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NHLAMALISSO WAKA MUYOTCHA

(Armando Nenane)

A HISTÓRIA DE UMA MANCHA CONGÉNITA


ROMANCE AUTOBIOGRÁFICO

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Aos meus filhos Evgueni e Evilásio

À Julieta Pacheco, minha doce chinesinha

Aos meus pais Martins Zolanga Nenane e Refa Helena Machado Langa

Aos meus irmãos Pedro, Gito, Corina, Matilde, Estêvão, Tomás e Romão

Aos meus primos e primas, amigos e amigas e ao povo moçambicano

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- Nasci assim mesmo. É uma mancha congénita. Não tem cura. Podes repetir isso?

- Sim, mamã. Posso. Nasci assim mesmo. É uma mancha congénita. Não tem cura.

- É isso mesmo que deves dizer sempre que alguém te perguntar sobre a tua mancha, ouviu filho?

- Sim. - respondi. - Ouvi, mamã.

- Consegues repetir, filho?

- Sim, mamã. Vou repetir. Nasci assim mesmo. É uma mancha congénita. Não tem cura.

- Muito bem. É assim mesmo, meu filho. Agora vai para a escola. Não tenhas medo.

E assim a minha mãe me ensinou a andar com essa resposta na ponta da língua desde o primeiro
instante em que notou que eu começava a ganhar consciência de que era um menino “diferente”
dos outros meninos, porque tinha uma mancha congénita no rosto, de que os médicos lhe haviam
garantido logo após ao meu nascimento que não se tratava de uma doença propriamente, mas sim
de uma deficiência causada pela falta de melanina, uma célula responsável por produzir a
pigmentação da pele, que não tinha cura.

No hospital, tinham dado recomendações sobre a necessidade de evitar me expor ao sol, bem
como evitar a água da praia, porque a água salgada na minha mancha congénita fazia a pele secar
e começar a se descascar, mas aquilo era impossível, porque naquele tempo íamos em marcha
suburbana a praia da Miramar a pé, cortávamos a Mafalala, depois entrávamos pela
Malhangalene, tsemavamos descalços ndzene Kenneth Kaunda, trepávamos os coqueiros,
arrancávamos os cocos, até chegarmos em casa de Afonso Dhlakama, chamavam Maringue e
agora é uma paragem famosa, ali descíamos as barreiras, bala, rali, mar a vista. Era correria.

Nos canhoeiros das barreiras arrancávamos matomanas para firridjelar com tio Macamo, que
tinha ideia e gostava muito de fumar cigarros. Eu que era proibido de me expor ao sol havia
mesmo de deixar de me misturar com outras crianças cujas brincadeiras eram sempre feitas
debaixo do sol? Brincávamos de papagaios, brincávamos de chitxopatxopa, brincávamos aos
cowboys e índios, lembras-te dos cara-palidas? Brincávamos aos pinos, até lá no montanhene
fomos dar piruetas, mortais e kadjangos, lembras-te? Talvez já não te lembras dos rolamentos, o
nosso pai acabou fazendo um de ferro lá no laboratório da engenharia quando viu que aquele de

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madeira andávamos a partir com Gochi, Mundinho e Valdo lá na Munhuana ou ali no centro de
formação de professores, até vovó guarda nos mandar embora ou até colidir com um obstáculo,
um dia acabei partindo o dente, com o Gochi a me empurrar.

Em casa, ninguém falava da minha mancha. Era uma espécie de tabu. Nem os meus pais, nem os
meus irmãos mais velhos tinham o hábito de falar da mancha, a fim de que não me causassem
qualquer tipo de constrangimento. Mas se em casa ninguém falava da minha mancha para que eu
nunca me sentisse como se fosse uma pessoa diferente das outras pessoas, o grande desafio
começara a surgir logo nos primeiros anos de escola, onde haveria de me confrontar com outras
crianças que nunca haviam visto alguém com uma mancha igual no rosto. É no meio de outras
crianças que aprendi sozinho que a resposta que a minha mãe me havia ensinado a dar a quem
me perguntasse sobre a mancha, segundo a qual "nasci assim mesmo, é uma mancha congénita,
não tem cura", não haveria sempre de ter utilidade. Por mais que a minha mãe quisesse ter me
ensinado tudo, o facto é que antes de eu abrir a boca para esclarecer qualquer coisa sobre a
minha mancha aos outros meninos da escola, já eles mesmos haveriam de ter tratado de me
atribuir os nomes que tivessem achado que me seriam equivalentes. E não eram nomes
agradáveis, eram nomes de gozação, enquanto outros meninos punham-se a rir.

É na Escola Primária da Munhuana, onde ingressei na primeira classe com seis anos de idade,
que desenvolvi sozinho as primeiras técnicas de lidar com situações constrangedoras que me
eram causadas por outros meninos que gozavam comigo pelo facto de ser aquele menino
estranho que tinha uma mancha no rosto. O meu instinto de defesa, as minhas habilidades e
técnicas foram se desenvolvendo nos anos seguintes, basta imaginar o processo de crescimento,
o que poderia ter sido aos sete anos na segunda classe, aos oito anos na terceira classe, aos nove
anos na quarta classe, aos dez anos na quinta classe, aos onze anos na sexta classe e aos doze
anos na sétima classe, durante todo esse tempo fui me transformando num profissional na gestão
de todo o tipo de amigos, incluindo aqueles que se aproximavam de mim porque achavam-me
um menino frágil que deviam proteger dos que se aproximavam de mim apenas para gozcomigo,
passando pelos que tinham bons modos para perguntar o que eu tinha no rosto aos que apenas se
habituavam comigo. Foi nesses anos que aprendi sozinho a nunca mais chegar em casa e
apresentar relatorios sobre os nomes que me eram dados pelos outros meninos na escola, porque
a minha mãe acabava ficando chateada comigo, como se eu não tivesse aprendido a lição sobre

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como devia responder, tal como me havia ensinado desde o início, que eu nasci assim mesmo,
que era uma mancha congénita, que não tinha cura, mal sabia ela que antes que eu pudesse abrir
a boca para dar tal explicação, já outros meninos explodiam em gargalhadas de partir as costelas
e omoplatas porque os mais atrevidos não se cansavam de gozar comigo dando-me os mais
diversos nomes por causa da minha mancha.

Muito cedo aprendi a evitar chegar em casa dar o relatório dos nomes com os quais outros
meninos gozavam comigo, até porque em casa falar da minha mancha era tabu, um assunto
completamente proibido. Porque a minha mancha no rosto parecia o mapa de Moçambique, esse
foi um dos primeiros nomes com os quais desde os primeiros anos de escola tive que aprender a
conviver: "Mapa de Moçambique". Há dias que chegava mesmo a negar de ir a escola, porque
tinha medo desses meninos maldosos, mas os meus pais me arrastavam até lá, onde iam me
deixar aos cuidados intensivos dos professores, a fim de que eu não fugisse. Tinha que aprender
a enfrentar o mundo assim mesmo. A me chamarem de "Mapa de Moçambique", eu a chorar
todos os dias, até me habituar e isso não ser mais novidade para ninguém.

Mas havia um outro problema. Quando já pensava que me tinha habituado a me chamarem de
"Mapa de Moçambique", eis pois que um dia um menino descobriu um novo nome: "Mapa Cor-
de-Rosa". O nome me havia sido dado por causa da história da conferência de Berlim, onde se
discutiu a partilha de África. Tive muita vontade de correr para o colo da minha mãe para chorar
pelas dores causadas pelas risadas dos colegas por causa do meu novo nome, mas nessa altura eu
já sabia que a minha mãe não havia de sentir o que eu sentia, muito pelo contrário, acabaria por
se chatear comigo, porque na cabeça dela, já havia me ensinado tudo, que eu devia responder aos
outros meninos que eu nasci assim, que era uma mancha congénita, que não tinha cura, o que
para mim seria uma autêntica perca de tempo.

Terminei assim mesmo a escola primária. No ano seguinte, tive que enfrentar um novo desafio.
A Escola Secundária de Lhanguene seria por si só um assunto novo, porque até então tinha
passado a minha vida toda na Escola Primária da Munhuana. Na Lhanguene teria que enfrentar
um novo ambiente, onde o que eu mais temia era a forma como os meus novos colegas haveriam
de me tratar, sendo eu um rapaz diferente, com uma mancha no rosto. Tudo o que a minha mãe
havia me ensinado, que eu nasci assim mesmo, que era uma mancha congénita, que não tinha
cura, não tinha utilidade prática para lhe dar com os ataques dos outros meninos.

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Logo ao chegar na escola, no início das aulas, afinal seria saudado por aqueles que já me
conheciam, porque afinal tinham sido transferidos comigo da escola primária para a secundária,
justamente para a mesma turma, como se não bastasse:

- “Mapa Cor-de-Rosa”.

E eu respondia, retribuindo:

- “Mapa Cor-de-Rosa”.

E outros:

- “Mapa de Moçambique”.

E eu:

- “Mapa de Moçambique”.

E tudo ficava bem. Ficava bem pelo menos comigo e aqueles com os quais estava habituado a
lidar com eles desde a escola primária, os quais se me chamassem "Mapa de Moçambique" ou
"Mapa Cor-de-Rosa" em jeito de gozação, eu lhes retribuía com o mesmo tratamento,
transformando a gozação numa espécie de saudação, como se de uma forma de nos saudarmos se
tratasse, o que eu havia comprovado ser um excelente método para lidar com a situação para não
ter que fugir da escola.

Mas tinha um problema. Os novos colegas, que vinham de outras escolas diferentes dos que
tinham vindo comigo da Munhuana. Foram estes que vieram me baptizar de novo, com novos
nomes, uma nova situação com a qual tive que aprender a lidar com ela, embora já tivesse
aperfeiçoado algumas habilidades para lidar com a situação, mas um novo nome, apesar de ser
novo, traz novos desafios, sobretudo porque sabia que seria sempre um processo muito longo
transformar o que começava por ser primeiro uma simples gozação numa simples forma de
saudação entre amigos.

Foram muitos os novos nomes.

- “Olho branco”.

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E eu respondia:

- “Olho branco”, tudo bem?

E ele:

- Não, “Olho Branco” és tu.

E eu:

- Sim. E eu estou a responder.

Quando eu já pensava que me tinha habituado a ser "Mapa de Moçambique", "Mapa Cor-de-
Rosa", "Olho Branco", eis pois que vinham outros com novos nomes:

- “Pintex”.

E eu:

- “Pintex”. - respondia.

Tinha que ser rápido a perceber, mas também rápido a responder, a fim de que não desse tempo
suficiente para que tal gozação tivesse um forte impacto no seio dos colegas e se transformasse
apenas numa forma de saudação entre velhos camaradas. O nome "Pintex" me tinha sido dado
por causa da publicidade de uma marca de tintas. Mas quando eu já estava habituado a esse
nome, tive mais tarde que enfrentar um novo problema. Tinha surgido uma nova publicidade, de
uma nova marca de tinta, que se chamava "Robbialac".

Uma nova marca de tinta, um novo nome que eu ganhei.

- “Robiallac”.

E eu respondia:

- “Robiallac”.

Tranquilamente.
Era tão tranquilo assim? Não. Como havia de ser? No fundo, no fundo, ainda que eu tivesse
aprendido a transformar tais nomes que me eram atribuídos por simples gozação em formas de

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saudação entre velhos amigos, eu sabia que na verdade não se tratava de saudação nenhuma, mas
sim de gozação transformada em saudação, apenas para não ter a massada de explicar que eu
nasci assim, que é uma mancha congénita, que não tem cura, como a minha mãe me havia
ensinado desde os primeiros momentos em que eu comecei a perceber que era uma pessoa
diferente das outras pessoas por causa da minha mancha no rosto.

Havia de ser tarefa fácil? Não. Como haveria de ser? Ser diferente nunca foi tarefa fácil para
ninguém. Na verdade, se tivesse me sido dada a chance de escolher, teria escolhido que a minha
mancha tivesse sido colocada em qualquer outra parte do corpo, mas não justamente no meu
rosto, logo no meu rosto. Porque a minha mãe ficava chateada, caso eu me atrevesse a apresentar
o relatório dos nomes que me foram sendo dados ao longo da vida, ela nunca soube que eu lá na
escola me chamavam "Mapa de Moçambique", "Mapa Cor-de-Rosa", "Olho Branco", "Pintex",
"Robiallac" e outros tantos nomes, entre muitos dos quais hoje, passados tantos anos, já não me
recordo. Lembro-me que cheguei a ser chamado de "Murdock", que era o principal inimigo de
McGiver, da série com o mesmo nome. Não me recordo muito bem do que lhe tinha acontecido,
mas acredito que Murdock teria ficado com uma enorme cicatriz no rosto, por conta da explosão
de uma bomba inventada por Mcgiver para poder fugir dele.

Tinha quinze anos quando chumbei na nona classe. Tive que repetir no ano seguinte, já com
desasseis anos. Na minha família, chumbar de classe era muito anormal, senão mesmo estranho,
o que muito aborreceu os meus irmãos mais velhos, que nunca haviam chumbado na vida. Foi
para mim um ano de muita tortura, porque me foi imposto um regime rígido, por via do qual tive
que me dedicar muito aos estudos para poder recuperar o tempo perdido.

O que os meus mais velhos nunca souberam, são as razões pelas quais eu havia chumbado de
classe. Eu também não compreendera na altura, mas hoje, passados todos estes anos, consigo
perceber exactamente o que tinha acontecido. Embora tivesse desenvolvido as minhas próprias
defesas para lhe dar com os nomes que me eram dados pelos outros rapazes em jeito de gozação,
transformando a gozação em saudação, havia um departamento para o qual nunca antes tinha
sido preparado. O departamento feminino. Para fazer parte do grupo, era necessário saber falar
das raparigas, mas como eu havia de falar das raparigas se tinha medo delas? Como eu não
haveria de ter medo delas, se o maior medo que eu tinha era justamente a forma como elas
haveriam de encarar os meus engates, logo eu que era diferente dos outros rapazes porque tinha

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uma mancha no rosto? No ano anterior, tinha tido a minha primeira tentativa de me aproximar de
uma rapariga, o que foi para mim uma experiência traumatizante que viria a marcar toda a minha
vida. Essa rapariga ficou chateadissima com a minha abordagem, de tal sorte que acabou
cuspindo na minha cara, enquanto gritava:

- Não fala comigo. “Mapa Cor-de-Rosa”!

E eu me afastei dela. Na verdade, não foi somente dela que me afastei. Afastei-me do mundo.
Fugi de tudo e de todos. Enquanto os outros rapazes falavam de raparigas, eu já nessa altura
queria falar apenas de livros, porque passava mais tempo em casa, fechado, a devorar os livros
que o meu pai havia coleccionado na estante. Foi por isso que chumbei na nona classe.

No lugar de estudar as matérias escolares, passava mais tempo a ler livros, o que embora tivesse
sido importante para desenvolver o meu gosto pela leitura, tinha sido um enorme desastre para as
disciplinas de física, química e matemática. Por isso chumbei na nona classe. Andava ocupado a
devorar os livros de Luís Vaz de Camões, Miguel Torga, Antero de Quental, Fernando Pessoa e
outros tantos que continham alguns textos de motivação para a leitura da obra integral como os
de Sofia de Mello Breyner Anderson, Pinheiro Chagas, Eça de Queirós, entre outros.

Muito cedo comecei a me fechar nos livros porque o mundo era muito violento comigo por ser
diferente, porque me davam nomes que eu não gostava, mas tinha que suportar, desde a escola
primária até a escola secundária, desde "Mapa de Moçambique", "Mapa Cor-de-Rosa", "Olho
Branco", "Pintex", "Robiallac", "Murdock", "Cicatriz", "Cara Queimada", entre outros.

E assim fui crescendo, com diferentes nomes que me foram sendo atribuídos ao longo da vida, os
quais foram marcando cada um deles as diferentes fases da minha vida, correspondendo cada um
deles a uma história concreta que terá moldado a minha personalidade, o meu carácter, a minha
forma de ser e estar, as minhas atitudes, as minhas emoções, a minha alma e o meu espírito. Se
bem que eu fui crescendo a achar que era a única pessoa diferente de outras pessoas na face da
terra, ao longo do tempo fui aprendendo que todas as pessoas eram diferentes umas das outras.

Tive a melhor família do mundo, a melhor mãe do mundo, de tal sorte que ainda que eu tenha
aprendido cedo que a resposta que ela havia me instruído a dar para quem tivesse o atrevimento
de me perguntar sobre a minha mancha no rosto, segundo a qual "nasci assim, é uma mancha

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congénita, não tem cura", não era a melhor resposta para escapar do impacto causado pelos
nomes que me foram sendo dados apenas por gozação, era a resposta mais verdadeira, mais
honesta e mais sincera.

Não imagino o impacto que sofre uma mãe quando logo após o parto se confronta com um bebé
diferente, daí que tenho uma consciência extraordinária daquilo que uma mãe representa, bem
assim como há-de ter sido tão difícil para a minha mãe me ensinar todos os dias da sua vida a
encarar o mundo com consciência de que eu era uma pessoa diferente das outras pessoas.
Primeiro, nasci assim. Igual a você também, que nasceu assim como nasceu, como qualquer
pessoa. Porque cada pessoa nasce assim como é, diferente de outras pessoas. Segundo, é uma
mancha congénita. Muito cedo aprendi a falar bom português. Foi a minha mãe que me ensinou.
Tinha que saber explicar muito bem a quem quisesse saber o que é isso que tens no rosto. É uma
mancha congénita, ou seja, uma mancha que nasci com ela. Terceiro, não tem cura. É que a
minha mãe conseguiu prever que muita gente haveria também de querer saber se tem cura. É
impressionante como a minha mãe, que não tem muito estudo, conseguiu me ensinar tudo isso, o
que eu aprendi de cor e salteado desde quando eu comecei a balbuciar as primeiras palavras. Foi
necessário passar por muitas fases para eu poder hoje compreender o que ela pretendeu alcançar
quando me ensinou a dizer que nasci assim, é uma mancha congénita, não tem cura. É um código
que somente consegui descodificar graças às diferentes fases porque passei ao longo da vida. A
minha mãe é uma cientista. Não era para eu decorar, como se decoram os apontamentos na
escola. Era para eu saber, a partir da experiência vivida. Nasci assim, é uma mancha congénita,
não tem cura. E ainda que um dia alguém pudesse descobrir a cura, o que a minha mãe quis me
ensinar desde pequeno é que eu não deveria me preocupar com isso, com tantas doenças com as
quais os cientistas deveriam ter que se preocupar, não haveriam de passar a vida a ter que se
preocupar em inventar uma cura para mim, que era um caso raro, senão mesmo único.

***
O primeiro génio que eu tive o privilégio de conhecer e que muitos que o conheceram e também
com ele conviveram irão saber reconhecer a espécie, é nada mais nada menos que o meu falecido
irmão: Martins Miocho Nenane.

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Era uma pessoa extraordinária, que gostava de rock.

Por culpa dele aprendi a cantar todo o álbum “The Wall”, dos “Pink Floyd”, afinal ele tinha
todas as músicas escritas num caderno que tinha dado como titulo "DA FAMA AO CAIXAO",
mas também os “GUNS N ROSES”, “AC/DC”, “NIRVANA”, “MEAT LOAF”, “DIRE
STREETS” e outras tantas bandas de rock num volume de cassetes e que influenciaram muitos
jovens nos finais dos anos 80 e durante toda a década 90.

Quando digo que era um génio, digo-o de tal forma que me faltam palavras para o descrever na
sua tamanha genialidade, basta imaginar que gostava tanto de ser rockeiro que arranjou logo uma
maneira de fazer tatuagens com um palito de fósforo no seu próprio corpo e nos corpos dos
amigos, quando ainda as máquinas de tatuagem não haviam entrado no nosso mercado.

Ninguém haveria de acreditar que ele se tornou médico no dia em que um amigo teve um
acidente, no qual ficou com a orelha solta. O génio não se fez de rogado, sem qualquer tipo de
recomendação médica, pegou numa linha e numa agulha e começou a cozer a orelha do homem,
a sangue frio, o que deixou toda a malta da zona espantada e a bater palmas, de tal sorte que
alguns meses mais tarde a orelha daquele jovem amigo estava sarada e tinha voltado a
normalidade. Com esse feito, o génio ganhou a alcunha de Dr. Nenane, como se de um médico
se tratasse.

O génio gostava de pequenas travessuras desde a adolescência. Tinha muito gosto de infligir a
lei. Não raras vezes entrou numa sala de exames para fazer exame em nome de um amigo ou de
alguém que lhe contratou em troca de algumas moedas para comprar uma garrafa de uísque para
beber com os amigos. Muitos velhos amigos que hoje se encontram na polícia, nas alfândegas,
nos ministérios e outras unidades laborais não seriam capazes de contar como graças a ele
ingressaram nessas instituições, tanto por dar aulas de explicação a quem tivesse paciência de
estudar, quanto por via de uma travessura, como entrar numa sala de exames e fazer exame de
outra pessoa ou mesmo atribuindo um certificado de habilitações literárias que ele descobrira
uma forma de fazer para ganhar algumas moedas.

Se estivesse vivo não haveria de contar, mas já falecido, sei que ninguém irá prendê-lo. Na
verdade só era detido de vez em quando, porque gostava muito de brigar com outros jovens,
sobretudo quando estivesse sob efeito do alcool e de algumas substâncias psicotrópicas que tanto

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gostava de andar a ingerir, mas em todo o resto era capaz de dizer que era um pequeno infractor
profissional, para quem todas as infracções ocorriam no âmbito escolar e académico.
Muito cedo ingressou na Faculdade de Economia da Universidade Eduardo Mondlane, onde
frequentou o curso até ao terceiro ano. Do nada, abandonou o curso. Deve ter sido atraído pelas
substâncias proibidas. É daquelas coisas que nos acontecem na vida sem sabermos as razões, o
que mais tarde se transformou numa autêntica frustração para ele. Incrivelmente, durante todos
aqueles cerca de cinco anos em que ele abandonou a faculdade de economia, não sei porque
carga de água, ele sempre repetiu que "eu vou ser economista".

Nessa altura, já tinha virado um pequeno consultor de tudo e mais alguma coisa. Por conta do
reconhecimento que grangeara no seio dos colegas na faculdade, já muitos vinham em casa lhe
pedir para lhes ajudar com as monografias, que ele marcava o preço. Não só fazia monografias
na economia, como também já se aventurava para as teses de licenciatura em história, português,
geografia, administração, recursos humanos e outros cursos, em troca de algumas moedas que
lhe serviriam para comprar um uísque e algumas substâncias psicotrópicas, que tanto gostava,
mas cujo preço a pagar viria a ser muito, mas muito alto.

Foi durante esse tempo em que vivia se remoendo por ter abandonado o curso de economia que
acabou se tornando um potencial quadro do Ministério do Interior, como qualquer cadete que
ingressa na Academia de Ciências Policiais (ACIPOL). Foi ele que inaugurou aquela academia,
ao fazer parte do primeiro curso, não necessariamente porque tivesse falta de emprego ou então
porque alguma vez tivesse sonhado em ser polícia, mas apenas porque precisava de um refúgio.
Por causa do regime de internato da ACIPOL, ele acreditara que lá poderia se esconder da
pressão social que ele sentia, assim como das bebidas e das substâncias que tanto gostava de
consumir. Não sei como isso foi possível, mas ele conseguiu permanecer na ACIPOL durante
sensivelmente três anos, tendo abandonado o curso quando já estava no terceiro ano.
O seu sonho era ser economista. "Não quero ser polícia", dizia ele, como um homem perdido que
tinha voltado a se reencontrar.

Num certo dia, ficamos assustados em casa quando homens fardados apareceram a procura de
Martins Miocho Nenane, a quem chamavam de Xerife. Na verdade, estavam a procura dele para
lhe pedir para que não abandonasse o curso, uma vez que já estava no fim, alegando eles que ele
era "nosso colega, mas também nosso professor".

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Na verdade, era um homem inconstante, que não conseguia permanecer muito tempo no mesmo
sítio, muito menos haveria de ser muito dado a essas coisas de cumprir ordens, bater
continências, de mando e obediência, quando nos contava sobre como eram os seus instrutores,
aquilo virava um teatro, que ele depois ficava a rir, dizendo que "ser polícia é mesmo uma
porcaria", imitando os instrutores teatralmente. Mas apesar de haver abandonado a ACIPOL, não
há dúvidas que a academia de ciências policiais lhe tinha feito muitíssimo bem. Tinha se
transformado num homem um pouco mais disciplinado comparativamente ao que tinha sido
antes de lá ingressar, de tal sorte que se aventurou para o posto administrativo de Mapai, distrito
de Chicoalacuala, onde foi se exilar durante cerca de um ano, a dar aulas, numa escola
secundária.
Passado um ano de exílio, regressou a cidade. Estava decidido a cumprir com o seu sonho. Ser
economista. Regressou a Faculdade de Economia da Universidade Eduardo Mondlane, onde
recuperou as cadeiras do terceiro ano, depois fez as do quarto, depois defendeu. Terminou o
curso de Economia, a verdadeira paixão da sua vida. Talvez se não lhe tivesse sido infundida
alguma disciplina na ACIPOL, não teria conseguido terminar o curso de Economia, digo isso
pelo tipo de pessoa que era, inconstante.

Mais tarde, conseguiu uma oportunidade e ingressou na carreira docente numa instituição de
ensino superior na provincia de Tete, onde veio a adoecer. A minha mae teve que apanhar um
aviao pela primeira vez, tendo ido resgatar o filho mais querido. Ja hospitalizado em Maputo,
nao durou muito tempo, tendo perdido a vida.

Era um verdadeiro Kurt Cobain, até o próprio vocalista dos NIRVANA haveria de tirar o chapéu.
Gostava de curtir texanas, calcas jeans apertadas e camisas-cigano. Como Cobain, gostava de
viver a vida: "Viver rápido, morrer depressa", dizia ele. A minha mãe não gostava nada de lhe
ouvir falar assim, mas ele, sempre teimoso com essa coisa de brincar com a morte, respondia:
"Para morrer, basta nascer".

Eu não estava preparado para encarar a morte dele, mas sabia que ele vivia para a morte. Nos
dias de hoje, onde se morre de coronavirus ou mesmo de uma bala perdida, senão mesmo
metralhado numa das artérias da cidade em plena luz do dia, não gostaria de morrer sem lhe
dedicar esta minha singela homenagem a título póstumo. Com toda sua genialidade, não
conseguiu ludibriar a morte, muito pelo contrário, conseguiu viver com a morte de forma plena.

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No dia do seu funeral, estava cheio no cemitério, mas gostaria de destacar a presença dos colegas
fardados da ACIPOL, que com alto sentido de camaradagem foram prestar a última homenagem
a um génio que fugira do curso da polícia para ir concluir o curso de economia, sua verdadeira
paixão que um dia havia abandonado.

Missão cumprida.

Travaste um belíssimo combate, meu irmão!

Sempre que alguém me pergunta o que é um génio, me lembro dele. Há quem diga que os génios
não existem. Eu conheci um génio. Ele chamava-se Martins Miocho Nenane: o Xerife. Hoje irei
beber uma garrafa de vinho. Em sua homenagem!

***
Nos meados dos anos noventa, surgiu uma cultura estranha no seio dos jovens e adolescentes dos
bairros da cidade de Maputo e arredores, cujas manifestações teriam durado até aos finais da
década noventa. Trata-se das chamadas "bands", cuja expressão quanto a mim deveria querer
significar "bandos", ainda que possa não ser exactamente essa a forma de compreender o sentido
do termo.

Era uma cultura estranha, cujas manifestações caracterizavam-se por lutas altamente violentas
entre as "bands" dos diferentes bairros quando se encontravam, o que também parecia ser uma
espécie de confrontos bairristas.

Nunca consegui encontrar qualquer relação com nada em concreto que pudesse estar associado
às artes, seja a música ou a dança, seja o que for, apenas sei que a única coisa que juntava os
jovens e adolescentes nesses grupos era a própria violência, onde o único requisito de
admissibilidade era ser violento, incluindo o gosto por espancar outros jovens e adolescentes
pertencentes a outros grupos até causar o derramamento de sangue.

Estávamos nos meados dos anos 90, um pouco depois da assinatura do Acordo Geral de Paz em
1992, que pôs termo a guerra dos dezasseis anos, assim como da realização das primeiras
eleições gerais multipartidárias em 1994, não sei se estaríamos propriamente a viver o calor do

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pós-guerra, não sei bem qual seria a razão, o facto é que as "bands" violentas tinham tomado
conta da cidade e arredores, aquele que não fizesse parte de nenhum dos grupos estava
condenado a ser apenas a vítima do terror que semeavam com as suas acções e confrontos
violentos, cujo principal palco eram as escolas primárias e secundárias. Houve sérios confrontos
nas escolas primárias e secundárias Francisco Manyanga no bairro do Alto Maé, Josina Machel
no bairro do Museu, 25 de Junho no bairro do Chamanculo, Estrela Vermelha, Lhanguene,
Munhuana e outras.

Há quem considere que a "Fantastic" teria sido a primeira "band" a surgir na cidade, cujas
manifestações violentas teriam influenciado o surgimento de outras "bands" mais violentas em
outros bairros. Sem poder fazer exactamente a distribuição dessas "bands" pelos respectivos
bairros a que pertenciam, sei que existiram depois dos "Fantastic" os "Skin Heads", os "Gotcha",
"The Cops", "Red Point", "The Colours", "Hill's Dogs", "Detroit Eagles", "Wasp", "Ronil
Mapandza", 'Piratas", "Texas Colômbia", "Black Fire", "Blood Force", "Guindza", entre outras.
Houve uma certa vez em que os "Fantastic", que eram pioneiros e ainda aparentemente
inexperientes, tentaram semear terror na Escola Primária 16 de Junho, onde estudou o meu
amigo e colega jornalista Manuel Mucari, que me contou a história. Os alunos mais velhos e
mais corajosos da escola se organizaram e correram com os delinquentes invasores a socos e
tapas, misturados com artes marciais, graças a cortesia do Carlos, o karateca. Nunca mais os
"Fantastic" ousaram pisar aquela escola de tanta tareia que levaram, até porque se conta que
eram inexperientes, ainda que tivessem sido os pioneiros. As "bands" que se seguiram aos
"Fantastic" eram mais violentas ainda, o que acabaria por se transformar não somente num
pequeno problema de delinquência juvenil mas sim num grande problema de criminalidade, cujo
palco de actuação eram as escolas.

Nessas guerras, muitos jovens e adolescentes contraíram lesões graves, que lhes deixaram
marcas para o resto da vida. Havia relatos de jovens e adolescentes que não aguentaram com os
ferimentos e acabaram perdendo a vida. Foi uma época sangrenta. Embora pudessem ter estado
envolvidas algumas raparigas nessas "bands", as mesmas eram maioritariamente constituidas por
rapazes, cujas operações eram acompanhadas pelo elevado consumo de álcool e estupefacientes.

Nessa altura, eu estudava já na Escola Secundária da Lhanguene, mas grande parte dos
confrontos violentos que tive o privilégio de testemunhar ocorriam na Escola Primária da

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Munhuana, ao lado da minha casa. É ali onde muitas vezes se cruzavam os "Fire Relâmpago" de
Minkadjuine com outras 'bands", os quais não só começavam por fazer demonstrações de força,
dos seus contingentes, da artilharia constituida por facas, catanas, bastões de basebol, tacos de
golfe, como efectivamente acabavam partindo para as vias de facto, lutando e derramando
sangue até que os membros de um dos grupos acabassem por se render e se porem em fuga,
saltando o muro da escola para bem longe. Uma certa vez, um rapazote, que frequentava a sexta
classe na Escola Primária da Munhuana, usou uma capa de chuva com as cores dos "Hill's
Dogs". Ele foi brutalmente espancado pelos tipos dos "Fire Relâmpago", de Minkadjuine, até que
viria a ser salvo por um jovem corajoso que não teve medo de se meter com eles. Estava
completamente desfeito, manchado de sangue. Maldita hora em que decidira vestir a capa de
chuva com as cores dos "Hill's Dog" justamente na jurisdição dos "Fire Relâmpago".

Foi assim até que um dia chegou a minha vez de me intrometer nos assuntos das "bands". Depois
de haverem terminado um confronto e colocado em fuga uma outra "band" adversária, os "Fire
Relâmpago" terminaram o seu espectáculo de violência escrevendo com spray a assinatura deles
numa das paredes da Escola Primária da Munhuana para mostrarem que haviam passado por ali,
em letras bem grandes: "FIRE RELÂMPAGO". Quando eles se retiraram do recinto escolar, eu e
os meus amigos fomos arranjar uma tinta branca, voltamos à escola e começamos a pintar em
cima do que eles haviam escrito na parede com a intenção de apagar tudo. De repente, quando
olhámos para o outro lado, vimos um contingente de homens armados até ao dentes a invadirem
a escola e a virem a correr em nossa direcção. Eram nada mais nada menos que os donos da
assinatura na parede: os "Fire Relâmpago". Foi um salve-se quem puder, cada um de nós deu
gás, cada um seguiu a direcção que achou melhor para escapar dos gajos, que vinham com toda a
sua força e raiva. Não sei como consegui imprimir agilidade nas minhas pernas frágeis, mas
consegui correr numa velocidade que nunca antes imaginara que pudesse alcançar, até que
consegui alcançar o murro do outro lado da escola, cujo qual escalei num ápice e saltei para fora.
Do lado de fora, antes mesmo de seguir em fuga para parte incerta, ainda ouvi um dos membros
dos "Fire Relâmpago" a gritar:

- Deixem lá o gajo. Havemos de apanhar. É o puto da cicatriz.

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Eu era o puto da cicatriz. Não havia outro. A minha mãe me ensinou desde pequeno que eu nasci
assim, que é uma mancha congénita, que não tem cura. Nunca precisei tanto de achar um
remédio qualquer para curar a minha mancha como tanto precisava de achar naquele momento.

Eu era o mais procurado pelos "Fire Relâmpago", por ter tido o atrevimento de apagar a
assinatura deles na parede da Escola Primária da Munhuana. Eu era o puto da cicatriz e mais dia
menos dia acabariam por me apanhar. Até hoje tenho pesadelos. Sonho com eles a me pegarem.

***
Ela olhou para mim.

E eu olhei para ela, de soslaio.

Não estava habituado a olhar fixamente para as raparigas.

Eu ainda tinha uma marca dolorosa na memória, de quando eu ainda tinha quinze anos, na Escola
Secundária da Lhanguene, onde uma rapariga cuspiu na minha cara e gritou para mim dizendo
"sai daqui, Mapa Cor-de-Rosa", apenas porque eu tentara uma palavrinha com ela. Nunca mais
tive igual atrevimento com nenhuma rapariga até então.

Ela olhou para mim fixamente.

E disse:

- Eu chamo-me Zuleica. E tu?

Por alguns instantes pensei que ela não estivesse a falar comigo, mas aquele seu olhar
teimosamente pendurado no meu era incontornável, por isso respondi:

- Pois. Olá. Chamo-me Clayton.

E ela disse:

- Eric.

- Não. - respondi. - Clayton.

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E ela:

- Eric Clapton. Meu nome é Zuleica, mas chama-me Tina. Tina Turner.

- Ahn, okay. - fiz que percebi, quando não estava a perceber nada. - Okay. Eric Clapton e Tina
Turner.
Não sei onde ela foi arranjar aquela conversa, o facto é que funcionou muito bem, de tal sorte
que acabamos ficando quase a tarde inteira a conversar de forma tão próxima que até acabei me
esquecendo que alguma vez tive medo de voltar a me meter com uma rapariga. O pior é que a
Zuleica, aliás, Tina Turner, era uma menina bonita, cuja altura estava um pouco acima da minha,
conversadora e muito bom de papo, que animava.

Foi assim ao longo de um mês inteiro. Fomos mantendo conversas até que um dia decidi
convidar a ela para sair. E ela aceitou.

Fomos para o concerto do jovem rapper Singaman, no Kuwana. Ela estava linda, metida dentro
de um macacão a maneira, sempre a falar naqueles seus modos levianos, nunca tinha visto uma
Tina Turner que gostava tanto de rap. Nesse dia, evitei falar muito dos meus gostos, eu que
gostava muito de livros. Tentei fingir que também percebia alguma coisa de rap, já nessa altura
eu percebia que essa coisa de falar de livros era visto como uma cena para matrecos, como as
miúdas não gostam de matrecos, evitei. Eu estava a gostar dela. Zuleica.

O concerto começou.

O Singaman era ainda um rapper iniciante, mas tinha já uma carga eléctrica que dava sinais
claros que se transformaria numa grande potência do hip hop moçambicano.
Tudo estava bom. A Zuleica Tina Turner estava a gostar da curtição, o que era para mim um bom
indicador de como tudo haveria de acabar bem, logo eu que tinha medo de raparigas, que tinha
tido uma experiência traumatizante por causa de uma rapariga que cuspira na minha cara por
causa da minha mancha no rosto. Estava preparado para que, caso a Zuleica perguntasse sobre a
mancha, eu devesse responder que eu nasci assim, é uma mancha congénita, não tem cura, tal
como me ensinou a minha mãe desde quando eu ainda era muito pequeno. Eu conhecia a Zuleica
Tina Turner já há um bom tempo e ela nunca se preocupou em perguntar sobre a minha mancha,
o que para mim acabou sendo um enorme alívio.

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O espectáculo ia a meio, com o Singaman e outros rappers a demonstrarem a sua máxima força
no hip hop underground. Eu gostava de rock, mas agora estava a gostar de hip hop, por causa da
Zuleica, que também era Tina Turner. Estava bom demais para ser verdade.
Foi nesse meio tempo que acabou chegando o bandalho para acabar com a minha cena.

Era a malta dos "Red Force".

A par dos "Fantastic", "Skin Heads", "Gotcha", "The Cops", "Red Point", "The Colours", "Hill's
Dogs", "Detroit Eagles", "Wasp", "Ronil Mapandza", 'Piratas", "Texas Colômbia", "Black Fire",
"Blood Force", "Guindza" e de outros tantos grupos, os "Red Force" eram uma das "bands" que
andavam a aterrorizar a cidade e arredores.

Eu estava bem com a Zuleica a curtirmos o rap do Singaman e outros niggaz até que apareceu a
bandalheira dos "Red Force" para estragar toda a cena.

O pior é que eu andava aterrorizado a fugir dos "Fire Relâmpago", que mais cedo ou mais tarde
acabariam por me apanhar para me fazerem pagar pelo crime de haver apagado a assinatura deles
na parede da Escola Primária da Munhuana, onde me reconheceram por causa da mancha, o puto
da cicatriz, como disseram.

Há quem diga que a febre da violência no seio dos jovens e adolescentes daquela época começou
nos anos 80, altura em que nao se chamavam "bands", mas sim "gangs". Nessa altura, a mais
famosa das "gangs" era a gang "Xipoco" do Aeroporto, que semeava terror nos bairros
circunvizinhos, o que obrigou outros jovens a criarem suas "gangs". Tal como os "Xipoco", os
"Red Force", que acabavam de invadir o concerto do Singaman - A Sing, tinham como principal
arma uma corrente, que punham no lugar de cinto.

Naqueles dias, tinha havido um confronto muito violento entre a "gang" dos 'Xipoco" e a "band"
dos "Jeans" no campo do Primeiro de Maio, que somente terminou com a intervenção da Polícia
Militar, que também recorreu a uma violência excessiva, tendo aproveitado para recolher alguns
jovens para a tropa. Não se falava em mais nada na cidade, senão nesse acontecimento violento,
sobretudo no seio dos jovens. Era um fenómeno estranho, dado que não havia um motivo real
para saltar sobre um gajo e bater com toda a força sem ter feito nada.

O ódio era uma coisa normal.

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E era para semear o terror que os "Red Force" invadiram o Kuwana durante o espectáculo do
rapper Singaman - A Sing, colocando em risco o avanço dos acontecimentos entre mim e a
Zuleica Tina Turner, por quem eu tinha desenvolvido um sentimento muito estranho, mas muito
agradável, logo eu que tinha deixado de me aproximar tanto do departamento feminino por causa
dos dissabores que me tinha causado uma rapariga que cuspira na minha cara por causa do meu
atrevimento em lhe dirigir a palavra sem saber que ela não gostava nada de pessoas com mancha
no rosto. Para nos protegermos da bandalheira, peguei na mão da Zuleica Tina Turner e puxei-a
para um dos cantos da discoteca do Kuwana, como se fosse o artista, quando me lembro até
parece que estou a ver um filme no cinema.

Um dos membros dos "Red Force" invadiu o palco e agrediu o rapper Singaman - A Sing, tendo
lhe atacado com uma garrafa de 2M, o que paralisou a performance do artista. Mas para a
decepção dos "Red Force", Singaman, que na altura se chamava A Sing, vinha acompanhado dos
seus amigos de Minkadjuine, o Ivan, o Alito e o Gerson, que deram uma boa porrada aos
invasores, que foram posteriormente expulsos da discoteca. No lugar de curtirem a música, as
'bands' curtiam violência, mas desta vez foram postos a correr.
Foi nessa oportunidade que segurei na mão da Zuleica Tina Turner e saímos do "Kuwana". Para
onde fomos? Essa é a parte boa.

Foi ela que disse assim:

- Não posso ir para casa. Já é tarde.

E esta agora.

- Vamos para minha casa, então.

Ela aceitou.

Fomos para minha casa.

Era mais alta que eu. Nunca pensei que a Zuleica Tina Turner pudesse querer passar a noite
inteira comigo, mas porque era tarde, tinha que ser, tal como entendeu, o que na altura não me
preocupou de forma alguma, como se na minha casa, aliás, casa dos meus pais, houvesse espaço
para tanta gente assim. Foi graças a compreensão do meu irmão mais velho que me cedeu o

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quarto, que tive o privilégio de passar uma noite inteira com uma rapariga. Era a minha primeira
vez, o que me lembro ter começado como se fosse um rinoceronte quando entra numa loja de
porcelanas, que parte tudo por falta de jeito.

Ela disse:

- Vai com calma.

E eu fui com calma, uma calma aparente, porque por dentro eu estava a ferver, mas tive que
ensinar o rinoceronte a entrar com jeito numa loja de porcelanas.

- Espera um pouco. - disse ela. - Quero te mostrar uma coisa.

- O que é? - perguntei.

Ela levantou da cama. Tirou calmamente o macacão preto. Tinha um corpo lindo, nunca antes
tinha visto algo assim só para mim. Logo eu. Zuleica Tina Turner. De corpo e alma. Exuberante.
Ela me mandou fechar os olhos. Eu fechei. Instantes depois, me mandou abrir os olhos. Eu abri.
Ela estava virada de costas para mim. Estava em pé, eu estava sentado.

E o que foi que eu vi, meu Deus!

Uma surpresa surpreendente.

Ela tinha uma mancha na bunda. Igualzinha à mancha que eu tinha no rosto, cuja qual a minha
mãe me ensinou desde pequeno a dizer que eu nasci assim, é uma mancha congénita, não tem
cura.
A Zuleica Tina Turner nasceu assim, com uma mancha congénita no rabo, que não tem cura. Eu
estava admirado, nunca tinha visto algo assim, senão no meu reflexo no espelho. Foi uma noite
dos sonhos.

Nessa noite, deixei de sonhar com os "Fire Relâmpago", que andavam a minha procura por ter
apagado a assinatura deles na parede da Escola Primária da Munhuana e que mais cedo ou mais
tarde haveriam de me apanhar para pagar pelo crime, uma vez que eu tinha uma mancha
inesquecível no rosto, que eles chamavam de cicatriz.

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Hoje, passados tantos anos, percebo muito bem porquê Zuleica Tina Turner escolheu justamente
a mim para passar comigo a noite naquele dia que ela fez de tudo para que chegasse durante
cerca de dois meses e meio. Ela tinha certeza que eu não haveria de achar estranho que tivesse
uma mancha congénita na bunda. Mancha com mancha combinam. Numa harmonia divina.

***
O território da Escola Primária 25 de Junho era controlado pelos "Hill's Dog", que começaram
por se chamar "Rock First" quando surgiram. Ninguém sabe como aquilo começou nem como
aquilo terminou, mas quem sobrou para contar a história considera-se feliz por ter sobrevivido,
havendo sobreviventes que se dão por mais felizes ainda por não terem contraído nenhum
ferimento, porque escapar com vida e sem nenhum ferimento no meio daqueles confrontos
violentos era mesmo uma questão de sorte.

Era uma violência absurdamente elevada no seio dos jovens e adolescentes que viviam nos
arredores da Escola Primária 25 de Junho, ou, simplesmente, "25 de Junho", no bairro de
Chamanculo. O pior é que para a tua própria segurança tinhas que fazer parte de uma "band" ou
então estavas lixado.

É por isso mesmo que acabei aceitando o convite de um amigo para irmos dar uma volta lá na
"25 de Junho", a fim de observarmos como funcionavam os famosos "Hill's Dog", de cujas
façanhas que ouvíamos pareciam ser mais lendárias do que verídicas. Eu precisava de me
integrar numa "band" ou mesmo criar uma para poder me proteger dos "Fire Relâmpago", que
andavam a minha procura para me fazer pagar pelo meu atrevimento de ter apagado a assinatura
deles na parede da Escola Primária da Munhuana, uma vez que tinham me reconhecido por causa
da minha mancha no rosto, que eles chamavam de cicatriz.

Lá chegamos nós, no território dos "Hill's Dog", justamente num dia de sorte, uma sorte que,
como se há-de se ver a seguir, logo se transformaria em azar, dado os acontecimentos que me
marcaram profundamente para o resto da vida. O meu amigo, que era mais velho que eu, estava
muito empolgado, queria a todo o custo fazer parte dos "Hill's Dog" da "25 de Junho".
Foi um dia de sorte porque estavam lá os elementos invasores de uma "band" proveniente de um

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outro bairro, que decidiram ir se meter justamente na jurisdição dos famosos "Hill's Dog". Eu era
muito novo, não estava preparado para tamanha violência que estava prestes a acontecer, ao
contrário do meu amigo, que estava disposto a se juntar aos "Hill's Dog" na luta contra os
invasores, que estavam armados até aos dentes com pastas cheias de garrafas, com facas, catanas,
correntes, paus e outros objectos contundentes.

Num jogo de futebol, os adeptos dos dois clubes assumem as suas respectivas bancadas para
apoiar as suas equipas, aqui já não, porque não se trata de um jogo de futebol, aqui o ambiente é
de tensão, terror e pânico, onde os alunos e os professores temem pelo pior, com tudo a indicar
que naquele dia não haveria mais aulas.

Na impossibilidade de encontrarmos qualquer aproximação com um jogo de futebol ou qualquer


outra modalidade desportiva, talvez pudéssemos equiparar aqueles confrontos violentos ao que
seriam as violentas manifestações de racismo, mas não, não se tratava de Apartheid, talvez
fossem manifestações de xenofobia, mas não, não se tratava de estrangeiros, de conflitos étnicos,
mas não, não se tratava de etnias, conflitos políticos, mas também não, não se tratava de partidos
políticos, talvez fossem as tais crises da adolescência, mas não, não poderiam ser, as crises da
adolescência geram alguma violência, mas não uma violência generalizada, o facto é que
ninguém saberia dizer ao certo como aquilo tudo começou, nem como aquilo tudo haveria de
terminar e lá estávamos nós, eu e o meu amigo, a nos candidatarmos para fazermos parte de uma
"band" ou então para nos inspirarmos nos famosos "Hill's Dog" da "25 de Junho" para podermos
ir criar a nossa própria "band" para podermos enfrentar os "Fire Relâmpago", que andavam a
procura do puto da cicatriz, que era justamente eu.

É nesse momento que começaram as demonstrações de força, as ameaças e as provocações dos


que tinham invadido um território supostamente alheio e dos que se sentiam no direito de
defender o território que supostamente lhes pertencia. Não tardou muito para que um dos
membros dos donos do território fosse ao encontro de um dos membros da "band" dos invasores
territoriais, contra quem desferiu um duro golpe de martelo nas costas. Tinha sido assim dado o
pontapé de saída. Estava agora tudo em algazarra, com aquele homem martelado nas costas
praticamente caído no chão e a contorcer-se de dores.

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Facas perfurando corpos. Catanadas. Fúria total. Ouvem-se gritos e choros dos alunos que
correm de um lado para o outro, enquanto os beligerantes vão lançando palavras de ordem,
ninguém se mete no nosso território, ninguém se mete com os "Hill's Dog", mata aquele gajo,
mata o gajo, satanhoco. Com uma martelada nas costas, aquele jovem contorcia-se de dores, mas
não houve misericórdia para com ele, que enquanto estava agachado voltou a ser atingido com
uma garrafa bem dada na cabeça.

Iam as cenas decorrendo a um ritmo asfixiante, impróprio para cardíacos. Pensei logo na Zuleica
Tina Turner, que tinha uma mancha congénita na sua bunda bonita, como a que eu tinha no rosto,
que nasci com ela e que não tinha cura. Se eu morresse naqueles confrontos selvagens dignos de
filmes brutais, não voltaria a ver de novo a mancha da bunda da Zuleica, tão bonito que só
vendo.

Aquilo estava a ficar cada vez mais perigoso, nunca tinha sequer imaginado que a violência
humana pudesse atingir tais proporções. Quem me dera que nunca tivesse me metido naquele
meio, quando quis alertar o meu amigo mais velho que aquilo já tinha sido bastante para mim, já
era tarde. O meu companheiro de pesquisa estava exactamente no centro dos confrontos. Por
alguns instantes pensei que ele fosse ser defendido pelos "Hill's Dog", mas não, ele era atacado
dos dois lados, tanto pelos invasores do território quanto pelos donos, porque nem eu nem ele
tínhamos uma "band" e estávamos ali apenas para apresentarmos a nossa candidatura, um gajo
não pode se meter no meio de uma guerra sem antes ser formalmente admitido numa "band". Em
poucos instantes, o meu amigo ficou com a cara desfigurada, de tanta porrada dada com bastões
de basebol e garrafadas. Quando ele viu que já tinha sido porrada bastante, decidiu abandonar o
campo de batalha, tendo vindo a correr na minha direcção, eu que já havia ganho velocidade nas
pernas e estava já a uma grande distância a contornar a rua Irmãos Roby, com destino a casa, de
onde nunca deveria ter saído. Fugimos para nunca mais voltarmos lá de novo.

