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Ricardo D. Cabral12
Resenhar O livro Negro da Psicanálise: viver e pensar melhor sem Freud (Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011, 638 p.) não é tarefa fácil, menos ainda nesta versão recém-
lançada no Brasil. Razões? Várias, a começar pelo tema, uma crítica feroz à psicanálise e ao
seu “pai”, Sigmund Freud, na forma de uma coletânea de artigos organizada por Catherine
Meyer. 3 Tampouco ajuda ser publicado neste que é um dos três países onde a psicanálise se
mantém mais viva, atuante e influente — França e Argentina são os outros dois. Outro senão
está na origem da publicação, a França, em função do conturbado contexto político na área da
saúde mental à época do lançamento do livro, do qual fazia parte (e ainda faz) o embate entre
psicanalistas — especialmente os de orientação lacaniana — e adeptos das TCC (Terapias
Cognitivo-Comportamentais). Mais um problema encontra-se na distância entre a data de
publicação do original em francês e a presente versão da Civilização Brasileira (2011), o que
gerou nestas praias uma curiosa inversão na ordem dos fatores: o acesso à leitura das críticas
que o livro faz à psicanálise dando-se anos depois do público brasileiro ter conhecido... suas
réplicas. Sim, pois a imprensa brasileira reverberou, poucos meses após a sua publicação na
França, o amplo debate ocorrido naquele país, inclusive com artigos de respeitados
psicanalistas 4 5 ditando o ritmo e a direção da discussão. De estranhar só a ausência, das
prateleiras brasileiras, do próprio pivô do debate, com esse curioso quadro onde muitos
conheceram (e eventualmente subscreveram) as críticas a uma publicação que pouquíssimos
haviam lido. 6 Por último, o fato deste que vos escreve acreditar que a publicação mereça mais
do que os costumeiros três ou quatro parágrafos (desfavoráveis) dedicados ao livro como tem
ocorrido desde a publicação de sua versão original em francês.
1 Ricardo Dantas Cabral, psicólogo clínico (psicoterapeuta de orientação existencial) e mestre em educação
tecnológica (CEFET/RJ)
2 Versão com notas de rodapé e referências bibliográficas de resenha publicada originalmente na Revista
Amálgama, https://www.revistaamalgama.com.br/06/2011/o-livro-negro-da-psicanalise/
3 “Antiga aluna da École Normale Supérieure, trabalha há cerca de 15 anos com edição (Flammarion, Le Robert e
depois Odile Jacob)” in: MEYER, Catherine et al., O livro negro da psicanálise, Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2011, p. 633.
4 ROUDINESCO, Elisabeth. Um complô arcaico. Caderno Mais!, Folha de S.P., 07-05-2006. Disponível em:
antilivro negro da psicanálise na França reacende debate sobre o legado de Freud, 150 anos depois de seu
nascimento. Mente & Cérebro, 05-2006, n 160. Disponível em:
http://www2.uol.com.br/vivermente/reportagens/do_ataque_a_defesa_imprimir.html
6 Ver, por exemplo, a resenha de Carlos R. Drawin, Professor de Filosofia e de História do Pensamento
Psicanalítico da UFMG: Le livre noir de la psychanalyse (Catherine Meyer, org.) e Por que tanto ódio? Anatomia do
Livro Negro da Psicanálise (Elisabeth Roudinesco) in: Psicologia em Revista, Belo Horizonte, v. 11, n. 18, p. 277-
280, dez. 2005. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v11n18/v11n18a11.pdf
7 Na Revista eletrônica ComCiência, em reportagem por ocasião dos 100 anos de “A Interpretação dos Sonhos”
de Freud, temos um exemplo desse lugar: A influência de Freud na cultura brasileira, 10-10-2000, disponível em
http://www.comciencia.br/reportagens/psicanalise/psique03.htm. Outras referências importantes sobre o
também sei do lugar cada vez mais significativo das TCC no campo da saúde mental no Brasil.
