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UMA RESENHA CRÍTICA DO LIVRO “O ABUSO DO PODER NA PSICOTERAPIA e na medicina, serviço

social, sacerdócio e magistério” DE ADOLF GUGGENBÜHL-CRAIG.·


Por: Rodrigo de Vasconcellos Pieri
Curso: Clássicos Pós Junguianos
Data: 20/05/10
Publicado pela primeira vez em 1971, talvez o motivo que levou o suíço Adolf Guggenbühl-Craig a escrever “O
Abuso do Poder na Psicoterapia” possa ser encontrado na pergunta que o próprio lança ao término do décimo
quarto capitulo desta obra “O que é que compelem certas pessoas a quererem ajudar os doentes, os que sofrem,
os infelizes, os marginalizados?” (p.77).
Para responder esta e tantas outras dúvidas que o cercavam referentes às “profissões de ajuda” (psicoterapia,
medicina, serviço social, sacerdócio e magistério) Guggenbühl-Craig escreveu um “livro que desempenhou um
papel inestimável na formação dos analistas contemporâneos que seguem a linha de trabalho inaugurada por
Carl Gustav Jung no início do século XX” (p. 07).
Na edição brasileira da Paulus, em 2004, Roberto Gambini, importantíssimo psicólogo junguiano de São Paulo
considera que o seu “assunto central é o mal que o analista involuntariamente pode causar a seus pacientes
quando se propõe a ajudá-los” (p. 07). Ao ampliar um pouco essa imagem, diria que esse mal involuntário pode
ser causado não só pelos analistas, mas por todos aqueles que se propõem a ajudar os doentes, os que sofrem, os
infelizes e os marginalizados. Porém, continuemos com Gambini e sua visão do livro “Sua análise é cirúrgica:
arde, quando passo a passo o autor remove a pele e expõe o nervo de uma relação fadada ao progressivo
desnudamento e nunca a sossegadas conclusões” (p. 07).
O título da introdução do livro é um tanto provocativo e curioso “Livrai-nos do mal?”. Provocativo, pois faz
direta referência ao termino da oração do Pai Nosso e curioso, pois, não está em formato de pedido-purificador,
conforme a oração, mas sim em formato de pergunta “Livrai-nos do mal?”.  Nesta introdução o autor é bem
direto com sua proposta. Ele diz “Nos capítulos que se seguem, gostaria de examinar como e por que os
membros dessas profissões de ajuda podem também causar enormes danos, devido a seu próprio desejo de
ajudar” (p. 09). “Meu objetivo central não é estimular o leitor a ler ainda mais, mas antes fazer com que se volte
para dentro e examine a si próprio” (p. 10) “(…) nós, das profissões de ajuda, não ficaremos nunca livres do mal.
Mas podemos aprender a lidar com ele” (p. 11).
A obra pode ser dividida em quatro partes. Quatro partes que se cruzam e se intercalam ao longo da leitura.
Vale dizer que essa divisão que proponho é puramente didática e que ficar preso a ela pode causar uma má
interpretação.
Na primeira parte, Guggenbühl-Craig traça paralelos entre algumas profissões de ajuda e aproveita para
apontar possíveis perigos que costumam surgir nas atuações destes profissionais. Importante destacar que por
vezes, tais paralelos podem ser vistos como hereditariedade profissional ou descendência histórica entre
diferentes profissões de ajuda. Por exemplo, quando aponta para os paralelismos entre a Inquisição Medieval e
os assistentes sociais. Ambos contem, ou continham, propósitos parecidos “combater situações familiares não
saudáveis, corrigir estruturas sociais insatisfatórias, ajustar os desajustados” (p. 16), ou seja, procurar impor
aquilo que se considera correto para os outros. “Em geral, impingi-se certa concepção de vida, quer os outros
concordem ou não. Prefere-se não reconhecer o direito à doença, à neurose, às relações familiares não
saudáveis, à degeneração social e à excentricidade” (p. 17). Talvez “manipular nossos semelhantes contra sua
vontade, mesmo quando isso nos parece à única via adequada, pode ser altamente problemático (…) nossos
valores atuais não são únicos nem definitivos. Talvez daqui a duzentos anos eles sejam vistos como primitivos e
ridículos. (…) A consciência do caráter questionável de nosso sistema de valores deveria nos tornar mais
cautelosos quando tentamos impingi-lo aos outros.” (p. 17).