Os relatos que ouvimos mais tarde sobre o que ficou a se passar foram horrendos e tenebrosos.
Houve mortos e feridos, alguns dos quais acabaram por ir parar no banco de socorros. O guarda
da escola, que terá tentado acudir alguns alunos que acabaram se perdendo no meio da guerra,
também não escapou a tareia, tendo ficado gravemente ferido.

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Não percebo até hoje a quase ausência da polícia quando os confrontos ocorriam. Como nos
filmes, a polícia chegava depois do burro morto. Desta vez, o burro do meu amigo não seria um
burro morto, seria um burro ferido, com a cara desfigurada, vítima da sua própria estratégia. Não
conhecia arte de guerra nenhuma. E eu tinha sido uma presa fácil que caíra na sua armadilha,
uma vez que eu precisava de arranjar uma forma de me defender dos "Fire Relâmpago", que
andavam a minha procura por ter apagado a assinatura que eles haviam feito numa das paredes
da Escola Primária da Munhuana e que a qualquer momento acabariam por me encontrar, por
causa da minha mancha, que eles chamavam de cicatriz. Tinham-me fixado bem.

Por aqueles dias, ouviam-se relatos de mortes cada vez mais frequentes em confrontos de bandos
em quase todos os bairros da cidade e arredores. Os "Fora da Lei", uma "band" que plantava
terror nos bairros Luís Cabral e parte de Chamanculo, tiveram um final infeliz, pois no seu
último confronto, no cemitério de Lhanguene, perderam três dos seus membros, que eram jovens
e adolescentes.

Também se ouviram relatos de guerras entre os "Gumula" e os "Guindza" na Escola Primária da


Kurhula, no bairro de Maxaquene, próximo à praça da OMM. E deste confronto violento, por
parte dos "Gumula", alguns foram parar nos cuidados intensivos do hospital. Estiveram entre a
vida e a morte, havendo mesmo relatos de mortes.

Depois de havermos corrido tanto na nossa fuga, chegamos ao nosso destino. Estávamos a salvo,
mas com um porém: o meu amigo estava com a cara desfigurada, enquanto contorcia-se de dores
em quase todo o corpo. Não era para menos. O gajo tinha levado uma boa porrada. Não chegou a
proferir qualquer palavra sequer. Foi para casa sem sequer se despedir de mim.

E eu também me recolhi.

Tinha que arranjar uma outra estratégia para poder escapar das garras dos "Fire Relâmpago", que
andavam a minha caça e que mais dia, menos dia haveriam de me capturar, a fim de me
submeterem ao castigo pelo crime de haver apagado a assinatura deles numa das paredes da
Escola Primária da Munhuana. Mas não seria por via da criação de uma "band" daquela natureza,
tanto é que nunca sequer tive jeito para as artes marciais. Tive que rever o meu conceito de
"band". A minha "band" seria com a Zuleica Tina Turner, que tinha uma mancha congénita na

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bunda dela bonita, tal como eu que tenho uma mancha congénita no meu rosto bonito, que não
tem cura. Foi assim que criamos a "band" da mancha da paz. Com muito amor e carinho.

***
Numa certa manhã, a estrutura do bairro apareceu em casa para informar que o meu nome tinha
saído nas listas que haviam sido afixadas lá na administração distrital para ir fazer inspecção para
o serviço militar obrigatório. É uma notícia que veio me fazer começar mal o meu dia, uma vez
que acabara de ingressar na Escola de Jornalismo, sendo que a chamada para a inspecção para o
serviço militar obrigatório era uma indicação clara de que o ministério da defesa estava mesmo
disposto a acabar com o meu sonho de ser jornalista.

Fui a administração distrital com alguns amigos para vermos as listas, o que para mim era já uma
certeza, uma vez que no ano anterior, tinha feito o recenseamento militar na Escola Secundária
de Lhanguene, através de uma brigada que havia sido enviada para esse efeito. Eu frequentava a
décima classe, sonhava em ir estudar jornalismo, mas não cheguei a imaginar que aquele acto de
me recensear teria sido exactamente o caminho aberto para já vir a ser chamado para ir a tropa
justamente no meu primeiro ano de jornalismo.

Não demoramos muito tempo a percorrer as extensas listas até que achamos o meu nome,
confirmando o que já tinha sido dito pela estrutura do bairro. O meu nome estava ali bem
alistado para a inspecção para o serviço militar obrigatório, cujo processo todo estava marcado
para um dia exacto e hora exacta no centro de mobilização e recrutamento do ministério da
defesa nacional na zona militar, vulgo Colômbia.

Nunca o meu coração havia batido tanto ao ver que o meu futuro como jornalista estava
ameaçado com essa cena de haver sido alistado para o serviço militar obrigatório.
Tudo assim foi até que chegou o dia de me apresentar no centro de mobilização e recrutamento,
onde logo nos remeteram para um determinado local onde eram realizados os inquéritos,
exercícios físicos, testes, exames médicos e outros elementos inerentes ao processo de inspecção.
É nesse instante que identifiquei um homem que me parecia ser ali uma pessoa influente. E não

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era uma pessoa qualquer. Era justamente um meu professor da Escola de Jornalismo, que afinal
desempenhava também determinadas funções no centro de mobilização e recrutamento.

Não me fiz de rogado. Fui ter com ele e lhe falei de como estava na iminência de interromper os
estudos para ir a tropa, o que para mim era um autêntico desespero uma vez que queria apenas
fazer o meu curso de jornalismo, ser jornalista e mais nada. Não sei quantas histórias contei para
ver se aquele homem havia de me salvar desta enrascada, até que ele, não sei se havia entendido
a minha situação, acabou por responder:

- Não te preocupes. Tu não irás à tropa.

Tendo ouvido essas palavras, fiquei tão satisfeito, achando que ele haveria de fazer alguma coisa
para me salvar desse destino indesejado.

Mandou-me cumprir rigorosamente com toda a inspecção, tendo dito que tudo havia de se ver lá
mais a frente. Eu cumpri com todas as suas recomendações, segui religiosamente todos actos
inerentes ao processo de inspecção, o que durou uma manhã inteira até por volta do meio dia,
dado que éramos muitos os jovens vindos de todos os bairros da cidade.

Quando aquele processo terminou, entregaram-me um importante documento: a cédula militar.


Na minha cédula militar vinha uma grande notícia, que tanto serviu para eu escapar de ir a tropa
quanto serviu para me deixar frustrado comigo mesmo. Na cédula militar, estava carimbado, em
letras bem visíveis: INAPTO. Com esse documento, não precisava de me preocupar, porque não
teria que abandonar a Escola de Jornalismo para ir a tropa. Perguntei aquele homem como ele
conseguira executar tal operação, ao que me respondeu, calmo e sereno:

- Não precisei fazer nada.

- Como assim, senhor professor?

E ele riu-se, tendo respondido:

- Como achas que havias de ser aprovado para ir a tropa com essa mancha?

Não respondi nada, apenas sorri com um sorriso meio amarfanhado. Um sorriso meio
amarfanhado porque, apesar de que era uma boa notícia saber que não havia de ter que ir a tropa,

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a má notícia é que essa foi a primeira vez que fui informado formalmente que eu era um
deficiente, por isso na minha cédula militar estava carimbado “INAPTO”.

Por alguns instantes, quis que tivesse sido carimbado “APTO”, mas que tivesse sido encontrado
outro motivo para não ter que ir a tropa, mas que não fosse por inaptidão física, que não fosse
por deficiência, logo eu que nunca tinha sido tratado como um deficiente físico, senão somente
como sendo uma pessoa diferente, como me ensinou a minha mãe desde a tenra infância, que
nasci assim, que é uma mancha congénita, que não tem cura.

Durante toda a minha infância e toda a minha adolescência, desde a escola primária até às escola
secundária, lidei com várias situações traumatizantes por causa da minha mancha no rosto.
Foram-me dados vários nomes por causa da minha mancha, "Mapa de Moçambique", "Mapa
Cor-de-Rosa", "Olho Branco", "Pintex", "Robbialac", "Murdock", "Cara Queimada" e outros
tantos que me fogem da memória, mas o que eu nunca tinha esperado durante toda a minha vida
até então é que um dia havia de escapar de ir a tropa graças a maldita mancha.

A minha mãe me ensinou que eu nasci assim, que é uma mancha congénita, que não tem cura,
mas esqueceu-se de me ensinar que era um deficiente físico. É claro que se os médicos sempre
me recomendaram a evitar me expor ao sol, bem como a evitar a água da praia, só podia ser um
deficiente físico, por isso não poderia ter aptidão física para ir a tropa. Não queria ir a tropa, mas
também não estava preparado para saber que era inapto, por causa da mancha.

Foi assim que iniciou uma nova fase da minha vida, uma fase em que me vi ainda mais obrigado
a construir a minha própria percepção, o meu próprio entendimento e o meu próprio
conhecimento sobre a minha mancha. Tinha passado a vida inteira a pensar que os deficientes
eram os outros, aqueles das cadeiras de rodas, aqueles das muletas, os que perderam uma perna
ou as duas pernas num acidente ou os que haviam sido atingidos por uma mina anti-pessoal, ou
perdido uma mão ou as duas mãos também, que os deficientes eram os cegos, os mudos e os
surdos, que eram os deficientes mentais, com limitações psico-motoras, entre outros. Tinha
pensado assim, que eu não fazia parte dessa turma, que isso de ser deficiente pertencia ao mundo
dos outros, um mundo onde eu não fazia parte, apenas porque tinha sido ensinado desde a tenra
idade que eu era igual a todos, que tinha nascido assim, que era uma mancha congénita, que não
tinha cura. Embora frustrado com a notícia da minha inaptidão, de uma coisa tinha certeza:

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acabara de escapar de ir a tropa. Estava tudo em conformidade. Não havia de me ver obrigado a
abandonar o jornalismo para cumprir o serviço militar obrigatório. São tantos que gostariam de
poder ter conseguido arranjar motivos para escaparem a tropa, mas que não conseguiram. Eu
consegui escapar. Foi uma vitória com sabor amargo.

***
No ano anterior, havia sido assassinado o jornalista Carlos Cardoso, o então editor e proprietário
do extinto diário eletrónico "Metical", o que tornou os meus primeiros dias de frequência na
Escola de Jornalismo um autêntico desgosto para a minha mãe, que achava que afinal esse tal
jornalismo era uma profissão para morrer. A minha mãe queria que eu tivesse sido electricista,
uma vez que em casa eu era a pessoa que tinha jeito com essa coisa de reparar pequenos
problemas elétricos, enquanto os meus irmãos mais velhos tinham medo de energia. Não
obstante os seus medos, calafrios e arrepios sempre que os perigos do jornalismo lhe subissem a
cabeça, a minha mãe nunca deixou de me incentivar a ir estudar mesmo assim, dando-me a
mesma motivação que sempre me deu desde quando se apercebeu que eu tinha medo de ir a
escola por causa dos nomes que me andavam a dar os outros meninos por causa da minha
mancha no rosto, que logo desde pequeno me ensinara a responder que eu nasci assim, é uma
mancha congénita, não tem cura. O meu irmão mais velho, que gostava de falar de morte, sempre
que a minha mãe temesse pela minha vida por causa do triste assassinato de Cardoso, respondia
dizendo que "para morrer, basta nascer", o que me dava uma enorme segurança.

Estávamos já a um ritmo bastante agradável, numa experiência nova caracterizada por fazer parte
de uma turma constituída por estudantes oriundos de diferentes partes do país. Eu, por exemplo,
que só conhecia a cidade, sentava na mesma carteira com o Ivo Tavares, um mulato que gostava
muito de fiutebol, tendo começado por ser meu vizinho no Xipamanine, mas em pouco tempo
acabou arranjando um quarto no lar de estudantes da escola, que estava nos andares de cima do
edifício. Também estavam na nossa turma o baixinho Moisés Wetela e o gago tímido Ernesto
Saul, que vinham da cidade da Beira, província de Sofala. O charmoso Pedro Cumando, que
vinha da província de Manica. A doce Cândida Adelino e a baixinha Muajuma Roque, que
vinham da província de Nampula. Da cidade capital ainda estavam connosco a bela Yolanda, a

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bonita e divertida Arlete Ndeve, o gago falante José Luiz Gonzaga Jeque, o gago atrapalhado
Anselmo Sengo e o mulato desportista Ivo Pedro Tavares, tudo gente boa e de cujas façanhas
teremos o privilégio de falar mais em diante. Da província da Zambézia estava connosco o Lopes
Obadias, um jovem burocrático escondido atrás dos óculos. Não me lembro muito bem de onde
vinha o baixinho de óculos Lotes Mazive, que era o mais velho da turma, dono de um português
altamente refinado e requintado.

Contra todas as minhas expectativas, eu fui tão bem tratado pelos colegas da turma de
jornalismo, mas também tive melhor tratamento da parte dos colegas das outras turmas de
relações públicas e publicidade e marketing, com os quais nos cruzavamos nos corredores da
escola, o que era bom demais para mim que tinha tido uma experiência traumática desde a escola
primária até a escola secundária, por causa da minha mancha congénita no rosto, uma mancha
que nasci com ela e que não tem cura. Não me lembro de alguma vez ter sido posto em causa na
minha turma da Escola de Jornalismo, o que foi para mim um enorme alívio.

Nunca tinha antes imaginado que isso pudesse acontecer um dia. Só na Escola Primária da
Munhuana e na Escola Secundária de Lhanguene consegui ser chamado de "Mapa de
Moçambique", "Mapa Cor-de-Rosa", "Olho Branco", "Pintex", "Robiallac", "Murdock", "Cara
Queimada" e outros apelidos que já me fogem da memória, pelo que o meu maior medo era
chegar no curso de jornalismo e ganhar mais um nome, o que efectivamente nunca chegou a
acontecer, talvez por causa da idade destes novos actores da minha vida. Éramos todos um pouco
mais grandinhos e a consciência era maior. Talvez tenha sido por isso que os meus três anos na
Escola de Jornalismo passaram muito rápido para mim, porque se tivesse andado a sofrer tudo o
que sofri na escola primária e secundária, muito provavelmente a minha passagem por ali teria
sido um autêntico calvário.

Se alguém teve coragem de querer saber mais sobre a minha mancha no rosto, não teria sido
outra pessoa, senão nada mais nada menos que a Arlete Ndeve, que gostava muito de andar a
passar a mão no meu rosto, mas nunca falhava, passava sempre a mão dela justamente na minha
mancha, o que tratei de lhe informar, tal e qual como me ensinou a minha mãe quando eu era
pequeno:
- Eu nasci assim. É uma mancha congénita. Não tem cura.

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A Arlete, uma mulher de corpo atlético tipo Lurdes Mutola, só não tinha chance de me distrair a
mente por causa da Zuleica Tina Turner, que tinha uma mancha congénita na sua bunda bonita,
tal como a minha mancha no rosto. A Zuleica era uma dama imbatível, incontornável, com quem
criei a "band" da mancha da paz, mas que mais tarde acabamos evoluindo para a dupla da
mancha, uma vez que nos apercebemos que essa coisa de "bands" tinha saído da moda, até
porque todas aquelas "bands" violentas e sangrentas tinham desaparecido automaticamente,
deixando muitos filhos órfãos, dado que alguns já eram pais. Para sermos uma "band",
precisaríamos de muitos membros, o que seria impossível, uma vez que pessoas da nossa espécie
com manchas congénitas só conheciamos duas: eu e ela. Até porque os requisitos de
admissibilidade na nossa "band" não só eram restritivos, como também eram um pouco mais
exigentes. Era necessário gostar de paz e amor para se ser membro. E nessa matéria, depois de
tanta violência que assistimos durante os meados da década noventa até aos finais da mesma
década, não conhecíamos mais nenhum jovem que gostava de paz e amor e tínhamos dúvidas
que existissem em algum lado.

Estávamos bem eu e a Zuleica na nossa dupla, onde havia muito carinho, paz e amor. Por essas
alturas, as malditas "bands" tinham deixado de existir. Nem os "Fantastic", nem os "Skin Heads",
os "Gotcha", "The Cops", "Red Point", "The Colours", "Hill's Dogs", "Detroit Eagles", "Wasp",
"Ronil Mapandza", 'Piratas", "Texas Colômbia", "Black Fire", "Blood Force", "Guindza" e nem
os "Fire Relâmpago" que eu tanto temia existiam mais. Ninguém mais sabe dizer como tudo
começou nem como tudo terminou. Da mesma forma como começou é da mesma forma como
terminou, assim do nada. Esfumou-se.

De tal sorte que a Arlete Ndeve perguntou sobre a minha mancha, de uma forma muito simples e
respeitosa, o que eu não estava muito habituado assim, uma vez que as pessoas que se
preocupavam com a minha mancha geralmente se dividiam em três grupos. O primeiro, dos que
nada perguntam sobre a mancha, mas que aproveitam a boleia de alguém que pergunta para
fazerem mais perguntas. O segundo grupo, dos que perguntam, mas de forma muito
sentimentalista, que até chegam a ser inconvenientes. O terceiro grupo é dos que se preocupavam
muito com a mancha, vendo nela um objecto de entretenimento, através do qual me andavam a
dar uma série de apelidos feios que só de me lembrar deles fico traumatizado, chegando mesmo a

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deitar lágrimas de tristeza, mas se consegui resistir até hoje é porque eu sou duro, muito duro, até
porque vazo ruim não quebra.

A Arlete não se encaixava em nenhum dos três grupos, nem dos que gostariam de perguntar mas
não conseguem, nem dos que perguntam de forma tão sentimentalista que chega a parecer que
sentem pena, muito menos dos que apenas se metiam com a minha mancha por uma questão de
gozação, atribuindo-me os mais diversos apelidos e nomes feios. A Arlete transformou a sua
curiosidade numa brincadeira agradável, mas logo percebi que não aprendeu em nenhuma escola,
fê-lo com a maior naturalidade do mundo.

Isto tudo mostra como, ao contrário do que se pode pensar, não é fácil estabelecer com
naturalidade relações entre pessoas diferentes. Algumas vezes, é preciso evitar um tom
demasiadamente simpático, demasiadamente afectivo, sendo de qualquer forma de se excluir
peremptoriamente o tom da falsa gentileza, da afeição hipócrita. Ora, esta estratégia exige muita
sinceridade e muito tacto. O tacto é a qualidade que permite não ferirmos as pessoas a quem nos
dirigimos, dado que podemos feri-las, quer empregando palavras maldosas, quer utilizando
palavras demasiado doces que soam a falso. E graças a oportunidade que tive de conviver com a
Arlete, por causa da forma ímpar como se dirigiu a mim sobre a questão da minha mancha, sou
mesmo levado a considerar que acho que a estigmatização começa a afastar-se de nós quando
somos suficientemente curiosos para nos interessarmos verdadeiramente pelos outros, pela sua
maneira de viver, por aquilo que fazem e em que se ocupam, justamente pela sua diferença. É o
que devia ser ensinado às crianças pelos pais, encarregados de educação, parentes, educadores,
professores, comunidade e sociedade em geral. Ensinarem as crianças a se interessarem pelos
outros justamente por serem diferentes, o que seria um ponto de partida para o afastamento da
estigmatização.
De resto, do jeito que a Arlete Ndeve tratou da questão da minha mancha, mesmo sem se
aperceber, acabou me emprestando um pouco do seu dom natural, que me permitiu aprofundar
um pouco mais a matéria. Estava decidido a estudar um pouco mais sobre esta matéria,
sobretudo depois de haver conseguido escapar de ir a tropa graças a minha mancha congénita,
que me permitiu ser declarado inapto. Se não tivesse sido a mancha, talvez teria ido cumprir o
serviço militar obrigatório, o que me teria obrigado a abandonar a Escola de Jornalismo e o
sonho de ser jornalista.

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Da forma como me tratava, Arlete contaminou o resto das mulheres da turma, a Yolanda, a
Cândida, a Brígida e a Muajuma, que embora tivessem primeiro se contido, não me perguntando
sobre a mancha, acabaram aproveitando a boleia dela para fazerem mais perguntas, o que fez
com que corresse tudo bem. De uma coisa eu tinha a certeza, entretanto. Nenhuma delas tinha
uma mancha congénita, tal como a Zuleica Tina Turner. Se a Zuleica ficara comigo durante
cerca de dois meses e meio sem me perguntar nada sobre a mancha, foi porque estaria a me
preparar aquela surpresa agradável, que afinal ela mesma tinha uma mancha congénita reluzente
na bunda, tal e qual a mancha que eu tenho no meu rosto, que nasci com ela e não tem cura, tal
como me ensinou a minha mãe desde pequeno. Quem deveria ter sido mais atraído pela vontade
de me atingir com provocações sobre a minha mancha no rosto eram os homens da turma, mas
nada, nem o Arsénio Henriques que sentava comigo na mesma carteira, nem o Moisés Wetela,
nem o Ernesto Saul, nem Anselmo Sengo, nem Ivo Tavares, nem José Luís Gonzaga Jeque, nem
Lotes Mazive, nem Lopes Obadias e nem ninguém chegou a me dirigir palavras feias por causa
da mancha. Eram todos gente fina. Pelo contrário, eu é que passava mais tempo a me concentrar
nos defeitos de cada um deles, desde os gagos faltantes aos gagos atrapalhados, desde os óculos
de menor graduação aos de maior graduação, das duas baixinhas de Nampula que já indicava que
nunca mais haveriam de ganhar altura aos imitadores compulsivos de Edson Magaia.

***
Numa certa vez, enquanto caminhava com a Zuleica no bairro, vi um antigo integrante dos "Fire
Relâmpago", que vinha na nossa direcção. Uma vez que a cena das "bands" já a um bom tempo
que saira da moda, não precisamos de mudar de caminho. Muito pelo contrário. Tratei de o
cumprimentar quando já estava mesmo a nos passar:

- "Fire Relâmpago".

E ele, parecendo estar um pouco envergonhado, respondeu:

- Puto da cicatriz! Cresceste maningue.

- Yah. - retorqui. - Um pouco!

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E ele:

- Esquece lá aquela cena. Já passou.

E eu:

- Eu sei, já passou. Mas nunca voltarei a apagar uma assinatura dos "Fire Relâmpago" na parede.
- Deixa lá, bro. Já não andamos mais nas lutas nem assinamos mais nas paredes. Os "Fire
Relâmpago" já não existem. Está fora da moda...

- Uff!! - respirei fundo, de alívio, dando a entender que estava mesmo a rasca. - Tá nice, mano.
Não foi necessário um cessar-fogo, nem um acordo geral de paz, nem sequer uma comissão da
verdade e reconciliação, nem nada. Estávamos em paz. A guerra das "bands" tinha mesmo
terminado.

E o antigo combatente dos "Fire Relâmpago" seguiu seu caminho em paz e em liberdade.
A Zuleica começou a rir, porque tinha notado o meu desconforto quando vi o meu caçador a vir,
sabendo ela que eu andara durante muito tempo a fugir dele com medo de ser capturado.
- Porquê que tu não escondeste a tua mancha no rabo? Como eu! - atirou. - Eu não ando com a
minha mancha na cara, ando com ela bem escondida no meu rabo.

E lançou uma enorme gargalhada.

Se eu soubesse como se esconde uma mancha no corpo, como ela que tinha uma mancha
escondida na bunda, nunca teria passado por tudo o que passei. O que eu mais gostava nela é que
escondia a mancha para todo o mundo, menos para mim. E eu não via a hora dela me mostrar de
novo. Lá na Escola de Jornalismo ninguém tinha uma mancha. Nem a Arlete, nem a Yolanda,
nem a Muajuma, nem a Brígida e nem a Cândida, por isso me enchiam de perguntas sobre a
mancha. Só a Zuleica mesmo. A minha dupla da mancha da paz. Com muito amor e carinho. Lá
fui eu com ela ver de novo a mancha escondida da mulher exuberante que era.

***

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Eu saía todos os dias a caminhar a pé desde logo cedo do Xipamanine até chegar à Escola de
Jornalismo no Museu, onde depois de tanto caminhar somente confirmava a minha chegada ao
destino quando avistava já estando ali na Ho Chi Minh o fumo do cigarro do senhor Parruque,
um funcionário da secretaria da escola que não sei porque carga de água gostava muito de
resmungar comigo sempre que eu ia tratar alguma questão, um comportamento que somente
muito mais tarde vim a descobrir que por detrás do mesmo se escondia um homem muito
simpático, culto e que gostava muito de estudar e de fumar cigarros, o que já naquela altura me
parecia ser um vício que lhe tinha mesmo agarrado a sério.

Era atravessando esse ambiente poluído pela fumaça dos cigarros do senhor Parruque que me
deparava com a senhora dona Palmira, uma contínua de bata azul que não só cuidava das
limpezas na escola, como também cuidava de nós, os estudantes, oriundos de diferentes partes do
país.

Subindo as escadas a correr por estar atrasado para a aula, chegava a passar pelo velho Chioze
quase que sem me dar conta da sua presença, mas era um funcionário da escola incontornável,
porque era ele que cuidava das fotocópias no sector de reprografia. Íamos buscar os livros
recomendados pelos professores na biblioteca que estava aos cuidados da senhora dona Sofia
para fazermos as cópias das páginas cujos textos seriam necessários para as nossas aulas de
Português com o professor Aurélio Cuna, de História com o professor Mavaieie, de Teoria de
Comunicação com Américo Xavier e outros.

À par dos professores, com quais permanecíamos as vezes um ano ou mesmo somente um
semestre, os funcionários como o velho Chioze das cópias, a dona Palmira da limpeza, a dona
Maria da secretaria, a dona Sofia da biblioteca e o senhor Parruque da secretaria eram pessoas
que sem nos darmos conta disso desempenhavam um papel fundamental no processo de ensino,
instruindo-nos todos os dias sobre as coisas práticas sem sequer nos darmos conta disso.

Quando eu já estava praticamente habituado a não ser importunado por causa da minha mancha
no rosto tal como me haviam importunado durante toda a minha incursão na escola primária bem
como na escola secundária, agora eu tinha me transformado num estudioso capaz de escrever um
tratado sobre as diversidades da espécie humana, mas que entretanto decidira limitar o meu

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campo de observação constante do comportamento, do carácter, das atitudes, das emoções, da
personalidade e de outras características físicas e psicológicas dos integrantes da minha geração
na Escola de Jornalismo, a começar pelo próprio senhor Parruque que gostava muito de poluir o
ambiente frontal da escola com o fumo dos seus cigarros, cujo vício pela nicotina lhe tinha
mesmo agarrado pelos pulmões.

Outro viciado era o meu amigo Arsénio Henriques, que não tendo o mesmo vício dos cigarros do
senhor Parruque da secretaria, tinha o vício de fazer locução com uma voz como de Edson
Magaia. Isso deixava o professor Aurélio Cuna da disciplina de Português tremendamente
aborrecido, porque sempre que mandava o Senito ler um determinado texto para efeitos de
compreensão, o meu amigo fazia locução, imitando Edson Magaia, uma voz incontornável da
história da televisão no país, desde os tempos da guerra do Golfo.

- Mandei para ler o texto, não para fazer locução. - dizia o professor Aurélio, desgastado, mas
sem nunca perder o controle da situação.

Quando o Arsénio Henriques tentava cumprir com as orientações do professor, somente


conseguia ler de forma conforme uns dois ou três parágrafos, mas como era um viciado da escola
do Edson Magaia, logo voltava de novo a se perder na sua locução semelhante a do seu ídolo.
É esse vício que acabou acompanhando a carreira do jornalista Arsénio, cujo timbre de voz na
locução acabou assumindo mais ou menos o seu próprio estilo. Os mais novos que vieram mais
tarde ingressar na profissão, já não se inspiraram mais no Edson Magaia, mas sim no próprio
Arsénio, que muito cedo se tornaria famoso. O professor Aurélio Cuna acabou se dando por
vencido, mas numa coisa estava certo: nunca confundir leitura com locução. O Senito
desobedeceu porque estava viciado, mas tudo é bom quando acaba bem. É só ver o resultado
final, até o presidente Nyusi não aguentou aos seus encantos, tendo lhe recolhido consigo para o
seu consulado.

Tudo o que eu sempre quis ver um dia a acontecer e que sempre achei que poderia ser marcante
na história da Escola de Jornalismo era que qualquer um dos nossos professores formasse grupos
de trabalho nos quais o gago falante José Luís Gonzaga Jeque, o gago atrapalhado Anselmo
Sengo e o gago tímido Ernesto Saul pudessem coincidir no mesmo grupo. Três gagos no mesmo
grupo seria um espectáculo inadiável no dia da apresentação do trabalho. O Sengo iria atrapalhar

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tudo com a sua gaguês, por não se entender com o Gonzaga que gostava muito de falar o tempo
inteiro mas que nós que éramos a sua audiência permanente éramos obrigados a estar muito
atentos porque tinha uma velocidade incrível nas palavras enquanto ao mesmo tempo gaguejava
sem parar, enquanto o Saul que era um gago tímido havia de ficar o tempo todo tentando dizer
alguma coisa mas sem chegar a conseguir proferir palavra nenhuma.

Não tardou para que eu percebesse que ainda que o Gonzaga e o Sengo fossem uns gagos de
primeira linha, um gago falante e um gago atrapalhado, os dois eram portadores de uma cultura
geral invejável, eu chegava mesmo a pensar que eram uns fofoqueiros de primeira, dado que
sabiam tudo sobre todo o mundo, mas foi graças a muito trabalho de observação que acabei
percebendo que não eram fofoqueiros nada, eram gajos que andavam muito bem informados
porque gostavam muito de ler jornais, enquanto eu gostava mais de ler livros somente, o que me
tornava menos informado sobre o que se passava ao meu redor. Foi assim que também acabei
aprendendo a ler jornais com mais frequência.

No meio de Gonzaga e Sengo, o Saul seria um gajo perdido. E ainda bem que nunca nenhum
professor se arriscou em juntar aqueles três num mesmo grupo de trabalho. O pior é que por
essas alturas, o Gonzaga e o Sengo não eram somente estudantes, eram jornalistas profissionais
ao serviço do "Diário de Moçambique" e do "Savana", respectivamente, enquanto nós outros
aguardavamos ainda pelo término dos nossos cursos para podermos ingressar no mercado de
trabalho. Quem era gago então? Eram eles ou éramos nós? Às vezes a timidez pode ser pior que
a gaguês. É o que pude perceber, os gajos eram gagos, mas não eram tímidos e nem tinham medo
do terreno e das redacções, tanto quanto eu tinha medo.

O jornalismo tem a vantagem de fazer cada um seguir justamente aquilo que faz com que os
outros lhe achem ser maluco. Por exemplo, eu que não gosto de futebol, tanto mais que nunca
tive jeito para andar a chutar a bola de um lado para o outro, cheguei a pensar que o mulato do
Ivo Tavares fosse um maluquinho, porque passava o tempo todo a falar de futebol. Era um
viciado da modalidade. Eu achando que um jornalista devia se preocupar mais com a literatura,
de tal sorte que enquanto eu passava a vida a ir incomodar o velho Fernando Couto ali ao lado da
Escola de Jornalismo na antiga Editora Ndjira, onde conheci o Celso Muianga e ali nos tornamos
amigos, o Ivo Pedro Tavares não estava nem aí, queria mais saber de futebol e conhecia todos os
jogos, todas as equipas e todos os jogadores. É por causa dessa sua loucura pelo futebol que se

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tornou jornalista desportivo, estando actualmente ao serviço do jornal "Notícias". Cada jornalista
é produto daquilo que gosta, por isso aqui mais uma vez aprendi que não há pior crime que se
pode cometer contra os direitos humanos do que impedir as pessoas de seguirem os seus próprios
sonhos. Uma escola de jornalismo forma jornalistas, mas não obriga a ninguém a ser aquilo que
não é. Esta é também a moral da história, mas não só.

A doce Cândida Adelino era tímida, mas tinha uma voz de locutora e gostava de cantar para a
malta. Era baixinha, mas não chegava na Muanjuma Roque, que era mais baixinha ainda, mas
que tinha uma curiosidade incrível que superava em grande medida a sua baixa estatura. As duas
com o sotaque de Nampula, a primeira menos evidente que a segunda, estavam dispostas a
ultrapassar todas as insinuações dos homens da turma e dos corredores da escola para lhes
impedirem de terminar a missão, mas parece que tudo correu bem até ao fim, salvo erro. Teria
muitas dificuldades de falar da Yolanda porque gostava muito de se fazer de desentendida
durante as aulas, mas depois nos testes recolhia as melhores notas. Cansada de passar a vida a
brincar com a minha mancha, a já falecida Arlete Ndeve, que Deus a tenha, devia já querer
aprender a gaguejar com Gonzaga Jeque, não sei se chegou a conseguir alguma coisa.
De qualquer modo, os corredores da Escola de Jornalismo guardam segredos de muitas gerações
que por ali passaram, histórias de amor e espanto, encantos e desencantos, ilusões e desilusões,
histórias de gente que sonhou em ser jornalista, mas que depois o sonho esfumou-se ou então
transformou-se num autêntico pesadelo. Enquanto isso, eu não só sonhava com o jornalismo,
como também tinha o vício de sonhar com a Zuleica Tina Turner, que também sonhava comigo,
achando que uma mancha na bunda combinava com uma mancha no rosto, que devíamos nos
juntar, de uma vez por todas, numa só mancha para uma harmonia divina definitiva, com muito
amor, carinho e paz.

Por fim, chegados aqui, voltamos ao princípio desta história, ao encontro do chefe de todos os
viciados da Escola de Jornalismo. Eu sou um fumador ocasional também, mas depois do senhor
Parruque da secretaria da Escola de Jornalismo, nunca mais voltei a conhecer um outro fumador
igual, que em todos os intervalos poluia o ambiente com fumaça. Na hora da saída, não era
possível voltar a passar dali sem sentir aquele ambiente poluído pelo fumo dos cigarros do
senhor Parruque, que mais tarde fiquei a saber que acabou se formando em Administração
Pública. É preciso ensinar os estudantes a respeitarem não somente os seus professores, mas

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também os funcionários da escola. Posso até me esquecer de alguns colegas e professores, mas
do senhor Parruque dos cigarros, do velho Chioze das cópias, da dona Sofia da biblioteca, da
dona Maria da secretaria e da dona Palmira da limpeza, jamais me esquecerei.

***
A lista dos órgãos de informação para os quais haveríamos de ser enviados para efeitos de
estágio tinha vindo com o director pedagógico da Escola de Jornalismo, que também tinha sido o
nosso professor da cadeira de Estatística no segundo ano. Tínhamos chegado ao término do
curso, pelo que para nós aquele era um dia de muita euforia. Estávamos todos empolgados e
ávidos em ouvir o professor a anunciar os nomes dos jornais, das rádios e das televisões que
haviam disponibilizado vagas para nos acolher como estagiários com vista a iniciarmos as nossas
carreiras profissionais. Na lista apresentada pelo director pedagógico, constavam os jornais
"Notícias" e "Vertical", a TVM, a STV, a Rádio Moçambique e outros órgãos que não passavam
de dois ou três, o que já era bastante bom se considerarmos que na altura não existiam tantos
órgãos de informação assim.

Lembro-me que o meu colega Ivo Tavares escolheu ir estagiar no jornal "Notícias", onde até
hoje se encontra a trabalhar, estando afecto na página desportiva. O Arsénio Henriques também
não perdeu muito tempo, tendo escolhido a STV, uma televisão que entretanto acabava de ser
criada e que deverá ter representado imediatamente um destino certo para ir cumprir com o seu
sonho de ser como o jornalista Edson Magaia, cujo estilo de locução lhe havia viciado de forma
indelével. Não creio que o José Luís Gonzaga Jeque e o Anselmo Sengo possam ter se
preocupado com aquelas ofertas de estágio, uma vez que os dois já eram nessa altura jornalistas
de peso nos jornais "Diário de Moçambique" e "Savana", respectivamente. Não sei se terá sido
nesse momento que o Moisés Wetela, que tinha vindo da província de Sofala, escolheu ir para o
"Diário de Moçambique" ou então se ele já estava a trabalhar neste jornal, mas o facto é que de
uma ou de outra forma ele acabou iniciando a sua carreira na delegação de Maputo deste mesmo
diário, tendo mais tarde regressado para a cidade da Beira, onde se estabeleceu na delegação
central do mesmo. É para o "Diário de Moçambique" que também foram parar a Arlete e a
Yolanda. O Pedro Cumando teria escolhido ir para a TVM, onde depois do estágio teria voltado

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para Manica, depois de haver passado algum tempo na cidade da Beira. Não me lembro muito
bem dos que seguiram para a RM, mas houve colegas que escolheram tal destino. Há-de ter sido
por aí além que terão seguido a Cândida e a Muanjuma.

E eu? Eu escolhi ir para o jornal "Vertical", um diário eletrónico distribuído por fax e e-mail, que
havia sido criado por jornalistas que tinham trabalhado com Carlos Cardoso no diário eletrônico
"Metical", cujo qual o malogrado jornalista era dono e proprietário. Vertical? Porquê? Lembro-
me de alguém ter perguntado isso, uma vez que o "Vertical" era um diário eletrônico de pouca
expressão. Não sei muito bem o que teria respondido ao colega que me teria feito aquela
pergunta em tom de chacota, mas o facto é que eu não tinha jeito nem para rádio muito menos
para a televisão, aliás, no que diz respeito à televisão, nem pensar mesmo, uma vez que o meu
rosto me impõe algumas restrições em termos de imagem, ou seja, sempre achei que em termos
técnicos, os telespectadores, ao invés de se concentrarem na informação que estaria a lhes
transmitir, haviam de perder mais tempo a se concentrarem na minha mancha congénita no rosto,
procurando saber o que é, como é, se tem cura, se não tem cura, o que seria uma enorme
distracção. No jornalismo, cada um segue os seus sonhos, mas também é necessário respeitar
algumas questões técnicas que podem não ir de acordo com a forma como nós somos por
natureza, como o caso aqueles que sendo gagos, não poderiam logo à partida sonhar com o
jornalismo radiofónico ou televisivo. Hoje em dia já começamos a ouvir locutores com
limitações vocais e sérios problemas de dicção fazendo rádio, o que constitui um enorme perigo
à comunicação, salvo devido respeito por jornalistas como Jeremias Langa, que tendo claros
problemas de dicção, ainda conseguem fazer algum esforço para conseguirmos ouvir as palavras
que emitem nos programas que dirigem. Também ninguém disse que devíamos deixar de
comunicar por causa das nossas deficiências, cujas quais não podem ser fundamento definitivo
para a limitação total e completa da liberdade de expressão. Sempre que alguém disser que um
surdo ou um mudo não podem falar na televisão por causa da sua condição está a mentir, só pode
ser alguém que está ao serviço da opressão através da exclusão social. É apenas uma chamada de
atenção para alguns cuidados a ter, vejam vocês como é o Marcelo Mosse quando vai a um
debate televisivo numa situação em que somente ele tem domínio do assunto, temos que ter
paciência com a sua gaguês, mas tenho dúvidas se os telespectadores haveriam de suportar se ele
fosse apresentador do telejornal.

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Mas não foram somente aquelas as razões que me levaram a optar pelo jornal "Vertical", porque
também podia ter escolhido ir para os jornais "Notícias" ou "Diário de Moçambique", que eram
as oportunidades que existiam em termos de imprensa escrita. É que no ano anterior, tinha tido
uma pequena passagem pelo diário eletrônico "Correio da Manhã", onde havia sido dispensado
em apenas duas semanas pelo editor Refinaldo Chilengue, em virtude de haver publicado uma
matéria na qual dizia que um vereador do conselho municipal de Maputo havia sido destituido,
quando na verdade apenas havia passado por uma moção de censura na assembleia municipal.
Embora eu tivesse passado a aprofundar mais as matérias, assim como as técnicas de redacção,
não me sentia preparado para enfrentar o que eu achava serem grandes órgãos de informação. Foi
quando de facto eu ainda era mesmo um principiante, quando ainda achava que o tamanho dos
órgãos de informação fosse instrumento de avaliação da qualidade do jornalismo, quanta
ingenuidade da minha parte, afinal não levaria muito tempo para perceber que era justamente o
contrário, os pequenos jornais emergentes são na verdade a expressão de uma luta de anos e anos
por um jornalismo que se pretende cada vez mais livre, independente e plural.

Distribuídos que estávamos pelos órgãos de informação que disponibilizaram as vagas para o
estágio, estávamos então ávidos em irmos nos apresentar nos respectivos locais de destino com o
compromisso de voltarmos somente com os relatórios de estágio que junto com a entrega dos
trabalhos de fim de curso daríamos por terminada a nossa formação na Escola de Jornalismo.
Muito mais tarde, aquela escola viria a ser transformada também numa instituição de ensino
superior, qual nível que veio se juntar ao ensino médio técnico-profissional que nós fizemos.
Foram bons tempos. Hoje, quando passo ao lado da escola, não resisto em dar uma entrada lá.
Sou uma pessoa muito emotiva e muito nostálgica, talvez por isso mesmo que tenho uma
memória de elefante. Talvez por causa do sabor da nossa primeira formação a sério, porque
depois dessa, qualquer outra formação adicional faz parte da continuação da luta.

Na verdade, não somente fomos levados para uma vida profissional com o intuito de obtermos
sustento para as nossas famílias, como também fomos cada um de nós seguir o seu sonho de
acordo com os comandos da sua própria personalidade, do seu próprio carácter, temperamento,
atitude, emoções, vibrações, ambições, alma, nervo e espírito. Ninguém foi obrigado a ir para
onde foi, cada um seguiu os seus instintos, tanto para o jornalismo desportivo, cultural, social,
econômico ou político, bem como para o jornalismo pró-regime ou para o jornalismo

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independente, o que, como ainda teremos o privilégio de contar, será então a porta de entrada
para a grande selva, uma selva cheia de deuses e papões, ilusões e desilusões, alentos e
desalentos, o sonho de uma vida melhor, quando a realidade é um autêntico pesadelo.

É com esta grande novidade de que havia conseguido um estágio que informei aos meus pais que
a vida agora estava prestes a conhecer um novo rumo. O início de uma vida laboral para qualquer
pessoa é sempre uma enorme satisfação no seio da família, sobretudo numa sociedade onde o
elevado nível de desemprego causa o desespero de muitos jovens. Mas é preciso avisar que nesse
tempo não se ia para o jornalismo apenas por desemprego. Também fiz questão de contar para a
Zuleica Tina Turner a minha grande novidade, que ficou muito feliz e com esperança de uma
vida melhor para nós, que éramos a dupla da mancha congénita e que estávamos dispostos a nos
casar. Íamos juntar a mancha da bunda dela com a mancha do meu rosto e viveríamos felizes
para sempre, como nas novelas.

Quando cheguei ao jornal "Vertical", encontrei os jornalistas Lázaro Mabunda e Manuel Matola,
que estavam de saída para outras frentes jornalísticas para as quais acabaram sendo capturados.
No "Vertical", trabalhei com o editor Victor Matsinhe e o chefe da redacção Arnaldo Abílio,
agora procurador da República, mas também os jornalistas Zacarias Couto e Aurélio Muianga
durante cerca de um ano e meio. Aos domingos, ia ao jornal produzir a edição das segundas-
feiras, onde tinha o privilégio de ser pessoa de confiança do escritor Ungulani Baka Khossa, que
fazia questão de ser eu a digitar os seus textos na sua coluna "Estepe", que me ditava de
memória, o que na altura eu achava ser uma capacidade extraordinária. O saudoso poeta Amin
Nordine também mandava os seus poemas para o jornal a partir do Chiveve, mas tive o
privilégio de conviver muito com ele quando se fez a capital, onde mais tarde viria a perder a
vida, se não estou em erro. Nessa altura, eu era muito feliz e não sabia. É que ainda não conhecia
a grande selva do jornalismo, nem sequer fazia ideia.

***
Tal como os grandes clubes de futebol, que recrutam os melhores jogadores que despontam nos
pequenos clubes, o mesmo acontece no jornalismo, onde os grandes órgãos de informação
recrutam os melhores talentos nos pequenos órgãos de informação.

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Isso acontece nas grandes televisões que buscam os melhores talentos nas pequenas televisões,
nas grandes rádios que buscam nas pequenas rádios e nos grandes jornais que buscam nos
pequenos jornais. Não é de se admirar que os jornalistas, sobretudo os que militam no chamado
jornalismo independente, sejam os profissionais mais inconstantes no emprego, saltando
constantemente de um órgão de informação para o outro, ao que não passam de simples
marionetes do sistema, um sistema que às vezes me parece ser tão muito bem montado como se
de uma troca de recursos humanos entre as empresas jornalísticas se tratasse, o que ainda mais
além terei a oportunidade de aprofundar.

De tal sorte que também chegou a minha vez de ser recrutado, logo eu que estava a
sensivelmente um ano a trabalhar no diário eletrônico "Vertical", um jornal de pouca expressão
aonde eu decidira iniciar a minha carreira justamente porque começara por ter receio de ir para o
que eu achava que eram grandes órgãos de informação.

A chamada vinha de Fernando Lima, que me ligara para me apresentar uma proposta de uma
nova oportunidade de emprego no semanário "Savana", tendo dito que ele gostava dos textos
escritos por mim no jornal "Vertical", que mostravam um grande talento que deveria ser
desenvolvido num grande jornal e de maior expressão como o "Savana", o que seria muito
importante para o meu desenvolvimento profissional e para a minha carreira como jornalista,
uma conversa que me deixou muito emocionado, uma vez que era a primeira vez que era tratado
com tal reconhecimento ao mais alto nível do jornalismo moçambicano, bem como mais
emocionado ainda teria ficado com a oferta de uma nova oportunidade como acontece com os
melhores jogadores de futebol quando são recrutados nos pequenos clubes para irem militar nos
grandes clubes.

Não há mal nenhum em receber uma proposta de trabalho num mercado cada vez mais
concorrencial como já nessa altura começara a se tornar o sector da comunicação social. O que
tinha acontecido para que o conselho de administração da Mediacoop, empresa proprietária do
semanário "Savana", tivesse decidido ir ao mercado buscar novos talentos para o jornal? Na
verdade, tinha havido uma "fuga de cérebros" no "Savana", devido à saída dos jornalistas
Salomão Moyana e Lourenço Jossias, que foram criar o semanário "Zambeze", o grande rio
"onde a Nação se expressa". O surgimento do "Zambeze" criou um grande sangramento no
"Savana", uma vez que essa nova iniciativa jornalística também atraiu a saída de importantes

43
jornalistas como Rui de Carvalho, Paulo Machava, Ericino de Salema, Alvarito de Carvalho,
Raul Senda, Anselmo Sengo, os quais, entretanto, haviam seguido o curso do rio. Para além de
mim, que fui recrutado para ir reforçar o "Savana" na altura, lá fiquei a saber que também fora
recrutado um outro talento, nomeadamente o Francisco Carmona, que tinha tido o privilégio de o
conhecer nas duas semanas em que estive no diário eletrónico "Correio da Manhã", um jornal de
economia dirigido por Refinaldo Chilengue. Francisco Carmona era conhecido como o "rato das
bibliotecas", devido as suas habilidades extraordinárias em descobrir matérias de economia de
grande interesse público dentro dos relatórios e contas dos bancos e empresas e balanços do
banco central, o que era na altura um talento extremamente raro.

De onde Fernando Lima teria tido a ideia de ir nos recrutar, justamente a nós, Carmona e eu, nos
jornais de pouca expressão? Teria sido apenas uma abordagem sua? Não. Na verdade, como mais
tarde vim a saber, os nossos nomes teriam sido propostos pelos jornalistas Milton Machel, editor
adjunto, Rafael Bié, chefe da redacção e Luís Nhachote, editor das páginas culturais, os quais,
entretanto, teriam permanecido no "Savana" após a fundação do grande "Zambeze".
Foi assim que me despedi dos meus chefes no "Vertical", nomeadamente o editor Victor
Matsinhe e o chefe da redacção Arnaldo Abílio, este último que era uma pessoa muito simples e
muito silenciosa com quem teria desenvolvido ainda mais o meu interesse em matérias de
justiça, lei e direito, uma vez que ele já nessa altura terminava a sua licenciatura em Direito, o
que já nessa altura tinha transformado positivamente a sua maneira de confrontar os factos no
jornalismo. Lá me despedi igualmente dos colegas Aurélio Muianga e Zacarias Couto, tendo ali
deixado ficar também os novos recrutas do jornal, que eram os meus pupilos, nomeadamente
Almeida Oliveira e Joel Chambale. Nessa altura, o salário que recebia no "Vertical" servia para
ajudar com as contas lá de casa, bem como para pagar alguns caprichos meus e da Zuleica Tina
Turner, mas ainda não tinham dado o suficiente para que pudéssemos juntar definitivamente as
nossas manchas do rosto e da bunda, o que equivale a juntar as nossas trouxas, a fim de nos
casarmos e vivermos felizes para sempre, como nas novelas.

Muitos irão achar desafiadora a minha capacidade de negociação, onde o Fernando Lima e o Kok
Nam me perguntaram quanto eu queria receber como salário, o que equivale a dizer a minha
proposta salarial, pelo que, uma vez que gostava muito dessas coisas de transparência não
transparência, comecei por lhes perguntar quanto é que recebiam os outros, a fim de que eu não

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fosse ser a principal vítima das disparidades salariais por falta de conhecimento, o que se
recusaram a responder, que eu devia apenas me preocupar com a minha vida. Falaram-me das
vantagens para além do salário, do jornal que era de maior expressão, da maior visibilidade que
me daria, todas essas coisas que no fundo no fundo não significam nada de concreto numa
discussão de salário, mas que os jornalistas em início de carreira gostam muito, uma vez que
elevam o ego, mas não melhoram o bolso, de tal sorte que acabaram me convencendo a ingressar
no "Savana" em troca de um salário igual ao que recebia no "Vertical", senão mesmo com uma
ínfima diferença. Em qualquer negociação, há quem ganha, há quem perde. Confesso que perdi.
Podia ter negociado mais. Mas quem melhor conhece a contraparte negocial, sabe que eu não
teria conseguido muito mais. Os administradores eram macacos velhos, por isso jogaram mais
com a minha auto-estima, que se resumia a uma enorme vontade de crescer no jornalismo
moçambicano, mal sabia eu que estava mesmo a ingressar numa grande selva, onde ninguém
havia me avisado da presença de deuses e papões, numa história muito cheia de ilusões e
desilusões, encantos e desencantos, avanços e recuos, uma grande escola da vida.

