mesmo destaca:
“Os desvios das constituições mencionadas são a tirania, corres-
pondendo à monarquia, a oligarquia, à aristocracia e a democra-
cia, ao governo constitucional; de fato, tirania é a monarquia go-
vernando no interesse do monarca; a oligarquia é o governo no in-
teresse dos ricos; a democracia é o governo no interesse dos po-
bres; e nenhuma destas formas governa para o bem de toda a co-
munidade.”

Importa ressaltar que as formas em destaque acima representam


as formas ‘degeneradas’, ‘denegridas’ das outras formas, mesmo que
entre elas se destaca a Democracia é a melhor entre as ruins.
Isso é assim porque para ele a Democracia em que o cidadão é
soberano do poder sem limites exagera a liberdade, uma vez que viver
como bem se quer contraria as leis que são as melhores para explicitar
a liberdade e a salvação. Ao contrário, no momento em que o povo faz
o que quer, como se nada fosse impossível, a democracia não tem
como evitar em se transformar numa tirania. Segundo ele, “viver como
bem entender torna a democracia um individualismo, contrário ao
que é o bem comum”.
Portanto, para ele a democracia, ao mesmo tempo em que to-
talmente soberana, deve trazer duas limitações:
a) Não deve ir além dos órgãos de deliberação e julgamento,
pois estes são poderes coletivos expressos em uma constituição (o

214
Formação Humanística

conjunto do povo é superior a cada um dos indivíduos) e não exigem


competência técnica;
b) É dever de todos agir de acordo com as leis.
Portanto, a partir de Aristóteles o conceito de política se viu
condicionado ao instituto do Estado, a sua vontade, capacidade e força
para determinar um agir sobre os sujeitos no espaço social. E ao se
propor um olhar sobre o Estado não se pode esquecer o instituto do
poder que com ele está intimamente envolvido.
Esta relação do conceito política com os conceitos Esta-
do/poder permite-nos compreendê-lo a partir de uma ontologia mais
ampla, uma vez que estabelece um novo espaço, que não apenas o do
social, para a práxis humana.
A política/poder alcança em Hobbes o status de “meios ade-
quados à obtenção de qualquer vantagem”, uma vez que esta vanta-
gem a ser conquistada deverá ser realizada pela vontade monocrática
do Estado, que a partir da convalidação do CONTRATO SOCIAL
passa a se responsabilizar pelas condições do controle e da domina-
ção. Já Russel vai compreendê-los como “um conjunto de meios que
permitem alcançar os efeitos desejados”, sendo que se pode compre-
ender como um desses efeitos a dominação e o controle sobre os sujei-
tos sociais.
Pode-se anotar, desta forma, que o poder carrega uma natureza
paradoxal, na medida em que se por um lado ele se constitui enquanto
um instrumento definitivo de organização, através do exercício do
controle e da dominação, por outro ele se apresenta como essencial-
mente constitutivo do próprio espaço social. Traz, aqui, uma polarida-
de eminentemente negativa, uma vez que ele é meio de imposição de
uma vontade sobre outra vontade.
Essa imposição de vontade não é um fim em si mesmo, já que a
própria condição da imposição precisa ser construída gradualmente
através de uma série de fatores, entre estes, a Lei e o Direito se apre-
sentam como condições proeminentes de controle e dominação.

215
Segundo Louis Althusser, o Direito e a Lei são aparelhos ideo-
lógicos do Estado, pois significam estratégias que estão além da mera
coerção e imposição violenta explícita, na medida em que através da
sanção, bem como da sua correspondente, a garantia de direitos, o
Estado desenvolve meios subjetivos de condicionamento do agir hu-
mano, estabelecendo axiomas (valorização) à práxis humana.
O poder político significa uma categoria de poder do homem
sobre o homem, e desde os Gregos não mais de um poder do homem
sobre a natureza. Esta há muito já foi degradada a mero exercício de
território conquistado pela razão humana, uma vez que os sujeitos
sociais aprenderam a capacidade de dominá-la, alterá-la e destruí-la
sem grandes remorsos morais.
Esta relação de poder do homem sobre o homem se expressa de
variadas formas, onde se podem reconhecer distintas expressões da
linguagem política: relação entre governantes e governados, relação
entre soberanos e súditos, relação entre o Estado/Direito/Lei e os ci-
dadãos, igualmente entre autoridade e obediência, controle e domina-
ção, etc.
Muitas são as formas de poder do homem sobre o homem, pois
o poder político é apenas a forma que mais se destaca no pensamento
político-jurídico-filosófico. Para Aristóteles, o poder apresentava três
formas distintas:
a) Poder Paterno;
b) Poder Despótico;
c) Poder Político;

Em relação ao Poder Paterno este pode ser compreendido como


uma forma gênese da organização social, instituída nas primeiras es-
truturas sociais, uma vez que tal poder buscava a socialização da rela-
ção do patriarca com a prole, criando os laços de controle e domina-
ção necessários à sobrevivência do grupo. Já o Poder Despótico se

216
Formação Humanística

estabelecia na vantagem da vontade do soberano/senhor sobre os súdi-


tos, na medida em que ele privatizava as relações públicas como atos,
fases de sua própria vontade individual. Por fim, o Poder Político dizia
respeito à relação entre aquele que governa e aqueles que são gover-
nados, a partir de variados meios de controle, entre eles, a Lei e o
Direito.
Inegável a contribuição de Aristóteles, mas as transformações
sofridas por essa percepção fundamentalmente a partir da experiência
medieval permitiram a prevalência do significado de Legitimação, que
será ainda mais presente mais tarde com aquele movimento equivoca-
damente consagrado como JUSNATURALISTA.
É assim que Locke, em seu Capítulo XV, do livro “Segundo
Tratado sobre o Governo”, destaca que no caso do Poder Paterno a
fundamentação da imposição da vontade é a própria condição da natu-
reza em que os grupos se encontravam inseridos obrigando-os a acei-
tarem a imposição do mais forte e do mais maduro; já no caso do Po-
der Despótico, o fundamento diz respeito à condição do castigo para
cada ato delituoso praticado pelo sujeito; enquanto para o Poder Polí-
tico, a razão da imposição deve estar fundada no consenso, até porque
este poder se manifesta em sociedades de grande complexidade que,
ao tempo de Locke, já experimentavam o Liberalismo.
Importa destacar que a estes três motivos de justificação dos ti-
pos de poder correspondem, igualmente, três fórmulas clássicas de
obrigação:
a) No caso da primeira: obrigação ex natura;
b) No caso da segunda: obrigação ex delicto;
c) No caso da última: obrigação ex contractu.

Entretanto, apesar de Aristóteles e da tradição tentar marcar


distinções entre estes tipos de poder, não raro eles se permitiram uma
relação entre eles, pois o tipo político não exclui os outros tipos e com
eles pode estabelecer conexões (tais como: governos populistas, dita-
toriais, totalitários, etc.)

217
Uma vez que interessa de forma mais intima O PODER POLÍ-
TICO, importa destacar que se pode dividi-lo em três grandes classes:
a) Poder Político Econômico;
b) Poder Político Ideológico;
c) Poder Político propriamente dito.

Quando se afirma o primeiro, este é o poder sobre os meios de


produção, isto é, sobre todos aqueles instrumentos fundamentais para
a aquisição dos bens necessários para o controle da economia da soci-
edade e consequentemente, de sua sobrevivência, já que estes bens
não são abundantes pelas próprias condições de consumo da socieda-
de, o que leva, então, aqueles que não os têm a um certo comporta-
mento através da práxis do trabalho para poderem compartilhar o
possível desses bens.
É regra geral o fato de que aquele que possui abundância de
bens é capaz de impor um comportamento que lhe seja útil aos que se
encontrem em uma condição inferiorizada quanto a posse de bens,
mediante uma promessa e concessão de vantagens, entre elas, o salário
que é o caso em uma sociedade capitalista.
O Poder Ideológico está na capacidade de impor a um determi-
nado sujeito ou grupo as ideias que fundamentam a realidade, justifi-
cativas, conceitos e significações. Este poder é de grande força e capa-
cidade uma vez que se instaura enquanto espaço de imaginário, quer
dizer, carrega aquele conjunto de conceitos que um indivíduo se iden-
tifica e é identificado para realizar a sua compreensão e inserção no
espaço social através de um discurso político.
O discurso político pode ser percebido, assim, como a represen-
tação de uma dada formação discursiva (pré-conceitos, preconceitos,
conceitos) que é dotada de sentido e desta forma se manifesta no espa-
ço social através da linguagem. Ao mesmo tempo, este discurso políti-
co é sempre um discurso temporal, marcado por uma historicidade, já

218
Formação Humanística

que as condições em que ele é cunhado não são nem aleatórias e nem
a-históricas.
O Poder Ideológico é, desta forma, uma poder de (re)pré-
sentação, isto é, apresenta os elementos da linguagem de um determi-
nado sujeito ou grupo sobre o espaço em que ela está inserido e ao
mesmo tempo espaço que é por ele construído.
O Poder Político, por último, se funda na posse daqueles ins-
trumentos mediante os quais se podem exercer todas as ‘armas’ possí-
veis no controle, na dominação e na repressão que estão ao monopólio
do Estado. É um poder coator no sentido mais tradicional do conceito.
Neste espaço do Poder Político se pode presenciar o Direito como um
dos instrumentos de controle e repressão.
Toda essa percepção esboçada até aqui se dá dentro de uma li-
nha tradicional da ideia de poder e de política. O primeiro como meio
de dominação e o segundo como justificativa para o exercício daquele.
Entretanto, não se pode esquecer que esta visão tradicionalista vem
sofrendo certa reação há já algumas décadas, pois nem todos reduzem
a política e o poder a essa polarização negativa.
Um exemplo disso é Michel Foucault que libera o poder de sua
tradicional negatividade, manifesta através de uma única capacidade
repressiva para compreendê-lo a partir de outros sentidos.
O poder político e o poder como um todo alcançam aqui uma
função criativa, produtiva, positiva e que está presente em todo o es-
paço social, transformando-o, ao mesmo tempo em que exerce sobre
ele estratégias de sedução e dominação.
Conforme Foucault,
“(...) se deve compreender o poder, primeiro, como uma multiplici-
dade de correlações de força imanentes ao domínio onde exercem
uma função constitutiva e organizativa; o jogo que através de lutas
e afrontamentos incessantes as transforma, reforça, inverte; os
apoios que tais correlações encontram umas nas outras, formando
cadeias ou sistemas ou, ao contrário, as defasagens e contradi-

219
ções que as isolam entre si; enfim, as estratégias em que se origi-
nam e cujo esboço geral cristalizam institucionalmente e que to-
mam corpo nos aparelhos estatais, isto é, na formulação da Lei e
nas hegemonias sociais”.

O sujeito humano é recoberto de relações de poder, em níveis


variados e distintos que se encontram em torno de toda a capacidade
deste em se realizar sobre a natureza e sobre outros sujeitos. São mi-
cropoderes que constituem toda e qualquer relação social, na medida
em que não há cenário social que escape dessa presença.
O espaço jurídico é um cenário privilegiado dessa presença do
poder, pois a estrutura, o procedimento, as convenções sociais e a
própria Lei não exalam natureza democrática, em um, devido ao pró-
prio processo de burocratização que o Poder Judiciário vem sofrendo;
em dois, pelo simples fato de que ele é representante do Estado e
mesmo em uma sociedade democrática se faz necessário a preservação
de linhas, relações e espaços hierarquicamente verticais.
A Lei é um cenário privilegiado ao poder ideológico, político e
econômico, na medida em que apesar de sua importância reguladora,
ela não deixa de ser um produto desenvolvido por operadores de téc-
nica especializada ao qual há um custo para a melhor utilização apesar
da presença dos princípios constitucionais voltados para o todo e não
para alguma parte em especial.
Outra observação sobre o exagero de se considerar o Poder Po-
lítico como força é o fato de que se esta é uma condição necessária,
por outro não é a única e nem mesmo a única suficiente para a legiti-
midade deste poder.
Ora, não é qualquer grupo social em condição de se utilizar da
força da coerção, mesmo que a partir de certa continuidade no espaço
e no tempo que exerce de fato o poder político (exemplo: gangue,
grupo delinquente, crime organizado etc.). Estes são rupturas ao sis-
tema oficial, resistência organizada ao monopólio do Estado, alterna-

220
Formação Humanística

tivas periféricas que se desenvolvem amplamente na crise do Estado


atual.
O que caracteriza o poder político é, portanto, a exclusividade
do uso da força em relação à totalidade dos grupos sociais que formam
e agem em um determinado contexto social. Tal processo de monopo-
lização do poder político, da força e da coerção acontece paralelamen-
te ao processo de incriminação e punição daqueles atos de violência,
não apenas física, que não sejam executados por aqueles que recebe-
ram legitimidade e competência para tal.
Esse monopólio da força por parte do Poder Político do Estado
foi alvo de preocupação de muitos teóricos que buscaram por um lado,
a sua origem, e por outro, a justificativa para a sua presença definitiva.
Estabelecendo um corte pontual, podemos observar que em J.
Bodin este contrato que inaugura tal monopólio ainda guarda uma
natureza teológica, na medida em que se funda entre o Rei, o melhor
dos homens, e Deus, o senhor único do poder. O Rei estaria colocado
numa condição sacra, manifestando em sua existência uma autoridade
inquestionável e irresistível, na medida em que seu Poder Político
representaria uma vontade divina.
O Poder Político aqui se legitimaria nesse contrato bilateral en-
tre Deus/Rei, aos quais os súditos estão obrigados a obedecer na me-
dida em que não se pode contrariar a vontade do Rei, pois esta é uma
afirmação da vontade divina.
Contudo, é Thomas Hobbes quem traz certa ruptura com o pen-
samento político na modernidade quando, buscando a compreensão do
contrato o percebe como resultante de uma manifestação de vontade
dos homens, sem nenhuma intermediação por parte da figura divina. O
contrato é aqui uma renúncia ao exercício total do poder, na medida
em que cada um abre mão do seu exercício em prol de um ser artifici-
al, fruto de todos, mas que se impõe a partir daí sobre os sujeitos na
medida em que ele representa a capacidade de monopolizar a espa-

221
da/soberania sobre a constante tentativa dos sujeitos em subverter ao
próprio contrato social.
“O Leviatã” ou “Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesi-
ástico e Civil” é um estudo provocador da relação dos sujeitos nos
estados de natureza e social, com a necessária e irrenunciável busca
que eles têm da felicidade e da paz e a condição fundamental que
precisam aceitar para poderem transpor o estado original, marcado
pela guerra de todos contra todos para um outro onde se pode presen-
ciar a existência do direito, da lei, da propriedade, enfim, do Estado. O
Contrato social é, portanto, um exercício de vontade ontológica, já que
resultado da experiência dos sujeitos.
Em Locke, no “Segundo Tratado sobre o Governo Civil”, se
percebe uma resposta à obra de Hobbes, pois Locke, apesar de não
renunciar a ideia de um estado natural, percebe ali a presença de uma
regra moral que incide sobre os homens, uma verdadeira Lei Moral.
Diferente do autor do Leviatã, ele já percebia a presença da proprieda-
de, que é natural ao homem.
Ele defende que no processo de crescimento da humanidade a
terra acabou por se tornar insuficiente para todos os que acreditavam
ter direito a ela e por isso foi necessário o estabelecimento de regras
para além daquelas criadas pela experiência da Lei Moral ou Natural.
Contudo, a origem do governo enquanto instituição monopoli-
zadora do Poder Político não está fundada nesta crise/necessidade
econômica, mas sim em noutra causa. Esta situação limite está no fato
de que a Lei Moral que é sempre uma Lei válida, não é, necessaria-
mente, uma Lei que consegue ser mantida em todas as situações. Ain-
da que na sociedade natural todos os homens tenham um mesmo direi-
to de punir um transgressor, o aumento de determinadas condições
obriga-os a realizar essa punição de forma cada vez mais intensa e
cotidiana, o que por si só vai se transformando em novos cenários de
transgressões.

222
Formação Humanística

É, assim, que a sociedade civil tem o seu nascimento determi-


nado pela necessidade de uma melhor administração da justiça, pois
os sujeitos sociais acordam entre si delegar esta função da aplicação
da Lei a determinados funcionários, evitando, desta maneira, que a
punição se torne outra forma de transgressão.
Portanto, o governo civil é instituído por meio de um “contrato
social”, sendo os seus poderes limitados na medida em que fruto deste
contrato, envolvendo obrigações recíprocas (Estado/Sociedade), sendo
que estas obrigações podem ser modificadas ou revogadas pela autori-
dade que as conferiu.
Esta tradição jusnaturalista não é homogênea, na medida em
que cada teórico tem a sua contribuição, é o caso de Jean Jacques
Rousseau, que compreendia o estado de natureza não sob a perspecti-
va hobbesiana, mas como uma fase extremamente positiva, na medida
em que o homem que aí se encontrava é “sadio, ágil e robusto”. Foi o
surgimento da propriedade que trouxe o conflito e a necessária trans-
formação do estado de natureza em um estado civil, no qual se pode
perceber o controle e monopólio do poder, bem assim da diferença
social calcada na divisão de classes.
Rousseau também inovou aqui, pois a este segundo momento
ele propôs um terceiro estágio, fase, do processo civilizacional que, se
por um lado não podia significar um retorno ao estado de natureza,
por outro lado representava uma superação do estado civil para o esta-
do da sociedade civil, a partir de um contrato social fundado numa
vontade geral e coletiva.
Idilicamente, Rousseau se utilizava do modelo grego, mais es-
pecificamente, ateniense, para organizar a sua sociedade deliberativa e
participativa dos cidadãos. Não imaginava que os preceitos de uma
ampla e irrestrita participação pudessem ocorrer num Estado organi-
zado a partir das dimensões dos Estados nacionais, incapazes que
eram de realizar a proteção efetiva de uma vontade geral com efetivo
controle do poder político.

223
O contraponto a estas teorias que justificavam a necessidade do
Estado veio com Marx, como já se afirmou, que a partir de 1848 apre-
sentou uma contundente crítica tanto ao Estado, quanto ao Capitalis-
mo, bem assim ao Direito, instrumento que ele identificava como
mecanismo de dominação.
Compartimentando a sociedade em infraestrutura e superestru-
tura, ainda que necessariamente complementares uma à outra, Marx
afirmou que a primeira significava o controle dos meios de produção,
das condições de exercício do modo de produção, enquanto a segunda
seria uma manifestação do poder daqueles que controlando a primeira
estariam em condições de igualmente dominar a segunda.
Sua proposta, a partir de um olhar dialético que concebeu a luta
de classes como móvel da história, estava calcada na emergência polí-
tica do proletariado, que adquirindo consciência de sua condição do-
minada, da sua condição alienada e coisificadora, romperia com a
ideologia do capitalismo para realizar uma revolução que viria a per-
mitir a superação do estado presente (capitalismo), para o estado futu-
ro (comunismo).
A resposta das nações ocidentais, surpreendentemente, ao con-
trário do que poderiam esperar muitos marxistas, foi a de envolver as
proposições críticas do marxismo para dentro do espaço jurídico, alte-
rando a natureza da Lei fundamental, a Constituição, de uma 1ª di-
mensão de direitos, para uma 2ª dimensão de direitos, colocando o
Estado, através da Lei, como principal promotor da defesa dos direitos
sociais, esvaziando o discurso da revolução e da ruptura ao capitalis-
mo.
Importa afirmar que até hoje, o tema do Estado ainda é motivo
de reflexões distintas e significativas, inclusive em alguns que defen-
dem a tese da morte do Estado, enquanto outros tantos, saudosistas e
críticos, o observam em suas transformações.
O silêncio, até agora, sobre o papel e a importância que Maqui-
avel representou para o conceito de política e poder não se devem a

224
Formação Humanística

nenhum desprestígio em relação a este autor, mas sim, tradicional, seu


papel não é menos relevante e se compreendeu por colocá-lo como
último elemento desta breve introdução sobre os dois termos destaca-
dos.
Maquiavel tem sido muito mal compreendido, na medida em
que o senso comum convive com princípios vulgarizados da sua teoria
e do seu pensamento. A obra “O Príncipe”, lido de forma irregular por
gerações esconde para muito o fato de que este opúsculo não é a mais
importante contribuição intelectual deste florentino, ao contrário, es-
crito como um manual de consulta, ele não representa a riqueza da
percepção de um observador atento ao seu tempo que nos legou uma
obra de peso e riqueza intelectual como é o caso “Dos Discorsi”.
Contudo, “O Príncipe” é o senso comum pretensamente conhe-
cido. Sobre ele recai, então, esse breve olhar.
Buscar compreendê-lo pela máxima de que os fins justificam os
meios sem compreender aos quais fins ele se referia é realizar uma
grosseira leitura dele. Os fins em Maquiavel não é o poder pelo poder,
mas sim um processo mais amplo que diz respeito à própria possibili-
dade de unificação do norte da Itália, na medida em que região mais
próspera, sua divisão em pequenos e independentes reinos enfraquecia
toda a herança do que a Itália leia-se Roma, representara para o oci-
dente, como igualmente, construir uma instituição republicana na qual
a vontade do povo fosse respeitada.
Observe-se que o conceito povo não é estranho a Maquiavel,
inclusive porque percebia a relação do poder e do Estado com este
sujeito social. Ele diz:
“Se ensinei aos príncipes de que modo se estabelece a tirania, ao
mesmo tempo mostrarei ao povo os meios para dela se defender.
É necessário ser príncipe para conhecer perfeitamente a natureza
do povo, e pertencer ao povo para conhecer a natureza dos prínci-
pes.”

225
Importa que se leia a ideia de uma capacidade de resistência
popular, de uma república a partir do que se compreendia ao final do
século XV e início do XVI. Obviamente se pode chegar à conclusão
das diferenças dos conceitos com o que se compreender hodiernamen-
te.
Segundo ele, esta ideia de resistência do povo e de república
popular está associada à ideia do principado, pois este provém daquele
ou mesmo dos melhores deste, aos quais ele denomina de ‘grandes’,
segundo a oportunidade que tiver uma ou outra dessas partes.
Portanto, ele não desconhece que o início existencial da política
é a presença de uma divisão social entre os ‘grandes’ e o povo, pois
conforme afirma,
“Enquanto o povo não quer ser oprimido pelos grandes, os gran-
des desejam oprimir o povo.”

Desta forma Maquiavel percebe que a fonte de energia criadora


de uma sociedade é derivada desta condição de oposição, deste siste-
ma em constante estado de beligerância, o que o leva a concluir a
necessidade de que os conflitos sociais são necessários para consoli-
dação do Estado.
É para mediar e realizar uma condição de controle acima deste
conflito que imagina a condição do príncipe, sujeito dotado de virtu e
de fortuna.
A virtu diz respeito à própria capacidade do sujeito em se munir
de todas as condições necessárias para a melhor realização de um
projeto. É a sua capacidade pessoal, sua faculdade mais especial, seu
dom em projetar um objetivo e desenvolver e escolher os métodos
adequados para a sua efetiva realização.
A fortuna, a sorte, é uma consequência da primeira, pois que
ela sorri para aqueles que a procuram não sem certa dose de sacrifício,
dedicação e maior capacidade. O poder, entretanto, não pode estar

226
Formação Humanística

baseado na sorte, pois como lembra, ela é uma prostituta que sorri
para todos a qualquer tempo da mesma forma que abandona qualquer
um em qualquer situação.
A virtu conduz o príncipe, sem que este caminho seja ditado
por limites morais calcados na velha tradição platônico-aristotélica-
tomista medieval, já que um dos principais feitos deste florentino foi
ter separado a moral do poder e da política. Mas isso não quer afirmar
que sua tese é fundada numa banalidade do mal na medida em que
afirma justificáveis as ações do príncipe em busca da consagração do
seu fim.
Conforme Marilena Chauí,
“Maquiavel ainda descortina sobre o comportamento do príncipe
em relação à natureza humana e à necessidade das virtudes: Há
uma dúvida se é melhor sermos amados do que temidos, ou vice-
versa. Deve-se responder que gostaríamos de ter ambas as coi-
sas, sermos amados e temidos; mas como é difícil juntar as duas
coisas, se tivermos que renunciar a uma delas, é muito mais segu-
ro sermos temidos do que amados [...] pois dos homens, em geral,
podemos dizer o seguinte: eles são ingratos, volúveis, simuladores
e dissimuladores; eles furtam-se aos perigos e são ávidos de lu-
crar. Enquanto você fizer o bem para eles, são todos seus, ofere-
cem-lhe seu próprio sangue, suas posses, suas vidas, seus filhos.
Isso tudo até o momento que você não tem necessidade. Mas
quando você precisar, eles viram as costas. [...] [...] Os homens
têm menos escrúpulo de ofender quem se faz amar do que quem
se faz temer. Pois o amor depende de uma vinculação moral que
os homens, sendo malvados, rompem, mas o temor é mantido por
um medo de castigo que não nos abandona nunca.”

O príncipe age com essa ‘crueldade’ não porque está acima do


povo, mas porque ele é um representante deste mesmo povo com to-
das as suas particularidades e singularidades que nem sempre aconte-
cem nos limites daquilo que a escatologia cristã imortalizou.

227
Ele percebe que o contrato fundante do Estado não se funda na
moral do ‘bem’ católico, na ideia de uma condição intrínseca desta
qualidade, mas numa condição muito mais humana que é a do medo,
pulsão tão intensa que coíbe, justifica e controla o agir dos sujeitos no
espaço social. Mesma pulsão que o Estado deve realizar e apresentar
na medida em que busca controlar o campo social.
É assim que ao romper com a tradicional ideia da moral católi-
ca nos espaços do poder e da política, ele percebe uma ética e uma
lógica próprias a estes objetos, mas se isso não deveria surpreender
ninguém, mesmo a época do Renascimento, a forma como ele afirma
causa um mal estar em uma sociedade que apreensiva pela quebra de
seus dogmas se via obrigada a reconstruir novos em bases que não
permitissem uma quebra mínima do conceito de civilização e humani-
dade.
Uma ideia racionalizante de um agir político sem um limite
calcado em uma ética cristã significava construir uma nova condição
na relação entre os campos sociais e políticos.
Sua percepção é realista na medida em que iconoclasta, já que
não poupa de sua crítica nenhuma das idílicas imagens das sociedades
e dos Estados que pertenciam ao imaginário social daquela época.
Afirma:
“Grande é a diferença entre a maneira em que se vive e aquela em
que se deveria viver; assim, quem deixar de fazer o que é de cos-
tume para fazer o que deveria ser feito encaminha-se mais para a
ruína do que para sua salvação. Porque quem quiser comportar-se
em todas as circunstâncias como um homem bom vai ter que pe-
recer entre tantos que não são bons.”

Percebendo, portanto, a política como um agir humano e des-


mistificando este daqueles ideais medievais, Maquiavel ressuscitou a
política, como uma estratégia de construção e manutenção do poder,
mas a partir do próprio homem, não daquela ‘sombra’ de homem que

228
Formação Humanística

o discurso moralista da Igreja tanto lutou para realizar ao longo do


período medieval.

3.2 Direito e política (Estado)


É fundamental, agora, traçar algumas observações sobre a rela-
ção Estado(política) e Direito.
Esta relação é uma das mais fecundas na atual reflexão jurídica,
de matiz positivista ou mesmo hermenêutica, sistêmica, sistemática,
realista. Estas relações profícuas deram origem, por exemplo, a algu-
mas posições teóricas tais como o dualismo tradicional ou mesmo o
monismo jurídico.
Em relação à primeira, o dualismo tradicional, além de defen-
der a tese de que o Estado e o Direito constituem realidades díspares,
também defende a fixação de linhas de extensão entre um e outro
elemento.
Segundo Antonio Carlos Wolkmer,
“Considerações de natureza sócio-política comprovam a existência
inicial do fenômeno jurídico sobre o fenômeno estatal, pois a pas-
sagem da ‘sociedade natural’ para um modelo complexo de ‘asso-
ciação política’ se materializa com a conservação dos direitos natu-
rais e com a autolimitação da ordem coercitiva estatal.”

Surge, a partir daí, uma doutrina tradicional que coloca o Esta-


do como fundador, criador do Direito, determinando à Lei um papel
de instrumento ideológico do poder estatal. Quer dizer, mesmo que as
normas não sejam criadas pelo Estado, diretamente, enquanto ente
artificial, sua sanção, dada a posteriori estaria no espaço da atuação
do Estado como centro do monopólio do poder.
Isto significa que quando ocorre um delito ou uma transgressão
à Lei, o Estado seria automaticamente acionado a entrar em atividade,

229
permitindo a aplicação e a eficácia ao elemento normativo, garantindo
e assegurando as condições necessárias a coesão e controle do espaço
sócio-político.
Um dos críticos mais duros a essa posição dualista foi Hans
Kelsen, que em seu livro “Teoria Pura do Direito”, não pode aceitar
essa condição distinta do instituto do Estado daquele do Direito.
Para a teoria monista que se fundamenta num extremismo de
lógica e formalismo da dogmática normativista-positivista, não há de
se falar em dualismo jurídico-estatal, pois o Estado está identificado
com a ordem jurídica, com a Lei, com o Direito, pois ele encarna e
objetiva o Direito na medida em que o realiza através da imposição da
sanção.
Não por acaso que Hans Kelsen afirmava que o Estado é sem-
pre um Estado de Direito permanente, pois que a personalidade jurídi-
ca do Estado é uma clara expressão da unidade normativa do ordena-
mento jurídico, o que impediria descolá-los enquanto elementos dis-
tintos.
Destaca Wolkmer a respeito que
“O Estado configura-se como uma organização de caráter político
que visa não só a manutenção e coesão, mas a regulamentação
da força em uma formação social determinada. Esta força está ali-
cerçada, por sua vez, em uma ordem coercitiva, tipificada pela in-
cidência jurídica. O Estado legitima o seu poder pela segurança e
pela validade oferecida pelo Direito, que, por sua vez, adquire for-
ça no respaldo proporcionado pelo Estado.”

É de se notar que o atual Estado Democrático de Direito buscou


superar esta relação de profunda dependência entre o Direito e o Esta-
do, na medida em que passou a compreender a força da Lei na capaci-
dade da própria sociedade civil, organizada e participativa, através de
uma Constituição principiológica, calcada na normativização dos

230
Formação Humanística

direitos fundamentais, a força da Lei e a legitimidade do próprio Esta-


do.
Ora, se é possível destacar a Política, aqui, seria no que diz res-
peito a sua definição enquanto exercício de poder político, este está
presente e configurado nas próprias condições originais de uma reali-
dade social e societária, nas suas primeiras manifestações organizati-
vas, bem assim nas suas primeiras experiências da ação, controle,
dominação, carisma, autoridade e disciplina. Não há de se falar em
sociedade, Lei, Estado sem se falar do poder político justificando e
encorpando estes mesmos elementos.
Isso significa afirmar que não se percebe no espaço social al-
guma relação de sujeitos entre si ou com o Estado sem a presença de
uma influência dominante de um determinado sujeito ou um grupo
que tem a capacidade de impor alguma forma de conduta e de sanção.
Esta é assim uma estrutura jurídica capitalista que desempenha fun-
ções especializadas de controle e dominação com uma incrível capa-
cidade de regular e definir os limites da articulação do próprio poder
político do Estado e do ordenamento jurídico.
Contudo, tal relação não é estanque ou apresenta uma estrutura
linear e não contraditória, pois estes espaços de poder entre o Estado e
o Direito são complexos e cambiáveis a partir de alterações no contex-
to sócio-político-jurídico.
Diz-nos Foucault que o poder não é
“(...) o fenômeno de dominação maciço e homogêneo de um indi-
víduo sobre os outros, de um grupo sobre outros, de uma classe
sobre as outras; mas tem bem presente que o poder (...) não é al-
go que se possa dividir entre aqueles que o possuem e o detêm
exclusivamente e aqueles que não o possuem e lhe são submeti-
dos. O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor,
como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui
ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como
uma riqueza ou bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas

231
suas malhas ou indivíduos não só circulam, mas estão sempre em
posição de exercer este poder e de sofrer sua ação; nunca são o
alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de trans-
missão. Em outros termos, o poder não se aplica aos indivíduos,
passa por eles”.

Mas independente do sentido que se dê à capacidade de presen-


ça do poder político no espaço sócio-político-jurídico, inegável afir-
mar que o Direito, envolvido ao poder, estabelece os limites do exer-
cício deste mesmo poder do Estado, pois que ele concede a limitação e
legalização para demarcar a ação do Estado e a própria expressão de
força em que se funda a sociedade contemporânea.
Em síntese, Wolkmer destaca que
“As asserções teóricas demonstram, até aqui, que sob uma pers-
pectiva crítico-ideológica, a natureza social do Direito, quer seja
como prática quer seja como discurso expressa a legitimidade do
poder do Estado moderno. Deveras, Direito e Poder estão gradual
e intimamente interligados sob formas menos violentas, muito mais
sutis e disciplinares. Antes mesmo do entendimento do Direito co-
mo prática ou conduta normatizada, o discurso jurídico ocupa um
espaço privilegiado na relação, no exercício e na reprodução do
poder”.

3.3 Ideologia
O conceito de ideologia é uma outra dificuldade ao qual um
simples comentário em um dicionário não tem como esgotar. Tal con-
ceito aparece em diferentes linguagens, desde discursos políticos,
filosóficos, jurídicos etc., ela alcança uma gama de significados distin-
tos.

232
Formação Humanística

A partir do olhar de Norberto Bobbio se pode partir de um de-


terminado norte para se estabelecer uma compreensão comum sobre
tal conceito. Ele a compreendeu através de uma dupla natureza:
a) A ideologia como significado fraco;
b) A ideologia como significado forte.

No que diz respeito à ideologia como significado fraco ela de-


termina o gênero ou mesmo as espécies de discursos políticos, quer
dizer, significa um conjunto de ideias e de valores que dizem respeito
a uma determinada ordem pública objetivando a determinação dos
comportamentos presentes nela.
Em relação à ideologia enquanto significado forte, este tem
uma relação com aquele significado elaborado por Karl Marx, no
sentido em que ele entendia como ‘crença falsa das relações de domí-
nio’ entre as classes. A principal distinção entre estes dois tipos está
no fato de que no sentido forte ela é uma crença falsa.
Esta contribuição de Marx, mesmo que relevante, carregou uma
herança difícil ao conceito de ideologia e que não raro trouxe e traz
dificuldades para uma melhor compreensão do conceito, que é mais
complexo que o sentido dado pela tradição marxista. Neste sentido,
Gramsci chama a atenção afirmando que
“Um elemento de erro na consideração sobre o valor das ideologi-
as, ao que me parece, é devido ao fato (fato que, ademais, não é
casual) de que se dê o nome de ideologia tanto à superestrutura ne-
cessária de uma determinada estrutura, como às elucubrações arbi-
trárias de determinados indivíduos. O sentido pejorativo da palavra
tornou-se exclusivo, o que modificou e desnaturou a análise teórica
do conceito de ideologia. [...] É necessário, por conseguinte, distin-
guir entre ideologias historicamente orgânicas, isto é, que são ne-
cessárias a uma determinada estrutura, e ideologias arbitrárias, ra-
cionalistas, ‘desejadas’.”

233
Importa ressaltar que Marx não utilizou o conceito de ideologia
como uma crença falsa como sinonímia de falsa consciência, esta
expressão, por sinal, foi enunciada por Engels.
Conforme Larrain,
“Quando Marx fala em ideologia, ele sempre se refere a um ti-
po de distorção ou inversão da realidade. Ele nunca se refere à
sua própria teoria como uma ideologia ou uma ideologia pro-
letária, nem jamais considera a possibilidade de uma ideologia
servir aos interesses do proletariado.”

Outra particularidade deste conceito de ideologia em Marx é


que ele não a utiliza num sentido plural, mas sim a utiliza enquanto
termo sempre no singular, quer dizer, ele se referindo a ideologia co-
mo produções intelectuais específicas e não generalizantes.
“Marx e Engels sempre falam em ideologia no singular e jamais se
referiram a ideologias de classe no plural, como fazem Laclau e
Hall, seguindo a tradição leninista e gramsciana. Marx e Engels es-
tão sempre em oposição à ideologia. Nisto eles são absolutamente
consistentes, dos seus primeiros escritos aos escritos maduros, in-
dependentemente de estarem lidando com religião, filosofia alemã
ou com as formas de consciência política e econômica espontâ-
neas promovidas pelo mercado capitalista.”

Destaca com propriedade Marco Schneider que


“Marx não fala em ideologias como representações possíveis da
realidade por um grupo, que dão sentido às suas práticas, mas
como uma forma específica de distorção da realidade através de
uma representação específica, que mascara as contradições des-
tas práticas, resolvendo na subjetividade e no discurso as frustra-
ções que não encontram solução objetiva, legitimando e masca-
rando por esta via, na prática e no discurso, as contradições desta
realidade ‘invertida’.”

234
Formação Humanística

No primeiro, o conceito de ideologia está despojado de qual-


quer pretensão mistificante do espaço político, não sendo considerada
uma estratégia de dominação de um grupo sobre outro.
O que interessa aqui é o sentido forte, uma vez que a Lei e o
Direito têm sido compreendidos como instrumentos de legitimação da
dominação do Estado e nele dos grupos que o exercem de forma mais
plena.
Ora, esta percepção da ideologia em Marx como crença falsa
também não é uma verdade absoluta, pois não se pode afirmar a exis-
tência de um consenso quanto ao que seria uma concepção marxista
unívoca e absoluta da ideologia.
É comum, hoje, acusar o marxismo de uma posição reducionis-
ta e economicista, em face do qual toda produção intelectual ou sim-
bólica não científica seria um mero reflexo mecânico e automático,
bem como linear de toda e qualquer estrutura econômica.
Não são poucos os que incorreram neste equívoco, ao qual se
opunham veementemente não somente o próprio Marx, mas também
importantes pensadores de orientação marxista, como Gramsci, Lu-
kács, Althusser, etc.
A origem desta confusão entre os autores marxistas e não mar-
xistas que se esforçam por superá-la, está na ênfase dada por Engels
em considerar, entre outros fatores, o econômico como determinante
em última instância das relações sociais, incluindo aí toda produção
intelectual ou simbólica – ou ainda “do espírito”, nos termos de Marx.
Esta ênfase teria sido distorcida em um mecanicismo determinista por
teóricos ligados à 2ª Internacional.
Outra noção marxista controversa se encontra no cerne da for-
ma como Marx utiliza o termo ideologia, que é aquela de falsa consci-
ência, e que seria resultante de uma representação distorcida das rela-
ções sociais a partir das estratégias de dominação de classe.

235
Mesmo não sendo provável a exatidão do olhar que Marx ela-
borou ao conceito de ideologia, contudo, permanece o fato de que ele
a identificou como um instrumento pelo qual se pode compreender a
condição de submissão do proletariado.
Esta significação sofreu alterações ao longo do século XX, uma
vez que ainda que mantida a sua natureza de mitificação, nem sempre
ela foi associada a uma estratégia de dominação de classe tão explici-
tamente como queria Marx a partir do controle da infraestrutura.
Gramsci, um dos mais cultuados teóricos marxistas não a con-
cebia como referencial exclusivo da infraestrutura, discordando radi-
calmente de Marx quanto a este fator, já que para ele a ideologia era
uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente não só na
economia, mas na arte, no direito, bem como em todas as manifesta-
ções da vida intelectual e coletiva. Igualmente, ele não a compreendia
como exclusiva do chamado grupo dirigente
Como afirma,
“A ideologia difundida nas camadas sociais dirigentes é evidente-
mente mais elaborada que os seus fragmentos encontrados na cul-
tura popular (...) na cúpula, a concepção de mundo mais elabora-
da, a filosofia, ao nível mais baixo, o folclore. Há entre esses dois
níveis extremos, o senso comum (...). A ideologia não é inerente
ao sujeito, mas fruto de todo um processo social (...). Cada cama-
da social possui seu próprio senso comum (...) seu traço funda-
mental mais característico é o de constituir (mesmo em nível de
cada cérebro) uma concepção fragmentária, incoerente, inconse-
qüente, conforme a situação social e cultural da multidão para a
qual esse traço também é a filosofia”

Outra mudança implementada no conceito de ideologia forte se


deu pela observação de Karl Mannheim, que não aceitou a excessiva
generalização dada por Marx ao conceito, uma vez que este, diferen-

236
Formação Humanística

temente de Mannheim, só conseguia compreender o sujeito como um


sujeito de classes.
Além dessa crítica ao uso da ideologia como estratégia de do-
minação de classe, para ele este conceito deve ser compreendido como
um conjunto das concepções, ideias, representações, teorias, que se
orientam para a estabilização, ou legitimação, ou reprodução, da or-
dem estabelecida.
Desta forma são todas aquelas doutrinas que tem certo caráter
conservador no sentido amplo da palavra, isto é, consciente ou incons-
ciente, voluntária ou involuntariamente e que servem de manutenção
da ordem estabelecida. Diferentemente de Marx, a ideologia não é
instituto da revolução, mas sim da estabilização.
Também Pareto foi responsável por reforçar esta alteração no
significado forte da ideologia, pois como Mannheim ele não consegue
deixar de perceber a ideologia não somente como um produto coleti-
vo, mas sim como produto de uma consciência individual, psicológica,
o que lhe permite iniciar uma interpretação neopositivista da ideologi-
a.
Por esta perspectiva neopositivista, a ideologia tem como signi-
ficado as deformações que os sentimentos e as orientações práticas de
uma pessoa operam nas suas crenças, travestindo os juízos de valor
sob a forma simbólica das asserções de fato. Ainda que mantido o
resquício da falsidade, esta não é exclusivamente fruto da vontade
social, mas de uma (in)capacidade do sujeito.
Portanto, independentemente do teórico, a ideologia exerce
uma capacidade de mitificação sobre o significado da realidade, na
medida em que o homem não consegue justificar o real, mas apenas a
sua representação através da linguagem. Esta mitificação do real não é
apenas útil à sociedade capitalista, mas a qualquer coletividade, uma
vez que ela serve para condicionar e justificar o controle e a domina-
ção.

237
O Direito e, a Lei são instrumentos mitificadores na medida em
que ao normatizar o fato humano em fato jurídico-humano possibili-
tam uma reificação da realidade em norma, com a sua correspondente
capacidade de permissão e sanção. O que se deve evitar é cair na cila-
da fácil de estabelecer algum axioma aos institutos da ideologia, uma
vez que a própria identificação com uma natureza positiva ou negativa
já será um exercício de ideologização.
Neste sentido, diz-nos Istvan Meszáros
“(...) as várias formas ideológicas de consciência social acarretam
diversas implicações práticas de longo alcance na arte, no direito e
na literatura, bem como na filosofia e na teoria social, independen-
temente de sua ancoragem sócio-política em posições progressis-
tas ou conservadoras”.

3.4 Hegemonia
O conceito de hegemonia tem particular relação com os concei-
tos de ideologia e Direito. Isso porque a hegemonia é uma manifesta-
ção de dominação complexa e de refinado discurso de legitimação na
medida em que tanto seduz, quanto domina aos que se deixam consti-
tuir por ela.
Neste terreno, um dos principais teóricos já de há muito tem si-
do Ernesto Laclau, juntamente com a contribuição de Chantal Mouffe.
Laclau afirma que isso é assim porque o campo geral da emer-
gência da hegemonia é o das práticas articulatórias, compreendida
aqui a articulação como qualquer prática que estabeleça uma relação
entre elementos tal que a sua identidade é possível de ser modificada.
O direito é uma prática articulatória, na medida em que se faz
discurso de representação no espaço social, já que ele é um discurso
de enorme capacidade de representação de uma forma de ser e estar
fundamentais para a construção da hegemonia política.

238
Formação Humanística

A Lei é em seu todo uma prática discursiva elástica e articulató-


ria que não raro se utiliza de qualquer significação para estabelecer as
condições da hegemonia, incorporando significados que num primeiro
momento pertencem a outras práticas articulatórias, mas que lhe per-
mitem, quando normatizados, fundar significados gerais às ações dos
sujeitos sociais.
Esse espaço de discurso, inclusive o jurídico, não acontece num
campo abstrato e idealmente descolado do que apreendemos como
realidade. Ao contrário, o discurso é realidade. Diz Celi Regina Jar-
dim Pinto que
“O que deve ficar claro aqui é que o discursivo não se encontra em
um nível superestrutural ou das ideias. Não é possível distinguir
entre o ‘Estado real’ e o ‘Estado discursivo’. O primeiro só pode ser
apreendido em um discurso. Em qualquer sociedade haverá sem-
pre uma disputa entre discursos que significam o estado, o que é
diferente de dizer que estes discursos disputam um estado não
significado.”

