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Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer

JOGO, RITUAL E TEATRO


um estudo antropológico do Tribunal do Júri

Prefácio

Paula Montero

PosCácio

Sérgio Adorno

:= TERCEIRO NOME

-----'7'- --' - -"-'-- --.--------------

fJ ~-
Coleçio Antropologia Hoje

ú"'s~1ho Etlitori4/ José Guilherme Cantor Magnani


(diretor) - NAUIUSP
Luiz Henrique de Toledo - UFSCar
RtnmM=-MNIUFRj
Ronaldo de Almeida - Unicamp/Cebrap
Luis Felipe Kojima Hirano (Coord.) - NAU~USP

EditQn. Ten:dro Nome


1
I
Dinpio Mary Lou Paris
EJjfáb Bruna Beber
Estevão Azevedo
Anistlnria «iitrJriaJ M2riana Küh1 Leme
AdminÍJtra;ão ~ vmtÚu Dominique Rupreclu Saravaglioni
Guilherme Dias Garcia
João Paulo Pinheiro Paiv.a
~draFrota
Prtparafáq tÚ 1Dett; Fábio BoniUo
RnisiJJ Hebe Ester Lucas
Projtto grdfto. diIlgrrnna;4c ~ ~"Pfl Antonio ICehl
Resultado de uma parceria enrre o PPGAS/USp' a CAPES e a editora
Nesta edição, respeitou-se o novo Acordo OnogtiJico da Ungua Portuguesa. Terceiro Nome, a Série Antropologia/PPGAS-USP publica as melhores e
mais atuais monografias, teses e coletâneas dos pesquisadores e profes-
Dados Internacionais de CaCllogaçio na Publicação (CIP) sores do Progr.una de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP.
5379; Schriwncytt, Ana lúcia PastOK.
Jogo. final C teatrO : wn estudo antropológico do TribW1a1 do Júri I Ana
A iniciativa visa se somar aos esforços da coleção Antropologia Hoje no
Lúcia Pastore Schriamcyu; prú.l.cio P.l.ula Monteiro; posfido Shgio Adorno. sentido de contribuir para a divulgação da produção antropológica
- 510 Paulo: Terceiro Nome, 2012.
296 p.; 21 em. contemporânea. em suas mais variadas orientações e feitios, sublinhando
Inclui bibliografia. a relevância da reflexão realizada pela Antropologia para as discussóes
ISBN-978-8~7816-103-3------------
---sociais;-culturais-e pollticas.da-atualidadee--
1. Direito c antropologia. 2Júri. Tribunais. 3.JOO .Etnologia.1. Monteiro,
Paula. n. Adorno, Sttgio. m. TItulo.
Fernanda Ar/as Peixoto,
CDU 343.195:572
COD,340.1IS José Guilhenne Cantor Magnani
lndia: para cacilogo sincRÚtloo:
t Marta Rosa Amoroso
1. AntrOpologia: Tribunais do júri 343.195:572 Comissão Editorial da Série Antropologia
2. Obeiro: Antropologia 34:572

Copyright e Ana LúciaPastore Schrirzmeyer 2012

Todos os direitos desta ediçfi.o reservados à


WITORA TERCEIRO NOME
Rua Be1miro Braga 70
05432-020 - $10 Paulo - SP
www.terceironome.com.br
fone55 II 38160333

.. _-/ ~--_.
Para Rafàel e Felipe,
É possível negar (..) quase todas as abstrações: a justiça, a beleza,
com gratidão por terem vindo,
a vertÚuie,o bem, Dros (. .. ), mas não ojogo. Mas reconhecer o
( com um amor que cabe no colo
jogo t,forçosamente. reconhew' o espírito, pois ojogo (...) não é
embora maior que o mundo.
matmaL (...). A própria existtnda do jogo é uma confirmação
permanente da naturaA supra:dgica da situação humana. Se os
animais são capazes de brincar, I porque são alguma coisa mais do
que simpks seresmecdnicos. Se brir.camos ejogamos, e t(11JOS consci-
meia disso, é porque somos mais diJque simples seresracionais ( ..).

(Huizinga, 1980, 6)

Os graTlJ'ks julgamentos (...) levam a dramatização a seu mais alto


grau Ih intmsidade. Eles impómt uma encenação, um cmdrio, pa-
ptis, instâncias m:,"tas e vío/hzci.ts, rroelaçõese ifeitos tk surp"sa
que levam gn-almmte à confissão do acusado. &correm ao extraor-
dindrio, inclUJive no arranjo do cerimonial judicidrio. Sdo calcados
rm uma lógica implacdve! mas seufuncionamento provoca rmoções
- desde a reprovaçdo até a cólna e o ódio populares. (...) a meta
. do drama i a morte fisica ou morttl daqueles que opoder acusa em
nome da salvaguarda daforma e çhs vawres supremos da sociedack.

(Balandier, 1982, 10)

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SUMÁRIO

Prefácio - Paula MQntero , 11

Considerações iniciais 15

1 - Bastidores d. pesquisa. 25
2 - Júri - Jogo : 47
3 - Jogo l'erethcto ••.......................••................................••.............................. 99
4 - Júri - Ritual 133
5 - Júri - Teatro ..: ::.: : =." ,.~~=w" 165 __
6 - Júri - Texto etnográfieo 217
Considerações finais 267

Posfácio-SéJBWAdomo 273
Referências bibliográficas 277
Agradecimentos :287

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PREFÁCIO

o campo da antropologia do direito é ainda bastante jovem no Brasil.


Embora a questão da obediência à lei e o respeito às normas em sociedades
sem organização estatal seja um tema clássico em nossa disciplina, em-
preender o caminho inverso e projetar esse conhecimento antropológico
sobre o aparato estatal moderno representa um grande desafio. Este repto
supõe uma abordagem das instituições modernas que não exija, como
pressuposto, a radical ruptura entre as esferas da moral, das crenças e da
lei, ou, como diz a autora, entre a arte do comando e a arte da persuasão.

O legado weberi~no nos acostumou a pensar que as formas burocráticas


de po4er têm como fundamento a impessoalidade e a racionalidade.
Este trabalho, ao propor uma etnografia de um conjunto particular de
práticas jurídico-estatais, nos ~briga a pensar de Outro modo. Em vez do
conceito weberiano de burocracia, a-autora prefere centrar sua análise na
ideia huizinganiana de jogo. Não resta dúvida que a escolha do Tribunal
do Júri para esse exercício foi estratégico.

Como bem demonstra o trabalho de Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer,


o que o Tribunal do Júri faz é encenar dramas da vida coridiana. Talvez
outras instituições façam algo semelhante, como ,no caso dos testemu-

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Prerácio
Jogo, ritual e teatro

nhos rituais nos cultos pentecostais, ou os programas televisivos sobre o defensor esgrime-se o medo versus a compaixão. Ao longo dos relatos

violência. Assim como os Tribunais do Júri, estaS instituições também desenha-se, de outro modo, a sociedade em que vivemos: angústias, sonhos

organizam as experiências cotidianas em narrativas. Mas não o fazem da e esperanças forjam os princípios que, nas palavras da autora, governam a

mesma maneira. Quais seriam, então, as particularidades que caracteri~ vida das camadas médias e das classes populares na cidade de São Paulo,

za.m o rito do Tribunal do Júri como uma encenação panicu1ar? Essa é a Este trabalho procura, ponanto, elaborar um novo caminho que possibi-
principal questão que a autora procura responder ao longo deste livro tão lite empreender uma verdadeira etnografia dos sentimentos. E a escolha
inspirador. O caráter ritual e cerimonial do Júri é dissecado com maestria do Tribunal do Júri, por incluir pessoas comuns no ato de julgar, foi sem
criativa. Quando a performance se inicia, uma única ceneza preside a sombra de dúvida uma estratégia bem-sucedida,
sessão: temos uma mone violenta. O que está em julgamento, no en-
Chamo a atenção do leitor para o jogo de sedução que a própria autora
tanto, no mais das vezes, não é se o acusado efetivamente matou outra
exerce nas páginas deste bdo livro, ora se revelando, assumindo um tom
pessoa, mas sim o que motivou aquela morte e se ela pode ser entendida
quase confessional e intimista, ora voltando ao controle dos argumentos,
ou não como um crime. Nesse lento trabalho ritual de reencenação do
por meio de análises mais abstratas e instigantes intuiçóes. Pontuando suas
ato de matar exercitarn.se vários cenários possíveis de modo a decidir se
dúvidas e mudanças de perspectivas, relatando sua perplexidade no diálogo
a morte infringida a um outro foi legítima ou apenas um crime cruel.
com seus entrevistados, respondendo aos seus interlocutores, Ana Lúcia
Mas as dinâmicas de" significação não são apenas processos mentais e Past?re vai atraindo o leitor para a trama de seus esforços e de seus achados
tampouÇO se movimentam no vácuo. O trabalho de Ana Lúcia Pastare criando cerra cumplicidade no aro mesmo da leitura e rellexão, Dessa ma-
tem o mérito de revelar os mais tênues filtros que dão forma e limitam neira, parece-me"que o livro cumpre integralmente sua promessa de brincar
as possibilidades da significação: hierarquias socioespaciais do cenário, com o leitor. Mas o faz sem superficialidade ou falta de comprometimento.
hierarquia das competências e saberes, corporalidade, gestos, vestimentaS Ao descartar sua questão original- serão os atores do Júri produtores de
dos atores, roteiro das narrativas, estilos de linguagem etc. O teatro do decisões democráticas? - e assumir uma abordagem claramente antropológi-
Tribunal do Júri é, antes de tudo, um ritual de persuasão sobre o que ca - como o Júri narra a sociedade? -, a autora en&enta, a seu modo e com
__ dev:e~s_er_entendidocomo "o"ce~o" e "o errado", o "justo" e o "injusto" no ,: : ~egância, problemas COllte..!t!po~"",sde <!iflcilsoluçá,<>,Em "articular, esse
plano dos valores. E, além disso, como a aut~ra bem odemoiisüi~ esse livro aborda a complexa questão das possibilidades do Estado de expressar, .
teatro também tem a capacidade, como todo ritual, de micular diferen- sr"t em sociedades muito desiguais, uma identidade comum imaginada que
ças sociais e de visões de mundo sem necessariamente eliminar umas em produza vínculos de solidariedade cívica, Além disso, este livro também
detrimento de outras. Em muitos casos, por exemplo, as justiças humana contribui para estimular medidas que instiguem os que são objero do direito
e divina se aniculam: emitida a sentença pelo juiz, os familiares saúdam e a se tornarem, ao mesmo tempo, sujeitos de sua formulação.
.1 agradecem a Deus por Ele ter feito Justiça. Em uma sociedade tão desigual
I Por estas e muitas outras razões que seria tedioso enumerar, vale a pena,
I, no plano das experiências de vida como a brasileira, esse efeito não é de
caro leitor, empreender o risco desta viagem.
pou~ monta. Também vale a pena sublinhar o modo como as narrativas
da promotoria e da defensoria se enraízam no imaginário social popular Paula Montero
Professora TItular do Departamento de
para construir suas versóes do ocorrido. Na disputa entre o promotor e
Antropologia da USP e presidente do Cebrap

-12- -13-

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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Tramas envolvendo julgamentos por Tribunais do Júri ocupam, há muito


tempo, espaço privilegiado em obras literárias, teatrais, cinematográficas,
televisivas, trabalhos acadêmicos e textos jornalísticos.

No Brasil, em plena ditadura militar, durante a década de 1970, alguns


julgamentos pelo Júri, especialmente aqueles envolvendo homens acu-
sados de matar suas companheiras, como os casos Undomar Castilho!
Eliane de Grammont e Doca Stteet/Ângela Diniz, já ptoduziam fortes
reações populares. Mas foi a panir da abertura política, no final dos anos
1980, que mais julgamentos passaram a ganhar destaque nos meios de
comunicação de massa e a chamar a atenção do grande público. Em
parte, isso decorreu da habilidade com que setores contrários às políticas
públicas de humanização das prisões e aos movimentos em defesa dos
direitos humanos se valeram de jornais e revistas de grande circulação,
bem como de programas de rádio e TV de grande audiência, para alar-
deat seus discursos e atuações. Segundo Caldeita (2000: 348-349), tais
.:.t setores se utilizavam basicamente de três estratégias: negar a humanidade
de criminosos, valendo-se de estereótipos que os associavam à essência
:~~ do mal e a monstruosidades; associar o processo de redernocratização ao
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aumento da criminalidade e da violência; compatat políticas públicas como relevante, em várias áreas, investigar por que persistiam, no plano
i de humanização das prisões à concessão de privilégios pata bandidos, das ideias, imensas dificuldades pata se reduzir, em práticas legislativas
I contrapondo-as ao estreito acesso que "trabalhadores honestos" tinham e judiciais, o uso simbólico e efetivo de longas penas de prisão e mesmo
i
aos mais elementares direitos sociais. da pena de morte. Por que inclusive muitos movimentos humaplsras e
"progressistas" de direitos humanos demandavam. penas cada vez mais
Nesse turbulento contexto em que, não por acaso, se discutia a possibip
severas pata as violações dos próprios direitos humanos? (Pires, 1999 e
Udade de implementação da pena de motte no pai>; tomou-se comum
2004; Singer, 2000).
a veiculação ostensiva de hist6rias de homiddios e de abusos cometidos
por "psicopatas cada vez mais perversos". Capas de cerras revistas e Muitas das respostas apontaram desigualdades econômicas, étnico-
manchetes de vários jornais impressos e televisivos alardeavam "casos praciais. de gênero e de várias outras ordens como responsáveis por
exemplares" dessas "aberrações humanas", como, por exemplo, nos essas persistências aparentemente paradoxais. Foucault já levantara a
anos 1990, o assassinato da atriz Daniela Perez; os estupros e mortes hipótese provocadora, bastante explorada, de qu~a prisão, apesar de
atribuídos ao matobay que ficou conhecido como "maníaco do parque"; ter se demons~do um projeto "fracassado"desde o início, pecs.iste por
e o caso do estudante de medicina que invadiu um cinema e atirou produzir "beneficios", como a gestão de ilegalismos (Foucault, 1984;
contra a plateia. A lista de "crimes monstruosos" cobertos pela núdia Teixeira, 2012).
continuou crescendo nos anos 2000, quando outra estudante, agora de
Outra resposta não excludente das já citadas é proposta por ÁlVatOPites,
direito, Suzane von Richthofen, foi condena~apela morte de seus pais
crimin6logo brasileiro radicado no Canadá, segund~a qual permanece
e, depois, o casal Natdoni foi condenado pela motte da menina Isabella,
forte, no Brasil e no mundo, a adesão ideológica, legislativa e judicial
filha dele e enteada dela.
a um conceito de punição indissociável de duras penalidades porque, a
Esses e vários outros casos colocaram o Tribunal do Júri no centro de partir do século XVIII, intervir nos corpos passou. a ser, cada vez mais,
acalorados debates, o que não s6 permitiu que a dinâmica técnico- regulat a duração do sofrimento no tempo. Retomando Cesate Beccaria,
-jurídica dos julgamentos fosse traduzida em linguasem coloquial para o o crimin6logo lembra que este jrnisra já afirmava, em 1764, não ser a
grande público como fez com que explodissem posicionatnentos radicais intensidade da pena o que mais produz efeitos sobre o espírito hwnano,
relativos à pertinência de julgamentos por leigos, à pena de morte, ao mas sua duração (Pires, 2012: 4).
I ao
endurecimento .£.s-pena.; reclusão, ao rebaixamento da menoridade-------
penal e ao recrudescimento de medidas socioeducativas destinadas a
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Assim, quanto mais valorizado um bem violado (no Brasil, a vida hu-
mana é o único bem que, quando considerado doloSatnente violado,
menores de 18 anos.
leva o acusado a julgamento pelo Tribunal do Júri e recebe as mais duras
Esse conjunto de acontecimentos suscitou um crescimento significativo penas de reclusão), mais se entende que devem durar em anos, décadas e
:!: de pesquisas, dissettaçôes e teses voltadas pata os temas da criminalidade mesmo perpetuatnente as penas infringidas aos violadotes, excluindo-se
e da punição. Na esteira de trabalhos de inspiração foucaultiana e em um possibilidades de reparaçóes de outras naturezas, como as monetárias ou
fl cenário político nacional e internacional de crescente formalização de de prestação de serviços à comunidade (FulUn, 2012). Pata Pires, não
:i' políticas públicas bas.eadasem preceitos dos direitos humanos. firmou-se conseguimos escapar da naturalização de fazer condenados sofrerem tern-
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Jogo, ritual e teatro
Consideraçõe;i iniciais
poralmente, na medida direta da valoração do hem que violaram, porque
enfrentamos novidades a partir de velhas fórmulas. Temos dificuldade a respeito de situações de violência sofridas por mulheres no Brasil e de

para reinvenrar e renomear o mundo. Para alcançarmos eficácia no que se silêncios frente a outras tantas atrocidades corriqueiras, porém caladas. a

demonstra ineficaz (longas penas de prisão, por exemplo), intensificamos pesquisa se concentrou em julgamentos de assassinatos, tentados ou con-

o que já está ineficazmente em curso (penas de prisão ainda mais longas). sumados, que envolviam casais julgados nas dêcadas de 1950 e 1960 pelo
Tribunal do Júri de Campinas. A análise teve como foco os estereótipos de
É no interior dessa ampla e complexa problemática pertinente a várias
masculino e feminino apropriados pelo sistema de justiça criminal e aceitos
áreas das Humanidades, e diante, ponanto, de um mundo cada vez mais
socialmente como papéis adequ~dos a homens e mulheres. justificando,
caractetizado pdo que Geettz denominou "panoramas e colagens" (2001:
muitas vezes e especialmente, mortes delas por eles "em nome da honra".
83) que situo este livro.
Ainda na década de 1970, outro mestrado, o de Maria Alice Sestini,
A partir de emografias da dinâmica de sessóes de julgamentos realizados
contou com uma pesquisa de campo desenvolvida nos 10 e 20 Tribu-
por Tribunais do Júti da cidade de São Paulo, entre 1997 e 2001, tento
nais do Júri de São Paulo. Ela explorou aspectos relativos aos jurados
alcançar uma nova "compreensão" a respeito da justiça que neles se faz
("homens médios" tidos como-representantes "da sociedade"), analisou
para, quem sabe. COntribuir para reinvenções e renomeações de certas
debates referentes à "vida humana' como bem maior a ser preservado e
tensões deste nosso mundo. Entendo "compreensão" não no "sentido de
investigou a questão do Júri ser ou "não uma instituição democrática c,
concordância de opiniões, união de sentimentos ou comunhão de com-
consequentemente, dever ou não ser mantido (Sestini, 1979).
promissos", mas de "aprender a apreender o que não podemos abraçar"
(Ibid.: 84), tentando fazer "um ir e vir hermenêutico" entre os campos A essas pesquisas inaugurais seguiram-se várias Outras sobre o Júri bra-

da antropologia e do direito a fim de formular questões morais, políticas sileiro. algumas das quais compõem, hoje, um referencial bibliográfico
e intelectuais imporrantes para ambos (Idem, 1998: 253). indispensável sobre o asSUnto. Destaque especial merecem os trabalhos
de Roberto Kant de Lima, que nos anos 1980 iniciou comparações entre
Vale reiterar que, à medida que o fonalecimento de políticas públicas ba-
os julgamentos realizados pelo Tribunal do Júri no Brasil e o Trial by
seadas em discursos humanitários avançou no país, especialmente a panir
Jury nos EUA com o objetivo de compreender formas de construção da
dos anos 1980, apesar de persistirem violações a esses direitos, o número
verdade jurídica nesses dois Contextos sociais e políticos (Kant de Lima,
de trabalhos acadêmicos no campo da antropologia do direito aumentou
1989,1991,1993,1995 e 1999). Abordagens comparativas de modelos
significativamente e, em seu interior, pesquisas referentes ao Júri.
de administração de conflitos se tornaram, desde então, uma marca de
O mestrado de Mariza Corrêa em ciências sociais pela Universidade de suas pesquisas (2002, 2004a, 2004b, 2010), bem como das de vários de
Campinas, "Os atos e os autos':. representaçõesjurídicas de papéis sexuais, seus muitos orientandos. Especificamente sobre o Júri, além de alguns
1975, hoje um clássico da área, foi um dos pioneiros sobre os Tribunais resultados produzidos por graduandos (Guimarães, 2010), cabe ressaltar
do Júri no Brasil. O rrabalho parriu da indignação de Corrêa diante da o trabalho de Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira, cujo doutorado se
absolvição de um homem (Roberto Lobato) acusado de matar sua mulher, voltou para o "Caso do ônibus 174", a partir do qual rea1iwu análises a
Oô de Souza Lima) em Bdo Horiwnte, o que se deu, segundo a defesa dde, respeito de como no julgamento, por meio da linguagem e do sistema
"em nome da hont;' (Corrêa, 1983: 15). Diante da ausência de análises de classificação jurídicos. assim como da apropriação de valores morais,
foram produzidas "verdades" (2007, 2009, 2010) .
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Ainda entre os trabalhos de colegas do Rio de Janeito. importantes são as em Florianópolis. Embora não Concentre sua análise nos plenários do Júri.
pesquisas de Alessandra de Andrade Rinaldi sobre a oratótia no Triblttlal recupeta a partit desses ptocessos práticas e valores morais dos operadores
do Júri da capital fluminense (Rinaldi. 1999) e de Ângela Moreira-Leite jurldicos. bem como atualiza o tema da adequação social dos envolvidos
(2006). na qual aboroa o "sabet-podet" que os profissionais do direito aos papéis de pais e filhos, demonsttando. mais uma vez, a fettilidade da
("os vivos"), em plenário, exercem ao narrar acontecimentos que se pesquisa inaugural de Corrêa (1981). Nesse entreetuzamento entre gênero
passaram entre" os mortos". e justiça, também o Júti de Porto Alegre já foi objeto de detida análise em
um recente doutorado em Sociologia (Fachinetto, 2011, 2012a e 2012b).
Além desses e de outrOSmestrados e doutorados em antropologia sobre
os discursos produzidos no Júti. há pesquisas em vários ptogmmas de Em telação aos jurados. o mestrado em antropologia do juiz Roberto
pós-graduação da área de letras voltadas pata a linguagem que juizes, Atriada Lotéa (2003), defendido na Univetsidade Fedetal do Rio
promototes e advogados utilizam nos plenários. Algumas, do campo da Grande do Sul, se tornou um referencial. Na pesquisa, realizada em
linguística, enfatizam a interação oral entre juiz e réu durante o inter- Porto Alegre, de conclui que os jurados. a princípio representantes
togatótio (Petti. 2001). outras atentam pata detalhes das falas da defesa de uma perspectiva leiga, reproduzem e reforçam uma lógica jurídica
e da ptomotoria (Fagundes, 1987) e. também nos campos da filologia que, geralmente, não pende para a absolvição. Também são analisadas
e da língua portuguesa. há trabalhos que se valem do Júri pata analisat noçóes de justiça e o fato de que "jurados veteranos do Júri" interferem
estratégias discursivo-argumentativas (Miranda, 2011) e o tema da no resultado dos julgamentos.
petsuasão (Pistori, 2008). Se estendêssemos este breve balanço bibliográfico pata os campos da
Na Universidade Estadual de Campinas. fotam produzidas algumas dis- sociologia, do direito, da criminologia, da história, da literatura e de
serrações e teses vinculadas ao Núcleo de Estudos de Gêneto Pagu cujas outras áreas afins, muitas mais páginas seriam n~árias para comentar o
problemáticas se repottam a julgamentos realizados pdo Júri (Fetiani, 2009; quanto cresceram e se diversificaram, no Brasil, dissertaçÕes, teses, artigos
Fetteira, 2010). A partit de uma pesquisa baseada em casos julgados em e livros referentes ao Tribunal do Júri, especialmente na última década,
2003 pelo 10 Tribunal do Júti de São Paulo, uma equipe do Pagu desen- posteriormente à época em que eu defendi minha tese de doutorado.
vqlveu uma investigação sistemática das sentenças e depreendeu haver um Diante disto, cabe esclarecer que, embora os capítulos deste livro guardem
~ ____11 absolvição não rescriro à violência doméstica ou entre gerações de
•._ad!"áo_de ---- Inuitasemdhança.com.os_datese,.des foram em parte alterados afim de
£nniliares. mas estendido a outtas si~es (ij~bert, Ferreira & Uma, 2008:-
tornar mais sucintas cenas passagens e para serem incluídas observaçóes
112). No que diz respeito à violência conjugal ena f.unili •• os pesquisadores
referentes à atualização bibliogtáfica e a alterações por que passatam os
analisam-na como "d.ifu.sa, invisívd" e, em muitos casos, "justificada até
artigos 406 a 497 do Código de Processo Penal (CPP) então vigentes
mesmo pelas insticuições do sistema de justiça, como o Triblttlal do Júri,
à época de meu doutorado. mas modificados pela Lei 11.689 de 4 de
em nome de uma idealizada hierarquia de papéis e posições" (Ibid.: 179).
junho de 2008 (tais artigos compõem o capítulo do Cpp referente ao
No sul do pais. Rifiotis (2011). que há muito se dedica à interface entre an- "Processo dos crimes da competência do Júri").
tropologia e estudos teferentes a violências de gênero e doméstica, publicou
Os títulos dos capítulos 2 a 6 foram mantidos. tal como concebidos pata
recentemente um trabalho sobre quatto ptocessos de parricídio julgados
a tese, pois se tratam de "títulos-conceitos" que refletem ideias-chave

-20- -21-

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Jogo, ritual e teatro Considerações iniciais

advindas do trabalho de campo: "jogo". "ritual". "teatro" e "narrativas" o debate em rorno da dramarurgia do Júri é objero do capírulo 5: "Júri-
esravam presentes como metáforas organizadoras dos discursos de vários Teatro". Nele está desenvolvida a estreita relação entre a arte do governo e
juízes,promotores. advogados e jurados a respeito de como compreendiam a da cena. Assim como nos capítulos anteriores, a reromada de conceitos
a dinâmica das sessóes de julgamento pelo Júri e como se percebiam nelas. como teatrocracia, poder e drama serve de base para a interpretação de
Por essarazão. e aplicando a clássicalição de Malinowski de que se deve ir julgamentos em que os vários atores evidenciam uma luta pela conquista
a campo "a par das últimas descobertas" e com o maior número possível elou manutenção de valores relacionados ao poder de matar.
de problemas. mas para que as teorias se moldem aos fatos e não o con- No capítulo 6, "Júri - Texto etnográfico". os discursos elaborados nos
rrário (Malinowski, 1978: 22 e 23), esses tírulos-conceitos expressam os Tribunais são reapresentados como textos imaginativos. plenos de imagens
caminhos analíticos apontados por meus interlocutores e minhas leituras. baseadas em sentimentos e construídos a partir de "materiais sociais". A
O capítulo 1. "Bastidores da pesquisa". contém aspectos metodol6gicos pesquisa .decampo é enfatizada como acesso privilegiado a algumas dessas
do anres, do duranre e do depois do rrabalho de campo. Nele manrive imagens e à compreensão de como e por quem elas são construídas. de
informações que julgo relevantes para os leitores compreenderem mi- quais "materiais sociais" seus construtores se servem.e em que situações
nhas escolhas e também indico possíveis desdobramentos do trabalho. cognitivasas utilizam. A etnografia integral de uma sessãoestá descrita nesse
Não se trata de esperar que os leitores compreendam meus passos para capítulo. Relatada, do começo ao fim, ela é apresentada como. ao mes.r:no
concordarem com eles e muito menos para os seguirem. mas para os tempo. particular e típica. Particular porque trata de pessoas. espaços,
apreenderem e. quem sabe, considerá-los inteligíveis no interior de uma tempos e ritmos compostos de forma única. e típica porque alcança um
ampla gama de possibilidades interpretativas. sistema de valores que ultrapassa as especificidades narradas. Nas "Con-
. siderações finais", tento responder à pergunta que vários interlocutores.
Nos capítulos 2 e 3. "Júri - Jogo" e "Jogo Veredicto". está em questão
especialmente da áreajurídica. fizeram-me ao longo do trabalho de campo
justamente que tipo de jogo é o do Júri: sua lógica, seus elementos e as
e durante todos os anos posteriores a de: (~a1. depois de tanta análise,
características do espaço e do tempo em que se desenvolvem interações
você acha que o Júri deve ou não continuar existindo no Brasil?"Acho que
entre os "jogadores". Ao contrário do que se costuma afirmar, sugiro
dou uma resposta antropológica a uma pergunta não antropol6gica, pois a
que não somente promotores e defensores jogam para persuadir jurados.
expectativa que tenho com ~publicação deste trabalho é tão somente con-
Estes últimos, assim como juízes, assistentes e os pr6prios réus também se
tribuir para um alargamento de nossa compreensão e de nossa imaginação
valem de uma linguagem persuasiva. não apenas verbal. caracterizando,
a respeito dos Tribunais do Júri e do "material social" que nele se elabora.
assim. o jogo do Júri como um complexo sistema de persuasões.
Aposto que, quanto mais amplos forem nossos horiwntes cognitivos.
No capítulo 4, "Júri - Ritual". os plenários são analisados como espaços
mais chances teremos de reinventar e renomear um mundo que segue
simb6licos privilegiados para a percepção. produção e reprodução de
lidando de forma bastante problemática e mesmo ineficaz com os de-
valores em torno da legitimidade e ilegitimidade de matar na cidade
safios que a ele se colocam. de, forma aguda. quando da ocorrência de
de São Paulo. Tais valores, normalmente inconscientes, são reelabo-
mones violentas.
rados e emergem rearticulados nas situações cerimoniais e ritualizadas
dos julgamentos. ih.
-22- -23-

~I

,/

-G?
!"

1
BASTIDORES DA PESQUISA

Antes
Meu interesse por julgamentos e Tribunais do Júri vem de longa data.
Provavelmente começou na adolescência, com muitas leituras de tramas
policiais e "de tribunal". Mas foi à época em que eu cursava, simultanea-
mente, as graduações em ciências sociais e em direito, e a partir de uma
cotúluência de disciplinas e textos, que descobri e escolhi, inicialmente
no mestrado (Schritzmeyer, 2004) e depois no doutorado (Schrirzmeyer,
2002; 2007a; 2007b; 2008), o campo das decisões judiciais como objeto
de estudo antropológico-jurídico.

No mestrado, os tribunais estucUtdQ.lLnão foram_os_do_Júri,_já_qlle_os,~~ __


crimes abordados foram o curandeirismo e o charlatanismo. Minhas
fontes de dados foram acórdãos publicados em revistas brasileiras de
jurisprudência, através dos quais analisei os modos de juizes diferenciarem
práticas mágicas, religiosas e científicas. Concluí que, em Iarga medida,
eles se pautavam em pressupostos socioantropol6gicos evolucionistas,
mesmo em décadas avançadas do século xx. Cobri um universo temporal
de acórdãos que se estendeu de 1990 a 1990.

E foi durante o mesrrado, entre agOsto de 1988 e março de 1989, que


participei de uma pesquisa cujos objetivos e metodologia semearam o

-25-

-
.... .. /-'-
Jogo, ritual e teatro Bastidore:; da pesquis.l

futuro doutorado. Nesse período, analisamos 297 autos de processos cados dos espaços fisicos do 4" Tribunal. do Júri para as pessoas que por ali
penais, todos transitados em julgado, entre janeiro de 1984 e junho de circulavam. Como eu passava horas lendo processos, sentada em alguma
1988 pelo 4" Tribunal do Júri da comarca de São Paulo. Durante seis sala ou corr~or, eram os espaços exteriores ao plenário do Júri os que eu
meses, frequentei as dependências desse Tribunal, li processos e deles mais e melhor observava: a rampa de acesso ao edificio; o pequeno balcão
extrai dados referentes a perfis de réus e vítimas. testemunhas, jurados. que funcionava como porraria; os elevadores;a garagem para uso exclusivo
bem como informações sobre a "dinâmica dos acontecimentos": como de juízes, de promotores e carros oficiais;os arquivos mortos; o canório do
os casos eram processualmente registrados, desde sua detecção policial Júri; as salasdo juiz presidente, dos promotores, do cafezinho e da votação
até as sentenças proferidas pdo Júri. secreta. Registrei, portanto, o que esseslugares aparentemente impessoais
A pesquisa privilegiou a comparação entre o perfil social dos condenados e significavam para diversas pessoas, bem como posições e relações que
o dos absolvidos, com vistas a verificar os m6veis extralegais que intervêm neles elas marcavam, definiam e redeflniam em seus trânsitos co~dianos.
nas decisóes judiciárias, o contraste entre a formalidade dos códigos e da Depois da apresentação desse paper e já concluída a pesquisa para o
organização burocrática e as práticas orientadas pela cultura institucional. o
Cedec, segui acalentando a vontade de apr~morar reflexões paralelas e,
entrécruzamento entre os pequenos acontecimentos que regem a vida coti-
especialmente, de prosseguir investigando algo que até então eu mal
diana e os fatos que regem a concentração de poderes no sistema de justiça
criminal, bem como a intersecção entre o funcionamento dos aparelhos
observara: o que se passava nos plenários, do momento em que os
de contenção da crirnlnalidade, a construção de trajetórias biográficas e as jurados convocados chegavam para o sorteio dos sete que comporiam
operações de controle social (Adorno, 1994:' 134-135). o Conselho de Sentença, até o desfecho do julgamentos. Esse projeto
Iicouengavetado, de 1989 até 1995, período em que concluí o mesttado,
Alguns dos principais resultados quantitativos desse trabalho (como o
iniciei minha carreira docente e realizei várias outras pesquisas.
predomínio de sentenças condenatórias Com penas moderadas; de teste-
munhas de acusaçáo; de jurados de classe média; de condenações de réus Quando do ingresso no doutorado, portanto, eu contava com um inte-
já detidos, provenientes do próprio estado de São Paulo, antes ocupados resse pelo Júri decorrente de uma somatória de experiências pessoais e
em atividades mal definidas e, em juízo, representados por advogados profissionais. Desse conjunto e de alguns acasos nasceu o projeto que,
dativos) suscitaram meu interesse e minha vontade de aprofu~dar e am- apesar de aceito pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
pliar a investigação, estendendo-a a outros Tribunais do Júri da capital. Social da Universidade de São Paulo, modificou-se substancialmente
no decorrer do trabalho.
Do mesmo modo, certos procedimentos metodológicos adotados (ne-
gociações e convívio cotidianos com funcionários do cartório, leitura O texto que Sérgio Adorno publicou referente à nossa pesquisa no 40
sistemática de várias peças processuais e entrevistas informais com pro- Tribunal do Júri (Adorno, 1994) foi decisévo para o que me propus
fissionais do direito) instigaram-me a imagi~ar como seria realizar uma inicialmente a estudar. Nele está desenvolvida a ampla reflexão que
"etnografia" daquele e de outros Tribunais do Júri. menciono nas considerações iniciais deste livro. relativa aos dilemas e
desafios que se colocam à justiça criminal em uma ordem democrática,
Fiz uma primeira tentativa ao elaborar um paper para o 130 Encontro
:",
especificamente o hiato entre enunciados legais igualitários e situações
Anual da Anpocs (Schritzmeyer, 1989). Nesse texto, sistematizei algumas 'oi
concretas de discriminação e exclusão.
anotações de meu diário de campo, especialmente as relativas aos signifl-
,,
I
I: -26- -27-

.-- Jj
-.=.:_--..----.--

~
Jogo. ritual e teatro D85tIQOm as pesqwsa

Uma pergunta-chave desse artigo de Adoroo particularmenre me in- posto que não abria espaço para a compreensão das lógicas reguladoras
quietou: .Como é possívd estabelecer a identidade entre justiça social e internas dessas "práticas autoritárias" nem para as prováveis concepçóes
igualdade jurídica em sociedades modernas, nas quais essesprincipios não e vivências idiossincráticas de regimes ditos democráticos. Tal enquadra-
se encontram assegurados?" (Ibid.: 134). Ao respondê-la, Adoroo retoma mento ideológico da problemática obsrava. de antemão, uma percepção
a questão do Júri e afirma que, assim como certas demandas em torno da antropológica de sutilezas envolvidas no Júri, a partir de seu prõprio
racionalizaçáo da justiça pouco contribuem para assegurar tratamentos funcionamento. composição. rotina. "casos".
jurldicos igualitários, como demandas por códigos aperfeiçoados e mo-
Depois de muiras rdeiruras do projeto. quase todos os seus itens origi-
dernizados, por quadros administrativos bem preparados e por procedi-
nais foram revistos e substancialmente alrerados. O primeiro desafio foi
mentos formais céleres,rambém a extinção do Júri pouco contribuiria para
deslocar a problemática do eixo "autoritarismo-democratização" para
diminuir desigualdades jurídicas, pois o problema reside na incapacidade
uma nova abordagem centrada no objeto !!mpMeo Júri.
dessa justiça de fundar o consenso em meio a diferenças e desigualdades.
Embora com a pesquisa ainda mal delineada, eu ansiava por "autores
Essas colocações me inspiraram e reforçaram minha convicção de que
que me ajudassem a pensar" e solicitava à orientadora, que ora prefacia
seria relevante, tanto teórica quanto empiricamente, retomar o estudo
este livro, urna bibliografia que me indicasse caminhos. Sua sugestão,
do Júri e analisá-lo enquanto perpetuador de desigualdades e diferenças
de acordo com o que também aponta Renato janine Ribeiro a respeito
em meio a tentativas legais e teóricas de fundar consen~os.
do mau uso da bibliografia em ciências sociai~.foi a de que eu não me
Assim. quando da elaboração do projeto da tese, tomei coma ponto de prendesse a um referencial te6rico. mas explorasse vários. Desse modo, eu
panida teórico a problemática da permanência de práticas autoritárias diminuiria o risco de condicionar os primeiros passos da investigação a
em processos de consolidação de regimes democráticos e nda procurei trajetórias já legitimadas, reiteradas, paradigmáticas, embocando, ralvez,a
inserir reflexões sobre a permanência ou extinção dos Tribunais do júri possibilidade de reIlexõesinovadoras, fundamenradas em matetia! inédito.
no B;""'il. Através de leituras principalmente de artigos e livros jucldi- Um pesquisador deve expor-se a seu objeto mais.do que o faz. (... ). Naleirura
coso levantei os principais argumentos contrários e favoráveis ao júri. os quer dos clássicosda "área, quer dos referenciaisimportantes, tem que se ce.
comentários e expectativas mais corriqueiros de manipuladores técnicos cupem o senso da aventura., (... ). Perde-se de vista, na profissão acadêmica,
a respeito de seu funcionamento_e de_p_oLq!,1~~ratn de sua co:npetência _quer entre os inici.antes, quer mesmo entre os pesquisadQfeS já mais titulados. _
somente os crimes dolosos contra a vida. Minha estratégia apontava para o senso do que se está.fazendo. Insiste-se demais na forma, nas referências.
a investigação de como o júri era. avaliado, externamente, por aqudes Dá-se demais importância às autorictata. Toda wna nova escolástica assim
que dde participavam elou propunham-se a entendê-lo. O foco inicial, seespraiapelaprofissãouniversitária(Ribeiro,1999: 191, 194 e 195).
portanto, voltava-se para os discursos sob" o júri. Portanto. minhas primeiras observaçóes empíricas sobre os julgamentos
Após as primeiras revisões do projeto, no decorrer de 1996. ficou-me progrediram sob esse incentivo de arriscar opiniões próprias e funda-
elaro que esse foco implicava, aprion. considerar práticas autoritárias e mentadas. sem desprezar referenciais importantes. mas não os tornando
desigualdades sociojurldicas como impedimentos para a consolidação camisas de força. Visitar os tribunais, percorrer seus corredores, observar
de regimes democráticos. Em outras palavras, tratava-se de um pressu- suas salas, perceber seus funcionários e'seu público, entrar nos plenários.
assistir aos julgamentos e, quando possível, trocar ideias com os presen-

-28- -29-

---
I
Jogo, ritual e teatro Bastidores da pesquisa

[es, mesmo sem saber, ao certo, o que lhes perguntar foram, de início, previstas na legislação vigente e como elas são apreendidas e utilizadas
experiências aparentemente caóticas, mas, talvez por isso. decisivas. pelos profissionais do direito e jurados?

Nas primeiras visitas aos Tribunais do Júri, espaços e pessoas que os Essas novas questões recortaram, no vasto universo da "justiça penal",
ocupavam me diziam mais do que eu conseguia apreender. tanto que, composto por várias formas de julgamentos, algumas inclusive ilegais
durante os primeiros meses, fui tomada por uma estagiária de direito como linchamentos (Martins, 1996), o microuniverso dos tljulgamentos
que, com uma "curiosidade ingênua", percorria corredores. entrava em pelo Tribunal do Júri", permitindo-me pesquisá-lo não maiS'Sob o prisma
plenários, assistia a julgamentos e anotava tudo. Foi nesse ritmo, um do "autoritarismo versus democracia", mas em busca de lógicas internas
pouco ao sabor do acaso e da curiosidade, que também avançaram leituras responsáveis pela dinâmica das sessões de julgamento.
de livros jurídicos, de outras pesquisas antropológicas sobre o Júri e de
Sob essa nova perspectiva, que apontava os julgamentos pelo Júri como
debates publicados pda imprensa ou promovidos por universidades e
rituais orientados por regras próprias a serem compreendidas "em ato",
associações de profissionais da área.
não mais cabia enfatizar a "incapacidade da justiça penal de fundar o
Essa abertura, aparentemente desordenada dos sentidos, propiciou-me consenso em meio a desigualdades e diferenças" (Adorno, 1994: 149),
"

" , chegar a um conjunto de impressões, incompreensões, dúvidas e insights pois, para aquilatar-se tal incapacidade, seria necessário adotar um "cri-
;~ que, mais do que qualquer lista bibliográfica, ajudou-me, finalmente, tério externo de capacidade", procedimento esse que deslocaria a análise
!:
a criar um recorte do objeto e definir melhor um referencial teórico. do Júri, em si, para discussões externas a ele.
Portanto, por caminhos sinuosos, fortemente marcados pela experiência
Estava, portanto, definindo-se uma das linhas mestras do que se encontra
de campo, revi o modo frágil como eu inicialmente delineara "justiça
neste livro: investigar narrativas do júri sobre a sociedade, elaboradas du-
penal" e "Tribunal do Júri" e considerara "tensões presentes em processos
rante as sessões, e não mais narrativas da sociltiade sobre ojúri, elaboradas
de consolidação de regimes democráticos" passíveis de serem observadas,
pela imprensa, por profissionais do direito, em debates públicos etc.
simples e mecanicamente, no objeto empírico Júri.
II Partindo do pressuposto de que o Brasil enfrentava um tenso processo de
Descartei, portanto, uma das principais perguntas-problema original-
meme formuladas ("Serão os atores do Júri produtores de decisões que
consolidação democrática, eu apontava o debate em torno da permanência
podem ser consideradas democráticas?") e decidi enfrentar outras, que
ou extin~o do Júri como uma espécie de termômetro dessa tensão. Estava
me assustaram bastante, de início, por sua complexidade. Quais valores,
implícita a hipótese de que os defensores da permanência representavam o
afetividades e influências estão presentes no caleidosc6pico campo dos
"lado democrático' e seus detratores, o "lado consetvador" o Esses pressupos-
julgamentos pdo Tribunal do Júri e transparecem no decorrer das sessões?
tos ideológicos bastante maniqueísras não condiziam com o que o trabalho
de campo me apresentava: o Júri como instituição polissêmica, presente
Como, nesse campo em que múltiplos vetores interagem, é gerenciado o
ato de julgar e como é conduzido tal gerenciamemo?1 Como se expres-
em um contexto em que convivem e interagem múltiplas significações.

~ Novas questões passaram a conduzir meu -trabalho. Como, no Júri, os


I O conceito de "campo", aqui utilizado, aproxima~se do que Bourdieu elaborou
participantes gerenciam significados ao produzir o ato de julgar? Qual
ao definir campo científico como "( ...) o lugar. o espaço de jogo de uma luta
é a gramática do ritual dos julgamentos? Quais são suas regras formais, concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da
autoridade científica definida. de maneira inseparável, como capacidade técnica
-o-

-30-
.
".,
-31-

----r---

.8;.
~
Jogo. mutU c ...,.."
Bastidores da pesquisa

sam e se combinam (mais do que se opõem), na situação do julgamento,


textos legais, tegras técnicas e bagagens existenciais, também ca1eidos- I,
"
a intenção de trabalhar com amostras estatísticas das sessóes ocorridas
nesse período, orientei minhas visitas aproximando-as ao máximo do
cópicas, de manipuladores técnicos do Júri e de jurados? Segundo sua volume anual de julgamentos realizados em cada Tribunal.
"gramática lega!" e sua "prática coloquial", o titual dos julgamentos pelo
Júri objetiva diferenças e desigualdades? Mantém assimetrias? Preserva Minha rotina de trabalho, inicialmente estimada, foi a seguinte:
hierarquias? Quais? Como essa "gramática" e essas "práticas" organizam
Tnbunals l' ,. ,. 4' 5' To14l
tais diferenciações? média de 160 40 40 40 20 300
julgamentos/mês 154%) 113%) (13%) 113%) (7%) (U)O%)
A questão abandonada pressupunha democracia como um conceito po-
OS' aproximado de 40u5 1 t 1 0,5 8
sitivo e eu o adotava, vagamente, para avaliar atitudes e valores precisos visitaslrnk (mês sim, mês não) (2lsemana)
dos atores do Júri, perdendo de vista o problema propriamente antro- Esses cálasloslevaram em conta o número de plenários existentes, em 1997, em cada um desses CI"ICO Tnbunals
do Júri(8, 2, 2, 2, 1, respectivamente) e o fato de que em cada plenário poderia haver até um Julgamento por
pológico de investigar a produção do ato de julgar no campo especifico dia útil (aproximadamente 20 dias/mês),
.do Tribunal do Júri, a partir da lógica própria produzida nos interstícios
dessa instituiçáo.
Com base nessas estimativas, o ritmo previsto para a realizaçáo da pes-
Esse reenquadramento de meu olhar sobre o Júri implicou considerar quisa de campo, de março a novembro de 1997 e de março a novembro
o conjunto de valores e afetividades em jogo, nos plenários, como algo de 1998, foi,
que ganhava sentidos específicos naqudes espaços simb6licos. os quais
deveriam ser observados "de deorro", através de etnografias das sessóes, Tnbunais I' 2' 3' 4' 5' Total
e não "de fora", através de debates técnico-legais. notícias veiculadas visitas em 1997 3' 8 8 8 4 64
visitas em 1998 3' 8 8 8 4
pela midia e filmografia disponível ao grande público. Até hoje costumo 64
Total de julgamentos 72 16 16 16 8 128
dizer a meus alunos de métodos e récnicas de pesquisa que delimitar um a assistir ~,%) (13%) 113%) (13%) ~%) 1100%)
objeto de estudo é como lapidar uma pedra bruta: é preciso não ter pena
de perder lascas, pois o valor final da pedra resultará da arte de alcançar
_____ e 4es_~C<U'_s~_F-a~mais b~_por vezes pequena. O que se perde pode Em virtude de imprevistos do Er6pE~_campo, como o adiame.p.t~d~ _
ser, na verdade, um ganho. Mas falar é sempre mais f.kifCloque fazer. sess~: ger.ilinent~
.por ausênciado réu preso ou de seu advogado, bem
como de outros compromissos relacionados às demais atividades da
pesquisa, o cronograma estimado concretizou-se da seguinte maneira:
Durante
Tribunais 2' s'
De 1997 a 2001, excluindo o anO2000, tranSitei por cinco Tribunais do visitas em 1997
I'
25 S ,
3' 4'
S 3
To14l
44
Júri dio.cidade de São Paulo. Embora, em momento algum, tenha havido . visitas em 1998 23 5 5 7 2 42

e poder social. (...) capacidade de falar e agir legitimamente (isto é, de ma."leira


Totalde júlgamentos
assistidos
48
156%)
10
112%)
11
113%)
12
114%)
S
~%)
••
(100%)
autorizada e com autoridade)" (Bourdieu, 1983: 122-123).
,
_32-
-33-:'

...: .._',7
. -,-_ ...-:----~_.-----------"_._-_.~---
Jogo, ritual e teatro
Bastidores da pesquisa

Durante 01<> semestre de 1999 e ao longo de 2001, assisti a mais algumas


Foram três os cadernos de campo em que cada passo do trabalho ficou
sessóes (sete e catorze, respectivamente), todas no 1° Tribunal do Júri,
registrado cronológica e "evolutivamente", Retrabalhá-Ios implicou sub-
totalizando, assim, 107. Essa decisão decorreu de dois motivos: comple-
vence sequências. Trechos de diferentes conversas. descrições de espaços,
mentar observações devido ao I' Ttibunal tet se mudado de endereço.
de rostos, gestos, olhares, sorrisos e lágrimas, ruídos, tumultos e vazios,
no final de 1999, e conhecer e analisar seus novos plenários.
enfim. registros do que é diflcll traduzir em palavras passaram por uma
Enfim, apesar de não ter em mente realizar uma pesquisa estatística. espéciede assepsiapara caberem no esqueleto limpo e estruturado de um
com vistas a generalizar conclusões, o resultado do trabalho de campo texto etnográfico. Ponanto, os vários rrechos de sessões e entrevistas que
me permite afirmar que foram abordadas, qualitativamente, sessões preenchem este livro, sob a forma de citações exemplares, estão, por um
de Júri realizadas em cinco tribunais paulistanos. entre 1997. 1998. lado, desconectados de seus encadeamentos crono16gicose de seus COntex-
1999 e 2001: tos originais, mas, por outro, passaram a integrar novas sequências argu-
mentativas porque eles próprios, somados e em interação, levaram a elas.
Tribunais 2' 3' 4' 5' Total
julgamentos assistidos em "
69 10 11 Cabe relembrar que, como não me foi permitido gravar o transcorrer
1997,1998,1999 e 2001 (65%) (9%1 (10%) "
(11%)
5
(5%)
107
(100%) das sessões de julgament.o, todos os trechos de falas transcorridos nos
plenário e nas salas secretas foram anotados nos cader~os de campo,
tendo eu me valido de um "método taquigráfico pessoal" qu~ aperfeiçoei
o que mais importa em relação a esses números, todavia, não é a quan-
ao longo dos anos. Quanto às entrevistas realizadas fora'dos plenários,
tidade de sessões assistidas, mas a relevância que o conjunto formado
todas foram gravadas em fitas cassete, com o consentimento dos entrevis-
por elas teve na construção da problemática, das estratégias metodo-
tados, mediante a garantia de que suas identidades seriam resguardadas.
lógicas e das redefinições do enfoque te6rico deste trabalho. Também
i Entrevistei, em cada um dos cinco Tribunais do Júri:
importante, metodologicamente, foi o fato de o trabalho de campo ter
se desenvolvido ao longo de quase cinco anos, permitindo que a coleta Entrevistas em cada Tribunal

I
Total de entrevistas nos 5 Tribunais
de dados empíricos não se dissociasse das reflexões teóricas e vice-versa, 1 juiz presidente
, o que resultou em uma recíproca influência entre elas. 1 juiz auxiliar
5

5
2 promotores
10
As primeiras vinte ou trinta das 107 sessóesserviram-me, antes de tudo, 2 defensores
10
para "apurar" uma sensibilidade em relação ao Júri: como acontece com 2 ré(u)s
10
quase todos os antropólogos em seus trabalhos de campo, passei por assistentes (familiares de réus" estagiários de direito)
13
um período de adaptação durante o qual, pouco a pouco, imernalizei o jurados
52
alcance da famosa expressão "estranhar o familiar e familiarizar-se com Total de entrevistados
105 (aproximadamente 30 horas)
o estranho". Revendo hqje as primeiras sessões registradas em meus
cadernos de campo e comparando-as às últimas, noto o quanto transfor-
No caso dos jurados, embora sem a intenção de alcançar fidedignidade
mei meu modo de percebê-las, à medida que se refinava a problemática
teórica e vice-versa. estatística, levei em conta a proporção do número de inscritos em cada
Júri, de acordo com a seguinte tabela:

-34-
-35-
.1

r
.'-~-7"
..-,.:-----~-. -.
----'------_._----- ----~.

e-.
~~ ••••••••••• <> ••••••• u
_dapeoqu;..

Tribunais ,. 2' 3' 4' 5' Total Enfim, os dados empíricos que compõem este livro tiveram papd fun-

--
total aprox. de 10.000 2.400 2.400 2.400 1150 . 18.450
damental na de6nição de seus contornos te6ricos e vice-versa. pois a
inscritos(199n ~4"1 (13") (13"1 (13") (7%) (100%1
27 7 7 2'
coleta dos primeiros redimensionou problemas e hipóteses e esses, por
7 50
entrevistas realizadas 35 4 6 5 2 52
sua vez, orientaram meu olhar sobre o objeto. O amaq.urecimento do
projero inicial deu-se em função dessa influência reciproca. Dal, dentre
outras razões, o motivo de registrar, neste capitulo metodológico, alguns
Além de o total dessas entteVÍstasnão permitir quaisquer análises quanti- passos do caminho percortido e alguns trajetos desfeitos e abandonados.
tativas, como percentualizaçóes e generalizações de resultados, não segui Todos tiveram algum peso no resultado final.
um roteiro único e estruturado de perguntas, preferindo privilegiar, em
cada situação, aquilo que o contexto melhor propiciasse. Minhas per-
guntas, portanto, apesar de sempre buscarem significações que jurados. Lascas da lapidação
promotores, defensores, testemunhas, réus, juízes e p~oas do público
Entre as fontes de dados que cheguei a considerar para o trabalho mas
davam a ocorrências do desenrolar das sessões, elas variaram de acordo
acabei desprezando, destacam-se a produção jurisprudencial recente
com as sutilezas de cada julgamento.
sobre o Júri brasileiro, reporragens e artigos publicados pela Folha tÚ S.
O mais importante é destacar que os conceitos de jogo. ritual, drama e Paulo, estatísticas elaboradas pela Secretaria dos Neg6cio~ da Segurança
teatro, conforme já apontado nas considerações iniciais. os quais acaba- Pública do Estado de São Paulo e pela Fundação Sistema Estadual de
ram por estruturar os capítulos, surgiram de forma recorrente em várias
entrevistas e arguiçóes, alertando-me para a possibilidade de considerá-
I,
"1 Análise de Dados (Seade), além dos longas-metragens norre-americanos
e ingleses sobre Júri mais alugados nas principais videolocadoras da
-los teoricamente e de estruturar as últimas entrevistas em função deles.2 eidade. Embora eu não tenha levado a cabo a utilização dessas fontes
por referirem-s~ a discursos da sociedade sobre o Júri e não a discursos
do Júri sobre a sociedade, como já foi dito, elas podem rer grande valia
2 Além de serem poucos, no Brasil. os estudos sociojurídicos empíricos sobre os Tribu- para futuras pesquisas.
nais do Júri, menos ainda são aqudes baseados em (ou que fazem uso de) entrevistas
_a _jurados _e_demais_participant~_ dQ_Júri. DesJa-.a~se,_como_aceç:io, ..0_traba1ho .'~ Esl'edalmente lIos doi~pJimeiros .anos do_doutotado_(l996_e -1997),
realizado por Guilherme de Souza Nucci junto a 574 jurados do 3R lIibunal do Júri .
examinei vádos livros que tratavam do Tribunal do Júri no Brasil e
de São Paulo (Nocci, 1999: 219-363). Referencial, tamblm, I UI11.l J>=lWsa que
analisou rodas as listas de jurados, processos julgados pdo Júri e noteias de jornais que se encontravam. disponíveis nas principais bibliotecas jurídicas e
a des referentes desde o surgimento da comarca de Americana (SP), em 1954, até livrarias de São Paulo. Assim como ocorreu com as 107 sessões de jul-
1994. Nesse estudo foram realizadas entrevistas com profissionais que participaram
gamento assistidas, várias ideias decorrentes dessas leituras não foram
dos julgamentos e com jurados, com vistaS a entender a insc:rção de mulheres no
Conselho de Sentença (Fontolan, 1994: 67-88). No Rio Grande do Sul, Unia Stte- diretamente aproveitadás no resultado final. mas orientaram.no e estão
ck investigou duas com:lfql$: a de Rio Pardo, pobre e de imigração ponuguesa. e a em seu subtexto.
de Santa Cruz do Sul, rica e de imigração alemã. Ele con&on~ou'o que Chamou de
"índole e ideologia" dos jurados e concluiu que na 11 havia muito mais absolviç6es
(72.32%) do que na 21 (31,23%) e que, portanto, a "índole da comunidade lusa"
comunidade 'germânica" revelava rigidez na observ4.ncia do cumprimento de regras
facilittva o esqu.ecimento e o penlão das infrações cometidas, enquanto a "{ndole da de conduta (Streek, 1998: 87 e ss).
"

-36- -37-

.--_.

: I!
I
Jogo, ritual e teatro
Bastidores da pesquisa

Quase invariavelmente na maioria dos livros jurídicos que tratam do Júri,


suas alterações são percebidas como registros históricos dos caminhos
os autores fazem um breve "histórico" da instituição, apontando suas ori p

e descaminhos da democracia no país. Ém outras palavras. a meu ver,


gens na antiguidade clássica greco-romana (século N a.C.),] na Palestina
~ eles legitimam uma abordagem legalista da história. embora sem desen-
(Nucci, 1999; 31), na "noite dos tempos'" ou até na "Sanra Ceia' para,
volver essa premissa. Enfim, como a partir de um certo momento do
em seguida, referirem-se à Magna Carta (Inglaterra, 1215) e atribuírem
trabalho me distanciei da discussão referente ao "caráter democrático"

j
a esse "momento histórico" as "feições modernas do Júri". A partir dessa
do Júri e deixei de lado a leitura dessas "incursões históricas" feitas em
gênese, os autores costumam saltar para o século ~ mencionando que,
livros doutrinários relativos ao Júri. aqui me limito a registrar o quanto
durante esse largo intervalo. a instituição "modelou-se" e espraiou-se pelo
é importante endossar a crítica que Luciano Oliveira faz em seu clássico
Ocidente (Nucci, 1999; 32). Desse ponto da cronologia, vários passam
para a chegada do Júri no Brasil, em 1822, onde foi criado para julgar \~
, texto "Não fale do Código de Hamurábi!". Ao se reportar aos muitos

crimes de imprensa. Segue-se, então, uma sequência cronológico-legal das


g., vícios de várias pesquisas sociojurídicas realizadas em programas de pós-

constituiçóes brasileiras e decretos que alteraram a competência do Júri.


,I -graduação em Direito, ele afirma:
Y
até que vários autores finalizam seus "históricos" concluindo ou pelo atual O problema é que o jurista-autor (...) adora um viés evolucionista (...) pelo
"caráter democrático" do Júri brasileiro, garantidor de direitos e garantias fato de essas incursões históricas não serem o fruto de uma pesquisa original,
individuais, ou "antidemocrático", perpetuador de discriminações sociais, mas, via de regra, uma compilação de informações e autores os mais diversos
e variados - muitas vezes colocados lado a lado sem um fio que os Costure-,
econômicas e políticas. Tanto em um caso quanto no outro, o Júri parece
hauridos mais uma vez.em manuais ou livros de divulgação. e não em literatura
ser tomado co~o uma espécie de termômetro da democracia brasileira
c:specialiZ3:dae especifica (Oliveira. 2003: 309).
sem, contudo, se discutirem os diversos contextos sociopolíticos pelos
quais passou o país, bem como os diferentes perfis de legisladores envolvi- Outra fonte de dados que considerei válida de início. mas depois des-
dos nas discussões e definições a respeito da competência do Júri e mesmo cartei, foram notícias sobre o Júri veiculadas pela mídia. Achei, em um
do que se entende por "sociedade", "democracià' e "cultura brasileira". primeiro momento. que elas poderiam, em alguma medida, influenciar
os discursos elaborados durante as sessões de Júri e vice-versa.
Após constatar o quanto se repetia esse modelo de "histórico" nos livros
doutrinários sobre o Júri no Brasil, propus-me a analisar como a maioria Comecei investigando. notícias veiculadas pela Folha de S. Paulo entre
dos autores mais lidos por alunos e profissionais do direito faziam essa 1° de janeiro de 1994 e 31 de dezembro de 1998. Valendo-me dos
"história do Júri". Elaborei a hipótese de que, para esses formadores de textos integrais, disponíveis em CD-ROM, de todas as edições desse
novos profissionais do direito, a cronologia das leis e a sequência de período, elaborei um formulário para analisar as notícias, mês a mês,
segundo algumas variáveis. A análise me deixou ciente dos casos que
foram "paradigmáticos" para esse jornal6, levando-me a pensar que eles
3 Dario Martins de Almeida. O livro dojurado. Coimbra, LivrariaAlmedina, 1977. p.
135.
~ Paulo Bonavides, Curso tk Dirdto Constitucional, São Paulo, Malheiros. 1997. p. (; Em relaçãoa 1995. por exemplo. selecioneio julgamento de O. J. Simpson, nos
156. Estados Unidos, pois, de um rota! de 237 norlcias sobre Júris publicadas ao longo
5 Orlando Soares,Curso fÚ Direito Procroual Proal, RiodeJaneiro,JoséKonfinoEditor. daqueleano, 34% trararamdessecaso. Nessemesmoano, consequenrerneme,norlcias
1977.p.311. sobrejulgamemospor Júrisesrrangdrossuperaramas referenresaJúris no Brasil(57%
e 43%. respecrivamente).Consideradassó as primeiras. o "caso O.J." respondeu por

-38-
-39-

_~J,
.-=::~;::=--::-
.---

:/.'
~
Jogo. ntua! e teatro utIlM.IUUR2l \,lU pesquua

poderiam fornecer elementos complemenrares relacionados à discussão interessava analisar) baseando, portanto, atentar para essa representação
dos significados em jogo no Júri. Abandonei esse material porque se e cabendo deixar de lado questões como: O que os mais recentes dados
tratava de uma fonte de discursos sobre o Júri e não provenientes do Júri; estatísticos apontam sobre os crimes de competência do Júri? Passei)
ficou-me claro que, quando promotores, defensores e juizes faziam uso assim, a considerar outras questões: Como e por que advogados e pro~
de notícias veiculadas pela mídia no traoscorrer dos julgamentos, o que motores utilizam estatísticas em suas arguiçóes nos plenários do Júri?
mais imponava não era verificar a propriedade desses usos em'si, mas Que efeitos pretendem produzir e produzem com tais mençóes?
analisar como eles ganhavam novos significados nos próprios contextos
Outra estratégia de pesquisa pensada mas não levada_ a cabo referia-se
discursivos do Júri.
à filmografia sobre Júri disponível e mais procurada nas principais vi-
Pelos mesmos motivos) perdeu o sentido investir esfurços no levanta- deolocadoras da cidade. Ao conversar sobre o Júri brasileiro com várias
mento e aoálise de dados estatísticos poiiciais e judiciais a respeito de pessoas sem formação jurídica e mesmo com algumas formadas em
homicídios registrados no município de São Paulo, como número de direito, mas não ocupadas na área penal, elas me revelaram uma imagem
ocorrências, inquéritos instaurados, processos e sentenças condenatórias dessa instituição muito pautada no modelo norte-americano ou inglês,
e absolutórias proferidas pelos cinco Tribunais do Júri por mim pesqui- devido a filmes a que haviam assistido.
sados.7 Era minha intenção original elaborar um mapa do município
Uma de minhas primeiras constatações foi a de que) dentre uma grande
de São Paulo segundo áreas de circunscrição das delegacias de polícia,
. variedade temática de filmes disponíveis em várias videolotadoras de São
agrupadas, por sua vez, segundo o Tribunal do Júri ao qual são remetidos
Paulo, os que incluíam julgamentos realizados por Tribunais do Júri nos
os inquéritos policiais) tornando visível uma'macrovisáo georreferenciada
Estados Unidos estavam entre os mais alugados. Segundo funcionários
da competência de cada Tribunal e dos resultados que produziam.
de algumas videolocadoras visitadas, havia verdadeiras legióes de fãs de
Como em vários momentos das sessões de Júri - depoimentos de dele.., filmes jurídicos, de julgamento, de tribunal ou de Júri.
gados, de policiais militares e civis, intenrenções de juízes e argumentos
Cheguei a realizar um levantamento preliminar) entre março e abril
tanto de defensores quanto de promotQres - eram mencionadas estatís-
de 1999, dos títulos mais procurados. Como eram m1,1itas as videolo-
ticas criminais, considerei) inicialmente, que valeria a pena pesquisá-las
cadoras da cidade, escolhi a maior rede delas, Blockbuster) e, de posse
em suas _(Qrlt~_J~rimárias. Porém) mais UJlla vez). no cruciaLmomento _
dos -endereços-e-telefones-das-trinta--Iojas então existentes, -selecionei
de qualificação da tese, foi-me possível perceber que somente na repre-
intencionalmente cinco) cuidando para que cada uma estivesse em bair-
sentação cênica das estatísticas elas ganhavam os significados que me
ros correspondentes às circunscrições dos cinco Tribunais do Júri que
pesquisei. Visitei-as, perguntando se a loja dispunha de algum registro
60% delas. Com base nesses dados, levantei a hipótese de que os leitores desse jornal estatístico, semanal ou mensal dos filmes mais locados. O que mais se
interessados em Júri, durante 1995, teriam recebido muito mais infurmaç6es sobre aproximou de tal levantamento foi uma revista mensal, de publicação
o ritual nane-americano do que sobre o brasileiro, tanto que o caderno Mundo,
da própria rede, com uma seleção dos títulos mais cotados a cada mês,
sozinho, produziu 46% de todas as notícias em questão.
o que só fornecia, contudo, uma vaga noção de algum que abordava
, Fontes: Secretaria da Segurança Pública (SSP), Delegada Geral de Policia (DGP),
Departamento de Planejamento e Conuole da Policia Civil (Depbn), Centro de julgamentos pelo Júri. Minha pergunta seguinte aos funcionários era:
Análise de Dados (CAD) e Fundação EstadualAnálise de Dados Estaclsticos (Seade).

-40- -41-

------ ..",7'.-
.----

J
"II
Jogo, ritual c teatro
Bastidores da pesquisa
'Quais filmes norte-americanos ou ingleses sobre julgamentos pelo
Tribunal do Júri mais têm sido alugados nessa loja?" Ao registrar as Refleti muito a respeito e concluí que, embora ficar na "plateia" também
respostas, eu considerava a ordem de citação dos títulos como indi- fosse assumir uma posiçáo definida, eu a considerava melhor do que
cadora de sua relevância, sempre insistindo para que o funcionário qualquer outra, pois a partir dela eu considerava ter maior liberdade
mencionasse "todos" os mais alugados. Cruzando informações, os (física,intelectual e mesmo moral) para observar e registrar a dinâmica do
dez filmes indicados como os mais alugados naquelas lojas e naqueles. Júri, Ao concluir o trabalho, considerei que poderia ter tentado combinar
meses foram: Doze homem e uma sentença, Advogado do diabo, Tempo as duas possibilidades, mas hoje, passados dez anos da defesa da tese,
de matar, O homem que jazia chover, Assassinato em primeiro grau, constato que, justamente após todas as análises, votar pela absolvição ou
S/"pers, Segredosde um crime, O segredo,julgamento fina/ e Justa causa, condenação de alguém implicaria para mim um alto custo emocional.

Aproveitando uma oportunidade, analisei a opinião de 57 alunos de Todas as escolhas implicam perdas e ganhos e quase nunca é fácil o
direitos a respeito do filme Do~ homem e uma sentença e cheguei a uti- processo que leva à decisão. No caso da seleção de técnicas adotadas
lizar em algumas entrevistas com jurados e operadores técnicos certos em uma pesquisa, parece-me tão importante quanto a apresentação
elementos de tensão desse e dos demais filmes mencionados, com o dos resultados uma exposição crítica de como foi possível chegar a eles,
intuito de fomentar debates e posicionamentos. pois não se deve perder de vista que as limitações e potencialidades do
trabalho intelectual residem nesse processo decisório. Talvez nele resi-
Eu tinha, ainda, OUtrasintenções em relação à utilização desses filmes,
da uma semelhança entre um pesquisador e um juiz: ambos precisam
como debatê-los. com grupos de jurados e operadores técnicos, mas elas
decidir e sabem que suas decisões poderiam ser outras, bem com~ seus
também foram descartadas frente aos rumos que a pesquisa tomou, espe-
desdobramentos. O que geralmente se procura é fazer o mais adequado
cialmente devido ao enfoque cada vez mais centrado na dinâmica lúdica,
diante das circunstâncias que se apresentam e d~ acordo com valores
ritual e cênica do que se passa nos plenários durante os julgamentos.
compartilhados pela comunidade na qual estamos mais inseridos.
Além disso, uma das primeiras ideias que me ocorreu ao decidir estudar os
Tribunais do Júri de São Paulo foi a de, seguindo o exemplo da estratégia
adotada por Maria Alice T. Sestini em seu mestrado (1979), tornar-me Depois
jurada, o que, provavelmente, não seria difícil, pois, por indicação de
Não bastasse converter dados "brutos" fixados em cadernos de campo
algum professor da Faculdade de Direito da USp, onde eu me formara,
e em anotações de leituras em um texto articulado denominado "tese
eu acabaria incluída na lista de jurados do ano seguinte e, em algum
de doutorado'\ trabalhar novamente esse texto após dez anos, para
momento, seria sorteada para compor o Conselho de Sentença. Quais
transformá-lo em livro. é uma tarefa desafiadora.
seriam, todavia, as implicações de estudar o ritual do Júri ocupando uma
posição tão definida? Seria este um empreendimento equiparável a enfrentar um quebra-
-cabeça, uma charada, um jogo de armar, uma paciência ou um tiro ao
alvo?Afinal, a produção de um texro autoral implica, para o autor, l'jogar"
8 Tal "pesquisa de opinião" foi realizada junto a estudantes de 111 e 311 anos da pue
~SP,em agOStode 200 1, sob a orientação da professora Ora. Sílvia Pimentel, a quem
com seus limites e potencialidades, ainda que respeitando certas regras
especialmente agradeço por me ceder o material para análise. externas que legitimarão ou não a aceitação dos resultados.