Trabalhei no "Savana" durante sensivelmente dois anos e meio, até que chegou o dia em que o
Fernando Lima e o Kok Nam acharam que eu já estava suficientemente maduro para me
envolverem numa grande investigação sobre a exploração ilegal de madeira em Cabo Delgado, o
que disseram tratar-se de um trabalho altamente confidencial, cujo qual não deveria contar para
ninguém, nem mesmo para o meu editor Fernando Gonçalves, dada a sua enorme sensibilidade.
Em Cabo Delgado, eu deveria trabalhar sob capa, ninguém deveria saber que eu era jornalista,
nunca deveria me identificar como tal, como me disseram o Lima e o Kok. Em qualquer área,
todo o profissional que se preza gosta do momento em que lhe é confiada uma importante tarefa.
Tinha chegado a minha vez de executar uma grande tarefa.

Com efeito, o Lima e o Kok falaram-me do receio que tinham em me atribuir tal tipo de missão,
uma vez que eu tinha um problema, que poderia colocar em risco o meu trabalho e a minha
própria vida: a minha mancha. Foi a primeira vez que me falaram da minha mancha congénita,
que a minha mãe me ensinou a responder que nasci assim mesmo, é uma mancha congénita, não
tem cura. Tal menção não dispertou de forma alguma os fantasmas dos nomes feios que
gostavam de me dar os meus colegas desde a escola primária a escola secundária, desde "Mapa
de Moçambique", "Mapa Cor-de-Rosa", "Olho Branco", "Pintex", "Robiallac", "Murdock",

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"Cara Queimada" ou outro qualquer, dado que não me pareceu que se tratasse de bullying, muito
pelo contrário, despertaram-me as grandes lições da Escola de Jornalismo, onde aprendi que o
jornalismo tinha que respeitar questões técnicas, de tal sorte que nunca considerei trabalhar numa
televisão, por causa da minha mancha, que haveria de distrair a atenção dos telespectadores na
informação. Na altura, posso não ter percebido a dimensão do que o Lima e o Kok quiseram me
dizer quando mencionaram o risco de a minha mancha colocar em causa a investigação, uma vez
que em Cabo Delgado eu não deveria me identificar como jornalista, mas por causa da mancha
alguém acabaria por notar a minha presença e a minha circulação em diferentes locais
estratégicos. A única imagem que tenho hoje que se pode equiparar a esta situação é de quando
cometi o crime de apagar a assinatura dos "Fire Relâmpago" na parede da Escola Primária da
Munhuana, os quais me identificaram através da minha mancha, que eles chamaram de cicatriz,
através da qual garantiram que haviam de me apanhar, até que a acabei escapando as operações
de busca e captura dos "Fire Relâmpago" que somente cessaram com o desaparecimento da febre
das "bands" nos finais da década noventa. A minha ida a Cabo Delgado, que seria uma grande
missão, acabava de ser o despertar da minha mancha, que há alguns anos se havia mantido
adormecida.

Naquela sexta-feira, o meu bilhete de avião para Pemba já estava comprado, a fim de que eu
viajasse no domingo. Às sextas-feiras, depois das reuniões de planificação nas manhãs,
realizavam-se algumas petiscadas que juntavam todos os jornalistas do "Savana" e do
"Mediafax", onde não faltava um franguito aqui, um porquito ali, alguma cerveja para a malta, o
uísque do Kok e um pouco de vinho tinto do mano Nandinho e batatas fritas, o que servia para
nos descontrair a todos, uma vez que o ambiente da redacção era tenso e de muita pressão.

Não tive coragem de viajar para Cabo Delgado sem que tivesse tido o consentimento de
Fernando Gonçalves, que era o editor do "Savana", o que me obrigou a entrar na sua sala e lhe
pedir autorização para viajar, a qual eu acreditara cegamente que haveria de me ser dada.

Fernando Gonçalves ficou deveras assustado com o tamanho da situação em que eu havia sido
envolvido, tendo dito que não me autorizava a viajar, que aquela era uma operação
extremamente delicada, o que me deixou em grande estado de aflição.

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Para cumprir com as ordens de Fernando Gonçalves, tinha que desobedecer as ordens de Kok
Nam e Fernando Lima. O primeiro era o editor do "Savana", o segundo era o director do mesmo
jornal e o terceiro era o PCA da Mediacoop. E o que aconteceu aqui foi mesmo um grande filme,
que me fez apreciar um pouco a grande selva do jornalismo investigativo a moda moçambicana.

Uma vez que o editor Fernando Gonçalves não me tinha autorizado a viajar, decidi cumprir com
as suas ordens. Sob ponto de vista de hierarquia editorial, não havia como eu obedecer as ordens
do administrador sénior Fernando Lima e do director do jornal Kok Nam em detrimento das
ordens do editor do jornal Fernando Gonçalves, ainda que tivesse sido o Lima que me tenha
contratado para o "Savana" pessoalmente. Na segunda-feira seguinte, o director Kok Nam ficou
espantado ao me ver chegar a redacção quando era suposto que eu tivesse viajado no dia anterior.

Chamou-me para a sala dele, onde lhe expliquei que não tinha viajado porque o editor não me
havia autorizado a viajar, o que lhe deixou muito aborrecido, uma vez que não era para eu ter
contado nada sobre a viagem ao meu próprio editor, o que me pareceu ser um jogo muito
perigoso, como vim a confirmar com ele. Não sei como o Kok Nam conseguiu em tão pouco
tempo inventar a mentirinha segundo a qual já teria sido tudo acertado com o editor, o que me
permitiu viajar para Cabo Delgado no dia seguinte. Quando já estava em Pemba, recebi a
chamada de Fernando Gonçalves, que quis saber do meu paradeiro.

- Estou em Pemba. - respondi.

- Em Pemba?! - reagiu ele, estupefacto. - Estamos a brincar com coisas sérias. Eu não te autorizei
a viajar.

- Mas o Kok Nam me garantiu que tinha falado consigo.

- Não, não e não. Olha, arruma as suas coisas, apanha um avião e volta para casa. Eu sou o editor
deste jornal e não quero responder por coisas que eu não sei.

Foi ali que eu percebi que o Kok Nam tinha mesmo mentido para mim e eu estava sozinho em
Cabo Delgado, entregue a minha própria sorte, ao serviço de uma grande investigação da
exploração ilegal de madeira naquela provincia sem o consentimento do meu próprio editor.
Uma vez que o Lima e o Kok tinham me avisado dos riscos que eu haveria de correr por causa da
minha mancha, que me tornaria uma pessoa facilmente detectável nos vários locais estratégicos

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por onde eu andaria em busca de informações, decidi mudar de estratégia. Lembrei-me de um
célebre jornalista investigativo que uma vez disse que o melhor jornalista investigativo é aquele
que conhece o momento de se retirar. Decidi me retirar.

Depois de três semanas a zanzar em Pemba, decidi regressar a grande capital, afinal nunca é
tarde para regressar a Constantinopla. Pensei nos perigos que tal missão representava para mim,
pensei na bunda da Zuleica Tina Turner que tinha uma mancha reluzente, a qual nunca mais teria
voltado a ver se tivesse me arriscado tanto e tivesse sido capturado pelos chineses ou sul-
africanos que se dedicavam a exploração ilegal de madeira em Cabo Delgado, com o conluio das
autoridades e dos generais, os quais facilmente reconheceriam os meus movimentos por causa da
minha mancha congénita no rosto.

Quando voltei a redacção, comecei logo a viver um clima de tensão no seio dos colegas, que
estavam a espera de eu apresentar os resultados das minhas incursões de grande jornalista
investigativo em Cabo Delgado. Passadas duas semanas, era o próprio editor Fernando
Gonçalves quem me exigia o trabalho, o que logo percebi ser uma autêntica sacanagem, tanto da
sua parte, que me avisara dos perigos da minha viagem, bem como da parte do Lima e do Kok,
que engendraram aquela operação, cujo desdobramento somente eles mesmos conheciam
melhor, bem como a sua dimensão internacional, cujas raízes mais tarde vim a saber que
estariam associadas ao jornal "Expresso" de Portugal, uma bolada que nunca me foi revelada
antes. Luís Nhachote também de vez em quando entrava em cena para me mostrar que eu não
haveria de ter sido escolhido para ir a Cabo Delgado para depois voltar e não escrever nada para
o jornal. Sempre que eu me deparava com ele na redacção, ele mesmo abria o ficheiro no qual eu
havia começado a tentar escrever algumas linhas, como se fosse capaz de inventar factos que não
cheguei sequer a encontrar, a fim de que eu concluísse a reportagem.

Face ao clima de tensão que agora havia se instalado na minha vida, que também sabia que era
uma autêntica vergonha partir para uma grande investigação e voltar com as mãos cheias de
nada, tomei a coragem de pedir uma reunião com o Lima e o Kok Nam para lhes dizer de uma
vez por todas que não voltara com nada para escrever sobre Cabo Delgado.

- Nem uma linha? - perguntaram.

- Nem uma linha. - respondi.

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E o Lima falou-me dos males que tal atitude representava na minha vida, dos colegas que
haveriam de me fazer sofrer pela vergonha de ir e voltar sem nada para escrever.
Para mim, esse seria um problema menor. O maior problema teria sido eu andar sozinho em
Cabo Delgado a vasculhar aqui e ali em nome do jornalismo investigativo, enquanto a missão
nem sequer era do conhecimento do meu próprio editor Fernando Gonçalves, onde no final do
dia estaria ao serviço de um jornal português e não do "Savana" propriamente. Cabo Delgado é
uma província cheia de mistérios. Talvez se eu não tivesse a minha mancha congénita no rosto,
teria me arriscado ainda mais nas buscas.

- Desde quando o "Savana" realiza este tipo de jornalismo investigativo? - perguntei, referindo-
me ao jornalismo sob identidade oculta.

O Lima olhou para o Kok.

O Kok olhou para o Lima.

E ambos responderam, quase que em simultâneo:

- Esta é a primeira vez.

E eu disse:

- Para mim também é a primeira vez.

Se era a primeira vez para eles, que eram macacos velhos, imagina para mim, que era um
principiante. Hoje em dia, quando oiço falar de jornalistas que são raptados em Cabo Delgado e
de outros que lá desaparecem sem deixar rasto, lembro de tudo o que eu lá passei. Sai daquela
reunião com o Lima e Kok com a certeza de uma coisa: a minha vida não voltaria a ser a mesma
que vinha tendo até antes de ir a Cabo Delgado. De facto, não consegui aguentar com o ambiente
de trabalho que havia se gerado ao meu redor por ter voltado da grande missão sem nada para
escrever. Foi por isso que algumas semanas depois, apresentei a minha carta de demissão. De
qualquer forma, sempre ficou a dúvida no seio dos meus colegas da redacção. Será que não tinha
nada para escrever sobre a exploração ilegal de madeira em Cabo Delgado ou o que tinha lá
achado era tão grave que eu não me achava em altura de poder escrever e publicar? Nada disso.
Culpo a minha mancha congénita no rosto que não me permitira muito espaço de manobra para

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andar camuflado, tal como haviam insinuado o Lima e o Kok antes da minha viagem. O
Fernando Gonçalves salvara a minha pele. O jornalismo investigativo tinha se transformado
numa enorme selva, cheia de deuses e papões, ilusões e desilusões, alentos e desalentos, um
sonho que havia se transformado num autêntico pesadelo.

***
Naquela que teria sido a minha primeira passagem pelo semanário "Savana", de onde acabara de
me afastar por motivos de desinteligências internas, ao que tivera que apresentar uma carta de
demissão, tive a honra de me identificar de forma particularmente surpreendente com o jornalista
e escritor Fernando Manuel, uma pessoa verdadeiramente sensível, super dotada e com um
elevado grau de humanismo.

É claro que cada pessoa é uma raça. O Lima, que me convidara para o Savana, é como é. O
saudoso director Kok Nam, que tinha um cão chamado Joe, era como era. O editor Fernando
Gonçalves, que andava num tractor que parecia carro, também é como é. Tendo cada um destes
meus superiores hierárquicos em suas personalidades, características, atitudes, emoções,
vibrações, comportamentos, nervos, almas e espíritos, uma mistura do bom e do mau, do doce e
do amargo, do humano e do desumano, do sensível e do insensível, queria destacar em Fernando
Manuel uma personalidade que leva a vida de forma tão simples, tão desportiva e tão sem stress
com ninguém, não se preocupando com nada mesmo nem com ninguém e para quem, no que
dependesse dele, a redacção do jornal teria sido definitivamente transferida para a rua, onde
passaria a ser editado na barraca da dona Ana, no restaurante Portugália ou então no Goa, onde
se inspirava para as suas crónicas ao gosto de um bom vinho tinto com o seu velho amigo João
Paulo, dos "Monstros". Os leitores mais assíduos do "Savana" terão já percebido que estou a
falar do cronista responsável pela coluna de crónicas literárias "Tanglomanglo", que veio
substituir a sua incontornável "Missa Pagã", cujas crónicas foram já publicadas numa colectânea
com o mesmo nome.

Para mim, que sempre fui uma pessoa altamente sensível ao exercício literário, não haveria como
não ter me aproximado do mano Nandinho para compreender melhor o espaço da crónica
literária no meio do jornalismo, o que já tinha começado a perceber um pouco como isso era com

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o meu amigo Ungulani Baka Khossa durante cerca de um ano e meio em que estive no jornal
"Vertical". Já vi muitos jornalistas e aspirantes a jornalistas e escritores e aspirantes a escritores a
tentarem cronicar alguma coisa nos jornais uma vez por semana, mas poucos são aqueles com os
quais tive o privilégio de conviver que atingiram o nível de abstração alcançado pelo expoente
máximo Fernando Manuel, que é dos poucos jornalistas que também serão referências
incontornáveis da literatura moçambicana contemporânea publicada nos jornais, cuja vida e obra
devia ser muito bem estudada pelos criticos literários.

- O jornalista e o escritor são marido e mulher, Nenane. - dizia Fernando Manuel. - O jornalista
trabalha para sustentar o escritor, que é a sua mulher, aquela que concebe, dá filhos e os cria.

Era para eu entender uma coisa dessas de uma só vez? Não. Talvez tive que ficar desempregado
para saber que ainda que o escritor que despontava em mim pudesse andar a escrever alguma
coisa, sempre precisaria do jornalista para sustentá-lo, que para o efeito precisaria de trabalhar.

Lembro-me de um dia em que a jornalista Salane Muchanga, que acabara de iniciar o seu estágio
no "Savana", cometeu o grave crime de sentar justamente no lugar onde ficava o computador
"Macintosh" que o Fernando gostava de escrever nele quando ainda não havia contraído a
cegueira.
Quem conhece o homem sugerido em pessoa, deve imaginar como as palavras duras e pesadas
que dirigiu para aquela rapariga a fim de que abandonasse a cadeira dele e o computador dele
eram nada mais nada menos que um welcome, uma espécie de boas vindas mamã a redacção do
"Savana". Ainda que a Salane tivesse ficado assustada e tivesse fugido para ir chorar na casa de
banho, onde permaneceu durante horas a fio trancada, quando ela saiu tive que a confortar, tendo
lhe dito que de todas as espécies que habitavam a grande savana o Fernando era a única a quem
menos devia temer.

- Deixa lá o mano Nandinho. - disse eu a Salane, que estava tremula. - Ele somente está a
desejar-te as boas vindas.

De resto, o Nandinho é e sempre foi para mim uma espécie de última reserva da moral, aquele
que defendia os jornalistas mais novos do exercício abusivo do poder hierárquico pelas chefias
editoriais, quando ainda não havia contraído a cegueira. Às vezes, nas reuniões de planificação,
os editores e directores davam ordens descabidas aos jornalistas, ao que o mano Nandinho dizia,

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parafraseando o Kok Nam, que isto não é uma fábrica de salsichas. É um jornal. É preciso
respeitar a liberdade de pensamento, o que equivale a respeitar o jornal e o jornalismo.
- Eu penso. - dizia o cronista, de forma muito assertiva. - Não me obriguem a pensar, isto não é
uma ditadura fascista. Eu penso. E ponto final e basta.

E eu me divertia imenso com as suas interpelações bombásticas, se não tivéssemos capacidade


de abstração podíamos pensar que o mano Nandinho já tivesse enlouquecido, logo ele que
sempre nos disse que ainda vai escrever sobre muitos amigos e colegas que vão morrer lhe
deixar, porque ele nunca há-de morrer tão já. Verdade seja dita, li muitas crónicas na missa pagã
sobre muitos amigos dele e pessoas da sua geração que morreram, desde o João Paulo, o Ali
Baraza, a Lina Magaia, o Albino Magaia, o Kok Nam, o Joel Chiziane e outros o que comprova
o facto de que ainda o homem vai escrever muito e vai continuar a nos brindar com as suas
crónicas, salvo embora me tenha provocado uma enorme tristeza saber que tinha perdido a visão.
Mesmo tendo perdido a vista, o mano Nandinho resiste de forma imponente, tal como nos
mostrou no dia do lançamento da "Missa Pagã" na Fundação Fernando Leite Couto.
Tinha me sido dada a tarefa de cuidar da estagiária que havia chegado ao jornal, por isso tratei
mesmo de lhe avisar para que não se preocupasse muito com as birras do mano Nandinho, que
aquilo era apenas uma espécie de welcome ou de boas vindas.

É o que aconteceu até ao dia em que a pobre Salane teve que se confrontar com o director Kok
Nam, que lhe mandara fazer a cobertura do julgamento de um enfermeiro que teria violado
sexualmente uma paciente. E aí já não era assunto de brincadeira, mas sim trabalho mesmo.
Quando Salane voltou do tribunal, não tinha nada o que escrever, o que tanto aborreceu o
director, que descarregou todo o seu aborrecimento sobre ela. Salane tentou explicar que o juiz
lhe expulsara do tribunal. É justamente isso que o Kok acabou lhe mandando escrever na sua
matéria, que o juiz expulsou uma jornalista do tribunal, o que considerou ser um atentado contra
a liberdade de imprensa, uma vez que durante toda a sua vida nunca tinha visto tal coisa.

- Escreve isso. - ordenou o director. - Essa é que é a matéria.

E foi-se embora.

Salane permaneceu inerte diante do computador, quando vi que ela estava quase a deitar
lágrimas, com medo de que pudesse não ter um bom desempenho como jornalista, o que lhe

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colocaria em risco de perder a oportunidade de emprego que tinha nas suas mãos. Perguntei o
que se estava a passar e ela me disse que era o director Kok Nam que lhe tinha mandado cobrir
um julgamento, mas que o juiz lhe havia mandado embora do tribunal quando descobriu que ela
era jornalista, o que o director lhe tinha dito para escrever, só que ela nem sequer conhecia o
nome do juiz.

- Eu nem sequer conheço o nome do juiz que me expulsou do tribunal. - explicou-me. - Por isso
não tenho o que escrever.

Eu disse a ela:

- Então manda passear o director.

E ela:

- Mandar passear o director?

- Sim. - respondi. - Manda passear.

Ela ficou ainda mais confusa e deprimida, qual estagiária choramingando copiosamente.
Naquele mesmo instante, chegou o editor Fernando Gonçalves, que logo que deu de caras com a
Salane, tratou de perguntar sobre a matéria do julgamento do enfermeiro que tinha violado uma
paciente. Logo notei que a estagiária estava mesmo lixada.

Não era seu dia de sorte. Afinal não era somente o Kok que estava em cima daquele assunto que
ela não conseguia resolver, o Gonçalves também. O pior é que eu havia dito a ela para que
mandasse passear o director, agora teria que lhe dizer para mandar passear o editor também, mas
como eu haveria de fazer isso se ela já nessa altura estaria quase que a deitar lágrimas por não
saber o que responder.

Ela gaguejava, parecendo que acabaria mesmo por desmaiar, por isso tive que accionar uma
força de intervenção rápida no meu interior, a mesma com a qual acabaria interferindo no
assunto.
Foi quando eu disse:

- Editor, aí nem há nada o que escrever..

53
- Não há nada para escrever?

- Nada. - respondi. - Não há assunto. Até porque o juiz pode ter tido a sua razão para lhe mandar
embora do tribunal.

Tendo me ouvido a falar nesses termos, o editor teve que deixar de pressionar a Salane para se
concentrar em mim, que afinal deveria ser eu um promotor da desobediência das ordens
editoriais, a fim de se concentrar naquilo que eu tinha para dizer. Mas achou que devia estar
sentado, por isso me chamou para a sua sala.

E eu fui.

Ele mandou-me sentar.

- Estás a dizer o quê, que o quê? Vá lá, explica. Não pode escrever porquê? - inquiriu-me. - Onde
já se viu um juiz expulsar um jornalista de um julgamento? Os julgamentos são públicos!
Era justamente nessa conclusão que eu temia que o editor tivesse chegado. Foi nesse momento
que lhe expliquei que pese embora os julgamentos sejam públicos, o que é sem dúvidas uma
regra geral, o facto é que não existem regras sem excepções.

- Presumo que o juiz tenha tido as suas razões para expulsar a Salane, tratando-se de um
julgamento sobre um caso de violação sexual. Não creio que o julgamento de um caso de
violação sexual possa ser realizado em público, isso para savanguardar a integridade da vítima,
evitando a sua exposição...

Quando eu pensei que me fosse ser dado mais tempo de antena para continuar a dar os meus
esclarecimentos, o editor Fernando Gonçalves me escorraçou da sua sala, "sai, sai, sai daqui",
como se de um cachorrinho se tratasse, tendo eu saído sem sequer entender se haviamos nos
entendido na minha colocação.

Sai da sua sala correndo, o que me pareceu que ele não tivesse gostado que eu tivesse lhe
explicado sobre as vicissitudes das leis, esquecendo-me eu que muitos jornalistas não gostam
muito da lei, do direito e da justiça. Seja como for, o facto é que a Salane não mais voltou a ser
questionada sobre o assunto do juiz que lhe expulsara do julgamento do enfermeiro por crime de
violação sexual de uma paciente. Nisso acho que devo ter sido útil, não sei muito bem.

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Entendo que a Salane pode ter tido o azar de se meter num julgamento daqueles juízes arrogantes
que chegam a condenar os réus para a prisão sem sequer se darem o tempo de esclarecerem aos
condenados, aos familiares e público em geral sobre o significado das suas sentenças, por isso
mesmo que teria expulsado a jornalista sem sequer se preocupar em lhe esclarecer sobre as
razões da sua decisão. Talvez se a jornalista Salane Muchanga tivesse informação sobre quais os
tipos de julgamento que não são abertos ao público, como os casos de violação sexual, teria
evitado se meter naquele tribunal para não ser escorraçada pelo juiz. Por isso sempre achei que
os jornalistas deviam gostar um pouco de estudar a lei, o direito e a justiça, esse conhecimento
também lhes ajudaria a se livrarem de juízes desprovidos de boas maneiras de convivência
social. Ela teria encontrado outras formas de obter a informação.

Escrever uma matéria a condenar o juiz por lhe ter mandado embora da sala, tal como
pretendiam o director e o editor, é que teria sido uma autêntica aberração. Pese embora o mau
jeito de alguns dos nossos juízes, a lei é dura, mas a lei. O direito à informação por parte dos
jornalistas não está acima do direito à reserva da intimidade privada das vítimas de violação
sexual, bem como do direito ao respeito pela sua integridade moral.

De todas as espécies que abundam na grande savana, o cronista Fernando Manuel, que vociferou
contra a Salane até ela ir chorar na casa de banho, era aquele de quem menos devia temer. Para
além de ser uma pessoa humana muito humana, é uma pessoa muito cheia de conhecimento, que
me ensinou que a redacção é um dumba nengue de ideias e que os editores e directores deviam
ser confrontados com conhecimento, porque num jornal se respeita a liberdade de pensamento,
não se tratando de uma ditadura.

Um dia, um dos editores propôs que o Fernando Manuel fosse escrever uma reportagem sobre as
estradas esburacadas no Chamanculo. O mano Nandinho abandonou a reunião de planificação
editorial de imediato, que aquilo era mesmo uma perca de tempo, ali não havia pensadores, tendo
perguntado se somente agora é que o editor tinha descoberto que existiam estradas esburacadas
no Chamanculo? O facto é que já nessa altura o que existia no Chamanculo eram estradas nos
buracos e não buracos nas estradas. O cronista é a nossa última reserva da moral, da ética e da
legalidade na redacção, porque no jornalismo também existem "ordens ilegais" que devem ser
desobedecidas. Foi com o Nandinho que aprendi a desobedecer ordens imorais, ilegais e injustas
das chefias editoriais. Estava também disposto a transmitir isso a Salane e a outros jornalistas

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mais novos, porque um jornal não é uma ditadura fascista. É um dumba nengue de ideias e
pensamentos.

***
Não gostei nada do meu primeiro contacto com a universidade. Posso garantir que o mesmo foi
extremamente trágico. Logo para mim que já pensava que tinha passado pelos piores embates
que um homem podia atravessar nesta nossa curta passagem pela terra.

Era o meu primeiro ano da Faculdade de Direito da Universidade Eduardo Mondlane. Eu tinha
mesmo escolhido o curso de Direito em detrimento do curso de História na Universidade
Pedagógica, onde também havia sido admitido naquele mesmo ano.

A minha entrada na universidade foi particularmente trágica porque de repente um grupo de


estudantes, que estariam já a frequentar o segundo ano, invadiu violentamente a nossa sala de
aulas que ficava ali no complexo pedagógico do campus universitário, que somente
alcançávamos depois de atravessar um longo deserto cheio de areia, com o intuito de receber os
caloiros numa cerimónia violenta e deprimente a que chamaram de "baptismo de caloiros", na
qual partiram para cima de nós com uma série de produtos podres que incluíam tomate, ovos e
tintas de diferentes cores mas também uma quantidade enorme de lama e tudo mais que cheirava
a fezes, estrume, podridão e outros detritos.

Não percebi de forma alguma como até os estudantes do segundo ano de um curso de Direito
poderiam ter pensado que aquela era uma forma própria de nos receber, submetendo-nos a maus
tratos e chegando a partir para actos de violência física e psicológica caso nos atrevessemos a
oferecer qualquer tipo de resistência para que não nos atirassem todas aquelas porcarias que
somente os animais selvagens poderão ter juntado para dar alguma utilidade.

Quando já pensávamos que tivesse sido humilhação bastante, qual foi então o nosso desespero ao
nos conduzirem com suas vozes de comando para fora da sala de aulas, onde aos chutos e
pontapés mandaram-nos rebolar no chão enquanto iam nos deitando com água suja, deixando-
nos todos molhados, sujos e mal cheirosos. Foi tão deprimente, frustrante e humilhante, até que
eu me desse conta de que estávamos mesmo em presença dos vândalos da turma do segundo ano

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da Faculdade de Direito da UEM, que até um pouco antes tinha pensado que fossem uns
molwenes quaisquer iguais àqueles desgraçados de merda que andam hoje a semear o ambiente
de terror e pânico que se vive em Cabo Delgado, ceifando vidas e destruindo casas, escolas e
hospitais.

Ingressara na universidade com o intuito de estudar Direito, uma vez que de algum momento até
então metera na minha cabeça, não sei porque carga de água, que o direito poderia melhorar de
alguma forma o meu trabalho como jornalista, uma vez que já nessa altura começara a me
interessar pela cobertura jornalística especializada e profissionalizada de assuntos de justiça, um
sonho que se mantém até hoje e cujo qual me encontro cada vez mais próximo de realizar.

Tinha mesmo decidido voltar a carteira, o que aconteceu alguns anos depois de haver saído da
Escola de Jornalismo, bem como depois de ter passado um ano a trabalhar como jornalista no
"Vertical" e mais dois anos e meio no "Savana", de onde tinha abandonado por causa de
desinteligências internas que me conduziram para o desemprego, após ter pedido demissão por
minha própria iniciativa. É só imaginar o que deverá ter representado para mim o facto de ter
deixado o "Savana", logo eu que me habituara a viver como um assalariado desde o meu estágio
no jornal "Vertical", para já ter que iniciar um novo percurso na Faculdade de Direito sem
nenhum tostão no bolso, aquilo foi terrível, um enorme transtorno para o qual já não estava nada
preparado. Se eu fosse supersticioso, era mesmo capaz de acreditar que aquela recepção violenta
que tivemos por parte dos estudantes do segundo ano é que teria sido um sinal evidente de como
não levaria o curso até ao fim, mas uma coisa não tem nada a ver com a outra, apesar de haver
me afastado do curso já no segundo semestre do segundo ano, quando motivos de ordem familiar
me obrigaram a voltar a ir pedir emprego no "Savana".

Os actos de violência física e psicológica que nos foram infringidos pelos babacas do segundo
ano da Faculdade de Direito, ocorreram justamente no dia do rebentamento do paiol de
Mahlazine. Do jeito que saímos emporcalhados por conta das porcarias mal cheirosas que
andaram a nos deitar, quem nos visse na rua a voltarmos para casa pensava logo que tivéssemos
sido atingidos pelos roquetes, obuses, granadas e outros artefatos bélicos que foram sendo
projectados a partir daquele paiol para diversos pontos da cidade e arredores. Quando cheguei
em casa, a minha mãe ficou assustada, quase que deitava lágrimas, pensando que eu tivesse sido

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atingido pelos estilhaços, uma vez que continuavam a se ouvir explosões e estrondos em todo em
todo lado, uma imagem real de como essa merda de guerra não presta mesmo para nada.

- Meu filho, foste atingido!!?

- Não. Não tem nada a ver com o paiol, mamã. - disse eu a minha mãe, deveras deprimido. -
Foram os porcos da Faculdade de Direito que nos emporcalharam assim. Mas dizem que é
"baptismo de caloiros".

Quem disse que a minha mãe haveria de entender uma coisa dessas? Ela iria precisar de me ver a
entrar no banho, lavar toda aquela porcaria, deitar fora as roupas que já não serviriam para nada.
Só depois de me ver a sair do banho, completo e igualzinho a mim mesmo, tal como ela me
conhecia, é que começou a ficar mais calma ao ver que eu não contraíra nenhum ferimento por
conta do rebentamento do poiol de Mahlazine.

- Foram os porcos da Faculdade de Direito que nos emporcalharam assim. - disse eu de novo a
minha mãe. - Era "baptismo" de caloiros.

Ela começou a rir, com lágrimas nos olhos e de forma tão desgraçada que mesmo assim não
conseguira esconder o quanto estava assustada.

Ela estava assustadíssima.

- Não se preocupe, mamã. Foram os porcos. Os porcos da Faculdade de Direito. Disseram-nos


que era "baptismo de caloiros", nenhum estudante da minha turma escapou.

Ia jurar para a minha mãe que nunca mais havia de voltar para a faculdade depois daquele triste
acontecimento, que marcou o meu primeiro contacto com a universidade. Mas a minha mãe me
ensinou muito cedo a não ter medo de ir a escola por causa dos colegas da escola primária e
secundária que passavam a vida a me atribuir nomes feios por causa da minha mancha congénita
no rosto, pelo que no dia seguinte voltei a Faculdade de Direito disposto a enfrentar aqueles
vândalos do segundo ano que haviam nos submetido a tamanha brutalidade no dia anterior,
alegando se tratar de uma cerimónia de "baptismo de caloiros". Apesar de não ser muito dado a
violência, sei muito bem como se organiza uma boa equipa de ataque, até porque sou dos tempos

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dos "Fire Relâmpago" do Minkadjujne, dos "Hill's Dog" do Chamanculo e de outras "bands" que
semeavam terror e pânico em toda a cidade e arredores, mas por causa do processo civilizatório
pelo qual passei na Escola de Jornalismo, bem como nos jornais "Vertical" e "Savana", tenho
certeza de que já não mais haveria de responder violência com violência. Para além de que eu já
nessa altura também pertencia a dupla das manchas da paz, da qual também pertencia a minha
doce Zuleica, a Tina Turner.

No dia seguinte, voltei a atravessar o grande deserto do campus universitário, com destino ao
complexo pedagógico, onde ficava a nossa sala, nós que éramos do primeiro ano da Faculdade
de Direito, uma vez que as turmas do segundo, terceiro e quarto anos tinham as suas aulas na
Kenneth Kaunda, a sede daquela nossa faculdade.

Quando cheguei a sala de aulas, encontrei outros colegas que haviam sofrido comigo aquelas
sevícias no dia anterior, todos dispostos a enfrentar os vândalos do segundo ano, caso decidissem
voltar para nos baptizar de novo. Foi nas conversas que fomos tendo sobre o quão desumanas
eram aquelas cerimónias violentas de "baptismo de caloiros" que começamos a nos conhecer
entre colegas que vínhamos de diferentes partes do país para cumprir com o sonho de fazer a
licenciatura em Direito. Lembro-me de alguns colegas que se tornaram meus amigos logo desde
os nossos primeiros contactos, da Berta Cardoso, do Euclides Foquiço e do Anselmo Mahache,
que sentavam justamente ao meu redor. Lembro-me também da Eva Nhampossa, do Mauro
Ferreira, do Fobrico Bernardo Antonio, do Benjamin Pequenino, do Egídio Canuma, do Ângelo
Nkutumula, do Ângelo Rafael, do Nelson Chicatsa, da Melba Mutimucuio, do Behmat, da
Anchia Talapa, do seu irmão Talapinha, do José Pacheco, do Napumoceno, do grande rapper
Hulk Bethause ou simplesmente Agnelo, da Sarifa que se tornara chefe de turma e de muitos
outros que se tornaram grandes camaradas e com os quais mantive grandes relações de amizade
durante pelo menos um ano e meio que ali estive, uma amizade que até hoje se mantém, pese
embora cada um tivesse rumado para os escritórios de advogados, para as magistraturas, para a
polícia, forças armadas e outros destinos.

Aos poucos fui abandonando o curso já nos meados do ano seguinte quase que sem me dar conta
disso, uma vez que regressara ao jornalismo no "Savana", onde viajava sistematicamente pelo
país, o que não me dava tempo para me dedicar aos estudos. Foi por isso que não tive o cuidado
de anular a matrícula, pelo que não sei se ainda me resta algum direito sobre as cadeiras do

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primeiro ano e do primeiro semestre do segundo ano que frequentei, já lá passam uns bons anos.
Tenho vontade de terminar o curso, espero que um dia consiga recuperar as cadeiras feitas, se
não conseguir, sou mesmo capaz de começar do zero, porque para mim, tal como o escritor que é
a esposa do jornalista, o jurista tem sido a amante do jornalista.

Lembro-me de quanto o professor da cadeira de "Introdução ao Estudo de Direito"', Boaventura


Gune, ficou aborrecido comigo logo no primeiro dia, quando chegou a minha vez de responder
sobre o que eu queria ser quando terminar o curso de Direito.

- Quero ser jornalista. - respondi.

Gune não gostou nada da minha resposta, que era contra todas as suas expectativas, bem como
contra as expectativas dos colegas que, entretanto, iam dizendo que queriam ser "procuradores",
"juízes" e "advogados".

- Nós aqui não formamos jornalistas. - disse o professor. - O que queres ser quando terminares o
curso de Direito?

E eu respondi, novamente:

- Quero ser jornalista.

Muito aborrecido, Gune deve ter concluído que eu era mesmo um caso perdido. E atirou:

- Nós nesta Faculdade de Direito não formamos jornalistas. Formamos advogados, juízes,
procuradores, conservadores e agentes do notariado.

E eu disse:

- Não. A Faculdade de Direito forma juristas, quem forma advogados é a ordem dos advogados e
quem forma procuradores e juizes é o Centro de Formação Jurídica e Judiciária...

Nessa altura, já os colegas tinham me mandado calar, tendo me aconselhado a não discutir com o
professor Boaventura Gune, que tinha a fama de ser maningue mau. Para que a normalidade se
mantivesse na sala de aulas, decidi me conter, embora não concordasse com ele e fosse mesmo
capaz de convencê-lo de como estava enganado, dado que ele mesmo sabia que a Faculdade de
Direito forma juristas e não juízes, procuradores e advogados, juristas esses que poderiam ser o

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que quisessem ser na vida, incluindo jornalistas. Não falei mais nada. O facto é que nesse ano só
dispensaram dois estudantes na cadeira de "Introdução ao Estudo de Direito", nomeadamente eu
e o camarada Chibique, ao que o professor nos premiou com notas novinhas de 500 meticais que
sacou de uma bolsa castanha de cabedal que andava com ela pendurada a tira colo. Os 500
meticais serviram-me para comprar um telemóvel, que eu nesse momento precisava tanto.

Depois da recepção frustrante pelos porcos do segundo ano, aqueles 500 paus tornaram-se uma
espécie de sinalização de que essa cena de Direito também valeria a pena.

O facto é que as perguntas dos testes do professor Gune continham afirmações cujas respostas
não eram para cabular nem mesmo para responder de acordo com os apontamentos decorados.
Eram para pensar. Essa coisa de pensar eu já vinha com ela desde a escola primária, a escola
secundária até a Escola de Jornalismo, tendo aperfeiçoado nos jornais "Vertical" e "Savana",
onde tinha estado antes de ingressar na Faculdade de Direito. Para além de Boaventura Gune,
tenho boas lembranças da saudosa professora Share, de "Sociologia Jurídica", onde tive o
privilégio de coordenar um grupo de trabalho sobre a transmissão de julgamentos em directo, no
qual nos foram dados 17 valores. Lembro-me do professor João André Ubisse Nguenha de
"Ciências Políticas e Direito Constitucional", de Elysa Vieira e Alberto Nkutumula de "Direito
Criminal", de Flávio Menete e Steiller Marroquim de "Teoria Geral do Direito Civil", de
Machatine Paulo Munguambe de "Direito Administrativo", de Gilles Cistac de "Metodologia
Jurídica", de Teodoro Waty de "Finanças Públicas e Direito Financeiro", de Pedro Bule de
"Direito Fiscal" e outros. Nunca percebi muito bem porque razão os professores na universidade
se chamam docentes, mas aqueles foram de facto os meus professores, como também foram
meus professores os meus colegas de turma bem como aqueles porcos do segundo ano que nos
baptizaram violentamente naquela cerimônia de "baptismo de caloiros", que terá sido a última do
gênero naquela faculdade, salvo erro ou melhor prova em contrário.

Não levei o curso até ao final por razões familiares, mas de uma coisa eu tenho a certeza: no
primeiro ano eu bati, tal como bati no primeiro semestre do segundo ano. E bati bem mesmo. Se
existe alguma legitimidade para que a Universidade Eduardo Mondlane me possa dar a
declaração de cadeiras feitas, essa legitimidade reside no facto de haver sido eu um dos dois
estudantes que dispensaram na cadeira de "Introdução ao Estudo de Direito" naquele ano, não
tendo havido outros que tenham alcançado tal proeza pelo menos naquela nossa turma. Essa e

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outras cadeiras em que dispensei ou passei, são minhas por direito, não me podem ser tiradas,
humanamente falando. Tenho o privilégio de me encontrar com muitos colegas da Faculdade de
Direito nos tribunais, nas procuradorias, nos escritórios de advogados, na polícia, nas forças
armadas e outros lugares por onde o meu trabalho jornalístico me tem obrigado a andar. Tratam-
me com muito carinho e muita gentileza, até porque sou uma pessoa inesquecível, por ter sido
um bom estudante da Faculdade de Direito, mas também por causa da minha mancha congénita
no rosto, que me torna inesquecível. Não devemos deixar que o medo generalizado instalado pela
doença do coronavirus nos transforme em farrapos humanos a ponto de suspendermos a nossa
capacidade de lutar pelos nossos sonhos. Espero um dia poder terminar a Faculdade de Direito.

***
Prometi a Zuleica Tina Turner que nunca contaria para ninguém e nem mesmo para a minha
própria sombra um segredo íntimo, que sendo tão íntimo para ela decidiu torná-lo íntimo para
nós os dois somente, ainda que ela soubesse que não me faltaria vontade de contar para alguém
que eu tinha achado uma pessoa igual a mim, que tinha uma mancha congénita na bunda dela e
exactamente igual a que eu tinha no meu rosto, o que ela logo me pediu para que nunca revelasse
para ninguém, tendo considerado tratar-se do nosso "segredo de Estado", o que me tornou um
fiel depositário de uma "informação confidencial".

Fui eu mesmo que tratei de lhe explicar que nunca haveria de colocar em causa a sua intimidade,
que em nenhuma parte do mundo era permitido que tal coisa pudesse acontecer, sobretudo
porque ela deixara claro que desde criança sempre fez questão de esconder todo o seu corpo,
mesmo quando fosse a praia com as amigas.

Zuleica deixou claro que ainda que nós os dois nos divertissemos bastante com o facto de sermos
uma dupla com manchas, nunca haveria de se sentir confortável em se mostrar para quem quer
que fosse, muito menos para a sociedade, uma vez que nunca na vida se sentiu como estando
preparada para sofrer os mesmos transtornos que eu sofri desde a escola primária até à escola
secundária. Só de eu me atrever a contar para quem quer que fosse, ela se sentiria profundamente
ultrajada, como se tivesse responsabilidade alguma de ter que mostrar aos que depois quisessem
confirmar com ela.

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- É isso mesmo que eu gostaria de te pedir. É nosso segredo. - disse.

E eu concordei, tendo clarificado:

- Está tudo bem. É segredo de Estado. Zip! Ntxuimmm! Niku zueh tititi.

Em nenhum momento me passara pela cabeça pretender contar tal facto a quem quer que fosse,
muito menos aos meus amigos que já andavam de olho nela e que só de ouvirem dizer que ela
tinha uma mancha reluzente na bunda haviam de despertar ainda mais a sua curiosidade e os seus
apetites ferozes, mas agora não consegui compreender facilmente porque razão ela tinha
decidido voltar a me fazer tal pedido de confidencialidade, uma vez que já o tinha feito no
passado, um pouco depois de termos começado a andar juntos.

Por alguns instantes quis perguntar a ela porque decidira voltar ao assunto, mas não o fiz. Achei
que seria melhor deixar assim.

É só imaginar que foram tantas as vezes que desejei ser como ela que tinha uma mancha
escondida na bunda, a fim de que eu também pudesse escapar de sofrer tudo o que sofri desde a
minha tenra idade. Ora, já bastava para mim ter ao meu lado alguém como ela, que saberia muito
bem compreender a minha personalidade, o meu sofrimento, o meu carácter, comportamento,
temperamento, atitudes e emoções. Como eu haveria de querer muito mais do que isso? Eu era
pobre mas feliz.

- Pensei que fosses me pedir em casamento. - disse ela.

Não era a primeira vez que ela dizia tal coisa, aliás já desde o princípio da nossa relação que
entendemos que a mancha na bunda dela combinava com a mancha no meu rosto, mas não seria
altura de avançarmos de tal forma uma vez que eu ainda não estava organizado para o efeito,
vivia na casa dos meus pais e ainda não tinha um emprego condigno. Acabara de iniciar a minha
formação na Faculdade de Direito, ao que seria para nós ainda bastante cedo para pensarmos em
nos casar.

Por isso eu disse:

- Eu te pedi em casamento há muito tempo, só ainda não temos condições para nos casarmos.

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- E como vamos fazer?

- Vamos continuar a batalhar.

- É que já não será a mesma coisa.

- Porquê? É claro que será. Não mudou nada.

- Mudou tudo. Não estás a ver?

- O que mudou?

- Eu estou grávida.

- Estás grávida?

- Sim. Estou grávida.

Foi desta vez que a Zuleica Tina Turner me apanhou de surpresa. Fiquei deveras intrigado, ainda
que tivesse achado que não seria caso para menos. Tantas vezes que tinha andado a querer ver a
mancha que ela tinha na bunda, mas que sempre que ela me mostrou a mancha na bunda dela
nunca isso terminou somente aí porque ela nunca foi propriamente um mero objecto de
observação, pelo que o resultado não teria sido outro senão aquele. Grávida. Preservativo? Nada!
Pílulas? Também nada! Era desta vez!

Por mais que eu tentasse esconder o facto de a notícia haver me deixado agradavelmente
impressionado, não tinha como o fazer: a felicidade estava estampada no meu rosto. Zuleica
tinha uma enorme compreensão do meu íntimo. Na verdade, ela sabia que ainda que tivesse
começado por dar voltas, preparar o terreno antes de me dar a notícia, eu acabaria por andar aos
pulos de tanta alegria. Durante muito tempo contei para ela sobre o quanto eu estava curioso
sobre como viria a ser um filho meu. Sempre tive curiosidade de saber se um filho meu teria uma
mancha como a minha no rosto. Nunca desejei que um filho meu pudesse passar por tudo aquilo
que eu passei por minha causa. O pior é que agora éramos duas pessoas com manchas congénitas
que não tinham cura que estávamos prestes a ter um filho juntos com muito risco de transmissão
de manchas de forma hereditária. Dei um abraço muito forte na minha Zuleiquinha Tina Turner,
que também me abraçou fortemente, conscientes de que ambos estavamos dispostos a ter um

64
filho, apesar de todas as dificuldades que estávamos a enfrentar no momento. Havíamos de ter
um filho com mancha? E se nascesse logo com duas manchas, uma dada por mim e outra dada
por ela? Há coisas que só Deus sabe.

***
Eram muitas as críticas que me foram chegando aos ouvidos no seio daquela nossa comunidade
bairrista, bem como no seio dos amigos, dos vizinhos, dos fofoqueiros, de toda aquela cambada
das cuscuvilhices, das intrigas e dos boatos, tudo porque alguém espalhara a infamante, a
caluniosa e a injuriosa notícia segundo a qual a minha doce Zuleica Tina Turner teria me
arranjado justamente a mim para me atribuir a paternidade da sua gravidez quando na verdade os
boateiros alegavam com base nos seus apuramentos periciais que não era eu o pai da criança que
a Zuleica haveria de dar à luz.

Mal sabiam aqueles pobres mequetrefes zombeteiros que ainda que inventassem o que quisessem
inventar, a Zuleica Tina Turner era a minha dupla da mancha da paz com quem eu havia de me
casar, que eu estava pouco me lixando para esses grilos tenazes que teimavam em cantar nos
meus ouvidos as suas cantigas de escárnio e mal dizer para que eu tivesse que desistir daquela
mulher bonita que somente eu sabia que tinha uma mancha congénita reluzente na bunda
esquerda, igualzinha aquela que eu tinha do lado direito do meu rosto, que a minha mãe me
ensinara desde pequeno a explicar com boas maneiras para quem com boas maneiras me
perguntasse que eu nasci assim, é uma mancha congénita, não tem cura.

Falavam mal da gravidez.

- Nem é barriga dele.

- Pobre rapaz.

- Coitado.

- Também é bom para ele.

- Logo o jornalista.

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- Não é filho dele.

- É puta mesmo.

- Nem tem vergonha na cara.

- Se fosse jornalista andaria informado.

- Pobre jornalista. Não sabe de nada.

Tanta coisa foi sendo dita durante todos aqueles dias, semanas e meses de gestação em que a
minha dupla da mancha congénita andara com a barriga a crescer até chegar aos seus nove
meses. Se tivesse ouvidos para ouvir tantas porcarias lá dentro da barriga da mãe, bem como
tudo o que se falava dela no seio daquela nossa comunidade bairrista, no seio dos nossos amigos,
dos nossos vizinhos, dos fofoqueiros, de toda a cambada das cuscuvilhices, das intrigas e dos
boatos, a criança talvez teria desanimado de vir ao mundo, tratando-se, pois, de um mundo tão
perverso, onde a felicidade de uns era condição essencial para a infelicidade dos outros.
Foi no meio dessas notícias difamantes, caluniosas e injuriosas, que somente deveriam ter
explicação pelo facto de ser mulher do famoso jornalista da mancha congénita no rosto, que
numa certa noite a Zuleica começou a contorcer-se de dores.

Tive que ir acordar a minha mãe, para que viesse ver o que estava a acontecer com ela. A minha
mãe veio a correr, tendo observado a Zuleica e confirmado o que se estava a passar com ela.
Eram as dores do parto.

- Rebentou a bolsa. - disse a minha mãe, uma mulher experiente que teve sete filhos. - Vamos ao
hospital do Chamanculo.

Não tínhamos porque perder mais tempo, até porque eu estava despreparado, atrapalhado e
nessas horas já andava com os nervos a flor da pele e com a alma e o espírito quase que a
quererem sair pelos poros. Estava prestes a ser pai pela primeira vez.

Tivemos que caminhar a pé para o Centro de Saúde do Chamanculo, onde ao longo do caminho
nos cruzamos com um automobilista que tendo notado que estávamos a caminho da maternidade
com uma mulher grávida, tomou ele mesmo a iniciativa de nos dar boleia, o que me deu a
entender que se calhar fosse exagero da minha cabeça acreditar que já não existia mais alguma

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bondade neste nosso mundo tão perverso, tão maldoso e tão violento. É mentira, ainda existem
algumas almas caridosas.

Na maternidade, onde eu mais fiquei em estado de aflição, fumando cigarros um atrás do outro,
que no lugar de me baixarem os nervos aumentavam, não tardou para que uma mulher de bata
branca viesse nos dar a novidade do nascimento que acabara de acontecer.

- Já nasceu. - disse a servente, que veio nos dar a notícia. - É um menino.

- Um menino?

- Sim. Um menino.

O meu coração bateu.

E o meu corpo estremeceu.

Por alguns instantes, ocorreu-me perguntar a servente se a criança teria uma ou duas manchas
congénitas em alguma parte do seu corpo que fossem iguais a que eu tinha no rosto, mas não o
fiz sob pena dela poder accionar a polícia para me recolher para as celas por eu não estar no meu
juízo perfeito. Isso não é coisa que se pergunte.

Eu era já nesse instante um homem inabalável, que durante nove meses passara a ouvir muitas
coisas feias serem ditas sobre a Zuleica, o que nunca cheguei a lhe contar porque não queria lhe
deixar abalada durante toda a gestação.

Na minha cabeça não me ocorria mais nada senão mesmo a curiosidade persistente de querer
saber como seria a criança, se teria nascido com uma ou duas manchas em alguma parte do corpo
ou não, uma vez que tanto eu quanto a Zuleica tinhamos manchas congénitas, a dela estava na
bunda e a minha no rosto.