Nos casos “em que o assistente social é forçado a operar contra a vontade do interessado, a analise cuidadosa
das profundezas do inconsciente revela que o desejo de poder é um fator extremamente importante. (…) Todos
os que atuam nas profissões sócias, trabalhando para ajudar a humanidade, apresentam motivações
psicológicas extremamente ambíguas para as suas ações. (…) O problema da sombra do poder é, portanto, de
suprema importância para o assistente social, o qual por vezes se vê obrigado a tomar decisões fundamentais
contra a vontade dos indivíduos interessados.” (p. 20). “os assistentes sócias assíduos, entusiásticos e
verdadeiramente devotados é que costumam tornar-se vitimas da sombra de poder.” (p. 25)
Não é só referente aos labores dos assistentes sócias que Guggenbühl-Craig, traça paralelos e aponta os
possíveis perigos. Diz ele “Os modelos em que se baseiam as atividades do terapeuta derivam de várias outras
profissões e só podem ser compreendidos em relação a artes mais antigas. (…) Os modelos profissionais e éticos
que guiam o médico são em parte os mesmos do psicoterapeuta, assim como o lado sombrio do analista até
certo ponto tem a ver com o caráter médico de seu trabalho” (p. 27). “O charlatanismo é um tipo de sombra que
acompanha permanentemente o médico” (p. 28). “Outra vocação, a do sacerdote, também influencia seus
ideais. (…) O lado sombrio dessa nobre imagem de Deus é o hipócrita, aquele que prega não porque acredita,
mas para ter influencia e poder. (…) A duvida é companheira da fé. (…) Assim, este acaba não tendo outra
alternativa a não ser tornar-se hipócrita de quando em vez, escondendo suas próprias dúvidas e mascarando um
momentâneo vazio interior com palavras eloqüentes.” (p. 29). “A sombra do falso profeta acompanha o
sacerdote por toda vida. (…) Com bastante freqüência, nós analistas lidamos com o distúrbio da saúde para os
quais, tanto em termos de tratamento como de uma possível cura, praticamente não existem controles
experimentais reconhecidos. (…) mesmo usando amplas amostragens estatísticas, é muito difícil fazer
julgamento qualitativos sobre o desenvolvimento dos distúrbios em questão, quer sejam eles tratados como
psicoterapia intensiva, tranqüilizante, quer sejam simplesmente ignorados” (p. 30).
“A sombra do analista se amplia ainda mais devido ao denominador comum existente entre o seu ofício e o do
sacerdote. Nós analistas, qualquer que seja nossa orientação, não defendemos uma fé específica ou uma religião
organizada, mas, como os sacerdotes, quase sempre recomendamos certa atitude básica diante da vida.” (p. 31).
“Da mesma forma que o sacerdote, trabalhamos com nossa alma, nosso ser; os métodos, as técnicas e o aparato
utilizado são secundários. Nós, nossa honestidade e autenticidade, nosso contato pessoal com o inconsciente e o
irracional – são esses os nossos instrumentos” (p. 32). “Trabalhamos com o inconsciente, com sonhos e com a
psique (…). Desta forma, há toda uma expectativa de que o analista saiba mais sobre assuntos fundamentais do
que o comum dos mortais. Se formos fracos, acabaremos por acreditar que estamos mais profundamente
iniciados na vida e na morte do que nossos semelhantes.” (p. 33).
