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© 1969 – FEL MARTY

EDITORA MONTERREY
430210/430823
PÓRTICO

Dizia um velho editor francês habituado a publicar


novelas policiais de grande sucesso no seu país, que uma
das regras básicas para o êxito, no difícil comércio dos
livros, é a de não contrariar jamais o leitor.
— O leitor é um cliente distante que não conhecemos.
Assim, não nos é possível jamais argumentar com ele,
tentar convencê-lo. Só nos resta aceitar seu julgamento e
seguir publicando aquilo que ele escolhe.
Pedimos licença para discordar do nosso bom colega
parisiense. Aqui no Brasil os leitores preferem que lhes
renovemos o “menu” a cada nova “restauração”.
Assim é que, hoje, por exemplo, estamos trazendo à luz
este último exemplar da colação ZZ7 com uma história bem
diversa daquela que o nosso público, normalmente,
esperaria.
É claro que os fãs de Brigitte Montfort (nossa heroína
padrão), prefeririam, agora, mais uma de suas aventuras
mirabolantes. Entretanto, a Filha de Giselle se acha em
férias e nos recomenda a publicação desta história, com
sangue, amor e morte, dentro dos melhores princípios do
suspense e vazada numa linguagem tão moderna e
movimentada que deixa a quase todos sem fôlego, logo no
fim do segundo capitulo.
Estaremos contrariando nossos leitores,
propositadamente? Ou estaremos reservando a todos uma
surpresa melhor?
Uma coisa é certa. A equipe que lê e seleciona as
histórias de ZZ7 para o público brasileiro é das melhores
deste país e visa, antes de tudo, variar o tema das aventuras
para não cair na monotonia.
O tradutor e adaptador CARLOS RENATO, plasmando
no seu estilo inconfundível a boa história estrangeira, faz
com que até os diálogos mais simples ganhem importância.
Leiam e vejam como é boa esta novela.
Enquanto não volta Brigitte.
O EDITOR

CAPÍTULO PRIMEIRO
Onde se aprende a viajar com a morte sob os pés
Explicação que não explica e um mergulho no desconhecido

Alto mar! O cargueiro desliza tranqüilo sobre o


Atlântico. Já se faz noite e as estrelas prometem um céu
iluminado. O ano é de 1940 e há uma guerra na Europa
ameaçando estender-se a todo o resto do mundo.
Um torpedo pode vir, a qualquer momento, do fundo das
águas. Mas o crepúsculo sereno parece desmentir esta
hipótese sinistra, O cargueiro deixou Nova York há poucos
dias e seus porões estão superlotados de armamentos para
os aliados. Durante o embarque, centenas de homens,
descendentes de irlandeses, estiveram ocupados na sua
provisão.
Ah! O terror da guerra! Exércitos alemães já invadiram a
França e ameaçam a Inglaterra. Os nazistas parecem
invencíveis e seus bombardeios a Londres deixam o mundo
em pânico.
Por que os Estados Unidos não entram no conflito? É a
pergunta que sai de todas as bocas de Paris a Glasgow.
Parece que os americanos aguardam o momento
psicológico, e se limitam, agora, a fornecer armas e
suprimentos aos seus amigos europeus.
Apesar de tudo a Inglaterra se mantém de pé.
— Resistiremos nas praias, resistiremos nas ruas,
resistiremos em nossas casas! — diz Churchill,
emocionado, aos seus concidadãos, sobre os escombros da
City. — “Tudo isto terá de nos custar sangue, suor e
lágrimas”. Mas venceremos! —acrescenta ele, no gesto
imortal que mais tarde se representaria com os primeiros
acordes da Quinta Sinfonia de Beethoven: o “V” da Vitória.
Diariamente partem cargueiros dos portos norte-americanos
com destino à Inglaterra, ostentando bandeiras de país
neutro, o que os põe a salvo dos alemães em alto mar, mas
enfurece Hitler que vê nesse trânsito disfarçado de
provisões o único motivo a impedi-lo de conquistar uma
vitória fácil e rápida.
Voltemos nossas vistas sobre esse cargueiro especial,
aparentemente tranqüilo em alto mar, entre Londres e Nova
York. Sua tripulação é composta de veteranos e
aventureiros, negros, brancos, amarelos e mestiços. Para
eles a guerra é apenas um excelente negócio, já que
recebem pagamento triplicado pelo risco da travessia.
Ia, pois, esse navio, em novembro de 1940, carregado de
armamentos e munições a caminho da Inglaterra, dentro de
um clima de relativa segurança, já que seus porões se acham
bem distantes do calor da sala de máquinas, e as
possibilidades de sabotagem tinham sido consideravelmente
reduzidas pelo trabalho de vigilância dos homens do serviço
secreto. O capitão, ele próprio, escolhera seus homens, entre
os de maior confiança, e determinara sentinelas para
guardar os depósitos de armas, dia e noite, durante o trajeto.
E não era aquela a primeira viagem do cargueiro. Sob a
protetora bandeira de um país neutro já haviam cruzado o
Atlântico três vezes, com munição e suprimentos para os
aliados.
Os alemães não ousariam atacá-los, sabendo-os uma
tripulação americana. Hitler pretendia que os Estados
Unidos continuassem como simples espectadores da guerra.
Não fugiria de tal estratégia.
O capitão pouco diferia dos outros capitães, de verdade
ou de mentira: pele curtida pelo sol de todas as latitudes,
atarracado, fumador de cachimbo, o velho lobo-do-mar
passeava pela coberta examinando o horizonte com olhos
apertados.
Debruçando-se à amurada, esvaziou o forninho do
cachimbo, batendo-o na madeira de bordo. Poucos dias
separavam o navio do porto do destino. Apesar do peso da
carga, a viagem transcorria sem obstáculos e o barco
desenvolvia boa velocidade. A noite descia, pouco a pouco
e o sol começava a mergulhar no horizonte, em quedas de
silêncio e de luz,
O capitão soltou um profundo suspiro quando dois
homens passaram às suas costas, carregando baldes e
vassouras. — “Eles também — disse consigo mesmo —
devem estar contando os dias que faltam para o fim da
viagem. Também, pudera! Sentados em cima da morte!”
Por que deixar-se dominar por pensamentos tão
depressivos? O mecanismo de proteção era perfeito, a
tripulação a melhor que pudera escolher. De qualquer
maneira, só um fanático tentaria qualquer ato de sabotagem,
uma vez que estaria assinando sua sentença de morte.
O capitão chupou cuidadosamente o cachimbo. Estava
apagado. Tornou a acendê-lo, enquanto pensava: — O
serviço de sentinela, seja qual for, não é lá muito agradável;
não se pode conversar com ninguém, é preciso desconfiar
de todo o mundo, mesmo dos amigos mais íntimos. A
responsabilidade da sentinela pesa como chumbo. Sorri:
“Vou lá fazer uma visitinha aos rapazes”. Tirou uma
baforada e desceu as escadas que levavam ao porão,
A primeira sentinela que encontrou foi um negro
gigantesco, saído do Harlem1. Mastigava chicletes com
obstinação, como se a goma fosse um inimigo pessoal. O
marinheiro fez um gesto, quase uma continência:
— Tudo bem, capitão!
De fato, o capitão não esperava ouvir outra coisa;
achava, porém, que era conveniente (quando mais não fosse
para levantar o moral da turma) dar uma espiada nos
depósitos. Fez um sinal e seguiu pelo corredor largo, com
portas de ambos os lados. Por trás de cada porta, a morte.
Um incontável número de caixas com explosivos de todos
os tipos. Bastaria uma pequena fagulha e...
— Para o inferno as preocupações — exclamou em voz
alta.
Uma fagulha poderia provocar a explosão? As portas
estavam bem fechadas e as chaves (dá um tapinha no bolso
da calça) bem guardadas. Não existia um único orifício por
onde alguém pudesse introduzir um palito de fósforo.