É a partir desta relação no campo de realidade que a formação


hegemônica, enquanto prática articulatória e discursiva, discurso, não
pode ser creditada a uma única força social, pois a sociedade não é a
representação de uma única significação social, de um único grupo
social.
Tal complexidade de grupos sociais que realizam suas estraté-
gias articulatórias e que se submetem aos metadiscurso hegemônicos,
tais como o discurso jurídico, por serem distintos e não somente de
um grupo social, se organizam a partir do que se reconhece como
‘bloco histórico’, segundo Antonio Gramsci,
“O conceito de bloco histórico é compreendido como determinado
campo social e político relativamente unificado com uma presença
de identidades tendencialmente relacionais. O elo que une distin-
tos elementos que se encontram presentes nele é a formação dis-

239
cursiva, por exemplo, o discurso jurídico; e o terreno antagônico
aonde ele é constituído, até porque a sociedade não é formada de
um único grupo social é o da formação hegemônica. Esta forma-
ção hegemônica tem a capacidade de reunir, seduzir e controlar
uma variada gama de sujeitos e de grupos sociais a partir da ca-
pacidade unificadora de uma estratégia discursiva; mais uma vez:
o discurso jurídico.”

O bloco histórico, formado por distintos grupos sociais unidos


por uma formação discursiva hegemônica apresenta os seguintes ele-
mentos:
a) Para que a formação hegemônica possa ser articulada é ne-
cessária a presença de forças antagônicas e, consequentemente, de
uma instabilidade de fronteiras políticas (é o caso do discurso jurídico
que centrado na Constituição tem condições de se apresentar como
agregador de diferentes grupos sociais);
b) O sujeito constituído por tal formação hegemônica não pode
ficar restrito a presença de uma ‘classe fundamental’, quer dizer, de
um sujeito enquanto essencialidade social.
Importa destacar que a prática articulatória não é um simples
instrumento de chegada a uma dada realidade, ela é a própria constitu-
ição das relações sociais, isto é, da realidade que (re) (a)presenta.
Como exemplo se pode observar a longa e mítica história das
conquistas de direitos que vem seduzindo tantos teóricos nesses últi-
mos duzentos anos.
A tradição iluminista acostumou os atores sociais a viverem as
conquistas de direitos como etapas rumo a uma sociedade justa. Isso é
assim porque não se pode olvidar da forte influência do evolucionismo
de Darwin nessa predeterminação.
A ideia de um ‘direito adquirido’ carrega uma mistificadora i-
deia de fixidade, de confirmação essencial. Este sentimento, presente

240
Formação Humanística

na maior parte das reflexões dos teóricos que se deixaram seduzir por
esse tema, verifica-se a partir da vivência do direito como um direito
da natureza ou do cumprimento das leis históricas.
Tal condição de conquista de direitos se encontra em crise neste
fim de século, pois este é um tempo em que muitos daqueles direitos
compreendidos como líquidos e certos se percebem ameaçados; tais
como o direito a vida, a dignidade humana, etc.
No que pese na maioria dos países Latino-Americanos ele ter
sido sempre vivido como falta, o direito, mesmo aí, sempre foi signifi-
cado como algo sem contestação. Ora, na atualidade, este direito foi
subvertido por uma lógica darwinista do social em que vida digna não
é mais um direito, mas um efeito de concorrência entre sujeitos com-
petentes no mercado.
O deslocamento de sentido de garantia de vida digna é um bom
exemplo da precariedade dos sentidos e da falta de literalidade. O tipo
de argumento acima deixa transparecer uma perigosa, porém, não
distante da realidade, possibilidade de contestação dos chamados di-
reitos universais.
Aqui se pode recordar da tese de François Jullien que afirma
“(...) toda justificação ideológica de uma universalidade dos direitos
humanos é impossível, da mesma forma que são vãs as opera-
ções reducionistas de todo o tipo em que foram propostas: a pre-
tensão à universalidade dos direitos do homem não me parece de-
fensável, a bem da verdade, senão de um ponto de vista lógico.
Em vez de cogitar atenuar o conceito dos direitos do homem en-
tregando-o acomodações que os tornem transculturalmente acei-
táveis, porque depreciados, cortarei por minha vez com esse dis-
curso da boa vontade, impotente, mas loquaz. Tomando o partido
oposto: o de depositar confiança em seu efeito de conceito, do
qual eles extraem um ganho ao mesmo tempo de operatividade e
de radicalidade”

241
E, ainda:
“Os direitos humanos fornecem exemplo perfeito do que, juízo do
belo, ou mais precisamente de sua articulação paradoxal – mas le-
gítima – do absoluto e do singular, é transponível à ordem dos va-
lores e do político: os ocidentais os estabelecem, até mesmo os
impõem, como dever-ser universal, ao passo que é manifesto que
esses direitos são oriundos de um condicionamento histórico parti-
cular, exigindo que todos os povos subscrevam-nos absolutamen-
te, sem exceção nem redução possíveis, ainda que não possam
deixar de constatar que outras opções culturais, através do mundo,
os ignorem ou contestem (...) Todos aqueles que, mundo afora, in-
vocam hoje os direitos humanos nem por isso aderem à ideologia
ocidental (será que a conhecem?).”

O que se dá, portanto, a partir das teses de Laclau e, agora, Jul-


lien têm consequências concretas com o compromisso real de garantia
destes direitos; na verdade o que primeiro parece indicar é que as ga-
rantias dos direitos não se dão por uma universalidade a priori, mas
sim pela garantia de suas condições de emergência (inclusive da pró-
pria condição de universalidade) no campo da luta social.
Já o segundo destaca a razão de uma condição hegemônica so-
bre essa prática discursiva de direitos humanos em que o que se tem é,
no fundo, uma violência simbólica, quer dizer, a imposição de uma
universalidade que não representa o universal, mas sim uma determi-
nada cultura jurídica que se quer universal.
É, assim, que o discurso ideológico do direito, da Lei, serve a
uma estratégia discursiva hegemônica de dominação e justificação,
que começa com a mística da Constituição e pelo império dos direitos
que permitem sucumbir às diferenças que em grande medida justifi-
cam as contradições e os conflitos sociais.

242
Formação Humanística

3.5 Da Declaração Universal dos direitos do homem


A Declaração Universal dos Direitos Humanos já tem, agora,
62 anos. O contexto de seu nascimento está implicado diretamente
com o período imediato pós-guerra, ao qual exalava toda uma crise
sobre os conceitos de humanidade e civilização.
A repercussão dos fatos por trás do período da segunda guerra
mundial, de 1939 a 1945 alcançaram a máxima numa expressão que
foi cunhada para significar o efeito desse período para a história do
homem: banalidade do mal.
Aquelas velhas missivas sobre o homem, a humanidade e a ci-
vilização, sobre a força dos imperativos categóricos kantianos tinham
se diluído frente aos massacres, ao genocídio generalizado que vence-
dores e vencidos perpetuaram ao longo desses seis anos de guerra.
Ainda mais, o mundo ainda estava digerindo os efeitos das
bombas derramadas sobre Hiroshima e Nagasaki, ao qual de nada
valia a tradicional condição de território, espaço, militarização. O
horror se amplia na medida em que se sabe que o uso da bomba atô-
mica foi autorizado contra o Japão pelo total desprestígio que esta
nação representava aos interesses da cultura ocidental.
Embora se possa utilizar a expressão em toda a sua significa-
ção, sua origem está condicionada a um momento posterior ao da 2ª
Guerra Mundial, uma vez que a autora desta expressão, Hanna Arendt
não se mantinha presa apenas aos efeitos dessa guerra, mas a toda uma
condição também anterior e posterior da civilização ocidental, naquilo
que ela identificava como um longo processo de degradação e degene-
rescência da idéia de homem e humanidade, degradação que encon-
trou na 2ª Guerra um momento ‘especial’.
Contudo, em mais uma demonstração mítica, a humanidade, ou
aquela dos vencedores da guerra sentiram necessidade de reconstruir
algum mecanismo de solidariedade, de respeito à dignidade do ho-
mem, mesmo de reconstruir os conceitos de civilização e humanidade.

243
A partir deste espírito, marcado, repita-se, pela ideologia dos
países vencedores na 2ª Guerra Mundial, em 1948 veio a ser organiza-
da a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Importa destacar que apesar de todas as boas intenções, não se
discutiu à época, e mesmo agora a discussão ainda é difícil, sobre o
que significava esta condição de ‘universalidade’ proposta nesta De-
claração.
Inegável que a 3ª dimensão de direitos é caudatária desse pro-
cesso, na medida em que se firmaram a defesa de direitos abstratos, da
solidariedade, da fraternidade e da solidariedade, bem assim dos direi-
tos difusos. Contudo, o espaço global não tem uma única ideia de
homem e de direitos do homem, o que vem causando um mal estar
nestes últimos 62 anos, na medida em que tais direitos universais são
na realidade, direitos de uma determinada comunidade histórica, a
Europeia, com os seus derivados na América.
Em que medida a ideia de dignidade humana é universal no
sentido em que ela foi cunhada no cenário europeu? No que tange ao
direito à vida, a ideia de vida é a mesma entre culturas tão díspares
como as da Índia, China, mundo muçulmano e Ocidente? Mesmo no
Ocidente estes conceitos têm uma mesma base de significação?
Estas perguntas fazem parte de todo um rol de questionamentos
que permitem a filosofia jurídica e política repensarem a eficácia des-
ses direitos ditos universais, o que contraria todos os que tentam cons-
truir uma ideia de cidadania cosmopolita, de um Estado Democrático
de Direito, mesmo de globalização da lei.
Não significa que os que construíram essa generalização dos
conceitos estão errados e os seus críticos certos. Não se trata de ‘certo’
ou ‘errado’. Mas de se aceitar uma tendência a mitificar o universal, a
idéia de homem universal e seus respectivos direitos.
Como destaca François Jullien,
“O ‘homem’ como conceito, pensado no modo do universal, não
passa de um atributo genérico, conferido a partir de fora (abstra-

244
Formação Humanística

tamente) e só existindo a título ‘acidental’ em vista desse determi-


nado homem. A questão assim colocada abre efetivamente um a-
bismo no pensamento europeu e, em certo momento, formou seu
destino. Para nós, ela se torna, por aplicação: quando tratamos,
por exemplo, dos ‘direitos do homem’, declarando-os universais, é
ainda dessa universalização abstrata que dependemos?”

Entretanto, inegável que o constitucionalismo tem enveredado


por esse caminho dos direitos universais, justificando a sua importân-
cia e razão de ser neste século XXI, mas inegavelmente não se pode
jamais esquecer que mesmo esta declaração, como o Estado Democrá-
tico de Direito, bem assim a democracia são institutos históricos e,
portanto, contextualizados.

3.6 Declaração Universal dos direitos humanos

Preâmbulo
Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a
todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inali-
enáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo,
Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos
humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da
Humanidade e que o advento de um mundo em que os todos gozem de
liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do
temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do
ser humano comum,
Considerando ser essencial que os direitos humanos sejam
protegidos pelo império da lei, para que o ser humano não seja compe-
lido, como último recurso, à rebelião contra a tirania e a opressão,

245
Considerando ser essencial promover o desenvolvimento de
relações amistosas entre as nações,
Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram,
na Carta da ONU, sua fé nos direitos humanos fundamentais, na dig-
nidade e no valor do ser humano e na igualdade de direitos entre ho-
mens e mulheres, e que decidiram promover o progresso social e me-
lhores condições de vida em uma liberdade mais ampla,
Considerando que os Estados-Membros se comprometeram a
promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal
aos direitos e liberdades humanas fundamentais e a observância desses
direitos e liberdades,
Considerando que uma compreensão comum desses direitos e
liberdades é da mais alta importância para o pleno cumprimento desse
compromisso,
Agora, portanto, proclama

A PRESENTE DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DI-


REITOS HUMANOS como o ideal comum a ser atingido por todos
os povos e todas as nações, com o objetivo de que cada indivíduo e
cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta Declaração, se
esforcem, através do ensino e da educação, por promover o respeito a
esses direitos e liberdades, e, pela adoção de medidas progressivas de
caráter nacional e internacional, por assegurar o seu reconhecimento e
a sua observância universal e efetiva, tanto entre os povos dos pró-
prios Estados-Membros, quanto entre os povos dos territórios sob sua
jurisdição.

Artigo I
Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignida-
de e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em
relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

246
Formação Humanística

Comentários: Este artigo veio a ser consagrado em nossa


Constituição Federal de 1988 no caput do artigo 5º que determina em
seu texto que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qual-
quer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-
dentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à i-
gualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”
Importa destacar que apesar do constituinte originário ter a-
penas se referido à figura do estrangeiro residente, jurisprudência do
STF compreendeu que a ideia de homem presente neste artigo era
marcadamente universal, o que permite, então, afirmar que igualmen-
te os turistas estarão abrigados pelo comando constitucional.
Este processo que se apresenta na Declaração de 1948 e na
nossa Constituição de 1988 tem um longo e importante histórico,
fruto de um processo que apesar dos significados terem sido amplia-
dos na medida do interesse do olhar de quem buscou compreendê-los,
representaram passos importantes para a consolidação desta defesa
intransigente desses direitos intrínsecos ao ser humano.
É esse o caso da “Magna Carta de João Sem Terra”, de 1215
ao qual representou não apenas uma derrota do poder do monarca
naquele período histórico inglês, mas o reconhecimento de garantias
fundamentalmente inéditas aos cidadãos à época reduzidos a condi-
ção social de súditos.
Diz o artigo desta carta que “também concedemos perpetua-
mente, em nosso nome e no de nossos sucessores, para todos os ho-
mens livres do reino de Inglaterra, todas as liberdades, cuja continu-
ação se expressam, transmissíveis a seus descendentes.”
Influenciada por este artigo, mais tarde a Declaração da Vir-
gínia, em seu artigo 1º destaca que “Todos os homens nascem igual-
mente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais
dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua
posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os

247
meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felici-
dade e a segurança.”
Influencia direta, a revolução francesa não iria prescindir, por
sua vez de apresentar a sua própria ratificação dessa igualdade dos
homens, agora também reconhecidos como cidadãos, conceito políti-
co importante para caracterizar este novo status da pessoa humana
quando do processo de crise e queda do absolutismo. Desta forma ‘A
Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão’ de 1789,
estabelece logo em seu artigo 1º que “Os homens nascem e vivem
livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ser funda-
das sobre a utilidade comum”. Já no seu artigo 2º, a liberdade e a
legitimidade da associação dita política, in verbis: “O fim de toda
associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescri-
tíveis do homem. Estes direitos são: a liberdade, a propriedade, a
segurança e a resistência á opressão.” E, no seu artigo 6º é consa-
grado não mais o direito dos reis, sua personificação, mas o princípio
fundamental da legalidade, este fruto do legítimo representante popu-
lar: “A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o
direito de concorrer pessoalmente, ou por seus representantes, para
sua formação. Ela deve ser a mesma para todos, seja protegendo, seja
punindo".
Esta igualdade é maior ainda do que a garantia para que os
homens pudessem aspirar a um tratamento equitativo, pois ela susten-
ta de forma inédita que os homens, cidadãos do Estado são igualmen-
te por ele admitidos a todas as dignidades, cargos e empregos públi-
cos, segundo sua capacidade e sem outra distinção que a das suas
virtudes e dos seus talentos
Contudo, como se percebe atualmente em nosso ordenamento
jurídico, importa lembrar que nenhuma liberdade individual se apre-
senta no espaço social em sua forma absoluta, uma vez que se faz ne-
cessário respeitar o fato de que podem ocorrer conflitos entre estas
liberdades que precisarão, assim, respeitar as condições da teoria da

248
Formação Humanística

adequação através do método da ponderação (o mais razoável, o mais


proporcional e o que proibir mais o excesso será predominante).
Entretanto, não basta (re)afirmar a importância deste princípio
de liberdade e igualdade sem que o próprio espaço social esteja pron-
to à recebê-lo, pois conforme já alertava Rousseau, em seu “Emílio e
da Educação”somente com a educação, no seu sentido mais amplo se
poderá proporcionar a todas as pessoas uma melhor argumentação,
uma maior significação em prol dos Direitos Humanos e da afirma-
ção da respectiva Cidadania, condições sine qua non da verdadeira
igualdade.

Artigo II
1 - Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos
e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de
qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, origem nacional
ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2 - Não será também feita nenhuma distinção fundada na
condição política, jurídica ou internacional do país ou território a
que pertença uma pessoa, quer se trate de um território indepen-
dente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer
outra limitação de soberania.
Comentário: Este artigo se destaca de forma peremptória con-
tra a realidade dos preconceitos e de todas aquelas distinções feitas
em decorrência da raça, da cor, do sexo, da língua, da religião, da
opinião política, da origem nacional ou social, da riqueza, nascimen-
to etc. O que se quer aqui é criar uma resistência capaz de enfrentar
toda e qualquer forma de distinção.
Diz Dom Pedro Casaldáliga que,
“Proclamar esse primeiro, inviolável, direito, mãe de todos os direi-
tos humanos. abre-nos a uma perspectiva da humanidade como
verdadeira fraternidade. Já alguém recordou oportuna mente que

249
os direitos humanos são muito mais que uma realidade jurídica,
enquanto refletem um ‘dever ser’, uma desafiadora prospectiva
que a humanidade se impõe para respeitar sua própria dignidade;
para ser uma humanidade não apenas hominizada. mas plena-
mente humanizada.”

Em nossa Constituição Federal são inúmeras passagens desta-


cam a compreensão da importância deste artigo, como é o caso do
inciso I, do artigo 5º, que afirma que homens e mulheres são iguais
nos termos desta constituição; ou mesmo no inciso XLII que afirma
que o crime de racismo é imprescritível e inafiançável, permitindo-lhe
com isso um amplo alcance de eficácia, da mesma forma que ela ga-
rante um livre direito de manifestação, vedado o anonimato (inciso
IV), etc.

Artigo III
Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segu-
rança pessoal.
Comentário: Igualmente este artigo está consagrado no caput
do artigo 5º de nossa Constituição como se pode anotar em sua parte
final que destaca que nenhum brasileiro ou estrangeiro residente
sofrerá qualquer discriminação quanto a vida, liberdade, igualdade,
segurança e propriedade.
Afirma José Afonso da Silva que,
“A vida humana não é apenas um conjunto de elementos materi-
ais. Integram-na, outrossim, valores imateriais, como os morais. A
Constituição, mais que as outras, realçou o valor da moral indivi-
dual, tornando-a mesmo um bem indenizável (art. 5º - V e X). A
moral individual sintetiza a honra da pessoa. o bom nome, a boa
fama, a reputação que integram a vida humana como dimensão
imaterial.”

250
Formação Humanística

A vida é assim consagrada em sua plenitude e num espaço de


imaterialidade fundamental aos direitos do homem na medida em que
a 3ª geração de direitos reconheceu esta condição de defesa de direi-
tos abstratos como essenciais á dignidade humana.
No que diz respeito à segurança pessoal, este princípio está in-
timamente relacionado com o da vida, pois serve não só para reforçá-
la, mas igualmente como um pressuposto básico e garantia à integri-
dade do corpo, compreendido este não somente na sua condição físi-
ca, mas num todo que envolva a sua essência e a sua condição bioló-
gica.
Por sua vez, não se poderá falar de defesa à vida sem se desta-
car a defesa da liberdade. Como destacou Montesquieu “A liberdade
política não consiste em fazer o que se quer. Num Estado. isto é, numa
sociedade onde há leis, a liberdade não pode consistir senão em po-
der fazer o que se deve querer, e a não ser constrangido a fazer o que
não se deve querer. (...) É o direito de fazer tudo o que as leis permi-
tem”.
Esta liberdade é condição da vida da mesma sorte que esta
também é condição daquela, mas a sua emergência está condicionada
pela força da Lei na medida em que sem limites equitativos a liberda-
de irrestrita, no espaço de composição do social se torna uma condi-
ção de guerra de todos contra todos, o que não significa afirmar que
essa limitação é em absoluto positiva, mas sim que a experiência
ontológica se mostrou assim.
Como destaca Fábio Konder Comparato,
“A experiência veio, porém, demonstrar a intima ligação entre es-
sas duas dimensões da liberdade. A liberdade política sem as li-
berdades individuais não passa de engodo demagógico de Esta-
dos autoritários ou totalitários. E as liberdades individuais, sem efe-
tiva participação política do povo no governo, mal escondem a do-
minação oligárquica dos mais ricos.”

251
Artigo IV
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escra-
vidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas
formas.
Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou
castigo cruel, desumano ou degradante.
Comentário: René Ariel Dotti afirma que,
“Em senso comum, a servidão implica numa relação de dependên-
cia de uma pessoa sobre outra que é o servo ou escravo. Sociolo-
gicamente. o vocábulo é empregado para traduzir a relação de de-
pendência entre um grupo ou camada social sobre outra como o-
corre na aristocracia e que é submetida ao pagamento de tributos
e a obrigação de prestar serviços.”

Objetivamente a Constituição de 1988 não destacou de forma


explícita a condenação a condição da escravidão, mas isso não a
impediu de recepcionar o artigo 149, do Código Penal Brasileiro que
afirmar enquanto crime “Reduzir alguém a condição análoga à de
escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaus-
tiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer
restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida
contraída com o empregador ou preposto”.
Apesar de alguma crítica à ausência de referência direta do
tema da escravidão na Constituição, a essência do artigo 5º e do pró-
prio objetivo maior do texto constitucional visa coibir essa degene-
rescência histórica que por muito tempo foi marca de nosso país.
Embora se possa defender esta ausência como o reconhecimento de
que não se admite mais a mínima possibilidade da presença da escra-
vidão em nosso país, por outro lado, o silêncio em torno dela no es-
paço da Lei Fundamental não significa a sua extinção em nossa rea-
lidade, pois como chama a atenção Alceu de Amoroso Lima:

252
Formação Humanística

“Há. nas sociedades humanas, três tipos de escravidão: a escravi-


dão legal, a escravidão de fato e a escravidão indireta. A primeira
hipótese parece que não ocorre mais no mundo moderno civiliza-
do. Em nenhum país de vida legalizada, a escravidão - isto é, a
posse total de um homem pelo outro - é reconhecida por lei. Ou
mesmo pelo costume confessado. A segunda: o que ainda subsis-
te é a escravidão de fato... Mas em nosso próprio país essa escra-
vidão de fato, de trabalhadores aliciados por traficantes no Nordes-
te para fazendas em Mato Grosso, não só foi denunciada como
confirmada pela prisão e confissão de alguns desses aliciadores.
Representa. entretanto, um fenômeno residual, ligado às diferenci-
ações sociológicas do quadro demográfico nacional, por zonas e
planos de civilização, típico dos países de desenvolvimento inor-
gânico como o nosso e de toda a América Latina. O terceiro tipo de
escravidão, a que chamamos de escravidão indireta, já não é tí-
pico, como os demais, de países não-civilizados ou em estado, to-
tal ou parcial. de subdesenvolvimento. Existe em qualquer pais,
desenvolvido ou em estado de desenvolvimento, sempre que a si-
tuação econômica ou política de determinados grupos de cidadãos
não lhes permita, de fato, o pleno exercício dos seus direitos. Go-
zam de direitos teóricos, geralmente reconhecidos por lei, mas são
incapazes de exercê-los em virtude das condições sociais de fato.”

Desta forma, a omissão no texto constitucional não tem o con-


dão de impedir a possibilidade de sobrevivência dessa condição espú-
ria, nem mesmo de resistir a sua capacidade de metamorfose em no-
vas formas como destacada por Amoroso Lima.
Em relação à tortura esta é um crime de imensa banalidade na
qual a dignidade humana é reduzida a sua condição mais degradante,
tanto pelo que a sofre, quanto pelo Estado que admite sobrevida aos
agentes que podem optar por esta forma como meio de atuação, seja
lá com que justificativa desenvolvam.Tal tema não é apenas importan-
te ao Brasil, pois a Assembléia Geral das Nações Unidas também o
enfrentou e assim estabeleceu no seu Artigo da “Convenção contra a

253
tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degra-
dantes”, adotada pela Resolução n.º. 39/46 de 1984, a seguinte acep-
ção acerca da definição de tortura:
“(...) qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos
ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de
obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de
castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido, ou
seja, suspeita de ter cometido; de intimidar ou coagir esta pessoa
ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discrimi-
nação de qualquer natureza; quando tais dores ou sofrimentos são
infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício
de funções públicas, ou por sua instigação, ou com seu consenti-
mento ou aquiescência. Não se considerará como tortura as dores
ou sofrimento que sejam consequência unicamente de sanções le-
gítimas, ou que sejam inerentes a tais sanções ou delas decor-
ram.”

Ela macula o sujeito em sua essencialidade, sem que seja pos-


sível justificá-la em nenhuma condição ou situação. Não raro con-
frontamos notícias que destacam que ainda em nosso país esta conti-
nua a se realizar não somente por agentes do Estado, mas por outros
grupos que buscam confrontar a soberania daquele, criando uma
cultura do medo que em muitos sentidos é uma das mais tangíveis
ameaças ao processo democrático.
No mesmo sentido da resolução da Assembléia das Nações U-
nidas, a Lei 9.455/97que regulamentou na condição de Lei infracons-
titucional os crimes de tortura no Brasil, bem como ao mesmo tempo
definiu a tortura:
Constitui crime de tortura:
I - Constranger alguém com emprego de violência ou grave
ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental: a) com o
fim de obter informação, declaração ou confissão da vitima ou

254
Formação Humanística

de terceira pessoa: b) para provocar ação ou omissão de natu-


reza criminosa; c) em razão de discriminação racial ou religio-
sa.
II - submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade,
com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofri-
mento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal
ou medida de caráter preventivo.

Artigo VI
Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares,
reconhecido como pessoa perante a lei.
Comentário: A dignidade humana é princípio matriz de todo o
constitucionalismo contemporâneo e a sua realização se dá na medi-
da em que a Lei busca de todas as formas e não somente através da
sanção, mas até mesmo numa condição pedagógica, coibir qualquer
atentado contra a pessoa humana.
Apesar da redundância “pessoa humana”, há por causa da
longa experiência demonstrada através dos conflitos do último século,
um grande processo que seguidamente agride esse princípio. Portanto
a redundância se justifica na medida em que nunca é demais tentar
construir uma cultura que compreenda, finalmente, que a ideia de
pessoa é a ideia do atual estado de coisas, do próprio constituciona-
lismo.
Embora pareça chavão, não se pode olvidar de que a crítica
marxiana sobre a ‘coisificação’ da pessoa humana a partir das ondas
de revolução tecnológica segue sendo uma ameaça presente a esta
ideia de direitos e garantia de tratamento a pessoa, pois o mercado de
trabalho não tem por hábito, ainda, constituir esse conceito como um
critério de sua essencialidade.
Conforme alerta Konder Comparato,

255
“Enquanto o capital é, por assim dizer, personificado e elevado à
dignidade de sujeito de direito, o trabalhador é aviltado à condição
de mercadoria, de mero insumo no processo de produção, para ser
ultimamente, na fase de fastígio do capitalismo financeiro, dispen-
sado e relegado ao lixo social como objeto descartável.”

Artigo VII
Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer
distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual prote-
ção contra qualquer discriminação que viole a presente Declara-
ção e contra qualquer incitamento a tal discriminação.
Comentário: A parte inicial do caput do artigo 5º, da Constitu-
ição Federal traz de forma explícita a presença deste artigo, uma vez
que declara que “Todos são iguais perante a Lei”. Esta igualdade de
natureza formal, mas nem por isso menos importante é corolário defi-
nidor de uma série de outros tantos direitos postos na Constituição,
como por exemplo, o princípio da individualidade da pena, de quem
ninguém é culpado a não ser a partir da sentença condenatória, etc.
O que é importante ressaltar é que tanto na Constituição de
1988, quanto na Declaração Universal houve por bem o legislador
destacar a condição de que “todos” são iguais, sem qualquer discri-
minação de qualquer forma. E em nosso caso isso é tão explícito que
no próprio inciso XXXV, desse mesmo artigo constitucional se ratifica
que “todos têm acesso ao judiciário”, buscando com isso criar um
campo próprio, isto é, a Lei, como cenário da possibilidade de cons-
trução deste mito de igualdade irrestrita, mito este fundamental para
a maior capacidade de manutenção do velho e tradicional e por que
não dizer ultrapassado, conceito de contrato social.

256
Formação Humanística

Artigo VIII
Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacio-
nais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direi-
tos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou
pela lei.
Comentário: O acesso de todos ao poder judiciário, a garantia
de que o devido processo legal, com todos os seus institutos (contradi-
tório, ampla defesa, impossibilidade de utilização de prova ilícita,
direito ao recurso e ao duplo grau de jurisdição, bem assim o fato de
que ninguém é culpado antes da condenação em sentença que transi-
tou em julgado) é uma das mais fundamentais qualidades do Estado
Democrático de Direito. O constituinte originário compreendeu esse
corolário e o destacou em nosso texto constitucional.
Importa lembrar que tal princípio não é resultante da declara-
ção de 1948, mas retroage a própria Carta Magna, já citada anteri-
ormente. Mesmo aqui, até a Constituição a prestação jurisdicional
não abre mão, também, da figura do juízo natural, pois o devido pro-
cesso legal é fim mesmo dessa capacidade legítima do magistrado.
Neste sentido diz René Ariel Dotti que,
“O juiz (ou tribunal) natural é aquele já instituído ao tempo do
fato. O principio se opõe ao juízo ou tribunal de exceção, proi-
bido pela CF (art. 5 - XXXVII), ou seja, o órgão judicante cria-
do para determinado caso já ocorrido ou que venha a ocor-
rer.”
Assim, o inciso VII resgata a função legítima e legal dos Tribu-
nais, dos seus operadores, reconhecidos como os agentes responsá-
veis pela aplicação daquele conjunto de Leis capaz de buscar a solu-
ção ao conflito sem gerar novos círculos de disputa e resistência, na
medida em que se sustentam sobre o mito da imparcialidade, do livre
convencimento e da independência das decisões.

257
Artigo IX
Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.
Comentário: A Constituição de 1988 compreendeu de forma
direta este preceito da Declaração de 1948, tanto que no inciso LXI
afirma que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por
ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente,
salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente mili-
tar, definidos em lei”.
Mais do que destacar as formas de prisão, o constituinte origi-
nário estabeleceu os exemplos possíveis em que a regra da liberdade
pode ser violada pelo Estado, permitindo uma garantia deste princí-
pio contra os próprios atos arbitrários do ente público detentor da
soberania.
Lembra Michel Foucault que a
“prisão, peça essencial no conjunto das punições, marca certa-
mente um momento importante na história da justiça penal: seu
acesso à humanidade. Mas também um momento importante na
história desses mecanismos disciplinares que o novo poder de
classe estava desenvolvendo: o momento em que aqueles coloni-
zam a instituição judiciária. O atestado de que a prisão fracassa
em reduzir os crimes deve talvez ser substituído pela hipótese de
que a prisão conseguiu muito bem produzir a delinqüência... O su-
cesso é tal que, depois de um século e meio de ‘fracassos’ a pri-
são continua a existir, produzindo os mesmos efeitos e que se têm
os maiores escrúpulos em derrubá-las.”

Inegável que a liberdade necessitou sofrer um contrapeso que


veio a se constituir na condição de sua ausência, quer dizer a prisão,
que é uma forma de restrição, limitação do direito de ir e vir do sujei-
to.

258
Formação Humanística

Contudo, ela se apresentou como inexorável, apesar do seu ab-


surdo, fundamental. Muito se discute sobre ela atualmente, inclusive
na sua forma de prisão civil (vide o conflito entre o inciso LXVII, do
artigo 5º, da CF/88 com o Pacto de São José da Costa Rica), bem
como no seu local tradicional, a prisão. Contrariando aos utilitaris-
tas, como Bentham e o seu panóptico, o sistema prisional se encontra
em estado de falência, o que significa a necessidade de sua moderni-
zação ou substituição, pois não se pode coibir uma ofensa à dignidade
humana com outra ofensa a outra dignidade humana, mesmo quando
se trata do agente causador do delito.
Bem assim, na defesa desta dignidade humana, desde 1948, ra-
tificado pelo Congresso de Viena em 1993, o mundo e o Brasil através
de sua Lei Fundamental firmaram compromisso em combater a con-
dição do Heimatlos ou apátrida, restringindo as condições para a
deportação, a expulsão e a extradição, bem como em nosso país dói
banido o banimento, pelo seu caráter ultrajante de perpetuidade.
Da mesma forma, como se pode perceber no artigo 12, I, ‘c’,
da Constituição, se buscou criar novos meios de inclusão de naciona-
lidade, o que significa afirmar que esta inclusão se dá com a aquisi-
ção de plenos direitos políticos em nosso país.
Conforme René Dotti
“O Código Penal em sua redação original previa o ‘exílio local’ co-
mo uma das espécies de medida de segurança não detentiva (art.
88 —Parágrafo Segundo —III). Consistia ele na proibição de residir
ou permanecer o condenado, durante um ano, pelo menos, na lo-
calidade, município ou comarca em que o crime foi praticado (art.
97). A reforma da Parte Geral do CP. instituída com a Lei n. 7.209
de 11.07.1984. extinguiu essa categoria de sanção por considerá-
la objetivamente infamante.”

259
Artigo X
Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma
justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e
imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do funda-
mento de qualquer acusação criminal contra ele.
Comentário: É de se observar que o princípio da igualdade é
novamente o fio condutor deste artigo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, mas que agora é unido à independência e à condi-
ção de imparcialidade perante o Poder Judiciário, tendo como fim a
garantia de uma decisão efetivamente oriunda de um tribunal legal-
mente constituído.
Mais uma vez se pode observar que a Constituição também foi
escrita ao abrigo dessa preocupação, como se nota no artigo 5º, da
Constituição Federal que nos seus incisos XXXVI a LXXIII garante e
abriga o principio da segurança jurídica, bem como indo mais além,
estabelecendo a obrigatoriedade de apreciação do Poder Judiciário
quanto às matérias que lhe são submetidas, não se esquecendo de
garantir também, o principio do juiz natural e a inexistência de tribu-
nais de exceção.
Reconhece ainda a instituição do júri para julgamento dos cri-
mes dolosos contra a vida, assegurando também a plena defesa, in-
clusive o sigilo das votações, bem como a soberania dos veredictos.
Mais além, a Constituição busca consagrar como pressupostos
dessa garantia declaratória, a defesa do direito adquirido, do ato
jurídico perfeito e da coisa julgada, na medida mesma em que até a
Lei não poderá vir a ofender estes três princípios.
Resume, assim, Evandro de Lins e Silva:
“A Declaração é expressa: assegura a qualquer pessoa direito de
audiência junto ao poder judiciário, que é independente e imparci-
al. não só por torça da investidura de seus membros... mas tam-
bém por pertencer a um poder que. pela Constituição. não é su-
bordinado a nenhum outro.”

260
Formação Humanística

Artigo XI
1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o di-
reito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha
sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual
lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua
defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omis-
são que, no momento, não constituíam delito perante o direito
nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais
forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao
ato delituoso.
Comentário: Este artigo da Declaração dos Direitos do Ho-
mem consagra um importante instituto: a culpa não se presume, ela
necessita de comprovação por parte do Estado que não pode na busca
que faz para estabelecer o nexo causal entre um possível autor com o
resultado, negar a quem é suspeito o direito ao devido processo legal,
bem como ser considerado inocente até prova em contrário.
A Constituição de 1988 consagra o princípio da presunção da
inocência, uma vez que o constituinte parece ter deixado claro que
garantir a inocência e a liberdade eram compromissos inalienáveis
do Estado e da Lei Fundamental.
Ao mesmo tempo, consagra também dois institutos fundamen-
tais no ordenamento jurídico nacional: o princípio da anterioridade e
o da reserva legal, pois somente se pode constituir o agir ilícito a
partir de sua previa existência normativa, a qual passa, necessaria-
mente, pela ação do legislador, único autorizado a constituir a trans-
posição do espaço do ser para o dever-ser.
Finalmente, está ratificado aqui o principio da irretroatividade
da lei penal. Nesse caso, a Constituição Federal não só determina a
impossibilidade da retroação da lei penal, como a excepciona, desde
que para beneficio do acusado. Em nosso Direito Penal a irretroati-

261
vidade do advento da lei mais severa se complementa com a retroati-
vidade da lei mais benigna ou mais favorável ao réu.

Artigo XII
Ninguém será sujeito à interferência em sua vida privada,
em sua família, em seu lar ou em sua correspondência, nem a ata-
que à sua honra e reputação. Todo ser humano tem direito à pro-
teção da lei contra tais interferências ou ataques.
Comentário: A vida privada e todos os elementos que a conso-
lidam e a consagram representam uma conquista da defesa da pró-
pria dignidade humana. O privado é o espaço mais íntimo do ser
humano, ao qual não se pode ferir a qualquer tempo e por razão al-
guma.
Neste sentido, diz José Afonso da Silva:
“A vida privada, em última análise, integra a esfera íntima da pes-
soa, porque é repositório de segredos e particularidades do foro
moral e intimo do indivíduo. A tutela constitucional visa proteger as
pessoas de dois atentados particulares: (a) ao segredo da vida pri-
vada; e (b) à liberdade da vida privada.b”

A Constituição, por exemplo, destaca no inciso XI, do artigo 5º,


destaca que a casa é um asilo inviolável, nela não podendo ninguém
entrar contra a vontade do morador salvo de dia e à noite nas condi-
ções expressas na Lei. Ora, este espaço privado é o espaço da mais
genuína proteção do ser humano ao qual o Estado, ainda que contro-
lando o espaço público e mesmo as regras das relações no direito
privado não pode ferir. É um princípio constitucional tradicional,
uma vez que beira à primeira geração de direitos, sendo conquista de
todos os eventos que marcaram a segunda metade do século XVIII e o
século XIX.

262
Formação Humanística

Desta forma a honra, o nome, a imagem, a opinião e os meios


de comunicação são invioláveis na medida da extensão em que se
protege a dignidade humana, ainda que violável no limite da Lei, já
que a sua manifestação absoluta quebraria uma mínima razoabilida-
de do sistema. Sua existência é, portanto, marcada por uma natureza
de mínimo existencial.
Conforme José Afonso da Silva:
“Toma-se, pois, a privacidade como ‘o conjunto de informação a-
cerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo
controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que
condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito’. A esfera de
inviolabilidade, assim é ampla. ‘abrange o modo de vida domésti-
co, nas relações familiares e afetivas em geral, fatos, hábitos, lo-
cal, nome, imagens, pensamentos, segredos, e, bem assim, as o-
rigens e planos futuros do indivíduo.”

Artigo XIII
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de locomoção e
residência dentro das fronteiras de cada Estado.
2. Todo ser humano tem o direito de deixar qualquer país,
inclusive o próprio, e a este regressar.
Comentário: O direito de livre ir e vir, de locomoção ao longo
do território nacional é uma prerrogativa da privacidade do sujeito,
uma vez que nacional tem garantido esse direito discricionário. Con-
tudo, este não é uma garantia absoluta, uma vez que em nossa Consti-
tuição se assegura esta condição em tempos de paz, o que significa
afirmar que em condição contrária o mesmo poderá ser limitado.
Esta limitação se apresenta ao longo, por exemplo, dos artigos
136 e 137, respectivamente Estado de Defesa e Estado de Sítio. Nes-
tas duas condições excepcionais de proteção do próprio Estado quan-
do frente a situações que o ameaçam, se pode falar em uma restrição

263
de alguns direitos fundamentais, entre eles, o direito de livre locomo-
ção em território nacional. Mas estas restrições somente podem ocor-
rem ao encontro da extrema legalidade.

Artigo XIV
1. Todo ser humano, vítima de perseguição, tem o direito de
procurar e de gozar asilo em outros países.
2. Este direito não pode ser invocado em caso de persegui-
ção legitimamente motivada por crimes de direito comum ou por
atos contrários aos objetivos e princípios das Nações Unidas.
Comentário: O ser humano é um conceito que em senso comum
se compreende como universal, aos quais todos os países vêm assu-
mindo o compromisso de protegê-lo na medida em que a ideia da
globalização acontece a partir de um comprometimento entre as na-
ções promovido pelo processo de globalização. Isto significa que
tratamento de exceções não serão aceitáveis pela comunidade inter-
nacional a partir do momento em que a exceção se constituir em a-
fronta ao acordado em acordos, tratados ou convenções. (neste senti-
do os artigos 4º e 5º da CF/88)
Não se trata de defender um enfraquecimento da soberania in-
terna, mas ao contrário, é uma adaptação aos novos tempos que obri-
gam uma maior troca entre as nações, objetivando esvaziar a velha
tradição dos Estados liberais em buscar estratégias beligerantes para
resolver seus conflitos e diferenças.
Esta cooperação se estende a relação com os indivíduos em ca-
sos de expulsão, deportação e extradição, bem assim na concessão de
asilo político, ao qual se busca instituir uma legalidade ao encontro
dos valores dos direitos do homem.
Importa destacar jurisprudência do Supremo Tribunal Federal
sobre a matéria pela sua relevância temática.

264
Formação Humanística

“A comunidade internacional, em 28 de julho de 1951, imbuída do


propósito de consolidar e de valorizar o processo de afirmação his-
tórica dos direitos fundamentais da pessoa humana, celebrou, no
âmbito do Direito das Gentes, um pacto de alta significação ético-
jurídica, destinado a conferir proteção real e efetiva àqueles que,
arbitrariamente perseguidos por razões de gênero, de orientação
sexual e de ordem étnica, cultural, confessional ou ideológica, bus-
cam, no Estado de refúgio, acesso ao amparo que lhes é negado,
de modo abusivo e excludente, em seu Estado de origem. Na ver-
dade, a celebração da Convenção relativa ao Estatuto dos Refugi-
ados – a que o Brasil aderiu em 1952 – resultou da necessidade
de reafirmar o princípio de que todas as pessoas, sem qualquer
distinção, devem gozar dos direitos básicos reconhecidos na Carta
das Nações Unidas e proclamados na Declaração Universal dos
Direitos da Pessoa Humana. Esse estatuto internacional represen-
tou um notável esforço dos Povos e das Nações na busca solidária
de soluções consensuais destinadas a superar antagonismos his-
tóricos e a neutralizar realidades opressivas que negavam, muitas
vezes, ao refugiado – vítima de preconceitos, da discriminação, do
arbítrio e da intolerância – o acesso a uma prerrogativa básica,
consistente no reconhecimento, em seu favor, do direito a ter direi-
tos." (Ext 783-QO-QO, Rel. p/ o ac. Min. Ellen Gracie, voto do Min.
Celso de Mello, julgamento em 28-11-2001, Plenário, DJ de 14-11-
2003.)

"A essencialidade da cooperação internacional na repressão penal


aos delitos comuns não exonera o Estado brasileiro – e, em parti-
cular, o STF – de velar pelo respeito aos direitos fundamentais do
súdito estrangeiro que venha a sofrer, em nosso País, processo
extradicional instaurado por iniciativa de qualquer Estado estran-
geiro. O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de ex-
traditando não basta para reduzi-lo a um estado de submissão in-
compatível com a essencial dignidade que lhe é inerente como
pessoa humana e que lhe confere a titularidade de direitos funda-
mentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua insuperável

265
importância, a garantia do due process of law. Em tema de direito
extradicional, o STF não pode e nem deve revelar indiferença di-
ante de transgressões ao regime das garantias processuais fun-
damentais. É que o Estado brasileiro – que deve obediência irres-
trita à própria Constituição que lhe rege a vida institucional – as-
sumiu, nos termos desse mesmo estatuto político, o gravíssimo
dever de sempre conferir prevalência aos direitos humanos (art. 4º,
II)." (Ext 633, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 28-8-1996,
Plenário, DJ de 6-4-2001.)

O Brasil, portanto, busca seguir este princípio de proteção ao


ser humano, consolidando entendimento a partir da própria corte
constitucional.

Artigo XV
1. Todo homem tem direito a uma nacionalidade.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua nacionali-
dade, nem do direito de mudar de nacionalidade.
Comentário: A nacionalidade é existir numa comunidade, num
espaço cultural e histórico que permita a integração. Esta é mais do
que ter direitos em uma nação, mas é constituir uma forma institucio-
nal de proteção à dignidade humana, já que a ausência de uma na-
cionalidade caracteriza ofensa ao homem.
Destaca o STF que:
“A perda da nacionalidade brasileira, por sua vez, somente pode
ocorrer nas hipóteses taxativamente definidas na Constituição da
República, não se revelando lícito, ao Estado brasileiro, seja medi-
ante simples regramento legislativo, seja mediante tratados ou
convenções internacionais, inovar nesse tema, quer para ampliar,
quer para restringir, quer, ainda, para modificar os casos autoriza-
dores da privação – sempre excepcional – da condição político-

266
Formação Humanística

jurídica de nacional do Brasil.” (HC 83.113-QO, Rel. Min. Celso de


Mello, julgamento em 26-3-2003, Plenário, DJ de 29-8-2003.)

