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Uma revisão histórica

do planejamento do setor
elétrico brasileiro
Sonia Seger Pereira Mercedes
Julieta A. P. Rico
Liliana de Ysasa Pozzo
Dossiê Justiça
Energiabrasileira
elétrica

RESUMO ABSTRACT

O setor elétrico brasileiro vem sofrendo The Brazilian electrical power sector has
sucessivas revisões e reformas nos últimos been going through successive reviews
30 anos. Ainda que, no discurso, essas and reforms in the past 30 years. Although
reformas sempre visem ao melhor e mais those reforms have, in theory, always been
universal atendimento às necessidades meant to better and more extensively meet
da sociedade, na prática, esse resultado the needs of society, in practice that result
nem sempre esteve em primeiro plano. has not always been given top billing. Even
E mesmo sendo um critério prioritário de though guarantee of security of supply
planejamento, a garantia da segurança has been given a top priority rating, it has
do abastecimento foi alterada ao longo been changed throughout that string of
dessa sucessão de mudanças no modelo changes in the management model for
setorial de gestão. Atualmente, em um the sector. Currently, in a scenario of
cenário de planejamento da expansão expansion planning and operation of
e da operação de alta complexidade, high complexity, that criterion features
esse critério ostenta o caráter de the character of the Brazilian singularity
particularidade brasileira frente ao in face of the international scenario,
cenário internacional, pairando sobre a and a persistent threat of a “crisis” in the
sociedade uma persistente ameaça de provision of electric energy hovers over
“crise” do serviço de energia elétrica. society. With that as a background, this
Nesse contexto, este artigo elabora uma article draws a historical picture of the
reconstituição histórica do processo planning process of the electrical power
de planejamento do setor elétrico em sector as it concerns to the importance
termos da importância da segurança do ascribed to security of supply.
abastecimento.
Keywords: energy planning; security of
Palavras-chave: planejamento energético; supply; restructuring of the sector; history.
segurança do abastecimento; reestrutu-
ração setorial; histórico.

14 REVISTAUSP
REVISTA USP• •São
SãoPaulo
Paulo• •n.
n.101
104• •p.p.11-26
13-36• •março/abril/maio
janeiro/fevereiro/março
2014 2015
A
atividade de planejamento no se- geração e de transmissão crescentes, para atender
tor elétrico foi construída e so- a uma demanda crescente; após os anos 1970 –
freu várias mudanças ao longo da promoção de diversidade tecnológica e de fontes.
existência dessa indústria a partir • Período mercantil – FHC: planejamento ener-
de uma origem em que o planejar gético indicativo (CCPE – Comitê Coordenador
não era uma preocupação prio- do Planejamento da Expansão); o incremento da
ritária, ou mesmo, existente. A participação do gás natural na matriz energética
substituição do modelo privado é a principal meta em termos de desenvolvimen-
e descentralizado por uma cres- to de recursos.
cente participação estatal e cen- • Período mercantil – Lula e Rousseff: planeja-
tralização da gestão – decorrente mento integrado e estratégico (empresa de pes-
da permanente defasagem exis- quisa energética); participação pública (consultas
tente entre as demandas que se e audiências); fontes renováveis são consideradas
ampliavam e diversificavam e a insuficiente oferta “complementares”, ao invés de “alternativas”.
de eletricidade – introduziu a necessidade e as vi-
sões de planejamento, que também se sucederam
ao longo das várias reformas setoriais ocorridas. Este trabalho foi apoiado pela Capes, Programa Nacional de
Pós-Doutorado – PNPD, projeto n. 59.528–2010.
A Tabela 1 resume as principais características do
setor elétrico brasileiro em cada período vincula-
do a um modelo institucional vigente. A Figura 1
mostra a atual estrutura institucional da indústria
SONIA SEGER PEREIRA MERCEDES é membro do
de energia no Brasil. corpo técnico do Instituto de Energia e Ambiente (IEE)
O foco do processo de planejamento em cada da USP, colaboradora do grupo de pesquisa Resíduos
uma das etapas de institucionalização e reforma do Sólidos Urbanos e Impactos Socioambientais da
FAU-USP e pesquisadora do IEE-USP.
setor elétrico pode ser resumido como:
JULIETA A. P. RICO é pesquisadora na área de
economia dos recursos naturais no tema Renda
• Início: obtenção de economias de escala; supe-
de Energia Elétrica, dentro do Programa Nacional
ração contínua das barreiras tecnológicas e de de Pós-Doutorado (PNPD) da Capes.
conhecimento.
LILIANA DE YSASA POZZO é membro do corpo
• Período estatal: planejamento energético normati- técnico do Instituto de Energia e Ambiente (IEE)
vo (GCPS – Grupo Coordenador do Planejamento da USP, na Divisão Científica de Planejamento,
do Sistema); economias de escala e de escopo; Análise e Desenvolvimento Energético, e atua
no Serviço Técnico de Planejamento, Análise
regularidade tecnológica – grandes usinas hidrelé- Econômica e Social e Desenvolvimento de
tricas (até os anos 1970); capacidade instalada de Recursos Energéticos (Paesdre).

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Dossiê Energia elétrica

tabela 1

FASES DA ESTRUTURAÇÃO DO SETOR ELÉTRICO BRASILEIRO

Período 1880 1930 1960 1990 2003


Propriedade
Privada Privada Estatal Privada Semiprivada
de ativos

Principal Implantação e Introdução de Universalização


Institucionalização Crescimento
objetivo consolidação competição do acesso

Contexto
República Velha Estado Novo Autoritarismo Democracia Democracia
político

Industrialização
Grandes Desestatização e
Economia Agroexportadora (substituição de Desenvolvimentismo
companhias neoliberalismo
importações)

Empréstimos Vários modelos,


Financiamento Financiamento
Capital agrário externos e Project-finance principalmente
do setor público e tarifas
autofinanciamento financiamento público

Processo de
Contratos Preço-teto Preço-teto
regulação Cláusula Ouro Custo do serviço
bilaterais incentivado incentivado
tarifária
Iluminação Diversificação
Maior Urbanização e Indústria e Indústria,
pública e da matriz
demanda industrialização urbanização transportes
transporte energética

Tecnologias Desverticalização
Transmissão Fontes renováveis
e fontes G/T/D/C,
interligada, (eólica, solar
primárias Pequenas usinas Distribuição diversificação,
geração de fotovoltaica,
de maior combustíveis
grande escala biomassa)
destaque fósseis (gás natural)

figura 1

ESTRUTURA INSTITUCIONAL DO SETOR ELÉTRICO – BRASIL

Presidência
Políticas e Congresso Nacional da República
planejamento Empresa de Pesquisa
CNPE/MME Energética – EPE

Regulação e Aneel
fiscalização

Apoio
Agentes

Geradoras BNDES

Implementação ONS Transmissoras


CCEE
Eletrobras
Distribuidoras

Comercializadoras

Consumidores

Fonte: Aneel/SPG, 2014

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O problema do planejamento em um sistema período, desde a implantação dos primeiros em-
complexo como o brasileiro, com um parque de ge- preendimentos de geração de eletricidade e provi-
ração diversificado, hidrotérmico, embora majori- mento de “serviços energéticos”, como iluminação
tariamente hidráulico, e uma malha de transmissão e força motriz, no início do século XX. À medida
interconectada, envolve não apenas a expansão da que o caráter de prestação de serviço a um públi-
capacidade instalada para garantir o atendimento co crescente – industrial, comercial e residencial
à totalidade da demanda, mas também a coordena- –, incluindo geração e distribuição, foi intensifi-
ção da operação, pois as decisões sobre a operação cado, a intervenção estatal foi-se fazendo neces-
do sistema estão acopladas no tempo e também sária, como forma de mitigar a crônica falta de
no espaço em função da interligação das bacias investimento das concessionárias em aumento da
e reservatórios e sua multiplicidade de proprietá- capacidade de oferta, em sua maioria estrangeiras,
rios e usos. Para o planejamento da expansão, o no mercado doméstico. Nesse período, não havia
conhecimento da capacidade energética do siste- uma política de expansão setorial, uma vez que os
ma é fundamental e, para este, o planejamento da contratos de concessão eram firmados diretamen-
operação e suas regras são determinantes. Assim, te com municípios e estados, e as decisões eram
o planejamento da operação e o da expansão guar- tomadas de acordo com as características de cada
dam uma estreita relação (figuras 2 e 3). empreendimento e de cada empresa. Não havia
uma visão integrada de planejamento, nem inter-
O PLANEJAMENTO DA EXPANSÃO E câmbio de informações, pois a atuação das conces-
sionárias se dava de forma isolada, dentro de sua
DA OPERAÇÃO NO PERÍODO ANTERIOR meta negocial. Além disso, a área de distribuição
ia progressivamente se tornando mais importante,
À ORGANIZAÇÃO SETORIAL – uma vez que era mais atraente, do ponto de vista
econômico, para as empresas então estabelecidas.
ATÉ MEADOS DOS ANOS 1960 Ao Estado coube, então, a tarefa de organizar o
setor e lidar com a necessidade premente de au-
A condução privada do suprimento de energia mento da oferta de energia, mais complexa e mais
à sociedade brasileira se estendeu por um longo intensiva em capital.