“Exigimos sinceridade de nossos pacientes, procuramos ajudá-lo em sua confrontação com o inconsciente
mediante nossas explicações, nossas interpretações de sonhos e, acima de tudo, nossas próprias atitudes. Ao
olhar de frente nossa própria sombra profissional, mostramos aos analisandos que os aspectos desagradáveis da
vida também devem ser reconhecidos. As figuras completamente inconscientes da sombra de charlatão e falso
profeta desempenham um papel muito importante em nosso trabalho analítico e, portanto em nosso
relacionamento com os pacientes. (…) ao procurar detectar a cada passo a atuação de nossa sombra
psicoterapêutica, apanhando-a com as mãos na massa, auxiliamos nossos pacientes em suas próprias
confrontações com a sombra. Se deixarmos de fazê-lo, o paciente aprenderá apenas a enganar a si mesmo e ao
resto do mundo, tornando-se assim altamente questionável o próprio valor da analise.” (p. 35).
“Os esforços do ego, por mais bem intencionado que sejam, acabam a longo prazo por atrapalhar. (…) O self –
centro significativo mais profundo da psique, segundo Jung – em geral só pode aparecer se o ego, em lugar de
posto de lado e eliminado como algo insignificante, puder levar adiante o drama de seus envolvimentos.” (p.
38). “Algo análogo é sentido por qualquer analista que procure relacionar-se com o inconsciente vivendo tão
conscientemente quanto possível e nesses termos exercendo sua profissão. E, ao fazê-lo, será inevitável que
progressivamente caia na sombra e muitas vezes desempenhem o papel de charlatão e falso profeta para seus
pacientes” (p. 39).
O fim desta primeira parte já oferece uma deixa para aquilo que será analisado na segunda. Começa-se a focar
cada vez mais nas sombras e nos abusos de poder do terapeuta e passa-se a destacar o encontro analítico em si.
Urge ser necessário aqui retornar a introdução do livro, quando o autor define psicoterapia como “um
tratamento que lida com a psique, desde a orientação psicológica de apenas poucas horas até uma análise
prolongada de algumas centenas de horas, na qual são exploradas as profundezas do inconsciente e discutidos
em detalhe fenômenos como transferência, contratransferência e relacionamento entre analista e analisando.”
(p. 11).
Estamos agora no quarto capitulo do livro e eis alguns tópicos que Guggenbühl-Craig aborda nessa segunda
parte: O contato inicial, relacionamento e transferência, a vida extra-analítica, a sexualidade e a
homossexualidade.
– O contato inicial: “Ao encontrar-se pela primeira vez (…) o paciente psicoterapeutico quer livrar-se de seu
sofrimento e de sua doença. (…) Inconscientemente, ao menos em parte, o paciente quase sempre espera
encontrar um redentor que o liberte de todos os seus problemas.” (p. 41). “O paciente costuma recorrer ao
psicoterapeuta para obter não só um efetivo apoio em sua luta contra a neurose, mas também o acesso a um
conhecimento secreto que lhe permitiria resolver todos os problemas da vida. (…) No inicio da terapia a relação
terapeuta e paciente é muitas vezes similar à do feiticeiro e seu aprendiz. As fantasias que o paciente tem nesse
sentido exercem um poderoso efeito sobre o terapeuta, em cujo inconsciente começa a constelar-se a figura do
mágico ou do salvador. O terapeuta começa a pensar que é de fato alguém com poderes sobrenaturais, capaz de
fazer maravilhas com sua magia.” (p. 42). “A sombra do terapeuta e a do paciente afetam-se mutuamente e se
relacionam intimamente. Não se pode, portanto, examinar com propriedade a sombra do primeiro sem levar
em conta a do segundo. A sombra profissional do terapeuta que pretende ajudar seus pacientes é o charlatão.
Paralelamente, o paciente que procura tratamento apresenta uma força psíquica antiterapêutica, que luta contra
o processo de cura, comumente descrita como resistência. (…) a resistência do paciente estabelece uma aliança
com a sombra de charlatão do terapeuta; ambas constelam-se mutuamente e às vezes só podem ser
compreendidas a partir dessa reciprocidade.” (p. 44).