E, no que tange a possibilidade extrema da perda da naciona-


lidade, esta está condicionada aos limites da Lei, sem poder se auferir
condição de excepcionalidade para esta forma de grave ofensa à
dignidade humana que é o fato de se retirar de alguém o direito e a
garantia de pertencer a um determinado espaço sócio-político-
cultural.
“não se pode perder de perspectiva, nesse tema, que as hipóteses
de outorga, aquisição e perda da nacionalidade brasileira, quer de
caráter primário (nacionalidade originária), quer de índole secundá-
ria (nacionalidade adquirida por naturalização), decorrem exclusi-
vamente, do texto constitucional, pois a questão da nacionalidade
traduz matéria que se sujeita, unicamente, ao poder soberano do
Estado brasileiro. Vê-se, portanto, que a aquisição da nacionalida-
de brasileira somente pode ocorrer nas hipóteses taxativamente
definidas na Constituição da República, não se revelando lícito, ao
Estado brasileiro, seja mediante simples regramento legislativo, se-
ja mediante tratados ou convenções internacionais (ressalvado
quanto à aquisição da nacionalidade brasileira, o que dispõe o § 3º
do art. 5º da Constituição), inovar nesse tema, quer para ampliar,
quer para restringir, quer, ainda, para modificar os casos justifica-
dores de acesso à condição político-jurídica de nacional do Brasil”
Ext 1121 / ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA EXTRADIÇÃO. Re-
lator(a): Min. CELSO DE MELLO. Julgamento: 18/12/2009.

Artigo XVI
1. Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer res-
trição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair
matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em
relação ao casamento, sua duração e sua dissolução.

267
2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno
consentimento dos nubentes.
3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e
tem direito à proteção da sociedade e do Estado.
Comentário: A Constituição Federal em seu artigo 226, caput
ao encontro do que prevê a Declaração Universal destacou o signifi-
cado desta instituição social: “A família, base da sociedade, tem es-
pecial proteção do Estado”. O constituinte originário compreendeu-a
como base, fundamento, essência da própria sociedade.
Este olhar sobre a instituição familiar é uma herança antiga na
tradição ocidental, pois desde sociedades remotas como as da Grécia
e Roma, a família já era compreendida como núcleo estrutural do
espaço social.
Ela cumpre uma primeira fase de socialização, iniciando o
processo de inclusão do sujeito num espaço mais amplo do que o da
sua própria psique, na medida em que amplia as redes de contato e de
linguagem entre os sujeitos. É um dever do Estado, assim, garantir-
lhe toda a assistência possível.

Artigo XVII
1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em so-
ciedade com outros.
2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua proprie-
dade.
Comentário: A propriedade tem sido associada à ideia da civi-
lização desde a antiguidade, fundamentalmente com a civilização
romana.
Em um primeiro momento, acompanhando o processo liberta-
dor da figura do indivíduo, ela alcançou um caráter absoluto, ainda

268
Formação Humanística

mais com o desenrolar do processo de formação do modo de produ-


ção capitalista.
Durante o século XVIII tanto na independência norte-
americana, quanto na revolução francesa, a propriedade foi associa-
da como um direito do homem, do homem livre, pois nasce com ele e
nenhum sistema político tem o direito de restringir este direito.
No século XVIII a propriedade era um direito limitado apenas
pela garantia de livre exercício do mesmo direito para todos os indi-
víduos. Mesmo assim, durante o iluminismo, este elemento não ficou a
salvo de críticas ferozes, como as que foram elaboradas por Jean
Jacques Rousseau, que identificava nela a condição responsável pelo
fim do estado de natureza.
Ao longo do século XIX e XX, marcados pelo marxismo, pela
crítica revolucionária, pela emergência do welfare state e a crise do
liberalismo, a propriedade veio a ser associada a uma função dignifi-
cadora, qual seja, a função social. Isto veio a ser consequência de um
processo que foi aos poucos evoluindo, passando pela aplicação da
teoria do abuso do direito, bem como pelo sistema de imitações nega-
tivas e imposições positivas, deveres e ônus, até alcançar a concepção
de propriedade como função social, consagrada em nossa Constitui-
ção nos incisos XXII e XXIII.
Ao se observar, por exemplo, os incisos XXIII, XXIV e XXV po-
de-se anotar que este princípio da propriedade não está destacado
com uma natureza absoluta, mas sim relativa, já que respectivamente
ele deve cumprir a função social, poder sofrer a desapropriação bem
como, igualmente, a requisição.
INeste sentido o STF decidiu que,
“O direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis
que, sobre ele, pesa grave hipoteca social, a significar que, des-
cumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), le-
gitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, ob-
servados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os pro-

269
cedimentos fixados na própria Constituição da República. O aces-
so à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racio-
nal e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recur-
sos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente consti-
tuem elementos de realização da função social da propriedade.”
(ADI 2.213-MC, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 4-4-2002,
Plenário, DJ de 23-4-2004.) No mesmo sentido: MS 25.284, Rel.
Min. Marco Aurélio, julgamento em 17-6-2010, Plenário, DJE de 13-
8-2010.”

Artigo XVIII
Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento,
consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de
religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou
crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em
público ou em particular.
Comentário: A Constituição de 1988 foi construída sob o signo
da transformação, uma vez que o Brasil abandonara uma longa fase
de ditadura militar para um retorno à Democracia.
Esta é o fio condutor de um grande grupo de interesses do
constituinte originário e que o coloca ao encontro deste artigo XVIII
da Declaração Universal de Direitos. Uma dignidade plena não pode
prescindir de um direito à livre manifestação do pensamento, inde-
pendente da natureza deste, quer dizer, seja político, religioso, filosó-
fico, etc.
O Pluralismo Político é um dos fundamentos de uma sociedade
consolidada em torno do regime democrático. Independente do espa-
ço, esta é uma motivação que permite homeopaticamente a convivên-
cia dos diferentes que, confirmados numa experiência de confrontos
sem conflitos aprendem a regra número 01 da democracia: a tolerân-
cia.

270
Formação Humanística

Segundo Alexandre de Moraes,


“Proibir a livre manifestação do pensamento é pretender a proibi-
ção do pensamento e. conseqüentemente. obter a unanimidade
autoritária. arbitrária e irreal.”

O que se manteve vedado foi o anonimato na medida em que


esta forma de manifestação é ofensiva aos princípios da ampla defesa,
do contraditório, a honra, a própria dignidade humana, por sinal,
uma prática comum em espaços sociais marcados por conflitos e
conflagrações.
Importa registrar que a Declaração Universal, bem assim a
Constituição, ainda que elaboradas a partir do predomínio da razão
humana, neste sentido, documentos laicos, não contradiz a sua pró-
pria essência na medida em que legitima uma reserva à manifestação
religiosa, já que esta é uma forma simbólica de grande presença no
imaginário social.

Artigo XIX
Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e ex-
pressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter
opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias
por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.
Comentário: A condição do espaço social é a condição da al-
teridade. O espaço social é o campo do encontro dos outros com ou-
tros, desta maneira, é um espaço de grande capacidade de circulação
de informações que alimentam este cenário com um conjunto comple-
xo de signos.
Para que a informação possa ser um ‘bem’ difuso se faz neces-
sário, como quis o artigo anterior garantir a livre manifestação do

271
pensamento, na mesma medida em que se deve ser responsável com o
nome, a imagem e a honra que podem estar envolvidos nesta manifes-
tação. Mas a sua existência é inexorável.
José Afonso da Silva chega a afirmar que,
“Nesse sentido, a liberdade de informação compreende a pro-
cura, o acesso, o recebimento e a difusão de informações ou
ideias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, res-
pondendo cada qual pelos abusos que cometer.”

Liberdade de pensamento, liberdade de informação são com-


ponentes imbricados no princípio de Liberdade, na medida em que
realiza a integridade intelectiva e cognitiva de qualquer pessoa, res-
peitando-o como singularidade e na sua particular apreensão da
realidade.
Não por acaso sistemas autoritários e totalitários buscam e-
nergicamente a supressão dessas liberdades como medida para sufo-
car e torturar o sujeito, pois através desta pretensão de controle psí-
quico e intelectivo se pode mais facilmente construir a degenerescên-
cia da sociedade e dos valores humanos.
Diz André Comte-Sponville:
“Não é sem razão que quando se instalam ditaduras e sistemas de
forte controle religioso a primeira medida tomada visa a silenciar as
pessoas e a tolher-lhes a palavra. Tal violência as mata como pes-
soas. embora as deixe fisicamente vivas. Da mesma forma, a pri-
meira manifestação de poder dos oprimidos é quando recuperam a
fala e gritam seus direitos. A fala os institui como seres humanos
falantes. Dois notáveis filósofos políticos, Karl Otto Apel e Jürgen
Habermas. colocam na ética do discurso e no agir comunicativo a
nova centralidade do pensamento e a nova radicalidade social. É
pela fala e pela ação comunicativa que os seres humanos engen-
dram a sociedade, constroem seus consensos e mantêm sob per-
manente controle os mecanismos de gerenciamento e de poder. O
problema da tolerância só surge nas questões de opinião. É por is-

272
Formação Humanística

so que ele surge com tanta freqüência. e quase sempre, ignora-


mos mais do que sabemos, e tudo o que sabemos depende, direta
ou indiretamente. de algo que ignoramos.”

A liberdade de informação, a liberdade de manifestaçã, repre-


sentam formas simbólicas de poder que quanto menos concentrado
mais representa um cenário social estruturado sobre o signo da de-
mocracia. Contudo, este poder nunca é exercido de forma plena, nem
o Estado abre mão de mecanismos que o controlem na mesma medida
em que os compartilha.
Alerta René Ariel Dotti que,
“O sistema positivo brasileiro garante o direito de informar como
um corolário lógico das liberdades de opinião e de expressão, de-
feridas não somente aos trabalhadores dos meios de comunica-
ção, como a todas as demais pessoas naturais e jurídicas.”

Artigo XX
1. Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e as-
sociação pacífica.
2. Ninguém pode ser obrigado a fazer parte de uma associa-
ção.
Comentário: Este direito faz parte da imagem que se tem de
uma sociedade democrática, na medida em que esta busca, pelo me-
nos oficialmente, diminuir os espaços ‘secretos’ e ‘sagrados’ ao con-
junto dos cidadãos, pois não basta afirmar democracia, é preciso
exercê-la intensa e mundanamente.
A natureza da reunião é a construção de um espaço aberto in-
termitentemente aos sujeitos, na medida em que o espaço público é
público na medida mesma em que pertence ao público. Todos, pacifi-
camente e sem armas, em locais abertos ao público têm o direito de se

273
reunir, sem nenhuma necessidade de prévia autorização por parte do
Estado.
Neste sentido ressalta Alexandre de Moraes que,
“O direito de reunião é uma manifestação coletiva da liberdade de
expressão, exercitada por meio de uma associação transitória de
pessoas e tendo por finalidade o intercâmbio de ideias, a defesa
de interesses, a publicidade de problemas e de determinadas rei-
vindicações. O direito de reunião apresenta-se, ao mesmo tempo,
como um direito individual em relação a cada um de seus partici-
pantes e um direito coletivo no tocante a seu exercício conjunto.”

Da mesma forma o associar-se e o manter-se associado não


pode ser arbitrário, uma vez que a consciência garante ao sujeito uma
possibilidade de discricionariedade que não pode ficar limitada por
alguma regra imposta e atemporal.
A reunião, em suas diferentes formas é uma garantia, não um
dever normativo legal, mas uma prerrogativa do sujeito que deve ter
resguardado, inclusive, o direito não querer estar associado.
Importa, finalmente, afirmar que este direito não diz respeito a
um direito de natureza coletiva, já que nem a Declaração, nem a
Constituição se dirigem a um sujeito coletivo, mas sim ao próprio
individuo singularmente. É uma garantia direcionada ao direito indi-
vidual de se participar ou não de uma determinada associação.

Artigo XXI
1. Todo ser humano tem o direito de fazer parte no governo
de seu país diretamente ou por intermédio de representantes li-
vremente escolhidos.
2. Todo ser humano tem igual direito de acesso ao serviço
público do seu país.

274
Formação Humanística

3. A vontade do povo será à base da autoridade do governo;


esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por
sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que
assegure a liberdade de voto.
Comentário: O artigo em questão remonta aos efeitos conquis-
tados pelos movimentos ‘libertários’ do século XVIII, no qual a con-
dição do sujeito político estava na manifestação de vontade soberana
do indivíduo, em determinar-se quanto a estar ou não como agente do
Estado, tanto na figura do servidor escolhido pela via do concurso
público, quanto daquele ungido com o mandato fruto do processo
eleitoral.
Desta forma, tais direitos políticos estão compreendidos a par-
tir do principio mesmo da soberania popular sob as condições que se
estabelece tanto na Declaração, quanto na nossa Constituição.

Artigo XXII
Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito
à segurança social, à realização pelo esforço nacional, pela coope-
ração internacional e de acordo com a organização e recursos de
cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispen-
sáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua persona-
lidade.
Comentário: Existir enquanto sujeito social significa um pro-
cesso de dupla natureza: por um lado, o indivíduo renuncia a um
poder que é seu desde o nascimento e que lhe confere um direito de
ação em tese ilimitado. Contudo, como desta situação as consequên-
cias podem representar uma guerra de todos contra todos, celebra-se
no espaço social as condições de controle para que os membros deste
possam alcançar algumas expectativas, tais como segurança e reco-
nhecimento de que tal nação não está independente do mecanismo de
controle sobre o agir absoluto.

275
Artigo XXIII
1. Todo ser humano tem direito ao trabalho, à livre escolha
de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à prote-
ção contra o desemprego.
Todo ser humano, sem qualquer distinção, tem direito a i-
gual remuneração por igual trabalho.
3. Todo ser humano que trabalha tem direito a uma remu-
neração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua
família, uma existência compatível com a dignidade humana e a
que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção soci-
al.
4. Todo ser humano tem direito a organizar sindicatos e a
neles ingressar para proteção de seus interesses.
Comentário: O corolário da Declaração de 1948 não rompeu
com elementos fundamentais do modelo econômico liberal, bem assim
com as alterações sofridas pela emergência dos direitos de segunda
dimensão a partir do Welfare State.
Tanto é assim, que este artigo consagra o direito ao trabalho,
um dos mais significativos processos de controle e socialização ela-
borados pelo espaço social.
Esta preocupação da Declaração de 1948 está presente na
nossa Constituição de 1988, fundamentalmente no inciso IV, artigo 1º,
e nos artigos 7º a 11º, na medida em que ali está regulado o trabalho,
sua proteção, seus direitos e garantias, as responsabilidades do tra-
balhador, bem assim do próprio Estado.

Artigo XXIV
Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive a
limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas
periódicas.
Comentário: A Declaração Universal de 1948 inaugurou um
rol novo de direitos dispostos aos sujeitos sociais, abstratos em sua

276
Formação Humanística

natureza, difusos no seu alcance e complexos quanto aos significados.


Mas, inegavelmente, voltados para a proteção da dignidade humana,
agora compreendida em espaços que antes não eram reconhecidos
como essenciais para uma melhor existência.
É este o caso do direito ao lazer, compreendido como uma
condição em que o sujeito pode romper com a rotina diária e encon-
trar algum tipo de satisfação necessária para o controle de suas pul-
sões.

Artigo XXV
1. Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz
de assegurar-lhe, e a sua família, saúde e bem-estar, inclusive ali-
mentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços
sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desempre-
go, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos
meios de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assis-
tência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do
matrimônio gozarão da mesma proteção social.
Comentário: Este artigo acaba por ser uma repetição dos an-
teriores na medida em que aprofunda outros conceitos à defesa da
dignidade humana. No que tange a relação com a nossa Constituição,
ele pode ser percebido nos artigos 6º a 9º, 170 e 226 a 230.

Artigo XXVI
1. Todo ser humano tem direito à instrução. A instrução se-
rá gratuita, pelo menos nos graus elementares e fundamentais. A
instrução elementar será obrigatória. A instrução técnico profis-
sional será acessível a todos, bem como a instrução superior, esta
baseada no mérito.

277
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvol-
vimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito
pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instru-
ção promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre
todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as
atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de
instrução que será ministrada aos seus filhos.
Comentário: O Supremo Tribunal Federal vem ratificando essa
garantia prevista neste artigo da Declaração Universal, bem assim
naquilo que está disposto no artigo 205 de nossa Constituição. Deci-
diu que
“A educação é um direito fundamental e indisponível dos indiví-
duos. É dever do Estado propiciar meios que viabilizem o seu e-
xercício. Dever a ele imposto pelo preceito veiculado pelo artigo
205 da Constituição do Brasil. A omissão da administração importa
afronta à Constituição.” (RE 594.018-AgR, Rel. Min. Eros Grau,
julgamento em 23-6-2009, Segunda Turma, DJE de 7-8-2009.)

A educação é instrumento de construção de cidadania na me-


dida em que soma esforços para desenvolver o processo de sociabili-
zação do individuo no espaço social. A responsabilidade, neste caso,
não é exclusiva do Estado, mas de toda a sociedade, na medida em
que a ela interessa a melhor aplicação desse direito na medida em
que permite uma construção de cidadania mais sedimentada.

Artigo XXVII
1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente
da vida cultural da comunidade, de fruir das artes e de participar
do progresso científico e de seus benefícios.

278
Formação Humanística

2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses


morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica
literária ou artística da qual seja autor.
Comentário: Este preceito é relativamente recente, uma vez
que não se encontravam presentes naqueles diplomas que se constitu-
íram como tradição da Declaração Universal.
Ao mesmo tempo em que recente, ele também inova na medida
em que reconhece à propriedade imaterial uma proteção subjetiva, se
manifestando a partir de um reconhecimento daqueles direitos que
protegem a utilização, a publicação ou a reprodução de obras intelec-
tuais, artísticas ou científicas.
Esta proteção aos bens que têm um valor abstrato, de fundo
emocional, significa um passo à frente do sistema jurídico na prote-
ção, em síntese, á honra, à imagem e ao nome dos sujeitos na medida
em que protegem suas realizações, resultantes que são de suas capa-
cidades intelectuais e sensitivas, mas que lhes pertencem de forma a
constituir o seu patrimônio psíquico-cultural.
Conforme José Afonso da Silva alerta que
“Cumpre lembrar aqui a proteção especial que a Constituição ofe-
rece aos produtores de obras intelectuais, artísticos e científicas. A
primeira é tradicional: a garantia a autores do direito exclusivo de
utilização. publicação ou reprodução de suas obras, transmissível
aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar (art. 5 - XXVII: é o direito
autoral). Outras duas são inovações, asseguradas nos termos da lei:
(a) proteção às participações individuais em obras coletivas e à re-
produção da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades des-
portivas; (b) aos criadores, aos intérpretes e às respectivas repre-
sentações sindicais e associativas, o direito de fiscalização do apro-
veitamento econômico das obras que criarem ou de que participa-
rem (art. 5 - XXVIII). São direitos conexos com as liberdades de cria-
ção e expressão intelectuais, artísticas e científicas.”

279
Artigo XXVIII
Todo ser humano tem direito a uma ordem social e interna-
cional em que os direitos e liberdades estabelecidos na presente
Declaração possam ser plenamente realizados.
Comentário: Trata aqui de um direito que impõe como pressu-
posto básico em uma proposta de mundo que se pretendia globalizado
a existência de uma organização social e jurídica, tanto no seu senti-
do de âmbito nacional, interno, quanto em seu sentido de âmbito in-
ternacional, global. Em ambos os casos o que se busca é a garantia,
em conjunto, de uma eficácia no cumprimento dos postulados decla-
ratórios, assegurando existência e o funcionamento de uma estrutura
tal, que permita a plena materialização das conquistas da humanida-
de em prol dos direitos fundamentais e a operacionalização da sua
efetiva proteção
René Ariel Dotti destaca que
“Todo homem tem direito à vida, à liberdade, à segurança. â inte-
gridade física e moral, ao patrimônio e a outros bens de interesse e
necessidade individual e coletiva. Conseqüentemente. tem o direito
de invocar uma ordem social interna que lhe assegure o exercício
desses direitos e dessas liberdades essenciais. Nos dias corren-
tes, o desenvolvimento dos sistemas formais e materiais de prote-
ção fazem com que o homem seja, também, sujeito e objeto de
uma ordem social internacional.”

Artigo XXIX
1. Todo ser humano tem deveres para com a comunidade,
na qual o livre e pleno desenvolvimento de sua personalidade é
possível.
2. No exercício de seus direitos e liberdades, todo ser huma-
no estará sujeito apenas às limitações determinadas pela lei, exclu-
sivamente com o fim de assegurar o devido reconhecimento e res-
peito dos direitos e exigências da moral, da ordem pública e do
bem-estar de uma sociedade democrática.

280
Formação Humanística

3. Esses direitos e liberdades não podem, em hipótese algu-


ma, ser exercidos contrariamente aos objetivos e princípios das
Nações Unidas.
Comentário: É um dos principais objetivos da nossa República
a construção de uma sociedade concretamente livre, bem assim justa
e, igualmente, solidária. A Constituição consagrou este objetivo da
Declaração e da própria República ao longo do seu artigo3º.
O que se observa ali é uma formalização da busca por uma so-
lidariedade que se constitui como um fenômeno oposto aos preconcei-
tos de qualquer natureza que são vícios insuportáveis de uma comu-
nidade livre e progressista, bem como impeditivo para a construção
de uma sociedade fraterna e mesmo feliz.
Os indivíduos têm deveres para com a sua família e a socieda-
de onde vivem assim como são titulares de direitos, da mesma manei-
ra o Estado tem responsabilidade com eles, na medida em que detém
os meios para realizar esta pretensão social.
Alceu Amoroso Lima contempla que
“Trata-se ai apenas, como se vê, de um principio geral que abran-
ge todos os artigos que especificam nominalmente cada tipo de di-
reito. E o axioma de que a liberdade, de que falam quase todos
esses artigos, não se confunde com o arbítrio. Isto é, não repre-
senta um valor unilateral e absoluto. E relativo, como todos os de-
mais. Mas tampouco constitui um método de ação meramente ins-
trumental. Não tem apenas valor de meio. mas de fim. Um fim rela-
tivo. Um finis quo, como diziam os escolásticos. E medido por al-
guma coisa que o transcende. No caso, a comunidade.”

Para a realização dessa sociedade fraterna se faz necessário o


predomínio da Lei. Nela é que se podem encontrar os meios de con-
sagração desse tipo de espaço social. Não por acaso tanto a Declara-
ção, quanto na Constituição de 1988, objetivamente em seu inciso II,
artigo 5º se consagra o principio da legalidade, princípio muito caro
ao nosso sistema jurídico-legal.

281
Artigo XXX
Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser in-
terpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou
pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qual-
quer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liber-
dades aqui estabelecidos.
Comentário: A Declaração Universal dos Direitos do Homem,
apesar de sua reconhecida importância ainda enfrenta algumas resis-
tências quanto a sua capacidade de ser efetivamente eficaz, na medi-
da em que é mais uma declaração do que um procedimento de reali-
zação.
Entretanto, não se pode discutir a importância que ela alcan-
çou no constitucionalismo contemporâneo na medida em que buscou
normatizar os direitos fundamentais do homem, permitindo-lhes al-
cançar uma normatividade que a tradição anterior não havia conse-
guido realizar.
É um norte principiológico que se busca estabelecer na condução
das relações dos sujeitos com os sujeitos, destes com o Estado e este com
outros tantos Estados que compõem o cenário internacional.
Mesmo que se reconhecendo a sua condição de mínimo exis-
tencial, a mundanidade dos conflitos experimentados ao longo do
século XX, bem como dos que emergiram já neste início do novo sécu-
lo, tornam esta Declaração uma alternativa necessária a sobrevivên-
cia das ideias de civilização e humanidade, bem como uma diretriz
capaz de opor resistência àquilo que já foi conhecido como ‘banali-
dade do mal’ e que tanto ameaçou levar a sucumbência os valores
míticos de homem e humanidade.

282
Formação Humanística

Capítulo IV

Teoria Geral do Direito

4.1. Direito objetivo e direito subjetivo


As definições, apesar de vício dominante na nossa herança car-
tesiana não são as melhores formas para se compreender os institutos
do pensamento humano. Contudo, nos limites que se impõe aqui, esta
é a melhor forma de auxiliar aos que buscam uma revisão destes
mesmos institutos.
Tanto o direito objetivo, quanto o direito subjetivo são facetas
as quais se busca compreender o próprio conceito de Direito, que
nunca é um conceito linear e pragmático, uma vez que a própria Teo-
ria Geral do Direito se desenvolveu como uma resposta à crítica do
conhecimento formulado por Kant ao longo do século XIX.
A grande questão colocada por Kant dizia respeito à possibili-
dade de haver conhecimentos da razão pura seguros, isentos de qual-
quer erro, universalmente válidos, tanto no seu sentido a priori, quan-
to no seu sentido a posteriori. Na ‘Lógica Transcendental’ ele res-
pondeu, de forma geral, que o conhecimento não constitui nenhuma
faculdade criadora, somente da espontaneidade da experiência, quer
dizer, o conhecimento é um algo a posteriori.

283
Para a Teoria Geral do Direito isso significou uma emancipação
da filosofia, permitindo-lhe, para o ‘bem’ e para o ‘mal’ a possibilida-
de de construir toda uma sistemática independente para pensar o Di-
reito. Neste ponto podem ser inseridos os conceitos de direito objetivo
e subjetivo.
Em relação ao primeiro, o direito objetivo é concebido como
aquele direito estatal, normativo, onde se encontra aquele conjunto de
normas que impõe o agir, isto é, a norma agendi. É a partir desse con-
junto de normas que se pode compreender quando uma conduta reali-
zável é correta ou incorreta no espaço jurídico.
O direito subjetivo, por sua vez, é o direito faculdade, direito
poder, direito prerrogativa. Ou seja, é um direito de alguém. Este di-
reito é conhecido na linguagem jurídica como facultas agendi, que diz
respeito à faculdade de agir, a uma condição pela qual o sujeito poderá
conduzir a sua ação.
Miguel Reale destaca que,
“(...) o direito subjetivo, no sentido específico e próprio do termo, só
existe quando a situação subjetiva implica a possibilidade de uma
pretensão, unida à exigibilidade de uma prestação ou de um ato de
outrem. O núcleo do conceito de direito subjetivo é a pretensão
(ANSPRUCH), a qual pressupõe que sejam correspectivos aquilo
que é pretendido por um sujeito e aquilo que é devido pelo outro
(tal como se dá nos contratos) ou que pelo menos entre a preten-
são do titular do direito subjetivo e o comportamento exigido de ou-
trem haja certa proporcionalidade compatível com a regra de direi-
to aplicável à espécie.”

Contudo, mesmo em se tratando do direito subjetivo, não há


uma ‘escola’ homogênea, uma vez que os teóricos se posicionaram
distintamente quanto ao sentido deste direito subjetivo. Assim, pode-
mos observar:

284
Formação Humanística

a) Teoria da vontade: representada por Savigny e Windscheid. O


primeiro afirmava que o direito considerado na vida real, abraçando e
penetrando nosso ser por todos os lados, “apresenta-se-nos como um
poder do indivíduo”. Nos limites desse poder, sua vontade reina, e com
o consentimento de todos. A tal poder ou faculdade chamamos direito
ou direito em sentido subjetivo. Cada relação de direito se apresenta
como relação de pessoa a pessoa, regulada por uma regra jurídica que
atribui a cada indivíduo um domínio onde sua vontade impera indepen-
dentemente de qualquer vontade alheia. Para o segundo, o direito subje-
tivo “é o poder ou senhorio da vontade reconhecido pela ordem jurídi-
ca”. Sofrendo severas críticas, fundamentalmente de Kelsen, Winds-
cheid tentou salvar a sua teoria esclarecendo que a vontade seria a da
lei. Para Del Vecchio, a falha de Windscheid foi a de situar a vontade na
pessoa do titular em concreto, enquanto que deveria considerar a vonta-
de como simples potencialidade. A concepção de Del Vecchio é uma
variante da teoria de Windscheid, pois também inclui o elemento vonta-
de (querer) em sua definição: “a faculdade de querer e de pretender,
atribuída a um sujeito, à qual corresponde uma obrigação por parte
dos outros”.
b) Teoria do interesse: tem em Rudolf Von Ihering um dos seus
principais defensores. Como a teoria da vontade não explicava a titula-
ridade de direitos por incapazes de querer, nem a existência de direitos
subjetivos ignorados pelo titular, buscou-se outra explicação e se definiu
o direito subjetivo como um interesse juridicamente protegido. Esta
teoria centralizou a ideia do direito subjetivo no elemento interesse,
quer dizer, o direito subjetivo seria “o interesse juridicamente protegi-
do”. Ratificam-se as críticas feitas à teoria da vontade. Entretanto, con-
siderado o elemento interesse sob o aspecto psicológico é inegável que
essa teoria mantém uma implícita relação com a Teoria da vontade, uma
vez que não é possível constituir uma vontade sem um interesse. Dizia
Ihering: “Dois elementos constituem o princípio do direito: um substan-
cial, que reside no fim prático do direito, produzindo a utilidade, as
vantagens e os lucros que asseguram; outro formal, referente a esse
fim, unicamente como meio, a saber: proteção do direito, ação da justi-

285
ça. (...) A segurança jurídica do gozo é a base jurídica do direito. Os
direitos são interesses juridicamente protegidos. A ação é, pois, a ver-
dadeira pedra de toque dos direitos privados. Onde não há lugar para
a ação, o direito civil deixa de proteger os interesses, e a administração
ocupa o seu posto”.
c) Teoria eclética: ela tem em Georg Jellinek um dos seus
maiores expoentes. Esta teoria considerou insuficientes as teorias
anteriores, julgando-as incompletas. Para a Teoria Eclética o direito
subjetivo não seria apenas uma vontade, nem somente um interesse,
mas sim uma reunião de ambos. Desta forma o direito subjetivo seria
“o bem ou interesse protegido pelo reconhecimento do poder da von-
tade”.
d) Teoria objetiva ou realista de Duguit: Aqui se nega a ideia
do direito subjetivo, uma vez que o substitui por um conceito mais
formal que é o de função social. Para Duguit, o ordenamento jurídico
se fundamenta não na proteção dos direitos individuais, mas na neces-
sidade de manter a estrutura social, cabendo a cada indivíduo cumprir
uma função social.
e) Teoria Formalista ou Normativista de Hans Kelsen: Kelsen
não poderia aceitar a existência de um direito subjetivo, uma vez que
na sua ‘Teoria Pura do Direito’ identifica o direito e a norma positiva,
neste sentido, do Estado, eliminando, assim, do espaço jurídico todos
aqueles conceitos estranhos ao sistema de normas instituídas pelo ente
estatal. A função básica das normas jurídicas é a de impor o dever e,
secundariamente, o poder de agir. Desta forma, o direito subjetivo não
se distingue, em essência, do Direito objetivo. Afirmou Kelsen que “o
direito subjetivo não é algo distinto do Direito objetivo, é o Direito
objetivo mesmo, de vez que quando se dirige, com a consequência
jurídica por ele estabelecida, contra um sujeito concreto, impõe um
dever, e quando se coloca à disposição do mesmo, concede uma fa-
culdade”. O Estado é a única expressão da ordem jurídica e somente
ele pode criar direito. Por outro lado, reconheceu no direito subjetivo

286
Formação Humanística

apenas um simples reflexo de um dever jurídico, “supérfluo do ponto


de vista de uma descrição cientificamente exata da situação jurídica”.

4.2 Fontes do Direito Objetivo


O conceito de fontes do direto é outro conceito tradicional, na
medida em que o pensamento racionalista cartesiano passou a imperar
sobre o espaço do pensamento, fundamentalmente da reflexão jurídi-
ca. Em sentido próprio, as fontes do direito são apenas as normas
referenciais para a decisão jurídica quando confrontada com uma situ-
ação fática determinada.
Entretanto, mais ainda do que referenciais da decisão jurídica,
as fontes servem-nos como condições de experiência jurídica o que
nos leva ao estudo de diversos modelos jurídicos, que por sua vez, são
formados por aquelas.
Desta forma, o que significam as ‘fontes do direito’? O concei-
to tem particular importância na medida em que ele não é tão simples
como parece num primeiro momento, pois como já apontava Kelsen
tal conceito tem um sentido polissêmico:
“Fontes do Direito é uma expressão figurativa que tem mais do que
uma significação. Esta designação cabe a todos os métodos de
criação jurídica em geral, ou a toda norma superior em relação à
norma inferior cuja produção ela regula. Por isso, pode por fonte
do direito entender-se também o fundamento de validade de uma
ordem jurídica, especialmente o último fundamento de validade, a
norma fundamental. No entanto, efetivamente, só costuma desig-
nar-se como fonte o fundamento de validade jurídico-positivo de
uma norma jurídica, quer dizer, a norma jurídica positiva do esca-
lão superior que regula a produção. Neste sentido, da Constituição
é a fonte das normas gerais produzidas por via legislativa ou con-
suetudinária; é uma norma geral é a fonte da decisão judicial que a
aplica e que é representada por uma norma individual. Mas a deci-
são judicial também pode ser considerada como fonte dos deveres

287
ou direitos das partes litigantes por ela estatuídos, ou da atribuição
de competência ao órgão que tem de executar esta decisão. Num
sentido jurídico-positivo, fonte do Direito só pode ser o direito. (…).
A equivocidade ou pluralidade de significações do termo fonte do
direito fá-lo aparecer como juridicamente imprestável. É aconse-
lhável empregar, em lugar desta imagem que facilmente induz em
erro, uma expressão que inequivocamente designe o fenômeno ju-
rídico que se tem em vista.”

Desta forma, tal afirmação a cerca da existência de um deter-


minado rol de fontes do direito varia conforme o estabelecido por uma
determinada doutrina ou por um determinado ordenamento e varia de
acordo com uma perspectiva de fontes que se adota.
Por isso, diferentes entendimentos doutrinários se manifestam
sobre as fontes do Direito. É o caso de Aulis Aarnio que destaca que o
conceito de fontes do Direito se refere somente às razões que são utili-
zadas para justificar uma interpretação jurídica e que se dividem em
razões de justificação jurídica strictu sensu e latu sensu.
No sistema tradicional para o nosso ordenamento jurídico, o
romano-germânico, é costume estar em destaque apenas aquelas ra-
zões de justificação dotadas de autoridade, isto é, as leis e os costu-
mes.
Por outro lado, no outro modelo de família jurídica, a família
anglo-saxão, a fonte que é dotada de autoridade é o que se conhece
como precedente. Neste sentido, se define fonte do direito como toda
aquela razão pode ser usada como uma base justificatória de interpre-
tação da Lei ao fato concreto e deste em relação à Lei.
Outro teórico, Ricardo Guastini destaca em sua compreensão
sobre o tema duas principais noções de fontes:
a) A fonte de noção material;
b) A fonte de noção formal.

288
Formação Humanística

A primeira, a noção material compreende como fontes certos


atos ou fatos em razão do seu conteúdo (se ato) ou do seu resultado (se
fato), uma vez que é um conceito geral que pretende alcançar todos os
ordenamentos jurídicos independente do conteúdo de direito positivo
predominante em um ordenamento específico.
Por sua vez, a segunda, a noção formal busca identificar certos
atos ou fatos com condições para ser fontes de direito sem se preocu-
par necessariamente com o seu conteúdo.
Esta fonte formal se relaciona com aquelas formas de produção
jurídica que estão previstas em cada ordenamento percebidos indivi-
dualmente. Aqui, para se ser uma fonte de direito é necessário, fun-
damentalmente, comprovar se no ordenamento de que se trata há uma
norma específica sobre a qual recai a produção jurídica ao mesmo
tempo em que autoriza a um ato ou a um fato como condição para
criar o direito.
Já para Miguel Reale as fontes do direito se desenvolvem em
situações normadas por serem estruturas objetivas que, ou disciplinam
classes de comportamentos possíveis ou constituem entidades e ordens
de competência, e, concomitantemente, determinam ou possibilitam
situações subjetivas constituídas sob a garantia daquelas estruturas.
Com as fontes do direito é possível chegarmos a uma constela-
ção ordenada de relações sociais que, em virtude de sua origem são
dotadas de garantias específicas e de sanções. Ocorre dessa forma o
processo de modelagem jurídica. Quer dizer: à medida que as fontes
do direito se desenvolvem e ordenam fatos, vão surgindo distintos
modelos normativos, correspondentes às diversas estruturas sociais e
históricas.
Importa destacar que há toda uma reflexão crítica que destaca
exatamente a crise pela qual se passa frente a este tema das fontes do
direito, que não satisfazem mais ao pensamento jurídico a partir de

289
toda uma gama de complexidade e de linguagem que veio a ser toma-
do o discurso jurídico.
Contudo, para efeitos de concurso público, ainda se pode ob-
servar o que se segue.
Uma das principais características das fontes do direito é a sua
generalidade, já que elas servem a um conjunto de situações fáticas,
juridicamente relevantes. Elas podem ser divididas a partir da seguinte
sistematização:
a) Fontes ditas FORMAIS OU DIRETAS do direito: a lei
(ainda aceita pela tradição positivista como a principal das fontes do
direito), a analogia, o costume e os princípios gerais do direito;
b) Fontes ditas NÃO FORMAIS OU INDIRETAS: a dou-
trina e a jurisprudência. Tradicionalmente se afirma que estas fontes
não criam a norma, mas serve de base para decisões judiciais. Entre-
tanto, em nosso país é interessante de se observar o papel que a juris-
prudência tem assumido, principalmente a partir dos Tribunais Supe-
riores, em especial o STF e o STJ. Nesse sentido, é de se observar a
posição em uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (AgReg em
ERESP n° 279.889-AL), na qual o Ministro Humberto Gomes de
Barros assim se pronunciou: “Não me importa o que pensam os dou-
trinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça,
assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles
que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A
eles, porém, não me submeto. Interessa conhecer a doutrina de Bar-
bosa Moreira ou Athos Carneiro. Decido, porém, conforme minha
consciência. Precisamos estabelecer nossa autonomia intelectual,
para que este Tribunal seja respeitado. É preciso consolidar o enten-
dimento de que os Srs. Ministros Francisco Peçanha Martins e Hum-
berto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ
decide assim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses
Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a
doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que
somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém.

290
Formação Humanística

Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a de-


claração de que temos notável saber jurídico — uma imposição da
Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, cer-
tamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura
obriga-me a pensar que assim seja”. (grifei)

Das fontes formais ou diretas:


Quanto à Lei: Se pode observar a Lei em sentido material e que
envolve a Lei em sentido formal, os regulamentos jurídicos e o regu-
lamento autônomo; o direito consuetudinário e as regras gerais de
direito internacional.
A Lei em sentido material é a norma jurídica geral, promulgada
pelo Estado através do seu poder competente e ao encontro das regras
constitucionais. No sentido formal significa a prescrição jurídica a-
provada e normatizada pelos órgãos legítimos do Estado. Aqui se
destacam os processos legislativos, as competências das Leis, seus
quóruns para aprovação, etc.
No caso dos regulamentos jurídicos, devem ser entendidas co-
mo as prescrições jurídicas aprovadas pelo governo ou por alguma
autoridade legítima para isso. Em relação aos regulamentos autôno-
mos, eles são aqueles aprovados por uma associação não estadual
existente dentro do Estado com competência legal para criar direito
(caso, por exemplo, dos regulamentos municipais).
Para Miguel Reale, toda a fonte pressupõe uma estrutura de po-
der. No que diz respeito à Lei esta é a emanação absoluta desta obser-
vação. A Lei é uma realização de um poder competente, no sistema
atual, o Poder legislativo, neste sentido, a sua própria gênese é mani-
festação de uma vontade política, mandatária por tempo certo, mas
nem por isso enfraquecida no seu papel precípuo.
Desta forma, a Lei é a forma mais acabada de produção daquilo
que se reconhece como Direito Positivo. Ainda que consequência de
um longo processo histórico que consagrou esta realidade legislativa

291
estatal, ela apresenta limites que ajudam a ampliar a atual crise do
ordenamento jurídico.
Segundo Hervarth, dois são os elementos negativos desse pro-
cesso constitutivo atual das Leis:
a) o decretismo, isto é, o excesso de leis;

b) vícios do parlamentarismo, de vez que o legislativo se perde em


discussões inúteis, sem atender às exigências dos tempos moder-
nos.

A Lei em seu sentido amplo, pode ser compreendida como jus


scriptium, expressão que tem a possibilidade de alcançar o sentido de
lei propriamente dita, mas igualmente, uma medida provisória, um
decreto, uma resolução etc. É o caso do artigo 59, da CF/88 que cons-
titui a todos os institutos legais ali elaborados o conceito de Lei lato
senso.
Por sua vez, a Lei em sentido estrito (strito senso) diz respeito
ao significado de um preceito comum e obrigatório, que emanado do
Poder Legislativo tem o condão de gerar efeitos obrigacionais aos
sujeitos que estão submetidos a ela. Duas são as características fun-
damentais dessa Lei em strito senso:
a) Característica Substancial – como resultante de um con-
junto de normas, a Lei apresenta os seguintes aspectos: Genera-
lidade, Abstratividade, Bilateralidade, Imperatividade, Coerci-
bilidade e objetiva o Bem Comum.
b) Característica Formal – a Lei deve ser apresentada na
sua forma escrita, fruto da realização do poder reconhecido, e
no que diz respeito a sua conclusão enquanto processo ser pro-
mulgada e publicada.

292
Formação Humanística

Já a Lei em Sentido Formal e em Sentido Formal-Material pode


ser compreendida, no primeiro momento, como a Lei que atende ape-
nas ao seu sentido escrito tradicional e, no segundo momento ela traz
uma complexidade: além de se constituir na forma tradicional, igual-
mente apresenta um conteúdo próprio do Direito, ou seja, ela reúne
elementos substanciais bem como elementos formais.
A Lei em Sentido Substantiva e Adjetiva diz respeito, no pri-
meiro caso, à Lei que traz normas de conduta social que buscam defi-
nir direitos e deveres dos sujeitos em suas condições de vida (como
exemplo se pode destacar as normas do direito civil, penal, comercial,
tributário, processual, etc.). Os institutos unos significam aquelas Leis
que consagram uma reunião de normas substantivas e adjetivas. No
caso da segunda, as Leis adjetivas são de natureza meramente instru-
mental e importam apenas para aqueles que se constituem em opera-
dores do direito.
As Leis de Ordem Pública representam aqueles preceitos signi-
ficativos que sustentam os conflitos no espaço social, disciplinando-
os, controlando-os e operacionalizando um campo estatal para a sua
resolução. Estas Leis são independentes da vontade dos sujeitos soci-
ais. Nesse sentido a doutrina se refere a elas como Leis cogentes. Elas
podem ser percebidas nas Leis que dizem respeito à família, aos direi-
tos personalíssimos, à capacidade das pessoas, à prescrição, à nulidade
dos atos, à decadência, etc.

4.3 Dos tipos de lei lato senso (artigo 59, CF/88)


4.4 Das Emendas à constituição
Correspondem às espécies normativas destinadas à reforma do
texto constitucional. Estas espécies normativas estão determinadas ao
Poder Constituinte Originário que impõe uma série de limitações ao
poder de reformar a Constituição.
As chamadas limitações expressas são aquelas que, por óbvio,
decorrem do próprio texto constitucional. Dizem-se materiais aquelas

293
limitações relativas ao conteúdo da proposta de emenda. Assim, prevê
o texto constitucional em seu artigo 60, § 4º, da CF/88 que não será
objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;

II - o voto direto, secreto, universal e periódico;

III - a separação dos Poderes;

IV - os direitos e garantias individuais.

As limitações ditas circunstanciais são aquelas que buscam evi-


tar a modificação do texto constitucional em situações de anormalida-
des institucionais. Dessa feita, a Constituição não poderá ser emenda-
da na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de esta-
do de sítio, conforme o previsto no artigo 60, § 1º, da CF/88. Não se
confundem com as limitações temporais (consistentes na vedação de
alteração do texto constitucional durante certo lapso de tempo, por
exemplo, o previsto no artigo 174 da Constituição de 1824, as quais
não foram consagradas na atual Constituição de 1988).
As limitações conhecidas como processuais ou formais são a-
quelas referentes ao procedimento legislativo para se elaborar e apro-
var uma emenda constitucional. O processo legislativo das emendas
constitucionais compreende a iniciativa legislativa, a discussão e vota-
ção e a promulgação de uma emenda constitucional.
Quanto à iniciativa, nos termos do art. 60, caput, a Constituição
poderá ser emendada mediante proposta:
I - de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputa-
dos ou do Senado Federal;

II - do Presidente da República;

III - de mais da metade das Assembléias Legislativas das unidades


da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria re-
lativa de seus membros.