Porém, sem pretender avaliar a (autoatribuída) eficácia das últimas frente à psicanálise — e,
por extensão, às demais modalidades psicoterápicas existentes —, não posso me abster de
comentar sobre o renovado vigor das TCC. É que para além dos seus próprios méritos, 9 elas
também vêm pegando carona no estardalhaço que as neurociências têm feito, assim como no
sucesso da psicofarmacologia nas últimas décadas e, por que não, nas conveniências
econômicas em torno da promessa de tratamentos psicoterápicos mais breves do que as
termináveis/intermináveis (e certamente custosas) análises... Mas para não contradizer
minha (quase) equidistância, preciso ser justo sobre essa conversa a respeito de
conveniências econômicas. Por isso ponho na roda as chamadas “psicoterapias breves de base
psicanalítica”, que se adéquam, tanto quanto as TCC, à modalidade denominada “psicoterapia
de crise”, 10 estando, portanto, aptas para entrar no rol dos tratamentos oferecidos pelas
operadoras de seguros de saúde aos seus segurados. Vestígios de ironia à parte, não creio que
qualquer profissional de saúde mental no Brasil, associado à orientação que for, consiga
permanecer de todo alheio a esta discussão, já que na pior das hipóteses sofrerá suas
consequências sem sequer desconfiar de onde vieram. (Sendo assim, só restou um sonoro não
à pergunta do título.)
Até aqui já vão muitos dados em torno do livro e dados de menos sobre o próprio. Ao
trabalho, pois, tratando de seguir contextualizando o tema e torcendo para que a pretendida
luz lançada sobre a obra não vire um daqueles globos de boate com luzes atordoantes girando
em todas as direções. Sendo assim, ponto a favor da edição brasileira, que conta com um
esclarecedor prefácio escrito pela psicanalista Simone Perelson, uma das tradutoras do livro
(a outra é Maria Beatriz de Medina) e também a responsável pela seleção de 23 dos 40
autores que constam na versão original. Hum, uma psicanalista traduzindo um livro que
critica a psicanálise e que foi acusado por seus colegas de ser, entre outros tantos
comentários, um “furor de injúrias e acusações grotescas”, e “uma sirene estridente ganindo a
mesma nota ao longo de 800 páginas”? 11 Tranquilizem-se, não há com o que se preocupar.
Além da boa tradução, o prefácio de Simone Perelson é um guia claro e oportuno a respeito do
quadro em que o livro se insere. Graças a ele tomamos pé de vários antecedentes reveladores
em torno da obra, inclusive sobre o caráter simbólico do título escolhido — cujo negrume
alude a O Livro Negro (1995), uma coletânea de testemunhos de judeus sobreviventes do
Holocausto, donde “a expressão ‘livro negro’ viu-se enodada a um significante bem preciso: o
crime de massa”. 12 No referido prefácio também ficamos sabendo algo sobre o debate pós-
lançamento e as reações de vários psicanalistas à obra — com a “contra-virulência” de muitas
réplicas mostrando-se deveras virulenta, por sinal —, assim como sobre o reconhecimento,
por parte de outros tantos psicanalistas, da pertinência de críticas do livro “às posições
dogmáticas e conservadoras que os praticantes da psicanálise tenderam muitas vezes a adotar”
13 e à perda, ao longo dos últimos anos, do seu “poder de subversão social”. 14
tema são a coletânea do psicanalista Sérvulo A. Figueira, Cultura da Psicanálise (São Paulo: Brasiliense, 1985) e
o livro do psicanalista Joel Birman, Psicanálise, ciência e cultura (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994).
8 Uma excelente revisão do lugar da psicanálise (e não só dela) na academia (e não só nela) pode ser encontrada
em O mundo PSI no Brasil, de Jane Russo (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002).
9 Cf. FALCONE, Eliane M. O., As bases teóricas e filosóficas das abordagens cognitivo-comportamentais in: Jacó-
Vilela, Ferreira e Portugal. História da psicologia: rumos e percursos. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2008, p.
195-214.
10 Essa modalidade foi objeto da resolução n 11 do Conselho de Saúde Suplementar do Ministério da Saúde, de
03 de novembro de 1998, que a entende como “o atendimento intensivo prestado por um ou mais profissionais da
área da saúde mental, com duração máxima de 12 (doze) semanas, tendo início imediatamente após o atendimento
de emergência e sendo limitadas a 12 (doze) sessões por ano de contrato”. Doze sessões...