– Relacionamento e transferência: “Na transferência, vê-se em outra pessoa algo que não existe, ou que talvez
só exista de forma latente ou nascente. O Paciente pode transferir para os analistas traços pertencentes aos
personagens que tiveram um papel importante na sua vida.” (p. 46). “Como é natural, a transferência e o
relacionamento costumam ocorrer simultaneamente, não podendo ser estritamente diferenciado num caso
especifico (…), porém, é bastante destrutivo querer explicar um relacionamento sempre em termos de projeção,
transferência e contratransferência. (…) relacionamento significa ver o outro como o outro é, (…). Compreender
outra pessoa significa relacionar-se não só com seu presente, mas também com seu passado e seu futuro. O
relacionamento sempre envolve algo criativo.” (p. 47). “Encontrar uma pessoa de modo criativo significa tecer
fantasias em redor dela e circundar seu potencial” seja negativas ou positivas. (…) As fantasias também
influenciam a outra pessoa, despertando nela suas potencialidades. (…) Na transferência, projetamos sobre
nosso parceiro imagens, problemas ou possibilidade que dizem respeito a nós mesmos ou a nossa história de
vida.” (p. 48). “A psicologia Junguiana entende a relação entre duas pessoas como algo mais que um mero
contato entre duas consciências. Quando duas pessoas se encontram, suas psiques se defrontam em sua
totalidade; o consciente e o inconsciente, o dito e o não dito, tudo afeta o outro” (p. 50). “Se o analista realmente
pretender rastrear a sombra do paciente, ele deve confrontar e lidar ativamente com suas próprias fantasias
sobre seus pacientes. Não adianta nada, nem para si nem para os clientes, fazer o papel do terapeuta
absolutamente objetivo. Isso é ilusão. (…) Vários terapeutas procuram suprimir ou reprimir as fantasias que
tem com respeito aos pacientes. Ocorre que o conteúdo dessas fantasias continua a produzir seus efeitos. Umas
das primeiras tarefas do terapeuta consiste em examinar e procurar entender suas fantasias. Tanto o analista
como o analisando têm suas fantasias sobre o outro; cada um está a circunscrever o outro em sua imaginação”.
(p. 51).
– Vida extra-analítica: “A maior parte dos relacionamentos humanos apresenta certa pretensão de
exclusividade (…). Essa pretensão é intensificada pela sombra de charlatão do analista, a qual gostaria de
manter o paciente completamente sob seu controle (…).” (p. 55) “O analista deve trabalhar a fundo sua própria
problemática para evitar que o relacionamento analítico se torne hostil a outras relações do paciente. (…) Em
algum canto da alma do analista existe um bicho papão que deseja o completo domínio de seus pacientes (…).
Outra modalidade da sombra de charlatão do terapeuta é a vivência vicária, ou seja, a que substitui. (…) Muitos
analistas se absorvem por completo no seu trabalho com seus pacientes que sua própria vida privada fica em
segundo plano diante dos problemas e dificuldades das pessoas com quem trabalha. (…) Desse modo, o analista
pouco a pouco deixa de viver uma vida própria, passando a contentar-se com a de seus pacientes (…). Deixa de
ser capaz de amar e odiar, de investir a si próprio na vida, de lutar, ganhar ou perder. Perdendo a vitalidade e a
originalidade criativa. (…) Esse tipo de analista é prejudicial para seus próprios pacientes. De certa forma, este
também deixam de viver genuinamente, passando a viver apenas em relação ao analista, tendo experiências das
coisas para depois poder relatá-las” (p. 57) em terapia. “Somente o analista apaixonadamente envolvido em sua
própria vida poderá ajudar seus pacientes a encontrar seu caminho. Como diz Jung, o analista só pode dar a
seus pacientes aquilo que possui.” (p. 58)
– Sexualidade: “O processo psíquico não avança na ausência de um fluxo de emoção entre paciente e terapeuta.