294
Formação Humanística

Na fase de discussão e votação ocorre a deliberação executiva,


onde a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congres-
so Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver,
em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros (CF,
art. 60, § 2º).
Não se confunde com o ato de revisão constitucional (art. 3º,
ADCT), que já ocorreu em 07.06.1994, não sendo admissível sua
utilização novamente. Importante, ainda, destacar que a matéria cons-
tante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não
pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa (CF, art.
60, § 5º).
Depois de discutida e votada, a emenda à Constituição será
promulgada pelas Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Fede-
ral, com o respectivo número de ordem (CF, art. 60, § 3º). Não se
submete à sanção ou veto presidencial. O número de ordem corres-
ponde ao número de vezes que o texto constitucional foi modificado
por emenda. Depois de promulgada, o Congresso Nacional publica a
emenda constitucional.
Por fim, limitações implícitas correspondem àquelas que se tra-
duzem em garantias que visam assegurar o núcleo fundamental da
Constituição: as “cláusulas pétreas” (CF, art. 60, § 4º). São em verda-
de limites tácitos à reforma constitucional. Trata-se de construção
doutrinária que visa evitar, por exemplo, seja implicitamente irrefor-
mável a norma constitucional que prevê limitações expressas (CF, art.
60), pois do contrário se permitiria alterar as regras para se alterarem
as regras. Por exemplo: uma emenda que revogasse expressamente o
art. 60, § 4º, I, da Constituição e depois outra que, na lacuna dessa,
viesse a dizer que a forma de Estado não é mais a Federação.

295
4.5 Das Leis Complementares e Leis Ordinárias
As leis complementares são aquelas que se situam entre os li-
mites da rigidez do processo de formação e modificação do texto
constitucional e a flexibilidade da legislação ordinária. Uma questão
muito discutida refere-se a sua hierarquia.
Ainda com relação a sua análise em face das leis ordinárias
cumpre destacar a existência de diferenças do ponto de vista material
e do ponto de vista formal.
Quanto aos aspectos materiais, deve-se destacar que a Constitu-
ição prevê taxativamente as hipóteses de regulamentação através de
Lei Complementar (Constituição Federal, artigos: 7º, I; 14, § 9º; 18,
§§ 2º, 3º, 4º; 21, IV; 22, parágrafo único; 23, parágrafo único; 25, § 3º;
37, XIX; 40, §§ 4º e 15º; 41, § 1º, III; 43, §1º; 45, §1º; 49, II; 59, pará-
grafo único; 68, §1º; 79, parágrafo único; 84, XXII; 93, caput; 121,
caput; 128, II, § 4º;, 129, VI e VII; 131, caput; 134, parágrafo único;
142, § 1º; 146; 148; 153, VII; 154, I; 155, § 1º, III; 155, X, “a”; 155,
XII; 156, III; 156, § 3º; 161; 163; 165, § 9º; 166, § 6º; 168; 169, caput;
169, §§ 2º, 3º e 4º; 184, § 3º; 192, caput; 195, § 11; 201, § 1º; 202, §§
1º, 4º, 5º e 6º; 231, § 6º. ADCT, artigos: 29, §§ 1º e 2º; 34, §§ 7º, 8º e
9º).
Por sua vez, a Lei Ordinária possui seu campo material ocupa-
do de forma residual, ou seja: tudo o que não for regulamentado por
Lei Complementar, Decreto Legislativo (CF, art. 49 – matérias de
competência exclusiva do Congresso Nacional) e Resoluções (CF,
arts. 51 e 52 – matérias de competência privativa, respectivamente, da
Câmara dos Deputados e do Senado Federal).
Do ponto dos aspectos formais, a diferença refere-se ao quorum
de aprovação. A Lei Complementar exige maioria absoluta (CF, art.
69), enquanto que a Lei Ordinária requer apenas maioria simples (CF,
art. 47).
Maioria absoluta se refere ao número total de integrantes da
respectiva casa legislativa. Daí porque, no mínimo, a Câmara de De-

296
Formação Humanística

putados terá sempre 257 deputados e o Senado Federal terá 41 senado-


res.
A maioria simples se refere ao quorum de presentes à reunião
ou sessão de votação. Não confundir: o quorum de presentes para
instalar sessão de votação exige a maioria absoluta de seus membros,
salvo disposição constitucional em contrário (CF, art. 47). Com isso,
para se iniciar uma sessão de votação de um projeto de Lei Ordinária
se requer a presença da maioria absoluta dos membros daquela casa
legislativa, porém a sua aprovação ocorrerá por voto da maioria sim-
ples dos presentes.

4.6 Do Processo Legislativo ordinário


O processo legislativo ordinário, ou seja, o destinado a produzir
leis ordinárias (ato legislativo típico), compreende os seguintes atos:
iniciativa legislativa, discussão e votação, sanção ou veto, promulga-
ção e publicação.
A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qual-
quer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado
Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao
Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-
Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos na
Constituição, conforme o caput do artigo 61.
A iniciativa é o ato que deflagra o processo de criação da lei.
Diz respeito à legitimidade para apresentação de proposições legislati-
vas. Trata-se de examinar quem pode propor projeto de lei. A proposi-
ção de projeto de lei por quem não possuiu legitimidade para tanto
representa vício formal de inconstitucionalidade.
A iniciativa pode ser classificada em concorrente (geral), pri-
vativa, conjunta ou popular. Importa destacá-las, ainda que brevemen-
te:

297
a) Iniciativa concorrente (geral) – é aquela atribuída a mais de
uma pessoa ou órgão, que podem exercê-la em conjunto ou iso-
ladamente. Ocorre, por exemplo, no caput do art. 61 da Consti-
tuição;
b) Iniciativa privativa – é atribuída a determinada pessoa ou
órgão. Ocorre nas hipóteses do art. 61, § 1º, art. 93 e art. 96, II,
todas da Lei Maior;
c) Iniciativa conjunta – quando a iniciativa compete, simulta-
neamente, a mais de uma pessoa, devendo ser exercida de for-
ma consensual. Exemplo de projeto de lei que exige iniciativa
conjunta é aquele que tem por objeto fixar o subsídio dos mi-
nistros do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 48,
XV;
d) Iniciativa popular – significa a possibilidade de qualquer ci-
dadão propor projetos de leis ordinárias e complementares. De-
corre da previsão constitucional de hipótese de democracia di-
reta, nos moldes do art. 14, III. A iniciativa popular propria-
mente dita vem regulada no § 2º do art. 61.

Apresentado o projeto à casa legislativa competente, passa-se à


discussão e votação. Após ser discutido pelas comissões, o projeto de
lei é encaminhado para discussão e votação em plenário, podendo ser
aprovado ou rejeitado.
Na esfera federal, todo projeto de lei, para ser encaminhado pa-
ra sanção ou veto do Presidente da República, precisa ser discutido,
votado e aprovado em ambas as casas do Congresso Nacional, pela
maioria exigida na Constituição.
O projeto aprovado em uma das casas deve ser encaminhado,
então, para a outra, a qual recebe a denominação de Casa Revisora,
ocasião em que podem ocorrer três situações, a saber:

298
Formação Humanística

I. O projeto é aprovado sem emendas pela Casa Revisora, em


um só turno de discussão e votação, sendo encaminhado para
sanção ou veto do Presidente da República;
II. O projeto é rejeitado pela Casa Revisora, devendo ser arqui-
vado.
São as hipóteses do caput do art. 65 do texto constitucional:
Art. 65. O projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto
pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à
sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arqui-
vado, se o rejeitar.
III. O projeto é aprovado com emendas pela Casa Revisora, de-
vendo ser encaminhado para a casa de origem para apreciação
das emendas. É a hipótese do parágrafo único do indigitado ar-
tigo: Art. 65, parágrafo único. Sendo o projeto emendado, vol-
tará à Casa iniciadora.

Se as emendas forem aprovadas, encaminha-se o projeto à a-


preciação do Presidente da República. Se rejeitadas, o projeto de lei é
arquivado. Por sua vez, as leis ordinárias são aprovadas segundo a
regra geral do art. 47, ou seja, por maioria simples (metade dos pre-
sentes mais um), presente a maioria absoluta dos membros da casa
(primeiro número inteiro subseqüente à divisão dos membros da Casa
por dois).

4.7 Das leis delegadas


As Leis Delegadas é um ato normativo elaborado e editado pelo
Presidente da República, a partir de uma autorização do Poder Legis-
lativo e nos limites postos por ele, se constituindo em verdadeira dele-
gação externa da função legiferante.
É uma excepcionalidade ao princípio da indelegabilidade de a-
tribuições. A natureza jurídica corresponde a das demais leis. A lei

299
delegada será elaborada pelo Presidente da República mediante prévia
solicitação ao Congresso Nacional, ao que se denomina de iniciativa
solicitadora.
Encaminhada a solicitação, ela será submetida à votação pelas
Casas do Congresso Nacional, em sessão bicameral conjunta ou sepa-
radamente. Sua aprovação se dá por quorum de maioria simples e
tomará a forma de resolução, especificando o conteúdo da delegação e
os termos de seu exercício (art. 68, § 2º).
Tal delegação possui caráter temporário e que não poderá exce-
der a legislatura. Além disso, nada impede que o Congresso Nacional
legisle sobre a matéria objeto da delegação ou desfaça a delegação.
Os limites do objeto da delegação estão determinados na pró-
pria Constituição em seu artigo 68, § 1º:
a) os atos de competência exclusiva do Congresso Nacional;

b) os de competência privativa da Câmara dos Deputados ou do


Senado Federal;

c) a matéria reservada à lei complementar;

d) a legislação sobre:

I - organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a car-


reira e a garantia de seus membros;

II - nacionalidade, cidadania, direitos individuais, políticos e eleito-


rais;

III - planos plurianuais, diretrizes orçamentárias e orçamentos.

O Congresso Nacional exercerá o controle sobre a delegação


legislativa podendo inclusive sustar o ato normativo através de Decre-
to Legislativo (artigo 49, V), porém tendo a sustação do ato eficácia
ex nunc (a partir da publicação do Decreto Legislativo), exercendo
verdadeiro controle repressivo de constitucionalidade.

300
Formação Humanística

Caso o controle seja feito pela via judicial, eventual declaração


direta de inconstitucionalidade de lei delegada terá eficácia ex tunc
(desde a própria edição do ato normativo). Se a resolução determinar a
apreciação do projeto pelo Congresso Nacional, este a fará em votação
única, vedada qualquer emenda (artigo 68, § 3º). Se rejeitado o proje-
to, somente poderá ser reapresentado na forma do artigo 67 da Consti-
tuição. Aprovada, o Presidente da República promulgará a lei, deter-
minando a sua publicação.

4.8 Das Medidas provisórias


Historicamente representam o sucedâneo do antigo Decreto-
Lei. Conforme o caput do artigo 62 da Constituição Federal, na condi-
ção de relevância e de urgência, o Presidente da República poderá
adotar medidas provisórias com força de lei, devendo submetê-las de
imediato ao Congresso Nacional. Relevância e urgência configuram
os pressupostos constitucionais da medida e que precisam ser conju-
gados quando do decreto da medida provisória.
O prazo de eficácia das medidas provisórias é de 60 dias a con-
tar da sua publicação no Diário Oficial, sendo suspenso esse prazo
durante o período referente ao recesso parlamentar (artigo 62, §§ 3º e 4º).
Todavia, prorrogar-se-á uma única vez por igual período a vi-
gência de medida provisória que, no prazo de sessenta dias, contado
de sua publicação, não tiver a sua votação encerrada nas duas Casas
do Congresso Nacional (artigo 62, § 7º). Findo esse prazo, as medidas
provisórias perderão sua eficácia desde a sua edição, ressalvado o
disposto nos §§ 11 e 12, devendo então o Congresso Nacional, através
de Decreto Legislativo, regular as relações jurídicas desse período
(artigo 62, § 3º).
Se durante o período de recesso parlamentar houver eventual
convocação extraordinária do Congresso Nacional as medidas provi-
sórias em vigor na data da respectiva convocação serão automatica-
mente incluídas na sua pauta (artigo 57, § 8º).

301
A medida provisória decorre de ato unilateral de competência
privativa do Presidente da República (artigo 84, XXVI).
Adotada a medida provisória e enviada ao Congresso Nacional,
caberá à comissão mista de deputados e senadores examinar as medi-
das provisórias e sobre elas emitir parecer, antes de serem apreciadas,
em sessão separada, pelo plenário de cada uma das Casas do Congres-
so Nacional (artigo 62, §9º).
Como consequência a medida provisória segue para votação em
cada uma das Casas legislativas, iniciando-se pela Câmara dos Depu-
tados (artigo 62, § 8º). A deliberação de cada uma das Casas do Con-
gresso Nacional sobre o mérito das medidas provisórias dependerá de
juízo prévio sobre o atendimento de seus pressupostos constitucionais
(artigo 62, § 5º).
Se a medida provisória não for apreciada em até quarenta e cin-
co dias contados de sua publicação, entrará em regime de urgência
constitucional, subseqüentemente, em cada uma das Casas do Con-
gresso Nacional, ficando sobrestadas, até que se ultime a votação,
todas as demais deliberações legislativas da Casa em que estiver tra-
mitando (artigo 62, § 6º).
Aprovada sem alterações quanto ao mérito será ela convertida
em lei, e promulgada pelo Presidente da Mesa do Congresso Nacional
(Presidente do Senado Federal – artigo 57, § 5º), sendo desnecessária
a submissão do seu texto ao Presidente da República.
Aprovada com alterações (emendas) será submetida à apreci-
ação do Presidente da República o texto da lei de conversão para que
ele sancione ou vete, no exercício discricionário (conveniência e opor-
tunidade) de suas atribuições constitucionais.
Importa destacar que aprovado o projeto de lei de conversão al-
terando o texto original da medida provisória esta se manterá inte-
gralmente em vigor até que seja sancionado ou vetado o projeto (arti-
go 62, § 12).

302
Formação Humanística

Ocorrendo rejeição expressa da medida provisória caberá ao


Congresso Nacional, através de Decreto Legislativo, disciplinar as
relações jurídicas dela decorrentes no prazo de 60 dias.
Fala-se em rejeição tácita quando o Congresso Nacional deixa
de apreciar a medida provisória no prazo que lhe era cabível. Igual-
mente as relações jurídicas daí decorrentes seriam reguladas através
de Decreto Legislativo.
Muito importante destacar que não editado o decreto legislativo
a que se refere o § 3º até sessenta dias após a rejeição ou perda de
eficácia de medida provisória, as relações jurídicas constituídas e de-
correntes de atos praticados durante sua vigência conservar-se-ão por
ela regidas (artigo 62, § 11).
Se a matéria for regulada por Decreto Legislativo, a perda da
eficácia da MP opera efeitos retroativos ex tunc. Todavia, se não edi-
tado o Decreto Legislativo, valerão as regras da Medida Provisória
ainda que não aprovada, permitindo assim sua eficácia ex nunc.
Uma vez enviada ao Congresso Nacional, o Presidente da Re-
pública não pode retirá-la de votação, podendo, todavia, editar uma
nova medida provisória com o intuito de ab-rogar a primeira, valendo
tal ato pela simples suspensão dos efeitos desta, sendo que o Congres-
so poderá restabelecer os efeitos da medida ab-rogada mediante a
rejeição da medida ab-rogatória.
Em nosso sistema constitucional se veda a reedição, na mesma
sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou
que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo (artigo 62, § 10).
Não há, portanto, vedação expressa no sentido de vedar a reedi-
ção de medida provisória na sessão legislativa subsequente.
Cumpre destacar que, embora tenha força de lei, a medida pro-
visória não revoga lei, mas sim a suspende. Convertida em lei, revoga-
rá a lei anterior, se com ela incompatível. No caso de rejeição ab-
rogadora ocorre a retomada da eficácia da espécie normativa que se

303
encontrava suspensa em virtude da nova medida com finalidade de ab-
rogação.
O § 1º do art. 62, da Constituição estabelece uma série de veda-
ções sobre matérias que não podem sofrer influência da medida provi-
sória, tais como nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos
políticos e direito eleitoral, direito penal, processual penal e processu-
al civil, organização do Poder Judiciário e do Ministério Público, a
carreira e a garantia de seus membros, etc.
Outra restrição material decorre do artigo 246 da Constituição
que afirma que “É vedada a adoção de medida provisória na regula-
mentação de artigo da Constituição cuja redação tenha sido alterada
por meio de emenda promulgada entre 1º de janeiro de 1995 até a
promulgação desta emenda, inclusive”.
Ou seja, em virtude da Emenda Constitucional nº 32/2001, não
cabem medidas provisórias que visem regulamentar dispositivos da
Constituição que tenham sido alterados entre 1º. 01.1995 a
11.09.2001.
Por sua vez, os dispositivos da Constituição alterados após
11.09.2001 não encontram restrição quanto a sua regulamentação
através de medida provisória. Em relação às editadas anteriormente à
Emenda Constitucional nº 32/2001, de acordo com o seu artigo 2º,
elas “continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revo-
gue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacio-
nal”.
Ainda sobre as limitações materiais, cumpre ressaltar que a
“vedação constitucional atual em matéria de direito penal é absoluta,
não se permitindo, tampouco, a edição de medidas provisórias sobre
matéria penal benéfica” Em relação à matéria tributária, medida pro-
visória que implique instituição ou majoração de impostos, exceto os
previstos nos artigos. 153, I, II, IV, V, e 154, II, só produzirá efeitos
no exercício financeiro seguinte se houver sido convertida em lei até o
último dia daquele em que foi editada (artigo 62, § 2º).

304
Formação Humanística

Em outras palavras: admitem-se medidas provisórias que im-


pliquem instituição ou majoração desde que observado o princípio da
anterioridade tributária.
Em relação ao controle de constitucionalidade destas, a tendên-
cia do STF é inadmiti-lo quanto à análise dos pressupostos constitu-
cionais (urgência e relevância) sob pena de invadir a esfera discricio-
nária do Presidente da República, salvo quando flagrante o desvio de
finalidade ou abuso do poder de legislar.
A conversão em lei das medidas provisórias não sana eventual vício
quando de sua adoção.

4.9 Dos Decretos Legislativos


É a espécie normativa destinada à regulamentação de matérias
de competência exclusiva do Congresso Nacional (artigo 49). Além
disso, destina-se também a disciplinar as relações jurídicas decorren-
tes de medidas provisórias que perderam eficácia em virtude de não
conversão em lei (artigo 62, § 3º).
A matéria será discutida em ambas as Casas, em sistema bica-
meral, sendo necessária maioria simples para a sua aprovação. A pro-
mulgação será realizada pelo Presidente do Senado Federal, inexistin-
do manifestação do Presidente da República (art. 48, caput).

4.10 Das Resoluções


É o ato do Congresso Nacional, ou de qualquer de suas casas,
destinado a regular matéria de competência exclusiva do Congresso
Nacional, de competência privativa da Câmara dos Deputados (artigo
51) ou do Senado Federal (artigo 52).
Em relação ao Congresso Nacional, a regulação através de Re-
soluções disporá acerca daquelas matérias que não são objeto de De-
creto Legislativo (artigos. 49 e 62, §§ 1º a 12) e de Lei, além daquelas
previstas nos artigos 51 e 52. O procedimento legislativo ocorre ape-

305
nas no âmbito da respectiva Casa sendo promulgada pelo respectivo
Presidente, salvo no caso de competência do Congresso Nacional
quando deve tramitar por ambas as Casas (aprovação bicameral) e,
então, a promulgação e publicação incumbe ao Presidente do Senado
Federal. Assim como no caso do Decreto Legislativo, não ocorre ma-
nifestação do Presidente da República. Na Constituição, a única hipó-
tese expressa de Resolução é a do artigo 68, § 2º (conhecida por dele-
gação de competência legiferante).
A Lei não é um processo ao acaso, nem mesmo um procedi-
mento informal. Há um ritual constitutivo que obedece aos limites
pretendidos e consagrados na Constituição.
Tal procedimento previsto na Constituição e reconhecido como
o processo legislativo deve ser compreendido como o conjunto de atos
preordenados que visa à criação de normas de direito. Em outras pala-
vras, representa o conjunto de atos realizados pelos órgãos legislativos
com o objetivo de compor leis constitucionais, complementares, reso-
luções e decretos.
Estes atos traduzem-se em um processo complexo, decompon-
do-se em várias fases, a saber: iniciativa, emenda, votação,sanção ou
veto, promulgação e publicação.
O modo pelo qual os atos do processo legislativo se realizam é
chamado de procedimento legislativo strito senso. Diz respeito ao
andamento da matéria nas Casas Legislativas; na prática, chama-se de
tramitação do projeto. O procedimento legislativo pode ser:
a) ORDINÁRIO: É aquele que se destina à elaboração das leis
ordinárias, sendo o procedimento comum mais demorado. Enseja mais
oportunidades para o exame, o estudo e a discussão do projeto. Com-
põe-se de várias fases: introdutória, que consiste na apresentação do
projeto; a do exame do projeto nas comissões permanentes, onde se dá
seu estudo, cabendo-lhes emitir pareceres favoráveis ou não, sendo
também admitidas emendas e até mesmo substitutivos ao projeto; a
fase das discussões, onde surgem oportunidades de se oferecerem

306
Formação Humanística

emendas ao projeto, devendo, porém, serem estudadas pelas comis-


sões, as quais podem oferecer o parecer em plenário; a fase decisória,
onde a decisão ocorre através de votação, em relação ao projeto; po-
dendo ou não ocorrer sua aprovação.
Se for aprovado o projeto, será enviado para a outra Casa, onde
terá lugar a quinta fase, que é a revisória. Passará, então, pelas mes-
mas fases (recebimento da matéria, remessa às comissões, discussão e
votação).
Sendo aprovado sem emendas, o projeto será remetido à sanção
e promulgação. Se forem apresentadas emendas, voltará à Casa inicia-
dora, para apreciação. Sendo elas aprovadas ou rejeitadas, o projeto
irá à sanção. A discussão e votação poderão ser em um ou dois turnos,
mas, na fase de revisão, haverá apenas um turno.
O projeto será arquivado, na hipótese de ser rejeitado em algu-
ma das Casas. Nesse caso, para que seja objeto de novo projeto, na
mesma sessão legislativa, a matéria deverá contar com a aceitação da
maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso
Nacional.
Finalmente, o projeto será enviado ao Presidente da República
pela Casa que houver concluído a votação. Este, ao recebê-lo, tem
várias alternativas: sancionar, promulgar e publicar a lei dele resultan-
te, no caso de anuência; não concordando, silenciar quinze dias, que
implica sanção tácita; pode, ainda, vetá-lo total ou parcialmente, fa-
zendo a comunicação dos motivos do veto ao Presidente do Senado,
objetivando a apreciação pelo Congresso Nacional.
Este, pela maioria de seus membros, poderá rejeitá-lo, caso em
que o projeto transforma-se em lei, devendo esta ser promulgada e
publicada. Por outro lado, o Congresso Nacional poderá optar pelo seu
acolhimento, caso em que será o projeto arquivado.
b) SUMÁRIO: Sua aplicação é dependente do interesse do
Presidente da República, pois a CF lhe dá a faculdade de solicitar
urgência na apreciação de projeto de sua iniciativa. Caso o faça, a

307
Câmara dos Deputados e o Senado terão o prazo global de quarenta e
cinco dias para manifestar-se sobre o projeto. Se ocorrer a hipótese de
uma ou outra Casa não se manifestar nesse prazo, a proposição será
incluída na ordem do dia, sobrestando-se a deliberação sobre os de-
mais assuntos, a fim de que se ultime a votação da matéria urgente.
Dentro ou fora do prazo, findo o pronunciamento de ambas as
Casas, sem emenda do Senado, o projeto irá à sanção. Se houver a-
provação do projeto no Senado, com emendas, dentro do prazo de dez
dias, a Câmara deverá analisá-las.
Aceitando-as ou não, o projeto vai à sanção. Ocorrendo desres-
peito ao prazo, sobrestar-se-á a deliberação sobre outros assuntos, até
que a votação seja ultimada, indo o projeto à sanção.
Os prazos acima referidos não fluem durante o período de re-
cesso do Congresso Nacional. Além disso, esse procedimento não é
aplicado a projetos de Código. Não ocorre mais a aprovação de proje-
tos por decurso de prazo; portanto, estes terão de ser votados, dentro
ou fora do prazo, sendo afinal aprovados ou rejeitados.
c) PROCEDIMENTOS LEGISLATIVOS ESPECIAIS: São
os procedimentos estabelecidos para a elaboração de emendas consti-
tucionais, leis financeiras, leis delegadas, medidas provisórias e leis
complementares. Estas diferem das leis ordinárias quanto ao procedi-
mento de formação, por exigirem o voto da maioria absoluta das Ca-
sas Legislativas para sua aprovação.
Em resumo, são formadas mediante procedimento ordinário,
com quorum especial. Já as leis financeiras são apreciadas pelas duas
Casas, na forma do regimento comum. As emendas serão apresentadas
a uma comissão mista, que sobre elas emitirá parecer. Serão aprecia-
das, na forma regimental, pelo plenário das duas Casas do Congresso
Nacional.
Este processo apresenta os seguintes institutos:
a) Iniciativa de Lei: com exceção daqueles previstos no rol
taxativo para a proposição de iniciativas para uma Emenda

308
Formação Humanística

Constitucional, conforme o artigo 61, CF/88 a iniciativa para a


propositura de um projeto de Lei (é a proposição de um tema,
assunto ou matéria) compete a um extenso leque de competen-
tes (qualquer membro ou comissão da Câmara, do Senado ou
do Congresso Nacional, cidadão pela via da iniciativa popular,
etc.);
b) Exame pelas Comissões Técnicas, Discussões e Aprova-
ção: O projeto proposto por quem tem a competência para dar
início ao procedimento de constituição da Lei passa por uma
série de comissões parlamentares, às quais está vinculado pela
natureza do seu objeto tanto ao Congresso Nacional, quanto à
Câmara e ao Senado. Uma vez que supere essa fase tal projeto
será conduzido ao plenário para discussão e eventual votação.
Lembrando que constituímos um bicameralismo federal, há ne-
cessidade legal de aprovação do projeto pelas duas Casas que
compõem o Congresso Nacional;
c) Revisão do Projeto: O projeto que pode ser apresentado na
Câmara ou no Senado utiliza a outra Casa como Casa revisora,
não esquecendo que aqueles projetos que são encaminhados pe-
lo Presidente da República, STF e demais Tribunais Federais
serão apreciados, em um primeiro momento, pela Câmara. Uma
vez que a Casa revisora o aprove, o mesmo será encaminhado
ao Presidente para sanção ou para arquivamento no caso de ser
rejeitado. No caso do projeto sofrer emendas ele retorna a sua
Casa de origem para realizar uma nova apreciação. Se não for
aceita emenda, será arquivado;
d) Sanção: É a aceitação, a aquiescência do Presidente da Re-
pública do projeto que foi aprovado pelo Legislativo. É um ato
exclusivo do Chefe do Poder Executivo Federal. Ele dispõe de
um prazo de 15 dias para manifestar a sua sanção ou veto. No
caso de sanção, pode ser tácita ou expressa. No caso de aconte-
cer o veto, o Congresso Nacional tem 30 dias para apreciá-lo,
rejeitando-o ou aceitando-o. No caso de rejeição do veto presi-
dencial, esta deve ser constituída por voto da maioria absoluta

309
dos deputados e senadores reunidos, na forma de uma votação
secreta. Se o prazo não for respeitado, sem sofrer deliberação,
tal projeto entra em sessão no dia seguinte ao fim do prazo e em
condição prioritária;
e) Promulgação: Ordinariamente, quem dá existência à Lei é
o Presidente da República. Esta consiste numa declaração for-
mal que reconhece a existência da Lei a partir daquele momen-
to. No caso de ter sido o veto presidencial rejeitado, o projeto
de Lei será encaminhado ao Presidente para que em 48h o pro-
mulgue e em não realizando isso, o mesmo será encaminhado
ao Presidente do Senado, e, respectivamente ao vice-presidente
do Senado para no mesmo prazo promulgar;
f) Publicação: Este ato é indispensável para que a Lei possa
adquirir plena existência e entrar em vigor, o que exige publi-
cação em órgão oficial. Pode entrar no ato de publicação em
vigor ou cumprir o lapso da vacatio legis.
Uma vez que a Lei passe a vigorar, a ter uma presentação no
espaço social, ela obriga aos sujeitos sociais. E estes não poderão se
escusar dela, pois temos como herança o princípio de que “Nemo jus
ignorare censetur”, conforme o que está previsto no artigo 3º, da Lei
de Introdução ao Código Civil que destaca que
“ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhe-
ce.”

Importa destacar algumas das teorias que justificam a força o-


brigatória da Lei:
a) Teoria da Autoridade: presente na força de governança pre-
vista em Hobbes, bem como em Austin e Kelsen, que conside-
ram a sua obrigatoriedade como consequência natural de sua
força no espaço social;

310
Formação Humanística

b) Teoria Contratualista: a Lei se faz obrigatória na medida em


que aqueles que são sujeitos de sujeição a ela concorrerem na
mesma medida para a sua realização e existência;
c) Teoria Neocontratualista: necessário se faz aqui a adesão de
todos os que se submetem a força de obrigatoriedade da Lei;
d) Teoria Positivista: enquanto instrumento legítimo de força, a
obrigatoriedade à Lei se justifica na medida em que ela é con-
sequência do papel do Estado enquanto instituto responsável
pela consagração do Bem Comum, da segurança e da ordem so-
cial.

4.11 Da classificação da Lei


Se pode percebê-la a partir de sua capacidade de IMPERATI-
VIDADE, a qual se subdivide em:
a) Cogentes;
b) Dispositivas.

Em relação à primeira, imperatividade cogente, deve ser com-


preendida como aquela que ordena ou proíbe determinada conduta de
forma absoluta, não podendo ser derrogada pela vontade dos interes-
sados. Por sua vez, a imperatividade dispositiva, em geral, é de natu-
reza permissiva ou supletiva e costumam conter a expressão “salvo
estipulação em contrário”.
Em relação à SANÇÃO, a Lei pode ser assim elaborada:
a) Mais que perfeita;
b) Perfeita;
c) Menos que perfeita;
d) Imperfeita.

311
No que tange à Lei mais que perfeita, esta é aquela que impõe a
aplicação de duas sanções, por exemplo, uma prisão e uma obrigação
(no caso da inescusável inadimplência da obrigação de alimentos).
A lei de natureza perfeita é aquela que prevê a nulidade no ato,
sendo esta nulidade compreendida como uma punição ao infrator.
A Lei dita menos que perfeita é a que não acarreta a nulidade
ou anulação no ato, somente impondo ao violador a figura da respecti-
va sanção.
Finalmente, a Lei dita imperfeita é aquela cuja violação não a-
carreta nenhuma consequência, como as obrigações decorrentes de
dívidas de jogo e de dívidas prescritas, condições estas determinadas
no próprio conjunto de legalidade.
Em relação a sua NATUREZA, as leis podem ser assim apre-
sentadas:
a) Substantivas;
b) Adjetivas.

No que diz respeito à natureza substantiva da Lei, elas são tam-


bém conhecidas como materiais, uma vez que tratam do direito mate-
rial. Já a Lei de natureza adjetiva, igualmente conhecida por lei de
natureza processual, é aquela que estabelece os meios de realização
dos direitos entre os sujeitos em relação aos sujeitos e destes com o
Estado.
Quanto à sua HIERARQUIA, as normas podem se apresentar
a partir da seguinte classificação:
a) Constitucionais: são aquelas constantes da Constituição,
às quais as demais devem amoldar-se;
b) Complementares: são as que se situam entre a norma
constitucional e as leis ordinárias com um quórum qualificado
pela natureza das matérias que enfrenta;

312
Formação Humanística

c) Ordinárias: são as elaboradas pelo Poder Legislativo;


d) Delegadas: são as elaboradas pelo Executivo, por autori-
zação expressa do Legislativo.

Observe-se que tal classificação hierárquica é aqui mera forma-


lidade do excesso racionalista no espaço do positivismo jurídico, na
medida em que hoje, vários autores não aceitam mais uma explicação
simplista de uma hierarquia vertical, mas somente de hierarquia hori-
zontal.
Entretanto, no que tange a nossa organização política, a lei fe-
deral tem preferência sobre a estadual e esta sobre a municipal. Ob-
serve-se, contudo, o conceito é preferência. A matéria, aliás, é regu-
lamentada pela Constituição, que disciplina as esferas de competência
de cada uma delas, delimitando-lhes, perfeitamente, os contornos de
atuação e incidência.
No que diz respeito à vigência da Lei, esta tem como regra a
máxima de que só começa a vigorar com sua publicação no Diário
Oficial, quando então se torna obrigatória, isto é, através de sua publi-
cidade alcança condições de exercício para a sua eficácia erga omnes.
Isso não significa que a sua obrigatoriedade se inicia no dia mesmo da
sua publicação (conforme os termos do artigo 1º da Lei de Introdução
ao Código Civil), salvo se ela própria assim o determinar. Tem-se por
conhecido o intervalo entre a data de sua publicação e a sua entrada
em vigor pela expressão “vacatio legis”.
Quanto à cessação da vigência, tem-se por regra que a Lei per-
manece em vigor até ser revogada por outra lei (princípio da continui-
dade). Esta pode ser revogada a partir de regras consolidadas em nos-
so ordenamento jurídico, regulando, desta forma o poder de vigência
da Lei, que pode igualmente ter uma natureza de vigência temporária,
uma vez que esta está determinada pelo tempo de sua duração a partir
daquilo que é visado pelo legislador.

313
Quanto à REVOGAÇÃO, esta é uma forma de supressão da
força obrigatória da lei, retirando-lhe a eficácia — o que só pode ser
feito por outra lei. Ela apresenta como espécies:
a) Ab-rogação: que significa uma supressão total da norma
anterior incompatível;
b) Derrogação: que significa uma supressão parcial do texto
de lei incompatível.
c) Expressa: que diz respeito ao fato de que a Lei nova declara
que a Lei anterior está revogada a partir da vigência daquela;
d) Tácita: quando ocorre a incompatibilidade entre a Lei ‘ve-
lha’ e a Lei nova, conforme o que está disposto no artigo 2º,
§1º, da LICC.

Quanto à EFICÁCIA: A eficácia da Lei deve considerar-se sob


duplo aspecto: no que diz respeito ao tempo e no que se refere ao es-
paço da Lei.
Em relação à eficácia NO TEMPO, a lei começa a vigorar,
conforme o artigo 1º da Lei de Introdução ao Código Civil, em todo o
território nacional, salvo disposição expressa em contrário, quarenta e
cinco dias (45) depois de publicada no órgão oficial, em território
nacional. Tal publicação tem o efeito de torná-la, então, obrigatória
para todos.
Em relação à eficácia NO ESPAÇO é importante destacar que
a aplicação da Lei se faz, em tese, dentro do território nacional do
Estado, isto é, a quem pertence o espaço de soberania da Lei nacional.
Seria uma afronta bastante considerável se tal preceito da soberania
pudesse ser violado quando da tentativa de um Estado impor suas leis
a outro igualmente soberano. Nada impede, contudo, as relações inter-
nacionais e os efeitos dos tratados, acordos e convenções, bem como
pactos que os Estados assinam em nome de uma ideia de comunidade
global.

314
Formação Humanística

O ordenamento jurídico brasileiro enfrenta esta situação a partir


dos seguintes elementos jurídicos:
a) Artigo 4º, da CF/88;
b) Parágrafo 3º, do artigo 5º, da CF/88;
c) Teoria da Supralegalidade;
d) Convenção de Viena de 1993;
e) Compromissos firmados com a ONU.

4.12 Quanto a Analogia


A analogia está em posição privilegiada na hierarquia que apre-
senta o artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC). Ela
consiste numa aplicação em hipótese não prevista em lei de dispositi-
vo legal relativo a caso semelhante. A analogia legis se caracteriza na
aplicação de uma norma existente, destinada a reger caso semelhante
ao previsto. A analogia júris, por sua vez está baseada num conjunto
de normas que busca obter elementos que permitam a sua aplicação ao
caso concreto não previsto, mas que tenha similaridade com algum já
positivado. Também a analogia, que se apresenta como processo de
interpretação de norma jurídica, pelo qual o legislador a estende a
casos não previstos é considerada como uma fonte subsidiária e com-
plementar do Direito, já que permite que leis conseqüentes dela se
originem.
Conforme Tércio Sampaio Jr.
“A analogia é um recurso técnico que consiste em se aplicar, a
uma hipótese não prevista pelo legislador, a solução por ele apre-
sentada para um outro caso fundamentalmente semelhante.”

Percebe-se, portanto, que este recurso da analogia está prevista


para casos semelhantes, não previstos em Lei e que não está, funda-
mentalmente, configurado no espaço desta.
Este exercício analógico tem como fundamento legitimador a
obrigatoriedade auto-imposta pelo operador de não permitir que ao

315
sistema se mantenha alguma condição de incoerência ou conflito na
falta de uma norma explícita.
Sua aplicabilidade não é tarefa fácil, pois o magistrado não é
autômato para realizar esta tarefa analógica. Necessário se faz toda
uma atenção aos componentes do Morus social, aos seus princípios
éticos, bem assim a própria contribuição da doutrina que permite uma
condição de justificativa ao exercício da analogia.
A doutrina aceita a divisão da analogia em duas espécies distin-
tas:
a) A analogia legal;
b) A analogia jurídica.
No caso da primeira, se pode compreendê-la a partir de uma
condição do próprio ato legislativo, quer dizer, empregada a partir da
ação do legislador que não traz uma completude à sua ação; por sua
vez, a segunda, diz respeito quando no ordenamento jurídico se perce-
be a presença de uma determinada condição de lacuna a qual se faz
necessário restabelecer a uniformidade a partir da utilização da analo-
gia.
Importa destacar que a analogia somente é prejudicial e conde-
nável em matéria de Direito Penal, para efeito de enquadramento em
figuras delituosas, em penas ou como fator de agravamento destas.
Não se aplica também o procedimento analógico no Direito de nature-
za fiscal, quando for o caso de se impor tributos ou penas à figura do
contribuinte.

4.13 Quanto aos costumes


É a prática uniforme, constante, pública e geral de determinado
ato, com a convicção de sua necessidade. Em relação à lei, três são as
espécies de costume: o “secundum legem”, quando sua eficácia obri-
gatória é reconhecida pela lei; o “praeter legem”, quando se destina a
suprir a lei, nos casos omissos; e o “contra legem”, que se opõe a

316
Formação Humanística

própria lei, ainda que admitida no ordenamento jurídico em nome da


segurança jurídica.
No que diz respeito aos costumes conhecidos por sua natureza
“secundum legem”, estes são caracterizados a partir do momento em
que estes costumes, Morus social corresponde ao previsto na Lei.
Afirma Paulo Bonavides que
“Não seria uma prática social ganhando efetividade jurídica, mas a
Lei introduzindo novos padrões de comportamento à vida social e
que são acatados efetivamente”.

Outros teóricos não aceitam esta compreensão tão simplista,


pois entendem que a condição “secundum legem”se constitui quando a
própria Lei tem capacidade de remeter aos destinatários os costumes
que ela aceita como legais.
No caso do costume “praeter legem”, este está legitimado
quando acontece uma condição de lacuna da e na Lei, e que obriga ao
magistrado preenchê-la na medida em que a sua existência é uma
ameaça ao exercício dos sujeitos sociais. Ouseja: não encontrando na
Lei alguma disposição sobre o fato concreto submetido a sua discri-
cionariedade, o juiz pode alcançar alguma decisão baseada no conjun-
to de valores e Morus que representam o costume e o senso comum de
um determinado grupo social.
Finalmente, mas não menos importante, o costume “Contra Le-
gem”, que é conhecido pelo princípio do “consuetudo abrogatoria”, o
que ocorre é que uma determinada prática realizada pelos sujeitos
sociais e aceita por eles como costumeira é contrária ao que está dis-
posto na Lei.

4.14 Quanto aos princípios gerais de direito


Os princípios gerais de direito são aquelas regras que se encon-
tram na consciência coletiva dos povos e que são universalmente acei-
tos na medida em que se estabelecem como imperativos categóricos.

317
São princípios que não obedecem a regra de estarem sempre positiva-
dos, escritos. Eles se constituem enquanto valores direcionais do or-
denamento jurídico, pois orientam a compreensão do sistema jurídico
em sua aplicação e integração, independente destes princípios estarem
ou não incluídos no direito positivo. O crescimento do constituciona-
lismo e da 3ª e 4ª dimensões de direito significaram um crescimento
considerável do papel desses princípios, encontrando a partir da im-
portância das constituições um papel que transcende a sua mera con-
dição axiomática.
Conforme Mans Puirgarnau se pode decompor esse instituto al-
cançando-se a seguinte compreensão de cada um dos conceitos que o
informam:
a) Princípios: ideia de fundamento, origem, começo, razão,
condição e causa;
b) Gerais: a ideia de distinção entre o gênero e a espécie e a
oposição entre a pluralidade e a singularidade;
c) Direito: caráter de juridicidade, isto é, o que está conforme a
reta razão, o que dá a cada um o que lhe pertence.

Quanto à natureza dos princípios gerais de direito, esta não é


percebida de forma uniforme pela doutrina, pois aqui se pode consta-
tar o conflito entre uma tradição positivista e outra do jusnaturalismo.
Para a primeira, a natureza dos princípios gerais apresentaria os
seguintes elementos:
a) São expressões de elementos contidos no ordenamento jurí-
dico, em sendo assim, são oficiais;
b) Não podem ser expressões de identificação com o direito
natural, uma vez que se isso ocorresse a consequência seria
uma abertura ilimitada ao arbítrio judicial, o que por si só con-
figuraria uma perversão ao sistema estatal da Lei;

318
Formação Humanística

c) Em sendo expressões do direito positivo, eles são favoreci-


dos por uma coerência lógica que permite uma máxima funcio-
nalidade ao sistema como um todo;
d) Enquanto expressões do direito positivo e enquadrado num
ordenamento jurídico lógico e uniforme, este tem uma capaci-
dade de resolução de problemas em constante expansão, na
medida em que pode ir enquadrando todos os fatos ao espaço
da norma.

Quanto à tradição jusnaturalista se observa:


a) São expressões suprapositiva;
b) São expressões constantes de princípios eternos e absolutos;
c) São expressões imutáveis e universais, já que expressam o
direito natural.

4.15 Das fontes não formais ou indiretas


4.16 Da jurisprudência
Compreendido numa tradição romana, que compartimenta o
conceito em jus e prudentia, ela foi aplicada em Roma como um pro-
cedimento capaz de permitir a realização de um conhecimento sobre
os fatos que permitissem o seu desvelamento como justos ou injustos.
Ainda que mantida esta herança léxica da expressão, nos dias
atuais a jurisprudência é compreendida, igualmente, como o conjunto
daqueles precedentes judiciais que produzidas no espaço dos Tribu-
nais interpretam o Direito vigente e realizam uma plena aplicação da
Lei.
Neste sentido, se pode percebê-la como
a) Jurisprudência em sentido amplo;
b) Jurisprudência em sentido estrito.

319
A jurisprudência em sentido amplo é compreendida como
uma coletânea de decisões que são prolatas pelos Tribunais sobre
determinada matéria. Isso significa um rol de decisões uniformes
(quando ocorre das decisões serem convergentes), bem como decisões
contraditórias, quando as decisões acontecem em contradição a partir
de um mesmo tema ou matéria.
A jurisprudência em sentido estrito é a que consiste em um
mero conjunto de decisões uniformes que são proferidas pelos órgãos
do ordenamento jurídico sobre uma questão jurídica específica. É o
que se define a partir do princípio “auctoritas rerum similiter judica-
torum”, isto é, autoridade dos casos julgados semelhantemente. Há,
aqui, uma uniformidade de julgamento.
A jurisprudência igualmente apresenta tipos, que são os seguin-
tes:
a) Jurisprudência secundum legem, que é aquela que se limita a
interpretar segundo de regras determinadas no ordenamento ju-
rídico;
b) Jurisprudência praeter legem, que ocorre na medida em que
faltam regras específicas, quer dizer, quando se pode observar
uma omissão na própria Lei;
c) Jurisprudência contra legem, na expressão usual é aquela
que se dá ‘no arrepio da Lei’, em síntese, que contraria a Lei.
Ocorre quando o magistrado se vê frente à presença de Leis a-
nacrônicas ou mesmo injustas.

4.17 Da doutrina
Não se pode olvidar de que esta fonte indireta tem uma impor-
tância capital para a existência do Direito. Isso é assim porque o dis-
curso jurídico, consentâneo da sociedade, necessita de um olhar atento
a todas as complexidades que surgem para poder auxiliar o discurso
jurídico nos Tribunais sobre aquelas alterações e modificações pelas
quais passa o discurso jurídico.

320
Formação Humanística

Conforme destaca Lênio Streck com insuspeita clareza


“(...) quero dizer que devemos nos importar, sim, (e muito) com o
que a doutrina diz. Afinal, está no próprio nome: assim como a
Constituição constitui, a doutrina”.