11 MEYER, Catherine et al., op.cit. p. 15.
12 Jean Birnbaum apud Meyer et al., op.cit. p. 14.
13 PERELSON, Simone in: Meyer et al., op.cit. p. 18.
Mas ainda falta o livro propriamente dito, então saiamos de uma vez do prefácio e falemos
sobre a organizadora da versão original, Catherine Meyer. Em sua introdução ela avisa:
“Assumo sozinha a responsabilidade e a organização da obra”. 15 Pode-se dizer que cumpre a
contento essa intenção protocolar, mesmo tratando-se de uma meia-verdade. É que o valor do
trabalho é por ela mesma atribuído a quatro co-autores: o filósofo e historiador Mikkel Borch-
Jacobsen, o psiquiatra Jean Cottreaux, o psicólogo clínico Didier Pleux e Jacques Van Rillaer,
“um antigo psicanalista ‘desconvertido’, grande estudioso da obra de Freud, professor
universitário e terapeuta. Cada qual em seu próprio domínio é de longa data um opositor ao
poder psicanalítico”. Responsáveis por um terço dos 35 artigos que compõem a versão
brasileira, eles são a comissão de frente de uma obra apresentada como “não sectária,
internacional, pluridisciplinar, cuidadosa com os leitores e aberta à crítica”. 16 A mesma
introdução sugere trata-se de um trabalho de pretensões científicas. Entretanto, ao longo da
leitura percebemos que se trata de uma cientificidade por demais afeita às ciências naturais,
aquelas onde a precisão e a objetividade seriam normas que constituiriam o único modo
legítimo de produção da verdade. 17 Esta é, penso, uma questão epistemológica importante,
objeto de debates há tempos. Ela é abordada pelo livro, mas este desconhece (ou parece ter
escolhido desconsiderar) o fato de que as críticas sobre a “proto”, “pré”, “pseudo” ou
simplesmente ausência de cientificidade da psicanálise não dizem respeito apenas a ela, mas à
psicologia como um todo, o que incluiria as demais modalidades de tratamento psicoterápico
existentes, das quais nem mesmo as TCC escapariam.
Mas discutir agora a questão da cientificidade da psicanálise e das TCC seria pular etapas,
então convém passarmos à estrutura do livro. Ele se divide em cinco partes: “O lado oculto da
história freudiana”, “Por que a psicanálise teve tamanho sucesso?”, “A psicanálise e seus
impasses”, “As vítimas da psicanálise” e “Existe vida depois de Freud”. Na primeira (p. 29-92)
vemos o empenho dos artigos escolhidos em mostrar uma psicanálise erigida sobre mitos,
lendas, falsas curas e mentiras diversas, escritas e disseminadas primeiro por Freud e depois
pelos seus seguidores. É ali, por exemplo, que o filósofo Mikkel Borch-Jacobsen apresenta a
sua revisão do famoso caso clínico da senhorita Anna O., descrito em Estudos sobre a Histeria
(1895), obra conjunta de Freud e Joseph Breuer. Borch-Jacobsen procura mostrar como a
história em torno de Anna O. seria uma grande farsa iniciada pelo pai da psicanálise e
sustentada posteriormente por acréscimos e revisões à história feitos não só por ele próprio,
mas também por discípulos como Ernest Jones e Max Eitington. Bem fundamentado, uma vez
que se baseia, entre inúmeras fontes, nos estudos do respeitado (inclusive pelos psicanalistas)
historiador Henri Ellenberger, o autor nos apresenta um Freud que distorce dados, faz fofoca,
ridiculariza e mente, tudo em nome da “construção” (p. 44) da psicanálise. E em artigo
posterior, o mesmo Borch-Jacobsen desfere seu pretenso coup de grâce ao fazer um balanço
desolador dos principais casos clínicos descritos por Freud, afirmando terem “na realidade
sido um fracasso total” (p. 68) e concluindo que ele “não estava de modo algum em posição de
se vangloriar de sucessos terapêuticos! Ao fundamentar suas teorias sobre a eficácia terapêutica
de seu método, ele a fundamentava no vazio — e devia forçosamente saber disso, ‘em algum
lugar’” (p. 69). O Freud descrito pelo filósofo é mesquinho e age de má-fé, ou seja, é tratado
como uma completa fraude, e tanto quanto a maioria dos artigos selecionados para O livro...,
este espera que tais impressões sigam com o leitor até o fim dessa parte (e do restante da