figura 2

PLANEJAMENTO ENERGÉTICO – EXPANSÃO DA OFERTA

Visão estratégica
Plano Nacional de Energia
Estudos de longo prazo

Matriz Energética Nacional


(até 30 anos)



Visão de programação
Plano Decenal de Expansão

Estudos de curto e médio prazos de energia


(até 10 anos)

Leilões

Monitoramento
Petróleo e gás

Visão de 1 a 3 anos Energia elétrica


Transmissão
Biodiesel

Fonte: Hollauer, 2011

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Dossiê Energia elétrica

figura 3

PLANEJAMENTO ENERGÉTICO – DECOMPOSIÇÃO TEMPORAL DO PROBLEMA


DE COORDENAÇÃO DA OPERAÇÃO HIDROTÉRMICA DO SISTEMA BRASILEIRO

Médio prazo
{ Elevada incerteza
Planejamento energético

Modelo equivalente por subsistema


Horizonte: anos
Discretização mensal

{
Custo futuro esperado
por subsistema


Média incerteza
Curto prazo Modelo individualizado
Horizonte: meses Discretização mensal/semanal

{
Custo futuro esperado
por usina

Determinístico
Programação da operação Aspectos elétricos
Horizonte: 1 a 2 semanas Discretização 1/2 hora

Fonte: Zambelli, 2006

Desde 1945, quando foi criada a Companhia ais estatais de energia elétrica e já estava criado o
Hidrelétrica do São Francisco – Chesf –, até 1979, Ministério de Minas e Energia. A importância da
quando foi comprada a Light, esse setor, que era Eletrobras para o planejamento se manteria até a
100% privado, tornou-se 98% público (Iannone, reestruturação liberal, nos anos 1990 (Tabela 3).
2006; Mello, 1996). Durante esse período foram A contratação do consórcio Canambra e o
implantadas as indústrias brasileiras de base, início das atividades da Eletrobras foram espe-
como Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), cialmente importantes para o estabelecimento e
Petróleo Brasileiro S. A. (Petrobras), Banco Na- a consolidação de uma rotina de planejamento
cional de Desenvolvimento Econômico (poste- energético no país. A Canambra foi responsável
riormente Banco Nacional de Desenvolvimento pela realização do primeiro planejamento integra-
Econômico e Social – BNDES), Vale do Rio do de longo prazo e pela determinação detalhada,
Doce, e houve o desenvolvimento da indústria rio por rio, do potencial hidrelétrico do país. O
automobilística nacional. trabalho da Canambra foi importante no levanta-
O período “desenvolvimentista”, voltado para mento da hidrologia, hidrometria e pluviometria
a industrialização e urbanização do país, durou do país junto às instituições existentes (Siqueira,
várias décadas. À medida que as metas dos suces- 2001, in Eletrobras, 2001, p. 106). Quanto à Ele-
sivos governos iam-se estabelecendo, em maior trobras, ao assumir o financiamento, a organiza-
ou menor grau, a pressão sobre o sistema elétrico, ção, o planejamento, a coordenação, a fiscalização
então disperso, crescia. Porém, criavam-se as con- e a operação do setor, tornou sistemática a ativi-
dições que levaram à organização institucional e dade planejadora no Brasil, criando e mantendo
centralização do planejamento do setor (Tabela a estrutura técnica e institucional necessária para
2). Quando a Eletrobras foi finalmente instalada, que o país chegasse ao domínio da mesma, tan-
além de uma miríade de empresas privadas, já to na expansão da oferta, quanto na operação do
estavam em operação várias companhias estadu- sistema interligado (Figura 4).

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tabela 2

SETOR ELÉTRICO – O PERÍODO KEYNESIANO ENTRE OS DOIS GOVERNOS VARGAS

Anos Período Principais eventos

Economia nacional – de agroexportadora para industrial


– Expansão da oferta interna
– Substituição de importações
– Classe média urbana x valores rurais
– Nacionalismo
Governo Vargas
– Agregação dos centros fora do eixo Rio-São Paulo
1930 a 1945 Transição econômica,
Promulgação do Código de Águas e da Lei Oswaldo Aranha
social e política
(fim da Cláusula Ouro)
Poder concedente da energia elétrica – de local para federal
Prestação dos serviços públicos – fortemente regulada
Função do Estado predominantemente regulatória
Criação da Chesf

Liberalismo econômico – industrialização c/ capital privado


Governo Dutra
Plano Salte (Saúde, Alimentação, Transportes, Energia)
(1946-1951)
Comissão Abbink

Governo Vargas
Nacionalismo e intervenção
(1951-1954)
Comissão Mista Brasil-Estados Unidos
governos interinos:
Industrialização crescente x infraestrutura deficitária
Café Filho (1954-1955);
Criação de empresas estaduais (Cemig, CEEE…)
Carlos Luz (1955-1955);
Projeto da Eletrobras (1954) – implantada em 1962
Nereu Ramos (1955-1956)
1945 a 1964
Industrialização planejada: ápice – Plano de Metas
Governo Juscelino Capitais estrangeiros
(1956-1961) Criação do Ministério de Minas e Energia
Criação de Furnas

Crise do desenvolvimentismo
Nacionalismo
Governo Jango Reformas sociais
(pós-Jânio – 1961-1964) Constituição da Eletrobras
Constituição do consórcio Canambra Engineering
Consultant Limited

Fonte: Mercedes, 2012

Até finais da década de 1970, o método utili- O PERÍODO ELETROBRAS


zado para o planejamento da expansão esteve ba-
seado no “período crítico”, com o qual a análise Nos primeiros anos de criação da Eletrobras,
de oferta de energia era feita supondo a repetição e de forma geral durante a década de 1960, a tare-
de uma série histórica de dados em que os anos fa de planejamento passou para outras empresas,
mais secos correspondiam ao período 1952-56. As principalmente a Canambra, como já mencio-
usinas eram dimensionadas de forma que a geração nado. Foi depois de 1967, quando foi inserida a
mínima cobrisse esse período crítico, e o resultado Diretoria de Planejamento e Engenharia (DPE),
era denominado “energia firme” (Ventura Filho, que a Eletrobras passou a exercer a liderança das
2001, in Eletrobras, 2001, p. 35; Eletrobras, 2002). atividades de planejamento. Em 1967 foram rea-

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tabela 3

FORMAÇÃO E TRAJETÓRIA DA ELETROBRAS ATÉ


A LIBERALIZAÇÃO DO SETOR ELÉTRICO

Período Eventos

Ambições de industrialização ➞ necessidade de infraestrutura


Demanda social de energia não atendida e crescente
Concessionárias privadas = falta de planejamento e escassez de investimentos
Década de 1950
Instrumentos políticos e burocráticos
(segundo governo
– CMBEU – Comissão Mista Brasil-Estados Unidos/PNE – Plano
Vargas) – fase de
Nacional de Eletrificação/IUEE – Imposto Único sobre Energia Elétrica/FFE –
conflitos e postergação
Fundo Federal de Eletrificação
da criação
Projeto de lei da Eletrobras – apresentado em 1954 e aprovado em 1961 – início
das atividades em 1962 (João Goulart)
Criação das empresas estaduais de energia