-42-
-43-

.. /" -
-.,'"

l1.2?
" 1/
Jogo, ritual e teatro
--. ....-t-
Se, conforme verem . são é que possamos nos perceber como dabotadores sofisócados dessas
por se deseorol os nos dois pIÓximoscapíw1os, ""jogos secaracterizam
. ar deorro de cerras li'nure&temporaJS,
' por' unp I'1= fotmas de conhecimento, de julgamento e de conrrole social. Todos nós
ruptura com qual uma
finalidade em quer realidade exterior a si mesmos, por possuírem uma somos, de algum modo, autores, jogadores, participantes e atores dessa
participam, a':: P.IÓPriarealização e por existir, da pane dos que deles dinâmica. A esperança subjacente é que, ao conhecermos melhor como
. da opera e como nela nos inserimos, po~os nos perceber capazes
porclona algo <Üsticlênciad' e partiCIparem
. . 'Ld e que Ihes pro-
de uma anv1ua
um livro equip ntodastensóesdavidacoódiana,consideroqueescrever de rever daboraçóes já formul~das, especialmente as que não têm se
ata-se a enfren lar um jogo solitdrio de destr= • aplictlfão. demonstrado aptas a melhorar nossa convivência neste mundo cada vez
Em bora o autOr mais heterogêneo e desafiador que nós mesmos criamos.
afisme que essas COmquem mais dialogo nOSpróximos dois capírulos :I[
à ciência, esp<Ci:,"cterísricas gerais dos jogos não devem ser estendidas
contato com o mente às"'"aenclas ap I'lca das" • porque mantem • estreito
<ij)~ií
que não lhes é que as cercam. c, portanto, possuem uma temporaliclacle
.
alnda assim co.prÓptia mas marcada por ntmOS . e d eman d as externas.
produção de nstdeto ha ,. el I'd'
ver varIOS ementOS U lCOSenvolvidos na -'j

i
tematizar e umum text o Clcn
. tlfico, como. por exemp Io, a tendência a sis-
(Huizinga, 198~.rtoimpulso competitivo. geralmente de autossuperaçáo
,226 e 227).
Por várias vezes ,esp 'al
anos quanto ag CCI mente nos momentOS de escrita. tanto há dez
e um espaço Só Ota, retir••;
~~ m e d o con'dian o para 1ançar-me em wn tempo
meusn' os quaIS,
pois se tratava de
. parad oxaimenrc, seno .,angustia e prazer,
estipuladas pcl urna competição comigo mesma, com as exigências
parâmetros da Os prazo s e ajustes
. que me foram propostos e com os
E. é COmunidade profissional à qual pertenço.
_se__quecab
tanto e ddife rencia:r-ciência: "puran.-de-ciência_~aplicada~,_talvez,
aos olhos
trabalho se confi e ptofissionais do diseito quanto da antropologia, este
não sugere, objeti rOle .como lúdico, pois aparenta ser "inaplicávd". Ele
para alguns dos ~ente, encaminhamentoS técnicos, políticos e sociais
ou manutenção ;:Uemas do Júri no Brasil, COIDO a ampliação, tedução
mesmo a man' e sua competência ou a forma de selecionar jurados ou
m
como deve ser eltadeo
o J" pera d ores técnicos se cond'uwe . Ele não sugere
como jogo, ritual Un no Brasil, mas, ao apresentá-lo antropologicamente
• teatro e como uma espécie de texto literário. a preten p

-44- -45-

.--r---
_.~_.

" i/
2
JÚRI -JOGO

Em 15 de junho de 1938, o historiador holandês Johan Huizinga (1872-


1945), que mor~eria sete anos depois em um campo de concentração
nazista, concluía o prefácio de seu livro Homo ludens: o jogo como e!e-
menta da cultura. Nas páginas introdutórias. ele explica que, desde 1903,
quando começou a desenvolver a tese "(...) de que é no jogo e pelo jogo
S;,
que a civilização surge e se desenvolve", alguns de seus interlocutores se
!,, equivocaram ao achar que sua proposta era :=.presentaro conceito de jogo
como uma das manifestações da cultura. Para deixar claro que entendia
ser o jogo bem mais do que isso - um elemento integrante e constituinte
da cultura -, ele escreveu esse livro.

Ainda nesse prefácio, ele comenta: "Se eu quisesse resumir meus argu-
mentos sob a forma de teses, uma destas seria que a antropologia e as
ciências a ela ligadas têm. até hoje. prestado muito pouca atenção ao
conceito de jogo e à importância fundamental do fator lúdico para a
civilização" (Huizinga, 1980, penúltimo ~).

Desde então. alguns cientistas sociais (talvez não tantos antropólogos


quanto Huizinga gostaria) trabalharam com o conceito de jogo em suas
análises. Na maioria delas. predominam afirmações de que onde há jogos

-47-

",>

: 1/
4?)--
há dominação, uma vez que eles envolvem poder e constituem arenas de Trata-se, assim, ao se estudar jogos, de captar o valor e o significado dessas
lutaS. Em OUttaspalavtas, ptevalece uma abordagem dos espaços lúdicos, imagens e dessa "imaginação" que des produzem (Ibid.: 7).
especialmente dos uibunais, como lugares de dominação e sujeição.
Partindo desse pressuposto e estendendo-o às sessõesde Júri, a proposta
Neste capítulo, o júri não s6 é apresentado como um jogo inserido em é percebê-las como jogos baseados na manipulação de imagens mativas
uma dinâmica de podet, mas como capaz de transcender polarizações, à regulamentação do poder de um indivíduo matar outro. Não é esse
permitindo a construção de múltiplas subjetividades e redefinindo ex- poder de matar, enquanto ação, que está em jogo, pois de já foi exercido
periências sociais, daí poderem ser as sessóes de julgamento entendidas por alguém sobre alguém. O caráter estético do Júri, sua intensidade,
como rituais de caráter lúdico e agonístico. fascínio e excitação residem na construção de julgamentos a respeito
das circunstmcias que tornam o uso desse poder legítimo ou ilegítimo.

Depe~dendo de como as mortes são contadas, imaginadas e transfor-


Caráter lúdico da cultura e do Júri madas em imagens a serem julgadas, possíveis usos do poder de matar
Segundo Huizinga (1980: capo 1, passim), várias e divergentes teorias são socialmente legitimados ou não. Portanto, captar quais valores e
psicológicas e fisiológicaslevantam hip6teses, não necessariamente exclu- motivaçóes estruturam a legitimação desses usos é perceber como os
dentes, porém parciais,ao tentarem definir as funções do jogo. As principais . participantes do júri regulam não as mones ocorridas, mas o andamento
apontam-no como descarga de energia vital superabundante; satisf.J.ção , de suas ptÓprias vidas. O fundamental, portanto, é entender o valor e
de um certo "instinto de imitação"; preparação do jovem para exigências
• o significado das imagens que manipulam as mortes, pois transcendem
davida adulta; exercício de autocontrole; desejo de dominar e competir; as necessidades imediatas da vida e alcançam significaçõ~ mais amplas.
escapepara
. impulsos prejudiciais eloucompensação de desejosinsatisfeitos. Ad mlOn
"d' o, assrm, que t3.1S
.. Imagens relerem-se
c .
a um Jogo d e atn'b'-wçao
Embora o pressuposto comum a todas essas hipóteses seja o .de que .1 de sentidos atrelados ao poder de matar, cabe acrescentar que os atores
no jogo existe alguma coisa "em jogo", que transcende as necessidades .! do Júri, ao elaborarem e expressarem essas imagens através de discursos,
imediatas da vida e confere um sentido à açáo, Huizinga as considera :: gestualidades e decisões, atualizam o mundo regrado da cultura, suas
reveladoras de preocupaçóes superficiais, uma vez que apontam somente convençóes morais, sociaise econômicas. Eles transformam mortes f1sicas
0_ que o jogo-é-ou-o-queele significa-para-os~ogadores,.não avançando na em metáforas de _d~as da Y~~t.pois cadáveres motiva,m reflexões a r~~-__
análise de seu caráter «profundamente estético" e no fato de que em sua peito de conflitos entre vizinhos, parentes, amantes, colegas de trabalho,
intensidade, em seu poder de fascinação e em sua capacidade de excitar i; integrantes de redes de tráfico de drogas e de armas. Cada sessão de júri,
reside a própria «essência"jogo (Ibid.: 3.5). .~ nesse sentido,-é um exercício em que os sentidos dessas metáforas são
. al d bo d . ló' b' i revistos por todos os participantes: juízes, promotores, advogados, réus,
Em outras p avras, on e se esgotam as a r agens pSICO glca e 10- ?1:' . •. ,
' d . ul háb' d' .. ,"l testemunhas, funClonarlOse asSIStentes,
lógtca os Imp sos e !tos que con IClonam o Jogo começa a teona I'
de HUizi.nga,para quem o jogo é fator cultural significante, b.aseado na .', Se quisermos ir um pouco mais além, talvez possamos dizer que esses
manipulação de imagens, em uma certa "imaginação" da realidade ou j participantes são capazesde formular e reformular tais sentidos, percebê-
mesmo na transformação em imagens do que se entende por.r:ealidade.. -los e utilizá-los porque de algum modo já os têm internalizados. Dão-se

-48- -49-

.T,r.•_. .----"

:fi
Jogo, ritual e teatro
I Júri -Jogo
coma deles e os materializam nos plenários do Júri porque ali, diante de
expõem-se à necessidade
j de prazer; são corriqueiras declarações como as que se seguem. proferidas
casos concretos, de julgar e decidir a vida de 1
acusados de homiddio. Portanto, O que aparentemente criam em parte ~ por um promotor durante urita sessão: "Quando eu era estudante, acom-
já existe, pois as regras do jogo do Júri são regras da vida social, mas, por panhava as sessões e me imaginava nelas. Adoro isto aqui. Não saberia
serem dinâmicas - e porque também o ato de aplicar implica interpretar fazer Outra coisa. (...). Aqui ocorre algo que me completa". 10
>'1

e poder inovar -, o Júri permite uma leitura de regras "em ato". em fluxo Outro, ao finalizar a "Introdução" de seu livro, escreve:
entre abstrações e materialidades.
(...) ° trabalho apresentado, como não poderia deixar de ser, tem o cacoete
do Promotor de Justiça. E talvez tenha mais do que isso (e 56 compreende-
rão aqueles: que são ou que foram protagonistas do Júri). Possivelmente ele
Algumas características dos jogos e do Júri inclua, subjacente, uma declaração de amor (Trein, 1996: 15).

Vários advogados que dissertam sobre o Júri fazem "declarações" seme-


Jogos voluntários e obrigatórios lhantes:
Certas características 1980: capo I, passim)
gerais dos jogos (Huizinga. (... ) este livro se faz imprescindível a ~odos que atuam no Tribunal Popular
permitem paralelos com a.dinâmica de algumas regras sociais que (Magistrados, Promotores de Justiça, Advogados), bem como estudantes
emergem nos plenários do Júri. Uma dessas características é o fato de a que já sintam paixão por essa maravilhosa. instituição (Almeida, 2001: 14,
maioria dos jogos consistir em atividades voluntárias que, especialmen- prefácio de Roberto Delmanto Júnior).

te quando realizadas entre adultos, podem ser adiadas ou suspensas.


Quanto aos jurados, embora os voluntários sejam minoria frente aos
Contudo, quando se ligam a noções de obrigação e dever. passando a
compulsoriamente convocados 11 e apesar de muitos dos mais antigos
ter uma função culturalmente reconhecida, seja sob a forma de cultos
ou de rituais, tornam-se atividades lúdicas necessárias.
geral, universidades, sindicatos, repartiçóes públicas e outros núcleos comunitários
As sessões de Júri, por terem reconhecidamente a função de fazer parte a indicaçáo de pessoas que reúnam as condições para exercer a função de jurado.
de uma instituição de controle da criminalidade, não só são legalmente (CPP, m. 425 ~ 2°).
ritualizadas como se ligam a noções de obrigação e dever e, assim, se tor- 10 15/8/2001, sessáo emografada das 12h às 16h45 .no Plenário 7 do la Tribunal do
Júri (Barra Funda).
nam necessárias, não podendo ser "facilmente" adiadas ou suspensas. Esse
11 Desconheço a existência de estudo brasileiro recente que mensure percentuais de
caráter obrigatório das sessões, todavia, não significa que juízes, promoto-
jurados voluntários e de compulsoriamente convocados, comparando eventuais dife~
res, advogados e jurados lá estejam apenas para cumprir uma obrigação. renças entre seus comportamentos e opiniões a respeito do Júri. O trabalho empírico
que mais se aproxima dessa questão é uma pesquisa de opinião, realizada nos meses
Seguir carreira no Júri, seja como juiz ou promotor de justiça. e mesmo de junho e julho de 1997. no 3,QTribunal do Júri de São Paulo, com 574 jurados.
9
:;,1
ser jurado voluntári0 implica optar, ao menos de início, por algum tipo Ela apurou que, desse tOtal, 23,17% estariam dispostos a ser jurados voluntários,
, 59,76% náo estariam e 14,81% eram indiferentes. Quanto à remuneração _ ine-
xistente -, 48,78% declararam que ela deveria existir, 34,32% que não deveria e
i 9 No Brasil os jurados sáo alistados anualmente pelo juiz presidente do Júri entre cida- 15,16% são-lhe indiferentes (Nucci. 1999: 330~331). En passant, em alguns textos,
dãos de notória idoneidade. O juiz poderá requisitar às autoridades locais, associações há mençóes ao fato de que a çompulsoriedade e a participação náo remunerada dos
I de classe e de bairro, entidades associativas e culrurais, instituiçóes de ensino em r jurados podem ser responsáveis pela má vontade de alguns e, consequentemente,
i
i -50-
I prejudic:ar os julgamentos.

-51-

____ o f-- ~ .. " <'

.'i/ f!)"
""6U' •••••••••..•.•••••••••
iliri-iogo
.confidenciarem. em .:;ntrevista5,insatisfações e frustrações (por exemplo,
Cabe lembrar que, no campo das grandes questões éticas, destaca-se a do
com..o ~úmero de ':'ez:e5erp que comparecem mas a sessão não ocorre ou
controle das paixões pela razão. A literatura filosófico-polltica, todavia, tem
co~ o fato .fienem se~pre ser~rtJ.sorteados para. compor o Conselho),
fàrramente apontado que, sozinha, a razão não efWva esse controle. Dai
percebe-se na fula de quase todos eerto orgulhQ por terem sido escolbidos
advêm os projetos de poder extrapolarem estratégias racionais na tentativa
entre cidadãos de "notória idoneidade". Aliás, essa expressão do C..ódigo
de alcançar "o espírito", pois esse é um rígido fiscalizador dos "apetites",
de .Processo Penal (art. 436) é muitas vezes ressaltada durante as sessões,
paixões e desejos humanos (Ribeiro, 1984: capo 5, passim). Os jurados
com essa,<ou palavras análogas, quando juízes, promotores e advogados
leigostalvezsejam justamente essesfiscalizadoresnão meramente técnico-
se dirigem aos jurados para reiterar quem eles são e por que estão ali:
-racionais do "apetite" de matar, e, hessamesma linha de raciocínio, talvez
VossasExcelênciasestãodiante de uma tarefa nada fácil.que é a d~ determi- sepossa entender por que réus e prisioneiros ((convertidos"a religiõesevan•.
nar o destino do réU. Trata-sede um"trabalho que lidacom dois bens muito gélicassão considerados menos "perigosos"à sociedade:,Deus os controla.
preciosos: a liberdade e. principalmente a vida. (...). O que julgarão é se o
acwado tirou a vida de outro homem e se, por isso. merece perder a sua
liberdade.MascorooVossasExcelênciassãocidadãosdenotória idoneidade, Difícil intenupção
dignos representantesda sociedade,tenho certezade que desempenharão
Enquanto os jogos voluntários, especialmente aqueles entre adultos,
bem essadificil tarefa.12
podem ser facilmente adiados ou suspensos, os de caráter obrigatório
Apesar de O Júri, enquanto jogo, ter um caráter predominantemente são de diRei! interrupção, exigindo fones motivos para que não cheguem
obrigatório para seus participantes, os principais jogadores, aqui se ex- ao desfecho esperado. É sempre muito delicado interromper as sessões
cluindo o réu, sentem alguns prazeres por estarem ali, dentre os quais o do Júri, ou mesmo suspendê-las ou impugná-las, antes do anúncio da
de serem considerados e se considerarem idôneos para julgar e decidir. sentença. Quando isso ocorre, normalmente o juiz se respalda nas pró-
Portanto, o jogo, em si mesmo, propicia a esses jogadores o prazer de prias regras rormais do jogo, registradas no. Código de Processo Penal, 13 e
compartilhar uma identidade socialmente reconhecida como "digna", justifica a interrupção de modo a não desacreditar o jogo e os jogadores.
o que por consequência lhes confere status. Para ilustrar essa afirmação, segue uma análise do que determinou a
difícil impugnação de uma sessáo, quase dez horas depois de iniciada.
I Disso decorrem outros prazeres como o de operadores técnicos'f:jurados
r ocuparem posições de. poder a partir. das quais decidem se o réu -terá, -Ela começara por volta das 9 horas da-manhã. Tratava-se do julgamento
ele próprio, seu poder de matar (por sinal, comum a todas as peSsoas) de um jovem negro, magro, de apelido "Nenê". Ele teria sido vítima
I controlado por si mesmo (caso em que será absolvido, posto em liber- de roubo (um walkman), depois do que matara o assaltante auxiliado
I
I dade e, teoricamente, recuperará o status de cidadáo "idôneo") ou se terá por outro homem, também apelidado de Nenê. No Júri, durante seu
I esse poder controlado pelo sistema de justiça criminal (caso em que será interrogatório, o réu negou.a autoria do delito. Várias testemunhas
I privado de sua liberdade e do status de idôneo). foram chamadas a depor, três das quais delegados de polícia e dois in-
vestigadores, pois pairavam dúvidas sobre se o réu teria confessado na
I 12 18/3/1999. s~o etnografula das 13h40 às 161130no Plenário II do 3"Tribunal do Júri
(Santo Amaro). O conceito de notória idoneidade será analisado no proximo capítulo..
" CPP/41, arts. 406 a 497, alterados pela Lei 11.689/2008.
I
:1

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Jogo. ritual e teatro
Júri -Jogo

delegacia mediante tortura. Foram longos e tensos esses depoimentos.


Faltam estrucura flSica e de pessoal neste Tribunal. Faltam acomodações para
As testemunhas caíram em contradição várias vezes, principalmente
que testemunhas de acusação e de defesa permaneçam incomunicáveis. (...).
confundindo o réu-Nenê com o corréu, também apelidado Nenê. e com Foi ferido o princípio da ampla defesa (... ). Quase dez horas de trabalho
um terceiro Nenê "do pedaço' e "da pesada", já assassinado. Em outras foramlançadasao vento por não ser cumprida a determinaçáo de incomu-
palavras, a certa altura havia três "Nenês-neguinhos" e ninguém mais nicabilidade entre testemunhas, a qual não é s6 verbal, mas de contato com
compreendia de quem se falava. o mundo exterior: telefones, bips, documentos.

Depois do primeiro intervalo, para almoço, houve um segundo, para Esse. portamo, é um exemplo de jogo que não chegou ao fim devido
um cafezinho, durante o qual todas as testemunhas. mesmo as que já a pelo menos dois fatores "lúdico-sociais" que merecem análise: uma
haviam prestado depoimento, ficaram juntas em uma sala contígua à confusão de posições entre 05 jogadores (primeiramente entre os "Nenês"
do plenário. Quando da retomada da sessãq, um dos dois advogados e depois entre juiz, promotor e defensor) e um acirramento de tensões
do réu comunicou ao juiz que sobre a mesa dessa sala havia cópias de entre as instituições por eles representadas: polícias Civil (PC) e Militar
várias peças acusatórias do processo, às quais, portanto, as testemunhas (PM), Ministério Público (MP), Ordem dos Advogados do Brasil (OAB)
tiveram acesso. inclusive as que ainda não haviam deposto em plenário. e Poder Judiciário.
Nesse momento, instaurou-se uma confusão generalizada ..
No elevador do Tribunal, um policial militar (PM), que rrabalhava na
Por decisão do juiz, todas as testemunhas depuseram, novamente, para sessão. disse à ascensorista (A) que já sabia de tudo:
declarar se haviam lido ou não as peças acusatórias e indicar o nome PM: Dez horas de trabalho perdido, jogado no lixo!
de quem as deixara sobre a mesa, o qual ninguém apontou. O mesmo A: Trabalho e dinheiro!
'. ocorreu com todos os funcionários que serviam no Júri e que passaram PM: Nosso dinheiro!
a correr o risco de perder o emprego. Os jurados, por sua vez, tornaram- A: Quanta gente aí trabalhou à toa.
-se testemunhas dessa possível irregularidade. Advogado de defesa e PM: É... Isso é a Justiça ...
A: É...
promotor alteraram-se e acabaram declarando, em altos brados. quais
medidas tomariam um contra o outro. PM: Parece final de campeonato, quando ninguém marca gol, os jogadores
são expulsos e, pra finalizar, o juiz suspende a partida. Não há torcida que
Finalmente, o juiz. n~o suportando mais a perda de seu papel soberano, aguente! Eu quero meu ingresso de volta! [os dois riram]
desabafou: "Senhores! São três os que estão agindo aqui como juízes! Eu
mesmo e suas excelências!Assim não dá!". 14 E, reafirmando sua posiçáo, Portanto, o Júri, enquanto jogo. possui a característica de seI uma ati-
declarou dissolvido o Conselho de Sentença. com base na lei, com o que vidade lúdica necessária não s6 porque é um ritual reconhecidamente
demonstrou domínio técnico-jurídico da situação e domínio político no instituído. mas porque reafirma e publiciza status conferidos a jurados
conflito de soberanias. Eis parte da justificativa que ele deu aos presentes (cidadãos idôneos) e a operadores récnicos (cidadãos aplicadores da lei).
pata ter interrompido o jogo: Quanto à dificuldade de uma "partida" ser interrompida, passemos a
aprofundá-la analisando outra característica dos jogos também presente
H 4/3/1999, sessão etnografada das 9h às 18h30 no Plenário do 7g andar do 4gTribunal . no Júri: o fato de toda atividade lúdica representar um "intervalo" na
do Júri (Penh2). vida cotidiana.

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Jun-Jogo

Círculo mágico reconhecet o "dtculo mágico", quando, na verdade, dde descrê. Getal-
Sessões de Júri, para todos os que delas participam~ têm,um caráter ex. mente, os desmancha-prazeres contumazes são expulsos da comunidade
ti'aordinário, pois assim como ocorre em jogos e rituais, nelas o tempo de jogadores e tendem a se associar a uma nova comunidade que posSui
e o espaço cotidianos ficam suspensos. Durante seu transcorrer, embora regras próprias (Ibid.: 14-15).
os participantes refiram-se a fatos que aconteceram e acontecem em seus Um exetnplo dessa situação OCOrreuno 2'Tribunal do Júti, durante uma
cotidianos, eleso fazem em um tempo e um espaço anificialmenre criados sessão que não terminou porque o advogado de defesa não conseguiu
i!, pdos limites físicos dos plenátios, durante os quais expetiências difusas
I defender o réu.16 Sua atuação deixou claro a todos como um defensor
e acumuladas "lá fora são condensadas e reorganizadas no interior das não deve jogar.
salas de julgamento.
.i! Tratava-se de um advogado jovem, realizando seu primeiro Júri. Estava
Esses tempos e espaços artificiais são tão marcantes no Júri que todos os tão nervoso e despreparado que, durante a sustentação oral, mal articulou
!; "jogadores" ficam, de algum modo, impedidos de se ausentar das sessões, as palavras. Sem fazer as saudaçóes iniciais de costume e em voz quase
sob o risco de impugná-las. Juiz, promotor e defensor, por exemplo, inauclível, começou lendo fichas. que ele pr~prio não entendia. Em
podem transitar entre "os dois mundos", mas de. forma restrita e por momento algum olhou nos olhos dos demais presentes, muito menos
curtos intervalos de .tempo, porque regras tácitas e escritas os prendem nos dos jurados. Fazendo longas pausas, folbeou códigos dos quais
" aos plenários e determinam os momentos em que devem atuar; estão nada extraiu; ocasiões em que, sem disfarçar, jurados, juiz e promotor
! previamente determinadas a sequência das sustentações orais, a duração demonstraram impaciência e ar desiludido. Nas poucas vezes em que
das mesmas, a possibilidade de apattes etc.
i alçou a. voz, fez colocações que mais pareciam dúvidas do que convicções
I
Especialmente a tegta da incomunicabilidade, rigidamente aplicada e, das duas horas de que dispunha para falar, ocupou somente vinte mi-
I às testemunhas e aos jurados, deixa claro serem os plenários "esferas
temporárias de atividade", onde os acontecimentos devem seguir wna
nutos. Ao final, o juiz e o promotor estavam visivelmente estupefatos; o
magistrado logo se levantou e pediu aos jurados que se tetirassetn para a
orientação pr6pria, que não está em discussão. Essa orientação deter. "'salade lanche". Em seguida, chamou o advogado e o promotor para

II I, mina o que "vale" dentro do mundo circunscrito do Júri, tanto que que o acompanhassem até sua sala. O réu, um .mulato, jovem, magro
_e.b.aix.o,qu~ pe~~ecera inguieto dJ,Uante.tooo o tempo, balançando
-'1-- desobedecê-la significa pô<.fim a de:-"( ...).o_apito.do_átbitro quebta o.
" li feitiço e a vida 'real' recomeça" (Huizinga, 1980: 14). as pernas e levando as mãos algemadas ao rosto, virou.se para o policial
que o acompanhava e petguntou: "Já acabou, é? Fui condenado?" O
Contudo, um jogador que desrespeita regras não é, necessariamente,
~ II desonesto, podendo se tratar apenas de um "desmancha-prazeres" que
policial, meio assustado, meio rindo, respondeu "Não! Ainda não! É s6
um intervalo" e conduziu o réu ao corredor, onde havia uma cela.
desilude os demais, seja por inépcia, cansaço, desinteresse ou porque
de .próptio está desiludido." Já o desonesto finge jogar seriamente e Na "plateia". eu imediatamente interpelei um senhor de meia.idade que
assistia à sessão ao meu lado:.

IS Com muita propriedade. Huiringa registra o significado literal do substantivo Uusáo:


16 8/3/1999. sessão emogràfada das 13h às 15h30 no Plenário "B" do 211Tribunal do
inlusio '" illudere = in ludere '" em jogo (Ibid.: 14). Júri (Saúde).

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Jogo, ritual e teatro
Júri-Jogo

Eu: O senhor é advogado?


Ele: Sou, Você também? [sorriso cúmplice] No caso em questão, o réu era ex-amásio da vítima. mãe de quatro filhos,

Eu: Também. O que o senhor acha que vai acontecer? e ela foi -espancada até morrer, na frente de seu barraco. A favela .em que
Ele; Sem dúvida, o réu tem que ser considerado indefeso! Um advogado morava. por sinal. deixou de existir entre a data do crime e a do Júri.
que fazJúri tem que aprender vendo outros advogados atuando. Sem contar Enquanto o promotor foi incisivo e apresentou. com clareza, provas
que só devem atuar no Júri aqueles que têm o dom da palavra. têm postura, contra o réu, as quais declarou "indiscutíveis". pedindo aos jurados que
são ousados, gostam desse ripo de trabalho. Esse nosso jovem colega. data o condenassem por homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e
vmia, tem muito o que aprender. E digo mais: esses cursinhos preparatórios por ter o réu infringido "sofrimento cruel e desnecessário" à vítima). o
que existem por aí simulam sessóes. mas não simulam o principal, que é defensor balbuciou, com frases redundantes, que o réu fora perseguido
o ritual hostil do Júri, as muitas pressóes que existem lá na frente. Não se pela vítima e por isso revidara seus golpes de faca.
aprende "de brincadeira"! Só se aprende jogando pra valer!
Promotor [apanando o defensor]: Mas a vítima, mulher franzina, foi en-
Quando o promotor saiu da sala do juiz e passou por nós, eu lhe per- contrada vestindo apenas um~' camiseta regata, senhores jurados!
guntei: Defensor [desconcertado]: É; de fato, mas ...
Eu: O réu será considerado indefeso? Promotor [com a foto do cadáver da vítima na mão, aproximando_se da
Promotor: É claro! única jurada componente do Conselho]: Hoje. Dia Internacional da Mulher,
Advogado de meia~idade: E o que o juiz declarará aos jurados em relação olhem para este cadáver e me digam: esta mulher poderia representar uma
ao defensor? ameaça a este homem? Mesmo que empunhasse uma faca? Bastaria um soco
Promotor: Dirá que ele se sentiu mal e precisou se alJ,sentar.Vamos e ve- para desarmá_la! Mas ela foi espancada por ele até morrer!
nhamos ... É o primeiro Júri do moço. Não convém prejudicá-lo! Aquela fala do réu, após o término da sustentação oral de seu defensor _ "Já
Um conjunto de regras implícitas e explícitas do Júri foi testado acabou, é? Fui condenado?" -, aparentemente reveladora de profunda in-
nessa sessão, especialmente a regra de promotor e defensor. dentro compreensão do que se passava, talvez tenha demonstrado que ele percebia
do tempo e do espaço especialmente destinados aos seus discursos, muito bem a grave situação em que seu defensor "desmancha-prazeres" o
desenvolverem narrações seguras de versões contraditórias sobre a colocara, pois, de fato, a sessão estava acabada e. se aquela defesa valesse.
responsabilidade do réu no crime. A fraca atuação do defensor mos~ ele seria condenado. O defensor, por sua vez. apesar da frustração que
trou que o descumprimento dessa regra inviabiliza o jogo, pois torna causou a todos, foi protegido pelos "jogadores mais experientes", afinal
inoperante o contraditório. não era desonesto e não merecia ser precocemente expulso da comunidade.

É opinião corrente entre "mestres" do Júri e uma d~ lições que eles mais Os jurados, por Sua vez. ao saírem da "sala de lanche". estavam com
enfatizam junto aos novatos que. nesse jogo imaginativo e persuasivo de expressões semelhantes às do PM e da ascensorista do Tribunal em que
construção de narrativas, quem não joga bem é um perdedor. e aquilo l ocorreu aquela confusão entre os "Nenês", e os poucos assistentes que
que perde é nada menos-que sua pr6pri~ honra: "Não é possível errar (... ). me rodeavam. incluindo o advogado de meia~idade, não entenderam por
O advogado põe em jogo todo o seu cabedal de conhecimentos, todo o que eu fizera tantas anotações e estava tão animada ao partir.
seu fervor profissional. a sincera compenetração de seu convencimento Vários Outros casos poderiam exemplificar como a desobediência a certas
pessoal, seu talemo e sua glória" (Silva, 1991: 17). regras, implícitas ou expiícitas, leva à "quebra" do caráter extraordinário

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Jogo, nU1ll.l C:-lQILLU " ••••-"U!ju

do Júri, desmantdando-o, pois cumpri-las é gatanrit a tetitada dos joga- técnicos permanecem presos ao ritmo dos pracedimentas judiciais, e
dores da "vida real" e uansportá-Ios pata a "vida nattada". Se as nattativas réus aguardam, cama estátuas-vivas,.o que será feita dos próximos anos
fotem mal elabotadas, ainda que os jogadOtes petmaneçam confinados de suas vidas.
em um plenário que os isole do mundo externo, eles não chega<áo ao
Esse isolatnento attificial delimita não somente um lugat de jogo, mas
fundamento de suas proprias ações, espelhadas nas ações atribuídas ao
caracteriza, comumente, quase tadas as rituais de consagraçãa e de ini-
téu, e não consttulrão, concederão ou negatão legitimidade às ações
ciaçãa, partanto sãa bastante semelhantes as delimitações espaciais para
do téu e às suas proprias. Não terão, enfim, elementos snficientes pata
fins lúdicos e pata fins sagrndos (Huiiinga, 1980: 13,23). Tais delimita-
vivenciar esse espelhamento imaginativo que é central no jogo narrativo
ções são muito nítidas nos plenátios do Júri. Neles há locais ptoibidos,
do Júri e, logo, não conseguirão julgat.
isalados, fechadas, secretos, além de .outras per ande transitam as que
Eis um exemplo de opetadot técnico que desistiu de mesmo do jogo não fazem patte do jogo. O mundo das sessões é tempotário, tegrndo,
(porem não durnnte uma "pattida") pot desacredita< de sua validade, e quem quer que e .observe perceberá isse.
dedatando-se "desUudido" com o Júri, após anos de atuação:
O espaço dos ttibunais, pottanto, confuma a qualidade lúdica do di-
Eu não tinha mais o que fazer lá. pois não conseguia mais acreditar no sen- reito e, especialmente, do maderno processa jurídico, pois ele é "( •..)
tido daquilo. De que adianta condenar aqueles pobres coitados a penas de um ~rculo mágico, um recinto de jogo no interiar de qual as habituais
dez. vinte ou trinta anos de reclusão? Me diga?! De que isso adianta? Além diferenças de categoria entre os homens sãa temporariamente abolidas"
do mais. se considerarmos a maneira incorreta como a imensa maioria das
(Ibid.: 88). O próprio uso da toga pot juízes, promotores e advogados,
provas é coletada e pc:riciada e como são realizados o~inquéritos na polícia,
ao mesmo tempo assemelhando-as entre si e os -distinguindo dos de-
ai então é que não se consegue julgar mais ninguém. (...). Não! Não! Ou eu
abandonava a área criminal e especialmente o Júri ou eu acabaria morrendo II1 mais, marca sua transformação,
transformaçãa
pois, aa vestirem a toga. registram sua
de seres "camuns" em seres "especiais".
de gasttite, de clnçer no pulmão. de tanto fumar. e de depressáo.11

Enfim, retirar as pessoas de seus cotidianos, repletos de experiências Em todos os plenárias, a espaço onde juiz, jurados, prometor. defensar
I, geralmente não sistematizadas, e levá~las para a dimensão de um mundo e réu permanecem durante a julgamento possui todas as características
! de um "palco" ou de um "cltculo sagrndo", sepatado do local profuno,
de narrativas que requalificam e reorganizam esses cotidianos, segun-
\ do deú:rminadas" regiãS-e valores, impHca âesconectá-Ias do cõnj1.intó" -- -reservado-aos~assistentes" (estagiários, familiares-de réus e vítimas,-outros-- -
profissianais, curiasos etc.) .
.i formada por suas necessidades,
agir para reconectá-las
hábitas e farmas uiviais de pensar e de
a esse próprio conjunto, parém em uma .outra Atualmente, na maioria dos plenários paulistanas, a que separa fisi-
li dimensão. Por isso, juradas ficam incomunicáveis durante as sessões, camente o "lugat de jogo" do restante do espaço é uma divisótia de
i
! desconectados de suas famllias, ttabalbos e demais afazetes do dia a dia, aproximadamente sessenta centímetras de altura que vai de parede a
embara julguem réus com base em vivências famUiares, profissionais
kI,l' e cotidianas. Pda mesma razãó, durante as horas de Júri, .operadores
parede. Mesma sentados, os assistentes padem ver o que se passa "do
lado de lã, mas, como nas antigos altares de igrejas cat6licas. cruzar a
í:
divisótia tem gosto de pecado, pois se sabe que é proibido, apesat de
I,
nenhuma placa adverti-lo.
i 17 Entrevista concedida em lQ/8/2001.

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, Jogo, ritual e teatro
Júri -Jogo

advogado com um pouco mais de status do que o réu. (... ) Os jurados como
autoridades. temporárias.18
safa dos jurados sala secreta
(de lanche) (de votação) Opinião idêntica expressou um Procurador de Justiça aposentado ao
sanitário proferir uma palestra sobre A <vo/ução histórica doJúri: "( ... ) a autoridade
do juiz e a do promotor se confundem como sendo as verdadeiramente
,o
.'
-.1, •.
imparciais e corretas. ficando o advogado como suspeito. alguém par-

•. ,,1 I cial. Desqualifica-se, assim, seu papel necessário de garantir o direito


de defesa."19 Porém, as posições de promotor e juiz nem sempre foram
p.rom!l,tor, :. ' Juiz t
fu_ncio~~~f?".._ .,"I,~p~ essas. Conforme se pode observar na "Grande Sala do Júri do Palácio

"'" :••1,.'~1"";"''>," " .


.• '". 'JUrádOS.
réS~~••• pl,1

defe~r--I,:~:
11
~i
do Tribunal de Justiça de São Paulo","
promotor e advogado sentavam-se
até meados do século passado,
jUnto ao juiz: um de cada lado. ocu-
pando a mesma mesa.21

Em todos os plenários paulistanos, mesmo nos mais novos, a mesa do

J'~;.~tU'
.....•..,., ,.'..'.,., ,,";lstêridi" ..•.:~,~;:;;:,
'.
.
juiz se .situa em um plano um pouco superior
Geralmente,
ao do restante da sala.
um grande relógio. com marcações bem visíveis de horas e
minutos. fica sobre a porra do corredor. do lado de dentro. de frente para
::-,
"~.irÍí"(, ":' _'t;~~.~,~,;:~.?; ~
(orredor PM
18 Entrevista concedida por um juiz do 111Tribunal do Júri, em 1817/2001.
l~ Palestraproferida em 10/5/1999, das9h às lOh30 pelo Dr. HermlnioAlbeno Marques
Figura 1. Plenário padrão.
POrto, no curso O futuro do Júri no Brasil. O curso foi promovido pelo Centro de
Estudos e Aperfeiçoamento Funcional da Escola Superior do Ministério Público de
São P:l.ulo(Ceaf/ESMP). Agradeço a seu coordenador, Dr. Herberto Magalhães da
SilveiraJúnior, por ter autorizado minha excepcional inscriçáo junto a 59 promotores
e 60 estagiários do MP que puticiparam desse evento.
Embora em alguns plenários os jurados fiquem à direita do juiz, com
20 Disponível -em: <http://WWw.tjsp.jus.br/Institucional/Museu/PaI:l.cioD:l.J ustica/
réu, defensor e PMs à esquerda e, em o~tros, essas posiçóes se invertam, Default.aspx>. Acesso em: 1519/2012.
a distribuição dos protagonistas é basicamente sempre a mesma, sendo 11 N:I.pesquis:l.já mencionada (Nucei, 1999: 160,346.347), uma amostra de jurados
Q

"I uma constante o fato de juiz e promotor se posicionarem lado a lado, do 3 Tribunal do Júri de São Paulo respondeu às seguintes perguntas: "Acha correto
o promotor sentlU'-se:lO lado do juiz no plenário~" 26,55% responderam que sim:
de ,frente para a assistência.
20.58% que não e 52,88% se ded:a.raramindiferentes. "O promotor deveria sen,taNe
:1.0 lado do defensor no plenário?" 15,71 % responderam que sim: 28,98% que não e
O fato de promotor e juiz ficarem próximos, no espaço do plenário. passa
53,32% se dedaI':l.lamindiferentes. Essas respost:l.s,segundo Nucei, não revelam que:
aos jurados a impressão de que o jogo tem, de um lado, promotor e juiz
os jurados confiam mais no promotor-do que no defensor, devido à disposição dos

I
i!
como autoridades e, de outro, advogado e réu como comuns mortais; o mesmos em plenário, mas que "o cidadão leigo, menos avisado ou prudente" pode
se deixar influenciar por isso.
.!
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-63-

'---r~' __ .
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:1.
""tSu, •••.•••••." """"v

a mesa do juiz e às costas dos assistentesj é por de que o juiz controla o


fundOnáriO~
o Juiz
tempo dos depoimentos, sustentaçóes orais, apartes e intervalos.

No espaço vazio do palco, pode ser colocada uma cadeira, com uma
sala dos jurados
(de lanche)
• • ••
• promotor: •
p~uenamesa, para que testemunhas e réus deponham, o que sempre sanitário
• jurados
fàzem de frente pata o juiz e de costas pata a audiência. • defensor "\-~';,:>,"\
Os plenários, portanto, seja por sua estrutura fuica. seja pelas regras
processuais penais que conduzem as sessões, constituem um campo em
que as posições dos ocupantes estão bem definidas e têm significados
que nos cabe ler e interpretar. 'Existe ali uma "gramática espacial" a ser
decifrada e que pode ser ressignificada. como as demais regras, cada vez
que ê acionada.

Os pr6prios jurados, representantes do do entre o mundo "de fora" e o


"de dentro". entre ser leigo e tec acesso a saberes técnicos, ao chegarem aos
plenários costumam ser orientados, por cartazes elou por funcionários.
a se sentar do lado esquerdo da assistênci~, devendo os "S1'S.estagiários,
familiares de réus e vítimas e assistentes de um modo geral" ocupar os
lugares da direita. Outro carcaz alerta com várias exclamações: "Durante
as sessões de julgamento, deverá ser mantido absoluto silêncio!!! Apare~
lhos celulates, bips e afins deverão set mantidos desligados!!!" PM

No interior dos plenários, os espaços destinados à atUaçãode cada pattici- Agura 2. Sala secreta padrão.
I
! pante não ~ estão delimitados como :mmbém ddimitam a sala enquanto
:!
um lugar especial; um lugar de jogo. ,Mesmo quando vazios, patecem
-- ------manter-1.iiiia aura não profiUia. ~nioocorrecom-templos âesocupaâos -
e outros locais sabiâamente destinados a rituais. Se observarmos atentamente os dois croquis que repreSentam o plenário
pamão (Figura 1) e a sala secreta padrão (Figura 2), perceberemos que o
A sala dos jurados, para onde eles se;retiram nos intervalos das sessóes,
espaço toral é dividido em três. O "dos fundos" (sala dos jurados e sala
:1 bem como a sala.secreta, onde proferem seus sigUosos votos definidores
secreta), reservado somente a jurados, operadores técnicos e funcionários
do desfecho dos julgamentos, talvez sejam os exemplos máximos dessa
do tribunal; o "do meio", que abriga. além desses atores, também réus e
circunscrição que especializa, sacraliza e sepata o mundo do rirual do
Í'Msj e o "dafrente", aberto a todos e ocupado por assistentes que podem
mundo cotidiano. Essas salas são espaços matcados para e pela cerimô-

I,
entrar e sair a qualquer momento. A única entrada pública costuma ser
nia, o que confirma que "a noção de jogo se associa naturalmente à de
gnatdada por um ou mals PMs.
sagrado" (Huizinga, 1980: 30).
'I
l -65-
-64-

,,'
~!

; 1I
Jogo, ritual e teatro
Júri -Jogo
Uma decodificação possível dessa gramática espacial é a identificação de
dois eixos imaginários: um horizontal (e), que liga o espaço ocupado os demais participantes seletos da missa (coroinhas, fiéis que lerão pas-
pelos jurados ao ocupado pelo réu e por seu defensor; e outro vertical sagens'da Bíblia, outros sacerdotes etc.), e, separados por.uma divisória
(~), perpendicular ao anterior, que liga o juiz e o promotor à assistência. de degraus e/ou de uma grade baixa, à frente do altar. os bancos para os
fiéis. A maior diferença entre o que se passa nos espaços do plenário e
Em torno do primeiro eixo (e), constroem-se os sentidos das narrativas
de igrejas católicas talvez seja que nestas o eixo imaginário pelo qual flui
que têm como objetivo persuadir os jurados. É o eixo pelo qual mais
a linguagem persuasiva é, principalmente, o que liga sacerdote a fiéis _
diretamente Ruem as palavras, a gestualidade e rodos os demais sinais da
o vertical (:t). Antigamente, no momento do sermão, da "conversa"
linguagem persuasiva dos oradores. No outro eixo (:t), em posições ho-
mais direta e informal entre sacerdote e fiéis, o pregador saía do altar e
mólogas e oPOStas,estão o juiz, o promotor e a assistência: o representante
ocupava o púlpito, situado em um ponto mais alto. porém inserido no
máximo da lei. o representante dos "interesses sociais" e representantes espaço reservado aos fiéis.
da sociedade. O promotor é quem mais circula entre os eixos vertical e
horizontal, pois necessariamente deixa seu assento ao lado do juiz para Tanto nas igrejas como nos plenários, temos atos de culto a valores
li
II se postar de pé. entre réu e jurados, durante suas arguições. Por esses morais. No caso da igreja, esses são metaforizados por deus, seus san-
li
eixos, em torno deles e, na verdade, fazendo-os se moverem como uma tos e interpretações de textos bíblicos pc:Iasautoridades consideradas
il hélice, circulam narrativas que impregnam todos os presentes, mesclando competentes. No caso dos plenários, a lei e as inr.erpretações de peças
I. regras e procedimentos legais com normas e valores sociais. O orador processuais permitem a metáfora dos códigos morais sempre em jogo
que melhor comunicar esseselementos com os enigmáticos e silenciosos nas narrativas de crimes.
1I
jurados e com a tensa plateia será o vencedor do jogo. Exatamente no
pOnto em que esses eixos se cruzam, as testemunhas e o réu depõem.
1I Arrebatamento, tensão, competição, futilidade e êxtase
Ainda é possível pensar que se sacraliza nesse "círculo mágico" do ritual
Em relação a esse caráter extraordinário do tempo e do espaço dos jogos
lúdico do Júri, especialmente no espaço aparentemente vazio e central do
e cultos, há algumas outras características que podem ser observadas nas
plenário, algo que está no limiar entre o divino e o humano: o exercício
sessões de Júri. tal como condensadas pelo famoso advogado Evandro
e o poder de julgar vidas e:morres. Talvez por isso. no momento de ouvir
Lins e Silva: "Ninguém ouviu grande defesa sem a vibração. o calor. o
a sentença, o réu ocupe o espaço central, postando-se em pé, contido,
tntusiasmo, o arrebatamento do advogado. Defesa sem vigor, s~m dedica-
de frente para o juiz e de COStaspara a plateia. Tudo o que esteve "em
çáo, sem sentimento, é defesa sem vida, fria. fadada ao insucesso, defesa
jogo" convergirá para ele no clímax do ritual.
de perdedor de caUSas.Os processos do júri fazem tremer o advogado"
Não por acaso essas leituras sugerem semelhanças entre a gramática (Silva, 1991: 18, grifos meus). É opinião corrence encre advogados e
espacial dos plenários e a de uma tradicional igreja católica apostólica promotores famosos do Júri brasileiro que. além do domínio técnico
romana. Nessa também temos as três divisões: o fundo do altar, ocupado das "regras do jogo", é necessário que os futuros "tribunos" dominem
pelo sacrário (secreto, fechado, só acessível ao padre e aos iniciados), o estratégiaspara bem usá-las: conhecimentos de oratória, uma gestualidade
meio do altar, com a mesa do sacerdote ao centro e cadeiras laterais para estudada, enfim, aquilo que o criminalista Thales Nilo Trein chama de
linguagenstÚJ plendrio (Trein, 1996).

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-67-

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Em palestra ministrada no cutSO O fUturo do júri no Brasi4 esse cri- necido tal como se portou dutante o julgamento da companheira: ar
minalista enfatizou o quantO a comunicação em plenário vai além das resignado diante do longo rirual e do desempenho de seus participantes,
palavras, chegando a mensutar que a linguagem verbal utilizada pot como se o fato de estar ali fosse, em si mesmo, o cumprimento de uma

advogados e promotores representa não mais que 7% do impacto que pena, independentemente do resultado.
causa nos jurados. Já a sonoridade de suas vozes (enfases e inflexão, além Já a tensão que promotor e defensor vivenciam durante as sessões parece
do ritmo das falas) é mais impactante (38%), perdendo somente para ser de outra natureza; está intrinsecamente relacionada aos desempenhos
suas performances corporais (55%)." que cada um conseguirá ter. Esse tipo de tensão, como diria Huizinga,

Dess~ mesmo ciclo de palestras participou um famoso promotor que, ao significa incerteza, acaso.
se referir ao "clima" do Júri, mencionou o quantO exige "gana", ou seja, (...) o jogador quer (...) conseguir alguma coisa diflcil, ganhar (...) e quanto
C'um estado de espírito de quem está arrebatado pda causa .23 mais estiver presente o elemento competitivo mais apaixonante se toma o
jogo. (...) o elemento de tensão lhe confere um certo valor ético, na medida
o ponto a destacar. portanto, é que a consciência de haver no jogo um
em que são postas à prova as qualidades do jogador: sua força e tenacidade,
I C'fazde conta" ou de se estar vivendo um tempo e um espaço artificiais
sua habilidade e coragem (...). Apesar de seu ardente desejo de ganhar, deve
não impede que ali se aja com seriedade, enlevo e entusiasmo a ponto sempre obedecer às regras do jogo (Huizinga, 1980: 14).

I de fazer com que assistentes e jogadores se sintam arrebatados


e distantes de suas vidas e preocupações cotidianas.
pelo jogo
"A alegria que está Embora não se possa afirmar que promotor
completo
e defensor abstraiam
as pessoas do réu e do juiz - a ponto de esquecerem
por
que, no
indissoluvelmente ligada ao jogo pode transformar-se não só em tensáo,
caso do primeiro, trata-se de um ser humano aguardando uma sentença
,I mas também em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois polos
que limitam o :imbiro do jogo" (Huizinga, 1980: 24). que decidirá os pr6ximos anos de sua vida (e, provavelmente, todo o
restante dela) e, no caso do segundo, daquele que preside a sessão -,
Tratemos dessas emoções em relação aos réus. Normalmente, é de mãos por vezes parece que eles apenas se concentram um no outro. Como
entrelaçadas e repousadas sobre as pernas, de cabeça baixa e absortos me declarou um juiz: "O réu e sua versão praticamente se tornam se-
naquilo que I(SÓ eles sabem" que a maioria dos réus permanece ao longo cundários em cena. É como a bola no futebol. Ela é essencial para que
das sessóes de julgamento pelo Júri. Quando muito, há momentos em
+-~. ----que-deixam- certa tensão transparecer no-olhar,-em-expressóes faciais_e_
o jogo aconteça, mas o que de fato importa
eles fazem. Há faltaâora-das
são os dois times _eo que
jogadas; sem-bola. E o juiz é esquecido,
num balanço compulsivo de pernas e pés. A maior parte deles, no en- em muitos lances" .24
canto, permanece como permaneceu o "Sr. S" durante uma entrevista
Os dois "times" do Júri, acusação e defesa, representados pelo promotor
que me concedeu. Ele assistia ao julgamento e fora coautor, já julgado e
inocentado, do crime pelo qual sua companheira também estava sendo e pelo advogado do réu nessa metáfora do magistrado, normalmente
jogam em lados aparentemente opostos, mas podem também jogar do
julgada. Imagino que, durante seu próprio julgamento, tenha perma-
mesmo lado, defend~ndo uma tese comum, e ainda assim manter o jogo
interessante e tenso (possibilidade analisada, em detalhe, no próximo
22 21 de junho de 1999. das 9h às 12h; palestraintitulada Nnlro/ingulstica emplmdrio.
13 Palestraministrada pdo Dr. Octávio Borba de Vasconcd~sFilho, em 31 de maio de
1999. das 9h às 12h e intimIadaA postura do Promotor de f~a on plnuirio. :u Entrevistaconcedidapor um dos ju£zesdo 111Tribunal do Júri, em 18/7/2001.

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"I I,
Jogo, ritual e teatro

item deste capítulo). Da mesma forma. nada garante que façam uma
Júri-Jogo

na sala secreta, mesmo não havendo no Brasil debates entre os jurados


bela "partida" se estiverem em "lados" opostos. É a tensão. enfim. que
fi para que cheguem a uma decisão unânime, como ocorre nos tribunais
dçtermina o quanto o jogo pode ou não arrebatar seus participantes e
" do Júti dos Estados Unidos."
assistentes, e essa dependerá do quanto os argumentos de um e de outro
sensibilizarão os jurados e a "torcida". Por essa razão, mais do que absolver ou condenar um réu, uma sentença
absolutória ou condenatória no Júri muitas vezes indica o vencedor e o
Quanto ao juiz, segundo Huizinga (1980: capo 4, passim), desde a Gtécia
petdedot da batalha atgumentativa.
antiga, nos litígios judiciários de caráter "agonístico" (competições de
caráter divino submetidas a regras fixas, entre as quais uma determina- O desejo de ganhat, típico de qualquet jogo, está, portanto, muito pte-
va que os adversários invocassem a decisão de um árbitro), as atenções sente no Júri e mesmo em outros espaços em que são tomadas decisões
já costumavam se concentrar nos "comendores", sendo o árbitro uma judiciais. Inserido em uma dinâmica em que há atores se relacionando
espécie de guardião das regras do jogo. de modo complexo. mais do que palas definidos e fixos, esse anseio
Certa vez, um amigo juiz comentou com Huizinga: está no cerne de um processo que os "jogadores" constroem e ao qual
ao mesmo tempo se submetem.
O estilo e o conteúdo das intervenções nos tribunais revelam o ardor
esportivo com que nossos advogados se atacam, uns aos outros, por meio Na comparação ampla que Huizinga faz entre o que chama de "nosso
de argumentos e contra-argumentos (alguns dos quais são razoavelmente pensamento" e "pensamento primitivo", ou na comparação, mais es-
sofisticados). Sua mentalidade, por mais de uma vez, me fez pensar .naque- pecífica, entre um processo judicial moderno e julgamentos realizados
les oradores dos processos adat- direito aplicável aos indígenas nas índias por "sociedades primitivas", ele reconhece ~ existência de três formas
Holandesas - que, a cada argumento, espetam na terra uma vara, sendo lúdicas comuns: o jogo de azar, a competição e a batalha verbal. Mas,
considerado vencedor aquele que no final puder apresentar o maior número ao desenvolver essa comparação, ele afirma que sociedades, culturas ou
de varas (Ibid.: 89).
"espíritos primitivos" experimentam, mais do que ((nós", o problema
ii
No jogo do Júri, as varas adat parecem ser os argumentos que, ao longo concreto de ganhar ou perder, sem que predominem abstrações como
de suas sustentações orais, promotor e defensor reiteram, insistentemente, a disputa entre bem e mal. As "culturas primitivas" fundiriam, num só
"1: tentando acertar a sensibilidade dos jurados. Arremessam-nas com seus pensamento complexo, as ideias de decisão por oráculos, por juízo divino,
t olhares, gestos,expressõesfaciais,corporais e vocais. Fotos escabrosasdoes) POt sorte, POt sortilégio e POt sentença judicial, de tal modo que, pata elas,
~ corpo(s) da(s) vitima(s) e laudos complicados, depoimentos testemunhais ganhar levaria à posse da verdade e do direito e não o contrário, ou seja,
[:
e provas materiais ajudam na precisão dO'arremesso.Tudo é "espetado na não são a verdade e o direito que levam à vit6ria (Huizinga, 1980: 93).
I terra", nos corações e mentes dos jurados e, ao final; estes revelam, atravéS

I
de seus VOtosaos quesitos, quantas "varas" ficaram "bem espetadas".
2S Esta importante diferença entre os tribunais do Júri brasileiro e norte~americano
Uma:vez que, ao Votar,os jurados não podem se abster e suas alternativas mereceria wn capítulo especial, pois temos, de um lado, o pressuposto de que a
liberdade de consciência implica a ausência de debate, o silêncio e a consulta às
são apenas as cédulas com as quais responderão secretamente SIM ou
;1 convicçõesmais íntimas e, de outro, o pressuposto de que a liberdade de consciência
NÃO a cada quesito apresentado, a tensão encontra seu apogeu e seu fim develevarà troca de idcias,ao debate. a decisõesfundadas em consensos. Este tema
já motivou inúmeros artigos e uabalhos acadêmicos,especialmentena áreajurídica.
valendodestacarRangd (2005).

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Jari-Jogo

S6 numa fase mais avançada da experiência religiosa, a fórmula será a se-


Numa oratória cuidadosamente estudada e extremamente hábil, o açwador
guinte: a competição (ou ordálio) é urna revdação da verdade e da justiça
desenvolve sua argumentação. O humor, a sátira, alusões sutis, provérbios
porque há uma .divindade que dirige a queda dos dados ou o resultado da
i batalha. (...) A luta pela vit6ria é sagrada em si mesma, mas, uma vez animada
apropriados à circunstância, o escárnio e o frio desprezo acompanhados de
vez em quando pela mais viva gest,icu1açãoe por tremendos berros, tudo isso
por concepções nítidas acerca do bem e do mal. a Juta passa a pertencer
tende a reforçar a acusação e a confundir o acusado (Huizinga, 1980: 100).
11
à esfera do direito (...). Todavia. o fenômeno fundamental em todos estes
I casos é o jogo (Ibid.: 94). Abordar o Júri como um ritual lúdico, pottanto, é petcebet não s6 os
atores técnicos, especialmente promotor e advogado, como contendores
Se considerarmos que Homo ludem foi publicado em 1938, tornam-se
em uma batalha verbal, mas observar em função de quais estratégias essa
mais compreensíveis as constantes oposiçóes que Huizinga faz entre
"pensamento primitivo" e o "nosso pensamento", as quais ele elabora sem batalha é desenvolvida: quem mais participa, como o faz e por que o faz.

praticamente relativizar os dois "tipos". Tal relativização. especialmente O caráter sacralizado e rigoroso dos rituais judiciários 'não exclui suas
para se pe~sar o Brasil atual, é de fundamental importância, conforme qualidades lúdicas, assim como o caráter competitivo e lúdico de práticas
já apontaram antrop6logos como Robetto DaMana e Robetto Kam processuais não exclui posturas sérias e arrebatamento dos praticantes.
de Lima. segundo os quais ambiguidade e sincretismo são claramente Nessas duas hipóteses, que revelam faces de uma mesma moeda, o jogo
perceptíveis nas relações entre as chamadas "ordem pública" e "tradição submete-se a um sistema de regras restritivas que colocam seus partici~
jurídica" brasileiras, uma vez' que elas são, ao mesmo tempo, modernas, pantes no interior de um domínio ordenado e antitético.
potque baseadas na igualdade e no individualismo. e tradicionais. potque
baseadas em ptivilégios e "jeitinbos" (DaMatta, 1983; Kant de Lima,
1991 e 1993). Acordosde bastidotes
Mesmo quando promotor e defensor fazem um acordo para condenar
Passar dessa digressão das ideias de Huizinga sobte as tdações entre
ou absolver o réu, sempre momentos antes do início de uma sessão e
direito, processos judiciais e jogo a trabalhos de antropólogos que pen-
na presença do juiz, ou seja, nos "bastidores" do Júri, isso não significa
sam essas relações no Brasil contempoclneo pode nos auxiliar em uma
i análise sobre o Júri enquanto esfera de luta vetbal na qual, nos julga-
que essa sessão se tornará um "faz de conta" desinteressante. pois as
lJ_ me!1t_Q.~,.p-redominam. tanto..formas~primitivas" invectivas, insultuosas __
sustentações orais, de qualquer modo, deverão persuadir os jurados a
.votar-e,'Para tanto; "elas-deverát)'ser bem deseIfvo1viâils ao longo de-iodo
"; II e veementes quanto argumentos "civilizados", jurídicos, meticulosos
o julgamemo.
e deliberados. Foram várias as sessões em que presenciei promotor e
I advogado ttoeando "farpas" de natureza pessoal, com palavras de baixo Segundo alguns juristas, esses acordos ofendem a soberania dos vere-
calão, ao mesmo tempo que invocavam preceitos técnicos com base em dictos proferidos pelo Júri, inclusive porque o pro'cesso penal brasileiro,
um comido jargão jurídico. salvo exceções relativas a infrações consideradas de "pequeno potencial
ofensivo", não prevê a possibilidade de transação ou negociação enrre
O pt6prio Huizinga cita um caso de julgamento. ocottido na Abissmia,
Estado-acusador e réu, ou seja, não prevê acordos entre o representante
que poderíamos atribuir a um julgamento atual, realizado nos tribunais
paulistanos do Júti:
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l!oi

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---.-

" i/
Jogo, ritual e teatro
Júri-Jogo

do Ministério Público e o defensor do réu. Contudo, são relativamente


26
que denotem um encontro de opiniões a ser devidamente exposto aos
comuns situações em que o juiz presidente do Júri presencia tais acordos. jurados para que eles o av~iem.28
Promotor e defensor, por exemplo, podem concordar em relação à res-
Todavia, é unânime que acordos não devem ocorrer apenas para tornar
ponsabilidade do réu mas pedir aos jurados que o condenem pela prática
as sessões mais fáceis. rápidas. mecânicas e consequentemente "não ar-
de homicídio privilegiado, caso em que a pena diminuirá de 1/6 a '/3 (art.
rebatadoras", a fim de que promotores, advogados e juízes, em poucas
121, ~ I' do Código Penal). Nessa hipótese, o ptomotor abre mão de
horas, se desincumbam de suas tarefus. Quando isso acontece e os jurados
Sustentar eventuais qualificadoras do homicídio e o defensor não pede a
percebem "o jogo de carras marcadas", duas são as decorrências mais
absolvição por negativa de autoria ou pela ocorrência de excludentes de
comuns: ou eles COntribuem para que o julgamento termine o mais cedo
ilicitude ou de culpabilidade. como alegar legítima defesa. por exemplo.
possível.para que todos possam logo ir embora, ou formulam perguntas
Também há situações em que o acordo é pela absolvição do réu, caso em
que demandam maiores explicações e até votam' contrariamente à tese
que somente o promotor abre mão de sustentar a acusação e concorda comum apresentada.29
com o defensor (Nucci, 1999: 124-129).
De um pon~o de vista lúdico, pensando a sessão como um jogo, julga-
De um ponto de vista ético-jurídico, há quem aponte como maior
mentos COstumamnão arre.batar ninguém quando promotor e advogado
problema de tais acordos o fato de o Ministério Público e a defesa,
estão desinteressados pelo seu transcorrer, o que pode se dar independen-
ao apresentarem uma tese comum, deixarem de informar os aspectos
temente de ter ou não havido "acordos de bastidores". Presenciei tanto
contraditórios da causa aos jurados, como versões divergentes a respeito
julgamentos em que promotor e defensor defenderam, com ardor, uma
das intenções do acl£sado ou de seu envolvimento com a vítima, o que
tese comum, tornando o jogo absorvente, quanto julgamentos em que as
pode induzi-los a acatar a única tese apresentada (Nucci, 1999: 125).27
teseseram conflitantes, porém apresentadas sem "brilho" ou, como diria
Outros profissionais do Júri não se opõem à ocorrência de acordos, desde

21 Essa é a opinião que o promotor Dr. Octávio Borba de Vasconcelos expressou ao


final da já mencionada palestra ministrada no curso O ftturo do Júri no Brasil, em
26 Um estudo detalhado desses acordos e de suas possibilidades legais foi desenvolvido 31 de maio de 1999.
por Carmen Sílvia Fullin, no Programa de Pós.Graduaçáo em Antropologia Social da
USp, cujo doutorado eu orientei e foi defendido, em fevereiro de 2012, com o título n Considerando a totalidade das sessões a que assiui integralmente ao longo dos quatro
Quando o n~âo ipunir: uma aná/is~ ~tnogrdjica dosjuizados Esp~ciais Criminais ~ anos em que frequentei os Tribunais do Júri de São Paulo, presenciei não mais do que
suas sanfó~s. 20% de situações de "jogo rápido". Talvez das sejam bem mais frequentes, mas não
27 Quase a totalidade da amostra de jurados (87,83%) do 311 Tribunal do Júri de São posso tirar conclusões a respeito, uma vez que não adotei um critério estrüamente
Paulo, envolvida na pesquisa já mencionada, declarou saber ter autonomia para decidir aleatório para selecionar as sessões. Os dois casos mais evidentes de "jogo rápido"
que presenciei ocorreram em 1999. Um se deu em 22 de fevereiro, no I11Tribunal
casos em que promotor e defensor sustentam a mesma tese. Contudo, ao responderem
se.nessas situações sentiam~se compdidos a acatar tal tese, 39,16% declararam que (quando ainda localizava.se na Vila Mariana). Advogado e promotor defenderam a
condenação do réu por homicídio privilegiado e de recebeu pena de dois anos, com
sim; 15.49% que às vezes e 38,27% que não. O juiz que desenvolveu essa pesquisa
direito a sursis. No outro caso, em 5 de março, no 311 Tribunal (então localizado no
de opinião lembra ainda que, de um total de 1.524 julgamentos realizados, nos últi~
mos 18 anos, naquele tribunal, houve somente um caso em que Ministério Público bairro da Saúde), o réu foi absolvido por falta de provas, de acordo com o próprio
e defesa pediram a absolvição do réu e o Conselho de Sentença o condenou (Nucci, promotor. No primeiro caso, a sessão durou uma hora e 15 minutos e no segundo
1999: 128,353 e 354). uma hora e meia. Em ambos, os jurados, embora visivelmente amuados, não criaram
qualquer obstáculo para o rápido desfecho.