14 Ibid.
15 Meyer et al., op.cit. p. 25.
16 Ibid.
17 Cf. LUSTOZA, Rosane Zétola e FREIRE, Ana Beatriz. Para uma crítica da leitura hermenêutica da psicanálise.
Na segunda parte, “Por que a psicanálise teve tamanho sucesso?” (p. 93-254), destaco o artigo
do historiador da medicina Edward Shorter, que apresenta um panorama da disciplina desde
seu surgimento até os dias atuais. Centrado no contexto norte-americano (ou estadunidense,
como preferir), Shorter disserta sobre a ascensão e posterior supremacia da psicanálise frente
à psiquiatria biológica da época — que acreditava nos transtornos mentais causados apenas
por lesões cerebrais, hereditariedade etc. —, para então retratar seu declínio, sobretudo (mas
não apenas) nos próprios EUA. Por tratar-se de uma “talking cure”, “uma troca verbal entre o
paciente e seu médico” (p. 98) bem diferente da mera auscultação preconizada pelos médicos
da época, a psicanálise acabou chamando a atenção de muitos psiquiatras e neurologistas
norte-americanos que, junto com seus próprios pacientes, ajudaram a disseminá-la, já que os
últimos não mais aceitavam de bom grado os tratamentos anteriores. Além disso, com a
emigração para Nova York, Washington e Los Angeles de eminentes analistas alemães e
austríacos fugidos de Hitler, consolidou-se, logo após a Segunda Guerra Mundial, o cenário
onde a maioria das cadeiras de psiquiatria era ocupada por psicanalistas. (Shorter conta
também como o movimento psicanalítico só se fortaleceu na Europa décadas depois,
especialmente por ocasião dos movimentos de 1968, onde ele se viu associado à ideia de uma
terapia mais humana, que não tratava os pacientes como objetos.) O historiador situa nos
anos 1960 o ocaso da psicanálise nos EUA, creditando-o a dois fatores: o desenvolvimento da
psicofarmacologia e o surgimento do “DSM” (sigla em inglês para “Manual Diagnóstico e
Estatístico de Transtornos Mentais”) — a primeira em 1957 e o segundo em 1952. Em seu
artigo, o autor associa o próprio modelo psicanalítico à família moderna de então, “... que situa
a criança no centro da família e glorifica a unidade familiar” (p. 108), uma família muito
diferente da atual, da qual fazem parte divórcios, filhos não mais vivendo com ambos os pais,
meios-irmãos de casamentos diferentes coabitando, relações homoparentais etc., o que
alimentaria o desinteresse pelo referido modelo. Da mesma forma, relaciona o florescimento
da prática psicanalítica às deficiências da psiquiatria do seu tempo, com um forte apelo tanto
18 Apud FULGENCIO, Leopoldo, As especulações metapsicológicas de Freud. Natureza Humana [online]. 5(1):
129-173, jan.-jun. 2003, p. 153. Disponível em:
http://www.sociedadewinnicott.com.br/downloads/leopoldo1.pdf
19 Ibid., p. 137.
20 Ibid., p. 157. Cabe reiterar que esta visão a respeito da psicanálise não é a única nem tampouco é consensual,
mas uma das perspectivas epistemológicas referentes a ela. Entre outras possíveis encontramos a leitura
hermenêutica da psicanálise feita por Paul Ricoeur, que a entende como ciência interpretativa, onde não é
impossível estudar o domínio de significações a partir do modelo das ciências naturais. “O discurso analítico
pertenceria ao registro do sentido, de maneira nenhuma ao da objetividade. A estratégia desses autores consistiu,
então, em defender a disjunção entre o domínio das significações e o dos fatos.” (Luztoza & Freire, op. cit., p. 11).
teórico-metodológico quanto econômico contribuindo para que psiquiatras e neurologistas
saíssem das instituições asilares e abrissem seus consultórios particulares, não mais tratando
apenas da “loucura”, mas também das neuroses (ou transtornos “nervosos”) do mundo
moderno. E como a própria psiquiatria se modificou com o decorrer do tempo, o contraponto
com a psicanálise também deixou de ser o mesmo. Edward Shorter fixa nesses pontos os
porquês da ascensão e queda da psicanálise nos EUA. Embora veja tais explicações como um
tanto esquemáticas e simplistas, destaco a ponderação do texto, bem distante do tom de caça
às bruxas encontrado em outros autores do livro. Ponto para ele.