Década de 1960 – Criação do MME (JK)


aumento da Furnas – início da integração do setor
complexidade e DNAEE – regulação (normalizadora e fiscalizadora) + Eletrobras – execução
expansão do sistema (expansão da geração e extensão geográfica do atendimento)

Reagrupamento das supridoras regionais – Eletrosul, Eletronorte, Chesf, Furnas


Década de 1970 –
Reorganização das concessionárias estaduais – todas sob a Eletrobras
fortalecimento
Criação do GCOI – Grupo Coordenador para a Operação Interligada
da Eletrobras
Reforma Campos-Bulhões e capacidade de autofinanciamento

Corrosão da estrutura de financiamento; contenção tarifária; conflito entre


Década de 1980 – Eletrobras e concessionárias
crise internacional Criação do GCPS – Grupo Coordenador do Planejamento dos Sistemas Elétricos
do capital Revise – Revisão Institucional do Setor Elétrico
Ressurgência do pensamento liberal – Pinochet, Thatcher, Reagan…

Década de 1990 –
privatização e
Collor e PND
“esvaziamento
Operação desmonte
institucional”
da Eletrobras

Fonte: Mercedes, 2012

lizados estudos da Região Sul com a condução da A tarefa finalizou em 1969 com o Power Market
Canambra e a supervisão do Comitê Coordenador Study and Forecast – South Central Brazil (Ele-
de Estudos Energéticos da Região Sul; cada re- trobras, 2002). Esse seria o ponto de partida para
gião tinha seu próprio comitê coordenador. Em a elaboração de planos de expansão setorial por
1968 a Eletrobras iniciou estudos de mercado da parte da Eletrobras.
Região Sudeste por solicitação do Banco Mundial A complexidade do projeto Itaipu e a cons-
para rever os estudos feitos pela Canambra e es- trução dos grandes troncos de transmissão en-
truturar a liberação de empréstimos para o setor. tre regiões, assim como o Tratado de Itaipu,

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figura 4

ESTRUTURA INSTITUCIONAL DO SETOR ENERGÉTICO


NO FINAL DOS ANOS 1980 – BRASIL

Presidência
da República

Ministério de
Minas e Energia

Departamento
Nacional de Eletrobras
Águas e Energia
Elétrica

Furnas, Chesf,
Companhias
GCOI GCPS Eletronorte,
estaduais
Eletrosul

Fonte: Mercedes, 2002

introduziram uma nova forma de planejamento este último precursor do Grupo Coordenador de
na operação das regiões Sudeste e Sul do país Planejamento dos Sistemas Elétricos –GCPS (Ele-
(Kligermann, 2009). A Lei n o 5.899, de 1973, trobras, 2002, p. 16).
conhecida como Lei de Itaipu, reforçou as ações O primeiro choque do petróleo influiu na ela-
da Eletrobras como coordenadora do planeja- boração do Plano 90, que não só considerou o
mento e da operação do sistema brasileiro. A sistema brasileiro como único e projetou princi-
partir dessa lei foram criados os Grupos Coorde- palmente o uso do recurso hidráulico para a ge-
nadores de Operação Interligada – GCOIs com ração de energia, mas também introduziu a ideia
o fim de utilizar da melhor forma possível os da substituição entre fontes. A inserção de usinas
recursos hidrotérmicos e abrir possibilidade de nucleares foi apresentada como planejamento es-
uma operação estratégica para o sistema inter- peculativo, mas posteriormente foi apresentada
ligado (Kligermann, 2009). Com a introdução no planejamento determinístico. Houve três ce-
dos sistemas interligados surgiu a necessidade nários de projeção da demanda: o baixo, o médio
de substituir o critério determinístico e inserir e o alto, e como justificativa do programa nuclear
a análise probabilística. foi criado o cenário de “mercado alto mais pro-
Até 1974 as funções de operação, de planeja- vável” (Camozzato, I, 2000, in Eletrobras, 2001,
mento e engenharia estavam sob a mesma diretoria p. 83). Ainda nesse plano não havia as técnicas
da Eletrobras. Posteriormente, devido aos proces- suficientes para simular os reservatórios e se op-
sos de industrialização do país e à demanda do tou pela regra de esvaziar primeiro o reservatório
próprio sistema, a área de operação foi separada e cujo metro cúbico gerasse a maior quantidade de
foi criado o Comitê Coordenador de Operação In- energia ao longo da cascata do rio.
terligada – CCOI, precursor dos GCOIs. As outras
duas seções ficaram divididas em quatro departa- “Esta proposta foi substituída depois pela libera-
mentos: de estudos de mercado, de transmissão, ção da vazão do reservatório que mais gerasse na
de geração de energia e de estudos energéticos, cadeia, somente até um ponto, denominado ‘fai-

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xa’. Esse primeiro reservatório seria barrado nesse Era o ressurgimento da economia neoliberal e a
ponto e liberado o seguinte, até que todos utilizas- implantação de reformas estruturais na maioria
sem a primeira faixa, reiniciando-se todo o proces- dos países da América Latina. O planejamento
so” (Camozzato, 2000, in Eletrobras, 2001, p. 83). centralizado começou a ser questionado. Com o
objetivo de dar um caráter sistemático ao planeja-
Em 1977 foi elaborado o primeiro plano nacio- mento, mas também com fins representativos dos
nal de energia elétrica, conhecido como “Plano 92” diversos interesses das empresas estaduais, em
ou Plano Nacional de Atendimento aos Requisitos novembro de 1980 foi criado o GCPS. Dois anos
de Energia Elétrica até 1992, com o objetivo de depois, mediante a Portaria no 1.617 de 1982, o
proporcionar diretrizes de ordem econômica e téc- GCPS foi reconhecido como organismo responsá-
nica para a DPE da Eletrobras. Foi o primeiro plano vel pela expansão dos sistemas elétricos brasilei-
com visão da integração entre regiões e proporcio- ros. Um grupo importante, pertencente ao GCPS,
nou subsídios pra o Plano 95. O Plano 95, elabora- foi o grupo de trabalhos de critérios de planeja-
do em 1979, foi considerado o primeiro plano de mento energético, o qual fez a difusão dos critérios
expansão territorial e tinha dados mais precisos do de planejamento e criou um ponto de partida para
potencial hidrelétrico brasileiro. Esse foi um plano introduzir a análise probabilística para a expansão
de médio prazo com horizonte de 15 anos, levando do sistema. O planejamento do setor elétrico brasi-
em conta os prazos de construção das usinas e das leiro esteve em mãos do GCPS até 1995.
linhas de transmissão (Eletrobras, 2002). Em 1984, o GCPS programou trabalhos de re-
Em 1977, a Eletrobras e o Centro de Pesqui- visão do planejamento de médio e longo prazo,
sas de Energia Elétrica (Cepel) completaram um entre os quais a avaliação do critério usado na
modelo de programação dinâmica estocástica garantia de fornecimento. Esse trabalho foi enco-
(PDE) que determinava a cada mês o despacho mendado para um subgrupo com representantes do
hidrotérmico de menor custo (Terry et al., 1986). GCPS e do GCOI. As concessionárias estavam im-
O objetivo através do modelo era introduzir no plementando o modelo de programação dinâmica
planejamento do setor a dinâmica estocástica para estocástica desde 1979, que permitiu a introdução
agregar componentes estatísticos e projetar várias da análise probabilística no planejamento da ex-
opções que cobririam todas as vazões possíveis. pansão. Esse método possibilitou calcular o nível
Em lugar de considerar o pior cenário ocorrido de risco no atendimento da demanda. O risco anual
na série histórica de vazões, agora seriam tirados de déficit aceitável foi de 5%, e o planejamento da
alguns índices do histórico, como, por exemplo, a expansão e operação dos sistemas interligados pas-
média, o desvio padrão e a correlação temporal sou a considerar esse risco de déficit para avaliar
das vazões medidas, e seriam introduzidos no mo- a disponibilidade de energia (Eletrobras, 2002, p.
delo PDE que simulava mensalmente o montante 219; Eletrobras, 2001, p. 37).
de geração térmica para obter o mínimo custo no Em 1985, com o início do governo Sarney, ini-
horizonte desejado com todas as possibilidades de ciava-se a redemocratização e a transição entre o
afluência (Kligermann, 2009; Terry et al., 1986). modelo intervencionista militar e o modelo liberal.
O GCOI criou um grupo de trabalho com repre- Nesse governo foi aprovado o Plano de Recupera-
sentantes das concessionárias pra analisar o novo ção Setorial (PRS), com a supervisão da Eletrobras
modelo e definir critérios para sua aplicação na e a participação das empresas concessionárias e o
operação do sistema (Eletrobras). Os critérios para Departamento Nacional de Águas e Energia Elé-
uso do modelo nos estudos de operação do sistema trica – DNAEE. Esse plano continha os planos e
foram estabelecidos em 1979, e o modelo PDE foi obras a ser executadas até 1989, no entanto, os trâ-
usado para determinar a estratégia de operação e mites de negociação da dívida externa e os confli-
índices de confiabilidade nos planos de expansão tos entre as concessionárias pelos recursos dispo-
(Terry et al., 1986). níveis frearam esse processo, somados às reformas
Na década de 1980, o Estado começou a ser promovidas nos setores de infraestrutura, obede-
desacreditado e responsabilizado pela degradação cendo ao preceito de priorizar aqueles de caráter
das taxas de crescimento do período keynesiano. estratégico e rentabilidade assegurada (Mercedes,