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~~", '''u<u '" I.C<IUV JCiri-Jogo

lhales Nilo Trein, sem o domínio da linguagem devida: discursos exces- mas que nenhuma testemunba confirmara ter sido o réu agredido por
sivamente técnicos, redundantes e longos; voz monoc6rdia ou inaudível; ela. Elevando seu tom de voz. gesticulando bastante e aprox.imando~se
mau uso de expressões corporais e de recursos performáticos. Portanto. ao máximo dos jurados. assim concluiu sua argumentação:
promotor público e advogado de defesa são os maiores responsáveis pelo
O réu tinha outras alternativas. O que não tinha era preparo para war uma
potencial arrebatador do jogo do Júri: são seus principais jogadores.
arma de fogo e ser segurança. Aliás, nunca fez um curso, um treinamento.
Acompanbei especialmente dois julgamentos em que promotor e de- Todos os dias, nesta cidade, sabemos de pessoas que, usando indevidamente
fensor atuaram como parceiros. defendendo. com empenho, .teses se- uma arma, saem por aí, matando (...). A vítima também conuibuiu para o
melhantes, de modo que as sessões não se rornaram enfadonbas. O eixo que aconteceu, pois estava embriagada, Xingou. Mas pagou com'a própria

desses julgamentos deixou de ser o embate entr.e versões conflitantes e vida! E o réu, que não sofreu sequer um arranhão? Como pagou por ter
tirado a vida da vítima? (...). Enfim, o réu não merece ser absolvido. Deve
passou a girar em torno da habilidade dos jogadores em harmonizarem
ser condenado por homicídio privilegiado e cumprir uma pena de quatro
seus argumentos.
anos. Esse valor de pena, conforme prevê a lei, dá ao réu o benefício do
Coincidentemente, nesses dois casos, os réus estavam envolvidos com 40:
sursis, ou seja, de cumpri-la em liberdade, não podendo portar armas. Mas
segurança privada. Em um deles, à época do crime, o réu era segurança poderá ter uma vida normal e é justo que a tenha, pois é primário e possui
em uma padaria e, em outro. o réu era policial militar. mas fazia "bicos" família. (...). Peço, portanto, que os senhores condenem esse homem por

como segurança. No primeiro, não presenciei o acordo. pois, como des- homicídio privilegiado, pois, se assim decidirem, estarão impedindo que
o réu torne a matar. [Enquanto pronunciãva essas palavras finais, punha e
conhecia juiz. promotor e advogado, não tive acesso aos "bas~idores".
tirava a arma de cima da mesinha, em frente aos jurados, fazendo barulho].
No segundo, presenciei-o. Em ambos. as sustentações orais do promotor
Peço a Deus que ilumine a mente de todos vocês para que saiamos daqui,
c: da defesa mantiveram_ uma certa tensão, embora .convergissem para .. nesta_tarde,.fazendo justiça!
uma tese comum.
o defensor, inicialmente inseguro, sem olhar para os jurados e mais
No "caso Segurança",30 o promoror. durante uma sustentação relativap fazendo um relato de sua carreira no Júri do que entrando no mérito
mente longa (das 13h55 às 15h), bem articulada, baseada em argumen- da defesa, impôs-se aos poucos e também desenvolveu uma sustentação
tos claros e acompanhados de uma gestualidade congruente com seu oral articulada e relativamente longa (das 15hl0 às 16h05). Visivel-
discurso, enfatizou que a vítima, segundo a perícia. estava embriagada,
i"
mente) "ganhou" a atenção dos jurados quando. na metade final de seu
discurso, disse:
* 18/3/1999, etnografia realizadadas 13h40 às 16h30 no Plenário 11do 3D Tribunal
Triste é o país que propicia a necessidade de se ter seguranças como o réu,
do Júri (então localizadono bairro de Santo Amaro): o réu, negro. 25 anos, grande
e fone, foi preso em flagrante, portando uma anna de fogo. Confessouter matado seja porque não há segurança pública suficiente: e eficiente, seja porque há
a vítima, um homem de compleição semelhante à sua. O réu "£aziasegurança"na desemprego em massa. (...). Quem é esse réu? É alguém que não teve a
padaria em que a vítima apareceu para beber. Um amigo do r6I também estava oportunidade de estudar como muitos dos que estão aqui (...). São pessoas
presente e, dias antes, receberaum carro como pagamento de uma dlvida.A vítima como os senhores [apontou para os jurados e para a plateia] que precisam
conhecia ~ devedor e, ao sair embriagada da padaria, socou o carro, momentO em
que foi interceptada pelo réu. Atracaram-see o réu desferiupJhequatro tiros (trá no e requisitam seguranças como o réu. (.••). Que país desgraçado é este, pois
peito e um no abdômen), matando-a. Segundo o réu, ele teveque optar entre matar este homem deveria integrar os quadIos da Polícia Militar ou da Polícia
ou ser morto. Civil. (...). Não tenham raiva de seguranças •.. É uma profissão que, e~bora

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Jogo, ritual c teatro
Júri-Jogo
contribua para o aumento da criminalidade, atende aos anseios da própria
sociedade que se sente desprotegida. Isto se chama miséria, desemprego, rativas convincentes e convergentes. Os fundamentos por eles utilizados
necessidade. (...) Os jurados que têm discernimento devem ter percebido criaram condições para que tais narrativas fizessem eco junto aos valores
que o réu não é um bandido, por isso a tese da defesa coincide com a do MP. dos jurados ou, em outras palavras, para que fossem por eles percebidas
como verossímeis.
Após lembrar que a vítima "não era nenhum santo" e de fazer uma breve
dissertação sobre os efeitos depressivos ou excitantes da embriaguez, en- No "Caso ex_PM"31, minutos antes de a sessão ter início, promotor
fatizando que "todos somos agressivos, m3$, normalmente, temos freios", e defensor acordaram, na sala secreta, diante do juiz e de mim, que
reconheceu que o réu não agiu em legítima defesa, porque se excedeu retirariam tanto uma das qualificadoras do homicídio atribuído ao réu
nos disparos. Finalmente, encerrou sua sustentação com argumentos quanto do homicídio em que ele era acusado como partícipe. 'Retira-
comrários à impunidade: da de qual delas?", perguntou o juiz. "Eu decido e o colega advogado
me acompanha", respondeu o promotor. O advogado assentiu, com a
Nós pagamos as comas dos que estão presos! Uma pesquisa recente constatou
que cada preso custa para o Estado mais ou menQs duzentos ou trezentos cabeça, e o juiz comentou, com ar meio zombeteiro: "Prestem bastante
dólares por mês. Se o réu ficar em regime abeno, nós não pagaremos suas atençáo, então, no que um e Outro vai dizer, hein!". Em seguida, em
contas! E não pensem os jurados que o réu ficará impune, como se estivesse tom bastante informal, os três comentaram que a nova pena seria de 14
em férias. Uma condenação de quatro anos, neste país, não se confunde com anos, o que, na prática, significaria aproximadamente dois anos e meio
impunidade, pois, se houver descumprimento das prescrições estabelecidas, em regime fechado. Já a caminho do plenário, o promotor comentou
o réu regredirá para o regime fechado. No 3 Tribunal do Júri de Santo
0
comigo: "Na prática, mesmo, isso significa liberdade para o réu, porque
Amaro, ninguém põe azeitona na empada do Outro. Se o MP e a defesa, se fosse eu, desapareceria. O homem que está sendo julgado hoje não é
portamo, têm uma tese comum é porque é a mais justa. E há um jurado
mais o mesmo de dezesseis anos atrás. É s6 ele comprar uma passagem
antigo aqui que sabe bem disso!
di Itapemirim [empresa de ônibus] e sumir".
Promotor e defensor, portamo, concordaram com o despreparo do réu
O acordo e esses comentários poderiam levar qualquer um que os presen-
para ser segurança e com o consequeme excesso de sua reação perante
i í ciasse à conclusão de que aquela sessão seria um jogo desinteressante de
a vítima. Também convergiram ao apontar "defeitos" na vítima que
cartas marcadas. Não foi o que ocorreu; a sustentação oral do promotor
teriam contribuído para causar sua própria morte. O defensor, ainda,
ao identificar os jurados classe média como empregadores de seguran-
ças particulares com perfis semelhantes ao do réu, fez deles, ao mesmo II 15/8/2001, e::mografia
realizadadas 12hàs 16h45no Plenário7 do I Tribunaldo Júri
Q

tempo, cúmplices da situação e avessos a ela, pois os colocou ao lado Oá uansfe::ridoparao f6rum da BarraFunda):tratava-sedo terceirojulgamentodo réu
por autoriade::um homicídioduplame::ntequalificado(motivotorpe combinõ\docom
do réu, mas pediu que o condenassem. Por fim, promotor e defensor 1- rttUf$Oque:impossibili[Qua de::fc=sa
da vítima, incisosI e IV do art. 121 do CP) e por
fizeram convergir novamente seus discursos ao afirmarem que o sursis
pa.rticipaçãoem outro.homicídio, igualmente qualificadoduas vezes.No primeiro
não significava impunidade. julgamento,foi conden2doa 35 anos, mashouveanulaçãopor falhatécnicano libelo
acusatório.No seguindo,foi novamentecondenado, a 31 anos, e houve protc=stopor
No jogo que se desenvolveu durante essa sessão, defesa e acusação s"airam novoJúri (recursopossível,à época,pois a pc=naexcediaa 20 anos). Ficou detido por
i~ vencedoras, pois conseguiram arrebatar os jurados ao construírem nar- apenasoito dias, em prisão disciplinar.O crime ocorreuem 23/8/1985. Consta que
o réu,junramemecomseu emeado, matou doisho~ns que eram irmãos,no interior
de um barraco,porque, tempos antc=s,estc=s o haviam roubado.
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foi longa (das 13h36 às 15h20), pois ele leu várias peças processuais e decisão dos jurados e disse que, ainda assim, eles não eram obrigados a
as comentou detalhadamente. Contou ainda múltiplas micro-histórias acatar tal expectativa. Contudo, acabou havendo uma votação única, para
que enuecruzou de forma nem sempre clara, colocando no rosto dos todos os quesitos, e a tese comum da defesa.e da acusaçáo foi acatada.
jurados, em certos momentos, uma expressão de incompreensão. Até as Este me pareceu um jogo bem articulado entre promotor e defensor,
15h05, havia somente reiterado o pedido de condenação. Só então pediu mas, ao mesmo tempo, bastante arriscado. Bem articulado porque,
aos jurados que negassem o motivo torpe (vingança), pois nada provara como a tese comum baseava-se em uma dúvida (existência ou não da
que as vítimas tinham assaltado o réu e que este, depois, as procurara vingança do réu em relação às vítimas), tanto os que o considerassem
para se vingar. Um jurado, não sarisfeito, perguntou se existia boletim de vingati~o quanto os que não o considerassem poderiam chegar à mesma
ocorrência (BO) desse suposto assalto. Foi o defensor quem indicou as conclusão: exclusão da torpeza. O risco era o de algum jurado concluir
páginas em que o BO se encontrava e o promotor as leu, enfatizando as ter havido vingança e considerar os homicídios duplamente qualificados.
vagas descrições dos assalrantes. Encerrou concluindo que "(...) o passar O juiz, sem dúvida, contribuiu para a efetivação do acordo, ao reiterar,
do tempo é quem mais tem ajudado o acusado". com firmeza, a convergência das opinióes do promotor e do advogado
A sustentação oral da defesa foi um pouco mais curta (das 15h50 às quanto à inexistência de torpeza.
16h12) e, logo de início, o advogado afirmou ter opinião semelhante à do Outro fator que pesou no desfecho, segundo minha percepção, foi a
Mp, exceto em relaçáo a um ponto. Defendeu a tese de que a vingança s6 própria figura do réu: homem branco, barba e cabelos grisalhos, de
é qualificadora de rorpeza quando representa uma maldade exacerbada e meia-idade, muitas rugas, estatura mediana, nem magro nem gordo,
uma absoluta falta de escrúpulos. Citou, como "exemplo clássico", o pai bem-vestido, capanga pendurada -num dos ombros, ar cansado e olhar
que mata o estuprador da filha, caso em que sua vingança tem relevante E"}~~!?1¥_an_te se~ interrogat6rio, em plenário, re1~ltouque, depois que.
valor moral, até justificirido a diiiliniiição âe sua pena. foi expulso da PM, tornou-se balconista de padaria, motorista de táxi
Confrontou sua arguiçáo,com a do promotor e concluiu que, por moti- e, finalmente, caminhoneiro de uma empresa. Contou ter uma com-
vos diferentes, ambos pediam a condenação do réu sem a qualificadora panheira há 25 anos, e seis fi.lhos.Todos esses detalhes, provavelmente,
Ir, da torpeza. Para melhor se justificar, escreveu em um quadro, próximo pesaram no jogo e o tornaram absorvente, não por haver versóes opostas
!ti
aos jurados: entre promotor e defensor, mas por haver uma versão comum entre eles
ir!
I"; Promotor
-
/

Defesa
e uma possível oposição a ela por parte dos jurados.
!,
não existiu torpeza. apesar de ter havido vingança.
Acordos, ponanto, fazem-se presentes em muitos jogos e não neces-
não existiu torpeza porque não existiu vingança
Onexistênda de provas ele que as vitimas eram mas por motivo relevante (existência de p~as de sariamente facilitam seu desenvolvimento ou abreviam seu término.
assaltantes) que as vitimas eram assaltantes)
Conforme vimos, especialmente em jogos de persuasão, não bastam
tese comum", nAo existiu tofPeza
dois persuasores, que a princípio deveriam 'estar em oposição, entrar em
," acordo para que a persuasão comum se efetive. É preciso que cada um
i'
" Alguns jurados expressaram ter dúvidas, olhando desconfiados e com persuada bem, o que implica interagir com os alvos da persuasão (com
os cenhos franzidos para o promotor e o defensor. Na sala secreta, o os jurados, no caso). Nenhum acordo prévio garante essa interação, pois
il juiz reiterou que, por motivos diferentes, as partes esperavam a mesma
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Jogo, ritual e ~tro
Júri-Jogo
ela se faz "em cena" e está à mercê de múltiplos fatores (a importância do
que se estabelece "em cena" é um dos principais pOntos desenvolvidos consequentemente, aos argumentos que as sustentam. Valores típicos
no Capítulo 5). das camadas sociais média e alta, por exemplo, surgem nos discursos de
acusadores, defensores e até de testemunhas e dos pr6prios réus como
sinônim~s de "vida boa" ou '(correta". Por isso, perpassam muitas argui-
Jogos criam ordem e são ordem
ções e depoimentos valores tais como ter família nuclear. monogâmica
Desdobrando um pouco mais as características já apontadas, podemos e "unida"; ter trabalho ou uma profissão formal que implique ser mão
afirmar que os julgamentos judiciais, em geral. e os processados pelo de obra qualificada; ter casa, de preferência pr6pria, de alvenaria e não
Júri. em particular, introduzem na confusão da vida e na imperfeição situada em favela;ter carro, também próprio, devidamente lacrado,-licen_
do mundo uma perfeição temporária e limitada. ciado e, de preferência, "da moda"; ter "cultura", o que é compreendido
como ser escolarizado e usar um português gramaticalmente correto; ter
Nos autos processuais e no transcorrer das audiências e sessões ple-
'(bons hábitos", não usar drogas, não frequentar bares e danceterias de
nárias, acontecimentos considerados "confusos", como famílias não 32
bairros pobres etc. Essaspercepções da vida em wna grande metrópole,
nucleares e não monogâmicas, trabalhos informais, a vida em favelas,
bem como Outras relacionadas ao medo, à violência e a diferenças e pro-
a circulação de carros roubados e de armas de fogo, o analfabetismo,
ximidades socioeconômicas aparecem como representações recorrentes
as gírias, as drogas. os bares e danceterias de bairros pobre~, não nos plenários do Júri.
apenas são captados a partir de diversos olhares e apresentados em
diferentes versóes como também, temporária e limitadamente, são Durante uma sustentação, um certo promotor disse: "Os Srs. já assisti-
organizados, recortados e recomados de forma tensa, porém regrada ram a documentários do Discovery Channel ou da National Geographic
e linear, com base na qual se desenvolvem argumentos e provas, da em que predador e presa andam lado a lado, antes do primeiro atacar a
defesa e da acusação, que por sua vez culminam em uma sentença, segunda? Nas faveIastambém é assim. Predador e presa andam juntos até
também aparentemente perfeita, acabada e coerente. o momento do bote".)) Jurados assinantes de 1V a cabo, interessados em

Conforme já apontou Castoriadis (1990: 125), as instituições sociais


exercem uma tríplice função: estruturam as representações do mundo;
32 Além do clássico livro de Mariza Corrêa em que são analisados esrereótipos do mas-
designam as finalidades das ações (do que deve e do que não deve ser feito) culino e do feminino levados ao Tribunal do Júri de Campinas, em casos envolvendo
e estabelecem tipos de afetos característicos. Portanto, o Júri, enquanto homiddios tentados ou consumados entre casais (Corrêa, 1983), vale lembrar a
pesquisa da historiadora Martha de Abreu Esteves, feita a partir de processos crimi-
uma das instituiçáes de nossa sociedade, é alvo e ponto de partida de expe-
nais referentes a crimes de atentado ao pudor, estupro e rapto ocorridos no Rio de
riências sociais compartilhadas que, por sua vez, caracterizam a sociedade, Janeiro entre 1900 e 1913, na qual ela demonstra o quanto moças mães solteiras, de
permitindo a seus integrantes compreenderem-na, ordená-la. aceitarem-na camadas populares e que viviam uma realidade sociomoral diferente das de "moças
com~ sua. Nesse mesmo processo, tais integrantes se compreendem e se da elite", pois trabalhavam até tarde e andavam sozinhas pelas ruas, acabavam, por
pressóes de seus pais, patrões e fofoqueiras da vizinhança, denunciando os país de
aceitam (ou não) como participantes de um mesmo conjunto. ".1 seus filhos. Nessas denúncias, ao se colocarem no papel de vítimas, reiteravam valores
No Júri, representações de mundo são estruturadas por acusadores e J da elite e, se não agissem assim, o Judiciário e "a" sociedade as transformariam em
rés morais (Esteves, 1989).
defensores para que, com base nelas, jurados adiram a tais estruturas e, i 33 15/8/2001, etnografia realizada das 12h às 16h45 no Plenário 7 do I~Tribunal do
Júri (Batra Funda).

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documentários de caráter científico e que entendem o nome em inglês Pelo que pude petceber das várias sessões às quais assisri, são múltiplos
dos canais de TV mencionados foram chamados a comparar o l'mundo os fatores que determinam seu ritmo e sUá. 'harmonia, e eles se fazem
da erinúnalidade" Com o "mundo animal". prc;sentesdesde os momentos iniciais, quando jurados chegam aos ple-
nárit?s e se sentam para esperar o sorteio que: determinará quais deles
Valores e afetos específicos, portanto, são reiterados no Júri, quando. por comporão o Conselho de Sentença e quais serão dispensados.
exemplo; considera-se a vingança presente em um assassinato não como
definidora de torpeza (agravante) mas como fator atenuante para o réu. Em uma dessas ocasiões,34estava eu devidamente sentada à direita de
Em um Casoem que se levanta esse tipo-de discussáo, O que realmente quem enrra, observando a chegada dos jurados que se encaminhavam
está em jogo, implícita ou explicitamente, são os valorês morais narrados para a esquerda, quando "no palco" entrou uma funcionária. Primeiro
a fim de que os jurados decidam o que socialmente legitima ou não uma ela observou, em uma folha de papel que repousava sobre a mesa. dos
pessoa matar outra. jurados, a "lista de presença" com os nomes dos 21 convocados (atu-
almenre são 25). Ela conferiu quantas assinaturas já havia ali, pois, à
O Júri, além de possuir regras que ordenam seu próprio funcionamento
medida que os jurados chegavam, eles iam até essa mesa e assinavam a
e que o comprometem uma vez desobedecidas. também ordena sua
lista sem que ninguém os orientasse. Então, com ar soberano, apesar de
matéria-prima, determinando como, quem e quando matar pode ser
ser muito miúda, ela se dirigiu a eles, postando-se de pé, exatamente
considerado um ato socialmente legítimo. diante da portinha divisória entre "palco" e "plateia". Com voz firme,
de quem dá ordens indiscutíveis, explicou, objetivamente, q~em deveria
Beleza retornar para o próximo Júri, dali a um mês, e quem estava dispensado,
por já ter cumprido a "quota". Jurados que estavam meio esparramados
~siII!_ c~mo em qualquer jogo, também nos julgamentos pelo Júri
- nas-cadeiras foram.se-ajeitando-à medida.que.,afuncionária_prosseguia: __
as regras que ordenam seu desenvoiV:imenro-esclo -previamente esta-
belecidas, mas o que imprime ritmo, harmonia e bel~za única a cada Eu não telefonarei para vocês, avisando-os do dia e da hora da próxima sessão,

"partida" é o modo como os jogadores fazem uso delas. Talvez seja exceto se ela for cancelada. caso em que telefonarei na véspera; Portanto,
anotem direitinho a data e a hora que estão escritos no quadro. Os faltosos,
cabível comparar as orientações do Código de Processo Penal e o
que não se justificarem, terão de pagar multa, conforme já sabem. E como
que de fato ocorre no plenário com a partitura de uma sinfonia e sua
não há dúvidas nem mais nada a dizer, isso é tudo.
, execução por uma orquestra.
Depois de sua retirada., a passos de marcha, estabeleceu-se um "clima"
I Cada sessão é única, pois jamais se repetem os mesmos elementos que a
de maior atenção e mesmo de tensão entre os jurados. Suas posturas
compóem. Até na hipótese impossível de um téu it à Júri uma segunda
I: revelavam maior expectativa. A sessão não começara oficialmente, mas
I, vez pelo mesmo crime e ser julgado no mesmo plenário. pelo mesmo
já começara oficiosamente, pois aquela funcionária, ao agir como uma
Conselho de Sentença do primeiro julgamento, diante dos mesmos
autoridade, inaugurou o "tabuleiro" do jogo. Visivelmente, ela experi-
juiz, promotor, defensor, testemunhas e assistentes - ainda assim, o
tempo teria passado para todas essas pessoas e isso transformaria seus
novos depoimentos, sua expressões e suas compreensões. O "colorido" •• 16/8/2001, sessão emografudadas 9h às 11135 no Pienário 7 do l' Tdbuna1 do Júd
da música seria outro. (Ba". Funda).

-84- -85-

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Jogo, ritual c teatro
Júri -Jogo
mentara apenas seu primeiro momento de glória naquela manhã: no
decorrer do julgamento, foi ela quem leu, para os jurados, trechos de Sr. S.: Eu não achei nada. A lei manda assim, então é assim.
algumas peças processuais a pedido do promotor, o que fez corrio se Eu: O Sr. acha que a lei mostra quem está sendo julgado de uma forma
vergonhosa?
fosse um arauto da justiça. A postura dessa funcionária parece ter dado
Sr. 5.: Eu não acho nada. {Pausa longa, mãos entrelaçadas sobre as pernas
o tom não só do ritmo da sessão e do modo como o juiz interrogou o
e cabeça baixa]. Mas o que a gente sabe ninguém aqui sabeY
réu (com rajadas de perguntas secas). mas também do modo como ele
depois leu o relatório para os jurados (com ar de quem já havia visto
esse filme antes). O mesmo aplicou-se às posturas do promotor (homem Comunidade de jogadores versus "outros"
grande. de aparência impecável, discurso retumbante e denso) e do
Outra característica comum a alguns tipos de jogos é o fato de pro-
defensor (mais franzino, porém firme e incisivo). Cada um fez uso de
piciarem à comunidade de jogadores a oportunidade de ela se tornar
seus tempos de fala em sintonia com. o mesmo tom autoritário que deu permanente, perperuando, mesmo depois de terminado o jogo, "(...)
início a todo o ritual.
a sensação de (... ) partilhar algo importante, afastando-se do resto do
o equilíbrio tenso que pode se estabelecer entre argumentos e COntra- mundo e recusando as normas habituais (... ). O clube pertence ao jogo
-argumentos de réplicas e tréplicas; o silêncio e as intervenções do juiz tal como o chapéu pertence à cabeça" (Huizinga, 1980: 15).
para pontuar e esclarecer dúvidas; a expectativa crescente com que se
O refeitório exclusivo dos promotores do 1<'>
Tribunal do Júri, a sala em
chega ao desenlace secreto da votação dos quesitos são todos fatores que
que se reúnem os procuradores, os cursos e congressos específicos para
compõem o fascínio de boa parte dos julgamentos pelo Júri, ao menos
I para os que estão mais diretamente envolvidos na estratégia do jogo,
profissionais dessa instituição são apenas alguns exemplos do quanto
contato entre eles se perpetua fora do espaço dos plenários, das salas de
o

como é o caso do promotor, do defensor e dos jurados. Cabe registrar


II que isso não parece se aplicar à maioria dos réus e de seus parentes, pois
audiências e dos corredores dos tribunais.
comunitário é muito comum entre jogadores
Esse tipo de comportamento
que, por dominarem as
suas participações tendem a ser mais a de objetos que estão em jogo do
regras de um jogo. acreditam também possuir outras afinidades.
I que a de jogadores:
i Eu: Quando foi julgado, o que o Sr. sentiu ao entrar nasaIae ficar sentado ali?
Não bastasse o forte caráter corporativo dos profissionais da área jurídica,
dentro dela se multiplicam,as associações de seguidores de uma mesma
Sr. 5.: Vergonha ..Pisar aqui é vergonhoso, sabe. É baixo. É ruim pisar aqui.
Eu: Por que é vergonhoso? carreira, como associações de magistrados, promotores e procuradores.
Sr. 5.: Porque a gente se sente um nada, entende? Um nada. A gente fica No caso do Júri, tem-se. ainda. uma aproximação dos que nele atuam.
ali, pra ser mostrado.

3S 19/7/2001, 16h15, Plenário 8 do I" Tribunal do Júri (Barra Funda). Entrevista


Eu: Quando o Sr. estava ali, o Sr. conseguiu acompanhar o que eles falavam?
concedida pdo marido da ré, o qual havia sido julgado e absolvido, no mesmo
Sr. S.: Mais ou menos. O que eu sabia é que era a lei e que era certo o que plenário, um ano antes. como coautor do mesmo crime pelo qual ela era julgada:
estava acontecendo.
homem, negro, 46 anos, embora aparentasse 60. Permanecemos sentados. em um
Eu: E o que o Sr. achou de sete pessoas serem chamadas para ouvir o que canto da assis(ência, durante um intervalo de mais ou menos 10 minutos. A ré foi
eles falavam e depois decidirem sobre sua vida? condenada a 12 anos de reclusáo, do qual foram abatidos 2/" resultando 4 anos,
dos quais diminuiu.se mais 11" restando 2 anos e 8 meses a serem cumpridos em
regime aberto.

-86-
-87-

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Cêr
Júri -Jogo

em função da especificidade dos ritos e pdo fato de que são constantes cumprimentos. Aos Senhores jurados. desde já, adianto que explicitarei os
os ataques ao caráter democrático da instituição, fazendo com que vá- fatoS da maneira mais simples e didática possível. pois coloco-me no lugar
rios se unam em sua defesa publicando artigos, organizando coletâneas, de Vossas Excelências e imagino como eu me sentiria sendo d.wnado a
ptomovendo palestras e dabotando teses. atuar, da noite para o dia, numa área profissional que não é a minha e da
qual nada conheço. $ei que é diffcil para leigos analisar um processo judi~ia1
Nos proptios plenários do JÚti, POt tudo o que já foi exposto, é bastante
e decidir. Respeito muito o que fazem.36
visível a separação entre "nós" e CloutroS",entre os "de dentro", com regras
e togas ptóptias, lugates demarcados, identidades e papéis definidos, e Outro bom exemplo, também extraído das saudações de um ptomotot é:
os "de fora", meros observadores anônimos, submissos às leis e costumes Excelência, é com honra, _respeito e prazer que me dirijo a um juiz tão
da vida cotidiana. competente. com tamanho conhecimento das ciências humanas e jurídicas,
militante da justiça (...); homem de realização da justiça. [Dirigindo-se ao
Compõem o grupo "nós" especialmente os operadores técnicos como
defensor:] Nobre colega da defesa, embora estejamos em lados opostos,
juízes, promotores, defensores, funcionários do tribunal e PMs, mas
!
,!
ainda, condicional e temporariamente. os jurados. Os "outros". são os
temos um ponto em comum: a busca da justiça. [Aos funcionários e PMs,
agradeceu] "a seriedade e dedicação com que executavam suas tarefas" [e. aos
réus, seus parentes e os assistentes das sessóes. assistentes do plenário:] "Um dos modos de se examinar o desenvolvimento
! I de uma nação é examinar como essa nação realiza a justiça. E, no Júri, isso
I: Embora o réu seja. aparentemente, o centro das atenções, mais uma Vf:].
pode ser claramente observado. [Finalmente, ao.cwnprimentar os jurados.
I percebe-se que ele não faz pane nem do grupo "nós" nem do "outros".
qualificou-os como:] (...) representantes da comunidade. (... ) Na origem
Ele é a razão de esses grupos estarem ali, mas não integra nenhum deles.
secular do Júri, ou seja, na leitura da pauta em praça pública, a comunidade
A separação "nós/outros" se evidencia claramente na hierarquia que julgava acusados de violar as leis. (...) ~ um serviço gratuito porque é uma
'H J - - -- promotore-defensor-estabelecem--;-aesdeo momento iiiiCiaide suas fiilas, relevante-missão-sociaI;31.
;
I
quando cumprimentam os presentes. Primeiro; prestam homenagens Essas saudações de promotores e advogados identificam, posicionam e
j ao grupo "nós". a começar pelo juiz. Depois, mencionam os "outros"
designam papéis. No primeiro dos exemplos citados, o promotor afirma
i.'
~ e, geralmente. por fim, já iniciando a arguição. saúdam os jurados. Eis ,I "compártilhar" as sessões com o juiz, evoca a instituição que ele repre-
! uma saudação típica que. embora feita por um promotor. poderia, com
as devidas adaptações, advir de um defensor: tii: senta, o Mp, para, em seguida. saudar a instituição
advogado. a OAB, compartilhando
representada
com esse um papel institucional.
pelo
Aos
Exmo. Sr. Presidente deste Ttibunal do Júti, Dt. (...). Pdo segundo dia funcionátios do Ttibunal e aos PMs é atribuído um papd instrumental,
consecutivo, tenho a honra de trabalhar com Vossa Excelência. cuja segu- de fazer funcionar a estrutura, e, aos assistentes, confere a função de
rança. simpatia e cordialidade conheço e admiro de várias outras sessóes que observadores. Certa ambiguidade reside na saudação aos jurados, pois,
compartilhamos. Aos defensores, embora desconheça-os. com certeza devem ao mesmo tempo que o promotor diz respeitá-los, identifica-os como
'f estar representando muito bem a OAB. O Mp, portanto. saúda a OAB. Aos
,),
, funcionários deste Tribunal, sem os quais as sessóes não se processariam;
'!: aos PMs, bravos cidadãos que gararitem a nossa segurança neste plenário e
f: 36 519/2001, sessão etnogrn&.da das 12hl0 às 17h22 no Plenário 9 do 111Tribunal do
fora dde; a todos os presen.tes que nos brindam com sua atenção, os meus Júri (Barra Funda).
,., 19/7/2001, por volta das 13h30 no Plenário 8 do I11TribunaJ do Júri (Barra Funda).

-88- -89-

.."--;7'---.-
~-_.

I,
/,
Jogo, ritual e teatro
Júri -Jogo
não mais que leigos esforçados. Esse mes~o promotor, no decorrer dessa
sessão,voltou a dizer aos jurados: "Eu estudei horas e horas este processo, e papéis são esda~ecidos, marcados e reiterados (papéis cuja hierarquia
ao passo que os Srs. não o estudaram sequer um minuto, o que dificulta será analisada no próximo capítulo).
ainda mais o trabalho que devem desempenhar. Além do estudo, a prática
também me faz concluir que a versão do réu é duvidosa". Festa
A maioria dos operadores técnicos Costuma dizer aos jurados que
Assi~ como o jogo, também a festa implica uma suspensão da vida
i eles desfrutam de um status transitório e especial c, por isso mesmo,
cotidiana e cria um tempo e um espaço artificiais. Se ainda partirmos
f. devem se portar de modo cuidadoso, Assim manifestou-se um juiz:
do pressuposto de que há urna relação, senão direta, ao menos indireta
"Os senhores devem manter uma posição semelhante à minha, de
I, neutralidade. Não devem deixar transparecer emoções e opiniões. (...)
entre festa da representação - entendendo-se representação enquanto
exibição de poder - e legitimação do poder, uma das deduçães pos-
I A partir de agora, os senhores passam a integrar o Poder Judiciário, na
síveis é a de que quanto mais pomposa fo~ a festa da representação
! função de juízes".38
I
i
de um Estado, mais ela convencerá de que seu soberano é poderoso
I Um promotor, nesse mesmo sentido, assim se manifestou: (Geettz, 1991).
I
I'

C•.. ) O que se espera dos senhores é que utilizem aqui sua experiênciade A representação, ao fazer com que os súditos atribuam consensualmente
vida. sua sensibilidade,a visãoreal do que ocorre nos nossosdias,mas que poder ao soberano, constrói sua legitimidade. E como ,o poder só se le-
o façam com introspecção, consultando suas consciências,em estado de gitima quando é concedido, e não roubado ou usurpado, é no processo
mediração.Enfim,trata-sede um compromissoque, como cidadãos.Vossas
de representação festiva que se dá sua efetiva legitimação,
Excelênciastêm com a realidadesocial (...)3"
i Há festa no Júri: no uso das togas, na Ocupação regracla do tempo e do
No segundo dos exemplos de longa saudação, o promotor identificou o
espaço e no soneio que determina quais dentre os jurados convocados
juiz a um sábio e a "realização da justiça" ao exercício dessa sab~doria.
serão juízes e, portanto, desfrutarão, durante algumas horas, da posição
'I O advogado foi posicionado no mesmo patamar do promotor (colegas),

Ili
11
pois ambos "buscavam a justiça". Novamente, funcionários e PMs foram
considerados tarefeiros, e a assistência apareceu como observadora e
aprendiz da justiça. Os jurados entraram como "representantes-mis~
de soberanos. A eles, temporariamente, é concedido o poder de repre-
sentar o Estado e as normas sociais. Mesmo os jurados dispensados são
brindados com o reconhecimento da "notória idoneidade".
!i
i II sionários" da comunidade. Todos, enfim, tiveram seu lugar e seu papel o Estado, por sua vez, legitima-se ao conceder o poder da "notória
definidos, e Q momento das saudações iniciais, aparentemente mecânico, idoneidade". Cada vez que um cidadão participa do ritual do Júri,
formal, repetitivo, é exatamente o momento ritual em que esses lugares crendo-se notoriamente idôneo e julgando alguém acusado de não
sê-lo, é o Estado que, soberano, dita quem é quem. Corno já vimos
e aprofundaremos nos próximos capítulos. nessa exibição da lei, da
38 FaJa do juiz aos jurados. no inicio da sessão ocorrida em 5/9/2001, das 12hlO às
17h22. no Plenário 9 do 1g Tribunal do Júri (Barra Funda). norma e de sua aplicação aos "casos concretos" há um jogo persuasivo
J9 Fala do promotor ao saudar-os jurados, antes do início de sua sustentação oral. em
em que operadores técnicos e leigos legitimam mutuamente os poderes
15/8/2001, nasessão ocorrida no Plenário 7 do IIlTribunal do Júri (Barra Funda). que exercem no Júri e na sociedade. O que está espetacularizado no
Júri é, ao mesmo tempo, a exibição e a legitimação do Estado, da lei,
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Jogo, ritual e teatro
Júri-Jogo

não mais que leigos esforçados. Esse mesmo promotor, no decorrer dessa
e papéis são esclarecidos. marcados e reiterados (papéis cuja hierarquia
sessão,voltou a dizer aos jurados: "Eu estudei horas e horas este processo,
será analisada no próximo capítulo).
ao passo que os Srs. não o estudaram sequer um minuto, o que dificulta
ainda mais o trabalho que devem desempenhar. Além do estudo, a prática
também me /àz concluir que a versão do réu é duvidosa". Festa

A maioria dos operadores técnicos costuma dizer aos jurados que Assim como o jogo, também a festa implica uma suspensão da vida
eles desfrutam de um status transitório e especial e, por isso mesmo, cotidiana e cria um tempo e um espaço artifi~iais. Se ainda partirmos
devem se portar de modo cuidadoso. Assim manifestou-se um juiz: do pressuposto de que há uma relação, senão direta, ao menos indireta
"Os senhores devem manter uma posição semelhante à minha, de entre festa da representação - entendendo-se representação enquanto
neutralidade. Não devem deixar transparecer emoções e opiniões. (...) exibição de podet - e legitimação do podet, uma das deduções pos-
A partir de agora, 05 senhores passam a integrar o Poder Judiciário, na síveis é a de que quanto mais pomposa for a festa da representação
função de juízes". 38 _ de um Estado, mais ela convencerá de que seu soberano é poderoso
i, Um promotor, nesse mesmo sentido, as5im se manifestou:
(Geerrz, 1991).

(...) O que se espera dos senhores é que utilizem aqui sua experiência de A representação, ao fazer com que os súditos atribuam consensualmente
vida, sua sensibilidade,a visãoreal do que ocorrenos nossosdias, mas que poder ao soberano, constrói sua legitimidade. E como o poder só se le.
o façam com introspecção, consultando suas consciências. em estado de gitima quando é concedido, e não roubado ou usurpado, é no processo
meditação. Enfim, trata-se de um compromisso que. como cidadãos. Vossas de representação festiva que se dá sua efetiva legitimação.
II-r-- '-Excelências têm com a realidâde-sefcial-(-::-:)"39 ._- --- --- .--~~~-----o--- ._--_._"---- ---- --
Há-festa no Júri: no uso das togas, na ocupação regrada do tempo e do
I' No segundo dos exemplos de longa saudação, o promotor identificou o espaço e no sorteio que determina quais dentre os jurados convocados

11:
,I
iI juiz a um sábio e a "realização da justiça" ao exercício dessa sab~doria.
O advogado foi posicionado no mesmo patamar do promotor (colegas).
serão juízes e, pOrtanto, desfrutarão, durante alg4J1lashoras, da posição
de soberanos. A eles, temponiriamente, é concedido o poder de repre-

Ili I pois ambos "buscavam a justiça" ~Novamente, funcionários e PMs foram


considerados tarefeiros, e a assistência apareceu como observadora e
sentar o Estado e as normas sociais. Mesmo os jurados dispensados são
brindados com o reconhecimento da "notória idoneidade".

li/'
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aprendiz da justiça. Os jurados entraram como "representantes~mis-
sionários" da comunidade. Todos, enfim, tiveram seu lugar e seu papel
O Estado, por sua vez, legitima~se ao conceder o poder da "notória
idoneidade". Cada vez que um cidadão participa do ritual do Júri,
; definidos, e o momento das saudações iniciais, aparentemente mecânico,
! ctendo-se notoriamente idôneo e julgando alguém acusado de não
formal, repetit~vo, é exatamente 'o momento ritual em que esses lugares
sê~lo, é o Estado que, soberano, dita quem é quem. Como já vimos
e aprofundaremos nos próximos capítulos, nessa exibição da lei, da

',Ií
i la Fala do juiz aos jurados, no inIcio da sessão ocorrida em 5/9/2001,
l7h22, no Plenário 9 do lATribunal do Júri (Barra Funda).
das l2hlO às norma e.de sua aplicação aos "casos concretos" há um jogo persuasivo
em que operadores técnicos e leigos legitimam mutuamente os poderes
,
" Fala do promotor ao saudar os jurados, antes do início de sua sustentaçáo oral, em que exercem no Júri e na sociedade. O que está espetacularizado no
15/8/2001, na ~ssáo ocorrida no Plenário 7 do IATribunal do Júri (Barra Funda).
Júri é, ao mesmo tempo. a exibição e a legitimação do Estado, da lei.

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I Jogo. ritual e teatro Júri-Jogo
I de seus representantes e de certos padrões e valores sociais que, toda-
!I. retrai (...) o corpo social sugere a morte à infeliz vítima. que náo pretende
.1 via, ao serem exibidos de forma sistemática, podem ser repensados, mais escapar àquilo que ela considera como seu destino inelutável. (...) A
.1 reelaborados e, por vezes, alterados. integridade física náo resiste à dissolução da personalidade social. (Uvi-
i -Strauss,1996: 193-194)
,i
,I Sistema de crenças Embora essas passagens permitam ao autor introduzir a tese de que

:i Encerrando o elenco de características dos jogos que também podem


"( ...) a eficácia da magia implica a crença da magia", não parece abusivo
extrapolá-la para a reflexão de que a eficácia do Júri implica a crença do
ser percebidas no Júri e que podem nos permitir entender melhor sua
I dinâmica, tratemos do sistema de justiça criminal, do qual fazem parte
Júri. Réus, "as mais solenes tradições de seu grupo". parentes e amigos,
a comunidade que julga (jurados), todos são responsáveis, mais do que
os julgamentos processàclos pelos Tribunais do Júri. É possível pensá-lo
por sentenças condenatórias ou absolutórias, pela eficácia do próprio
I1 como um sistema de crenças e práticas em que, apesar de haver uma sistema de julgamento.
" ,
II • consciência geralmente parcial do caráter fictício de seus procedimentos.
!I f
nem por isso se trata de uma fraude inventada e mantida por "incré- Segundo Lévi-Strauss, são três o~ aspectos complementares da crença: o
II feiticeiro crê na eficácia de suas próprias técnicas; os enfeitiçados creem no
1\' dulos" operadores técnicos para dominar "crédulos" jurados, réus e
\, mesmo "a" sociedade. feiticeiro e no feitiço; e a opinião coletiva forma "uma espécie de campo
de gravitação" entre feiticeiros e enfeitiçados (Ibid.: 194-195). Paralela-
o sistema de justiça criminal e o Júri só existem porque há uma cre-
mente. para que o sistema do Júri tenha alguma eficácia, os "feiticeiros
dulidade generalizada e compartilhada por todos na validade de seus
da lei" (juízes, promotores. defensores e funcionários) acreditam em suas
procedimentos e resultados, ou, ao menos, no fato de que. por enquanto,
técnicas; os "enfeitiçados pela lei" (jurados. réu. seus parentes e amigos)
não há como prescindir deles.40
acreditam nela e em seus operadores; e a opinião coletiva relaciona. define
Façamos um parêntese para lembrar uma lição de Lévi-Strauss que pode e situa uns e outros. Portanto, assim como para Uvi-Strauss "a situação
nos auxiliar nesta abordagem do sistema de justiça criminal enquanto mágica é um fenômeno de consensus", parece pertinente afirmar que a
um sistema de crenças: situação dos julgamentos pelo Júri também o é.

(...) um indivíduo, consciente de ser objeto de um malefício. é intimamente Lembra ainda Lévi-Strauss que certas experiências vividas pelos indiví-
persuadido, pelas mais solenes tradiçóes de seu grupo, de que está condenado; duos, como as doenças. são "( ...) intelectualmente informes e afetivamen-
parentes e amigos partilham dessa certeza. Desde então a comunidade se
: I! te intoleráveis" e tendem a assim prosseguir "a não ser que se incorporem

ini. a tal ou qual esquema presente na cultura do grupo e cuja assimilação é


! o único meio de objetivar os esrados subjetivos (...)" (Ibid., 198), Essa
:1 ~o A antropóloga YvonneMaggie trabalhou esse tema ao analisar casoscriminais que
i li envolviamfeitiçose que ocorreram entre 1890 e 1940, no Brasil,especialmenteno afirmação é válida para experiências tidas como violentas, pois a própria
Rio de Janeiro. Uma de suas conclusões é a de que juízes, acusados,testemunhas e percepção individual do que é ou não violento depende de referenciais
Ii
!II!.
'
li ,
perit'ospartilhavam premissasculturais, categoriase expressões.Todos acreditavam
na existênciade pessoasque usavam mal os preceitosdo espiritismo e que por isso
coletivos relacionados à faixa etária, sexo, grau de escolaridade, religião,

deviam ser castigadas.Portanto, todos acreditavamna validade,legitimidadee lega- fJ renda, local de moradia, etnia e outras variáveis socioeconômicas (Cardia,
,! Ii lidade do bom uso dessespreceitos (Maggie, 1992). 1999). Um sistema de crenças, portanto, orienta e constrói percepções e

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Jogol ntua! e teatro

I' atitudes dos que dele participam, ao mesmo tempo que estes legitinuJIl o está em jogo e o que sustenta esse jogo é o fato de esses personagens
substantivarem o sistema de justiça criminal e a"noção de criminalidade.
i sistema a cada nova percepção e atitude orientada. construída e julgada.

A cada .sessã~ de Júri, em que se repetem determinados esquemas - o Ao definir os três elementos indissociáveis do que denomina "complexo

saneio dos jurados, o comportamento hierarquizado dos participantes em xamanístico", Lévi.Suauss afirma:
plenário, o interrogat6rio do réu, os debates entre promotor e defensor, a Esta fabulação de uma realidade em si mesma desconhecida, feita de
incomunicabilidade entre os jutados, a votação de quesitos e a definição de procedimentos e de representações, é afiançada numa tripla experiência: a
uma sentença -, um sistema de julgamento está orientando percepções e do próprio xamã (...); a do doente (...); a do público, cujo arrebatamento
atitudes individuais dos participantes, petmitindo-Ihes 'objetivar estados sofrido, e a satisfação intdeaua1 e afetiva que retira determinam uma adesão
subjetivos, formular impressões informuláveis. e integrar experiências coletiva que inaugura, ela própria. um novo ciclo. (...). As experiências do
doente representam o aspecto menos imponante do sistema (Ibid.: 207).
inatticuladas" (Lévi-Sttauss, 1996: 198)0 Simultaneamente, essas pet-
cepções c:atitudes revigoram a existência do próprio Júri, atribuindo-lhe Novamente, ,essas passagens sugerem a importância de um sistema
sentido c, quem sabe, abrindo brechas para que o cónjunro se reananje. de crenças para a compreensão de uma realidade que seria opaca sem
fabulação.
A maioria dos interrogatórios de réus e das sustentações orais de pro- J personagens e histórias que lhe dessem sentido, sem
mais do que saber se o réu cometeu ou não o crime de que é acusado,
Por isso,

motores e defensores que observei pode ser caracterizada pelas seguintes


importa o modo como ele, por meio das versões do promotor, do defen-
palavras de Lévi-Sttauss:
sor e de suas próprias palavras, permite ao grupo articular uma reflexão
(...) antes que reprimir um crime, os juízes {promotores e defenso~s, eu
circunstanciada sobre a criminalidade e os valores que tornam certos
acrescentaria] procuram (...) atestar a realidade do sistema que o tornou
atos socialmente legítimos ou ilegítimos.
- --possível. (... ) O acusado, preservado como-testemunha, .traz ao. gr.upo --_ ..

uma satisfação de verdade, infinitamente mais densa e mais rica do que a Referindo-se diretamente à eficácia dos feiticeiros, a seus sucessos e
satisfação de justiça que teria proporcionado a sua execução. (...) o acusado fracassos ao curar doentes. diz Lévi-Strauss:
participa com sinceridade e (...) fervor do jogo dramdtico que se organiza
Quesalid [feiticeiro Kwakiutl, da região de Vancouver, Canadá. cuja au-
entre seus juízes e ele. (...) Para de também, a coerência do sistema, e o
tobiografia foi parcialmente recolhida e traduzida por Franz Boas] não se
papel que lhe é assinalado para estabelecê-la (...) têm um valor (...) essencial
tornou um grande feiticeiro porque curava seus doentes. ele curava seus
(Ibido: 201, grifo meu)o
doentes porque se tinha tornado um grande feiticeiro. (...) ~. de fato, na
Essas passagens fazem pensar em cada réu como wna verdadeira "en- atitude do grupo, bem mais que no ritmo dos reveses e dós sucessos, que é
carnação da eriminalidade", mesmo que o desfecho do julgamentn seja necessário procurar a verdadeira razão da derrocada dos rivais de Quesalid.
absolutório. Sem seu corpo presente em plenário, sem o juiz a interrogá- (000) O fracasso é (000) função de um ourto fen6meno: o desaparecimento.
-lo e sem o promotor e o defensor contextualizarem o crime através de do consmsus sodal (... ) O problema fundamental é, pois, o da relação entre
um indivíduo e o grupo, ou, ainda, mais exatamente, entre um ceno tipo
narrativas que envolvem detalhes da vida do réu, "a criminalidade" nada
de indivíduos e certas exigências do grupo (Ibido: 208)0
mais seria que um conjunto difuso de sentimentos e de representaçóes.
Seja quando o réu confessa sua culpa ou a nega, seja quando promotor Em relação ao Júri e, especialmente, à eficácia dos discursos de pro-
e defensor fazem seus argumentos convergirem ou divergirem, .o que motores e defensores em plenário, podemos afirmar que um promotor

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Jogo, ritual e teatro


Júri-Jogo

não se torna um grande acusador porque condena muitos réus, e que


(...) o pensamento normal reclama sempre seu sentido às coisas, que o recu-
um advogado não se torna um grande defensor porque absolve outros
sam; ao contrário, o pensamento dito patológico extravasa de interpretações
tantos. Eles condenam ou absolvem com eficácia porque já se tornaram
e de ressonâncias afetivas, com as quais está sempre pronto a sobrecarregar
grandes oradores do Júri e isso, por sua vez. decorre menos de "dons uma realidade, que seria de outro modo deficitária. (...) o pensamento normal
individuais". conforme afirmam rantos doutrinaciores. do que do faro de sofre sempre de uma carência de significado, ao passo que o pensamento
estarem sintonizados ("em consenso") com as expectativas dos jurados. dito patológico (...) dispõe de uma pletora de significante. (... ) É necessário
i que, do mesmo modo que o doente e o feiticeiro, o público panicipe, ao
Mergulhando um pouco mais na psicanálise, Lévi-Strauss trabalha com
menos em certa medida, da ab-"dçáo (...) (lbid.: 210).
o conceito de ab-reaçáo - descarga emocional experimentada por um
ri Nesses ensinamentos de Uvi-Strauss, outra questão pertinente ao Júri
j'I indivíduo, na qual ele revive um acontecimento traumático e, ao fazê-
-lo, libera-se de uma repressão a que estava submetido -, afirmando encontra caminho para uma análise mais profunda. a da oposição entre os
! que o espetáculo oferecido por um grande xamã a seus doentes e a seu chamados conhecimento técnico, a princípio dominado pelos operadores
auditório é mais do que o de reproduzir ou representar certos aconteci- do direito, e o conhecimento do senso comum, prevalecente no modo

I:' mentos perturbadores: o xamã "(...) os revive efetivamente em toda sua de os jurados leigos julgarem. Além de apresentar esses conhecimentos

,, li, vivacidade, originalidade e violência. E (...), ao término da sessão, ele como opostos, tanto os defensores quanto os derratores do Júri costu-
i i rerorna ao estado normal" (Ibid.: 209). mam compará-los para concluir qual o mais adequado. Os defensores
I
! afirmam que a riqueza da instituição repousa, justamente, na utilização,
Conforme veremos nos próximos capítulos, não temos nas grandes
, li performances de oradores do Júri apenas reprodução e representação
pelos jurados, de "(...) sua experiência de vida, sua sensibilidade, a visão
real do que ocorre nos nossos dias".41Já os decratores repudiam esse
de crimes perturbadores ou, ainda, fiéis relatos da "verdade dos faros";
I rampouco uma simples imposição de valores "burgueses" por parte
"amadorismo" e propugnam a exclusão de juízes leigos, por considerarem
a precisão da análise técnica uma garantia de maior justiça. Poucos são
de operadores técnicos e jurados a réus de "classes trabalhadoras". As
os que percebem a complementaridade entre os dois tipos de "conhe-
!I I performances dos oradores do Júri somente são grandiosas e arrebatam
cimento" e o quanto eles, em si. não são puros: "(...) saibam que o juiz
I i os jurados, os assistentes e o próprio orador quando elas desencadeiam
de direiro rambém julga de acordo com ideologias. Ele primeiro julga e
uma ab-reação, ou seja, quando ao término da fala do orador predomina
'I j a sensação de que ele elaborou e organizou com tamanha intensidade
depois, se necessário, busca rames para se justificar. Os jurados .trazem
li para a Justiça a sua experiência e sensibilidade". 42
I. iI e pertinência os acontecimentos relatados que foi possível a todos se
transportarem para a situação originária da perturbação criminosa. O mais importante, contudo, é perceber que apenas o "pensamento
i restando, então, superá-la e retomar a normalidade da vida, senten- normal", mais típico dos operadores técnicos do direito. não domina
ciando o réu. os mecanismos da criminalidade, e que "o pensamento patológico", por

li, Ainda tratando dessa essencial relação entre xamã e grupo, Uvi-Strauss
discorre sobre os pensamentos "normal" e "patológico", os quais considera
ji I presentes e complementares em rodas as sociedades:
41 Palavras do promotor, durante susrentação ora.!em 15/8/200 I, às 13h4s no Plenário
7 do 14Tribunal do Júri (Barra Funda).
I '
'1 i ü Op. clt. Para um aprofundamento
Lo,I, (2003).
do tema da participação dos jurados, consultar

i :
1

i
I -96-
I -97-

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~
:/!
sua vez, cqffi suas "interpretaçóes e ressonâncias afetivas"J não se sustenta J'
!
em um conjunto de procedimentos que se pretende objetivo e racional: ,I,
"Diversamente da explicação científica, não se trata, pois, de ligar estados ,
confusos e inorganizados, emoções e representações, a uma causa objetiva.
mas de articulá-los sob a forma de totalidade ou sistema" (Ibid.: 2U).

Se considerarmos operadores técnicos e réu como um par de opostos,


assim como Lévi-Strauss considerou o par feiticeiro-doente, poderemos
afirmar que esse par "(•..) encarna para o grupo, de modo concreto e 3
vigor<:>so.um antagonismo próprio a todo pensamento, mas cuja expres-
JOGO VEREDICTO
são normal permanece vaga e imprecisa" (Ibid.). E, assim como a cura
reúne feiticeiro e doente numa experiência total, os julgamentos pelo
Júri põem em r~lação operadores técnicos e réus, permitindo a esses. a
jurados. funcionários, PMs e assistentes participarem e acreditarem no

...
:1 sistema de justiça criminal e nos valores que sua dinâmica permite reiterar.
. A descoberta por acaso do jogo de tabuleiro Vn-edicto, durante minha
pesquisa de campo, propiciou-me articular ideias até então dispersas e
"' perceber o próprio conceito de jogo, não apenas como recurso de lingua-
gem, muito utilizado por meus interlocutores, maS como instrumento
Este capítulo teve por meta iniciar a discussão do Júri enquanto wn jogo, de promissora rentabilidade analítica.
demonstrando que este oonCêit"O;-ffiãisdo que -um recurso metaf6iieo---- -------,- --- - - - --- ---------_.- _._- - -- -
A ~ntenção deste capítulo, no entanto, não é indicar em que pontos o
é um instruinento analítico, usado pelos próprios envolvidos. e cujos
jogo de tabuleiro «simula" bem ou mal o "Júri real", mas verificar como o
elementos permitem levantar questões que permeiam este trabalho e se
primeiro interpreta o segundo e por que, ao fazê-lo, tanto omite quanto
encontram aprofundadas nos demais capltulos.
enfatiza procedimentos dos julgamentos "reais".
No próximo, continuaremos desenvolvendo o conçeito de jogo, não
Especial atenção será dada ao ponto para o qual V""dicto e júri parecem
mais auavés da análise de suas características, mas examinando um jogo
confluir: a construção de narrativas a respeito do crime' e do suposto
destinado a adolescentes e adultos e disponlvd nas principais lojas de
criminoso, menos para constatar sua efetiva ocorrência do que para
brinquedos do BrasU.Ele simula o ritual dos julgamentos pdo Tribunal
legitimar ou não o assassinato. .
do júri e chama-se V""dieto. Sua descoberta me foi de tal forma inspira-
dora que, não fosse por da, o rumo teórico da pesquisa, provavelmente, A pretensão. enfim, é demonstrar que, de uma maneira peculiar. o jogo
teria sido outro.

"' ...
-98-
Vtredieto "lê" o júri, sinalizando a possibUidade de serem as sessóes de
julgamento, que de fato ocorrem nos plenários, um jogo de narrativas
persuasivasque se faz "em ato" e estreiramente dependentes da habUidade
e da sorte dos jogadores.

-99-

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I Jogo, ritual e teatro


Jogo H:redicw

I Apresentação do jogo: ilustração e textos da caixa No terceiro plano, entre a mão do juiz e o martelo, estão o réu e um
I
11
policial, em pé. O réu é branco, relativamente jovem, com cabelo e
!, .,.. ',' . JOGO' " '.

'V'" .
bigode escuros, veste um terno preto e uma gravata vermelha. Também

\",:.,EJ}~EJ2JQjil1l\t,Ct:
i:
olha em direção ao juiz, com certa desconfiança e expectativa (uma das

I: .i •.' c.
(1)'" sobrancelhas está levantada), enquanto o policial, branco, de temo e
quepe_escuros,vigia o réu bem de perto.
;\/ '~;::'":"
.."~~1;;1.~~;i,::,,;.':,o::,~;~~.',~~
..•.. ~;~.-~.1tD
"~;'.,.~~~ :~f', ~~
.. Ii[i;,~}(.~~.;ç No quarto e último plano, que ocupa toda a metade superior da tampa,
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l",,' desenhos de colunas e arcos, em tons cinzentos, conferem ao ambiente
a imponência que se espera encontrar em um tribunal.
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- ,'/ ' Jurados não estão representados, nem testemunhas, tampouco espec-
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t,?';j!l~ I'ill'"
.l. '.1',
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I"t\ "
'f tadores e funcionários. Uma conclusão possível é a de que o pOnto de
~""
vista de quem olha essa ilustração tanto pode ser o do juiz quanto o dos
.~! .. jurados, talvez até mais o dos jurados, pois a mão do juiz faz imaginá-lo
à esquerda de quem observa o desenho de frente. Seja como for, fazendo
jus ao nome do jogo, a ilustração convida o observador a se identificar
tanto com quem dará o veredicto (os jurados) quanto com quem o
Pintado com cores sóbrias, o desenho que ilustra a tampa da caixa anunciará (o juiz),
sugere que o "jogo" trata de algo "sério". A ilustração se divide em
, II quatro planos. Uma primeira observação relativa a essa ilustração é que o promotor
11
e o advogado retratados estão sentados lado a lado, o que não ocorre,
II No primeiro, que 0c:upa o canto inferior esquerdo. a mão de um juiz atualmente, nos plenários do tribunal do Júri de São Paulo, conforme
segura um martelo de madeira e metal, prestes a ser batido em um já apontado no capítulo anterior.o O réu, com perfil de um homem de
I[I! apoio, também de madeira, anunciando algum momento importante
do julgamento; provavelmente, o do veredicto.
classe média, maduro, bem-vestido, branco e de olhar altivo, também
discrepa da maioria daqueles que se pode observar nas sessóespaulistanas
ll i 11 No segundo plano, à direita do martelo, dois homens togados estão de Júri, em cujo "banco dos réus" normalmente se sentam homens de
sentados, compartilhando a mesma mesa. Um é negro, barbudo e jo- camadas populares, vestidos com simplicidade, jovens, mulatos, mais
I vem, e o outro, branco, com bigode e cabelos grisalhos. Representam, acabrunhados do que altivos.
I possivelmente, o promotor de justiça e o advogado de defesa. Nada,
porém, indica quem é quem: o negro olha em direção ao juiz com ex-
pectativa, enquanto o branco olha para o réu com preocupação. Tanto '" No Capítulo 5. em qué é trabalhado o aspecto teatral do Júri, há outras reflexões
sobre o plenário enquanto palco. no qual cada espaço ganha significado. seja pela
a expressão de um quanto a do outro caberiam no roSto de um acusador
composição dos elementos cenicos (disposição e tipo do mobiliário, degraus, janelas,
ou de um defensor. tamanho das salas,cores das paredes etc., seja pela ocupação e uso que os atores fazem
desses elementos.

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-101-

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Por fim, o policial do desenho também não é o típico policial militar que OutroS dizeres significativos do fundo da caixa são:
acompanha às sessóes paulistanas do Júri, o qual traja uniforme cinza e Finalmente um jogo que tr.lta de um assunto ~o envolvente. E. o mais impor-
não usa quepe no plenário. Tampouco, nos Tribunais do Júri, o juiz faz tante: com inC!ÍvdeealicG.de.Vocêrealmente vai se sentir como se estiVesseno
uso de um martelo. tribunal. Não.apenas assistindo, mas participando' dos debates. Sua participa-
ção vai ser decisiva. É da que.vai levar os jurados à decisão final. Sorte ajuda,
Portanto, posições cênicas e figuras representadas na ~ não compõem
mas o que rralmmte conta I a sua habilidat:k tÚ argummtaçlÍo. Vamos! Reúna
um retrato fid do que se observa nos tribunais do Júri de São Paulo, mas
os amigos. O juiz já bateu o mando e declarou aberta a sessão (grifas meus).
aqui importa menos a fidelidade e mais a mensagem de qlJ:e as sessóes "re-
ais" de julgamento são também tão plenas de elementos lúdicos (oposição Apesar, portanto, de a ilustração da tampa posicionar o observador como
e competição, suspense, empolgação, aCasoe habilidade) que,literalmente, alguém que não é acusador, defensor, juiz ou reu, esses dizeres indicam tais
inspiratam um jogo. Essa mensagem, por sinal, está grafada, em palavras, posiçóes como privilegiadas. A mensagem é a de que participar dos debates é
na tampa, abaixo do nome Veredicto: "De um lado a d~, do, outro a panicipar decisivamente, levando os jurados à decisão final. Joga, portanto,
acusação e no banco dos réus quem vai ser julgado. Testemunhas e provas quem argumenta e "brinca" de usar o poder de persuasão. Veremos, con~
serão apresentados. Qual será a decisão dos jurados? VEREDICTO é um tudo, que assim como ocorre nas sessóes de Júri, a lógica do jogo Veredicto
jogo empolganre que mostra um julgamento com inmvel realidade. Sorte demonstra o quanto arguidores e alvos das arguiçóes Gurados) formam um
conta pouco. Habilidade conta muito" (grifas meus). par indissociável, pois é da interação entre eles que depende o Veredicto.

As duas frases finais, ao mesmo tempo que apontam os fatores decisivos


no jogo - habilidade e sorte-, indicam qual ddes prepondera - habilidade Regras
-, ou sej-ª.}llais do que contar .com o acaso, cabe_aQs_jogadores_dominar A1gumas.comparaçóes.entre as'regrasdo jogo Veredicto eas do«Júrireal". ,...
uma estratégia argumentativa e agir em função dela.
permitem o detalhamento de certas questões e análises a respeito da lów.ca
A parte de ~aixo da caixa do jogo apresenta uma foto em preto e branco que estrutura o desenrolar das sessóes de julgamento. Lembremos que o
do tabuleiro aberto, com suas respectivas peças posicionadas e elencadas, primeiro, longe de falhar ao simular o segundo, interpreta-o. Portanto,
juntamente com outros textos, como "O Conselho de Sentença, formado estamos aqui interpretando uma interpretação.
',
por 7 jurados, já está em seu lugar. A defesa e a acusação também. A Esquematicamente, comparando as regras do jogo Veredicto com os ar-
I
J1 pessoa que vai ser julgada é apresentada. Está tudo pronto para o início tigos do Código de Processo Penal que se reportam aos procedimentos
:1'
G ,
de mais um julgamento".
do Júri44, é possível registrar:
~I Conforme pontuou Huizinga, quando o circulo mdgico se fecha (no caso,

II , ,
é o tabuleiro que se abre e é preenchido com todos os seus elementos
devidamente posicionados), o jogo tem início. O preenchimento dos
« Conforme já apontado nas "Considerações iniciais", trata-se dos arts. 406 a 497,
vigentes à época da pesquisa e alterados pela Lei 11.689/2008. Para facUicara visua-
lização do conjunto das previsões desses artigos, consultar dois fluxogramas acessíveis
"lugares de cada um" (de jurados, defesa, acusação e réu) demarca o início em : <http://www.buscalegis.ufsc.br/revisr:aslfileslanexos/33668-43740-1-PB.pdf> e
de,um tempo e de um espaço artificiais que existirão enquanto valerem <http://www.ucamcesec.com.br/arquivoslatividadesl8uxo_jurL2008_-.-2.pdf>. O
e forem obedecidas regras especialmente elaboradas para orientá-los. primeiro é anterior à Lei 11.68912008 e o segundo posterior a ela. Excertos desses
fluxogramas se encontram comentados no final deste cap£mlo.

-102- -103-

~-,~-jl _
'~'--"r-

:'<'
Jogo, ritual e teatro
Jogo Yeredicw
Veredicto •Júri real" (CPP)
1) instruções o jogador deve "ler os textos da Veredicto "Júri real""
preliminares os jogadores devem "ler" (conhecer e
tampa e do fundo da caixa para se 7) vencedor do "Será a acusação se o réu/ré for seja o réu absolvido ou condenado, é o ritual
dominar) a tl!cni~ jurldica, a oratória. a
ambientar ao clima do jogo. iogo condenado. Será a defesa se ele for de exibição da instituição sodal Júri e de
dinamka do lCltie o perfil dos jurados
2) objetivos absolvido.. fonnas legitimas e ilegltimas de matar que
"absolver ou condenar o réu (rê)" reforçar um sistema de regras morais sempre "vencem"
3) jogadores - dois (acusador e defensor) ou quatro - promotor. defensor e jurados (prindpais) 8) observações "Pode haver empate (...) nesse caso. nlio pode haver empate. Se a sessão chegar
(titular da acusação e seu assistente,
- juiz. réu, funcionários, PMs e público só um novo julgamento (novo Jogo) ao fim, haverá uma sentença ou absolutória
titular da defesa e seu assistente)
(secundáriOS) resolverâ o impasse" ou condenatória
- a partir de 14 anos
I11 - a partir de 18 anos Qurados e réus)
4) componentes • Uma das regras vigentes no cpp li época da pesquisa, alterada com a aprovação da lei 11.68912008, se
um tabuleiro, 87 cartas e algumas espaços do plenário, jogadores acima
do jogo reportava ao momento do interrogatÓfio do réu. Agora ele se dá após a altiva das testemunhas. Os tempos
111 mencionados e •peças. processuais
, I
5) preparação
""" das sustentações orais iniciais do promotor e do defensor também foram abreviados de 2 horas para lh30,
- sorteio do sexo do réu, da cidade do - posicionamento inicial dos participantes passando portanto de 4 horas para 3 horas o tempo total desses primeiros debates.
do jogo crime e dos sete jurados em plenário
- cartas-argumento e fichas de
I influência são embaralhadas e
- sorteio dos jurados, pelo juiz, com
possibilidade de defensor e promotor Instruções preliminares
distribuídas efetuarem recusas
, I
,
- "peões-jogadores" são - posicionamento final dos jurados Nos dois "jogos", existe a ideia de que há um "clima" que envolve os
! I posicionados no tabuleiro sorteados.
jogadores e deve ser percebido, conhecido e dominado por eles.
I: I
Veredicto No que diz respeito ao Júri, é opinião corrente, entre seus "mestres", ou
"Júri real".
I 6) (Omo jogar - o acusador elabora o 1° de seus - jurados prestam compromisso
seja, juízes, promotores e defensores que fizeram carreira nessa instituição
quatro argumentos ou "passa" e publicaram textos a respeito, que bons promotores e advogados dejúri
II - interrogatório do réu
- o defensor tenta nelltralizar o 10
argumento do acusador ou elabora -leitura do relatório pelo juiz devem ter e aprimorar certas qualidades técnicas e pessoais (Delmanto,
o seu I" - inquirição de testemunhas de acusação e. 1996; Lima, 1996). As técnicas, como o domínio dos ptocedimentos pto-
depois, de defesa
- marca-se qual dos dois influenciou cessuais específicos e de detalhes periciais dos crimes, segundo esses autores,
um ou mais jurados - sustentação oral do promotor (até 2 horas)
- o acusador elabora mais três e depois do defensor (até 2 horas) dependem de estudos aptofundados, enquanto as qualidades pessoais,
argumentos, intercalados pelas - possibilidade de réplica do promotor (meia como estabelecer empatia e falar em plenário com "clareza e postura firme,
tentativas de neutralização da defesa hora) e. depois. de tréplica do defensor
e pela marcação das influências (meia hora) dependem, em parte. de "dons" e, em parte, de aprendizado adquirido
- invertem-se as posições; a - possibilidade de os jurados pedirem por "mimetismo". após o acompanhamento de muitos Júris até que haja
defesa elabora quatro argumentos, esclarecimentos
intercalados pelas tentativas da uma adaptação a sua dinl.mica: "( ...) clima de Júri é um estado de espírito
-leitura e explicação, pelo juiz, dos quesitos
acusação de neutralizá-los e pela que exige concentração técnica ~ emocional dos oradores" .45 Também é
marcação das influências - retirada do Juiz, prof!\otor, defensor e
jurados para a sala secreta consensual que "( ...) ao se levantar para tealizar seu trabalho ptofissional o
-"O jogo continua (...) até que algum
- votação sigilosa dos quesitos, pelos
dos lados (...) consiga colocar todas orador deverá (...) sentir-se senhor do restrito auditório, conhecendo suas
as suas 13 fichas de influ!ncia" jurados. na sala seaeta
- apuração dos votos pelo juiz tendências, quer pessoais, quer coletivas" (Pimentel, 1988: 283).
- apuração dos votos de Cada jurado
e totalização dos mesmos - cálculo da pena somente pelo juiz
-veredicto - todos retomam ao plenário
. ~j Palestra proferida no curso O futuro do júri no Brasil, pelo Dr. Octávio Borba de
I" - a sentença ê proferida pelo juiz
Vasconcelos Filho, em 31 de maio de 1999. das 9h às 12h, e intitulada A pOltura do
PromoUJrtk Justiça nn pkndrio.
I! i

! -104-
-105-

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c@-
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Jogo, ritual c teatro "vgtir=UJ

No campo da aotropologia do direito no Brasil, Alessaodra de Andrade afirmam que, "(...) principalmente no interior do pais, o Júri perpetua a
Rinaldi aoalisou detalhada e brllhaotemente a representação oratória do impunidade de criminosos que contam com a proteção de políticos de
Tribunal do Júri no Rio de Janeiro, a qual, segundo a autora, orienra.se influência regional" (Acquaviva, 1991: 21, nota de rodapé).
tanto para a persuasão daqueles a quem os oradores se dirigem quanto Quando se trata de discutir o Júri no Brasil. seja dentro ou fora dos
para a produção de ptestígio para os ptÓprios oradores. A "fórmula" plenários, as opiniões quase sempre se dividem entre seus defensores e
ideal do bom discurso, segundo da. é cultivada no trânsito contínuo de detratores (Nassi£, 1996; Tucci, 1999).
aprendizados que se dá entre os plenários, aulas nas faculdades de Direito,
Muito resumida e esquematicamente, podemos assim apresentar os
leituras de manuais e presença em cursinhos de oratória. sendo consti-
argumentos desse embate:
tutivo desse campo o aparente paradoxo entre ter o "dom da palavra"
(ter "vocaçáo") e ser preciso aprender como usar bem certas estratégias
Principais argumentos relativos ao Tribunal do JOrino Brasil.
verbais, corporais e instimcionais (Rinaldi, 1999).
Favoráveis Contrários

é um tribunal de conotação democrática; em muitos pafses democráticos não há mais Júri


Objetivos (França,Alemanha. Bélglca.ltál1a. Gréda etc) e.
mesmo nos Estados Unidos, em várias situações.
Uma leitura, mesmo que rápida. de vários textos doutrinário-jurídicos cabe ao réu deddir se vai ou não alóri;

referentes aos objetivos ou à "razão de ser" do Tribunal do Júri no Brasil jurados estão mais em contato com os contextos juizes togados também são cidadãos e partidpam
em julgamento do que juizes togados; da sociedade, além de terem estudado para melhor
revela que, mais do que absolver ou condenar réus. esse Tribunal re- compreend~la; jurados são suscetíveis a injunções:
presenta um espaço de produção, de exercício e de controle de valores se o jurado pode ser suscetfvel a influêndas juizes togi'ldos passam por longo período de
soCiainilb.plos." - -externas. o juiz togado p~ seguirldeologias e -- -preparo-profissional para que julguem com
convicções próprias; imparcialidade; "
Embora não seja objeto deste trabalho a análise de discursos a respeito
considerações não téroicas. mas morais. éticas. nos debates do Júri prevalecem argumentos
do Júri. produzidos fora dos plenários, mas discursos produzidos no Júri, psicológicas e econômicas orientam os jurados emocionais e falsos que iludem os jurados e os
em suas decisões, dosando eventuais injustiças da fazem pen:ler de vista a imparcialidade necessária a
dentro dos plenários, sejam eles referentes à própria instituição, sejam aplicação .pura e fria" da lei; um bom julgamento;
referentes "à" sociedade, quem quer que pontue os objetivos do Júri
extrapola o mero "absolver ou condenar o réu (ré)" e avança em debates legisladores. asstm como jurados, podem ser leigos. jurados geralmente naotêm .bom-senso jurfd'rco.,
de dimensão moral e política. pois o que importa é o "bom-senso"; podendo desprezar provas importantes por motivos
emocionais;
Segundo alguns doutrinadores, o Tribunal do Júri no Brasil é "um direito o Júri contribui para a administração da Justiça a complexidade dos crimes que vão a Júri exige
ou garantia fundamental do indivíduo", previsto no timlo 'IDos direitos e e garante o prindpio da publicidade dos atos ao rigor técnico na exposição e apredaç.!io de provas;
exigir dos prof15sionaisum linguajar acesslvel aos
garantias fundamentais" da Constituição Federal..46 Outros, por exemplo, leigos;

• Na elaboração deste quadro, argumentos provenientes de diversos textos. palestras e debates sobre o
~6 "É reconhedda a instituição do júri. com a organi7.açáo que lhe:der a lei, assegurados: JCJrIbrasileiro foram considerados e mesclados. de modo que as respectivas fontes serão citadas quando de
menções mais espedficas.
a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictOS; d)
a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida". (Constituição
Fede,,], 1988, art. 5', XXXVlll, d).

-106- -107-

.'--7-.- ---

---~
,I Jogo, ritual e teatro
"..";,.:'

Jogo f'ercdictfJ

I o luri tem um caráter educacional sobre a


população. pois as sess~s são como -(, ..J
laboratórios onde se experimenta o direito
concreto e o próprio sentimento da justiça ( ..)";*
os julgamentos pelo luri, por serem mais morosos
que os demaj~aumentam a sensação social de
impunidade e a de que o Podi!r Judid:.irio não
func!ona;
Os que defendem a validade e mesmo a necessidade da participação
de jurados leigos para "oxigenar" o Poder Judiciário geralmente desen-
volvem, ainda que nas entrelinhas, argumentos típicos do conceito de
pesquisas apontam que o Júri não comete mais
erros que tribunais não populares;
pesquisas apontam que o Júri comete mais erros ~~, democracia participativa, pois afirmam que as pessoas, em geral, e os
que tribunais não populares; Ti
.~.
jurados, em particular, por sua notória idoneid.tuú, são racionais e sabem o
o Júri atende, de modo eficaz, a varios princlpios -3
soluções "extralegais. de muitos veredictos
processuais, tomo acusação, audiência, desprestigiam a Justiça; que querem, sendo possível participarem ativa e eficazmente do processo
contraditório, oralidade elc.;
decisório (Macphetson, 1978; Mattins, 1994).
f
presume-se que as decisões do Júri coincidem com
a maioria dos jurados não expressa a opinião
a opinião popular e por ela podem ser mais bem
popular, mas interesses da classe média da qual
No limite, a própria abordagem do sistema de Justiça como detentor
assimiladas.
provêm. legale legítimo do monopólio da contenção da criminalidade se respalda
* Dario M, de Almeida. O livro do jurado. Coimbra, LivrariaAlmeciina, 1977, p. 19. na tese de que as leis constituem condição sine qua non para a sobre-
:! i vivência da sociedade civil - um dos pilares do conceito de democracia

di
II Nos plenários, como seria de se imaginar, são enfatizados argumentos
representativa ou do governo das leis (Bobbio, 1986).