Voltemos uma vez mais à responsável pela organização d’O livro..., aproveitando para
comentar um pouco sobre a terceira parte, A psicanálise e seus impasses (p. 255-357). Nota-se
como Catherine Meyer apresentou a contento cada uma das referidas partes, os capítulos que
as compõem e, inclusive, um ou outro artigo em particular, funcionando qual mestre de
cerimônias. Essas apresentações, mesmo as mais curtas, conseguiram dar considerável
21De fato, nas notas do artigo de Shamdasani há referência a um livro escrito em conjunto com Borch-Jacobsen,
Le Dossier Freud (2006).
uniformidade a um conjunto heterogêneo e desigual de ensaios e entrevistas, mas não foram
suficientes para eliminar a consistência irregular dos artigos que o compõem. Alguns não
passam de estratos que pouco acrescentam às pretensões da coletânea. É o caso do trecho de
entrevista com a filósofa e historiadora da ciência Isabelle Stengers (p. 81-4), quatro páginas
que parecem estar ali mais pela notoriedade da autora do que pelo aprofundamento sobre o
tema do término de uma análise. Outros, por sua vez, se aproximam de verdadeiras
hagiografias, 22 como se vê no artigo de Didier Pleux sobre a figura do psicólogo Albert Ellis,
criador da Terapia Racional Emotivo-Comportamental (p. 529-51). Penso que mesmo os
entusiastas da obra reconhecerão esta fragilidade, nem que o façam para não reproduzir as
atitudes dogmáticas e míopes atribuídas pelo livro a boa parte dos que professam a
psicanálise. Outro aspecto sobre a escrita de Meyer diz respeito ao papel por ela
representado, nem sempre o mesmo ao longo da obra. Em alguns momentos suas notas
servem para pôr mais lenha na fogueira em que alguns autores tratam de queimar a figura de
Freud, enquanto em outros procuram dar-lhes um tom mais sóbrio, como nas ocasiões em que
trata de contextualizar a virulência e a mordacidade que alguns imprimiram em suas críticas
— uma sobriedade que pretende justificá-las. Bom exemplo do seu papel moderador pode ser
visto em A psicanálise é uma ciência? (p. 257). Ali percebemos claramente o seu empenho em
baixar o tom de certos momentos, digamos, mais “aguerridos” da coletânea. Trata-se de um
dos seus mais longos textos e funciona como introdução ao artigo do epistemólogo anglo-
saxão Frank Cioffi. Nele a organizadora antecipa parte da argumentação do autor, mas o faz de
maneira bem menos beligerante. Começa pelos argumentos do filósofo da ciência Karl Popper
— que classificaria a psicanálise de pseudociência pela impossibilidade de ser refutada, isto é,
por não submeter suas hipóteses a testes rigorosos, onde caso “a observação mostra que o
efeito previsto não se produz, a teoria é simplesmente refutada” —; de Popper passa ao
epistemólogo Adolf Grünbaum — para quem os enunciados da psicanálise seriam refutáveis e
resultariam em “uma teoria científica de boa estirpe cujas previsões, infelizmente, foram
refutadas, como Freud às vezes admitiu” —; 23 e só então apresenta a própria posição de Frank
Cioffi, cuja visão é também de uma psicanálise como pseudociência, mas considerando-a uma
teoria de má-fé. Segundo ele, “as teses de Freud foram há muito tempo invalidadas, e os
historiadores puseram em evidência a manipulação de dados a que ele recorria, mas os
defensores da psicanálise mantêm-se obstinadamente encerrados em sua prisão de vidro”. 24
Embora a estratégia de utilizar Popper e Grünbaum a serviço da crítica a Freud seja de Cioffi,
o texto de Meyer suaviza bastante o tom belicoso empregado pelo epistemólogo anglo-saxão.
A organizadora antecipa ao leitor como esse tom aparecerá nas páginas seguintes, mas
justifica-o ao informar-nos que Cioffi é veterano das “‘guerras freudianas’ (Freud Wars) nos
países anglo-saxões de uns vinte anos para cá”. 25 Assim, por tomar parte de uma espécie de
“exército de libertação” contra os supostos embuste e opressão psicanalíticos, o arsenal
utilizado por Cioffi seria como o de um importante cruzado a caminho da Terra Santa para
libertá-la do jugo dos pagãos. Essa “causa nobre” absolveria qualquer excesso cometido pelo
epistemólogo, que de sua parte não se furta em falar de “mentiras de Freud” (p. 263-71) e
chamar os defensores do pai da psicanálise de “dissimulados e insolentes”, além de qualificar
a disciplina como pseudo-hermenêutica.
22 Algo irônico se levarmos em conta que boa parte das biografias de Freud, especialmente a de Ernest Jones, A
vida e a obra de Sigmund Freud (2 vol.), são criticadas por serem excessivamente hagiográficas.