Não havia de querer de forma alguma que a minha história de vida se repetisse num meu filho.
Houve tempos em que cheguei a pensar que eu nunca devia sequer ter filhos, porque os mesmos
poderiam estar em risco de nascer com uma mancha congénita igual aquela que eu tenho no
rosto.
Nesse momento em que fiquei a espera da servente voltar para vir nos convidar, a mim e a minha

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mãe, para que fossemos ver o menino recém nascido, ocorriam-me imagens de toda a minha vida
desde os tempos da escola primária aos tempos da escola secundária, onde ao longo do meu
crescimento foram me sendo dados os nomes mais feios por causa da minha mancha congénita
no rosto, desde "Mapa de Moçambique", "Mapa Cor-de-Rosa", "Olho Branco", "Pintex",
"Robiallac", "Murdock", "Cara Queimada" e outros tantos que eu como pai nunca haveria de
desejar que um filho meu tivesse que ser chamado. Essa seria uma tortura psicológica que eu
nunca haveria de desejar nem para o meu pior inimigo.

As crianças, mesmo sendo "deficientes", sejam elas deficientes físicos, auditivos ou visuais,
sejam elas apenas "diferentes' ou mesmo "especiais", também têm o direito de crescerem num
ambiente são e saudável, onde sejam tratadas como sendo pessoas iguais as outras pessoas em
dignidade e em direitos, porque todos nós perante a Deus nascemos iguais em dignidade e em
direitos. Sei disso por experiência própria, por experiências vividas em todos os lugares por onde
eu passei desde a minha tenra idade, desde quando me conheço como gente, uma experiência
cujos desafios, obstáculos, barreiras e constrangimentos nunca teria conseguido ultrapassar se a
minha mãe, que não teve muito estudo, não tivesse me ensinado a dizer para mim mesmo e para
quem quisesse saber da minha mancha no rosto que eu nasci assim, é uma mancha congénita,
não tem cura.

É por isso que aquele era para mim um momento singular, de grandes expectativas, de busca da
recepção de uma resposta que me perseguira durante toda a minha vida. Nessas alturas, sei que a
Zuleica Tina Turner já sabia da resposta, se o nosso filho nascera com uma mancha no rosto ou
não. Somente eu e a minha mãe não sabíamos. Mas como a minha mãe praticamente me ensinou
desde criança a nunca me queixar sobre a minha mancha, nem sequer andar a lhe apresentar
relatórios sobre os nomes feios que me andavam a dar os outros meninos na escola, também
agora que me matava com essa minha curiosidade absurda, não teria sequer como desabafar com
ela. Nada tenho o que reclamar, a minha mãe é uma cientista, mesmo com pouco estudo
conseguiu me ensinar a me defender sozinho numa sociedade que sempre foi violenta comigo,
desde a minha infância.

Foi nesse exacto momento que a servente de bata branca veio nos chamar para irmos ver a
criança. Estava muito feliz porque o meu filho tinha nascido. Já não era mais preocupação de
saber se era um menino ou se era uma menina. Se já sabia que era um menino, que nasceu

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saudável, com um peso um pouco acima do normal, faltava agora saber se tinha uma ou duas
manchas em alguma parte do seu corpo, uma vez que eu tinha uma mancha no meu rosto e a
Zuleica tinha uma mancha na bunda, o que nos fazia pensar que tínhamos uma enorme margem
de risco de podermos ser transmissores de manchas para o nosso filho caso fosse um problema
hereditário.
Logo que entramos na maternidade, Zuleica Tina Turner estava deitada na cama da enfermaria
com o menino recém nascido com ela. Era um menino clarinho, bonitinho e gordinho, que
nascera com um peso um pouco acima do normal. Como a Zuleica sabia qual deveria ser a minha
outra preocupação para a além de confirmar que o bebé nascera saudável, ela tratou de tirar todas
minhas dúvidas:

- O menino não tem mancha.

- O quê? Não tem mancha?

- Não tem.

- Nem uma sequer?

- Nem uma.

- Viste bem?

- Vi, amor.

- Todo o corpo?

- Sim. Todo o corpo.

- Nem uma manchinha?

- Nem sequer uma pontinha.

Nunca soube muito bem o que era Deus, mas se Deus deveria estar em algum lugar, de certeza
que estava ali mesmo. Nem uma manchinha.

***
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Eu era agora um homem pobre, bonito e inteligente. Pobre porque não tinha sequer um tostão no
bolso. Bonito porque a minha mãe sempre disse que eu era bonito, o que também me foi dito
sempre pela Zuleica Tina Turner, desde que ela me conquistou. Inteligente porque apenas
chumbei uma vez na vida, na nona classe, mas desde a escola primária até a escola secundária
passei as classes com muito êxito, também porque estudei jornalismo na Escola de Jornalismo,
trabalhei um ano e meio no diário electrónico "Vertical" e dois anos e meio no "Savana", assim
como também porque fui admitido no curso de História da Universidade Pedagógica e no curso
de Direito da Universidade Eduardo Mondlane, onde frequentara até aquele momento o primeiro
ano e o primeiro semestre do segundo ano.

Eu era um homem pobre mas feliz. Feliz porque acabara de ter um filho bonito, gordinho e
clarinho que se parecia comigo. Era capaz de achar que era mesmo eu, mas agora já numa nova
versão sem a mancha congénita no rosto. Era um menino bonito sem mancha que havia de
crescer num mundo violento, mas pelo menos livre da mancha.

Nesse momento em que estava já a constituir uma família, tive necessidade de voltar ao trabalho,
a fim de sustentar tal família.

Foi assim que eu decidi voltar ao jornal "Savana", onde tinha estado antes durante sensivelmente
dois anos e meio, mas que tive que me demitir depois de regressar de uma viagem para ir
investigar a exploração ilegal de madeira em Cabo Delgado, mas que entretanto tinha sido uma
investigação mal sucedida por causa da minha mancha congénita no rosto, que não me permitira
usar aquela técnica de jornalismo investigativo que me fora recomendada por Fernando Lima e
Kok Nam, onde o jornalista busca informações sem nunca se identificar como jornalista, o que
representava um enorme risco de vida.

No lugar de voltar ao "Savana", podia ter procurado um outro emprego ou se tivesse mesmo que
trabalhar como jornalista, podia ter tentado noutros jornais. Na verdade, logo após a minha saída
do "Savana", cheguei a me juntar a equipa do diário electrónico "Canal de Moçambique" quando
ainda estava a ser criado, onde trabalhei uns dois meses com os jornalistas Fernando Veloso, que
era o director, João Chamusse, que era o Editor, Luís Nhachote, que era o chefe da redacção. Lá
encontrei também os jornalistas Celso Manguana e Miguel Munguambe, mas acabei mesmo por
desistir, porque depois da experiência mal sucedida de Cabo Delgado no "Savana", não voltei a

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ser a mesma pessoa, o que também terá contribuído para ter que dar um tempo fora do
jornalismo activo.

O que também terá justificado muito a minha opção pelo "Savana" é o facto de que a minha
saída do jornal tinha ocorrido num contexto de desinteligências internas, divergências e
desentendimentos no seio da hierarquia editorial, nomeadamente entre o presidente do conselho
de administração, o director do jornal e o respectivo editor, onde os dois primeiros queriam que
eu tivesse ido a Cabo Delgado sem o consentimento do último, neste caso o meu Editor
Fernando Gonçalves. Tratando-se de uma missão perigosa, somente esse clima de desconfiança
no seio dos chefes era para mim um enorme risco. Foi esta a razão que me levou a regressar para
o "Savana", queria que todos nós pudéssemos nos dar uma segunda chance, dado que todos nós
erramos. O erro é humano, sendo que a nada o que é humano eu sou alheio.
No "Savana", comecei por falar com Fernando Lima, num encontro onde não chegamos a falar
do que tinha me levado a abandonar o jornal a sensivelmente dois anos e meio. Muito pelo
contrário, o Lima pareceu ter colocado uma pedra em cima disso, que tudo agora eram águas
passadas, tendo me desejado as boas vindas.

Eu já conhecia muito bem a casa, sabia exactamente como tudo funcionava, sobretudo os
computadores. Em termos de infraestruturas, tinha mudado muito, uma vez que agora a redacção
do "Savana" funcionava num novo edifício que havia sido adquirido ali mesmo em frente da
antiga vivenda, bastava atravessar avenida.

Não eram somente as infraestruturas que tinham mudado, mas também a equipa da redacção.
Quando eu deixei o jornal na sequência da situação de Cabo Delgado, o editor adjunto do jornal
era o jornalista Milton Machel, que agora não estava mais no "Savana". Também ali não estava
mais o antigo chefe da redacção Rafael Bié, que fora trabalhar para o Ministério da Justiça como
assessor de imprensa. Também ali não estava mais o jornalista Luís Nhachote, que naquele
tempo era o editor das páginas culturais, que por estas alturas estaria já a trabalhar para o jornal
"Zambeze".
Francisco Carmona era agora o Editor Executivo. Também aqui encontrei nesta fase um novo
jornalista que despontava: Emídio Beula, jovem muito astuto, de bons modos, respeito e
consideração. Raul Senda, que também encontrei no "Savana", já era um macaco velho, com
passagem pelo "Zambeze" e pelo "Embondeiro'. Encontrei a Salane Muchanga e o Fernando

71
Manuel, que haviam se tornado amigos. O Director e o Editor do "Savana" continuavam a ser
Kok Nam e o Fernando Gonçalves, respectivamente. Encontrei também o Fernando Mbanze, que
era agora Editor do Mediafax.

- Bom filho sempre volta a casa.

Foi o que me disse o fotógrafo Naita Ussene, que também era e continua a ser um dos
administradores da Mediacoop, cujo PCA é Fernando Lima.

Naquele meu regresso humilde, tinha perdido muito o meu poder de negociação, por isso aceitei
receber o salário que me foi colocado a mesa sem discutir nada, sendo o mesmo que recebiam o
Raul Senda e o Emídio Beula. Desta vez não me preocupei em saber quanto recebiam os outros,
os administradores é que determinaram, talvez porque já sabiam que eu tinha o hábito de
perguntar quanto os outros recebiam, sobretudo os chefes editoriais, para não ser vítima das
disparidades salariais, que às vezes equivale a um muro bem dado no estômago quando
descobres quanto recebe o teu chefe mais directo.

O jornalista Francisco Carmona já tinha sido meu chefe no "Correio da Manhã", onde trabalhei
umas duas semanas apenas, pelo que estava satisfeito em poder servir sob seu comando,
sobretudo porque se trata de uma pessoa portadora de uma inteligência fora do comum, um
homem cheio de conhecimentos para transmitir a quem tiver paciência de aprender. Nunca
percebi como um licenciado em Linguística e Literatura poderia ter se tornado um jornalista
especializado em economia.

Foram estas as condições em que encontrei o "Savana".

Andava maningue na Associação dos Escritores Moçambicanos, onde tive o privilégio de beber
muitos copos, fumei muitos cigarros, não fumei soruma porque o meu falecido irmão Xerife
Martins Miocho Nenane me ensinara muito bem sobre os malicios das drogas, na altura pensava
que a soruma fosse uma droga. Não teria sido uma experiência tão agradável se o meu amigo
Kok Nam não tivesse me escolhido justamente a mim para ser seu fiel companheiro, a quem
levava sistematicamente para as recepções, estava longe de perceber que lá se bebia maningue
álcool, que eu bebi, sem me dar conta do mergulho, Kok Nam alcoolizou-me, gostosamente.

72
Nas minhas incursões pela associação dos escritores moçambicanos, tive o privilégio de me
constituir em amizade com o escritor moçambicano Eduardo White, o grande poeta de todos os
tempos. Eduardo White convidou-me para a sua festa de aniversário, onde alcoolizados lutamos,
por causa do Celso Manguana, que o Eduardo White queria expulsar da festa. Eu gostava
maningue de beber copos com o poeta Eduardo White no "Bibas", mas também na associação
dos escritores, onde ele não tinha medo de confrontar os seus fantasmas. White não teve medo de
confrontar o coronel Sérgio Vieira, muito pelo contrário, mandou ele passear, alegando que
matou muita gente nos tempos do SNASP. Eduardo White nos expulsou da festa dele, a mim e
ao Celso Manguana, alegando que éramos desordeiros. Estávamos grossos. Um grosso tem esse
problema, não concorda com tudo o que se diz. Eduardo White queria comandar a festa, falando,
falando, falando, mas nós também éramos faladores, falávamos sobre os diferentes temas, o
poeta não gostou das nossas intervenções, por isso nos mandou embora da festa. Eduardo White
não tinha paciência para aturar malucos. Era o escritor mais lúcido do mundo, tão bêbado que só
vendo. Não obstante todas as nossas lutas, eu voltava a lhe procurar, para pedir desculpas,
alegando que são cenas de bebida. Da última vez que discutimos numa barraca ali no pulmão da
"Malhangalene", o poeta Eduardo White foi queixar para mim na Mediacoop. Ele confundiu a
redacção e a barraca, tal como toda a gente confunde. Eu tenho vida privada, que não tem nada a
ver com o meu trabalho. Mas percebi a lição. Jornalista é jornalista, dentro ou fora da redacção.

Um dia, o Naita Ussene colocou duas cadeiras no jardim e convidou-me para uma assentada. O
Fernando Manuel havia escrito no seu último "Savana No Informal" que eu era a única pessoa
capaz de substituir a ele naquela página. O Naita colocara aquelas cadeiras no jardim para que
nos reuníssemos.

- Nenane, estou a pedir para fazer o informal. O Carmona me disse que estás a negar de fazer.

- Não estão a me pagar.

- Nós vamos pagar.

- Quanto?

- Mil por edição.

- Está bem.

73
Fiz o "Savana No Informal" durante três meses. Fernando Manuel estava de férias. No primeiro
mês não me pagaram, eram quatro mil acrescidos ao salário. No segundo mês também não me
pagaram. Eram oito mil acrescidos ao salário. Foi assim até ao dia em que o Naita veio ter
comigo.
- Nanana, peço para fazer o suplemento da justiça.

- Nem vale a pena. Nem o Informal não me pagam...

- Havemos de pagar.

- Pagar tudo?

- Sim. Pagar tudo.

- Quanto mesmo?

- Sessenta mil

- Pois. Mil mais mil mais mil por edição do informal, mais vinte por cento do suplemento da
justiça, total sessenta mil.

- Sim. - disse o Naita.

O facto é que quando terminou o mês, fui buscar o salário. No lugar de oito mil meticais que eu
recebia, tinha dez mil meticais. Diferença? Dois mil meticais. Porquê? Deviam ser sessenta mil,
do salário, do informal e do suplemento da justiça. Lima respondeu-me que era um bônus.

- Bónus?

- Sim, bónus.

- Porquê?

- Pelo desempenho.

- E o dinheiro do Informal e do suplemento?!!

- O teu contrato não prevê salários extras.

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O facto é que o meu contrato também não previa trabalhos extras. E o suplemento da justiça era
um trabalho extra. O Lima, o Kok Nam e o Naita Ussene haviam escolhido a mim para fazer o
"Savana No Informal" e o suplemento da justiça. Por uma razão muito simples. Eu era um
escritor e também tinha passado da Faculdade de Direito, tal como Fernando Manuel.
Foi por isso que pedi demissão no "Savana" pela segunda vez. O Elísio de Sousa não sabe nada.
É um burro inculto. Os intelectuais deveriam ser comedidos. Ponderar antes de se pronunciar. Eu
não fui expulso do "Savana". Pedi demissão, pela segunda vez.

***
- Do jeito que as coisas estão, eu acho que vou acabar arranjando uma outra pessoa. Tu já não
estás a conseguir cuidar de mim.

Foi com estas palavras que notei que a Zuleica Tina Turner estava a começar a ter outros planos,
que nada tinham a ver com a nossa dupla das manchas do meu rosto e da bunda dela, as manchas
da paz, do amor e carinho. Nessa altura, já não havia amor, paz e carinho. Passávamos mais
tempo a brigar.

Quando uma mulher começa a insinuar esse tipo de coisas, sabes que alguma coisa já não está
bem. A Zuleica estava disposta a quebrar o nosso "segredo de Estado", a mostrar a mancha que
ela tinha na bunda a uma outra pessoa melhor que eu, uma pessoa que tivesse condições de
cuidar dela, uma vez que eu já estava desempregado a sensivelmente um ano.

- E o nosso "segredo de Estado"...

- Há uma hora em que já não dá para aguentar. - respondeu.

De facto, estávamos num ano em que tinha sido muito difícil, uma vez que o meu emprego no
"Savana" tinha durado apenas um ano, onde me senti obrigado a abandonar sem nem mesmo me
preocupar em saber para onde eu haveria de ir trabalhar por causa das trafulhices do conselho de
administração. Nessa altura, tinhamos muitas dificuldades e a Zuleica passara quase todo o ano
sem receber a minha mesada porque eu não tinha mesada para dar.

75
- Nunca podes pedir demissão num sítio sem saber onde vais trabalhar. - disse ela. - Lá no
"Savana" pelo menos tu podias ter continuado a receber aquele pouco, mas tu preferiste jogar
tudo fora.

- Mas só tens que aguentar, logo logo vai aparecer um job.

- Há quanto tempo? Estou farta.

Ela estava a frequentar o último ano da Escola de Jornalismo, cujo curso eu lhe incentivara a
fazer, tornando a ela não somente uma colega da área das manchas mas também uma colega no
trabalho. Eu, que tinha feito o curso de jornalismo com distinção, que depois tinha estado no
jornal "Vertical" e depois no semanário "Savana", mais tarde na Faculdade de Direito, depois de
volta ao "Savana", onde acabara abandonando, não estava preparado para ouvir esses papos que
ela vinha batendo, hoje consigo perceber que ela há muito que já teria revelado o nosso "segredo
de Estado" para uma outra pessoa. A conversa foi amena, até que no dia seguinte ela tinha
arrumado as malas.

- Que malas são essas?

- Eu estou a voltar para a casa do meu pai. - disse ela.

- Não, não, não faça isso Zuleica. Eu te amo. Não me deixes minha dupla da mancha, por favor,
não!
- Não vou te deixar. - respondeu. - Não foi isso que eu disse. Eu apenas estou a voltar para a casa
do meu pai, só para darmos um tempo, tu também vais aproveitar para pensares bem o que
queres da vida. Mas um homem que não trabalha eu não quero.

Do jeito que estava a falar, preferi não insistir com ela. Num outro dia, a nossa discussão tinha
sido muito forte que acabei partindo para a violência. Ela podia ter dado queixa na esquadra, eu
havia de dar dentro por violência doméstica. Logo eu que nunca fui propriamente uma pessoa
violenta, tive mesmo que a deixar voltar para a casa do pai, até porque ela me garantiu que só
íamos dar um tempo.

Não deixamos de nos ver durante o tempo em que ela esteve em casa do pai dela, de tal sorte que
chegavamos a passar alguns dias juntos para matar saudades. Eu amava a ela. Lembro-me que

76
quando ela terminou a Escola de Jornalismo, veio me pedir para eu lhe ajudar com o trabalho de
fim de curso, o que foi para mim um enorme orgulho, pelo que o fiz com todo o prazer. Orgulho
porque afinal Zuleica tinha consciência de como eu tinha sido o seu principal mentor, a fim de
que estudasse jornalismo, na esperança de que tanto eu como ela pudessemos trabalhar para
ambos sustentarmos os nossos filhos. O trabalho de fim de curso correu bem. Ela terminou.
Enquanto andávamos todos a procura de emprego, tanto eu quanto ela, um dia ela apareceu para
me dar uma novidade. Estava a fazer testes no Centro de Recrutamento e Mobilização do
Ministério da Defesa Nacional, a fim de poder ir a tropa.

- Que bom. - disse eu, satisfeito com a notícia. - Vais trabalhar na imprensa militar.

- Imprensa militar?

- Sim. Imprensa militar. As forças armadas tem um sector de imprensa, como pessoa formada em
jornalismo é certamente para lá mesmo que vais ser encaminhada quando terminares a tropa.
- Ahn, está bem. Não tinha pensado nisso.

- Eu sou teu mentor, esqueceste?

- Não. Nunca vou me esquecer.

Passaram-se alguns dias até que ela voltou desesperada. O nome dela não tinha aparecido nas
listas dos apurados. Por alguns instantes, ocorreu-me que fosse por causa da mancha que ela
tinha na bunda, afinal de contas eu tinha sido declarado inapto para ir a tropa por causa da minha
mancha no rosto.

- Mostraste a mancha lá na inspecção?

- Não. Nunca mostrei a minha mancha para ninguém.

- Ahn. Então não foi por causa da mancha na bunda, pelo menos.

Nunca tinha dito a Zuleica que um dia eu tinha sido declarado inapto para ir a tropa por causa da
minha mancha no rosto, também essa história praticamente eu tinha me esquecido dela, uma vez
que eu nunca quis ir a tropa e a minha mancha acabou me salvando sem eu saber. Tentei lhe

77
tranquilizar, tendo lhe dito que a vida era assim mesmo, que podia não ser desta vez, mas tarde
ou cedo acabaremos arranjando algum emprego.

- Eu também estou a batalhar.

Nesse dia, passamos a noite juntos. Não voltou para a casa do pai, o que me deu esperança de
que ela haveria de voltar para mim, mais dia ou menos dia. Na semana seguinte, Zuleica
apareceu para me informar que tinham sido afixadas novas listas, onde o nome dela apareceu:

- Meu nome apareceu. Vim me despedir do meu filho. Vou a tropa.

- Muito bom. - respondi. - Isso foi um golpe de mestre.

Na altura, não cheguei a perceber como ela conseguiu tal proeza. O nome que não tinha
aparecido numas listas, tinha aparecido noutras listas. Também não tinha motivos para me
preocupar com tal coisa. Na verdade, eu também estava feliz, cegamente.
Zuleica fez a tropa na Escola de Fuzileiros Navais, cujo quartel se encontra no distrito da
Catembe. Durante o cumprimento do curso, de vez em quando eu ia visitar a ela sempre que
precisasse de alguma coisa. Fazia questão que ela me dissesse exactamente o que precisava, eu ia
ao mercado pessoalmente fazer as compras.

Levei o nosso filho, que agora era um menino que estava no último ano da creche. Fomos num
chapa até ao cais, onde apanhamos um barco, com destino a Catembe. Chegados lá, apanhamos
outro chapa com destino a Escola de Fuzileiros Navais, onde nos receberam e nos trataram muito
bem, porque era mesmo o primeiro dia de receberem visitas dos familiares alguns meses depois
de terem iniciado o curso de instrução básica militar.

Todas as raparigas no quartel tinham cortado o cabelo, que até pareciam que fossem rapazes. E
todos pareciam gêmeos, também por causa da farda verde escuro, chimoio, mas mesmo assim foi
fácil para mim reconhecê-la. Mesmo de longe, eu reconheci aquela bunda que escondia uma
mancha igual a que eu tenho no meu rosto.

Quis abraçar a ela, mas mostrou-me que não era permitido, por isso me contive. Todos os seus
colegas mancebos divertiram-se muito com o nosso filho bonito, clarinho e gordinho. Como ali
dentro vendia-se cerveja, tive o privilégio de beber umas cervejas com alguns oficiais superiores

78
que a Zuleica me apresentou, que eram seus instrutores naquele quartel. Foram sendo assim as
minhas visitas até ao dia do encerramento do curso.

No dia do encerramento do curso, eu fui lá com a mãe, as duas tias, mas também vieram se juntar
a nós um irmão dela e uma irmã. Estava tão emocionado com a cerimónia de encerramento que
fiquei imaginando de como a nossa vida havia de mudar. Para o melhor. Estava tão emocionado
que no momento da confraternização depois de todas as demonstrações que foram feitas, como
se faz nos encerramentos dos cursos da polícia também, a garrafa de champanhe que eu trazia
comigo para a celebração explodiu antes dela chegar onde nós estavamos. Tinha agitado demais.
Tal como das outras vezes, quis abraçar ela, mas ela não aceitou. Desta vez não invocou as
proibições que eram impostas no quartel, porque estávamos em dia de festa. Zuleica pura e
simplesmente me afastou dela, tendo dito assim:

- Não faz isso.

Eu me contive. Ainda tentei meter alguma conversa com ela, mas ela quase que já não me
conhecia de lado algum, passando mais tempo a falar com a mãe, as tias e os irmãos. Zuleica
estava muito estranha, tão distante. Podia ter lhe perguntado sobre como ela se arranjava ali no
quartel para tomar os seus banhos com as outras colegas mancebos por causa da mancha que ela
tinha na bunda, mas não me deu espaço para nada. Foi assim até ao momento em que apanhamos
os chapas de volta. Depois apanhamos o barco e voltamos para a cidade, onde apanhamos o
chapa de regresso para casa. Eu e o nosso filho.

No dia seguinte, Zuleica apareceu na minha casa. Pensei que fosse uma surpresa agradável, mas
era uma surpresa desagradável.

- Só estou a vir buscar o meu filho.

- Está bem, não tem problema. Estás no teu direito. E nós?

- Nós o quê você também?

- Tens estado a ser muito fria comigo, nem um abraço, nem um beijinho, nem nada.

E ela disse:

79
- Deixa lá isso. Nós já não estamos juntos. Estamos separados há muito tempo...
- Separação não é divórcio. Apenas estávamos separados, a dar um tempo. Penso que agora
estamos em melhores condições para falarmos da nossa vida.

- Falar da vida com quem? Tu não sabes o que queres da vida. Eu arranjei uma outra pessoa, que
cuida de mim e estou feliz com essa pessoa.

Dei-lhe uma bofetada na cara, muito bem dada que hoje me arrependo tanto de a ter dado. Mas o
que queriam que eu fizesse? Ela estava disposta a arruinar a minha vida, eu que achava que tinha
dedicado a minha vida a ela. As vezes precisamos de aceitar as coisas como elas são, quando
uma mulher te despreza a ponto de arranjar uma outra pessoa para cuidar dela com o argumento
de que tu não consegues cuidar dela, não há mais nada a fazer. É preciso aceitar. Um jornalista
informado como eu não deveria me deixar levar pela situação e ir engrossar a lista dos suicídios
ou dos homicídios causados por motivos passionais.

- Isso não é justo. - disse eu.

E ela respondeu-me:

- Tu com essa coisa de justiça, justiça, justiça, por acaso existe alguma justiça neste mundo?
Mesmo os teus bosses lá no "Savana" não te fizeram trabalhar de borla tanto tempo para depois
não te darem nada? Não existe justiça nesta terra.

- Não fale assim, Tina Turner. Eu não estou a reconhecer-te, oh minha Zuleiquinha da mancha
reluzente na bunda.

- Me bateste, mas eu não vou dar queixa na polícia. Vamos deixar.

E ela pegou na criança e foi-se embora. Fiquei sentado no chão a chorar como uma criança. A
minha mãe veio ter comigo e disse meu filho, a vida é assim mesmo. Mas não te preocupes,
porque o filho será sempre teu.

Tal como eu havia previsto, a Zuleica foi afecta ao sector da imprensa militar. Um dia fiz
questão de ir lhe visitar, como quem não acreditava que tudo havia terminado de verdade. Ela
pediu-me que não dissesse ao seu chefe que eu era pai do filho dela, ao que notei que ela não só
tinha me abandonado, tanto quanto agora tinha vergonha de mim, que não queria que ninguém

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soubesse que eu era pai do filho dela. Se pelo menos o menino tivesse alguma manchinha igual a
que eu tenho no meu rosto, ninguém havia de duvidar. Zuleica agora tinha vergonha de mim,
porque eu não tinha fardamento. Foi assim que eu me afastei dela, definitivamente. Nos dias
seguintes, fui vendo ela passeando de um lado para o outro numa viatura azul four by four topo
de gama e de alta cilindrada com outro gajo. Foi assim que aprendi que pese embora a Zuleica
fosse tão especial, porque ela tinha uma mancha congénita na bunda esquerda, ela era igual a
todas as mulheres. Tanto podem nos amar hoje, quanto podem deixar de nos amar amanhã. Com
mancha ou sem mancha. Zuleica foi-se embora com o homem do four by four azul, dupla cabine,
levando com ela o nosso "segredo de Estado" escondido na bunda. A "informação classificada"
ganhara um outro "fiel depositário".

***
Três programas reactivaram a minha personalidade, o meu carácter e o meu estado de espírito na
"Rádio Savana". O hip hop music central park, o rock music central park e o reggae music
central park, todos da minha inteira responsabilidade e dos jovens apresentadores Aurélio
Macamo, Nando Manuel Júnior e Ras Gotas, respectivamente. Se existe algum critério para
conferir alguma legitimidade a esses programas radiofónicos, esse critério reside na audiência,
que vinha de todas as partes da cidade, do país e do mundo.

Tal é a grandeza de entendimento que esperava que tivesse tido o presidente do conselho de
administração da mediacoop, Fernando Lima, que me dera a oportunidade de trabalhar na gestão
editorial daquele órgão de informação, que faz parte da Mediacoop, também proprietária do
semanário "Savana" e do diário eletrônico "Mediafax".

De repente, quando pensava que tudo estava em conformidade, a Mediacoop parou com tudo,
apenas porque eu fora agredido por quatro agentes da unidade de intervenção rápida. Lima
convocara uma reunião urgente do conselho de administração para me apresentar a proposta de
cessação do vínculo laboral para me informar que em virtude do mau comportamento por mim
demostrado, ao ser vítima de maus tratos protagonizados por aqueles agentes da polícia, nada
mais havia a fazer senão me afastar da gestão daquele órgão de informação.

81
Naquela que seria a minha terceira tentativa de trabalho na Mediacoop, terminei a minha relação
de forma tão brutal que até mesmo no dia seguinte, quando fui a rádio para me despedir da
Carmelinda Gaspar, fui impedido de lá entrar pelo segurança. Mais do que isso, estava colado na
casota do segurança um papel que dizia que o "Nenane e sua equipa estão proibidos de entrar na
rádio", o que foi para mim uma tamanha injustiça, tanto por colocar em causa o meu bom nome,
a minha honra, reputação e integridade moral, bem como por arrastar comigo todos aqueles que
haviam aderido ao meu projecto e dado a sua mão, incluindo os apresentadores dos programas da
rádio, nomeadamente do rock music central park Nando Manuel Jr, do hip hop music central
park Aurélio Macamo, do reggae music central park Ras Gotas, bem como dos meus
colaboradores no programa "Do Torto ao Direito", nomeadamente o saudoso jurista Zé Miguel
Dias Pereira, o jurista e juiz de direito Carlos Mondlane, da então presidente da Liga dos Direitos
Humanos Alice Mabota, da directora da Reformar Tina Lorizzo, do programa "Encontro de
Editores", nomeadamente Francisco Carmona, Fernando Mbanze e Matias Guente, do
"Observatório Literário", nomeadamente os músicos Victor da Cruz e Cota Nguenha, o Putuana.

Num momento em que eu esperava que tivesse se solidarizado comigo pelo facto de haver sido
espancado pelos quatro agentes da polícia, até porque eu estava com gesso na perna esquerda
justamente no dia em que me informou da cessação do vínculo laboral, Fernando Lima não só
me abandonou como também me julgou como se eu fosse um cadastrado.

Não só me julgou a mim como por minha causa julgou também toda a minha equipa na rádio,
uma equipa constituida com muito esforço durante sensivelmente um ano mediante o bom uso
das minhas habilidades na mobilização de voluntários e parceiros. Pensando estar a agir contra
mim apenas, Lima acabou agindo contra todos nós, incluindo os ouvintes da rádio bem como
toda a população moçambicana e a humanidade inteira. Sim, porque agir da forma como agiu foi
efectivamente um atentado contra os direitos humanos e contra a liberdade de imprensa e de
expressão, logo eu que pensava que fosse somente o Estado o maior violador dos direitos
humanos, afinal o Lima também!?

Tive que sofrer sozinho, porque o Lima tirou-me tudo, incluindo a dignidade. Para mostrar o
quanto o Lima foi injusto comigo, os quatro agentes da Unidade de Intervenção Rápida (UIR),
nomeadamente Inácio Domingos Mangue, 2o Cabo da Polícia, Mário Batista Mula, Aurélio
Salvador Manhiça e Inocêncio João Valoi, todos guardas da polícia, foram condenados.

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No julgamento realizado dois anos depois pela 2a Secção do Tribunal Judicial do Distrito
Municipal Ka Nhlamankulu, presidido pela juíza de direito Zvika Constantino Maniquidza
Cossa, ficou provado que aqueles quatro polícias cometeram o crime de ofensas corporais
voluntárias contra a minha pessoa, impossibilitando-me de trabalhar, pois havia contraído
múltiplas escoriações, até porque fiquei com um gesso na perna esquerda em consequência de
um deslocamento do joelho. Sei que os mesmos agentes terão cometido outros crimes no mesmo
dia, incluindo o crime de homicídio, tenho provas.

É por esta e outras razões que eu acho que ainda que a cessação do vínculo laboral tivesse
encontrado cobertura na situação de violência física que eu sofri, não foi essa a razão que Lima
teve para tal procedimento. O que levou Lima a me a afastar da rádio foi o conflito editorial
latente que havia se instalado entre nós e o meu pendor pela desobediência editorial, cuja herança
recebi do meu "pai espiritual" Fernando Manuel, o cronista que vê maningue. Enquanto gestor
sénior da "Rádio Savana", nunca permiti interferências abusivas do presidente do conselho de
administração Fernando Lima na gestão editorial, o que lhe deixava aborrecidissimo e com os
nervos à flor da pele. O último crime que cometi foi ter criado o programa "Conversas com
Fernando Gonçalves", que o Lima suspendeu depois de havermos realizado apenas uma edição,
somente porque ele queria que na rádio existisse apenas o programa dele, "Os Pontos de
Fernando Lima", para o qual chamou o Francisco Carmona, um dos colaboradores da minha
equipa que também estava proibido de entrar na rádio segundo nota afixada na cabine do
segurança. Nunca admiti que os meus colegas chamassem o Lima de racista por causa das suas
atitudes, do seu comportamento, da sua personalidade, temperamento, carácter, emoções e
vibrações, mas se isto não é racismo, não está muito longe disso. Racismo nunca foi porque na
minha equipa havia brancos, pretos, mulatos, albinos, multicores como eu, sendo que agir contra
mim equivale a agir contra a humanidade inteira, tendo atentando contra toda esta gente na sua
acção contra mim. Lima entrou na "Rádio Savana" para instalar o programa "Os Pontos de
Fernando Lima", inspirado nos "Pontos de Vista" da STV, onde foi comentador, mas entrou na
rádio de forma tão espalhafatosa como um rinoceronte quando entra numa loja de porcelanas e
cristais, que vai partindo tudo por falta de jeito.

O que Lima fez comigo foi uma autêntica falta de respeito por mim, por si próprio, pela rádio,
pelos voluntários, apresentadores, ouvintes, parceiros e público em geral, bem como uma

83
autêntica falta de respeito pela liberdade de imprensa e de expressão, pela Lei de Imprensa, pela
Constituição da República e pelo Estado de Direito e Democrático. A primeira vez que eu estive
na Mediacoop, estive ao serviço do jornal "Savana", tendo apresentado a minha carta de
demissão depois de ter ido a Cabo Delgado investigar a exploração ilegal de madeira por ordens
de Fernando Lima sem o consentimento do Editor do jornal Fernando Gonçalves, o que causou
um enorme estrago na minha vida. A segunda vez que estive na Mediacoop, estive também ao
serviço do "Savana", tendo apresentado a minha carta de demissão porque no lugar de 60.000,00
meticais que devia me ter pago por ter produzido um suplemento sobre justiça, bem como por ter
estado a produzir o "Informal" em substituição de Fernando Manuel, o senhor Lima acrescentou
2.000,00 meticais no meu salário. Quando quis saber do assunto, o senhor respondeu-me que o
meu contrato não prevê salários extras. Pois bem, o meu contrato também não previa trabalhos
extras. E o suplemento da justiça era sim um trabalho extra, se o Lima escolheu justamente a
mim para produzir e comeu todo o dinheiro sozinho, dando-me apenas dois mil meticais, é
porque o senhor sabia que eu vinha da Faculdade de Direito, que eu tinha gosto pelos assuntos de
direito, justiça e lei.

Lembro-me que desta última vez que estive na "Mediacoop", o senhor Lima perguntou-me onde
eu queria trabalhar, no "Savana" ou no "Mediafax"? E eu respondi:

- "Rádio Savana".

- "Rádio Savana'? - perguntou o Lima, admirado. - Lá na rádio não há nada.

- É justamente por isso que eu quero trabalhar na rádio. Porque lá na rádio não há nada. Eu sou
um criador, quero criar.

Porque assim estávamos de acordo, mãos à obra. De apenas três programas que a rádio tinha,
nomeadamente o "Manhãs Informativas", de Carmelinda Gaspar, já no final de um ano tinhamos
acrescentado na rádio mais programas, nomeadamente os de hip hip de Aurélio Macamo, de rock
de Nando Manuel Jr e de reggae de Ras Gotas, que eram um verdadeiro manifesto geracional,
bem como o "Debate Parlamentar" de Isac Naene, o "Do Torto ao Direito", "Encontro de
Editores" e "Observatório Literário", todos da minha inteira responsabilidade. Quando viu que a
mesma rádio que há um ano dizia que não havia nada para eu querer lá estar, já estava a ganhar
outra dinâmica e a atingir outros patamares, o senhor Lima veio com toda a sua força para

84
estragar tudo, tal como se de um rinoceronte numa loja de porcelanas e cristais, que entra a partir
tudo por falta de jeito, se tratasse. Neste momento, quem tem uma pergunta a fazer sou eu
mesmo, patrão:

- O que o senhor Fernando Lima quer aí na rádio, uma vez que aí na rádio não há nada?

Quid júris, dizem os juristas.

Julgue-se a si próprio, digo eu.

Os policias que me bateram foram condenados. Eu fui absolvido. Não sou nenhum marginal.
Todos os meus colaboradores, que também foram proibidos de entrar na rádio por minha causa,
também foram absolvidos. Não somos marginais. O único criminoso que eu estou a ver neste
momento é o senhor Fernando Lima. Não guardo nenhum rancor, nem nenhuma mágoa, não foi
isso que me ensinaram o Nelson Mandela, o Martin Luther King Jr e o Mahatma Ghandi, até
porque o senhor é um dos melhores professores de jornalismo que eu tive o privilégio de ter,
tendo aprendido muita coisa do senhor. E porque assim estão preenchidos todos os requisitos, ao
que se juntam as provas, as testemunhas, os documentos e demais anexos, aqui apresento, hoje e
agora, a minha douta acusação e o senhor Fernando Lima será julgado e condenado pelo Povo
em sede do tribunal da opinião pública, aos auspícios do senhor Mark Zuckerberg, o nosso chefe
maior.

***
- "Não somos não mais senão feitos à exacta medida homens..."

- "...quer dizer, feitos sine quo non mistela de emoções..."

- "...feitos na hipófise que faz variar todas as funções.."

-" ... nós somos homens.."

-"... pessoas que Fernando Pessoa tinha muitas..."

-"...e imensuráveis..."

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-"... Nós somos homens..."

- "...Bicho Homem!"

E ela correspondeu-me muito bem no poema de Filimone Meigos a intercalar comigo no exacto
ritmo da música cem por cento underground que havíamos lançado nas rádios, como se me
tirasse as palavras da boca, o que me deixou deveras impressionado. Não pensei que um dia
pudesse encontrar igual criatura, que gostava de ler os poemas de cariz humanista de um Meigos,
tanto quanto eu gostava e que eu colocara numa música revolucionária da "X-Family", um
comboio com o Tenente Coronel Niggaz Duck, o Sargento Wonder, o Sargento Cage, o Sargento
Peeze, o Sargento Backat e o Sargento Hermen.

- Eu chamo-me Henry...

Ia logo me apresentar, mas ela interrompeu-me de imediato, tendo dito:

- Henry Miller, não. Major General Henry Miller.

Meus Deus, afinal ela me conhecia, conhecendo mesmo até a minha patente e tudo. Eu que
pensava que era um rapper anónimo. Tive mesmo que lhe perguntar também:

- E tu? Como te chamas?

E ela:

- Tenente-Coronel Zularica Ponta Fina, às suas ordens Major-General.

Meu Deus, uma poetisa que lia Filimone Meigos e como se não bastasse com uma patente de
Tenente-Coronel que estava disposta a servir sob o meu comando, só podia ser muita sorte para
um dia só.

Quem era ela? Porquê me tinha vindo procurar? Tive que manter a calma, a ver como aquilo
haveria de terminar. E ela disse:

- O Major General Henry Miller é parecido com alguém..

- Sou parecido com alguém?

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- Sim. - respondeu.

- Quem?

- Lee Thomas.

- Lee Thomas?

- Sim. Lee Thomas. Não conheces?

- Não, não conheço.

- Lee Thomas é um jornalista americano.

- Eu também sou jornalista.

- Eu sei. Já te vi na televisão.

- Então sou parecido com o Lee Thomas por ser jornalista?

- Não. - retorquiu. - Claro que não. É por causa dessa mancha aí...

E esta agora? De novo a mancha!? Fiquei meio constrangido, já não estava muito habituado a
falar da minha mancha com estranhos, mas mesmo assim deixei-me levar com a conversa da
Tenente-Coronel Zularica Ponta Fina, cujo nome batia certo com ela, que era de facto uma ponta
fina de altura média, rosto definido, olhos castanhos bem puxados como os dos chineses e os
lábios fumados, como se fumassem cannabis.

Por isso respondi, tal como a minha mãe me ensinou desde quando ainda era uma criancinha:

- Nasci assim. É uma mancha congénita. Não tem cura.

- Quando te vi na televisão, entrei no google para perceber sobre esse assunto da mancha. - disse
ela. - É uma doença. Chama-se vitiligo...

- Não. - respondi. - Eu não tenho nenhuma doença, o que eu tenho é uma mancha congénita, que
nasci com ela e não tem cura.

- Ahn, percebo. Mas seja como for, és parecido com ele. Lee Thomas.

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Por alguns instantes cheguei a pensar que ela estivesse a gozar comigo, como aqueles meninos
que me submeteram a muitas torturas psicológicas na escola primária e secundária, atribuindo-
me nomes feios que me marcaram de forma indelével para o resto da minha vida. Mas como ela
foi insistindo no assunto, decidi resistir, também como haveria de desistir aos inquéritos daquela
ponta fina esbelta de olhos de china e lábios fumados de cannabis.

E ela continuou, tendo me explicado que Lee Thomas era um apresentador de televisão, uma
espécie de pivot do telejornal, algo assim tipo Arsénio Henriques na altura da STV, antes de ser
recrutado pelo presidente Nyusi. Quando Lee começou a notar que a sua pele estava a se
transformar, começou a andar pintado. Todos os dias, antes de sair de casa, ele maqueava-se, a
fim de que ninguém pudesse notar o que estava a se passar com ele.

Depois de ser diagnosticado com vitiligo, uma doença caracterizada pela redução da
pigmentação na pele, considerou ser o fim da sua carreira televisiva. No entanto, uma doença
que, aparentemente, deveria ter destruído sua vida, proporcionou sucesso profissional e gratidão
de telespectadores do mundo todo.

- Então estás a dizer que eu sou uma bolada? - perguntei, achando que ela tinha visto em mim
uma bolada, uma vez que por essas alturas se caçavam albinos lá no norte do país, alguém
inventara que cérebro de albino cura sida. - És gestora de carreiras?

- Não. Nada disso. É que a minha irmã tem uma doença igual. Ela começou a ter agora, está a
alastrar-se no corpo dela. Não sei como posso ajudar a ela.

Zularica agora tinha lágrimas nos olhos, mas não havia de chorar.

- E aí pensaste em mim.

- Sim. Não só, mas também.

- Não só?

- Não só.

- Porquê?

- Tu és bonito.

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- Mentira. Isso é corrupção.

- Corrupção? Não estou a corromper ninguém eu...

- Estás sim. De certeza que estás a procura da cura para a tua irmã. Mas podes tirar o cavalinho
da chuva. Eu nasci assim mesmo. É uma mancha congénita. Não tem cura. A minha mãe me
ensinou a não me preocupar com a cura, porque os cientistas não haveriam de perder tanto tempo
a investigarem uma cura só para mim.

- Tu és bonito e muito inteligente. Gosto muito dos teus textos. - disse ela, que afinal era minha
leitora assídua. - A minha irmã anda muito deprimida, com sérios problemas de auto-estima. Não
é isso que eu vejo em ti. Por isso acho que podes me ajudar a ajudar a minha irmã...
- É isso mesmo que eu disse. Estás a procura da cura. És uma corrupta. Pensei que tivesses
gostado de mim...

- Pois pensaste errado. Eu não estou a gostar de ti. Eu te amei.

Ela disse tudo e eu ouvi tudo, tendo recorrido justamente as palavras certas no momento certo,
mas ainda me fiz de despercebido. Mesmo se ela estivesse a procura de uma cura, eu era bem
capaz de lhe enganar, dizer que eu tenho a cura enquanto na verdade não tenho, apenas para que
me cedesse parte da sua intimidade, mas eu não sou assim, não gosto de usar as pessoas, por isso
decidi não avançar por esse caminho. Mas ela veio até mim. Não havia de desperdiçar. Por isso
pedi que me falasse mais do jornalista americano parecido comigo, a fim de que eu percebesse o
nível de informação que ela tinha sobre o assunto. Eu estava mesmo disposto a ajudar a ela.

- Tenente-Coronel Zularica Ponta Fina, conta mais. Estou de ouvidos.

- Às ordens, meu Major General.

Lá a corajosa Tenente Coronel Zularica foi contando o que apurou nas suas pesquisas. De facto,
até os 25 anos, Lee Thomas sequer suspeitava de que tivesse uma doença autoimune. Ele já era
um repórter de televisão de sucesso, num dos canais de Nova York. Mas, uma vez, um
cabeleireiro lhe mostrou uma mancha branca na parte de trás da sua cabeça do tamanho de uma
moeda. Foi algo tão inesperado que ele até pensou que a sua pele tinha sido arrancada.
Lee Thomas ficou realmente assustado, mas a sua mãe o tranquilizou, dizendo serem sintomas

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desencadeados pelo cansaço. Thomas levou um ano procurando ganhar coragem para ir ao
médico. Nesse período, as manchas brancas já tinham aparecido nas suas mãos e no seu rosto.
O dermatologista diagnosticou-lhe vitiligo. Isso lhe soou como um veredicto: significava que não
podia mais trabalhar como apresentador de televisão, pois quem permitiria que alguém com
manchas brancas no rosto estivesse no ar?

- É verdade. E o que aconteceu?

- Pois, como eu ia te explicando, o jornalista escondeu a sua doença por muito tempo para não
perder o emprego. Antes de sair de casa, aplicava muita maquiagem, que mascarava as manchas
na sua pele. E a sua família sempre foi um apoio, o que lhe dava forças para continuar.

- Interessante.

Ela continuou a contar.

Afinal de contas, a carreira de Thomas avançava e recebeu uma oferta de trabalho no canal
WJBK Fox 2 News, em Detroit nos EUA. No entanto, o jornalista continuou a manter segredo
sobre o fato de ter vitiligo. Quando as manchas brancas se estenderam em trinta e cinco por cento
da sua pele, não dava mais para esconder a doença.

- Trinta e cinco por cento da pele toda branca?

- Sim. Trinta e cinco por cento.

- Eu a pensar que eu fosse o "deficiente" mais desgraçado desta terra...

- Não digas isso, Major General.

- Brincadeira, Tenente Coronel. Eu já superei há muito tempo. Mas continua. Fala-me mais de
Lee Thomas.

- Pois bem. A maquiagem não permitia que lavasse as mãos durante o dia e Thomas decidiu que
seria melhor informar a direcção sobre a sua doença, para que os seus colegas não o
considerassem sem higiene.

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Ao contrário das expectativas, os chefes do canal televisivo não só não pediram a sua demissão,
como lhe propuseram contar sua história no ar.

- Heish. Está ficando bom.

Zularica contou-me que Thomas reflectiu um pouco, pois a ideia parecia estranha. Mas logo
começaram a chegar pedidos semelhantes de alguns telespectadores que naquele momento já
sabiam da história, que telefonavam para o canal. Um adolescente lhe perguntou: "Você poderia
contar a sua história na televisão?", ao que ele respondeu: "Por quê?". "Bem, talvez as pessoas
me tratassem de maneira diferente".

- Claro. Muito certo.

Thomas ficou profundamente impressionado com essa ideia. O diálogo com o jovem o ajudou a
perceber que há pessoas ao seu redor que realmente precisavam de ajuda.
Foi assim que ele decidiu dar um passo ousado. No ar, o jornalista tirou a maquiagem e mostrou
a todos como a sua pele realmente é. A reação do público foi incrível. Pessoas do mundo todo
expressaram seu apoio e gratidão.

- Realmente, Tenente Coronel.

Hoje, Thomas tem 50 anos de idade e construiu uma carreira de sucesso. Ele foi quatro vezes
vencedor do Emmy, como melhor apresentador e produtor. Escreveu um livro, "Turning White"
(Tornando-se branco, em português), sobre a sua batalha contra a doença e se tornou o
representante oficial da Fundação Nacional de Vitiligo em Ohio, EUA. Ele continua se
maquiando para apresentar os programas, a fim de não distrair a atenção dos telespectadores do
conteúdo, mas no dia a dia não usa mais cosméticos. "O que eu pensava que seria um beco sem
saída para mim, acabou por ser a maior bênção da minha vida", escreveu.

- Impressionante.

Foi o que eu disse. Zularica estava muito bem documentada com o apoio do smartphone e do
google, de onde extraiu as fotos de Lee Thomas, que tratou de me mostrar. Nunca tinha
imaginado que existia no mundo um jornalista como eu, apesar de eu ter nascido assim mesmo.
A única pessoa que eu tinha conhecido com uma mancha igual a minha era a minha antiga

91
esposa Zuleica Tina Turner, que tinha uma mancha na bunda e com quem havia criado a dupla
da mancha.

E a Zularica Ponta Fina perguntou-me:

- Não estás impressionado?

- Não só estou impressionado como também estou convencido e decidido. Eu vou ajudar a tua
irmã naquilo que eu puder.

Foi assim que terminou o nosso encontro, que já nesse momento começara a pensar que estava
bom demais para ser verdade. Zuleica foi-se embora com outro, bazando de vez com o nosso
filho. Quem seria a Zularica Ponta Fina? Era uma mulher inteligente, mas também bonita e
atraente, uma doce ponta fina irrecusável. Com a história de Lee Thomas, ela tinha me acertado
em cheio.