1
Bairro em que se concentra a população negra de Nova York
Na outra extremidade do corredor, uma segunda
sentinela. Ao ouvir o ruído dos passos, voltou a cabeça e
gritou:
— Quem está aí?
— Sou eu — respondeu o capitão. — Não se preocupe.
Retornou à coberta. O sol já caíra de todo. A Europa
estava em guerra. Mas era difícil pensar em morte e
destruição diante daquele mar que parecia não ter fim. Ele
tiraria uns dias de descanso, quando voltasse a Nova York.
O capitão continuava prisioneiro de seus sonhos. “Há
quanto tempo não vou em casa? Há seis, sete meses.
Pedrinho ainda estava engatinhando; deve estar andando
pela casa toda, derrubando coisas.
Havia, ainda, a esposa, a bela e doce Eunice. Ainda não
completara trinta anos; “tinha o frêmito de uma juventude
incomparável.” O capitão enxuga, com a manga da camisa,
os olhos úmidos. Continua atrelado ao sonho distante.
“Acho que passei a maior parte da vida em cima d’água.
Isto acaba cansando qualquer um.” Numa espécie de filme,
cenas desfilam em sua memória. Pouco antes de partir,
reunira amigos no pequeno mas confortável apartamento.
Abrira uma garrafa de champanha quando alguém soltou,
no meio dos presentes, uma frase que destravou o
mecanismo do riso de todos, menos de sua esposa. Um
amigo, também capitão de cargueiro, enrolara as palavras:
“Sabem? Querem mesmo saber? O nosso capitão aqui é um
enamorado do mar. Há de ter sido um irmão dos peixes,
convivido com as algas...“ Pouco depois, completamente
bêbedo, fora arrastado para o quarto do casal e atirado sobre
o sofá-cama, O capitão ainda se lembrava da expressão de
Eunice. Em. meio àquela hemorragia de risos, trincava os
lábios e crispava as mãos. Ninguém percebera, só ele.
Uma sanfona desafinada traz o capitão à realidade. Um
grupo de marinheiros, sentado no chão, cantava. Eram
vozes roucas, nostálgicas, cansadas. Uma lágrima cativa se
desprende, rola pela face enrugada do capitão; ele a enxuga
com as costas da mão e grita pelo imediato. O homem
aparece e o capitão, já controlado, sorri:
— Não é nada. É só para passar o comando. Vou dormir
um pouco.
Entrou em seu camarote. Ao lado da cama havia um
retrato que mostrava a esposa e os cinco filhos do casal. O
menor estava no colo da mãe e ria com a boca muito aberta,
mostrando gengivas vazias. O capitão suspirou e abaixou-se
para desatar o laço dos sapatos.
Foi quando a violenta explosão o atirou ao solo. No
primeiro momento não compreendeu o que se passava. O
retrato da família estava caído ao seu lado, com o vidro da
moldura em pedaços. Um pressentimento horrível
atravessou lhe o espírito. Pôs-se de pé de um salto e correu
à coberta.
O grupo de marinheiros continuava no mesmo lugar,
mas ninguém cantava. Todos estavam voltados, com os
olhos esbugalhados, em direção à escada que levava aos
porões.
O capitão levantou os braços:
— Mande parar as máquinas! — gritou.
“Parar as máquinas!” — gritaram dezenas de vozes, num
eco cada vez mais fraco. O negro que estava de sentinela
surgiu no alto da escada:
— Foi... foi lá dentro, capitão!
Tinha o ar de quem pede desculpas. O capitão apalpou
instintivamente os bolsos: as chave continuavam ali.
Precipitou-se escada abaixo. Neste momento o ar tornou-se
escaldante. Uma língua de fogo saiu do meio da
embarcação e lambeu a noite. Houve a explosão e...
O silêncio, a noite estrelada e o mar calmo.
O cargueiro mergulhou no seu túmulo de água...
***
O drama de dezenas de pessoas e de um navio foi
reduzido a quatro palavras: “Desaparecido em Alto Mar”. E
mais adiante, a explicação que não explicava coisíssima
nenhuma: “Causas Ignoradas”.
Naqueles dias, o desaparecimento de um navio em alto
mar não tinha grande importância, ainda que significasse a
perda de meia centena de homens e de um carregamento tão
necessário como o próprio sangue para a Inglaterra. Para
cada navio naufragado havia dois ou três com o mesmo
carregamento.
Só no “Foreign Office Department”2 é que se prestou a
devida atenção ao estranho desaparecimento do cargueiro.
Com um carregamento daquele tipo, uma explosão durante
o percurso estava sempre nas cogitações. Mas,
considerando-se que se haviam tomado todas as medidas
preventivas, como pode então ocorrer a catástrofe?
O chefe do WOID3 não ficou muito satisfeito com a
notícia recebida, sobretudo porque começavam a chover
sobre a mesa de seu gabinete informes relativos aos navios
neutros carregados de armamentos para a Inglaterra, que
2
Departamento de Informações do Ministério das Relações Exteriores
3
War Office Intelligence Department — Departamento de Informações do
Ministério da Guerra
sumiam no mar em conseqüência de explosões resultantes
de “causas ignoradas”...
Todos aqueles casos não podiam representar o fruto de
mera casualidade. Havia um traço comum na tragédia que
envolvia, numa onda igualitária, os navios americanos:
todos transportavam material de guerra para os ingleses.
Os informes esclareciam que haviam sido tomadas as
mais rigorosas medidas de precaução para evitar um
desastre. Mas este ocorria, apesar (ou por causa?) de tudo.
Como era possível que se produzissem as explosões, se
ninguém entrava nos depósitos onde se achavam as
munições?
Se as coisas continuassem indo daquele modo, dentro
em pouco não se encontraria mais ninguém que aceitasse a
tarefa. E cada vez mais a Inglaterra precisava da ajuda dos
Estados Unidos. A qualquer momento os alemães poderiam
atravessar o canal e invadir a ilha.
Mas um outro tipo de informação servia para dar ao
mistério uma crespa dimensão aumentando a confusão que
já perturbava a gente da WOID: as explosões deviam ser
atribuídas a causas naturais, embora desconhecidas, mas
nunca a atos, de sabotagem ou ao trabalho de espiões
nazistas.
De acordo com o testemunho do imediato de um dos
navios sinistrados, único sobrevivente da pavorosa série de
desastres, soube-se que seria impossível a qualquer pessoa
penetrar nos depósitos e provocar a explosão.
O chefe do WOID leu o informe e deu um murro na
mesa:
— A coincidência tem limites! Causas desconhecidas
coisíssima nenhuma! Alguém deve ter provocado as
explosões!
O oficial assistente, McLain chupava o cachimbo,
enquanto o chefe mordia, distraidamente, a ponta da
esferográfica. Durante alguns segundos, olharam-se em
silêncio. Finalmente, o chefe perguntou:
— Que faria você neste caso?
McLain não hesitou na resposta. Conta nos dedos:
— Primeiro entraria num cargueiro; segundo, esperaria
para ver se ele ia pelos ares. Das duas, uma: ou eu iria logo
para o inferno ou acabaria descobrindo a causa das
explosões.
Brinca:
— Elementar, meu caro chefe...
O chefe jogou a caneta sobre a mesa. Sentia-se um tanto
irritado com a resposta, pois não estava para brincadeiras,
depois de todos os informes que lera e relera. Mas sorriu
quando fez uma nova pergunta:
— E quem se encarregaria de uma missão suicida?
Conhece algum louco disponível? Até agora, só um homem
conseguiu sair vivo de um desses navios...
— O que prova que existe alguma possibilidade de
salvação para o “suicida”...
O outro tentou falar mas McLain fez um gesto:
— Um momento! Já sei o que vai dizer, chefe.
— Tirou uma longa baforada e acrescentou: — Pois
bem, eu vou. Sempre tive uma certa vocação para o
suicídio.
O chefe fingiu surpresa:
— Você?
— E por que não? Além do mais, chefe, aqui em
Londres a coisa está cada vez pior, e qualquer dia desses
uma parede acaba caindo na minha cabeça. Há um outro
detalhe: estou precisando dar uma voltinha por Nova York.
O chefe olhou nos olhos de McLain:
— Pode ser a sua última voltinha ...
— Problema de opção: entre morrer metralhado pelos
alemães em Londres e desaparecer nas verdes águas do
oceano, prefiro a segunda hipótese. Eu sempre tive atração
pelo mar, sabia? Talvez o apelo marinho que existe no
fundo de cada um de nós, sei lá... Olha: há alguns anos, eu...
— Está bem, está bem. Não precisa continuar.
McLain esfregou as mãos de contentamento:
— Ótimo. Quer dizer que posso ir?
O chefe hesita:
— Não. Ou melhor, dê-me algum tempo para pensar
nisso. Afinal, essa missão quase significa um contrato com
a morte e — quem sabe? — sem nenhum resultado
positivo...
McLain senta-se na ponta da mesa:
— O senhor teria uma sugestão melhor?
O chefe abanou a cabeça:
— Confesso que não. Mas você deve compreender que a
responsabilidade é minha e sou eu quem deve resolver.
Vamos fazer o seguinte: volte aqui amanhã, digamos, às 9
horas, está bem?
McLain deu de ombros e deixou o gabinete. Sentia-se
um pouco desapontado. Acreditava que receberia, além de
tapinhas nos ombros, uma ordem de partida. A verdade é
que não era qualquer um que se arriscaria espontaneamente
a enfrentar uma missão daquele calibre.
A luz dos holofotes varria o céu à procura de aviões
inimigos. As ruas desertas e escuras lembravam cenário de
filme de mistério. De certa maneira, Londres parecia mais
bela naquelas circunstâncias, apesar de mais sinistra. “Ou
mais pacifica”, pensou McLain, sorrindo com o paradoxo.
Resolveu dar umas voltas, antes de ir para casa. A noite
estava esplêndida, a não ser... “Aquele velho rabugento!”
Por que não o tinha enviado, de uma vez, para a tal voltinha
em Nova Iorque? Afinal de contas, pesando bem as coisas,
que teria ele a perdei- com isso? Estava entre o fogo e a
água e, de qualquer forma, o resultado seria a morte.
De repente, as sereias vararam a noite. Aviões nazistas,
bombardeios, perigo! Pessoas encheram as ruas, saídas das
casas com o mesmo objetivo: refúgio. Eram crianças,
mulheres e homens que se misturavam e tinham entre si um
traço comum: o medo da morte. Corriam olhando para o
alto, tropeçavam e continuavam a correr.
McLain apertou o passo e meteu-se também num abrigo.
Gente afluía de toda parte, gemendo, chorando. Alguns
lançavam pragas e ameaças contra os alemães, mas seus
gritos eram logo abafados pelo zumbido ameaçador dos
aviões. Os canhões antiaéreos entravam em ação,
vomitando fogo e aço.
Apoiado à parede do refúgio, McLain mordia os lábios.
A cada “visita” dos aviões inimigos, a sua Inglaterra ficava
mais debilitada. E como salvar o pais que começava a
agonizar, se os cargueiros continuassem a explodir? E que
dissera o velho? “Essa missão quase significa morte certa”.
De uma coisa McLain tinha absoluta certeza: sua vida de
nada valia diante do massacre de milhões de pessoas. E era
o que acontecia diariamente.
Uma bomba caiu nas proximidades do refúgio, fazendo
tremer suas paredes. As mulheres apertaram mais
fortemente os filhos contra o peito. A multidão aquietou-se,
vendo a morte tão perto. Um pesado silêncio desabou sobre
aquela gente. Finalmente, Um novo sinal informou que o
perigo passara. E, pouco a pouco, a massa humana se foi
escoando para fora do refúgio.
McLain, com as mãos nos bolsos, também voltou às
ruas, que pouco a pouco se tornavam desertas. Ao longe,
um incêndio. Palmas de fogo pareciam querer alcançar o
céu. Uma ambulância passou em disparada, enquanto os
holofotes varriam de luz as águas do Tâmisa.
Um clima de ódio e desolação envolvia a grande ilha.

CAPITULO SEGUNDO
Obstinação suicida
Um sonho de luzes e o cheiro da morte
Todos são suspeitos
O prato do dia...

Sem terem onde trabalhar, marinheiros, capitães e


pilotos alemães perambulavam pelo porto de Nova York.
Os navios cargueiros que traziam a bandeira de sua pátria,
ancorados na baia, receavam partir, diante da possibilidade
nada remota de serem interceptados por navios ingleses.
A maioria dos estivadores era composta de irlandeses,
gente hostil aos ingleses e a seus aliados, que ilustrava a
animosidade com palavrões e ameaças toda vez que via
partir um carregamento de munições para a Inglaterra.
Havia uma exceção entre os marinheiros que enchiam o
cais. Era alto e robusto e não demonstrava o menor sinal de
ódio ou simpatia pelas tripulações dos navios ancorados.
Com sua trouxa às costas e um grande cachimbo pendente
da boca, passava entre os exaltados estivadores,
aparentando uma total indiferença.
As lamúrias e protestos não impediam que os
estivadores irlandeses trabalhassem. Havia dois motivos
especialíssimos: ganhavam bem e não desejavam perder o
lugar. Homens armados vigiavam o embarque dos fardos e,
ao mesmo tempo, controlavam o movimento dos
estivadores.
Notava-se um movimento febril no cais. Embarcações
neutras abarrotavam seus porões com armamento de guerra
que ninguém sabia se afinal, chegaria ao destino.
Aquele marinheiro, entretanto, parecia alheio a tudo e a
todos, como que ignorando a maldição pendente sobre as
embarcações que levavam nas suas entranhas a carga
maldita. Atravessou a multidão agitada e deteve-se diante
do navio no qual deveria fazer a travessia até Liverpool4.
O “Excelsior” era um imenso barco de bonita figura. O
marinheiro contemplou-o de ponta a ponta e logo subiu a
bordo, O capitão, um homenzarrão de longas suíças e
maneiras rudes, recebeu-o com hostilidade:
— Seu nome?
— Scheele, Max Scheele — respondeu o marinheiro,
entregando-lhe o passaporte. — Se desejar dados mais
completos, pode ler aí.
O capitão examinou detidamente o documento.
— Hum... Então é suíço, hem? Coisa rara, raríssima,
encontrar-se um suíço por estas bandas...