23 Meyer et al., op. cit. p. 258.
24 Ibid., p. 259.
25 Ibid., p. 260.
Horace Frink — um dos fundadores da Sociedade Psicanalítica de Nova York, “manipulado em
nome da causa” 26 — e de Anna Freud — sua filha e herdeira intelectual. Seriam também
teórico-técnicos, especialmente em relação ao tratamento do autismo e das toxicomanias,
onde a psicanálise não apenas teria se mostrado ineficaz, mas também deixado um rastro de
sofrimento e até de morte. 27 Além disso, o próprio sistema educativo teria sofrido com a
influência nefasta da psicanálise, resultando em pais inseguros e culpados, assim como em
crianças tiranas, com a psicanalista Françoise Dolto tendo papel importante (leia-se “culpa”)
nesse estado de coisas. Outro psicanalista de renome, Bruno Bettelheim, “o impostor”, nas
palavras do jornalista e biógrafo Richard Pollack, também seria responsável pelo sofrimento
de inúmeros pais de crianças autistas, justamente em função de suas teses a respeito deste
transtorno. De fato, muito do trabalho desse psicanalista se viu desacreditado em função do
falseamento de dados sobre tratamentos supostamente realizados por ele. Inclusive uma
simples pesquisa à Biblioteca Virtual em Saúde 28 aponta apenas 18 referências ao seu nome
(sete delas do ano 2000 até o presente), um sutil indicador do (des)interesse evocado por ele
na comunidade acadêmica. Embora muitos dos dados dessa parte d’O livro... sejam
verdadeiros, chama a atenção como é mais uma versão de sua política de “terra arrasada”
frente à psicanálise. Levada ao pé da letra, indicaria como esta nunca trouxe mais que
sofrimento psíquico e prejuízo econômico — para a França, em particular, e para o resto do
mundo em menor escala. Sobressai o tom apocalíptico e maniqueísta, uma posição
desfavorável para quem se anuncia como obra “não sectária” e “cuidadosa com os leitores”.
Há uma crítica a O livro... da qual nem mesmo os anti-psicanalistas poderão discordar. Diz
respeito ao espaço privilegiado dado pela coletânea às TCC, especialmente na quinta e última
parte do livro, Existe vida depois de Freud (p. 499-631), onde elas são apresentadas como a
principal alternativa ao “império freudiano”. É difícil, para não dizer impossível acreditar que
se trate de um privilégio fortuito. Em sua recente resenha sobre a obra, o psicanalista Joel
Birman subscreve uma crítica comum aos psicanalistas franceses frente à versão original, a de
que ela se insere num projeto político que começa pela demolição do campo psicanalítico para
posteriormente apresentar novas alternativas clínicas, com destaque para as TCC associadas à
psicofarmacologia, o que resultaria numa prática onde “a performance do indivíduo seria o
alvo estabelecido pelos novos paradigmas, com a anulação definitiva do sujeito e a promoção do
controle social dos indivíduos”. 29 A fala de Birman é sem dúvida sedutora, com um quê de luta
de Davi contra Golias, de defesa da liberdade contra o que pareceria a domesticação ou o
“encarceramento biopolítico do desejo” promovido pela “camarilha” das TCC, dos
psicofármacos e das neurociências ou algo parecido a isso. Entretanto, uma simples passada
de olhos em textos de duas ou três décadas atrás a respeito da “crise” da psicanálise mostra
como alguns tópicos apontados n’O livro... há muito vêm sendo problematizados por
estudiosos da (e na) própria psicanálise, inclusive no Brasil. 30 Dita leitura dificulta — ao
menos a mim — o engajamento entusiasmado (que se configuraria acrítico) na resistência
proposta por Birman contra essa agenda política que moveria O livro... e, consequentemente,
que nos obrigaria a tratá-lo como um simples panfleto sem consistência nem valor, de
preferência tendo o lixo como destino ou, se tanto, servindo como calço de porta.
26 Cf. EDMUNDS, Lavinia, A história trágica e verídica de Horace Frink, manipulado em nome da causa, p. 363-86.
27 Cf. DÉGLON, Jean-Jacques, Como as teorias psicanalíticas impediram o tratamento eficaz de toxicômanos e
contribuíram para a morte de milhares de indivíduos, in: Meyer et al., op.cit. p. 477-98.
28 Disponível em http://regional.bvsalud.org
29 Vale a pena conferir a resenha completa de Joel Birman para o Estadão:
http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20110521/not_imp722100,0.php
30 Destaco os trabalhos do psicanalista Sérvulo A. Figueira, em especial seu livro Nos bastidores da psicanálise
(Rio de Janeiro: Imago, 1991), que discorre sobre muito do que é tratado tanto pela obra aqui comentada quanto
pelos críticos mais aguerridos desta, assim como o livro do próprio Joel Birman, citado na nota n 5.