E não faltam juristas que se aproximam do conceito de democracia eman-


favoráveis ao Júri, especialmente nos discursos que juízes, promotores e
I: cipatória ao conceberem o Júri como verdadeiro exercício de cidadania,
defensores dirigem aos jurados. Nos corredores dos tribunais, todavia,
exaltando seu caráter plural e pedagógico devido a profissionais nele re-
esses mesmos profissionais não raras vezes reconhecem e discutem "pro-
lativizarem o jargão técnico e jurados experimentarem, "concretamente",
blemas" da instituição, até concordando com alguns dos argumentos
desfavoráveis a ela. o "sentimento de justiça", São vários os defensores do Júri, no Brasil,
que o apontam como um espaço político que, além de ter resistido ao
Como muitos desses argumentos já fomentaram teses, livros, artigos, _regime autoritário, persiste como canal para a recuperação do "homem
mesas-redondas em congressos etc., a proposta, aqui, é tão somente per- político virtuoso", participativo na esfera pública e capaz de perceber
ceber alguns significados subjacentes ao embate mais amplo relacionado essa participação não como detentora de mero valor instrumental, mas
à "democracia".
como valiosa em si mesma (Acendt, 1989). Se houvesse um "manual de
o que parece mais relevante entre os que consideram o Júri democrático regras" do Tribunal do Júri do qual constassem seus objetivos e como
e os que o consideram um risco para a democracia é, em primeiro lugar, expô-los aos jurados, como o do jogo Veredicto. provavelmente em sua
identificar as diversas abordagens de democracia que estão "em jogo". redação muito se utilizaria o termo "democracia", nesses seus múltiplos
Há juristas, por exemplo, que, mesmo sem dominar e denominar o sentidos, especialmente enfatizando o caráter democrático-emancipatório
I:i alcance do conceito de elitismo democrático (0311, 1989; Sattori, 1994; do Júri, como acabamos de pontuar superficialmente.
Schumpeter, 1971), dele estão ttatando quando afitmam que jurados
li
II , leigos não têm a devida expertise para julgar e que, portanto, compete
a uma elite jurídica (autocrática, capaz e controladora) conduzir racio-
Número de jogadores

li, nalmente a tarefa. É provável que, assim como anuncia o jogo Veredicto, a maioria das
pessoas considere acusadores e defensores os principais ou mesmo os
li'
I1 '
-108-
-109-

--r---

,;
<O
'i'
. I --0-' .••- -- •• Jogo I'urruck)

únicos responsáveis por tornar uma "sessão real" de Júri I"um assunto
tão envolvente". Contudo, isso seria simplificar uma dinâmica bem mais .
complexa que envolve o conjunto dos presentes à sessão.
,I
Conforme expusemos no capítulo anterior, embora a tensão máxima do

I jogo se concentre no embate entre promotor e defensor, unia vez que eles
representain os dois "times" do Júri, restando ao juiz, aparentemente,
a função de guardião das regras, os demais presentes, inclusive funcio-
I nários, réus e assistentes, além de jurados, contribuem. em diferentes i
m"edidas. para' tal tensão. ,
.~

c,;'

47 A partir da Lei 11.689 de 9/6/2008, que cnttoli em vigor em 9/8/2008, e es-


pecialmente de uma decisão do Supremo Tribun:al Federal (STF) de 13/8/2008
(Súmula Vinculante nO 11), tornou-se muito rare um réu permanecer algemado

I durante o julgamento. fato bem mais comum li êpoca em que fiz a pesquisa de
campo. Segundo Nucci. com base na pesquisa que ele realizou com jurados do 30
Tribunal do Júri de São Paulo. apesar de apenas 7.52% deles terem declarado que se
influenciavam com o uso de algemas (Nucci, 1999: 158-159 • .344). a apresentação

I do réu algemado pode ser decisiva "no convencimento do jurado menos preparado
e mais emocionalmente in£I.uendável".

I -110- -111-
!
;1

---

f,
i/:
I
I Jogo. ritual e teatro Jogo rerediclo

duas. paralelas, de três e quatro lugares, sendo que os de trás costumam peças, pontuando detalhes, levantando argumentos e contra-argumentos.
ficar em um plano um pouco superior aos dá frente, para que sua visi- Eles imprimem ritmo ao jogo.
,
,~
bilidade não seja prejudicada. Essas fileiras ficam sempre em uma das
Em relação às cartas do jogo de tabuleiro, são três as variáveis nelas
laterais da sala, às vezes dispostas de modo que mal permite à audiência
-,,-I
contempladas: o sexo do réu, a cidade em que ocorreu o crime e o modo
observar bem os jurados e vice-versa.
, tÚ pensar dos jurados.
Quanto ao espaço para a assistência, ausente no jogo Veredicto, nos ple-
As duas primeiras interferem no jogo apenas de forma combinatória-
nários paulistas há, em média, entre quarenta e cinquenta lugares para o
-aleatória, ou seja, se for soneada uma ré e a acus~ção tiver recebido uma
público se sentar, espaço esse devidamente separado por uma divisória baixa
carta-testemunha afirmando que uma mulher foi vista fugindo da cena
com um pequeno porrão no meio, do espaço destinado aos operadores
do crime, o acusador poderá usar devidamente essa carta. Se um réu
técnicos, jurados, réus e policiais. Além disso, como já foi dito, acusação e
for sorteado, essa mesma carta-testemunha não será conveniente para
defesa não ficam lado a lado, e o lugar do réu é próximo ao de seu defensor.

A grande mesa do juiz, também ausente no tabuleiro do jogo, é o lugar j o acusador, ocorrendo o mesmo em relação às cartas que nomeiam
duas cidades. Além desses "lances de sorte", portanto, não há nenhuma
as

físico de maior destaque e visibilidade nos plenários paulistanos, situ- outra influência possível dessas duas variáveis sobre o resultado do jogo,
ando-se em plano elevado, no centro da sala, de frente para a audiência. pois na partida não se argumentará nada referente a relações de gênero,
J
f padrões de conduta, estereótipos de réus e rés ou local do crime.
No Veredicto, o Tribunal está representado sem referência a alguns "atores"
j
(juiz, policiais, funcionários do tribunal) e sem espaços cênicos para eles Os réus no jogo Veredicto não têm suas idades definidas. tampouco
I suas
atuarem, alterando, assim, algumas das posições restantes, especialmente ocupações, estado civil, etnia, religião, local de moradia etc. Defensores
as da defesa, da acusação e do réu. e acusadores também não têm seus perfis "em jogo", sugerindo que as
argumentações que construirão terão poder quase absoluto para legitimar
Apesar das várias tentativas de localizar e entrevistar o criador do jogo (um
ou não os homicídios apenas com base nos conteúdos valorativos de suas
advogado, segundo a empresa que o comercializa). para perguntar a ele quais
motivos nortearam suas escolhas na definição das "regras do jogo", infeliz- falas e se as desenvolverão com suficiente lógica e estratégia persuasiva.

L'. mente, não foi possível encontrá-lo. O que disso podemos inferir? Menos Comudo. em relação aos jurados, Veridicto contempla a variável "forma
~:
U do que falhas, o que o tabuleiro do jogo Veredicto parece apresentar é uma de pensar". Assim como no "Júri real". o jogo pontua a importância
li espécie de ZlJom intencional de um plenário padrão. Como o resultado de ':~:
'l,
determinante da relação entre argument~dores e o perfil de seus ou-
i, um olhar focado e sintético, de registra o que a provávd maioria das pessoas 'J
! ~, vintes: "O conhecimento daqueles que se pretende conquistar é, pois,
mais nota em uma sessão de júri: sete jurados expostos às influências das uma condição prévia de qualquer argumentação eficaz" (Perelman &
argumentaçóes do defensor e do acusador e um réu presente. porém passi- Olbrechrs-Tyteca. 1996). Afirma um famoso penalista em artigo sobre
vo, imóvel em um dos extremos do caminho percorrido pelos arguifiores. a oratória perante o júri:

Tanto no jogo Veredicto quanto no júri. esse caminho é, de fato. uma Não pode o orador contentar-se com uma exibição técnica (...). A tarefa é
sequência de "passos", seja no sentido físico ou simbólico. Debatedores mais árdua.( ...). Será recomendável (...) que, desde o início da sessão periódica
deslocam-se pelo plenário à medida que percorrem o processo, lendo do Júri, procure conhecer o resultado do sorteio e a convocação dos jurados.

-112- -113-

, :"" "-_."

~
Jogo. ritual e teatro
~
..-
Jogo limJido

.Terá, assim. tempo suficiente para informar-se a respeito de cada um deles, Folheando O respectivo processo) descobri que esse advogado, na defesa
(...) coletando as notícias mais completas a seu respeito (...)-0 diálogo sempre prévia, registrara: "Segundo consra às fls. (... ), a Rua (... ) não consta no
terá mais probabilidade de sucesso se quem fala conhece: o modo tk ser e de Guia Mapograf, embora conste o Jd. Orion (345-C-21). Requer-;~, .
pmsar do interlocutor. (...) Tendo em vista a natureza da causa, elaborará
pois, ofício à municipalidade, para idenrificaçáo de ral logradouro e
a lista de suas recusas, s~ndo-se das informaçóes obtidas. (;..) os nomes i respectivo n' (... )" .49
dos jurados, suas profissões e tendências, inclusive as posições sociais. Isto
será muito útil, porque permitirá ao orador o estabelecimento de particular Muitos réus e rés mo~ em ruas que não existem oficialmente. Como
empatia, possibilitando individualizar, em dado momento, o diálogo direto são muiras as que surgem diária e ilegalmente em São Paulo, especial-
e intencional com qualquer um deles (Pimentd, 1988: 283, grifo meu). mente em áreas de preservação de mananciais (caso do Jardim Orion
Ponamo, a "forma de pensar" d~s jurados, representada no jogo Vere- em questáo), é provável que a rua em que morava a ré não constasse do
dicto por cores) através das quais acusador e defensor se orientam para. referido guia. O Esrado, no exercício de suas funções policial e judicial,
influenciá-los, no "Júri real" é uma variávd complexa, resultante do nem sempre encontra os lugares em que ele próprio descumpre suás
equacionamento de várias outras por parte de acusadores e defensores funções sociais) sendo) portanto) desafiadora a análise da variável "loca1
para que cheguem a uma conclusão. de moradia de réus e vítimas" ou "local de ocorrência dos delitos"SO em
relação aos jogos da "vida real" que envolvem criminalidade.
;,;<- Os jogadores do Veredicto podem ser dois ou quarro (um ou dois de-
fensores e um ou dois acusadores» e o desfecho do jogo é determinado Outra "sutileza" des~e processo do Jardim Orioo é que, em várias
"
'il pela habilidade com que urilizam as cartas que recebem alearoriamenre. peças, como na denúncia do promotor, a residência da ré é tida como
Essa habilidade consiste em selecionar boas frases, desenvolver outras localizada "nas proximidades" do bar onde ocorreu o crime Qardim
incompletas, desprezar as que não convêm e, estrategiCamente, direcioná- Sousa) .•Todavia,entre-c:sses endereços está toda a-parte norte da represa-
.las aos jurados, conforme as "cores" de seus pensamentos. & falas das Guarapiranga, o bairro do Socorro e parte da Cidade Dutra; ou seja, "a
resremunhas, rambém dependendo da sorre e de um pouco de destreza periferia") "os Jardins Orions" aparecem tão opac:os e vagos na maioria
argumentativa, podem favorecer ou prejudicar o réu. dos discursos dos operadores técnicos quanto "a África" ou «(aAmérica
do Sul" na maior parte dos pronunciamentos de natureza geopolítica
Os nomes dados às duas cidades em que o jogo Veredicto aponra a
r:~ ocorrência de crimes, Orion e Polar, são fictícios, mas) ironicamente)
dos países centrais.
~! assisti a uma sessão em que a ré morava no Jardim Orion) Zona Sul da A famosa conclusão anrropol6gica de que a cultura é como uma lente
capital paulista. Seu advogado referiu.se ao bairr? em meio ao seguinte através da qual o homem vê o mundo (Benediet, 1972: 19-20) e de que,
discurso: "( ... ) pesquisa da ONU revela que, no Brasil, 50 milhóes de
pessoas recebem R$ 80,00 por mês e que, só no esrado de São Paulo,
são 11 milhões nessa situação. (... ) Grande parte dessas pessoas mora nos 49 Processon. 1.564/95. I' Varado Tribunal do Júri da Capital, £1..201.
Muitose complexossãoos estudos interdisciplinaresque consideram análisesgeorre-

f
Jardins Orioos da periferiá, onde sobreviver é um ato de heroísmo". 48 50

ferenciaisda criminalidade, especialmentenas capitais e grandes cidades brasileiras.


levandoem conta o local de ocorrência do delito elou de residência da vítima. No
caso da cidade de São Paulo, vale consultar: <:http://www.ncvusp.orgldown1oads/
'" 19/7/2001. por volta das ISh30, Plenário 8 do 111 Tribunal do Júri (Barra Funda). down211.pdf>.Acessoem 21/7/2012.

-114- -115-

~----


III
I',I
Jogo, ritual e teatro

lill
,I
'I

:
portanto, estamos todos condicionados a vê-lo a partir de referenciais
Jogo I'erediclo

,
i :
' adquiridos a partir de nossas experiências de socialização mais próximas acusação, e cada jogador recebe três cartas (se forem quatro os jogadores)
:I e profundas. encontra, no exemplo citado. apenas mais uma tradução. ou cinco (se forem dois). É possível que jogadores da acusação recebam
A maioria dos operadores do direito, especialmente juízes, promotores cartas da defesa e vice-versa, o que implica não deverem necessariamente
'li
!Il
e advogados, vê a cidade de São Paulo a partir de um referencial de
classe média, capaz de identificar sutis distinções entre bairros centrais,
usá-Ias, exatamente como ocorre com as provas disponíveis nos autos
de um processo criminal; elas nem sempre convêm aos discursos do
íI
'J! mas incapaz de conceber «a periferia" como algo mais que um grande e promotor e da defesa, sendo alvo de seleta edição, omissão, composição
I' , amorfo espaço de pobreza e criminaliclacle.SI. e interpretação por pane deles.
!i;
~ I

',: ;
Mas, como já esclarecemos, nosso principal objetivo com esta análise do fu treze "fichas de influência" (cítculos numerados) de cada jogadot
i,
. , jogo Veredicto é interpretar o modo como nele o funcionamemo do "Júri ficam sob sua posse, mas sem que conheçam s.eus valores, e os peões
real" é imerpretado. Portanto, os componentes do jogo, especialmente as representando cada jogador são colocados no centro do tabuleiro, nos
cartas que contêm um vocabulário prefixado para falas de testemunhas e locais indicados para a defesa e a acusação.
arguidores, indicam algo que também ocorre nas sessões do "Júri real". Mais uma vez, vale registrar que essa preparação do jogo Veredicto indka
Nelas também há um ~ocabulário preixado. inclusive com frases comuns apen~ critérios aleatórios de seleção de jurados, ao passo que nos Júris
a acusadores e defensores, como: "Senhores membros do conselho, a ver- "reais"costuma-se seguir lógicas intencionais de seleção, baseadas no que
dade acabará resplandecendo no céu da justiça" ou "O tribunal do júri, mais à frente denominaremos de "soéiologia selvagem".
, , como a mais nobre instituição deste país, deverá...••, ou ainda "Os olhos
I! '"
I,
da sociedade estão voltados hoje para este tribunal. Nossa consciência A listagem anual de jurados, em cada Tribunal do Júri, decorre de uma
exige...". Essas frases só ganham vida e sentidos quando preenchidas, em mescla de critérios objetivos (ser brasileiro nato ou naturalizado, no
ato, durante as sessões nos plenários, por um outro conjunto de palavras 1 gozo de seus direitos políticos, maior de 18 anos)S2e subjetivos (ser
cidadão capaz e de notória idoneidatú moral). Atualmente, encontram-se
e expressões que, de acordo com Geertz, chamaremos, no Capítulo 6,
de vocabulário de sentimento (Geenz, 1978: 317). disp'oníveis em vários sites de Tribunais de Justiça estaduais a "Cartilha
do Jurado", na qual, em linguagem simples e direta, são esclarecidos os
principais aspectos relacionados ao funcionamento dos Tribunais do
Preparação do jogo
Júri no Brasil, com informações sobre quais crimes são de sua compe-
No jogo Veredicto, após o sorteio que determina se será julgado um réu tência, como o Tribunal do Júri se organiza, quem pode ou não servir
ou uma ré, se o crime foi cometido em Oriou ou Polar e quais dentre os como jurado, quem está isento, como se alistar, direitos e deveres, e
etapas de uma sessão de julgamento.
II I nove jurados serão os sete a compor o Conselho de Sentença, são emba-

li I
~:
ralhadas as 74 canas contendo frases para argumentações da defesa e da l'
J;
li I ;i
~,i SI Da mesma forma, a Cidade do México é percebida e concebida de múltiplas maneiras S2 A l~gislaçáo imp~rial som~nt~ aceitava para o s~rviço do Júri "hom~ns bons, honra-
'f . pelos que por da transitam: "viajantes", a partir de suas "travessias e imaginários", ~ dos, inteligentes e patriotas" (Dec. d~ 18/6/1822). Até o advento do D~c. 21.076,
concebem_na como cidades muito distintas (Canc1ini et al" 1996).
li ,~:; d~ 24/2/32, as mulheres não ~xerciam o direito d~ voto; logo, não eram "cidadãs" ~,
por cons~guinte. não podiam ser juradas.

lI, -116-
-117-
II i

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e
4"&" •••• .-." ••..•••••
v Jogo ttmucw
I
o que se destaca como tema de especial interesse, seja nessas cartilhas, Na prática, o que fundamenta essas "recusas peremptórias" é uma análise
seja em manuais de "teoria e prática" do Júri, no entanto, éo que tange psicossocio16gica fulminante que promotor e defensor fazem dos jurados,
à idoneidade dos jurados. Em um dos manuais mais Consultados, há a qual denomino "sociologia sdvagem" ..53 Dispondo de uma lista com os
uma passagem exemplar: nomes e profissóes dos convocados, seguidos. das assinaturas dos presentes,
promotor e defensor exercitam seu "olhar clfnico" sobre os sorteados para,
I A idoneidade exigida significa aptidão, capacidade, ranto moral como inte-
lectual. (...) o çorpo de jurados se deve compor dos cidadãos mais notáveis mentalmente, cruzarem as variáveis profissão, gênero, etnia, faixa etária,
do município por seus conhecimentos, experiência, retidão de conduta, aparência, modo de vestir, de sentar, de olhar e, às vezes, até o fato de o
independência e devação de caráter. (...) a lei faculta ao jUÍ1. requisitar às jurado ser novato ou não. Em segundos, o resultado desse cruzamento é
autoridades locais, associações de classe, sindicatos profissionais e repartiçóes ponderado em função de características do caso em julgamento, combina-
públicas a indicação de cidadãos que reúnam:as condições legais para exercer das com perfis do iéu e da vítima e, depois de mais alguns segundos, de-
a função de jnrado (Marrey, Franco & Srocco, 1997: 206).
fensor e promot?r declaram, em voz alta, se aceitam ou não cada sorteado.
Especiticamente em um artigo sobre a "notória idoneidade". um pro-
Em uma das sessóes que acompanhei, excepcionalmente sentada ao
motor escreveu:
lado do promotor, ele esgotou suas recusas, depois de não ter aceitado
Hoje, lamentavelmente, em um momento que os referenciais da "not6ria uma publicitária, uma pajem e um comerciante. Ao pé do meu ouvido,
idoneidade" se perdem no caleidoscópio confuso dos crimes de white-eollar justificou~se:
(...) depara-se, muitas vezes, o Juiz de Direito - e o Ministério Público,
na atividade fiscalizadora - na indefinição concreta do que seja a "notória :t Como preciso de um Conselho de Sentença que mantenha a condenação,
ainda que amenizando-a, preciso de jurados mais conservadores. Esse,
idoneidade". (...) uma boa composição da rista anual será a convocação
provavelmente, não é o perfil de uma publicitária, de uma pajem e do co-
de cidadãos que evidenciem, por seus afazeres e modus vivendi, qualidades
(...) Sobretudo é preciso que o jurado tenha. disposição de ser jurado (...) \ merciante que estão ai. Publicitários são formadores de opinião, gostam de
questionar, criticar. A pajem lida com um universo muito distante do que
Leigos, sim, mas que não sejam apequenados na inteligência, encolhidos
será julgado e esse comerciante tem aparência de insatisfeito. 54
de raciocínio e, tampouco, devedores morais (Bonfim, 1993: 309-316).
Ainda sobre a seleção de jurados, esse promotor comentou: "As mulheres
À época em que realizei a pesquisa de campo, entre as centenas de jurados
são menos influenciáveis por argumentos de dor f1sica e são mais sensíveis
Ic..~ anualmente listados em cada Ttibunal, eram convocados 21 para cada
a argumentos que se referem a dores morais". Recomendou~me a leitura
sessão, dos quais ao menos quinze deveriam çstar present.es para que o
juiz SOrteasse sete para comporem o Conselho de Sentença. À medida
que as cédulas com os nomes dos presentes eram sorteadas pelo juiz, que '3 Algunschamamde "psicanáliseselvagem"~ tentátivasde interpretaçõespsicanalíticas
os lia em voz alta, tanto a defesa quanto, depois, a promotoria podiam porparte de:leigt'se mesmode profissionaisque sedão £Oradocontextopsicanalíticoe,
portanto, semrespeitoacenos preceitosteóricos,metodológicose éticosque orientam
recusar, cada uma, até três jurados, sem explicitar os motivos. Com as ~ a práticada psicanálise.Entendo que algosemelhanteocorre com a sociologiaquan-
alterações que o art. 459 ~ 2° do Cpp sofreu em 2008, atualmenre os do utilizadapor leigose mesmo por profissionaisde outras áreas, em contextos não
J.-
I,i artigos 462 e 463 preveem que devem ser 25 os jurados convocados para
cada sessão, dos quais ao menos quinze devem comparecer, continuando
,
.,~
, 5<l
acadêmicos,para legitimaropiniõessem os devidoscuidadoste6rico-merodológicos.
Tratava-sedo terceirojulgamento do réu pelo mesmo crime, pois os dois anteriores
haviamsido anulados.Estávamosno Plenário7 do l.oTribunaldo Júri (BarraFunda),
:1 a serem sete os componentes do Consdho de Sentença. em 15/8/2001, e a sessãoocorreu entre 12h e 16h45.

J -118-
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-119-
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11 Jogo, ritual e teatro

~ 11 Jogo Ié,ediclo
II !I de um livro que trata da seleção de jurados nos Estados Unidos (Hasrie.
Penrod & Pennington, 1986) e mostrou-me quais eram os outros livros tiva para mapear as várias reações além do constrangimento e do alívio
q! que gostava de ter, sempre à máo. no plenário: A arte de aCUSar (Guerra, experimentados por jurados recusados, o que me parece ainda não ter
,
i
(
1989). Q p!mdrio doJúri (Pereira, 1997) e Psicologiajudicidria (AltaviJIa, sido devidamente pesquisado.
198 I e 1982) - o primeiro, uma espécie de manual de sugestões a jovens
Quanto à possibilidade de três recusas poderem ser imotivadas tanto pela
advogados e promotores sobre o que fazer em plenário. e os outros dois,
clássicos técnico-doutrinários. defesa quanto pela acusação, é majoritária, entre os profissionais brasilei-
ros do Júri, a opinião de que, com isso, o sistema assegura a plenitude da
Os jurados Sorteados, recusados e escolhidos nessa sessáo foram: defesa, bem como o aperfeiçoamento e o prestígio da própria instituição:

1
Pode haver ódios, antipatias, ou fundadas ou nascidas somente de pre-
mulher

,I I. , homem
auxiliar de escritório;
autÔnomo/promotor de vendas;
venções, preconceitos que náo se podem explicar ou (...) provar, e que,
li I
3
entretanto, exerçam influência e impressões inoomodas e aflitivas sobre o
homem
engenheiro; espírito do acusado ou acusador. (...) tirante o folclore e o misticismo (...),
4 mulher
rd S homem
pajem (re<;usada);
torneiro de revólver;
cuja estigmatizaçáo (...) pretenda "catalogar" jurados convenientes ou náo;
a "recusa",quando corretamente exercida, ajuda ao aperfeiçoamento do Júri
6 mulher
li publicitéria (recusada): (Bonfim, 1993: 314-315).
7 homem
mecanico de manutenção;
8 homem
industriário; Segundo Hastie, Penrod & Pennington (1986), em países como Estados
9
~
homem Unidos e Inglaterra, o processo de escolha dos jurados faz parte integran_
10 mulher
comerciante (recusado);
do lar.
J te e decisiva do processo de julgamento. Há firmas de consultoria que
disponibilizam equipes de profissionais especializados em selecioná-los;
são "consultores" ou "peritos" em Júri (psicanalistas, sociólogos, grafó-
Sobre o jurado número 8, o promotor comentou comigo: "Note que é
logos, professores de Direito) que estudam o "genótipo", o "fenótipo" e
o único que está de terno, o que não é uma exigência. Provavelmente,
a histÓria de vida dos jutados (histótico familiar e profissional, hábitos
ele respeita as instituições. Portanto, é um jurado ideal para manter as
cotidianos e esporádicos, atuais e passados etc.) para, antecipando_se a
decisões anteriores dos dois OUtros Júris que já condenaram esse réu".

Na já mencionada pesquisa realizada no 30 Tribunal do Júri de São


'I suas prováveis tendências de voto, orientarem promotores e defensores a
recusá-los ou aceitá-los_ nos EUA, o número de "impugnações peremp-
Paulo, 68,81 % dos jura,dos entr~istados declararam que não se sen- tórias" ou "diminações", bem como o número de jurados convocados
tiriam constrangidos se fossem recusados pela acusação ou pela defesa podem variar dependendo do caso (Gtisham, 1998: 55-56). Os con-
,t sem sabetem a tazão CNucci, 1999: 148-151 e 358). Talvez isso tenha sultores, em gera,! regiamente pagos, afirmavam ser capazes de analisar
relação com o que, cerra vez, um jurado recusado disse a mim, ao sair: profundamente uma pessoa por meio de sua linguagem corporal, como
"É frustrante, mas também é um alívio. Afinal, a gente veio até aqui e tiques faciais e pontadas de hemorroidas (Ibid.: 32-33).
tudo o mais ... Mas sabe-se lá quanto tempo a coisa itia demotar. Vou pta ,
Embora não existam no Brasil tais empresas e equipes de selecionado_
casa, descansar". Seria ~ecessária uma investigação específica e qualita-
res de jurados, sua escolha geralmente não é aleatória, assim como a
I definição dos operadores técnicos que atuam em certos julgamentos.
I -120_
I -121_
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<;r::;1 Jogo Yeredu:lo
I ,IVISU, nluW c '.CtU~V

i
,I Algumas vezes, em funçáo da "fama" do réu e/ou da vítima, a mídia passa
a dar especial cobertura
e acionando
a determinados
vaidades profissionais
casos, influenciando
de juízes, promotores,
os jurados
defensores,
J é apenas enquanto ele está nos preparativos que os jurados cumprem
uma função "de tabuleiro". Uma vez iniciada a partida, juntamente
acusador e defçnsor, os jurados vão para o centro do jogo, de sua l6gica
com

funcionários e mesmo de PMs encarrçgados da segurança das sessões.5S I. e de seu desfecho, exataménte como ocorre no "júri real".

Alguns juristas brasileiros


prévio que promotor
sugerem uma ampliação
e defensor têm dos jurados:
do conhecimento \ Finalizando e articulando as colocações anteriores, cabe um último
comentário sobre as tegras para a preparação' do jogo Veredicro. Nelas
As partes. antes da instalação da sessão. deveriam ter a oportunidade de fazer está registrado, ao final.do 1 O) ~: "Já se conhece quem cometeu o crime
algumas perguntas aos jurados presentes e ainda não soneados, buscando e em que cidade" (p. 3). Se o jogo simula um julgamento, cujo objetivo
'i i extrair seus preconceitos e modos particulares de pensar e agir, a fim de é absolver ou condenar o réu, como, antes do Ver~dicto, já se conhece
I
" I
II que, a tÍtulo de exemplo, um comerciante que já foi assaltado várias vezes quem cometeu o crime e em que cidade? Se compreendida ao pé da
'i I não tome parte no Conselho de Sentença para julgar um réu acusado de lelta, essa frase indica a tendência ilegal, embora bastante difundida no
homiddio seguido de roubo. Ou que uma pessoa, extremamente religiosa, Brasil, de se considerar "todo réu culpado, até prova em contrário".~6
I entendendo que somente quem julga é Delis, não seja levada a deliberar
Ij, I Essa aparente contradiçã~, longe de ser um equívoco. talvez seja a chave
acerca de um perigoso marginal (Nucci. 1999: 150).

,
I;
para se entender o jogo Veredicto e uma elas principais características dos
De qual,quer maneira, sortear aleatoriamente sete entre nove jurndos - jogo
julgamentos pelo Júri no Brasil. Tanto em um quanto em outro pode ser
Veredicto - é muito diferente de, através de critérios socioeconômico-mo~
relevante descobrir se, de fato, o acusado matou ou não a vítima. mas
rais, listar centenas para ficarem à disposição de tribunais que convocarão

I
o que sempre e mais se discute é se ele teve ou não motivos, e se tem ou
25 para cada sessão, dos quais pelo menos quinze deverão comparecer
não "perfir pata matá-la.
~__ para que sete compo_nham o Conselho, havendo_o.u não recusas. Mas não __
nos enganemos com a aparente simplicidade do jogo Veredkto, porque .:.~' Muito da argumentação com a qual se "brinca" no jogo Veredicto se
,i relaciona nos Tribunais do Júri com a elaboração de motivações e perfis

~~ Ao contrário do que eu supunha. algumas"sessõesde grande repercussão às quais n


,
ll' dos envolvidos no delito. Por isso, acusados tanto podem ser absolvidos,
mesmo tendo cometido assassinatos, quanto podem ser condenados,
só tive acessoporque pegueisenhas çom muita antecedência Gulgamc:ntosdo "Ma- il
níaco do Parque", por exemplo), não me surpreenderam emograficamente.Nelas,
apenasnotei exacerbadosalgunsas~etOSdas "sessõesnormais":o ~ómgravee solene ~6 Uma discussãotécnica, nessesentido, é a do peso da sentença de pronúncia quando
do juiz; comportamentos e discursospomposos de promotor e defensor,olhares de do julgamento em plenário, pois, quando o réu vai a Júri, o juiz singular já proferiu
expectativae expressõesde concordancia, disc.ordânciae até de cansaçodos jurados; uma sentença na qual motiva seu c.onvencimentode que houve crime e indícios de
a posição de "guardi6esdo templo" dos PMs. Mas a dinâmica do rimal estava tão que o réu foi o autor (art. 408 - CPP,à época da pesquisa,atual 413). ''Adoutrina
presentequanto nos julgamentos de réus desc.onhecidosque mataram vítimas tam- e ajurisprudênciasão praticamente unânimesao afirmar que uma sentença (de pro-
bém desconhecidas.Por essemotivo e por não ter como meta analisaras polêmicas núncia] proferida em termos c.ontundentese com apreciaçõesaprofundadas sobre
relaçõesentre Júri e mídia (Thomaz Bastos, 1999: 112-116), deseartci a estratégia o mérito da causa pode influenciar indevidamenteo Conselho de Sentença, sendo
metodológicade privilegiar"julgamentosfamosos",embora estesvenhaminspirando, causade nulidade da decisão. (...) Por OUtrolado, continuará sendo exigívd. por
no Brasil,trabalhos tantO de acad!mic.os(Fausto, 2009: caps. 11 e 12) quanto de forçada Constituiçáo, que o juiz fundamente suas.decis6es (Nucci, 1999: 91-93).
n

grandes profissionaisdo Júri (Lima, 1996; Silva. 1991). quanto ainda de escritores Quem trabalha essedebate em profundidade, no campo da antropologia. é Roberto
(c.,oy, 2010). Kanl de Lima (1997,1999,2004).

-122- -123-

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--
;/i
fi
'li Jogo, ritual e teatro
li
Jogo /1:mliclo
I'f embora inocentes. A cada partida de Veredicto e a cada sessão de Júri,
dI estão especialmente em jogo motivações que legitimam socialmente ou e mantiveram um ar blasé a maior parte do tempo, uma outra maneira,
': [I não a prática de homicídios. talvez, de afirmar soberania e autoridade.

O jogo Veredicto não contempla a participação do juiz nem a do réu,


I1I il Como jogar
tampouco há versões a serem previamente relatadas, pois elas só se cons-
l. :!i
i
:!r Uma das diferenças entre a dinâmica do jogo Veredicto e a do Júri é tituem à medida que acusador e defensor desenvolvem SUas falas. Isso

que, no segundo. a sessão tem início com a presença marcante do juiz ,


-.
pontua o caráter criativo das argumentações, seja no sentido de que elas

presidente. pois é ele quem, além de conduzir a formação do Conselho criam a história do crime e da inocência ou culpa do réu, seja no sentido
de que sua força persuasiva depende da habilidade e SOrte dos jogadores.
I1 I
, de Sentença, interroga testemunhas e réus. Os interrogados. inquiridos
i pelo juiz, podem ainda responder a perguntas do promotor, de seu Veredicto começa com o promoror cumprindo a seguinte regra: ''Argu-
': " assistente, do defensor e dos jurados, nessa ordem, embora sempre mentar significa escolher uma de suas cartas e descartá-la no tabuleiro
..
I' "
:
.' II
mediados pelo juiz. ,lI

"'
para conseguir influenciar um jurado": Por quatro vezes _ quatro séries de
debates - o promotor lançará uma "carta-argumento" e a defesa tentará,
Ir I': Somente após todos esses procedimentos de responsabilidade do ma-
gistrado a palavra é passada ao promotor, para que leia o "libelo"57 e de imediaro, neurralizá-lo, com outra "carta-argumento", Por exemplo: a
ii 11 acusação Usa uma carta que, além de alguns dizeres) Ostenta cores verde
desenvolva a acusação. Durante sua fala, o defensor pode, eventualmente,
I1 pedir apartes, que serão descamados do tempo de arguição do promotor, e azul, podendo influenciar jurados que "pensam verde e azul". A defesa
,I
o mesmo valendo para quando for a vez do defensor. Embora tenha de "contra-ataca" com uma carta que, além de outros dizeres, contem somen-
'/ seguir esse script do Código de Processo Penal, cada juiz o faz de maneira te a cor verde. Resultado: o "jurado verde" foi neutralizado pela defesa
11 peculiar, de acordo com seu "estilo". e o "azul" foi influenciado pela acusação. Para marcar essa conquista, o
1' ou Sua vara &iat,
I,
,i i Assisti, por exemplo, a sessões em que juízes e juízas adotaram um "estilo
jogador~acusador deposita uma "ficha de influência",
' como diria Huizinga (;980: 89), jUnto ao jurado azul, sem ver o valor da
didático" e explicaram aos jurados o "sentido" de cada procedimento em
! ficha. Isso se repete por mais três vezes e depois invertem_se as posições,
plenário, afirmando, assim, seu soberano saber-poder. Assisti, também,
Essas argumentaçóes e contra-argumentaçóes continuam, alternadamen_

i fi
I a sessóes em que os magistrados ou magistradas foram monossilábicos
te, até terminarem
um limite predefinido
as "fichas de influência" de um dos jogadores.
de argumentações, ficando o término dos debates
Não há

na dependência do esgOtamento das possibilidades de cada jogador_


li 'I 57 Libdo é uma peça processual. assinada pelo promotor e por ele produzida logo de-
pois de passada em julgado a sentença de pronúncia, na qual o juiz especifica todas No "Júri real", as parres não se intertompem, oralmente, a cada argu-
as circunstâncias qualificativas do crime. O libelo deve conter o. nome do réu; a
exposição do fato criminoso (em arligos); a indicação das circunstâncias agravantes.
mento, pois as "regras" preveem que devem .se "neutralizar" em, no
expressamente definidas na lei penal. e de todos os fatos e circunstâncias que devem máximo, dois blocos, ou seja, somente depois do primeiro conjunto
influir na fixação da pena, além de indicação da medida de segurança aplicávd. Po- 'I
II, dem acompanhá.lo o rol de testemunhas a depor em plenário (até cinco). bem como
documentos e requisição de diligências (ares. 416 e 417 _ Cpp, antes de 2008).
de argumentações da acusaçáo a defesa pode desenvolver
• conjunto de contra-argumentações, No total, à época da pesquisa
seu primeiro
de
? campo, eram cinco as horas previstas para esses "debates": duas para
,I'
j -124_
l!
-125-

--'7---- ''',
.. -~
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o promotor, duas para a defesa (primeiro-bloco), mais meia hora para
a réplica do promotor e meia hora para a rréplica da defesa (segundo
,
7
No jogo VeredictD, as interrupçóes fazem parte das regras que levara
a uma dinâmica aparentemente mais dia16gica que a do "Júri real".
bloco, optativo). Aparentemente porque, de acordo com as deci~çóes de um promotor
aposentado, "há muito mais apartes no Júri do que os que os ouvidos
registram, pois os. gestos e caretas do defensor, enquanto o promotor
fala e vice-versa, são tipos de apartes C..)" ,59

Influenciar jurados, segundo as regras do VçredietoJ.é levar em conta <la


cor de seu modo de pensar" - azul, verde ou rosa - e atingi-los. da melhor
maneira possível, com as cores das cartas de argumentação que se têm
em mãos. Uma carta de argumentação pode ter as três cores (trata-se de
um bom argumento) e influenciar, simultaneamente, três jurados, ou
pode ter duas ou uma s6 cor e influenciar dois ou apenas um jurado,
respectivamente.

Embora no "Júri real" tais cartas de influência materialmente não


Após as mudanças implementadas em 2008, mantiveram-se as cinco existam, promotores e d.efensores. de certo modo. imaginam "a cor do
hocaS, mas assim distribuídas:58 pensamento dos jurados" ao lançarem seus argumentos pata inHuenciá-

-~-
-los, afinal, "para que uma argumentação se desenvolva, é preciso, de
fato, que aqueles a quem ela se destina lhe prestem alguma atenção (...),
- como a argumentação ViSáobter a-adesão -daqueles a quem se dirige: "Clã -
é, por inteiro, relativa ao auditório que pretende influenciar" (Perelman
& Olbrechts-Tyteca, 1996: 20-21). Disse-me um promotor, certa vez:

Essa história de alguns jUrados, enquanto a gente fala, ficarem balançando


a cabeça, como se estivessem concordando e aceitando nossos argumentos,
é "pega-trouxa", pois a maioria faz isso tanto para o promotor quanto para
I o defensor. É só um modo de acompanhar. Eles levam muito a sério o fato
I
de não poderem expressar o que estão sentindo, embora, às vezes, deixem
i! esçapar alguns sinais de agrado ou desagrado. Mas é a gente que tem de
.1
I imaginar o'que eles pensam.e se antecipar (...) Certas frases eu falo olhando
para as juradas e outras para os jurados. Não é à toa que eu, quando digo

5a Conformejá mencionadoessesfluxogramasestãointegralmenteacessíveisem: <http:// 51 Palestraproferida no curso OfUturo do Júri no Brasil, pdo Dr. Hennlnio Albeno
www.buscalegis.ufsc.brlrevistasl61esfanexos/33668-43740-1-PB.pdf>
e <http://www. Marques Porco,em 10 de maio de 1999. das 9h às 10h30, e intitulada A n/o/uçáo
histórica do Júri.
I ucamcesec.com.br/arquivosl atividades/Buxo_j uri_2D08_ -_2. pdf>.

-126- -127-

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Jogo, ritual e teatro
Jogo J1.~rt~dir;lo
certascoisas, fico ao lado de uma dona de casae, dep-pis,vou parao lado do
Vencedor do jogo
jovem empresárioque quersubir na vida (...) ,Masa gente se engana, porque
os jurados jogam com essa história da incomunicabilidade e do sigilo dos O jogo Veredicto prossegue, conforme já apontado, até que a defesa ou a
votos. Esse é o poder deles.60 \ , .
acusação consiga distribuir todas as suas treze fichas de influência sobre
Esse depoimento não só revela a intensa leitura de sinais n'ãoverbais que os jurados. Se a defesa terminar a distribuição primeiro, o jogo é inter-
percorrem a sessão como indica uma percepção apurada da microfisica do rompido; caso contrário, a defesa ainda terá direito a mais um debate.
poder (Foucaulr, 1974) existente no Júri, que está longe de ser uma arena Uma vez interrompido, são apurados os "votos dos jurados"; ou seja,
de luta na qual combatem dominadores e dominados. Esse promotor se as fichas de influência têm seus valores revelados e somados. Se sobre o
dá COntada sutil teia de recíprocas dominações "em jogo", especialmente primeiro jurado o valor das fichas de influência da defesa (de cor bege)
ao perceber que jurados utilizam a seu favor o que aparentemente poderia superar o valor das fichas de influência da acusação (de cor preta), por
lhes limitar. O fato de a acusação no jogo Veredicto receber cartas que exemplo, o voro desse jurado é pela absolvição do réu (ré). Se houver
seriam úteis à defesa (e vice-versa) revela que os dois "lados" ocupam empate, considera-se que o jurado se absteve. O resulrado do jogo é
posições conjunturais, pois. se quisessem e pudessem,-teriam condições revelado pela contagem de quantos jurados votaram pela absolvição e
de trocá-las. Do mesmo modo, nos julgamentos "reais"é comum a defesa quantos pela condenação. Caso renha havido abstenções e haja empate
conhecer detalhes que omite para não prejudicar o réu, o mesmo fazendo na contagem final, deverá haver novo jogo.
a acusação ao silenciar ou não explorar detalhes que Ofavoreceriam. Nisso k regras finais do Veredicto informam que "o vencedor do jogo será a
"(...) reside o segredo", declarou-me um advogado: "Preparar uma boa acusação se o réu!ré for condenado. Será a defesa se ele for absolvido".
defesa é dominar tanto os argumentos que o promotor poderá usar contra No Júri, embora. geralmente, os defensores (mais que os promotores)
o réu quanto os que você pretende usar-a seu favor (... )".6!
expressem ar de vitória ou de fracassodiante da absolvição ou condenação
Também é relevante notar que as carreiras de muitos promotores públi- de seus clientes, é "pelos corredores" que mais se conhece sua fama de
cos. advogados de defesa e juízes não raramente se intercambiam numa "bons" ou "maus"profissionais, pois essas não resultam de uma matemá-
dada altura de suas vidas, havendo promotores que passam a advogar, tica simples. "Bom promotor" não é mero sinônimo de ter conseguido
assim como advogados que vão para a magistratura ou para o Ministério muitas condenações e nem "bom advogado" de ter absolvido muitos réus.
Público (Vianna et ai., 1997: 187-203). Portanto, "osjogadores" ocupam Um promotor com fama de "condenador voraz", de quem "nunca faz
posições que são, elas sim, estruturais e imprescindíveis ao funcionamento acordo" e que "destrói o réu" pode ser considerado desumano, levando
do jogo, embora conjunturais em relação a quem as ocupa. as sessões em que atua e até O próprio Tribunal a receberem apelidos
como "câmara de gás" ou "corredor da n:orre" ou "'shopping center da
punição". Do mesmo modo, um defensor que acumula absolvições,
especialmente de réus tidos cómo "altamente perigosos", pode ser taxado
GO 15/812001, etnografia realizada das 12h às 16h45 no Plenário 7 do Il!Tribunal do de inescrupuloso e carreirista. Enfim, no "jogo real do Júri", resultados
Júri (BarraFunda). não podem ser medidos por quantidades, mas por qualidades, e estas
61 Entrevista telefônica, concedida em 13/7/2001, por um advogado que atuou em quase nunca são facilmente perceptíveis.
uma das sessões a que eu assisti.

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-129-
~
Jogo, ritual e teatro Jogo VerediJ;úJ
''', •.,,-.,

Observações da contagem das cédulas, com votos depositados na sala secreta, em que
os jurados respondem "sim" ou "não" a cada quesito formulado pelo juiz.
Abstenções e empates, no "Júri teal", são impossíveis, uma vez que os
sete jurados sempre votam "sim" ou "não" para cada quesito. Do mesmo Não fosse assim, nenhum dos dois "jogos" terminaria e tampouco servi-
modo que não se admite que acusador e defensor deixem transparecer riam para O que servem: exprimir, por meio de casos particulares passíveis
dúvidas em suas sustentações orais, pois isso é entendido como des- de serem narrados e julgados em algumas horas, valores sociais confli-
preparo técnico e desqualificação ética e profissional, também não se tuosos, complexos, multifacetados, de difícil "narração" e julgamento.
admite que jurados tenham dúvidas que os impeçam de decidir, ~pois,
em havendo, deveria prevalecer o princípio in dubio pro reo. Todavia,
conforme analisei em relação a um caso julgado em 2008 (Schritzmeyer,
2012), o "princípio" que parece preponderar nos casos em que jur2dos
têm dúvida é o in dubio contra o réu.: "Na dúvida, como fazem os ex-
~.#
Complementando o capitulo anterior, neste enfatizamos ainda mais o
terminadores e chacinadores quando matam um grupo de jovens de caráter lúdico-agonístico das sessões de Júri e sua natureza essencialmente
periferia) somente porque são jovens, mulatos ou negros) pobres, estão simbólica, a fim de explorar o quão propício é abordá-las a partir de re-
na rua à noite e 'parecem bandidos', preferiram [os jurados] prevenir cursos analítico_-antropológicos. Esses nos permitem perguntar - e tentar
que remediar [condenando a ré]" (idem: 18). responder - o que está em jogo no Júri e o que esse domínio privilegiado
Declarou-me um juiz: l(Se eles pudesse~ se abster, nunca chegaría:nos ou drea crítica manifesta e permite vislumbrar a respeito de alguns desejos
às sentenças, pois nem sempre é fácil decidir. Para um juiz também é e valores socialmente considerados hegemônicos.
assim e todos têm de chegar a um veredicto". 62
Prosseguiremos com essas perguntas e tentativas de respostas, abordando,
~
--
-~--
-~
--- -~
---_.
--~------,r no próximo capítulo., .o-Juri como ritua[
Apesar de todas as diferenças apontadas entre o jogo Veredicto e o "Júri
real", talvez as palavras-chave que melhor resumam suas estratégias
sejam as mesmas: debates e argumentações, e, nos dois casos) '6s ~sforços
qualitativos para se lidar com ideias e palavras capazes de persuadir
"formas de pensar" desembocam em um desfecho aparentemente quan-
titativo - contagem de votos. Em outras palavras, o qualitativo (debates
~.",.
e argumentações) acaba passando por mensuração e controle quan:ita-
tivos, revelando uma lógica finalista-mecanicista. No jogo Veredicto, ela
se expressa através das cores que se neutralizam e dos números que se
agregam a cada jurado. Nos "Júris reais", o fim de uma sessão depende

62 Entrevista concedida em 22/2/1999 no 111 Tribunal do Júri (Vila Mariana).

-130- -131-
I

4
JÚRI - RITUAL

\ ,
Mareel Mauss foi um dos primeiros teóricos da antropologia que, ao
trabalhar o conceiro de ritual, propôs que se superasse a oposição entre
representações (o que as pessoas pensam que fazem) e práticas (o que elas
fazem), afirmando que umas e outras se encontram em um só domínio:
no das significações, no fato social total, Nesse domínio não há modelos
e classificações rígidas em oposição a práticas flexíveis, mas possibilidades
de significações ou trocas entre sistemas de significação. Compreender
esses sistemas e trocas é uma das rarefas-chave da sociologia e da antro-
pologia (Mauss, 2003a e 2003b).

Pensar os julgamentos realizados pelos Tribunais do Júri a partir dessa


li
'! abordagem é tentar entendê-los como situações sociais que põem em
relação ao menos dois sistemas de classificação: o das leis e regras proces-
suais e o das interpretações dessas leis, regras e acontecimentos da vida
social. Assim, não se percebe nas sessões de Júri a rigidez de códigos legais
em oposição a interpretações flexíveis que operadores do direito e leigos
lhes dão. Códigos, interpretações, atuações desses operadores e leigos são
sistemas de classificação que se compõem nos plenários fazendo sentido
enquanto conjunto formado a partir de trocas e interações.

-133-
t.."
(j9--
Jogo, ritual e teatro
. Júri - Ritual
Do início ao final dos julgamentos, conforme já menc;ionamos nos
tuação de titual.63 Pensadorescomo Tylor,Frazere Malinowski opuseram-se
capítulos anteriores, sentidos são atribuídos a vidas e mortes. Os jul-
gamentos pelo Júri constituem e são constituídos por essa dimensão
às interpretações de caráter mais sociol6gico desenvolvidas por Durkheim,
produtora de sentidos pois, quando fatos-dramas da vida social chegam Mauss e Radcliffe-Btown, e mesmo entre essesúltimos houve controvérsias.
aos plenários, não estão mais em seus contextos de origem nem se en~ Embora concordando com Durkheim quanto ao ritual ser um elemento
quadtam perfeitamente em pressupostos legais. Eles adquirem outta de reforço da solidariedade social,Radcliffe-Brown, por exemplo, concebia
natureza, cujo sentido só se alcança se focarmos a análise no domínio a estrutura social como uma rede de rel~çóes empiricamente observável,
ritualizado, em que se expressam, no qual tempo e espaço, já vividos, de modo que, em seus estudos sobre religião e rituais, a ênfase residia nos
passam a ser imaginados. sistemas de práticas, considerados consolidadores, sustentadores ou mesmo
Durante as horas. das sessóes são narrados acontecimentos que atra- produtores de sistemas de crenças (Radcliffe-Brown, 1973).
vessaram dias, noites, meses e anos. Embora não .se percorram favelas, Essa tradição sociol6gica, inaugurada por Durkheim, deixou fortes
becos, casas, praças e ruas, nem se escutem tiros e gritos, nem se veja marcas na antropologia social inglesa, especialmente na chamada Escola
sangue e cadáveres cobertos com folhas de jornal, tudo isso está no Júri, de Manchester, representada por Max Gluckman e seus discípulos. Um
transmutado em narrativas contadas segundo determinadas regras e deles, Victor \Y/, Turner, dedicou a maior parte de sua obra ao estudo do
por determinadas pessoas. Até as páginas dos processos, as fotos que os processo ritual não mais enquanto produtor de solidariedade, mas como
- -- --- .. ----- _ i
ilustram, os depoimento.s registrados em "assentadas" (tomadas judiciais locus da produção de alternativas ideol6gicas voltadaSpara a manutenção
de depoimentos), os laudos periciais e as peças produzidas por juízes, ou alteração do status quo.
promotores e advogados (já narrativas em si) torna~ a ser narradas nos
Turner identificava no ritual a possibilidade de atualização de estados
contextos dos julgamentos, suscitando a produção de novos sentidos. É
potenciais e liminares da sociedade. Canalizados e expressos em dramas
desse contexto ritual, repetido cada vez que há um julgamento em um
sociais ritualizados, esses ~tados exporiam variantes possíveis para o "
plenário de Júri, que trata este capítulo.
destino do grupo. Para Turner, o ritual era, portanto, um processo que
implicava mudanças de uma estrutura para outra, de um estado social
para outro. O conceito de estrutura social por ele utilizado, contudo,
Onde a vida social se substantiva e se materializa
continuou sendo o da clássica antropologia social inglesa, referido às
Durante muito tempo, rituais foram definidos por antrop610gos e soci6- relações empiricamente observáveis e, portanto, separadas do domínio 11

lagos como comportamentos referentes à prática de religião ou magia, em das representações (Turner, 1974). I

oposição a crençasque representariam aspectos dogmáticos do fato religioso


Conforme já apontado, foi Mauss quem reuniu práticas (relações empi-
(Durkheim, 1968; Smith, 1972). Como os estudos socioantropol6gicos
ricamente observáveis) e representações (crenças abstratas) no domínio
sobre religião e magia, e, consequentemente, sobre os domínios do social e
das significações, no qual sistemas simb6licos interagem, permutam
do ritual se desenvolveram em terreno conturbado, refletindo os pr6prios
dilemas enfrentados pela antropologia e pela sociologia do final século XIX
~ Faço um balanço dos principais debates relativos aos conceitos de magia. religião e
e início do XX, houve confrontos entre vários teóricos a respeito da concei~ ciência, segundo autores clássicos da antropológia e da sociologia, no primeiro capítulo
do livro que resultou de,minha dissertação de mestrado (Schritzm'eyer, 2004).

-134-
-135-

~
,
Jogo, ritual e teatro
JÚl'i - Hitual

sentidos já existentes e criam novos. Foi nesse tipo de abordagem que


leiros", pois implicaria dissociar aspectos seculares da vida (cerimoniais)
Lévi-Strauss se inspirou para definir a realidáde social como um sistema de aspectos místicos (rituais):
de significações, sendo que, para ele, a estrurura social a ser percebida
(... ) é muito mais fecundo (...), em vez de definir o rito por meio de algum
pelo antropólogo justamente não está nas telações empiricamente ob-
traço positivo e substantivo, (...) defini-lo (junto com o cerimonial e a
serváveis, mas em modelos que se legitimam como arranjos e rearranjos
festa) por meio do contraste com os atos do mundo diário, o ponto focal
alternativos de possibilidades de significação. Lévi-Strauss instala o social
passando a ser as oposiçóes básicas entre sequências de açóes dramáticas
no simbólico, assim como o faz Edmund Leach ao explorar o conceito de que todo ato cerimonial ou ritual deve necessariamente conter, construir e
ritual como forma privilegiada de comunicação, de envio e recepção de elaborar.O ritual, assim, jogaria muito mais com o drama - que permite a
mensagens organizadas através de códigos passíveis de serem decifrados consciência do mundo social- do que com algum componente místico ou
por antropólogos e outros cientistas sociais (Leach, 1978). mágico (DaMatta, 1983: 36-37).

Marshall Sahlins e Cli/ford Geerrz, na mesma linha, são taxativos ao Esta postura teórica é a que adotaremos ao considerarmos os julgamentos
atribuírem ao domínio do simbólico a natureza dos objetos de estudo pelo Júri como uma sequência de ações dramáticas que conttasta com
da antropologia. Para Geertt, ela deve não só traduzir, mas interpretar, atos do "mundo diário", permitindo a seus participantes conscientizarem
construir e perseguir a invenção do social, caracterizando-se como uma traços estruturantes desse mundo, como, por exemplo, a hierarquia que
ciência interpretativa, à procura de significados, e não como uma ciência distribui e classifica inclivíduos e os torna ou não "pessoas". Mas, antes de
experimental, em busca de leis ou tendências. O ritual, nessa perspectiva, desenvolvermos essa afirmação, tratemos um pouco mais dos conceitos
passa a ser, ele mesmo, a "essência do social", pois nele ~e evidenciam his- de cerimpoia e_ri~ual.
tórias que a sociedade Conta sobre si mesma. Ao pôr em relação elementos
fundamentais da vida social, o titual torna-se o centro da produção da
Cerimônia
própria sociedade, dos significados que ela cria para justificar sua existência
e sua forma de se organizar (Geertz, 1978; Sahlins, 1979). De acordo com Radcli/fe-Brown (1939: 33), a definição de cerimônia
é bastante antiga. Filósofos confucionistas dos séculos 11 e 111a.c. refe-
Podemos afirmar, portanto, que o ritual dos julgamentos pelo Júri
riam-se a ela como uma expressão ordenada de sentimentos, própria de
substantiva e dá materialidade ao social à medida que, nas histórias de
vida e morte que chegam a essas arenas simbólicas,
\ .
seus partiéipantes
determinada situação social. Passados tantos séculos, uma das definições
atuais de cerimônia parte de pressupostos semelhantes:
produzem significados com vistas a justificar não apenas a absolvição ou
a condenação de réus, mas a significação de todo um sistema de valores (...) manifestação de sentimentos ou atitudes em comum através de ações
que qualifica vidas, mortes, otdem e desotdem. mais ou menos formalmente ordenadas e de natureza essencialmente sim-
bólica em ocasióes apropriadas. (...) envolve uma atenção especial para a
forma de comportamento e a seleção de formas apropriadaspara expressar
Júri: ritual ou cerimônia? sentimentos ligados a determinada situação s.ocia!.O sentimento é insepa-
rável da ação (Honigmann, 1986: 169-170).
Segundo Roberto DaMatta, opor os conceitos de ritual'e cerimônia não
Nos plenários do Júri, conforme já apontamos, os participantes do jul-
é uma boa opção analírica, especialmente no estudo "dos materiais brasi-
gamento compartilham sentimentos e atitudes que expressam através de

-136- -137-
I
4!J--
Jogo, ritual e teatro
Júri - Ritual
ações formalmente ordenadas, cuja narureza é essencialmente simbólica.
Reromemos, por exemplo, o "clima" inicial das arguições de promotores encarnada em umjuiz, com sua toga pteta, sua mesa centralizada e alta,
e defensores, marcado por reverências que reforçam posições hierárquicas suas palavras comedidas e aparentemente neutras.
em meio a um complexo conjunto de sentimentos e atitudes que estão As saudações iniciais que promotor e defensor dirigem aos presentes,
presentes e se desenv~lvem durante o "jogo". por sua vez, explicitam e reiteram o conjunto hierárquico, conforme
já ponruado no capírulo anrerior. Primeiramente, é homenageado o
Leis juiz presidente, depois o "Ministério Público" e a "OAB", os jurados,
JuizPresidente funcionários e assistentes. Quando a saudação aos jurados vem por úl-
Promotor i
timo, é porque normalmente o orador a aproveita para dar início a sua
Defensor sustentação oral, dirigindo-se a eles. Promotor e defensor, ao retomare~
Jurados essa hierarquia, também se posicionam, geralmente, como partes que
Funcionários
desfrutam de status semelhante e, por isso mesmo, confrontam opiniões
Assistência!Público
e até trocam insultos.

I Réu I Em uma sessão a que assisti, quando a sustentação oral do defensor já ca-
~minhavapara a finalização após~o~promotorter~pedidovários apartes que, ~
tensamente, o defensor lhe concedeu, teve lugar um desses confrontos:
A começar pelos juízes, suas aritudes e discursos reverenciam principal- Promotor: O Sr. está fazendo um carnaval com a ficha de antecedentes da
mente "a leI", pois eles se colocam e se portam em plenário como seus vítima!
representantes máximos, uma vez que o próprio Código de Processo Defens!lr: Canlaval, náo! Isto é o meu trabalho.
Penal lhes atribui vários poderes telacionados à manutenção da ordem Promótor: Carnaval, sim! Pois a vítima ...
du,rante as sessões.64 Defensor: Se o Sr. insistir nesse termo, eu pedirei para que isso conste em
. :1
ata como ofensa a minha pessoa, pois acima das nossas divergências está a
Portanto, diferentemente do que ocorre na maioria dos bairros de onde
lei, representada pelo Exmo. Sr. Juiz. Estão também o Ministério Público e
mais provêm réus e vítimas de homicídio doloso, nos plenários do Júri a OAB, instituições que nós dois represent~os e que devemos honrar ..Há
a lei penal estatal está lá, visível não só através da presença policial, mas ainda os senhotes jurados, que náo vieram aqui para participar de nenhum
carnaval, assim como os estudantes e o próprio réu!
" O art. 497 do CPP (redação dada pela Lei nO i i.689, de 2008) enumera, em doze Promotor: Ora, doutor ... Estou só falando que o Sr. está invertendo a im-
incisos, as atribuições do juiz presidente do Tribunal do Júri, valendo destacar: "I - re- portância 'das coisas ao quere.r transformar a vítima num bandido.
gular a polícia das sessões e prender os desobedientes"; "11- requisitar o auxíli~ da força Defensor: Eu sei muito bem o que estou fazendo, não estou invertendo
pública, que ficará sob sua exclusiva autoridade"; "111~dirigir os debates, intervindo em nada e o aparte concedido está terminado (... )65
caso de abuso, excesso de linguagem ou mediante requerimento de uma das partes";
"V - nomear defensor ao acusado, quando considerá-lo indefeso, podendo, neste caso,
dissolver o Conselho e designar novo dia para o julgamento, com a nomeação ou a
constituição de novo defensor" e "VI - mandar retirar da sala o acusado que dificultar
a realização do julgamento, o qual prosseguirá sem a sua presença". " 5/9!2001, sessão ernografaga das t2hl0 às i 7h22 no Plenário 9 do I" Tribunai do
Júri (Barra Funda) ...

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~
Jogo, ritual e teatro
Júri - Hitunl

Embora, provavelmenre, nem defensor nem pro morar tenham empre- Enfim, é possível afirmar que, enquanto cerimônia, há no Júri uma
gado conscientemente a palavra carnaval para se referir ao que Roberto orientação compartilhada enrre todos os participanres que inspira
DaMatta denomina um "rito de inversão da ordem", foi exatamente lealdade, respeito e reverência à lei, ali encarnada e hierarquizada nas
esse osentido que ela alcançou no confronto; daí O defensor, de modo figuras do juiz, promotor, defensor, jurados, funcionários e PMs. O réu,
incisivo, situar seu trabalho no Júri como parte de um rito de reforço de contrariamente, encarna o desrespeito à lei, e não a qualqu~r lei, pois
uma ordem rigidamente hierarquizada e não de uma ordem invertida em ll
"não matarás .constitui, há milênios, nas mais diversas culturas, uma
que, excepcionalmente, "plebeus" se apresentam como "reis e rain_~as" e regra básica de ordenação social. Nessa reverência aos representantes
estes os aplaudem (DaMatta, 1983: cap.I).
da lei e no repúdio a seus prováveis infratores, temos uma expressão da
Quanto aos funcionários, eles agem, na maior parte do tempo, como fiéis crença dos seres humanos em sua própria sociedade, em sua capacidade
ass~ssores do juiz e, consequentemente, como executores da lei e da ordem. de reordená-la, especialmenre quando ela se mostra fragilizada. Uma
Sempre que necessário ou que solicitados, lá estão com uma presteza que mensagem presente é: homens e mulheres matam uns aos outros., mas
conrrasta com a imagem que se tem do funcionalismo público brasileiro. homens e mulheres também julgam uns aos outros - e fazem "justiçà'.

Quando do encerramento da sessáo, a maioria dos juízes agradece e retri- Além de sentimentos ordenadamente expressos em uma situação social
bui as saudações iniciais de promotores e advogados, seguindo a mesma própria, outro elemento considerado constitutivo de cerimônias é a
ordem hierárquica praticada no início. E, no desenrolar das sessões de manipulação de corpos humanos e objetos: pessoas que se curvam ou se
julgamento, várias atitudes e comportamentos dos presentes também ajoelham, tiram ou põem adereços em seus .corpos, apresentam armas,
reiteram a ordem e o respeito que por ela senrem. sacrifica~ animai;. Pressupõe-se que através da análise dos significados de
tais atos cerimoniais é possível captar os sentimentos por eles expressos.
Muito raramenre, por exemplo, alguém do público dirige a palavra ao
juiz, promotor, defensor, jurados ou funcionários, seja em voz alta ou No Júri, a manipulação física e simbólica dos corpos, conforme já men-
sussurrada. Se isso é feito indevidamenre, o juiz inrervém de imediato. cionado, é bastante evidente, e sua análise nos remete, novamente, ao
Na mesma sessão citada, em que promotor e. defensor se exaltaram, o caráter de reforço de uma ordem hierárquica. O espaço em que trans-
juiz, antes de interrogar o réu, olhou fixamente para quatro mulheres correm as sessões é um campo de posições significativamente marcadas.
sentadas na assistência, negras como o réu, visivelmente apreensivas, e O réu não se ajoe'lha, fisicamente, diante do juiz e dos jurados, mas,
lhes dirigiu o seguinre alerta: "O público presente deve manrer com- simbolicamente, permanece o .tempo todo submisso e, não raro, além de
portamento adequado, duranre todo o julgamento, o.u seja, os s~nhores ser alvejado por argumentos do promotor, é também exposto pelo próprio
não podem se manifestar nem enrabular conversas paralelas, pois, caso defensor na tentativa de fazer com que os jurados dele se compadeçam.
isso ocorra, eu ordenarei o esvaziamento do plenário". Em várias sessges, presenciei defensores apontarem seus clientes como
vítimas de emoções descontroladas e de condições miseráveis de vida.
Mesmo entre si, os assistentes, na "plateia", mal se comunicam e, embora
duranre o julgamenro lhes seja permitido sair do plenário sem pedir Com seus corpos devidamente marcados pelo uso de togas, juízes, pro-
licença, até isso implica certo constrangimenro, pois o olhar de um PM motores e defensores se destacam alrivos no "palco" e, ao apresentarem
esquadrinha toda e qualquer movimenração. e manusearem "suas ~rmas" (os autos do processo, os códigos e livros

-140-
" -141- &
.Jogo, ritual e teatro Júri - Ritual

que levam ao plenário), impõem seu saber récnico aos leigos presenres, o Ministério Público, a Procuradoria de Assistência Judiciária (PAJ), a
especialmenre aos jurados, com quem precisam se comunicar bem para OAB e outras "enridades do mundo jurídico".
persuadi-los, mas manrendo um afasramenro hierárquico inequívoco. Em uma das reuniões da diretoria do Instituto Brasileiro de Ciências
Certa vez, no início de meu rrabalho de campo, presenciei a aruação Criminais (IBCCrim), realizadaem 5 de agosto de 200 I, longo tempo foi
de um promoror que no clímax de sua réplica inrencionalmenre deixou dedicado às repercussões do desenrendimenro enrre uma procuradora e
voarem cópias do processo pelo plenário. Com uma das mãos, ele as um promotor em um dos plenários do Júri (ela atuava como advogada do
segurava no alro da cabeça, enquanro junro ao rosro dos jurados e dos réu e ele como acusador, represenrando o Ministério Público). Um rexto
assisrenres da primeira fileira esvoaçavasua toga. À medida que avançava dela, ~encionando as "ofensas"que o promotor lhe teria dirigido durante
para o pedido de condenação do réu e que sua voz se elevava, as folhas o julgamenro, circulou no sitedo instituto, fazendo com que o promotor
começaram a cair pelo chão. Encerrou sua sustenta;ção dize~do:"Estou reagisse avisando que, caso o IBCCrim não se retratasse, o IBCCrim e o
afirmando, junro com a Polícia Militar do Estado de São Paulo e com responsável pelo sire seriam processados por calúnia e difamação. O que
o Ministério Público deste Estado, que o réu cometeu o crime)). Nesse . estava em jogo, portanto, náo era mais um desentendimento entre dois
instante, a última folha voou pelo plenário. Todos ficaram visivelmenre profissionais, porém a definição do posicionamenro de um instituto em
eletrizados com a cena, que, na verdade, só terminou quando o promoror, relação a duas outras instituições: o Ministério Público e a Procuradoria
ainda esvoaçanree ofegante, recolheu-em-silên-ciocada folha e senrou-se, --de Assistência Judiciária. A decisão do presidenredo-IBEGrim-foi: "(...)
percorrendo o plenário com um olhar de quem cumprira sua missão.66 rextos que expressem opiniões de caráter pessoal e político não devem
circular !lO site, uma vez. que o instituto não deseja se identificar como
Estudiosos de cerimônias afirmam que, devido aos participanres determi-
porra-voz de nenhuma corporação ou grupo em particular".
narem seu ritmo, isso acarreta um aumento da interação entre eles. Em
certos casos, essa intensificação é alcançada com recursos, como o álcool, Evitação é outro elemenro bem difundido em cerimônias e bastante
a dança ou outras formas deliberadas. No Júri, conforme já aponrado, presenre nos julgamenros pelo Júri. Neles, as pessoas evitam praticar
determinam o ritmo do julgamenro principalmenre a dicção, a enronação certas ações, circular por determinados espaços, tocar alguns objetos e
da voz, a gestualidade, a vestimenta e a movimentação de promotores e entrar em contato com outras pessoas, aumentando, assim, a relevância
defensores em plenário, embora juízes, réus, e, secundariamente, jura- da ocasião e reforçando-a como eSpecial ou sagrada. A exigência de que
dos, funcionários, PMs e assistentes também influenciem a dinâmica do os jurados permaneçam incomunicáveis, uma vez composto o Conselho
conjun.to. As interações mais intensas, todavia, se dão entre promotores de Senrença, ralvez seja o exemplo mais claro de uma série de comporta-
e defensores, em especial duranre apartes que uns concedem aos outros menros conrrolados por códigos de evitaçáo no Tribunal do Júri brasileiro.
ao longo das respectivas sustentações orais. Pode-se por vezes afirmar,
Um dos atos iniciais da cerimônia, o momento em que os jurados selecio-
ainda, que através de promotores e defensores inrensificam-se tensões nados pa-ssam da plateia" ao "palco", representa uma alteraçáo visível de
II

que exrrapolam a sessão de julgamenro, pois evocam instituições, como status, ainda que não marcada pela mudança de indumentárias. Quando
se sentam em seus novos lugares de juízes, desaparecem os cidadãos co-

66 2/7/1997. sessão ernografada das 14h às 20h45 no Plenário "A" do }Il Tribunal do muns: nada do que farão dali em diante será trivial, mesmo nos inrervalos
Júri (Vila Mariana).