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2012). Outra das recomendações do PRS foi a revi- já era utilizado em outros países para a avaliação
são do Plano 2000 em 1985, um ano antes do pre- dos sistemas energéticos. Porém, as estratégias cal-
visto. O aporte do Plano 2000 esteve determinado culadas por PDE para cada reservatório equivalen-
pela inserção de outros setores no planejamento te eram implementadas através do modelo Baltroc,
do setor elétrico, e as restrições da época fizeram que simulava os intercâmbios de fluxo de energia
com que o equilíbrio econômico-financeiro fosse entre as regiões Norte e Nordeste e Sul e Sudeste/
uma das considerações mais importantes. A partir Centro-Oeste com base em balanços com trocas
desse plano, os seguintes seriam uma revisão do empíricas (Kligermann, 2009). A partir de 1983
anterior. O Plano 2010, Plano Nacional de Energia foi implementado o modelo Bacus, que utilizava
Elétrica 1987-2010, nasce em 1986 como revisão o valor de água de cada subsistema para as trocas
do Plano 2000. de energia, mas não levava de forma explícita os
O Plano 2010 incluiu os recursos hídricos da intercâmbios, motivo pelo qual não era bem ava-
Amazônia, usinas termelétricas e reintroduziu as liado, mas ao final era aceito de forma consensual.
usinas nucleares do Plano 90. Outro dos pontos Somente a partir de 1998, quando foi introduzido
foi a introdução do licenciamento das atividades o modelo Newave, foram considerados os inter-
que afetam o meio ambiente através do estudo de câmbios entre subsistemas através da programação
impacto ambiental e o respectivo “Relatório de Im- dinâmica dual estocástica (Kligermann, 2009).
pacto Ambiental EIA-Rima” a partir de 1986. O
Plano 2010 foi aprovado em 1988 como “balizador A PRIMEIRA FASE DA
do atendimento ao mercado de energia elétrica”,
mas, ao mesmo tempo, o GCPS foi responsabiliza- LIBERALIZAÇÃO – FHC
do por elaborar a expansão de curto prazo com os
Planos Decenais de Expansão (Eletrobras, 2002). Em um contexto regional de implantação de
O primeiro deles foi o Plano de Expansão 1990-99 ajustes de caráter liberal à economia, o Brasil tam-
com projeções de PIB e de crescimento do sistema bém promoveu reformas nos setores de infraestru-
inferiores às propostas no Plano 2010 como con- tura, obedecendo ao preceito de priorizar aqueles
sequência das modificações estruturais que estaria de caráter estratégico e rentabilidade assegurada.
sofrendo a economia. Os cronogramas propostos Especificamente em relação ao setor energético, a
no Plano 2010 foram postergados para ajustar a reestruturação tinha objetivos bastante definidos,
oferta com o mercado de energia. A entrada de considerando sua importância em termos de or-
obras como Belo Monte era incompatível com os ganização e crescimento econômico dos países.
recursos do setor, assim como a usina Ilha Grande Esses objetivos incluíam (Mercedes, 2012b):
(Eletrobras, 2002).
O Plano 2010 foi dos primeiros a considerarem • Mercantilizar o serviço público de fornecimento
a redução das incertezas no planejamento de longo de energia.
prazo. Na visão do GCPS, o planejamento de longo • Remover os entraves à “globalização” da indús-
prazo, mais que acertar uma previsão, devia esta- tria energética, permitindo o livre trânsito dos
belecer uma referência, dado o caráter dinâmico capitais internacionais, segundo seus interesses.
do setor, e permitir a efetividade das ações frente a • Promover a ideologia da eficiência econômica: o
diferentes situações de mercado ou de suprimento. setor privado é mais eficiente em promover alo-
O Plano 2010 indicou a possibilidade de uso do cação de recursos do que o setor público; o in-
modelo de evolução de mercado de demanda de cremento de competição e a desregulamentação
energia (Medee) elaborado na França, que era um levam à eficiência econômica; políticas orien-
modelo contábil das necessidades energéticas da tadas pelo mercado criam verdadeiras pressões
sociedade (Eletrobras, 2002, p. 250). Por sua par- democráticas sobre a gestão do sistema, pois a
te, a Eletrobras, desde 1983, vinha desenvolvendo escolha econômica individual é a única autêntica
um modelo de programação lineal para a criação expressão da liberdade na sociedade; somente a
e análise de cenários baseado no custo mínimo de liberalização levaria à eficiência ambiental, por
investimentos e operação denominado Markal, que levar à abolição de tecnologias obsoletas.

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Dossiê Energia elétrica

O governo Collor, que figura como o responsá- Como mencionado, ao instituir o GCPS e o
vel pelo início da abertura econômica, apesar da GCOI, a indústria elétrica brasileira tinha pra-
retórica modernizante, não adotou logo de início ticamente completado seu arcabouço institucio-
as reformas liberais. O marco definitivo para a im- nal. Os dois órgãos responsabilizavam-se, res-
plantação dos ajustes foi estabelecido no governo pectivamente, por elaborar o Plano de Expansão
seguinte, de Fernando Henrique Cardoso. Este e o Plano de Operação do Sistema. Pelas carac-
sofisticou e acelerou o Programa Nacional de De- terísticas da geração, essencialmente hidráulica
sestatização (já implantado), endureceu a política e baseada no aproveitamento das complementa-
de ajustes fiscais e estabilidade monetária e adotou ridades hidrológicas das bacias ao longo do país,
o regime de âncora cambial, uma das premissas do tanto a expansão quanto a operação dependem,
Consenso de Washington. O setor elétrico foi am- ainda, de uma interação cooperativa entre agen-
plamente reestruturado. O novo modelo foi elabo- tes a fim de que não se percam suas principais
rado pela consultoria inglesa Coopers & Lybrand, vantagens: maior confiabilidade associada ao
desconsiderando características fundamentais do menor custo econômico.
sistema brasileiro (Figura 5). As reformas são sin- Trabalhando simultaneamente com os dados
tetizadas na Tabela 4, comparadas às estruturas do de mercado e com as condições hidrológicas das
modelo anterior, estatal. bacias (por exemplo, critérios probabilísticos de

tabela 4

MODELO ESTATAL X MODELO liberal

Modelo estatal Modelo liberalizado (1a fase)

Preços de geração regulamentados e contratos


MAE – mercado atacadista de concepção mercantil
de suprimento renováveis

Empresas integradas atuando em regime de G, T, D e C como atividades independentes e limites


monopólio à participação cruzada

Malhas de transmissão/conexão e distribuição


Transmissão de energia agregada à geração
desagregadas e permitindo livre acesso

Consumidores cativos + aumento gradual de livres +


Mercados cativos
liberação paulatina

GCPS e planejamento normativo CCPE e planejamento indicativo

Planos decenais

GCOI e condomínio de mercado ONS operacionalizando mercado competitivo

Tarifa regulada para consumidores cativos e preços


Tarifa via serviço pelo custo e remuneração
competitivos e desregulamentados para livres
garantida até 1993
e suprimento