***
A doce e espectacular Zularica Ponta Fina tinha uma irmãzinha chamada Joana, cuja pele escura
tinha começado a ficar branca, com manchas em vários pontos do seu corpo lindo e escultural,
incluindo no queixo cumprido, no pescoço gaulês, no peito atlético, na barriga lisa e cintura fina,
na anca bamboleante e no joelho esquerdo redondo. Isso me pareceu ser uma realidade que
deveria ser extremamente trágica, uma vez que a Joana, que devia ter uns dezasseis, dezassete
anos, passara toda a vida sem imaginar que um dia havia de ter uma doença daquelas. Ela
sonhava em ser economista, mas por aqueles dias perdera o gosto pela escola, mergulhada numa
autêntica falta de auto estima causada pelos nomes feios que as pessoas lhe andavam a dar,
sobretudo os colegas de escola. Não foi fácil meter conversa com ela, mas a Zularica fez-lhe
perceber o quão importante era para ela aquela minha presença.

- Conheces o Major General Henry Miller, o grande rapper do bairro de Xipamanine? Também é
jornalista.
- Não conheço...

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Respondeu de um jeito tão duro, meio sem sal e nem sabor nenhum. Logo vi que ela estava
desanimada com a vida e tudo o que a sociedade agora representava para ela. Tive que activar a
frente artística, quando a evolução não acontece os artistas fazem a revolução, pelo que usei o
meu puro rap com a minha força interior de intervenção rápida: conheci a ela numa praça de
elite/juro pela alma do meu bit/brilhava que nem rubite/eu paquerei-a, tirei-a, do gajo com quem
estava/afinal de contas me me metia nas trevas/mas como tinha sido amor/a primeira vista/não
percebemos a distância/ que eu ela dista/ela disse nem mais um passo/desculpa mas não
posso/eu reconheço o teu esforço/mas não me vais ganhar pelo cansaço//selvagem/ela
selvagem/ela é selvagem/o estilo dela/me faz pensar assim.

A Joana gostava de rap, por isso mesmo deixou-se apanhar, tendo engrenado na minha cena,
abanando a cabeça como se fosse uma gala gala. A Zularica começou a sorrir, enquanto também
ia abanando a cabeça, se o rap libertou os negros nos EUA, o rap havia também de libertar a
Joana da prisão que as manchas no corpo inteiro lhe haviam metido.

- Conheces a Winnie Harlow?

Perguntei a Joana, uma vez que eu também já nessa altura começara a andar no google a procura
de histórias de superação de pessoas que enfrentaram a mesma doença, até porque aprendi esse
truque da Tenente-Coronel Zularica Ponta Fina, que me apresentara o jornalista americano Lee
Thomas.
Joana respondeu que não conhecia a Winnie Harlow, o que me pareceu ser para mim uma
enorme vantagem, assim eu teria como meter conversa com ela. Até porque a história de vida de
Winnie Harlow era também bastante interessante, altamente motivadora.

- Sabes o que é bullying?

- Sim. Sofro bullying todos os dias.

- Não, não sabes ainda. Imagine quem tenha passado a vida inteira sofrendo bullying. Tu pelo
menos és crescida, imagine como teria sido a tua infância se tivesses tido a doença quando ainda
eras mais novinha. A modelo Winnie Harlow apanhou a doença com quatro anos.

- Sério?

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- Serissimo.

- Major General, vai uma cerveja?

- Claro, com muito gosto.

Logo pensei que a minha mancha tinha começado a dar algumas vantagens, até já tinha direito a
uma cerveja da Tenente-Coronel Zularica Ponta Fina, um prémio de jogo pela palestra
motivacional que já havia começado a dar para a Joana.

Foi assim que fui contando para a Joana que a modelo canadiana Winnie Harlow sabe o que é
sofrer bullying, literalmente na pele; desde os 4 anos de idade, quando foi diagnosticada com
vitiligo, uma doença que causa a morte das células responsáveis pela pigmentação da pele.
- Tal como Michael Jackson. - gritou a Zularica, lá da cozinha.

E a Joana respondeu:

- Michael Jackson de novo? Estou farta dessa história. Agora quero ouvir mais sobre a Winnie
Harlow.
É verdade, a Joana estava agora um pouco mais animada, o que me activou ainda mais o meu
instinto palestrante, que a Zularica activara no dia anterior. Winnie recebeu muitos apelidos
desde criança, de vaca a zebra, e alguns até impronunciáveis, como eu que desde a escola
primária até a secundária chamaram-me de "Mapa de Moçambique", "Mapa Cor-de-Rosa",
"Olho Branco", "Pintex", "Robiallac", "Murdock" e outros tantos nomes feios. Mas Winnie
Harlow tinha um objectivo na vida.

- Sabes qual?

- Não, não sei. Nem conheço a ela..

- O sonho dela era tornar-se modelo.

Por causa da doença, muitas pessoas disseram para ela abandonar a ideia e desistir do sonho.
Mas não. Winnie inscreveu-se no programa "America's Next Top Model", que descobre modelos
e alavanca as suas carreiras e foi a rapariga mais popular e querida entre os telespectadores.

- Alguma vez ouviste falar de uma 'modelo porta-voz do vitiligo'.

94
- Não. Nunca ouvi falar.

- Ela chama-se Winnie Harlow e é parecida contigo. Nunca desista dos teus sonhos.

Nesse momento, a Joana já estava com o seu telemóvel na mão, a mergulhar no google para
saber mais e mais sobre a vida e obra da modelo canadiana parecida com ela. No lugar de ser eu
a contar, já era ela mesma, graças a internet.

Aos 21 anos, Winnie foi chamada para campanhas de moda importantes e assinou um contrato
com a SHOWstudio, uma produtora de renome. Para homenageá-la, usuárias das redes sociais
começaram a usar maquiagem para imitar a modelo e foram acusadas de 'blackface' -
representação caricata de personagens negros nascidos nos Estados Unidos em meados do século
19 -, mas Winnie as defendeu dizendo que "'sentiu o amor nelas". Muita gente não entendeu
quando as fotos ganharam as redes sociais e 'viralizaram', causando vários tipos de reação. A
própria Winnie aproveitou o furor e propôs um debate para seus 913 mil seguidores no
Instagram. "Minha resposta para isso não é provavelmente a que um monte de gente quer ouvir,
mas aqui vai: cada vez que alguém quer lábios ou bumbuns mais cheios, cabelos crespos ou
tranças, isso não significa que nossa cultura está sendo roubada. Alguma vez você já parou para
perceber que algumas dessas coisas costumavam ser ridicularizadas e hoje são normais? Apenas
nos acostumamos com certas coisas e agora também querem imitar minha pele. Só porque uma
garota negra usa lentes de contacto azuis não significa que ela quer ser branca, e só porque uma
garota branca usa tranças e aumenta os lábios, ela quer ser negra. A quantidade de raças mistas
neste mundo é a prova viva de que ninguém quer ser outra pessoa. Por que não podemos abraçar
esse sentimento de amor entre as pessoas? Por que nós temos que tornar tudo sempre um crime
de ódio? Numa época em que tanta coisa negativa está acontecendo, por favor, não acusem quem
demonstra amor e apreciação. Sei muito bem diferenciar as coisas".

- Possas, pá. - disse a Joana. - Essa gaja é muito inteligente.

- Porquê? - perguntei.

- Nem parece que está doente com as manchas dela. Em vez disso, ela anda a dar aulas ao mundo
sobre o problema do racismo.

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- Inteligente és tu que conseguiste perceber isso. Eu nem sequer havia chegado a essa conclusão.
Nunca me senti tão útil em toda a minha vida. Eu tinha sido muito útil para a Joana. Apesar de
não ser da noite para o dia que se consegue alcançar os melhores resultados na transformação do
nosso comportamento, da nossa personalidade, carácter, atitudes, emoções, nervos, espírito e
alma, estava claro que havíamos dado um belíssimo passo. Mais tarde, contei-lhe um bocado a
minha história de vida, dos lugares por onde eu passei, das humilhações que sofri desde a minha
infância, de como a minha mãe foi importante ao me ensinar desde pequeno a dizer que eu nasci
assim, é uma mancha congénita, não tem cura. Também lhe falamos do jornalista americano Lee
Thomas, aquele que a Tenente Coronel Zularica achava ser parecido comigo por causa da
mancha, mas que se maqueava para poder aparecer na televisão.

- E tu quando vais a televisão não te maqueas porquê? - perguntou a Zularica, a Ponta Fina.
- Talvez porque a minha própria história de vida é diferente da história de Lee Thomas, de
Winnie Harlow e até da Joana. Eu nasci com a mancha. Quando terminei a Escola de Jornalismo,
não escolhi ir para uma televisão, tal como o Arsénio Henriques, porque sempre estive
consciente de que os telespectadores haveriam de se concentrar mais na minha mancha do que na
informação. Quando Lee Thomas começou a ter manchas, ele já era apresentador do telejornal,
por isso teve que se maquear.

- Ahn, pois está claro...

- Uma vez fui convidado a participar num programa na TV Gungu. A pessoa da maquiagem
perguntou-me se poderia maquear toda a mancha até não se ver. Eu não aceitei fazer uma coisa
dessas.
- Porquê?

- Porque eu sou assim. Toda a gente me conhece assim mesmo. Não gostaria que as pessoas que
me conhecem me vissem de outra forma apenas porque fui a televisão.

Estava a ficar tarde, por isso decidi seguir o meu caminho. Quando eu estava a me levantar,
Joana veio a correr ter comigo. Deu-me um abraço, tendo dito "muito obrigado". Eu disse a ela
que aquele era apenas o primeiro dia, que o melhor está por vir. A Tenente Coronel Zularica
Ponta Fina me acompanhou até a paragem. Antes de apanhar o chapa, ela me deu um beijinho.
Na verdade, deu-me um beijo. Apesar de tudo, esta mancha também tem vantagem mesmo.

96
***
Naquele que tinha começado como um ano definitivamente trágico e de grandes
esculhambações, planos adiados e expectativas frustradas, dado o término do contrato de
trabalho na "Rádio Savana" decorrente dos actos de violência contra mim protagonizados por
quatro agentes da polícia, ter conhecido a Zularica Ponta Fina bem como a sua irmãzinha Joana
foi para mim o melhor que poderia ter acontecido.

Embora tivéssemos começado a nos aproximar motivados pela busca incessante de histórias de
superação de pessoas com manchas no corpo com vista a ajudar a irmãzinha Joana a superar a
sua situação, muito cedo a Zularica se interessara por outras frentes de combate que me haviam
sido impostas pela vida. Deus me tornara vítima de tortura pelos homens da unidade de
intervenção rápida de propósito, a fim de que eu pudesse passar por tudo o que passei no longo
caminho em busca da justiça, uma luta que somente foi percebida pela doce e espectacular
Zularica Ponta Fina, a Tenente Coronel, pessoa sem a qual o meu estado de abandono total e
completo por parte dos meus colegas de profissão, dos meus familiares e amigos, nunca teria
sido possível ultrapassar.

Lembro-me de um dia, enquanto começava a me dedicar mais vigorosamente ao activismo pelos


direitos humanos e cidadania, haver sido convidado pelos administradores da Mediacoop para
ser a testemunha técnica do jornalista Fernando Mbanze, que vinha sendo acusado de crime de
abuso da liberdade de imprensa num mesmo processo em que o economista Carlos Nuno Castel-
Branco era acusado de crime contra a segurança do Estado, tudo por causa de um artigo de
opinião crítico à governação do presidente Armando Guebuza que o Ministério Público
considerara como tendo sido ofensivo a figura do então presidente, assim como um atentado
contra a segurança do Estado. Não me fiz de rogado, aceitei o convite e fui me apresentar diante
do juiz João Guilherme, a quem esclareci que o artigo de Castel-Branco nada tinha de ofensivo
contra o presidente da República, tratando-se, pois, de um artigo de opinião que estava a altura
do seu tempo, uma vez que o país vivia num clima de ingovernabilidade. Esclareci que aquela
era uma crítica severa e impiedosa, mas também humorística, sarcástica e satírica, que faz bem a
alma e ao espírito, pelo que não poderia de forma alguma ser tratada como um crime, o que veio

97
a ser comprovado pelo juiz João Guilherme, em sentença que absolveu tanto o jornalista como
também o economista.

Não só tive o privilégio de participar nesse julgamento como testemunha técnica, como também
estive do lado da rua, no comando das manifestações com os jovens revolucionários da X-Family
a pedir para nós também, simples mortais, um pouco dessa justiça, dessa verdade e dessa
igualdade, uma vez que qualquer condenação que dali pudesse sair, fosse ela do jornalista ou
mesmo do economista, seria um verdadeiro atentado contra a liberdade de imprensa e de
expressão, contra a Lei de Imprensa, a Constituição da República e o Estado de Direito e
Democrático.
Desta vez eu estava sozinho, afastado da "Rádio Savana" de forma desumana, abandonado pelos
colegas de profissão, pelos familiares e amigos e tendo comigo apenas a Zularica Ponta Fina,
quem com poucos estudos estava disposta a fazer parte das diligências com vista a neutralização
de quatro agentes da polícia que numa certa noite me raptaram e me torturaram na Escola
Primária da Munhuana, onde me meteram no escuro, me atiraram para o capim lamacento e
pisaram-me e apontaram-me armas na cabeça, até que se puseram em fuga quando viram que os
vizinhos e outros populares iam mesmo partir para cima deles.

Nunca percebi e jamais perceberei como uma menina tão pequena quanto tão inexperiente
poderia ter achado que aquele teria sido um caminho a seguir, talvez porque não estivesse muito
a par dos acontecimentos, de como os jornalistas, activistas, opositores e académicos críticos ao
poder político eram assassinados todos os dias em plena luz do dia. Falei com a Zularica sobre os
perigos que tal representava, que isso de andar a me seguir por todo o lado onde eu andasse
constituia um enorme risco para ela e sua família, mas as minhas palavras em nenhum momento
a demoveram. Falei para ela de muitos exemplos que haviam sido dados, do jornalista Carlos
Cardoso, que foi assassinado quando investigava desvio de fundos num banco, do jornalista
Paulo Machava, que foi assassinado, do jurista e constitucionalista Gilles Cistac, que era meu
amigo e foi assassinado, do político Jeremias Pondeca, que foi assassinado, bem como do
jornalista Ericino de Salema, que por esses dias também foi raptado e torturado, tal como o
cientista político Jaime Macuane que foi raptado, torturado e baleado numa das pernas e o
jornalista Matias Guente, que foi espancado com sucessivos golpes de bastão de basebol e tacos
de golfe.

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- Eu acredito em Deus. - disse a Tentente Coronel Zularica, cujas palavras me soaram tão fortes e
tão motivadoras para a grande luta que estávamos prestes a travar. - Eu acredito em Deus!
Nas semanas seguintes, andamos no quartel da Unidade de Intervenção Rápida da Polícia da
República de Moçambique. Imagine uns civis como nós a entrarem num quartel daqueles numa
de estarem a busca da justiça, logo ali mesmo éramos aterrorizados pelos agentes, que têm o
hábito de se protegerem uns aos outros. Nesse dia, eu tinha sido solicitado para prestar
declarações, em resposta a uma exposição que havia dirigido ao comandante geral da polícia
sobre o que me havia acontecido.

- Só posso prestar declarações se for feita uma solicitação formal com o assunto em causa, bem
como com os nomes dos visados.

O responsável pelo sector da ética e disciplina policial respondeu que tal solicitação somente
poderia ser feita pelo chefe do Estado Maior da UIR, o que veio a acontecer na semana seguinte.
Fui lá prestar declarações para alimentar um processo disciplinar cujo desfecho nunca me foi
dado a conhecer, o facto é que o mais importante me foi dado: os nomes dos quatro agentes em
causa, os quais me serviram para instaurar um processo crime contra os visados, que viriam a
responder dois anos depois.

No mesmo ano em que se deram os factos, o meu amigo Wonder, um importante membro dos X-
Family, apareceu em minha casa para me informar que tinha sido baleado mortalmente um
adolescente de dezassete anos, curiosamente irmão do jovem rapper Letrado, da "Operação
Clandestina". O crime fora cometido por um agente da unidade de intervenção rápida. Alguns
meses antes, agentes da mesma unidade haviam torturado um jovem de nome Teodósio, que
vivia do outro lado do bairro. Foi Deus que me colocou diante desses acontecimentos, a fim de
que eu pudesse testemunhar tudo.

Para além da Zularica, agora tinha também na minha equipa o jovem rapper Letrado, que estava
disposto a fazer de tudo para que o responsável pelo assassinato do seu irmãozinho fosse achado,
julgado e condenado.

Tínhamos em mãos três processos envolvendo um total de dez agentes da UIR, seríamos nós,
simples mortais, capazes de levar tais processos até ao fim, tendo em conta a nossa miserável

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condição bem como todos os obstáculos impostos pela morosidade processual que caracteriza o
nosso sistema de justiça? É o que haveríamos de ver a seguir.

O facto é que uma vítima quando chega numa esquadra para tratar de um determinado assunto
que ainda não é um processo propriamente, começa por se confrontar com uns miseráveis
agentes corruptos que actuam mesmo a partir de fora da esquadra, depois tem que passar pela
sentinela, onde está um agente que deve ser cumprimentado com bons modos, ao que se segue a
bicha dos que também estão na esquadra para tratarem seus assuntos até chegares ao oficial de
permanência que irá ouvir a preocupação para abrir ou não um auto. Mais tarde, serás notificado
de novo para ser ouvido pelo agente do sernic afecto ao processo na esquadra, depois de haver
passado pelo procurador. Nessa altura, qualquer vítima já não quer saber do seu próprio
processo, porque o ambiente da esquadra não é saudável para ninguém, só mesmo para quem lá
trabalha. Lá vai a vítima, em voltas de um lado para o outro, até porque se tratando de crime
cometido por polícias, o processo é recolhido da esquadra para o sernic da cidade. A vítima passa
a vida a ser notificada, nessa altura já não quererás saber de nada, quem me dera se nunca tivesse
me metido nesta enrascada, como se o melhor fosse nunca exigir justiça. Aliás, tanto os
familiares como os amigos te aconselham a desistir, quem és tu para querer justiça, neste país a
justiça é para quem tem dinheiro, tu não tens nem sequer um tostão no bolso. Nessa altura, são
necessárias testemunhas e declarantes, mas toda a gente que viu o crime a acontecer foge,
ninguém está disposto a testemunhar contra polícias, toda a gente teme represálias, mas um
processo sem testemunhas não tem qualquer validade. Há pelo meio algumas testemunhas mais
corajosas que se dispõem a testemunhar, mas não vão arriscar a sua pele senão receberem nada
em troca, o que é uma autêntica sacanagem, eram capazes de testemunhar tanto ao seu favor,
bem como a favor dos policias, desde que fossem pagas, afinal o dinheiro fala todas as línguas.

Foi assim a minha vida naqueles dois anos de perseguição dos quatro agentes, o que equivale a
perseguir o próprio Estado, o facto é que um dia viriam os visados a serem acusados pelo
Ministério Público e julgados e condenados pelo tribunal a um ano de prisão convertível em
multa. Se valeu a pena a perseguição, claro que valeu, não sou jurista, mas aprendi maningue,
ninguém conhece melhor a dor de um processo que uma vítima em busca da justiça. Para além
das minhas duas vizinhas e do meu amigo Wonder, que testemunharam a meu favor no
julgamento, tive a sorte de ver o feitiço virar-se contra o feiticeiro quando dois agentes afectos

100
um a inteligência e outro ao sector da ética na unidade de intervenção rápida foram ouvidos
como declarantes, ao que confirmaram que aqueles quatro que me torturaram tinham saído
ilegalmente do comando para efectuarem patrulhamento sem que tivessem recebido ordens. Tal
facto foi determinante, estávamos mesmo em presença de criminosos vestidos de polícias.

Lembro-me da juíza que me perguntou numa das sessões do julgamento o seguinte:

- Essa mancha no teu rosto tiveste quando foste espancado pelos agentes?

- Não, meretissima juíza. - respondi. - Nasci assim mesmo, é uma mancha congénita, não tem
cura.
Eu e a Zularica, quando nos lembramos disso, matamo-nos de tanto rir. Até ao tribunal a mancha
nos seguiu, depois de eu ser abandonado pelos colegas de profissão, familiares e amigos.

***
Nos dias, semanas e meses que se foram seguindo, a Tenente Coronel Zularica Ponta Fina era já
uma mulher feliz. Feliz porque tinha conseguido devolver uma vida minimamente condigna para
a irmãzinha Joana, que antes havia perdido a esperança por causa da doença das manchas que lhe
havia acometido.

Eu também era já um homem feliz, mas quem não haveria de ser feliz com uma mulher como a
Zularica ao lado? Quem não haveria de ser um homem feliz depois de conseguir a condenação
dos quatro agentes da unidade de intervenção rápida que haviam dado cabo da minha vida? Logo
eu que fora abandonado pelos meus colegas, amigos e até familiares por ter sido vítima de
tamanha brutalidade, estava agora diante da Zularica e sua irmãzinha Joana, uma família que
gostava de mim por ser como eu sou e não aquilo que outros gostariam que eu fosse. No lugar de
eu ser a pessoa que estava ali para ajudar, agora era eu que estava ali para ser ajudado, quando eu
menos esperava.

- Quero que me prometas uma coisa. - disse a Zularica. - Prometes?

- Prometer o quê? - perguntei.

101
- Vamos deixar de beber...

Ela estava mesmo a falar a sério. Durante aquele ano, eu e a Zularica tinhamos andado a beber
maningue, não sei nem mesmo como teríamos conseguido levar o processo dos policias até ao
julgamento final enquanto tínhamos estado a andar tão embriagados. A Joana, que estava a
acompanhar a nossa conversa, acabou se intrometendo.

- O alcoolismo pode ser uma doença muito bem pior que as minhas manchas. - disse ela. - O
álcool em excesso deforma a mente.

Foram palavras tão profundas, tão penetrantes, que fiquei com uma lágrima no canto do olho.
Não somente porque notei que a Joana estava mais curada do trauma causado pelas manchas,
mas também porque ela havia dado conta de como também era uma pessoa capaz de ajudar
outras pessoas, ajudando-as a superar as suas dificuldades, obstáculos e desafios da vida. Parece
que agora quem precisava de ajuda éramos nós, eu e a Zularica, a Ponta Fina.

Por isso entrei no jogo.

- Eu pelo menos irei deixar de beber. - disse eu, como todos bêbados quando prometem deixar de
beber. - Deixe-me apenas terminar de beber mais estas três cervejas.

- Eu também prometo. - disse a Zularica, que estava também disposta a largar o vício. - Nem
mais três, nem mais duas nem mais nenhuma cerveja. É aqui e agora e ponto final.

- Eu também tenho uma promessa a fazer. - disse a Joana.

- Qual? - perguntamos, expectantes.

- Eu prometo estudar para ser economista.

- Uau. - explodimos de emoção. - Essa é que é mesmo uma grande notícia, quem diria, hein!?

E ela:

- Mas com uma condição..

E nós:

102
- Qual? Diz qual?

E ela:

- O Major General Henry Miller regressar a Faculdade de Direito, a fim de terminar o seu curso.
Tive mesmo que lhe responder:

- É claro que eu prometo voltar a Faculdade de Direito para concluir o meu curso.
Eu tinha abandonado o curso já lá vão muitos anos, se calhar há mais de uma década inteira.

Estava mesmo disposto a voltar.

Foi assim que também pedi a Zularica e a Joana para que me ajudassem a fazer uma coisa
importante.
- O quê? - perguntaram.

- Quero contar a minha história.

- Que história?

- A história de uma mancha congénita.

- Meu Deus! - admirou a Zularica, enquanto também a Joana estava boquiaberta. - É uma ideia
extraordinária, não achas Joana?

A já recomposta Joana respondeu:

- É uma história de superação, de quem sofreu tanto durante toda a sua vida por causa da sua
mancha, que me ajudou a mim mesma a superar e a saber lidar com a minha própria doença das
manchas, essa é que é de facto uma ideia genial. É claro que a história irá interessar toda a gente!
Foi assim que decidi contar a minha história, a história de uma mancha congénita, que na
verdade é também a história de muitas pessoas anónimas parecidas comigo. Tal como o
jornalista americano Lee Thomas e a modelo canadiana Winnie Harlow, nós também tínhamos
agora uma história urgente para contar, a minha, que nasci assim, com a minha mancha
congénita, que não tem cura, e a da Joana, que me havia sido apresentada pela sua irmã, que me
procurou para ajudá-la por eu ser um jornalista famoso com quem ela poderia se identificar.
Eu sempre quis escrever um livro, passei toda a minha vida a procura de um tema para escrever

103
sobre ele. Depois de ter ajudado a Joana a superar a sua doença, bem como a lidar com a
estigmatização por causa das manchas, descobri que na verdade eu sempre tive um tema para
escrever sobre ele. Esse tema sempre andou comigo no meu rosto. A história da mancha.
Tanto a Tenente-Coronel Zularica Ponta Fina quanto a irmãzinha Joana eram agora umas
mulheres engajadas na arrumação das questões necessárias para que o meu sonho pudesse
começar a se materializar. Nada de cerveja hoje, disse a Zularica, tendo me apelado para uma
maior concentração. Então comecei a escrever, mãos à obra.

Logo que terminei o primeiro capítulo, apresentei-o àquela minha equipa de sonho. Depois de
lerem, elas começaram a chorar. Nunca antes haviam imaginado ao certo como a minha infância
tinha sido tão violenta, mas que eu havia superado porque desde quando eu ainda era muito
pequeno a minha mãe me ensinou a dizer com boas maneiras a quem com boas maneiras
quisesse saber que eu nasci assim, é uma mancha congénita, não tem cura.

- Posso publicar? - perguntou a Joana, depois de ler.

- Publicar?!! Não! - respondi. - Faltam mais capítulos, esse é apenas o primeiro.

- Nada. - interpelou-nos a Tenente-Coronel Ponta Fina. - Não precisamos de esperar por mais
capítulos, vamos publicar na tua conta no Facebook, onde tens muitos leitores e seguidores. As
pessoas vão gostar muito de ler.

- Está bem. - aceitei a proposta, ainda meio inseguro.

Foi assim que publicamos o primeiro capítulo, que marcou o início de uma série de publicações
que se seguiram sobre a história da mancha congénita: a minha história. Muitas pessoas nunca
tinham lido um romance autobiográfico escrito e publicado em tempo real, onde cada episódio
despertava a expectativa dos leitores para o episódio seguinte, onde os comentários dos leitores
inspiravam-nos para escrevermos os episódios seguintes, mas sem nunca perdermos o foco, uma
vez que o romance autobiográfico exige bastante contenção por parte do narrador com vista a
fazer conviver de forma saudável as personagens reais com as personagens fictícias.

De qualquer forma, a história de uma mancha congénita, escrita com muito amor e carinho com a
ajuda da minha doce e espectacular Zularica Ponta Fina e da sua irmãzinha Joana, permitiu-nos
mergulhar profundamente no mundo das pessoas "diferentes", das pessoas "especiais" ou com

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"necessidades especiais", das pessoas "inválidas", das pessoas "deficientes". Existem aqueles que
nasceram com deficiências, mas também existem aqueles que contraíram deficiências ao longo
da vida, mas tanto umas como outras pessoas têm necessidades específicas, enfrentam desafios,
constrangimentos e obstáculos específicos, distintos uns dos outros. A força que tiveram o
jornalista americano Lee Thomas e a modelo canadiana Winnie Harlow somente encontrará
explicação em sociedades onde os direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos são
respeitados, onde as crianças nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. A luta pelos
direitos das minorias não é ficção. É uma luta real. Hoje em dia, quando vemos rampas para
cedeirantes nas nossas instituições públicas e privadas, estamos longe de imaginar que as
mesmas são resultado de conquistas alcançadas depois de muitas batalhas travadas por pessoas
portadoras de deficiência.

Hoje em dia, o jornalista Lee Thomas é presidente da Fundação de Vitiligo em Ohio, EUA. A
luta que travam as pessoas que têm vindo a contrair a mesma doença no nosso país não é uma
ficção. É uma luta real. É para essas pessoas que dedicamos estes nossos escritos, mas também
dedicamos a nossa obra aos pais, encarregados de educação, educadores, professores, docentes,
parentes e sociedade em geral para o despertar de uma consciência geral sobre a necessidade de
educarmos os nossos filhos numa perspectiva do respeito pela diferença, dado que as crianças,
ainda que "deficientes", "diferentes", "especiais" ou "com necessidades especiais", também têm o
direito de crescer numa sociedade sã e saudável, onde não sejam vítimas de estigmatização, de
exclusão social bem como de opressão e exploração como resultado da sua condição.

Isto não é ficção. É real.

***
De algum tempo a esta parte, notei que sempre que os programas da "TV Surdo" chegam às
nossas casas através da "STV", 'TIM" e outros canais televisivos, como que a interromperem o
curso normal da programação feita pelas ditas "pessoas normais" para as ditas "pessoas
normais", há sempre alguém que pega no remoto e muda de canal.

105
Não só notei e registei tal atitude em muitas casas de familiares, amigos e colegas de trabalho,
como também comecei a manifestar o meu profundo aborrecimento com tal atitude.

- Não mude de canal, por favor. - disse eu um dia a um amigo em sua casa. - Vamos assistir o
programa da "TV Surdo".

Enquanto ajeitava-me no sofá para estar melhor posicionado para assistir o programa da "TV
Surdo", produzido por uma equipa de jovens profissionais, a esposa do meu amigo, que somente
queria assistir a sua novela, chateou-se comigo, tendo dito em palavras tão duras:

- Mas é para assistirmos programa de surdos e mudos, mesmo!? Pessoas que não falam! Eu
quero assistir novela.

Logo ali testemunhei o quanto eu ainda estava longe de entender porque razão em muitas casas
de amigos, familiares e colegas de trabalho as pessoas sempre mudam de canal quando entram
em antena os programas da "TV Surdo" nas nossas televisões, mas cá estava então a explicação
da mulher do meu amigo que deveria ser a mesma de toda a gente.

- Mas é para assistirmos programa de surdos e mudos, mesmo!? Pessoas que não falam! Eu
quero assistir novela.

E o meu amigo reagiu:

- Deixa lá a minha esposa assistir a novela dela, que tu jornalista só podes estar a ficar maluco
com essas tuas coisas de informação, informação, informação toda a hora que até já estás
também com vontade de ficar mudo ou surdo. Hah wenah, jornalista! Eu é que pago a ZAP para
minha mulher assistir o que ela quiser assistir.

Como nunca antes tivesse estado preparado para ouvir aquele tipo de respostas de cortar a alma e
os nervos também por parte daquela família de amigos, logo que terminei a minha cerveja
apresentei as minhas cartas de retirada e fui embora, ao encontro da minha doce e espectacular
Zularica Ponta Fina, a Tenente Coronel.

Facto curioso é que um dos filhos daquele casal de amigos tinha contraído uma deficiência numa
das pernas, por conta de um acidente causado por uma chapa de zinco que se soltou num dia de
ventos fortes. O menino Zezinho quase que perdia a perna esquerda, mas ainda que tudo tenha

106
corrido bem no hospital, o rapazote ficou com um defeito para toda a vida e anda a coxear como
se a perna direita fosse maior que a perna esquerda.

Portanto, aquele casal de amigos tinha um filho deficiente, que devia assistir a "TV Surdo", não
sendo esta uma televisão somente destinada aos surdos e aos mudos, mas também às pessoas
portadoras de outras deficiências físicas ou mentais. E não só. Pela forma como as pessoas ditas
"normais" andam empenhadas em mudar de canal sempre que se deparam com os programas da
"TV Surdo", ensinando até às crianças que controlam os remotos nas nossas famílias a terem tal
atitude, logo percebe-se o quão estamos longe de imaginar que o jornalismo feito pelos
jornalistas da "TV Surdo" é um jornalismo de especialidade sobre assuntos de "pessoas
deficientes", "pessoas especiais" e "pessoas diferentes", não se destinando somente as pessoas
portadoras de deficiência mas também às pessoas ditas "normais", como esta família de amigos
que tem um filho deficiente, mas muda de canal quando entra a "TV Surdo".

Na minha família, sempre que começa um programa da "TV Surdo", todo o mundo já sabe,
ninguém deve mudar o canal até o programa terminar. Muito pelo contrário, já fazem questão de
me entregar o remoto, havendo até quem fica ali na sala comigo a assistir. Sabem todos que
quando alguém quer mudar o canal vão ter que suportar as minhas palestras sobre os malefícios
causados pela falta de informação, sobre a discriminação e a estigmatização de pessoas
diferentes, logo eu que passei a vida inteira sem poder falar sobre a minha mancha no rosto
dentro de casa porque a minha mãe me ensinou desde pequeno a nunca reclamar quando os
outros meninos gozavam comigo na escola.

Houve um dia em que o meu amigo, o marido da senhora das novelas da ZAP, veio me visitar na
minha casa, onde o recebi com muita hospitalidade e ali ficamos a beber uns copos, enquanto
assistíamos televisão.

Não tardou muito para que um dos programas da "TV Surdo" começasse a correr numa das
televisões. Não passaram uns cinco minutos para que o meu amigo começasse a mostrar alguns
sinais de desconforto e um certo aborrecimento.

- Mas ouve lá, tu jornalista com essa cena de andar a assistir programas de surdos e mudos, muda
lá de canal. Toda hora informação, informação e informação, até dos mudos! Lá na "RTP" a esta
hora estão a dar jogo do "Benfica" e "Sporting".

107
Tive que tentar lhe responder sem mostrar o quanto eu também estava aborrecido com o seu
envolvimento nos assuntos de gestão do remoto do meu televisor, não por não gostar de futebol,
que não gosto, mas pela forma como ele havia me proibido de assistir a "TV Surdo" na casa dele,
a fim de que a esposa assistisse novela.

- Não é programa de surdos ou mudos. É um programa feito por pessoas para pessoas..

- Ah, hawena jornalista pah. E você percebe o quê mesmo da língua dos sinais?

- Não percebo nada, mas o programa tem legenda para ler e locução para ouvir. - respondi,
aborrecido. - Não estás a ver? Tem legenda e também tem locução.

- Ah, hawena! - disse ele.

E continuei:

- A legenda e a locução que acompanham o programa da "TV Surdo" são para nós que não
percebemos a língua de sinais.

Fui tentando lhe explicar que de facto aquele não era um programa para surdos e mudos ou
pessoas que usam língua de sinais, mas sim para todos nós. Ou seja, os deficientes visuais ou
cegos ouvem a locução, ao mesmo tempo que os deficientes auditivos ou surdos-mudos
acompanham pela língua dos sinais, enquanto eu que não percebo nada da língua de sinais, mas
pretendo andar informado, acompanho tanto a locução quanto a legenda. Ou, dito de outro modo,
aqueles programas comunicam com diferentes tipos de pessoas em simultâneo, mas há quem
muda de canal apenas por preconceito, quando o que está em causa é a falta de conhecimento.

Expliquei que eu, por exemplo, aprendo muitas coisas naquele programa, de como lidar com a
estigmatização, uma vez que durante toda a minha vida fui chamado nomes por causa da minha
mancha no rosto.

- Mas wenah mani. Essa coisa de ser jornalista está a começar a te deixar ficar maluco, agora já
quer ser surdo ou mudo também?

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- Mesmo aquele teu filho deficiente devia assistir o programa da "TV Surdo", não achas? -
indaguei.
E ele, desta vez, respondeu:

- Sabe, meu amigo jornalista. Às vezes você parece maluco mas agora parece estou a perceber
que você está a falar uma coisa importante. Afinal esse programa dos surdos e mudos é mesmo
importante, até para o meu filho. Parece você quando bebe cerveja fala boas coisas...

- Não somente para o seu filho, mas também para si e sua esposa, os vossos filhos, parentes,
educadores, pais, encarregados de educação e sociedade em geral. A deficiência do vosso filho
não é somente um problema do vosso filho, é de vocês todos, é dos irmãos, parentes, pais,
encarregados de educação, professores e sociedade em geral, todos precisam aprender a lidar
com ela, a começar por aprender a assistir a "TV Surdo".

- Mas é verdade, jornalista. Eu não tinha pensado nisso. É por isso que gosto muito mesmo de
beber cerveja contigo, você me abre a cabeça com essas tuas coisas de informação, informação e
informação.
- É cerveja, vizinho. É cerveja!

E assim chegamos a um consenso, o que nos permitiu assistir as notícias da "TV Surdo" a fim de
que somente depois mudássemos de canal para vermos o jogo do "Benfica" e "Sporting".

Tive o privilégio de conviver durante mais de cinco anos com um programa de fortalecimento da
imprensa moçambicana financiado pelo governo norte-americano, de onde haveria de nascer
mais tarde a "TV Surdo". Enquanto fui beneficiando de capacitações em matérias de jornalismo,
gestão de empresas jornalísticas, gestão de organizações de media, advocacia de media,
comunicação estratégica, gestão de tecnologias de informação e comunicação, tive o prazer de
aprender muito dos meus professores e amigos Arild Drivdal, Sergio Chuzane, Egídio Vaz,
Marques Malua, Milton Machel, Arsénio Manhice, Rui Lamarques, Selma Inocência, Ricardo
Fontes Mendes e outros tantos que por ali passaram. Nunca percebi o que andavam ali os surdos,
mudos e portadores de outras deficiências a tentar criar, talvez porque nunca me preocupei em
saber, tal como pouca gente se preocupava em saber, mas hoje, sempre que alguém muda de
canal quando um programa da "TV Surdo" entra nas nossas televisões, fico muitíssimo

109
aborrecido, sendo para mim um programa de grande informação que nasceu do programa de
fortalecimento da imprensa moçambicana financiado pelo governo norte-americano.

Hoje em dia, o meu amigo assiste a "TV Surdo" com o seu filho por minha causa. Sempre que a
esposa tenta mudar de canal para assistir novela, ele fica aborrecidissimo.

E diz para a esposa:

- Deixa-nos assistir a grande informação.

Ele já nem diz que é programa de mudos e surdos ou pessoas que não falam.

- É um programa de grande informação.

***
Depois que a Zuleica Tina Turner foi-se embora com o homem do four by four azul, dupla
cabine e de alta cilindrada, revelando para ele o nosso "segredo de Estado" que tinha na bunda
esquerda, sofri as piores humilhações no seio daquela nossa comunidade bairrista, bem como no
seio dos nossos amigos, dos vizinhos, dos fofoqueiros, de toda aquela cambada das
cuscuvilhices, das intrigas e dos boatos.

- Pobre homem.

- Até dá pena.

- Homem desinformado vale por zero.

- Jornalista burro.

- Não foi por falta de aviso.

- Nem pisava o chão...

- Idiota.

- Lá vai o poeta chifrudo.

110
E toda a gente falava.

Mesmo depois de ter começado a andar com a minha doce e espectacular Zularica Ponta Fina,
que agora estava grávida e eu a caminho de ter o meu segundo filho, as más línguas não me
fizeram descansar, havendo aqueles que com muita coragem chegavam a se aproximar aos meus
ouvidos para me dizerem directamente o quanto eu teria sido um banana ao acreditar que uma
mulher tão esperta e tão malandra como a Zuleica Tina Turner haveria de se ter preocupado
comigo enquanto ela já tinha extraido de mim tudo o que ela tinha por extrair durante o tempo
em que vivemos juntos.

Até o senhor Mingaldo, cuja alfaiataria se transformara numa espécie de agência de notícias
bairristas, conseguiu meter a sua conversa comigo. Ingénuo como eu sou, cheguei a pensar que
fosse um homem simpático e conversador, quando na verdade era portador de uma língua tão
suja quanto venenosa com a qual haveria de me encher de náuseas e vontade de vomitar com a
sua enorme falta de bom senso e misericórdia.

- Onde está o teu filho agora? Antes via o menino a passar daqui mesmo quando fosse a escola. -
perguntou.
E eu, sempre tentando ser simpático com toda a gente, respondi:

- Neste momento o meu filho vive com a mãe..

- Então ela foi-se embora mesmo com aquele homem do four by four azul dupla cabine que
andava por aqui a circular?

- Sim. - respondi. - Foi-se embora.

- É nisso que dá confiar muito nessas miúdas de hoje em dia. Não valem nada.

Ia falando, enquanto mexia ora na minha camisa, ora na sua velha máquina de cozer, ora na linha
que enfiava na agulha, tudo feito a jeito, a fim de que eu pensasse que as suas falas não punham
em causa o seu trabalho, uma vez que já lhe tinha mostrado uma cara de quem estava com
pressa. Mas nada disso o impediu de continuar. Quando eu pensava que aquela já tinha sido
intromissão demais na minha vida, qual carapuça, o senhor alfaiate Mingaldo só tinha ganho
maior estabilidade e segurança para prosseguir com a sua língua suja.

111
- Tenho visto o teu sofrimento, aliás toda gente viu o teu sofrimento. Veja você mesmo o que é
sustentar uma mulher durante tanto tempo, até ela ver que já se formou para depois te desprezar
como te desprezou, indo embora com o homem do four by four azul.

- Isso é normal. - respondi, pensando que aquilo fosse logo passar. - Acontece a muitos homens.

- Que nada. Ela é mesmo uma vadia vigarista. É o que é. Me desculpa falar dela assim, mas é
preciso que o jovem saiba que não se confia numa mulher, sobretudo essas aí.
Nesse momento, aproximou-se de nós o senhor Intelectual, como era conhecido o tio Juvêncio,
que também gostava de frequentar aquela agência de notícias bairristas, a fim de acrescentar
ainda mais sal na conversa.

- É agora que a mulher se formou às suas custas e foi-se embora com o homem do four by four
azul que o nosso jovem jornalista começa a fazer as contas de tudo o que gastou com ela.

- Ah wenah. - disse o alfaiate.

- De mesada apenas, se calhar dava a ela uns três paus. Durante quanto tempo? Uns sete anos.

Num só ano, a gaja recebeu no lar 120.000 de mesada do salário do jornalista, vezes sete anos
uns 840.000.

- É verdade, por isso andava sempre bonita, bem vestida e com esses cabelos dos brancos que as
gajas andam a pôr. Para além de que o jovem era o professor dela, que lhe dava aulas de todas as
disciplinas sozinho, sem que ela lhe pagasse nada...nem sequer um tostão.

- Se era mulher dele! Quanto recebe um professor? Uns 15.000 meticais. O jornalista sozinho
receberia uns 105.000 meticais por mês pelas sete disciplinas em que dava aulas a ela, vezes
doze meses seriam já uns 1.260.000 meticais, vezes sete anos seria uns 8.860.000 meticais.

- Ah wenah. - grunhia o alfaiate, que tinha uma língua afiada. - Grande investimento que foi-se
embora com o homem do four by four azul dupla cabine e de alta cilindrada. Sofria de amor que
não teve tempo de calcular os investimentos...

- Se fosse eu processava essa puta. Até havia de lhe exigir uma boa indemnização...ah wenah!

112
- Bem mesmo. Pelos danos morais e materiais causados, como dizem os doutores das leis.

Tentei dar explicações:

- A Zuleica foi vítima de assédio sexual lá nas forças armadas...

E eles responderam, em coro:

- Ah, hewenah mpfana. Hi vakulu kwaku hina phelassi. Futseka!

Foi assim que o senhor Intelectual Juvêncio veio se juntar ao alfaiate Mingaldo para aumentarem
o meu estado de desgosto. Não sei onde eu teria arranjado tamanha capacidade para ouvir tanta
besteira, mas o facto é que somente agora o alfaiate tinha começado a ajeitar a segunda manga da
camisa, ao que não tive outra solução senão procurar manter-me firme.

- E agora, meu filho? - perguntou-me o senhor Intelectual, que agora tinha a sua mão pesada em
cima do meu ombro. - E agora? Vais continuar a pagar escola para as mulheres, como se tu
fosses o pai delas? Uma mulher não é tua filha.

- Pior quando tu já estás desempregado. - acrescentou o alfaiate. - Zuleica foi-se embora porque
ela não é tua filha, só queria sustento para alcançar os objectivos dela. Agora que estás
desempregado ela foi-se embora com o homem de four by four.

Logo que viu que eu estava prestes a explodir de tanto aquecimento, o alfaiate entregou-me a
camisa, que embrulhou num jornal e fui-me embora com a minha cabeça quente, como se
acabasse de sair de um microondas. Os números do senhor Intelectual Juvêncio, que tinha a fama
de ser docente universitário, não paravam de girar na minha cabeça: quanto recebe um professor?
Uns 15.000 meticais, ao que receberia uns 105.000 meticais por mês pelas sete disciplinas que
lhe ensinava, vezes doze meses seriam já uns 1.260.000 meticais, vezes sete anos seriam uns
8.860.000 meticais, tudo isso dado a Zuleica Tina Turner com muito amor, paz e carinho, que
foi-se embora com o homem do four by four azul dupla cabine e de alta cilindrada. É por causa
de andarem a fazer esses cálculos financeiros que muitos homens depois acabam se suicidando
ou até mesmo matando essas mulheres e seus amantes, mas eu era um jornalista formado e com
tomates no lugar, não haveria de engrossar a lista de suicídios e homicídios por razões
passionais.

113
Eu era visto como um homem desinformado que passara mais tempo a pensar na bunda da
Zuleica no lugar de pensar nos custos do investimento que andara a fazer nela pensando que
havíamos de ter um futuro melhor juntos. E agora? Quanto estaria disposto a dar de mim pela
minha doce e espectacular Zularica Ponta Fina? E se também ela depois for-se embora com um
homem de four by four qualquer, como a Zuleica?

- Quid júris! - pensava eu.

Nessa mesma semana, o comandante geral da polícia havia desencadeado uma operação interna
em virtude de haverem sido achadas quinze raparigas grávidas num curso da polícia, a que eu
chamei de "Operação Zuleica". Quando eu dizia que a minha Zuleica foi ao curso de instrução
básica militar como minha esposa mas de lá saiu como esposa do homem do four by four azul
dupla cabine e que deveria ser uma alta patente do exército, ninguém acreditou. Todos pensaram
que fosse mera ficção. Naquele momento, pelo menos quinze namorados haviam acabado de
saber que as suas namoradas contraíram gravidezes dos seus instrutores e oficiais superiores num
curso da polícia. Na "Operação Zuleica", deveriam ser chamados o alfaiate Mingaldo e o
Intelectual Juvêncio para fazem as análises e calcularem os gastos dos quinze namorados com as
quinze namoradas que foram engravidadas pelos instrutores e oficiais superiores na polícia,
assim como as respectivas indemnizações.

E ainda dizem que o "culupado" é o namorado dela...qual carapuça, Deus zela por nós seres
pensantes, se não fosse por isso nem a alma aproveitava!

***
Não sei muito bem o que me deu na cabeça, o facto é que num certo dia eu acabei ganhando
coragem de entrar naquela nossa esquadra para apresentar uma queixa contra aquele meu amigo
que falsificara os livros de facturas e recibos da nossa pequena empresa para desviar os
pagamentos para o seu próprio benefício e não da empresa.

Nessa altura, já conhecia muito bem as jogadas dos policias corruptos que se dedicam a matar os
assuntos antes sequer do oficial de permanência abrir um auto, condição essencial para iniciar
um processo. Não me preocupei em dar respostas aos policias que se fazem passar de amigos,

114
que se mostravam preocupados em saber do assunto que ia tratar, de forma alguma, desta vez
preocupei-me em que me colocassem diante do oficial de permanência, a fim de que nele eu
pudesse registar os factos, abrisse o auto de notícia e marcasse o início do processo. Depois de
haverem sido atendidos uns tantos casos, entre os quais o de uma rapariga que agredira a própria
mãe com o namorado para lhe roubarem dinheiro para as drogas, chegou a minha vez de entrar.

Tinha vencido a primeira batalha contra as ratazanas.

- Bom dia, senhor oficial.

- Bom dia. Pode sentar.

Mandou-me sentar naquele banco de ferro muito duro feito mesmo a jeito para reduzir os
larápios a insignificância, diante da sua secretária também metálica, sobre a qual haviam uns
poucos papéis, um par de algemas e uma máquina de escrever antiga. Também estavam dois
agentes em pé.

- Muito bem, o que se passa?

- Tem a ver com o meu sócio, que é administrador da nossa empresa. Ele desviou os pagamentos
dos serviços prestados pela empresa a pelo menos dois clientes com recurso a falsificação de
facturas e recibos.

Enquanto eu ia explicando os factos, um dos agentes que estavam em pé intercedeu, tendo dito
que eu já tinha estado ali na esquadra na semana anterior, que o assunto já havia sido resolvido.
Na verdade, eu tinha sim estado na semana anterior, aquele assunto fora tratado nos corredores
da esquadra, tendo mandado o meu sócio e administrador para me esclarecer os factos, o que não
chegou a acontecer, não sendo isso o que eu pretendia.

- Eu quero abrir um auto.

- Estás no seu direito. - disse oficial de permanência. - É direito do cidadão abrir um auto.
E o agente que estava em pé novamente intercedeu, ao que notei que ele estava mais preocupado
com o assunto do que o próprio oficial de permanência, mas eu nessa altura estava disposto a
abrir um auto e ele não havia de me impedir, tal como tinha feito na semana anterior. Ele disse

115
assim:
- Só podemos abrir o auto na presença desse teu amigo.

- Não faz mal. - retorqui. - Estou aqui para isso mesmo.

- Vamos passar notificação.

- Está bem.

O oficial de permanência passou uma notificação, a qual me mandou entregar ao chefe de


quarteirão, quem haveria de fazer chegar ao visado.

- Percebeu bem?

- Sim, percebi.

Não só percebi que devíamos voltar para esquadra dois dias depois, como marcaram na
notificação, no seu primeiro aviso, tanto quanto percebi que alguns polícias nas esquadras são
umas autênticas ratazanas que vivem as custas das preocupações dos cidadãos. Na verdade, eles
estão empenhados em matar os processos antes mesmo de serem abertos, quem paga pelo
desempenho deles é o denunciado, a custa de chantagem e extorsão para escapar a prisão,
dinheiro pago debaixo da mesa.

Nesse dia, quando cheguei na esquadra, encontrei que o meu amigo, sócio e administrador, que
há muito tempo não me apresentava relatórios e contas da gestão, alegando falta de tempo, agora
tinha arranjado tempo para se apresentar na esquadra, o que me deixou um pouco animado,
afinal ele sabe ser cumpridor, pelo menos quando se trata de uma notificação das autoridades
policiais. Nesse momento, ele estava de conversas com aquele agente que sempre esteve
empenhado em me impedir de abrir o auto, mas eu não liguei a minima, estava convencido que
desta vez haveria mesmo de conseguir.

Lá fomos chamados.