4
Cidade da Inglaterra, próxima de Londres. Pela importância de suas
trocas comerciais, é considerada como o segundo porto da Grã-Bretanha
O outro acompanhava com indiferença o movimento dos
estivadores. Voltou-se apenas para confirmar:
— Sim, suíço.
O capitão continuou examinando o passaporte.
Finalmente, disse:
— Escute aqui. Gosto das coisas às claras, sem mentira
ou embromação.
Enquanto conversava, estalava os nós dos dedos.
— Suponho que você já sabe que tipo de carga vamos
levar e o que tem acontecido aos navios que transportam
munição para os aliados. Ou está pensando que vai passear?
Se quiser voltar atrás...
Max Scheele limitou-se a dar de ombros sem olhar o
capitão,
— Por que é que você quer embarcar?
Dessa vez o marinheiro encarou-o, com o cenho franzido
e um ar de desafio:
— Os suíços não lhe agradam, não é verdade, amigo?
O velho hesitou:
— Bem... Não é isto — protestou, com um sorriso.
Devolveu o passaporte e acrescentou: — É que o risco é
grande, como já disse. Entrar num navio destes é comprar
passagem de ida para o inferno.
— Mas o senhor... as autoridades, enfim, devem ter
tomado precauções para impedir...
O velho corta:
— Sim, sim! E dai? Ou você pensa que os outros
também não tomaram?
A hostilidade sofreu um desgaste fatal. O capitão fala,
com cordialidade:
— É o diabo, filho! Ninguém consegue adivinhar
quando, como e por que acontecem as explosões!
Scheele tornou a dar de ombros, demonstrando uma
indiferença que, no fundo, agradava ao capitão. A verdade é
que o velho suara muito para encontrar o pessoal que havia
recrutado e, ainda assim, levava a tripulação incompleta.
Um homem que embarcava com uma obstinação suicida e,
mais ainda, que sorria diante da perspectiva de voar em
pedaços, era muito bem-vindo...
***
O “Excelsior” levantou âncora ao anoitecer. No cais,
ruminando seus ressentimentos, ficaram os estivadores
irlandeses.
Max Scheele, debruçado na amurada, olhava a terra que
se afastava; Nova York, com sua floresta de arranha-céus,
sua aura de luz, a estátua da Liberdade, todo aquele mundo
que parecia esquecido da guerra.
Enquanto nos países europeus os homens só tinham
coração para o ressentimento e para o ódio, Nova York
continuava vivendo o seu sonho de luzes; os cinemas, os
cabarés continuavam superlotados; as fábricas funcionavam
ininterruptamente.
— Ao trabalho! — A voz do capitão sacudiu o
marinheiro, trouxe-o á realidade objetiva e cruel.
Scheele voltou-se: o velho capitão gesticulava
energicamente, dando ordens para todos os lados. A
tripulação estava desfalcada, o que obrigava os homens a
um superesforço. Claro que em compensação pagavam
muito mais do que o habitual.
Max Scheele observou o seguinte: no momento em que
Nova York saiu do campo visual da tripulação, os homens
não conseguiram dissimular o receio. Dir-se-ia que a grande
cidade, mesmo à distância, os preservava de qualquer
perigo. Cercados de horizontes por todos os lados, sentiam-
se desprotegidos. Os movimentos dos marinheiros
tornaram-se nervosos. O próprio capitão e seus oficiais não
pareciam muito tranqüilos. Tinham medo, um medo que
não se manifestava com palavras, mas com olhares
inquietos que examinavam o mar e o céu; um avião poderia
surgir do abismo azul, um submarino poderia irromper das
águas, qualquer dos dois significaria a destruição e a morte.
A desconfiança, a suspeita de cada um recaia sobre
todos. São, ambas, contagiantes. Em principio, ninguém era
inocente; a mais inofensiva das aparências talvez fosse o
disfarce de um sinistro espião. Os canalhas não são
obrigatoriamente feios, nem sempre têm aparência de
monstros do tipo que o cinema e as histórias em quadrinhos
retratam. Duas perguntas pareciam não ter resposta: quem
iria por fogo nas granadas e como conseguiria chegar aos
depósitos? Além do capitão, que possuía as chaves, mais
ninguém parecia capaz de tal façanha. À entrada das
escadas que levavam ao porão, um homem armado montava
guarda. E como se não bastasse, cada um dos membros da
tripulação vigiava por conta própria; havia sempre dois ou
três olhos fixos na porta de acesso às escadas.
Nos momentos de folga, Max Scheele distraía-se
tocando gaita ou fumando cachimbo. O “Excelsior”
continuava avançando sob um céu limpo e nada permitia
prenunciar dificuldades. No entanto, à medida que os dias
passavam, tornava-se mais evidente o medo da tripulação.
No começo, durante as horas de descanso, alguns ainda
cantavam ou dançavam ao compasso as melodias que
Scheele tirava de sua gaita. Depois os homens chegaram a
ponto de nem sequer falar uns com os outros, como se
pressentissem o perigo estreitando-se em torno deles.
Nada, porém, acontecia que justificasse esses temores.
Quando o capitão, depois de inspecionar os depósitos,
retornava à coberta, perguntavam-lhe:
— E então?
A resposta era sempre a mesma:
— Tudo em ordem.
Isto significava que os depósitos continuavam bem
trancados, que não havia sinal de que alguém tivesse
conseguido chegar até eles para provocar uma explosão.
Mas, das outras vezes não teria ocorrido a mesma coisa?
Todos os navios haviam explodido após alguns dias de
navegação, sem a menor causa aparente.
A tripulação trabalhava com lerdeza e, nas horas de
descanso cada um mantinha-se alerta para, ao menor sinal
de perigo, lançar-se à água.
O medo, que no início da viagem era apenas sensível,
quase podia ser apalpado agora. A desconfiança, por outro
lado, minava aos poucos a resistência dos tripulantes. Mas
as horas e os dias transcorriam tranqüilos.
Sentado em cima de um rolo de corda, Max Scheele
tocava sua gaita. Era talvez o único a não experimentar o
terror que esmagava a tripulação. Um marinheiro destacou-
se do grupo e aproximando-se dele.
— Pára com isso! — gritou, furioso.
Max levantou os olhos:
— E por que devo parar? A boca é minha e a gaita
idem...
O tom de voz do suíço aplacou a raiva do marinheiro.
Este falou, mais calmo:
— Sei lá! Essa musiquinha me enerva!
— Você antes gostava de ouvi-la... — disse Scheele,
olhando-o nos olhos.
— É, mas agora me deixa nervoso!
O marinheiro recostou-se na amurada, apoiado nos
cotovelos. Olhava para os lados com a fisionomia crispada.
Scheele acendeu o cachimbo, tirou uma baforada e
perguntou-lhe:
— Medo? Está com medo, colega?
— E quem não está com medo aqui dentro? — rosnou o
outro. — Maldito navio! Se arrependimento matasse... Mas
é o tal negócio: acenam com uns dólares a mais e nós
caímos como patinhos! Ah! Se eu pudesse voltar para Nova
York!
Scheele levantou-se e fez um gesto para que ele se
acalmasse.
— Que calma coisíssima nenhuma! Calma como, se
temos a morte sob os pés e sobre a cabeça?
Olha em torno:
— Talvez aqui mesmo, naquele maldito depósito! Tenho
vergonha de dizer que...
— ... que tem medo? Bobagem! Quem não tem medo? O
medo independe de nós, nasce à nossa revelia.
Colocou a mão no ombro do outro; fez blague:
— Ter medo não é vantagem. Qualquer pé-rapado tem
medo. O que pouca gente sabe e pode é agüentar firme...
Muda de tom:
— Ou você tem motivo para um medo especial? Talvez
saiba alguma coisa a respeito...
O marinheiro só falta pular:
— Ei! Que conversa é essa? Que é que você quer que eu
saiba? Ficou maluco?
Scheele sorriu, dando de ombros:
— Bem, não se trata disso. Mas talvez você tenha visto
alguma coisa suspeita...
— Pois se eu tivesse visto alguma coisa, todo o mundo
já estaria sabendo — afirmou categórico. Sacudiu os punhos
fechados: — O pior é que ninguém sabe de nada, nem
suspeita de coisa alguma. E quando a gente menos esperar
— bum!
— e entramos para o “menu” dos tubarões como prato-
do-dia...
Scheele sorriu:
— E se não acontecer nada disso?
O marinheiro olhou-o, desconfiado, e disse, afastando-
se:
— Então, meu amigo, é porque o nosso santo é muito
forte. Muito forte mesmo.
Scheele recostou-se na amurada e tornou a acender o
cachimbo. Anoitecia e o mar soprava uma brisa suave.
Os marinheiros continuavam intranqüilos, andando de
um lado para outro. O que montava guarda junto às escadas
polia a carabina; mas sua presença era quase dispensável. A
própria tripulação estava atenta e intensificava cada vez
mais a vigilância para que ninguém tentasse aproximar-se
das escadas; e, evidentemente, ninguém o tentaria.
Max Scheele fumava tranqüilamente, observando-os.
O capitão cruzou a ponte com andar balanceante,
embora o navio deslizasse suavemente pelo mar calmo,
como se patinasse na neve. Parou perto da sentinela. Falou-
lhe qualquer coisa e seguiu adiante, depois mudou de idéia,
deu meia volta e desceu as escadas.
Era a rotina de todas as noites, O capitão não conseguia
dormir antes de dar uma olhadela nos depósitos. E fazia
mais: abria todas as portas; o jato da potente lanterna do
velho varria a escuridão, à procura do detalhe que indicasse
o perigo.
Demorou bastante tempo a voltar. Passava próximo de
Max, quando este lhe perguntou:
— Tudo em ordem, capitão?
— Tudo bem.
As chaves pendiam do cinturão. Estava sem cachimbo e
explicou por quê:
— Deixei-o no camarote. Gosto de fumar mas odeio
explosões. Não me arrisco...
O capitão não era uma exceção da regra numerosíssima.
Tinha medo e não fazia segredo disso. Estava, porém,
estranhamente bem-humorado. Scheele voltou à carga:
— Você acha que há algum perigo?
O capitão riu e abanou a cabeça:
— Como? Só se surgir um submarino, um avião, sei lá!
Aqui dentro, meu rapaz, nunca! Além da impossibilidade
material de colocar qualquer coisa dentro do depósito, seria
preciso que tivéssemos, como companheiro, um desses
fanáticos japoneses, um autentico suicida. E não temos, na
tripulação, ninguém de olhos rasgados...
Aquela noite transcorreu em calma, como que
confirmando as esperanças do capitão. Mas, ao amanhecer,
todos acordaram com os gritos da sentinela:
— Fogo! Fogo!
Os homens deixaram suas tarimbas, onde se haviam
instalado, de roupa e tudo, e correram para a coberta. Rolos
de fumaça saiam do porão, mas ninguém se preocupou com
o incêndio. Havia coisa mais importante a fazer: salvar a
própria pele; a qualquer momento o navio explodiria e,
então...
Os tripulantes apavorados procuravam, melhor seria
dizer disputavam, os escaleres, enquanto o capitão, do alto
da ponte, gritava inutilmente:
— Idiotas! Covardes! Que é que estão fazendo? É
preciso apagar o incêndio!
Os tripulantes não pensavam da mesma maneira. Que
importância tinham, naquele momento, o navio e sua carga?
Os ingleses e os alemães? O medo passou a dar as ordens,
era o grande capitão. Alguns nem mesmo esperaram que os
escaleres fossem baixados; lançaram-se ao mar e nadavam
desesperadamente para afastar-se do navio. As chamas
cresciam, vermelhas como o sol que acordava no horizonte.
O capitão agitou os braços, continuou a gritar do alto da
ponte:
— Voltem, seus cretinos! Precisamos apagar o fogo!
Ninguém lhe dava atenção. O capitão desceu à coberta e,
sozinho, tentou apagar o fogo. Mas a mangueira era pesada
demais para um só homem e o capitão não conseguiu
arrastá-la até às escadas.
O calor aumentava, tornando-se insuportável. Era
iminente a explosão dos depósitos. Estabelecia-se ali a
fidelidade do capitão à velha tradição da marinha de todo o
mundo: ele seria o último a sair ou... a ficar.
O velho avistou Max Scheele e gritou-lhe:
— Ei! Venha ajudar-me! Preciso salvar o navio!
Scheele correu até ele e agarrou-o pelo braço:
— Deixe o navio pra lá! O que é preciso é fugir e bem
depressa! Isto vai explodir, capitão!
Tentou arrastá-lo, mas o velho livrou-se com um gesto
brusco:
— Vá para o diabo! — gritou. — Vocês ficaram loucos?
Vou denunciá-los às autoridades, em Liverpool!
Puxava a mangueira com toda as forças, mas sem
resultado. Scheele insistiu:
— Vamos! É um suicídio, capitão! O navio vai explodir!
O velho encarou-o furioso, cerrando os punhos:
— Vá você, covarde, eu fico aqui!
O murro de Scheele atingiu o capitão na ponta do
queixo. O homem vacilou sobre as pernas. Antes de
começar a cair, em câmara lenta, Scheele agarrou-o pelas
pernas, colocou-o nos ombros e correu para os barcos de
salvamento.
— Ajudem-me a colocar o capitão aí dentro! — gritou
aos marinheiros mais próximos. Só um deles prestou-me
ajuda; todos os outros disputavam um lugar nos escaleres.
Scheele conseguiu lugar num dos últimos barcos, Os
marinheiros, numa perfeita sincronia de movimentos,
começaram a remar para longe do navio condenado. Os que
se haviam lançado ao mar nadavam desesperadamente.
A explosão sacudiu a nave e desencadeou gigantescas
ondas que colheram os escaleres, levantando-os a grande
altura para logo os deixar cair de borco. Então, pouco a
pouco, o “Excelsior” mergulhou nas águas tranqüilas.
Sob a alegre luz do amanhecer restavam apenas alguns
poucos homens a nadar no oceano sem fim.
***
A notícia teve a ressonância das outras. Eram gêmeas e
não poderiam deixar de provocar reação idêntica: “Mais um
navio afundado em estranhas circunstâncias”. O
Almirantado Inglês, fez a pergunta de sempre: “Que faziam
o Intelligence Service e, particularmente, o WOID que não
investigavam as causas de tantos desastres?
Até quando os Estados Unidos aceitariam perder
embarcações preciosas numa época em que, a qualquer
momento, poderiam ser obrigados a intervir no conflito
mundial? Acabaria chegando o momento em que a
Inglaterra e seus aliados ficariam inteiramente privados das
armas e munições fornecidas pela grande nação amiga. O
número de tragédias não deixava dúvida quanto ao seguinte:
a destruição dos cargueiros só podia ser atribuída à
espionagem alemã, cujos agentes, sem dúvida, agiam em
plena liberdade nos Estados Unidos, sobretudo em Nova
York, apesar da vigilância do Serviço de Informação norte-
americano.
Um segredo era propriedade exclusiva do chefe do
WOID. Só ele sabia que no último navio destruído viajava
um de seus homens, o agente McLain, e que, apesar disto,
não fora possível evitar a catástrofe.
McLain, assim como os demais tripulantes do
“Excelsior”, haviam sido tragados pelo mar; portanto, era
preciso ir pensando em enviar outro ou outros agentes a
Nova York. As investigações tinham de continuar.
CAPÍTULO TERCEIRO
“Bola, de sebo”
Sinal vermelho para os covardes
Um estranho senhor e uma bela mulher

Estamos no cais Hoboken, em Nova York.