Aprovação dos serviços públicos de energia pelo Concessões licitadas pela Aneel; todos os
DNAEE aproveitamentos considerados como PIE

Restrição à atuação de autoprodutores e Regulamentação da atuação de autoprodutores e PIE


produtores independentes e permissões de livre acesso à rede

Fonte: Sauer, 2003

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figura 5

FLUXOGRAMA DAS ETAPAS DE REESTRUTURAÇÃO


E DESESTATIZAÇÃO DO SETOR ELÉTRICO

1. Antecedentes
• Modelo de financiamento entra em crise em 1981
• Tentativa de revitalizar o setor em 1987 (PRS)
• Tentativas de reformação do setor em 1986-88 (Revise)


Período de impasse e imobilismo
(perda da capacidade de investimento do setor)

Lei 8.631/93: NOVOS FATOS:


• Eleições e novos desequilíbrios financeiros:
Ajuste da estrutura de capital Desafogo ressurgimento da crise
financeiro das

(26 bilhões) • Gradual amadurecimento do setor para as mudanças


concessionárias • Início dos estudos para a privatização (BNDES)
100% até 1997

• Atualização tarifária de 65% (1993)



2. Políticas e ações do governo Fernando Henrique Cardoso

Sob a ameaça de crise de suprimento pela falta de investimentos e hidrologia desfavorável (até 1996):

2.1 Bases da reestruturação: Lei das concessões 8.987 e 9.074/95

• Licitação
• Competição na geração
• Livre acesso à rede de transmissão
• Escolha livre do superior de energia

2.2 Desafio duplo: promover uma reestruturação consistente e duradoura e, ao mesmo tempo, expandir o mercado
("O MERCADO NÃO ESPERA PELAS MUDANÇAS")

EXPANSÃO DURANTE A TRANSIÇÃO



Reestruturação do setor Regulamentação mínima Expansão na transição Privatização
Consultoria da • Produtor independente • Interligação Norte-Sul Das empresas de
Coopers & Lybrand • Aneel • Térmicas-gás natural distribuição em
(Projeto RE-SEB) • Prorrogação de concessões • Reforço no Sistema Sul/Sudeste endamento, visando
Proposta básica: jun/97 • Cancelamento de 33 concessões • Retomada de obras paralisadas em base um mercado
de projetos não iniciados (parcerias) competitivo: contratos,
• Redução dos níveis de • Licitações de projetos concessão, gestão
inadimplência • Interconexões com países compartilhada entre
vizinhos Eletrobras e BNDES,
concessionárias
inviabilizadas
Viabilização das Alterações legais: apenas as
decisões políticas: absolutamente necessárias

• Início das privatizações de


20 semestre/97 20 sem/97 e 10 sem/98
ativos de geração da
Eletrosul, Furnas, empresa

de São Paulo e CEEE
Implementação • Privatização dos sistemas

Regulamentação (infralegal) de Manaus, Rondônia e


(2 a 3 anos)
concessionárias estaduais



Código de Energia Ajustes na regulamentação CONSOLIDAÇÃO INSTITUCIONAL DE

Elétrica (infralegal) UM NOVO MERCADO COMPETITIVO

Fonte: Brasil, 1998

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Dossiê Energia elétrica

risco de déficit, nível de armazenamento dos reser- gem, nenhuma atuação (ou força) política teve no
vatórios), as duas entidades buscavam assegurar o sentido de promover qualquer mudança de rumo
mínimo risco de desabastecimento, tanto no lon- na condução do problema, impedindo tal uso.
go prazo (expansão), quanto no curtíssimo prazo Demonstrou ter-se tornado um órgão meramente
(operação). Do planejamento provinham, ainda, executivo (Mercedes, 2002).
os custos marginais de expansão da geração, da Além da perda de competência técnica, com
transmissão e da operação, que balizavam tanto a o desmonte das principais áreas de planejamento
tarifação, quanto o despacho otimizado (Oliveira et e operação do sistema elétrico, do surgimento e
al., 1999). Durante o período FHC, o planejamento ampliação dos custos de transação e custos re-
da expansão passou a ser efetuado pelo Comitê gulatórios, da inadequação do modelo e falta de
Coordenador do Planejamento da Expansão dos cultura regulatória, que permitiram abusos por
Sistemas Elétricos (CCPE) e a operação coube ao parte dos novos concessionários e do aumento
Operador Nacional do Sistema (ONS), que mante- exponencial das tarifas, um evento ficou como a
ve sua função na reforma Lula-Dilma. marca derradeira das reformas: o racionamento
No âmbito do CCPE, importantes alterações de energia ocorrido em 2001. Antes, vários ble-
foram introduzidas com a adoção do modelo li- cautes, por má gestão, má operação e manuten-
beralizado. De imediato, o fluxo de informações, ção, com explicações, no mínimo pitorescas. A
antes compartilhado abertamente por todos os falta de investimentos em capacidade instalada
agentes, passou a ser tratado como de importância e o fracasso do programa prioritário de termelé-
estratégica comercial pelos agentes privatizados, tricas levaram ao deplecionamento dos reserva-
e não mais disponibilizado com a transparência tórios do Sistema Interligado Nacional (SIN) e
de antes. O planejamento, que tinha caráter nor- culminaram no racionamento (Mercedes, 2012b).
mativo, baseado nas premissas supramencionadas, O planejamento energético vem buscando,
passou a ser indicativo, fornecendo critérios técni- sobretudo nos últimos anos, após a liberalização
cos e econômicos para que os agentes decidissem, dos setores de infraestrutura, resolver simulta-
de acordo com seus próprios interesses, o que era neamente um problema prioritariamente técnico,
mais vantajoso empreender. Finalmente, passou a vinculado à operação dos sistemas elétricos, e
existir a tarefa política de assegurar um mínimo outro, que é econômico-financeiro, isto é, trata-se
planejamento necessário à prestação de um serviço de obter um plano ótimo de operação que reduza
público, diante de atores privados, com programa- os custos da energia, os riscos técnicos, de déficit,
ções próprias, não necessariamente produzidas no e os negociais, pois agentes privados atuam nesse
país (orientações vindas das matrizes, dentro de setor. Buscando esse tipo de solução, tornou-se
contextos supranacionais) (Mercedes, 2002). necessário dispor de modelos de programação
O ONS, entidade civil de direito privado, cada vez mais robustos, o que foi permitido pelo
substituiu o GCOI, mantendo praticamente todas avanço da computação e das teorias de modela-
as suas funções. De forma pitoresca, o exercício gem (Lopes, 2007). No caso do sistema brasileiro,
de tais funções era apresentado, como peça de hidrotérmico, interligado, essa busca assumiu o
publicidade institucional, como uma vantagem caráter de prioridade quase absoluta.
para a sociedade. Ao contrário do CCPE, que Como relatam Lopes (2007) e Amaral (2003),
se apoiava, ainda, sobre a capacidade técnica o Cepel, pertencente ao sistema Eletrobras, e a
acumulada da Eletrobras, no ONS ocorreu uma Coppe tiveram importante papel no desenvolvi-
grande desarticulação de pessoal habilitado, que mento do sistema que hoje domina completamen-
redundou, nos primórdios de sua implantação, te a operação e a precificação de energia no país:
num blecaute de proporções nacionais. No epi- o Newave. Segundo os autores, uma vez que a
sódio da crise de abastecimento, embora o órgão Eletrobras já desenvolvia programas de modela-
tivesse conhecimento das graves consequências gem desde o final da década de 1970 e a partir
que decorreriam do deplecionamento dos reser- das primeiras propostas metodológicas na linha
vatórios a fim de suplantar a falta de turbinas, da programação dinâmica dual estocástica, elabo-
até 2001, ao contrário do órgão que lhe deu ori- radas ainda na década de 1980 (Lopes, 2007), o