-142- -143-
Jogo, ritual e teatro
j(lri - Hilual

para descanso, pois não poderão comentar o caso em julgamento entre si


Como diria DaMatta, "(...) em todos os ritos sempre encontramos um
e com outras pessoas, razão pela qual não podérão, em hipótese alguma,
centro, uma zona focal, geralmente controlada por um sacerdote ou
contatar parentes, amigos e colegas de rrabalho. Jurados são colocados à
quem faz a vez dele. Pois é aqui que se faz a ligação e a afirmação dos que
parte do "mundo exterior" ao ingressarem no círculo mágico do Júri e ao
rêm com os que não têm, (...) no jogo muito complicado das múltiplas
passarem a ser governados por regras que dererminam como, quando e
legitimações" (1983: 26).
por que devem se manifestar.
Um outro exemplo dessa sacralidade são os dois momentos em que,
Retomando a ideia de que a cerimônia geralmente envolve o uso de ,erros
mediante ordem do juiz ou de um funcionário do Tribunal, os presentes
objetos simbolicamente densos, cabe lembrar que a disposição e o tipo
à sessão .são obrigados a se levantar, como em certos rituais religiosos. O
de mobília, as cores de pisos e paredes e a posição de divisórias e porras
primeiro desses momentos se dá antes do interrogatório do réu) quando
também contribuem para o "clima" do julgamento. Embora a maioria
já foram'sorreados, aceitos e posicionados os jurados que comporão o
dos plenários paulistanos seja materialmente desprovida de pompa, quem
Conselho de Sentença. O juiz então se levanta, bem como todás os
quer que neles entre terá a sensação de estar penetrando em um espaço
presentes, e, dirigindo-se aos jurados, faz a seguinte exortação: "Em
incomum e solene. As salas em q!le realizei o trabalho de campo à época
nome da lei, concito-vos a examinar com imparcialidade esta causa e a
da pesquisa eram ou antigas, com móveis de madeira e paredes brancas,
proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames
ou modernas, com mesas, cadeiras e divisórias revestidas de fórmica,
da justiçà'. Os jurados, nominalmente chamados pelo juiz", devem res-
com partes de aço à vista e cores que variavam do cinza ao azul-marinho.
ponder: "Assim o prometo". Na maioria das vezes, contudo, respondem:
Mais do que o material de que são feitos, o que imporra é a disposição
"Assim eu prometo".
dos objetos e o que isso comunica a quem entra em Contato com eles.
Embora pareça irrelevante essa "falha" no uso do pronome átono de ob-
Um plenário, seja novo ou antigo, assemelha-se, conforme já pontua-
jeto direto da 3' pessoa, ela manifesta que, apesar da estreiteza do espaço
mos, a uma pequena igreja ou templo, ou mesmo a uma sala de aula
aberro para que os jurados "jurem" (apenas três palavras), eles falam
tradicional. No centro das atenções, dominando a cena, jusramente por
como "o Brasil COstumafalar": usando o nome em lugar do pronome. À
representar o domínio do saber e do poder, está o juiz, o sacerdote, o
solenidade da lei, marcada pelo verbo concitar, pelo pronome vós e pelo
mestre. O que se passa em torno dessa figura central parece estar sempre
substantivo ditamei, os jurados respondem com um informal "erro" de
aquém de sua plácida, altiva e observadora sabedoria. Não fossea presença
português e, com isso, comunicam: "Prometemos votar, sim, com base
do juiz, os plenários paulistanos, provavelmente, não possuiriam tanta
em nossas experiências cotidianas!". Em seguida, todos se sentam e o juiz.
solenidade. O juiz, enquanto encarnação da lei, do poder e da sabedo-
dispensa os jurados não sorteados para integrar o Conselho de Sentença."
ria, coordena e sacraliza a cerimç>nia do Júri. Não por acaso, justamente
atrás da mesa do juiz, em muitos plenários paulistanos, há crucifixos de
tamanho médio afixados nas paredes. Apesar do incremento dos debates 67 Tal exortação s~ encomrava no art. 464 do CPP ames de 2008, e agora está no
art. 472.
a respeito da inconstitucionalidade de repartições públicas ostentarem
elementos religiosos, muitos crucifixos permanecem em foros e tribunais 6g Conforme apomado nas "Considerações iniciais". alguns trabalhos acadêmicos da
área de linguística se voltam para os discursos produzidos no Júri (Fagundes, 1987;
brasileiros (Giumbelii, 2003; Lorea, 2005; Montero, 2006).
Petri, 2001), bem como outros dos campos da filologia e língua portuguesa (Miranda,
2011; Pistori, 2008).

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-145- ~
\

o segundo
Jogo, ritual e teatro

momento em que esse procedimento ritual se manifesta é


quando, no término da sessão, após encerrada a votação secreta, todos
I Júri - Ritual

esmiuçados na legislação mas que, caso não existissem, removeriam os


alicerces das leis..
tetomam ao plenário para que o juiz anuncie a sentença. O réu é posi-
cionado em pé de frente para o juiz e de costas para a plateia. Todos se Assim, não obstante sua natureza secular, a cerimônia do júri guatda
levantam. O'juiz, então, anuncia a sentença e. no caso de condenaçáo, paralelos com cerimônias sagradas. devido, inclusive, a características
a pena exata que o téu terá de cumprir (númeto de anos, meses, dias e que transcendem o próprio júri e dizem respeito ao sistema de justiça
regime de cumprimento). criminal. Ministério Público, Magistratura, OAB e Defensoria Pública,
Independentemente do ambiente físico em que ocorrem, esses dois por exemplo, funcionam como "ordens" das quais participam somente
momentos são altamente solenes pelo fato de todos se levantarem para cidadãos que, para integrá-las, submetem-se a ritos de admissão e pro-
ouvir o juiz e pelei significado do que se passa - prestar compromisso e gressão considerados severos. Enquanto representantes dessas ('ordens",
anunciar uma sentença. Na verdade, o ambiente físico é que depende esses cidadáos constituem uma nova classe de pessoas, hierarquicamente
desses atos para ganhar solenidade. diferenciada das demais.

No limite, talvez seja possível afirmar que temos a lei como alvo das ce- Em suma, podemos considerar que, tomados como cerimônias. os
rimônias que se desenvolvem no júri e como objeto não empírico, quase julgamentos pelo júri desempenham certas funções não somente para
- --sobrenatural, que tende a canalizar emoção durante seu transoo-irer. "A seus participantes,mas-também para aqueles que, de alguma maneira,
lei", invocada por juízes, promotores e defensores, apresenta-se co~o são atingidos por sua lógica e seus efeitos. Esses julgamentos expressam,
um espécie de entidade que está no limiar entre o sagrado e o profano. transmitem. e perpetuam elementos que compõem o sistema de valores
Do primeiro ela parece prov}r, com seu caráter abstrato e universal, e e sentimentos considerado legalmente hegemônico, preservando-os de
no segundo, a partir de minúcias cotidianas, narradas e julgadas pelos dúvida e oposição insolúveis, uma vez que, por mais polêmico que seja
homens, ela ganha materialidade, é aplicada e surte efeiros concretos, um caso,.chêga-se sempre a uma sentença e se intensifica a solidariedade
palpáveis. entre as pessoas que participam da cerimônia.

"A lei" é o objeto-alvo da cerimônia do júri, mas é a pessoa do réu ou Mais especificamente, os julgamentos parecem constituir um rito de
ré- ou seja, de quem é acusado de descumpri-Ia- que constitui o objeto passagem destinado a fazer com que os réus efetuem uma mudança
empírico canalizador de fortes emoções, como pena, desprezo, compaixão de status seja quando absolvidos - caso em que passam de suspeitos a
e ódio. Isso se dá porque téus e rés, moldados pelos discursos de promo- inocentes - seja quando condenados - situação em que perdem direitos
tores e defensores, explicitam valores que constantement~ questionam a e garantias individuais, constitucionalmente assegurados, e consolidam-
adequação individual a certos ditames da vida social: fidelidade conjugal, -se co~o marginais à sociedade. Os julgamentos também podem
amor filial, lealdade entre amigos, honta no pagamento de dívidas, res- ser entendidos como um rito de deferência em que se reconhecem a
peito a hierarquias gtupais, produtividade econômica etc. superioridade e a subordinação de todos às leis vigentes e a seus repre-
sentantes, colaborando, assim, para que a estrutura social se mantenha.
Para além de réus e de suas histórias. o que está em julgamento. portanto.
Finalmente, os julgamentos pelo júri podem ser considerados ritos de
são os valores que essas histórias permitem pensar; valores que não estão
intensificação diretamente ligados a um tipo de crime ~ doloso contra

j. -146-
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\ ~. ~
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Jogo, ritual e teatro
Júri - Hituru

a vida -, indicador de crise na interação ~ociatNesse sentido, tal rito


aumenta a solidariedade do grupo, diminuindo rensões e favorecendo Nos julgamentos pelo Júri esramos, portanto, diante de uma cerimônia
a neutralização dessa crise. dominada pelo planejamento e pelo respeito, havendo um rempo e uma
sequência predererminados para que cada um se manifesre de acordo com
Frequentemente usados como sinônimos, embora alguns de seus empre- regras que abarcam o tempo e a forma dos discursos orais e até mesmo
gos contenham aspectos distintos (Honigmann, 1986: 169-170), ressalto orientam a comunicação corporal.
que os conceitos de cerimônia e ritual serão utilizados de acordo com a
Nos riruais, lembra ainda DaMarra, há gerdmente o uso de vesres
rrilha analítica percorrida por Roberto DaMarta, segundo a qual esses
apropriadas:
conceitos devem se compor e não se opor no esrudo antropológico de
"materiais brasileiros". (...) as vesrimemas são gramaticalmente coerentes com os gestos e o com-
portamento em geral. (. ..) Desse modo, o traje militar, a beca e outras vesti-
mentas típicas de cenas posições sociais têm, emre outras, a funçáo de nelas
Julgamentos pelo Júri: uma "cerimônia ritual" ou "rito esconderem seu portador. protegendo o papel desempenhado da pessoa que
cerimonial" o desempenha e, ainda, separando o papel que define sua posição no ritual
dos ourtos papéisque desempenhana vida diátia (Ibid.: 47).
Uma esquemática classificação dos grandes eventos sociais brasileiros,
de acordo com DaMarta (1983: 37-39), parre de eventos que, segundo No intervalo de uma sessão69, tive acesso à "sala de lanche" dos jurados
sua ocorrência, dividem-se em cotidianos e extraordinários. Estes que e presenciei uma conversa entre eles, o juiz, c promotor e o defensor,
escapam ao rrivial se dividem em imprevistos e previstos, podendo os duranre a qual um jurado lhes perguntou por que suas becas preras se
previstos serem tanto informais quanto formais, e estes últimos, tanto distinguiam pelas diferenres cores dos cordões: branco para o juiz, ver-
hierarquicamente ordenados quanto mais fluidos. melho para o promotor e negro para o defensor. A pergunta específica
do jurado foi: "Essas cores rêm algum significado?". O juiz se anrecipou
Se adotarmos essa classificação como um pressuposto, podemos afirmar
comentando: "Originalmente, deveriam ter, mas, atualmente, acho que
que os julgamentos pelo Júri são eventos extraordinários, previstos, formais
só servem para que cada um identifique qual é a sua rogá'.
e ordenados. Siruam-se fora da rorina repetiriva do dia a dia, ao menos
para réus, seus parentes, jurados e "plareiá'; rêm caráter aglurinador de É de se notar que,.embora cont.rapostas pele. "mas", as duas orações
pessoas, de grupos ou mesmo de categorias sociais; são previstos, tanto dizem o mesmo, pois traram de identificações e de hierarquia. O que o
que socialmente controlados; e são ainda formais e solenes, pois neles há juiz parece ter comunicado foi que, aparentemente, as cores passaram de
exigência de divisões internas e sua estrutura hierarquizante aparece de um significado simbólico original, mais' amplo e solene, para um mais
modo manifesto. São eventos fortemente centralizados nas figuras do réu, pobre e frugal. Todavia, esse novo significado segue sendo relevante, já
promoror e defensor e se baseiam em aros bem marcados. Além disso, há que togas, no caso, não são "roupas", mas representam funções específicas
um público, bem como uma separação nítida entre o domínio do cotidiano do sistema de jusriça criminal que não devem ser confundidas e rrocadas.
e o do julgamento: "A passagem de um domínio a Outro é marcada por
modificações no comportamento, e rais mudanças criam as condições para
que eles sejam percebidos corno especiais" (DaMarra, 1983: 38).
69 1917/2001, sessáo etnografada das 12h às 16h30 no Plenário 8 do 11l Tribunal do
Júri(BarraFunda).

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JOb'O,ritunl e teatro
Júri - Ritual

o promotor aproveitou o ensejo para contar que, quando menino, fora Rituais brasileiros mecanismos bãslcos aspectos salientados foco do rito
coroinha, e que, mais tarde, fizera seminário, ocasião em que aprendeu Carnaval Inve"rsão da hierarquia ambfguos. cósmicos sentimentos, açOes.
(o povo se-equipara e universais (embora valores, grupos
o significado das diferentes cores usadas nas roupas de padres, bispos, às autoridades e contextualizados) e categorias
arcebispos e cardeais. O defensor, por sua vez, arriscou comentar que as celebridades) cotidianamente
problemáticos e inibidos
cores expressavam uma hierarquia e que mesmo aqueles que n'ão sou- margens, limites
bessem o que significavam saberiam que ali havia uma ordem: eis o que Dia da Pâtria reforço da hIerarquia ordem social brasileira hierarquia, o que
(o povo se distingue (frente a outras naç6es): é especificamente
é e sempre foi, segundo Renato Janine Ribeiro, o sentido da etiqueta rotlnizados, Implfd~os. brasileiro
das autoridades)
(Ribeiro, 1983). intemalizados
Festas rellgltisas \. concillaç!o (entre povo é valores locais e
Estado através do culto) universais
Júri: rito formal de separação e de .reforço

Os diferentes rituais de uma sociedade


(. ..) são discursos diversos a respeito de uma mesma realidade. cada qual
salientando cerros aspectos críticos. essenciais dessa realidade. (...) a vida
-.--- - - _ritual_ de_uma_dada_sociedade_ não -precisa-ser-necessariamente-coerente' ou-
funcional. podendo comer elementos competitivos ou cóncorrentes. cx-
pressivos de modos diversos de perceber. interpretar e atualizar a estrutura
.social. (...) essa perspectiva permite verificar a importâ~cia básica'da natureza Cada um dessesrituais permite isolare estudar "relaçõcssociaiscríticas",pois
combinatória qa próptia vida ritual (DaMatta, 1983: 52). são "(...) discursos simbólicos e expressivosde posiçóes na estrutura sócial,
Em outras palavras, o mesmo povo que faz o carnaval comemora o Dia não precisando ser necessariamenteCoerentesou funcionais" (Ibid.: 55-56).
da Pátria (7 de setembro) e festeja datas religiosas sem que isso'implique Tal postura teórica implica considerar a "matéria-prima" do mundo coti-
algo incompreensível e incompatível. Poderíamos acrescentar que parte diano indistinta daquela que constitui o mundo dos rituais, sendo possí-
desse mesmo povo esrá presente a sessóes de Júri. vel admitir que existem tantos rituais quantos são os domínios percebidos
Porranto, também o ritual dos julgamentos pelo Júri pode ser consi- e classificados do mundo social (Ibid.: 56). Daí haver, na antropologia;
derado um arranjo social que torna possível salientar e expor aspectos tantos adjetivos para os rituais: sagrados, populares, econômicos, de pa-
considerados importantes da estrutura social brasileira por meio de um rentesco, políticos, seculares, formais, informais, esponivQs, acadêmicos,
discurso específico - no caso dos julgamentos realizados na cidade de civ~s,mtlita~es,. femininos, masculinos, de passagem, de interação, de
São Paulo, ganham destaque especificidades da vida de uma grande segregação e agregação, financeiros, mágicos e místicos, científicos, de
metrópole brasileira. expiação, de aflição - aos quais eu acrescentaria "judiciários".

Inserindo, porranto, os julgamentos pelo Júri no rol de OUtrosimpor- Antropólogos como Leach, Turner e Gluckman também consideraram
tantes rituais brasileiros considerados por DaMatta, podemos, de modo problemático separar as ações rituais de OUtrasatravés de critérios como
esquemático e amplo, afirmar: o da existência ou não de c~glponentesmísticos:
'"

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Jogo, ritual e teatro

Júri-Hitual
(... ) os rituais não devem ser tomados ~omo momentos essencialmente
diferentes (em forma, qualidade e matéria-prima) daqueles que formam e uma funçáo que, normalmente, é a sua: a de juízes que decidem a
não
informam a chamada rotina da vida diária. (... ) o estudo dos rituais não seria
liberdade ou prisão de alguém a partir da análise pormenorizada de duas
um modo de procurar as essências de um momento especial e qualitativa-
versões da ocorrência de um crime. Porém, "(...) o que é separado de um
mente diferente, mas uma maneira de estudar como elementos triviais do
lado, é integrado de outro" (Ibid.). Se, por um lado, os jurados "saem"
mundo social podem ser deslocados e, assim, transformados em símbolos
de seus cotidianos, por ourro passam a "integrar" o Poder Judiciário. As
que, em certos contextos, permitem engendrar um momento especial e
extraordinário. Como todo discurso simbólico, o ritual destaca cerras as~ versões do crime "saem" dos espaços profanos, onde são "palpites", para

pectos da realidade. Um de seus elementos básicos é tornar cerras aspectos ganhar o status de argumentos da promotoria e da defesa.
do mundo social mais presentes do que OUtros. (... ) o ritÇJ,como o mito,
Nesse sentido também afirma Gluckman (1962) que a separação de pa-
consegue colocar em dose up as coisas do mundo social (DaMatta, 1983: 60).
péis é instância importame do processo de rirualização e ganha especial
Seguin,doesseraciocinio, podemos afirmar que quando uma pessoa COnta relevância em rituais de reforço, o que DaMatta endossa ao dizer que:
à Outra sua versão a respeito de um crime, pedindo a essa que manifeste (...) osrituaisfundadosno reforço(ou na separação)sâorituaisque guardam
sua opinião sobre a culpa ou inocência do acusado, temos apenas uma
uma relação direta com as rotinas do mundo quotidiano. Assim, por exemplo,
conversa. Porém, quando acusador e defensor Contam aos jurados versões um general é sempre um general; apenas acontece que, num determinado
a respeito da ocorrência do crime para que, na presença de um juiz, de momento estabelecido pelo grupo, ele usa as vestes, condecorações e armas
um público e do réu, este seja julgado, remos um ritual. Colocou-se correspondentes ao seu posto e identidade. Reforça-se o posto que existe e que
em elose up a questão da legitimidade e do controle do poder de matar: pode estar, em virtude das outras rotinas e sistema de posições, submerso. O
houve uma transposição de elementos do domínio dos "comentários" a chamado ritual de separação é justamente esse momento onde é destacado o

respeito de um crime - presentes cotidianamente em conversas de bar, papel de generale são inibidos todos os outros (DaMarta, 1983: 61).
páginas de jornais e revistas, na tela da TV e em romances policiais _ Se na passagem acima trocarmos o termo "general" por juiz, promotor
para o ato de julgar, o que passa a simbolizar roda uma revisão que os ou defensor, poderemos chegar à conclusão de que, no momento em
jurados fazem de valores sociais cuja atualidade e alcance serão "testados" que esses entram em plenário vestindo suas togas pretas, seus "postos ll

naquele julgamenro concreto, separados para análise. O resultado será são reforçados, o que não fica tão evideme quando estão de terno e gra-
visível e palpável: estará encarnado na pessoa do réu.
vata caminhando pelos corredores do fórum. Eles vivem, em plenário,
O mecanismo básico que parece estar presente nessa situação é o da se- um ritual de separação. Quanto aos jurados, no momento em que são
paração. Elementos são retirados de determinados contextos e inseridos sorteados, aceitos e ocupam seus lugares, reforçam-se como cidadãos "de

em OUtros: "(...) nada de novo foi realmente inventado e o que se fez respeito" e, provisoriamente, tornam-se juízes.

foi o deslocamento de um elemento para um Contexto do qual ele está O reforço é, assim, uma escolha
normalmente excluído" (DaMatra, 1983: 61).
(... ) daquilo que está submerso (ou em vias de submergir), do que está
Podemos pensar os próprios jurados como "elementos" que rambém se demro e, por isso mesmo, não está sendo devidamente percebido. Quando
deslocam de seu dia a dia para o espaço do rribunal, para nele exercerem tal mecanismo é aplicado (. ..), cria-se um campo formal ou respeitoso (... )
Separaçáo ou reforço seriam assim o mecanismo básico de rituais frequen~
rementechamadosde formais. (DaMatta, 1983: 62)
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Júri - Ritual
Jogo, ritual e tentro

É bastante nítida a difetença entre o "campo formal e respeitoso" do sistema prisional não teria sido, de fotma indireta, falar da situação de
plenário, durante as sessões do Júri, e o "campo informal e até jocoso" da ~éuspresos e condenados e) consequentemente, do destino do homem
llsala de lanche" dos jurados, onde) nos intervalos das sessões, juntamente em julgamento, que viria a ser condenado a 18 anos e 10 meses de re-
clusão em regime fecbado?"
com juiz, promotor e defensor, todos costumam se reuni~para descansar
e comentar I'assuntos não relacionados, direta ou mesmo indiret~ente, No 4' Tribunal do Júri, em meu primeiro contato com o cotidiano dos
ao caso em julgamento". Nas sessóes em que tive a oportunidade de pre- que por lá trabalhavam, ainda no final da década de 1980 (Adorno,
senciar tais conversas) observei um clima de "descontração", com juízes 1994), observei que a "salasecreta", quando .não era usada para a votação
servindo café aos jurados e vice-versa, jurados sentados, juiz e promotor dos quesitos, tornava~selocal em que uma escrevente tricotava, uma
em pé. Pairava, porém, uma tensão sutil em todo aquele aparente de- funcionária pintava as unhas, outra lia fotonovela e todos se encontra-
sinteresse: uma curiosidade recíproca e uma vontade de demonstrar o vam para "papear". As relações entre juiz e funcionários rambém eram,
quanto cada um era bem informado. e inteligente: aparentemente, muito igualitárias e descontraÍdas fora do ambiente
(Iritual"das sessóes.
Em uma dada sessão em que o plenário foi esvaziado para servir de sala
secreta, logo após reabertas as portas, observei a seguinte conversa entre Em suma e de acordo com DaMatta, os mesmos elementos que compõem
o juiz e um dos jurados: os ritos) a mesma matéria-prima) também compõem a vida cotidiana,
Juiz: Isto aqui é um verdadeiroabsurdo! {Ele se referia à climatização do mas; nOSTitos,ele.-são-manipulados de forma especial. Trata-se de uma
fórum, com ar-condicionado muito frio, e as consequências disso para a diferença de grau e não de qualidade. Os rituais salientam, focalizam
saúde de todos.] Circulam, diariamente, por este fórum, mais de 400 réus e destacam aspectos, elementos e relações do mundo diário, sendo três
que vêm das mais diferentes carceragens,com as mais diver~as doenças. os modos básicos de esse processo operar: através de mecanismos de
Jurado: Vírus e bactérias transmissores de muitas dessas doenças devem reforço, inversão e "neutralização ou, em outras palavras, de compor-
passarde sala parasala atravésdos dutos do ar~condicionado! tamentos rituais que enfatizam o respeito, a jocosidade ou a eviração.
Juiz: Exatamente!Sem contar a fumaça de cigarros,pois em qualquerlugar
Importa mais, portanto, entender as relações básicas do mundo social
do fórum que se fume, essa fumaça entra nos duros.70
que constituem os ritos do que classificá-los, pois "Os rituais dizem as
Jurado: Como ocorre nos avióes que, só pró~forma,separam fumantes de
não fumantes... coisas tanto quanto as relações sociais. (00') [mas] no mundo ritual, as.
Juiz: É... Não tem jeito. Ou melhor) se eu ficar doente, vou processar o coisas são ditas com mais veemência) com maior coerência e com mais
PoderJudiciário. consciência. (...) permitem maior clareza às mensagens sociais" (DaMatta,
1983: 65). Os ritos ajudam a criar o tempo (Leach, 1974) à medida que
Vários outros jurados também se manifes~aram, demonstrando seus engendram c,Ortesnas rotinas sociais.
respectivos saberes técnicos, biológicos e médicos, e assim terminou o
intervalo, antes de ser proclamada a sentença. Falar da tuberculose no

70 Na épocaaindanãovigoravaaleiquepassouaproibiro fumoemqualquerambiente
71 Sessão etnografada em 18/7/200 I, das 9h30 às 12h no Plenário 9 do I' Tribunal do
fechadodeusocoletivoemtodoo estadodeSãoPaulo(Lei 13.541 de9 de maiode
2009).
Júri (Barra Funda).

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~
Jogo, ritua] e teatro
Jlíl'i - Bitual
o tempo do e no Júri: um rito de passagem
esposa" e "boa mãe", ou mesmo de "mulher honesta", também têm, no
Ritos de passagem marcam o desenvolvimento social do indivíduo em
Júri, através do discurso do promotor, o resumo de suas vidas pautado
todas as sociedades. Nascimento, puberdade, casamento e mOrte são os
por essas características. Nesses casos, os defensores geralmente tentam
mais comuns, e, neles, as vestimentas, a comida e o comportamento
COstumam ser especiais. contra-argumentar mostrando outros aspectos considerados "positivos"
das vidas de seus clientes, mas só raramente combatem a clnegatividade"
Nesse sentido, cabe considerar que um julgamento pelo Júri e mesmo atribuída pela acusação a certos estereótipos.
outros tipos de julgamento criminal representam marcas negarivas no de-
A manipulação dessas marcas sociais é que está em jogo em qualquer
senvolvimento social do acusado. O simples fato de alguém ser indiciado, julgamento (Rifiotis, 2011) e, especialmente, .nas sessões de Júri, pois
de seu nome constar em um boletim de ocorrência como provável autor
é ela que permite aos arguidores caracterizar réus, condensando, em
de um delito e, mais ainda, de tornar-se réu e ir a julgamento macula o
algumas horas, modos de vida que justificarão passagens da liberdade
que se espera social e legalmente desse desenvolvimento. O registro oficial ao aprisionamento ou vice-versa.
dessa marca se traduz na jà/ha de antecedentes criminais do réu, que, nas
sessões de Júri, normalmente é utilizada tanto pela acusação quanto pela Lênio Luiz Streck, professor de direito do Rio Grande do Sul, é um dos
defesa, obviamente para fins oPOStos," resumindo e reapresentando a poucos procuradores de justiça que, remetendo-se a uma ampla biblio-
vida do réu a partir de marcas criminais ou da ausência delas. grafia socioantropológica para estudar o procedimento do Júri, sugere
pensá-lo como um rito de passagem que se consuma na sentença, a qual
Se o réu ou ré possui registros de passagens anteriores pela polícia,
ou agrega o réu à sociedade ou dela o desagrega (1998: 90).
antecedentes criminais ou mesmo provas testemunhais de que seu com-
pOrtamento é "condenável", isso lhe será desfavorável e, normalmente, Voltemos, portanto, à questão da construção do tempo.
ocupará boa parte do discurso da acusação.
O que há de mais singular a respeito do tempo é cenamente que tenhamos,
de algum modo, tal conceiro. Experimemamos o tempo, mas não com os
Como bem analisou Corréa (1981 e 1983), os réus que têm várias mu-
lheres e/ou filhos com mais de uma delas, que são homossexuais, " que
nossos próprios sentidos. Nós não o vemos, nem o tocamos, nem o chei-
ramos, nem o degustamos, nem o ouvimos. Como, então? De tr~smodos.
consomem álcool e Outras drogas, que não têm emprego fixo e não "levam
Em primeiro lugar, nós reconhecemos a repetição. (... ) Em segundo lugar,
dinheiro para casa" etc. ficam vulneráveis aosataques da acusação, pois o nós reconhecemos, ao envelhecer, a entropia. (... ) Nossa terceira exp.eriência
desenrolar de suas vidas é enfatizado a partir desses aspectos, de modo que de tempo diz respeito à velocidade com a qual o tempo passa. (... ) [Portan-
o compOrtamento criminal surge, "naturalmente", como consequência to,] (...) a regularidade do tempo (...) é uma noção fabricada pelo homem,
do mau comportamento social. Rés que, por sua vez, segundo testemu_ que nós projetamos em nosso ambiente para os nossos próprios objetivos
nhas ou registros policiais e judiciais, não correspondem à figura de "boa parriculares (lo.ch, 1974: 204-205).

Nos julgamentos pelo Júri, há uma reconstrução do tempo vivido pelos


" Embora, teoricamenre,ptocessosjá arquivadosou em que o réu foi inocenrado, ou téus. Suas vidas são reelaboradas a partir da constatação da repetição
aqueles referenresa ocorrências que precederamsua maioridade penal não devam
ou não de comportamentos social e legalmente recrimináveis. Se) com
pesar contra o acusado (DeImanto. 1988: 97), na prática isto COstumaser direta ou
indiretamente mencionado e Contarem seu desfavor. o passar dos anos, os réus repetiram atitudes consideradas socialmente
"positivas" (trabalharam honestamente, criaram seus filhos e ajudaram

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Jogo, ritual e teatro
Júri - Ritual
sua família, dando-lhes alimento, estudo, saúde, moradia etc.), a ocor-
(...) O que é importante para a ciência da cultura é procurar compreender
rência criminal de que são acusados é percebida como uma exceção, da
o significado dessas figuraçóes no espírito dos (...) que as praticam e nelas
qual se pode desconfiar. Do contrário, se suas vidas revelam um acúmulo
creem (Huizinga, 1980: 18, grifosdo autor).
de "más condutas sociajl', a acusação criminal em julgamento se torna
quase uma decorrência esperada. Ritual, drama e, consequentemente, teatralidade são conceitos que
estruturam este livro e que nele se encontram teórica e intrinsecamente
Prossegue Leach em sua análise sobre a representação simbólica do tempo:
relacionados. Se a função do rito é levar a "uma verdadeira participação
(...) os ritos.de passagem (...) devem, claramente, estarligados com alguma no próprio ato sagrado", podemos afirmar que a função do Júri é levar
espécie de representaçãoou conceptualizaçãodo tempo. (...) um grande a uma verdadeira participação no jogo socioestatal de avaliar a produção
número de povos considera o temp6 como indo para trás e para a frente.
de motivações legítimas e ilegítimas para matar.
Com u.mavisã9 pendular do tempo, a sequência das coisas é descontínuaj
o tempo é uma sucessão de alternações e paradas.. (...) E nossas experiên- No titual do Júri temos uma ação cuja matéria-prima é o dtama de
cias mais elementares do fluxo de tempo são. certamente, desta espécie: julgar em que circunstâncias a morte de um ser humano por outro é
dia-noite dia-noite, quente-frio quente-frio, molhado-seco molhado-seco. mais ou menos legítima, e até mesmo legal, passível, assim, de justificar
(...) a essênciado assunto não é o pêndulo, mas a alternação (Ibid.: 206). a absolvição ou a condenação do agente. Dependendo desse julgamento,
Por isso, quanto mais longos os intervalos entre um "mau" comporta- advém a decisão de ou confinar o acusado, separando-o "da sociedade" ou
m~nto e outro, melhor para a defesa, e quanto mais COnstantes e repe- nela permitir que ele fique, se provada sua capacidade-de-autocontrole-, --------
titivas as atitudes consideradas socialmente reprováveis, melhor para a conforme veremos, em profundidade, no próximo capítulo.
acusação. Essa é a lógica da construção do tempo vivido pelos réus no
Júri, e dela dependerá o desfecho dos julgamentos, pois muito prova- Efeito "sacralizante"
velmente os jurados também assim compreendem o passar do tempo
de suas próprias vidas. Em uma das cenas finais da peça teatral de Ariano Suassuna O auto da
compadecida, também transformada em filme, tem-se um julgamento
divino. Homens e mulheres que morreram comparecem diante de Jesus
Efeito dramático Cristo, representado por um homem forte e negro, que decidirá se eles
Todo ritual é um dromenon, uma ação cuja matéria é um drama, um irão para o inferno, para o purgatório ou para o céu. Antes de começar
ato representado em um palco. Essa ação, segundo Huizinga, pode ter o julgamento, os recém-chegados sentem medo, pois a porta do inferno
a forma de um espetáculo ou de uma competição, sendo o sentido da se entreabre e eles vislumbram um de seus possíveis destinos. Quando o
representação, no ritual, o da identificação de uma julgamento se inicia, o demÔnio se apresenta como acusador. A defensora,
Nossa Senhora, mãe de Jesus, s6 aparece depois, quando sua intervenção
(...) repetiÇãomística ou (...) reapresentação do acontecimento. O-ritual
se faz necessária para melhor orientar a decisão de seu filho-juiz. Diferen-
produz um efeito que, mais do que figurativamente mostrado, é reaLmente
temente do que ocorre em um julgamento pelo Júri, não há jurados, e os
reproduzido na açáo. PQrtanto,a funçáo do rito está longe de ser simples-
ment~imitativa, leva a uma verdadeiraparticipação no próprio ato sagrado
réus argumentam, vez por outra, em favor próprio. O demônio-acusador,
por sua vez, além de enumerar os pecados dos réus, expressa ao filho

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Jogo, ritual e teatro
JlLri - Hitunl

de Deus sua preocupação com um possível descrédito da "instituição


parre do tempo, elas prestaram atenção às cenas do julgamento, mas com
divinà', caso as absolvições se tornem regra. Nesse momento, Jesus-juiz,
olhares perdidos, como se estivessem ali só de corpo presente.
Nossa Senhora-defensora e o demônio-acusador se colocam como parres
de um mesmo sistema que só faz sentido enquanto conjunto. Enfim, no momento em que o juiz se levantou para anunciar a sentença e
todos se puseram de pé, a advogada-mãe e a mãe do réu tinham expressões
O veredicto divino para um dos protagonisras do filme - um homem
bastante semelhantes: olhavam-no com expectativa e esperança. Quando
pobre e franzino, que usava de sua astúcia acima da média para tirar
o juiz comunicou a absolvição do réu nos dois crimes de que era acusado,
proveito das situações - foi o de que ele ressuscitaria e voltaria para o
a advogada-mãe abraçou o advogado-filho e ambos cumprimentaram o
"mundo dos homens", onde teria nova oportunidade para rever suas
réu, ao mesmo tempo que a mãe e as outras mulheres da família do réu,
atitudes. Ele ressuscita pouco antes de ser enterrado e, dias depois, um
também abraçadas, choravam. Especialmente a mãe do réu, do fundo do
negro cruza seu caminho e lhe pede um pouco da exígua comida de que
plenário, com as mãos postas, exclamava em voz alta: "Foi Deus quem
dispunha. O ressuscitado despreza o homem, sem se dar conta de que
salvou meu filho. De novo foi Deus! É Deus quem protege meu filho. É
se tratava de Jesus-juiz.
por causa de Deus que ele está vivo! Obrigada, Senhor, por iluminar esse
Ao final de uma das sessóesque etnografei,73não pude evitar a lembrança juiz! Obrigada, Senhor Juiz!". Aproximei-me delas, para ouvir melhor
dessa peça e de seu respectivo filme. O réu, um negro, jovem e forre, era o que diziam entre si:
acusado de rer cometido dois crimes, um homicídio simples consumado Mãe: Eu sabia que Deus fariajustiça.
e uma tentativa de homicídio simples contra dois irmãos que ele alegava Irmã: Ele já sofreu tanto...
perseguirem familiares seus. Os defensores eram uma advogada de meia- Mulher:'Se tinha de pagarseus pecados, já pagou!
-idade, que passava a imagem de uma rípica mãe de classe média ("dona Mãe: Ainda bem que De\1s iluminou essa gente aqui. Deus seja louvado e
de casa esclarecida"), e seu jovem filho - ambos brancos. Mas a própria abençoe a rodos!
mãe do réu estava na assistência, acompanhada por três mulheres jovens,
Essa identificação entre as mães e as demais mulheres da família do réu
todas negras, uma delas irmã, e outra, mulher do réu. Essa presença
é o significante-chave desse julgamento, pois foram a maternidade e a
feminina em torno do réu não passou despercebida por jurados, juiz,
feminilidade nelas encarnadas que provavelmente o salvaram, como foi
promotor e demais assistentes, embora não seja possível afirmar seu
Nossa Senhora quem salvou o rapaz franzino na peça de Suassuna. As
impacto, pois não entrevistei O conjunto dos presentes após a sessão.
mulheres desse julgamento sinalizaram para O juiz e os jurados a bondade
O fato é que, quando a palavra estava com a advogada-mãe, a atenção do réu e sua capacidade de redenção, sem Contar que o argumento-chave
que jurados e demais presentes lhe dirigiam parecia ser maior do que dos defensores foi o de que o réu agira em defesa da integridade de sua
quando o advogado-filho se colocava. E as quatro mulheres da plateia, própria família. É possível que, graças ao apoio dos afetos femininos, esse
visivelmente sofridas, ansiosas e preocupadas com o réu, também eram réu tenha escapado do mundo masculinizado e frio da lei e da carceragem.
constantemente observadas pelos operadores técnicos e jurados. A maior
Eu poderia imediatamente ter entrevistado essas mulheres, mas senti que
invadiria demais sua privacidade. A mulher do réu foi ao encontro dele
73 Em 5/912001, às 17h22, no Plenário 9 do 111 Tribunal do Júri (Bari<!F~nda), Sessão
e dos advogados; as duas outras jovens acompanharam a senhora até o
apresentada, na íntegra, no próximo capítulo.
banheiro. Quando saíram de lá, uma delas se afastou para telefonar. Todas

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Jogo, ritual e teatro
Júri - Ritual

continuavam chorando. Somenre depois de passados aproximadamenre


Efeito totalizador?
15 minutos do anúncio da sentença, aproximei-me da mãe do réu e
pergunrei-Ihe: "Se ele tivesse sido condenado, o que a senhora acharia?". o riro (...) pode marcar aqueleinstante privilegiadoonde buscamostrans-
Sem titubear, olhando-me nos olhos, ela disse: "Se Deus fizesse isso é formar o único no ~niversal(...)i o regional no nacional (...)i O individual
no colerivo(... ) É (...) nessejogo de transformaçãoque uma sociedadese
porque meu filho não. estaria pronro ainda para conrinuar do lado de
revelaenquanto coletividadedifetenciada(...) Abundam (...) na sociedade
cá, com a genre, e nem a genre com ele. Deus decidiu que nós vai ficar
compl::xaos rituais nacionais que ajudam a construir, vivenciar e perceber
junto agora, como poderia ter decidido que nós ia ficar separado. É Deus o universo social, frequentemente fragmentado por cçmtradições internas,
quem decide, filha. Nós tudo tamo aqui pra cumprir pena, porque não corno uma totalidade. (...) nos sistemas tribais,ocorre justamente o oposto.
é só quem tá preso que cumpre pena, não". (...) os ritos são em geral momentos individualizadores, voltados para a
resolução de crises de vida (..;). o grupo impede o processo de livre indi-
Essa sessão me marcou especialmente porque, no que tange ao rltual- se
vidualização, criando as condições para que tudo fique novamente junto
cqnsiderarmos o conjunto dos participantes formado não só por ope-
(DaMatta, 1983: 25-26).
radores técnlcos, como também por jurados, réus e assistentes -, esses
indivíduos não participaram da sessão da mesma forma, mas, ao mesmo Apesar de todas as sessões de julgamento em que se baseiam as análises
tempo, comungaram de algo que os assemelhou. Se é possível afirmar deste trabalho terem ocorrido na heterogênea e desigual cidade de São
que há tantas inserçô-,;s_emum ritual quantas são as diferenças sociocul- Paulo, podemos afirmar que, de certo modo, elas se caracterizam tanto
turais entre seus -participantes, é igualmente procedente concluir que é - peJã construção, vivência e percepção ao u~iverso social como uma
tão mais inrenso um ritual quanto, apesar dessas diferenças, uma troca de totalidade (réus, jurados, defensores e promotores concebidos como
mensagens ocorre entre eles, através de um fluxo co~um de linguagem. integrantes de. uma mesma "sociedade", alnda que fragmentada por
contradições internas) quanto por aquilo que marca os rituais das ditas
Enquanro jurados e operadores do direito, imersos em um imaginário de
"sociedades tradicionais": a resolução de um caso específico de "desvio"
classe média (imaginário que, por sinal, imptegna a litetatuta jurídica),
das regras a set devidamente identificado e diagnosticado. Os detalhes dos
provavelmente veem as regras legais-racionais do Júri como produtoras
julgamentos parecem destacar normas morais e ideais de relação social,
de «Justiça"J para muitos dos réus e de seus parentes é possível que tais
ao mesmo tempo qu~ evidenciam a realidade fragmentada e conflituosa
regras, expressas em ltlinguagem difícil", são tr-aduções humanas da
da aplicação cotidiana dessas normas. Em outras palavras, o ritual do
vontade divina e só façam senrido enquanro tais. Todavia, tanto para
Júri consagra r~gras e valores genéricos interiorizados nos sujeitos (po-
uns quanto para outros, na sessão relatada houve uma confluência de
rém não claros para eles) apontando justamente as "exceções". Quando
significados em torno da presença das "mulheres do réu". Elas permiti-
situações ~oncretas permitem que todos materializem essasglobalizações,
ram C? contato e o consenso entre diferentes significantes socloculturais.
as exceções fazem sentido e são também englobadas.
Isso transformou o plenário em um lugar quase sagrado, apesar de sua
"O ritual (...) é, entre outras coisas, um instrumento privilegiado para
simplicidade material, porque o rito, com a força das interações pro-
expressar e enfeixar totalidades. (...) é o ritual que consagra tais globa-
duzidas por seus participantes, impôs solenidade àqueles momentos;
lizações c:ue já existem na realidade" (DaMarra, 1983: 27). Portanto,
fizeram-se claros os limites do círculo mágico.

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Jogo, ritual e teatro

prossegue DaMatta, "por que urilizamos uma forma rão complexa quanro
dispendiosa como o ritual para legirimar coisas e relações já sabidas"?

&
Por que julgar homicídios arravés de Tribunais do Júri? Trata-se de um
rirual complexo e economicamente muito dispendioso, segundo alguns. 5
Sem dúvida, há várias Outras possibilidades rituais de julgar homicídios, JÚRI - TEATRO
.mas o Júri, enquanto instrumento que possibilita respostas humanas
diferenciadas e não mecânicas à necessidade social de julgar e legirimar
ou não mortes violentas. é um ritual especialmente dramatizado que,
justamente por essa razão, permite a seus participantes uma forte per-
cepção de si mesmos, do grupo com que compartilham seus principais Neste capítulo, inspirado em ideias do antropólogo Georges Balandier, a
valores e das múltiplas possibilidades de reinventá-los. dinâmica das sessõescotidianas de julgamento pelos tribunais paulistanos
Considerando que já foi bastante explorado por outros pesquisadores que do Júri é tratada como um exercício dramarizado de poder. Estão em
o Júri é uma arena de lutas e um lugar de dominação no qual se realiza discussão às caractérísticas desse exercício e desse poder: o que é drama-
a sujeição de certos membros da sociedade (Moreira-Leite, 2006), cabe tizado, que ripa de dramatização mais se observa e por que a teatralidade
percebermos a recíproca desse raciocínio e avançarmos na compreensão é intrínseca a esse tipo cerimonial judiciário.

desse ritual como construtor de subjetividades e experiências sociais que A lógica em que estão calcadas as sessões, já analisada nos capítulos
podem definir e redefinir o que é cidadania, gênero, valores familiares anteriores, é reromada para permitir a descrição e análise do funcio-
etc. Eis o que consritui a matéria-prima dos próximos capÍtulos. namento teatral do Júri - "(... ) sua encenação. cenário, papéis, instân-
cias secretas e violências, revelações e efeitos de surpresa" (Balandier,

& 1982: 10) - e para que se possa interpretá-lo como provocador de


emoções tais como a compaixão, o ódio, a pena, a indignação e o
sentimento de pertença.

Partindo do pressuposto de que os julgamentos pelo Júri podem


conduzir os réus a mortes morais, refletiremos sobre as circunstâncias
em que essas mortes se processam e quais valores sociais são por elas
salvaguardados.

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Jogo, litual e teutro
Júri - Teatro

Uma "sociologia dramatizada ~ ou uma "dramatização Ao longo de sustentaçóes orais, de réplicas e tréplicas, ou seja, "em ato",
sociologizada~ modelos de candura social são articulados, apresentados, exemplificados e
Os <lpalcos"do Júri são espaços sociais em que, mais visivelmente do reiteracos a partir de peculiaridades do "elenco", do "cenário" e da trama
que em outros, observa-se a força da teatrocracia, ou seja, de um "(...) de cada Júri. Em cada sessão, juízes, promotores, defensores, jurados,
regime permanente que se impõe aos diversos regimes políticos, revogá~ réus, testemunhas, funcionários e assistentes elaboram percepções uns
veis, sucessivos" (Balandier, 1982: 5). Segundo alguns, essa forma reatral a respeito dos outros, valendo-se de uma linguagem baseada em estere-
de regular a vida cotidiana dos homens em sociedade é tão poderosa e ótipos que se atualizam ao serem ali aplicados. Essa troca e a elaboração
onipresente que pode ser encontrada "por trás de todas as formas de de informações, predominantemente não verbais, funcionam a partir de
arranjo da sociedade e de organização dos poderes" (Ibid.). interpretações silenciosas e recíprocas de aparências, pois pressupõem a
combkação e a atribuição de significados a variáveis como sexo, idade,
Relativamente recente, o conceito de .teatrocracia fqi cunhado no século
etnia, compleição física, modo de vestir, timbre e entonação de voz,
XIX por Nicolau Evreinov, "(...) russo de múltiplos ralentos e atividades, gestualidade e modo de olhar.
mas desconhecido, exceto de Beckett, que recebeu sua influência ao esta-
belecer o rearro da zombaria", conforme nos conta Balandier. Ele sugeria Um defensor deixou isso evidente durante uma entrevista: 74
a montagem de "(...) um tribunal teatral para todas as manifestações da Eu: O Sr. costuma ter suas defesas prpntas e desenvolvê-las em plenário,
-existêricia social, notadamente as do podef"(loid.). ---I-- independentemente de quem'- são os jurados, ou o Sr. fazalgum tipo' de'
adequação entre o que preparou para argumentar e a aparência dos jurados
A ideia do mundo como um palco, contudo, é bem ançeriora esse conceito, que são, de faro, sorteados?
pois remonta, pelo menos, à Europa do início do século XVII, quando do
Defensor: Quando não consigo perceber bem quem são os jurados, quan-
surgimento do gtande teatro laico. Nas principais peças de Shakespeare, do eu os acho pouco transparentes, meu desafio aumenta, pois tenho que
há um "(...) comentário dramático das formas em que as práticas coletivas me dirigir a eles através de ideias que não sei se causarão impa~to.É claro
se revelam. (...) Um jogo encenado a fim de mostrar os jogos da sociedade que, mais ou menos, a gente sabe o que causa impacto no cidadão de clas~
(...); uma sociologiaque não depende de enunciação, mas da demonsrração se n:édia, no homem comum,
\
na dona de casa, na jovem estagiária, nos
pelo drama" (Ibid.). Mas a estreira ligação conceitual entre encenação, proEssionais liberais.
Eu; E o que é que causa impacto?
tribunal, drama e jogo ingressou no corpo teórico e empírico das ciências
sociais somente nas primeiras décadas do século XX (Huizinga, 1980: 7). Defensor: Éo que a maioria das pessoas comenta em festas, em bares, e que
espera dos políticos..~ É disso qu~ eu parto para mostrar o réu como um
Parrindo dessa estreita ligação conceitual e das observações feitas em inocente ou mesmo como um culpado, mas que não é nenhum monstro.
campo, é possível constatar que a maior parte das narrativas de pro~ AlgL:.tísjur.ados discordam, mas a maioria leva em conta esses argumentos,
motores e defensores do Júri esrá baseada e~ um discurso de "caráter pois seriam os deles.

dramático-sociológico", embasado em uma certa lógica dassificatória e Eu: E o que, exatamente, o Sr. comenta no Júri.e também é comentado pela
maioria das pessoas em fesras e bares?
analítica da organização e do funcionamento da vida social. Mas, além
de (socío)lógicas, essas narrativas são especialmente dramáticas em razão
dos sentimentos que articulam e expõem.
" Concedida em 19/6/1997, na.sala do 5' Oficio do Tribunal do Júri (Pinheiros).

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llJli - Teatro
Defensor: Ah! Essas coisas que basta qualquer um de nós ligar a TV e ouvir.
(...) Eles acham que qualquer jovem favelado, especialmente se for mulato gesticulam. (...) Sei lá... Só alguns acertam no POnto: falam de um jeito que
ou preto, é traficante. ladrão e anda armado. Contudo, eles também sabem a gente emende (...). Parece até que adivinham o que a gente tá pensando,?5
que a polída tortura, é corrupta, persegue. (...) os jurados p~de.m ter pena
Provavelmente, para esse jurado, "paradões" e "~ansativos" são promotores
ou medo [dos réus com o perfil citado]. Eu exploro o que lhes dá pena.
e advogados cujos desempenhos dramáticos não atingem, eficazmente,
Eu: Na sua opinião, os promotores exploram o que causa medo nos jurados?
Defensor: Sem dúvida! O que eles fazem. geralmente, é reiterar preconceitos, seu universo de valores. Quando alguns "acertam no ponto", isso deve
enquanto eu tenho que fazer os jurados pensarem :nas pessoas ~onestas e significar que, em cena, no transcorrer do drama, estabeleceu-se uma
pobres que eles conhecem; na vida dura que elas levam (...). sintonia fina e significados foram compartilhados.

Esse advogado, cujo depoimento representa, em grande parte, o que Quanto ao conceito de drama, sua origem grega guarda um duplo
outros declararam em Suas entrevistas. aponta um modelo básico de so- sentido; <lode agir,e o de representar o que está em movimento a fim
. dedade com que se trabalha no }1Jri, o qual é constantemente adequado de provocar a descoberta das verdades escondidas em todos os assuntos
e aplicado, a cada caso concrero, no "calor" dos julgamentos. Tal modelo humanos" (Balandier, 1982: 5).
delineia quem são os jurados típicos - cidadãos de classe média, homem
Ações que no mundo diário são banais e triviais adquirem significados es-
comum, dona de casa, jovem estagiária, profissionais liberais _ e qual
pedais quando representadas nos plenários do Júri. Ao se transformarem
seu "senso comum de classe média"; "( ... ) o que a"maioria das pessoas
em representações significativas, elas geram a sensação de que mistérios
comenta em festas, em bares, e que espera dos políticos, (...) que qualquer
e complexidades de crimes, acusados, vidas e mortes são passíveis de
jovem favelado, especialmente se for mulato ou preto, é traficante, ladrão
revelação, otganização e julgamento. A diversidade humana é, assim,
e anda armado. Contudo, eles também sabem que a polícia tortura, é
constatada, classificada e julgada. Ser homem ou mulher; hétero, homo
corrupta, persegue (...)". Portanto, os valores desse "senso comum" devem
ou bissexual; casado, amasiado ou solteiro; ter filhos ou não; ser jovem,
ser explorados a favor ou Contra os réus, dependendo da persuasão a ser
adulto ou idoso; falat um português gramaticalmente correto ou precário,
desenvolvida e dos estigmas a serem reiterados ou combatidos.
usar roupas novas ou surradas; ficar cabisbaixo ou altivo; ter voz grave ou
Essa "sociologia selvagem" dos plenários, já desenvolvida no Capitulo 3, aguda - tudo passa a tet algum significado social, e sinais individuais são
está na base da teatrocracia do Júri, muito mais do que em qualquet regra interpretados como reveladores de características das relações humanas.
prescrita nos códigos legais. Ela complementa e preenche com exem-
No espaço cênico do Júri, como bem apontou o advogado entrevistado,
plos e argumentos o script legal das sessões, permitindo aos defensores,
o que é dito em festas, bates e programas de TV é representado e reapre-
promotores e jurados travarem um "diálogo" dramático, ininterrupto,
tenso e denso. sentado, ganhando um status pseudotécnico-dentífico, de modo que cada
sessão, ao mesmo tempo que exemplifica e legitima essas pseudo teorias,
Um jurado, certa vez, declarou-me: também explicita um certo senso comum referente à criminalidade e ao
funcionamento social.
A gente percebe quando eles falam certas coisas pra impressionar. Não é
tanto o que eles falam, mas o jeito de falar. Têm uns que são meio paradões
e cansam a gente. Tem outros que até incomodam de tanto que andam,
7S Entrevista concedida em 22/2/1999, em um dos corredores do la Tribunal do Júri
(Vila Mariana), pelo Sr. Adilson. 37 anos, técnico em informática.

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Jogo, ritual e teatro Júri - Teatro

Ourro aspecto relevante da dramaturgia do Júri é que, nesse tipo de "sim" ou "não" aos quesitos, que tanto contemplam a possibilidade de
tribunal, teoria e teatro estão especialmente entrelaçados. Como na "(...) absolvição ou condenação do réu quanto verificam atenuantes e agra-
cidade grega antiga, os grandes mitos e o teatro que os apresenta esrão vantes do crime,. eles elaboram e objetivam. temas difusos e complexos
em correspondência. Esses, pelo jogo dos personagens reveladores, (...) do cotidiano da cidade e de suas vidas. Votar lhes permite elaborar uma
tornam aparentes os princípios que governam a vida coletiva, os debates imagem laco;üca desses e de outros temas, e até mesmo de conceitos
e conflitos que engendrà' (Balandier, 1982: 5). abstraros, como os de sociedade, cultura e criminalidade. Eis um trecho
Levando em conta essa perspectiva, réus, vítimas e testemunhas podem de um, entrevista qu~exemplífica essa "te'orízaçád' da vida social por
ser vistos, nos tribunais paulistanos do Júri, como espécies de "persona- . um jurado:76
gens reveladores", pois as histórias que se contam sobre eles, em plená- Eu é.i."1Oa maiór parte das h.istórias[narradassobre réus e vítimas] muito
rio, tornam perceptíveis diversos pri~cípios, por vezes conflitantes, que difere:;ltedo tipo de:vida que eu levo, mas, de vez em quando, até penso
governam a vida na cidade. . na minha p'fópriavida. Houve um caso, há alguns meses, de um irmão que
matou.outro por ca~a de trapaçasnum negócio que eles tinham; e ainda
Os réus, desse ponto de vista, são especificamente "reveladores", pois, diziam =Iuea mulhe; do que matou era camada pelo outro. (...) Emendo,
apesar de permanecerem a maior parte do tempo calados, sentados em perreitan:ente,como é complicada essa coisa de ter sociedade com irmão e
um canto, ouvindo o que se fala a respeito dele~,ali estã~como en<;arna- da mulher dagente dar uma de quem gostados dois. É £íci!perder a cabeça.
ções das narrativas de acusadores e defensores. Tais narrativas permitem ---Aliás, na vida, é fácila gente perder a cab-eçaquando estão em jogo mulh"-----
a expressão, ainda que imaginada, de princípios que governam a'vida das e tré.balho.Acho que isso independe da pessoa ser ricaou pobre, branca ou
chamadas "classemédià' e "população de periferia" da êidade de São Paulo. negra. É social, sabe?Quer dizer,todo mundo é meio igual em certascoisas:
Especialmente um dos princípios máximos que a lei prevê como universal ciúmes,vonradede ganhar dinheiro £ícil (...). É a vida!
- "não matarás" - é reapresentado e reiterado pela prática do Júri como Em poucas frases, valendo-se de um dos casos em que atuou, essejurado
dependente de um feixe de circunstâncias e interpretações sociais, uma vez falou muito de si e de como interpreta alguns "dramas da vida". Embora,
que o modo como se narraa morte ocorrida e se descrevem os personagens inicialmente, tenha diferenciado "seu tipo de vidà' das histórias que
envolvidos determina se o ato de matar pode ou não ser legítimo. vão a Júri, terminou por concluir que "certas coisas" são universais. De
Conforme o perfil socioeconômico de quem morre e de quem mata, quebra, deixou escapar certo machismo, pois, primeiro, mencionou que
be-":lcomo as razóes alegadas para a ocorrência das mortes, estas e seus a mulher do réu teria sido cantada pelo cunhado-vítima, mas, depois,
protagonistas são julgados. Portanto, homicídios adjetivados em plená- colocou-a no papel de quem "cantavà'. Por fim, elegeu questões de
rio levam a julgamento mais do que o substantivo "morte", em si. São parentesco, amorosas e profissionais - sociedade com irmão, mulher e
decisivos os qualificativos que acompanham e identificam os vivos e os trabalho - como dramas que fazem qualquer um "perder a cabeçà'. De
mortos em questão, e até mesmo outros vivos e outros mortos por esses modo aparentemente despretensioso, esse jurado elaborou uma reflexão
representados (Moreira-Leite, 2006). bastante pretensiosa a respeito da vida social.

Jurados, por sua vez, através dos dramas que lhes são narrados, teorizam
em que circunstâncias devem legitimar ou não as mortes. Ao votarem 76 Emrevis:a concedida por telefone em 17/9/1999 pelo Sr. Coreolano, 49 anos, 00-

merciame.

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Júri - 'lClltl'O

Poder e drama
Mesmo quando são outros os ctimes em julgamento, em palcos judiciais
Antes de detalhat e exemplificar Outras narrativas que dão substância aos que não os dos plenários do Júri, a montagem social das narrativas - tanto
julgamentos, convém explorar um pouco mais a íntima relação teórica das fotmais, que restam "filttadas" e registradas nos processos, quanto
entre a arte do governo e a da cena.
das informais, que p.odem ser acompanhadas oralmente em audiências

Foi Maquiavel um dos primeiros a propor imagens que lrleÍltificavam - orienta-se bastante para a sacralização do monopólio do sistema de

O príncipe ao demiurgo e ao herói e também a afirmar que as técnicas


justiça estatal enquanto legítimo tegulador de comportamentos."
dramáticas deveriam ser utilizadas não só no teatro, mas na direção da Provavelmente, não é por acaso que alguns parentes de réus, conforme
cidade. Ao príncipe, segundo ele, cabia comportar-se como ator político j~mencionamos no capítulo anterior, compararam juízes a Deus ou
para conquistar e conservar o poder. Sua imagem e aparência deveriam ao Criador; promotores a demônios; defensores a anjos da guarda ou a
corresponder ao que seus súditos esperavam, não sendo prudente, por- "padrinhos" dos réus e, finalmente, jurados a conselheiros de Deus, ou
. tanto, governar mostrando desnudos o poder, asi próprio e a sociedade. mesmo a "santos". Eis um trecho da entrevista mais significativa. nesse
Estava lançada a ideia de que a aceitação de um governante resulta, em sentido, pois nela todas essas compatações foram explicitadas:"
grande parte, de sua capacidade de dramatizar seja o poder, seja seu modo
Eu: O que a Sra. achou da maneira de o juiz fazer perguntas ao seu filho?
de exercê-lo, seja a própria vida social (Maquiavel, 1997).
Ela: Apesar dele ser novinho, parecia o Criador, sentado lá na frente, no
Nesse sentido, também afirma Balandier: "Todo sistema de poder é um meio, no alto, pensativo, com aquela roupa grande, aquela voz forte. Todo
dispositivo destinado a produzir efeitos, entre os quais os que se com- mundo sabe que Deus é de poucas palavras, meio bravo, mas que é bom. (. ..)
param às ilusões criadas pelas ilusões do teatro" (1982: 6). Eu: E o que a Sra. achou do promotor, do jeito de ele acusar seu filho?
Ela: Eu acho que ele falou demais; ficou fazendo os jurados acharem que
Se considerarmos o sistema de justiça criminal e, em seu interior, o Júri meu filho não presta. (... ) Só um demônio sabe tão bem como é outro. (... )
como sistemas de poder - dispositivos, portanto, destinados a produzir Eu: E o advogadoque defende seu filho, a Sra. acha que ele...
efeitos -, cabe então identificar e analisar quais de seus efeitos se compa-
ram a ilusões típicas da arte teatral e o que o Júri governa através deles.
77 Algumas recentes pesquisas sociojurídicas analisam a complexa transformação de
POt tudo que já foi apresentado, é possível afirmat que os efeitos tipica- narrativasde vítimas e testemunhas em queixas, dessasem inquéritos policiais e desses
em denúncias e fi~almente em processos, com seus respectivos desfechos. Mais do
mente teatrais do Júri se voltam, principalmente, à produção e ao controle que um fluxo de procedimentos policiais e judiciais, esses trabalhos revelam um fluxo
da legitimidade do poder de matar. Toda a construção dos processos contínuo de disputas atravésde linguagens oral, gestual, escrita e também silenciosa.
criminais. desde a lavratura dos boletins de ocorrência às sentenças, e em Senso comum, paradigmas do ambiente organizacional e preceitos presentes nos
códigos legais são utilizados para interpretar situações, categorizar pessoas e cenas,
especial o que se processa no cenário dos Júris é, antes de tudo, uma ten-
elaborarrelatose descrições. Acordos, entendimentos, evidências e fatos são constru-
tativa do sistema de justiça criminal de, attavés de seus tepresentantes_ ídos nas interações entre os diversos agentes das organizações do sistema de justiça
juízes, promotores, defensores e funcionários _, constituir-se como a criminal e entre esses, vítimas, suspeitos e testemunhas (Adorno, 1994; Pimentel,
Schritzmeyer & Pandjiarjian,1998; Vargas,2000).
instância mais legítima de produção e aplicação de tegras pata julgat o
podet de matat. 78 Entrevista concedida no intervalo de uma sessão, em 13/6/1997, no InTribunal do
Júri(Vila Mariana), por dona Creuza, 61 anos, "tia-mãe"do réu, conforme ela mesma
se autodenominou, e costureira. Era a primeira vez. que assistia a um julgamento
pelo júri.

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Jogo, ritual c teatro"
Júri - Teatro
Ela: Coitado ... Esse não tem muita chance num mundo como o nosso.
. ,,
Os "príncipes do Júri';, portanto, podem ser considerados avatares do
pois ninguém quer ver o lado bom das pessoas. (...) mesmo as que erram
poder, voltados para a conquista, a manutenção e o exercício do controle
têm seu lado bom. Acho que o anjo da guarda do meu filho tentou falar
atravésdesse doutor. legítimo do poder de matar; Contudo, para manterem tal controle, de-
Eu: Já que a Sra. comparou o juiz ao Criador. o promotor ao demônio e vem fazer com que suas imagens e aparências correspondam ao que seus
o doutor advogado ao anjo da guarda de seu filho, com quem a Sra. com- "súdiros" desejam e esperam. Assim, príncipes e súditos se controlam
parariaos jurados? através de expectativas socialmente disseminadas.
Ela: Sei lá quem são essaspessoas,mas parecegente boa, hone.sta,que deixou
Em outras palavras, a existência de uma instância de poder estatal, que se
de trabalhar pra estar aqui, ajudando. Acho que eles vão pensar bem em
tudo, pra ajudar (...) Os samos fazem isso, né? Eles são quase como nós, são pretence legítima monopolizadora do controle do poder de matar, respon-
gente, mas foram escolhidos por Deus pra serem mais iluminados. Acho de, em larga medida, a projeções e demandas da sociedade em que se insere,
que, naquela salinha [ade votação secreta], eles devem ajudaro juiz. Espero podendo tanto ser influenciada por essas demandas quanto influenciá-las.
, que ajudem meu filho (...).
Os jur~dos, nesse quadro, talvez ocupem a posição mais ambígua, uma
Não bastasse a riqueza dessas comparações, no sentido de revelarem o vez que, apesar de seu poder de decisão, devem se comportar como
poder imagético-teatral-religioso do Júri, há detalhes na fala da entrevis- súditos. Sua condição de príncipes, portanto, é a menos pronunciada
__
t?-daque denotam o quanto o cenário. o "figurino" e a performanc€ dos _l'0r'lue, en'luanto juiz,_promotor e advogado se exibem através de fal",
"atores" influenciaram sua interpretação do julgamento. A posição central, e gesto., jurados se mantêm calados e praticamente imóveis."
destacada. pensativa e predominantemente silenciosa dQjuiz fez com quê a
A entrevistada em questão projetou e encontrou no juiz, no promotor,
entrevistada o associasse a Deus. A fala verborrágica e, sobretudo, acusatória
no advogado e nos jurados, respectivamente, a neutralidade, o "mal", o
do promotor levou-a a aproximá-lo do demônio, O discurso do advoga-
"bem" e o bO,m-senso. Ela admirou e respeitou a sobriedade do juiz, sentiu
do, muito provavelmente semelhante àquele que ela mesma proferiria
raiva da veemência do promotor, teve compaixão pelo defensor- como,
caso pudesse, remeteu-a à imagem do anjo da guarda. E a ideia, sempre
provavelmente, tinha por seu filho - e acreditou na idoneidade dos ju-
reiterada, de que jurados são cidadãos idôneos, que deixaram de lado seus
rados. Uma instância de poder e de decisão que condensasse todas essas
afazeres para prestar um serviço social, foi interiorizada e traduzida pela
características em um só representante se exporia mais do que o Júri, pois
entrevistada como se eles fossem pOntes entre os mundos profano e sagrado.
nela o poder estaria mais desnudo. No Júri, o poder esrá escondido por
Voltando a Maquiavel, durante os julgamentos pelo Júri, talvez tenhamos detrás de múltiplas facetas, e cada uma delas, embora complementares,
juiz, promotor, defensor e jurados dividindo a posição de "príncipes". apresenta-se, em cena, como independente e até oposta às demais.
Enquanto o primeiro reina soberano e aparentemente neutro, o segundo
Assim, emoções contraditórias, especialmente de assistentes, como as da
acusa veementemente, o terceiro protege. e os demais decidem de uma
entrevistada, são canalizadas para direções aparentemente distintas - juiz,
posição quase santificada. Como um deus que se quadriparte, mas que
promotor, defensor, jurados -, sendo preservado o conjunto: o Tribunal
justamente por isso se fortalece, a encenação de julgar dramas de vida
e morte sacraliza a instituição "justiça estatal", legitimando-a à medida
que revigora certas etiquetas e estéticas sociais. 79 Dada essa ambiguidade, mencionaremos, em algumas passagens adiante, os jurados
como "súditos". "

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Jogo, ritual e teatro
Júri - Telluu

do Júri. Ao apresentar-se através de seus vários personagens, o Júri ,atua


ginário em presença. (...) A mecânica empregada para produzir efeitos
em uníssono, embora criando a ilusão de que o conjunto é fragmentado.
é a máquina da oratória. O poder adquirido é teatral na acepção mais
Numa só sessão, ódios, compaixões, esperanças e desesperanças são sus-
imediata do termo. (...) Florença é então submetida a uma 'ditadura da
cirados, dispersam-se e equilibram-se, sem grandes ameaças à insriruição.
voz". Ê com este desempenho que o imaginário e a ideologia se tornam
O Júri se mantém porque uma das "ilusões" rearrais que ele cria é a de ilusões realizadas" (Balandier, 1982: 6).
que seus representantes são porta-vozes de valores universais. Ao julgarem
O grande ator político, conclui Balandier, "comanda o real através do
dramas aparentemente interindividuais segundo valores aparentemente
imaginário", sendo a ópera francesa do século XVII um bom exemplo
coletivos, juízes, promorores, defensores e jurados disfarçam, para si e
da fertilidade do palco enquanto terreno político: "O imaginário clássico
para os outros, o caráter social dos dramas e o viés elitista e hierarquizado
projeta sobre a cena, onde se desenrola o drama lírico, as representações
dos valores em que o sistema se paura para julgá-los. Nesse mecanismo
reside a criação de verossimilhanças. de uma ordem emde tudo é harmonia. Produz essa ilusão, e, fazendo-a,
justifica-a" (Ibid.: 7).
Mesmo quando promorores e defensores do Júri são criticados e aponta-
Podemos afirmar que o denominado "imaginário classe média" de
dos como representantes de interesses não universais, a instituição é nor-
jurados, o conjunto de valores heterogêneos de assistentes e mesmo a
malmente percebida e preservada como mediadora e reguladora imparcial
postura técnico-elitiSla dos profissionais do Júri projetam-se sobre os
de conflitos, tanto que críticas dirigidas diretamente a ela"costumam ser
casos em julgamento e, em decorrência da encenação que envolve tais
convertidas em propostas meramente técnicas de agilização da justiça,
projeções, criam-s~ melodramas que, em alguma medida, dizem respeito
como aumento do número de varas, mais informatização, ne'iessidade de
a -'-e fazem sentido para - todos.
reformas legais, melhores remunerações, novos cursos de for~ação para
operadores récnicos etc. (Loche er ai., 1999: capoVI). Em ourras palavras, Ao produzir a ilusão de que as vidas de certas vítimas de homicídios não
a instituição ou absorve crÍ.ticasfeitas a Sua estrutura, transformando_as merecem ser socialmente preservadas, bem como certos valores a elas
em sugestões de aperfeiçoamento dessa mesma estru~ura, ou as converte atrelados, o Júri legitima absolvições de réus. Por outro lado, condenações
em crÍricas a aruações pontuais de alguns de seus membros. são justificadas quando se produz a ilusão de que outras vidas e valores fo-
ram ilegitimamente.ceifados. Eis alguns adjetivos urilizados pelo defensot
Uma das conclusões que perpassa este trabalho, portanto, é a de que a
"justiça" ptaticada pelo Júti, apesar de todas as desigualdades que lhe são de um réu para qualificar a vítima e, denegrindo-a, compará-la ao réu:
intrínsecas, em alguma medida é aceita e legitimada por seus participantes R. era epiléptico, sedava-secom medicamentos e sofria mudanças bruscas
devido à ilusão teattal - e maniqueÍsta - de que uma justiça superiot a de humor. (...) Vivia se envolvendo em discussões. Enfim, tinha problemas
todos os envolvidos está em jogo e em cena: a luta entre "bem" e "mal", mentais, era briguento, encrenqueiro... Será que várias pessoas não teriam
certo e ertado, petdão e punição, compreensão e vingança. motivos paramatá-lar (...). O réu, que mora há 28 anos no mesmo lugar,a
dois quarteirõesda casada vítima e nunca fugiu, não tinha qualquermotivo,
Balandier exemplifica a fotça dessas ilusões socialmente dramatizadas pois a primeiraatitude de um marginal é fugir!80
remontando à Florença do final do século XV; quan'do da ditadura do .1
monge dominicano Savonarola: "(...) sua pregação transforma o ima-
SO Julgamento realizado em 16/812001> no plenário 7 do 1~ Tribunal do Júri (Barra
Funda), emografado das 9h às l1h35. O réu foi absolvido por unanimidade.

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'I.