O cenário é o mesmo de todos os portos do mundo:
gente ociosa e gente infeliz. Uns não trabalham porque não
querem, outros, porque não podem.
Negros, brancos e amarelos perambulavam pelo cais;
uma guarda cerrada tentava impedir-lhes a passagem até
onde uma verdadeira legião de estivadores procedia ao
carregamento de mais um navio que levaria armas e
munições aos aliados.
Os estivadores irlandeses maldiziam aos brados a
Inglaterra, sem se importarem com o fato de que se
encontravam num pais que, embora ainda neutro, era amigo
e aliado dos ingleses.
Um homem alto e em mangas de camisa, vestindo uma
calça muito amarrotada, conseguiu burlar a vigilância dos
guardas. Aproximou-se de um dos vociferantes estivadores
e perguntou-lhe num inglês cujo sotaque denunciava como
oriundo da Irlanda:
— Escute, companheiro, onde é que posso arranjar
trabalho neste maldito país?
O outro examinou-o por um momento, cuspiu de
esguelha e disse:
— Trabalho, hem? É um “troço” difícil por aqui, e não
compensa. Eles espremem a gente, passam a gente no
liqüidificador e a gente sai como entrou, quer dizer: sem um
centavo no bolso.
— Mas ouvi dizer que pagam mais para certos serviços.
Por exemplo: para viajar num troço destes eles...
O outro explodiu numa gargalhada:
— Pagam, sim, mas você não recebe. Você entra num
negócio destes e, no meio do mar, já sabe: PUM! E vai
cobrar a São Pedro...
Cuspiu mais uma vez e encarou o desconhecido:
— De qualquer maneira, pode falar com o capataz. Os
irlandeses são sempre bem recebidos quando se dispõem a
ser suicidas ou a botar carga no lombo.
— Quem é o capataz?
O outro apontou o dedo.
— Aquele lá!
O alvo da atenção dos dois homens era alto, barrigudo e
tinha um caderno aberto nas mãos.
— Aquele lá?
— Aquele mesmo — confirmou o estivador. E juntou,
com um risinho: — Nós aqui o chamamos de “Bola de
Sebo”. Mas o nome dele é Thompson.
— Thompson — repetiu o outro, quase saboreando as
sílabas. — Está bem, obrigado. Vou falar com ele.
Encaminhou-se na direção do capataz que, levantando os
olhos do caderno, encarou o desconhecido; fez olhar duro:
— Que é que faz aqui? Aqueles guardas imbecis o
deixaram passar? Por quê?
O outro abre os braços:
— O amigo já deu a explicação: porque são imbecis e eu
não. Os norte-americanos e os ingleses têm andado às
tontas, não é? De qualquer maneira, com ou sem imbecis,
eu teria passado.
Falava com segurança, o que deixou o capataz
surpreendido. Por alguns momentos, esqueceu o caderno:
— Rum, hum...
— Está duvidando?
O capataz abanou as mãos:
— Oh, não! Nada disso! Você está aqui, não está?
Basta! É a prova definitiva!
Coça a ponta do nariz, enquanto examina o
desconhecido.
— Só tem uma coisa: não aprecio nada esses tipos que
querem fazer o que não podem... Você quer trabalhar aqui,
não é mesmo?
Não espera a resposta do outro:
— Mostre suas mãos.
Eram mãos delicadas; mãos de quem não estava
acostumado a pegar no pesado.
O capataz sorriu:
— Acho que você não agüentará. Que fazia você até
agora: Jogava cartas ou fazia tricô?
Ri da própria piada. A cara do desconhecido faz estancar
a hemorragia de risos.
— Quase acertou, “seu” capataz. Até agora evitei o
pesado, sim, senhor. Entre outras coisas: quase fui
milionário em Cuba, contrabandeando uísque escocês.
Acontece que se tratava, digamos... ah, sim: “indústria
doméstica”. O uísque era fabricado em casa, dentro de uma
banheira e, sabe como é, a polícia implica com essas
coisas... Acabei me “mandando”. Há algum tempo, em
Londres, trabalhei na estiva. Ultimamente, porém...
Cortou a frase. O capataz franziu o cenho, intrigado;
baixou a voz:
— Ultimamente, o quê?
— Bem... Não interessa. Olha, amigo, este negócio aqui
é um cais ou um confessionário? Afinal nós nos
conhecemos há alguns minutos e... É possível que mais
tarde eu lhe conte o resto. Jogou fora o cigarro apagado. —
E então? Vou ou não vou trabalhar?
O capataz considerou-o mais uma vez. Observou seus
ombros largos, seus braços musculosos. Talvez fosse
possível aproveitá-lo.
— Seu nome? Ou também é segredo militar e...
Não completou a frase. O outro enfiou a mão no bolso
traseiro da calça:
— Veja se os meus documentos servem. Estendeu-lhe
um passaporte encardido e coberto de grandes manchas
amarelas. O capataz franziu o nariz:
— Até parece que você andou fazendo sopa com isso,
rapaz — apertou os olhos, tentando decifrar o que estava
escrito: — Deixe ver... Acho que nem Champolion
poderia... Aqui diz qualquer coisa parecida com Samuel...
— Perfeito!
— Samuel McLigton, nascido na Irlanda, não é? —
perguntou, erguendo a cabeça.
O outro confirmou:
— É. E o passaporte está neste estado porque precisei
dar um mergulho e não tive tempo de tirar as calças...
A pergunta do capataz veio rápida.
— Naufrágio?
O rosto de McLigton anuviou-se de súbito:
— Chega de perguntas! — exclamou, arrebatando o
passaporte. — Se não me quer dar trabalho, que se dane!
Ia dando meia volta mas Thompson o chamou:
— Eh! Venha cá, amigo! Eu vou lhe dar trabalho!
Samuel retornou e plantou-se de braços cruzados, diante
do capataz. Mantinha a expressão carregada:
— Muito bem — disse secamente — Por onde Começo?
— Por ali. Pegue aquele saco e leve para o navio.
Acompanhe os outros.
Samuel agachou-se e pós o enorme saco às costas sem
demonstrar o menor esforço. E, então, entrou na fila dos
estivadores que subiam a bordo.
Um após outro, os homens desciam aos depósitos do
porão do navio; de vez em quando, um deles lançava uma
imprecação, contra os ingleses ou contra aquele trabalho
exaustivo, aquela vida de escravo, ou melhor, de burro-de-
carga
A voz de McLigton uniu-se à dos descontentes falando
mais alto que todos; mas também trabalhava mais do que
nenhum deles.
Após se desfazerem dos caixotes ou dos sacos, os
estivadores faziam outra fila e retornavam ao cais.
Ao findar a jornada, McLigton aproximou-se do capataz
e perguntou:
— Que tal achou meu trabalho? Posso voltar amanhã?
A resposta de Thompson foi um largo sorriso. Meteu a
mão no bolso do casaco e tirou um maço de notas. Separou
alguns dólares e estendeu-os a McLigton:
— Segure isto e vamos tomar uns tragos por aí. De
acordo?
McLigton guardou as notas sem responder. A mão do
capataz tornou a desaparecer no bolso e voltou trazendo
uma cigarreira:
— Aceita?
McLigton tirou um cigarro e ficou à espera: suspeitava
que o capataz tinha alguma coisa a dizer; havia algo de
ritual nos seus gestos, coisa não expressa mas sensível se
escondia por trás dos gestos e palavras do homem.
Thompson expeliu pelo nariz uma fumaça pestilenta e,
finalmente, disse:
— O senhor Kleist precisa muito de gente como você...
O outro não entendeu:
— Quem?
— Não importa. É um amigo e você precisa conhecê-lo.
Mas nada de precipitações. Vamos aguardar a hora precisa
e, então, eu o apresentarei a ele. Por enquanto, vamos tratar
de outras coisas. Temos um encontro com uma garrafa de
uísque. Topa?
McLigton fez que sim com a cabeça e seguiram ambos,
para um bar próximo ao porto. Entre um gole e outro, o
capataz apresentou sem reservas e em toda a sua extensão o
ódio mortal que nutria pelos ingleses. Também ele era
irlandês e não podia perdoar-lhes a subordinação de seu
país.
Samuel McLigton não se mostrou menos franco. Cada
vez que falava nos ingleses, cuspia com desprezo.
— Quando a Alemanha ocupar a Inglaterra — disse o
capataz — fará os ingleses pagarem caro, muito caro, o mal
que nos fizeram.
Thompson e McLigton brindaram com entusiasmo a
iminente derrota dos ingleses. Os olhos do capataz
brilharam e seu companheiro, vez por outra, soltava um
ruidoso soluço.
— Bem... E quando é que você me apresentará a esse
senhor... o senhor Kleist? — indagou McLigton.
Thompson fez uma cara de espanto, mas depois pareceu
lembrar-se de sua promessa:
— Ah, sim, o senhor Kleist. — Sua voz tomou um tom
confidencial: — Ele não gosta de ser apresentado a
estranhos, sabe? Vai primeiro querer saber quem é você, de
onde vem e que está fazendo aqui.
Faz um gesto largo:
— Mas não se preocupe — aponta o próprio peito. —
Eu vou falar com ele! Tenho um prestígio bárbaro com o
homem. Gostei de você, sabe? Vamos entornar mais um?
Despediram-se pouco depois. O capataz disse que
McLigton aparecesse para trabalhar no dia seguinte e
afastou-se assobiando. Estava entusiasmado por encontrar
um patriota que odiava os ingleses tanto quanto ele próprio;
isto o fazia sentir-se seguro de si mesmo, justificado.
Naquela noite, nos momentos que precederam o sono, o
capataz pensou com saudades nas verdes campinas da sua
Irlanda e decidiu que, no dia seguinte, sem falta, falaria com
o senhor Kleist sobre o novo companheiro.
***
Quando McLigton chegou ao cais Hoboken, na manhã
seguinte, já encontrou o capataz distribuindo ordens e
ameaças entre os estivadores. Ao vê-lo chegar, Thompson
sofreu uma transformação. Chamou o patrício à parte:
— Já conversei com o senhor Kleist. Ele vai investigar
primeiro e depois chamará você. Tudo por meu intermédio,
claro!
Samuel McLigton deu de ombros:
— Não faço a menor idéia do seguinte: por que tanto
mistério? Esse senhor Kleist deve ser um figurão
importante!
Thompson sorriu:
— Adivinhou, amigo Samuel! É importantíssimo! Mas
não se preocupe com os detalhes. Já não lhe disse que tenho
prestigio com o homem? Pronto! Calma, meu rapaz!
Olhou o relógio:
— Mexa-se, amigo, porque hoje temos muito trabalho.
O dia foi duro, de acordo, com a previsão do capataz.
McLigton passou o dia carregando e descarregando navios.
Durante todo o tempo, sentiu que o capataz dava uma
especial atenção ao seu trabalho. Ao cair da tarde,
Thompson deu-lhe a boa notícia:
— Recebi recado do senhor Kleist — disse com um
largo sorriso. — Quer que eu o leve lá agora mesmo.