Era o mesmo oficial de permanência, tanto mais que o mesmo agente empenhado também veio
se meter naquela sala, como se de um advogado se tratasse.

- Muito bem. - disse o oficial de permanência. - Quem foi notificado?

116
- Fui eu. - respondeu o visado.

- Então fala o senhor. - disse o oficial, dirigindo-se a mim. - O que se passa?

Não me fiz de rogado. Voltei a retomar os factos que havia contado noutros dias. Tinha a ver
com o meu sócio, que é administrador da nossa empresa. Ele desviou os pagamentos dos
serviços prestados pela empresa a pelo menos dois clientes com recurso a falsificação de facturas
e recibos. Mostrei a eles as cópias das facturas e dos recibos que me foram fornecidos pelos
nossos clientes, bem como comprovativos de valores que foram transferidos para a conta dele.
O agente que estava em pé novamente interferiu, antes mesmo que o oficial de permanência
passasse a palavra ao participado. Ele disse que o assunto tinha sido tratado na semana anterior,
que a esquadra não podia passar toda a vida a tratar as mesmas coisas, que nós havíamos nos
entendido.
- O senhor conhece este senhor? - perguntou o oficial de permanência.

E o participado respondeu:

- Sim, conheço. É meu amigo, somos sócios numa empresa...

- O que fazes tu na empresa?

- Sou administrador.

- E ele?

- É fiscal.

- Explica lá então.

- É que eu trabalho praticamente sozinho, ele só passa a vida a me exigir relatórios e contas da
gestão, eu cansei-me disso. Mas na semana passada eu vim aqui esclarecer tudo porque ele
meteu queixa contra mim. Eu já esclareci tudo, é meu dinheiro, trabalhei sozinho.

- É teu dinheiro ou é dinheiro da empresa?

- É meu dinheiro.

- Se é teu dinheiro como se explica que tenhas usado facturas da empresa?

117
- Eu sou administrador.

- Olha, senhor administrador. - disse o oficial de permanência. - Esta nossa esquadra também tem
um comandante, mas o facto dele ser comandante não significa que a esquadra é dele, ouviu? O
facto de tu seres o administrador da empresa, são significa que a empresa é tua, ouviu bem, meu
senhor? A empresa é vossa, porque os dois são sócios. Por outro lado, o senhor já devia estar
preso, porque o senhor falsificou facturas da empresa e desviou dinheiro para as tuas contas, tal
como demonstrou aqui o teu sócio.

O outro agente quis novamente interceder, mas o oficial de permanência mandou-o ter um pouco
de calma, tendo posteriormente se dirigido a mim:

- E o senhor, o que deseja?

- Quero abrir um auto.

- Senhor sócio e administrador, o teu amigo quer abrir um auto, o que equivale a abrir um
processo contra ti e isto irá complicar a tua vida. Mas vocês são amigos, acho que deviam falar
mais, tu devias lhe explicar melhor os factos...

Tive que interromper o oficial de permanência para reafirmar novamente sobre quais eram as
minhas intenções:

- Eu quero abrir um auto.

E o oficial respondeu:

- Tenho uma ideia. Primeiro vão falar entre vocês, se não se entenderem, se ele não te explicar
bem os factos, então eu prometo que abrirei um auto pessoalmente.

Bem vistas as coisas, aquele oficial de permanência tinha arranjado uma forma mais sofisticada
para não abrir o auto de notícia, talvez não percebeu muito bem o quão eu estava ofendido com a
atitude do meu amigo, sócio e administrador da empresa, que não haveria de me esclarecer nada
dos crimes que havia cometido contra a empresa, contra o Estado, contra o sistema fiscal, contra
mim e contra a sociedade em geral. É o que aconteceu depois de sairmos da esquadra, mostrou
um total desprezo por mim, tendo-me dito que neste país a justiça serve aos mais fortes em

118
detrimento dos mais fracos, que a justiça era mais forte para os mais fracos e mais fraca para os
mais fortes, o que me deixou muito envergonhado, enquanto ele limitava-se a rir-se da minha
cara. Não cheguei a ver a cor do dinheiro, nem sequer cheguei a perceber porque falsificou os
livros de facturas e recibos, o que constituiria também um enorme problema da empresa para
com o sistema fiscal.

Na semana seguinte, com o meu próprio punho, redigi uma participação de crime contra o meu
sócio e administrador cuja qual dei entrada no serviço nacional de investigação criminal,
justamente na jurisdição onde ficam as empresas dos clientes que efectuaram os pagamentos. O
processo deu tantas voltas, mas voltou a nossa jurisdição, estando agora a caminho do tribunal.
Depois das ratazanas da esquadra, o tribunal é a última instância de resolução de conflitos.
Tenho muita fé que assim seja.

***
Tenho o privilégio de colaborar com alguns órgãos de informação, incluindo jornais, rádios e
televisões, os quais geralmente entram em contacto comigo, na minha qualidade de director
executivo da associação moçambicana de jornalismo judiciário, para dar o meu contributo em
diferentes temas sobre liberdade de imprensa e de expressão, direitos humanos e cidadania,
democracia e boa governação.

Nesse âmbito, há jornalistas que me tratam por Doutor, enquanto outros me tratam por jurista,
não sei porque carga de água.

Lembro-me de estar a corrigir o jornalista António Jorge no programa "Voz Activa" da Rádio
Cidade, dizendo-lhe que eu não sou Doutor, mas ele a insistir que para ele eu sou Doutor. Em
directo, não tive como escapar. Tive que aceitar o título, que me incomoda muito, afinal só estou
a exercer o meu direito como cidadão, há quem pense que para falar na rádio ou na televisão é
preciso ser doutor.

Foi assim até ao dia em que o advogado Elísio de Sousa, vulgarmente conhecido como
"advogado dos esquadrões da morte", decidiu me denunciar para a sociedade dizendo que eu não
sou jurista, que ando a mentir para as pessoas dizendo que eu sou jurista.

119
De Sousa ainda disse para toda a gente que eu era presidente de mim mesmo numa associação
em que estou eu mesmo sozinho, sem membros. Nunca ninguém percebeu muito bem porque
razão o advogado estaria tão empenhado a infernizar a minha vida, o facto é que para mim,
enquanto jornalista, isso é normalíssimo, faz parte do desdobramento de um grande escândalo,
onde as forças de ocultação fazem de tudo para garantir que um grande escândalo não seja
revelado, geralmente estão em causa transgressões de leis que regulam a gestão financeira do
Estado por altos dirigentes.

E o que fez o Elísio me perseguir tanto? É que eu tinha analisado o acórdão do tribunal
administrativo da cidade de Maputo que anulou a sua expulsão da magistratura do Ministério
Público, onde pude perceber que ele nunca preencheu os requisitos para se inscrever na Ordem
dos Advogados de Moçambique, o que significa que durante todos estes cerca de quinze anos
aquele jovem é um advogado fora da lei.

De Sousa devia ter apresentado uma certidão que mostra que nunca foi expulso da magistratura
ou então uma certidão que confirma o deferimento tácito da licença disciplinar ilimitada no acto
da sua inscrição, mas nem um nem outro documento lhe foram passados pelo Conselho Superior
da Magistratura do Ministério Público.

No lugar de esclarecer esses factos, De Sousa desencadeou uma campanha de linchamento


público da minha imagem. O advogado fora da lei atingiu o ponto mais alto da sua acção contra
mim quando deu entrada a uma denúncia na procuradoria, onde me acusa de crimes de
"simulação" e "injúria contra autoridade pública" em virtude de eu haver depositado 50 meticais
numa conta vulgarmente conhecida como "segredo de Estado", tendo aparecido no meu talão de
depósito o nome do antigo ministro da defesa nacional Atanásio Salvador Mtumuke.
Não se percebe como o nome de um antigo ministro está associado a uma conta bancária
supostamente pertencente a uma direcção nacional da logística e finanças do ministério da defesa
nacional.
Eu extrai o número da conta no semanário "Canal de Moçambique", dentro de uma matéria que
dizia que os jornalistas Fernando Veloso e Matias Guente foram constituídos arguidos num
processo em que são acusados de crime de "violação de segredo de Estado" por haverem
publicado um "contrato confidencial" entre os ministros da defesa e do interior e as companhias

120
multinacionais Anadarko e ENI com vista ao fornecimento de serviços de segurança para aquelas
empresas, em troca de "compensações".

.Na referida matéria, o jornal dizia que tais compensações não chegavam as mãos dos
destinatários, nomeadamente militares das Forças Armadas de Defesa de Moçambique e polícias
da Unidade de Intervenção Rápida afectos a essa Força Tarefa Conjunta, alegadamente porque os
dinheiros eram "comidos pelos chefes".

Foi exatamente esta a razão que me levou a efectuar o depósito dos 50 meticais naquela conta, ao
que calhei num dia de sorte, ao invés de aparecer o meu nome no lugar de depositante, apareceu
automaticamente o nome do depositante habitual: Atanásio Salvador Mtumuke. Mandei a estória
para o Centro de Jornalismo Investigativo, instituição com a qual vinha colaborando à luz de um
protocolo de cooperação assinado com a Associação Moçambicana de Jornalismo Judiciário.
Com efeito, o que eu esperava no meio disso é que pudesse ser processado pelo Ministério da
Defesa Nacional, pelo BCI ou então pelo próprio Atanásio Mtumuke, mas não, quem correu para
apresentar uma denúncia contra mim foi o advogado fora da lei Elísio de Sousa, num expediente
espalhafatoso em que já me trata como "arguido", usurpando até mesmo o poder de exercício da
acção penal do Ministério Público.

Foram dias de muita pressão para mim, mas eu sou duro, sempre estive consciente de que estou
em presença da gangsterização do Estado. Elísio de Sousa é advogado do Comando Geral da
Polícia da República de Moçambique, instituição subordinada ao Ministério do Interior, que é
um dos signatários do contrato assinado com a Anadarko (actual Total) e a ENI (actual
Mozambican Rovuma Venture).

Portanto, a denúncia de Elísio de Sousa tinha em vista me calar a boca, a fim de que eu parasse
de questionar. Mas ainda ninguém respondeu as minhas perguntas. É segredo de Estado ou é
segredo de pessoas? É conta do Estado ou é conta de pessoas? Um ministro da defesa assina
contas de uma direcção nacional da logística e finanças? O que faz o nome de um antigo ministro
numa conta supostamente pertencente a uma direção nacional da logística e finanças do
ministério da defesa? Uma direcção nacional pode abrir uma conta empresa num banco
comercial para gerir um segredo de Estado?

121
Neste momento, estou a espera de ser notificado pela procuradoria para responder a denúncia
feita contra mim pelo advogado fora da lei Elísio de Sousa, um menino mimado que não percebe
nada de lei.

Na mesma onda, tive o privilégio de ser acusado de outros crimes graves por parte do historicista
Egídio Vaz, que me acusou de crime de "espionagem" e de "falsificação de talão de depósito".
Isso é muito positivo, espero que a denúncia de Elísio de Sousa possa desencadear a perícia
necessária, aquela que irá verificar a autenticidade do meu talão de depósito, apesar de não haver
dúvidas de que estamos a lidar com todos os tentáculos de um sistema complexo.
Aliás, Egídio Vaz reuniu-se com Atanásio Mtumuke, onde este teria supostamente lhe entregue
documentos de interesse público que alega que os mesmos esclarecem todos os factos, os quais
garantiu que entregaria ao jornalista Luís Nhachote. De lá a esta parte, ainda não vimos a cor
desses documentos, o que me parece ter sido uma estratégia para malbaratar tempo e paciência.
Onde estão tais documentos? Ou era para intimidar o jornalista, ameaçando-o com processos por
haver publicado o meu talão de depósito, como efectivamente ameaçou.

Também esperamos que a Ordem dos Advogados de Moçambique responda as perguntas do


Centro de Jornalismo Investigativo sobre a legalidade da inscrição do advogado Elísio de Sousa,
que diz ter iniciado a sua carreira na advocacia como um "mero estagiário". Está maluco. Um
antigo magistrado que ingressa na advocacia nunca será um "mero estagiário". É por isso que o
legislador ordinário estabeleceu algumas restrições na inscrição de antigos magistrados na
ordem, como nunca ter sido expulso da magistratura por falta de idoneidade moral, devendo ser
feitas todas as diligências para verificar a legalidade da sua inscrição. Ninguém ainda falou do
conflito de interesses que deve ser afastado, sobretudo para alguém que foi magistrado durante
cerca de seis anos, corre o risco de lidar com os meus processos por si instruídos já como
advogado, em outras latitudes se estabeleceu o período de nojo, que deve ser observado por todo
o antigo magistrado antes de ingressar na advocacia.

Portanto, neste momento estou a espera dos actos subsequentes da procuradoria face a denúncia
feita contra mim pelo advogado Elísio de Sousa, que não só efectuou tal denúncia como também
me atribuiu a fama de criminoso, imputando-me crimes tão graves como os de "simulação" e
"injúria contra a autoridade pública".

122
Para além de mim, também depositaram valores na mesma conta os jornalistas Luís Nhachote e
Estácio Valoi, mas já o nome de Mtumuke tinha sido removido da conta, pelo que não apareceu
nos talões de depósito destes.

Também estou interessado em que seja comprovada a falsidade do meu talão de depósito, ao que
deverei responder pelo crime de falsificação.

Seja como for, Fernando Veloso e Matias Guente, que respondem pelo crime de "violação de
segredo de Estado", fizeram um belíssimo trabalho ao nos revelarem o agora famoso "contrato
confidencial", desocultando a história de uma grande bolada. Mesmo a Zuleica revelou o nosso
"segredo de Estado" que estava escondido na bunda dela para o homem de four by four azul,
dupla cabine e de alta cilindrada.

***
Maradona tinha um nome psicadélico, altamente desportivo. Talvez foram os seus modos
masculinos que me fizeram gostar dela, nem mesmo o meu amigo Clésio Zandamela, que era um
pugilista e tinha um porte físico extraordinário, conseguiu bater a beleza de Maradona. Maradona
era uma mulher que tinha esposa, estava muito apaixonada por ela. Nunca tinha visto uma
mulher amando outra mulher. O pugilista Clésio Zandamela, que era leitor assíduo das minhas
crónicas jurisprudenciais, veio ter comigo para me dar a grande novidade que acabara de
acontecer. Ele disse assim:

- Fui "zuleicado".

- O quê? - perguntei.

E ele respondeu:

123
- Fui "zuleicado".

Clésio Zandamela tinha sido "zuleicado". Não tive muitas dificuldades de perceber o que
deveriam ser os "zuleicados", mas logo notei que ali estava nascendo uma nova corrente
ideológica, a turma dos "zuleicados", a constituir uma nova corrente "antizuleiquismo".

- Fui "zuleicado", meu irmão.

Tive pena do meu amigo Clésio, mas eu já era experiente, todos os homens passam por isso.
Como dizia o Erasmo de Roterdão, "aquele que tiver mulher sua, porém em comum com outros
homens, que ninguém lhe chame louco, pois isso acontece a muitos homens".
Nessa mesma semana, o comandante geral da polícia havia desencadeado uma operação interna
em virtude de haverem sido achadas quinze raparigas grávidas num curso da polícia, a que eu
chamei de "Operação Zuleica". Quando eu dizia que a minha Zuleica foi ao curso de instrução
básica militar como minha esposa mas de lá saiu como esposa do homem do four by four azul
dupla cabine e que deveria ser uma alta patente do exército, ninguém acreditou. Todos pensaram
que fosse mera ficção. Naquele momento, pelo menos quinze namorados haviam acabado de
saber que as suas namoradas contraíram gravidezes dos seus instrutores e oficiais superiores num
curso da polícia. Uma delas era esposa do meu amigo Clésio Zandamela, que tinha um corpo
atlético, cuja beleza não chegava aos pés de Maradona, que era uma mulher, sendo homem
também.
Maradona tinha um nome psicadélico, altamente desportivo. Psicadélico porque deixava toda a
gente impressionada, como alguém haveria de imaginar que o nome do melhor jogador de
futebol de todos os tempos haveria de ser nome de uma mulher. Uma mulher bonita, há quem
desconfiava que pudesse ser militar, pela forma como agia, atitude, comportamento, emoções,
vibrações, tinha os nervos a flor da pele, o espírito comanda os nervos.

- Então, não bebes uma cerveja?

- Claro que bebo. Manda vir. - respondi, a Maradona sempre foi assim com todo o mundo, super
simpática. - Vou beber um copo, mas o primeiro vai para o pugilista Clésio Zandamela, o novo
"zuleicado"...
- "Zuleicado"?! - espantou-se a Maradona. - O que quer dizer "zuleicado"?

124
E o Clésio respondeu, triste:

- Ser "zuleicado" é ser deixado por uma Zuleica, como o Major-General Henry Miller. Também
fui deixado.

- Foste deixado?

- Sim, fui.

- Aquela dama bazou?

- Sim, bazou.

- Bazou para onde?

- Bazou para o curso básico de instrução policial.

- Matalane?

- Sim. Matalane.

- Mas devias ficar feliz, afinal não é para ela ter emprego para poderem casar e viverem felizes
para sempre?

- Era bom que assim fosse. - respondi.

E a Maradona ficou cada vez mais confusa. Não conseguia ainda perceber como o Clésio tinha
sido "zuleicado", tal como eu, que tinha uma Zuleica que foi a tropa como minha esposa mas
saiu de lá como esposa de um general que andava num four by four azul dupla cabine, topo de
gama e de alta cilindrada.

- Maradona, a namorada do Clésio está grávida? - disse eu.

E ela:

- Grávida no curso de instrução básica da polícia?

- Sim. Lá mesmo.

125
- Mas você Clésio também. - lamentou a Maradona. - Como engravidas a tua namorada estando
no curso.

E o Clésio defendeu-se:

- Não fui eu que engravidei.

- Quem foi?

- Foram os instrutores do curso da polícia.

- Os instrutores?

- Sim. Os instrutores.

E eu esclareci:

- Os instrutores engravidaram 15 raparigas.

- Quantas?

- 15.

- 15!?

- Sim. 15.

E a Maradona começou a perceber.

- Isso é "zuleiquismo".

- Pois. Foram "zuleicados" 15 gajos.

- Um deles sou eu. - disse o Clésio.

- Engravidaram tua dama?

- Sim.

- Então esses gajos da polícia não brincam.

126
- É verdade. Não brincam.

- Mas isso é assédio sexual. Como é que as gajas haviam de negar de abrir as pernas para os seus
instrutores. Não tinham como.

O Clésio não quis saber.

- Eu não quero saber. Já não quero a gaja.

- Mas ela não tem culpa.

- Devia ter denunciado o assédio.

- E perder o job?

- Heish. - respondi. - É complicado.

Em todo o país, não se falava em outra coisa. Toda a gente sabia que estávamos em presença de
uma autêntica violência do Estado. O Estado engravidou quinze raparigas num curso de
instrução básica policial em Matalane, tal como são engravidadas muitas raparigas em cursos de
instrução básica militar. É o preço que tinham que pagar para não serem torturadas pelos
instrutores e outros superiores hierárquicos. "Zuleicado", Clésio Zandamela não teve coragem de
beber mais copos comigo e a Maradona. Foi-se embora a cantar a música de António Marcos: Hi
kahimi ti homo tá mahalah, kambi ntombi se hi kandza ka vanwani. Foi-se embora com o
cérebro quente, a retalhar problemas. O cérebro quente de quem acabara de ser fornicado pela
pátria.

***
Por essas alturas, em que se espalhara a notícia que dava conta que pelo menos quinze raparigas
ficaram grávidas dos seus instrutores num curso de instrução básica da polícia em Matalane, os
maridos de muitas mulheres polícias tinham começado a entrar em desespero. Não era para
menos. Tinha sido dada a prova mais do que evidente de como afinal as suas mulheres teriam
sido formadas pelos instrutores nos cursos da polícia: ou seja, elas, as suas mulheres polícias,
também teriam sido formadas através do sexo com os instrutores.

127
Não cabe ainda na cabeça de ninguém como num único curso poderia ter sido produzida uma
amostra tão significativa quanto aquela das quinze raparigas grávidas. Eu agora percebo porque
razão encontrei preservativos na Escola de Fuzileiros Navais quando fui visitar a Zuleica Tina
Turner na altura em que ela estava num curso de instrução básica militar naquele quartel. O sexo
praticado pelos instrutores com as raparigas mancebos faz parte da instrução. É por isso mesmo
que a Zuleica entrou lá naquele curso como minha esposa mas de lá saiu como esposa de uma
alta patente que andava num four by four azul, dupla cabine, topo de gama, último grito e de alta
cilindrada.
Da última vez que tive o privilégio de me deparar com a Zuleica Tina Turner, que não a via há
um bom tempo, ela foi mesmo capaz de comentar as minhas crónicas publicadas nesta mesma
rede social, que eu nunca imaginei que ela fosse minha leitora assídua.

- Afinal ainda não superaste?

- Superar o quê? - perguntei.

- O facto de nos termos separado.

- Por causa daquele homem de four by four azul que se tornou teu marido quando saiste da tropa
onde entraste enquanto eras minha esposa? Não. Já superei. Os judeus também superaram.

- Não superaste. Andas a escrever sobre mim.

- O facto dos judeus terem superado o nazismo, as câmaras de gás e o Holocausto significa que
eles não podem escrever memórias sobre esse tempo tão perverso da história da humanidade?

- Heish! Também não precisas exagerar.

- Exagero são 15 raparigas grávidas num único curso de instrução básica da polícia. Não é
propriamente um Holocausto, mas é sintomático de um Estado violento.

- Fazer mais como? É assim mesmo. Os nossos instrutores não brincam.

- Eu sei. - respondi, deveras humilhado. - É por isso que vi muitos preservativos na Escola de
Fuzileiros Navais quando eu ia te visitar. Foi assim que percebi já nessa altura que a actividade

128
sexual entre os instrutores e as raparigas mancebos fazia parte da instrução. Não me admira que
tenhas saído de lá como mulher de um general.

- Tens que superar, por favor.

- Já superei, já disse. Os judeus também superaram. Os instrutores podem nos ter tirado as nossas
esposas, mas não nos podem tirar a nossa memória. Isso não nos podem tirar. Eu sou um escritor.
Escrevo para não esquecer, mas também para não enlouquecer. Escrever para mim é uma
maneira de pensar, já não imagino outra forma de viver.

- E onde é que eu entro nisso?

- Entras aonde? Como assim?

- Nos teus textos falas de mim.

- É tudo ficção. - respondi. - É uma história baseada em factos reais, onde qualquer semelhança
com a realidade é uma pura coincidência. É só ver a coincidência da minha história com a
história dos quinze namorados cujas quinze namoradas foram engravidadas pelos instrutores,
desta vez não fui eu que escrevi a crónica, foi o comandante.

De facto, podia até não escrever, mas isso não eliminaria o desespero generalizado de muitos
maridos que tem mulheres polícias ou militares que passaram pela instrução básica da polícia ou
militar, uma vez que as quinze raparigas que ficaram grávidas nas mãos dos instrutores
representam uma pequena amostra daquilo que deverá ser a dimensão real da actividade sexual
nos cursos da polícia, bem como das forças de defesa e segurança na sua generalidade.

- Isto não é ficção.

- Pouxa, tu andas a pensar muito, vais acabar ficando maluco.

- É o de menos. Já dizia o poeta: "a loucura é única forma de liberdade que ainda nos resta". -
tentei explicar, mesmo sabendo que estava a gastar o meu português em vão. - Sou aquele
desgraçado a quem um dia pediste para não dizer a ninguém que sou pai do teu filho, lembras-te?
Logo que saíste da tropa, não só ficaste mulher do homem de four by four como também sentiste
vergonha de mim, como pai do teu filho. É claro que corro muitos riscos de ficar maluco. O meu

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próprio filho virar filho de pai incógnito enquanto eu estou vivo? Sou posso ficar maluco.
Cheguei mesmo a pensar que se calhar é porque não é meu filho, nunca se sabe.

- Nunca conseguiste superar?

- Eu já superei. Os judeus também superaram, embora com muitas sequelas, mas superaram.

- Eu gostaria que tu me perdoasses.

- Porquê?

- Por tudo.

- Tudo o quê?

- Tudo o que te fiz passar.

- Não te preocupes. É o que dizia Erasmo de Roterdão, o grande poeta: "aquele que tiver mulher
sua, porém em comum com outros homens, que ninguém lhe chame louco, pois isso acontece a
todos homens". É normal a nossa mulher ser também mulher dos instrutores, porque se não for
corre o risco de não terminar o curso e perder o emprego.

- Só podemos deixar. Nunca vais me perdoar. Não consegues mesmo superar. Vamos deixar.

- Talvez se me mostrares a mancha reluzente da tua bunda bonita.

- Eu já estou velha.

- Por causa dos instrutores que já comeram tudo? Não. Eu contento-me com os restos, como
muitos maridos de mulheres polícias que sabem que as suas mulheres são também mulheres dos
instrutores e outros oficiais superiores. Quando pensas que a tua esposa foi trabalhar, estás
enganado. Foi foder com os instrutores. Trabalho dele é esse mesmo.

- É o sistema, não temos como.

- É verdade. Fomos fonicados pelo Estado. Quem fode a minha esposa fode a mim também. -
expliquei o que tinha apurado. - Agora podes me mostrar a mancha reluzente na tua bunda
bonita, oh Zuleiquinha?

130
- Está bem. Vamos lá.

E lá fui com ela ver a mancha reluzente escondida na bunda bonita que há muito havia deixado
de ser somente nosso "segredo de Estado" por causa do homem de four by four azul, dupla
cabine e de alta cilindrada, assim como dos instrutores da tropa. Fui com ela ver a mancha igual
a que eu tinha no meu rosto e aproveitar para comer o resto do que os instrutores deixaram para
malta nós mangalachanes. Um poeta pobre, bonito e inteligente sabe muito bem se contentar com
os restos. Como muitos maridos cujas esposas polícias e militares são também mulheres dos
instrutores e oficiais superiores precisam de se contentar com os restos. A carne que resta é
amarga, mas é carne. Contenham-se poetas chifrudos. É o sistema.

***
Quando digo que somente tive o apoio da minha doce e espectacular Tenente-Coronel Zularica
Ponta Fina nas diligências que me conduziram a neutralização dos quatro agentes da unidade de
intervenção rápida da polícia da república de Moçambique não poderia estar mais certo, mas
aqui estaria a cometer uma grande injustiça, dado que também tive o grande apoio moral e
incondicional do Tenente-Coronel Victor da Cruz, um grande músico e meu amigo com quem
tive o privilégio de contar na equipa de músicos do programa "Observatório Literário", da
"Rádio Savana", de onde também fazia parte o grande guitarrista Cota Nguenha.

Depois de Jeremias Nguenha, não voltei a conhecer outro artista com as mesmas características,
tanto em termos de capacidade vocal bem como ao nível das suas composições, mas já este com
uma diferença: também toca guitarra.

Tocando com o grande Cota Nguenha, ou simplesmente "Putuana", já a equipa estava completa,
sempre que os tipos tocaram para mim nos saraus que andei realizando, chegava a pensar que ali
existisse uma bateria, um teclado, umas congas, um saxofone e outros instrumentos, quando na
verdade são apenas dois grandes artistas meus amigos. Foi com os temas "Mugorodo",
"Djamanguane", "Nenane", "Morena do gueto", "Vamu tsovi nengue", "Dias tristes", "Ma rock
ni ma pintcho" e outros da autoria deste meu grande amigo Victor da Cruz que aprendi a correr
com gosto em busca da justiça, agora começava a perceber porque os mancebos terminam a

131
tropa a saberem entoar muitas canções, algumas engraçadas, outras muito tristes, mas todas
servem para manter a moral do exército.

Com as músicas do meu amigo Victor, aprendi a manter a moral em cima, aquela sem a qual
nunca teria conseguido levar os quatro polícias até ao banco dos réus para responderem pelos
seus actos. Tenho uma dívida muito grande para com este ilustre quadro da República, cujas
músicas todas espero um dia poder arranjar recursos para ele gravar um álbum, que não somente
vai bater, como também será uma prova inequívoca de como a verdadeira música moçambicana
resiste longe das rádios, das televisões e dos holofotes. Na sua música "Djamanguane", Victor
conta de forma resumida a história da sua passagem pela BO, onde somente três anos depois de
permanecer em reclusão teria sido provada a sua inocência. Lamento muito que um jovem que
tenha desenvolvido tanto as suas habilidades artísticas no grupo cultural daquele estabelecimento
penitenciário também sofra até hoje as consequências do difícil processo de reintegração social
que caracteriza o nosso sistema de justiça. A reintegração social é uma merda!

Depois de terminar o meu contrato de trabalho na "Radio Savana", por causa dos polícias que me
torturaram, tive o privilégio de trabalhar como voluntário com uns tailandeses da "Middle Way
Meditation Institute" na realização da "Global Light of Peace", onde mais uma vez contei com a
ajuda de Victor, o sempre irresoluto quadro sénior da República.

Nesse projecto, chegamos a escrever uma música com o título "Light of Peace", que embora
tivesse sido aprovada pela direcção, as coisas não terminaram bem, por causa dos direitos, que
queriam nos retirar. É nossa música. Fiquem com a vossa organização, nós ficamos com a nossa
música, um dia havemos de gravar, se Deus quiser. Também durante esse tempo escrevemos
juntos muitas outras músicas, como "Shooters on da streets", "Freedom of the expression",
“Organize My People”, "A revolução começa aqui", com os jovens revolucionários da X-
FAMILY, sob direcção do Tenente Coronel Niggaz Duck e Sargento Wonder.

Victor sempre manifestou seu enorme respeito pelos melhores artistas de outros géneros, como o
caso de Rui Vedder, vocalista principal da banda "The Blinds", ou "PSICOPATRIA", que
sempre veio nos visitar no Xipamanine com o baixista da mesma banda o Jorge Marven.
Passávamos a vida a tentar imitar o puto Rui Vedder, qual Kurt Cobain, cegos, surdos, mudos e
deficientes mentais//cegos também vão ao cinema/surdos também vão ao cinema///Estava eu

132
parado quando apareceu/um gajo cinzentinho com cara de mau//Naaaãããooo tenho BI. Foi o
Nando Manuel Jr que me apresentou essa malta, ao serviço do rock music central park, mas
também outras bandas como o caso dos "Norbormide", "PSICOPATRIA", aquele puto Tiddy
Hepplin, qual Led Zeppelin, é um louco, eu gosto de rock, "Nirvana" e Kurt Cobain estão nas
ruas de Maputo. Victor que gosta de apreciar outros artistas também considerou o rapper
"Singaman" com o seu álbum "Sociedade em movimento", como um expoente máximo do hip
hop moçambicano, legitimado por Hélder Leonel, DJ Malela, um dia saberemos muito bem
homenagea-los a todos, até porque "Singaman" foi responsável pela formação de muitos putos na
consciência hip hop. Não poderei deixar de reconhecer os feitos do jovem rapper Gennius
Freeman, apresentador do "hip hop música central park", com quem ainda espero me cruzar em
outras frentes de combate pela justiça.

Victor é um rasta, por isso não aguentava com o Ras Gotas e a malta do "reggae music central
park", que nos levava aos mais altos patamares da cultura rastafári, com o mais alto patrocínio do
presidente do movimento rastafári de Moçambique, Ras Tosh. Foram sempre interessantes os
contactos com a comunidade, o Ras Viegas Benjamin, o Ras Soto, o Ras Pacífico, o Ras Skank e
muitos outros membros de uma comunidade que ainda não foi muito bem percebida pelas
autoridades opressoras, mas que está sempre aberta para quem quiser compreender, incluindo os
jornalistas, sociólogos e antropólogos.

Foi vergonhoso ouvir que a força de intervenção rápida invadiu o estúdio do movimento e ali
prendeu vinte membros com a alegação de estar a desmantelar uma boca, o movimento rastafári
não é uma boca, é uma cultura com raízes ancestrais extremamente profundas. A música reggae
que o movimento pratica foi elevada ao estatuto de património cultural da humanidade pela
UNESCO, de resto acho que não é assunto de soruma, os quadros da UNESCO fumam soruama
por causa do reggae, meu Deus, massinguita, um insulto ao Estado de Direito e Democrático. É
um crime muito grave a polícia invadir um estúdio de música reggae com a alegação de se estar a
desmantelar uma boca, antes de fazer isso devia estudar antropologia. Nunca vi coisa igual na
associação dos músicos. O maior forneco de weed nesta terra e a propria terra, como diz a minha
amiga Maradona.

Nessas diligências que andamos a comandar, andamos muito pelas esquadras, quartéis,
comandos, sernics, procuradorias, tribunal, a fim de que pudéssemos dar o impulso ao processo

133
dos policias torturadores, andávamos de um lado para o outro, como uns loucos. No final do dia
ficávamos na sombra da mafurreira a tocarmos umas musiquinhas a maneira, enquanto bebiamos
todas essas porcarias que o governo garante que cheguem aos subúrbios, as barracas da Mafalala,
do Minkadjujne, do Xipamanine, do Chamando, da Munhuana e de outros bairros periféricos.
No elevador da direcção da cidade do serviço nacional de investigação criminal, deparamo-nos
com dois agentes, que quiseram saber quem éramos nós.

- Somos colegas. - respondi.

- De que unidade?

- Jornalismo Judiciário.

- Ahan, ok. - respondemos.

Eu e o Victor abandonamos o elevador, atravessamos a estrada e fomos embora, mas fomos


embora enquanto nos partiamos em gargalhadas, porque descobrimos que os agentes não
conheciam as suas unidades e brigadas a ponto de concordarem que o jornalismo judiciário é
uma unidade do Sernic.

- Qual carapuça...

- ...Deus zela por nós seres pensantes...

- ...se não fosse por isso...

-...nem a alma aproveitava!

- Jornalismo Judiciário é uma unidade jornalística.

- Tenente Coronel Victor da Cruz.

- Às ordens, Major General Henry Miller.

- A Luta Continua!

***
134
Tinha agora dois filhos. O segundo que acabara de nascer, com a minha doce e espectacular
Zularica Ponta Fina. E o primeiro, que já teria uns dez, onze anos, a minha primeira sorte com a
Zuleica Tina Turner, uma experiência que se tornara uma autêntica frustração não somente
porque ela foi-se embora com o homem do four by four azul, dupla cabine, último grito, topo de
gama e de alta cilindrada, mas também porque no meio disso tudo ela acabou me humilhando ao
me pedir para que eu não dissesse ao seu chefe que era pai do filho dela.

Há quem entenda tão somente que tive os dois filhos sem observar qualquer tipo de planeamento
familiar, que podia ter adiado, mas há aqui uma história da mancha congénita à mistura, uma
história muito íntima, tão profunda que nunca saberei contar com a devida propriedade.

Para mim, ter um filho com manchas era uma certeza com a Zuleica Tina Turner, uma vez que
ela tinha uma mancha na bunda, igualzinha a que eu tenho no meu rosto, que nasci com ela e que
não tem cura. Não queria que a minha história se repetisse, que um filho meu tivesse que passar
por tudo o que eu passei. Na escola primária e secundária, os outros meninos chamaram-me
nomes feios que me causaram muitos traumas ao longo de toda a minha vida, desde "Mapa de
Moçambique", "Mapa Cor-de-Rosa", "Olho Branco", "Pintex", "Robiallac", "Murdock" e outros
tantos.
Com efeito, o menino que agora estaria com uns dez, onze anos, já era uma dúvida. Tudo porque
a Zuleica instalara a dúvida em mim sobre a paternidade, o que se transformou numa autêntica
desgraça, talvez por isso mesmo andei pelas avenidas, ruas e becos como se fosse uma múmia,
um cadáver ambulante ou um morto-vivo. Foi nessas andanças que uma certa vez me deparei
com a Zuleica Tina Turner, que me perguntou:

- Não atendes minhas chamadas porquê?

Eu de facto desliguei qualquer tipo de contacto possível com ela por muito tempo, bloqueei o
número dela no meu celular bem como as redes sociais, mas como tivessemos nos cruzado, não
tive outro caminho senão lhe dar uma explicação definitiva.

- Eu não quero ter nenhum contacto contigo.

- Porquê?

- Tão somente porque tiveste a coragem de me pedir para não dizer ao teu chefe que eu sou pai
do teu filho.

135
- Me perdoa, por favor.

- Tu és uma cobra, de verdade. Uma coisa é tu me trocares com aquele gajo do four by four azul
e a outra, bem diferente, é tu teres vergonha de mim ao ponto de me retirares a paternidade e
preferires que o nosso filho seja como um filho de pai incógnito. Por isso mesmo, eu não quero
te ver nunca mais na minha vida.

E virei as costas para ela, enquanto um mar de lágrimas derramava-se no meu rosto. A Zuleica
ainda parou no meio da rua a olhar para mim, chegou a pedir que eu esperasse mais um pouco,
mas desta vez não lhe liguei a mínima.

Espero um dia poder encarar a vida de uma forma diferente, que eu consiga perceber o que
aconteceu de verdade para chegar ao ponto de eu ser tratado de uma forma tão miserável pela
Zuleica, que me desconsiderou como pai. Todos os dias acordo com essas perguntas a me
martelarem a cabeça que chega a parecer que vai explodir.

Foi assim que aprendi sozinho a escrever para não enlouquecer, mas também para não me
esquecer. Não tenho a mesma relação que vinha tendo com o meu primeiro filho. Tudo
transformou-se numa coisa que não se percebe o que é. Gostaria de compreender isso, mas por
mais que eu me esforce tanto, não consigo. Antes passava a vida a chorar, mas agora já não.
Espero que um dia consiga superar, não a história da minha separação com a Zuleica, mas sim a
história da minha paternidade rejeitada.

O meu segundo filho com a doce e espectacular Zularica Ponta Fina também nasceu sem
manchas, tal como o primeiro. É um menino bonito, muito inteligente e muito esperto. Os dois
meninos se adoram muito, quando se encontram estão sempre a brincar juntos. É na forma como
eles se adoram que procuro inspiração para sonhar com uma vida melhor quando a realidade é
um autêntico pesadelo.

***
Ia pensando que a vida haveria de ganhar uma nova dinâmica que fosse para mim menos violenta
do que o que tinha sido até então, mas tudo se transformou drasticamente quando fui convocado
pela família da Zuleica Tina Turner para me informarem formalmente que tinham intenções de

136
transferir o nosso filho para ir viver com eles. Tal colocação deixou-me profundamente abalado,
até porque não haveria de ser boa coisa.

- Eu não concordo. - respondi.

- Mas porquê? - perguntaram-me os madodas que ali estavam, incluindo algumas tias, alguns tios
e avós. - O lugar do filho é com a mãe.

- Não. - insisti. - O meu filho vai continuar vivendo comigo, até porque ele está bem nos estudos,
a escola vai bem assim como a catequese também.

Foi assim, até que a Zuleica teve a sua palavra, que veio como um muro na boca do meu
estômago, provocando-me náuseas.

- Mas o menino não é teu filho.

Tive vontade de vomitar, mas consegui me segurar. Toda a gente ficou boquiaberta, como se
manifestasse algum espanto, mas era tudo fingimento. Mesmo eu que até algum tempo pensei
que já tivesse ouvido da boca da Zuleica as palavras mais infernais e cavernosas que um homem
pode ouvir, não esperava por essa.

Um dos madodas disse assim:

- É a mais pura verdade, meu filho. Aquele menino nem é parecido contigo.

E eu, que contive as lágrimas, disse:

- Mas eu sou pai dele.

- Não és. - disse o ancião, tendo se dirigido a ela: - O pai dele é aquele homem de four by four
azul, dupla cabine, duas portas, último grito, topo de gama e alta cilindrada?

- Sim. - respondeu a Zuleica. - É ele.

- É isso, meu filho. Está aí a verdade.

- Está bem. - reagi. - Então mostra-me a prova.

- Mas que prova você também?

- A prova de que eu não sou pai dele.

137
- Mas você nem é parecido com ele.

- Eu sou pai dele. Fui eu que o registei, acompanhei toda a tua gravidez, criei-o até hoje...

- Mas não é teu filho biológico.

- E só hoje descobriram isso? Onde estão as provas?

- Não precisa de provas. Eu sou a mãe, eu é que estou a dizer quem é o pai.

- É o homem do four by four azul? Mas me desculpem, aqui não temos mais nenhum assunto a
tratar. Eu vou-me retirar.

E sai daquela casa.

Por alguns instantes pensei que estivesse a ser torturado por qual crime que nunca cometi, mas
nada disso. A verdade era essa que me estava a ser dita. Que eu não era o pai biológico, porque o
pai biológico era o homem de four by four azul, dupla cabine, quatro portas, topo de gama,
último grito e de alta cilindrada. Chorei copiosamente, como se fosse uma criança. Fui-me
embora com o cérebro a aquecer, os nervos à flor da pele e a alma trancada nos dentes.
Gostaria que me tivessem cortado a cabeça, mas acho que consegui segurar a onda. Posso não ser
o pai biológico, mas eu é que registei e criei o menino até aquele momento em que tinha os seus
onze, doze anos. Acho que isso não me podem tirar. É meu filho. Eu é que o criei.

***

Houve tempos em que a Zuleica apenas vinha buscar a criança para passar com ela os fins-de-
semana semana ou então alguns dias caso ela estivesse de férias, mas agora que decidira junto
com a sua família de "madodas" me informar que não era meu filho mas sim filho do homem de
four by four azul, dupla cabine, quatro portas, último grito, topo de gama e alta cilindrada, como
se tornara conhecido no seio daquela nossa comunidade bairrista, dos vizinhos, dos amigos, das
cuscuvilhices e dos boatos, ela começara já a mostrar um comportamento completamente
diferente, que lhe levara ao extremo de matricular a criança sem o meu consentimento numa
outra escola próxima da sua residência que lhe havia sido arrendada pelo homem.

138
Talvez porque eu sempre pensei com algum sentido de calma que tudo aquilo não passava de um
filme de ficção próprio de uma marrandza que acabara de achar um novo homem para seguir o
curso normal da sua vigarice, que toda aquela brincadeira de meu filho que não era meu filho,
mas sim filho de outra pessoa, acabaria passando, mas qual foi o meu espanto quando a Zuleica
Tina Turner tomou mesmo a liberdade de vir me pedir a guarda definitiva do menino clarinho,
gordinho e fofinho novamente com o fundamento de que o mesmo não era meu filho mas sim
filho do homem que se tornara famoso no seio da comunidade bairrista por se haver apossado da
esposa do jornalista famoso também.

- Eu quero a guarda definitiva da criança, porque eu já disse que não é teu filho. É do meu
marido, aquele homem com quem eu agora vivo.

Não sei onde consegui arranjar tanta calma com esta mulher em que a Zuleica tinha se
transformado, mas eu me contive. Com um sorriso cínico, amargo e desgraçado, mas consegui
me conter. Tenho dito que um jornalista formado como eu não iria engrossar a enorme lista de
homicídios e suicídios causados por razões passionais muito menos com marrandzas, ainda que a
essas razões tenha agora sido acrescida uma disputa pela paternidade do meu próprio filho, o que
nunca tinha imaginado que um dia fosse enfrentar na vida, mas como homem que eu sou os
nervos também me soubem à cabeça e nessa contenção não resisti em deixar cair uma lágrima.

- Eu só peço a guarda, porque não é teu filho. - insistiu.

E eu respondi:

- Eu não sou distribuidor de guarda de crianças.

E ela:

- Não é teu filho. Tem pai aquele ali.

E eu:

- Então vai ao tribunal.

E virei-lhe as costas.

Ela foi-se embora.

O que eu achei mesmo estranho no método que agora a Zuleica decidira usar para me abordar é
que desta vez ela já não mais me convidara para eu me reunir com os pretensos "madodas" da
139
sua família com os quais me havia reunido na sua anterior abordagem, o que me fez perceber que
hoje em dia o sistema está tão violento que até já mesmo se inventam "madodas", uma
autoridade tradicionalmente respeitável nas nossas famílias, tudo com o intuito de roubarem o
meu filho para o homem do four by four azul, como se a criança também tivesse passado a ser
objecto desse tipo de boladas.

Embora reconhecesse a enorme capacidade de gestão de conflitos da minha doce e espectacular


Zularica Ponta Fina, com quem agora tinha um menino bonito, esperto e inteligente que crescia
como um dinossauro, nunca tive coragem de lhe contar esses meus novos confrontos com a
Zuleica, porque como devem imaginar, há daquelas coisas que um homem deve guardar para si,
ainda que sejam muito dolorosas.

Pelo rumo que estavam as coisas a tomar, tive mesmo que ganhar coragem e lhe abrir o jogo.
Zularica não é daquelas mulheres que gostam de pensar que há gato em tudo. Muito pelo
contrário. Se eu lhe explicasse o que estava acontecer, ela acabaria compreendendo e me
ajudando a lidar com o problema. Foi o que fiz. O que ela sabia até então, porque eu lhe tinha
contado, era que eu tinha sido dito por uns "madodas" que não era pai do meu primeiro filho, que
o pai era outro, o que ela achou humilhante.

- Queres que eu fale com ela? - perguntou-me a Zularica, querendo ela mesma falar com a
Zuleica pessoalmente. - De mulher para mulher?

- Não. Não vale a pena. - respondi. -Deixe que eu mesmo resolvo.

- Mas o que ela disse mesmo?

- Que quer a guarda definitiva do menino porque segundo ela não é meu filho.

- Mas que absurdo! - retorquiu a Zularica. - Quer a guarda da criança ou quer que a paternidade
seja dada a outra pessoa?

- Nem cheguei a discutir com ela tais detalhes, mas mandei ela ir ao tribunal.

- Pois fizeste muito bem. Onde já se viu uma coisa dessas? Confundir guarda da criança com
paternidade! Que eu saiba a criança sempre esteve bem contigo até aos onze, doze anos. De
repente já não és o pai e por isso quer a guarda, que grande confusão. Mas outras coisas, nada
juro!
- Pois é. A ver vamos!

140
***
O meu confrade Severino aportou ao meu domicílio num estado de aflição denunciando maus
ventos.
Descarregou com uma celeridade descomunal as saudações da praxe e entrou sem muitos
preliminares no assunto que tanto o afligia.

- Major General Henry Miller, o teu filho foi raptado agora mesmo.

- O quê? - perguntei, atónito.

- Sim. - respondeu. - Os bandidos apanharam a ele ali na avenida, meteram-no a força num carro
e bazaram com ele.

- Meu Deus! - reagi assim mesmo, deveras assustado. - Vamos lá ver o que se passa, mano
Severino!
Tivemos mesmo que sair as correrias, a fim de que já lá no terreno pudéssemos perceber melhor
o sentido dos factos e podermos correr para a polícia a tempo, dado que o estado do mano
Severino era mesmo capaz de pregar susto ao mais firme dos mortais.

O facto é que desde que o meu filho saíra, ainda não tinha voltado até àquela hora e era tarde, o
que veio adensar ainda mais a minha preocupação, sobretudo porque vivíamos num tempo em
que havia se instalado um ambiente de terror e pânico na sociedade por conta da onda de raptos
em quase toda a parte, onde as principais vítimas eram os monhés donos de grandes lojas e
armazéns em troca de altas quantias de resgate bem como os albinos cujos órgãos eram extraídos
dos seus corpos supostamente para serem usados em práticas de feitiçaria.

Pese embora o meu filho não fosse um albino, até porque nasceu sem ter nem sequer uma
manchinha no corpo como eu que tenho uma mancha congénita no rosto, assim como não era
nem sequer um monhezito filho de um monhé rico, sempre me preocupei com a sua segurança
pelo facto de eu ser jornalista e poeta pobre, bonito e inteligente e como tal nunca estive isento a
perseguições, ameaças, intimidações e chantagens onde poderiam usar o menino.

141
O que pude constatar ao longo da minha caminhada rápida com o meu amigo Severino com
destino à avenida foi um grande alvoroço no seio daquela nossa comunidade, tudo porque já
também alguém esparalhara a notícia segundo a qual uma criança teria sido raptada.
A comunidade estava em alerta, porque de facto algo havia acontecido, mas somente falava-se de
um menino com uns onze, doze anos de idade que segundo algumas testemunhas oculares no
local das ocorrências teria sido metido num four by four azul, dupla cabine, duas portas, último
grito, topo de gama e de alta cilindrada que teria com ele abalado para parte incerta.

Embora eu tivesse achado esse facto muito engraçado porque logo imaginei que o assunto só
poderia ter algo a ver com as incursões da Zuleica Tina Turner pelos escondidinhos com aquele
seu homem famoso de quem já toda a gente falava no seio da nossa comunidade bairrista, que
também andava num four by four azul com as mesmas características do carro que teria sido
visto por algumas testemunhas oculares a recolher uma criança que o meu confrade Severino não
tinha margem de dúvidas que se tratava do meu menino bonitinho, gordinho e fofinho, tive de
facto razões mais que suficientes para me preocupar.

Porque antes prevenir do que remediar, não tivemos outra solução senão acorrermos até ao posto
policial a fim de lá efectuarmos o registo daquela ocorrência. Para além do meu amigo e
confrade Severino, conseguimos levar connosco uma testemunha ocular que garantiu ter visto
uma criança a ser levada a força numa viatura que depois seguiu em máxima velocidade para
parte incerta.

Logo ao chegarmos ao posto policial, já um daqueles agentes caçadores de boladas que


costumam interpelar os cidadãos antes mesmo de entrarem na esquadra nos abordava a fim de
lhe explicarmos o que ali nos levava.

O mano Severino informou de imediato ao agente de triagem que uma criança acabara de ser
raptada na avenida. Pela natureza da ocorrência, o agente remeteu-nos logo de imediato para o
oficial de permanência, o qual, ao lado do oficial do dia e mais dois polícias que permaneceram
em pé, nos mandou sentar naquele banco de ferro duro que faz doer o rabo, a coluna e a espinha.

- Boa noite, meus senhores.

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- Boa noite, senhores oficiais.

E o oficial perguntou:

- Em que podemos ajudar?

Foi o meu confrade Severino quem assumiu a dianteira, tendo dado conta das ocorrências.

- Uma criança foi raptada ali na avenida há cerca de uma hora.

- Uma criança raptada! - exclamaram os agentes, quase que em uníssono.

E o oficial continuou:

- Os senhores viram?

- Sim. Vimos. - disse o Severino, mas logo corrigiu-se, apontando a testemunha ocular. - Aliás,
eu e ele acompanhamos tudo.

O oficial de permanência interpelou a testemunha ocular.

- O senhor é testemunha?

- Sim. Eu vi. Testemunhei.