Qualquer psicoterapia implica pelo menos um mínimo de relacionamento. Quando existe, este não é apenas
psíquico, apresentando igualmente um componente corporal ou físico. A relação física entre analista e paciente
é, portanto, muito importante.” (p. 60). “É comum brotar desejo sexual entre pacientes e analistas. (…)
Infelizmente, esse fenômeno é sempre encarado à luz da transferência e da contratransferência.” (p. 61) “No que
diz respeito às fantasias sexuais, os analistas junguianos talvez sejam um pouco mais ousados. Não atacam
imediatamente tais fantasias como sendo manifestações do fenômeno de transferência ou contratransferência,
sendo bastante capazes não só de tranqüilizar seus pacientes, como também de desafiá-los a entreter fantasias
sexuais e observar como estas se desenvolvem.” (p. 62). “Quanto à realização das fantasias sexuais, uma das
regras mais rígidas da analise estipula que a sexualidade entre analista e paciente não deve em circunstância
alguma ser concretizada. (…) O objetivo da terapia não é o relacionamento entre analista e analisando, mas a
cura deste e o estabelecimento de uma nova orientação psíquica. Uma vez vivido no campo sexual, o
relacionamento deixa de ser o receptáculo no qual tem lugar o processo curativo, tornando-se um fim em si
mesmo e, portanto destruindo a terapia” (p. 63). “Ainda que a sexualidade não seja vivida na analise, é preciso
adotar uma atitude altamente diferenciada em face do surgimento de uma atração sexual mutua, investigando-
se o que ela de fato expressa. Por mais doloroso que seja o analista deve sempre examinar as fantasias sexuais
do paciente, bem como as suas próprias. (…) Um dos grandes feitos de C. G. Jung foi ter conferido um
significado mais profundo às descobertas de Freud no campo da sexualidade, em vez de descartá-la ou
desaprová-las. O psicólogo junguiano compreende a sexualidade como símbolo de algo não-sexual, ou seja, a
união dos opostos ou coniuncttio oppositorum. (…) Assim sendo o fenômeno da atração erótica e sensual
intensa na psicoterapia deveria também ser compreendida como símbolo dessa unificação, como um mysterium
coniuncttionis” (p. 64). Porem, “o analista deve em primeiro lugar compreender e em certo sentido participar da
experiência sexual de seu paciente antes de tentar enriquecê-la com seu profundo simbolismo”. (p. 65).
– Homossexualidade: “Quando esses sentimentos físicos se constelam, o analista sério que aceita se expor ao
perigo não tem escolha: ele não deve rejeitar tais sentimentos, mas observá-los e permitir que seu paciente
fantasie. Deve ao menos aceitar as fantasias do paciente, em vez de rotulá-las de pronto como patológicas ou
desviá-las mencionando seu significado simbólico profundo. Em ultima analise, a psicoterapia é uma atividade
erótica. Mas a sombra de charlatão do analista procura evitar as exigências de Eros; quando muito, essa sombra
tem uma relação erótica consigo mesma – mas não com o paciente.” (p. 69).
Visto esses cinco pontos presentes, nem que seja de forma latente, em qualquer encontro terapêutico se
aproxima o momento de falar sobre o arquétipo terapeuta-paciente, terceira parte a ser destacada do livro.
Antes se percebe a importância de apontar que há tantas outras características que surgem com o encontro
terapêutico, eles não se resumem as cinco apresentadas acima, a própria obra se encarrega disso. Mas
infelizmente seria impossível trabalhar todas aqui nesta resenha.
“O relacionamento entre terapeuta e paciente é tão fundamental quanto aquele entre homem e mulher, pai e
filho, mãe e filho. É um relacionamento arquetípico, no sentido em que C. G. Jung usou a expressão, ou seja, é
uma forma inerente e potencial de comportamento humano. (…) Num relacionamento em que o poder é o fator
dominante, um tenta transformar o outro em objeto, sujeitando-se este ao primeiro. Isto é, o objeto passa a ser
manipulado pelo sujeito segundo seus próprios interesses.” (p. 81). “Saúde e enfermidade, terapeuta e doente,
médico e paciente são todos motivos arquetípicos” (p. 83). “O arquétipo pode ser definido como uma
potencialidade inata do comportamento. O ser humano reage arquetipicamente a alguém ou a algo quando se
defronta com uma situação típica e recorrente (…). Nesse sentido, certos arquétipos têm dois pólos, por assim
dizer. Sua situação básica contém uma polaridade. (…) Na psicologia humana que conhecemos, ambos os pólos
estão contidos no mesmo indivíduo. Nascemos todos com ambos os pólos dentro de nós. Se um pólo se constela
no mundo exterior, o outro, oposto e inferior, também se constela” (p. 84).