Pigarreou várias vezes, coçou a cabeça como que
atrapalhado com um novo problema:
— É o seguinte: — disse, desfraldando, mais uma vez,
os dentes cariados. — Seria bom mudar de roupa, não é? Da
maneira que está, eu...
— Só tenho esta roupa — atalhou McLigton, irritado. —
Mas imagino que o senhor Kleist não seja dessas pessoas
que julgam os outros pela roupa que vestem...
— Está bem, está bem, não se fala mais nisto. Vamos.
***
Os escritórios da firma exportadora e importadora “E.S.
Kleist Inc.” achavam-se instalados num luxuoso edifício da
Cedar Street, no coração do centro financeiro de Nova
York.
Apesar do avançado da hora, os salões por que tiveram
que passar para alcançar a sala de espera do gabinete do
senhor Kleist encontravam-se ainda agitados pelo pessoal
administrativo às voltas com montões de papéis e livros. O
ruído incessante das máquinas de escrever, junto com o
rumor de vozes, contribuía para aumentar a sensação de
febril atividade que se respirava na atmosfera da “E.S.
Kleist Inc.”
Tudo fazia crer que era uma das mais importantes firmas
do ramo, em Nova York.
— Quanta gente, hem? — comentou McLigton.
Thompson fazia pose dentro do terno novo, enxadrezado
que havia posto para ir ver o senhor Kleist. Admitiu com
orgulho:
— Ainda é pouco para todo o serviço que temos!
O senhor Kleist mandara dizer que não podia recebê-los
imediatamente. Parecia ser dessas pessoas que gostam de
fazer-se esperar, mas McLigton não se importou muito com
isso; ao contrário, a espera deu-lhe oportunidade de
conhecer Bárbara.
Bárbara era a datilógrafa decorativa que trabalhava na
sala de espera do gabinete do importante senhor Kleist.
Thompson, ao entrar, cumprimentou-a com voz melosa,
chamando-a pelo nome e acompanhando a saudação com
um largo sorriso:
— Boa tarde, senhorita Bárbara!
A moça limitou-se a olhá-lo por cima dos óculos, sem
levantar o rosto. Mas, ao fazê-lo, esbarrou com o braço
numa pilha de cartas que tinha à sua direita e quase tudo foi
ao chão, O capataz e McLigton precipitaram-se para
apanhá-las.
Ao agachar-se, McLigton viu as pernas da moça e esteve
a ponto de soltar uma interjeição. Ficou alguns minutos de
boca aberta, perplexo. Seu olhar subiu, pouco a pouco, ao
longo do corpo da secretária: pernas e braços, roliços e bem
torneados, cintura fina e um rosto lindo e sensual. Não era
de estranhar que o gordo e sórdido Thompson gaguejasse e
piscasse nervosamente, ao entregar as cartas que apanhara.
As mãos do gordo capataz tremiam.
A moça, porém, não o olhou uma única vez; ao
contrário, fitava com insistência o garboso e jovem irlandês.
— Olá — disse McLigton.
— Olá — respondeu ela, tirando os óculos
precipitadamente, como para mostrar que por trás deles
ocultava um par de lindos olhos azuis. McLigton falou,
controlando o seu entusiasmo pela jovem:
— De uma coisa já sei, a respeito desse senhor Kleist:
ele sabe escolher suas secretárias. Se eu fosse ele...
— Que é que você faria, se fosse ele? — perguntou a
moça, com um provocante sorriso e mordendo a haste dos
óculos.
McLigton era da opinião que, em se tratando de uma
conquista, o homem não deve ser precipitado. Lera, não se
lembrava onde, que nesse assunto, quanto mais se dá,
menos se recebe. E, mais uma vez, represa seus impulsos;
faz o cínico:
— Em primeiro lugar, convidaria você para jantar esta
noite; depois...
— Depois o quê?
Thompson coçava a cabeça, despeitado de ver que seu
compatriota conseguia, em poucos minutos, o que ele não
havia conseguido em meses de assédio constante.
McLigton sorriu:
— Bem... Depois nós resolveríamos de acordo com as
circunstâncias. Por exemplo, poderíamos...
Uma longa e estridente campainha obrigou-o a
interromper-se. Bárbara recolocou apressadamente os
óculos e apontou para uma porta em cujo vidro se lia:
“MR. KLEIST — DIRETOR”
— Ele os espera — disse.
McLigton entrou no gabinete atrás de Thompson, não
sem antes lançar um olhar significativo à secretária.
Conservou as mãos nos bolsos da calça e o cigarro na boca.
Kleist aparentava não ter completado quarenta anos;
magro e nervoso, dava a impressão de ser um homem para
quem cada segundo desperdiçado representa uma perda
irreparável.
— Sente-se — disse, fitando o irlandês nos olhos. Era
mais uma ordem que propriamente um convite. McLigton
sustentou aquele irritante olhar e arrastou uma cadeira para
junto da mesa.
— Quer dizer então que estou tendo a honra de ficar
diante do grande senhor Kleist — disse com ar petulante,
sem tirar o cigarro da boca. — Muito bem, eu sou
McLigton. Se não me engano, o senhor sabe tudo a respeito
de minha vida, ou melhor, das minhas... virações.
Cruza as pernas:
— Vejamos: Samuel McLigton, irlandês de nascimento,
aventureiro e atualmente estivador, e inimigo dos ingleses
até debaixo d’água.
Aquela autobiografia arrancou o primeiro sorriso de
Kleist:
— De fato, eu já sabia de tudo isso. Mas há uma coisa
que não consegui descobrir: como foi que você escapou do
naufrágio do “Excelsior”.
Esfregou as mãos:
— Todo o mundo pensava que tivesse morrido...
— Ótimo! Isso de todo mundo pensar que morri, não é a
primeira vez que acontece — explicou McLigton cuspindo
o cigarro. — Ajuda muito, não? Morro, ressuscito, torno a
morrer, uma beleza! Desta vez, senhor Kleist, escapei por
milagre. Agarrei-me a uma tábua quando começava a perder
as forças. Depois, a espera, sob o sol e as estrelas, até a
passagem de um navio francês.
McLigton sorriu:
— Quer saber de uma coisa? Parece que o tal navio não
andava muito dentro da linha. Só sei que o capitão não
queria muita conversa com a polícia e acabou me largando
no caís sem comunicar o fato às autoridades.
Kleist deu uma palmada na própria perna:
— Ah! Foi por isso que eu não descobri. Mas diga-me
uma coisa: a que você atribui a explosão? Quero dizer, a
causa...
Chegou a vez de McLigton esfregar as mãos:
— Não sei, nem quero saber! Além do mais, gostei
mesmo que o navio tenha afundado. Levava armas para os
ingleses...
Kleist fez um gesto de impaciência:
— Chega! A mim não importa o que você pensa dos
ingleses. Sou norte-americano e os Estados Unidos, mais
cedo ou mais tarde, Vão entrar na guerra ao lado deles. Só
me interessa saber uma coisa: se você suspeita dos motivos
da explosão.
McLigton ergueu-se e encarou-o:
— Como quer o senhor que eu saiba de alguma coisa? A
viagem estava uma beleza, o mar calmo, o céu de um azul
impecável, até que surgiu um incêndio a bordo, mais
precisamente, no porão. Todos trataram de procurar uma
saída, caçando os escaleres. E, de fato, quando já estávamos
na água, houve a explosão. Depois os barcos viraram e...
— Bem — atalhou Kleist — era isto que eu queria
saber. Agora podem ir.
Pôs-se a remexer a papelada que havia sobre a mesa: a
entrevista estava encerrada. Thompson levantou-se com
dificuldade, por causa da barriga, e os dois saíram.
Do lado de fora, McLigton aproximou-se da secretária
para reatar a conversa já alinhavada:
— E então? Jantamos juntos esta noite?
— Por mim, não há nenhum inconveniente.
McLigton exultou:
— Imagine, então, para mim? Sou solteiro, livre como...
O capataz agarrou-o pelo braço; a mágoa estava nos seus
olhos:
— Vamos embora!
McLigton, revoltado, desprendeu-se com um gesto
brusco e acrescentou:
— Muito bem, Bárbara. Dentro de, digamos... — olhou
o relógio — uma hora, está bem? Passo aqui e apanho você.
OK.?
Durante o trajeto de volta, o capataz não conversou;
achava-se dividido entre o despeito e a admiração. Era
preciso reconhecer que havia homens que tinham uma sorte
tremenda com as mulheres...
— Escute aqui — disse McLigton de súbito: vou
precisar que você me pague uma semana adiantada e...
— Um momento, eu...
— Não estará fazendo nenhum favor. Você ouviu o
senhor Kleist? Gostou de mim, estava na cara! E o que é
mais importante: pretende me usar e você sabe disso.
Preciso de dinheiro. Ou você vai querer que eu jante com a
pequena usando estes trapos? Tem dó, Thompson!
O capataz começou a falar mas foi interrompido pelo
irlandês:
— Olha ali. Uma casa de roupas feitas! Vamos lá, sim?
Eu faço a compra, você paga e eu assino um vale. Tudo
resolvido.
Sem esperar resposta, arrastou o homem até a loja.
Comprou um terno, uma camisa, um par de sapatos, meias e
gravata. Mudou de roupa ali mesmo e mandou que
jogassem fora a que vinha usando:
— Talvez nem o lixo a aceite... — brincou.
— Você está outro — observou Thompson, ao mesmo
tempo que lhe estendia um vale.
McLigton examinou a própria imagem no espelho e
sorriu de satisfação.
Bárbara também não regateou elogios à sua aparência,
quando McLigton foi buscá-la. Achou-o mais simpático que
antes, apesar da grave restrição que fazia ao hábito de
McLigton falar de cigarro no canto da boca. Decididamente
ele a agradava.
Tão logo saíram do escritório da “E.S. Kleist Inc.”, ele a
atraiu para um canto e tentou beijá-la. Ela correspondeu.
— Assim, sim! — disse satisfeito. — Não gosto de sair
com moças cheias de “onda”. Agora já nos entendemos e
não há mais perigo. Nada de perder tempo. Vamos comer?
Bárbara enfiou o seu braço no do rapaz:
— E depois? — perguntou ela.
Os olhos da moça brilhavam. McLigton sorriu; já não
tinham dúvida do que fariam depois do jantar.
***
Enquanto isso, em Londres, o chefe do WOID do
“Inteligence Service”, ao ver que o agente McLain não dera
sinais de vida depois da explosão do cargueiro “Excelsior”,
riscou-lhe o nome da lista de auxiliares e incluiu-o na dos
mortos e desaparecidos em serviço. Ato continuo, enviou a
Nova York dois outros agentes da seção com o encargo de
investigar os motivos pelos quais continuavam a explodir,
em alto mar, os cargueiros que traziam armas e munições
para os aliados.