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Newave ganhou importância no setor no período Cardoso, a privatização das empresas e o modelo
da liberalização, mais especificamente a partir mercantil implantado foram alvo da campanha
de 1999, enquanto seu complemento, o programa do então candidato Luís Inácio Lula da Silva. O
Decomp, passou a ser empregado a partir de 2001 Instituto Cidadania, entidade com óbvias relações
(Amaral, 2003). com o Partido dos Trabalhadores, promoveu di-
Destinado ao cálculo do custo marginal de ope- versas reuniões com técnicos, que vinham apon-
ração do sistema, que, por sua vez, baliza o cálculo tando esses erros, mesmo aqueles sem ligações
do preço a ser utilizado nas transações de curto partidárias. Em julho de 2002, produziu um texto
prazo (mercado spot, no período liberalizado; de denominado ‘Diretrizes e Linhas de Ação para o
liquidação de diferenças, no presente) (Figura 6), Setor Elétrico Brasileiro’”.
o preço definido a partir do uso dos programas
Newave e Decomp passou a balizar praticamente Esse documento, cuja elaboração foi coor-
todas as transações que envolvem a energia elétrica denada por Pinguelli Rosa, no Instituto Cidada-
no país. Uma vez que embute o risco representado nia, e foi realizada por uma equipe que incluía
pela estocasticidade decorrente da predominância nomes como Ildo Sauer e o próprio Roberto
hidráulica na geração, o seu uso levou ao estabe- D’Araújo, encerrava, em seu índice, uma hierar-
lecimento de uma forte característica especulativa, quia das ações e urgências que deveriam nor-
com consequências que já se mostraram desastro- tear a gestão setorial, caso a candidatura Lula
sas para a sociedade brasileira. fosse vitoriosa (Rosa, 2004), e que decorriam
da necessidade de enfrentamento imediato e
A SEGUNDA FASE DA revisão profunda do modelo de liberalização
plena, fracassado:
LIBERALIZAÇÃO – LULA E DILMA
“I – Política Energética: implicações estratégicas.
Os equívocos cometidos pelo governo anterior, II – O Quadro Resultante da Crise e as Medidas
que conduziram, no setor elétrico, ao racionamen- do Governo.
to de 2001, foram, como narra D’Araújo (2009, p. III – Princípios Básicos de um Novo Modelo.
191), o principal interesse ao longo da campanha IV – Modelo de Serviço Público Integrando Em-
presidencial do Partido dos Trabalhadores em 2002: presas Elétricas Estatais e Privadas.
V – Diferenças entre o Modelo (anterior) e a Pre-
“Evidentemente, por ter sido a mais equivocada sente Proposta (novo modelo).
política pública do governo Fernando Henrique VI – Ações Imediatas para Superar a Crise”.

figura 6

CÁLCULO DO CMO UTILIZANDO O NEWAVE E O DECOMP

Dados para
Função Custo
NEWAVE NEWAVE


Futuro (NEWAVE)
atualização mensal

Dados para DECOMP


DECOMP CMO


atualização semanal

Fonte: Machado, 2007

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Dossiê Energia elétrica

Além desse documento, o próprio programa Entretanto, o novo Ministério de Minas e Ener-
de governo da campanha de 2002, sobre o setor gia, encabeçado por Dilma, optou por desenvol-
elétrico, apontava: ver uma terceira proposta, baseada em arran-
jo, este sim, preconizado pelo Banco Mundial:
“8. […] O novo governo trabalhará com um pla- multiple buyers, multiple sellers in bilateral
nejamento energético integrado, de maneira a markets (múltiplos compradores, múltiplos ven-
viabilizar novas dinâmicas para os setores de hi- dedores em mercados bilaterais) (figuras 8 e 9).
droeletricidade, petróleo e gás natural, carvão, de Pereira (2003) narra os eventos decorridos da
geração nuclear, fontes alternativas (eólica, solar e disputa entre modelos, que marcou o primeiro ano
biomassa), de eficiência energética e cogeração e do governo Lula:
geração distribuída […].
[…] “O Ministério de Minas e Energia, diz o seu
31. No nosso governo, as bases de sustentação des- secretário-geral, Maurício Tolmasquim, já se de-
sa atividade não serão entregues apenas às forças cidiu em relação à questão básica que emperrava
do mercado nem a uma visão tecnocrática e au- a apresentação do novo modelo para a reestrutu-
toritária, centralizadora. Devem ter caráter parti- ração do setor elétrico: entre o mercado e o pla-
cipativo, criando mecanismos de controle social nejamento optou pelos dois – vai tentar combi-
e de incorporação de contribuições dos diversos nar um planejamento estatal determinativo com
segmentos da sociedade, dos consumidores resi- um modelo de geração, transmissão e distribui-
denciais, da indústria, da agricultura, do comércio ção baseado na competição e no mercado. No
e dos serviços. […] novo modelo, uma entidade – provisoriamente
[…] chamada de Administradora da Contratação de
38. As ações básicas serão desenvolvidas no sen- Energia (ACE) –, sob controle público, planeja-
tido de impedir a transferência de renda do setor rá e determinará as novas licitações necessárias
energético; retomar os investimentos setoriais, ala- para atender à demanda prevista.
vancando os expressivos recursos próprios das em- A ACE tenta corrigir o principal e mais visível
presas públicas e atraindo o capital privado para defeito do modelo herdado de Fernando Henri-
expansão do sistema; impedir a cisão de Furnas, que Cardoso. Apoiado num planejamento apenas
Eletronorte e Chesf, orientando as empresas que indicativo e nas iniciativas dos investidores pri-
se mantêm sob o controle da União e dos estados vados, o modelo de inspiração neoliberal, que
a reinvestirem na expansão, de acordo com a ca- privatizou grande parte da distribuição e fra-
pacidade financeira de cada uma” (Palocci Filho cassou na implantação de um mercado livre de
& Daniel, 2002). compra e venda de energia no país, não garantiu
a instalação de novas usinas e linhas de trans-
Em março de 2003, já no governo Lula, Sauer missão com capacidade suficiente para suprir o
lançou, em evento público na Universidade de consumo previsto, o que levou o país ao flagelo
São Paulo, a proposta de modelo institucional do apagão de 2001-2002.
oriunda dos debates realizados no âmbito do A entidade pública anunciada, diz Tolmasquim,
grupo de pesquisa USP 1105, a mesma que leva- tentará induzir as distribuidoras a realizarem
ra para os debates do Instituto Cidadania e que contratos de expansão do fornecimento dentro
apresentara, dias antes, ao governo empossado. das previsões oficiais, mas suas avaliações se-
Sua proposta, equivocadamente identificada rão determinativas, em última instância, apenas
como modelo single buyer, do Banco Mundial, para ela própria. No modelo proposto para a ACE
previa, contudo, uma participação majoritária do prevaleceu a opção de menor intervenção estatal
Estado na apropriação da renda setorial, visando possível: as distribuidoras de energia negociarão
a sua redistribuição no próprio setor e em outras diretamente seus novos contratos de fornecimento
prioridades definidas em processos públicos e com as geradoras e poderão divergir do planeja-
transparentes. Ainda assim, o modelo, aprimo- mento oficial, contratando menor fornecimento
rado, foi proposto como major buyer (Figura 7). por considerarem excessivo o consumo previsto.

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figura 7

PASSOS DO PLANEJAMENTO DETERMINATIVO NO MODELO PROPOSTO POR SAUER

Estudos de matriz energética,


Previsões de demanda,
estudos de inventário,
estudo das opções locais,
licença ambiental prévia e
regionais e nacionais
relatório de passivo social

Otimização das opções de oferta,
geração e transmissão:
Plano indicativo 5-10-15-30 anos
Contestabilidade:
▼ divulgação, audiências
públicas, plano aberto


a receber propostas de
▼ blocos de energia gerada
Revisão do plano incorporando e/ou conservada
alternativas de blocos de
energia gerada e/ou conservada

PLANO DETERMINATIVO
▼ Licitações:
cias. estatais, privadas
Licitações
e consórcios/SPEs para

bem-sucedidas
o horizonte
do plano
Sim Não



CNEA define agentes
Processo de contratação: responsáveis pela execução
energia gerada e conservada e garante os recursos

Fonte: Sauer, 2003

figura 8

MAJOR BUYER X MULTIPLE BUYERS, MULTIPLE


SELLERS IN BILATERAL MARKETS (MULTICONTRATAÇÃO BILATERAL)