É um discurso fundamental pata o Direito na medida em que


ele conecta toda uma série de conhecimentos não apenas oriundos do
campo jurídico, mas de outros espaços que acabam se constituindo em
fundamentais para a diversidade e pluralidade do discurso jurídico.
Reconhecer essa complexidade é uma necessidade a qual ainda
se pode observar certa resistência.
A resistência se dá por uma tradicional forma de compreender o
campo jurídico como resultante de um discurso exato, certo e de certo
modo, pronto, o que não tem se mostrado adequado à relação do direi-
to com a realidade social.
Uma série de conceitos de outros campos tem sido importada
para dentro do campo jurídico, na medida em que este sente a necessi-
dade de (re)conhecer tantas condições ontológicas possíveis ao seu
exercício normativo. Desta forma, da economia, da política, da biolo-
gia, da botânica, da linguagem, etc., diferentes signos são apresenta-
dos ao universo jurídico com a mesma velocidade que este universo se
vê confrontado com a complexidade dos espaços do imaginário.
A dificuldade desse movimento de incorporação é um caminho
de mão dupla, pois se, por um lado, o discurso jurídico se torna mais
rico e neste sentido, mais amplo, uma vez que se obriga a discutir
sobre outras formas de compreensão dos fatos da vida, por outro lado,
tal abertura pode acarretar uma crise de personalidade à essência da
linguagem da Lei, criando-lhe, desta maneira, uma dificuldade resul-
tante de sua busca por ampliar seus próprios significados.
É obrigatório compreender, tal complexidade, a partir da sua
condição fenomenológica, quer dizer, nesta perspectiva o que se quer

321
é outra forma de se perceber o sujeito no mundo, num procedimento
que busca atribuir um conjunto de sentidos aos seres e às coisas, na
mesma medida em que alcança significado por e para eles, isto é, o
pensamento complexo é uma condição de reinventar tanto um lugar
para o sujeito, quanto uma significação do sujeito, compreendendo-o
não mais como um mero ser-jogado-no-mundo, um algo externo e
imposto, mas como um sujeito-ator mundano, numa práxis e numa
presentidade como ser e não como simples objeto.
É, então, uma condição de existência e de referência aos sujei-
tos o reconhecimento dessa complexidade jurídica. É condição de
existência na medida em que a ideia de civilização não pode prescin-
dir de certa capacidade de ordenamento de comandos que determinam
condutas, sociais e individuais; e é uma condição de referência na
medida em que sem o outro, o ser-em-si-mesmo fica em dificuldades.
Não sabe mais, por assim dizer, a quem se voltar; e, igualmen-
te, o estar-junto fica em perigo, pois só uma referência comum a um
mesmo Outro permite aos diferentes indivíduos pertencimento a uma
mesma comunidade.
“Outro” é a instância através da qual se torna possível uma or-
dem jurídica, política e temporal. Segundo Dufour, o “Outro”, que é o
que estabelece para o sujeito uma anterioridade fundadora, quando
não está posto deixa o indivíduo perdido, levando-o a substituí-lo por
outros mecanismos que podem constituir falsos referenciais.
O Outro, aqui, é o sistema jurídico. Ao longo dos últimos cinco
séculos toda a ideia de modernidade, de uma forma ou de outra, esteve
associada a esta capacidade de governança da lei.
É assim que a doutrina se apresenta a partir de três funções bá-
sicas para o discurso jurídico realizar-se na relação com e do Outro:
a) Atividade Criadora: acompanhando as alterações da e na pró-
pria sociedade, no espaço do imaginário social, se faz obrigatório a
criação de conceitos e institutos que não são exclusivos da lingua-

322
Formação Humanística

gem tradicional, nem mesmo do espaço epistemológico tradicional


do campo jurídico.
b) Função Prática da doutrina: a doutrina realiza uma necessária
sistematização da variada gama de estudos que se realizam sobre
o sistema jurídico, e tal seleção é uma conditio sine qua non para
uma melhor e mais ampla aplicação da Lei à realidade social. Ao
mesmo tempo em que sistematiza e reúne o discurso jurídico a
doutrina permite um refletir sobre a capacidade de interpretação da
Lei, ainda mais quando se trata da presença da hermenêutica filo-
sófica hoje em dia. O discurso jurídico não é um mero método ma-
temático que objetiva subsumir o fato à norma, ao contrário, ele é
muito mais rico e variável do que se pressupõe neste simplismo
cognitivo.
c) Atividade Crítica: O discurso jurídico, mesmo em sendo um dis-
curso de poder, não é atemporal nem imutável e muito menos i-
mediato. Toda a construção das práticas e estratégias discursivas
é resultante de um olhar da doutrina sobre o campo da Lei. Como
(re)afirma Paulo Nader “É dentro de uma visão dialética de oposi-
ções doutrinárias que o progresso jurídico se transforma em reali-
dade. É do contraste entre teorias e as opiniões, do embate das
correntes de pensamento, que nasce o instrumento eficaz, a fór-
mula ideal para reger os interesses da sociedade”.

Entretanto, a doutrina não tem o condão de obrigar aos magis-


trados a nada, pois ela não apresenta uma estrutura de poder a esse
nível. Sua capacidade de se impor se dá num espaço simbólico, no
espaço do imaginário, mas sem que com isso possa se constituir como
instituto indispensável à caracterização das normas jurídicas, da Lei.
Ela tem condições de realizar um despertar do olhar dos opera-
dores do direito a todas aquelas singularidades microfísicas que trans-
correm num cenário de pura linguagem e, nesse sentido, mitificação
que é o do imaginário social.

323
É, talvez, esta resistência ao papel da doutrina, uma resistência
que é em muitos aspectos mero capricho de vaidades dos que têm um
poder político de decidir através da Lei o conflito social, que se pode
compreender uma parte significativa da crise do ordenamento jurídico.
Ainda, o enunciado da lei – oral e escrito, primário e secundá-
rio, em qualquer esfera de comunicação – proposto pelo sistema jurí-
dico é na sua própria proposição um bem simbólico coletivo, queren-
do com isso desconhecer que todo enunciado é sempre uma significa-
ção individual, e por isso mesmo incapaz de refletir a individualidade
de quem fala, ou escreve, bem como não tem como impedir que a
compreensão seja sempre resultante de uma pré-compreensão de quem
ouve ou lê. Nesta exata medida a doutrina se justifica.
Portanto, o falante, seja o sistema jurídico, ou mesmo o indiví-
duo em condições de fala privilegiada tem, desse modo, a possibilida-
de de se individualizar e também ao seu discurso não por meio de um
egocêntrico sistema gramatical da Lei na Lei, ou da expressão de uma
subjetividade pré-social, a suposta imparcialidade do operador do
direito, mas como interação viva de todas aquelas vozes sociais que o
formam, vozes estas que somente são percebidas quando à fala da Lei
se incorpora, no quantum possível, a doutrina.
Autorar, nesse sentido transmoderno, é orientar-se na atmosfera
heteroglótica, é assumir uma posição estratégica no contexto da circu-
lação das vozes sociais; é explorar o potencial da tensão criativa da
heteroglossia dialógica de toda a fala. Não basta desta forma, uma
mera aplicabilidade do bom senso do juiz calcado num a posteriori
experimental, mas igualmente na sua abertura aos contributos da dou-
trina.
A língua, enquanto significação da fala penetra nos enunciados,
aqui enquanto condutas normativas que igualmente pretendem pene-
trar na fala. Sem uma contextualização mais complexa essa penetração
é falha ou sem sentido, mas em qualquer caso, descolada da realidade
social.

324
Formação Humanística

É, portanto, uma condição de círculo linguístico heteroglótico,


no qual a fala é autoria do sujeito desde que acontecer no coletivo que
o faz sujeito, isso tanto a partir do domínio técnico experimental da
Lei, bem como dos conceitos múltiplos desenvolvidos na doutrina
além direito.
Repita-se, mais especificamente, o discurso jurídico tem como
discurso objetivo uma fixação em refugiar-se numa impessoalidade
justificante, revelando uma onipresença da instância de enunciação no
texto jurídico.
Todo o texto pressupõe, em última instância, um autor por mais
indiferenciado que este seja. O texto jurídico, enquanto fabulação, não
escapa também à inscrição de um determinado ponto de vista, ou seja,
ao inevitável pressuposto de um sujeito na medida em que não existe
um ponto de vista neutro e objetivo desencarnado, isto é, sem alguém.
A lei é apenas uma máscara que representa uma estratégia de
dominação, criando e se refundando num movimento circular indiví-
duo-coletivo, com a vã (pré)tensão de excluir dos limites de sua fala a
singularidade na medida em que (re)afirma o sujeito social, genérico e
totalizante. Sem uma aliança com a doutrina o discurso jurídico se faz
discrepante do espaço social, sempre mais móvel e ativo do que aque-
le meramente descrito no espaço da Lei.
O texto jurídico pressupõe, com efeito, o ato de conhecimento
do sujeito com o mundo, numa clara intenção de despersonalizá-lo
nesse espaço de mundividência. Verdadeiro paradoxo, este sujeito do
conhecimento implica sempre um indivíduo, ou seja, uma pessoa, o
que leva a um ponto de tensão-mutação entre o que pretende àquelas
esferas generalizantes (fundamentalmente: O Estado e o Direito), e a
capacidade estimulada pelo mercado e pelo capital do sujeito indivi-
dualidade.
A resposta de ambos, Estado e direito têm sido (re)forçar uma
linguagem de justiça pública, em que o castigo disciplinar deve ser
essencialmente corretivo, constituindo-se mais num exercício com

325
vistas ao aperfeiçoamento do desempenho daqueles comportamentos
coletivos e esperados do que necessariamente a defesa de um sujeito.
Castigar é exercitar sobre o sujeito a fabulação da ordem da lei,
da conduta permitida, do comportamento possível. O sistema de mi-
cropenalidades que especifica punições em caso de desvios nos com-
portamentos (in)desejados, não poderia abdicar do fechamento especí-
fico em uma interioridade, ou seja, não poderia prescindir de um tipo
de confinamento que assegure a organização e distribuição interna dos
corpos a serem disciplinados.
Além disso, o controle minucioso do tempo também obedece à
lógica da disciplina, articulando a permanente recorrência do ciclo
processual – o que pretensa e arrogantemente parece garantir uma
defesa de direitos individuais.
É aqui que a relação Estado/sociedade/direito/indivíduo se co-
loca a mercê, como quer o positivismo, em todo e qualquer fato, a
uma detenção da lei na vontade do Estado-juiz/pastor, que encarna
aqui a figura do (ir)responsável pela (des)ordem social.
O Estado, como a mídia, busca acondicionar conceitos no ima-
ginário, mas como o mercado simbólico não é uma racionalidade de
mão única, inclusive no próprio espaço virtualizado, a resposta é a
criação constante e inflacionária de leis, ao mesmo tempo em que se
entrega ao Estado-juiz/pastor a condução de toda e qualquer (re)ação
do sujeito, transformando-o numa condição de zelador de verdades
(re)veladas e parciais, o que contrário senso, amplia o espaço de resis-
tência e conflito.
Finalmente, sem o reconhecimento devido à doutrina toda esta
complexa matiz de produção de fala jurídica corre o risco de tornar-se
anacrônica e assimétrica ao espaço social.
Destaca René David que
“(...) quem quer alimentar ficções ou denominar Direito à parcela
do mesmo constituída pelas normas legislativas, pode fazê-lo; mas
quem quer ser realista e ter uma visão mais ampla e, em nosso ju-

326
Formação Humanística

ízo, mais exata do Direito, haverá de reconhecer que a doutrina


constitui todavia, como no passado, uma fonte muito importante e
viva do mesmo.”

4.18 Da Súmula Vinculante


Esta fonte contemporânea de direito não é recente, pois no que
diz respeito ao nosso país, seus antecedentes já são percebidos no
Império, com a Lei 2.684 de 23/10/1875 e, na República, pelo artigo
896, ‘a’, específico do processo do trabalho que já antecipava o efeito
vinculante.
Contudo, foi com a Emenda Constitucional nº45, de 08 de De-
zembro de 2004, mais, Emenda que é mais conhecida pela alcunha de
“Reforma do Judiciário”, que causou uma alteração no artigo 103,
uma vez que criou os artigos 103-A e 103-B (que trata do Conselho
Nacional de Justiça, o CNJ), que se pode afirmar o acréscimo no cor-
po da Constituição Federal do procedimento para a edição, a revisão e
o cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo STF. Con-
forme o caput do artigo 103-A:
103-A: “O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provo-
cação, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, editar
enunciado de súmula que, a partir de sua publicação na imprensa o-
ficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder
Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas fe-
deral, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou
cancelamento, na forma prevista nesta Lei.”

Não se pode esquecer que ao contrário do instituto da súmula


vinculante há outras súmulas que estão presentes em nosso ordena-
mento e conhecidas desde há muito pelo STF. Estas súmulas costu-
meiras presentes neste Tribunal Superior se constituem, entretanto,
numa expressão de entendimentos reiterados, consolidando uma posi-
ção sobre determinado tema, procedimento ou matéria assim, não são

327
mais nada que expressões sintetizadas de entendimentos consolidados
da Corte Constitucional.
Assim sendo, estas súmulas tradicionais do STF representam
uma sinopse da jurisprudência predominante, isto é, do processo de
edição de enunciados por parte do STF que busca, desta forma, tradu-
zir uma orientação jurisprudencial do mesmo, para todo ordenamento
jurídico se constituindo, portanto, em um repositório oficial de juris-
prudência (art.99 do Regimento Interno do STF - RISTF). Conforme o
seu regimento interno:
Art.102. A jurisprudência assentada pelo Tribunal será compendia-
da na Súmula do Supremo Tribunal Federal.

Em regra geral, a compreensão do conceito diz respeito ao fato


de que os enunciados da súmula são proposições aprovadas ou revisa-
das, de ofício ou por iniciativa de quem legitimado (que são os mes-
mos legitimados para a proposição da ação direta de inconstitucionali-
dade – ADI -, conforme o artigo 103, da CF/88). A aprovação ou revi-
são se dá como competência precípua do Supremo Tribunal Federal,
que aprova ou revisa com o quórum de 2/3 de seus membros, confor-
me o previsto pelo princípio da reserva de plenário do artigo 97,
CF/88.
A decisão proveniente de súmula tem o condão de vincular os
demais órgãos do Poder Judiciário, bem assim os órgãos da Adminis-
tração Pública Direta e Indireta, independente da esfera destes, isto é,
Federal, Estadual e Municipal. O descumprimento daquilo que estiver
previsto em súmula permite o uso de RECLAMAÇÃO contra aquele
que por ventura vier a contrariar o disposto em súmula.
Não há uma posição uniforme sobre a natureza da súmula vin-
culante em nosso ordenamento jurídico, uma vez que esta é compre-
endida a partir de três tipos distintos:

328
Formação Humanística

a) A posição de Castanheira Neves e Lênio Streck que compre-


endem a natureza da súmula vinculante como de natureza legisla-
tiva;
b) A posição de Jorge Miranda e Luis Carlos Alcoforado que com-
preendem a natureza da súmula vinculante como de natureza ju-
risdicional;
c) A posição de Mauro Cappelletti e marco Antonio Muscari que
compreendem a natureza da súmula vinculante como de natureza
‘tertium genus’, quer dizer, ela seria mais do que a jurisprudência e
menos do que a Lei.

Em relação à primeira posição, afirma Castanheira Neves que


“a súmula vinculante ao ser atribuída aos Supremos tribunais, através
dos assentos, a função legislativa, o sentido com que a Lei deve ser
entendida e aplicada veio a estabelecer-se não só uma mediação,
como até uma interposição”.
Lênio Streck, por sua vez, destaca que o STF quando edita uma
súmula vinculante, com um efeito “erga omnes” acaba por assumir
uma condição de função legiferante, quer dizer, agregaria ao “produto
legislado a prévia interpretação”.
Quanto à segunda posição, Jorge Miranda destaca que “(...) o
assento é resultado da função jurisdicional, pois a causa da lei inter-
pretativa, como a de qualquer outra lei, vem a ser a realização do
interesse público, ao passo que a causa do assento consiste no cum-
primento da lei, de ajunte com critérios meramente jurídicos, não
devendo ser olvidado que o assento nem traduz liberdade de conteú-
do, nem liberdade de formação, sendo a decisão final de um processo
judicial”. Alcoforado destaca que este poder de vinculação é mero
exercício jurisdicional com valor de efeito normativo que é outorgado
legalmente ao Supremo Tribunal Federal a partir da manifesta deter-
minação da Constituição Federal.
Para a última posição, Cappelletti lembra que “os juízes estão
constrangidos a serem criadores de direito. efetivamente, eles são

329
chamados a interpretar e, por isso, inevitavelmente, a esclarecer,
integrar, plasmar e transformar, e não raro a criar ex novo o Direito.
Isso não significa, porém, que eles sejam legisladores. Existe, real-
mente, essencial diferença entre os processos legislativo e jurisdicio-
nal”.
Ao encontro dessa posição, Muscari afirma que no caso da sú-
mula vinculante a sua compreensão deve se dar na condição de se
perceber que ela é mais do que a jurisprudência e menos do que a Lei,
isto é, a súmula vinculante é um meio caminho entre estes dois pólos.
Isto é assim porque no que tange a sua condição de jurispru-
dência ela é resultado de uma construção do Poder Judiciário, relacio-
nada a uma situação fática concreta que explicam a sua própria reali-
zação por parte do STF, mas ao mesmo tempo é próxima da figura da
Lei na medida em que se reveste de obrigatoriedade e imposição, não
admitindo contrariedade por parte do próprio ordenamento jurídico.
Em relação aos efeitos percebidos na edição das súmulas, se
pode destacar:
a) Com eficácia suasória: se dá a partir da persuasão dos ór-
gãos administrativos e judiciários que a ela estão submetidos –
§1º, artigo 102, CF/88;
b) Com eficácia vinculante: resulta no poder de invalidar os
atos administrativos e jurisdicionais produzidos em dissonância
com o entendimento presente na súmula – artigo 103-A, CF/88;
c) Com eficácia obstativa: significa esta eficácia na capacidade
que a súmula tem de impedir a produção demasiada e descabida
(procrastinação) de recursos, pois ao juízo está facultado negar
a possibilidade de prosseguimento do recurso que contraria a
jurisprudência dominante e majoritária – conforme o artigo 38,
Lei 8038/90 e §1º, artigo 518 e caput do artigo 557, do CPC,
bem como texto presente nas Leis 9756/98 e 11276/06.

330
Formação Humanística

Os pressupostos presentes para a legitimação da súmula vincu-


lante são os seguintes:
a) Multiplicação de processos sobre questão idêntica;
b) Reiteração das decisões sobre matéria de natureza constitu-
cional;
c) Controvérsia;
d) Insegurança jurídica.

Finalmente importa destacar que no procedimento para edição


de súmula vinculante se deve observar a presença de três requisitos
formais que se constituem em seus pressupostos objetivos:
a) A iniciativa – aqueles que estão legitimados a provocá-la;
b) A aprovação – deliberação tomada num espaço privilegiado
que é o Plenário do STF (maioria qualificada de 2/3 dos votos
deste Tribunal);
c) A publicação – a presença da súmula, com o seu respectivo
número na imprensa oficial para gerar os efeitos “erga omnes”.

OBS: no caso de ocorrer um ato administrativo ou mesmo a prola-


tação de um ato jurisdicional que contrariando jurisprudência do-
minante protegida por súmula vinculante cabe RECLAMAÇÃO ao
STF, o que implica na responsabilização cível, penal e político-
administrativa do agente público que agir com este fim.

Todavia, este procedimento formal e legal das súmulas vincu-


lantes não se constitui em uma unanimidade em nosso país, pois além
das questões formais, estão questões muito mais importantes e que
dizem respeito a certa coerência no ordenamento jurídico.

331
Impossível, aqui, não se destacar a posição de Lênio Streck, ar-
guto crítico deste instituto criado como uma resposta de uniformiza-
ção e que, nas palavras do ex-ministro VICTOR NUNES LEAL, a
expressão “súmula” servia para definir, em pequenos enunciados, o
que o Supremo Tribunal Federal vinha decidindo de modo reiterado
acerca de temas que se repetiam em seus julgamentos.
Curioso que para uma forma de perceber a linguagem esta se
parece com outra, ainda que em cada uma o fato a qual ele se refere
seja único e essencialmente particular.
Como bem observou Lênio Streck, há uma questão importante
sobre o tema da súmula vinculante que diz respeito a sua relação com
as duas famílias tradicionais do direito ocidental.
.Na tradição do direito da Common Law, o precedente judicial
sempre teve força preponderante na aplicação do direito, sendo por
isso fundamental a doutrina do stare decisis para se ter asseguradas à
estabilidade, a coerência e a continuidade do sistema.
O efeito vinculante do precedente decorre assim do funciona-
mento do sistema, encontrando-se arraigado na própria compreensão
da atividade jurisdicional. Em outras palavras, o efeito vinculante do
precedente no Common Law é uma decorrência natural do próprio
sistema.
Por sua vez, na tradição da Civil Law, esse papel preponderante
é assumido pela lei. É ela que se configura como ponto de partida para
a compreensão do direito. A jurisprudência tem uma função apenas
subsidiária na aplicação do direito, sendo invocada tradicionalmente
para auxiliar na interpretação da lei ou em casos de lacuna. Conse-
qüentemente, não se tem aqui como natural o efeito vinculante das
decisões judiciais. Ao contrário, o seu efeito é tido como meramente
persuasivo. Importa destacar, como bem destaca Streck que apenas a
lei tem caráter vinculante para o aplicador do direito nos sistemas de
Civil Law.

332
Formação Humanística

A súmula vinculante – em qualquer uma das suas configurações


até o momento elaboradas pelo legislador – apresenta-se como um
instrumento destinado à uniformização da jurisprudência. O que não
chega a ser uma criação inédita, uma vez que antes mesmo delas já
existem inúmeros outros instrumentos no sistema que, mesmo não
possuindo a finalidade específica em uniformizar já se prestam há
muito a esse papel. Como observa Lênio Streck: a) o recurso especial
e extraordinário; b) a utilização da jurisdição coletiva; c) os mecanis-
mos do controle de constitucionalidade das leis; d) o incidente de
uniformização de jurisprudência, específico para esse fim.
Desta maneira, a sua existência é mais do que uma redundân-
cia, antes, é resultante de uma prática do sistema para oferecer o pró-
prio sistema como uma lógica universal e atemporal na sua capacidade
em resolver os problemas que as transformações das relações entre a
sociedade e o judiciário vêm sofrendo ao longo dos séculos.
Não por acaso, Luis Flávio Gomes se alinha ao lado de Streck e
outros para criticar este instituto da súmula. No seu entender, “(...) a
inconstitucionalidade da súmula vinculante é evidente”. E isto é assim
por que toda a interpretação, dada por um Tribunal a uma lei ordiná-
ria, por mais experimentada e notável que seja jamais pode ter o con-
dão de criar uma vinculação vertical aos juízes de instâncias inferio-
res, pois que estes, ao abrigo da Constituição, devem poder julgar com
absoluta e total independência.
Esta independência é resultado de um princípio constitucional
muito caro à magistratura, qual seja, o magistrado tem direito a um
livre convencimento, sem interferência da sociedade, dos membros
dos outros poderes e até de algum magistrado que pelo prestígio do
Tribunal a que pertence, acredita se constituir em uma situação hierár-
quica superior.
A súmula vinculante é uma direta violação a independência ju-
rídica do juiz, isto é, viola sua capacidade de independência interna,
sua existência enquanto ser de linguagem e fruto de sua própria histó-
ria e de suas experiências ontológicas, na medida em que impõe à sua

333
compreensão uma decisão estilizada e exógena daquilo que ele é como
pessoa.
Neste sentido, afirma Estevão Mallet que:
“Ademais, como prevalece o entendimento de que a sentença não
cria direito novo, apenas interpreta direito já existente, acabará a
jurisprudência obrigatória, forçosamente, por ser invocada mesmo
de modo retroativo, para situações ocorridas antes até de sua con-
solidação, o que – não é difícil perceber – compromete considera-
velmente a estabilidade das relações sociais e mesmo a seguran-
ça dos cidadãos. De outra parte, parece inegável que decisões ju-
diciais obrigatórias enrijecem, ainda mais, o sistema legal, por na-
tureza pouco flexível, tornando mais complexas as inevitáveis e
necessárias adaptações da lei às novas realidades. Como escre-
veu certa feita importante jurista francês, ‘ce que était le droit hier
peut être l‘injustice demain’ (Paul Roubier). Em tempos de rápidas
transformações econômicas, sociais e mesmo políticas, isso talvez
seja um fardo bastante pesado para se carregar.”

Não é, portanto, uma antipatia gratuita com o instituto da súmu-


la vinculante, mas um exercício de reflexão, prática que Lênio Streck
vem lembrando há muito tempo que faz falta em nosso ordenamento
jurídico. O fato de que uma Emenda Constitucional, a de n.º45/04
legalmente a instituiu, conforme o artigo 103-b, da Constituição, não
significa uma mesma legitimidade, pois apesar da sua boa vontade ela
é uma afronta a valores fundamentais que parecem esquecidos no
nosso ordenamento jurídico quando se fala do Direito.

Assim, também adverte Rodolfo Camargo Mancuso,


“(...) é de reflexão serena e desapaixonada sobre a melhor técnica
para se alcançar, na experiência judiciária brasileira, o ideal de
uma uniformidade contemporânea, que, todavia, não exclua a e-
ventualidade, justificada, de uma alteração sucessiva. Para tal, não

334
Formação Humanística

basta o simples transplante da experiência anglo-americana do


stare decisis, tomado esse regime à outrance, como se fora uma
panacéia para resolver, em bloco, todas as demandas cujas pre-
tensões sejam assemelhadas. É preciso bem apreender as tipici-
dades e as nuances do sistema vigente na common law, para dele
extrair o seu princípio ativo, o qual, com os cuidados devidos, po-
derá ter válida aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, inclu-
sive respeitando-se o dado sociológico, revelado por uma cultura
que há séculos vem centrada no primado doDireito escrito. Caso
contrário – como por vezes acontece nas cirurgias, poderá ocorrer
a rejeição do implante...”

Finalmente, sem ser repetitivo, mas já o sendo, importa desta-


car uma observação de Lênio Streck que sintetiza com força a sua
crítica arguta sobre este instituto, a qual se concorda fundamentalmen-
te:
“A súmula vinculante é instrumento do Direito do segundo milênio.
Não serve para guiar a Justiça do terceiro milênio. Institutos da era
analógica não são úteis para a Justiça da era digital. É um atraso e
grave retrocesso. Faz parte de uma ética tendencialmente autoritá-
ria, de uma sociedade militarizada, hierarquizada. A justiça de ca-
da caso concreto não se obtém com métodos de cima para baixo.
O contrário é que é o verdadeiro. O saber sistemático (generaliza-
dor) está dando lugar para o saber problemático (cada caso é um
caso). Por isso é que devemos nos posicionar contra ela.”

Observe-se que Lênio consegue dimensionar a sua crítica, não


se deixando reduzir por questiúnculas sobre o ‘gostar’ ou ‘não gostar’
deste instituto. Com o seu olhar, ele coloca a questão da súmula vincu-
lante num contexto muito maior e significativo, que diz respeito à
própria crise de todo um sistema de pensar o Direito.
Pensamento este que datado e pontual, foi influenciado pelas
transformações glamorosas dos séculos XVI a XIX, e que determina-

335
ram a força e a limitação do discurso jurídico tanto para a sua realiza-
ção, enquanto instrumento de controle do social, como para a experi-
ência da atual crise, pois que depois de tantos séculos é impossível se
aceitar que tal discurso se mantenha sobre bases de velhos e cansados
paradigmas.
E, ainda,
“Que o Judiciário necessita de reformas não é novidade e tampou-
co é contestado por ninguém, o que ensejaria, de imediato uma
discussão mais aprofundada sobre os diversos âmbitos da crise
(estrutural, funcional e individual) que atravessa a administração
da justiça brasileira. Diríamos que esse é um dos problemas. Po-
rém, de qualquer sorte, não parece ser do interesse do establish-
ment jurídico-dogmático a discussão desses pontos, mormente de
forma mais aprofundada. Ao contrário, preferem “resolver” desde
logo e de uma vez o problema, atacando a contradição secundária
do problema, deixando de lado a contradição principal.”

E que não se diga que Lênio Streck somente é acompanhado de


parte da doutrina que ainda tem o ímpeto para refletir, pois ao encon-
tro dele, se destaca uma observação preciosa de Celso de Mello, aliás
ministro:
“A eficácia prática do princípio da Súmula vinculante é altamente
questionável! Por uma razão muito simples: mesmo prevalecendo
o princípio da Súmula vinculante, não há como inibir a sustenta-
ção, em juízo, de teses diametralmente opostas. (...) É um perigo-
so dirigismo estatal, que frustra a função transformadora e criadora
da jurisprudência.” (Min. Celso de Mello, Folha de São Paulo,
15/06/97).

Por tudo que se disse se pode, então, compreender em que grau


a polêmica em torno do instituto da súmula vinculante acabou por
ganhar espaço no ordenamento jurídico brasileiro, se constituindo não

336
Formação Humanística

somente numa discussão acadêmica, mas igualmente como um ins-


trumento de manifesto poder do Supremo Tribunal, exatamente na
medida da obrigatoriedade, imperatividade e uniformização que busca
impingir ao ordenamento jurídico, desafiando o bom senso do próprio
sistema, mas talvez, exatamente por esta razão, na sua aplicação que
busca fortalecer o sistema este se enfraqueça e na fratura exposta a
que se submete, desarticular todo o sistema, permitindo-lhe, entre
décadas de incapacidade em refletir, finalmente, começar a pensar
criticamente.
“Ou seja, é preciso compreender que, nesta quadra da história, o
direito assume um caráter hermenêutico, tendo como consequên-
cia um efetivo crescimento no grau de deslocamento do pólo de
tensão entre os poderes do Estado em direção à jurisdição (consti-
tucional), pela impossibilidade de o legislativo (a lei) poder antever
todas as hipóteses de aplicação. Assim, na medida em que o direi-
to é uma ciência prática, o centro da discussão inexoravelmente
sofre um deslocamento em direção ao mundo prático, que, até o
advento do Estado Democrático de Direito, estava obnubilado pe-
las conceitualizações metafísico-positivistas, sustentadas, por sua
vez, por uma metodologia com evidentes matizes metafísico-
dualístico-representacionais.”

337
338
Formação Humanística

Capítulo VI

DA ÉTICA E DO CÓDIGO
DE ÉTICA DA MAGISTRATURA

6.1 Da Ética
Antes de se apresentar o código de ética se faz necessário al-
gumas observações ordinárias e meramente ilustrativas do tema geral
da Ética em nossa atual realidade contemporânea.
Não é raro se utilizar o conceito de ética como expressão sinô-
nima do conceito de moral.
Por outro lado, igualmente é bastante comum encontrar distin-
ções entre esses dois termos nos compêndios de ética. Para uns, ética é
a disciplina filosófica, já a moral ficaria restrita aos códigos morais ou
mesmo aos costumes (pré)conceituosos de um grupo social.
Para outros, caso de Jürgen Habermas, a ética tem como fun-
damento o tratamento da felicidade, enquanto que a moral estaria
preocupada com o instituto do dever e com a justiça.
Entretanto, a própria proposição que ele faz, isto é, a de cons-
truir uma ética discursiva, não respeita essa distinção, pois, no caso
específico, não se trata, de forma alguma, de uma ética da felicidade,
mesmo ele tendo definido a ética como tratando da vida boa.

339
No que diz respeito aos interesses aqui propostos, se parte de
uma tentativa de diferenciação, mas em regra os termos são emprega-
dos sem distinção.
Buscando uma compreensão mais didática, se pode dividir as
teorias morais ao menos a partir de duas grandes correntes, as quais
podem ser denominadas:
a) Ética da Virtude ou Felicidade;
b) Ética do dever ou da Justiça.

Em relação à Ética da Virtude, é possível se incluir teóricos


como Sócrates, Aristóteles, Platão, São Tomás, Bentham e Stuart Mill,
entre outros. No que diz respeito ao grupo de Ética do Dever poderiam
estar aí incluídos Kant, Habermas, Apel, Rawls, etc.
Em relação à primeira corrente, o que se encontra é uma ética
de natureza teleológica, uma vez que ela tem como objeto visar um
fim que é dado ao homem por seu desejo mais profundo ou mesmo
por sua natureza.
No que diz respeito à segunda corrente, por sua vez, ela pode
ser compreendida como uma ética de natureza deontológica, sem ne-
nhuma mediação e na qual o fim moral se impõe ao homem e à sua
vontade, a partir da predominância da razão, a qual, nesse caso, deixa
de ter uma dimensão meramente instrumental e passa a determinar um
fim que lhe é próprio, independente da natureza e dos desejos huma-
nos, mesmo os mais profundos.
Por outro lado, não sem uma boa dose de dificuldade se podem
observar posições como a da teoria nietzschiana da moral, a qual se
constitui, fundamentalmente, numa crítica às teorias morais. Desta
forma, igualmente, a posição defendida por Hume parece de difícil
classificação. Mas, como já se disse, qualquer tentativa de classifica-
ção somente significa uma organização com objetivos didáticos.

340
Formação Humanística

Outra classificação que se tem usado, mais para os teóricos mo-


rais contemporâneos é a que divide os filósofos entre os reconhecidos
como comunitaristas e aqueles outros ditos universalistas ou liberais.
De forma geral, se afirma que o primeiro grupo (os comunita-
ristas) busca no conceito de ética o mesmo fim daqueles que defen-
dem a ideia de uma ética da virtude, já quanto ao segundo, a equiva-
lência está com aquele grupo da ética enquanto dever. Contudo, aqui,
já se percebe a construção de uma especialização sobre o tema, uma
vez que diz respeito à questão da justiça ou da felicidade. Portanto, os
comunitaristas, como o próprio nome já destaca, têm uma concepção
ética mais circunstanciada, ligada a uma ideia de comunidade, de cole-
tivo, aos seus valores e às suas tradições. O que se pretende aqui é a
defesa da felicidade sobre a justiça.
Por sua vez, os ditos universalistas afirmam que o pluralismo
cultural e valorativo tem como resultado impedir a construção daque-
las formas exemplares de vida, que poderiam se constituir em para-
digmas de uma vida feliz. O que cabe ao pensar filosoficamente é o
estabelecimento das regras necessárias para a subsunção dos sujeitos à
ordem formal e soberana.
Aqui também podemos dividir os teóricos por aproximação e
identidade com uma ou outra corrente: representando os comunitaris-
tas se percebe MacIntyre, Taylor, Sandel, cujas raízes remetem a Aris-
tóteles e Hegel, entre outros. Em relação aos utilitaristas encontram-se
Rawls, Ernest Tugendhat, Habermas, com clara remissão, por sua vez
a Kant e aos liberais clássicos, entre tantos outros.
Ao lado dessas correntes e desses autores ainda se reconhece a
existência de algumas outras de difícil classificação que podem ser
percebidas como as posições de Derrida e Foucault, bem como os
reconhecidos como ‘emotivistas’, que é o caso de Stevenson. Com
isso, temos uma visão mais ampla do debate contemporâneo.

341
Contudo, não se pode deixar de fazer menção à contribuição de
Kant ao tema da ética, ainda que de forma bastante simplificada pelas
dimensões e limites que aqui se propõe.
O problema da filosofia prática, em Kant é, assim, apresenta-
do: se a razão pura é prática, qual é a lei e qual é a natureza da vontade
que pode obedecer a essa lei?
O instituto da analítica, na Crítica da Razão Prática, tem co-
mo objetivo buscar determinar o princípio supremo da moralidade.
Os princípios de determinação da vontade, que têm por base a
sensibilidade, não estabelecem leis da razão, isso porque têm por fun-
damento o desejo de felicidade e, portanto, não podem fornecer leis da
razão.
Desta maneira, a lei dita moral só pode vir a ser estabelecida
independentemente de todo e qualquer desejo, de toda e qualquer
matéria, isto é, ela somente pode ser estabelecida quando de sua forma
ideal, qual seja, através de sua universalidade.
A forma geral da lei moral se constitui, desta maneira, num im-
perativo categórico: como destaca Kant “age apenas segundo uma
máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei
universal”.
Isso quer dizer que no estabelecimento de uma lei moral, con-
corre apenas à razão, que é compreendida como imediatamente legis-
ladora, fundamentando e se sobredeterminando, dessa maneira, aquela
vontade.
A Lei, assim constituída pela razão é uma expressão da própria
essência da vontade de um ser tomado pela razão, racional, a saber, é a
liberdade em sentido positivo, que não é nada mais do que uma plena
condição de autonomia.
Consequentemente, a lei moral nada mais exprime do que aque-
la autonomia da razão prática pura, isto é, a condição de liberdade.
Portanto, como efeito, a autonomia da vontade é o único princípio a

342
Formação Humanística

priori da razão prática pura, pois que os seus outros institutos somente
podem se dar a posteriori.
Em Kant o dever acaba por se apresentar a partir de dois aspec-
tos fundamentais:
a) Vontade boa;
b) Lei moral.
Em relação à lei moral, se deve observar que ela deverá ser en-
contrada, uma vez que não se pode esquecer o seu caráter metodológi-
co a priori, na exclusão de todo o espaço empírico quando restará,
portanto, apenas uma legalidade da universalidade.
Importa, agora, compreender bem de qual lei se está buscando
compreender, qual seu estatuto, bem como a sua possibilidade. Essa
lei assume, para um ser racional finito, a forma de um imperativo,
traduzindo, dessa maneira, o dever-ser de conformidade a uma lei
universal.
Trata-se, evidente nesse caso, como quer Kant, de “descrever
claramente a faculdade prática da razão, partindo de suas regras
universais de determinação, até o ponto que dela brota o conceito de
dever”.
Claro está que se percebem dois objetivos na citação acima:
a) Estabelecer as regras da razão prática pura: a lei moral;
b) Estabelecer a noção de dever, pois dada a nossa constitui-
ção, que não se determina necessariamente pela lei moral, essa
assume a forma de imperativos que ‘são apenas fórmulas para
exprimir a relação entre leis objetivas do querer em geral e a
imperfeição subjetiva desse ou daquele ser racional, da vonta-
de humana, por exemplo. ’

No que diz respeito aos imperativos da razão, ou são hipotéti-


cos ou são imperativos categóricos.

343
Em relação aos primeiros, os imperativos hipotéticos, eles re-
presentam uma necessidade de ação como meio fundamental para
alcançar certo fim. Por sua vez, aqueles outros, os imperativos categó-
ricos apresentam uma ação como objetivamente necessária, indepen-
dente do fim que pretendemos necessariamente alcançar. No primeiro
caso, temos uma ação boa como meio, no segundo, como boa em si.
Uma ação boa como meio significa que ela não trás em si todas
as propriedades que se espera, uma vez que ela precisa de um meio
para a sua realização plena; ao contrário, sendo boa em si a norma da
Lei tem uma aplicabilidade mais direta, já que é plena na sua realiza-
ção sobre o sujeito.
Destaca ainda Kant, uma dupla rodada de apresentação desses
imperativos. A primeira é feita a partir da intenção daquilo que ele
identifica como o querer. Nesse caso, temos, para o imperativo cate-
górico, o qual independe de intenção, um princípio apodítico, isto é,
incontestavelmente demonstrado.
Esta condição de incontestavelmente acontece na mesma medi-
da de sua proporcionalidade, na medida em que sem esta última fica
muito mais íngreme o projeto de construir uma ideia geral sobre as
relações dos homens e destes com o próprio Estado.

OBS: Sobre o conceito de apodítico: Chama-se apodítico àquilo que


vale de um modo necessário e incondicionado. O termo “apodítico”
usa-se na lógica, com dois sentidos. Por um lado, refere-se ao silo-
gismo, por outro, à proposição e ao juízo. O apodítico no silogismo:
nos Tópicos, Aristóteles dividiu os silogismos em três espécies: os
apodíticos, os dialéticos e os sofísticos ou erísticos. O silogismo apo-
dítico é o silogismo cujas premissas são verdadeiras, e tais que “o
conhecimento que temos delas tem a sua origem em premissas
primeiras e verdadeiras”. Esse silogismo chama-se também comu-
mente de ‘demonstrativo’. O apodítico na proposição e no juízo:
como uma das espécies das proposições modais, as proposições apo-

344
Formação Humanística

díticas expressam a necessidade, isto é, a necessidade de que s seja p


ou a impossibilidade de que s não seja p. O termo “apodítico”, na
proposição e no juízo, não foi usado pelos lógicos de tendência tradi-
cional e tem vigência geral a partir de Kant. O emprego mais conhe-
cido é o que se encontra no quadro dos juízos como fundamento do
quadro das categorias. Para a primeira, os juízos apodítico são uma
das três espécies de juízos de modalidade. Os juízos apodíticos são
juízos logicamente necessários, expressos sob a forma ‘s’, é necessa-
riamente, ‘p’, ao contrário dos juízos assertóricos ou de realidade ou
dos juízos problemáticos ou de contingência (Crítica da Razão Pura).
Um uso menos conhecido de apodítico, em Kant, é o
que aplica esse termo a proposições que estejam unidas à consciên-
cia da sua necessidade. Os princípios da matemática são, segundo
Kant, apodíticos. As proposições apodíticas são, em parte, “demons-
tráveis”, e, em parte, “imediatamente certas”, conforme observa
Ferrater.
O juízo assertórico é o que afirma algo existente, uma verdade de
fato. O juízo apodítico. A necessidade do afirmado quer a necessida-
de física (própria das leis. cuja negação não implica contradição),
matemática ou metafísica, que é uma necessidade incondicionada ou
absoluta. O juízo problemático caracteriza-se pela contingência de
seu enunciado. Assim: ‘hoje chove’ é um juízo assertórico; ‘os corpos
pesados devem cair’ é um juízo apodítico (de ordem física); ‘o todo é
necessariamente maior que qualquer de suas partes’, é um juízo
apodítico de necessidade matemática; ‘o antecedente é necessaria-
mente anterior ao consequente’ é um juízo apodítico de necessidade
metafísica.

Quanto ao imperativo hipotético a intenção pode se dividida em


um possível ou um real:
Quando a intenção for possível, encontramo-nos frente a um
princípio problemático.

345
E, quando real, o que se tem é um princípio assertórico-prático.
Os princípios problemáticos podem chamar-se também imperativos de
destreza, os quais nos são fornecidos pelas ciências e artes em geral.
O princípio assertórico-prático tem importância e deve assim
ter um olhar pormenorizado, uma vez que a intenção de que trata é
algo que todos têm por uma necessidade natural e, desta forma, não é
só possível, como real. A destreza, nesse caso, pode chamar-se pru-
dência, ou seja, a doutrina dos meios para atingir a felicidade.
Um segundo momento ocorre a partir da diferença da obrigação
imposta à vontade.
Neste espaço, o imperativo categórico é um mandamento, isto
é, um imperativo moral. Quanto ao imperativo hipotético, por sua vez,
se trata de regras da destreza, quer dizer, são imperativos técnicos ou
de conselhos da prudência, ou seja, imperativos pragmáticos.
Destaque que se justifica aqui nesse ponto é o fato de que os
imperativos pragmáticos referentes à prudência, postos a partir do fato
de que a sua necessidade é torná-los possível analiticamente como
imperativos técnicos, isto se torna problemático na medida mesma em
que não é fácil dar um conceito determinado de felicidade, o qual
envolveria um todo absoluto na consideração de um máximo de bem
estar.
Kant destaca que, ‘a felicidade não é um ideal da razão, mas
da imaginação’. A partir dessa máxima ele objetiva estabelecer como
são possíveis esses imperativos. Em realidade, a dificuldade dele é
como estabelecer um querer necessário, isto é, um dever, de certos
fins, isto é, de imperativos apodíticos que ordenam fins necessários;
isso porque, no caso dos imperativos hipotéticos, dado o fim o qual
está sobre o arbítrio da vontade escolhê-los ou não, o que se seguem,
analiticamente, para uma vontade racional os meios, pois quem quer o
fim quer o meio.
O contrário, isto é, desejar o fim e não desejar os meios é uma
contradição da própria vontade, pois que um princípio objetivo não

346
Formação Humanística

valha subjetivamente. Contudo, a questão no caso dos imperativos


categóricos é fundamentalmente uma questão:

Como explicar um querer necessário de certos fins?