CAPÍTULO QUARTO
O charuto mais caro do mundo
Revólver é um bom argumento
Um mergulho nas trevas
Um impostor?

Um boato sinistro fora desencadeado e envolvia, num


clima de terror, as populações dos países que lutavam do
lado da Inglaterra ou simplesmente simpatizantes dos
aliados: o desembarque alemão, em algum ponto da costa
inglesa, era iminente. A verdade é que, apesar dos
bombardeios, os ingleses continuavam resistindo
bravamente.
E os navios carregados de armas e munições para os
aliados continuavam explodindo. Isto alegrava a maioria
dos irlandeses que trabalhava no porto de Nova York; e eles
expressavam a alegria que lhes causava o desenrolar dos
acontecimentos, dando maior entusiasmo às suas maldições
contra os ingleses.
Um dos que manifestavam mais ruidosamente esse
entusiasmo e esse ódio era McLigton. Tanto assim que um
dia o capataz Thompson chamou-o para uma conversa
particular.
— É importante! — disse. Thompson mostrava-se mais
circunspecto do que antes. Olhou em torno, ofereceu um
cigarro ao marinheiro e perguntou com voz rouca:
— Você nunca teve a curiosidade de se perguntar, à
noite, na cama, por que esses cargueiros têm explodido?
Ainda não teve um mínimo de curiosidade?
McLigton cuspiu o cigarro que acabara de acender:
— E por que teria? A causa não interessa, o efeito sim.
Fui testemunha visual e auditiva de uma dessas explosões e
lhe digo: não fosse pelo medo que sentia, porque eu estava
lá, no meio do fogo, e teria parado para admirar o
espetáculo. Fabuloso! Com as armas e munições afundaram,
também, alguns sonhos dos ingleses...
Thompson parecia preocupado; baixou a voz:
— Sim, claro, tudo ótimo! Mas escuta: você não gostaria
de colaborar nisso?
— Colaborar em quê?
O outro fez um gesto:
— Psiu! Fale mais baixo! Chegue mais perto, assim!
Agora preste atenção: você não está pensando que a carga
dos navios explode sozinha, não é mesmo? Por obra e
graça? Há uma coisa que, num certo momento, provoca a
explosão... Primeiro o incêndio e, então, depois: PUM!
McLigton arregalou os olhos:
— Êpa, rapaz! É melhor parar por aí! É negócio
perigoso e...
Mais uma vez o capataz levou o dedo aos lábios:
— Fale baixo, já disse! A coisa é muito simples e...
rendosa. Só que o pessoal está assustado, tem medo de ser
apanhado! É difícil arranjar gente nova e de confiança.
Você...
— Não conte comigo — explodiu McLigton. — Odeio
os ingleses e quero que eles morram, mas não a ponto de me
meter numa embrulhada e acabar fuzilado ou na cadeia.
A mão do capataz pousou no ombro de McLigton:
— E o dinheiro? Não vale nada? Você mesmo disse
que... bem, amigo, o negócio é o seguinte: cada “charuto”
valerá, para você, nada menos de duzentos dólares! São os
“charutos” mais caros do mundo, amigo, pense bem...
Coça o queixo e encara o marinheiro:
— Duzentos dólares para jogar o “charuto” na cara de
Churchill? Para colocar o bichinho no palácio da Rainha?
Nada disso: tanto dinheiro para colocar o “charuto” no
porão do navio.
O silêncio de McLigton era uma confissão. Thompson
sorriu: conseguira despertar o interesse do outro. Agora só
faltava o mais importante.
— E então? Vai colaborar comigo ou não?
McLigton continuou em silêncio. Finalmente, encarou o
outro:
— Quantos “charutos” desses eu vou ter de colocar por
dia?
— Três ou quatro.
McLigton ia falar mas foi interrompido pelo capataz:
— Compreenda, amigo! Mais do que isso seria perigoso,
poderiam desconfiar! Mas é muito dinheiro!
McLigton fez as contas mentalmente:
— Na pior das hipóteses, são oitocentos...
— Confere. E então?
O marinheiro hesita:
— Deixe-me ver...
Pensou por alguns instantes. Depois, espetando a barriga
do capataz com o dedo, exclamou:
— OK, camarada!
O rosto de Thompson iluminou-se:
— Quer dizer que aceita?
McLigton abre os braços:
— Estarei falando russo? Claro que aceito, gordão! Por
oitocentos dólares por dia sou capaz de descer ao inferno e
arrancar o diabo de lá. Mas com uma condição...
— Mete lá!
O outro estendeu a mão:
— Um adiantamento. Bárbara está querendo ir ao
Metropolitan Opera House. Ela gosta de ópera, veja você! A
verdade é que ela quer ir e um pobre estivador como eu...
— Quanto? — interrompeu Thompson.
— Quinhentos dólares.
Vendo que a expressão do capataz endurecia,
acrescentou depressa:
— E só desta vez, prometo! É que estou inteiramente
“pronto” e Bárbara...
— Está bem, mas só desta vez, entendeu? — advertiu
Thompson tirando algumas células do bolso: — Tome lá. E
não esqueça: amanhã mesmo você começa o “serviço”.
— Ótimo! Pode deixar por minha conta. Como lhe disse,
eu.
Mas já Thompson se afastava, resmungando a
balançando os braços ritmicamente.
Naquela noite, McLigton levou Bárbara ao Metropolitan
Opera House, onde encenavam o “Rigoletto”. A moça era
de fato uma entusiasta da ópera, mas ele não pode resistir
àqueles gritos desesperados e adormeceu na poltrona.
Na manhã seguinte, antes da hora de iniciar o trabalho,
Thompson chamou McLigton a um canto e estendeu-lhe a
cigarreira aberta, ao mesmo tempo que dizia, em voz baixa:
— Pegue os quatro cigarros da direita.
Eram cigarros cobertos com papel escuro, iguais aos que
ele e Thompson fumavam, mas pesavam muito mais.
McLigton apanhou-os e colocou-os em sua própria
cigarreira:
— Bem. Agora me diga o que é que eu faço com isto.
O capataz fungou:
— Quando você entrar no depósito do navio com a
munição, deixe um desses cigarros num canto qualquer.
Mas tome cuidado, hem! Que ninguém o veja fazendo isso,
está ouvindo?
McLigton fez que sim com a cabeça, mas havia uma
coisa que não compreendia muito bem.
Perguntou:
— E depois?
— Ah, meu prezado amigo! Depois é por conta do
“charutinho”...
McLigton balançou a cabeça:
— Mas eu não entendo como...
— Você não tem de compreender nada — disse o
capataz, impaciente. — Faça apenas o que eu digo!
McLigton deu de ombros e guardou a cigarreira:
— Está bem. Na verdade, não me interessa mesmo. O
que importa é o dinheiro. Com os quinhentos de ontem,
faltam trezentos...
Thompson remexeu nos bolsos e entregou-lhe o restante
do pagamento.
— Aqui está! Agora comece a trabalhar que já está na
hora. E cuidado, muito cuidado!
— OK! E não esqueça de rasgar aquele vale, hem?
Pegou um saco e saiu assobiando. Thompson olhou o
marinheiro que se afastava e fez um sinal. O homem, um
estivador, começou a segui-lo, entrando no navio atrás dele.
Do alto da ponte, o capitão pediu pressa aos
trabalhadores. Os guindastes descarregavam grandes pilhas
de caixotes na coberta da embarcação, que outra turma de
homens encarregava-se de levar para os depósitos do porão.
O homem que seguia McLigton viu-o entrar num dos
depósitos e colocar num canto o saco que levava às costas.
E viu mais: McLigton agachava-se para amarrar os sapatos.
Um dos capatazes que acompanhavam o trabalho no
interior do navio, chamou a atenção do irlandês:
— Você aí!
McLigton mostrou surpresa:
— Fala comigo?
— Você mesmo! Vê se não fica fazendo cera entendeu?
O outro tentou argumentar:
— Amarrar o cordão do sapato é proibido?
— Não, claro! Mas nada de perder tempo. Vamos indo,
anda!
McLigton saiu resmungando. O estivador que o seguia
depositou o saco que trazia consigo e olhou,
disfarçadamente, para trás da pilha que se formava no
canto: lá estava um dos “charutos”. De volta ao cais, fez um
sinal para Thompson, que respondeu com um gesto de
aprovação.
McLigton já retornava ao navio com outro saco às
costas. O capataz sorriu para si mesmo, satisfeito por ver
que o compatriota estava cumprindo à risca as ordens
recebidas.
Viu-o ainda repetir muitas vezes a viagem. Finalmente,
o trabalho acabou e o navio soltou as amarras com seus
depósitos repletos de armamentos para os aliados.
Corno nos casos anteriores, o capitão tomaria todas as
precauções cabíveis numa viagem daquela ordem, com
semelhante carregamento; mas tudo resultaria inútil: o
cargueiro tinha um encontro com a morte, nada poderia
impedir a explosão que teria origem num cantinho do porão,
por obra e graça de um “inofensivo” cigarrinho...
Thompson ficou contemplando o cargueiro afastar-se na
penumbra da tarde que acabava; seus olhos piscaram ao se
acenderem as luzes do cais.
O movimento continuava, com navios atracando e
homens andando como bichinhos de desenho animado.
McLigton atravessou a massa humana. E, mais uma vez,
tinha o cigarro pendurado na boca e as mãos nos bolsos da
calça.
Pouco depois, irrompendo das sombras, um “Cadillac”
começou a deslizar pelo asfalto: McLigton estava sendo
seguido. Um dos homens perguntou, em voz baixa:
— Olhe bem! É o nosso homem?
O outro encostou o nariz no vidro da janela. Tinha um
perfil que lembrava o de uma ratazana gigante. Respondeu,
hesitante:
— Há pouca luz... Não tenho certeza de que não é! Não
posso jurar! Nunca vi esse sujeito na minha vida!
O motorista explodiu:
— Miserável! Vou esmagar esse cara agora mesmo!
Acabou mudando de idéia:
— Um momento! Matar às claras, no meio da rua, não
parece bom negócio!
Parou o carro e ordenou:
— Salte e vá atrás dele. Telefone, mais tarde, dizendo
onde se meteu.
O outro não discutiu. Era um homem baixo e ossudo;
trazia um gorro enfiado até as orelhas. Já do lado de fora,
observou:
— Pode deixar que não me desgrudarei dele. Saiu no
rasto de McLigton. O marinheiro tomou um ônibus até
Cedar Street, onde Bárbara o esperava na calçada; beijou-a
no rosto, segurou-a pelo braço e foram jantar num
restaurante próximo.
O homem de cara de rato se havia transformado na
sombra do irlandês. Sentou-se numa mesa localizada
próxima da janela que lhe dava uma visão panorâmica de
todo o salão. Olhou o cardápio, fez o pedido e, antes de ser
atendido, foi ao telefone. Atenderam e ele baixou a voz;
segurou o bocal com as mãos em concha:
— Sou eu! O homem está jantando num restaurante da
Cedar Street, com uma moça.
Meia hora mais tarde, seguia-os até um “dancing”.
Imerso num tédio horrendo, uma vez que estava sem
companhia, limitou-se a assistir às cenas de amor que,
gratuitamente, os casais que se atracavam nas mesas e na
pista de dança ofereciam.
O cara de rato resolveu dar outro telefonema; avisou:
— Estão no “dancing”.
Finalmente, McLigton levou a moça até em casa.
Normalmente, depois dos passeios, o rapaz entrava.
Naquela noite, porém, despediu-se na porta; beijou de leve
os lábios da namorada:
— Boa noite, meu amor.
Bárbara ficou desapontada:
— Mas... Não vai subir? Tão cedo...
McLigton desculpou-se:
— Além do cansaço, trabalhei muito hoje, tenho um
problema pendente...
Despediram-se e McLigton saiu. O cara de rato
espreitava-o, escondido atrás de uma árvore; viu-o passar,
assobiando alegremente, com as moas nos bolsos, em
direção à parada de ônibus. E, então, deixou o esconderijo.
McLigton fez um sinal e o coletivo parou. Ambos
entraram e o homenzinho que o seguia sentou-se no último
banco. Saltaram e a perseguição continuou. McLigton
entrou numa rua escura e o outro apressou o passo. De
repente, parou no meio da rua: McLigton havia
desaparecido. Soltou uma praga e começou a procurar em
cada um dos portais. De súbito, o cara de rato sentiu-se
agarrado; seu pescoço foi envolvido por um braço
musculoso. Alguém soprou no seu ouvido:
— Se gritar, morre aqui mesmo!
Petrificado, o pobre-diabo começou a sentir que o ar lhe
fugia. O braço, entretanto, afrouxou a pressão. A alegria do
cara de rato durou pouco tempo; um violento murro
explodiu contra o queixo do homem. Tudo escureceu e ele
mergulhou no mundo das trevas...
McLigton sustentou o outro pela cintura, passou um dos
braços dele em torno de seu próprio pescoço e pôs-se a
arrastá-lo enquanto caminhava. Quem os visse, andando
tropegamente, ziguezagueando, julgaria que eram dois
bêbedos, amparando-se mutuamente.
Chegaram a uma rua de maior movimento e McLigton
começou a catar um táxi. Pouco depois um carro encostava
no meio-fio. Ao ver o estado em que se encontrava um dos
passageiros, o motorista recusou:
— Desculpe, mas... O senhor sabe, bêbedo eu não levo.
McLigton já contava com isso; puxou uma nota de cinco
dólares e estendeu-a ao motorista. O dinheiro diluiu a
resistência do outro que começou a abrir a porta enquanto
explicava:
— O senhor sabe como são as coisas. Às vezes eles
vomitam...
Já instalados no interior do carro, McLigton pesou o
problema: no apartamento o sujeito confessaria. De
qualquer maneira, o caso abria uma porta para o infinito. O
irlandês não tinha dúvida quanto ao seguinte: o homem não
trabalhava sozinho; era, indubitavelmente, um reles
capanga. Duas perguntas o atormentavam e exigiam
respostas imediatas: por que fora seguido e quem seria o
responsável por tudo aquilo?
McLigton sabia que precisaria usar de violência para
arrancar uma completa confissão. Acontece que o edifício
onde morava parecia feito sob medida para um
interrogatório na base do “habilmente interrogado”. Era um
velho pardieiro que abrigava dezenas de famílias humildes,
gente que vivia num mundo de ódio e de amor, para o qual
um escândalo a mais ou a menos não importava. Vez por
outra, a qualquer hora do dia, gritos de crianças e adultos
enchiam o prédio. Pouco depois, porém, aplacado o ódio,
tudo voltava ao normal.
Era, portanto, o ambiente ideal para submeter alguém a
um “interrogatório”. McLigton saltou diante do edifício e
outra nota de cinco dólares mudou de dono. O motorista,
diante do freguês “mão aberta”, só faltou ficar de joelhos:
— O senhor é um anjo!
Ajudou o benfeitor a tirar o passageiro de dentro do
carro e observou:
— Ele dormiu?
— É, dormiu — concordou o irlandês. — A mulher dele
vai ficar uma fera...
O motorista gostava de dar conselhos.
— Se o senhor permite a sugestão... O negócio e deixar
o homem sentado na escada até passar o pileque.
— Boa idéia! Obrigado e boa noite.
Tornou a segurar o sujeito pela cintura e arrastou-o para
dentro do edifício. Foi uma dificuldade fazê-lo entrar no
elevador e mais ainda levá-lo para dentro do apartamento,
no quinto andar.
Depois de atirar o cara de rato sobre a poltrona,
McLigton foi à geladeira apanhar um refrigerante. Tomou
alguns goles pelo gargalo e em seguida esparramou na mesa
os cigarros que ainda trazia na cigarreira. Pegou um deles e,
quando começava a retirar o seu envoltório, ouviu um ruído
atrás de si. Imaginou que o homenzinho houvesse acordado.
Voltou-se rapidamente e teve a surpresa: viu-se diante de
dois desconhecidos que empunhavam pistolas.
McLigton sabia quando estava perdido; limitou-se a
levantar os braços. Um dos homens aproximou-se da mesa e
começou a examinar os cigarros.
— E então? — indagou o outro.
— Estão aqui. Todos eles.
A coronha da pistola atingiu McLigton na cabeça. A
violência do golpe atirou o irlandês no tapete. Nesse
momento o cara de rato despertou e viu os dois
companheiros. Gritou:
— Não deixem ele escapar!