“Levando adiante essa linha de raciocínio não há um arquétipo especial de terapeuta ou paciente. Ambos são
aspectos da mesma coisa. Quando uma pessoa fica doente, o arquétipo de terapeuta-paciente se constela. O
enfermo procura um terapeuta exterior, mas ao mesmo tempo se constela o terapeuta intrapsiquico.
Costumamos nos referir a este, no paciente, como fator cura. É o médico dentro do próprio paciente e sua ação
terapêutica é tão importante quanto à do profissional que entra em cena externamente. As feridas não se
fecham nem as doenças se vão sem a ação curativa do terapeuta interior. (…) O médico pode fechar o corte –
mas algo no corpo e na psique do paciente deve cooperar para que a enfermidade seja vencida. Não é difícil
imaginar o fator curativo no paciente. Mas e o médico? Defrontamos aqui com o arquétipo do terapeuta
ferido. Quirón, o centauro que ensinou a Asclépio a arte da cura, tinha feridas incuráveis. Na Índia, Kali é a
deusa da varíola e ao mesmo tempo é quem a cura. Psicologicamente, isso significa não só que o paciente tem
um médico dentro dele, mas também que há um paciente no médico” (p. 85).
Importante lembrar que “Não é fácil, para a psique humana, suportar a tensão das polaridades. O ego ama a
clareza e tenta sempre erradicar a ambivalência interior. Essa necessidade de situações inequívocas pode
acarretar uma cisão dos pólos arquetípicos.” (p. 86). “Um arquétipo cindido procura sempre sua polaridade
original (…). O médico já não é mais capaz de ver suas próprias feridas, seu próprio potencial de doença; só vê
doença no outro. (…). Um pólo do arquétipo é reprimido, projetado e finalmente reunido por meio do poder.”
(p. 88). “O desejo de poder e o estado de sujeição expressam uma tentativa de reunificar o arquétipo cindido.
(…) as conseqüências da cisão do arquétipo do médico ferido são em vários sentidos extremamente danosos
tanto para o paciente como para o médico.” (p. 89). A capacidade do médico “de constelar o fator curativo em
seus pacientes diminui sensivelmente e ele já nem acredita mais que sua função básica consiste em possibilitar a
atuação desse fator no paciente.” (p. 90). “Mas, se for capaz de experimentar a doença como uma possibilidade
existencial nele próprio e de integrá-la, transformar-se-á num verdadeiro terapeuta.” (p. 91). Ele “só poderá
trabalhar criativamente se tiver em mente que, a despeito de todo o seu conhecimento e de sua técnica, em
ultima analise deve sempre procurar constelar o fator de cura no paciente. E este só pode ser ativado quando o
médico contém, em si, a doença como possibilidade existencial.” (P. 93). “O psicoterapeuta se encontra numa
situação psicológica extremamente difícil e perigosa, seja qual for o ângulo sob o qual examinemos seus
problemas. À medida que seu modelo básico é o do médico, ele está sujeito à tentação de reprimir um pólo do
arquétipo terapeuta-paciente e projetá-lo sobre seus pacientes. Essa situação psicológica propicia um campo
ideal para a operação da sombra arquetípica.” (P. 114)
Chegamos assim ao quarto tópico, como então os profissionais de ajuda, destacado aqui pelo terapeuta,
conseguem exercer seu oficio: ajudar os doentes, os que sofrem, os infelizes e os marginalizados sem serem
sugados por essa sombra arquetípica?
Guggenbühl-Craig nos oferece dois possíveis caminhos: a individuação e Eros. Porém, antes de qualquer coisa
“é essencial que o analista tenha uma atitude aberta e honesta para consigo próprio e, em certo sentido para
com o paciente de tal forma que esses fenômenos negativos possam ser trabalhados em conjunto.” (P. 116).
“Jung sempre enfatizou com muita clareza que o processo analítico deve ser mutuo, cada parte afetando a
outra.” (P. 117).