Aqui se trata, final e precisamente, daquela ligação do querer


aos fins da razão, isto é, daquela legalidade que promana da razão, ou
à forma desses fins para um ser racional finito, a saber, o imperativo
categórico.
Essa ligação não é imperativamente analítica, já que não se po-
de extrair do conceito da vontade de um ser racional finito qualquer
legislação.
Essa legislação estaria contida na vontade de um ser racional
em geral, porque, nesse caso ela seria perfeita. Como se sabe, a ideia
de ‘vontade santa’ esquematiza o conceito de uma vontade moral por
natureza.
Enfim, Kant se encontra frente a limites ontológicos para resol-
ver o problema deste compartilhar existencial entre os imperativos
categóricos e hipotéticos, na mesma medida em que confronta o obs-
táculo de fazer crer numa ética universalizante.
Sua perspectiva humanista não justifica as limitações que o seu
pensamento significativamente ignorou, uma vez que a sua ideia de
homem, tal como aquela de Rousseau ao qual ele muito admirava já é
em si mesma uma imposição analítica e obrigatória, determinada pela
sua própria historicidade.
O imperativo categórico, por mais boa vontade que carregue,
legitimando esta ética universalizante representa uma violência simbó-
lica no espaço da humanidade na medida em que não tem como reco-
nhecer a simples certeza de que a própria escolha desses imperativos
categóricos já é em si uma contradição essencial à sua existência uma

347
vez que busca enquadrar qualquer tipo de humanidade no seu centro
de significação.
Finalmente, percebida a ética como um conhecimento sobre um
conjunto de valores que constituem no espaço social a identidade de
axiomas de certo/errado, bem/mal, normal/anormal, é de se questionar
em que medida se pode ainda defender esse espaço maniqueísta de
ética em uma sociedade marcada pelo culto ao individualismo, a li-
quidez dos valores e dos conceitos, enfim, aos efeitos de tudo aquilo
que se convencionou conhecer pela expressão de pós-modernidade.
Segundo Stein, em arguta observação,
“Dentro dos meus limites, devo primeiro pensar o que é pós-
modernidade. Talvez se possa afirmar que a pós-modernidade se
define por contraste com a modernidade. Se a modernidade lutou
para encontrar uma normatividade, a pós-modernidade é a era da
desregulamentação. Se a modernidade procurava projeto e sentido
para o futuro, a pós-modernidade se entrega ao acaso e ao pre-
sente. Se a modernidade lutava por uma homogeneidade, a pós-
modernidade acontece no fluxo da dispersão e da heterogeneida-
de. Se a modernidade se caracteriza pela consolidação do político,
do espaço público, a pós-modernidade é a era da despolitização
dos nichos domésticos. Se a modernidade sonhou com uma uni-
dade no âmbito da cultura, da política, do saber, a pós-
modernidade é a época da desintegração, da multiculturalidade, do
recolhimento ao privado, é o tempo dos saberes. Se a modernida-
de se apoiava na ideologia como convocação para engajamento,
na pós-modernidade desaparece a ideologia. Se na modernidade o
tecido social era sustentado pelas instituições, na pós-
modernidade as instituições se tornam fluídas e o tecido social se
esgarça. Se a modernidade confia nas grandes instituições, a pós-
modernidade é móvel, nômade. Disso tudo se pode concluir que a
pós-modernidade procura a diferença, a miniaturização das ideias,
o descompromisso social, o tribalismo conivente, o presenteísmo
imediatista, o hedonismo do carpe diem, o normatismo das emo-
ções, o império da imagem e, como consequência, a onipresença

348
Formação Humanística

do corpo, para cultivo, para uso, para propaganda através da hi-


per-erotização de toda presença humana, a produção de uma pro-
ximidade que não comunica. Ao dizer tudo isto, faltam-me elemen-
tos de medida, padrões de juízo e nisso tudo talvez se engendre o
novo, o positivo, a ainda não claramente definida felicidade huma-
na.”

Este cenário, que não é apocalíptico, é o cenário da possibilida-


de da ética? Como se pode torná-la mais do que uma intenção mistifi-
cadora, uma condição do agir social, da práxis humana? Parece difícil
aceitar a sua existência fora de um campo meramente de expectativas
moralistas, deslocado e decolado com a realidade social.
Há uma condição permanente de perversão nas relações sociais,
uma banalização nas representações mais simplórias que dificultam a
construção de um agir ético na medida em que ocorre aquilo que Stein
destaca como uma “fadiga de ser si mesmo”, numa espiral antropofá-
gica na qual parece se constituir um lento e indefinido suicídio coleti-
vo e individual daquilo que se imaginou constituir como valores uni-
versais da civilização e da humanidade. Lasch, ao perceber a luta pela
mera sobrevivência dos sujeitos em uma era de globalização e perdi-
mento dos espaços do público e do privado afirmou que estes estão
lutando para alcançar
“sobrevivência psíquica em tempos de crise”.

Desta forma parece surrealista uma imposição por parte do sis-


tema de um determinado código de ética, por sinal, instrumento que
pulula em vários espaços da sociedade como a reconhecer que na
inexistência de um ser ético se faz necessária uma norma ética a qual
se deve seguir mais por medo, receio do que por querer ser por crença
de que esta faz parte de alguma essencialidade humana, mesmo que
tudo isto não deixe de ser, igualmente, uma construção discursiva de
alta capacidade ideológica.

349
Por óbvio que a discussão em torno do conceito de ética não é
recente, nem mesmo a possibilidade de sua condição presente entre e
nos sujeitos. Esta é uma discussão que se desenvolve há muito tempo,
conduzindo uma série de teóricos a contribuir com suas elucubrações.
Assim, que Martin Heidegger via no ‘fragmento 119’ atribuído
a Heráclito de Éfeso, o sentido originário do termo ‘ética’, o qual se
compreendia como um lugar onde o homem habita, sua morada, dife-
rente, portanto, da concepção axiomática de bem (agathon) socrático e
platônico que se deveria buscar num mundo ideal.
Heidegger, igualmente, buscava amparo, para tanto, na passa-
gem “Das Partes dos Animais”, de Aristóteles, na qual se conta uma
anedota em torno de Heráclito que teria dito a estrangeiros que temi-
am se aproximar de sua humilde casa: “pois aqui também moram os
deuses”.
Deste modo, de acordo com o significado fundamental da pala-
vra ethos, Ética diz respeito ao que medita a habitação do homem,
quer dizer, aquele pensar que pensa a verdade do ser como o elemento
primordial do homem enquanto alguém que existe em si e num outro,
o que já é em si a condição da Ética originária. Contudo, a compreen-
são de Heidegger percebe que não se trata apenas da Ética, mas i-
gualmente de uma condição de ontologia. Pois ele compreende que é
na ontologia que pensa sempre apenas o ente (on) em seu ser.
Portanto, a percepção de Heidegger nessa busca ética por um
conhecimento próprio como uma investigação ontológica era, assim
também, uma busca pela essência do ser. A partir desta constatação,
um sentido originário de ética estaria reduzido a um domínio da meta-
física em que se teria de comprometer com aquelas verdades absolutas
e tão difíceis de sustentar, tais como as pretensões de uma ética tradi-
cional apoiada numa revelação divina e onipresente.
Contudo, se ao sujeito falível da era contemporânea está veda-
do o acesso ao verdadeiro conhecimento das essências e a crença em
Deus e mesmo na ciência que não passa de uma crença entre outras a
ser privilegiada, então uma ética centrada no sujeito precisa abrir mão

350
Formação Humanística

de pretensões tão elevadas e tentar explicar como, do ponto de vista


subjetivo, é possível sustentar concepções éticas, válidas objetivamen-
te, sem passar por um consenso intersubjetivo.
Retornando a Aristóteles, este argumentou por uma interpreta-
ção do ethos não como uma morada, mas sim como um hábito (que os
latinos conhecerão por Morus) ou prática que os sujeitos deveriam
optar a fim de realizar os “atos nobres”, uma vez que o conhecimento
da virtude não seria suficiente para que o homem comum exercesse a
função de um ser racional, nobre e virtuoso.
Entretanto, Aristóteles acabou tendo que enfrentar o mesmo
problema de Kant mais tarde, como fazer com que seres racionais e
sensíveis fossem capazes de ou contemplar a verdade, eudaimonia, ou
de agir segundo o dever racional. Ambos pensavam que as inclinações
sensíveis limitavam a motivação racional pela ética e quanto a isso
não tinham solução que resolvesse, no âmbito da subjetividade.
Até por que o dever racional se apresentava como regra nas
condições do espaço social e, nessa medida, se impunha as inclinações
sensíveis da própria virtude enquanto justo meio da ação humana.
Destacou Kant que,
“Para que um ser, ao mesmo tempo racional e afetado pelos senti-
dos, queira aquilo que só a razão lhe prescreve como dever, é pre-
ciso sem dúvida uma faculdade da razão que inspire um sentimen-
to de prazer ou de satisfação no cumprimento do dever, e, por
conseguinte, que haja uma causalidade da razão que determine a
sensibilidade conforme aos seus princípios. Mas é totalmente im-
possível compreender, isto é, tornar concebível a priori, como é
que um simples pensamento, que não contém em si nada de sen-
sível, pode produzir uma sensação de prazer ou de dor; pois isto é
uma espécie particular de causalidade, da qual, como de toda cau-
salidade, absolutamente nada podemos determinar a priori, mas a
respeito da qual temos de consultar a experiência”.

351
Como última reflexão geral sobre o conceito de ética se destaca
o tema da relação desta com a sociedade e o indivíduo, pois não se
pode manter a tradicional visão de que o sujeito da ética é um “deus
onisciente e transcendental à realidade”.
A ética acontece nos sujeitos, estes mesmos sujeitos que como
todos nós acabamos por se encontrar implicados em uma mundanida-
de política, econômica, profissional etc. A ética é uma resposta, pura e
simplesmente sobre aquilo que se pretende atribuir algum sentido,
quer dizer, dirigir nas várias dimensões da própria existência, na
mesma medida em que ela é algo que se quer compensar a partir do
reconhecimento de muitas insuficiências e dissabores na existência
que a condição de existir permite (re)conhecimento por parte dos su-
jeitos.
Desta feita ela acontece tanto no sujeito, quanto no espaço soci-
al, já que ambos são espaços consumidores dela. Na mesma medida
em que consomem o seu arrazoado conceitual, elaboram novos senti-
dos a partir de sua condição ontológica, sem que isso signifique uma
capacidade de resposta e definição completas. Diz Eusébio Fernandez
que,
“A moral é originária e materialmente social, mas é fundamen-
talmente pessoal ou autônoma.”

Isso significa que a ética/moral é um elemento originaria e es-


sencialmente social, isto é, os elementos que a constituem, abstrata e
pragmaticamente, se nutrem do discurso em torno da ética/moral do
espaço social, na medida em que os seus valores se nutrem dos valores
e normas socioculturais. Contudo, não menos importante é o fato de
que a ética/moral é social na medida em que grande parte dos seus
valores e institutos e axiomas estão dirigidos, fundamentalmente, aos
comportamentos dos indivíduos presentes na sociedade, o que com-
prova o fato de que possui uma duplicidade social já que acontece na
sociedade e nos sujeitos ao mesmo tempo.

352
Formação Humanística

5.2 Do Código de Ética da Magistratura - observações gerais


O código de ética da Magistratura, por inspiração do Conselho
Nacional de Justiça, veio a ser aprovado em 06 de agosto de 2008, na
68º Sessão ordinária. Sua razão de ser está não somente numa preocu-
pação quanto a atos desabonadores dos magistrados que por ventura
venham a ferir a probidade administrativa, mas antes permitir uma
aproximação de essência principiológica dos valores éticos da Consti-
tuição com essa importante função pública.
O que se quis com tal código foi se buscar mais um norte para a
atuação do juízo do que uma imposição de atitudes, valores por parte
dos mesmos. A percepção da ética se faz no próprio sujeito, não po-
dendo se criar mecanismos exógenos para a sua imposição. Quer dizer
que mesmo codificada, a ética é um valor que ocorre no sujeito, claro
que a partir, fundamentalmente, do espaço ao qual ele está inserido,
mas, igualmente, ela é resultante de todas aquelas pulsões e opções
individuais que cada indivíduo realiza ao longo de sua experimentação
no espaço social.
Quanto à legitimidade do Conselho Nacional de Justiça (CNJ),
apesar de alguns senões, o próprio constituinte derivado concedeu ao
CNJ atribuições significativas tais como as de reconhecer reclamações
contra os membros ou mesmo órgãos do Poder Judiciário (conforme
previstos no artigo 92, CF/88), incluindo-se aí, igualmente, todos a-
queles serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços
notariais e de registro que atuem por delegação do próprio Poder Pú-
blico ou mesmo oficializados.
Ainda, o Código de Ética se junta a LOMAN (Lei Orgânica da
Magistratura Nacional) que editada em 1977, naquilo que se reconhe-
ceu pelo nome de “Pacote de Abril”, era representativa de uma ordem
constitucionalmente revogada com a promulgação e publicação da
nova Constituição de 1988. O código traz, assim, princípios que se
adéquam ao novo estado de coisas pós-1988, arejando e modernizando
a própria LOMAN.

353
Assim, o Código de Ética apresenta os seguintes eixos funda-
mentais:
a) Independência;

b) Imparcialidade;

c) Transparência;

d) Integridade Pessoal e Profissional;

e) Diligência e Dedicação;

f) Cortesia;

g) Prudência;

h) Sigilo Profissional;

i) Conhecimento e Capacitação;

j) Dignidade, a Honra e o Decoro.

O primeiro eixo do código de ética diz respeito ao princípio da


independência, que está disposto ao longo dos seus artigos 04º a 07º.
Este princípio é capital ao magistrado, uma vez que este, apesar
de servidor público, não pode ter a sua capacidade de atuação deter-
minada por pressões ou interesses políticos e econômicos.
O livre convencimento do julgador não significa buscar com a
decisão tomada ser simpático e agradável a todos os envolvidos. Uma
decisão é sempre uma forma de ler e compreender um fato submetido
ao espaço do dever-ser. Enquanto decisão a sua capacidade de agrada-
bilidade é determinado pelos interesses que estão em disputa no litígio
que obrigou à participação do Estado-juiz.
O clamor público, os juízos de valores publicizados, ainda que
com capacidade de sedução não podem ser os únicos a conduzir o
juízo independente sobre o fato. O juiz é um sujeito social antes de ser

354
Formação Humanística

agente do Estado e neste ponto de tensão é que a independência de sua


compreensão deverá ocorrer.

O princípio da Imparcialidade está colocado nos artigos 8º e 9º


e é tão vital quanto o primeiro, em verdade, não há de se falar em uma
hierarquia vertical entre princípios presentes no código de ética.
A imparcialidade é um mito que tem suas raízes na emergência
do pensamento jurídico ao longo do século XIX bem como no início
do século XX. No primeiro período o fator determinante para a consti-
tuição desse mito veio a ser a resposta que se pretendia constituir ao
marxismo que identificava no Direito, na ideia de justiça e nos tribu-
nais os instrumentos de controle, dominação e discriminação social,
típico de uma sociedade capitalista.
As teses de Marx exigiram por parte daqueles que não concor-
daram com elas uma resposta que permitisse reagir, bem como recons-
truir no espaço social a ideologia liberal burguesa. Neste sentido, o
Direito e os seus ‘operadores’ se constituíam em institutos fundamen-
tais para a estabilidade do sistema capitalista.
A ideia de uma condição técnica, científica, racional associada
à figura do magistrado era condição sem a qual o sistema como um
todo não teria como se sustentar, uma vez que o campo jurídico sem-
pre representou um campo de conflito controlado e necessariamente
ajustável, na medida em que por não deixar de reconhecer a existência
das disputas, das desigualdades e dos conflitos entre os sujeitos, ao
mesmo tempo oferece uma possibilidade razoável de solução, porém
esta passa pela condição do agir do juiz.
Esta ação do juiz é essencial na medida em que precisa
(re)conciliar conflitos potenciais que desafiam a Morus do grupo, bem
assim a própria monopolização do Estado como ente que capaz de
solver a disputa, ainda que nunca em sua totalidade, naquilo que é
possível e pertinente.

355
Diz Pierre Bourdieu que “o auctor, mesmo quando só diz com
autoridade aquilo que é, mesmo quando se limita a enunciar o ser,
produz uma mudança no ser: ao dizer as coisas com autoridade, quer
dizer, à vista de todos e em nome de todos, publicamente e oficialmen-
te, ele subtrai-as ao arbitrário, sanciona-as, santifica-as, consagra-
as, fazendo-as existir como dignas de existir, como conformes à natu-
reza das coisas, ‘naturais’”.
O magistrado se faz autor, na medida em que ao recontar o con-
to da vida, o fato levado ao seu juízo tem a autoridade e a qualidade de
sagrar a vida para os próprios agentes da vida através do discurso
jurídico.
A imparcialidade é estratégia definitiva para esta capacidade de
tornar a sentença uma condição de imposição sobre a leitura do fato,
na medida em que ela carrega uma força simbólica “das partes envol-
vidas nesta luta que nunca é completamente independente da sua
posição no jogo [conflito], mesmo que o poder propriamente simbó-
lico da nomeação constitua uma força relativamente autônoma pe-
rante as outras formas de força social”. (grifei)
Portanto, não se quer afirmar que a imparcialidade é o não en-
volvimento, a não identificação com os conceitos de um ou outro
discurso a partir do próprio preconceito que o magistrado carrega em
si, mas uma qualidade de legitimação, uma condição de crença de que
o juiz, pela sua condição, pela posição que ocupa no campo jurídico
precisa conservar e reproduzir para continuar a ser o representante do
Estado frente à sociedade.

O princípio da transparência está disposto ao longo dos artigos


10º a 14º. A transparência é um princípio fiador da legitimidade do
magistrado, na medida em que ela (com)prova a condição de que seu
agir não seja regido por mistérios que coloquem em dúvida a natureza
mesma do seu agir enquanto representante do Estado.

356
Formação Humanística

A transparência diz respeito a publicidade dos atos, dos funda-


mentos e da própria condição do observador privilegiado ao qual o
juízo se apresenta para a própria sociedade, a qual atua com expectati-
va e como consciência, nem sempre racional, mas muito mais emo-
cional daquilo que ocorre ao longo do procedimento judicial.

O princípio da Integridade Pessoal e Profissional que está


presente ao longo dos artigos 15º a 19º, é um juízo de valor que se
espera de todo e qualquer servidor público, mormente o magistrado.
Diz respeito à ideia de idoneidade ao qual o magistrado impõe a
todos os seus atos, uma vez que ele é mais do que um representante do
Estado, é, também, como quer Gramsci um intelectual orgânico res-
ponsável por produzir, transmitir e constituir valores, conceitos ao
longo de todo o espaço social. Mesmo num espaço de resistência co-
mo o espaço privado, a função pública o acompanha na medida em
que a sua legitimidade enquanto agente do Estado não se interrompe,
nem se suspende ao final do expediente. A magistratura é um múnus
público ao qual se exige a responsabilidade de representar alguns dos
mais importantes elementos do ideário social.

Os princípios da diligência e da dedicação, da Cortesia e da


Prudência, bem como o da Honra, Dignidade e Decoro que estão
arrolados o primeiro nos artigos 20 e 21, o segundo nos artigo 22 e 23,
o terceiro nos artigos 23 a 26 e o último nos artigos 37 a 39, represen-
tam uma natural condição de qualquer servidor público responsável
em conduzir a probidade administrativa, neste caso, como principal
operador do Direito.
A ação jurídica é uma ação de alteridade, na medida em que ela
somente tem existência numa relação social. Desta forma a maior ou
menor capacidade de sedução do operador está na sua maior ou menor
legitimação que é alcançada não pelo valor do cargo em si, mas pelo

357
que o agente, o sujeito do cargo alcança no grupo social em que está
inserido.
Desta forma, por exemplo, o agir prudente é mais do que uma
agir de ‘virtude que faz prever e procura evitar as inconveniências e
os perigos; cautela, precaução’, é uma estratégia discursiva de legiti-
mação, uma manifestação mais ou menos eficiente de um agir simbó-
lico que permite que à qualidade do sujeito (juiz) alcance a sua ação
(sentença) no espaço social.

O princípio do sigilo profissional que somente pode ser que-


brado no limite em que a própria Lei autoriza a sua quebra, diz respei-
to ao próprio poder político do magistrado, uma vez que ele não trans-
forma o drama humano em notícia, em fato publico a não ser naquelas
condições permitidas oficialmente. O sigilo aqui não se confunde com
a falta de fundamentação na decisão, que é sempre uma exposição
pública, mas como meio para que não se impute desde sempre a reve-
lação do pré-conceito do juiz, na medida em que a sua decisão se man-
tém nos limites do razoável, do verossímil e do proporcional.

Finalmente, o princípio do Conhecimento e da Capacitação se


faz exigência prevista na própria Constituição Federal, já que ungido
pelo poder de jurisdição o magistrado não pode se encastelar em um
saber atemporal e distante de novas tendências, doutrinas que permi-
tem uma melhor compreensão sobre o próprio fato social. Esta capaci-
tação está ao encontro de realizar o discurso do magistrado com o
discurso do sujeito, ainda que com todas as dificuldades possíveis e
óbvias, é a condição para que o direito oficial não se mantenha tão
distante do cenário humano.

358
Formação Humanística

5.3 Do Código de Ética da Magistratura

O CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, no exercício da competência que


lhe atribuíram a Constituição Federal (art. 103-B, § 4º, I e II), a Lei Orgâ-
nica da Magistratura Nacional (art. 60 da LC nº 35/79) e seu Regimento
Interno (art. 19, incisos I e II);
Considerando que a adoção de Código de Ética da Magistratura é ins-
trumento essencial para os juízes incrementarem a confiança da socie-
dade em sua autoridade moral;
Considerando que o Código de Ética da Magistratura traduz compromis-
so institucional com a excelência na prestação do serviço público de
distribuir Justiça e, assim, mecanismo para fortalecer a legitimidade do
Poder Judiciário;
Considerando que é fundamental para a magistratura brasileira cultivar
princípios éticos, pois lhe cabe também função educativa e exemplar de
cidadania em face dos demais grupos sociais;
Considerando que a Lei veda ao magistrado "procedimento incompatível
com a dignidade, a honra e o decoro de suas funções" e comete-lhe o
dever de "manter conduta irrepreensível na vida pública e particular" (LC
nº 35/79, arts. 35, inciso VIII, e 56, inciso II); e
Considerando a necessidade de minudenciar os princípios erigidos nas
aludidas normas jurídicas;
RESOLVE aprovar e editar o presente CÓDIGO DE ÉTICA DA MAGISTRA-
TURA NACIONAL, exortando todos os juízes brasileiros à sua fiel obser-
vância.

CAPÍTULO I
DISPOSIÇÕES GERAIS
Art. 1º. O exercício da magistratura exige conduta compatível com os
preceitos deste Código e do Estatuto da Magistratura, norteando-se

359
pelos princípios da independência, da imparcialidade, do conhecimento
e capacitação, da cortesia, da transparência, do segredo profissional, da
prudência, da diligência, da integridade profissional e pessoal, da digni-
dade, da honra e do decoro.
Art. 2º Ao magistrado impõe-se primar pelo respeito à Constituição da
República e às leis do País, buscando o fortalecimento das instituições e
a plena realização dos valores democráticos.
Art. 3º A atividade judicial deve desenvolver-se de modo a garantir e
fomentar a dignidade da pessoa humana, objetivando assegurar e pro-
mover a solidariedade e a justiça na relação entre as pessoas.

CAPÍTULO II
INDEPENDÊNCIA
Art. 4º Exige-se do magistrado que seja eticamente independente e que
não interfira, de qualquer modo, na atuação jurisdicional de outro cole-
ga, exceto em respeito às normas legais.
Art. 5º Impõe-se ao magistrado pautar-se no desempenho de suas ativi-
dades sem receber indevidas influências externas e estranhas à justa
convicção que deve formar para a solução dos casos que lhe sejam sub-
metidos.
Art. 6º É dever do magistrado denunciar qualquer interferência que vise
a limitar sua independência.
Art. 7º A independência judicial implica que ao magistrado é vedado
participar de atividade político-partidária.

CAPÍTULO III
IMPARCIALIDADE
Art. 8º O magistrado imparcial é aquele que busca nas provas a verdade
dos fatos, com objetividade e fundamento, mantendo ao longo de todo
o processo uma distância equivalente das partes, e evita todo o tipo de

360
Formação Humanística

comportamento que possa refletir favoritismo, predisposição ou precon-


ceito.
Art. 9º Ao magistrado, no desempenho de sua atividade, cumpre dispen-
sar às partes igualdade de tratamento, vedada qualquer espécie de in-
justificada discriminação.
Parágrafo único. Não se considera tratamento discriminatório injustifica-
do:
I - a audiência concedida a apenas uma das partes ou seu advogado,
contanto que se assegure igual direito à parte contrária, caso seja solici-
tado;
II - o tratamento diferenciado resultante de lei.

CAPÍTULO IV
TRANSPARÊNCIA
Art. 10. A atuação do magistrado deve ser transparente, documentando-
se seus atos, sempre que possível, mesmo quando não legalmente pre-
visto, de modo a favorecer sua publicidade, exceto nos casos de sigilo
contemplado em lei.
Art. 11. O magistrado, obedecido o segredo de justiça, tem o dever de
informar ou mandar informar aos interessados acerca dos processos sob
sua responsabilidade, de forma útil, compreensível e clara.
Art. 12. Cumpre ao magistrado, na sua relação com os meios de comuni-
cação social, comportar-se de forma prudente e eqüitativa, e cuidar
especialmente:
I - para que não sejam prejudicados direitos e interesses legítimos de
partes e seus procuradores;
II - de abster-se de emitir opinião sobre processo pendente de julgamen-
to, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos,
sentenças ou acórdãos, de órgãos judiciais, ressalvadas a crítica nos
autos, doutrinária ou no exercício do magistério.

361
Art. 13. O magistrado deve evitar comportamentos que impliquem a
busca injustificada e desmesurada por reconhecimento social, mormente
a autopromoção em publicação de qualquer natureza.
Art. 14. Cumpre ao magistrado ostentar conduta positiva e de colabora-
ção para com os órgãos de controle e de aferição de seu desempenho
profissional.

CAPÍTULO V
INTEGRIDADE PESSOAL E PROFISSIONAL
Art. 15. A integridade de conduta do magistrado fora do âmbito estrito
da atividade jurisdicional contribui para uma fundada confiança dos
cidadãos na judicatura.
Art. 16. O magistrado deve comportar-se na vida privada de modo a
dignificar a função, cônscio de que o exercício da atividade jurisdicional
impõe restrições e exigências pessoais distintas das acometidas aos ci-
dadãos em geral.
Art. 17. É dever do magistrado recusar benefícios ou vantagens de ente
público, de empresa privada ou de pessoa física que possam comprome-
ter sua independência funcional.
Art. 18. Ao magistrado é vedado usar para fins privados, sem autoriza-
ção, os bens públicos ou os meios disponibilizados para o exercício de
suas funções.
Art. 19. Cumpre ao magistrado adotar as medidas necessárias para evitar
que possa surgir qualquer dúvida razoável sobre a legitimidade de suas
receitas e de sua situação econômico-patrimonial.

362
Formação Humanística

CAPÍTULO VI
DILIGÊNCIA E DEDICAÇÃO
Art. 20. Cumpre ao magistrado velar para que os atos processuais se
celebrem com a máxima pontualidade e para que os processos a seu
cargo sejam solucionados em um prazo razoável, reprimindo toda e
qualquer iniciativa dilatória ou atentatória à boa-fé processual.
Art. 21. O magistrado não deve assumir encargos ou contrair obrigações
que perturbem ou impeçam o cumprimento apropriado de suas funções
específicas, ressalvadas as acumulações permitidas constitucionalmente.
§ 1º O magistrado que acumular, de conformidade com a Constituição
Federal, o exercício da judicatura com o magistério deve sempre priori-
zar a atividade judicial, dispensando-lhe efetiva disponibilidade e dedica-
ção.
§ 2º O magistrado, no exercício do magistério, deve observar conduta
adequada à sua condição de juiz, tendo em vista que, aos olhos de alu-
nos e da sociedade, o magistério e a magistratura são indissociáveis, e
faltas éticas na área do ensino refletirão necessariamente no respeito à
função judicial.

CAPÍTULO VII
CORTESIA
Art. 22. O magistrado tem o dever de cortesia para com os colegas, os
membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as partes,
as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da
Justiça.
Parágrafo único. Impõe-se ao magistrado a utilização de linguagem es-
correita, polida, respeitosa e compreensível.
Art. 23. A atividade disciplinar, de correição e de fiscalização serão exer-
cidas sem infringência ao devido respeito e consideração pelos correi-
cionados.

363
CAPÍTULO VIII
PRUDÊNCIA
Art. 24. O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e
decisões que sejam o resultado de juízo justificado racionalmente, após
haver meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos disponí-
veis, à luz do Direito aplicável.
Art. 25. Especialmente ao proferir decisões, incumbe ao magistrado
atuar de forma cautelosa, atento às consequências que pode provocar.
Art. 26. O magistrado deve manter atitude aberta e paciente para rece-
ber argumentos ou críticas lançados de forma cortês e respeitosa, po-
dendo confirmar ou retificar posições anteriormente assumidas nos
processos em que atua.
CAPÍTULO IX
SIGILO PROFISSIONAL
Art. 27. O magistrado tem o dever de guardar absoluta reserva, na vida
pública e privada, sobre dados ou fatos pessoais de que haja tomado
conhecimento no exercício de sua atividade.
Art. 28. Aos juízes integrantes de órgãos colegiados impõe-se preservar o
sigilo de votos que ainda não hajam sido proferidos e daqueles de cujo
teor tomem conhecimento, eventualmente, antes do julgamento.

CAPÍTULO X
CONHECIMENTO E CAPACITAÇÃO
Art. 29. A exigência de conhecimento e de capacitação permanente dos
magistrados tem como fundamento o direito dos jurisdicionados e da
sociedade em geral à obtenção de um serviço de qualidade na adminis-
tração de Justiça.

364
Formação Humanística

Art. 30. O magistrado bem formado é o que conhece o Direito vigente e


desenvolveu as capacidades técnicas e as atitudes éticas adequadas para
aplicá-lo corretamente.
Art. 31. A obrigação de formação contínua dos magistrados estende-se
tanto às matérias especificamente jurídicas quanto no que se refere aos
conhecimentos e técnicas que possam favorecer o melhor cumprimento
das funções judiciais.
Art. 32. O conhecimento e a capacitação dos magistrados adquirem uma
intensidade especial no que se relacionam com as matérias, as técnicas e
as atitudes que levem à máxima proteção dos direitos humanos e ao
desenvolvimento dos valores constitucionais.
Art. 33. O magistrado deve facilitar e promover, na medida do possível, a
formação dos outros membros do órgão judicial.
Art. 34. O magistrado deve manter uma atitude de colaboração ativa em
todas as atividades que conduzem à formação judicial.
Art. 35. O magistrado deve esforçar-se para contribuir com os seus co-
nhecimentos teóricos e práticos ao melhor desenvolvimento do Direito e
à administração da Justiça.
Art. 36. É dever do magistrado atuar no sentido de que a instituição de
que faz parte ofereça os meios para que sua formação seja permanente.

CAPÍTULO XI
DIGNIDADE, HONRA E DECORO
Art. 37. Ao magistrado é vedado procedimento incompatível com a dig-
nidade, a honra e o decoro de suas funções.
Art. 38. O magistrado não deve exercer atividade empresarial, exceto na
condição de acionista ou cotista e desde que não exerça o controle ou
gerência.

365
Art. 39. É atentatório à dignidade do cargo qualquer ato ou comporta-
mento do magistrado, no exercício profissional, que implique discrimina-
ção injusta ou arbitrária de qualquer pessoa ou instituição.

CAPÍTULO XII
DISPOSIÇÕES FINAIS
Art. 40. Os preceitos do presente Código complementam os deveres
funcionais dos juízes que emanam da Constituição Federal, do Estatuto
da Magistratura e das demais disposições legais.
Art. 41. Os Tribunais brasileiros, por ocasião da posse de todo Juiz, en-
tregar-lhe-ão um exemplar do Código de Ética da Magistratura Nacional,
para fiel observância durante todo o tempo de exercício da judicatura.
Art. 42. Este Código entra em vigor, em todo o território nacional, na
data de sua publicação, cabendo ao Conselho Nacional de Justiça pro-
mover-lhe ampla divulgação.

5.4 ANEXO 1 - Lei Orgânica da Magistratura Nacional

DISPÕE SOBRE A LEI ORGÂNICA DA MAGISTRATURA NACIONAL.


O PRESIDENTE DA REPÚBLICA: Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu
sanciono a seguinte Lei Complementar:

TÍTULO I
Do Poder Judiciário
CAPÍTULO I
Dos Órgãos do Poder Judiciário
Art. 1º - O Poder Judiciário é exercido pelos seguintes órgãos:
I - Supremo Tribunal Federal;

366
Formação Humanística

II - Conselho Nacional da Magistratura;


III - Tribunal Federal de Recursos e Juízes Federais;
IV - Tribunais e Juízes Militares;
V - Tribunais e Juízes Eleitorais;
VI - Tribunais e Juízos do Trabalho;
VII - Tribunais e Juízes Estaduais;
VIII - Tribunal e Juízes do Distrito Federal e dos Territórios.
Art. 2º - O Supremo Tribunal Federal, com sede na Capital da
União e jurisdição em todo o território nacional, compõem-se de
onze Ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República,
depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, dentre cida-
dãos maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e
reputação ilibada.
Art. 3º - O Conselho Nacional da Magistratura, com sede na Capi-
tal da União e jurisdição em todo o território nacional, compõe-se
de sete Ministros do Supremo Tribunal Federal, por estes escolhi-
dos, mediante votação nominal para um período de dois anos,
inadmitida a recusa do encargo.
§ 1º - A eleição far-se-á juntamente com a do Presidente e Vice-
Presidente do Supremo Tribunal Federal, os quais passam a inte-
grar, automaticamente, o Conselho, nele exercendo as funções de
Presidente e Vice-Presidente, respectivamente.
§ 2º - Os Ministros não eleitos poderão ser convocados pelo Pre-
sidente, observada a ordem decrescente de antigüidade, para
substituir os membros do Conselho, nos casos de impedimento ou
afastamento temporário.
§ 3º - Junto ao Conselho funcionará o Procurador-Geral da Repú-
blica.

367
Art. 4º - O Tribunal Federal de Recursos, com sede na Capital da
União e jurisdição em todo o território nacional, compõe-se de
vinte e sete Ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da Re-
pública, após aprovada a escolha pelo Senado Federal, salvo
quanto à dos Juízes Federais, sendo quinze dentre Juízes Fede-
rais, indicados em lista tríplice pelo próprio Tribunal; quatro dentre
membros do Ministério Público Federal; quatro dentre advogados
maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e de repu-
tação ilibada; e quatro dentre magistrados ou membros do Ministé-
rio Público dos Estados e do Distrito Federal.
Art. 5º - Os Juízes Federais serão nomeados pelo Presidente da
República, escolhidos, sempre que possível, em lista tríplice, or-
ganizada pelo Tribunal Federal de Recursos, dentre os candidatos
com idade superior a vinte e cinco anos, de reconhecida idoneida-
de moral, aprovados em concurso público de provas e títulos, além
da satisfação de outros requisitos especificados em lei.
§ 1º - Cada Estado, bem como o Distrito Federal, constitui uma
Seção Judiciária, que tem por sede a respectiva Capital, e Varas
localizadas segundo o estabelecido em lei.
§ 2º - Nos Territórios do Amapá, Roraima e Rondônia, a jurisdição
e as atribuições cometidas aos Juízes Federais caberão aos juízes
da Justiça local, na forma que a lei dispuser. O Território de Fer-
nando de Noronha está compreendido na Seção Judiciária do
Estado de Pernambuco.
Art. 6º - O Superior Tribunal Militar, com sede na Capital da União
e jurisdição em todo o território nacional, compõe-se de quinze
Ministros vitalícios, nomeados pelo Presidente da República, de-
pois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, sendo três den-
tre Oficiais-Generais da Marinha, quatro dentre Oficiais-Generais
do Exército e três dentre Oficiais-Generais da Aeronáutica, todos
da ativa, e cinco dentre civis, maiores de trinta e cinco anos, dos
quais três cidadãos de notório saber jurídico e idoneidade moral,

368
Formação Humanística

com mais de dez anos de pratica forense, e dois Juízes Auditores


ou membros do Ministério Público da Justiça Militar, de comprova-
do saber jurídico.
Art. 7º - São órgãos da Justiça Militar da União, além do Superior
Tribunal Militar, os Juízes Auditores e os Conselhos de Justiça,
cujos número, organização e competência são definidos em lei.
Art. 8º - O Tribunal Superior Eleitoral, com sede na Capital da Uni-
ão e jurisdição em todo o território nacional, é composto de sete
Juízes, dos quais três Ministros do Supremo Tribunal Federal e
dois Ministros do Tribunal Federal de Recursos, escolhidos pelo
respectivo Tribunal, mediante eleição, pelo voto secreto, e dois
nomeados pelo Presidente da República, dentre seis advogados
de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo Su-
premo Tribunal Federal.
Art. 9º - Os Tribunais Regionais Eleitorais, com sede na Capital do
Estado em que tenham jurisdição e no Distrito Federal, compõe-se
de quatro Juízes eleitos, pelo voto secreto, pelo respectivo Tribu-
nal de Justiça, sendo dois dentre Desembargadores e dois dentre
Juízes de Direito; um Juiz Federal, escolhido pelo Tribunal Federal
de Recursos, e na Seção Judiciária houver mais de um, e, por
nomeação do Presidente da República, de dois dentre seis cida-
dãos de notável saber jurídico e idoneidade moral, indicados pelo
Tribunal de Justiça.
Art. 10 - Os Juízes do Tribunal Superior Eleitoral e dos Tribunais
Regionais Eleitorais, bem como os respectivos substitutos, esco-
lhidos na mesma ocasião e por igual processo, salvo motivo justifi-
cado, servirão, obrigatoriamente, por dois anos, no mínimo, e nun-
ca por mais de dois biênios consecutivos.
Art. 11 - Os Juízes de Direito exercem as funções de juízes eleito-
rais, nos termos da lei.

369
§ 1º - A lei pode outorgar a outros Juízes competência para fun-
ções não decisórias.
§ 2º - Para a apuração de eleições, constituir-se-ão Juntas Eleito-
rais, presididas por Juízes de Direito, e cujos membros, indicados
conforme dispuser a legislação eleitoral, serão aprovados pelo
Tribunal Regional Eleitoral e nomeados pelo seu Presidente.
Art. 12 - O Tribunal Superior do Trabalho, com sede na Capital da
União e jurisdição em todo o território nacional, compõe-se de
dezessete Ministros, nomeados pelo Presidente da República,
onze dos quais, togados e vitalícios, depois de aprovada a escolha
pelo Senado Federal, sendo sete dentre magistrados da Justiça do
Trabalho, dois dentre advogados no exercício efetivo da profissão,
e dois dentre membros do Ministério Público da Justiça do Traba-
lho, maiores de trinta e cinco anos, de notável saber jurídico e
reputação ilibada, e seis classistas e temporários, em representa-
ção paritária dos empregadores e dos trabalhadores, de conformi-
dade com a lei, e vedada a recondução por mais de dois períodos
de três anos.
Art. 13 - Os Tribunais Regionais do Trabalho, com sede, jurisdição
e número definidos em lei, compõe-se de dois terços de Juízes
togados e vitalícios e um terço de Juízes classistas e temporários,
todos nomeados pelo Presidente da República, observada, quanto
aos Juízes togados, a proporcionalidade fixada no art. 12 relativa-
mente aos Juízes de carreira, advogados e membros do Ministério
Público da Justiça do Trabalho e, em relação aos Juízes classis-
tas, a proibição constante da parte final do artigo anterior.
Art. 14 - As Juntas de Conciliação e Julgamento têm a sede, a
jurisdição e a composição definidas em lei, assegurada a paridade
de representação entre empregadores e trabalhadores, inadmitida
a recondução dos representantes classistas por mais de dois perí-
odos de três anos.

370
Formação Humanística

§ 1º - Nas Comarcas onde não for instituída Junta de Conciliação


e Julgamento, poderá a lei atribuir as suas funções aos Juízes de
Direito.
§ 2º - Poderão ser criados por lei outros órgãos da Justiça do Tra-
balho.
Art. 15 - Os órgãos do Poder Judiciário da União (art. 1º, incisos I
a VI) têm a organização e a competência definidas na Constitui-
ção, na lei e, quanto aos Tribunais, ainda, no respectivo Regimen-
to Interno.
Art. 16 - Os Tribunais de Justiça dos Estados, com sede nas res-
pectivas Capitais e jurisdição no território estadual, e os Tribunais
de Alçada, onde forem criados, têm a composição, a organização
e a competência estabelecidos na Constituição, nesta Lei, na le-
gislação estadual e nos seus Regimentos Internos.
Parágrafo único - Nos Tribunais de Justiça com mais de vinte e
cinco Desembargadores, será constituído órgão especial, com o
mínimo de onze e o máximo de vinte e cinco membros, para o
exercício das atribuições administravas e jurisdicionais, da compe-
tência do Tribunal Pleno, bem como para uniformização da juris-
prudência no caso de divergência entre suas Seções.
Art. 17 - Os Juízes de Direito, onde não houver Juízes substitutos,
e estes, onde os houver, serão nomeados mediante concurso
público de provas e títulos.
§ 1º - (Vetado.)
§ 2º - Antes de decorrido o biênio do estágio, e desde que seja
apresentada proposta do Tribunal ao Chefe do Poder Executivo,
para o ato de exoneração, o Juiz substituto ficará automaticamen-
te afastado de suas funções e perderá o direito à vitaliciedade,
ainda que o ato de exoneração seja assinado após o decurso da-
quele período.

371
§ 3º - Os Juízes de Direito e os Juízes substitutos têm a sede, a
jurisdição e a competência fixadas em lei.
§ 4º - Poderão os Estados instituir, mediante proposta do respecti-
vo Tribunal de Justiça, ou órgão especial, Juízes togados, com
investidura limitada no tempo e competência para o julgamento de
causas de pequeno valor e crimes a que não seja cominada pena
de reclusão, bem como para a substituição dos Juízes vitalícios.
§ 5º - Podem, ainda, os Estados criar Justiça de Paz temporária,
compete para o processo de habilitação e celebração de casa-
mento.
Art. 18 - São órgãos da Justiça Militar estadual os Tribunais de
Justiça e os Conselhos de Justiça, cujas composição, organização
e competência são definidos na Constituição e na lei.
Parágrafo único - Nos Estados de Minas, Paraná, Rio Grande do
Sul e São Paulo, a segunda instância da Justiça Militar estadual é
constituída rolo respectivo Tribunal Militar, integrado por oficiais do
mais alto posto da Polícia Militar e por civis, sempre em número
ímpar, excedendo os primeiros aos segundos em uma unidade.
Art. 19 - O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios,
com sede na Capital da União, tem a composição, a organização e
a competência estabelecidas em lei.
Art. 20 - Os Juízes de Direito e os Juízes substitutos da Justiça do
Distrito Federal e dos Territórios, vitalícios após dois anos de e-
xercício, investido mediante concurso público de provas e títulos, e
os Juízes togados temporários, todos nomeados pelo Presidente
da República, têm a sede, a jurisdição e a competência prescritas
em lei.
CAPÍTULO II
Dos Tribunais
Art. 21 - Compete aos Tribunais, privativamente:

372
Formação Humanística

I - eleger seus Presidentes e demais titulares de sua direção, ob-


servado o disposto na presente Lei;
II - organizar seus serviços auxiliares, os provendo-lhes os cargos,
na forma da lei; propor ao Poder Legislativo a criação ou a extin-
ção de cargos e a fixação dos respectivos vencimentos;
III - elaborar seus regimentos internos e neles estabelecer, obser-
vada esta Lei, a competência de suas Câmaras ou Turmas isola-
das, Grupos, Seções ou outros órgãos com funções jurisdicionais
ou administrativas;
IV - conceder licença e férias, nos termos da lei, aos seus mem-
bros o aos Juízes e serventuários que lhes são imediatamente
subordinados;
V - exercer a direção e disciplina dos órgãos e serviços que lhes
forem subordinados;
VI - julgar, originariamente, os mandados de segurança contra
seus atos, os dos respectivos Presidentes e os de suas Câmaras,
Turmas ou Seções.