The bilateral contracts model for electricity trading

Generators Transmission Distributors Consumers


and dispatch

Note: The red lines represent electricity trading. The transmission and dispatch entity may have contracts with market players, but these are not for the
trading of electricity. An example is a contract with generators for ancilary services (such as frequency control, spinning reserve and cold reserve)

Fonte: Lovei, 2000

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Dossiê Energia elétrica

figura 9

PROPOSTA DE MODELO INSTITUCIONAL PARA O SETOR ELÉTRICO

Modelo geral da contratação da energia


Geração Transmissão Distribuição Consumo
Ambiente de contratação administrada

PIE

Ambiente
PIE CL
de livre
contratação CL
PIE COM CL
CL

PIE: produtor independente de energia; COM: comercializador; CL: consumidor livre

Fonte: Brasil/MME, 2003

Nesses casos, o Estado contratará diretamente os de março. Como não foi aprovado, a Eletrobras,
projetos adicionais de geração e transmissão que sob o comando de Pinguelli, criou o Genese –
considera indispensáveis para atender à demanda. Grupo de Estudo para Nova Estruturação do Se-
Assim, como regra, a ACE não contratará nem a tor Elétrico, com a participação de Sauer, para
compra nem a venda de energia diretamente; será apresentar nova solução.
uma mera repassadora de contratos. Posteriormente, o MME criou através da Porta-
Tolmasquim, 43 anos, provisoriamente também ria 040/2003 seu próprio grupo de trabalho, sob
secretário de Política Energética do Ministério a coordenação de Tolmasquim. Agora, diz o se-
de Minas e Energia, é não apenas o coordenador cretário-geral, a proposta oficial está basicamente
mas o mentor dessa solução. Sua proposta surgiu definida e em duas semanas será detalhada para
depois que a ministra descartou outra fórmula, apresentação formal e debate público.
apresentada em ‘Um Novo Modelo para o Setor Na proposta de Sauer, o órgão público encarrega-
Elétrico Brasileiro’, texto assinado por Ildo Sauer, do da contratação de energia não seria apenas um
professor da Politécnica de São Paulo. Sauer, de- repassador de contratos a serem feitos diretamen-
pois de Luiz Pinguelli Rosa, atual presidente da te entre geradoras e distribuidoras. Ele contrata-
Eletrobras, foi talvez o principal articulador das ria as compras e as vendas. E, na intermediação
propostas de política energética do Instituto da entre a produção e o consumo, apropriaria, para
Cidadania, do então candidato Luiz Inácio Lula o Estado e para os projetos de inclusão social do
da Silva. Seu texto começou a ser preparado governo, a chamada renda hidráulica, decorrente
depois da vitória de Lula no segundo turno das do fato de as velhas geradoras hidrelétricas es-
eleições do ano passado; ficou pronto depois do tatais produzirem energia a preços duas a três
carnaval; e foi debatido com a ministra no início vezes menores que os do mercado global atual,

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definido pelos custos das geradoras termelétricas cial. Rosa et al. (2004) sintetizam a comparação
que prevalecem nos países desenvolvidos”. entre as características do modelo de liberalização
plena, da proposta oriunda das discussões do Ins-
Sobre a proposta apresentada no início do ano, tituto Cidadania e da proposta finalmente imple-
Bandeira (2003) opina: mentada pelo governo (Tabela 5).

“A figura 51 reproduz ilustração do documento O SETOR ELÉTRICO


disponibilizado pelo MME, corroborando a con-
clusão de que, à luz da teoria relativa a modelos ATUAL – BREVE RETRATO
para a indústria de energia elétrica apresentada no
presente documento, o MME não está propondo, O sistema elétrico brasileiro é um sistema hi-
de fato, uma alteração de modelo. drotérmico, com predominância de geração de
Realmente, para que ocorresse uma efetiva alte- base hidráulica. Trata-se de um sistema de grande
ração de modelo do setor elétrico nacional, para porte, majoritariamente interligado (SIN – Siste-
um modelo com menos competição, um modelo do ma Interligado Nacional), com existência de sis-
tipo 3 ou do tipo 2 (vide Capítulo I), extinguindo temas isolados, dividido em quatro subsistemas:
o ambiente de mercado e a figura do consumidor SE-CO, N, NE, S.
livre, haveria necessidade de rompimento de con- Além da geração hidrelétrica e termelétrica
tratos vigentes, ou de oferecimento de vantagens fóssil (gás natural, carvão, óleo combustível), re-
adicionais aos agentes para que estes, voluntaria- novável (biomassa residual e “virgem”) e nuclear,
mente, abrissem mão de direitos contratuais, resul- incorpora geração eólica (crescente nos últimos
tantes, portanto, de ato jurídico perfeito. Ambas as anos), solar fotovoltaica (insignificante) e impor-
hipóteses apresentam custos elevadíssimos para o tação de energia. A geração hidrelétrica de grande
país e resultariam num aumento do risco setorial, porte, em especial as usinas mais antigas, é dota-
afastando investimentos privados do setor elétrico da de reservatórios de regularização (em período
nacional, com implicações possíveis no risco país, mais remoto, plurianual e, atualmente, intra-anual).
e todas as consequências indesejáveis associadas. Esses reservatórios acumulam água nos períodos
Não obstante estar sendo mantido o modelo de com- úmidos e a liberam nos períodos secos.
petição no varejo, a proposta divulgada pelo MME, A interligação do sistema, através de uma ma-
como veremos adiante, introduz um agente de con- lha de transmissão de grande extensão e, conse-
tratação de energia, o denominado Administrador quentemente, das bacias hidrográficas nas quais
dos Contratos de Energia Elétrica – ACEE, sem que se localiza a infraestrutura de geração, promove
se possa extinguir agentes existentes ou o ambiente uma complementaridade entre os diversos regi-
de mercado, como visto. Em consequência, a intro- mes hidrológicos regionais. Permite, também,
dução do agente proposto, no curto prazo, resultará uma geração cerca de 25% superior à que seria
no aumento da complexidade das regras, no aumen- obtida sem a interligação.
to das incertezas para os investidores, e no aumento A operação do sistema é feita de forma cen-
dos custos setoriais, refletindo-se inevitavelmente tralizada, pelo Operador Nacional do Sistema
no aumento das tarifas. Os reflexos das alterações (ONS), visando a garantir a segurança do supri-
propostas para o setor, no médio prazo, serão abor- mento ao menor custo possível (otimização e con-
dados mais à frente no presente trabalho”. fiabilidade energética) e a estabilidade elétrica.
Para o atendimento dessas premissas, é efetuado
O modelo definitivo foi lançado em novembro o planejamento da operação, cuja periodicidade
de 2003, com a maioria das características que ain- pode ser diária, semanal, mensal, quadrimestral,
da apresenta, sobretudo quanto ao arranjo comer- anual e de mais longo prazo.
Como critério de garantia de suprimento, a
estratégia de operação do SIN considera, atu-
1 A “figura 5” à qual se refere o autor é uma reprodução da
almente, o teto para o risco de ocorrência de
Figura 6b, extraída do documento original do MME. déficit de energia (risco de déficit) o não atendi-

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Dossiê Energia elétrica

tabela 5

COMPARAÇÃO ENTRE O MODELO LIBERAL (FHC), O MODELO PROPOSTO


PELO INSTITUTO CIDADANIA E O NOVO MODELO DO SETOR ELÉTRICO

Proposta do
Item Modelo anterior Novo modelo
Instituto Cidadania

Descontratação de energia Sim Suspender Mantida

Eletrobras no PND Sim Retirar Retirada


Restrições de investimentos da
Eletrobras e de ser majoritária Sim Revogar Não revogada
em parcerias
Serviço público
Natureza da geração elétrica Mercantil Serviço público
e mercantil
Produção Concessão com
Forma de exploração das usinas Concessão
independente muitos prod. ind.

Geração e transmissão Desverticalizar Não desverticalizar Não desverticaliza

Indutor de
Mercado atacadista Extinguir Substituído
investimento

Garantia de suprimento Mercado Poder público Poder público

Produtores independentes Maioria Exceção Grande número

Planejamento Indicativo Determinativo Determinativo

Licitação onerosa Licitar todas por Licita todas por


Novas usinas
de hidrelétricas menor tarifa menor tarifa

Despacho de usinas Oferta de menor preço Menor custo Menor preço

Energias alternativas Mercado Política energética Proinfa e mercado

Térmicas a gás natural Obedece a contratos Complementar Obedece a contratos

Participação privada Privatizações Suspender Suspensas

Atração de invest. Recursos públicos Prioridade de invest.