- O que viste?

- Um menino a ser levado a força numa viatura.

- Como é essa viatura?

- É uma four by four azul, dupla cabine, duas portas, topo de gama, último grito e de alta
cilindrada.
O oficial foi registando o que ia sendo dito. Foi assim que depois dirigiu-se a mim, tendo
perguntado:
- E este senhor?

Muito antes de eu responder, o meu amigo e confrade adiantou:

143
- O menino que foi raptado é filho dele. Por isso mesmo que fui lhe chamar em casa dele para
que fossemos juntos averiguar os factos no local das ocorrências.

- Está bem. - afirmou o oficial. - Muito bem, onde está o seu filho?

E eu respondi:

- Em condições normais, o meu filho já devia estar em casa quando o Severino apareceu para me
informar que viu o meu filho a ser raptado. Eu de facto estou desesperado, mas tenho esperanças
que ainda possa encontrá-lo em casa e que até aí a minha preocupação possa estar resolvida. Se
não tivesse vindo o Severino me chamar, talvez não estaria aqui e já estaria em casa com o meu
filho que talvez já deve estar em casa, mas todo o cuidado é pouco, antes prevenir...

Foi dessa forma que o posto policial nos mandou para que voltassemos para as nossas casas e
deixássemos a polícia trabalhar.

- Daqui para frente é trabalho da polícia. - reafirmou o oficial.

E lá fomos nós.

Quando cheguei em casa, perguntei a toda gente onde estava o meu filho, mas ninguém soube
explicar muito bem, apenas a minha mãe lamentou que talvez a criança poderia ter sido levada
pela Zuleica. Também limitei-me em pensar que ele poderia ter ido com ela mesmo, até tentei
ligar para confirmar se o homem de four by four azul teria recolhido o menino a força na
avenida, mas ela não atendeu o telefone. Fiquei assim mesmo, aflito, mas não tão aflito assim,
por causa das similitudes das viaturas, de certeza que não seria um problema de grau maior.

No dia seguinte, logo pelas primeiras horas da manhã, recebi uma chamada do posto policial a
me informar que tinha sido detido um homem de four by four azul, dupla cabine, duas portas,
topo de gama, último grito e de alta cilindrada em conexão com o rapto, que eu devia me
apresentar na parte da tarde com o Severino e a testemunha ocular a fim de ajudarmos na
identificação do suspeito.

Durante a manhã inteira tentei ainda ligar para a Zuleica Tina Turner a fim de que me informasse

144
sobre o paradeiro do nosso filho, se por algum momento teria mandado o seu novo marido
recolher a criança a força, um pensamento que me pareceu ser justamente uma grande piada dado
que por aqueles dias ela também andava como uma louca a reivindicar a transferência da
paternidade de mim para aquele homem, mas infelizmente não atendeu a minha chamada
novamente.
Naquela tarde, fomos ao posto policial, eu, o meu amigo e companheiro Severino e a testemunha
ocular ajudar a polícia a identificar o suspeito ora detido.

Quem haveria de imaginar que ao lá chegarmos, daríamos de caras com a Zuleica Tina Turner,
que já estava na permanência, não sei exactamente a fazer o quê, uma vez que em nenhum
momento eu conseguira estabelecer contacto com ela para lhe dar conta do suposto rapto do
nosso filho, mas logo logo haveríamos de saber.

Tendo nos visto a chegar, os oficiais mandaram-nos entrar naquela sala, onde novamente nos
mandaram sentar naquele banco de ferro muito duro que faz doer o rabo, a coluna e a espinha,
mas também o espírito e a alma.

E o oficial que chefiava a operação mandou dois agentes fortemente armados para irem lá para as
celas buscar o homem apanhado, que lhe mandaram sentar no chão com as suas ordens de
comando redutoras. Ele estava algemado, sem cinto e sem os atacadores nos sapatos.
Naquele dia tirei o chapéu ao ver novamente que os policias têm uma capacidade incrível para
reduzir um simples suspeito à insignificância. A Zuleica começou a chorar, tão fortemente que
até fiquei com medo de que algo de muito grave tivesse acontecido com o nosso filho.
E o agente que estava em cima do assunto dirigiu-se directamente para o Severino e para a
testemunha ocular, tendo perguntado alto e em bom som a fim de que também respondessem alto
e em bom som:

- Os senhores reconhecem este homem?

- Sim. - responderam o Severino e a testemunha ocular, alto e em bom som. - É o homem que
raptou a criança na avenida.

- O homem do four by four azul, dupla cabine, quatro portas, topo de gama, último grito...

- Sim, senhor. - repetiu a testemunha ocular. - É ele.

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O Severino também secundou:

- Estou velho, sim, mas a minha memória ainda não falha. É ele.
Incontida, a Zuleica Tina Turner quis interceder, mas os oficiais lhe acalmaram os nervos, as
lágrimas, a baba e o ranho, a fim de que fossem observados todos os procedimentos da
acareação.
E o oficial perguntou ao visado:

- O senhor foi visto a raptar criança por estes senhores. O que tem a dizer?

Ele estava aflito, quase que se mijava nas calças, mas conseguiu balbuciar algumas palavras.

- Eu estava a brincar com ele.

- Brincar com ele de lhe levar a força no teu carro? É teu filho?

O homem não respondeu, até que um daqueles polícias que não têm paciência quando acham que
um criminoso já foi devidamente identificado lhe deu uma bofetada na cara, a fim de que ele
recuperasse a memória.

Nesse momento, o oficial de permanência dirigiu-se para a Zuleica Tina Turner, a quem
perguntou:
- E a senhora?

- Eu sou namorada dele. - respondeu a Zuleica, enquanto apontava para o suspeito.

- É namorada dele ou trabalha com ele nos raptos e sequestros?

- Sou namorada dele. - disse novamente. - Ele não raptou nenhuma criança. Eu é que lhe mandei
buscar. É meu filho.

- Mas buscar teu filho a força?

- Estava a brincar...

O polícia impaciente de novo descarregou duas chapadas na cara dele, que acabou pedindo para
que lhe poupassem do espancamento porque haveriam de ter problemas com ele uma vez que era

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também um membro das forças de defesa e segurança. Portanto, tratava-de um colega dos
agentes, como se sabe os colegas tratam-se com mais respeito e consideração.

Eu estava intrigado com a evolução dos factos, mas também maningue interessado no que ainda
estava por vir. O posto policial também começara a entrar em ebulição, um autêntico rebuliço,
como se a grande investigação do rapto estivesse a ganhar proporções mais interessantes para o
seu esclarecimento. As testemunhas oculares estavam impávidas, mas já nessa altura se haviam
dado conta de como uma esquadra não é local para brincadeiras.

E o oficial perguntou a ela:

- O menino raptado que afinal não foi raptado é teu filho senhora? Pois bem. E quem é o pai da
criança?
- É o meu namorado.

- Este que prendemos?

- Sim. Esse que prenderam.

- E este senhor? - perguntou o agente, apontando-me.

E ela, que chorava, respondeu:

- Este senhor é o meu ex-marido.

- Mas ele diz que é o pai da criança.

E a Zuleica Tina Turner explicou:

- Ele não é o pai biológico, apenas foi ele que registou e criou a criança. O pai biológico é o meu
namorado, este que lhe prenderam, mas estava a brincar com o filho dele.

- Mas que grande porcaria desta gente, meu Deus. - disse o oficial, enquanto batia a mesa,
visivelmente chateado. - Afinal tudo isto é assunto de família que estão a nos fazer perder
tempo? Vamos embora, rua, rua, rua. Vão resolver os vossos assuntos de amantes e chifrudos lá
longe lá.

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Foi assim que nos mandaram a todos embora do posto policial, que afinal tudo não passara de
um mal entendido provocado pela nossa marrandza colectiva, que afinal ficou claro para aquele
posto policial que também ela era membro das nossas forças de defesa e segurança, o que exigia
um maior respeito e consideração entre colegas.

- Desculpa, colegas. - disse o agente impaciente, que andara a dar maningue bofetadas ao
suspeito de rapto que afinal era colega. - Vocês também não informam nada!
O suspeito levantou-se, sacudiu calmamente as calças, olhou para todos os presentes e foi saindo
do posto policial sem dizer nem sequer uma palavrinha, como quem não queria nunca que aquele
episódio tivesse acontecido na sua vida muito menos haveria de querer que o mesmo ganhasse
proporções ainda mais alarmantes, o que me fez perceber que se tratava de um homem muito
bem casado, com filhos e que tinha clareza que assuntos do escondidinho com as nossas
marrandzas colectivas acabam no escondidinho, mas que infelizmente tinham desembocado
numa esquadra em virtude de um mal entendido misturado com burrice. Quanto às chapadas
recebidas, nem sequer um sinal de protesto nem nada.

O oficial de permanência ainda foi a tempo de aconselhar ao homem do four by four azul, dupla
cabine, quatro portas, topo de gama, último grito e de alta cilindrada para passar a ter mais
cuidado na forma como caça as suas marandzas e lida com os respectivos filhos, há situações em
que pode ser confundido com um raptor e ser abatido pela polícia, até porque já por aquelas
alturas a polícia andava muito nervosa e em alerta máximo.

- Da próxima vez venha mesmo buscar a criança na minha casa, onde vive comigo e os avós
desde que nasceu. - disse eu ao homem que levara chapadas. - Eu sou o pai.

Ele não respondeu nada. Por causa de um mal entendido, desta vez o adultério do caçador das
marrandzas de dono tinha sido revelado numa esquadra e não mais numa pensão ou
escondidinho.
A triste Zuleica Tina Turner, de cujo episódio nunca tinha contado a ninguém e sobre o qual
nunca sequer voltei a comentar com ela, foi-se embora ainda a choramingar com o seu caçador
de marrandzas, também novo pai do meu filho, no invejavel four by four azul, sem sequer se
despedir de mim, como se eu fosse culpado. Foi assim que conheci o homem do four by four
azul, graças ao belíssimo trabalho de patrulhamento comunitário do meu bom amigo e grande

148
confrade Severino no âmbito do combate aos raptos. Na verdade, nunca cheguei a conhecer o
nome do sujeito suspeito, mas estou muito agradecido a ele por me ajudar com o enorme peso
que esta marrandza se tornou na minha vida.

***
Quando chegou a minha vez de me apresentar ao tribunal para responder no âmbito de uma
acção cível de regulação do exercício do poder paternal efectivamente movida contra mim pela
senhora dona Zuleica Tina Turner, que como se de uma louca se tratasse queria a guarda
definitiva do nosso filho alegadamente porque agora tinha descoberto que o mesmo não era meu
filho, senti-me deveras humilhado, injustiçado, ofendido e ultrajado por tamanha atitude.

Tal como havia prometido, a bandida estava mesmo disposta a ganhar a guarda definitiva do
nosso filho com o fundamento segundo o qual o mesmo era filho daquele homem de four by four
azul, dupla cabine, quatro portas, topo de gama, último grito e de alta cilindrada. É aquele cujo
qual numa certa ocasião acabou sendo detido pela polícia durante quase um dia inteiro nas celas
de um posto policial em virtude de haver sido confundido com alguém que tentara raptar o nosso
filho, um mal entendido que acabou sendo esclarecido pela nossa marrandza colectiva que foi lá
para o salvar da situação. Foi assim que descobri que afinal eram colegas de trabalho nas forças
de defesa e segurança e agora estavam mesmo dispostos a me roubarem o filho só para me
infernizarem ainda mais a vida.

Não é por ser um lugar onde se tratam assuntos dos menores que um tribunal de menores haveria
de ser um local cujo ambiente seria mais divertido e menos pesado que o habitual ambiente
pesado que se encontra nas esquadras, nas procuradorias e nos tribunais comuns e com todos
aqueles salamaleques que me levariam a estranhar que há gente que não tendo mais o que fazer
gosta de andar nesses corredores a passear só para malbaratar tempo e paciência e gastar dinheiro
com advogados e processos por coisinhas que não fazem nenhum sentido.

Com efeito, estávamos todos ali para eu responder por uma acção que desde logo me pareceu ser
ridícula, enfadonha e piegas, mas como todo o cidadão tem direito à justiça, nada mais havia o
que fazer senão estar mesmo à mercê das vontades daqueles dois cowboys from the hell das
forças armadas.

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A juíza do tribunal de menores, que estava ladeada por um velhinho e uma velhinha, a que se
chamam juízes eleitos, iniciou a sessão pedindo para as partes se identificarem como é de praxe.
A Zuleica se identificou primeiro como a responsável da acção, ao que de seguida também me
apresentei nos mesmos termos como o visado da acção ora em julgamento.

Nessa altura, o escrivão já tinha começado a bater na máquina de escrever, cujo som
inconfundível das teclas também ia rimando com todo aquele clima solene que caracteriza o
funcionamento de um tribunal, sob assistência de uma oficial de justiça e vigilância de um agente
da polícia.

E a juíza prosseguiu:

- Estamos nesta sala para julgar a presente acção judicial de regulação do exercício do poder
parental movida pela cidadã Zuleica Tina Turner. Pode por favor explicar a este douto tribunal o
que a leva a mover a presente acção?

E a Zuleica, visivelmente nervosa, mas convicta da sua vontade, desenvolveu o seu argumento.

- Meretissima senhora juíza, o que me leva a mover a presente acção é que pretendo que me seja
concedida a guarda definitiva do meu filho.

- Muito bem, senhora. Pode falar a vontade para este tribunal quais são as razões que lhe fazem
querer a guarda definitiva do seu filho?

- Bom, o primeiro motivo tem a ver com o facto dele não ser o pai biológico do nosso filho,
sendo que o pai biológico é o meu marido, aquele com o qual me encontro a viver neste
momento. O segundo motivo tem a ver com o facto deste senhor que não é pai biológico ser um
desempregado, bêbado, drogado e não sabe o que faz da vida, praticamente é um vagabundo. Eu
trabalho, tenho salário, uma casa própria e o verdadeiro pai da criança também trabalha e nós
estamos em melhores condições de cuidar da criança.

- Muito bem. E tem mais alguma coisa que gostaria de acrescentar?

- Eu só quero pedir a guarda definitiva para mim e o meu marido, que somos os verdadeiros pais
da criança.

- É tudo?

- É tudo.

150
- Digníssima senhora magistrada do Ministério Público, tem a palavra.

- Obrigado, Meretissima. Pode a senhora Zuleica explicar a este tribunal quanto tempo viveu
com a este senhor, a quem considera como não sendo o pai biológico da criança?

- Bom, eu vivi com este senhor pelo menos uns oito anos.

- Oito anos?

- Sim, digníssima procuradora. Oito a nove anos.

- Durante esses oito a nove anos este senhor sabia que ele não era o pai biológico do vosso filho?

- Não. Ele nunca teve conhecimento.

- Portanto, durante estes oito a nove anos em que viveram juntos a senhora nunca informou que
ele não era o pai biológico?

- Não. Nunca informei.

- E por que razão somente agora decidiu informar?

- Porque somente agora achei conveniente uma vez que estou a viver com o verdadeiro pai, o pai
biológico.
- Como foi que a senhora engravidou do "verdadeiro pai" enquanto vivia com o "falso pai"?

- Eu namorava com este senhor, mas engravidei daquele outro.

- E porque a senhora Zuleica não foi viver com aquele que lhe engravidou?

- Porque na altura eu gostava deste senhor.

- Então a senhora enganou este senhor, atribuindo-lhe a paternidade de um filho que sabia que
não era dele...

- Bom, não sei né. Eu amava muito a ele. Aconteceu.

- Aconteceu?

- Só posso dizer isso. Acontece.

E a magistrada do MP declarou:

- Estou satisfeita, Meretissima.

Logo a seguir, a juíza de direito passou a palavra para a juíza eleita, uma velhinha baixinha de
óculos que estava do seu lado esquerdo.

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- Obrigada, Meretissima. Quantos anos tem mesmo a criança hoje?

- Tem doze anos.

- Com quem vive?

- Vive com este senhor, o pai não biológico, o não verdadeiro.

- Muito obrigada, Meretissima.

E a juíza passou a palavra para o outro juiz eleito, um velhinho de costas curvadas que tinha uns
óculos tão graúdos que ia trocando-os com outros menos graúdos, os primeiros para encarar os
presentes na sala e os últimos para ler os papéis. Ele tomou da palavra.

- A senhora Zuleica tem provas?

- Se tenho provas?

- Sim. As provas de que este senhor não trabalha?

- Sim. Ele deixou de trabalhar.

- Como é que a senhora sabe?

- Eu vivia com ele.

- Então ele trabalhava.

- Sim, trabalhava.

- Muito obrigado, Meretissima.

Foi assim até que a juíza me passou a palavra.

E eu tomei da palavra.

- Muito obrigado, Meretissima. Tem sido para mim um ano muito tortuoso, neste momento
gostaria de estar em casa com a minha esposa e os meus filhos, o mais novo que nasceu agora e o
mais velho que nasceu a 12 anos e durante 12 anos sempre viveu comigo e os avós, que têm me
ajudado a transmitir uma educação baseada nos princípios éticos, morais e religiosos, nós somos
uma família tradicionalmente cristã. Tenho ouvido muitos insultos, que não esperava que
voltasse a ouvi-los até mesmo diante de vossas excelências, tal como ouvi novamente e por isso
peço as minhas imensas desculpas, sinto-me deveras envergonhado. A única coisa que eu sei é
que o miúdo é meu filho, um menino gordinho, clarinho e bonitinho. Sei disso porque o miúdo

152
tem umas orelhas iguais às minhas, apesar de não ter nascido com uma mancha congénita igual a
que eu tenho no meu rosto, que não tem cura, mas as orelhas são minhas sim senhor. Lamento
muito a atitude desta senhora que durante nove anos viveu comigo como minha esposa, eu
mesmo encarreguei-me pelos estudos dela, garantindo-lhe a mesada para que nada lhe faltasse,
bem como a ensinar tudo o que tinha que ser ensinado, nona classe, décima classe, depois a
escola de jornalismo, primeiro, segundo e terceiro ano, depois a tropa, onde sempre cuidei de
todas as suas necessidades lá no quartel da Escola de Fuzileiros Navais, na Catembe. Quando ela
terminou a instrução básica militar, tratou de me informar que já não estávamos juntos, que tinha
arranjado um homem de four by four azul que cuidava melhor dela, porque eu não sabia cuidar
dela. Ela foi afecta ao departamento de imprensa militar como sargento, essa patente com salário
de 30 mil meticais mensais é atribuída aos militares que têm nível médio técnico-profissional, o
que ela nunca teria tido se não tivesse sido instruída por mim até concluir a escola de jornalismo,
até o trabalho de defesa eu é que lhe apoiei, como minha esposa, porque os maridos devem
ajudar as esposas e as esposas ajudar os maridos.Quanto recebe um professor? Uns 15.000
meticais. Eu sozinho receberia uns 105.000 meticais por mês pelas sete disciplinas em que dava
aulas a ela, vezes doze meses seriam já uns 1.260.000 meticais, vezes sete anos seria uns
8.860.000 meticais, segundo os cálculos do Intelectual Juvêncio e do alfaiate Mingaldo, que
também me falaram dos 840.000,00 meticais que lhe dei só de mesada durante os cerca de oito a
nove anos em que vivemos juntos. Meretissima senhora juíza, eu de facto sou um jornalista
pobre, bonito e inteligente, que nunca haveria de engrossar a enorme lista de homicídios e
suicídios causados por razões passionais por ela ter me deixado ao ver que já estava pronta para a
vida, por isso eu lhe aconselhei a ir em paz e em liberdade ser feliz com o homem dela de four by
four azul. Enquanto eu fui achando que assim estava tudo em conformidade, não tardou para que
a nossa marrandza do povo começasse com esses papos de que eu não sou pai do nosso filho, ora
porque não sou pai biológico, ora porque não sou pai verdadeiro. Eu não sei nada disso,
Meretissima senhora juíza, não tenho muitos estudos, nunca fui a tropa, não percebo nada dessa
linguagem dos doutores, eu no máximo sou sei escrever jornais e escrever crónicas, só. Só sei
que aquele menino gordinho, bonitinho e fofinho é meu filho, que sempre viveu comigo desde
quando ainda estava na barriga da nossa marrandza até hoje e que neste momento não vejo a
hora de voltar para casa para ficar com ele e o outro irmãozinho dele mais novinho, que gostam
de brincar juntos. É meu filho. Essas coisas são da cabeça dela, Meretissima. Só!

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- É tudo?

- Sim. - respondi. - É tudo.

E a juíza perguntou se a magistrada do Ministério Público, os juízes eleitos, os advogados tinham


alguma questão a me fazer, mas todos disseram que não, o que me preocupou muito, achando
que é porque eu não percebia nada das leis. Aliás, a dignissima procuradora disse que tinha mais
algumas perguntas a fazer, mas as mesmas eram destinadas não para mim, mas de novo para a
senhora Zuleica Tina Turner, o que a juíza anuiu.

- Obrigada, Meretissima. Na sua primeira intervenção, a senhora Zuleica disse que queria a
guarda definitiva da criança porque este senhor que sempre cuidou da mesma não trabalha, não
tem salário, é um bêbado, um vagabundo e não é o pai biológico, não é o pai verdadeiro. Eu
sinceramente, depois do que este senhor explicou, não consegui ver tais características. No lugar
de um desempregado que não trabalha, vi uma pessoa que formou a senhora, que não tinha
nenhum estudo. No lugar de alguém sem salário, vi uma pessoa que investiu o seu salário na
formação da senhora, até sair da tropa e ter afectação no aparelho do Estado, nas forças armadas.
No lugar de um bêbado e vagabundo, vi hoje a pessoa mais lúcida do mundo que alguma vez tive
o privilégio de conhecer, um homem de bom coração e provavelmente um dos mais importantes
quadros desta República, que não começa e nem termina na forças armadas. No que diz respeito
ao facto de afirmar que este senhor não é o pai biológico, vejo neste senhor um pai muito mais
do que biológico, ora pais biológicos é o que não faltam nesta nossa sociedade, porque toda a
gente sabe fazer filhos, mas cuidar que é bom, nada. Este senhor formou a senhora para que
mesmo em caso dele perder a vida, por algum infortúnio qualquer, por exemplo, a senhora tenha
como sustentar o vosso filho, com formação e emprego condigno. Se a senhora não percebeu a
lição de vida que este senhor quis te dar, é porque a senhora Zuleica tem sérios problemas que
precisa resolver, que podem talvez ser de nível psiquiátrico. Eu não sei o que acontece com as
nossas irmãs marrandzas, meretissima, sobretudo quando entram nesses cursos de instrução
básica militar ou na polícia, mas também com esses instrutores e oficiais superiores que temos,
quinze grávidas somente num curso da polícia, quinze. Isto está mesmo mal. A propósito, peço
que a senhora Zuleica Tina Turner apresente para este tribunal a prova concreta de que este
senhor não é o pai biológico da criança. Pode apresentar?

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- Eu sou a mãe da criança e só eu sei que ele não é o pai biológico, não é o pai verdadeiro. Eu
sou a mãe, o meu instinto de mãe não falha.

- Mas onde está a prova? Aquilo que a senhora sabe não é a prova, muito menos o seu instinto de
mãe. O que me parece é que este senhor registou esta criança, deu um nome e criou a criança até
hoje e a senhora vem dizer que não é filho dele apenas porque é a mãe, mas a senhora acha que
isso faz sentido?

- Mas podem fazer o teste de ADN.

- Quem fazer o teste de ADN? - perguntou a procuradora, que me parecia ser uma pessoa não
somente experiente como também muito inteligente. - Quem fazer o teste de ADN? Eu? Eu não.
Não tenho dinheiro. É muito caro, minha senhora. Também não tenho interesse nenhum nisso,
aqui represento o Estado no seu dever de proteger os menores. É para o tribunal fazer o teste de
ADN? Também não tem dinheiro, como também não é seu trabalho ajudar as partes a
produzirem as provas. Este senhor também, como a senhora mesma disse, é um desempregado,
bêbado, vagabundo e sem salário, que pese embora possa não ter dinheiro, não tem dúvidas de
que é o pai da criança, por isso nem sequer imagina que em algum momento vai fazer um teste
de ADN ao seu filho apenas porque a senhora disse que não é filho dele. A única pessoa que
parece estar interessada em provar que este pobre homem não é o pai biológico da criança é a
senhora, então a senhora é que tem que fazer o teste de ADN para provar que é a mãe da criança,
até porque tem muito dinheiro como disse, emprego, salário, casa própria e um marido que
também tem emprego, bom salário, four by four, mas que durante todo este tempo não sabia que
era o pai biológico da criança, só hoje. Mas mesmo a senhora comprovando com os testes de
ADN que este senhor não é o pai biológico, este senhor já nos mostrou que a senhora não é uma
mãe, nem parece que gerou a criança. É vergonhoso. O ADN deste senhor não está no sangue, no
cabelo, na pele, nas unhas ou em qualquer outro órgão do seu corpo, o ADN deste senhor está no
seu espírito e na sua alma, mas a senhora por ser marrandza do povo como eu não percebeu nem
durante os nove anos que partilharam a mesma cama. Portanto, o que eu peço é que seja feita a
justiça para este senhor. Que lhe sejam conferidos os plenos direitos do exercício do poder
paternal e que lhe seja dada a guarda definitiva do seu filho, isso sim seria uma justiça sã e
saudável.

155
Terminava assim a sessão das alegações finais, ao que a juíza da causa pediu um intervalo, após
o qual todos voltámos a sala para ouvir a decisão do tribunal.

A juíza de direito leu a sentença.

- "Ficou provado que este senhor durante os 12 anos em que viveu com o seu filho, nunca e em
nenhum momento violou o exercício do poder paternal, tendo sempre sido um pai exemplar, uma
espécie muito rara e em vias de extinção. Nos termos da lei, o tribunal decidiu atribuir a guarda
total e completa definitiva ao pai que sempre cuidou da criança desde a nascença, devendo a
senhora Zuleica Tina Turner se responsabilizar pelo pagamento de uma pensão alimentícia
mensal enquanto a criança estiver sobre a guarda deste senhor até completar 18 anos, altura em
que já maior poderá decidir com quem quer viver, com o pai ou com a mãe. Enquanto a criança
estiver sob responsabilidade do pai, a mãe tem o direito de manter contacto com a criança nos
termos e condições previstos na lei. Cumpra-se".

E a douta juíza bateu o martelo, dando por terminada a sessão, ao que todos nós nos retiramos
daquela sala cujo julgamento decorreu à porta fechada para tratar assuntos que somente dizem
respeito a vida privada da família, com o devido respeito pela nossa intimidade.
Foi nesse momento que percebi que a nossa Constituição da República peca por não haver
determinado em nenhum artigo que todo o cidadão tem direito à felicidade. É esse direito que
acabara de me ser dado pelo tribunal. O direito à felicidade. O tribunal de menores acabara de
restituir a minha dignidade como pessoa mesmo que eu não tenha um daqueles four by fours
dupla cabine, topo de gama, último grito, quatro portas e de alta cilindrada que as nossas
marrandzas colectivas gostam maningue. Ser gente é muito mais que isso. Sou um poeta pobre,
bonito e inteligente. E tenho dois filhos bonitos e fofinhos.

***
Era noite quando cheguei em casa, onde encontrei a minha doce e espectacular Zularica Ponta
Fina a minha espera e ainda ávida em saber dos detalhes sobre como tinha corrido o julgamento
da acção de regulação do exercício do poder paternal movida contra mim pela mãe do meu
primeiro filho Zuleica Tina Turner, exigindo a guarda da criança por alegar que eu não era o pai
biológico, o que tornara a minha vida num autêntico inferno.

156
Ponta Fina ficara em casa a cuidar dos dois meninos que naquele momento se encontravam a
dormir, tendo-me dito que o mais grandinho estivera até bem pouco tempo a ensinar o mais
pequenino a balbuciar algumas palavras, o que me deixou verdadeiramente emocionado porque
sempre quis que os dois pudessem crescer juntos como irmãos que são, o mais velho ensinando
ao mais novo, tal como eu cresci com os meus irmãos.

Logo que me viu a entrar, Zularica Ponta Fina correu para me abraçar, ao que não resisti em
deixar cair algumas lágrimas de emoção, que também a contaminaram, pois sabia o quanto o
levantamento de alguma dúvida sobre a paternidade do meu primeiro filho tinha sido para mim
uma brincadeira de muito mau gosto por parte da Zuleica durante o ano inteiro.

- Ganhei a guarda do meu filho.

- O quê?! - reagiu ela. - Como assim?

- Ganhei a guarda do meu filho.

Foi o que eu fui repetindo para ela a chorar com muita dor, a imensa dor de quem acabara de se
libertar de um enorme peso. Sabia que dizendo somente isso para ela não estaria a explicar nada
de concreto ou que ela pudesse perceber, mas teria que recuperar o fôlego para completar para
ela a grande notícia da minha vida. Há quem ache que eu sou um bom comunicador, mas naquele
momento não estava a conseguir me comunicar direito de tanto andar a procura do verbo certo
para um relato justo e fiel sobre o que se passara naquele dia.

Eu disse assim:

- O feitiço virou-se contra os feiticeiros, aqueles dois cowboys from the hell das forças armadas
que andam a querer roubar o meu filho.

E ela:

- Continuo sem perceber.

E eu:

- No lugar de conceder a guarda definitiva para a Zuleica e aquele homem de four by for azul
que ela diz ser o pai biológico e não eu, a juíza apenas decidiu pela confirmação da guarda do

157
meu filho para mim, porque eu sou o pai da criança e nunca violei nada nem nada no exercício
dos meus poderes como pai durante todos estes doze anos em que o menino vive aqui connosco.
Lágrimas de emoção, um gajo afinal chora maningue mano.

- Não chores, homem. - disse a sempre doce e espectacular Zularica Ponta Fina. - Nunca pensei
que fosse ser diferente.

- Nunca na minha vida irei me esquecer das palavras daquela dignissima procuradora quando
disse que ainda que a senhora Zuleica tivesse dito que eu sou um desempregado, vagabundo e
sem dinheiro para poder ter o direito de ficar com a guarda do meu filho o facto é que eu sempre
cuidei do meu filho desde que nasceu até hoje que tem 12 anos de idade, daí que a única pessoa
que poderia estar maluca naquele tribunal era ela que somente hoje descobriu que eu não era o
pai biológico.

- Pois é. Está mais que claro isso.

- Ela não teve medo nem vergonha nenhuma de dizer aos ilustres advogados, digníssima
procuradora e meretissimos juíza e juizes eleitos que eu era um vagabundo, desempregado, sem
dinheiro, sem casa, bêbado, drogado e como se não bastasse que não era o pai biológico do meu
filho, pelo que ela que tinha emprego, salário, dinheiro, casa e tudo e mais alguma coisa era a
pessoa certa para ficar com a guarda do meu filho, até porque agora vivia com o pai biológico,
que também trabalha, tem dinheiro, emprego e four by four azul.

- Jura! Ela disse isso.

- A sério. A procuradora disse para ela apresentar as provas, mas ela começou a dar voltas, ora
dizendo que o institinto dela de mãe não falha, por isso sabia muito bem que o pai biológico era
o homem do four by four azul e não eu, mas a procuradora disse a ela de novo que isso não são
provas...
- Ah wenah!

- E ela já sem saída acabou pedindo um teste de ADN. E a procuradora disse que a única pessoa
interessada em provar que eu não sou pai biológico do meu filho é ela, então não devia pedir o
teste de ADN nem a procuradora que somente está ali em representação do Estado na protecção
dos interesses dos menores, nem ao tribunal que não é parte interessada e nem mesmo a mim que

158
sou um pobre coitado desempregado, vagabundo, sem salário e sem dinheiro, muito menos para
pagar um teste de ADN. A única pessoa interessada no teste é ela, então que faça ela mesma para
saber se ela é mãe, algo tipo não nos incomoda a nós, muito menos ao pai, porque o pai tem
certeza de que é pai por causa das orelhas. Eu amor nunca pesquei patavina desses códigos das
leis que estavam cheios na mesa da juíza, que estava ali com uns dois velhinhos que se chamam
juizes eleitos, mas hoje com aquela procuradora eu consegui perceber bem mesmo tudo o que ela
falou, que ainda que eu não tenha four by four azul, dupla cabine, topo de gama, último grito,
quatro portas e de alta cilindrada eu sou pai do meu filho e não posso não ser.

- De forma alguma. Então essa procuradora é das minhas, tipo pão é pão, queijo é queijo,
fiambre é fiambre, maluco é maluco.

- É verdade. - retorqui. - Hoje eu pelo menos consegui experimentar o verdadeiro sabor da


felicidade, logo ali mesmo no tribunal onde quando você entra até parece que vai acabar parando
na cadeia. Acho que esses doutores das leis deviam escrever na Constituição que todo o cidadão
tem direito à felicidade, incluindo um pobre desgraçado, desempregado e vagabundo como eu.
Nunca e jamais me esquecerei daqueles doutores das leis que souberam fazer a justiça para mim,
mesmo que eu não tenha fardamento e seja um simples civil.

- E a Zuleica?

- Em outros casos, a parte insatisfeita costuma recorrer da sentença, mas do jeito que ela saiu
cabisbaixa, não acredito que ela vá seguir tal caminho. Na verdade, como mãe do meu filho, eu
não lhe desejo nenhum mal, desejo que ela seja feliz com o homem do four by four azul ou com
outro homem com quem ela quiser, mas não pode nem deve dizer nunca que eu não sou pai do
meu filho.

- Penso que ela tem o direito de manter o contacto com a criança sempre que ela quiser...
- Sempre que ela quiser não, mas nos termos e condições que serão ainda definidos dentro da lei.
- Não tenho muita experiência como mãe, mas acho que a Zuleica devia se respeitar mais como
mãe, não sei o que devia fazer, acho que vai ter que sentar e reflectir muito. Perseguir alguém
durante um ano inteiro a dizer que quer a guarda da criança porque não é pai biológico para
depois chegar ao tribunal e dizer que quem tem que provar que não é pai biológico é o próprio

159
pai é mesmo uma grande sacanagem, qualquer pessoa que olha para o teu filho percebe logo que
é teu filho pelas orelhas, não precisa de nenhum teste para isso.

- Falta agora arranjar uns ninjas para vir roubar meu ADN para levar a uma clínica ou um
laboratório qualquer para poder comprovar que o mesmo não é equivalente ao ADN do meu
filho, que tem umas orelhas que parecem antenas parabólicas como as minhas.

- Roubar o teu ADN? Para usar aonde? Em que tribunal? Para provar alguma coisa é preciso
roubar? A obtenção de uma prova não pode ser com recurso a um meio ilegal, roubar é crime...
vão lhe prender, acabar na cadeia.

- Aprendeste aonde isso você também?

- Nos filmes.

- Só pode.

- Mesmo se conseguir roubar o teu ADN, depois vai ter que falsificar os resultados para ela
mesma porque os mesmos vão dizer aquilo que as tuas orelhas e as orelhas do teu filho dizem.
Eram gargalhadas de partir os pulmões e as omoplatas, um sinal inequívoco de como estávamos
felizes assim mesmo, desempregados, sem salário, sem dinheiro, sem four by four, sem
fardamento e nem nada, mas felizes.

Naquele momento, acordou o mais novinho, ao que tivemos que fechar as nossas bocas para
contermos as nossas gargalhadas. O menino balbuciou algumas palavras que eu mesmo consegui
perceber que ele estava dizer que quer leite. Foi assim que eu percebi que o menino mais velho
estava mesmo a ensinar o mais novo a falar. Com a decisão do tribunal, agora tinha mais certeza
que de facto os dois meninos haveriam sempre de crescer juntos, tal como eu e os meus irmãos
que crescemos sempre juntos, um ensinando outro, o que me permitiu comprovar que o método
de transmissão de conhecimentos de irmão para irmão é um método verdadeiramente infalível.
Na pobreza ou na riqueza, irmão é sempre irmão.

***

160
Desde que testemunhara comigo as tantas bofetadas que foram dadas ao homem do four by four
azul por um daqueles agentes da polícia que não costumam ter muita paciência com os suspeitos
nas suas diligências periciais naquele posto policial, justamente diante daquela nossa marrandza
colectiva, o mano Severino, meu amigo e confrade de longas jornadas, sempre fez questão de me
procurar para me convidar para irmos beber um copo a fim de nos relembrarmos de como aquilo
que tinha começado como sendo uma história do rapto do meu filho acabara por se transformar
numa inesperada operação de desmantelamento das incursões do caçador de marrandzas na nossa
jurisdição.
Embora fossem assim esses nossos encontros fraternos, desta vez o mano Severino vinha não
somente como comandante do patrulhamento comunitário contra os raptos mas também
investido de das funções de comissário diplomático.

- Hoje eu venho como comissário diplomático.

- Comissário diplomático?

- Sim. - respondeu. - Comissário diplomático.

- Não estás a ficar grosso antes mesmo de começarmos a beber?

- Não. Eu venho como comissário diplomático da senhora dona Zuleica Tina Turner, a mulher
daquele homem do four by four azul que aquele polícia impaciente queria matar de chapadas ali
na esquadra por suspeita de rapto.

- Não vejo essa senhora há mais de três meses. - respondi. - A última vez que a vi foi quando
saiu enxovalhada do tribunal de menores, onde perdeu definitivamente a guarda do nosso filho
que ela e aquele bandido do four by four queriam, alegando que eu não sou o pai biológico.

- É por isso mesmo que hoje venho como comissário diplomático dela.

- Mudaste de equipa?

- Nada. - respondeu. - Cruzei-me por acaso com ela no banco.

- Pois. Lá vem problema...

- Não. Não sei. Eu sou apenas comissão diplomático.

161
- O que ela quer?

- Ela me pediu para vir te dizer que ela está a pedir um encontro contigo.

- Lá vem o vento de novo. Talvez já arranjou maneira de provar que eu não sou o pai biológico...

- Não é isso. Depois daquela porrada que lhe deu a procuradora, não vai voltar mais a tocar nesse
assunto.
- Achas?

- Acho.

- Está bem, mano Severino. - anui. -Mas deixa-me ir embora, só de falares nessa aí até cerveja
que anima começa a perder gosto.

Fui abandonando aquele bar empavidamente sorumbático, a pensar que talvez ela fora ler os
códigos das leis e outros livros grandes desses doutores jurídicos para poder enfrentar novamente
os tribunais. Será que acabou descobrindo que essa cena de fardamento só assusta os mais fracos,
mas basta tirar fardamento lá dentro da cabeça não tem nada, o que resta é só corpo de
marrandza do povo só? Será? Talvez. Nunca se sabe.

Fui matutando todas essas minhas asneiras próprias de um poeta vagabundo das ruas
desempregadas das marrandzas até que cheguei em casa ainda impavidamente sorumbático a dar
de caras com a minha doce e espectacular Zularica Ponta Fina que logo me disse que eu estava
com a cara de quem acabara de se encontrar com uma antípoda que ela já devia imaginar quem
poderia ser.

- É verdade. - respondi.

E ela:

- A Zuleica Tina Tuner?

- Não. - respondi. - O comissário diplomático.

- Comissário diplomático?

162
- Sim. O mano Severino é o comissário diplomático que a ZTT arranjou para vir ter comigo para
me pedir um encontro com ela.

- O mano Severino já mudou de lado?

- Nada. Ele encontrou a ela por acaso no banco e pediu que me fizesse chegar esse pedido.

- Hum, percebi.

- Achas que devo aceitar?

- Sim. - respondeu a Zularica, sempre diligente. - Claro que sim.

- Não achas que ela quer me raptar para eu ir fazer o ADN?

- Não, nada disso. Essa batalha ela já perdeu no tribunal, no fundo no fundo já se deu conta que
essa cena de andar a dizer que não és pai biológico foi um tiro que lhe saiu pela culatra. Nunca vi
uma militar que não percebe a arte da guerra, talvez nunca leu Sun Tsu.

- Heish, não precisas ir longe. Desde quando as marrandzas do povo lêem Sun Tsu. Essas só
sabem trepar four by fours com instrutores e oficiais superiores da polícia e das forças armadas.

- Não fale assim. É mãe do teu filho.

- Afinal ela está a ouvir?

- Eu não gosto. É mulher como eu.

- Está bem, minha marrandza.

- Eu marrandza?

- Afinal não disseste que era mulher como tu.

- Há mulheres marrandzas, mulheres não marrandzas e mulheres anti-marrandzas.

- Tu és?

- Escolhe.

163
- As mulheres começam como não marrandzas e terminam como marrandzas, depois viram anti-
marrandzas quando já estão a ficar velhas, a perder o mercado dos homens de four by four.

- Mas você é um poeta pobre, bonito e inteligente, sabe!.

- Eu te amo.

- Eu também de amo.

- Me abraça.

Dei-lhe um abraço.

Foi nesse instante que o mais novo acordou a chorar.

- Leite. Leite. Leite.

Tinha mesmo começado a falar.

Parámos com tudo.

- E quando a ZTT quer se reunir contigo?

- Na próxima semana.

- Vai com o mano Severino.

- Foi nisso que eu pensei.

- É comissário diplomático!

***
Tentei distrair a minha mente ao longo de toda aquela semana jogando damas e cartas com os
amigos, mas jamais consegui deixar de imaginar uma série de cenários que pudessem me indicar
os motivos que terão levado a senhora dona marrandza Zuleica Tina Turner a me contactar
novamente depois de haverem sido goradas as suas expectativas de me retirar a guarda do nosso
filho com a alegação de que eu não era o pai biológico do menino mas sim o seu marido, o

164
homem do famoso four by four azul, o que lhe valeu aquele enxovalhamento jamais visto na
história da nossa justiça. Foi com essas dores de cabeça monumentais causadas por tantos
pensamentos à mistura que cheguei ao local do encontro combinado na companhia do meu bom
amigo e confrade Severino, que vinha investido de plenos poderes de comissário diplomático.

Notei que era mesmo um restaurante muito luxuoso, ao que me pareceu que a marrandza tinha
mesmo elevado os seus níveis de exigência comparativamente aos tempos em que contentava-se
com verduras na nossa casa, apesar de sempre ter reclamado daquele regime de couve, matapa,
nyangana e frango, peixe e feijão devidamente cronometrado para os dias exactos da semana
pela gestora sénior da nossa cozinha doméstica de acordo com o pouco que tínhamos, quando
tivéssemos sempre foi igual para todos.

Não que eu não soubesse me comportar como um verdadeiro gentleman porque um jornalista
formado como eu sabe deixar de ser um vagabundo das ruas e becos para se comportar à altura,
não sei o mano Severino, mas agora que lhe tinham sido confiadas as tarefas de comissário
diplomático saberia ser diplomático e deixar aqueles seus hábitos selvagens de andar a abrir
garrafas de cerveja com os dentes quando estávamos nas barracas da comunidade bairrista.

A nossa marrandza já lá tinha chegado há muito tempo, afinal estava mesmo sentada numa mesa
ao lado da piscina vestida de fato banho e uma pequena capulana meio transparente, mas que
logo notei que servia para esconder a mancha congénita que ela tinha na bunda esquerda,
igualzinha a que eu tenho no meu rosto. Lembrei-me que nós no passado tínhamos sido uma
dupla das manchas da paz e do amor, o que me deixou meio nostálgico, mas logo fiz desaparecer
a imagem nostálgica da minha mente para não me deixar escorregar nas suas armadilhas.

- Boa tarde, Zuleica. - cumprimentei-a primeiro. - Tudo bem?

- Boa tarde, Major General Henry Miller. - respondeu-me, deixando transparecer um sorrizinho
meio cínico, como se estivesse a gozar comigo.

Foi a primeira vez que lhe ouvi a me chamar assim como Major General Henry Miller, não tinha
imaginado que ela soubesse que eu era rapper também, um underground das ruas. Fingi como se
não tivesse notado a diferença, mas soou-me muito bem uma sargento das forças armadas saudar

165
um major general do hip hop moz cem por cento underground, ainda que aquilo tivesse sido
simples gozação de quem lamenta que um civil como eu ostentasse uma patente tão elevada.

- Boa tarde Dr. Severino e muito obrigada pela tua paciência.

- Boa tarde, Zuleica, minha estudante mais querida. - respondeu. - Não tem nada que agradecer.
Sou o comissário diplomático, ao seu dispor.

Logo notei que o mano Severino estava a simular alguns salamaleques para ver se logo logo a
marrandza lhe indicava a direcção do bar, uma vez que gostava muito de champanhes, vinhos e
uísques caros. Foi o que aconteceu, o que me deu logo a entender que afinal não se encontraram
num banco por acaso coisíssima nenhuma, já os dois tinham estado ali. Mas é claro, como foi
que eu não tinha pensado nisso, o mano Severino era docente de relações internacionais no
mesmo instituto onde Zuleica estudava relações internacionais.

- O bar já conheces, Docente. - disse ela. - É só ir lá pedir o que quiser, depois eu acerto as
contas.

Merda do mano Severino. Devia ter logo entendido tudo, afinal sou um poeta pobre, bonito e
inteligente. O mano Severino estava comendo a nossa marrandza colectiva também, sendo ele o
seu principal informador sobre tudo o que eu pensava a seu respeito, por isso não se fartava de ir
me pegar em casa para irmos beber uns copos sempre e sempre.

Puxei a cadeira e sentei, o que o fiz de forma tão cerimoniosa e solene que diante dela foi como
se ainda estivessemos no tribunal de menores a nos batermos pela guarda do nosso filho,
misturada com a guerra da paternidade com o homem de four by four azul.

E ela disse:

- O Dr. Severino é meu Docente. Ele é o supervisor da minha tese de licenciatura.

- Docente, docente, docente do quê? Onde já se viu um docente universitário com 12a Classe?
Ainda por cima um burro! - perguntei, mas não quis me ater a isso. - Olha, Zuleica. Penso que
não me chamaste aqui para falar do teu docente...

- Claro que não.

166
- Então vamos directo ao ponto.

- Tenha calma.

- Temos o assunto dos termos e condições de poderes manter contacto com o nosso filho, esse é
um direito teu que ficou claro na sentença do tribunal na acção que meteste contra mim.

- Pois, eu queria te pedir perdão.

- Porquê?

- Por tudo o que te fiz passar.

- Estás perdoada. E..

- Mas o meu principal assunto mesmo tem a ver com as tuas publicações nas redes sociais. Eu
sei, tu és um escritor, mas gostaria que não escrevesses sobre mim.

- Estou muito agradecido por me leres, mas permita-me te informar que eu não escrevo sobre ti.
Escrevo sobre mim mesmo. É o meu romance autobiográfico.

- Pois, mas também falas de mim.

- É isso mesmo, agora falaste bem. Também escrevo sobre ti, obviamente porque vivemos juntos
pelo menos nove anos. Tivemos um filho juntos e por isso estamos ligados, não saberia escrever
sobre mim omitindo os mais de nove anos que vivemos juntos, tanto mais que até agora mesmo
que estamos a falar estamos praticamente a dar a continuidade da história.

- Estou a pedir, em todo lado as pessoas me abordam, até mesmo na família, na escola, no
serviço, por favor, em todo o lado, como se eu fosse uma prostituta qualquer. Não escreve sobre
mim. Estou a pedir.

- Tu escreverias uma tua biografia sem falar sobre mim, tendo em conta os nove anos que
vivemos juntos?

- Eu não sou escritora. O que eu estou a pedir é que não faças isso comigo, eu sei que tu és um
poeta pobre, bonito e inteligente, por favor, toda a gente agora sabe que eu tenho uma mancha
reluzente na minha bunda esquerda, será justo isso mesmo? Me despires em público assim?

167
- É tudo ficção, tu nem existes. És apenas uma personagem fictícia que eu criei para poder contar
a minha história, quem haveria de querer saber da minha história se não fosse o desejo de verem
a mancha reluzente na tua bunda ao longo da evolução dos capítulos?

- Talvez podemos negociar.

- Negociar?

- Sim. Negociar. Não queres ver mais a minha mancha na bunda tal como sempre gostaste de ver
desde há muito tempo? Até já paguei um quarto aqui, com ar condicionado e plasma…

- Nem vale a pena. A tua bunda foi desgastada pelos instrutores e oficiais superiores do exército
e esse teu marido four by four azul que gosta de restos também a ponto de levar porrada nas
celas da esquadra não serve para me fazer deixar de escrever e publicar o meu romance, a malta
está a gramar. Estás a ficar uma marrandza velha, o teu tempo bazou. Novas marrandzas estão
entrando no mercado, mais novinhas que tu.

- Então vou te pagar um bom dinheiro para parares de escrever sobre mim, eu sei que tu precisas.

- Todo o desgraçado, desempregado, vagabundo, bêbado e drogado como eu precisa de dinheiro,


claro. Mas tu não tens dinheiro que pague o meu romance autobiográfico, o livro tem que sair.

- Mas quanto vais ganhar com o livro? Dê-me uma estimativa, eu tenho muito dinheiro
guardado.

- Não escrevo por dinheiro, escrevo para não me esquecer, mas também para não enlouquecer.
Posso até abrir uma hipótese para que possas mesmo conseguir me comprar para eu parar de
escrever o meu romance autobiográfico, mas primeiro terias antes que me pagar tudo o que me
deves.

- O que te devo?

- Sim. – respondi. - O que me deves.

- A famosa pensão alimentícia daquela juíza vagabunda daquele tribunal de merda?

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- Juiza vagabunda daquele tribunal de merda, hum, okay, percebi: pensavas que a juíza ia decidir
a teu favor quando meteste a acção judicial de regulação do exercício do poder paternal contra
mim? Pois você continua uma burra mesmo. O dinheiro não compra tudo. - disse eu,
sorumbaticamente espaventado, afinal de contas a marrandza das forças armadas também tinha
tentado comprar a juíza. - Isso da pensão é coisa da sentença, não tem nada a ver com o que eu
disse que me deves ao longo da minha intervenção no julgamento. Estavas tão nervosa que nem
te lembras, foste realmente enxovalhada pela dignissima magistrada do Ministério Público.

- Está bem, podes me fazer lembrar o que andaste ali a dizer que eu te devia. Seja rápido porque
eu sei que é dinheiro que tu queres, eu vou pagar...