CAPÍTULO III
Dos Magistrados
Art. 22 - São vitalícios:
I - a partir da posse:
a) os Ministros do Supremo Tribunal Federal;
b) os Ministros do Tribunal Federal de Recursos;
c) os Ministros do Superior Tribunal Militar;
d) os Ministros e Juízes togados do Tribunal Superior do Trabalho
e dos Tribunais Regionais do Trabalho;

373
e) os Desembargadores, os Juízes dos Tribunais de Alçada e dos
Tribunais de segunda instância da Justiça Militar dos Estados;
(Redação dada pela Lei Complementar nº 37, de 13.11.1979)
II - após dois anos de exercício:
a) os Juízes Federais;
b) os Juízes Auditores e Juízes Auditores substitutos da Justiça
Militar da União;
c) os Juízes do Trabalho Presidentes de Junta de Conciliação e
Julgamento e os Juízes do Trabalho Substitutos;
d) os Juízes de Direito e os Juízes substitutos da Justiça dos Es-
tados, do Distrito Federal e dos Territórios, bem assim os Juízes
Auditores da Justiça Militar dos Estados. (Redação dada pela Lei
Complementar nº 37, de 13.11.1979)
§ 1º - Os Juízes mencionados no inciso II deste artigo, mesmo que
não hajam adquirido a vitaliciedade, não poderão perder o cargo
senão por proposta do Tribunal ou do órgão especial competente,
adotada pelo voto de dois terços de seus membros efetivos. (Re-
dação dada pela Lei Complementar nº 37, de 13.11.1979)
§ 2º - Os Juízes a que se refere o inciso Il deste artigo, mesmo
que não hajam adquirido a vitaliciedade, poderão praticar todos os
atos reservados por lei aos Juízes vitalícios. (Redação dada pela
Lei Complementar nº 37, de 13.11.1979)
Art. 23 - Os Juízes e membros de Tribunais e Juntas Eleitorais, no
exercício de suas funções e no que lhes for aplicável, gozarão de
plenas garantias e serão inamovíveis.
Art. 24 - O Juiz togado, de investidura temporária (art. 17, § 4º),
poderá ser demitido, em caso de falta grave, por proposta do Tri-
bunal ou do órgão especial, adotado pelo voto de dois terços de
seus membros efetivos.
Parágrafo único - O quorum de dois terços de membros efetivos
do Tribunal, ou de seu órgão especial, será apurado em relação

374
Formação Humanística

ao número de Desembargadores em condições legais de votar,


como tal se considerando os não atingidos por impedimento ou
suspeição e os não licenciados por motivo de saúde.
TÍTULO II
Das Garantias da Magistratura e das Prerrogativas do Magistrado
CAPÍTULO I
Das Garantias da Magistratura
SEÇÃO I
Da Vitaliciedade
Art. 25 - Salvo as restrições expressas na Constituição, os magis-
trados gozam das garantias de vitaliciedade, inamovibilidade e
irredutibilidade de vencimentos.
Art. 26 - O magistrado vitalício somente perderá o cargo (vetado):
I - em ação penal por crime comum ou de responsabilidade;
II - em procedimento administrativo para a perda do cargo nas
hipóteses seguintes:
a) exercício, ainda que em disponibilidade, de qualquer outra fun-
ção, salvo um cargo de magistério superior, público ou particular;
b) recebimento, a qualquer título e sob qualquer pretexto, de per-
centagens ou custas nos processos sujeitos a seu despacho e
julgamento;
c) exercício de atividade político-partidária.
§ 1º - O exercício de cargo de magistério superior, público ou par-
ticular, somente será permitido se houver correlação de matérias e
compatibilidade de horários, vedado, em qualquer hipótese, o de-
sempenho de função de direção administrativa ou técnica de esta-
belecimento de ensino.
§ 2º - Não se considera exercício do cargo o desempenho de fun-
ção docente em curso oficial de preparação para judicatura ou
aperfeiçoamento de magistrados.

375
Art. 27 - O procedimento para a decretação da perda do cargo terá
início por determinação do Tribunal, ou do seu órgão especial, a
que pertença ou esteja subordinado o magistrado, de ofício ou
mediante representação fundamentada do Poder Executivo ou
Legislativo, do Ministério Público ou do Conselho Federal ou Se-
cional da Ordem dos Advogados do Brasil.
§ 1º - Em qualquer hipótese, a instauração do processo preceder-
se-á da defesa prévia do magistrado, no prazo de quinze dias,
contado da entrega da cópia do teor da acusação e das provas
existentes, que lhe remeterá o Presidente do Tribunal, mediante
ofício, nas quarenta e oito horas imediatamente seguintes à apre-
sentação da acusação.
§ 2º - Findo o prazo da defesa prévia, haja ou não sido apresenta-
da, o Presidente, no dia útil imediato, convocará o Tribunal ou o
seu órgão especial para que, em sessão secreta, decida sobre a
instauração do processo, e, caso determinada esta, no mesmo dia
distribuirá o feito e fará entregá-lo ao relator.
§ 3º - O Tribunal ou o seu órgão especial, na sessão em que or-
denar a instauração do processo, como no curso dele, poderá
afastar o magistrado do exercício das suas funções, sem prejuízo
dos vencimentos e das vantagens, até a decisão final.
§ 4º - As provas requeridas e deferidas, bem como as que o rela-
tor determinar de ofício, serão produzidas no prazo de vinte dias,
cientes o Ministério Público, o magistrado ou o procurador por ele
constituído, a fim de que possam delas participar.
§ 5º - Finda a instrução, o Ministério Público e o magistrado ou seu
procurador terão, sucessivamente, vista dos autos por dez dias,
para razões.
§ 6º - O julgamento será realizado em sessão secreta do Tribunal
ou de seu órgão especial, depois de relatório oral, e a decisão no
sentido da penalização do magistrado só será tomada pelo voto de
dois terços dos membros do colegiado, em escrutínio secreto.

376
Formação Humanística

§ 7º - Da decisão publicar-se-á somente a conclusão.


§ 8º - Se a decisão concluir pela perda do cargo, será comunica-
da, imediatamente, ao Poder Executivo, para a formalização do
ato.
Art. 28 - O magistrado vitalício poderá ser compulsoriamente apo-
sentado ou posto em disponibilidade, nos termos da Constituição e
da presente Lei.
Art. 29 - Quando, pela natureza ou gravidade da infração penal, se
torne aconselhável o recebimento de denúncia ou de queixa con-
tra magistrado, o Tribunal, ou seu órgão especial, poderá, em de-
cisão tomada pelo voto de dois terços de seus membros, determi-
nar o afastamento do cargo do magistrado denunciado.
SEÇÃO II
Da Inamovibilidade
Art. 30 - O Juiz não poderá ser removido ou promovido senão com
seu assentimento, manifestado na forma da lei, ressalvado o dis-
posto no art. 45, item I.
Art. 31 - Em caso de mudança da sede do Juízo será facultado ao
Juiz remover-se para ela ou para Comarca de igual entrância, ou
obter a disponibilidade com vencimentos integrais.
SEÇÃO III
Da Irredutibilidade de Vencimentos
Art. 32 - Os vencimentos dos magistrados são irredutíveis, sujei-
tos, entretanto, aos impostos gerais, inclusive o de renda, e aos
impostos extraordinários.
Parágrafo único - A irredutibilidade dos vencimentos dos magistra-
dos não impede os descontos fixados em lei, em base igual à es-
tabelecida para os servidores públicos, para fins previdenciários.

377
CAPÍTULO II
Das Prerrogativas do Magistrado
Art. 33 - São prerrogativas do magistrado:
I - ser ouvido como testemunha em dia, hora e locais previamente
ajustados com a autoridade ou Juiz de instância igual ou inferior;
II - não ser preso senão por ordem escrita do Tribunal ou do órgão
especial competente para o julgamento, salvo em flagrante de
crime inafiançável, caso em que a autoridade fará imediata comu-
nicação e apresentação do magistrado ao Presidente do Tribunal
a que esteja vinculado (vetado);
III - ser recolhido à prisão especial, ou a sala especial de Estado-
Maior, por ordem e à disposição do Tribunal ou do órgão especial
competente, quando sujeito a prisão antes do julgamento final;
IV - não estar sujeito a notificação ou a intimação para compare-
cimento, salvo se expedida por autoridade judicial;
V - portar arma de defesa pessoal.
Parágrafo único - Quando, no curso de investigação, houver indí-
cio da prática de crime por parte do magistrado, a autoridade poli-
cial, civil ou militar, remeterá os respectivos autos ao Tribunal ou
órgão especial competente para o julgamento, a fim de que pros-
siga na investigação.
Art. 34 - Os membros do Supremo Tribunal Federal, do Tribunal
Federal de Recursos, do Superior Tribunal Militar, do Tribunal
Superior Eleitoral e do Tribunal Superior do Trabalho têm o título
de Ministro; os dos Tribunais de Justiça, o de Desembargador;
sendo o de Juiz privativo dos outros Tribunais e da Magistratura
de primeira instância.

378
Formação Humanística

TÍTULO III
Da Disciplina Judiciária
CAPÍTULO I
Dos Deveres do Magistrado
Art. 35 - São deveres do magistrado:
I - Cumprir e fazer cumprir, com independência, serenidade e exa-
tidão, as disposições legais e os atos de ofício;
II - não exceder injustificadamente os prazos para sentenciar ou
despachar;
III - determinar as providências necessárias para que os atos pro-
cessuais se realizem nos prazos legais;
IV - tratar com urbanidade as partes, os membros do Ministério
Público, os advogados, as testemunhas, os funcionários e auxilia-
res da Justiça, e atender aos que o procurarem, a qualquer mo-
mento, quanto se trate de providência que reclame e possibilite
solução de urgência.
V - residir na sede da Comarca salvo autorização do órgão disci-
plinar a que estiver subordinado;
VI - comparecer pontualmente à hora de iniciar-se o expediente ou
a sessão, e não se ausentar injustificadamente antes de seu tér-
mino;
VII - exercer assídua fiscalização sobre os subordinados, especi-
almente no que se refere à cobrança de custas e emolumentos,
embora não haja reclamação das partes;
VIII - manter conduta irrepreensível na vida pública e particular.
Art. 36 - É vedado ao magistrado:
I - exercer o comércio ou participar de sociedade comercial, inclu-
sive de economia mista, exceto como acionista ou quotista;

379
II - exercer cargo de direção ou técnico de sociedade civil, associ-
ação ou fundação, de qualquer natureza ou finalidade, salvo de
associação de classe, e sem remuneração;
III - manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre
processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo
depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos
judiciais ressalvados a crítica nos autos e em obras técnicas ou no
exercício do magistério.
Parágrafo único - (Vetado.)
Art. 37 - Os Tribunais farão publicar, mensalmente, no órgão ofici-
al, dados estatísticos sobre seus trabalhos no mês anterior, entre
os quais: o número de votos que cada um de seus membros, no-
minalmente indicado, proferiu como relator e revisor; o número de
feitos que lhe foram distribuídos no mesmo período; o número de
processos que recebeu em consequência de pedido de vista ou
como revisor; a relação dos feitos que lhe foram conclusos para
voto, despacho, lavratura de acórdão, ainda não devolvidos, em-
bora decorridos os prazos legais, com as datas das respectivas
conclusões.
Parágrafo único - Compete ao Presidente do Tribunal velar pela
regularidade e pela exatidão das publicações.
Art. 38 - Sempre que, encerrada a sessão, restarem em pauta ou
em mesa mais de vinte feitos sem julgamento, o Presidente fará
realizar uma ou mais sessões extraordinárias, destinadas ao jul-
gamento daqueles processos.
Art. 39 - Os juízes remeterão, até o dia dez de cada mês, ao órgão
corregedor competente de segunda instância, informação a respei-
to dos feitos em seu poder, cujos prazos para despacho ou deci-
são hajam sido excedidos, bem como indicação do número de
sentenças proferidas no mês anterior.

380
Formação Humanística

CAPÍTULO II
Das Penalidades
Art. 40 - A atividade censória de Tribunais e Conselhos é exercida
com o resguardo devido à dignidade e à independência do magis-
trado.
Art. 41 - Salvo os casos de impropriedade ou excesso de lingua-
gem o magistrado não pode ser punido ou prejudicado pelas opi-
niões que manifestar ou pelo teor das decisões que proferir.
Art. 42 - São penas disciplinares:
I - advertência;
II - censura;
III - remoção compulsória;
IV - disponibilidade com vencimentos proporcionais ao tempo de
serviço;
V - aposentadoria compulsória com vencimentos proporcionais ao
tempo de serviço;
VI - demissão.
Parágrafo único - As penas de advertência e de censura somente
são aplicáveis aos Juízes de primeira instância.
Art. 43 - A pena de advertência aplicar-se-á reservadamente, por
escrito, no caso de negligência no cumprimento dos deveres do
cargo.
Art. 44 - A pena de censura será aplicada reservadamente, por
escrito, no caso de reiterada negligência no cumprimento dos de-
veres do cargo, ou no de procedimento incorreto, se a infração
não justificar punição mais grave.
Parágrafo único - O Juiz punido com a pena de censura não pode-
rá figurar em lista de promoção por merecimento pelo prazo de um
ano, contado da imposição da pena.

381
Art. 45 - O Tribunal ou seu órgão especial poderá determinar, por
motivo de interesse público, em escrutínio secreto e pelo voto de
dois terços de seus membros efetivos:
I - a remoção de Juiz de instância inferior;
II - a disponibilidade de membro do próprio Tribunal ou de Juiz de
instância inferior, com vencimentos proporcionais ao tempo de
serviço.
Art. 46 - O procedimento para a decretação da remoção ou dispo-
nibilidade de magistrado obedecerá ao prescrito no art. 27 desta
Lei.
Art. 47 - A pena de demissão será aplicada:
I - aos magistrados vitalícios, nos casos previstos no art. 26, I e Il;
II - aos Juízes nomeados mediante concurso de provas e títulos,
enquanto não adquirirem a vitaliciedade, e aos Juízes togados
temporários, em caso de falta grave, inclusive nas hipóteses pre-
vistas no art. 56.
Art. 48 - Os Regimentos Internos dos Tribunais estabelecerão o
procedimento para a apuração de faltas puníveis com advertência
ou censura.
CAPÍTULO III
Da Responsabilidade Civil do Magistrado
Art. 49 - Responderá por perdas e danos o magistrado, quando:
I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
Il - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que
deva ordenar o ofício, ou a requerimento das partes.
Parágrafo único - Reputar-se-ão verificadas as hipóteses previstas
no inciso II somente depois que a parte, por intermédio do Escri-
vão, requerer ao magistrado que determine a providência, e este
não lhe atender ao pedido dentro de dez dias.

382
Formação Humanística

CAPÍTULO IV
Do Conselho Nacional da Magistratura
Art. 50 - Ao Conselho Nacional da Magistratura cabe conhecer de
reclamações contra membros de Tribunais, podendo avocar pro-
cessos disciplinares contra Juízes de primeira instância e, em
qualquer caso, determinar a disponibilidade ou a aposentadoria de
uns e outros, com vencimentos proporcionais ao tempo de Servi-
ço.
Art. 51 - Ressalvado o poder de avocação, a que se refere o artigo
anterior, o exercício das atribuições específicas do Conselho Na-
cional da Magistratura não prejudica a competência disciplinar dos
Tribunais, estabelecida em lei, nem interfere nela.
Art. 52 - A reclamação contra membro de Tribunal será formulada
em petição, devidamente fundamentada e acompanhada de ele-
mentos comprobatórios das alegações.
§ 1º - A petição a que se refere este artigo deve ter firma reconhe-
cida, sob pena de arquivamento liminar, salvo se assinada pelo
Procurador-Geral da República, pelo Presidente do Conselho Fe-
deral ou Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil ou pelo
Procurador-Geral da Justiça do Estado.
§ 2º - Distribuída a reclamação, poderá o relator, desde logo, pro-
por ao Conselho o arquivamento, se considerar manifesta a sua
improcedência.
§ 3º - Caso o relator não use da faculdade, prevista no parágrafo
anterior mandará ouvir o reclamado, no prazo de quinze dias, a fim
de que, por si ou por procurador, alegue, querendo, o que enten-
der conveniente a bem de seu direito.
§ 4º - Com a resposta do reclamado, ou sem ela, deliberará o
Conselho sobre o arquivamento ou a conveniência de melhor ins-
trução do processo, fixando prazo para a produção de provas e
para as diligências que determinar.

383
§ 5º - Se desnecessárias outras provas ou diligências, e se o Con-
selho não concluir pelo arquivamento da reclamação, abrir-se-á
vista para alegações, sucessivamente, pelo prazo de dez dias, ao
reclamado, ou a seu advogado, e ao Procurador-Geral da Repú-
blica.
§ 6º - O julgamento será realizado em sessão secreta do Conse-
lho, com a presença de todos os seus membros, publicando-se
somente a conclusão do acórdão.
§ 7º - Em todos os atos e termos do processo, poderá o reclamado
fazer-se acompanhar ou representar por advogado, devendo o
Procurador-Geral da República oficiará neles como fiscal da lei.
Art. 53 - A avocação de processo disciplinar contra Juiz de instân-
cia inferior dar-se-á mediante representação fundamentada do
Procurador-Geral da República, do Presidente do Conselho Fede-
ral ou Secional da Ordem dos Advogados do Brasil ou do Procu-
rador-Geral da Justiça do Estado, oferecida dentro de sessenta
dias da ciência da decisão disciplinar final do órgão, a que estiver
sujeito o Juiz, ou, a qualquer tempo, se, decorridos mais de três
meses do início do processo, não houver sido proferido o julga-
mento.
§ 1º - Distribuída a representação, mandará o relator ouvir, em
quinze dias, o Juiz e o órgão disciplinar que proferiu a decisão que
deveria havê-la proferido.
§ 2º - Findo o prazo de quinze dias, com ou sem as informações,
deliberará o Conselho Nacional da Magistratura sobre o arquiva-
mento da representação ou avocação do processo, procedendo-se
neste caso, na conformidade do §§ 4º a 7º do artigo anterior.
Art. 54 - O processo e o julgamento das representações e recla-
mações serão sigilosos, para resguardar a dignidade do magistra-
do, sem prejuízo de poder o relator delegar a instrução a Juiz de
posição funcional igual ou superior à do indiciado.

384
Formação Humanística

Art. 55 - As reuniões do Conselho Nacional da Magistratura serão


secretas, cabendo a um de seus membros, designado pelo Presi-
dente, lavrar-lhes as respectivas atas, das quais constarão os
nomes dos Juízes presentes e, em resumo, os processos aprecia-
dos e as decisões adotadas.
Art. 56 - O Conselho Nacional da Magistratura poderá determinar
a aposentadoria, com vencimentos proporcionais ao tempo de
serviço, do magistrado:
I - manifestadamente negligente no cumprimento dos deveres do
cargo;
Il - de procedimento incompatível com a dignidade, a honra e o
decoro de suas funções;
III - de escassa ou insuficiente capacidade de trabalho, ou cujo
proceder funcional seja incompatível com o bom desempenho das
atividades do Poder Judiciário.
Art. 57 - O Conselho Nacional da Magistratura poderá determinar
a disponibilidade de magistrado, com vencimentos proporcionais
ao tempo de serviço, no caso em que a gravidade das faltas a que
se reporta o artigo anterior não justifique a decretação da aposen-
tadoria.
§ 1º - O magistrado posto em disponibilidade por determinação do
Conselho, somente poderá pleitear o seu aproveitamento, decorri-
dos dois anos do afastamento.
§ 2º - O pedido, devidamente instruído e justificado, acompanhado
de parecer do Tribunal competente, ou de seu órgão especial,
será apreciado pelo Conselho Nacional da Magistratura após pa-
recer do Procurador-Geral da República. Deferido o pedido, o a-
proveitamento far-se-á a critério do Tribunal ou seu órgão especi-
al.
§ 3º - Na Hipótese deste artigo, o tempo de disponibilidade não
será computado, senão para efeito de aposentadoria.

385
§ 4º - O aproveitamento de magistrado posto em disponibilidade
nos termos do item IV do art. 42 e do item Il do art. 45, observará
as normas dos parágrafos deste artigo.
Art. 58 - A aplicação da pena de disponibilidade ou aposentadoria
será imediatamente comunicada ao Presidente do Tribunal a que
pertencer ou a que estiver sujeito o magistrado, para imediato
afastamento das suas funções. Igual comunicação far-se-á ao
Chefe do Poder Executivo competente, a fim de que formalize o
ato de declaração da disponibilidade ou aposentadoria do magis-
trado.
Art. 59 - O Conselho Nacional da Magistratura, se considerar exis-
tente crime de ação pública, pelo que constar de reclamação ou
representação, remeterá ao Ministério Público cópia das peças
que entender necessárias ao oferecimento da denúncia ou à ins-
tauração de inquérito policial.
Art. 60 - O Conselho Nacional da Magistratura estabelecerá, em
seu Regimento Interno, disposições complementares das constan-
tes deste Capítulo.
TÍTULO IV
Dos Vencimentos, Vantagens e Direitos dos Magistrados
CAPÍTULO I
Dos Vencimentos e Vantagens Pecuniárias
Art. 61 - Os vencimentos dos magistrados são fixados em lei, em
valor certo, atendido o que estatui o art. 32, parágrafo único.
Parágrafo único. À Magistratura de primeira instância da União
assegurar-se-ão vencimentos não inferiores a dois terços dos va-
lores fixados para os memros de segunda instância respectiva,
assegurados aos Ministros do Supremo Tribunal Federal venci-
mentos pelo menos iguais aos dos Ministros de Estado, e garanti-

386
Formação Humanística

dos aos Juízes vitalícios do mesmo grau de jurisdição iguais ven-


cimentos.
Art. 62 - Os Ministros militares togados do Superior Tribunal Mili-
tar, bem como os Ministros do Tribunal Superior do Trabalho, têm
vencimentos iguais aos dos Ministros do Tribunal Federal de Re-
cursos.
Art. 63 Os vencimentos dos Desembargadores dos Tribunais de
Justiça dos Estados e do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e
dos Territórios não serão inferiores, no primeiro caso, aos dos
Secretários de Estado, e no segundo, aos dos Secretários de Go-
verno do Distrito Federal, não podendo ultrapassar, porém, os
fixados para os Ministros do Supremo Tribunal Federal. Os Juízes
vitalícios dos Estados têm os seus vencimentos fixados com dife-
rença não excedente a vinte por cento de uma para outra entrân-
cia, atribuindo-se aos da entrância mais elevada não menos de
dois terços dos vencimentos dos Desembargadores.
§ 1º Os Juízes de Direito da Justiça do Distrito Federal e dos Terri-
tórios têm seus vencimentos fixados em proporção não inferior a
dois terços do que percebem os Desembargadores e os Juízes
substitutos, da mesma Justiça, em percentual não inferior a vinte
por cento dos vencimentos daqueles.
§ 2º - Para o efeito de eqüivalência e limite de vencimentos previs-
tos nesse artigo, são excluídas de cômputo apenas as vantagens
de caráter pessoal ou de natureza transitória.
Art. 64 - Os vencimentos dos magistrados estaduais serão pagos
na mesma data fixada para o pagamento dos vencimentos dos
Secretários de Estado ou dos subsídios dos membros do Poder
Legislativo, considerando-se que desater de às garantias do Poder
judiciário atraso que ultrapasse o décimo dia útil do mês seguinte
ao vencido.

387
Art. 65 - Além dos vencimentos, poderão ser outorgadas aos ma-
gistrados, nos termos da lei, as seguintes vantagens:
I - ajuda de custo, para despesas de transporte e mudança;
II - ajuda de custo, para moradia, nas localidades em que não
houver residência oficial à disposição do Magistrado. (Redação
dada pela Lei nº 54, de 22.12.1986)
III - salário-família;
IV - diárias;
V - representação;
VI - gratificação pela prestação de serviço à Justiça Eleitoral;
VII - gratificação pela prestação de serviço à Justiça do Trabalho,
nas Comarcas onde não forem instituídas Juntas de Conciliação e
Julgamento;
VIII - gratificação adicional de cinco por cento por qüinqüênio de
serviço, até o máximo de sete;
IX - gratificação de magistério, por aula proferida em curso oficial
de preparação para a Magistratura ou em Escola Oficial de Aper-
feiçoamento de Magistrados (arts. 78, § 1º, e 87, § 1º), exceto
quando receba remuneração específica para esta atividade;
X - gratificação pelo efetivo exercício em Comarca de difícil provi-
mento, assim definida e indicada em lei.
§ 1º - A verba de representação, salvo quando concedida em ra-
zão do exercício de cargo em função temporária, integra os ven-
cimentos para todos os efeitos legais.
§ 2º - É vedada a concessão de adicionais ou vantagens pecuniá-
rias não previstas na presente Lei, bem como em bases e limites
superiores aos nela fixados.

388
Formação Humanística

CAPÍTULO II
Das Férias
Art. 66 - Os magistrados terão direito a férias anuais, por sessenta
dias, coletivas ou individuais.
§ 1º - Os membros dos Tribunais, salvo os dos Tribunais Regio-
nais do Trabalho, que terão férias individuais, gozarão de férias
coletivas, nos períodos de 2 a 31 de janeiro e de 2 a 31 de julho.
Os Juízes de primeiro grau gozarão de férias coletivas ou indivi-
duais, conforme dispuser a lei.
§ 2º - Os Tribunais iniciarão e encerrarão seus trabalhos, respecti-
vamente, nos primeiro e último dias úteis de cada período, com a
realização de sessão.
Art. 67 - Se a necessidade do serviço judiciário lhes exigir a contí-
nua presença nos Tribunais gozarão de trinta dias consecutivos de
férias individuais, por semestre:
I - os Presidentes e Vice-Presidentes dos Tribunais;
II - os Corregedores;
III - os Juízes das Turmas ou Câmaras de férias.
§ 1º - As férias individuais não podem fracionar-se em períodos
inferiores a trinta dias, e somente podem acumular-se por imperio-
sa necessidade do serviço e pelo máximo de dois meses.
§ 2º - É vedado o afastamento do Tribunal ou de qualquer de seus
órgãos judicantes, em gozo de férias individuais, no mesmo perío-
do, de Juízes em número que possa comprometer o quorum de
julgamento.
§ 3º - As Turmas ou Câmaras de férias terão a composição e
competência estabelecidas no Regimento Interno do Tribunal.
Art. 68 - Durante as férias coletivas, nos Tribunais em que não
houver Turma ou Câmara de férias, poderá o Presidente, ou seu

389
substituto legal, decidir de pedidos de liminar em mandado de
segurança, determinar liberdade provisória ou sustação de ordem
de prisão, e demais medidas que reclamam urgência.
CAPÍTULO III
Das Licenças
Art. 69 - Conceder-se-á licença:
I - para tratamento de saúde;
II - por motivo de doença em pessoa da família;
III - para repouso à gestante;
IV - (Vetado.)
Art. 70 - A licença para tratamento de saúde por prazo superior a
trinta dias, bem como as prorrogações que importem em licença
por período ininterrupto, também superior a trinta dia, dependem
de inspeção por Junta Médica.
Art. 71 - O magistrado licenciado não pode exercer qualquer das
suas funções jurisdicionais ou administrativas, nem exercitar qual-
quer função pública ou particular (vetado).
§ 1º - Os períodos de licenças concedidos aos magistrados não
terão limites inferiores aos reconhecidos por lei ao funcionalismo
da mesma pessoa de direito público. (Redação dada pela Lei
Complementar nº 37, de 13.11.1979)
§ 2º - Salvo contra-indicação médica, o magistrado licenciado po-
derá proferir decisões em processos que, antes da licença, lhe
hajam sido conclusos para julgamento ou tenham recebido o seu
visto como relator ou revisor. (Redação dada pela Lei Complemen-
tar nº 37, de 13.11.1979)

390
Formação Humanística

CAPÍTULO IV
Das Concessões
Art. 72 - Sem prejuízo do vencimento, remuneração ou de qual-
quer direito ou vantagem legal, o magistrado poderá afastar-se de
suas funções até oito dias consecutivos por motivo de:
I - casamento;
II - falecimento de cônjuge, ascendente, descendente ou irmão.
Art. 73 - Conceder-se-á afastamento ao magistrado, sem prejuízo
de seus vencimentos e vantagens:
I - para freqüência a cursos ou seminários de aperfeiçoamento e
estudos, a critério do Tribunal ou de seu órgão especial, pelo pra-
zo máximo de dois anos; (Redação dada pela Lei Complementar
nº 37, de 13.11.1979)
II - para a prestação de serviços, exclusivamente à Justiça Eleito-
ral.
III - para exercer a presidência de associação de classe. (Inciso
incluído pela Lei Complementar nº 60, de 6.10.1989)
CAPÍTULO V
Da Aposentadoria
Art. 74 - A aposentadoria dos magistrados vitalícios será compul-
sória, aos setenta anos de idade ou por invalidez comprovada, e
facultativa, após trinta anos de serviço público, com vencimentos
integrais, ressalvado o disposto nos arts. 50 e 56.
Parágrafo único - Lei ordinária disporá sobre a aposentadoria dos
Juízes temporários de qualquer instância.
Art. 75 - Os proveitos da aposentadoria serão reajustados na
mesma proporção dos aumentos de vencimentos concedidos, a
qualquer título, aos magistrados em atividade.

391
Art. 76 - Os Tribunais disciplinarão, nos Regimentos Internos, o
processo de verificação da invalidez do magistrado para o fim de
aposentadoria, com observância dos seguintes requisitos:
I - o processo terá início a requerimento do magistrado, por ordem
do Presidente do Tribunal, de ofício, em cumprimento de delibera-
ção do Tribunal ou seu órgão especial ou por provocação da Cor-
regedoria de Justiça;
II - tratando-se de incapacidade mental, o Presidente do Tribunal
nomeará curador ao paciente, sem prejuízo da defesa que este
queira oferecer pessoalmente, ou por procurador que constituir;
III - o paciente deverá ser afastado, desde logo, do exercício do
cargo, até final decisão, devendo ficar concluído o processo no
prazo de sessenta dias;
IV - a recusa do paciente em submeter-se a perícia médica permi-
tirá o julgamento baseado em quaisquer outras provas;
V - o magistrado que, por dois anos consecutivos, afastar-se, ao
todo, por seis meses ou mais para tratamento de saúde, deverá
submeter-se, ao requerer nova licença para igual fim, dentro de
dois anos, a exame para verificação de invalidez;
VI - se o Tribunal ou seu órgão especial concluir pela incapacidade
do magistrado, comunicará imediatamente a decisão ao Poder
Executivo, para os devidos fins.
Art. 77 - computar-se-á, para efeito de aposentadoria e disponibili-
dade, o tempo de exercício da advocacia, até o máximo de quinze
anos, em favor dos Ministros do Supremo Tribunal Federal e dos
membros dos demais Tribunais que tenham sido nomeados para
os lugares reservados a advogados, nos termos da Constituição
federal.

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Formação Humanística

TÍTULO V
Da Magistratura de Carreira
CAPÍTULO I
Do Ingresso
Art. 78 - O ingresso na Magistratura de carreira dar-se-á mediante
nomeação, após concurso público de provas e títulos, organizado
e realizado com a participação do Conselho Secional da Ordem
dos Advogados do Brasil.
§ 1º - A lei pode exigir dos candidatos, para a inscrição no concur-
so, título de habilitação em curso oficial de preparação para a Ma-
gistratura.
§ 2º - Os candidatos serão submetidos a investigação relativa aos
aspectos moral e social, e a exame de sanidade física e mental,
conforme dispuser a lei.
§ 3º - Serão indicados para nomeação, pela ordem de classifica-
ção, candidatos em número correspondente às vagas, mais dois,
para cada vaga, sempre que possível.
Art. 79 - O Juiz, no ato da posse, deverá apresentar a declaração
pública de seus bens, e prestará o compromisso de desempenhar
com retidão as funções do cargo, cumprindo a Constituição e as
leis.
CAPÍTULO II
Da Promoção, da Remoção e do Acesso
Art. 80 - A lei regulará o processo de promoção, prescrevendo a
observância dos critérios ele antigüidade e de merecimento, alter-
nadamente, e o da indicação dos candidatos à promoção por me-
recimento, em lista tríplice, sempre que possível.
§ 1º - Na Justiça dos Estados:
I - apurar-se-ão na entrância a antigüidade e o merecimento, este
em lista tríplice, sendo obrigatória a promoção do Juiz que figurar
pela quinta vez consecutiva em lista de merecimento; havendo

393
empate na antigüidade, terá precedência o Juiz mais antigo na
carreira;
II - para efeito da composição da lista tríplice, o merecimento será
apurado na entrância e aferido com prevalência de critérios de
ordem objetiva, na forma do Regulamento baixado pelo Tribunal
de Justiça, tendo-se em conta a conduta do Juiz, sua operosidade
no exercício do cargo, número de vezes que tenha figurado na
lista, tanto para entrância a prover, como para as anteriores, bem
como o aproveitamento em cursos de aperfeiçoamento;
III - no caso de antigüidade, o Tribunal de Justiça, ou seu órgão
especial, somente poderá recusar o Juiz mais antigo pelo voto da
maioria absoluta do seus membros, repetindo-se a votação até
fixar-se a indicação;
IV - somente após dois anos de exercício na entrância, poderá o
Juiz ser promovido, salvo se não houver, com tal requisito, quem
aceite o lugar vago, ou se forem recusados, pela maioria absoluta
dos membros do Tribunal de Justiça, ou de seu órgão especial,
candidatos que hajam completado o período.
§ 2º - Aplica-se, no que couber, aos Juízes togados da Justiça do
Trabalho, o disposto no parágrafo anterior.
Art. 81 - Na Magistratura de carreira dos Estados, ao provimento
inicial e à promoção por merecimento precederá a remoção.
§ 1º - A remoção far-se-á mediante escolha pelo Poder Executivo,
sempre que possível, de nome constante de lista tríplice, organi-
zada pelo Tribunal de Justiça e contendo os nomes dos candida-
tos com mais de dois anos de efetivo exercício na entrância.
§ 2º - A juízo do Tribunal de Justiça, ou de seu órgão especial,
poderá, ainda, ser provida, pelo mesmo critério fixado no parágra-
fo anterior vaga decorrente de remoção, destinando-se a seguinte,
obrigatoriamente, ao provimento por promoção.

394
Formação Humanística

Art. 82 - Para cada vaga destinada ao preenchimento por promo-


ção ou por remoção, abrir-se-á inscrição distinta, sucessivamente,
com a indicação da Comarca ou Vara a ser provida.
Parágrafo único - Ultimado o preenchimento das vagas, se mais
de uma deva ser provida por merecimento, a lista conterá número
de Juízes igual ao das vagas mais dois.
Art. 83 - A notícia da ocorrência de vaga a ser preenchida, medi-
ante promoção ou remoção, deve ser imediatamente veiculada
pelo órgão oficial próprio, com indicação, no caso de provimento
através de promoção, das que devam ser preenchidas segundo o
critério de antigüidade ou de merecimento.
Art. 84 - O acesso de Juízes Federais ao Tribunal Federal de Re-
cursos far-se-á por escolha do Presidente da República dentre os
indicados em lista tríplice, elaborada pelo Tribunal.
Art. 85 - O acesso de Juízes Auditores e membros do Ministério
Público da Justiça Militar ao Superior Tribunal Militar far-se-á por
livre escolha do Presidente da República.
Art. 86 - O acesso dos Juízes do Trabalho Presidentes de Juntas
de Conciliação e Julgamento ao Tribunal Regional do Trabalho, e
dos Juízes do Trabalho substitutos àqueles cargos, far-se-á, alter-
nadamente, por antigüidade e por merecimento, este através de
lista tríplice votada por Juízes vitalícios do Tribunal e encaminhada
ao Presidente da República.
Art. 87 - Na Justiça dos Estados e do Distrito Federal e dos Terri-
tórios, o acesso dos Juízes de Direito aos Tribunais de Justiça far-
se-á, alternadamente, por antigüidade e merecimento.
§ 1º - A lei poderá condicionar o acesso por merecimento aos Tri-
bunais, como a promoção por igual critério, à freqüência, com
aprovação, a curso ministrado por escola oficial de aperfeiçoamen-
to de magistrado.

395
§ 2º - O disposto no parágrafo anterior aplica-se ao acesso dos
Juízes Federais ao Tribunal Federal de Recursos.
Art. 88 - Nas promoções ou acessos, havendo mais de uma vaga
a ser preenchida por merecimento, a lista conterá, se possível,
número de magistrados igual ao das vagas mais dois para cada
uma delas.
TÍTULO VI
Do Tribunal Federal de Recursos
CAPÍTULO ÚNICO
Art. 89 - O Tribunal Federal de Recursos funciona:
I - em Tribunal Pleno;
II - em Seções de Turmas especializadas;
III - em Turmas especializadas.
§ 1º - Compete ao Tribunal Pleno processar e julgar:
a) os Juízes Federais, os Juízes dos Tribunais Regionais do Tra-
balho e os da primeira instância da Justiça do Trabalho, bem como
os membros dos Tribunais de Conta dos Estados e do Distrito
Federal e os do Ministério Público da União, nos crimes comuns e
nos de responsabilidade;
b) os mandados de segurança e habeas corpus contra ato de Mi-
nistro de Estado, do Diretor-Geral da Polícia Federal, do Presiden-
te do próprio Tribunal ou de suas Turmas ou Seções;
c) os conflitos de jurisdição entre as Seções;
d) as revisões criminais e ações rescisórias de seus próprios jul-
gados.
§ 2º - Compete, ainda, ao Tribunal Pleno:
a) uniformizar a jurisprudência em caso de divergência na interpre-
tação do direito entre as Seções;

396
Formação Humanística

b) declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo;


c) eleger, pela maioria dos seus Ministros, em votação secreta, o
Presidente, o Vice-Presidente e os membros do Conselho da Jus-
tiça Federal, com mandato de dois anos, vedada a reeleição;
d) exercer as funções administrativas que lhe forem atribuídas
pela lei ou no Regimento Interno;
e) dar posse aos seus Ministros e aos titulares da sua direção.
§ 3º - O Vice-Presidente do Tribunal e o Corregedor-Geral da Jus-
tiça Federal participarão do Tribunal Pleno, também com as fun-
ções de relator e revisor.
§ 4º - Haverá no Tribunal Federal de Recursos duas Seções,
constituídas, cada uma, pelos integrantes das Turmas da respecti-
va área de especialização, na forma estabelecida no Regimento
Interno. As Seções serão presididas, uma pelo Vice-Presidente do
Tribunal e a outra pelo Corregedor-Geral da Justiça Federal, que
nelas terão apenas voto de qualidade.
§ 5º - A cada uma das Seções incumbirá processar e julgar:
a) os embargos infringentes ou de divergência das decisões das
Turmas da respectiva área de especialização;
b) os conflitos de jurisdição relativamente, às matérias das respec-
tivas áreas de especialização;
c) a uniformização da jurisprudência quando ocorrer divergência
na interpretação do direito entre as Turmas que a integram;
d) os mandados de segurança contrato de Juiz Federal;
e) as revisões criminais e as ações rescisórias dos julgados de
primeiro grau, da própria Seção ou das respectivas Turmas.
§ 6º - Haverá no Tribunal Federal de Recursos seis Turmas espe-
cializadas compostas de quatro Ministros cada uma, votando ape-
nas três deles, na forma prevista na lei ou no Regimento Interno.

397
§ 7º - O Presidente, o Vice-Presidente e o Corregedor-Geral da
Justiça Federal não integrarão Turma, podendo a ela comparecer
para julgar feitos a que estejam vinculados.
Art. 90 - O Regulamento Interno disporá sobre as áreas de espe-
cialização do Tribunal Federal de Recursos e o número de Turmas
especializadas de cada uma das Seções bem assim sobre a forma
de distribuição dos processos.
§ 1º - Com finalidade de abreviar o julgamento, o Regimento Inter-
no poderá também prever casos em que será dispensada a re-
messa do feito ao revisor, desde que o recurso verse matéria pre-
dominantemente de direito.
§ 2º - O relator julgará pedido ou recurso que manifestamente haja
perdido objeto, bem assim, mandará arquivar ou negará segui-
mento a pedido ou recurso manifestamente intempestivo ou inca-
bível ou, ainda, que contrariar as questões predominantemente de
direito, súmula do Tribunal ou do Supremo Tribunal Federal. Deste
despacho caberá agravo, em cinco dias, para o órgão do Tribunal
competente, para o julgamento do pedido ou recurso, que será
julgado na primeira sessão seguinte, não participando o relator da
votação.
TÍTULO VII
Da Justiça do Trabalho
CAPÍTULO ÚNICO
Art. 91 - Os cargos da Magistratura do Trabalho são os seguintes:
I - Ministro do Tribunal Superior do Trabalho;
II - Juiz do Tribunal Regional do Trabalho;
III - Juiz do Trabalho Presidente de Junta de Conciliação e Julga-
mento;
IV - Juiz do Trabalho substituto.

398
Formação Humanística

Art. 92 - O ingresso na Magistratura do Trabalho dar-se-á no cargo


de Juiz do Trabalho substituto.
Art. 93. Aplica-se à Justiça do Trabalho, inclusive quanto à convo-
cação de Juiz de Tribunal Regional do Trabalho para substituir
Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, o disposto no art. 118
desta lei. (Redação dada pela Lei Complementar nº 54, de
22.12.1986)
Parágrafo único - O sorteio, para efeito de substituição nos Tribu-
nais Regionais do Trabalho, será feito entre os Juízes Presidentes
de Junta de Conciliação e Julgamento da sede da Região respec-
tiva.
Art. 94 - Aos cargos de direção do Tribunal Superior do Trabalho e
dos Tribunais Regionais do Trabalho aplica-se o disposto no art.
102 e seu parágrafo único.
TÍTULO VIII
Da Justiça dos Estados
CAPÍTULO I
Da Organização Judiciária
Art. 95 - Os Estados organizarão a sua Justiça com observância o
disposto na Constituição federal e na presente Lei.
Art. 96 - Para a administração da Justiça, a lei dividirá o território
do Estado em Comarcas, podendo agrupá-las em Circunscrição e
dividi-Ias em Distrito.
Art. 97 - Para a criação, extinção e classificação de Comarcas, a
legislação estadual estabelecerá critérios uniformes, levando em
conta:
I - a extensão territorial;
II - número de habitantes;
III - o número de eleitores;

399
IV - a receita tributária;
V - o movimento forense.
§ 1º - Os critérios a serem fixados, conforme previsto no caput
deste artigo, deverão orientar, conforme índices também estabele-
cidos em lei estadual, o desdobramento de Juízos ou a criação de
novas Varas, nas Comarcas de maior importância.
§ 2º - Os índices mínimos estabelecidos em lei poderão ser dis-
pensados, para efeito do disposto no caput deste artigo, em rela-
ção a Municípios com precários meios de comunicação.
Art. 98 - Quando o regular exercício das funções do Poder Judiciá-
rio for impedido por falta de recursos decorrente de injustificada
redução de sua proposta orçamentária, ou pela não-satisfação
oportuna das dotações que lhe correspondam, caberá ao Tribunal
de Justiça, pela maioria absoluta de seus membros, solicitar ao
Supremo Tribunal Federal a intervenção da União no Estado.
CAPÍTULO II
Dos Tribunais de Justiça
Art. 99 - Compõe o órgão especial a que se refere o parágrafo
único do art. 16 o Presidente, o Vice-Presidente do Tribunal de
Justiça e o Corregedor da Justiça, que exercerão nele iguais fun-
ções, os Desembargadores de maior antigüidade no cargo, respei-
tada a representação de advogados e membros do Ministério Pú-
blico, e inadmitida a recusa do encargo.
§ 1º- Na composição do órgão especial observar-se-á, tanto quan-
to possível, a representação, em número paritário, de todas as
Câmaras, Turmas ou Seções especializadas.
§ 2º - Os Desembargadores não integrantes do órgão especial,
observada a ordem decrescente de antigüidade, poderão ser con-
vocados pelo Presidente para substituir os que o componham, nos
casos de afastamento ou impedimento.

400
Formação Humanística

Art. 100 - Na composição de qualquer Tribunal, um quinto dos


lugares será preenchido por advogados, em efetivo exercício da
profissão, e membros do Ministério Público, todos de notário me-
recimento e idoneidade moral, com dez anos, pelo menos, de prá-
tica forense.
§ 1º - Os lugares reservados a membros do Ministério Público ou
advogados serão preenchidos, respectivamente, por membros do
Ministério Público ou por advogados, indicados em lista tríplice
pelo Tribunal de Justiça ou seu órgão especial.
§ 2º - Nos Tribunais em que for ímpar o número de vagas destina-
das ao quinto constitucional, uma delas será, alternada e sucessi-
vamente, preenchida por advogado e por membro do Ministério
Público, de tal forma que, também sucessiva e alternadamente, os
representantes de uma dessas classes superem os da outra em
uma Unidade.
§ 3º - Nos Estados em que houver Tribunal de Alçada, constitui
este, para efeito de acesso ao Tribunal de Justiça, a mais alta
entrância da Magistratura estadual.
§ 4º - Os Juízes que integrem os Tribunais de Alçada somente
concorrerão às vagas no Tribunal de Justiça correspondente à
classe dos magistrados.
§ 5º - Não se consideram membros do Ministério Público, para
preenchimento de vagas nos Tribunais, os juristas estranhos à
carreira, nomeados em comissão para o cargo de Procurador-
Geral ou outro de chefia.
Art. 101 - Os Tribunais compor-se-ão de Câmaras ou Turmas,
especializadas ou agrupadas em Seções especializadas. A com-
posição e competência das Câmaras ou Turmas serão fixadas na
lei e no Regimento Interno.
§ 1º - Salvo nos casos de embargos infringentes ou de divergên-
cia, do julgamento das Câmaras ou Turmas, participarão apenas

401
três dos seus membros, se maior o número de composição de
umas ou outras.
§ 2º - As Seções especializadas serão integradas, conforme dis-
posto no Regimento Interno, pelas Turmas ou Câmaras da respec-
tiva área de especialização.
§ 3º - A cada uma das Seções caberá processar e julgar:
a) os embargos infringentes ou de divergência das decisões das
Turmas da respectiva área de especialização;
b) os conflitos de jurisdição relativamente às matérias das respec-
tivas áreas de especialização;
c) a uniformização da jurisprudência, quando ocorrer divergência
na interpretação do direito entre as Turmas que a integram;
d) os mandados de segurança contra ato de Juiz de Direito;
c) as revisões criminais e as ações rescisórias dos julgamentos de
primeiro grau, da própria Seção ou das respectivas Turmas.
§ 4º - Cada Câmara, Turma ou Seção especializada funcionará
como Tribunal distinto das demais, cabendo ao Tribunal Pleno, ou
ao seu órgão especial, onde houver, o julgamento dos feitos que,
por lei, excedam a competência de Seção.
Art. 102 - Os Tribunais, pela maioria dos seus membros efetivos,
por votação secreta, elegerão dentre seus Juízes mais antigos, em
número correspondente ao dos cargos de direção, os titulares
destes, com mandato por dois anos, proibida a reeleição. Quem
tiver exercido quaisquer cargos de direção por quatro anos, ou o
de Presidente, não figurará mais entre os elegíveis, até que se
esgotem todos os nomes, na ordem de antigüidade. É obrigatória
a aceitação do cargo, salvo recusa manifestada e aceita antes da
eleição.
Parágrafo único - O disposto neste artigo não se aplica ao Juiz
eleito, para completar período de mandato inferior a um ano.