CAPÍTULO QUINTO
Volúpia de matar
Morto é bom, vivo é melhor
Uma casa sinistra para homens e ratos

Não apenas McLigton, personagem da história, mas


também o leitor deve estar procurando resposta para
algumas perguntas. Por exemplo por quê e por ordem de
quem o irlandês foi seguido do pelas ruas escuras de Nova
York e posteriormente atacado no interior de seu próprio
apartamento? Não havia seguido as instruções do capataz
Thompson e deixado os “cigarros” no depósito do
cargueiro? Tendo cumprido a missão não recebera
oitocentos dólares a título de pagamento extra?
O que o leitor já compreendeu, por intuição é que
McLigton não cumpriu a missão; ou melhor, substituiu os
explosivos por cigarros comuns.
Como na aparência eram gêmeos, o estivador que
seguira Thompson a bordo não dera pela troca. Pelo menos
um navio chegaria ao seu destino com a carga intacta.
Acontece que o ardil de McLigton não demorou a ser
descoberto: à saída do porto fora apontado ao homenzinho
com cara de rato. Este pulara:
— Como é o nome dele?
— McLigton.
E, então, o outro fizera um verdadeiro comício:
— McLigton coisa nenhuma! Esse cara é um impostor!
As suspeitas nasceram imediatamente e os interessados
em fazer explodir os cargueiros quiseram tirar a coisa a
limpo. O próprio cara de rato fora incumbido de descobrir a
identidade do possível impostor.
Eis por que os dois homens resolveram aguardar
McLigton no apartamento, usando uma chave-mestra para
entrar.
***
Enquanto um dos homens segurava os cigarros,
separando os falsos, o outro colocava algemas nos pulsos de
McLigton. O cara de rato esbravejava:
— Deixa eu chutar esse cretino!
— Calma aí!
O cara de rato parecia alucinado; desprezou o conselho
do outro e partiu para cima do irlandês. Um dos homens
agarrou-o pela gola:
— Calma, já disse!
— Mas ele me esmurrou na rua! Pegou-me distraído, o
cachorro! — protestou o homenzinho.
O outro soltou a gola:
— Acontece que as ordens são outras. Vamos levar o
cara inteiro, entendeu?
McLigton voltou a si e encarou o homem que lhe
colocara as algemas. Este brincou:
— A bela adormecida acordou!
Voltou a segurar a pistola; empurrou o cano na barriga
de McLigton:
— Nós vamos caminhar, companheiro! E você vai
quietinho, bem!
Já estavam no corredor quando um dos homens estalou
os dedos.
— Êpa! A gente ia esquecendo os “charutos”. Voltou
para o interior do apartamento e, pouco depois, reaparecia:
— Tudo OK! Podemos ir.
Na porta do elevador, duas mulheres discutiam em voz
alta. Silenciaram quando deram com o irlandês algemado,
seguido dos homens; acreditaram que se tratava de mais
uma das costumeiras batidas da polícia. Sorriram e deram
um “boa noite” respeitoso.
Na rua, um carro os esperava. Embora sem a mínima
esperança de sair vivo daquela aventura, McLigton anotou,
mentalmente, o número da placa. Tratava-se de homens
primários, que atirariam se ele tentasse fugir, antes de
contar até dez. Chegou à conclusão que o negócio era
ganhar tempo, deixar-se levar na onda dos acontecimentos.
Na primeira oportunidade, então, tentaria a fuga.
O estivador foi rudemente empurrado para dentro do
carro. Um dos homens sentou-se ao seu frio, no assento
traseiro. A pistola do sujeito estava encostada rias costelas
do irlandês.
O carro rodou durante cerca do uma hora, atravessando
ruas e avenidas que McLigton desconhecia. Os homens
fumavam sem parar. A certa altura, McLigton, mais para
puxar conversa e menos pela vontade de fumar, pediu um
cigarro. Acreditava que, se conseguisse manter um diálogo
com os bandidos, poderia ter alguma chance.
O que estava sentado ao seu lado imitou a voz de
McLigton:
— Aceitaria um cigano?
Todos riram e o motorista falou:
— Dê um cigarro a ele, irmão!
— Posso dar mesmo?
O cara de rato já ia protestar quando o mais forte do
grupo, companheiro de banco do holandês, deu-lhe forte
soco na cabeça. O cara de rato vibrou, explodindo numa
gargalhada de satisfação.
— Dê mais outro! Dê um por mim nesse...
Não foi atendido. Diante de uma casa solitária, quase em
ruínas, o carro parou. Um cão ladrou a distância e um
pequeno animal, que McLigton não identificou, passou
correndo perto deles. A porta gemeu ao ser aberta. Ouviu-se
o chiado e o corre-corre dos ratos no interior da casa. Pelo
visto, raramente alguém aparecia por ali; era um étimo lugar
para manter um prisioneiro ou, se fosse o vaso, trucidá-lo:
ninguém acudiria aos gritos.
Ao entrar, a primeira coisa que McLigton viu foi um
telefone sobre uma pequena e desconjuntada mesa, coberta
de poeira; era uma nota dissonante num lugar como aquele,
tão solitário e abandonado. Parecia confirmar que a casa
costumava ser freqüentada.
Toda a mobília se resumia naquela mesa com o telefone
em cima. Um dos homens foi ao aparelho e discou um
número. Esperou e acabou falando:
— É Frank.
Ouviu por alguns instantes, depois respondeu:
— Sim, senhor. Estamos com ele aqui. O Gomperz
também está. Bem, mas... O que faremos com ele?
Gomperz, o homenzinho de cara de rato tinha um nome.
Outro intervalo e Frank voltou a falar:
— Ah, é? — olhou na direção de McLigton.
— Pode deixar que ele vai soltar a língua!
Ri, sórdido:
— Vai contar até o que não sabe...
Desliga e esfrega as mãos:
— OK, rapazes! Podemos começar! Venha, Hans!
Em câmara lenta, os homens começaram a arregaçar as
mangas. Faziam suspenso, para impressionar o prisioneiro.
Gomperz, o cara de rato, era o mais ansioso pelo começo do
interrogatório.
Frank, que tinha a pele muito branca, parecia ser o chefe
do grupo; cuspiu o cigarro e aproximou-se de McLigton:
— Você ouviu o que o chefe disse? Vá logo dando o
serviço! Quem é você?
McLigton não se perturbou; parecia muito senhor de si:
— Meu nome é McLigton — apontou com a cabeça. —
O resto deve ser onda desse cara de...
Gomperz protestou:
— Mentira dele! McLigton, o verdadeiro, era meu
amigo íntimo! Estava trabalhando no “Excelsior”, como
marinheiro e...
— Chega! — gritou Frank.
O soco de Frank pegou pouco acima do queixo do
irlandês. As mãos algemadas impossibilitavam qualquer
defesa.
— Você vai falar, “seu” ordinário! — rosnou Frank. —
Vai falar nem que eu precise arrancar a sua alma!
Preparou um novo golpe. Desta vez, porém, cometeu o
erro que cometem alguns lutadores de boxe, qual seja:
“telegrafou”. Isto quer dizer que Frank praticamente
anunciou onde daria o soco. Contava, naturalmente, que o
prisioneiro simplesmente levaria mais um golpe e não
reagiria.
Foi o grande engano de Frank. Prevenido, McLigton
desviou a cabeça e aplicou violento pontapé entre as pernas
do agressor. O homem caiu ao chão, gemendo de dor.
Hans fez menção de lançar-se sobre o Irlandês, mas
estava indeciso. O cara de rato, por sua vez, olhou em torno,
à procura de qualquer coisa que pudesse ser usada como
arma. Descobriu a pistola de Frank, caída próximo da mesa,
e apressou-se a apanhá-la:
— Não se mexa, senão atiro! — ameaçou.
McLigton podia distinguir, entre centenas de homens,
um covarde. E Gomperz era um deles. Tinha as
caraterísticas que identificam o frouxo. O irlandês encarou o
cara de rato:
— Atira nada! E por dois motivos: vocês precisam de
mim vivo e bem vivo e, além do mais, você não é homem
nem para puxar o gatilho.
Mantinha-se encostado á parede. Hans fuzilava-o com os
olhos, mas tratando de ficar longe do alcance dos pés do
irlandês. Acabou, porém, atirando-se contra ele, meio de
lado. Mas McLigton mudou de tática: baixou a cabeça e
avançou. Hans, sem poder evitar a cabeçada que lhe atingiu
a ponta do queixo, foi ao chão, onde Frank ainda se
contorcia de dor.
Restava, apenas, o covarde do cara de rato, que guardava
respeitável distância e empunhava a pistola. Fez um gesto
com a arma:
— Eu atiro, juro que atiro!
Desta vez McLigton acreditou na ameaça. O medo
levaria Gomperz a desobedecer as ordens do chefe e a puxar
o gatilho. O mesmo medo que o impedira de atirar, seria o
responsável por mais urna morte na folha de “serviços do
cara de rato. McLigton não teve outro remédio senão
obedecer.
De qualquer maneira, testou O homenzinho; esboçou um
movimento e o resultado foi rápido:
Gomperz passou no teste. A bala silvou a um palmo de
seu rosto. McLigton engoliu em seco e voltou a encostar-se
à parede.
O cara de rato criou alma nova. Fez um gesto com a
arma:
— Viu? Está com medo, hem? Anda, venha até aqui, seu
cretino! Ah, não quer?
Pôs-se a caminhar em direção ao irlandês:
— Então eu vou até ai!
Fitava-o com um olhar febril. A volúpia de matar
substituía o medo. De súbito, o homem começou a rir, um
riso nervoso, inestancàvel. Os dentes encardidos ficaram à
mostra. McLigton sentiu um vazio no estômago e trincou os
dentes.
Gomperz parou de rir; ficou muito vermelho e apontou a
arma mais uma vez. Frank antecipou-se, atirando-se sobre
ele e torcendo-lhe o braço:
— Larga isso, seu estúpido!
A arma caiu e Gomperz gemeu; começou a massagear o
braço:
— Você me machucou!
Voltara a ser o covarde de sempre. “É mesmo um rato”,
pensou McLigton.
— Chega, pronto! Precisamos dele vivo e bem falante!
Ou você ficou maluco? O chefe disse que... Ah, deixa isso
pra lá e vamos ao que interessa! Depois ele receberá o que
merece! Passe o seu cinto!
Cara de rato ficou na dúvida:
— Cinto? Para quê?
— Não interessa!
Gomperz obedeceu, assustado. Entregou o cinto ficou
segurando as calças.
Hans voltou a falar:
— Que é que você vai fazer com isso?
Frank não respondeu. Fez um gesto para o companheiro
e os dois se arremeteram juntos contra McLigton.
Agarraram-no, jogaram-no ao chão e, enquanto um se
mantinha de joelhos sobre o seu peito, o outro imobilizava-
lhe as pernas, amarrando-as com o cinto pelos tornozelos.
E então o “interrogatório” começou. Socos e pontapés se
mostraram ineficazes e logo métodos mais “convincentes”
foram postos em prática: fósforos na sola dos pés, farpas
sob as unhas, etc.
Durante cinco dias, McLigton viveu na terra uma
experiência do inferno. Todos os tipos de tortura conhecidos
foram experimentados. Contudo, ele continuava afirmando
ser o verdadeiro McLigton e que havia escapado do
naufrágio do “Excelsior”. Houve momentos em que, apesar
de toda a sua fibra, o irlandês esteve a ponto de confessar.
Travou-o, porém, a certeza de que morreria de qualquer
maneira e mais: sua confissão prejudicaria a milhares de
pessoas, uma vez que os espiões passariam a ser mais
cuidadosos.
Havia, ainda, um detalhe importante que animava o
prisioneiro: os próprios bandidos começavam a desconfiar
do cara de rato. A obstinação de McLigton em afirmar que
escapara da tragédia e que fora recolhido por um barco
francês abalava a certeza de Frank e de Hans.
Frank foi o primeiro a falar:
— Vai ver que esse maldito irlandês está dizendo a
verdade!
Gomperz estava deitado num canto. Tirara a calça e a
transformara num travesseiro. Ergueu-se de um pulo:
— Ele está mentindo! Eu conheço McLigton! Juro que...
— Vá para o diabo com os seus juramentos! — gritou
Frank.
Passeava de um lado para o outro, sobre as pontas de
cigarros que atapetavam o chão.
— Já fizemos tudo, e nada! Que conclusão se pode tirar?
Hans concordou, com um aceno de cabeça:
— Nunca vi ninguém agüentar tanto!
McLigton estava desacordado. Frank resolveu dar mais
um telefonema; discou o número do homem que dava as
ordens.
— Aqui é Frank. Até agora, nada! O homem já sofreu o
diabo e...
A voz do outro lado explodiu:
— Vocês são um bando de frouxos! Uns inúteis!
— Mas ele é duro. Já fizemos tudo...
Houve uma pausa e o outro voltou a falar, mais calmo:
— Ouça, Frank. Amarrem o cara. Podem deixar ele ai.
— Vivo?
— Exatamente. Vivo. Mas todas as manhãs vocês
voltem ai. Antes de sair, deixem um dos “charutos” bem na
frente dele. Ele já deve desconfiar como es bichinhos
funcionam e talvez resolva abrir o bico. De qualquer
maneira, mesmo que resolva não falar, não poderá contar
nada a mais ninguém. E qualquer novidade, telefono.
Frank ainda tentou ponderar mas foi inútil. O outro já
havia desligado. Hans e Gomperz o observavam, à espera.
As ordens foram passadas aos dois companheiros.
O cara de rato não gostou:
— O golpe é acabar com ele de uma vez!
Frank olhou-o com desprezo:
— Você não pia! Não decide nada!
Aproximou-se de McLigton e chutou-o, para que
despertasse. O irlandês abriu os olhos.
— Escute aqui, ordinário. Nós vamos dar outra
oportunidade a você. Tem dois dias para nos contar tudo,
entendeu? E agora, olhe isto aqui
Voltou-se pala Hans: — Me dê um dos “charutos”.
McLigton acompanhava os movimentos de Frank,
procurando compreender. Tinha os lábios inchados, o rosto
coberto de equimoses e enxergava com dificuldade.
Frank desfraldou, no nariz do prisioneiro, o falso cigarro
que o companheiro lhe entregara:
— Está vendo esse negócio? É um dos “charutos” que
você devia ter colocado no cargueiro. Não queria saber
como funciona? Pois vai saber, seu... Vou deixar ele aqui
para que você não fique tão solitário.
A piada arrancou uma gargalhada de Gomperz.
— De qualquer maneira — acrescentou — ele não
estaria sozinho. As ratazanas são boas companheiras...
Frank colocou o cigarro no chão, a poucos metros de
McLigton e observou:
— Ele ficará bonzinho aqui, até um certo momento... Se
você não resolver nos contar tudo direitinho, vai ver como
ele é eficiente. Mas vai ser a última coisa terrena que você
vai ver...
Tirou um cigarro verdadeiro do bolso e o acendeu.
McLigton, com esforço, conseguiu sentar-se. Frank sorriu:
Já sei que você pode se arrastar e pegar o “charuto”. Mas
há um pequeno detalhe a considerar: se tentar destruir o
“charuto” estará, apenas, antecipando sua viagem para a
eternidade.
— Que é que acontece, quando... — perguntou o
irlandês, com voz fraca. Foi interrompido:
— Conte a ele o que acontece — disse Hans — conte a
ele, Frank. Depois do interrogatório ele ainda ficou mais
burro.
Frank não concordou:
— Nada disso. Deixo o nosso amigo mesmo descobrir.
Vai ver o que acontece quando a coisa começar a funcionar.
E agora, vamos. Ele precisa ficar sozinho para pensar na
vida... ou na morte.
Antes de se retirar, tornou a advertir:
— Tem dois dias para resolver, ouviu bem?
CAPÍTULO SEXTO
À presença aterradora
Uma faca faz milagres
Mais um navio condenado
Grampos têm muita utilidade