Financiamento
privados e privados privados

Definida pelo
Política energética Dada pelo mercado. Indefinida
governo

Regulação Aneel Integrada Aneel

Fonte: Rosa, 2004

mento de 5% do mercado. No período anterior à (energia armazenável), em cada subsistema, para


liberalização do setor, esse critério considerava atendimento de toda a carga.
inaceitável um risco superior a 5% da ocorrên- A gestão do setor elétrico brasileiro consi-
cia de qualquer déficit (Rosa et al., 2000). Um dera, para o planejamento da expansão, para o
instrumento da gestão da operação é a curva de planejamento da operação e para a comerciali-
aversão ao risco, que mostra a evolução dos re- zação de energia, os custos marginais de curto
quisitos mínimos de armazenamento de energia (CMO – custo marginal de operação) e de lon-

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go prazo (CME – custo marginal de expansão). a contratação da energia se dá por meio de lei-
Os CMOs refletem o atendimento da demanda lões (de várias modalidades), cujo critério para
(carga incremental de 1 MW) sem incorporar a seleção é a oferta do menor preço de venda
a adição de novos empreendimentos, usando, da energia. No ACL, são feitas transações bi-
para isso, a reserva do sistema, o aumento da laterais entre compradores e vendedores que
importação ou a degradação da qualidade do determinam entre si todas as condições do ne-
abastecimento. Os CMEs ref letem o atendi- gócio. Trata-se de um modelo conhecido como
mento da carga incremental considerando a multicontratação bilateral, proposto pelo Banco
incorporação de novos empreendimentos, além Mundial no início dos anos 2000 como forma
das demais alternativas. Por definição a con- de mitigar as diversas crises que atingiram
fiabilidade ótima do sistema é atingida quando mercados liberalizados em vários países (des-
o CMO iguala o CME (EPE, 2011; Camargo, taque para a crise da Califórnia e para a crise
1996). Essa premissa é adotada no planeja- brasileira), reduzindo o grau de liberalização.
mento setorial brasileiro, por recomendação A regulação tarifária (distribuição) segue o
do Banco Mundial, desde a década de 1980 modelo do preço-teto incentivado, que prevê re-
(Santana, 1993; Camargo, 1996). ajustes anuais e revisões periódicas. No perío-
As características do sistema (hidrotérmi- do entre as revisões, o concessionário pode se
co, interligado) tornam necessária a otimiza- apropriar de todo o excedente que obtiver. Nas
ção do despacho – ordenamento no tempo e no revisões, entretanto, é calculado o Fator X, que
espaço da entrada em operação de cada planta, pode ser positivo ou negativo e, em tese, repartiria
para o atendimento da carga a cada momento com a sociedade, no período seguinte, os ganhos
–, a fim de obter o menor custo possível. São de eficiência.
levados em conta, entre outros parâmetros, o O atual modelo foi estabelecido pelo go-
custo da geração térmica, o “valor” da água e verno Lula, com premissas iniciais de garantir
a demanda. A técnica utilizada para realizar segurança do abastecimento, promover a uni-
a otimização é a programação dinâmica dual versalização do acesso, a expansão das fontes
estocástica (PDDE), base do programa Newa- renováveis e a modicidade tarifária. Entretan-
ve, que, aplicada em conjunto com o programa to, a manutenção das características básicas
Decomp, calcula o CMO. do modelo mercantil de FHC, o aumento da
A partir do CMO, é calculado o preço de complexidade resultante da adoção do modelo
liquidação de diferenças (PLD), introduzido de multicontratação bilateral, as inúmeras bre-
na liberalização do setor, para balizar as tran- chas inerentes ao arcabouço legal-institucional
sações spot no antigo Mercado Atacadista de e vários equívocos de gestão resultaram, nos
Energia (MAE). O PLD foi mantido no atu- dez anos de sua duração, em uma das mais al-
al modelo, valorando a energia nas operações tas tarifas do mundo; persistente defasagem no
de liquidação dos saldos no mercado de curto planejamento e investimentos; precárias con-
prazo, sob a coordenação da Câmara de Comer- dições de manutenção e operação (sucessão de
cialização de Energia Elétrica (CCEE). Nisso o apagões e “apaguinhos”) e na permanência de
Brasil difere da maioria dos modelos interna- um ainda enorme contingente de “sem luz”.
cionais, onde o preço é determinado por equi-
líbrio entre oferta e demanda, através de leilões CONSIDERAÇÕES FINAIS
de compra e venda (Queiroz, 2007). Desde en-
tão, o PLD vem sendo amplamente utilizado Desde que se tornou parte intrínseca do
como sinalizador de valor e preço da energia modo de vida urbano e industrial que hoje de-
no Brasil, sob as críticas de um grande número termina a existência da maior parte dos seres
de especialistas do setor. humanos do planeta, a energia elétrica adquiriu
O arranjo comercial prevê um ambiente de um caráter de essencialidade que dificilmente
contratação regulado (ACR) e um ambiente de dela se dissociará. A despeito da forma encon-
contratação livre (ACL). No ambiente regulado, trada para a prestação do serviço e dos custos

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associados, a não provisão de energia, sobretu- delo liberal mercantil que o setor passou a ter.
do elétrica, pode determinar a inclusão social Nas décadas de 1970 e 1980, a Eletrobras gerou
dos indivíduos e, em certos casos, sua própria uma série de planos que diversificaram a repre-
sobrevivência. Na trajetória do setor elétrico sentação das fontes disponíveis para geração,
brasileiro, várias reformas, revisões, “reestru- inclusive as usinas nucleares e os potenciais hi-
turações” foram tentadas tendo, em vários mo- dráulicos da Bacia Amazônica foram incluídos,
mentos, tais experimentos se dado à custa do mas as conjunturas econômicas foram variando
bem-estar da população. sua implementação.
Ao longo desse processo, o planejamento O critério da segurança de abastecimento
energético também teve seu caráter alterado, e, portanto, de risco também mudou, de acordo
computando os mais sensacionais fracassos com os interesses dos atores e a configuração
desde o período da liberalização do setor, nos setorial do momento. Se antes do governo FHC
anos 1990, até o presente. Desde o início do tratava-se de prover socialmente o serviço, e o
planejamento brasileiro, com o grupo Canam- risco, assim como os benefícios, era compar-
bra, até finais, com a atuação plena da Eletro- tilhado solidariamente entre os agentes, pos-
bras, de 1979, o uso do critério determinístico teriormente cada um passou a buscar para si
baseado nas séries históricas de vazões para e em benefício próprio o menor prejuízo, ou a
expansão do sistema mostrou-se razoável em- visar à arrecadação da maior parte possível do
bora gerasse incertezas, como o fato de não excedente.
permitir a avaliação do risco. Em 1979, a pro- A síntese desse quadro é a situação vivida
gramação dinâmica estocástica e a introdução atualmente pelo setor elétrico brasileiro que,
da análise probabilística permitiram gerar mais detentor de uma enorme capacidade e um acú-
cenários prováveis de afluência e a função do mulo de conhecimento na área de planejamento
mínimo custo, inserindo também a operação de expansão da oferta e de operação de um dos
com termelétricas. Porém, a avaliação do ris- sistemas mais complexos e sinérgicos do mun-
co ficou limitada para hidraulicidades severas. do, como se tentou descrever, vê-se à beira de
Os sistemas Baltroc e Bacus ajudaram com a um colapso técnico e econômico como poucos
implementação desses novos critérios, porém países – se é que algum já passou por isso – já
ainda deixavam as trocas entre subsistemas viveram. A pergunta que permanece sobre qual
incipientes. A introdução da programação di- será o melhor método e qual a melhor orien-
nâmica dual estocástica e o Newave, em 1998, tação para planejar o setor elétrico brasileiro,
deram mais eficiência na busca da otimização mais uma vez, está sem resposta – o futuro, em
econômico-financeira, mais acorde com o mo- breve, dirá.

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