Ainda na questão do referido privilégio às TCC, continua evidente o fato dele desconsiderar a
enorme quantidade de correntes psicoterápicas distintas (e distantes) daquelas. Some-se a
isso o fato de vários artigos d’O livro... reiterarem como Freud pretendeu para a psicanálise
um lugar entre as ciências naturais, empreendimento que teria fracassado — um
entendimento compartilhado por boa parte dos psicanalistas, diga-se de passagem —, o que
evidenciaria sua falta de cientificidade. Haveria um claro contraste frente ao estatuto de
“psicologia científica” 31 que as TCC reivindicam para si, sobretudo pela comparação com uma
psicanálise que não passaria de pseudociência — “qualidade” essa que atingiria as
psicoterapias que não reivindicassem explicitamente essa cientificidade, como dito
anteriormente. Mas atribuir-se o estatuto de “científico” não basta, menos ainda o de uma
cientificidade à moda das ciências da natureza. Seria uma clínica que se pretende objetiva,
apoiada em comportamentos observáveis e flertando com o reducionismo neurofisiológico —
isto é, com a redução do estudo científico da mente e da consciência a seus correlatos no
sistema nervoso —, coincidindo com a clínica “sem sujeito” de que fala Birman em sua citada
resenha. Isso porque com os (velhos e novos) empréstimos tomados de outras ciências
(estatística, neurobiologia, computação etc.), as TCC pretendem fazer valer primeiro seus
conceitos, para então tratar de validar suas práticas. Só que um conceito ou método tomado de
outro campo não garante, por simples empréstimo, a positividade e evidência dessas
psicoterapias (ou de quaisquer outras). Por outro lado, em sua última parte O livro... nos
indica que as TCC e outros naturalismos contemporâneos não mais acolheriam essa “mera”
herança positivista, naturalista e afins. Entretanto, a cadeia que vai a) do empréstimo de
métodos ou conceitos alienígenas, chegando b) nas teorias especificamente psicológicas e
então c) na prática clínica continua sem elucidação, da mesma forma como o próprio
positivismo não elucidava o fundamento do conhecimento segundo suas perspectivas
psicologistas. 32 Ressalto que ao levantar a questão sobre uma circularidade que impede o uso
irrestrito da palavra “científico” por parte das TCC, de forma alguma pretendo dar cabo do
assunto, posto que ele não caberia no escopo de uma resenha. Porém, com as questões
epistemológicas esboçadas aqui, me parece razoável dizer que o propalado estatuto científico
das TCC não se mostra tão homogêneo e livre de questionamentos quanto se pretende. O que
observo é que a argumentação d’O livro... a respeito dessa dita cientificidade (e maior
legitimidade) frente a uma psicanálise pseudocientífica mostrou-se algo frouxa, o que exigiria
razoável reformulação caso não queira dar munição aos simpáticos à última.
Mas afinal de contas, diante de todos esses apontamentos e de tão parcos elogios valeria
mesmo a pena ler O livro negro da Psicanálise? Não tenho dúvida que sim, mas afirmo que
devemos fazê-lo com o devido distanciamento crítico. Mesmo com atraso, a obra em questão
traz de volta algumas críticas à psicanálise sobre as quais continua valendo a pena ponderar.
O contexto é em parte distinto ao daquelas feitas pelo citado historiador Henri Ellenberger, 33
assim como por pensadores do porte de Georges Canguilhem, 34 Michel Foucault, 35 Gilles
Books, 1970.
34 Op. cit.
35 In: A pesquisa científica em psicologia. In: Morère (É.), éd., Des chercheurs français s'interrogent. Orientation et
organisation du travail scientifique en France, Toulouse, Privat, coll. «Nouvelle Recherche», no 13, 1957, pp.