- Não tem problema. O que eu mais gosto de fazer é fazer as pessoas se lembrarem, até porque
escrevo o meu romance autobiográfico para não me esquecer de nada, recordar é viver. O que eu
disse naquele julgamento e que ficou registado nos autos foi que eu mesmo me encarreguei pelos
teus estudos, garanti a tua mesada para que nada te faltasse, bem como te ensinei tudo o que
tinha que ser ensinado, nona classe, décima classe, depois a escola de jornalismo, primeiro,
segundo e terceiro ano, depois a tropa, onde sempre cuidei de todas as tuas necessidades lá no
quartel da Escola de Fuzileiros Navais, na Catembe. Quando terminaste a instrução básica
militar, trataste de me informar que já não estávamos juntos, que tinhas arranjado um homem de
four by four azul que cuidava melhor de ti, porque eu não sabia cuidar de ti. Foste afecta ao
departamento de imprensa militar como sargento, essa patente com salário de 30 mil meticais
mensais é atribuída aos militares que têm nível médio técnico-profissional, o que tu nunca terias
tido se não tivesses sido instruída por mim até concluir a escola de jornalismo, até o trabalho de
defesa eu é que te apoiei, como minha esposa, porque os maridos devem ajudar as esposas e as
esposas ajudar os maridos. Lembras-te?

- Tu ainda não superaste, afinal?

- Não se trata de superar. Trata-se de negócios. Afinal não é de negócios que estamos a falar?

- Mas isso não é justo, afinal era para eu pagar?

- Claro que não era. Mas agora é. Tudo depende das circunstâncias.

- Mas quanto haveria de ser mais ou menos?

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- Quanto receberia um professor na altura? Uns 15.000 meticais. Eu sozinho receberia uns
105.000 meticais por mês pelas sete disciplinas em que te dava aulas, vezes doze meses seriam já
uns 1.260.000 meticais, vezes sete anos seria uns 8.860.000 meticais, segundo os cálculos do
Intelectual Juvêncio e do alfaiate Mingaldo, que também me falaram dos 840.000,00 meticais
que te dei só de mesada durante os cerca de oito a nove anos em que vivemos juntos.

- Tudo isso?!!! – exclamou, sorumbaticamente espaventada.

- Não tinhas imaginado, né? As marrandzas não costumam ter muita imaginação quando
descobrem um um novo caçador de marrandzas ou que pensa que é caçador quando na verdade
não passa de uma presa fácil. Logo que descobriste o homem do four by four azul, entraste na
tropa como minha esposa e saíste de lá como esposa dele, até mesmo o nosso filho quiseste
meter na bolada, humilhando-me tanto a ponto de defender em perante aos meretissimos doutos
juízes, aos digníssimos procuradores e ilustres advogados que eu não era o pai dele biológico. Tu
não prestas. És uma merda, da pior espécie.

- Eu já pedi perdão, afinal tuas coisas não passam? Eu estou a ver que vou perder emprego se não
parares de escrever sobre mim.

- Lá no gabinete de imprensa do Estado Maior General das Forças Armadas? Porquê? Por causa
do meu romance autobiográfico? Duvido muito. Tenho duvidas que os militares lêem, em regra
geral pessoas que gostam de fardamento não gostam de livros, salvo raríssimas excepções.

- Mas esse dinheiro é muito, não posso conseguir...

- Afinal não disseste que ias me pagar, porque guardaste muito dinheiro? Vai buscar todo ele, irei
ver se chega. Eu apenas te cobrei o que me deves e tu já andas aí a choramingar, afinal não
disseste que eu era um pobre, vagabundo, desempregado, desgraçado sem salário lá no tribunal,
humilhando-me diante daqueles juízes, procuradores e advogados, não disseste que eu não tinha
nada para sustentar o meu filho, que tu e o teu marido é que tinham capacidade financeira,
empregos e four by fours? Agora já não tens nem sequer um tostão para me pagares o que me
deves, quanto muito para eu deixar de escrever o meu romance autobiográfico.

- Eu então vou te processar por causa daquilo que andas a escrever.

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- Todos os burros do governo quando não conseguem comprar um jornalista para abandonar uma
certa linha investigativa ameaçam com processo, mas achas mesmo que eu tenho medo de
processo? Logo vindo de uma marrandza burra como tu que não percebe nada de leis! Tu só
podes usar o que melhor sabes usar, até porque foste lá djimar para isso. Dispara logo, como
fazem os esquadrões da morte. Mas acerta-me na cabeça mesmo e não te esqueças que cabeça de
poeta cortada não dói, mas dá dores de cabeça ao governo. Se é que lá na tua tropa dele os
instrutores te ensinaram mesmo a disparar na carreira de tiro ou então te deixaram passar porque
logo viram que não passavas de uma marrandza de merda que havia de facilitar.

Logo que viu que estava a puxar a conversa para a direcção errada, Zuleica Tina Turner decidiu
mudar de estratégia, tendo ajoelhado no chão para apelar à misericórdia, marimbando-se para
aquela gente que andava por ali a curtir a piscina, tendo juntado as mãos a minha frente como
quem está a rezar:

- Eu errei, confesso que estou arrependida, mas estou a pedir, por tudo o que é mais sagrado,
estou a pedir não publicar mais nada a falar de mim no teu romance autobiográfico. Estou a
pedir, por favor, por tudo que é mais sagrado.

E eu disse:

- Um romance autobiográfico é uma história de ficção baseada em factos reais ou imaginários da


vida do autor. Percebeste? Tu aqui não passas de uma personagem fictícia, um mero boneco.
Mas eu tenho uma proposta que talvez possa me fazer deixar de escrever sobre ti.

- Diz lá, por favor. Qualquer coisa, seja o que for, eu irei fazer.

Tinha perdido tudo, já não tinha bunda para me oferecer, nem dinheiro dela chegava para nada,
nem misericórdia nem nada, estava feita uma merda mesmo, como quando estou na pia gosto
muito de olhar para o céu e as estrelas, lá em baixo da pia só há merda, a mesma merda para a
qual eu estava a olhar neste momento, a merda a suplicar.

- Eu tenho um trabalho para ti.

- Diga-me que eu faço.

- É pegar ou largar.

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- Eu faço.

- Sabes o que é um agente duplo? No teu caso seria uma agente dupla. Sabes o que é?

- Não sei, mas posso aprender.

- Tu trabalhas no gabinete da imprensa do Estado Maior General das Forças Armadas. É lá onde
eu quero que trabalhes para mim. Enquanto finges que trabalhas ali, tambem aproveitas e
trabalha para mim recolhendo informações. Informações sobre todas as mulheres militares que
andam com os instrutores e oficiais superiores, tal como aquelas 15 mulheres que foram
engravidadas pelos instrutores no curso de instrução básica da polícia.

- Esse trabalho eu não posso fazer, é perigoso. Isso é traição à Pátria.

- Não foste tu que entraste na tropa como minha esposa e saíste como esposa do general do four
by four azul? Tu em traição és experiente, não vai te custa nada trair, até porque nem estarás a
trair a Pátria coisíssima nenhuma. Muito pelo contrário, estarás a entregar os casos concretos de
corrupção sexual no seio das forças armadas, o que seria um belíssimo trabalho à Nação.
Somente assim poderei parar de escrever sobre ti nesta minha autobiografia. Aceitas trabalhar
para mim?

- Vão me executar, não posso.

- Então não há negócio. Tens medo de morrer, afinal não juraste a bandeira? Denunciar a
corrupção sexual nas forças armadas também é servir a Pátria. Não havendo negócio, portanto
cada um continua a fazer o que melhor sabe fazer.

- Dá-me um tempo, eu vou pensar!

- Não tem problema. Podes ir pensando, enquanto isso eu vou escrevendo o meu romance
autobiográfico, que as pessoas gostam muito de ler no meu Facebook, onde também vi as tuas
tias e as tuas irmãs a me suplicar em para parar de escrever sobre ti, mal sabem que escrever
sobre mim é escrever sobre ti e escrever sobre ti é escrever sobre mim, porque tu és a minha
mancha gêmea, que somente nós os dois sabemos muito bem o que nos liga tão profundamente
para além da mancha, sou teu mentor, o único instrutor que fez amor de verdade contigo até
gerar um filho, por isso que me temes tanto, mas tanto mesmo, que até tens vontade de me ver

172
desaparecer da face da terra, até mesmo ao tribunal foste dizer que eu não sou pai biológico, logo
consegui notar que só poderias ter fortes razões para agir assim, tu me queres morto.

Nesse momento, já tinha dito tudo o que tinha para lhe dizer e já estava a apresentar as minhas
cartas de retirada, deixando a sargento Zuleica Tina Turner das forças armadas na merda que ela
merece. Chamo-me Major General Henry Miller, sou um rapper das ruas e becos dos bairros da
comunidade suburbana. Sou um poeta pobre, bonito e inteligente.

Fui-me embora, deixando ali o mano Severino, que afinal era docente dela de relações
internacionais e supervisor da sua tese de licenciatura, que também ele era uma merda que
transformara em seu modus operandi o pensamento maquiavélico segundo o qual em relações
internacionais a moral não conta, o que conta são os interesses. Pode até ser, mas também aqui
no jornalismo investigativo, os interesses não contam, o que conta é a moral, por isso os seus
dias estavam contados, haveríamos de trabalhar no sentido de desocultar muitos segredos.

Portanto, uma discente que paga copos a um docente num restaurante com piscina, pensão e
quartos já há muito tempo que lhe tinha dado as pernas para garantir a sua licenciatura. O que
esta nossa marrandza colectiva das forças armadas não sabe, o que nunca saberá, porque está
longe sequer de imaginar, é que ela sempre foi uma agente dupla. Portanto, não preciso da
resposta dela para ela estar ao meu serviço. Na verdade, ela sempre esteve. Foi com ela que eu
descobri como os instrutores e os oficiais superiores das forças armadas varrem as nossas filhas,
as nossas irmãs, as nossas namoradas e as nossas esposas em troca de um emprego medíocre nas
nossas forças de defesa e segurança. Isso mesmo, emprego medíocre porque o trabalho delas lá é
só fornicar com os instrutores e oficiais superiores!

***
SÓ PODIA SER A MINHA MANCHA GÊMEA

Por Armando Nenane*

Ter chegado em casa e encontrar a Sara Ponta Fina a falar com a sua irmã Zularica Ponta Fina
sobre as suas novas acções de sucesso em virtude de haver conseguido atravessar um longo

173
processo de superação dos traumas causados pela doença da pele que teimava em se alastrar por
outras partes do corpo foi para mim uma enorme satisfação, o que funcionou como uma espécie
de catalizador face aos novos desenvolvimentos do dossier “Zuleica”, a quem acabara de lhe
propor um trabalho como agente dupla ao meu serviço.

Embora a Zularica pudesse estar ansiosa em saber como tinha sido o meu encontro com a
Zuleica, não haveria de suspender o ânimo com que estava a sua irmã Sara, contando as
novidades de forma tão empolgada. O dossier “Zuleica” acabou ficando para depois.

A Sara Ponta Fina saltou para os meus braços assim que deu de caras comigo.

- Meu queridíssimo cunhado Major General Henry Miller, só te peço um abraço.

Logo correspondi. Também fiquei ainda mais animado.

- Minha queridíssima Sara Ponta Fina, oh quantas saudades!

- E eu então! Até tenho novidades. Entrei para o curso de “Economia”.

- Uau! – reagi com espanto, positivamente impressionado. – Mas que belíssima notícia!!!

Para uma jovem moça que praticamente tinha desistido de tudo quando deu conta que havia
contraído aquela doença da pele, recuperar os seus sonhos a ponto de ingressar na universiade
para poder estudar “Economia”, como desde quando ainda era mais novinha sempre foi o seu
sonho, foi para mim um momento altamente marcante, logo eu que por aqueles dias andava a
sofrer maningue embates que me punham a chorar lágrimas de sangue, agora era a minha vez de
voltar a sentir um gostinho daquilo a que se convencionou chamar “felicidade”.

Logo eu que abandonara o curso de “Direito” quando estava já a frequentar o segundo ano já lá
vai mais de uma década, estava agora disposto também a encarar a vida de frente. Ora, se podia
fazer palestras motivacionais para outras pessoas poderem superar os seus desafios, obstáculos,
dificuldades, barreiras e constrangimentos, não vejo como aquela notícia que acabara de me ser
dada pela Sara Ponta Fina não poderia ter sido uma palestra motivacional para mim.

- Também tenho que seguir o mesmo caminho. Tenho que voltar para a “Faculdade de Direito”.
Não imaginas o quanto acabas de me dar um enorme incentivo.

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- Na verdade, foi o que eu quis te dizer quando vim te dar esta notícia. – disse ela. - Talvez se
não tivesse sido graças a ti, eu nunca teria conseguido tal proeza. Entrei na “Economia”.

- Grande Winnie Harlow, aliás, grande Sara Ponta Fina.

- Grande Lee Thomas, aliás, grande Major General Henry Miller.

Ora, as histórias de superação do jornalista televisivo norte-americano Lee Thomas e da modelo


canadiana Winnie Harlow tinham nos dado as direcções necessárias que nos conduziriam a
escrevermos o meu romance autobiográfico sobre a história da minha mancha congénita, que é
nada mais nada menos que a minha própria história, sendo também a história de muitas pessoas
que sofrem as bairreiras de pertencerem ao grupo das chamadas pessoas “diferentes” ou
“especiais”, mas também, e porque não, a história de uma geração.

- Nunca imaginei que um dia fosse conhecer um escritor de verdade, desde que iniciamos com as
nossas publicações no teu Facebook, não há dia em que eu não tenha me sentido identificada
com todas as emoções que somente quem vive uma situação igual conhece.

- Estamos cada vez mais perto do fim, Sara. – disse eu a ela, estando muito orgulhoso comigo
mesmo porque de facto a Sara tinha mudado muito de atitude. – Estamos cada vez mais perto do
fim. Mas qual é o teu balanço? O que gostarias de dizer para a sociedade?

- Afinal eu também posso falar na história?

- Claro. Isto é um trabalho de equipa, até porque não faria nenhum sentido se tu mesma que és
portadora de vitiligo não pudesses dizer o que gostarias à sociedade. – desafiei-a, sou mesmo um
agitador, mas é preciso saber ouvir também – Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje.

E a Sara Ponta Fina, que também é uma rapper underground como eu, aceitou o desafio.

- Está bem. O que eu gostaria de dizer para a sociedade em geral é que o Major General Henry
Miller é uma pessoa muito pobre materialmente, mas muito rica humanamente. Foi ele que me
deu junto com a minha irmã Zularica Ponta Fina um sobrinho muito bonito, que tem um
irmãozinho mais velho muito bonitinho, gordinho e fofinho, que ainda que não sejam filhos do
mesmo ventre, são irmãos que se amam muito e que mereciam crescer juntos e unidos, por isso
eu também não acho justo que a senhora dona Zuleica Tina Turner, que não a conheço

175
pessoalmente, ande a inventar artimanhas tão baixas somente com o intuito de ganhar a guarda
do filho, bem como transformá-lo em filho de quem nem sequer é pai, somente por causa da sua
ambição e do seu interesse individual, bem como da sua ganância e da sua tamanha ingratidão. A
senhora dona Zuleica, no lugar de se conformar com a decisão do tribunal, bem como discutir
questões inerentes a pensão alimentícia fixada na sentença, ela está mais preocupada em
desencadear estratégias com vista a impedir o Major General de continuar a escrever o seu
romance autobiográfico inspirado na história da sua mancha congénita, que é nada mais nada
menos que a sua própria história, bem como a história das suas gentes, dos lugares, dos espaços,
dos medos, dos amores, da hipocrisia, da merda, da porcaria, da sujidade e da desgraça em que se
tornou esta nossa sociedade violenta. O que eu tenho a dizer a senhora Zuleica é que nós estamos
aqui a acompanhar tudo o que ela tem nos dado a testemunhar, as ameaças, as perseguições, as
intimidações e as chantagens. Estamos aqui e não somos poucos. Somos maningue. Estamos aqui
todos reunidos nesta magna assembleia-geral com pessoas de diferentes tipos, sem distinção de
raça, sexo, religião, etnia, origem, estatuto social, profissão, cor política e orientação sexual, a
fim de juntos reescrevermos a história da humanidade. A história da mancha congénita é uma
história de amores e desamores, ilusões e desilusões, deuses e papões, encantos e desencantos. É
sim a história da exclusão social das minorias, que ainda que sejamos considerados pessoas
“diferentes” ou “especiais”, também somos parte integrante desta nossa sociedade. Somos
pessoas com o sonhos, cujos quais merecem respeito e consideração. O Major General Henry
Miller somente estaria livre das armadilhas ardilosas das nossas marrandzas colectivas se não
fizesse parte desta nossa sociedade tão imunda, tão degradada e tão dilarerada, onde afinal de
contas as marrandzas não são somente as Zuleicas e companhia limitada. A violência das
marrandzas representa todas as vezes em que somos violentados pelo sistema excludente
somente por sermos “diferentes” ou “especiais”. Diria até que as marrandzas são apenas abutres,
aquelas aves de rapina que fazem dos restos dos animais que não foram elas que mataram o seu
próprio alimento. Não foram as marrandzas que nos mataram, mas sim o sistema de exclusão
social. As marrandzas só vieram para fazer abutragem. Vale a pena eu que as minhas manchas
começaram agora. Henry Miller nasceu com uma mancha congénita no rosto, que não tem cura e
por isso sofreu a estigmatização durante toda a sua vida, tornando-se assim numa espécie de
presa fácil das nossas marrandzas colectivas, que são agentes do sistema opressor. Se até mesmo
aquele bandido de four by four azul, dupla cabine, quatro portas, topo de gama, último grito e de

176
alta cilindrada, que pensava que fosse um caçador de marrandzas experiente, acabou ele mesmo
virando a presa, quem seria o Henry Miller para escapar dessa violência que consegue se
camufluar muito bem no amor. Estando nas mãos de uma marrandza que também pertence aos
instrutores e oficiais seniores das forças armadas, não pode ser chamado caçador de marrandzas,
porque ele mesmo é uma presa que caiu na arrapuca de uma marrandza experiente.

Foi assim que Sara Ponta Fina terminou o seu discurso, deixando a minha doce e espectacular
Zularica Ponta Fina impávida. Zularica ainda permaneceu ali boquiaberta, a olhar para a
irmãzinha, que não era mais uma irmãzinha, mas sim uma irmãzona. Ela nunca tinha imaginado
como as nossas conversas sobre os diversos temas da sociedade que vão surgindo ao longo das
histórias que alimentam o meu romance autobiográfico teriam sido suficientes para transformar a
sua irmã Sara não somente numa pessoa que consegue se aguentar a si própria, mas também
numa verdadeira activista disposta a contribuir para a transformação social da nossa sociedade.

A Zularica abraçou a sua irmã Sara ciente de que tinha cumprido com a sua missão. Para além de
ser nossa futura economista, a Sara Ponta Fina mostrou ser uma rapper underground com muito
mais atitude e com um futuro promissor como activista de causas sociais.

Para não me deixar levar pelo clima instalado entre as irmãs Ponta Fina, já que também tenho
esse problema de passar a vida a chorar por tudo e mais alguma coisa, decidi ir me juntar à
minha criançada, que se encontrava a brincar na varanda. O mais grandinho, a quem eu agora
chamava “Professor”, estava sempre a ensinar qualquer coisinha ao mais pequenino. O
“Professor” lembra-me o meu falecido irmão Xerife, o maior génio de todos os tempos.

Mas não levou muito tempo até que a sempre diligente Zularica gritasse lá do fundo:

- Amor, o que queria a Zuleica Tina Turner?

Estávamos assim de volta ao “dossier Zuleica”.

Eu respondi:

- Ela queria negociar.

- Negociar o quê?

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- Quer que eu deixe de escrever o meu romance autobiográfico.

- Porquê já agora?

- Ela diz que tem medo de perder o emprego.

- Porquê?

- Por causa das nossas publicações no Facebook.

- Não é possível. – atirou a Sara Ponta Finta. – Isto é ficção!

- Mas como é possível escrever sobre ti sem falar sobre ela enquanto viveu contigo nove anos?

- Foi o que eu lhe perguntei também. Para além de que ela está sempre a dar motivo.

- Mas qual é o negócio que ela propôs mesmo?

E esta, agora?

É claro que não podia dizer para as irmãs Ponta Fina que a Zuleica Tina Turner me propôs o
negócio da bunda, que ela queria me mostrar no quarto que ela tinha alugado na pensão, a fim de
me corromper sexualmente para eu abandonar as minhas publicações nesta nossa rede social.

Por isso limitei-me a falar do negócio na sua vertente financeira.

- Ela disse que tinha muito dinheiro, que estava disposta a pagar.

- E tu, o que lhe disseste?

- Eu lhe disse para ela me pagar aquilo que me deve primeiro, depois falaremos de negócios.

- E o que ela te deve mesmo?

- O mesmo que receberia um professor durante os nove anos em que vivemos juntos. Uns 15.000
meticais, por exemplo. Eu sozinho receberia uns 105.000 meticais por mês pelas sete disciplinas
em que lhe dava aulas, vezes doze meses seriam já uns 1.260.000 meticais, vezes sete anos seria
uns 8.860.000 meticais, segundo os cálculos do Intelectual Juvêncio e do alfaiate Mingaldo, que

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também me falaram dos 840.000,00 meticais que lhe dei só de mesada durante os cerca de oito a
nove anos em que vivemos juntos.

- Ahh, wenah!!! – exclamou a Sara Ponta Fina. – E ela?

- Ela disse que esse dinheiro é maningue.

- Então não tem tanto dinheiro assim como ela diz ter.

- Nem sequer para pagar aquilo que deve.

- Mas você Major General Henry Miller, assim ela quer te pagar para abandonares o teu romance
autobiográfico mas nem sequer tem dinheiro para pagar a sua dívida.

- É verdade. – respondi. – Não tem nada. Só tem four by four azul que também nem é dela.

- Mas essa cena de ser marrandza afinal é tão doloroso assim!!!

- Mas eu lhe apresentei uma proposta alternativa.

- Baixaste o preço? Então vais deixar de escrever o teu romance autobiográfico?

- Depende dela.

- Como assim?

- Eu propus a ela para trabalhar para mim.

- Hummmmm, agora queres a bunda que já nem é tua, é dos instrutores e do homem da fobana?

- Não. Nada disso. Mas você Zularica tem uma capacidade de imaginação….

- Mas era para eu pensar o quê? Hein? Era para eu pensar o quê?

- Eu propus a ela para trabalhar para mim como agente dupla.

- Agente dupla?

- Sim, agente dupla.

- O que é isso agora? – perguntou a Zularica.

179
E a Sara Ponta Fina, que era dotada de uma inteligência acima da média, tratou de esclarecer.

- Um agente duplo é um agente que trabalha para a CIA americana e para a KGB russa ao
mesmo tempo, recolhendo informações secretas de lá para cá e de cá para lá.

- Mas já é para recolher informação do quê e aonde aquela maluca?

- Ela trabalha no gabinete de imprensa do Estado Maior General das Forças Armadas.

- Pois. E daí?

- É lá onde ela está melhor posicionada para me fornecer informações sobre a corrupção sexual
protagonizada pelos instrutores e oficiais superiores das forças armadas contra as mulheres nos
cursos de instrução básica militar, tal como aquelas 15 raparigas que foram engravidadas pelos
instrutores e outros oficiais superiores na instrução básica da polícia em Matalane.

- Foooogggoooo!!!! – exclamou a Zularica. – Ser agente duplo dele é isso?

- Pois. Já que ela não tem dinheiro que chegue para me pagar para eu deixar de escrever o meu
romance autobiográfico, então só pode fazer o serviço de agente dupla, a fim de que possamos
ter matéria de interesse público para alimentarmos as nossas páginas.

- E ela? O que respondeu? Aceitou?

- Disse que vai pensar.

- Mas não podes fazer isso com a mãe do teu próprio filho. Estás a brincar, né?

- Não. – respondi. – Não estou a brincar.

- Mas isso não dá execução?

- Foi ela que me executou primeiro ao dizer que eu não sou pai biológico do meu próprio filho,
que o pai biológico era o homem do four by four azul. Até ao ponto dela ir defender isso na
frente dos juízes, dos procuradores e dos advogados, dizendo que eu sou um desempregado,
vagabundo, desgraçado, miserável, significa que ela não me quer ver vivo. De tudo o que eu já
ouvi da boca daquela marrandza sem escrúpulos, eu já teria me suicidado faz tempo.

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- Não, não, não e não. – disse a Zularica Ponta Fina. – Por aí eu já não te permito. Eu sei que ela
te fez passar pelo pior, mas por ai não. Logo tu que me ensinaste a escola de Martin Luther King
Jr., Mahatma Ghandi e Nelson Mandela, não responder violência com violência, não te permito
uma coisa dessas. Eu acredito que a Zuleica ainda será uma boa pessoa.

- Mas mana Zularica. – intercedeu a Sara. – Não estás a ver que esta história é divertida?

- Como divertida, minha irmã?

- Deixa ela ser nossa informadora. É uma questão de interesse nacional.

- E se lhe descobrirem?

- Será executada. – respondi. – Afinal ela não jurou bandeira?

- E o que ela respondeu? – perguntou a Zularica.

- Disse que vai pensar.

- Então vamos esperar. – respondeu Zularica. – Pode ser mesmo que seja divertido.

Foi assim que ficamos todos combinados.

Tudo agora estava nas mãos da Zuleica. Das duas, uma: ou trabalhar para mim como agente
dupla infiltrada no Gabinete de Imprensa do Estado Maior General das Forças Armadas de
Defesa de Moçambique, a fim de nos fornecer informações de interesse público no seio das
forças armadas, ou então me deixar aqui a vontade a escrever o meu romance autobiográfico, um
romance que já por estas alturas tinha deixado de ser somente meu, pois tinha passado a
pertencer aos leitores, faltando apenas a intervenção de uma editora.

Também contei para a minha doce e espectacular Zularica Ponta Fina e sua irmã Sara que o meu
bom amigo e confrade Severino não exercía as funções de comissário diplomático da marrandza
Zuleica por acaso, afinal há muito que andavam numa parceria inteligente de burros. O mano
Severino também era docente dela de relações internacionais numa instituição de ensino superior
onde ela estava a frequentar um curso de licenciatura. Somente pelo local escolhido para aquela
nossa reunião, um restaurante que faz parte de uma pensão que tinha piscina e quartos com ar
condicionado e plasma, onde o mano Severino gostava de ficar a beber champanhe, vinho e

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uísques caros no bar, ficara claro para mim que há muito que o mano Severino andava a comer a
mana marrandza Zuleica Tina Turner, de cuja tese de licenciatura ele mesmo era o supervisor.

Nunca imaginei que uma marrandza colectiva tão baixa e tão vulgar, cujo supervisor da sua tese
de licenciatura era um docente que apenas tinha 12ª classe, fosse capaz de um dia tentar limitar a
minha liberdade de pensamento, de expressão, de criação e artística ao ponto de tentar me
impedir de escrever o meu romance autobiográfico com a ajuda das irmãs Ponta Fina e dos meus
leitores assíduos do Facebook. Só podia ser a minha mancha gémea. Da mancha na bunda.

***
Sem que eu tivesse tido intenção, como jornalista acabei fazendo um belíssimo trabalho de
contra inteligência policial, aquele cujo qual consiste na verificação da legalidade da actuação
dos polícias da Polícia da República de Moçambique e que deverá ser continuado pelos serviços
de informação interna daquela corporação, assim como pela procuradoria da República, a fim de
que seja desencadeado o devido processo judicial, dado que a matéria está por demais reunida e
completa, que se instale agora a comissão de inquérito para os devidos efeitos.

Os polícias da República de Moçambique invadiram uma residência, sem que tivessem um


mandado. E eu filmei, porque por sorte ou azar estive no local das ocorrências, por onde ia
passando. Não filmei a actuação dos polícias porque tivesse constatado tal arbitrariedade. Filmei
apenas porque achei que não havia mal nenhum em filmar, tratando-se, pois, de uma actuação
pública, um serviço de manutenção da ordem, segurança e tranquilidade pública.

Foi por esse motivo que os polícias acharam por bem que eu devia ser detido, acreditando
piamente que eu tivesse cometido algum crime. Não ofereci qualquer tipo de resistência no acto
da detenção. Muito pelo contrário. Eu mesmo encarreguei-me de entrar no Mahindra a fim de
que fosse me apresentar à esquadra para que lá pudesse tudo ser esclarecido, assim como para
que me pudesse ser devolvido o telemóvel apreendido.

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E o que deveria ser esclarecido?

O que deveria ser esclarecido na esquadra é que eu estive a filmar o trabalho dos polícias, que
invadiram uma residência sem mandado.

Podia se dar o caso em que aqueles polícias estivessem a desmantelar uma boca ou qualquer
coisa do género. Mesmo se assim fosse, ainda não encontrei razão que explique o meu
impedimento de filmar a operação, por risco e conta própria.

E é aqui onde tive o privilégio de assistir a uma série de arbitrariedades jamais cometidas pelos
polícias e que insisto, pelos polícias e não pela Polícia da República de Moçambique, a qual
acaba levando por tabela, ou seja, devido a má actuação dos seus agentes.

E porque razão fomos soltos em menos de 24 horas?


Fomos soltos porque houve uma contestação popular generalizada?

Pode ser que sim, porque se não tivesse havido um clamor popular generalizado, talvez tudo
tivesse sido tratado no contexto do sistema corrupto que ali foi montado para extorquir os
cidadãos. Fomos soltos também porque o assunto chegou às mãos do procurador ontem, que
analisou os factos e verificou que o que aconteceu foi justamente o contrário do que se esperava
que tivesse acontecido. Não foram os polícias que detiveram o jornalista, foi o jornalista que
deteve os polícias, que estavam a cometer uma série de arbitrariedades.

Nada importa repetir, a fim de que sejamos mesmo ouvidos. Não foi o jornalista que cometeu
crime ao estar no local das ocorrências a filmar a actuação dos polícias. Quem cometeu crime
foram os polícias que invadiram a residência de dono para efectuarem uma operação que
ninguém sabe exactamente qual sem que tivessem um mandado. Ou seja, foi um dia de azar para
aqueles polícias, devido à presença do jornalista.

E como foi que tudo ganhou repercussão nas redes sociais e em menos de um minuto. Isso
aconteceu porque por coincidência, um outro jornalista estava a passar pela rua quando

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testemunhou os tumultos originados pela contestação generalizada dos populares, que entraram
em confronto com os polícias para que eu e o Blade (Hélder) não fossemos levados no Mahindra.
Os polícias também tentaram arrancar o telefone do meu colega jornalista no momento em que
ele estava a registar os acontecimentos, assim como também tentaram detê-lo, ao que ofereceu
resistência e também foi defendido pelos populares, tendo sido poupado no momento em que
apresentou a sua carteira de trabalho.

Foi mesmo um dia de azar para aqueles polícias.


E porque digo que foi um dia de azar para os polícias?

Porque esta é, pois, a história de uma grande bolada associada ao oportunismo dos polícias no
âmbito do Estado de Emergência. Eu não cometi nenhum crime previsto e punido nos termos da
lei penal e nem sequer violei as orientações do Estado de Emergência.
Muito pelo contrário.

Os polícias é que estavam a operacionalizar uma grande bolada na qual acabaram tendo o azar de
meter um jornalista nas celas, o que se tornou num enorme estrago para aquela operação ilegal e
com objectivos estranhos e inconfessáveis.

Os polícias estavam a recolher para as celas todo o mundo, chegando mesmo a invadir as casas
das pessoas, desde que te encontrassem com uma cerveja na mão ou então com um vasilhame
sequer ou então se estivesses sentado em qualquer sítio onde houvesse consumo de álcool, o que
constitui uma enorme vantagem para eles, quanto mais pessoas meterem nas celas, mais dinheiro
eles ganham durante as 48 horas em que decorre a detenção.

Ora, cada cabeça custa entre cinco a dez mil meticais para sair. Portanto, somente nós que
estávamos nas celas, que éramos cerca de 16 pessoas, éramos uma bolada avaliada em cerca de
160.000,00 meticais, um valor que entraria folgadamente para os bolsos dos polícias naquelas 48
horas. Eles sabem que ninguém resiste ver um familiar na cadeia, que é dentro das 48 horas que
cada familiar da pessoa detida deverá fazer das tripas o coração para poder tirar aquilo que não
tem mas que deve ter para ganhar a libertação do seu familiar, sob aquela forte pressão segundo a

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qual caso a pessoa não tire o familiar, a coisa vai se complicar porque será levado para a B.O. e
depois e “lá a responsabilidade já não será nossa, antes vale soltar aqui mesmo porque lá na
cadeia já não vai sair mais”. Portanto, foi mesmo um dia de azar para os polícias, nenhum
jornalista deveria ter estado ali a registar a operação, mas o que se tornou ainda mais
problemático para os polícias, para a 9ª Esquadra e para a Polícia da República de Moçambique
em particular, foi o facto de haverem metido um jornalista nas celas.

Teriam agora que fundamentar os motivos da minha detenção, bem como abrir um auto de
notícia, aquele com o qual se desencadearia o devido processo judicial. Mas aqui havia um
problema. Como abrir um auto contra o jornalista? O que haveriam de dizer no auto? De que
crime haveriam de imputar ao jornalista? Do crime de filmar o que estavam a fazer naquela
residência sem nenhum mandado? A maior arbitrariedade que eu tive o privilégio de testemunhar
durante a minha permanência nas celas da 9ª Esquadra prende-se com o facto de que os polícias
recolhiam os dados de cada uma das pessoas que iam sendo detidas, nome, morada, data de
nascimento, filiação e número de telefone, o que de princípio achei que fosse um procedimento
normal, mas que mais tarde pude testemunhar que afinal de contas aqueles nomes foram usados
para abrir os autos de notícia contra cada uma das pessoas detidas sem que tivessem sido
ouvidas. Como é possível um oficial redigir um auto sem sequer ouvir a pessoa em causa?

Não sei se o jornalista estava no lugar errado à hora errada, ou então estava no lugar certo à hora
certa, o facto é que ali tive o privilégio de testemunhar o desdobramento de uma grande bolada,
aquela cujo desenvolvimento acabaria por nos mostrar um verdadeiro atentado contra os direitos
humanos, onde as pessoas detidas são atafulhadas, entulhadas e ensardinhadas nas celas sem
sequer passarem por nenhum teste da temperatura do corpo muito menos lavarem as mãos com
álcool gel para evitarem a contaminação pelo coronavirus. As pessoas estavam mesmo a servir
como objecto de bolada à custa do Estado de Emergência.

Em nenhum momento ofereci resistência, bem como em nenhum momento cometi um crime de
desacato às autoridades. Muito pelo contrário, aceitei ser levado calmamente até à esquadra,
onde depois de registarem os nossos dados, eu e o Blade (Hélder), fomos recolhidos para uma
cela imunda que devia ser visitada pelos jornalistas para poderem mostrar à sociedade em geral o

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lugar onde fomos metidos, bem como mostrar o lugar imundo onde são metidos os cidadãos em
pleno Estado de Emergência para a operacionalização dessas boladas.

No lugar de oferecer resistência, eu me conformei com a minha detenção, ciente de que uma
detenção apenas dura 48 horas, ao que depois de cumprir deveríamos ser apresentados ao
procurador para o devido processo judicial, caso tenhamos cometido crime, ao que, de contrário,
estaríamos em presença de um autêntico abuso de autoridade acompanhado de uma série de
crimes conexos. No lugar de resistir, conformei-me com a minha detenção, ao que comecei a
cantar as minhas músicas nas celas, assim como as músicas de Azagaia “Povo no Poder” e de
Flash Enccyclopédia “Comida para os cães”, o que alguns agentes confundiram com o crime de
“desacato às autoridades”, ao que perguntei se era proibido cantar nas celas.

Houve um momento em que um agente aproximou-se às grades para saber quem estava a cantar,
ao que os outros detidos responderam que era “o jornalista”. O agente disse que não devíamos
fazer barulho, ao que respondi que só estava a cantar. E ele me mandou aproximar às grades,
tendo me mandado cantar. “Canta lá, então!”. E eu comecei a cantar a música de Roberto Carlos,
“Amigo de fé”: “Você meu amigo de fé, meu irmão camarada/Amigo de tantas loucuras e tantas
jornadas…Não preciso lhe dizer/Tudo isto que eu lhe digo/Mas é muito bom saber/Que você é
meu amigo”. E o polícia disse: “Está bem. Ai dentro tens todo o tempo do mundo para cantar,
por isso vai cantando”. Eu continuei lá dentro a cantar. O polícia não percebeu o meu canto.
Para além de mim e do Blade, lá na cela estavam mais quatro pessoas, nomeadamente um jovem
de 21 anos que fora detido no dia anterior, sábado, e que passara a noite inteira de sábado para
domingo algemado, bem como outros três jovens que haviam sido detidos uma hora antes
alegadamente por haverem sido encontrados a beberem cerveja em plena via pública, o que
deveria ter sido também uma “violação do Estado de Emergência”, segundo eles.

De repente, deu entrada nas celas o meu amigo Faizal, irmão do Blade. O mesmo teria sido
detido junto com a Maradona, a dona da casa onde os polícias foram invadir, alegadamente
porque teriam tentado subornar os polícias para conseguir a nossa soltura.

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Infelizmente, eu não fui a tempo de explicar as pessoas da nossa comunidade para que não
entrassem naquelas negociatas com os polícias, porque a nossa detenção tinha sido ilegal e
injusta, mas a Maradona e o Faizal acabaram por cair na armadilha de tentar subornar os polícias,
não propriamente pelo suborno, mas sim pela quantia irrisória que ela deu, nomeadamente 200
meticais, quando para os polícias se tratava de uma grande bolada avaliada em mais de 160 mil
meticais, valendo 10 mil meticais a soltura de cada uma das 16 pessoas detidas.

De momento a momento, os polícias vinham às celas perguntar afinal quem é jornalista aí


dentro, alegando que lá fora estavam todos a dizer que há um jornalista aqui detido, que o
assunto já andava nos WhatsApps, Facebooks e outras plataformas digitais. Foi assim até ao
momento em que um polícia veio à cela recolher os meus dados, tendo me perguntado quem era
eu e onde trabalhava, ao que respondi: “Meu nome é Armando Nenane, sou jornalista. Exerço as
funções de Director Geral da Imprensa Paralegal e de Director da revista online Crónica Jurídica
e Judiciária, no prelo. Também sou director executivo da Associação Moçambicana de
Jornalismo Judiciário. Para além disso, sou um simples cidadão”.

Não tardou muito até que chegassem novas orientações, aquelas com as quais seriamos
transferidos para a cela da 18ª Esquadra lá no Cape Cape, no Chamanculo. Quando nos meteram
no Mahindra, notei que por ali estavam ainda alguns vizinhos, nomeadamente a Laurinda, a
Zinha e o Lino, por isso comecei a gritar para que nos dissessem para onde estavam a nos levar.
Ninguém queria nos dizer para onde estavam a nos levar, mas não tardou para que um polícia
viesse me acalmar, informando-me que estávamos a ser levados para a 18ª Esquadra. E eu gritei
para os meus vizinhos ouvirem: “”18ª Esquadra. Estão a nos levar para a 18ª Esquadra”. Se é a
isso a que chamam “desacato às autoridades”, então está tudo bem. Foi isso mesmo que eu fiz,
gritei para informar aos vizinhos para onde estavam a nos levar.
Enquanto estávamos a caminho da 18ª no Mahindra, eu continuei a cantar as minhas músicas, as
músicas de Roberto Carlos, de Azagaia e de Flash Enccyclopédia “Comida para os cães”. Um
dos polícias perguntou-me: “Agora está a nos chamar de cães?” E eu respondi para ele: “Estou a
cantar música de Flash, “Comida para os cães”. Não posso cantar?” E ele tirou o telefone e disse
cantá-la então, vou gravar para apresentar lá que o senhor nos chamou de cães. E eu disse a eles

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que estava tudo bem, que ainda bem, que podia gravar e eu continuei a cantar nas celas da prisão
os nossos filhos são cães.

Não tardou para que chegássemos à 18ª Esquadra, onde tivemos uma recepção calorosa por parte
dos outros detidos que já lá se encontravam. Entras para um lugar escuro, onde somente se vê
através de uma vela, que não ilumina o espaço tanto assim e que somente depois de algum tempo
os olhos se habituam, a vista adapta-se e encarrega-se da visão.
Não foi um baptismo pior que aquele a que um dia fui submetido na Faculdade de Direito
quando ingressei, cujos molwenes hoje são meus amigos, camaradas e companheiros de longas
jornadas, mas a recepção que tivemos na cela da 18ª Esquadra foi mesmo uma operação
imprópria para cardíacos e para a qual não havíamos sido avisados.
Empurraram-nos lá para fundo da parede, a gritarem connosco com vozes de comando próprias
dos piores molwenes, com palavras proferidas numa língua que você percebe que é changana,
mas um changana cheio de calão, futseka wene, tsundzeka lano wene, enquanto iam nos
encostando na parede e vasculhando os nossos bolsos, a fim de que lhes entregássemos tudo o
que tínhamos. Fomos entregando tudo.

Foi assim que já admitidos, começaram a nos mostrar os lugares onde devíamos nos sentar, na
verdade os que já lá estavam ficaram de um lado e os que acabavam de chegar foram mandados
encostar do outro lado. Foi assim que eu lhes perguntei se entre eles haveria um rapper, a fim de
que pudéssemos repar para aguentar com a noite que ainda era longa. Eles ficaram felizes e me
chamaram para eu sentar do lado deles, ao que me mandaram para cantar. E eu, que tenho uma
voz feia e nem sequer sei cantar mas que precisava de iniciar conversa com eles, continuei a
cantar as minhas músicas, as músicas de Roberto Carlos, de Azagaia e de Flash. Eles gostaram
de mim, ao que começaram a me dar um tratamento especial e diferenciado.
Foi assim até ao momento em que trouxeram o Blade e o irmão Faizal, que na verdade não
tinham vindo connosco. Logo que eles entraram, os mais antigos donos da cela partiram para
cima deles, os quais foram sendo empurrados e encostados lá na parede, a fim de que fossem
vasculhados, mas logo vi que aquilo haveria de tomar proporções alarmantes, porque quem
conhece o Blade sabe que ninguém lhe vasculha de qualquer maneira, muito menos dentro de
uma cela, onde todos são iguais, tal como ele mesmo disse.

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Quando notei que os donos da cela estavam mesmo dispostos a matar o Blade de porrada,
levantei-me e fui lá fingir que eu também estava mesmo disposto a matar o Blade de porrada. Fui
empurrando a ele e lhe encostando na parede, até que consegui lhe mostrar que ele não devia
oferecer resistência. Deixa os gajos. Eles notaram que afinal nos conhecíamos, por isso
relaxaram, até porque eu já era conhecido lá dentro como sendo “o nosso jornalista”.
Todo o dinheiro recolhido pelos donos da cela serviu no dia seguinte para mandar comprar pão e
e cigarros para todo o mundo. Quando amanheceu, comecei já a reconhecer algumas caras no
seio dos velhos donos da cela, afinal é tudo a malta do Xipamanine, do Chamanculo, do
Minkadjuine e da Munhuana, entre os quais alguns ladrões de peças de viaturas, outros por causa
de pequenos delitos, na maior parte dos casos o furto de telemóveis.

Fomos soltos ontem à tarde, quando já tinham passado quase 24 horas. Pedi ao chefe da brigada
do SERNIC na 9ª Esquadra, que foi nos soltar na 18ª Esquadra, para que me mostrasse os autos
que ele tinha na mão, ao que ele se recusou de me mostrar. Pelo menos o meu auto, mas ele
recusou-se. Seja como for, não consigo ainda perceber como terá sido possível se escrever um
auto sem a minha presença, sem sequer ser ouvido pelo oficial do dia que apenas recolheu os
dados de cada uma das pessoas que iam sendo detidas, nome, morada, data de nascimento,
filiação e número de telefone. Esta a prova mais evidente de que os polícias e a esquadra toda
estavam envolvidos numa grande bolada a custa do Estado de Emergência, uma bolada que
somente foi posta em causa apenas porque acabaram metendo o jornalista no meio dessa história.
Portanto, eu nunca cometi nenhum crime, assim como nunca violei o Estado de Emergência. Eu
apenas fui filmar a actividade dos polícias, que saltaram do Mahindra deles e tomaram de assalto
a residência da minha amiga Maradona, onde foram expulsos pelo meu amigo Blade, que lhes
disse que aquilo era uma residência e para invadirem deveriam ter mandado, ao que eles
obedeceram e se retiraram para fora. Mas o que mais lhes aborreceu é que eu nesse momento
estava do outro lado a filmar tudo, aliás nem sequer me escondi. Fiz questão de lhes mostrar que
eu estava a lhes filmar, tratando-se pois de uma actuação pública. Caso se tratasse efectivamente
do desmantelamento de uma boca e por algum motivo houve tiroteio, eu mesmo me
responsabilizava por mim mesmo, o jornalismo é uma profissão arriscada, sim senhor, mas às
vezes arriscamos para apanhar uma grande história. O facto é que acabei apanhando uma grande
história. A história de uma grande bolada a custa do Estado de Emergência.

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Tal como eu não cometi crime nenhum, o Blade também não cometeu nenhum crime, apenas
mandou embora os polícias da casa da nossa amiga Maradona. Neste momento, a Maradona e o
Faizal encontram-se detidos, alegadamente por haverem subornado os polícias com os 200
meticais para poderem nos soltar, arriscando-se agora ao pagamento de uma caução que pode
chegar aos 20 mil meticais para poderem responder em liberdade caso o juiz de instrução
considere que há matéria para se avançar com um processo judicial.

É lamentável tudo o que aconteceu e também continua a acontecer. Quem deveria estar neste
momento nas celas não é a Maradona nem o Faizal, que somente estiveram a lutar pela nossa
liberdade. Quem deveria estar nas celas são os polícias que invadiram a residência de dono sem
nenhum mandado, num autêntico abuso de autoridade misturado com outros crimes conexos. A
Maradona e o Faizal devem ser soltos imediatamente, sobretudo o Faizal, por se tratar de um
doente. Quem devia estar nas celas neste momento são os polícias, a fim de poderem esclarecer a
grande bolada que estiveram a operacionalizar ao longo do fim-de-semana às custas do Estado de
Emergência. Não cometi nenhum crime. Estava fazer o meu trabalho.

***
Todo aquele meu amigo e companheiro de longas jornadas que estiver interessado em aceder ao
meu livro, cujo lançamento teve lugar ontem basta deixar aqui o seu e-mail que eu mesmo irei
me encarregar de enviar. O lançamento deste meu romance autobiográfico com o título “A
HISTÓRIA DE UMA MANCHA CONGÉNITA” contou somente com a presença do rapper
moçambicano SINGAMAN, também residente no bairro de Minkadjuine.

SINGAMAN questionou-me como se explica que o lançamento do primeiro livro de um escritor


tão famoso e tão conhecido como eu tivesse contado apenas com a presença dele, ao que me
encarreguei de lhe explicar que não era bem assim, que para além dele o acto estava a ser
acompanhado por várias pessoas ao nível das redes sociais, uma vez que já mesmo ontem de
manhã publicitei o evento.

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O rapper SINGAMAN, que sempre foi um homem de causas em prol da liberdade artista, da
liberdade de pensamento, da liberdade de imprensa e de expressão disse que mesmo assim não
fazia sentido nenhum que somente ele tivesse aparecido para testemunhar o acto.

“Mas se tivesses convidado as pessoas para virem beber cerveja, então aqui estaria maningue
cheio. Uma vez que se trata do lançamento de um livro e não bebida, as pessoas preferiram
permanecer nas suas casas a beberem”, explicou-me o autor do álbum “SOCIEDADE EM
MOVIMENTO”.

Fora de falar da participação da malta ao nível das redes sociais, tentei uma outra explicação para
justificar a ausência de toda a gente, que era por causa do Estado de Emergência, ao que o rapper
SINGAMAN respondeu que em nenhum momento o Presidente da República disse que não era
para os escritores lançarem os seus livros.

Nyusi disse que era para as pessoas estarem no confinamento nas suas casas e respeitarem as
regras do distanciamento social, um metro um metro, assim como lavarem sempre as mãos com
sabão e álcool com gel. “Ninguém disse para não lançarmos livros, isso é propaganda desses
gajos”, assegurou-me o grande rapper do bairro de Minkadjuine, uma potência incontornável do
hip hop nacional.

Foi assim que tive o privilégio de aprender um pouco mais sobre os equívocos que existem nesta
nossa sociedade violenta, um lançamento de um livro atrai menos gente do que a bebida. Se
fosse bebida estaria cheio. Como não era assunto de bebida, mas sim de livro, então somente
atraiu o SINGAMAN, uma evidência clara de que em Moçambique a taxa de analfabetismo já
ronda nos 99 por cento, o que há-de ter aumentado muito com o Estado de Emergência. As
pessoas querem bebida e não livros.

Para que não haja aqui qualquer tipo de reclamações inerentes ao trabalho das editoras, das
livrarias e essas cenas todas que somente nos fazem perder tempo e paciência, deixo aqui ficar
claro que aquele que estiver interessado em ler o livro, basta deixar aqui o seu e-mail e eu
mesmo me encarrego de enviar a obra em formato pdf. Cada um poderá imprimir o livro
pessoalmente, mas eu aconselho mais as pessoas a poupar toner e papel. Pode ler mesmo nos
telefones e computadores sem precisar de imprimir. Aproveitem o Estado de Emergência para ler
este e outros livros.

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Tive conhecimento do Prémio Literário Imprensa Nacional/“Eugénio Lisboa”, realizado pela
Imprensa Nacional em parceria com o Instituto Camões. Estava mesmo disposto a apresentar a
minha obra, convencido de que poderia ganhar os 5.000,00 Euros, o que dá direito a publicação
de uma obra, mas acabei desistindo porque “A história de uma mancha congénita” é um romance
autobiográfico. Mesmo se tivesse que concorrer com pseudónimo, tal como recomenda o
regulamento, qualquer um dos membros do júri, nomeadamente Mbate Pedro, Sara Laisse e
Paula Mendes, acabaria por descobrir quem é o escritor, tratando-se de um jornalista famoso com
uma mancha congénita no rosto que andou em muitos jornais da praça, incluindo o Savana.
Lembro-me de uma vez ter sido considerado “INAPTO” para ir a tropa por causa mesmo da
minha mancha congénita, não gostaria de agora ser “DESCLASSIFICADO” pelo júri de um
prémio literário pelas mesmas razões. Sejam todos bem-vindos ao lançamento da obra. Mandem-
me os vossos e-mails, que a obra chegará ao vosso consumo.

Maputo, 01 de Setembro de 2020

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