Jogo, ritual e teatro 11:


;~1i. Júri - Teatro

o exercício desse poder de construir mortes legítimas e ilegítimas - ou, sico -, liberando, assim, o Estado de ser sentenciado a alguma reparação
se preferitmos, de absolvições e condenações legítimas - baseia-se muito de danos, uma vez que ele é afutado de qualquer corresponsabilidade.
menos no uso da força e da justificação racional do que na produção de
imagens, na manipulação de símbolos e na sua organização em um quadro Nesse sentido, é comum promotores e defensores classificarem réus e
cerimonial. Esses recursos teatrais culturalmente sutis e complexos cons- vítimas como ufavelados", "miseráveis", upessoas que não tinham recursos
:.\i.i

troem a legitimidade do poder do Júti e das decisões que ali se produzem. mais elaborados para resolver seus problemas e, por isso, só puderam
usar a força brutà'. Em algumas sustentações atais, eles se colocam,
As sessóes permitem aos jurados e aos "príncipes" se mostrarem atuantes,
explicitamente, ao lado de jurados e juízes, na posição autocrática de
coesos, íntegros e fortes, pois elas são também espetáculos cerimoniais
quem tem por obrigação "decidir com justiça o caminho daqueles cujas
pedagógicos, nos quais o sistema de justiça criminal é apresentado, en- vidas estão em nossas mãos". 81.
sinado, aprendido, legitimado e incorporado. Durante seu transcorrer
reúnem-se, uquase"como iguais e aliados, jurados e "príncipes", tanto que Enfim, a ideia-chave que orienta a maior parte desta análise do Júri
nos intervalos para o "cafezinho" e nos momentos finais das sustentações enquanto espaço de poder teattalizado é justamente a de que "(...) todo
orais de promotores e defensores há uma espécie de exaltação a realizações poder político obtém a subordinação por meio da teatralidade, (...) ele
comuns, como a luta contta a impunidade, contra a criminalidade e con- devolve :lma imagem idealizada desta sociedade e portanto aceitável"
tra os 'Ivícios" de membros da sociedade; esses feitos-mostram o poderio _~alandier, 1982: 10). Portanto, é cabív.el.afirmar que, em última aná-. __
da "Justiçà' dos homens, celebram os desempenhos já realizados e tidos lise, o poder político do Júri subordina todos os que dele participam,
como vitoriosos e apontam o que resta fazer. Trata-se de uma cerimônia H inclusive os próprios profissionais do direito, por meio da teatralidade,
que remodela os atores sociais, engajando-os em um espetáculo no qual a qual é realimentada por valores que cada um dos participantes reedita
nos julgamentos.
eles representam não necessariamente o que são, mas o que devem ser
em função do que deles esperam "o Estado" e "a sociedade" - uma dra- Os "príncipes do Júri", ao se declararem representantes da sociedade que
'11'
matização, enfim, que personifica categorias e entidades como "ajustiça' governam, respaldados especialmente pelos jurados - que, na mesma
e "a punição", e mesmo discursos criminológicos, dizendo o que pensar cena, passam de súditos a príncipes e depois de príncipes a súditos _,
e sentir a respeito deles. criam uma imagem idealizada da sociedade, segundo a qual suas mazelas
Segundo o discurso criminológico clássico, por exemplo, o criminoso são desvios a serem controlados, compreendidos, aceitos ou punidos com
é basicamente alguém que rompeu regras-chave do contrato social e ;1 base em valores "universais". Os usúditos" (réus, público), por sua vez,

que, portanto, é moralmente responsável por isso. De acordo com o também partilham dessa idealização, pois é difícil reconhecer mazelas
discurso macrossociológico (também bastante utilizado por operadores ~!~
como integrantes do caminho principal, e não como desvios.
do direito), os criminosos e suas vítimas são produto de um sistema A imagem de uma sociedade íntegra, controladora de seus desvian-
de determinações socioescruturais que os impele à situação criminosa, tes e preocupada com a vida dos mais miseráveis constitui o pano
devido à pobreza econômica e culrural em que majoritariamente se en-
contram. Promotores e defensores, contudo, são praticamente unânimes
ao considerar a pena como necessária punição individual- modelo clás- SI Palavra.5de uma promotora que atuava na sessão do dia 22/2/1999 num dos plenários
do 10 Tribunal do Júri (V~aMariana), por volta das 16h30.

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\~Z
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Jogo, ritual e teatro
Júri - 'teatro

de fundo de quase todas as sessóes de Júri aque assisti ao longo do


trabalho de campo. A força do poder do Júti é audível, visível e palpável através de sua
teatralidade.
Um bate-boca entre uma advogada e um promotor ilustra esse pano de
A violência legítima dessa instituição - que, ao condenar. mata moralmente
fundo e, ao mesmo tempo. mostra como os dois oradores se apresentam
os réus, mas que os mantém moralmente vivos quando os absolve _ ali-
como contendores que, todavia, compartilham a tese comum da neces-.
menta-se da teatrocracia praticada em cada sessão. A força das execuções
sidade de controlar desviantes e de se preocuparem com os miseráveis:82
é especialmente dramática porque, nos palcos-plenários, os executados, os
Promotor: É impressionante como falta coerência à defensora ... O réu não
executores e os assistentes exemplificam, em carne e osso, o que acontece
agiu em legítima defesa porque atingiu a vítima, na frente de seu barraco.
com quem transgride certos interditos sociais, e, ao fazerem-no, aprendem
depois de ameaçá-la, dizendo: "Hoje vamos acertar as comas". A violência
e ensinam o que está sendo ali classificadocomo ttansgressões e intetditos.
dos golpes do réu foram desproporcionais às ameaças da vítima.
Advogada: Incoerente é o ilustríssimo promotor, que não percebe que o réu Os gtandes julgamentos, conclui Balandier,
não é um robô; que o ser humano não é um robô!
(... ) levam a dramatização a seu mais alto grau de intensidade. Eles impõem
Promotor: O código não foi feito por robôs. mas por seres humanos, e
uma encenaçáo, um cenário, papéis, instâncias secretas e violências, reve-
leva em conta as reações do "homem médio". A doutora sabe disso! Para
lações e efeitos de surpresa (... ). Recorrem ao extraordinário, inclusive no
que uma sociedade exista e controle suas disfunções. protegendo inclusive
arranjo do cerimonial judiciário. São calcados em uma lógica implacável.
os mais miseráveis de suas próprias falhas de socialização, é preciso que a
lei seja cumprida. mas seu funcionamento provoca emoçóes - desde a reprovação até a cólera
e o ódio popula~es.(...) a meta do drama é a morte física ou moral daqueles
Advogada: Concordo que a lei deva ser cumprida e que quem agiu em desa-
cordo com ela deva ser punido. Sem lei não há sociedade e sem sociedade não
que o poder acusa em nome da salvaguarda da forma e dos valores supremos
da sociedade(1982: 10)
há homens. Especialmente os mais frágeis devem ser protegidos pela lei. Este
homem apenas se defendeu e a lei não pune quem age em legítima defesa.
Retórica do p09cr
Ambos discordam quanto ao réu ter agido em legítima defesa, mas em
momento algum questionam a lei como fundamento e gatantia da vida A linguagem utilízada nos Ttibunais do Júri possui algumas das ptínci-
social, com especial ênfase em seu papel "protetor" dos <'mais miseráveis". país características do que Balandier denomina "linguagem do poder",
Conforme já apontamos, a encenação no Júri implica a reiteração de como a tentativa de ser válida para além de uma aplicabilidade imediata
distâncias, de hierarquias e de mudanças tegradas de papéis. Jurados e cotidíana. Pode-se dizer que a linguagem do poder no Júti projeta-se
leigos se tornam juízes; defensores, promotores e magistrados encarnam em direçáo ao passado e ao futuro, pois, através dela, evoca-se <'justiça"

autoridades; e réus são associados àquilo que <tasociedade" d.;ve, controlar, tanto em relação ao que já se consumou quanto ao que poderá decottet
punir ou mesmo cuidar. I da absolviçáo ou condenação do téu. Repatação e ptevençáo são objetivos
evocados, direta ou inditetamente, pelos otadotes do Júri.

Um ptomotot foi especialmente clato, nesse sentido, ao me concedet


82 13/6/1997, sessão etnografada das 13h às 17h no Plenário "D" do 1.11
Tribunal do uma entrevista na qual declarou: "O tesultado de um julgamento de
júri (VilaMariana).
homicídio não só deve reparar, ainda que simbolicamente, o dano social

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&3"
Jogo, ritual e teatro
Júri- Teatro

na verdade irreparável de uma vida perdida. como alertar a todos que


fisionomias da maioria dos jurados passassem do "interesse atento" ao
isso não se faz.impunemenre. C..) Um ser humano que mata outro. seja
"interesse cansado") cUlminando com um visível "desinteresse desatento
por que razão for) mata uma parte de si mesmo e da sodedade".83
e cansado". Ao enrrevistar uma jurada que me pareceu ter chegado a esse
Além disso. promotores e defensores enfatizam o que. em suas opiniões. último grau de exaustão; tive a oportunidade de lhe indagar:"
diz .respeito a valores "atemporais": "(. .. ) o que deve orientar este jul- Eu: O que você achou da leitura daqueles laudos da polícia técnica, no
gamento são os princípios morais que regem os homens de bem C..),,; início da fala do promotor?
ou "( ... ) o que aconteceu é um retrato da degradação humana (...)"; ou Ela: Para ser sincera, no começo prestei atenção, mas, depois, cqmo não
ainda "C..) este caso evidencia que o progresso da humanidade não se dá fui entendendo muitas palavras, deixei de me interessar. Mas isso não quer
de maneira uni~orme, pois há retrocessos (... )".84 Essas frases)' mais que dizer que não levei em conta o que foi lido, pois sei que o Doutor estava
meros recursos retóricos vazios de sentido, atribuem a cada sessão uma querendo que a gente soubesse de onde ele tirou suas ideias. Ele queria
razão de ser que as extrapola, pois elas se tornam exemplos de princípios provar que aquilo que ele falava era verdade e isso é importante, pois senão
a gente poderia se sentir enganado (... ).
e valores apontados como social e humanamente relevantes) e não só de
Eu: Então você acha importante a leitura desses laudos técnicos para os
particularidades dos casos em julgamenro.
jurados?
Outra característica da "linguagem do poder", segundo Balandier, é Ela: Acho. Mesmo que a gente não entenda tudo, dá pra perceber que não
sua validação se apresentar, nas sociedades ditas '''modernas'', como está.ali brincando' de inventar uma história.
explicitamente "técnica", embora) em graus diversos, seja ideológica! Portanto) mesmo quando o jargão técnico-científico soa ininteligível aos
diferentemenre do que predomina em algumas soCiedades diras "tradi- leigos e os deixa cansados. essa ininteligibilidade parece contribuir para a
cionais". Nestas, as palavras dos poderosos são consideradas mensagens legitimação dos argumenros utilizados, uma vez que tecnicidade e cienti-
de anrepassados e/ou de divindades.
ficidade são associadas à seriedade e a recursos para se revelar "verdades".
Na maioria das sessões de Júri observadas. mesmo quando promotores Afirma ainda Balandier que as palavras do poder não circulam como
e defensores pouco recorreram ao Jargão jurídico-processual, eles nunca as outras, havendo em torno delas "uma comunicação calcl,llada", uma
deixaram de referendar seus principais argumentos através de expressões busca de "efeitos precisos" que permirem o desvendamenro de parcelas
de caráter técnico-científico e de se remeter a "provas materiais") como da realidade.
exames e laudos realizados pelo Instituto Médico Legal (IML) e pela
(... ) pois o poder também deve sua existência à apropriação da informação,
polícia científica.
dos 'conhecimentos' exigidos para governar, administrar, e para exercer seu
Presenciei sessões em que a leitura de longos trechos de peças processu- domíriio. Q,\governantes gostam do segredo (... ) A arte do silêncio é parte
ais romou vários minutos das falas dos arguidores. fazendo com que as da arte p~lílica (...) A ptOlixidade sobre o acessório maScara o silêncio sobre
o essencial, em parte ou no todo (Balandier. 1982: 13-14).

83 Entrevista concedida em 18/3/1999, à tarde, no 41l.Tribunal do Júri (Santo Amaro).


114 Falas de três promotores em sessões ocorridas, respectivamente, em 11/4, 14/4 e
85 Entrevista concedida na tarde de 14/6/1999 por Carla, 32 anos, professora primária.
5/511997, no IIl.Tribunal do Júri (Vila Mariana).
no lll.Tribunal do Júri (Vi~aMàÍ'iana).

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,-.'"' ..
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Jogo, ritual e teatro
Júri -leatru

A complexa linguagem oral, gestual e muitas vezes silenciosa que faz


res socialmente relevantes. A imagem pública que ostentam, digna de
circularem informações durante as seSSões de Júri e em seus intervalos_
credibilidade, costuma ser construída através de "provas de iniciação" e
seja entre jurados, seja entre esses e defensores. acusadores, juízes, réus
de menções a seus "sucessos anteriores". Uma vez entronizados, têm a
e assistentes - possui uma "calculabilidade". Quase nada é comunicado
constante obrigação de manifestar, por meio de recursos cerimoniais, sua
sem uma prévia ou até momentânea estratégia (nem sempre consciente)
competência e sua "sorte",provando assim o autocontrole de suas "forças".
que visa à apropriação e ao controle de informações e conhecimentos.
No Júri, uma análise "cênico-política" das distinções entre os que estão
A proibição, por exemplo, de comentários entre jurados sobre assuntos
no "palco"e na "plateia",e mesmo dos que somente ocupam conjuntu-
relacionados ao caso em julgamento durante os intervalos das sessões,
ralmente o palco, reforça essa ideia de entronização, pois juízes, promo-
mesmo que indiretamente. é um dos indicadores de que, por se tratar
tores e advogados costumam ostentar imagens públicas de "doutores"
de uma situaçáo que envolve poder, qualquer troca de informações ou
para se distinguir dos demais. Suas togas e a aura de poder que elas
de "conhecimentos" deve ser cOntrolada, havendo um especial apreço
pelo silêncio e pelo sigilo. 86 criam costumam ser interpretadas como sinais de sabedoria adquirida
através de anos e anos de estudo, aprovação em concursos, experiências
Os VOtos calados e anônimos dos jurados na "sala secreta", contudo, de vida e horas de trabalho acumuladas. Eis a visão de uma entrevistada
contrastam com a prolixidade técnica da maioria das s~stentações orais a respeiro das togas:
de promotores e defensores, e tanto o silêncio que envolve os primeiros
Eu: O que você acha de o juiz, o promotor e o advogado de defesa usarem
quanto a verborragia característica dos oradores compóem a arte da
togas pretasdurante o julgamento?
polírica no Júri. O poder de legitimar ou deslegitimar determinados . Ela:Acho um sinal de respeito.
comportamentos de réus, vítimas e as consequentes mortes representadas Eu: Respeito por quem ou pelo quê?
em plenário pertence a esse conjunto de "mudos" e "falantes". Ela:Acho que eles queremserrespeitadose também estáo respeitandogente
Outro aspecto a ser ressaltado em relação à linguagem e ao exercício do
comum, como nós. (...) Elesestudarammuito praestaremaí, por isso mesmo
podemos confiar.Váo fazero que for melhor, o certo (...). Náo é qualquer
poder no Júri é a necessária reiteração de distinções entre "governantes"
um que se forma doutor, náo é mesmo?87
e "governados", em cuja base reside um longo processo de construção
de qualidades atribuídas a uns e não a OUtros. Vários esrudos apontam As togas, portanto ..conferem a juízes, defensores e promotores a marca
o fato de que o poder muda os que a ele têm acesso, culminando com de autoridades competentes, respeitáveis e respeitadoras.
rituais de entronização dos que chegam a posições de destaque.
Conforme já apontado nos capítulos anteriores, os cumprimentos elo-
Pode-se dizer que "os poderosos são feitos" (Balandier, 1982: 14; Geertz, giosos que acusadores e defensores dirigem uns aos outros e aos demais
1991) porque, riormalmerite, nascem de um processo social intrincado, presentes no início de suas falas não só hierarquizam e legitimam imagens
que os elege como especiais à medida que passam a representar valo- públicas, como também reireram competências. Toda a movimentaçáo
cênica que executam - deslocamentos pelo plenário, gestualidade,
86 O tema da incomunicabilidade entre os jurados merece desdobramentos, mas já
2005). alguns trabalhos que o abordam de forma espeCialmente crítica (Rangel,
existem
87 Entrevista concedida em 5/3/1999 por Luiza, 31 anos, auxiliar administrativa no 411
Tribunal do Júri (Santo Amaro).

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tflJ"
Jogo, ritual e teatro Júri - Teatro

altercações, uso pomposo do jargão récnico-científico, demonstração e jutados - que muiro falam. São o desempenho e a capacidade desses
exaustiva de detalhes dos casos etc. - reitera e demonstra por que eles que, em última instância, transformam-nos, aos olhos da assistência e
estão ali, no "palco", exetcendo e exibindo o poder legítimo de julgar. deles ptóprios, em "hetóis da justiça".
Em especial o juiz, em sua posição central e suprema, visivelmente mede Disse-me, certa vez, um juiz:
palavras suas e alheias, assim como o uso do silêncio - seu e alheio _,
Num mundo como este nosso, em que os principais valores morais e sociais
para produzir efeitos ptecisos de autoridade. Pode-se dizer que ele "reinà'
estão em xeque, quem trabalha para que a lei .seja devidamente aplicada é
servindo-se dos recursos cerimoniais do Júri e manifesta, em momentos
um herói, pois luta contra a maré generalizadade descréditona justiça. (...)
estratégicos como bate-boca entre promotor e defensor e mau comporta. Mais pessoas deveriam assistir a Júris para entender que existem leis e que elas
menta do réu ou de assistentes, sua competência para controlar "forças" não servemsó de enfeite.E que há muita gente trabalhando por isso.(...) A
próprias e alheias. Quando seu domínio é ameaçado, ele geralmente meu ver, policiais, nós, da área jurídica, e todos os cidadãos de bem temos
r~age,como vimos no Capítulo 2, quando nos refetimos à sessão em que uma verd~deiramissão social a cumprir. No Júri, especialmente, os jurados
promoror e advogado "invadiram" o domínio do magisttado, levando-o são verdadeiros heróis, pois são homens e mulheres comuns demonstrando
a declarar: "Senhores! São três os que estão agindo aqui como juízes! Eu que não só acreditam na lei como são capazes de aplicá~la,89
mesmo e suas excelências! Assim não dá!",88 Essa percepção de juízes, promotores, defensotes e jurados de que acre-
Enfim, a dramatização política consagra, comemora, difunde ideias e ditat na "lei" e aplicá-la é~fazerjustiça e de que tal tarefa é executada
procura adesões através do espetáculo. No Júri, o controle do poder legí- por heróis al?at~ceu tanto implícita quanto explicitamente em várias
timo de matar é consagrado e celebrado, e ideias-valóres que o sustentam entrevistas. A construção dessa auto imagem de heróis não deixa de ser
se difundem por meio dos exemplos "palpáveis" que cada caso permite mais um recurso da teattalidade política do Júri, uma vez que heróis são
construir .. Ao final de cada sessáo, de um ponto de vista estritamente reconhecidos ",(...) em virtude de sua fotça dtamática. (...) A surptesa,
antropológico-político, não importa se o réu foi absolvido ou conde- a ação e o sucesso são as três leis do drama que lhe dão existência" (Ba-
nado, mas se o espetáculo que o absolveu ou condenou permitiu aos landiet, 1982: 7).
participantes e assistentes aderitem ao próprio poder em jogo: o podet Ao aptesentarem o réu como um tipo a set evitado e banido, ou como
de legitimar vidas e mortes. O Júri é uma manifestação pública desse alguém digno de pena por estar sendo injustamente acusado - anti-hetói-,
poder, que a sociedade ofetece a si mesma. promotores e defensotes apresentam-se a si próprios como imprescindíveis
Não bastasse isso, em cada sessão se tenta assegurar prestígio e respeito para que se faça "justiçà', cabendo aos jurados a responsabilidade de dar
aos "heróis do drama". A esses são dados assentimento e obediência a derradeira e legitimadota palavra.
em ttoca de demonstrações de poder e de continuidade do poder. Tais Uma última observação relativa à "linguagem do poder" no Júri ou à
11
heróis, ao contrátio do que se poderia pressupor, são menos os téus e teatralidade política que é evidenciada e consagtada nesse rito judiciário:
as vítimas - dos quais muito se fala - do que os profissionais do direiro nele também está em jogo o que Balandiet denomina "efeitos compen-

88 4/3/1999, sessão etnografada das 9h às 18h30 no Plenário do 70. andar do 411 Tribunal
doJúri (Penha).
" Entrevistaconcedidaem27/2/1997,no l'Tribunal doJúri(VilaMariana).

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/,,~
Jago, ritual e teatro
Júri - Teatro
satórios do poder" ou "poder em negativo". Devido à sociedade estar
em contínua construção e. consequentementc. Conter vplnerabilidades Em um dos autos processuais de homicídio que estudei quando de um
e perturbações, as representações que ela faz de si mesma Compensam trabalho executado para a Fundação Sistema Estadual de Análise de
suas desordens e contradições internas: Dados (Seade),90essaantiga prática esquimó foi quase literalmente reen-
cenada entre réu e vítima e também entre defensor e promotor. Consta
A sociedade não depende exclusivamente da coerção, das relações de força
nesse ptocesso que na tréplica do julgamento ocorrido em 10 de maio de
legitimadas, mas também do conjunto de transfigurações de que é, ao mes-
1994, no 4"Tribunal do Júri da Penha, o advogado do téu, defendendo
mo tempo, o objeto e a realizadora. Sua ordem permanece vulnerável; ela é
portadora de perturbações e de desordem geradoras de ardis e dramatizaçóes
a tese de homicídio privilegiado (praticado sob violenta emoção, após
que mostram o poder em negativo (Ibid.: 21). injusta provocação da vítima), leu a letra da canção sertaneja "O cheiro
da maçâ', sob protestos do Promotor:
Conforme já sugerimos, o ritual do Júri Cumpre uma função de compen-
sação à medida que, por algumas horas, nos plenários, uma sociedade de Toda noite é a mesma coisal Eu procuro e você náo quer/ Faz de conta que está
dormindo/,Nem parece que é minha mulherl Tão cansada, vira pro ladolE eu,
crescentes e gritantes diferenças socioeconômicas se articula em torno de
na cama, sofrendo calado/ Quatro horas da manhã, sinto o cháro da maçá! E
valores que ela própria apresenta como universais. Essa pretensa unidade
o perfúme do seu corpo/ Vejo tudo se perrkndo/ Vocêfria me esquecendo/ Pela
social, exemplificada a cada caso, é um dos pontos-chave da linguagem
cama, pouco a pouco/ E bate uma vontade louca de beijar sua boca e matar
dramática, particularmente da utilizada no Júri.
meus desejos! Outra noite de castigo/ Sem tocar seu corpol Sem ganhar seus
No tempo e no espaço precisos de um julgamento, a noção de perten- beijos/já começa um novo dia/ E minha fantasia ficou na saudade, outra vez!
cimento de todos a um só conjunto, apesar de Suasambiguidades, passa Eu vou sofrer sem carinho! E sem você outra noztel Estou perdido/ Eu passei
batido e não amei você.
de mera idealização a uma realidade palpável. Quem assiste e participa
de um Júri não pensa que a sociedade existe; sente-a. "Apalavra, pela sua A música, segundo o defensor, fora cantada pelo vizinho do réu, no
força e seus efeitos, ilusiona para conseguir que a ideia se realize;e também quintal comum aos dois barracos, pouco antes de o réu baleá-lo, prova
para manipular na teatralidade e na ambiguidade" (Balandier, 1982: 13). de que assim agiu sob violenta emoção, pois () vizinho tinha um caso
com sua mulher e usara a música para humilhá-lo. Embora não cons-
Uma faceta burlesca: a desordem garantindo a ordem tem do processo quaisquer detalhes sobre como se deu a leitura dessa
música em plenário, há várias peças narrando, segundo testemunhas e
Antigos "esquimós" da Groenlândia duelavam, cantando, para regular o próprio réu, o "duelo musical" entre ele e a vítima. Depreende-se que,
um conflito entre dois oponentes. Travavam uma guerra de palavras, em plenário, a leitura da letra também causou tumulto, uma vez que na
zombarias, insultos e obscenidades; ridicularizavam_se em uma luta ata da sessão do Júri há registros de que o promotor protestou contra a
verbal e espetacular, um possível jogo de alto risco. Saía-se vencedor maneira pela qual o defensor conseguiu a letra (durante o transcorrer da
aquele que mais despojasse o outro de sua autoestima e do respeito de própria sessão, ele pediu a um primo do réu, presente no ple~ário) que
seus associados: "C ..) o temor do ridículo é imanente, seu ataque mata
simbólica ou realmente e com tanto ou mais eficiência quanto maior a
projeção social da vítima" (Balandier, 1982: 23-24). 90 Convênio IBCCRlM/Seade, 2001. "Fluxograma pata o processamento dos crimes
de competência do Tribunal do )úri". In: Boletim IBCCRIM, São Paulo, n. 109,
dezembro de 2001 (encane central). O processo em '::j,uestãoé o de n. 1045/91.

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Jogo, ritunl e teatro Júri - Teatro

a transcrevesse). O juiz acabou determinando o procedimento forense Embaralbadorde cartas,eleé também fatOrde ordem. Elesuprime as disci-
de "juntada" do manuscrito com a letra. ou seja, autorizou os jurados a plinas e contribui para restaurá-las. Ele transforma, por meio do imaginário
considerarem-na como prova do estado de espírito do réu. e do espetáculo,os fatoresreaisda ruptura em figurasdramáticas. (...) Ele
se torna porcador do antlssoclal (... ). Ele mostra o que sucederia a uma
Lamentei não ter ptesenciado essa sessão, para comparar o que ocorreu
sociedade em que as normas, interditos e os c6digos se dissolvessem (... ).
em cena com o que restou registrado nos autos. De qualquer modo, o Cabe-lhea parte do fogo,mas a fim de extingui-lo:não se pode reconhecer
exemplo é válido para, guardadas as devidas ptoporções, afirmarmos nele a prefiguração do revolucionário ou mesmo a do rebelde (Balandier.
que esse réu, em plenário, fez o papel de "bufão", devidamente acom- 1982:30-31).
panhado do acusador e do defensor enquanto "comediantes burlescos".
A partir de uma perspectiva tearral, as narrativas de homicídios apre-
Estes, através de sustentações orais calcadas em exageros e caricaturas,
sentadas no Júri, reforçadas pela presença do réu, fotos do cadáver da
transformaram acusado e vÍrima em personagens perturbadores da lógica
vítima, ataques veementes do promotor e igualmente fortes contra-
social. das convenções e da "moral comum", que preconiza a monogamia
-argumentos do defensor, são performances que, dentre outras finali-
feminina, por exemplo. Por isso, eles se mostraram reveladores de ambi-
dades, execra.m:,de forma catártlca, comportamentos e modos de vida
guidades humanas (monogamia e poligamia, fidelidade e traição, amor
considerados caóticos e perigosos. Quando esses são ridicularizados,
e ódio) a serem devidamente ritualizadas e "resolvidas" no julgamento.
é como se "pecados", ."falhas" e "defeitos" humanos também fossem
O bufão
execrados a fim de serem expiados. Ocorre_algo igualmente catártico
(... ) mostra que as classificações impostas pela sociedade e pela cultura-po- quando, dando um desfecho ao caso, os jurados liberam a tensão
dem ser confusas; ele parece destruir para reconstruir de modo diferente; acumulada durante as horas de julgamento arravés de seus votos e em
ele cria na desordem; ele apresenta uma imagem adoidada e heroica da nome da "sociedade".
aventura individual, conduzida fora das convenções sociais. ( ) Seu espe-
Promotores e defensores, em plenário, ao narrarem desordens e atribuí-
táculo itOniza(...), sendo uma forçasacrílega,por excelência( ). [mas]A
transgressão é limitada pelo ritual, não se confundindo nunca com a orgia
rem a certos fatotes a responsabilidade por rupturas familiares, morais e
(Balandier,1982: 30). econômicas, geralmente transformam réus e vítimas em figuras dramá-
ticas, por meio do imaginário e do espetáculo, o que é muito típico do
Ao 'equipararmos a dramaricidade do Júri a um espetáculo burlesco, bufão. Transformam réus em portadores do "antissocial" e mensageiros
é difícil deixar de lembrar a definição de normalidade sociológica do
de contestações e incongruências, mas com a finalidade precípua de,
crime feita por Durkheim, porque tanto na figura do bufão quanto
ao final da sessão, os jurados, através de seus veredictos, porem ordem
na proposição durkheimniana de que o crime cumpre funções sociais
ao caos, ou, em outras palavras, darem um destino às contestações e
importantes - como, por exemplo, o reforço da ordem e a antecipação incongruências representadas por réus e vítimas.
de comportamentos futuros (Durkheim, 1983: 119-124) - prevalece a
ideia de que a encenação da desordem é um modo de reiterar e garantir Na encenação e no jogo do Júri, além de ridicu!arizações que podem
a ordem. Não bastasse isso, o bufão também cumpre uma função catár- envolver diretamente réu e vítima no contexro do crime, há pelo menos
tica, à medida que libera tensões e, assim, trabalha para a tegularização outras duas que, de certa maneira, aproximam-se do velho duelo esqui-
de relações sociais: mó. Às vezes, réu e/ou vítima são escarnecidos por operadores récnicos,

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Jogo, ritual e tl~ntrO Júri - Teatro !
violências, movimentos e fraturas sociais irredutíveis. Mas o essencial em uma comunidade regenerada. O poder se nutriu com suas próprias
do jogo dramático do Júri reside na estratégia astuciosa e complexa de fraquezas ?u1çom seus próprios excessos (Ibid.: 43).
converter ameaças "à sociedade" em meios de fortalecê-Ia (Ibid.: 23). O
Comparando o papel cumprido por feiticeiros de coletividades tradi-
controle do uso legítimo do podet de matat, portanto, revela-se um dos
cionais ao papel de réus na atualidade, o que se aplica ao processo de
controles ou modos culturais de lidar ou de esconder rupturas e incon-
inversão na feitiçaria parece aplicável ao processo de designação pública
gruências sociais. Enfim, a desordem, quando ritualizada e encenada,
e de eliminação simbólica de autores de crimes. Como a sociedade e seu
converte-se em garantia da ordem. Nas palavras de Balandier:
poder não conseguem evitar a confrontação. da ordem e da desordem
A ordem e a desordem da sociedade são como o verso e o anverso de uma nem da conformidade passiva e da liberdade modificadora, mudam-se
moeda, indissociáveis. Dois aspectos ligados, dos quais um, à vista do senso
as formas, mas permanece o processo de designação e de neutralização
comum, aparece como a figura invertida do outro. Esta inversão da ordem
de culpados.
não é sua derrubada, dela é constitutiva, ela pode ser utilizada para reforçá-
-la. Ela faz a ordem com a desordem, assim como o sacrifício faz a vida É inegável que esse processo engendra a dinâmica do sistema de justiça
com a morte, a "lei" com a violência apaziguada pela operação simbólica criminal e, consequentemente, do Júri, Réus "irredutíveis') são os agentes
(Balandier, 1982: 41). nefastos ou inimigos internos que, uma vez "sacrificados", inocentam o
Nesse processo de inversão da ordem para, ao final, reiterá-Ia, pessoas são poder e a colerividade, permitindo o reforço de sua coesão. Narureza,
discriminadas social, moral, sexual, econômica e/ou politicamente. Réus, sexo, trabalho, economia, poder e valores morais são, portanto, transfor~
em última análise, são tão necessários à ordem quaI;ltOas instituições que mados e, simultaneamente, reforçados por réus elou vítimas "dissidentes"
se propõem a preservá-la e aqueles que as representam. nas narrativas que promotores e defensores elaboram a respeito deles.

Vários antropólogos já demonstraram que coletividades tradicionais A ordem, assim, extrai da desordem as forças que a revigoram, tanto que
localizam seu mal ao apontar um feiticeiro, em um processo de inversão muitas cerimõnias dramáticas ritualizam um período primitivo de violên-
que opõe positivo/negativo e forças de coesão/desagregação social. O cia e sexualidade livres, permitindo à sociedade reavivar e interpretar sua
temor de ser suspeito de feitiçaria acaba corrigindo condutas e retificando gênese, mas com o objetivo último de, com essasdramatizações reguladas
desvios. Um momento intenso desse tipo de situação dramática se dá por leis de inversão e de hipérbole, reordenar valores e garanti-los.
quando o feiticeiro é procurado, castigado e até eliminado. Mais uma vez remetendo~nos a "sociedades tradicionais", em algumas
Designando publicamente, e, depois, eliminando o autor da crise ( ... ) a delas se pode observar uma desordem instituída durante a vacância do
comunidade se refaz e a autoridade se reforça. A culpabilidade do feiticeiro poder real, ao longo da qual o novo rei encontra meios para reavivar a for-
inocenta todos os outros e, principalmente, os membros do poder. Seu ça de sua realeza. Sua pessoa ambígua, por um lado objeto de veneração,
sacrifício contribui para uma volta à ordem dramatizada pelo ritual da
e por outro inspiradora de temor e medo, é assim afirmada e revitalizada
execuçáo, a uma restauraçáo das instituições e dos pensamentos que as
em rituais que rranscorrem durante esse interregno (Ibid.: 49).
legitimam. Durante algum tempo, a eliminação do culpado restabelece
uma espécie de sociedade purificada. A operação do sacrifício transfor- Na tradição marroquina, ocorre uma breve substituição do verdadeiro
mou uma comunidade enfraquecida, minada pela desordem engendrada, poder por um falso quando reclamações e aspirações frustradas estão
perigosamente acumuladas . .g.m um sistema como esse, a temporária

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tf):f
Jogo, ritual e teatro
Júri - Tentro
diante de todos, ao serem apontados como "pessoas sem condições de
compteender a otdem social e dela participar devidamente"." Não tatas indevida "socialização" que acarreta a ruptura de regras sociais básicas
vezes, defensores e promotores també~ trocam entre si ironias, insultos devido a impulsos e paixões mal controlados.
e zombarias no que diz tespeito a Suas ptóprias petformances econheci_
Defensores, por sua vez, ou concordam com promotores e reconhecem
mentos jurídicos, na tentativa de, desqualificando uns aos outros como
a impulsividade e passionalidade de seus clientes, mas somente para
oradOtes competentes, desqualificatem aqueles POt eles tepresentados.
escusá-los de dolo e até de culpa, ou discotdam e, quase nos mesmos
Promotor: Com rodo o respeiro, doutora, se a senhora tivesse estudado termos, provam o bom uso do livre-arbítrio (legítima defesa, por exem-
mais, perceberiaque não se Sustentaa tese da legítima defesa". plo) e a existência de projetos "dignificantes" de vida (trabalho, família,
Advogada: O senhor está sugerindo que eu sou uma advogada que não primariedade etc.), "apesar" das misérias social e econômica.
estudei o bastante?

Promotor: Que é isso, doutora! Estou me referindo ao estudo dos autos, Voltando à denominação dos juízes, promotores, defensores e jurados
mas já que a carapuçaserviu... como "príncipes", podemos agora sugerir que o par "bobo da cortei
Advogada [dirigindo-se ao juiz]: Excelência! Eu gostaria ~ue.constasse dos príncipe" pode ser relevante para uma análise da teatralidade do Júri,
autos minha indignação diante dessas sérias ofensas do Senhor .Promotor pois esses personagens "( ... ) servem para mostrar o poder sob o duplo
à minha formação e competência, e de afirmar que meu cliente e a OAB aspecto da força e da zombaria, da fortuna e do infortúnio; eles formam
estão aqui muito bem representados,ao passo que a sociedade, atravésdesse um pat dramático" (Balandier, 1982: 32).
colega do Ministério Público, não está sendo honrada."
No Júri, temos o réu representando o infortúnio e, muitas. vezes, fazen-
A frase final da advogada, conforme já analisamos no Capítulo 4 ao
do as vezes de um I;>oboda corte perante os presentes. Nos "príncipes",
tratarmos de códigos de evitação, deixa claro que tanto ela quanto o
enContramos a força e a representação da forruna. O poder no Júri,
promotor representam outras pessoas e instituições, de modo que ofensas
portanto, pode ser teatralmente lido a partir de um par dramático,
trocadas entre eles colocam em xeque a reputação dos representados.
condensado no jogo entre "príncipes" e réus, o duplo aspecto da força
"Ridicularizações rituais", de um ponto de vista amplo, dramatizam e da zombaria, da fortuna e do infortúnio.
rupturas sociais para que a própria sociedade elabore temas relativos a
O Perturbador, (...) o Bufão, (...) o Doido (...). Eles são encarregados da
ambiguidades da condição humana, como o sagrado e o profano, o des- verdade: debaixo ~a ordem social, a desordem; debaixo das instituições, 'a
tino e o livre-arbítrio, o infortúnio e a razão; impulsos e regras Culturais. violência; debaixo do poder investido da função de manter a estabilidade,
o movimento; debaixo da unidade, as fraturas irredutíveis. (...) Cada so-
No Júri, ambiguidades dessa narureza podem ser observadas qU'\Ildo
ciedade, a seu modo, define as verdades que tolera, (...) o espaço que ela
alguns promotores acusam e ridicularizam os rêus pelo mau uso do
concede à liberdade modificadora e à mudança. Ela não cessa jamais de
livre-arbítrio, pela carência de projetos "dignificantes" de vida e por uma
restabelecerdemarcações, de reavivaros interditos, de reproduziros códigos
e as convenções (Ibid.: 39).

" Frasede um promotor proferida no transcorrerda sessãodo dia 8/3/1999, à tarde, Os réus, cujas vozes equalizadas ecoam pelas bocas de acusadores e
no plenário "B", do 2'Tribunal do Júri (Saúde).
defensores, são por eles apresentados como perturbadores da ordem,
.j. " 13/6/1997, das 13h às 17h, no Plenário "D" do I'Tribunal do Júri (VilaMariana). bufões, doidos. As histórias contadas a seu respeito falam de desordens,

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Júri - Tl'alro
substituição do soberano introduz um moyimento de simulacro que
praticamente descarta o risco de o poder Clverdadeiro"ser ameaçado 1982: 61) é especialmente visível no ritual do Júri, pois acusadores e
(Ibid.: 51). Da mesma forma, subversões fesrivas, como o Carnaval, defensores só tornam eficazes suas arguições quando as "encantam" com
afrouxam tensões sociais, apagando constrangimentos) mascarando a mi- expressões dramáticas, como a mencionada música (CO cheiro da maçã".
séria, funcionando, enfim, como uma "válvula de segurança" (DaMatta, Se "(...) qualquer universo político é um cenário ou, mais genericamente,
1983). ''A função de terapia social - servir à ordem, revigorando-a _ um lugar dramático em que são produzidos efeitos" (Ibid.: 63), então
é, incontestavelmente) mais importante do que o risco de ruptura" podemos caracterizar o Júri tanto como um universo político quanto
(Balandier, 1982: 57).
como um cenário em que são produzidos efeitos teatrais. Em outras
Antropologia e direito enconttam-se, portanto, frente a frente ou lado palavras, uma vez que o poder político, em geral, e o do Júri, em parti-
a lado nesse grande embate entre ordem e desordem, pois não há como cular, conservam a função de desativar angústias e medos (Ibid.: 64), a
compreender a manutenção da primeira sem a existência e as artimanhas cenografia política do Júri necessita, para garantir a eficáciada instituição,
sociais utilizadas para controlar a segunda e sem relacionar as duas aos da produção de imagens e de efeitos não somente técnico-científico-
sacrifícios que lhes dão força. O Júri está aí para nos mostrar a atualida- -racionais, mas de recursos dramáticos que "toquem os corações" ao
de dessas estratégias culturais, e, quem sabe, um estudo antropológico tratar de paixões, conflitos e traições.

voltado para a apresentação dessa dinâmica possa, de algum modo, Explica-nos Balandier que, geralmente,
colaborar para que nos questionemos a respeito de como nela atuamos.
Uma dissociação separa (...) o poder supremo, guardião dos símbolos (...)
[do] poder de gestão quotidiano. Este estásujeito diretamente ao assalto das
Cenografia política críticase às reaçóesda opinião; opera à maneira de uma tela protetora. (...)
Os poderes moqernos não eliminam os investimentos míticos necessários
Tudo o que já foi exposto neste capítulo nos permite reiterar que, embora a seu funcionamento(Ibid,: 65),
o Júri seja um ritual marcado pela atuação de operadores técnicos, são
os efeitos dramáticos por eles produzidos que Sustentam essa instituição Partindo desse pressuposto, podemos afirmar que o poder "de gestão
como 10cUJ socialmente reconhecido e legitimado do controle do poder quotidiano" do Júri é justamente o técnico-jurídico e) por isso, a maioria

de matar. Em outras palavras, o domínio do político e do jurídico, no das críticas e reações da opinião pública quanto a sua existência e eficácia
Júri, apesar de todas as crescentes reivindicações de predomínio de ra- se voltam para o despreparo de jurados leigos, a morosidade do sistema de
cionalidade e de tecnicidade, não conseguiram transformar esse campo justiça, os altos custos dos julgamentos etc. Contudo, o "poder supremo,
de ação política em espaço privilegiado de uma razão mecanicista. Isso guardião de símbolos" que, de fato, responde pelo funcionamento do
se deve ao fato de que dispositivos simbólicos, práticas codificadas e con- Júri, é da ordem de "investimentos míticos", envolvendo a organização

duzidas segundo regras rituais, além de projeções dramatizadas advindas e a expressão de emoções e modelos de conduta, bem como crenças na
do imaginário dos participantes) são. intrínsecos ao Júri. neutralidade do juiz togado; na proteção de interesses "sociais" a serem
garantidos pelo Ministério Público; na punição e na contenção de "des-
A ideia de que, longe de estar "desencantado", o poder político na atu-
viantes"-pelo sistema de justiça criminal e até na ideia de que vivemos em
i alidade apoia-se em algo de natureza simbólica e "mágica" (Balandier:
uma democracia participativa, na qual leigos podem integrar as decisões
I' do Poder Judiciário,

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Jogo, ritual e teatro
Júri - Teatro

A cenografia polírica do Júri, portanto, obedece a uma lógica de hierar- dendo para não se mostrarem incompletas e ineficazes. Estas, por sua
quização, composição e atuação dos atores em plenário, muito menos
vez, ganham especial impacto por se inserirem em um ritual técnico-
calcada em prescrições legais e formalidades técnico-jurídicas do que em
-judiciário. Há, porta~to, uma oposição necessária - porque comple-
complexos mecanismos de manipulação de senrimentos. Tais prescrições
rr.entar - .entre essas expressões e aqueles que lhes dão vida, fazendo
e formalidades, contudo, funcionam como "telas protetoras" do Júri,
do Júri e de seus atores um conjunto aparentemente carregado de
pois, enquanto fortes críricas as aringem, o que realmente importa é
ambiguidades, porém equilibrado.
resguardado e perpetuado.

O juiz, que encarna o mito da neutralidade, desse pOnto de vista ocupa T~la
a função soberana de "gestor quoridiano", reinando do alto de sua mesa
centralizada e através de suas participações marcadamente técnicas. Costuma-se afirmar que, ao contrário das chamadas "sociedades tradi- ili

.Porém, ele mais reina do que governa, pois promotores, defensores e cionais", essencialmente vocais, as "modernas" generalizaram a escrita e
jurados são os que abertamente produzem, organizam e reproduzem a impressão das ideias, subsrituindo a argumentação pela demonstração.
investimentos míticos e institucionais ao explorarem angústias, medos, Contudo, nas sessõesdo Júri, as argumentações de acusadores e defenso-
valores e modelos de conduta. res têm muito poder porque, dentre outras razões. os jurados não leem
previamen5~ o que está demonstrado nos autoSj quando muito, ouvem,
Há, enfim, exigênciascontraditórias imposras aos diversos atore.qjólíricos
durante as ~e&\ões,a leitura de peças indicadas pela defesa ou pela acu-
do Júri, especialmente aos acusadores, defensores e jurados, pois, por
sação ou nelas passam os olhos, em silêncio e rapidamente, para sanar
fazerem parte de uma sociedade em que a técnica e a ciência são consi.
iguma dúvida ou curiosidade. A argumentação vocal e a dramaticidade
deradas garantidoras da imparcialidade e da jusriça, eles se submetem
no espetáculo do Júri são essenciais.
à lógica da racionalidade competente e, em nome desta, fixam limites
do possível e do razoável em seus discursos. Por outro lado, "(...) eles só Isso talvez se insira em um processo maior, que graças ao desenvolvi-
podem dar a impressão de poder recorrendo ao imaginário, ao irracio- mento da mídia eletrônica nas ditas "sociedades modernas" revaloriwu
nal, ao simbólico, às armadilhas das esperanças dos governados. (...) A antigos hábitos. como os da onipresença da palavra, através do rádio, e
gestão técnica (...) não chega a dar a ilusão de um domínio completo da invasão progressiva da imagem, por meio da TV: "(. ..) a tela torna-se
(...)" (Ibid.: 66-67). o lugar onde tudo pode ser mostrado sob um aspecto dramático para
que se formule um julgamento (...). A persuasão política depende (...)
Em parte, essas exigências contraditórias se resolvem por serem os jura-
daquilo que é manifestado espetacularmente (...)" (Balandier, 1982:
dos leigos os mais responsabilizados pela "impureza" da gestão técnica,
67 e capo4).
mas, em parte, não se resolvem, pois a cenografia política do Júri aponta
a permanência de um poder ambíguo, simultaneamente revesrido de Em uma sessão, um promotor, ao dirigir-se aos jurados, quase chegou
expressões técnico.jurídicas e dramático-simbólicas. a lhes pedir desculpas pelo faro de o Júri ser um espetáculo mais vocal
do que imagético: "Sei que os Srs. são obrigados a vir, meSmo que não
Por mais paradoxal que pareça, as expressões técnico-jurídicas abrem
tenham facilidade de guardar dados pela audição, uma vez que vivemos
espaço e dão força às expressões dramático-simbólicas, delas depen-
no mundo da TV. Trata-se de uma tarefa árdua e exigente essa que a

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Jogo, ritual e teatro
Júri - Teatro

Justiça lhes pede. Mas imaginem o que lhes setá narrado, visualizem as
cenas em suas mentes (...)".93 de transgressão essencial, aceito e suportado no curso da vida social e
\ , política, pois "(...) ela pode atmat cenas provisótias em face da cena
A palavra, no Júri, tem o poder de construir imagens. Quamo maior o permanente do poder; ela faz aparecerem figuras efêmeras da liberdade
poder argumentativo do narradot, maior será a capacidade de instigat a e da irreverência. (...) é esta sua função principal" (Balandier, 1982: 75).
imaginação dos ouvintes. Pata que essa comunicação seja bem-sucedida,
A diminuição de festividades sociais e de uma certa "liturgia da desor-
todavia, faz-se necessária uma "tecnologia das aparências", da qual qual-
dem", em que as violências se liberam para depois se domesticarem em
quer tipo de poder normalmente dispõe e depende. Essa tecnol()giapermi-
dramatizações coletivas, ou seja, a diminuição de "crises miméticas" que
te ao poder produzir "(...) a impressão de certa transparência; de suscitar
mascaram crises reais e ao final das quais a ordenação social é reforçada
a conivência passiva ou ativa de numerosos governados-espectadores com
talvezseja um dos fatores que contribuem para ocrescimento da violência
o sentimento de uma liberdade de determinação _ em face da imagem
nas sociedades modernas (Ibid.: 76). Nesse sentido, cabe refletir o quanto
introduzida no universo privado - e de uma possibilidade de participação
o Júri contribui para manter a violência "sob vigilância", à medida que se
- graças às intervenções que lhe são propostas" (Balandier, 1982: 67).
constitui como espaço legítimo de ordenação e reforço da ordem social.
Vários fatores contribuem para a composição dessa "tecnologia das
Se Balandier tinha razão ao afirmar que "O homem deste fim de sécu-
aparências" no Júri: as sessões serem abertas ao público; a seleção e o
lo [XX] está pteso no casulo invisível fotmado por todas as tedes que
Sorteio dos jurados serem, a princípio, aleatórios; promotores e defensores
lhe transmitem, a distãncia, imagens e ruídos do mundo. (...) ele está
apresentarem "dados processuais" a leigos e os jurados serem conside-
encerrado; (... ) ele tem menos acesso à realidade do que a uma telerrea-
rados livres para decidir, através de seus VOtos- tudo isso confere uma
lidade. (...)", então podemos associar o Júri a um dos fios que formam
"impressão de transparêncià' aos julgamentos, bem como sugere que
esse casulo, pois, em alguma medida, essa instituição mediatiza mortes
os jurados desfrutam de liberdade para participar e intervir na ordem
cotidianas e violentas, bem como os respectivos dramas cotidianos e
social. Assim, generaliza-se a crença de que as palavras que ecoam nos
plenários portam "verdades". violentos que as causam, apresentando-os narrados e "processados" nos
plenários. Entretanto, prossegue o autor, "este encerramento sofre arra-
Um jurado, ao ser entrevistado, declarou: "Depois que a gente participa nhões. A passividade deslumbrada não exclui momentos de desenganos
de um Júri, fica mais fácil e mais difícil criticar o Judiciário, pois a gente e de dúvida. A vida cotidiana concreta, direta, rude, pesa sobre a tela
fica conhecendo ele melhor, por dentro. (...) Dá pra perceber o que das aparências e de vez em quando a rompe" (Ibid.: 78).
pode melhorar e o que já está bom. Sem comar que, como jurados, nós
Essesmomentos de desengano, dúvida e ruptura da tela do Júri, às vezes,
decidimos, fazemos parte, ficamos mais próximos da verdade (...)".94
podem ser observados imediatamente ao término das sessóes. Certa vez,
Embora já tenhamos apontado no capítulo anterior a ligação entre uma máe, após ouvir a sentença condenatória de seu filho, saiu para o
ritual, festa e poder, cabe reiterar que a festa é, antes de tudo, um meio corredor e, em prantos convulsivos, desabafou:

o que falaram aqui não tem nada a ver com o que aconteceu. Ninguém
9' Sessão etnografada em 16/8/200 I, no lI! Tribunal do Júri (Barra Funda). sabeo que meu filhopassou.Não dá!Vocêsentendem?Não dá pra saber o
9< Ent<evin. telefônica concedida em 27/6/2001 pelo St. Sétgio, 44 anos, ttcn6logo. que ele viveu e o que ele fez, ouvindo o que disseram aqui. Não dá! Julgar

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Jogo, ritual e teatro Júri - Teatro

um homem assim, nesta bolha de vidro, é errado. Acho que só Deus pode O que vai a Júri não são histórias trágicas, como se poderia supor, mas
julgardiferente, pois só ele escavalá e viu. Só ele sabede rudo C... )."
dramas básicos da existência humana, contados a partir de versões
Gravei esse depoimento sem o consentimento dessa senhora, cujo nome populares e violentas. Isto está muito bem explorado, por exemplo, no
eu jamais soube. Não havia acompanhado o julgamento de seu filho; eu filme Tempo de matar (A Time to Kill, 1996, baseado no livro homô-
simplesmente estava no corredor, aguardando um juiz que me conce- nimo [Grisham/,2008]), em que um jurado branco, de classe média,
deria uma entrevista, mas lembro-me de que saí dali pensando no Júri absolve uo ré~ negro e pobre acusado de assassinar os estupradores de
associado à metáfora da "bolha de vidro" - casulo invisível. sua pequena filha. A interpreração é que esse jurado, provavelmente,
antes de se ver como homem branco e de classe média, identificou-se
i'

Drama, melodrama ou tragédia? com o réu por ambos serem pais, pois o drama mais básico deixou de
ser a diferença de cor de pele oude classe social, sobrepondo-se o dever
O desabafo dessa mãe e outras situações relacionaqas ao Júri poderiam paremo de proteger/vingar até as úlrimas consequências a integridade
sugerir que a teatralidade desce se baseia em um gênero r~ágico, mas ele física e moral violada de uma filha ainda menina.
lida com dramas e melodramas. Nos plenários não temos deuses, heróis
ou personagens ilustres dialogando entre si, como ocorre nas tragédias. Esse tipo de identificação fundada em algo reconhecido como valor hu-
Nos palcos-plenários, através de discursos de I<príncipes humanos") mano universal é o que está em jogo e em cena, a cada sessão de Júri. Os
comportamentos e valores de profanos réus .são apresentados, com alta casos mudam, os tipos de v~orese identificações em debate variam, as

dose de sentimentalismo) a profanos jurados. Temos "pessoas comuns" responsabilidades em xeque ora são paternas) ora maternas, ora conjugais,

julgando e decidindo descinos de outras "pessoas comuns". Mesmo filiais, de vizinhança ou de grupo, mas, geralmente, a estrutura melo-
dramática da narrativa se repete e gira em torno de um ou mais valores
quando a situação do julgamento é associada a imagens sacras - deus,
demônio) anjo da guarda, santos -, temos muito mais um rito de reforço cuia universalidade está sendo testada. Acusadores normalmente tentam
de hierarquias, estabelecidas e mantidas entre os homens, do que uma convencer os ju~ados de que um valor social básico foi desrespeitado pelo
cerimônia de caráter divino ou heroico. réu, ao passo que defensores tentam convencê-los de que outro) ainda mais
básico, foi desrespeitado pela vítima, justificando-se, assim, sua morte.
Alé~ disso, na maioria dos casos, ao contrário dos desfechos fatais das
tragédias, a estrutura narrativa das sustentações orais de promotores e Para que o melodrama chegue a um desfecho redentor e não fatal, como
na tragédia) é crucial a forma como tais valores são encenados e como
defensores corresponde a um acúmulo de negatividades que, ao final,
os atores encarnam seus papéis, pois o melodrama não existe a priori;
sucumbem ao bem, à aplicação da justiça, à punição do socialmente
inadmissível ou ao perdão do admissível. "O melodrama requer que o ele se faz em.cena. Nele são fundamentais os processos de identificação
e de totali~âçáo. Nestes se baseiam o modelo narrativo e teatral do Júri
mal seja abatido - o que é uma ideia moral" CBalandier, 1982: 33). Esse
combare do mal, somado ao fato de os casos julgados remeterem a situ- e a teatrocracia que regula a legitimidade de vidas e mortes, possibili-
ações populares e violentas do coridiano, também ripifica o melodrama. tando, em ato, consensos mais profundos do que outros cujas bases são
somente técnico-racionais.

9S Fala gravada em 17/812001, por volta das 18h, no corredor do 11l Tribunal do Júri A melodramaticidade do Júri, portanto, é o que lhe garante a possibili-
(BarraFunda). dade de desfechos aceitos como socialmente redentores e juridicamente

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Jogo, ritual e teatro
Júri - Teatro

legítimos. Assim corno na tourada o toureiro se identifica profundamente


Segundo Renato ]anine Ribeiro, a palavra etiqueta significa, original-
com o touro no jogo de vida e morte qu~,osenvolve, jurados se envolvem
mente, rótulo, ou seja, algó que resulta de um "procedimento de nomi-
com réus à medida que, no decorrer das sessões, expõem-se a profundas
nação", do estabelecimento de sinais de diferenciação social e política
identificações com os valores contidos em suas histórias. Quanto mais
que decorrem de um conjunto de regras e atitudes a elas correspondentes
as decisões condenatórias ou absolutórias tiverem tais valores por base,
(Ribeiro, 1983 e 1994: 33-34). Nesse sentido, os "truques" da etiqueta
mais o Júri se fortalecerá enquanto instituição encarregada de controlar
o uso legítimo do poder de matar. real, à época de Luís XIV, <t(. .. ) visavam, justamente, a impressionar as
mentes, a calar a dissidência (... )" (1994: 32), tanto que foi o próprio
O melodrama explicita, ainda, a possibilidade de os participantl's exercerem regente quem escreveu: "os povos sobre os quais reinamos, incapazes de
ou se submeterem a um poder quase absoluto, mesmo que imaginário, tal penetrar o fundo das coisas, costumam regular o seu juízo pelas aparências
como ocorre em ritos de passagem. Conforme expusemos nos capítulos que veem, e (...) medem seu respeiro e obediência segundo as precedên-
anteriores, podemos identificar ao menos dois desses ritos no Júri: um en- cias e as posições". Em outras palavras. o governante, ao valer-se de uma
volvendo jurados - "cidadãos de notória idoneidade" passam a ser juízes, teatralização do poder, de modos elegantes e respeitosos para sinalizar e
duranre a sessão - e Outro referente a réus - cidadãos sob susp'eita podem instrumentalizar diferenças sociais e políticas, marca sua superioridade
ou não sair dos plenários reincorporados à sociedade. Através dos vários e distingue-se de seus membros (Ibid.: 32-34).
procedimentos que compõem esses ritos, jurados e réus experimentam um
poder que se apresenta como supremo. Os primeiros o exercem e os segun- Mantidas as devidas proporções, p'odemos afirmar que algumas opini-

dos a ele se submetem. Acima desse poder, na esfera humana, não existe ões de juízes, promotores e defensores a respeito de jurados podem ser

outro, tanto que a própria lei assegura a soberania das decisões do Júri.96 interpretadas à lliZ das palavras de Luis XIV, pois apontam os jurados

Por serem um microcosmo que reúne o que está disperso na sociedade, cómo representantes de um público de súditos sobre o qual reinam. Um

os plenários do Júri permitem, enfim, um confronto agonístico, lúdico, defensor, por exemplo, de certa forma sugeriu serem os jurados incapazes

ritualístico e melodramático de representações, práticas e valores complexos. de Upenetraro fundo das coisas" ao declarar em plenário: "Os crimes
de homicídio são julgados por pessoas do povo porque, apesar de não
serem juristas nem filósofos e de, portanto, não terem uma compreensão
Etiqueta do e no Júri
profunda de todos os detalhes envolvidos, são capazes de analisar questões
Concluir que aquilo que mais se discute no Júri não é a adequação ou do dia a dia, com~ xingamentos de que o réu foi vítima e a ira que isso
inadequação técnica e legal de comportamentos a previsões legais, mas pode deflagrar no homem médio"."
uma escala de valores sociais que regula limites entre assassinatos social- Outras opiniões mais taxativas e geralmente de opositores do Júri revelam
mente suportáveis e insuportáveis, significa afirmar que nos plenários é uma percepção dos jurados como pessoas que regulam seu juízo pelas
encenada uma etiqueta da vida social.
aparências e medem seu respeito e obediência segundo precedências e
posições, conforme declarou-me um juiz:
96 O resultado de uma sessãode Júti, se reformado pelo Tribunal de Justiçadevido ao
promotor ou o defensor terem interposto um recurso, implicará a realização de uma
nova sessão de Júri, pois o resultado, em si, este só pode ser produzido pelos jurados. 97 18/3/1999. sessão emografada das 13h40 às 17h, no Plenário 11 do 311Tribunal do
Júri (Santo Amaro).

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Jogo, ritual e teatro
Júri - Teatro

Não entendo a lógica do júri, a razão de se entregar nas mãos de leigos


uma intimidade grandiosa, recursos esses típicos do teatro do século XIX.
justamente o julgamento dos crimes mais graves. Eles não têm condições
Como resultado dessa reatralidade, os atores soam empertigados e rígidos
para assumir essa responsabilidade. pois a maioria se deixa impressionar pelo
melhor discurso, pela postura mais firme. seja a do promotor ou a do defensor em suas togas ou em seus ternos e gravatas, enquanto nas artes cênicas

e até pelo jeito de o réu olhá-los e de os familiares do réu se comportarem. atuais tendem a prevalecer a descontração, a leveza e uma linguagem mais
As regras do júri) dentre outras coisas, mostram a cada um o seu lugar. No caso direra que também fala da intimidade, porém de forma não grandiosa,
dos jurados, tenta-se inclusive protegê-los dessas influências (grifo meu).98 mas intimista, resultando daí uma impressão de espontaneidade. "Isso
cria um problema para os políticos [e para os operadores do Júri, eu
Um risco que a etiqueta do Júri oferece é o de fazer de jurados-cidadãos
diria]: o reatro que fazem não conquista mais o público. Não convence,
um público passivo, meros reireradores de decisões tomadas por "sábios"
não atrai. Eles estão atrasados. em seu jogo cênico, J?elo menos três ou
juízes, promotores e defensores. Isso pode reduzir o caráter público das
sentenças e seu vínculo com a res pu~lica. "Em suma, quanto mais o
quatro décadas. (...) em nosso tempo a tearralidade dos políticos já não
conquista as multidões (...) soa falsà' (Ribeiro: 2001).
governante fizer cena para sua popularidade, menos r~publicano ele será,
e maior risco correremos de que, esquecendo o público pelo publicitário, Um dos mais renomados e antigos advogados do Júri no Brasil, Evan-
ele se aproprie da coisa comum para fins privados" (Ribeiro, 1994: 34). dro Lins e Silva, faz afirmações que revelam sua clareza a esse respeiro.
Citando Hemi Robert, comenta que
o depoimento desse mesmo juiz sobre os motivos "duvidosos" da
impugnação de algumas sessões de Júri é uma reflexão a esse respeito: - (... ) o foro sofreu outrora, no período roinântico, o contágio do pdthos gran.
diloquente e lacrimejante da moda. Hoje, quem discursa no estilo teatral
O júri é uma instituição muito complexa, pois nos plenários, não bastassem
de antanho arrisca-se a cair no (... ) ridículo. Quanto. mais um advogado
os crimes de morte em julgamento, lá estão representantes de instituições
adquire experiência do ~ribunal e quanto maior for a sua reputação, mais se
como a Magistratura. o Ministério Público, a Procuradoria do Estado e a
esforça por conformar-se com este modelo de sinceridade, concisão e elegante
OAB. Entre si, eles guardam reservas e tensões. E sabe o que eu acho? Que
simplicidad~. (...) É precis~ querer convencer e não seduzir (Silva, 1991: 21).
juízes, promotores e procuradores ganham bastante bem paraI por razões
de vaidade. instigarem a dissolução de júris. Imagine quantas pessoas. são Pelo que pude observar ao longo do trabalho de campo, boa parte dos
mobilizadas num Júri! E quantas o fnram desde a lavratura do B.O.! Quanto promotores e defensores que atua nos Júris de São Paulo mescla o "modelo
dinheiro público! São muitos esforços para desfechos frustrados.
teatral grandiloquente e lacrimejante" com o "de sinceridade, concisão

Outro risco ou problema enfrentado pelo "teatro da política", em geral, e e elegante simplicidade". Suas togas e os cenários dos fóruns e plenários
pelo do Júri, em parricular, é o de que os recursos cênicos urilizados por tendem a reforçar o primeiro estilo, embora não os impeçam de agir
seus atores se distanciem, cada vez mais, daqueles que fazem sucesso nas de acordo com o segundo, principalmente nos intervalos das sessões,
artes cênicas. A teatralidade da maioria dos juízes, promotores e defensores nos corredores e gabinetes. E, conforme apontou Silva, são justamente
do Júri, assim como a de muitos políticos, tende a ser pesada, séria, baseada os profissionais mais jovens e inexperientes - e, provavelmente, mais
em expressões grandiloquentes e gestos enfáticos que tentam expressar inseguros - os que mais recorrem à grandiloquência, cansando e n;1o
convencendo os jurados.

Em sessões em que pude observar promorores e defensores principiantes,


98 E;ntrevista concedida por um juiz do lI! Tribunal do Júri (18/7/2001).
atentei especialmente para 0$ momentos em que os jurados demonstra-

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Jogo, ritual e teatro

Júri - Teatro
vam enfàdo. Isso normalmente ocorria quando os arguidores, rígidos e
empolados, recorriam a frases de impacto, nitidamente "estudadas" e Se há alguma tegta getal sobre o que, no Júri, causa intetesse a seus
catregadas de jargão técnico, ao passo que, quando em linguagem simples participantes, especialmente para os que se sentem "distantes dos dra-
ll

e direta detalhavam dtamas pessoais do réu ou da vítima e apelavam para mas narrados, é o faro de os discursos captarem tanto mais as atenções
uma reflexão a respeito dos valores envolvidos, a atenção dos jurados quanto mais desconttaídos, diretos e não grandiloquentes forem os
ressurgia. Somada ao interesse pelos dramas pessoais, a descontração dos oradores, especialmente se estiverem revelando "segredos" da intimidade
oradores demonstrou_se um recurso cênico-narrativo eficiente, capaz de de moradores de petiferias, de gangues, do tráfico de drogas, de crimes
retirar os jurados da sonolência e da apatia. passionais, de perseguições policiais em guetos e tiroteios sangrentos.

(...) nosso mundo, o mundo da comunicaçãode massase do entertainmem Quanto à etiqueta do juiz que preside a sessão, alguns aspectos merecem
é fã da intimidade. (...) A intimidade vitou mercadoria (...) Os Césares ser retomados. Seu costumeiro entra e sai, durante o julgamento, e mes-
romanos davam, à plebe, pão e circo. (... ) queremos saber os segredos de mo um ar blasé enquanto acompanha os debates, longe de apontarem
quem vive no circo. (...) Lágrimas em público e a referência à família são
descaso pela sessão, podem ser interpretados como uma demonstra.ção
recursosforres,que conquistam a simpatia dos espectadores,mas dos quais
de sua autonomia e poder. Há uma velada disputa cênica entre juiz,
não se pode abusar. Quando se evidencia que constituem burla ou rotina, é
promotor e defensor pela protagonização do julgamento.
como o cristal partido do provérbio, que não se recompõe (Ribeiro: 2001).
Embora juízes abram e encerrem as sessões, interroguen: réus e teste-
Os "Césares do Júri" parecem saber que a revelação minuciosa da inti-
munhas, passem a palavra aos defensores e acusadores, controlem o
midade de personagens envolvidos nos crimes é um bom entertainment
tempo das sustel)tações orais, sejam responsáveis pelo esclarecimento de
para jurados, estudantes e advogados da pIateia, pois corresponde "aos
dúvidas e encaminhamento de imprevistos, elaborem os quesitos a serem
segredos de quem vive no circo". O "circo" das "longínquas periferias",
normalmente associadas a "terras sem lei", parece se encarnar no réu e em votados pelos jurados e coordenem as votações, sua posição soberana é

seus parentes, dando ao Júri um certo tom de reality show, cujo desfecho mais estática frente às posições de promotores e defensores. Estes devem
será ali decidido, através de votos de seletos espectadores. ser dinâmicos para serem observados, ouvidos e convencerem o público.
Portanto, o entra e sai e o ar blasé de muitos jULzestalvez seja um modo
Pelo que pude perceber, o interesse de réus, vítimas sobreviventes e res- de demonstrarem que também são dinâmicos. São os maestros do Júri,
pectivos parentes e amigos por momentos dramáticos da nar'\lçáo de SUas e justamente potque lhes cabe controlar a participação limitada de cada
próprias intimidades é quase inversamente proporcional àquele manifes- instrumentista e dominar toda a partitura é que os deixam, às vezes,
tado por jurados, estudantes e advogados da plateia. Em geral, entre todos avançar aparentemente sozinhos. Ao fazerem isso, demonstram que são
os presentes ao Júri, os que mais permanecem apáticos são os réus e seus
os únicos que desfrutam dessa liberdade e, por isso mesmo, estão acima
acompanhantes. Talvez isso se explique, dentte outras razões, porque eles dos demais.
sabem que, diferentemente dos demais, terminado o espetáculo, não irão
"simplesmente" embora. Mesmo que as histótias em julgamento sejam Toda essa encenação constrói a legitimidade que atrai profissionais e
imaginadas e construídas, o seu desfecho terá uma aplicabilidade direta leigos para o consenso de atribuição do poder em jogo e em cena no
sobre SUasvidas; eles sairão dali carregando esse desfecho. Júri, o qual, como qualquer poder que se pretende legítimo, não deve
,
ser roubado ou usurpado, mas concedido. É. na trama de identificações

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1 -209- ~
Jogo, ritual c teatro Júri - Teatro

passionais do Júri que o poder de julgar é concedido por e para quem ali representam ou não os interesses sociais e são ou não influenciáveis pelas
está. O Estado concede a leigos poder para julgar, e esses, ao participa- representações que promotores e advogados fazem para conquistar seus
rem do jogo, concedem ao Estado poder para se impor soberanamente. votos. Essessentidos, no Júri, bem como os relativos ao público que com-
Portanto, se, por um lado, a exibição da lei e da norma convence os parece às sessões,parecem ser mais complementares do que conflirantes.
leigos a participar do Júri, por outro, é através do processo de identifi-
Por um lado, a lei, os discursos formais de operadores técnicos e mesmo
cações passionais, estimulado por argumentos verossímeis de acusadores
a cenografia dos plenários tentam reiterar o caráter público-jurídico dos
e defensores, que o Júri se torna socialmente legítimo. O que está em
julgamentos. Com porras necessariamente abertas, as sessõestranscorrem
espetáculo é a norma da sociedade - ou a etiqueta nela prevalecente.
para quem quiser assisti-las. Além disso, nos plenários, os jurados leigos
sáo incansavelmente apontados como representantes "da sociedade" e de
Palco e plateia ou atores e público seusprincipais valores e interesses, sendo o acusador, ou promotor públi-
Na maioria das línguas e pensamentos atuais, "público" tem dois sentidos co, aquele que também se autodenomina defensor de interesses sociais.

principais: um jurídico. oposto a privado. e que significa bem comum ou Por outro lado. juízes, promotores e defensores constantemente se refe-
patrimônio coletivo; e outro teatral: "(... ) a soma dos que assistem a uma rem ao "público do Júri" como sendo formado pelos que se sentam na
representação, tendendo à passividade, podendo se manifestar apenas plateia para assistir passivamente às sessões e, porranto, ficam simbólica
pelo aplauso ou vaia ( ...). No sentido teatral, op-úblico vale menos do e fisicamente separados~-distanciados do centro da ceIfa. Trata-se, aqui,
que o palco" (Ribeiro, 1994: 32). de um público formado por estudantes, advogados, parentes e amigos
Seguindo o mesmo raciocínio, o verbo "representar" também pode ter es- de réus elou vítimas. Assim como em uma encenação tradicional, esse
ses dois sentidos: um jurídico, político e constitucional, que significa "ser público é considerado prescindível para o rranscorrer da peça.
representante de"; e outro artístico, teatral e midiático, que significa "fazer Cabe, aqui, um breve comentário sobre a parcela desse "público" formada
uma representação pari', "encenar para" (Ibid.). por estudantes de direito. Algumas vezes, sentei-me ao lado deles e li,
j
Para alguns pensadores, a política moderna pode em boa medida ser discretamente, o que anotavam. Em seus registros havia basicamente da-

entendida pelo conflito entre essesdois sentidos, pois nela se desenvolveu dos técnicos, como enquadramento do réu na denúncia e na pronúncia,
tanto urna esfera em que opiniões e votos decidem questões de interesse frasessoltas e não literais das sustentações orais do Ministério Público e
geral - sentido jurídico - quanto, conforme vimos no item anterior, da defesa, além doresulrado da sentença. Não percebi, em nenhuma oca-
desenvolveram-se regras de etiqueta responsáveis por manter os súditos sião, registros que transcendessem aspectos formais e jurídicos do ritual.
devidamente separados do governante e reverentes a ele - sentido teatral Não posso afirmar que todos os estagiários, estudantes e profissionais d~
ou "tecnologias de controle da sociedade" (Ibid.: 32-33), ou, ainda, direito se limitem a tais anotações, mas não seria de espantar que assim
"tecnologia das aparências" (Balandier, 1982: 67). agissem,pois, embora percebam que há "algo mais" do que regras jurídicas
em jogo, não parecem ter consciência clara do que é esse "algo mais".
No Júri, os dois sentidos de público e de representação também estão
Em certa ocasião, perguntei a um estudante de 20 anos de idade, ma-
presentes e aparecem como conflitantes nos debates entre os favoráveis
e os contrários à instituição, uma vez que discutem quanto os jurados
triculado no 3° !mo de direito:

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~
Jogo, ritual e teatro
Júri - Teatro
Eu: Quais aspectos da sessão você acha os mais relevantes e anota?
Estudante: Tento anotar toda a sequ~ncia.prevista no cpp [Código de como integrado ao processo social que o engendra e do qual participa,
Processo Penal].
faz com que seus operadores se acredirem detentores de uma compre-
Eu: E dá pra anorar tudo? ensão racional e imparcial dos conflitos sociais e das possibilidades de
Estudante: Quase, pois é tudo muito regrado. Não tem Como escapar. solucioná-los.
Eu: Mas, se é tudo tão regrado e esperado, para que assistir às sessões, ao
vivo? Não bastaria estudar bem o CPP? Durante a graduação em direito, em disciplinas obrigarórias como Socio-
Estudante: Não! Não! De jeito nenhum! Aqui a gente aprende corno as logia Geral e Jurídica, Filosofia Geral e Jurídica, Teoria Geral do Estado e
regras são aplicadas aos casos concretos. Inrrodução ao Esrudo do Direito, os professores costumam problematizar
Eu: E como elas são aplicadas?
a construção e a reprodução dos discursos técnico-competentes, mas essa
Estudante: Ah! Depende do jeito de cada promotor, de ca'da advogado e problematização normalmente se dilui em meio ao alto percentual de
de cada juiz.
disciplinas estritamente técnicas.
Eu: E você anota alguma coisa sobre esse jeito de cada um?
Estudante: Não! Isso é muito de cada um, quer dizer, tem uns que são feras, Voltando à gangorra entre os dois sentidos de público e de represen-
mas só dá praser um dia como eles depois de fazer muitos Júris. Antes disso, tação, pelo que pude perceber assistindo às sessões de Júri, os jurados
é preciso dominar o básico, as técnicas. condensam essa alternância de forma especialmente peculiar, pois, no
Eu: Mas não seria o caso de anotar o que faz com que uns sejaJ!1feras? O sentido teatral, não estão na plateia, e sim no palco; todavia, no sentido
que você acha que os torna especialmente bons?
jurídico, não estão no palco, mas são plateia. pois não são propriamente
Estudante [já irritado com a insistência]: Olha, não dá pra anotar esse tipo
atores e assistem à representação, tendendo à passividade. São tratados
de coisa, porque tem a ver CÇlmo estilo, com a personalidade de cada um.
como "representailtes da sociedade", mas lá estão para assistir a uma
E nem valeria a pena anotar, porque não daria pra imitar, entende. Não
representação.
tem segredo: é preciso dominar a técnica e, depois, usá-la com segurança
e do seu próprio jeito.
Ocupando, assim, uma espécie de camarore incrusrado no palco, os
Eu: Mas qual o melhor jeito de aplicar as técnicas do Júri, na sua opinião? jurados constituem uma plateia privilegiada, deixando de ser passivos
Estudante [visivelmente irritado]: Ah! Sei lá! Como eu já disse, isso cada um
somente nos bastidores da "sala secreta" onde, contudo, só podem se
vai desenvolvendo. Tem que fazer pra aprender e, desculpe, mas preciso ir...
manifestar através de mudos aplausos ou vaias. o que fazem com seus
Apesar de afirmar que é fundamental assistir às sessões "ao vivo", escapa restritos votos de siin ou não para cada quesito previamenre formulado
ao estudante que tal encenação também tem regras e lógica próprias. Ele pelo juiz.
percebe a importância da performance de cada ator como algo de caráter
Formalmente, no entanto, juízes, promotores e advogados apontam os
individual e não social, ou seja, não se dá Conta de que as performances
jurados como "representantes da sociedade", especialmente no início
individuais subjazem a uma dinâmica teaeral e, consequentemente,
social do Júri. e no final das sessões. Mesmo quando, de modo formal, descrevem a
heterogeneidade social e apontam os jurados como representantes da
Uma das decorrências desse tipo de percepção é a reprodução e aplicação parcela idônea desse conjunto heterogêneo, impõe-se a ideia de que
de um saber aparentemente apenas técnico que, por não ser entendido esrão ali para garanrir interesses públicos, e não particulares ou de classe.
Eis a fala de um promotor ao iniciar sua susrentação oral em plenário:

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" -213-
v-
Jogo, ritual e teatro Júri - Teatro

Senhores jurados, tudo que é feito num processo é para ser examinado pelos Uma da.>afir:naçóes centtais deste livro, portanto, é a de que nos pro-
senhores, que, na verdade, não são pessoas comuns, embora escolhidos den-
cessos de competência do Tribunal do Júri o desfecho condenatório
tre membros da sociedade para representá-la. (... ) Os senhores representam
ou absolutór:o depende mais do que é desenvolvido durante alguma.>
parcelas da sociedade - segmentos profissionais, locais. Estão aqui para
aplicar a justiça em nome da sociedade. horas nos p:enário. do que daquilo que se processa, ao longo de anos,
do primeiro registro policial do crime até os passos que anrecedem o
E ao concluir sua sustentação oral, esse mesmo promotor reitera: julgamento em plenário.
Os senhores são aplicadores da lei, que é a única forma de manter a vida em
Embora a lei seja elaborada com base na crença de que a "verdade real"
sociedade. Não são algozes, mas defensores da sociedade. Em nome dela,
dos fatos deve aparecer, no modelo teatral do Júri tal verdade revela-se
peço que condenem o réu. 99
verossímil f, por i.iSO, o crime é menqs discutido enquanto aconteci-
Nessa mesma linha, explicitam alguns advogados de defesa, como o que mento legal e maio "apresentado enquanto representação" de fatos da
atuou nesse mesmo plenário: vida cotidiana.
Jurados são representantes da comunidade. Na origem secular do Júri -lei- Nos julgamentos pelo Júri, portanto, há algo determinante, não passível
tura da pauta em praça pública - a comunidade julgava acusados de violar
de ser registrado e transmitido em palavras escritas, porque trata-se de
as leis. (... ) É um serviço gratuito porque é uma relevante missão social.
um texto reatral cuja intensidade só se eferiva em cena, no transcorrer das
(... ). Os senhores jurados, ao estarem a_q_ui,estão exercendo seu direito de
sessóes. Esse '\tlgo'l~que-a-estudante de direito captou mas náo-ertten-deu
cidadania, pois podem expressar, ainda que indiretamente, os reclamos de
nossa sociedade. como expres.ão cdruralmente organizada, é o que se tentou descrever
neste capítt:.b e, em última análise, a razão de ser deste livro.
Portanto, os jurados comumente são tidosrepresentantes
tanto como
do povo - o que legitima jurídica e politicamente o Júri - quanto como
o próprio povo para quem promorores e advogados representam. "O ~
júri é o meu público", declarou Evandro Lins e Silva em entrevista ao ,, 'OI9j
. Jornal do Brasil (Lemos, 1998: 26). Mesmo que isso possa ser inter-
ptetado como um conflito entre os dois sentidos de público, no Júti é
exatamente essa dubiedade que imprime a dinâmica e a legitimidade
da instituição.