173-201.Tradução: Marcio Luiz Miotto (UFSCAR/FAPESP); Revisão: Maria Inez de Souza (UFSCAR/CNPq) e
Deleuze e Felix Guattari, 36 Martin Heidegger, 37 Ludwig Binswanger, 38 Paul Ricoeur 39 e
Ludwig Wittgenstein, 40 só para citar alguns dos mais destacados. Isso porque muitos atores
da trama mudaram de lugar, assim como também o próprio espaço institucional, político e
cultural que a psicanálise ocupa na atualidade, especialmente na França e na Argentina (e, em
menor grau, no Brasil). Porém, a dinâmica dos jogos de poder e dos interesses econômicos
segue muito parecida, embora com a presença de novos personagens — caso das
neurociências —, modulada com o “auxílio luxuoso” da psicofarmacologia. Certo é que além
da menção às neurociências e à psicofarmacologia como parte da proposta de uma “vida
depois de Freud”, O livro... não apresenta nada de tão novo em relação aos argumentos dos
pensadores citados. Após sua leitura até aqueles psicanalistas mais dogmáticos e sectários,
avessos a qualquer crítica, se sentirão no direito de imputar a alguns autores do livro
(especialmente aos associados às TCC) acusações e argumentos ad hominem da mesma cepa
daqueles dirigidos a Freud e à psicanálise. Nesse jogo de incriminações dos dois lados é
importante ressaltar como algumas réplicas a O livro... foram desmascaradas pelos principais
autores deste, em particular aquelas da coletânea organizada pelo eterno “genro-herdeiro” de
Lacan, Jacques-Alain Miller, intitulada Anti-livro negro da psicanálise. 41 Como se pode ver,
aqui não há lugar para amadores.
Como disse antes, se por um lado as críticas a O livro... não esvaziam o valor de muitos de seus
argumentos, por outro as críticas d’O livro... tampouco devem ser admitidas candidamente e
postas na conta de uma psicanálise vista por ele como institucionalizada, fossilizada e que
vive lançando mão de um enorme arsenal retórico por mera necessidade de sobrevivência. No
Brasil há uma considerável e fecunda produção acadêmica que, para começar, avalia as
relações entre psicanálise e neurociência por vias distintas ‘as mencionadas na coletânea; 42
discute criticamente a pertinência da metapsicologia freudiana para a própria disciplina em
questão; 43 analisa, a partir das filosofias da linguagem de Donald Davidson e de Richard
Rorty, a perspectiva de uma psicanálise pragmática, que por sua vez reformularia a referida
metapsicologia freudiana; 44 pesquisa, de forma transdisciplinar, o âmbito do psicopatológico
(psicopatologia fundamental); avalia as possibilidades e dificuldades de vigência do discurso
psicanalítico no campo da Saúde Mental (especialmente nos Centros de Atenção Psicossocial);
Mesmo com todas essas ressalvas, espera-se que a tradução brasileira sirva para gerar um
debate análogo ao que ocorreu na França. Ainda que a psicanálise não repercuta por aqui com
tanta veemência quanto nas sociedades francesa e argentina, sabemos (e vimos um pouco
neste mesmo texto) sobre o seu considerável espaço no meio acadêmico, espaço esse até
bastante explícito, mas que nem sempre é claro ou bem definido por parte dos profissionais
que nele se encontram. Sendo assim, é importante prestarmos atenção às críticas sobre o
valor e a atualidade da psicanálise. Ao mesmo tempo, convém atentar para o (mais recente)
retorno a um biologismo mal disfarçado no âmbito da saúde mental, com sua ideia de “sujeito
cerebral” e sua “linguagem da serotonina”, 47 além do considerável poder de fogo (em termos
econômicos) dedicado pelos laboratórios farmacêuticos não apenas à divulgação dos seus
produtos, mas para “esclarecimentos” sobre as próprias “desordens mentais-cerebrais”, o
jargão da vez. É necessário que sejamos críticos frente a essa verdadeira “reconfiguração
neuroquímica da noção de ‘pessoa’” 48 que está em curso, sobretudo em função de suas
profundas implicações éticas e sociais. Que essa crítica seja feita numa medida análoga à dos
autores d’O livro negro da psicanálise, mas com o cuidado de desbastar seus excessos e de não
cair na armadilha das críticas ad hominem, da retórica inconsistente e de eventuais agendas
políticas.
Referências Bibliográficas
45 Cf. Institucionalização dos saberes psicológicos no Brasil (Rio de Janeiro): uma contribuição à antropologia da
pessoa ocidental moderna, projeto coordenado pelo antropólogo Luiz Fernando Dias Duarte (Museu Nacional –
UFRJ).
46 Cf. Grupo de Trabalho de Filosofia e Psicanálise - Anpof, coordenado pelo Prof. Dr. Vincenzo di Matteo. Ver
http://www.psicanaliseefilosofia.com.br/gtpsicanalise.html.
47 Cf. AZIZE, Rogerio Lopes. Uma neuro-weltanschauung? Fisicalismo e subjetividade na divulgação de doenças e