“Segundo afirma Jung em seus escritos, o trabalho psicoterapêutico tem dois objetivos principais: curar o
analisando e orientar o processo que ele denominou individuação. (…) A individuação não é algo que se pode
conquistar e possuir com segurança” (P. 124). Aqui, o “alvo consiste em experimentar a própria alma tanto
quanto possível em sua totalidade e, nesse sentido, o ser existencial em sua maior profundeza, aceitando-o e
afirmando-o como é.” (P. 125). “Há vários modos de estimular a individuação em si mesmo e nos outros. Na
obra de Jung e ainda mais na de seus seguidores, vê-se claramente que a análise é o meio moderno por
excelência de promovê-la.” (P. 127). Todavia, “alguns discípulos de Jung foram longe demais ao afirmar que o
verdadeiro caminho da individuação é de certa forma a analise, ou que os instrumentos e princípios da
psicologia analítica são essências para o autoconhecimento mesmo nos casos em que a analise não é necessária.
A individuação pode acontecer na analise, como também na família, no trabalho diário, nas realizações
artísticas e técnicas – seja aonde for.” (P. 131).
Por fim, Eros. Somente Eros para ajudar o analista em seu próprio processo de individuação. “Para romper o
circulo vicioso da sombra analítica, o terapeuta deve expor-se a algo que o toque de perto, algo não analítico
capaz de balançar seu equilíbrio, estimulá-lo, mostrar-lhe de vez em quando quem ele é. Quão fraco e solene,
quão estreito e vão (…). O que faz falta ao analista são relações simétricas, relações com outros à sua altura,
amigos que ousem atacá-lo e fazê-lo ver não apenas suas virtudes como seus aspectos ridículos (…). as
profundezas da sombra devem ser sondadas com amor.” (P. 122). “Quando intensamente vivida – e sofrida –
uma amizade pode salvar o terapeuta de inextricáveis envolvimentos com seu lado obscuro e destrutivo. (…) O
psicoterapeuta tem necessidade de um confronto erótico fora do esquema analítico” (P. 123). “Erótico aqui não
significa algo especificamente sexual, mas ligado ao amor no seu sentido mais amplo (…). Nesses
relacionamentos, certos conteúdos da sombra são constelados, pois essas pessoas atingem os analistas por
ângulos totalmente diversos daqueles em que se colocam os pacientes.” (P. 134).
“Talvez o analista tenha de passar por esses confrontos com os que lhe são próximos. Isso o põe em constante
contato com a própria sombra, o que acaba conduzindo à sombra profissional. (…) mas de que forma essa
ativação e esse contato com a sombra estimulam o processo de individuação do terapeuta? Criando um
movimento novo numa psique que enrijeceu, a alma se abre outra vez.” (P. 135).
“O ato de expor-se ao relacionamento erótico com o mundo que o cerca não significa apenas que a vida
emocional do analista deve ser de algum modo estimulada (…). A preocupação central é como superar a cisão na
qual ele vive. O cerne da questão é que ele deve entrar em contato direto com seus semelhantes com toda a
iniciativa, sofrimento e alegria que isso implica.” (P. 137). Somente mediante o intercambio emocional com
aqueles com quem vive uma relação de amor é que uma nova dimensão pode penetrar em seu mundo
amortecido. Se isso não puder ocorrer e se usar a psicologia para esvaziar seus relacionamentos, ele acabará se
tornando uma figura trágica. Mas se puder abrir-se a essa dimensão da existência, seu próprio desenvolvimento
poderá prosseguir e ele se tornará ainda mais capaz de ajudar seus semelhantes. Ai então ele se tornará um
verdadeiro seguidor dos grandes fundadores da psicologia profunda (…). Ai o analista pode viver seu próprio
destino” sua individuação. “Essa luta dura a vida inteira”. (P. 139).

•· GUGGENBUHL-CRAIG, A. (2004) O Abuso Do Poder Na Psicoterapia E Na Medicina, Serviço Social,


Sacerdócio E Magistério. São Paulo: PAULUS.

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