- -; ,
;.:...

~ ".

99 16/8/2001, sessão etnografada das 9h às 11h40 no Plenário 7 do lllTribunal do Júri


(BarraFunda).

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-~
, 6 ,
JURI - TEXTO ETNOGRAFICO

Se há algo determinante nos julgamentos pelo Júri, não passível de ser


fixado e transmirido em palavras escritas, como então registrá-lo em um
texto etnográfico? Como traduzir, em palavras, olhares que se procuram
e se evitam, sutis movimentos de lábios, sobrancelhas que se arqueiam
e se franzem, mãos que se esfregam, dedos que tamborilam, ombros
que se curvam e se erguem, corpos que caminham, acomodam-se em
cadeiras ou permanecem estáticos. tudo isso em interação ininterrupta
com o ambiente? Como anotar entonações de voz interligadas a uma
gestualidade que, por sua vez. relaciona-se a um texto e a um contexto
de contínua troca dê mensagens?

Clilford Geertz levantou semelhantes quesrões ao estudar as brigas de


galos balinesas e ao tentar descrever a "dinâmica precisa do movimento
de apostas" J as quais constituíam, segundo ele, o aspecto mais intrigante'
das lutas e, dadas as condições agitadas em que ocorriam, o mais difícil
de estudar. Sua conclusão foi que "seria necessário, talvez, registrar a
situação através de filmes, com múlriplos observadores, para ter uma
noção precisa", Como acabou não o fazendo, considerou seu trabalho
uma "abordagem impressionista" de um "etnógrafo solitário" (Geertz,
1978: 295, nota de rodapé n, 15),

-. 217-
"i,
r9
Jogo, rituaJ e teatro
Júri - Texto etnográfico

Jean Rouch, em 1953, Uma semana antes de entregar sua tese na Sor-
objeto e nele desracar o que interessa a um determinado recorre analítico
bonne, perguntou a seu orientadot, Matcel Griaule, o que ele achara
é construir esse objeto. Seus limites, portanto, não são seus, mas os do
de seu texto. Griaule devolveu-lhe a pergunta, pedindo-lhe que fizesse
observador, cabendó a este analisar seu próprio modo de observar.
uma autocrítica. Rouch, então, apontou um dos pontos fracos da tese
e se propôs a melhorá-lo, exibindo filmes que ele próprio fizera quando Em razão disso, cabe-me enfatizar que, neste trabalho, entendo por
da realização do trabalho de campo. Trarava-se de imagens e sons que, "etnografia de sessões de Júri" o conjunto de impressões, observações e
como o próprio Rouch afirmou, registravam o que seria impossível registros por mim percebidos e acumulados ao longo de quatro anos de
descrever no papel e até mesmo em fotografia. Griaule, contudo, apesar visitas aos Tribunais de São Paulo (1997, 1998, 1999 e 2001). Como
de rambém fazer cinema, desaconselhou Rouch de tal ousadia, pois, à em momento algum me foi possível produzir registros audiovisuais dos
época, segundo Griaule, o cinema "erao diabo" naquela universidade. IDO julgamentos, pois não era permitido a ninguém fotografar ou filmar o
que se pass~va{los plenários, I OI restou-me, enquanto "eenógrafa solitária")
. Passado mais de meio século dessa situação, temos a antropologia visu-
fazer uma abordagem impressionista e escrita das várias sessóes.
al ganhando cada vez mais espaço na academia e fora dela, o que não
significa que os desafios relativos à elaboração de ernografias esrejam Na maioria das vezes, essa abordagem implicou que eu, como público,
superados, especialmente o paradoxo de que grafar expressôes culturais acompanhasse os julgamentos, registrando à mão o maior número
através de palavras, imagens e/ou sons,implica simplificá-las, incrementá- possível de falas e expressões corporais dos profissionais, funcionários
-las, contribuir para que sejam mais conhecidas, embora sempre a partir e demais presentes. Em algumas sessões, juízes que já me conheciam
de filtros perceptivos-interpretativos. convidaram-me para permanecer com os jurados na "sala de lanche"
durante ?s intervalos e, depois, para acompanhá-los à sala secreta, no
Pensei, várias vezes, no quanto seria enriquecedor trabalhar a dinâmica
momento da votação. Em tais oportunidades jamais utilizei gravador,
das sessões de Júri através de registros audiovisuais e plurais, com imagens
do qual me vali apenas em entrevistas concedidas nos corredores, na
e sons advindos da perspectiva de réus, juízes, jurados, acusadores, de-
lanchonere do fórum, em gabinetes de juízes e promotores, na sala dos
fensores, assistentes, policiais militares e funcionários do Tribunal, como
advogados ou por telefone. Por isso, na maioria das vezes, utilizei os
se cada um deles tivesse uma câmera nas mãos, outra estivesse presa ao
tradicionais cadernos de campo, traduzindo em palavras e, às vezes em
rero, e várias outras distribuídas pela plateia captando, simultaneamente,
croquis, impressões complexas, difíceis de elaborar rapidamente, tanto.
em elose e também em grande angular, diversos modos de participar de
que, após muitas sessóes e entrevistas, eu permanecia em algum canto I
uma mesma situação.
do fórum reinterpretando minhas próprias observações cifradas.
Da primeira à última sessão a que assisti, ficou-me claro que, enquanto
Apesar dessas limitações de registro, uma das vantagens oferecidas por
eu percebia determinados detalhes, outros se perdiam; não era possível
meu objeto de estudo (principalmente em relação aos de outros colegas
registrar pormenores quando tentava acompanhar o conjunto. Com o
que etnografam rituais esporádicos e/ou de grupos aos quals o acesso
passar dos meses, me rendi à básica e difícil lição relativista: focalizar um
é difícil) era a de, em qualquer dia da semana, o material social com o

100 Relato registrado no vídeo J~anRouch - subvertendo fronteiras, de Ana Lúcia Ferraz,
101 À época, excepcionalmente e por decisão dos juízes presidentes, as sessóes poderiam
Edgar Teodoro da Cunha. Paula Morgado e Renato Sztutman, 2000, 41 mino
ser audiorregistradas pelo próprio Tribunal, para fins de posterior transcrição.

-218- -219-
Jogo, ritual e teatro
Júri - Texto etnográfico

qual eu desejava ttabalhat estat disponível em um ou mais Ttibunais do No caso de sessões de Júri, os principais "soletradores", conforme já
Júri da cidade.
vimos, são o defensor e o acusador - em suas arguiçóes, mais do que
Neste capítulo, aprofundo justamente as principais caracterísricas das contar estórias para os jurados inocentarem ou condenarem réus, eles
sessões de Júri enquanto "(...) obras imaginarivas construídas a parrir de contam histórias, para si e para todos os presentes, a respeito de viver e
materiais sociais" (Geertz, 1978: 316-317): "estruturas simbólicas cole- morrer em uma cidade como São Paulo.
tivamente organizadas que dizem alguma coisa sobre algo", ou, ainda, (... ), se vamos assistir a Macbeth para aprender de que maneira um homem
"reuniões concentradas" (Ibid.: 290). \ . se sente após ganhar lim reino, mas perder sua alma, os balineses vão às
,
brigas de galos para descobrir como se sente um homem (... ) quando,
Especificando alguns aspectos desenvolvidos nos capítulos anteriores,
depois de atacado, atormentado, desafiado, insultado e, em virtude disso,
proponho explorarmos os julgamentos como "textos literários que
levado a paroxismos de fúria, atinge o triunfo total ou o nível mais baixo
utilizam emoções para fins cognirivos", partindo do pressuposto de
(Ibid.: 317-318).
que "(...) se pode ler um ritual ou uma cidade da mesma maneira como se
pode ler um COntopopular ou um texto filosófico. O método de exegese De modo semelhante, podemos afirmar que quem assiste a uma sessão

pode variar, mas, em cada caSQ,a leitura é feita em busca do significado" de Júri na cidade de São Paulo lá "aprende", de alguma forma, como se
(Darnron, 1986: xvi). sentem homens e mulheres que, habitualmente confinados no anonimato
de bolsões de pobreza urbana, morrem e matam depois de atacados,
E, para exemplificar a possibilidade e a potencialidade dessa "análise
C
atormentados, desafiados e insultados. Mas, difetentemente do que se
semântica \ apresento registros integrais de uma sessão de Júri por mim
passa.em um teatro, no Júri há espectadores que, além de assistirem à
etnografada, a fim de expõ-los e de me expor aos leitores para que possam
peça, são chamados a condenar ou absolver "Macbeths" de carne e osso,
melhor analisar minhas análises.
experimentando, portanto, "em ato", um "aprendizado teórico-prático".

Uma vez encerradas as sustentações orais, que podem, portanto, ser to-
Aulas de educação sentimental
madas como <Caulas encenadas", os jurados, como "alunos práticos", são
Antes de "lermos" essa sessão cujos registros etnográficos apresento in- chamados a aplicar o que aprenderam, julgando e também presenciando
tegralmente, cabe pontuat que um aspecto a ser aprofundado em uma os primeiros efeitos de suas decisões. Ao optarem por uma das versões
análise semântica dos julgamentos pelo Júti é seu cardter pedagógico, pois de que tomaram conhecimento através das narrativas de defensores e
assistir a eles ou deles participar é se expor a uma espécie de educação promotores, produzem um conhecimento a respeito de como réus e
sentimental (Geertz, I ~78: 317), uma vez que, nos plenários, de algum vítimas deveriam rer reagido em um dado contexto emocional. Isso
modo, todos tomam '~~nsciência do éthos que se apresenta ao grupo como implica dizer que, ao condenarem um réu, na maioria dos casos fazem-
dominante. Essa tomada de consciência e esse aprendizado a respeito -no com base em suposições do que possivelmente ocorreu e produzem
de si e dos Outros ocorre, especialmente, em situações como a de julga- um conhecimento do que não deveria ter ocorrido. Em outras palavras,
mentos, porque nelas a aparência desse éthos é "soletrada externamente, com suas sentenças jurados avaliam o quanto certas emoções, em certos
num texto colerivo" (Ibid.). contextos, legitimam ou não o resultado morte. Essa legitimidade de
circunstâncias emocionais é ela"questão do Júri.

-220- -221- .'.

@
Jogo, ritual e teatro

Quem assiste às sessóes a partir da plateia, por sua vez, tem a chance de
" Júri - Texto etnográfico

europeu. Julgar o aparentemente distante e até ficcional parece ser mais


observar uma dupla aula de educação sentimental. No "primeiro ato", fácil do que julgar o aparentemente próximo e "real".
testemunhas e arguidores expõem suas versóes a respeito de como réus
Perguntei, certa vez, a um jurado:102
e vítimas supostamente se sentiram e reagiram diante de certas emoções
e, depois, em um "segundo ato", jurados ensinam, através de seus vo- Eu: Em algum momento o Sr. se identificou com a ré ou com seu marido,
tos, que tipo de circunstâncias emocionais legitimam o.u deslegitimam quer dizer,colocou-seno lugar deles?
homicídios. Jurado: Não, eles são muito diferentes de mim. Vivem noutra realidade,
o que, aliás,me dá melhorescondiçõesde julgiu. Mas acho que consegui
Enfim, se vamos ao teatro para nos ver em cena representados pelos atores, imaginar o que a vítima sentiu.
é porque neles nos projetamos e nos reconhecemos. Essas projeções e Eu: O SL acha que a realidade da vítima é mais parecida com a sua do que
identificações colocam a todos no palco. Em muitas das sessões de Júri, a do réu?
cada um dos assistentes, especialmente os jurados, à medida que ouvem e Jurado: Não! Não. Eu não diria isso, quer dizer... O que eu acho é que,
observam o desenrolar do julgamento, reconhecem ou não seus próprios pelo visto, a vítima, como a maioria dos genros, tem sempre muitos defeiros
valores ,articulados no discurso de um ou de vários C<atores"_ acusador, aos olhos dos sogros, ainda mais das sogras. Afinal, não é à toa que falam
tanto mal delas. Uma sogra, quando o casamento da filha vai mal, sempre
defensor, réu, juiz -, de modo que o resultado do julgamento é, nesse
acha que a culpa é do genro. Que ele é que émn mau carárer.Essa história
sentido, o desfecho de um processo especular, ge:ralmente sinuoso e
- não muda, sabe? Quer dizer. não é que minha sogra queira me matar e que
indireto, porém inevitável. Como em uma sala de espelhos, na qual
todas as sogras queiram matar seus genros, mas essa sogra que nós julgamos,
quem se coloca diante deles se vê multiplicado ou mesmo transfigurado, hoje, representa muitas que andam por aí. Ar humilde, inofensivo, mas. por
estranhando-se ou reconhecendo-se, em uma sessão de Júri temos as baixo, são verdadeiras feras capazes de mandar matar os genros pagando
l

arguições absorvendo, multiplicando, transfigurando e refletindo valores os assassinos com uma TV (grifas meus).
dos participantes.
Julgar a sogra que mandou matar o genro no Jardim Orion, e mesmo
Embora pareça contraditório, quanto mais os casos em julgamento envol- julgar "as sogras" em geral, ralvez seja mais fácil do que julgar a própria
vem "gente de periferià' ou de "camadas populares", mais alguns jurados sogra, tanto que esse jurado se exclui da regra de ter uma sogra que o
de ""classemédia" se declaram seguros ao julgar. Conscientemente, eles se persegue. Mas é muito provável que, ao julgar a "sogra-Otian", e sem
justificam com base em uma imparcialidade ou "distanciamenro crírico". se dar conta, ele se identifique com o "genro-Orion".
Outra possibilidade interpretariva é considerarmos que as projeções e
As impressões de jurados a respeito da vida, assim como as de todos nós,
identificações mais profundas dos jurados se dão ao constararem que o
são colhid:Li"assistematicamente, a partir de diversas situações cotidianas
outro é um estranho, um "exótico", uma espécie de ((avesso"; há muita
que geralmente permanecem frouxas e desorganizadas. Situações como
subjetividade em jogo.
as de um julgamento pelo Júri coordenam e permitem focalizar parte
A própria história da anttopologia, em certa medida, ensina-nos o quanto dessasimpressões, revelando-as, a nós mesmos, de modo mais inteligível.
resultou de complexas projeções o fato de os primeiros antropólogos
identificarem nos "selvagens" o passado do homem branco e "civilizado"
1112 Entrevistaconcedida"apóso julgamento ocorrido em 19/712001, e~ografadodas
12h às 16h30 no Plenário 8 do 1"Tribunal do Júri (Barra Funda).

-222- -223-

~
Jogo, ritual e teatro
Júri - Texto etnogrMico
o Júri, portanto, focaliza experiências da ~ida cotidiana: ao mesmo
tempo que são colocadas à pane, como em um jogo ou ritual, elas se de um "ponto de vista" privilegiado são chamados a se expor a olhares _

religam ao cotidiano porque são interpretadas como acontecimentos ao mesmo tempo que devem prestar atenção em performances alheias.

humanos paradigmáticos. E, em geral, essas "experiências reveladoras" Mesmo no único momento em que jurados se tornam "professores"
abordam menos o que acontece e mais o que se considera um dever ser, (ao professarem seus votos), a questão do que deve ser visto ou não é
um "deveria acontecer" (Geerrz, 1978: 318). predominante. Quando se retiram para a sala secreta, ficam longe dos
Encenada e reencenada, (... ) a briga de galos permite ao balinês, como olhares da plateia e, na própria sala, não podem mostrar o que estão
a nós mesmos, ler e reler Macbeth, verificar a dimensão de- sua própria sentindo e pensandQ, sequer com seus olhares. Nesse '<esconde-esconde"
subjetivida~e. (...) essa subjetividade não existe propriamente até que seja há, inversamente, uma valorização do que pode ser captado pelo olhar e
organizada dessa forma (... ). Quartetos, naturezas-mortas e brigas de galos pelos ouvidos, afinal, o que se costuma esconder tende a possuir valor.
não são meros reflexos de uma sensibilidade preexistente e representada
analogicamenre: eles são agentes positivos na criação e manutenção de tal
Nos Tribunais do Júri, portanto, valoriza-se mais o que se vê e o ~ue
sensibilidade (Ibid.: 319). se ouve do que aq~uilo que toca a outros sentidos, até porque esses, em
grande pane, são pouco culturalmente estimulados e desenvolvidos.IOJ
Parece correto, seguindo essa linha de pensamento, afirmarmos que,
De vários ângulos, consequentemente, podemos considerar o que se
ao serem encenadas e reencenadas, as sessões de Júri permitem a seus
passa nos plenários como aulas de educaçáo sentimental "audiovisuais".
panicipantes ler e reler quanto e quando é legítimo ou ilegítimo um ser
humano matar outro. Quem assiste a um julgamento se vê compelido
a adequar a dimensão de sua própria subjetividade às mones violentas Reunião concentrada

narradas nos plenários. Assim como no caso da briga de gll1ós balinesa,


Nas brigas de galo balinesas, o árbitro é um cidadão excepcionalmente
essas subjetividades só passam a existir ao serem organizadas. As sessões
bem creditado. "Semelhanre a um juiz, um rei, um sacerdote e um po-
de julgamento permitem essa organização à medida que criam e forma- liciaI, ele combina todas essas qualificações, e é sob a segurança de sua
tam uma sensibilidade a respeito da legitimidade ou ilegitimidade de
mortes violentas. direção que a paixão animal da luta prossegue com a garantia cívica da
lei" (Ceem, 1978: 290).

Cabe ainda acrescentar que nessas "aulas de educação sentimental"


Retomando a ideia deque juiz, jurados, promotor e defensor dividem a
predomina, por parre dos "professores", o uso de uma linguagem mais
posição de "príncipes", pois têm poder e dele se revestem, cabe apontar
audiovisual que sInestésica, ou seja, que exige dos "alunos" uma especial
que o juiz togado é quem se destaca no Júri como "cidadão acima de
atençáo de seus olhos e ouvidos, ao contrário do que ocorre na briga de
qualquer suspeira" e, por isso, é visto como garantia da possibilidade de
galos, nas quais os balineses, segundo Geerrz, seguem o desenrolar da briga que o julgamento se desenvolva atê o final.
basicamente com o corpo. Isso não significa que os corpos de jurados e
dos demais espectadores de Júris não "falem" e não acompanhem as ex-
pressões corporais uns dos outros. Mas, em todos os plenários observados, 103 Sobre a característica fortemente audiovisual das civilizações ditas "modernas" e
os "alunos-jurados" ficam de tal forma posicionados que antes de tudo e o abandono de Outrossentidos, como o olfato, ver Alain Corbin, Saberes e odores:
o olfato e o imaginário social nos séculosXVIII e XIX. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.

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crg:--
-,
..
Jogo, ritual e teatro
Júri - Texto etnográfico

Não fosse o juiz [declarou~mecerta vez um jurado], eu acho que alguns Júris
Explorando esse conceito, podemos afirmar que' o "fluxo" de atividade
terminariam em pancadaria porque. apesar da gente saber que o prom~tor
e o advogado estão lá cumprindo seu dever e de que eles, depois, vão até comum que absorve os participantes do Júri caracteriza-se pela orga-
andar de braço dado no corredor, eu acho que tem horas em que eles ficam nização e valoração de paixões elaboradas nos plenários em funçáo de
com raiva um do outro e que, se o juiz não estivesse lá pra garantir a ordem. narrativas de homicídios dolosos tentados ou consumados. O ápice da
iria tudo pras cucuias. O juiz, em cada Júri, não tem nada a perder, mas reunido concentrada do Júri é o momento aglurinador em que os jurados
os outros têm. Quer dizer, o juiz só perde se ele não controlar a coisa.104 varam; para ele confluem todos os embates desenvolvidos durante o
É provável que a "coisà' a que esse jurado se referiu seja menos o julgamenro e dele decorrerá o desfecho altamente aguardado: a sentença.
conjunto de regras que governam o desenrolar das sessões e mais as
paixões em jogo ou, como o próprio jurado apontou, aquilo que cada Etnógrafos, advogados e promotores são como poetas?
um tem a perder: fama, respeitabilidade. prestígio. auto estima. futu-
Se "(...) as forças culturais podem ser traradas como rexros, como obras
ros clientes etc. Portanto, como fato cultural ou ~nridade sociológica,
imaginativas construídas a partir de materiais sociais" (Geertz, "1978:
o Júri ordena e aperfeiçoa paixões que mobilizam os contendores e,
316-317), sendo o etnógrafo alguém que mergulha nesses textos e, ao
assim como procedeu Geerrz em relação à briga de galos, podemos
interpretá-los', constrói outros, podemos dizer que etnografar sessões de
considerar o Júri, nas palavras de Erving Goffman, como uma reunião
concentrada (Geertz, 1978: 290).
Júri é penetrar no material social "textualizado" e contextualizado nos
plenários de Júris. Mas como fazê-lo? Embora Geertz jamais tenba asso-
Esse tipo de reunião é inconsistente para que tomemos o conjunto de ciado diretamente cultura à poesia e ernógrafos a poetas que interpretam
seus participantes como um grupo. porém é eStruturado o baStante para e rambém criam poemas, para o professor da Norrhwestern University
que seus participantes sejam considerados apenas elementos de uma e advogado Steven Lubet, a linguagem poética é a mais adequada à com-
multidão. O que caracteriza esse encontro é a absorção dessas pessoas trufão de narrativas eficientes em tribunais, especialmente quando os
num fluxo de atividade comum e seu consequente relacionamento em acontecimentos aos quais se referem envolvem crimes. Partindo desse
função desse fluxo. pressuposto, ernógrafos de sessões de Júri lidam com uma linguagem
Essas reuniões ocorrem e se dispersam, seus participantes são flutuantes. a poérica e talvez rambém tenham de, em alguma medida, fazer uso dela
atividade que as provoca é discreta - um processo particularizado que ocorre para transcrever o que etnografam.
novamente, em vez de um processo contínuo que persiste. Essas reuniões
Declarou Lubet, em entrevista telefônica a um jornalista:
assumem sua forma a partir da situação que as congrega, o local onde estão
situadas (... ). Para cada situação o cenário é criado por ela mesma. em deli- Nossa obrigação é recriar o passado por meio de palavras. Mas o problema
berações do júri, operações cirúrgicas (... ), através de preocupações culturais de nossa profissão é que o passado é algo irreproduzível. Como se recupera
(... ) que não apenas especificam o enfoque, mas o colocam em primeiro um crime que ocorreu há um ou dois anos? É impossível lembrar de todos
plano, reunindo atores e dispondo o cenário (Ibid.: 291). os detalhes.Por isso, fazemosuma espéciede poesia (Borges,2001: lO).

Essa "recriação" do passado, do ausente, dos detalhes que escapam à


lembrança é, em alguma medida, o que eu mesma me percebia fazendo
104 Entrevisra concedida em 5/3/1999, no 211. Tribunal do Júri Uabaquara). em relaçáo à dinâmica dos julg"lJlentos, pois, logo após seu término,

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" ----~
Jogo, ritual e teatro
JlÍri - 'Iexlo etnognífico

relia meus regisrros apressados para complementá-los com detalhes que


A partir dessas reflexões, ficou-me claro que era táo importante pensar
só me restavam gravados na memória.
nos "textos" produzidos pelos participantes do Júri como "apropriações"
Certa vez, no segundo de meus quatro anos de acompanhamento das e "remodelações" que eles faziam do mundo quanto considerar meu
sessões, após um julgamento de aproximadamente dez horas, fiquei próprio texto etnográfico como uma apropriação e uma remodelação de
muito insatisfeita com minha incapacidade de, na hora, anotar "tudo", aspectos do ritual do Júri interessantes para o meu trabalho.
e de) depois, "recuperar" minúcias. Passados alguns dias, reli um texto
Algo em meus regimos nos cadernos de campo mudou desde então. As
de Carla Ginzburg, "O inquisidor como antropólogo", e tiye um insi-
sessões que eu antes anotava e imediatamente comentava, selecionando
ght. Até aquele momento do campo, eu tentara registrar as sessões de
e conectando passagens às ideias de algum autor, passei a registrar de
Júri co~ a mesma "espantosa riqueza etnográfica dos julgamentos de
modo mais impressionista, com menos direcionamentos, tomando-as não
Friuli [Itália, séculos XVI - XVII]. As palavras, os gestos, o corar súbito
sob o signo da falha ou do acerto, mas da significação de minha própria
do rosto, até os silêncios - tudo era registrado com meticulosa precisão
interação com o objeto de estudo.
pelos escrivães do Santo Ofício" (Ginzburg, 1989: 209).
Voltando a Lubet, comparei-me com os próprios arguidores do Júri e
"Confesso" - para usar um verbo bem ao gosto inquisitorial _ que
considerei que, se "as pessoas não conseguem entender as situações da
me assustei ao perceber que eu andara buscando, em pequenas pistas,
vida sem tê-las convertidas em histórias" (Borges, 2001: lO) - e é isso o
"revelações de verdades etnográficas", como se essas pudessem ser mais
que fazem ptomotores e advogados nos tribunais -, talvez nós, antropó-
neutras do que foram os documentos produzidos pelo Santo Ofício.
logos, realizemos ~go de natureza semelhante, com nossas etnografias
Se foi da "ânsia de verdade, por parte do inquisidor" _ da verdade que lhe a respeito de situações culturais complexas, difíceis de compreender.
convinha - que resultou uma documentaçáo extraordinariamente rica, Convertemo-las em "histórias"; meta-histórias.
apesar de deturpada pelas pressões psicológicas e físicas sofridas pelos
Mas enquanto advogados e promotores constroem narrativas nos tribunais
acusados de feitiçaria, não resultatia minha etnografia dessa minha "ânsia"
a fim de transformar informações geralmente c1desconexas", elaboradas
de alcançar uma verdade teórica e metodologicamente conveniente? Em
por testemunhas, réus, provas etc., em uma "história bem contada")
que medida, assim como os inquisidores, não estaria eu "extorquindo"
das sessões estereótipos que me interessavam? permitindo que-jurados cheguem a um veredicto, antropólogos não pre-
cisam construir narrativas etnográ.f1caspara transformar as mais diversas
Foi o próprio Ginzburg quem me acalmou ao apontar um caminho frutí- situações que observaram em uma "história bem contada" para que seus
fero para esse questionamento. "Aessência daquilo a que chamamos uma leitores se sintam esclarecidos. Um texto antropológico pode conter dúvi-
atitude antropológica (...) reside numa disposição dialógica" (Ibid.: 207), das, polemizar, desconstruir "veredictos" ao invés de levar os leitores a eles.
ou seja, no fato de antropólogos não deverem se acomodar em procurar
nos informantes meros ecos afirmativos para suas indagaç~es._ prática Afirma Lubet que um bom advogado, ao contar a história de seu cliente,
comum e geralmente bem-sucedida entre inquisidores e acusados _, mas deve tomar cuidado para editar trechos que não comprovem o crime.
criarem situações em que vozes dissonantes e contraditórias permaneçam Suponhamos que um jovem está sendo julgado por um delito e que ele
mal "encaixadas" em modelos e teorias. integra uma gangue de rua. Integrantes de uma gangue podem ser inocen-
tes. Mas esse faro, certamente, criariaum preconceito enorme em torno do

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-229-
{fl1
Jogo, ritual e teatro Júri - Texto etnográfico

rapaz,caso fosse apresentadono julgamento. O advogado deve saberomitir fez, mas no porquê de ela ter feiro aquilo. O promotor do caso con-
(Borges,2001: 11). tou a história de uma "mulher-diabo" e a defesa falou da insanidade
A edição é considerada por Luber um recurso legítimo, ao passo que, em- de uma mulher com cinco filhos. Para reduzir lacunas entre essas
bora em uma etnografia ela também seja inevitável, seu fim não deve ser a "verdades possíveis", Lubet aponta a habilidade dos advogados de
omissão do que não convém ao antropólogo e a seus inreressesprofissionais. questionarem, reciprocamenre: "Isso fornece ao Júri o cenário para
se efetuar o julgamento correto [?]". De certa forma, portanto, Lubet
Portanto, enquanto em plenário promotor e defensor normalmente
também valoriza uma postura dialógica entre os arguidores, embora
atribuem a crimes e réus um "sentido" que lhes é conveniente e que juri-
afirme que o trabalho deles seja explicar histórias da forma que mais
dicamente confina a multiplicidade e complexidade dos farores em jogo,
favorecer seus interesses.
antropólogos não precisam - e não devem - reduzir a complexidade de seus
objetos de estudo a modelos explicativosque condigam com seus interesses Para Lubet, histórias que seguem à risca (Icinco passos de um roteiro
i: com um jargão antropológico hermético. Todavia, etnografias que não básico e ideal" têm grandes chances de alcançar sucesso nas mãos de
levarem em conta o jargáo consensual na área nem sedo aceitas como promotores e advogados, além de garantirem grandes julgamentos se
antropológicas. Portanto, diante de julgamentos judiciais que fornecem bem construídas por ambos os lados. Eis o roteiro:
rico material lúdico, ritual e dramatúrgico, o desafio é fazer com que o 1. explicaras razóesparaos atos do crime;
texto etnogrãfico não se reduza a simples confirmações de que estamos 2. dissecartodos os fatos conhecidos;
diante de um jogo, um ritual e um drama, mas) ao mesmo tempo, é pre- 3. dispor de testemunhascom credibilidade;
ciso dialogar com todo um arcabouço antropológico que interpreta fatos 4. baseara história em detalhes precisos;
culturais, como os julgamentos pelo Júri, como jogos, rituais e dramas. 5. tornara narrativaplausível.

O desafio, enfim, é como fazer o "ire vir hermenêutica" que Geertz sugere Enfim, talvez a grande diferença entre os discursos "vencedores" de
ser o caminho ideal para uma antropologia do direito livre da armadilha antropólogos e os de promotores e advogados de Júri seja que, apesar
de meramente "impregnar costumes sociais com significados jurídicos" de os primeiros não poderem se isentar por completo de editar etno-
ou ".corrigirraciocínios jurídicos através de descobertas antropológicas') graficamente o que observam, não precisam induzir ninguém a se con-
(Geertz, 1998: 253). vencer de sua versáo. Um trabalho etnográfico, diferentemente de uma
arguição jurídica, pode ser considerado bom por se valer de uma certa
Lubet, ainda tratando da produção de "verdades" nos tribunais, ao ser
licença poéti.ca\que não o leva a omitir ambiguidades e contradições.
entrevistado por Borges, admite a inexistência de uma verdade absoluta.
Se a antropologia trabalha com materiais sociais que são a base de obras
"Toda observação é influenciada por aspectos psicológicos. Duas pessoas
imaginativas, não condizem com a grandeza desse objeto teses amarradas
podem dizer a verdade, mas descrever situações diferentes. (...) há um
em camisas de força conceituais, sem idiossincrasias, metáforas, jogos de
espaço enorme para interpretações e reconstruções distintas dos fatos. É
palavras e, consequentemente, alguma poesia.
aí que está a habilidade do advogado" (Borges, 2001: lI).
Diante dessa colocação, talvez meus colegas advogados, especialmente
Como exemplo, Lubet cita o caso de uma mãe texana que matou seus
os mais preocupados com resultados ('práticos" de esforços intelectuais,
cinco filhos e afirma que a discussão do crime não residiu no que ela
evocassempejorativamente o.que o poeta W. H. Auden afirmou em sua

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~
Jogo, ritual e teatro
Júri -lexlo ctnográfico
elegia ao colega W. B. Yeats: "A poesia nada faz..acontecet, ela sobtevive
no vale de suas palavtas ... na forma de acontecer, numa boca"(Geertz, . Como metáfora, nas horas de Júri reproduz-se a compreensão do desen-
1978: 31 I). rolar da vida como um fluxo - um movimento uni direcional que vem
do passado e atravessa o presente em direção ao futuro, ao contrário do
Geertz, ao lembrar esta passagem, reconhece exatamente isso em rela-
que se passa com os balineses, que, segundo Geertz, vivem "em jorros")
ção à briga de galos, ao concluir que nela os homens alegoricamente se
como se a vida fosse uma pulsação que liga e desliga. A briga de galos
humilham, regozijam-se quando triunfam, mas não mudam de status.
"não significa uma imitação da pontuação da vida social balinesa, nem
A briga de galos s6 é "verdadeiramente real" para os galos _ ela.não mata uma representação dela, nem mesmo uma expressão dela - é um exemplo
ninguém, não castra ninguém, não reduz ninguém à condição de animal, dela, cuidadosamente preparado" (Ibid.: 313).
não altera as relações hierárquicas entre as pessoas ou remodela a hierarquia;
ela assume (...) temas [e) (. ..) torna-os significativos _ visíveis, tangíveis, A percepção dominante da temporalidade e da vida em nossa sociedade
apreensÍveis - "reais"num sentido ideacional. Uma imagem, uma ficção, é a de um desenrolar de acontecimentos que ganham sentido quando
um modelo, uma metáfora, a briga de galos é um meio de expressão; sua organizados segundo uma lógica linear que tem começo, meio e fim.
função não é nem aliviar as paixões sociais nem exacerbá-las (embora, em sua Daí não ser por acaso que os processos judiciais "processem" informa-
forma de brincar com fogo ela faça um pouco de cada coisa), mas exibi-las ções em busca de sentidos que se expliquem e se conectem cronologi-
em meio às penas, ao sangue, às multidões e ao dinheiro (Ibid.). camente rumo a um desfecho. Deste ponto de vista, os julgamentos
Assim também são as sessõesde julgamento pelo Júri, que talvez só sejam pelo Júri são exemplos "cuidadosamente preparados" dessa percepção
"verdadeiramente reais" para os réus que saem dali ou em liberdade ou de temporalidade da vida.
para o sistema prisional. Somente eles mudam de status, pois, ao que Contudo, as sessões de Júri, assim como as brigas de galo balinesas, não
tudo indica, os julgamentos não diminuem nem aumentam o número
só se apresentam como uma reiteração de um, modo de ser e de pensar
de mortes violentas que diariamente ocorrem na cidade, hem como não
hegemônicos no cotidiano, como também o contradizem e mesmo o
interferem, significativamente, na condução de debates passionais, po-
subvertem, revelando as coisas mais como os homens imaginam que
líticos e legais sobre as circunstâncias envolvidas nessas mortes. A única deveriam ser do que como de fato são.
"coisa real" nas sessões de Júri, no sentido ideacional, é o principal tema
que sustenta seu conteúdo dramático e metafórico: a legitimação ou nã.o A briga de galos, por um lado, evita o conflito aberto enrre pessoas que
de mortes violentas de acordo com a aceitação ou não, pelos jurados, de ocupam diferentes posições hierárquicas, o que Geertz considera coerente
certos valores e circunstâncias apresentados. com um "jeito balinês" predominantemen.te tímido, cauteloso, reprimi-
do, controlado e arredio ao conflito aberto; por outro, é agressiva, talvez
Como forma dramática, o Júri exibe uma estrutura atomística, pois cada
revelando como os balineses são em suas próprias imaginações:
sessão é quase um mundo em"si mesmo. Mal terminadas as sessões, per-
a briga de galos se expressa com mais força sobre as relações de status, (... ) é
manecem lembranças esquemáticas e difusas do que se passou durante
somente nas brigas de galos que os sentimentos sobre os quais repousa essa
as horas vividas no plenário. Como toda forma expressiva, o Júri só tem
hierarquia se revelam em suas cores naturais. (. ..), aqui eles se expressam
vida plena em seu próprio presente, na temporalidade que ele mesmo
cria (Ibid.: 312-313). sob o disfarce muito tênue de uma máscara animaL uma máscara que na
verdadeos revelamuito mais do que os oculta (Ibid.: 314).

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&r
Jogo, ritual e teatro Júri - Texto etnográfico

o que normalmente Ocorre de forma tímida, discrera e reprimida em Assim como em qualquer jogo, em que sequências e pormenores de
diversas camadas de nossa sociedade sob o rótulo de "fofocas", seja ao uma "partida" dificilmente se repetem em outras, também nas sessóes,
pé do ouvido ou em revistas e programas especializados nesse tipo de raramente minúcias de um caso se repetem em outro) porém) tanto em
"revelaçóes", nos plenários do Júri ganha o poder de invadir e expor partidas quanto em sessóes de Júri algumas características gerais insistem
privacidades de modo ousado, levantando, confirmando ou refutando em se fazer reCorrentes. Segue, portanto, uma típica sessão por mim et-
suspeitas, sob o rótulo de provas testemunhais e depoimentos. Nesse ::lOgrafada,tal como a registrei inicialmente em meu caderno de campo
sentido, os julgamentos pelo Júri mais expressam do que escondem um e depois em um "banco digital de sessões". Ela contém particularidades
gosto generalizado por julgarmos a vida alheia e, consequentemente, e generalidades exemplares.
. resolvermos externamente - no réu absolvido ou condenado - dilemas
amorosos, familiares, de vizinhança. hierárquicos, econômicos etc. que
estão em aberto dentro de todos nós.

Enquanto forma expressiva, portanto, o Júri atua desordenando "contex- Caso "PROTETOR DO SOBRINHO"
tos semânticos" que, normalmente. se apresentam como sedimentados e 5/9/200 I - 4' feira - das 12h 1O às 17h22
consensualmente aceitos, fornecendo, assim, um comentário metassocial .
Pl<nário 9 - I" Tribunal do Júri - Barra Funda
\

sobre a legitimidade ou não de mortes violentas. A função do Júri é Processo n.: 1.2W21
poética porque é interpretativa. É uma estória sobre nós que contamos
a nós mesmos (Ibid.: 315-316).
Posição que ocupei nessa sessão
Um exemplo para pensar: "Caso Protetor do Sobrinho" • assistente, público .
• emrevistei apenas um dos defensores, durante o intervalo para almoço.
Se este trabalho tivesse uma ênfase precipuamente merodoLSgica,caberia
descrever várias sessões para demonstrar, comparativamente, quanto
mudou ao longo da pesquisa meu modo de acompanhá-las, registrá- Observações iniciais
-las e, consequentemente,. de interpretá-las. Contudo, apresentarei na
• os funcionários do Fórum da BarraFunda entraramem greve em 27/8, de
íntegra somente a etnografia de uma sessão, cuja dinâmica básica - du- modo que esse processo só foi julgado porque vieram operadores técnicos e
ração, tipo de embates discursivos, presença de réus elou vítimas não II
funcionáriosdo 4" Tribunal do Júri (Penha).
famosos" - representa a de várias outras. Este caso ernográfico tem por • o horário marcado para o início da sessão era 9h. mas houve atraso no
objetivo demonstrar o tipo de registro mais "bruto" com que trabalhei transportedo réu preso.
e como o trabalhei. Foi com a matéria-prima formada pelo conjunto o às Ilh, quando cheguei,váriosjurados- sentadosà esquerdado plenário,
de 107 registros semelhantes a esse e porque, a certa altura da pesquisa em relação a quem entra - bem como o juiz, o promotor, os defensores e
de campo, eles passaram a significar algo que os transcendia e sugeria outraspessoas- sentadasà direita- aguardavama chegada do réu. Do lado
de fora, quatro mulheres conversavam e pude identificar três delas como
possibilidades analíticas mais amplas que este trabalho se ergueu.
sendo a mãe, uma irmã e a mulher do réu.

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Jogo, ritual e teatro
Júri - 'Iexlo ctnogrúfico
Réu
• ainda de acordo com o CPP [art. 458, ~Io, vigente à época], o juiz ad-
11 h50: entra em plenário, algemado. Já cumpre pena por roubo com vertiu os jurados de que, uma vez sorreados, não poderiam se comunicar
cárcere privado das vítimas, condenação da qual está recorrei;1dc..105 entre si e/ou com outras pessoas, tampouco manifestar suas opiniões sobre
• negro, jovem, alto, bonito, magro, musculoso, cabeça raspada: camisa pala o processo: "Os senhores devem manter uma posição semelhante à minha,
branca e calça bege. Postura não altiva, tampouco submissa. Olhar triste, de neutralidade. Não devem deixar transparecer emoçóes e opiniões. Os
de quem tem mais lembranças do que expectativas. intervalos são como um recreio, mas durante seu transcorrer não devem
• enquanto aguardávamos o retorno'do promotor, o réu e seus advogados ser debatidos assuntos sobre criminalidade e segurança pública, mesmo
conversavam, detidamente. que, aparentemente, não tenham a ver com o processo em julgamento. O
• manteve-se cabisbaixo, do inIcio ao término da sustentação oral da voto é secreto, portanto, um jurado não pode saber, nem ter motivos para
acusação, e assim permaneceu, meSmo duran"te a sustentaçáo oral de seus desconfiar, qual o voto do Outro".
defensores.

Início da sessão Sorteio dos jurados


• eram 15 os presentes .
• 12hl0: o juiz pediu desculpas aos jurados, em nome dele próprio, do
• os nomes e respectivas profissões dos 21 convocados,07 estavam registrados
promotor e dos defensores, pelo atraso no início da sessão, reportando-se ao
em uma folha da qual juiz, promotor e defesa tinham cópia, de modo que,
"problema crônico do ineficiente transporte de réus presos". Voz pausada,
tranquila, dispensand? o microfone. no momento do sorteio, à medida que o juiz lia os nomes dos sorteados,
primeiro a defesa e, depois, a acusação podiam, olhando para o(a) sorreadoCa)
• antes do sorteio do Conselho de Sentença, cumprindo o previsões do
e conferindo sua profissáo nessa folha, recusá-loCa) sem explicitar o motivo.
Código de Processo Penal (CPP), o juiz advertiu os jurados dos principais
Cada um podia fazer isso por três vezes, depois do que passava a ser neces-
impedimentos e incompatibilidades legais para participarem da sessão: algum
sário motivar a recusa.
tipo de parentesco com o juiz, o promotor, o advogado, o réu ou a vítima;
• foram aceitos seis homens e uma mulher. Três das quatro mulheres sortea-
jurados marido e mulher, ascendentes e descendentes, sogro(a) e genro/
das foram recusadas pelo promotor, de modo que, náo fossem essas recusas,
nora, irmãos, cunhados durante o cunhadio, tio (a) e sobrinho(a), padrasto
ou madrasta e enteado(a).lo6 haveria no Conselho quatro homens e três mulheres.IOB

técnicos, interesse profissional/pessoa! ou qualquer outra ligação com o caso em jul-


105 Obtive esta informação do defensor, no intervalo para almoço, quando ele me COntou
gamento. Aplicam-se aos jurados as mesmas suspeiçÕes aplicáveis aos juízes togados
ter convicção de que, no processo em julgamento, o réu seria absolvido por legítima
(art. 252~256, antes da reforma de 2008 e art. 448~452, após a reforma).
defesa. Informou-me também que, no roubo pelo qual o réu fora anteriormente
condenado, os comparsas o haviam obrigado a participar sob ameaça de morte, 107 Lembrando que, após a reforma de 2008, passaram a ser 25.
tendo ele garantido o cárcere privado das vítimas "sem agredi-las". O defensor me 108 Nesse julgamento, como na maioria dos 107, não tive acesso às profissões dos ju-
informou, ainda, que atuava como advogado dativo no Júri de Santo Amaro e que rados, mas, em outro dia, durante uma rápida entrevista, o promotor me revelou:
este é seu primeiro Júri como defensor constituído, juntamente com sua mãe. "Recusei-as por serem mulheres, mas não por ter algo contra mulheres juradas. É
IOG É extensa a jurisprudência relativa a casos de participação de jurados que, por terem que, nesse caso, além de o réu ser bonito, no momento do crime ele estava acompa-
entre si alguma relação de parentesco ou afinidade, ensejaram nulidade do julgamento nhado da irmã e da esposa. Havia uma trama familiar em jogo, envolvendo possível
Oesus, 1989: 290-293). A lei ainda proíbe que o jurado participe do julgamento se proteção do réu a seu sobrinho. Achei que juradas seriam mais condescendentes
houver afinidade, rdarão de amizade/inimizade Com as panes e/ou operadores com ele do que jurados porque essas questões familiares, em geral, tocam mais as
mulheres do que os homens".

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1.\',
dJ/
Jogo, ritua.l c teatro
Júri - Texto etnográfico
I") homem
• como na maioria das outras sessóes às quais assisti, estando todos os pre-
2") homem
sentes de pé, o juiz leu a exortação do CPP: "Em nome da lei~concito-vos a
3") homem
examinar com imparcialidade esta causa e proferir a vossa decisão de acordo
4") mulher
com a vossa consciência e os ditames da justiça". Em seguida, nomeou cada
5") mulher (recusada pelo MP: "Agradeço e recuso")
um dos sete jurados para que respondessem: ''Assim o prometo". Todos,
6") mulher (recusada pelo MP)
entretanto, responderam: "Assim eu prometo".
7') homem
• os jurados não sorteados e recusados for<m:l,então, dispensados pelo juiz
8") mulhér (recusada pelo MP)
(12h20),.co>'Ç'mais pedidos de desculpas pelo arraso e agradecimentos pelo
9") homem (recusado pela defesa)
comparecimento.
lO") homem (único muIaro)
• antes de iniciar o interrogatório do réu, olhando para as quatro mulheres
li") homem
suas parentes, sentadas na "plateià', o juiz alertou: "O público presente deve
• à medida que cada jurado era sorteado e aceito, enêaminhava-se para seu manter comportamento adequado, durante todo o julgamento, ou seja, os
lugar no "palco". senhores não podem se manifestar nem entabular conversas paralelas, pois,
• concluído o sorteio, antes de dispensar os não sorreados, o juiz esclareceu caso isso ocorra, eu ordenarei o esvaziamento do plenário". As mulheres se
que os recusados o foram por motivos alheios a sua indiscutível idoneidade, entreolharam, com preocupação.
pois as recusas são prerrogativas das partes, previstas em leVe normalmente
ocorrem.
• aos jurados que compuseram o Conselho de Sentença, o juiz disse:. ''A Interrogatório do acusado
pareir de agora, os senhores passam a integrar o PoderJudiciário, na função • seguindo o script do cpp [o então vigente art. 465]. o juiz presidente
de juízes".
passou ao interrogatório do réu (l2h25), mas antes, novamente em tom
[Anotei, em vermelho, em meu caderno de campo:] didático, explicou que era pertinente a leitura da denúncia para que os
É inevitável pensar no sorteio como ponto de partida de inúmeros jogos, inclusive jurados se inteirassem da acusação.
do jogo Veredicto, no qual o acaso antecede a habilidade dos jogadores. No próprio
sorteio, contudo, hd a possibilidade das recusas, por parte da defesa e do Mp, o que
Leitura da denúncia pelo juiz
abre espaço para a habilidade interferir no acaso.
• 29/9/1991. Praça Brasil, !taquera, horário incerto. Nas proximidades de .
É visível a mudança de status dos jurados, tanto sorteados quanto aceitos, marcada
um bar, o réu, acompanhado de um indivíduo menor "A", montados numa
por sua redisposição espacial epor uma espécie de sacralizaçáo da nova condição de
motocicleta, provocaram a morte de Ml e tentam matar M2, irmão de MI,
integrantes do Poder judicidrio. Ao entrarem no "palco ': deixam a descontraçáo da
mediante disparos de arma de fogo. M 1 morreu com um tiro na testa e M2
plateia e se tornam circunspectos,' sisudos; "incomunicáveis".
sequer foi atingido. Pelo que consta dos autos, M 1 teria ofendido o irmão
• em seguida, o juiz perguntou se havia algum "novato" entre os jurados e do réu, razão pela qual esse foi tirar satisfações .
três levantaram as mãos. Didaticamente, então, explicou-lhes que, para a
Juiz: O Sr. conhece o menor "A"?
devida instalação do Conselho, todos prestariam um termo de compromisso,
Réu: Era meu sobrinho.
em uma breve solenidade, na qual cada um, ao ser chamado nominalmente,
Juiz: Era? Por quê? Não está vivo?
e após ouvir o termo, responderia em voz alta: "Assim o prometo".
Réu: Não, Sr. Morreu.

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Jogo, ritual e teatro
jlíri - Texto etnográfico
Juiz: Assassinado?
Réu: Assassinado. • o juiz leu então o relatório do processo.
• nem o promotor nem os defensores pediram a leitura de peças específicas,
Juiz (leu o riome completo da vítima fatal e depois da vítima da tentativa e,
em voz alta, a qual é possível nesse momento.
após mencionar cada um, perguntou ao réu se os conhecia.)
• 12h45: o juiz suspendeu os trabalhos, por 45 minutos.
Réu (balançou negativamente a cabeça, ao ouvir cada nome e completou):
Não conheço nenhum dos dois, nem de vista.
Juiz (leu os nomes das testemunhas de acusação e, um a um, perguntou se [Imediatamente, fiz os seguintes comentários em meu caderno de campo:]
o réu as conhecia.)
O discurso da réufti relativamente bem articulado e ele estava calmo. A narrativa
Réu (apenas reconheceu o nome de sua irmã.) tornou-se confusa-justamente quando referiu-se ao momento dos tiros.
Juiz: O Sr. tem inimizade com essa sua irmã?
Réu: Não, Sr. Vivo em harmonia com todos os mel,l.Sirmãos. !
Juiz: O Sr. cometeu os dois crimes de que é acusado, ou seja, matou MIe I Intervalo para almoço
tentou matar o irmão dele, M2? i
Réu (após instantes de silêncio): Fui eu, sim, que atirei na direção deles,
I • na lanchonete do térreo, dei-me conta de que sentia dificuldade em abordar
as familiares do réu. Elas estavam em urna mesa próxima, com ar triste: a mãe
mas pra defender meu sobrinho. Eu não tive intenção de matar ninguém. iI
; \ de mãos dadas com a filha. Não consegui interromper esse momento delas,
Juiz: Defender seu sobrinho de quê? \
! mas ao ver um dos defensores, abordei-o e conversamos, por alguns minutos.
R.éu (perguntou ao juiz se podia contar o que aconteceu naquel~ dia e, após I
autorização, narrou, de forma muito prolixa, que fora visitar sua mãe. Ao I
encontrá-Ia, soube que a casa de uma de suas irmãs havia sido invadida e Sustentação orat do promotor
que um de seus irmãos, "S", havia sido esfaqueado, sendo que os agressores
seguiam ameaçando matar seu sobrinho, filho desse irmão. Saiu, então, em
t • com voz mais ou menos baixa e falas rápidas, posIcIOnou-se,.a maior
parte do tempo, entre os jurados e a divisória que os separava da "plateia".
companhia dessa irmã e de sua esposa à procura do sobrinho. Declarou \
Em vários momentos, sentou-se nessa divisória, de costas para a "plateia".
que não conhecia os autores da agressão contra seu irmãó, o qual logo fora I • 13h45: iniciou com os cumprimentos e saudações.
socorrido pelo cunhado. Numa praça, juntamente com sua irmã e esposa,
• "Exmo. Sr. Presidente deste Tribunal do Júri, De. (... ). Pelo segundo dia
aguardou o aparecimento de seu'sobrinho, supondo que ele passaria por ali.
consecutivo, tenho a honra de trabalhar com Vossa Excelência, cuja segu-
Notaram que um grupo também estava no local e, quando o sobrinho apa-
rança, simpatia e tordialidade conheço e admiro de várias outras sessões que
receu, houve um tumulto. Em meio a esse, pegou o sobrinho, deu um tiro
compartilhamos. Aos defensores, embora desconheça-os, com certeza devem
para o ar, mas, como os componentes do grupo que os ameaçavam não se
estar representando muito bem a OAB. O MP, porramo, saúda a OAB. Aos
afastavam - a vítima M 1 portava uma faca -, atirou em direção a eles, "sem
funcionários deste Tribunal, sem os quais as sessóes não se processariam,
mirar ninguém". Depois disso, fugiu da praça com a irmã e a esposa. Seu
aos PMs, bravos cidadãos que garantem a nossa segurança neste plenário e
sobrinho ficou para trás e nem sabe como saiu de lá. Somente no dia seguinte
fora dele, a todos os presentes que nos brindam com sua atenção, os meus
soube que uma pessoa havia morrido. Acrescentou que, na ocasião, não podia
cumprimentos. Aos senhores jurados, desde já, adianto que explicitarei os
correr, pois mancava devido a um acidente de carro sofrido um ano antes.)
fatos da maneira mais simples e didática possível, pois coloco-me no lugar
• após ouvir essa versão do réu, o juiz folheou o processo, com ar de quem de Vossas Excelências e imagino como eu me sentiria sendo chamado a
prosseguiria o interrogatório, mas finalizou-o, declarando-se satisfeito (12h42). atuar, da noite para o dia, numa área profissional que náo é a minha e da

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te!
Jogo, ritual c teatro Júri - Texto etnográfico

qual nada conheço. Sei que é difícil para leigos analisar um processo judicial familiares, o réu agiu em legítima defesa e, segundo a vítima M2, o réu e seu
e decidir. Respeito muito o que fazem."
sobrinho agiram por vingança. (...) são provas formais a serem apreciadas de
• explicou, especialmente aos três jurados "novatos", que leria o libelo e que, :nado a levar à prova.substancial, a qual somente os jurados poderão avaliar".
sempre que lesse qualquer documento, citaria o número das folhas do pro- • aproximando-se muito dos jurados e segurando o processo acima dos
cesso para que os jurados. se quisessem, também acompanhassem a leitura. ombros disse: "Eu estudei horas e horas este processo, ao passo que os Srs.
• I3h54: usou uma espécie de lousa, próxima aos jurados, para esquematizar
não o estudaram sequer um minuto, o que dificulta ainda mais o trabalho
os dois crimes de que o réu era acusado. Escreveu:
que devem desempenhar. Além do estudo, a Pt:3.ticatambém me faz concluir
vítimas resultado enquadramento que a versão do réu é duvidosa".
Ml morte homicidio simples, consumado; [Anotei em meu caderno de campo:) Típico discurso competente!
M2 não atingido tentativa de homicídio simples.
• leu ainda o depoimento de ~ma testemunha não aparentada nem com o
• considerou "nebuloso" o esfaqueamento de "S". ionão do acusado, no réu nem com as vítimas para demonstrar que essa pessoa, "mais neutra",
mesmo dia dos crimes em questão: "Não há provas de que a vítima fatal, comprovava a versão das vítimas.
MI, foi quem esfaqueou 'S'. M2, irmão de MI, nem consta como envol- • considerou "talvezverídica" a versão de que o réu deu o primeiro tiro para o .
vido com 'S ••'.
alto, mas afirmou,: "Ao que tudo indica, depois disso, o réu ficou confiante e
• sustentou a tese de que o menor ''A'', sobrinho do réu, estaria perseguindo executou a vítima, mesmo já estando ela intimidada. (...) Não houve legítima
os responsáveis pelo esfaqueamento de "5"-, pai desse, e que "o réu fez o que defesa! (...). Não existem duas verdades! Ou foi de um jeito, como conta a
fez para proteger o sobrinho". família do réu, ou foi de OUtro,como conta a vítima não fatal e uma teste-
• "Muito, no Júri, vem da prova, da lei. Mas muito, também, v~m do bom munha não ligada a nenhuma das duas partes. C..) OS Srs. jurados podem
senso dos jurados. É essauma qualidade que deles se espera. (...) O Ministério pensar: o réu tinha o direito de se defender, atacando e prevenindo-se de uma
Público pedirá a condenação do acusado porque a vítima morra sucumbiu ~gressãofutura contra seu sobrinho, já tendo inclusive havido uma agressão
com um tiro na cabeça. Logo, quem atira na direção da cabeça de outrem anterior contra seu irmão '5'. (...) Mas é duro engolir que o réu tenha atirado
teve intenção de matá~lo (...). Não há nada que torne juSto o que o réu fez. na cabeça da vítima sem intenção de matá-Ia. (...) E a tal faca que estaria na
(...) Segundo o réu, que declara não ter tido intençáo de matar as vítimas, mão da vítima fatal e que não foi citada por nenhuma testemunha em juízo?
alguém, portando uma faca, atacaria seu sobrinho. Preparem-se! A tese da tviesmo o menor, sobrinho do réu, não mencionou essa faca".
defesa será a falta de ânimo do acusado para matar e, portanto, a alegação • o promotor, então, voltou a ante.cipar que a defesa diria que o réu náo teve
de que agiu em legítima defesa." intenção de matar as vítimas, e reiterou que a testemunha não aparentada
• leu o depoimento do sobrinho do réu (fls. 134), na fase judicial, na qual com nenhuma das partes mencionou terem sido vários os tiros disparados do
esse declarava que a vítima Ml porrava uma faca para atacá~lo. Enfatizou: réu na direção das vítimas. ''Até um parente do próprio réu mencionou terem
uSrs. jurados, o depoimento do sobrinho deve ser contextualizado, pois sido vários os tiros dados por ele! (...) Por que o réu fugiu? Por que se desfez
como ele foi protegido pelo tio, no dia dos fatos, pode tê-lo protegido ao da arma? Se tivesse dado um só disparo ou mesmo dois, por que não apre-
depor em juízo". S~ntoua arma à polícia, para que um laudo pericial constatasse sua versão?"
• leu também o depoimento de M2 - vítima do homicídio tentado - e
[Escrevi,em seguida:) Que ingênuo esseargumento ... Por que um negro, que acabou
também considerou-o parcial, "pois é irmão da vítima fatal. (...) todos os
de acertar alguém com um tiro. mesmo que tivesse dado 'só" dois tiros _ um para o
depoimentos devem ser COntextualizados, além do que, os depoimentos
alto e outro na direção de um grupo - apresentaria a sua arma à policia?
de familiares do réu e da vítima não fatal são contraditórios. Segundo os

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Jogo, ritual e teatro
Júri - 'Iexto etnognHico
• prosseguiu o promotor: "Qualquer um, di<!-ntede ameaças a familiares,
faria algo. Se a defesa disser isso, eu estarei de acordo. Mas o que o réu fez "Como uma vítima de tentativa de homicídio, na primeira vez que depóe,
foi desastroso. (...) E digo mais! A vítima fatal também tinha antecedentes. não admite que foi vítima?"

Roubo e contravençóes relacionadas a tóxicos. Nenhum dos dois é santo, • 15hOS: o promotor interrompe-a, comentando que houve acareação de
mas MI recebeu pena de morte das mãos do réu e, neste país, a lei não M2 com o réu (fls. 74). A advogada e o promotor começaram a falar ao
prevê aplicação de pena de morte. (...) Logo, condenar o réu não será tirar mesmo tempo, de modo que não se podia entendê.los.
da sociedade uma pessoa super bem-intencionada". • retomando a palavra, disse a advogada que a progressão da pena não é cão
• Em tom de finalização, pediu aos jurados que condenassem o réu pelo simples quanto afirmou o promotor e que não se pode condenar alguém
homicídio consumado e pela tentativa. Argumentou que as penas prováveis com o argl,lmento de que a pena será reduzida.
seriam de quatro e seis anos, respectivamente, totalizando dez e que, como • instaurou-se nova discussão entre promotor e advogada, a qual terminou
não são crimes hediondos, poderia haver progressão para o regime semiaber- com a advogada afirmando: "Ora, Doutor ... Não venha me dar lições sobre
to, após o cumprimento de 1/6 dos dez anos, ou seja, após um ano e meio. execução da pena. Execução de pena é a menina dos meus olhos. É o tema
• I4h53: encerrou sua sustentação oral. de minha pós-graduação na USP. Na USP!" .
• o último argumento da advogada foi que a vítima tinha piores antecedentes
do que o réu: consumo e tráfico de drogas.
Sustentação oral da defesa (advogada-mãe) • houve, então, novo bate-boca entre advogada e promotor, o qual, irônica e
sarcasticamente, comentou que a F.A.do réu (folha de antecedentes) era mui-
• se não estivesse de toga, passaria por uma típica mãe, dona de casa, classe
média: meia-idade, ar singelo, cabelos pintados, CUrtose meio armados. to pior que a da vítima (condenação por roubos, um deles com sequestro).
• a advogada, irritada, retrucou que o réu já fora condenado por cárcere
• saudou o juiz, o promotor, os PMs, a "pIateia" e os jurados. Posicionou-se,
privado e não por sequestro.
quase o tempo todo, à frente dos jurados, andando pouco. Quando interpe-
lada pelo promotor, apenas virava a cabeça em sua direção. com ar de enfado. [Registrei:] O auge do debate entre promotor e advogada girou em torno da questão
• voz baixa. porém firme.
de quem tinha a pior ftlha de antecedentes: réu ou vítima, e de, portanto, se ela
• elencou objetivamente os seguintes argumentos: \•
merecia ou não morrer e se era legítimo ou não o réu matd.la .
• o réu. à época dos faros. estava com sua capacidade motora reduzida,
• lSh I O ~a advogada encerrou sua fala e passou a palavra para seu filho, o
portanto. nessas condições, não enfrentaria uma turma;
Outro defensor do réu .
• o irmão e o sobrinho, apesar de não terem morrido naquela ocasião, foram
assassinados posteriormente;
• MI, vítima fatal, foi quem esfaqueou "S". irmão do acusado; Sustentação oral da defesa (advogado-filho, com quem eu
• o réu foi socorrer o sobrinho. ameaçado de morte;
conversara na lanchonete, durante o intervalo)
• o réu, seu sobrinho e duas mulheres que os acompanhavam enfrenta-
ram uma turma numerosa e perigosa, o que representa uma situação. de • barba bem-feita, gordinho, baixo, voz mais baixa e menos firme que a
extrema tensão;
da mãe. Posicionou-se a maior parte do tempo na frente dos jurados e
• todo o processo leva à tese da legítima defesa, porque há menções à faca andando no espaço existente entre esses, o juiz e o réu. Deixou o promotor
que a vítima M 1 pOrtava; interrompê-lo mais do que sua mãe .
• "M2, a vítima da tentativa de homicídio, não admitiu, em um primeiro • fez novas saudações ao juiz, promotor, oficial de justiça, PMs, "plateia" e
depoimento. ter sido baleado pelo réu. Só depois, começou a acusá-lo. jurados. A esses disse: "Considero os Srs. os mais importantes componentes

,
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-245-
\ tflr>
• ..!:.
Jogo, litunl c teatro
Júri - Texto etnográfico

do Júri e os admiro por deixarem seus afazeres para, nesta tarde, julgarem
[/-..notei:}Imagem perfeitas - um aleijado protegendo um menino contra um grupo
um de seus pares".
d. traficantes.
• afirmou que a vítima M 1 levou um tiro na cabeça porque estava "metido
no meio de um rolo", o que só aconteceu porque, antes, envolveu-se no • novo bate-boca:
esfaqueamento de "S", irmão do acusado. Afirmou, ainda, que se M 1 não
Promotor: Onde consta que o réu, à época dos fatos, estava aleijado?
tivesse morrido, provavelmente teria em sua folha de antecedentes uma
Advogado: Está nos autos.
tentativa de homicídio qualificado contra "S".
Promotor: Em que folhas dos autos?
• nesse instante, irrompeu o promotor perguntando ao advogado se ele tinha
Advogado: No interrogarório do acusado. de hoje.
ao menos o boletim de ocorrência do qual constava que Ml esfaqueou "S";
Promotor (ironicamente): Ah! Então estará nos autos, porque só hoje o réu
• o advogado, quase balbuciando e logo passando para outro tema, disse
se lembrou de contar isso!
não ter esse B.O.
• o promotor, de pé, falou com desdém: "É mer!! presunção concluir que • o advogado, desviando-se do assunto, lembrou que a "suposta vítima da
Ml esfaqueou 'S"' . tentativa de homicídio" (M2) se encontrava presa.
• 15h20: o advogado leu o depoimento de uma das testemunhas, ten- [Registrei:]
tando provar que "S" fora esfaqueado por Ml. O promotor, novamente,
interrompeu-o, dizendo: "Se, desde março deste ano, os dignÍssimos colegas A fala do advogado-filho seguiu a mesma linha do fala de advogada-mde. Defen-
advogados defendem o réu neste processo, já tiveram tempo suficiente para_ deram o acusado pela depreciação das vitimas.
levantar o eventual B.O. que prova a agressão de Ml contra S".
As irocas de farpas, entre promotor e advogado, também se basearam, por parte do
• promotor e advogado começaram a trocar insultos:
promotor, na desqualificaçdo técnica do advogado:falta deprovas mz suas afirmações.
Promotor: O Sr. está fazendo um carnaval com a ficha de antecedentes da
• perguntou o advogado aos jurados: "Por que o réu iria à praça com sua
vítima!
mãe e sua irmã? Porque sua intenção não era a de matar alguém, mas ape-
Defensor: Carnaval, não! Isto é o meu trabalho.
nas a de proteger seu sobrinho!". E, novamente, falou mal da vítima: "Seu
Promotor: Carnaval, sim! Pois a vítima ...
apelido era Maluco. Ele usava drogas e estava desempregado. O que esperar
Defensor: Se o Sr. insistir nesse termo, eu pedirei para que isso conste em
de alguém cujo apelido é Maluco?".
ata como ofensa a minha pessoa, pois acima das nossas divergências está a
• como, enquanto isso, o promotor sussurrava, ao microfone, que o acusado
lei, representada pelo Exmo. Sr. Juiz. Estão também o Ministério Público e
estava cumprindo pena, o advogado comentou que, de fato, seu cliente já
a OAB, instituições que nós dois representamos e que devemos honrar. Há
participara de um roubo, pelo qual foi condenado e cumpria pena, razão
ainda os senhores jurados que não vieram aqui para participar de nenhum
por que entrara com pedido de revisão criminal, pois não se conformara
carnaval, assim como os estudantes e o.próprio réu!
com essa condenação.
Promotor: Ora, doutor ... Estou só falando que o Sr. está invertendo a im M

portância das coisas ao querer transformar a vítima num bandido.