402
Formação Humanística

Art. 103 - O Presidente e o Corregedor da Justiça não integrarão


as Câmaras ou Turmas. A Lei estadual poderá estender a mesma
proibição também aos Vice-Presidentes.
§ 1º - Nos Tribunais com mais de trinta Desembargadores a lei de
organização judiciária poderá prever a existência de mais de um
Vice-Presidente, com as funções que a lei e o Regimento Interno
determinarem, observado quanto a eles, inclusive, o disposto no
caput deste artigo.
§ 2º - Nos Estados com mais de cem Comarcas e duzentas Varas,
poderá haver até dois Corregedores, com as funções que a lei e o
Regimento Interno determinarem.
Art. 104 - Haverá nos Tribunais de Justiça um Conselho da Magis-
tratura, com função disciplinar, do qual serão membros natos o
Presidente, o Vice-Presidente e o Corregedor, não devendo, tanto
quanto possível, seus demais integrantes ser escolhidos dentre os
outros do respectivo órgão especial, onde houver. A composição,
a competência e o funcionamento desse Conselho, que terá como
órgão superior o Tribunal Pleno ou o órgão especial, serão estabe-
lecidos no Regimento Interno.
Art. 105 - A lei estabelecerá o número mínimo de Comarcas a
serem visitadas, anualmente, pelo Corregedor, em correição geral
ordinária, sem prejuízo das correições extraordinárias, gerais ou
parciais, que entenda fazer, ou haja de realizar por determinação
do Conselho de Magistratura.
Art. 106 - Dependerá de proposta do Tribunal de Justiça, ou de
seu órgão especial, a alteração numérica dos membros do próprio
Tribunal ou dos Tribunais inferiores de segunda instância e dos
Juízes de Direito de primeira instância.
§ 1º - Somente será majorado o número dos membros do Tribunal
se o total de processos distribuídos e julgados, durante o ano an-
terior, superar o índice de trezentos feitos por Juiz.

403
§ 2º - Se o total de processos judiciais distribuídos no Tribunal de
Justiça, durante o ano anterior, superar índice de seiscentos feitos
por Juiz e não for proposto o aumento de número de Desembar-
gadores, o acúmulo de serviços não excluirá a aplicação das san-
ções previstas nos arts. 56 e 57 desta Lei.
§ 3º - Para efeito do cálculo a que se referem os parágrafos ante-
riores, não serão computados os membros do Tribunal que, pelo
exercício de cargos de direção, não integrarem as Câmaras, Tur-
mas ou Seções, ou que, integrando-as, nelas não servirem como
relator ou revisor.
§ 4º - Elevado o número de membros do Tribunal de Justiça ou
dos Tribunais inferiores de segunda instância, ou neles ocorrendo
vaga, serão previamente aproveitados os em disponibilidade, sal-
vo o disposto no § 2º do art. 202 da Constituição federal e no § 1º
do art. 57 desta Lei, nas vagas reservadas aos magistrados.
§ 5º - No caso do parágrafo anterior, havendo mais de um concor-
rente à mesma vaga, terá preferência o de maior tempo de dispo-
nibilidade, e, sendo este o mesmo, o de maior antigüidade, suces-
sivamente, na substituição e no cargo.
Art. 107 - É vedada a convocação ou designação de Juiz para
exercer cargo ou função nos Tribunais, ressalvada a substituição
ocasional de seus integrantes (art. 118).
CAPÍTULO III
Dos Tribunais de Alçada
Art. 108 - Poderão ser criados nos Estados, mediante proposta
dos respectivos Tribunais de Justiça, Tribunais inferiores de se-
gunda instância, denominados Tribunais de Alçada, observados os
seguintes requisitos:
I - ter o Tribunal de Justiça número de Desembargadores igual ou
superior a trinta;

404
Formação Humanística

II - haver o número de processos distribuídos no Tribunal de Justi-


ça nos dois últimos anos, superado o índice de trezentos feitos por
Desembargador, em cada ano;
III - limitar-se a competência do Tribunal de Alçada, em matéria
penal, às infrações a que não seja cominada pena de reclusão
(vetado) e, em matéria cível, a recursos nas ações relativas à lo-
cação e a acidentes do trabalho e à matéria fiscal, e nos concer-
nentes a ações de procedimento sumaríssimo.
III - limitar-se a competência do Tribunal de Alçada, em matéria
cível, a recursos: (Inciso incluído pela Lei Complementar nº 37, de
13.11.1979)
a) em quaisquer ações relativas à locação de imóveis, bem assim
nas possessórias; Alínea incluída pela Lei Complementar nº 37, de
13.11.1979)
b) nas ações relativas à matéria fiscal da competência dos Municí-
pios; Alínea incluída pela Lei Complementar nº 37, de 13.11.1979)
c) nas ações de acidentes do trabalho; Alínea incluída pela Lei
Complementar nº 37, de 13.11.1979)
d) nas ações de procedimento sumaríssimo, em razão da matéria;
Alínea incluída pela Lei Complementar nº 37, de 13.11.1979)
e) nas execuções por título extrajudicial, exceto as relativas à ma-
téria fiscal da competência dos Estados; Alínea incluída pela Lei
Complementar nº 37, de 13.11.1979)
IV - limitar-se a competência do Tribunal de Alçada, em matéria
penal, a habeas corpus e recursos: (Inciso incluído pela Lei Com-
plementar nº 37, de 13.11.1979)
a) nos crimes contra o patrimônio, seja qual for a natureza da pena
cominada; Alínea incluída pela Lei Complementar nº 37, de
13.11.1979)
b) nas demais infrações a que não seja cominada a pena de reclu-
são, isolada, cumulativa ou alternadamente, excetuados os crimes

405
ou contravenções relativas a tóxicos ou entorpecentes, e a falên-
cia. (Alínea incluída pela Lei Complementar nº 37, de 13.11.1979)
Parágrafo único - Nos Estados em que houver mais de um Tribu-
nal de Alçada, caberá privativamente a um deles, pelo menos,
exercer a competência prevista no inciso IV deste artigo. (Parágra-
fo incluído pela Lei Complementar nº 37, de 13.11.1979)
Art. 109 - Nos casos de conexão ou continência entre ações de
competência do Tribunal de Justiça e do Tribunal de Alçada, pror-
rogar-se-á a do primeiro, o mesmo ocorrendo quando, em matéria
penal, houver desclassificação para crime de competência do últi-
mo.
Art. 110 - Os Tribunais de Alçada terão jurisdição na totalidade ou
em parte do território do Estado, e sede na Capital ou em cidade
localizada na área de sua jurisdição.
Parágrafo único - Aplica-se, no que couber, aos Tribunais de Alça-
da, o disposto nos arts. 100, caput, §§ 1º, 2º e 5º, 101 e 102.
Art. 111 - Nos Estados com mais de um Tribunal de Alçada é as-
segurado aos seus Juízes o direito de remoção de um para outro
Tribunal, mediante prévia aprovação do Tribunal de Justiça, ob-
servado o quinto constitucional.
CAPÍTULO IV
Da Justiça de Paz
Art. 112 - A Justiça de Paz temporária, criada por lei, mediante
proposta do Tribunal de Justiça, tem competência somente para o
processo de habilitação e a celebração do casamento.
§ 1º - O Juiz de Paz será nomeado pelo Governador, mediante
escolha em lista tríplice, organizada pelo Presidente do Tribunal
de Justiça, ouvido o Juiz de Direito da Comarca, e composta de
eleitores residentes no Distrito, não pertencentes a órgão de dire-
ção ou de ação de Partido Político. Os demais nomes constantes
da lista tríplice serão nomeados primeiro e segundo suplentes.

406
Formação Humanística

§ 2º - O exercício efetivo da função de Juiz de Paz constitui servi-


ço público relevante e assegurará prisão especial, em caso de
crime comum, até definitivo julgamento.
§ 3º - Nos casos de falta, ausência ou impedimento do Juiz de Paz
e de seus suplentes caberá ao Juiz de Direito da Comarca a no-
meação de Juiz de Paz ad hoc.
Art. 113 - A impugnação à regularidade do processo de habilitação
matrimonial e a contestação a impedimento oposto serão decidi-
das pelo Juiz de Direito.
TÍTULO IX
Da Substituição nos Tribunais
Art. 114 - O Presidente do Tribunal é substituído pelo Vice-
Presidente, e este e o Corregedor, pelos demais membros, na
ordem decrescente de antigüidade.
Art. 115 - Em caso de afastamento a qualquer título por período
superior a trinta dias, os feitos em poder do magistrado afastado e
aqueles em que tenha lançado relatório como os que puseram em
mesa para julgamento, serão redistribuídos aos demais membros
da Câmara, Turma, Grupo ou Seção especializada, mediante o-
portuna compensação. Os feitos em que seja revisor passarão ao
substituto legal.
§ 1º - O julgamento que tiver sido iniciado prosseguirá, computan-
do-se os votos já proferidos, ainda que o magistrado afastado seja
o relator.
§ 2º - Somente quando indispensável para decidir nova questão,
surgida no julgamento, será dado substituto ao ausente, cujo voto,
então, não se computará.
Art. 116 - Quando o afastamento for por período igual ou superior
a três dias, serão redistribuídos, mediante oportuna compensação,
os habeas corpus, os mandados de segurança e os feitos que,
consoante fundada alegação do interessado, reclamem solução

407
urgente. Em caso de vaga, ressalvados esses processos, os de-
mais serão atribuídos ao nomeado para preenchê-la.
Art. 117 - Para compor o quorum de julgamento, o magistrado, nos
casos de ausência ou impedimento eventual, será substituído por
outro da mesmo Câmara ou Turma, na ordem de antigüidade, ou,
se impossível, de outra, de preferência da mesma Seção especia-
lizada, na forma prevista no Regimento Interno. Na ausência de
critérios objetivos, a convocação far-se-á mediante sorteio público,
realizado pelo Presidente da Câmara, Turma ou Seção especiali-
zada.
Art. 118. Em caso de vaga ou afastamento, por prazo superior a
30 (trinta) dias, de membro dos Tribunais Superiores, dos Tribu-
nais Regionais, dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais de Alça-
da, (Vetado) poderão ser convocados Juízes, em Substituição
(Vetado) escolhidos (Vetado) por decisão da maioria absoluta do
Tribunal respectivo, ou, se houver, de seu Órgão Especial: (Reda-
ção dada pela Lei Complementar nº 54, de 22.12.1986)
§ 1º - A convocação far-se-á mediante sorteio público dentre:
I - os Juízes Federais, para o Tribunal Federal de Recursos;
II - o Corregedor e Juízes Auditores para a substituição de Ministro
togado do Superior Tribunal Militar;
III - Os Juízes da Comarca da Capital para os Tribunais de Justiça
dos Estados onde não houver Tribunal de Alçada e, onde houver,
dentre os membros deste para os Tribunais de Justiça e dentre os
Juízes da Comarca da sede do Tribunal de Alçada para o mesmo;
IV - os Juízes de Direito do Distrito Federal, para o Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e dos Territórios;
V - os Juízes Presidentes de Junta de Conciliação o Julgamento
da sede da Região para os Tribunais Regionais do Trabalho.

408
Formação Humanística

§ 2º - Não poderão ser convocados Juízes punidos com as penas


previstas no art. 42, I, II, III e IV, nem os que estejam respondendo
ao procedimento previsto no art. 27.
§ 3º - A convocação de Juiz de Tribunal do Trabalho, para substi-
tuir Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, obedecerá ao dis-
posto neste artigo.
§ 4º Em nenhuma hipótese, salvo vacância do cargo, haverá redis-
tribuição de processos aos Juízes convocados. (Parágrafo incluído
pela Lei Complementar nº 54, de 22.12.1986)
Art. 119 - A redistribuição de feitos, a substituição nos casos de
ausência ou impedimento eventual e a convocação para completar
quorum de julgamento não autorizam a concessão de qualquer
vantagem, salvo diárias e transporte, se for o caso.
TÍTULO X
Disposições Finais e Transitórias
Art. 120 - Os Regimentos Internos dos Tribunais disporão sobre a
devolução e julgamento dos feitos, no sentido de que, ressalvadas
as preferências legais, se obedeça, tanto quanto possível, na or-
ganização das pautas, a igualdade numérica entre os processos
em que o Juiz funcione como relator e revisor.
Art. 121 - Nos julgamentos, o pedido de vista não impede votem
os Juízes que se tenham por habilitados a fazê-lo, e o Juiz que o
formular restituirá os autos ao Presidente dentro em dez dias, no
máximo, contados do dia do pedido, devendo prosseguir o julga-
mento do feito na primeira sessão subseqüente a este prazo.
Art. 122 - Os Presidentes e Vice-Presidentes de Tribunal, assim
como os Corregedores, não poderão participar de Tribunal Eleito-
ral.
Art. 123 - Poderão ter seus mandatos prorrogados, por igual perí-
odo, o Presidente, o Vice-Presidente e o Corregedor que, por força

409
de disposição regimental, estejam, na data da publicação desta
Lei, cumprindo mandato de um ano.
Art. 124. O Magistrado que for convocado para substituir, em pri-
meira ou segunda instância, perceberá a diferença de vencimen-
tos correspondentes ao cargo que passa a exercer, inclusive diá-
rias e transporte, se for o caso. (Redação dada pela Lei Comple-
mentar nº 54, de 22.12.1986)
Art. 125 - O Presidente do Tribunal, de comum acordo com o Vice-
Presidente, poderá delegar-lhe atribuições.
Art. 126 - O Conselho da Justiça Federal compõe-se do Presiden-
te e do Vice-Presidente do Tribunal Federal de Recursos, e de
mais três Ministros eleitos pelo Tribunal, com mandato de dois
anos.
Parágrafo único - O Tribunal Federal de Recursos, ao eleger os
três Ministros que integrarão o Conselho, indicará, dentre eles, o
Corregedor-Geral, bem como elegerá os respectivos suplentes.
Art. 127 - Nas Justiças da União, os Estados e do Distrito Federal
e dos Territórios, poderão existir outros órgãos com funções disci-
plinares e de correição, nos termos da lei, ressalvadas as compe-
tências dos previstos nesta.
Art. 128 - Nos Tribunais, não poderão ter assento na mesma Tur-
ma, Câmara ou Seção, cônjuges e parentes consangüíneos ou
afins em linha reta, bem como em linha colateral até o terceiro
grau.
Parágrafo único - Nas sessões do Tribunal Pleno ou órgão que o
substituir, onde houver, o primeiro dos membros mutuamente im-
pedidos, que votar, excluirá a participação do outro no julgamento.
Art. 129 - O magistrado, pelo exercício em órgão disciplinar ou de
correição, nenhuma vantagem pecuniária perceberá, salvo trans-
porte e diária para alimentação e pousada, quando se deslocar de
sua sede.

410
Formação Humanística

Art. 131 - Ao magistrado que responder a processo disciplinar


findo este, dar-se-á certidão de suas peças, se o requerer.
Art. 132 - Aplicam-se à Justiça do Distrito Federal e dos Territó-
rios, no que couber, as normas referentes à Justiça dos Estados.
Art. 133 - O Presidente do Supremo Tribunal Federal adotará as
providências necessárias à instalação do Conselho Nacional da
Magistratura no prazo de trinta dias, contado da entrada em vigor
desta Lei.
Art. 134 - Concluídas as instalações que possam atender á nova
composição do Tribunal Federal de Recursos, serão preenchidos
oito cargos de Ministro, para completar o número de vinte e sete,
nos termos do art. 4º, devendo o Presidente do Tribunal no prazo
de trinta dias, tornar efetiva a reorganização determinada nesta Lei
e promover, a adaptação do Regimento Interno às regras nela
estabelecias.
Parágrafo único - As disposições dos arts. 115 e 118 da Lei Com-
plementar nº 35, de 14 de março de 1979, não se aplicarão ao
Tribunal Federal de Recursos, enquanto não forem preenchidos os
oito cargos de Ministro, para complementar o número de vinte e
sete, nos termos previstos neste artigo. (Parágrafo incluído pela
Lei Complementar nº 37, de 13.11.1979)
Art. 135 - O mandato dos membros do Conselho Nacional da Ma-
gistratura eleitos no prazo do artigo anterior, com início da data da
sua eleição, terminará juntamente com o do Presidente e do Vice-
Presidente do Supremo Tribunal Federal eleitos em substituição
aos atuais.
Art. 136 - Para efeito do aumento do número de Desembargado-
res, previsto no art. 106, § 1º, poderá ser computado o número de
processos distribuídos durante o ano anterior, e que, por força
desta Lei, passaram à competência dos Tribunais de Justiça.
Art. 137 - Os cargos de Desembargadores criados após a promul-
gação da Emenda Constitucional nº 7, de 13 de abril de 1977, e

411
ainda não providos à data da vigência desta Lei, somente o serão
uma vez satisfeito o requisito constante do art. 106, § 1º.
Art. 138 - Aos Juízes togados, nomeados mediante concurso de
provas e ainda sujeitos a concurso de títulos consoante as legisla-
ções estaduais, computar-se-á, no período de dois anos de está-
gio para aquisição da vitaliciedade, o tempo de exercício anterior a
13 de abril de 1977.
Art. 139 - Dentro de seis meses contados da vigência desta Lei, os
Estados adaptarão sua organização judiciária aos preceitos e aos
constantes da Constituição federal.
§ 1º - Nos Estados em que houver Tribunal de Alçada, os Tribu-
nais de Justiça observarão quanto à competência o disposto no
art. 108, incisos III e IV. (Redação dada pela Lei Complementar nº
37, de 13.11.1979)
§ 2º - Os Tribunais de Justiça e os de Alçada conservarão, residu-
almente, sua competência, para o processo e julgamento dos fei-
tos e recursos que houverem sido entregues, nas respectivas Se-
cretarias, até a data da entrada em vigor da lei estadual de adap-
tação prevista no art. 202 da Constituição, ainda que não tenham
sido registrados ou autuados. (Redação dada pela Lei Comple-
mentar nº 37, de 13.11.1979)
Art. 140 - Vencido o prazo do artigo anterior, ficarão extintos os car-
gos de Juiz substituto de segunda instância, qualquer que seja a sua
denominação, e seus ocupantes, em disponibilidade, com vencimen-
tos integrais até serem aproveitados.
§ 1º - O aproveitamento far-se-á por promoção ao Tribunal de
Justiça ou ao Tribunal de Alçada, conforme o caso, respeitado o
quinto constitucional, alternadamente, pelos critérios de antigüida-
de e merecimento, e, enquanto não foi possível, nas Varas da
Comarca da Capital, de entrância igual à dos ocupantes aos car-
gos extintos.

412
Formação Humanística

§ 2º - No Estado do Rio de Janeiro, nas primeiras vagas que ocor-


rerem ou vierem a ser criadas no Tribunal de Justiça, ressalvada a
faculdade do Governador, de prévio aproveitamento dos atuais
Desembargadores em disponibilidade (Emenda Constitucional nº
7/77, art. 202, § 2º) e observado o quinto constitucional, serão
aproveitados os atuais Juízes de Direito substitutos de Desembar-
gador, sem prejuízo da antigüidade que tiverem os demais Juízes
de Direito de entrância especial, na oportunidade do acesso ao
Tribunal.
§ 3º - Os Juízes substitutos dos Tribunais de Alçada do mesmo
Estado serão aproveitados nas primeiras vagas que ocorrerem ou
vierem a ser criadas em qualquer desses Tribunais, observados os
mesmos critérios deste artigo.
§ 4º Os Juízes que, na data da entrada em vigor desta Lei, este-
jam no exercício de função substituinte, mediante convocação
temporária, reassumirão o exercício das Varas de que sejam titula-
res.
§ 5º - É, vedado o aproveitamento por forma diversa da prevista
nos artigos anteriores, inclusive como assessor, assistente ou
auxiliar de Desembargador ou de Juiz de Tribunal de Alçada.
Art. 141 - Independentemente do disposto no § 3º do art. 100 des-
ta Lei, fica assegurado o acesso aos Tribunais de Justiça, pelo
critério de antigüidade, de todos os Juízes de Direito que, à data
da promulgação desta Lei, integrem a mais elevada entrância,
desde que, segundo as disposições estaduais então vigentes,
tenham igual ou maior antigüidade do que a daqueles que inte-
gram os Tribunais de Alçada ressalvada a recusa prevista no inci-
so III do art. 144 da Constituição federal.
Art. 142 - No Estado do Rio de Janeiro a aplicação do disposto no
§ 3º do art. 100 não poderá afetar a antigüidade que tiverem, na
data da entrada em vigor desta Lei, os Juízes que atualmente
compõem a entrância especial, entre os quais se incluem os Juí-
zes que integram os Tribunais de Alçada.

413
Art. 143 - O disposto no § 4º do art. 100 não se aplica às vagas
ocorrentes antes da data da entrada em vigor desta Lei.
Art. 144 - (Vetado.)
Parágrafo único - (Vetado.)
Art. 145 - As gratificações e adicionais atualmente atribuídos a
magistrados, não previstos no art. 65, ou excedentes das percen-
tagens e limites nele fixados, ficam extintos e seus valores atuais
passam a ser percebidos como vantagem pessoal inalterável no
seu quantum, a ser absorvida em futuros aumentos ou reajustes
de vencimentos.
Parágrafo único - A absorção a que se refere este artigo não se
aplica ao excesso decorrente do número de qüinqüênios e não
excederá de vinte por cento em cada aumento ou reajuste de ven-
cimento.
Art. 146 - Esta Lei entrará em vigor sessenta dias após sua publi-
cação.
Art. 147 - Revogam-se as disposições em contrário.
Brasília, 14 de março de 1979; 128º da Independência e 91º da
República.
ERNESTO GEISEL
Armando Falcão

5.5 Questões-exercícios comentadas para os alunos do


Curso de Formação Humanística preparatório para o
Concurso da Magistratura

1) Em que medida se pode compreender a questão do justo no


ordenamento jurídico a partir da Constituição Federal de 1988?

414
Formação Humanística

Sugestão para a resolução da questão: A Constituição de 1988, desta


maneira, parte de uma idéia fundamentalmente ética: a defesa intransi-
gente do sujeito, da pessoa humana. Nesse sentido, o que se quer com a
defesa material dos direitos do homem, homem aqui entendido a partir de
uma universalidade categórica, um tipo ideal comum, é a construção de
mecanismos que permitam a defesa da honra, da dignidade, do nome e
da própria existência da pessoa. Para realizar esse projeto ambicioso, é
importante não se afastar da idéia de justo. O justo deve ser compreendi-
do como um conjunto de valores e atos que se realizam a partir daqueles
elementos que constituem a base do comportamento moral de um grupo
social, repetido até se constituir num senso comum de certo e errado ao
qual o sistema do direito positivo busca normatizar a partir do comando
legal. A idéia aqui é de uma experimentação dos fenômenos que realizam
a ação humana, permitindo as escolhas daqueles meios e instrumentos
que constituem a base do julgamento dos sujeitos humanos, ou seja,
formam a moral e a valoração desses atos, quer dizer, da valoração ética.
A constituição de 1988 partiu, assim, de uma idéia de defesa, de proteção
e de disposição de meios para que os homens, brasileiros e estrangeiros,
residentes ou não, fiquem abrigados de toda e qualquer forma de amea-
ça. É, assim, a essência dos artigos 1º a 4º, bem como o corpo dos 78
incisos do artigo 5º.

2) Como se pode compreender o tema da Dignidade Humana a


partir da sua perspectiva positivista e hermenêutica?

Sugestão para a resolução da questão: a dignidade humana é um pre-


ceito matriz na CF/88, uma vez que em torno desse conceito, compreen-
dido de forma lata, se estrutura a série de instrumentos que protegem a
pessoa humana. Positivamente, a dignidade humana é compreendida a
partir dos dispositivos normativos que estão apresentados pela constitui-
ção, como por exemplo, o habeas corpus, o habeas data, o mandado de
segurança, o mandado de injunção, etc. Hermeneuticamente, a dignidade
humana exsurge da própria força dos direitos fundamentais, consagrados
pela Constituição, e que se constituem em cláusulas pétreas, conforme o

415
artigo 60, §4º, IV. Mas, igualmente, a idéia que percorre todo o texto cons-
titucional é a de que os valores ali defendidos se impõem enquanto impe-
rativos categóricos, na perspectiva kantiana de defesa intransigente de
tudo aquilo que faz parte do patrimônio do ser humano, em uma perspec-
tiva psíquica, física e material, pois há uma idéia de complexidade desses
valores indissociáveis da condição humana. Desta forma, interpretar a
CF/88 é sempre realizar uma interpretação que mais se aproxime da
proteção dos valores do homem, mesmo quando se contraria a vontade
do Estado.

3) Partindo da teoria que pressupõe a independência dos poderes,


e aceitando-se a ampla reforma realizada no poder judiciário a
partir da Emenda Constitucional de n.º45/04, como se pode expli-
car o papel do judiciário à luz da visão weberiana?

Sugestão para a resolução da questão: Uma vez que Weber é um dos


teóricos que defende a idéia de um processo racional para a constituição
do Estado, incluindo-se aí o poder judiciário, a própria condição estrutu-
rante desse poder que deve obedecer a critérios que se aproximam das
condições de um direito racional formal, quer dizer, aquele momento em
que a lei e a justiça se consagram em conceitos abstratos e lógicos, frutos
de uma sistemática jurídica burocratizada e eficiente que se faz sentir na
própria condição de recrutamento daqueles que farão parte administrativa
desse poder judiciário. A perspectiva weberiana busca uma seculariza-
ção na qual o que deve imperar como fundamento maior do poder, é a
razão, ou seja, a lei precisa estar elaborada a partir da sua capacidade de
racionalmente arbitrar os conflitos sem se deixar influenciar por discursos
que não baseados em escolhas racionais.

4) A Constituição tem sido compreendida como um espaço privi-


legiado para os Diretos Humanos. Nesse sentido, obrigada a reali-
zar-se também numa esfera normativa, como se pode compreen-
dê-la enquanto lei fundamental e a necessária exigência da teoria
da adequação para a concretização dos Direitos Fundamentais?

416
Formação Humanística

Sugestão para a resolução da questão: O desafio que se impõe é trans-


formar princípios em normas, garantias e valores em comandos que de-
vem ser obedecidos por todos. Nesse sentido, a Constituição precisa
estar abrigada enquanto resultado histórico-sociológico, representando as
opções e as diretrizes históricas de um determinado grupo social, e nesse
sentido, sua capacidade fenomenológica se faz a partir da sua capacida-
de de observar e contemplar o maior conjunto possível de sujeitos, reali-
zando assim a possibilidade de uma normatização dos direitos fundamen-
tais. Adequar a CF/88, tanto através dos mecanismos formas de revisão,
quanto o da mutação constitucional, compreendido como uma mudança
informal é compreender a CF como movimento, como sujeito constante de
sua própria historicidade.

5) A Emenda Constitucional de n.º45/04 veio a permitir um cres-


cimento desmedido do poder político do STF. Nesse sentido, como
explicar a prática da mutação constitucional com o artigo 2º da
CF/88? Em que medida se pode ainda defender a teoria da tripar-
tição dos poderes instituídos pelo Estado?

Sugestão para a resolução da questão: A EC n.º45/04 permitiu um agir


ao STF que ampliou a sua capacidade de agir enquanto sujeito político, o
que pode ser percebido pela redação do artigo 103-A, da CF/88. Na me-
dida em que somente cabe ao STF determinar o que venha a ser uma
repercussão geral, na medida em que até mesmo de ofício podem editar
uma súmula vinculante, na medida em que recebeu a exclusividade desse
instituto da súmula vinculante, o STF acabou se constituindo em um ór-
gão acima de qualquer controle efetivo e formal num estado que se pre-
tende fundado na teoria dos pesos e contrapesos que, de fato, veio a ser
subvertido pelo poder de decisão dessa corte que num primeiro momento
deveria se constituir em uma corte constitucional. Esse processo, conhe-
cido pelo termo de jurisdicização amplia a força politica do STF, permitin-
do-lhe um agir que transcende aos limites de sua natureza judicial. Uma
vez que amplia a sua capacidade de controle, através da força de suas
decisões marcadas pela instrumentalização das súmulas vinculantes, o

417
STF acabou por quebrar o equilíbrio previsto no artigo 2º, uma vez que
com a EC n.º 45/04, esta corte passou a reinterpretar a Constituição em
detrimento daquela reserva originária que contemplava fundamentalmente
ao poder legislativo a capacidade legiferante. Para muitos, o poder judici-
ário, através do STF e as súmulas vinculantes, bem como o poder execu-
tivo através da prática das MP suplantaram o poder legislativo, reduzindo-
o em muitos casos a uma mera função e não mais como um poder inde-
pendente.

6) Fundamente em que medida se pode compreender as diferen-


ças entre o Estado de Direito e o Estado Democrático de Direito à
luz da CF/88.

Sugestão para a resolução da questão: O estado de direito é historica-


mente fundado na primeira metade do século XX, baseado no poder posi-
tivo da lei imposta pelo Estado, pela idéia de uma tipicidade formal que
justificaria tudo aquilo que o legislador tivesse constituído a partir da figura
da norma. O estado democrático de direito buscou relativizar a força da lei
na medida em que trouxe a tradição liberal do voto como instrumento que
permite ao cidadão a possibilidade de indiretamente alterar constante-
mente o espaço do jurídico através da mudança daquele que tem a com-
petência para criar a lei. O voto e a lei passam assim a experimentar uma
condição de equilíbrio nesses estados, uma vez que o estado de direito,
baseado na força da lei não foi capaz de permitir as sociedades evitar a
emergência de estados autoritários e em alguns casos (nazismo e stali-
nismo) até mesmo totalitários. O ciclo eleitoral se constitui desta forma
numa condição de controle sobre o poder legislativo, bem como numa
condição de historicidade constante da própria lei.

7) O ato decisório é sempre um ato político ao qual a Constitui-


ção, em seu artigo 93 regulamenta a necessidade de ser sempre um
ato fundamentado. Lembrando que o ordenamento jurídico brasi-
leiro está ainda sob a égide do positivismo jurídico, como explicar
a atuação de juízes que confundem a motivação com a fundamen-

418
Formação Humanística

tação? Em que medida se pode ainda aceitar a existência de mitos


tais como o da imparcialidade e do livre convencimento do juízo?

Sugestão para a resolução da questão: Não se pode aceitar mais a


idéia da imparcialidade e do livre convencimento, pois não se pode mais
admitir a figura de uma separação do sujeito (juiz) do objeto (o fato huma-
no, a lei). Sujeito e objeto se confundem de forma absoluta, uma vez que
a decisão judicial não se encontra na lei, mas sim nas condições culturais
e psíquicas do próprio sujeito que ocupa uma condição, uma função de
magistrado. A fundamentação é um meio pelo qual as condições do intér-
prete se revelam desde sempre, ou seja, o que ele é como sujeito históri-
co e cultural aparecem nos elementos explicativos que ele deve apresen-
tar quando busca justificar a sua interpretação do fato levado a ele para
decidir. Fundamentar é ontologizar o juiz, trazendo-lhe a dimensão de sua
mundanidade, reconhecendo-lhe a sua limitação enquanto sujeito inserido
em uma determinada realidade social. É reconhecer que o paradigma
cartesiano da lógica da decisão judicial não se faz de forma apenas racio-
nal, mas há uma subjetividade latente que permite ao sujeito que exerce
em determinadas situação a condição de juiz, decidir pelo que ele enten-
de, não necessariamente naquilo que está na lei. A mesma lei é compre-
endida de forma distinta por distintos sujeitos que encontram nela aquilo
que já carregam em si mesmos. A motivação é a formalização necessária
para justificar o porquê dos sujeitos sociais se submeterem as decisões
judiciais, pois escolhendo um determinado artigo, parágrafo, inciso e alí-
nea já desenhados em algum código, o juiz pode sempre dizer que não foi
a decisão dele que resolveu o litigio, mas sim aquilo que estava previa-
mente disposto em lei, o que é uma grande ironia, pois ele somente pode
ler o artigo na condição de sujeito de linguagem, isto é, a partir do capital
cultural e psíquico que ele carrega desde sempre com ele.

8) Como se pode compreender o artigo 97 da CF/88 à luz do con-


ceito de justo meio aristotélico?

419
Sugestão para a resolução da questão: O artigo 97 trata do tema da
reserva de plenário, quer dizer, permite aos tribunais ou aos seus órgãos
plenos decidirem sobre a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato
normativo do poder público. Nesse sentido, sua condição procedimental
não se configura como um justo meio aristotélico, mas como um meio
teleológico, conforme pregava Maquiavel, para se alcançar um determi-
nado fim. O justo meio não é um procedimento formal, mas uma condição
que permeia a ação do sujeito humano em si. No caso, o fim, a declara-
ção de inconstitucionalidade é uma decisão política de um órgão a partir
daquilo que lhe foi reservada pela Constituição.

09) Na questão abaixo, após ler a sentença destacada, busque jus-


tificá-la a partir dos conceitos de justo, justo meio e equidade.

Processo distribuído em 17/02/2005, na 9ª vara cível de


Niterói - RJ

PODER JUDICIÁRIO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO -


COMARCA DE NITERÓI - NONA VARA CÍVEL
Processo n° 2005.002.003424- 4
SENTENÇA
Cuidam-se os autos de ação de obrigação de fazer manejada por
ANTONIO MARREIROS DA SILVA MELO NETO contra o CON-
DOMÍNIO DO EDIFÍCIO LUÍZA VILLAGE e JEANETTE GRA-
NATO, alegando o autor fatos precedentes ocorridos no interior do
prédio que o levaram a pedir que fosse tratado formalmente de “se-
nhor”.
Disse o requerente que sofreu danos, e que esperava a proce-
dência do pedido inicial para dar a ele autor e suas visitas o tratamento
de ‘Doutor’, “senhor” "Doutora, senhora", sob pena de multa diária a

420
Formação Humanística

ser fixada judicialmente, bem como requereu a condenação dos réus


em dano moral não inferior a 100 salários mínimos. (...)
DECIDO: “O problema do fundamento de um direito apresen-
ta-se diferentemente conforme se trate de buscar o fundamento de um
direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter.” (Norberto
Bobbio, in “A Era dos Direitos”, Editora Campus, pg. 15).
Trata-se o autor de Juiz digno, merecendo todo o respeito deste
sentenciante e de todas as demais pessoas da sociedade, não se justifi-
cando tamanha publicidade que tomou este processo.
Agiu o requerente como jurisdicionado, na crença de seu direi-
to. Plausível sua conduta, na medida em que atribuiu ao Estado à solu-
ção do conflito.
Não deseja o ilustre Juiz tola bajulice, nem esta ação pode ter
conotação de incompreensível futilidade. O cerne do inconformismo é
de cunho eminentemente subjetivo, e ninguém, a não ser o próprio
autor, sente tal dor, e este sentenciante bem compreende o que tanto
incomoda o probo Requerente.
Está claro que não quer, nem nunca quis o autor, impor medo
de autoridade, ou que lhe dediquem cumprimento laudatório, posto
que é homem de notada grandeza e virtude. Entretanto, entendo que
não lhe assiste razão jurídica na pretensão deduzida.
“Doutor” não é forma de tratamento, e sim título acadêmico uti-
lizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga
merecedora de um doutoramento. Emprega-se apenas às pessoas que
tenham tal grau, e mesmo assim no meio universitário. Constitui-se
mera tradição referir-se a outras pessoas de ‘doutor’, sem o ser, e fora
do meio acadêmico.
Daí a expressão doutor honoris causa - para a honra -, que se
trata de título conferido por uma universidade a guisa e homenagem a
determinada pessoa, sem submetê-la a exame.

421
Por outro lado, vale lembrar que “professor” e “mestre” são tí-
tulos exclusivos dos que se dedicam ao magistério, após concluído o
curso de mestrado. Embora a expressão “senhor” confira a desejada
formalidade às comunicações - não é pronome -, e possa até o autor
aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando inti-
midades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado
do condomínio a ele assim se referir.
O empregado que se refere ao autor por “você”, pode estar sen-
do cortês, posto que “você” não é pronome depreciativo. Isso é forma-
lidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou inci-
dência de insubordinação. Fala-se segundo sua classe social. O brasi-
leiro tem tendência na variedade coloquial relaxada, em especial a
classe “semi-culta”, que sequer se importa com isso.
Na verdade “você” é variante - contração da alocução - do tra-
tamento respeitoso “Vossa Mercê”. A professora de linguística Eliana
Pitombo Teixeira ensina que os textos literários que apresentam altas
freqüências do pronome "você", devem ser classificados como for-
mais. Em qualquer lugar desse país, é usual as pessoas serem chama-
das de “seu” ou “dona”, e isso é tratamento formal.
Em recente pesquisa universitária, constatou-se que o simples
uso do nome da pessoa substitui o senhor/a senhora e você quando
usados como prenome, isso porque soa como pejorativo tratamento
diferente. Na edição promovida por Jorge Amado “Crônica de Viver
Baiano Seiscentista”, nos poemas de Gregório de Matos, destacou o
escritor que Miércio Táti anotara que “você” é tratamento cerimonio-
so. (Rio de Janeiro, São Paulo, Record, 1999).
Urge ressaltar que tratamento cerimonioso é reservado a círcu-
los fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadê-
mico, como já se disse. A própria Presidência da República fez publi-
car Manual de Redação instituindo o protocolo interno entre os demais
Poderes. Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido.
Por isso que se diz que a alternância de “você” e “senhor” traduz-se

422
Formação Humanística

numa questão sociolinguística, de difícil equação num país como o


Brasil de várias influências regionais.
Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação,
etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o em-
pregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna
corpore daquela própria comunidade.
Isto posto, por estar convicto de que inexiste direito a ser agasa-
lhado, mesmo que lamentando o incômodo pessoal experimentado
pelo ilustre autor, julgo improcedente o pedido inicial, condenando o
postulante no pagamento de custas e honorários de 10% sobre o valor
da causa. P.R.I. Niterói, 02 de maio de 2005.

ALEXANDRE EDUARDO SCISINIO /Juiz de Direito/


Questões da Magistratura do RJ (XLIII CONCURSO PARA
INGRESSO NA MAGISTRATURA)

1ª QUESTÃO (VALOR 0,40):


COMENTAR ACERCA DA INTERPENETRAÇÃO DOS
SISTEMAS ANGLOSSAXÔNICO E ROMANO, NA CONSTRU-
ÇÃO DO ORDENAMENTO JURÍDICO, E NA APLICAÇÃO DO
DIREITO, NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA, SOBRETUDO
NO BRASIL.
2ª QUESTÃO (VALOR 0,40):
EXPLICAR O CONCEITO DE EQUIDADE, SEGUNDO A-
RISTÓTELES, COTEJANDO-O COM PRINCÍPIOS CONSTITU-
CIONAIS PÁTRIOS.

Questões da Magistratura de Santa Catarina:


A questão abaixo está inserida no contexto do Anexo III, item
1(Sociologia do Direito), sub-item 1.2 (Relações sociais e relações

423
jurídicas. Controle social e o Direito. Transformações sociais e o Di-
reito); item 4. (Filosofia do Direito) sub-item 4.1 (Sentido estrito de
Justiça como valor jurídico-político).

PODER, JUSTIÇA, DIREITO E PROCESSO.


Discorra entre 10 a 20 linhas, sobre o imbricamento, a ruptura e
as tendências dos postulados abaixo:
1. PODER como capacidade, para qualquer instância que seja
(pessoal ou impessoal) de levar alguém (ou vários) a fazer (ou não
fazer) o que, entregue a si mesmo, ele não faria necessariamente (ou
faria talvez). Cornelius Castoriadis – O mundo fragmentado - Encruzi-
lhada do labirinto, p. 21. In Passos, José Joaquim Calmon de – Direi-
to, poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam – RJ: Foren-
se, 2003.
2. JUSTIÇA, socialmente possível é sempre resultado do con-
fronto dessas duas forças – o poder dos que comandam e o não-poder
dos que obedecem, o que gera sempre um equilíbrio instável, só capaz
de manter-se mediante um agir permanente e eficaz tanto de domina-
dores quanto de dominados. Passos, José Joaquim Calmon de – Direi-
to, poder, justiça e processo: julgando os que nos julgam – RJ: Foren-
se, 2003.
3. DIREITO é, quase que exclusivamente, um instrumento as-
segurador de determinado modelo de convivência social. Ou seja,
Todo Direito é socialmente construído, historicamente formulado,
atende ao contingente e, conjuntural do tempo e do espaço em que o
poder político atua e à correlação de forças efetivamente contrapostas
na sociedade em que ele, o poder, se institucionalizou. Passos, José
Joaquim Calmon de – Direito, poder, justiça e processo: julgando os
que nos julgam - RJ: Forense, 2003.

424
Formação Humanística

Essa questão está inserida no conteúdo do Anexo III, item 2


(Psicologia Judiciária), sub-item 2.1 (Relacionamento interpessoal.
Relacionamento do magistrado com a sociedade e a mídia); item 3
(Ética e Estatuto Jurídico da Magistratura Nacional), sub-item 3.2.
(Direitos e deveres funcionais da Magistratura):
ÉTICA, MORAL, DEONTOLOGIA E DIREITO.
Carlin, Volnei Ivo. Deontologia Jurídica – Ética e justiça. Flo-
rianópolis: OAB/SC Editora, 2005. Especificando os significados de
cada instituto, refere:
1. ÉTICA; é uma ciência prática de caráter filosófico, porque
expõe e fundamenta princípios universais sobre a moralidade dos atos
humanos. … dois são os significados conferidos ao vocábulo de ética:
a) Em sentido amplo, relaciona-se com a ciência do direito e a doutri-
na moral. b) Em sentido restrito, refere-se aos atos humanos e às nor-
mas que constituem determinado sistema de conduta moral, integran-
do-se, pois, única e especificamente com a doutrina moral. Numa
definição singela consiste na conduta profissional, feita a partir da
afirmação de valores e da prática de técnicas consoante estes valores.
2. MORAL tem por objeto o comportamento em sociedade, as
relações entre pessoas e, ao final das contas, a maneira como um indi-
víduo trata o outro, cuja ideia de dever vem, na sua essência, em seu
objeto imbuído. ...Há, atualmente, forte movimento em favor da ética,
que se distingue da moral, compreendida esta como uma concepção
mais ampla, referente a todos os campos de ação do indivíduo.
3. DEONTOLOGIA designa o conjunto de regras e princípios
que ordenam a conduta de um profissional. … É uma ciência que trata
dos deveres a que são submetidos os componentes de uma profissão.
Constitui-se no conjunto de preceitos que regem a conduta de pessoas
pertencentes a profissões organizadas em corporações (ordens, comi-
tês, etc.).

425
4. DIREITO, se consubstancia num conjunto de regras obriga-
tórias para todos viverem em sociedade e sancionadas em caso de
descumprimento.
Historicamente reservado e discreto, na pós-modernidade, o Ju-
iz passou a ser tema recorrente, discutido, cobrado e criticado pela
Sociedade. Ou seja,... Nos últimos anos, a crise do Juiz é atualidade
constante e problema de certa acuidade, que suscita aos protagonistas
vivas reações, comentários apaixonados e verdadeiras polêmicas,
embora o debate não seja recente, nem menor ou secundária a sua
importância. De tal maneira, tais respingos parecem atingir a própria
imagem tradicional da instituição judiciária (op.cit. p.15 e 43).
Nos parâmetros postos discorra entre 10 a 20 linhas SO-
BRE A CRISE DE IDENTI-DADE DO JUIZ.

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Formação Humanística

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