• depois de uma pausa. de folhear o processo e de olhar o relógio. o advogado
comentou que a mãe das vítimas Ml e M2, no depoimento que dera em
Defensor: Eu sei muito bem o que estou fazendo, não estou invertendo
nada e o aparte concedido está terminado. juízo, alegou que M2 não fora vítima, só M 1, 't( ... ) logo, esse depoimento
exime o réu da tentativa de homicídio, pois esse delito não ocorreu. É uma
• retomando a palavra, o advogado afirmou que o acusado, "um aleijado que fantasia, uma elucubração".
protegia um menino", deu um tiro para cima e mais um tiro na direção do • das 15h43 às 15h45 um jurado pediu para ir ao toalere, o advogado in-
grupo de "traficantes", não havendo provas de outros tiros. terrompeu sua fala e ficou conversando com a advogada-mãe.

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"
Jogo, rituale teatro
.híl'i - 'Iexto etnográfico
• ao retomar sua sustentação, afirmou: ''A,testemunha, mencionada pelo
ao réu estar semialeijado à época dos fatos, po:" que isso foi dito somente
promotor como neutra, por não ser parente nem do réu nem das vítimas,
hoje pelo réu? Por que ninguém mencionou isso antes?
tem fénil imaginação e deu depoimentos repletos de conttadições e incoe-
rências". Leu então os depoimentos dela, enfatizando as dubiedades. Leu, • também lembrou o promotor que, quanto ao acusado ter disparado mais
também, o depoimento da mulher do réu em que ela citava a agressão de dois tiros, embora não tenha sido encontrada a arma, diferentes teste-
sofrida por "5". munhas mencionaram "vários" tiros .
• a essa altura, tive a nítida impressão de que o advogado estava gastando • de forma contundente, reafirmou haver provas de que a vítima Ml não
o tempo que ainda lhe restava e, para isso, procurava peças que pudesse ler portava uma faca na ocasião do crime.
para reforçar as ideias já expostas.
Essa hipótese surgiu, posteriormente, para dar aos advogados condições
• os jurados estavam visivelmente cansados: esfregavam os olhos, o roSto,
de sustentarem a tese da legítima defesa. Não admito que atirar na direção
apoiavam a cabeça sobre uma das máos, olhavam para o teto enquanto
de alguém seja diferente de atirar em alguém, c-::mformedisse o advogado.
esticavam as pernas e se auto massageavam nos ombros e pescoço.
Atirar na direçáo é mirar alguém. E não admito que qualifiquei a vítima
• o advogado prosseguiu lendo depoimentos em que afirmava a intenção
de anjinho. Eu disse que vítima e réu náo erao flores que se cheirassem.
de a vítima Ml agredir o réu. Lembrou que as qualificadoras constantes
Ambos têm folhas de antecedentes ruins. Eu não poria nenhum dos dois
da denúncia não foram reconhecidas pelo Tribunal de Justiça quando da
para dormir na minha casa. E não existe, no processo, provas de que
sentença de pronúncia, o que concluiu ser importante pOnto a favor da não
Ml era um drogado e que estava drogado no dia dos fatos. Ml tinha
intençáo do réu de matar as vítimas.
que pagar por seus delitos perante a justiça, nas não perante o réu que
• nesse momento, criou-se nova polêmica entre promotor e advogado e,
o julgou e o matou. Não existe pena de morte no Brasil! O argumento
como eu também estava muito cansada, perdi o fio do debate.
da defesa, de que a vítima era medonha, é quase nazista, pois sugere que
• 16h10: encenou-se a fala do advogado.
ela merecia morrer .

• por fim, o promotor resumiu seus argumentos, mais uma vez reiterando
Réplica da acusação
que não havia se configurado a legítima defesa c: que o réu deveria ser con-
• o promotor começou lembrando que, na sentença de pronúncia, o juiz denado por um homicídio consumado e um te:ltado .
afirmara serem conclusivas as provas da tentativa de homicídio Contra M2,
• isso bastou para se instaurar nova discussão com os advogados. a qual
Tréplica da defesa {advogado-filho)
foi carregada de termos técnicos. O promotor, a certa altura, apontou que
o advogado-filho confundia apelação -com recurso em sentido estrito. A • "Mesmo que o acusado tivesse dado dez ou vime tiros na direção das
"advogada-mãe" defendeu o "advogado-filho" e a discussão se estendeu por pessoas, isso não o tornaria mais culpado porque, justamente, ele não queria
alguns minutos. O juiz não estava na sala. atingir ninguém em especial."
• o promotor, alterado e saindo da discussão técnica, explodiu: • o advogado lembrou que, em um dos depoimentos do sobrinho do réu,
esse acusara Ml de empunhar uma faca enqua:1to o esperava sair de uma
Se o esfaqueamento de 'S', irmão do réu, por MI, motivou o crime, por
lanchonete.
que a defesa náo trouxe cópia do inquérito policial que registra ser Ml o
• novamente, entrou em detalhes técnicos, lembrando que o primeiro
autor do esfaqueamento? Porque não convém! O réu, sem provas, foi tirar
advogado do réu, à época em que foi dada a sentença de pronúncia, apre-
satisfações da vítima Ml e matou-a. Esse foi o motivo dq crime! Quanto
, sentou recurso em sentido estrito, mas sem razões, daí o recurso ter sido

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d
Jogo, ritual e leatro
Júri - Texto etnográfico

improvido: "Se houvesse tais razões, provavelmente o Tribunal de Justiça


Mãe: Eu sabia que Deus faria justiça.
teria absolvido o réu!".
Irmã: Ele já sofreu tanto ...
• novos bate-bocas técnico-jurídicos entre promotor e defensor, até que o
Mulher: Se tinha de pagar seus pecados, já pagou!
primeiro dirigiu-se ao juiz com "uma questão de ordem": "O Tribunal de
Mãe: Ainda bem que Deus iluminou essa gente aqui. Deus seja louvado e
Justiça. mesmo sem a defesa ter apresentado razóes no recurso em sentido
abençoe a todosF09
estrito, poderia ter absolvido o réu. sumariamente?". O juiz respondeu-lhe
que sim .
• com ar de satisfação, o promotor virou-se para os jurados e, sem palavras, Observações finais
apenas expressando-se com o rosto e o corpo, deu a entender que o réu fora
e continuava sendo mal defendido. • não fiquei com cópia dos autos desse processo.
o acho que o fato de a dupla de defensores ser formada por mãe e filho
• essa foi a única vez em que o juiz participou das arguições.
pesou a favor do réu. pois deu credibilidade à defesa, especialmente por ser
• o advogado. finalmente, leu os quesitos para os jurados e sugeriu quais
a advogada-mãe uma senhora.
respostas eram as "corretas". Reiterou que o acusado não atirara contra as
• questão-chave que me pareceu estar em jogo e ser respondida afirmativa.
pessoas e sim na direção de um grupo que o ameaçava. bem como a seu
sobrinho. mente pela sentença: TInha o réu, de acordo com as narrativas dos arguidores,
motivos legítimos para matar a vítima?
o pediu a absolvição do réu pelo homicídio consumado, em função de ter
• O caso envolveu:
agido em legítima defesa, e alegou a inexistência do homicídio tentado. ------

a. parentesco: proteçáo que um familiar supostamente deu a outro (réu em


relação ao sobrinho e mulheres em relação ao réu) e vingança (do sobrinho,
Votação secreta
ameaçado pelas vítimas que teriam agredido anteriormente o seu pai);
• 16hS3: o juiz convidou os jurados a se retirarem para a sala secreta. b. vizinhança: réu e vítima eram do mesmo "pedaço";
• não presenciei a votação e não soube, posteriormente. os resultados de c. drogas;
cadaquesiro (quantos "sim" e quantos "não"). d. jovens e menores de idade;
e. pobreza;
f. mortes de vários dos envolvidos: de uma das vítimas (MI) e, posterior-
Leitura da sentença mente, do sobrinho do réu e de "S";

• 17h20: jurados, juiz, promotor e advogados rerornaram ao plenário. • conflitos do e~paço privado (provável esfaqueamento de "5" J no interior
• 17h22: retornou o réu. que foi conduzido ao cemro do "palco" e ficou de uma casa) 'qu~ resolveram.se no espaço público, ironicamente chamado
de frente para o juiz, de costas para a "plateia". Todos foram convidados a "Praça Brasil".
se levantar e o juiz leu a sentença que absolveu o réu das duas acusações .
• a reação çlamãe e das moças que a acompanhavam foi marcada por sorrisos
lacrimosos, abraços e mãos em posição de oração levadas à boca e ao alto. A
mãe, saindo do plenário, exclamou: "Foi Deus quem salvou meu filho. De
novo, foi Deus! É Deus quem protege meu filho. É por causa ~e Deus que
ele está vivo! Obrigada, Senhor, por iluminar esse juiz! Obrigada, Senhor lO'! Interpretaçõesque fizdasreaçõesdessasmulheres.do que sesucedeuapósa proclama-
çãoda sentençae de outros aspectosdessejulgamento já foramcitadas.especialmente
juiz!". Aproximei-me delas, para ouvir melhor o que diziam entre si:
no Capítulo 4.

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~
Jogo, ritual e teatro
Júri -1'CxlO etnogl'Ílfioo
Topografia social do Júri
linhas retas que se entrecruzam sobre um jardim em desnível, coberto
Finalizando este capÍtulo e ainda expl~tando a ideia da ptática etnogtá- por diferentes tipos de heras e plantas que recebem luz natural filtrada
fica como leitura interptetativa de materiais sociais, vale tecotdat que, através de um grande tero envidraçado. Todo o conjunto é climatizado,
ao descreverem espaços urbanos, como o Palácio de Versalhes, o plano pois as janelas de vidro escuro são fixas e mantidas fechadas.
piloto de Brasília, localidades de Roma, a Praça Zócalo, na Cidade do
Certa vez, perguntei a uma jurada que já atuara no prédio do antigo 10
México e a Praça Vetmelha, em Moscou, diferentes antropólogos apon-
Tribunal do Júri o que ela achava desse novo prédio: 111
taram esses locais como teatros em que o poder se mostr~ e se afirma:
"Atopografia simbólica de uma cidade é uma topografia social e política Ela: Nossa! Nem se compara! Aqui a gente tem a sensação de entrar no
(...). Certos lugares exprimem o poder e impõem seu at sagrado melhor futuro, enquanto lá tudo parecia velho e decadente.

do que qualquet explicação. (...) O espetáculo visual é suficiente, não Eu: A Sra. acha que alguma coisa mudou nos julgamentos em função disso~
sendo necessátias palavras" (Balandier, 1982: 10- I2). 110 Ela: Ah!. .. Ai eu não sei, porque as pessoas são as mesmas, Mas acho que
aqui todo mundo se sente mais importante, desde o momento que chega.
Assim, também, de certa forma, são os fóruns criminais em que estavam É como se houvesse algum poder no ar, entende~
instalados os plenários do Júri, à época da pesquisa, e o novo fórum em Eu: A Sra. poderia explicar melhor~
que hoje todos estão reunidos, no bairro da Batra Funda. De inspiração Ela: .Ah!... Aqui a gente se sente pequeno nesses corredores e parece que o
nitidamente "Niemeyer", este novo fórum é um prédio de grandes pro- mundo lá fora parou. A gente não ouve barulhos, nem sabe se está choven-
porções, de concreto e vidro, com linhas retas moldando seus limites e do ou fazendo sol. Essa história de terem posto ar-condicionado e vidros
escurC?sem tud? também faz a gente se sentir meio estranho, meio isolado.
linhas curvas formando grandes arcadas através das quais há entradas,
Eu: E dentro do plenário? A Sra. sentiu alguma diferença?
saídas e janelas. Circundado por uma grande área asfaltada para esta-
Ela: Por ser tudo novo, moderno, limpinho, parece que todo mundo toma
cionamento de veículos, a qual se reclina como uma praia ao redor de
mais cuidado. Como em ônibus novo, sabe? Quando está tudo brilhando,
uma ilha, da entrada principal se tem uma visão de praticamente todo ninguém suja.
o entorno. Ao longe, em um dos horizontes, erguem..:se prédios altos Eu: E que tipo de cuidado a Sra. percebe que todo mundo está tomando
dos bairros de Higienópolis, Perdizes e Barra Funda e, do lado oposto, dentro dos plenários~
estão as montanhas da Serra da Cantareira. O acesso ao local se dá por Ela: Acho que 1?esmo no fórum velho, quando as pessoas entravam. no
um conjunto de largas avenidas, próximas à Marginal do Rio Tietê, uma plenário, já havia um certo acanhamento: falavam mais baixo, não sentavam
das principais artérias rodoviárias da cidade. de qualquer jeito, não riam. Aqui continua acontecendo isso, mas porque
os plenários são claros, limpos. Parece que tudo está preparado pra cada um
No interior do prédio, que me Contaram ter sido inicialmente planejado agir direito, com respeito, entende?
para abrigar um hospital, corredores largos são denominados "avenidas", e
outros, mais estreitos, recebem o nome de "ruas".Todos são identificados É evidente, na fala da entrevistada, uma associação entre as características
por números e letras. De um grande hall central se erguem rampas em arquitetônicas do novo fórum e o que elas inspiram em quem transita por
ele.A magnirude dos espaços e o fato de serem novos e limpos são perce-

ll~ Especificamente sobre Brasília,verJames Holston, A cidiuie modernista: uma crítica


e sua utopia. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
de Bras/lia
111 Entrevistaconcedida em 2/8/2001.

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~
Jogo, ritual c teatro Júri - Texto etnográfico

bidos como elementos que contribuem para que os ocupantes se sintam, pessoa com trajes mais simples geralmente era barrada ou tomava a
ao mesmo tempo, tespeitados e respeitosos. A forma Como os espaços do iniciariva de se barrar, informando sua identidade, por que estava ali ou
fórum esrão estrururados ganha cerras significados, o que, por sua vez, pedia orienrações.
só ocorre porque neles são ptojetadas lembranças, valores e expectarivas.
No interior dos corredores, continuava visível, através de uma lingUa-
À época da pesquisa, exceruando-se os julgamenros da comperência do gem essencialmenre corporal, a diferença entre quem estava lá por ser
lo Tribunal do Júri, que passaram a ocorrer no novo fórum assim que profissional do Júri e quem estava lá por ser funcionário, réu ou familiarl
. ele foi inaugurado, no final de 1999, os julgamenros da comperência acompanhante. Os réus presos e algemados chegavam de camburão, por
dos oueros eribunais paulisranos do Júri conrinuavam instalados em eneradas privarivas, e eram levados diretamenre para ambienres isolados
prédios dispersos pela cidarle. Tinham em comum a falta de imponência (saletas ou mesmo celas), onde permaneciam vigiados por policiais mi-
e de solenidade; tanto por fota quanro por denrro, esses edifícios não litares, aguardando o início do juigamento.
lembravam tradicionais e pomposos tribunais do imaginário comum.
A maioria dos espaços físicos, especialmente os corredores dos tribunais
Passavam despercebidos na paisagem urbana, e seus corredores e salas
paulistanos do Júri, lembrava "instituições totais" - não por mera coin-
administrativas, pelo que pude observar, não causavam, nos que por ali
cidência, os prédif's do anrigo l' Tribunal e o do novo Fórum Criminal
transitavam e trabalhavam, a sensação de estarem em um espaço especial,
foram concebidos' para abrigar, respectivamente, uma fábrica e um
não profano. Uma sensação de solenidade e mesmo de sacralidade só
hospital. Os próprios prédios comunicavam que ali .havia-algumtipo
se impunha no interior dos plenários, durante os julgamentos, e isso se
de vigilância e que, fosse por certa decadência, fosse pela magnitude e
dava em função do ritual e suas regras, hierarquias:. iJ?terditos e, princi-
palmente, de seu podet sempre em jogo. modernidade, existia um poder que atingia os corpos e neles se mate-
rializava,disciplinando-os e através deles se exercendo (Foucault, 1984).
De um modo geral, esses prédios impessoais rinham aspecto de despo-
Quanto à localização geográfica dos prédios, cabe ressaltar que eles se
jadas reparrições públicas. Em suas entradas, costumava haver um ou
enconrravam em bairros relativamente centrais da cidade, e não em
mais policiais que, dependendo do "jeito" dos visitantes, solicitavam
ponros represenrativos das regiões de competência de cada fórum. Ali-
identificação. Só para testar o "olhar clínico" dos recepcionistas, entrei,
ás, os nomes pelos quais cada Tribunal do Júri eram mais conhecidos
várias vezes, com "jeito de advogada" ou "de estagiária" - roupas contidas
correspondiam aos nomes dos bairros onde se localizavam (Tribunal da
e elegantes, ar compenetrado e preocupado, passo apressado, carregando
Vila Mariana, da Saúde, de Santo Amaro, da Penha, e de Pinheiros), o
maleta e processos -, e só fui barrada uma única vez, ocasião em que
que não favorecia a percepção de uma São Paulo espraiada por vastas
saquei minha carreira da OAB e imediatamente ouvi: "Desculpe, dou-
tora, pode entrar!". periferias. Mesmo o atual Fórum Criminal, que hoje reúne todas as varas
criminais da cidade de São Paulo e abriga a maioria dos julgamentos pelo
Chegar com "jeiro de estudante" - roupas mais despojadas, informais, Júri, é mais conhecido como fórum da Barra Funda. Esses "apelidos",
olhar curioso, pasrinha plástica na mão - significava ficar em uma posição mais do que associados a referenciais geográficos dos locais de moradia
inrermediária de quem pode ou não ser interceptado. Para os homens, de réus e vítimas, indicam espaços familiares a muitos dos profissionais
bastava O uso de terno e gravata para seguirem em frente. Qualquer e jurados de classe média.

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~
Jogo, ritual e teatro

Jltri - Texto etnugl'Mico


Para a maioria dos réus soltos) de seus parentes e das testemunhas, e
mesmo para funcionários menos qualificados dos fóruns, deslocar-se de abertas eram protegidos por grades. Próximos às paredes desse corredot
suas residências para bairros mais centrais da cidade representava tempo havia alguns bancos, bebedouros e lixeiras presas ao chão por pequenas
e dinheiro gastos em mais de uma condução. Conforme me declarou correntes. No andar superior, onde ficavam os oito plenários (de (lA"a
uma funcionária do 3' Tribunal do Júri (Santo Amaro): 1',Morodo lado "H"), várias placas pendiam do teto com a palavra SILÊNCIO. Esses
de uma delegacia, mas levo mais de uma hora pra chegar aqui. Mas tem tetos eram recobertos por canaletas metálicas, pintadas de branco, em
muito mais delegacia do que tribunal, não é mesmo? Policial, bem ou meio às quais luzes fosforescentes permaneciam sempre acesas. As pa-
mal, a gente vê a toda hora. Juiz, tem gente que só vê quando vai pro redes divisórias de vários plenários eram feitas de um Eucatex imitando
banco dos réus ou tem que testemunhar".'" Morar longe dos tribunais, madeira de pinho e vedavam maio som.
mais do que um distanciamento geográfico, talvez possa significar estar
Os oito plenários eram de diferentes tamanhos e, dependendo do nú-
distante da "Justiça", o que, "bem ou mal") conforme declarou a entre-
mero esperado de espectadores) a sessão se realizava nos pequenos, para
vistada, não é a percepção que muitos dos moradores de periferia têm
em relação à presença da polícia. aproximadamente quarenta assistentesj nos intermediários, para mais de
quarenta e menos de cem; ou no maiot de todos, O plenário "H", que
O antigo l' Tribunal Júri, "da Vila Marianà', à época da pesquisa situ- comportava um público de aproximadamente 160 pessoas. Em dias de
ado na rua Afonso Celso, 1065, já era o maior e mais importante dos fortes chuvas, goteiras molhavam vários plenários, tumultuando as sessóes.
tribunais de São Paulo em termos de quantidade de julgamentos e de
Para os julgamentos mais "concorridos", senhas eram distribuídas pelo juiz
repercussão dos mesmos, pois ali eram julgados alguns dos casos mais
president~alguns qias ou mesmo semanas antes. Nessas ocasióes, o "climà'
polêmicos, ainda que fossem da competência de OUtro tribunal, uma
do Tribunal mudava. A rua costumava ser interditada pelo Departamento
vez que era o único em que havia apartamentos para abrigar os jurados
(como permite, hoje, o fórum "da Barra Funda"). de ServiçosViários (DSV) e carros de empresas jornalísticas, rádios e canais
de TV se instalavam nas proximidades. Repórteres e câmeras costumavam
O prédio de Vila Mariana, antes de comportar o 1"Tribunal do Júri, ocupat a calçada diante da entrada principal, e quem desejasse ter acesso
era ocupado por uma antiga fábrica, cuja estrutura mal fora alterada: ao plenário devia lá apresentar sua senha ..Funcionários administrativos,
tratava-se de um grande caixote de cimento, não recuado da calçada, em geral apáticos aos julgamentos, costumavam circular apressados pe~os
circundado por vários vitrôs altos.
corredores que entao ganhavam um ar não profano.
Os corredores do térreo tinham piso com tacos de madeira, envelhecidos Em junho de 1996, OTribunal do Júri de Vila Mariana já era o maior da
e cobertos na parte central por uma passadeira de borracha de cor "vinho- América Latina e contava com aproximadamente 10 mil jurados inscritos.
-sujo-brilhante". AI;paredes eram brancas na metade superior, e creme Graças à boa vontade do juiz presidente, Dr. José Ruy Borges Pereira, e
na inferior. Os altos vitrôs das salas de Setores administrativos dispostas ao Diretor de Serviço José Gustavo Vlhôa Campos, um funcionário foi
ao longo do corredor térreo e cujas pOrtas permaneciam geralmente designado para, seguindo minhas instruções, tabular alguns dados de
uma amostra desse universo. A cada cinquenta fichas, pedi que fossem
registrados o sexo, escolaridade, idade) ocupação) naturalidade e estado
112 Entrevista concedida em 18/3/1999.
civil dos jurados. O resultado da tabulação foi:

-256_
-257- tJ!J..
Jogo, ritual e teatro
Júri - Texto etnográfico

PerfildosJurados do l' Tribunal do Júri de São Paulo, segundo listagem


Essetribunal ocupava o segundo andar de um ptédio que também não se
fornecida pelo próprio Tribunal em 27 de junho de 1996 (amosrraalearória
destacava, me~mo em.meio a algumas casas baixas e, nesse andar, havia
não intencional de 200 fichas em um universo de 10.000)
somente doi'sla~goscorredores paralelos, unidos pelo hall dos elevadores
Sexo Escolaridade Idade e escadas, de um lado, e de outro,. pela grande sala do carrório. Havia
Masc. Femin. lOGro 20 Gr. Super. até 30 de 30-40 +_de 40 dois plenários ("A" e "B") situados em cada um dos corredores, que
NOIAbs. 109 91 10 61 129 32 68 100 preservavam certo ar de anriguidade por terem madeira revestindo a
% 55 45 5 30 65 16 34 50 metade inferior de suas paredes.
Totais 200 (100%) 200 (100%) 200 (100%)
Como todos os funcionários administrativos ficavam na grande sala oposta
Estado Civil Ocupação •. ~ Naturalidade ao hall dos elevadores, a impressão do lugar era de vazia amplidão. Con-
casado solteiro, tunc. Técn. admin.,
separ., púbt.
bancários SP SP Outro tudo, só estive nesse tribunal assistindo a julgamentos pouco concorridos.
comere. e profiss. e profess~ capital inter. estado
viúvo liberais
NOIAbs.
O ediflciodo fórum onde estavalocalizadoo 3'Tribunal (de Santo Amaro),
82 118 26 126 39 137 32 31
% 41
à avenidaAdolfo Pinheiro, 1992, era moderno e mais parecia um complexo
59 13 63 20 69 16 15
Totais 200 (100%)
de escritórios. As dependências do Júri ocupavam os dois últimos anda-
200 (100%) 200 (100%)
houve 4% de outras ocupações - estudantes, aposentados, metalúrgicos.
tes, e os dois plenários ("I" e "I1") ficavam no penúltimo. Os espaços dos
corredores, salasde juízes, ptomotores, advogados, cartório .• dos próprios
plenários e demais dependências eram amplos, limpos, bem iluminados,
A análise deste material e esfotços para atualizar infotmaçç;es, bem impessoaise davam impressãode que não tinham sido totalmente ocupados.
como para consegui-las nos demais tribunais, não se desenvolveram Como havia um vão livre em uma das laterais do prédio e os plenários
devido à ênfase qualitariva que dei à pesquisa a partit de 1999, como estavam, cada qual, de um dos lados desse.vão, das janelas dos fundos
esclateci no primeito capítulo. Contudo, os dados coletados reforçam de um era possível avistar os fundos do outro. Através das demais ja-
ideias cortentes a tespeito do perfil da maioria dos jurados paulistanos: nelas envidraçadas que circundavam todo o prédio, viam-se as grandes
há um pouco mais de homens do que mulhetes compondo as listagens; mansóes dos bairros "chácaras" da região de Santo Amaro; nem sequer
a maiotia possui grau superior, mais de 30 anos de idade, trabalha em se distinguiam telhados em meio ao verde.
áteas técnicas, cometciais ou do mercado liberal e é natural da capital.
Certa tarde, enquanto eu aguardava o início de uma sessão e observava
O 2'Tribunal do Júri, "da Saúde", localizava-se no mesmo quarteirão do essapaisagem, uma simpática funcionária que já me vira algumas vezes
antigo Tribunal da Vila Mariana, porém com entrada pela rua paralela por lá aproximou-se e comentou: "Olhando, ninguém imagina que os
(Rua Joel Jorge de Melo, 424). Sua localização, segundo funcionários, há crimes que chegam aqui vêm das mais de setecentas favelasque estão para
anos era considerada provisória, não só porque sua circunscrição abrangia além desse verde bonito ...".1I3 Aproveitei para comentar: "Mas os jurados
delegacias de polícia da região norte da cidade, como porque também já vêm do verde bonito ...", ao que ela sorriu e acrescentou: "Os juízes e
se falava que todos se concentrariam no novo Fórum Criminal da Barra
Funda, para onde já havia se mudado o l' Tribunal.
113 Conversa ocorrida em 5i3/1999.

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Jogo, rituaJe teatro
Júri -1bxto ctnográfico

todos os doutotes também! Eu é que não venho nem de lá nem de cá".


Mal ela se afastou, anotei cada palavta, .pois se ttatavam de metáforas vogada e pesquisadora", ora como "advogada e antropóloga", ora apenas
definidoras de uma acidentada topografia sociocultural. como ('antropóloga e pesquisadora". Os efeitos, como era de se esperar,
diferiam. A nomenclatura "advogada e pesquisadora" causava melhor
Em outra ocasiáo, essa mesma funcionária já havia me perguntado, du- impacto do que "advogada e antropóloga", e era ainda melhor do que
rante o intervalo de uma sessão, se eu era assistente de algum juiz, pois me "antropóloga e pesquisadora".
vira fazer muitas anotações e, de vez em quando, consultar um código. Ao
saber que eu era "somente advogada e pesquisadora", comentou: "É que, Existe, poreanto, uma hierarquia subjacente a essas reações:ser advogada
às vezes, juízes novos que passam no concurso e ingressam na magistratura é considerado mais importante do que ser pesquisadora e anrropóloga.
vêm assistir às, sessões, e a gente, não sabendo, pode dar algum 'foral». Ser advogada é 'ser "do meio", o que cria uma cumplicidade imediata,
Infelizmente, não houve tempo de eu perguntar a qual gafe ela se referia, enquanto ser pesquisadora é intrometer-se nesse "meio".Ser antropóloga
mas imagino que fosse relativa a formas de tratamento e deferências que, não fazia sentido para boa parte das pessoas, causando estranhamento.
assim como o vestuário e a postura, marcam como verdadeiras patentes Também por várias vezes, nesse tribunal, ao sair do elevador e encami-
quem é quem em espaços judiciais aparentemente anônimos.
nhar-me para um dos plenários, funcionários me perguntaram se eu era
Foi nesse tribunal que comecei a atentar mais para a maneira como as jurada - ocasiões em que não pude deixar de pensar em como seria se eu
pessoas se percebiam e se identificavam nos plenários. e~petialmente tivesse me tornado uma. Porém, mal iniciadas as sessões. reconfortava-me
antes do início das sess6es, quando alguns dos potenciais jurados, a posição de "antropóloga-pesquisadora-advogada" (minha autoclassi.
sentados "na pia teia" se abordavam e entabulavam conversas. Graças a
J ficação, nessa ordem).
essesmomentos de aproximação e bare-papos, tive e criei oporeunidades,
O local em que estava situado o 4" Tribunal do Júri (Penha), apesar de
nesse e em outros tribunais, para conversar com alguns jurados que,
ser um corredor de ônibus, era uma rua estreita, de comércio barato,
invariavelmente, uma vez esclarecido que eu não era jurada mas fazia
muitos pedestres circulando e próxima a uma pracinha. O prédio do
uma pesquisa sobre o Júri, me ('enquadravam" na categoria "es~udante"
e me tratavam com certo ar professora!. fórum, de concreto e vidro, era mais alto que as construções ao redor,
afastado da rua, mas nem por isso se destacava na paisagem.
Alguns juízes, promotores e advogados que reiteradas vezes me obser-
Desde que conheci esse fórum, em 1990, os ascensoristas faziam, entre unia
varam muito atenta anotando tudo em um "caderninho" declararam
"viagem e outrà'. uma espécie de noticiário expresso do que se passavaem
posteriormente ter pensado que eu me preparava para prestar algum
cada andar, comentando depoimentos ou audiências de réus "famosos"el
concurso ou para advogar no Júri. Ao saberem que eu era advogada e
ou "perigosos",resultados de sentenças ..fofocas sobre funcionários e ope-
desenvolvia uma tese sobre o Júri, consideravam-me uma "quase igual",
radores técnicos. Essa prática perdurava à época em que pesquiseio Júri.
o que me fez refletir sobre o.quanto classificar é, de fato, condição sine
qua non para estabelecer relações, pois permite a todos se localizarem, O sexto andar, onde em I 990 se localizava o único plenário, em 1999
seja para criar proximidades ou distanciamentos. dividia sua "importância" com o sétimo, onde estava o segundo plená-
Várias vezes aproveitei esse exercício classificatório, tanto com jurados rio. Apesar da criação desse segundo espaço, era visível a sobrecarga do
quanto com manipuladores técnicos para ora apresentar-me como "ad- tribunal. Todos os seus espaços pareciam pequenos e tumultuados. Havia
grande expectativa. por parte de alguns funcionários, de que ocorresse,

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$'
Jogo, ritual e teatro
Júri - Texto etnográfico

em breve, a mudança das insralações para a Barra Funda, pois, segundo jurados em sigilo, entregaram-me todas as fichas com suas referências.
eles, "lá sim, o trabalho saitá melhor", uma vez que as condições físicas Somente nesse tribunal foi possível ter acesso a elas.1I4
influenciam o "estado de espírito" de quem trabalha, "podendo ajudar
a cansar ou a estimular". Dos cinco tribunais que pesquisei, esse era o único que possuía somente
um plenário e cuja maioria das sessões de julgamento começava pela
Esse 4' Tribunal também tinha apatência de repartição pública, com
manhã (lOh). Nos demais, durante a maior parte de minha pesquisa,
predominãncia de tons cinza nos pisos e paredes. A vista que se tinha
o início costumava ocorrer em torno das 13h30. Um funcionário me
de uma das laterais do prédio era de boa parte do bairro da Penha, que
explicou: "Os jurados, quando têm que vir, perdem mesmo o dia todo
há não muito mais que um século era um dos pontos mais distantes do
de trabalho. Então é melhor que cheguem antes do almoço, antes de
centro da cidade, embora, atualmente, esteja a menos de meio caminho
sentirem fome e sono. Além disso, normalmente podem sair antes do
das periferias mais longínquas, de onde provém a maioria dos casos de
entardecer e nós também. É bom pra todo mundo. Isso aqui cansa, sabe?".
homicídio que chegam ao Júri.

Finalmente, o 5' Tribunal do Júri (Pinheiros), que ocupava o último


andar do fórum, ficava em uma área arborizada e tranquila. A construção ~~
era alta e em estilo moderno, com cimento e vidro. Do cartório do Júri
avistavam-se Pinheiros e Vila Madalena, lembrando a paisagem que se Apesarde aparentemente prevalecer nas sessõesde Júti um jargão técnico-
via do Júri de Santo Amaro. Os funcionários (aproximadamente quinze) -racional, o conjunto de expressões nelas utilizado se baseia em um "vo-
trabalhavam em uma grande sala envidraçada, sem divisórias. cabulário de sentimento" (Geerez, 1978: 317). Vimos que essevocabulário
A primeira vez que visitei o local, em junho de 1997, apresentei-me pode ser especialmente observado no transcorrer das sustentações orais
como "pesquisadora da USP", e isso me valeu um bom tempo de espera de acusadores e defensores, à medida que cresce, em todos os presentes, a
até ser atendida pelo "chefe do carrório". Atrás de sua mesa, havia dois excitaçãodiante da inevitável sentença que absolverá ou condenará o réu.
cartazes: um com uma águia desenhada em um círculo e rodeada pelas
inscrições "United States Navy - Military Sealift Command", e outro no
qual se lia transcrito o "Pai-Nosso" em letras de estilo gótico. 114 No total, eram aproximadamente 1.250 e, a cada visita subsequente, observei-as,
aleatoriamente, até analisar 1/3 do total (411). Quando suspendi a observação e tabulei
Ainda antes de ser atendida, um advogado aproximou-se do local e
os dados, os resultados foram: 49% homens e 51 % mulheres: quase todos ocupando
perguntou-me se eu era a acusada que iria depor. Ao responder que não, funçóes de nível técnico, superior, ou ligadas ao comércio e à administração (96%). Ai;
mostrei-lhe minha identificação de advogada, para testar sua reação. fichas, datilografadas e com correçóes manuais, continham apenas CEp' RG, nome,
profissão, endereço e telefone residencial, endereço e telefone comercial. Por último,
Ele se desculpou, constrangido, e, nesse momento, fui prontamente
constava a filiação. Em conversa com o funcionário responsável pela convocação dos
atendida pelo escrivão, que também constrangido deu-se conta de que jurados, ele me cedeu um exemplar da "Carta de Convocação", que todos os sortea-
eu era "doutora" e começou a me tratar como tal. dos recebiam pelo correio. Era simples, curta, assinada pelo juiz presidente, da qual
destaco os dizeres: "Tenho a honra de comunicar que, nesta data, Vossa Senhoria
Apesar da longa espera, obtive várias informações com facilidade e, na- foi sorteado(a) para servir como Jurado(a) deste Egrégio Tribunal (... ). Conhecendo
quela mesma tarde, com a condição de que eu mantivesse os nomes dos o devotamento de Vossa Senhoria para asSUntos dessa natureza, estou certo de seu
comparecimento no dia e hora aprazados (... )".

-262- -263-
-~
,'-.
Jogo, ritual e teatro
Júri -1exto ctnográfico

Por mais menções que os arguidores façam a provas récnico-científicas e Todavia, parece ser possível afirmar que o Júri se destaca entre outros
por mais que urilizem um jargão jurídico, o cerne de suas argumentações espaços judiciais nos quais leigos não julgam como uma obra imaginativa
se susrenta em sentimentos que, esses sim, serão julgados como mori- especial, pois ela é muito coautoral. A presença de leigos como julgadores
vações legírimas ou ilegírimas para condenar ou absolver réus. Por isso, exige dos operadores técnicos arguições mais ricas em uma ,espécie de
não raras vezes, observamos o caráter secundário de debates sobre se o matriz que combina jargão técnico-jurídico, imagens de uma "sociolo-
réu matou a vítima ou não, passando para primeiro plano a avaliação de gia selvagem" e um vocabulário de sentimento. Por isso, o Júri pode ser
quais emoções estavam envolvidas na morte e quanto elas legitimavam considerado um espaço social privilegiado de produção de significações
(ou não) o aro de marar: amor, ciúme, vingança, indignação, frustração, coletivas. Ele possibilita que pessoas "comuns" entendam, organizem e
medo, rancor, proteção etc.
demonstrem estratégias por meio das quais lidam com a vida e com seus
"Ler" as sessões para buscar o tratamento que foi dado, em cena, aos conflitos mais pungentes. Por não serem filósofas, não pensam a respeito
sentimentos evocados a fim de compreender sua elaboração no Contexto das coisas, mas com as coisas (Darnton. 1986: xiv). A cerimônia do Júri e
dos plenários implicou, portanto, tomar tais sentimentos como compo- as histórias narradas nos plenários sobre traições amorosas, tensões entre
nentes de vários subtextos, cujos significados não são necessariamente parentes e vizinhos, pobreza, favelas.subempregos, tráficos de drogas e de
harmônicos nem necessariamente opostos. O que importa é que o armas são recursos que nossa cultura disponibiliza para que os presentes
conjunto representa tanto a exposição de seus autores a uma situação entendam o mundo e se entendam nele inseridos.
comum de aprendizado senrimemal quanto a possibilidade de cada um Ernografar sessões de Júri romando-as como um dos muiros texros que
sistematizar experiências e torná-las inteligíveis para si e para os outros.
registram aspectos dessa nossa vida plena de conflitos é um recorte pos-
As expressões de cada caso ocorrem dentro de um idioma geral, pefmi- sível, dentre vários outros. Parafraseando Geerrz, trata-se do exercício de
tindo ao anrropólogo classificar sensações e entender fatos a parrir de se posicionar "por sobre os ombros" de réus, jurados, juízes, acusadores,
uma rede mais ampla de significados. A compreensão dessa rede permite defensores e testemunhas para tentar perceber o que eles estão percebendo
pensar a dimensão social de pensamentos e de casos aparentemente parti- (Geerrz, 1978: 321).
culares, conduzindo à percepção da significação de elementos recorrentes
Assim posicionada. deparei com o que considero ser uma luta, chance-
(Darnton, 1986: xvii).
lada pelo Poder Judiciário. cujos alvos são a conquista e a manutenção
No entanro, vale pOntuar que os Júris paulistanos estão longe de ser a constimtes do monopólio de discernir formas legírimas e ilegítimas de
única ou a melhor chave para a compreensão de como o Podor Judiciá- matar. Como este meu trabalho ernográfico não mergulhou nos detalhes
rio elabora significados de morres violentas na cidade de São Paulo, do dessas formas, mas se deteve na percepção da dinâmica da luta, ainda
mesmo modo que brigas de galos não o são em relação à vida balinesa e há muito a ler e a interpretar em relação ao Júri, às histórias que nele se
as touradas em relação ao modo de ser espanhol. Sessões de Júris, brigas contam e aos pormenores da obra imaginativa que se constrói e reconstrói

I.
de galos e touradas enquanto afirmativas culturais podem ser qualificadas nos plenários. a cada julgamento.
ou até desafiadas pelo que também dizem OUtrasafirmativas igualmente
eloquentes (Geertz. 1978: 320).

-264- -265-
!lT
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entre as várias pessoas que entrevisrei ao realizar este trabalho, poucas me


dirigiram perguntas antes, durante ou depois das entrevistas. Certa vez,
porém, uma jurada me questionou: "Desculpe minha ignodncia, filha,
mas o que é, exatamente, uma pesquisa em antropologia sobre o Júri?".115
Essa mulher de 66 anos, negra, funcionária pública aposentada, chamada
Matilde, que mais parecia saída da ala das baianas de uma escola de sam-
ba, tamanha era sua presença alegre e forte, fez-me pensar, de imediato,
que eu estava longe de uma antropologia compartilhada, pois, na maioria
das entrevistas que eu até então realizara, inclusive e principalmente com
profissionais do direiro, eu abordara os entrevistados me apresentando rac
pidamente e logo partindo para uma conversa aparentemente dialogada,
mas não a pOnto de se sentirem à vontade para me devolver perguntas.
Mas. com aquela jurada foi diferente. Ela combinava um ar altivo com
llm semblante sorridente. Não aparentava esrar preocupada em se mos-
trar "sábia. como
\
uma juíza") mas creio que se sentisse assim _ senão,

IH Entrevista concedida na tarde de 20/312001, no Fórum Criminal Ministro Mário


Guimarães, Barra Funda.

-267-
Jogo, ritual e teatro
Considerações finais

não teria iniciado sua pe~gunta com um "Des_~ulpeminha ignorância",


atuariam naquela sessão:116 "Esta é a Dr Ana Lúcia, que, além de ser
para, em seguida, chamar-me de "filha" e colocar-me, simbolicamente,
em seu grande colo. nossa colega, advogada, também é socióloga, ou melhor, antropóloga.
Enfim, ela está escrevendo sua tese de doutorado sobre o Júri e por isso
A resposta completa à pergunta que ela me formulou, em última análise, tem vindo aqui acompanhar várias sessões. Provavelmente, perceberá
são as páginas deste livro, as quais espero que alcancem jutadas e jutados, coisas que fazemos e que nós mesmos nem imaginamos ...". Todos me
profissionais do diteito, da antropologia, de outtas áteas que se voltam olharam com uma simparia desconfiada. "U;n antropólogo é uma es-
para o Júri e mesmo qualquet pessoa que deseje a1argat seu "hotizonte pécie de psicólogo. Quando observa já esrá interpretando e percebendo
imaginativo" a respeito do que "está em jogo" em rituais lúdicos e tea- algo mais, não é mesmo?", completou o juiz. Essa apresentação conferia
tralizados em que se elaboram densas concepçóes sobre vida, morte,. a mim uma identidade que me igualava aos profissionais do direito
sociedade e relações humanas. (advogada) ao mesmo rempo que me diferenciava deles (socióloga, ou
Lembro-me de tet dito a dona Matilde, em tom de brincadeita, set im- melhor, antropóloga).
possível definit exatamente o que é uma pesquisa antropológica sobte o Após os contatos com dona Matilde e com esse juiz, registrei, em meu
Júri, porque pesquisa, antropologia e Júri são termos complexos. Tentei, diário de campo, reflexões sobre a relação sujei:o-objeto, especificamente
todavia, explicat-Ihe que eu analisava o Júri enquanto um jogo, um titual, sobre minha postura, que certamente causava inrerferências nas situações
um teatro, uma espécie de texto literário através do qual são relatados observadas, sem contar o peso que as hipótesés e pressupostos dos quais
modos legítimos e ilegítimos de matat e vivet nesta cidade e em tantas eu partia tinha na condução do rrabalho. O que mais me inquietou, no
Outtas. Depois dessa explicação, balançando a cabeça com expressão entanto, foi a comparação que o juiz fez entre antropólogos e psicólogos.
compenetrada, dona Matilde disse: "É... A gente finge que a vida é mais
Ele distinguiu a antropologia da sociologia e aproximou a primeira da
simples do que é, mas é só fingimento, filha. Todo mundo, na verdade,
psicologia. Penso que ela está ainda mais próxima da psicanálise e da filo-
sabe que isso aqui [apontou para o espaço do fórum], o que tá lá fora [na
sofia, pois essas duas áreas do conhecimento, assim como a antropologia,
rua] e, ptincipalmente, o que tá aqui dentro [apontou para o seu coração]
voltam-se precipuamente para a busca de significações. Nelas, o que mais
é complicado. Ainda bem, né! Assim vocês têm o que estudar [rimos as
importa é avaliar materiais sociais e seus sentidos frequentemente múl-
duas]". A própria dona Matilde respondeu à sua pergunta. Este livro é
tiplos, construídos', atribuídos e distribuídos em interações complexas.
"exatamente" isto: meu modo de recortar o que já foi recortado por ou-
tros. Antropólogos recortam recortes e, com isso, simplificam o que não Em outra oportunidade em que encontrei o mesmo juiz, ele me pediu
tem limites definidos e mostram a densidade daquilo que se apresenta de que lhe explicasse a diferença entre sociólogos e antropólogos. Simplisra,
modo fluido e diluído no dia a dia. Não fosse essemovimento de recortar comentei que sociólogos provavelmente não considerariam o "último
amplitudes e ampliar pontualidades, não existiria antropologia _ nem dos moicanos" um objeto de estudo tão relevante quanto o considera-
jogos, nem rituais, nem teatro, nem textos literários. riam os antropólogos. Por ser o último sobrevivente de um grupo, não
haveria mais, para sociólogos, uma sociedade a observar e a oferecer
Em Outra ocasião, antes do início de um julgamento, fui apresentada da
seguinte forma por um juiz ao promotor, ao defensor e à es.crevente que

IlG 15/8/2001, 12h, sala secreta do Plenário 7, do 111 Tribunal do Júri (Barra Funda).

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~
~ "
Jogo, ritual c teatro Considerações finais
I-
parâmetros de valores e comportamentos. Já os antropólogos estudariam Voltando à pergunta de dona Matilde e lembrando palavras de Lévi-
detidamente esse derradeiro indivíduo por acteditarem que ele carregaria -Strauss, por ele proferidas em uma entrevista em que abordou sua
consigo experiências significativas do extinto grupo, mesmo que fosse trajetória profissional, este livro e toda a pesquisa que o embasa resultam
um "último moicano desviante". O juiz, sorrindo, contra-argumentou: de escolhas não apenas científico-acadêmicas.
"Seja como for, acho que tanto antropólogos quanto sociólogos têm um
Inicialmente,escolhemospor acaso,porque ascircunstânciasde nossacarrei-
modo interessante de abordar o mundo. Nós, do direito, seremos sempre
ralevaram-nosem talou tal di~eçáo, e depois, tambémpor razões "que dizem
seus moicanos, jamais o contrário".
respeitoa afinidadesou antipatiaspessoais.(...)]á sedissemuitasvezes- não
Esse diálogo me fez pensar quem seria o porencial público deste meu seise é geralmenteexato,mas certamenteé verdadeparamuitos de nós - q~e
estudo sobre o Júri. Estaria eu escrevendo para antropólogos? Sociólogos? o motivo que nos levou à etnologia é uma dificuldadede nos adaptarmosao
Profissionais do direito? Também para leigos interessados no Júri? Para meio socialno qual nascemos(Charbonnier, 1989: 13, 14"15).
todos? Que contribuição meu trabalho poderia trazer para essespossíveis Para mim, o conreúdo deste livro traduz o resultado de circunstâncias
leitores? Será que ele poderia extrapolar interesses académicos? profissionais e de razões pessoais, e, especialmente, traduz o fato de que,
Para interessar a antropólogos, sei que não bastam reflexões que demons- apesar de advogada, encontro na antropologia a posição mais confortável
para atuar na área jurídica.
trem, genericamente, com base na literatura da área e com exemplos
. retirados do material empírico, que o Júri é um jogo, um ritual, uma Mas afinal, depois de tanta análise, você acha que o Júri deve ou não
dramatização e um texto cuja lógica e significados podem ser lidos e co~tinuar existindo no Brasil?
interpretados. Qualquer antropólogo, provavelmente;concotda com isso
Evitei respqnder a essa pergunta quase tantas vezes quantas eu a ouvi.
sem necessitar de um livro para se convencer. Contudo, é de se esperar
Nas ocasióe~ em que eu era "inquiridà', normalmente respondia, em
que a maioria dos profissionais do direito demande subsídios teóricos
tom de brincadeira, que antropólogos estudiosos do carnaval ou do
e empíricos para averiguar tais afirmações. Sociólogos, por sua vez,
futebol não saem por aí pregando a continuidade ou o fim desse ritual
possivelmente se perguntem que pontes podem ser feitas entre análises
e desse jogo. Entendem por quê?, petguntava eu a meus interlocutores,
qualitativas e conclusões mais amplas a respeito do papel desempenha-
que, invariavelmente, achavam que eu não queria me comprometer ou
do pelo Júri na administração dos conflitos sociais, ou quais os perfis e
não sabia dar a resposta, mesmo depois de tanto pesquisar o Júri.
trajetórias socioculturais de jurados e operadores técnicos do Júri, bem
como suas consequências quanto ao acesso e à distribuição da justiça. Finalmente, eis minha resposta, sem derivações: Sim! Acho que o Júri
deve continuar existindo no Brasil.
Enfim, uma primeira constatação a que cheguei foi que, ao menos para
fazer deste livro uma antropologia a ser compartilhada com todos esses Penso dessa maneira não por mero "egoísmo antropológico", uma vez
possíveis leitores eu teria de enfrentar um desafio: conseguir justificar que considero o Júri, por tudo O que foi exposto, um dominio privilegiado
a antropologia como uma via bastante adequada para pensar o sistema de manifestações culturais e, portanto, um bom objeto de estudo. Sou
de valores que dá vida e é alimentado pelo jogo, pelo ritual, pelo drama favorável à continuidade do Júri no Brasil- e não entrarei em nenhum
e pelo texto dos julgamentos realizados no Júri. detalhe técnico-jurídico quanto ao formato legal dessa continuidade _
"porqueconsidero as sessóes de julgamento pelo Júri espaços de construção

-270- -271-

~' .-./~
Jogo, ritual e teatro
\ ,

de subjetividades promissores para O surgimento e a disseminação de


possibilidades de melhores condições de vida para mais pessoas.

Justameilte por se ttatarem de obras imaginativas, criadas a partir de ma-


teriais sociais, quanto mais "imaginações" e mais "materiais" interagirem
na criação das sessõesde Júri, maiores as chances, a meu ver, de elas serem
um espaço de reflexão a respeiro de valores socialmente disseminados.
Isso significa que, se ràis valores forem desfavoráveis a mulheres, idosos,
negros ou ourros grupos, as obras imaginativas elabor~das em plenários
POSFÁCIO
retratarão essas discriminações e as trarão à luz, as exporão ao debate,
propiciarão sua inteligibilidade e eventual crítica. Se o material social
terider a enfrentar e superar preconceitos de gênero, de classe, de etnia e
de muitas outras possibilidades de violação de direiros humanos (o que
acredito estar ocorrendo no Brasil), o Júri poderá valer-se de seu espaço
cênico para potencializar esse enfrentamento.

Hoje, não são muitos os réus que, assim como há vinte ou trinta anos, Um bom livro é aquele que, em suas conclusões, aponta para outras
inquietações. No domínio das ciências sociais no Brasil, os estudos sobre
após matarem suas mulheres "em nome da honrà', saem absolvidos e
ovacionados do plenário, embora ainda existam vários casos de absolvição a aplicação da justiça, em suas múltiplas dimensões e áreas sociais de
em razão de o réu ter matado sob "violenta emoção", bem como temos intervenção, ainda não despertaram a atenção e atração que provocam,

Conselhos de Sentença realizados em regiões de graves conflitos de terra a despeiro dos avanços conquisrados nos últimos anos. O acúmulo de
que absolvem capatazes de coronéis agressores de indígenas. conhecimento é ainda modesto e quase sempre restriro ao estudo da
organização interna do sistema de justiça e dos tribunais, às formalidades
Em quaisquer circunstâncias, eu confiaria tão pouco em um Júri exclu-
legais e burocráticas, às tensões entre sistema político e sistema jurídi-
sivamente leigo, sem juízes "togados", sem .Ministério Público e se~ ad-
co, ao contraste entre o mundo idealizado e o mundo real do direiro.
vogados presentes, quanto em um exclusivamente técnico. Do encontro
Conquanto tais questões sejam importantes, alguns estudos no campo
entre leigos e técnicos talvez resulte um ((vocabulário" que possa compor,
da sociologia e em especial da antropologia têm buscado ultrapassar os
de forma inovadora, novos sentimentos e novos preceitos ético-legais.
limites ditados pelas dimensões formais, legalistas e normativas.
Se é "em jogo" e "em cena" que o Júri se faz enquanto instituição social,
Não é de hoje que os Tribunais do Júri têm sido objeto de questiona-
é justamente «em ato" que seus "príncipes" e llsúditos" podem arriscar
mento. Desde o século XIX, alguns juristas e bacharéis se posicionaram
novas formas de governar e legitimar vidas, pois mortes violentas, sejam
contra a intervenção leiga. No período republicano, tais questionamentos
quais forem, sempre seráo, a meu ver, ilegítimas.
permaneceram vivos, ainda que opiniões inteiramente favoráveis à per-
sistência desses tribunais igualmente tenham se manifestado, ora com
ih" mais, ora com menos força. Mais recentemente, ao menos desde o fim

-272-
-273-
e
"li";'
Jogo, ritual e teatro Posfácio

da década de 1970, o crescimento dos crimes e da violência, sobrerudo Nas práticas do Tribunal de Júri constroem-se textos e subtextos que mes-
dos homicídios intencionais, contribuiu para reascender o debate público clam linguagens provenientes de mundos distintos, todavia interligados:
a respeito das políticas públicas penais. Como conter o crime dentro o mundo das leis e da hermenêutica jurídica, acionados pelos operadores
dos marcos do Estado de Direito? No interior desse debate, voltou-se técnicos, e o mundo dos justiçáveis, com seus encantos e desencantos,
a discutir a pertinência do Tribunal do Júri, e com argumentos racio- sentimentos e racionalizações, crenças e desconfianças. A sentença final,
nalistas cada vez mais sofisticados. Muitos argumentam que o crime e espécie de texto em coautoria composto de múltiplos sub textos, deve
a criminali.dade se tornaram mais complexos. organizados em extensas resultar em ,uma síntese na qual as lições aprendidas por todos ganhem
operações transnacionais, envolvendo redes de agentes civis e políticos sua razão'de \er na vida subjetiva de quem quer que seja.
e alcançando os mais diversos ilícitos. Consequentemente, a aplicação
Sob essa perspectiva, o Tribunal do Júti tem mesmo sua razão de ser _
das leis penais ensejam espinhosas questões técnicas, afeitas aos experts
menos, talvez, por suas funções constitucionais e pelas tarefas a que se
- polic}ais e juristas especializados, peritos criminais, médicos forenses.
propõe como instituição de julgamento do que por se constituir em um
Não mais haveria espaço para a intervenção leiga; o Tribunal do Júri teria
espaço de reconhecimento social. Em uma sociedade estruturalmente
se convertido em instituição anacrônica, decadente. obsoleta, incapaz de
caracterizada por agudas desigualdades e rígidas hierarquias, a carência
dar conta dos problemas de lei e ordem nas sociedades contemporâneas,
entre as quais a sociedade brasileira. . de espaços públicos de expressão legítima de sentimentos de justiça e
injustiça e de crítica social faz dessa modalidade de tribunal um palco
Este livro escapa das armadilhas subjacentes ao modo como o debate tem privilegiado. Nele, os desiguais podem relatar experiências, ouvir as
sido conduzido - escapa justamente do propósito recorrente em outros experiências dos outros e instituir um diálogo, mesmo que assimétrico,
estudos e ensaios: o de atualizar velhas questões. O caminho percorrido com as autoridades.
é inteiramente OUtro; introduz rupturas porque busca ler sob os textos
Não rato o que se ouve é entendido como uma lição de vida para qual-
jurídicos e as práticas institucionais de julgamento narrativas literárias,
quer um. Todos saem com a sensação de que ao menos puderam, na
poéticas mesmo, que abordam não as leis penais e as regras processuais em
experiência dos outros, reafirmar seus pontos de vista, mudar maneiras de
si, porém o modo como tais regras traduzem interpretações sociais sobre
pensar, descobrir verdades superiores. Mesmo em silêncio, na condição
os acontecimentos cotidianos que gravitam em torno da vida e da morte.
de espectadores ou em falas autorizadas, na condição de testemunhas ou
Não sem motivos, a investigação se apoiou em eixos não usuais para a justiçáveis, o Tribunal do Júri vem preencher espaços sociais de interlo-
leitura expertdos processos penais: o jogo, o ritual, o drama e as narrativas. cução cuja função deveria ser preenchida por tantas outras instituições
Também por esse motivo, tais eixos não se resumem à condenação ou da sociedade política.
à absolvição. Falam de destinos trágicos, de infortúnios. de parentesco,
das relações interpessoais e intersubjetivas, de amor e traição, de pas- Sérgio Adorno
sado e presente, de conflito e solidariedade, de poder e autoridade, de Professor Titular do Deparcam.ento de Sociologia e Coordenador
Científico do Núcleo de Estudos da Violência (NEY) da USP
respeito e obediência, de trabalho e desemprego e também dos crimes
que assolam o cotidiano.

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-284-
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AGRADECIMENTOS

Desde que defendi minha tese de doutotado, em 2002, transformá-Ia em


livro estava no horizonte e foram vários os incentivos para tanto. Todavia,
certo receio de~ao rever o texto, desconcertá-lo e ter que praticamente
escrever uma nova tese, fez com que o-projeio fosse adiado.

Nesse meio-tenpo, aumentou o número de consultas e referências ao


rrabalh~, assim como de oportunidades para escrever artigos a partir de
algumas de su""' passagens (Schritzmeyer, 2007; 2007a; 2007b), discuti-
-lo em congresms e em bancas e inseri-lo em programas de disciplinas.
Alguns de meu, orientandos também se valeram de ideias da tese para
semeá-las em seus projeros e fazerem-nas ganhar desdobramentos pró-
prios (Fiori, 20G9). Enfim, como seria difícil nomear esse conjunto difuso
de pessoas que com suas leituras e comentários mantiveram aceso meu
interesse pelo tema, registro, aqui, um- especial agradecimento, ainda
que também difuso.

Foi especialmente a partir de 2008 que os julgamentos pelos Tribunais do


Júii voltaram a ocupar local de destaque em meu cotidi:J.l1o de trabalho.
No dia 28 de maio daquele ano, como costumo fazer quando leciono a
disciplinaAntrcpologia e Direito, seja na graduação em ciências sociais,
seja no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, fui
ao Fórum CrIminal Ministro Mário Guimarães (na Barra Funda, em São
Paulo) com os estudantes para assistirmos a uma sessão de julgamento.

-287-
Jogo, ritual e teatro
Agradecimentos

Naquela tarde, terminado um julgamento quettamcotteu das 13h30 às


Não bastasse esse novo e largo horizonte que se descortinou, o qual
17h, alguns de nós permanecemos no lotado plenário ao lado, do qual
me coloca novamente às voltas com os materiais sociais produzidos nos
só saí tarde da noite. O que estava ((em jogo" e "em cena" ali me causou
julgamentos pelo Júri, desenvolvo ainda uma pesquisa com os colegas
tamanho impacto que, a partir de então, retomei e incrementei leituras da Universidade de LiHe 3 ArmeHe Giglio-Jacquemot e Aziz JeUab, na
e debates sobre o Júri.
qual comparamos perfis e experiências de jurados franceses e brasileiros.
Passamos a trabalhar o caso em várias reuniões do Núcleo de Antro- Portanto, é a todas as muitas pessoas envolvidas nesses distintos debates
pologia do Direito (Nadir), por mim coordenado, que começava a se e projetos que também devo o ânimo para publicar este livro. Espero
estruturar naquele ano e que hoje conta com mais de trinta pesquisado- que se sintam contempladas por este amplo agradecimento.
res, e em debates com colegas do curso de letras,"1 dos quais 'rsllltaram Por fim, mas não com menos ênfase, gostaria de agradecer a meus colegas
dois papers apresentados no II Encontro Nacional de Antropologia do do Departamento de Antropologia da USP pelo estímulo para enfrentar
Direito (Enadir), na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas o desafio de ser revisora de meu próprio texto. Sou grata especialmente a
da USP, de 31/8 a 2/9/2011 (Nor, 2011; Fernandes, 2011). Graças a essa Fernanda Atêas Peixoto, José Guilherme Cantor Magnani e Marta Rosa
interlocução, especialmente com pesquisadores de Teoria da Narrativa, Amoroso, da Comissão Editorial, pelas ótimas sugestões que nortearam
acabei participando de um seminátio ("Línguas, Culturas e Literaturas- os ajustes necessários para que a tese se transf.Jrmasse em livro. Como
Diálogos no Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas", mesa- apesar dos dez anos transcorridos entre a defe,. do texto original e esta
-redonda Perspectivas interdisciplinares de estudo da narrativa no Brasil, publicação meu envolvimento com o tema continua grande, certamente
em 27/9/2011) e escrevendo umpaperpara a 28" Reunião Brasileira de não consegui seguir à risca todas as sugestões que me deram, portanto
Antropologia (Schritzmeyer, 2012). As ideias advindas desse "caso" de
assumo que quaisquer ranças indevidos são de minha inteira respon-
2008 também ensejaram alguns dos fios que ora sustentam a urdidura sabilidade.
do projeto "Sujeitos, Discursos e Instituições") em desenvolvimento no
Núcleo de Estudos da Violência {NEV) 118 desde junho de 2011. Concluo lembrando que, sem o envolvimento acadêmico e afetivo de
muitas pessoas no processo de produção da tese, o conteúdo principal
deste livro não teria se etguido e sido lapidado. Creio que já registrei
devidamente meus agradecimentos a todos e todas no trabalho de dou-
111 Houve duas reunióes conjuntas com orientandos(as) e alunos(as) do professor
Jaime Ginzburg, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. Uma
torado, mas reitero-os e destaco três interlocutores que, além do muito
(29/4/2011) em que discutimos o conto "O monstro" (Sant'Anna, 1997: 606-640) que já haviam colaborado, aceitaram também participar deste livro: Paula
e outra (3/612011) em que analisamos materiais relativos a essa sessão de julgamento Montero, minha orientadora no mestrado e no doutorado, que assina
e aos seus respectivos autos.
o prefácio; Sérgio Adorno, um dos examinado:es da tese, com quem há
lI! Este projeto se volta para o estudo de relações entre autoridade, violência e linguagem
a partir de investigações relativas ao problema da constituição de sujeitos de direito, mais de vinte anos realizo pesquisas no NEVe que fecha este livro com
em uma perspectiva multidisciplinar que congrega conhecimentos de antropologia, um posfácio; e John Cowart Dawsey, com quem há mais de dez anos
direito e teoria da narrativa. Com base no estudo de processos judiciais e de textos dialogo no Núcleo de Antropologia, Performance e Drama (Napedra),
jornalísticos arquivados no NEV.USp' estão sob análise discursos de autoridades
institucionais e de outros agentes com elas envolvidos, a fim de se distinguir suas responsável pelo texto sensível e forte elaborado para a orelha. Muito
especificidades e de relacionar categorias jurídicas, antropológicas e linguísticas. obrigada aos três por me presentearem com seus comentários.

.11
-288- -289- &-" .
A coleção Antropologia Hoje é uma iniciativa da Terceiro Nome e do
NAU-USP para a divulgação de trabalhos e ensaios, resultados de pesquisas
emográficas na área da Antropologia voltados à dinâmica cultural e a
processos sociais contemporâneos.

Conselho Editorial José Guilherme Cantor Magnani


(direror) - NAU/USP
Luiz Henrique de Toledo - UFSCar
Renara Menezes - MN/UFR]
Ronaldo de Almeida - Unicamp
Luis Felipe Kojima Hirano
(Coordenador) - NAU-USP

Jovens na metrópole: etnografias de circuitos de lazer,


encontro e sociabilidade

José Guilherme C. Magnani e Bruna Manrese (orgs.)

Detalhado panorama do comportamento e das práticas


culturais de jovens em uma grande metr6pole, destacando
grupos como straight edges, g6ticos, pichadores e baladeiros
e manifestações como o forr6 universitário e as baladas black.
280 pp./16 x 23 em
ISBN 978 85 8755 693 6
2007

Religiões e cidades: Rio de Janeiro e São Paulo


Clara Mafra e Ronaldo de Almeida (orgs.)

Templos, igrejas, catedtais, terreiros e centros de ajuda rece-


bem milhões de fiéis diariamente, convivendo em meio à di-
nâmica metropolitana das duas maiores cidades brasileiras. A
antologia disseca a singular relação entre o sagrado e o urbano.
248 pp./16x23cm
ISBN 978 85 7816 049 4
2009

~
Cultura surda: agentes religiosos e a construção de uma Ciências na vida: antropologia da ciência em
identidade - perspectiva
César Augusto de Assis Silva Claudia Fonseca,FabiolaRohden e Paula Sandrine Machado
(orgs.)
O livro insere o leiror na comunidade dos falantes de libras
e explora as relações entre atividades missionátias ctistãs, a O crescente interesse da antropologia por ciência e tecnologia
consolidação de um movimento social surdo, a constituição é discutido nessa coletânea por diferentes abordagens, escalas
de um mercado vinculado à libras e a construção de um campo. de análise e contextos empíricos, nacionais e transnacionais.
acadêmico que confere legitimidade a essa língua. 312pp. 114 x 21 em
248pp./14x21 em ISBN 978 85 7816 098 2
2012
ISBN 978 85 7816 097 5
2012

Da periferia ao centro: trajetórias de Imagem-violência: etnografia de um cinema provocador


pesquisa em Antropologia Urbana Rose Satiko Gitirana Hikiji
José Guilherme C. Magnani
A relação especular entre antropologia e cinema é o pOnto de
O autor reconstitui linhagens e trajetórias de etnografias nas,~ partida para a etnografia de filmes que nos anos 1990 provo-
metrópoles e apresenta suas categorias de análise, demons;t caram as plateias de todo o mundo com imagens em que a
,
(rando a relevância e a atualidade desses estudos no quadro~:! violência é simultaneamente tema e forma, imagens-violência.
teórico e metodológico da Antropologia Urbana .' 200pp./14 x 21 em
ISBN 978 8.5 78161026
352pp./14 x 21 em
2012
ISBN 978 85 7816 096 8
2012

Transnacionalização religiosa: fluxos e redes PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO


Ari Oro, Carlos Alberto Steil e João Rickli (orgs.)
Peregrinações, missões, migrações e deslocamentos humano~~? ;de contexto: as ficções persuasivas da antropologia
.)i
religiosos, bem como ideias, valores, imagens e crenças quCflj) Iyn Strathern, com comentários de M. RCrick, Richard Fardon, Elvin Hatch, 1.
pessoas carregam consigo em seus trajetos transnacionai~ '. '.e, RixPinxren, Paul Rabinow,Elizabeth Tonkin, Srephen A. Tyler e George E.
são analisados pela complexa trama de cruzamentos e sciJ ,;seguidos de resposta da autora.
breposições, em que alianças, mas também conflitos, sã(
estabelecidos. ;aio, Marilyn Strarhern questiona o pós-modernismo. Ao analisar duas
fundantes na história da disciplina - de Frazer a Malinowski e do moder-
208pp./14 x 21 em
ISBN 978 85 7816 093 7 :áÕS pós-modernos -, a autora discute o papel da escrita antropológica na
2012 \lÇáodos contextos de sua auto-legitimação. Uma reflexão profunda, seguida
com intelectuais renomados.
IJ~~

@
Visão de jogo: antropologia das práticas esportivas
'H'J" Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos
Luiz Henrique de Toledo e Carlos Eduardo Costa (orgs.) Michel Agier
Estilos de jogar, escolinhas de futebol, Buxo de jogadores para
O livro é o resultado de pesquisas etnográficas feitas em con-
o exterior, torneios universitários e sociabilidade esportiva são
textos urbanos diversos. Lugares, situações e movimentos são
alguns dos temas tratados nos dez ensaios deste livro.
três modos de entrar na cidade, janelas de observação para co-
280 pp, 116x23 em
nhecet, de forma dinâmica, a sua vida e pensá-la teoticamente.


ISBN 978 85 7816 043 2
2009 216 pp./14 x 21 em
ISBN 978 85 7816 077 7
2011.

A Igreja Universal e seus demônios: um estudo


Reminiscências de quilombos: territórios da memória


etnográfico
em uma comunidade negra rural
Ronaldo de Almeida
Marcelo Moura Mello
o livro reconstitui histoticamente o crescimento espetacular
R[MINISC[NCIAS
~~~~,~~~9~!?~
A trajetória histórica e a formação territorial da comunidade
das igrejas neopentecostais no Brasil. Além das associações
negra rural de Cambatá (RS), traçada a partit das narrativas,

~t~ó!
que faz entre política e religião, um de seus pOntos altos é
visões e experiências de homens e mulhetes do local em
a dramática descrição ernográfica do rirual de exorcismo,
distintos contextos.
acompanhado e vivido por todos os presentes nos cultos.
272pp./I4 x 21 em
152pp. J 14 x 21 em \, ISBN 978 85 7816 087 6
ISBN 978 85 7816 034 O 2012
2009

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t<OJL . Junto e misturado: uma etnografia do PCC
~ ri Cultura, percepção e ambiente:
",1 'c ' Karina Biondi . CULTURA, diálogos com Tim Ingold
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universo p'ouco conhecido, controverso e impossível de
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Carlos Alberto Steil e Isabel Cristina de Moura Carvalho (orgs.)
O livro insete o leitot na comunidade dos falantes de libras
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• ""]'i "'" pela narrativa hábil da autora, que mescla relato depresos, sua I.''/''
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experiência pessoal entre os muros da prisão e os instrumentos ;{;P .' e explora as relações entre atividades missionárias cristãs, a
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um metcado vinculado à libras e a construção de um campo
-" ~. 248pp, 114 x21 em
ISBN 978 85 7816 052 4 acadêmico que confete legitimidade a essa língua.
2010 240pp. 123 x 16 em
ISBN 978 85 78160906
não é çomercializa4o
2012
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