Uma estrela de luz que filtrava por baixo da porta


tornava menos intensa a escuridão da sala. Lá fora, nem um
ruído, ou melhor: apenas um sapo coaxava e um grilo, vez
por outra, dava um ar de sua graça...
A esperança de McLigton e as horas se escoavam. Só
por milagre passaria um carro num lugar ermo como aquele.
A sola dos pés do irlandês estavam em carne viva; o sangue
coagulado cobria suas mãos, atadas às costas. Pensou em
arrastar-se pela sala e tentar abrir a porta. Lembrou-se,
porém, de ter visto Frank fechá-la à chave. Por outro lado, a
única janela existente ficava a três metros de altura e, de
certa maneira, não merecia o nome de janela; era um
orifício que mal daria passagem a uma pessoa de pequena
estatura.
A alguns passos à sua frente achava-se o “charuto”.
“Dois dias”, murmurou o prisioneiro. É possível, inclusive,
que funcione antes disso. Era um objeto pequeno e de
aparência inofensiva. Mas naquelas circunstâncias, aos
olhos de McLigton, a coisa tomava a forma de uma ameaça
que fazia pequena demais aquela sala.
Sacudiu a cabeça, tentando evocar a imagem de Bárbara;
viu seu rosto amuado, quando ele fazia perguntas
indiscretas a respeito do tipo de negócios a que seu chefe se
dedicava. Ela argumentava que a hora era própria para o
amor e não para tratar de assuntos ligados ao escritório.
Estaria sendo sincera ou o motivo da recusa seria outro?
Outra dúvida o atormentava: Bárbara seria o que se conhece
como “inocente útil”?
Surpreendeu-se com os olhos fixos no “charuto”
Arrastou-se, com dificuldade, até junto do pequeno objeto.
Na penumbra, mal podia vê-lo. Arrastou-o até que ele
ficasse o mais possível perto da porta; pode, então, observá-
lo graças à pouca luz que entrava. Que haveria por baixo
daquele envoltório? Um explosivo, sem dúvida. Mas devia
haver também um mecanismo complicado para fazê-lo
explodir somente após um certo período de tempo, como
acontecia nos porões dos navios Que mecanismo seria esse?
McLigton, vencido pela curiosidade o na certeza de que
morreria de qualquer maneira, tomou a decisão suicida:
apanhou o “charuto” com a boca. Nada aconteceu.
Lembrou-se, então, da advertência de Frank e sentiu um frio
na espinha. Mas nada o faria desistir. Conseguiu prender o
“charuto” entre os joelhos e, com os dentes, começou a
retirar sou envoltório.
Havia somente um pequeno cilindro que parecia de
chumbo, fechado nas extremidades. Nada tinha no seu
exterior que desse a impressão de ser perigoso. Mas, por
dentro? E como era possível que explodisse com data fixa?
Ainda que dispusesse de um mecanismo semelhante ao dos
relógios, a corda não poderia durar tantos dias para chegar
ao fim...
Durante alguns momentos, McLigton ficou meditando.
A verdade incontestável era a seguinte: o “charuto”
provocava explosão. Os navios naufragados eram a prova.
Recolocou o objeto no chão, devagar, arrastando-se para
mais longe possível dele.
Quando veio a noite, deixou de vê-lo. E, no entanto,
sentia com mais intensidade, a sua presença aterradora.
Tentou dormir mas não conseguiu. Além da presença do
“charuto”, um outro perigo o ameaçava: ao cair da noite os
ratos sairiam de suas tocas. E, de fato, pouco depois,
McLigton já os ouvia andando na sala, atraídos pelo cheiro
do sangue. Houve um instante em que pensou estar
completamente perdido: algo rolava pelo chão e só podia
ser o cilindro de chumbo. Os ratos deviam tê-lo descoberto.
Gritou várias vezes, desesperado, tentando afastar os
bichos.
Gritou mais duas ou três vezes, com medo da explosão.
McLigton estava inseguro de si mesmo e as dores
aumentavam à medida que ele procurava uma nova posição.
Vez por outra, tinha a impressão de que adormecera e
arregalava os olhos, assustado. Não conseguia afastar da
mente o pequeno e sinistro cilindro de chumbo. Especulou:
“Deve provocar incêndio. Mas não, Santo Deus! Frank
disse que se eu tocasse no “charuto” abreviaria minha
viagem para a eternidade. Queria dizer, então, que explode
mesmo. Mas como?” Pensou no “Excelsior” e no incêndio
que precedera a explosão. Mas mesmo aceitando, apenas, a
hipótese do incêndio, que chances teria? A casa era velha e,
em poucos minutos, estaria reduzida a um monte de cinzas.
Até que alguém aparecesse — o que não parecia provável
— McLigton estaria morto.
Vez por outra, memória e imaginação se confundiam e a
atenção do irlandês focalizava os ratos e ele gritava.
Novamente o silêncio e a luta do prisioneiro contra o sono
que começava a esmagá-lo.
***
Uma luz vermelha principiou a insinuar-se por baixo da
porta e, pouco a pouco, tomou um tom amarelo: amanhecia.
McLigton percebeu que havia dormido. Por quanto
tempo? Tratou de localizar o cilindro de chumbo.
Encontrou-o a dois passos da porta. Os ratos não haviam
feito mais do que deslocá-lo um pouco para a direita.
Haviam, apenas, comido o envoltório.
Mais tarde, McLigton ouviu passes que se aproximavam
da casa. Seu coração bateu mais acelerado, desejando que
fosse a policia ou alguém que viesse salvá-lo...
A possibilidade, porém, era mínima. A verdade é que
estava “morto”, oficialmente; morrera no naufrágio do
“Excelsior”. Quanto aos documentos, é fácil explicar:
apanhara-os no bolso do verdadeiro McLigton, que flutuava
sobre os destroços de um dos escaleres. O marinheiro suíço
Max Scheele pertencia ao passado; McLigton só existia no
passaporte. Começava a acreditar que cometera o maior erro
de sua vida, ao usar o nome de McLigton. O cara de rato
tinha razão, e agora era tarde demais.
A sombra de Frank precedeu-o na entrada da sala. Era
seguido pela dupla Hans e Gomperz. Os três fecharam os
olhos, por alguns momentos, para habituá-los à penumbra.
Frank avançou.
McLigton gritou:
— Cuidado! Você vai pisar nele.
Os três olharam para o chão.
— Fez bem em nos avisar — Frank quase agradecia ao
prisioneiro.
Contornou o cilindro e aproximou-se de McLigton.
— Como é? Vai falar ou prefere... — apontou o cilindro
— continua com o “charutinho”?
McLigton não respondeu.
— Você só tem vinte e quatro horas — ameaçou.
Gomperz batia na mesma tecla:
— Seria melhor matar ele de uma vez! Por que esperar?
Olha: mesmo admitindo que eu esteja errado, você não pode
negar o seguinte: ele não deixou os “charutos” no porão do
navio. O que prova isso?
Mais uma vez os dois outros não lhe deram resposta.
Hans agachou-se ao lado do prisioneiro:
— Por que não fala de uma vez? — aponta o cara de
rato. — Gomperz sabe trabalhar com uma faca como
ninguém, hem, Gomperz? Mostre a ele!
O cara de rato, diante da possibilidade de se vingar do
outro, arreganhou os lábios; o ar homicida voltou a iluminar
o rosto pequenino e feio. Arrancou uma faca; a mola fez a
lâmina saltar. Olhou Frank nos olhos, como que pedindo
licença. A mensagem foi captada:
— Pode ir, rapaz.
Gomperz abaixou-se ao lado de McLigton. A lâmina
ficou a uns poucos centímetros do rosto do falso irlandês. O
cara de rato ameaçou:
— Vai falar, seu filho de uma cadela, ou quer que eu...
— Empurrou mais a lâmina.
Uma gota de sangue apareceu no rosto do prisioneiro.
Gomperz continuou:
— Diga logo a eles que você não é McLigton, anda!
Quer me deixar mal com eles, não é?
Ameaçou enterrar a faca no pescoço de McLigton mas
não teve chance. A voz de Frank explodiu:
— Chega!
— Mas... — O ar de Gomperz era de decepção.
— Levante-se. — Frank deu a ordem e ajudou Gomperz
a cumpri-la: agarrou-o pela gola e o cara de rato foi
suspenso como um saco de batatas. — Quando eu digo
“chega” é “chega” mesmo! Quer matar o sujeito?
O homenzinho, apesar de advertido, ainda desferiu três
ou quatro pontapés no prisioneiro. Frank puxou-o para o
lado e bateu-lhe no rosto com a mão aberta. Gomperz
acabou sentado no chão, com as mãos cobrindo o rosto e
choramingando.
Hans recostou-se na parede, acendeu um cigarro e
começou a falar num tom paternal:
— Sabe o que eu estava dizendo ao Frank, lá na rua?
Dizia que já estava começando a gostar de você. Palavra
que nunca vi um cara tão macho, tão... resistente,
estupidamente resistente. Você tem coragem, sabe? Você
me machucou e eu não guardei mágoa nenhuma! Por que
não trabalha conosco? Um sujeito como você é sempre útil.
— Fez uma pausa, aguardando uma resposta que não veio.
E, então, acrescentou: — Basta você dizer para quem está
trabalhando atualmente e — estalou os dedos — tudo
resolvido, sem ressentimentos de parte a parte!
McLigton percebeu que, embora Frank sendo o chefe,
Hans era o cérebro. Tentou ganhar tempo:
— Mas eu não posso mentir para agradar, posso? Já
disse que não trabalho para ninguém e que esse baixinho ai
está mentindo...
— Cachorro, vou...
— Cala a boca, Gomperz! — Hans fez um gesto.
— Continue, McLigton, ou melhor: como se explica,
então, que você tenha ficado com os “charutos”?
— Eu já expliquei! Queria ver o que eles tinham dentro.
Curiosidade, apenas, eu...
Os três caíram na gargalhada. Frank fez um sinal para os
outros e disse:
— Ele não tem jeito... Se prefere morrer, paciência —
esfrega as mãos. — A gente fez o que podia. Amanhã
voltamos aqui para ver o que sobrou dele...
— Pena... — disse com ironia.
Os três saíram, com Gomperz por último, resmungando
que o melhor seria liquidar o assunto na hora. Mas Frank
não era da mesma opinião. Apesar do que dissera, esperava
encontrar o prisioneiro vivo, na manhã seguinte. Acreditava
que mais uma noite em companhia dos ratos, do cilindro e
com fome, o prisioneiro acabaria entrando em pânico.
Segundo seus cálculos, o “charuto” só funcionaria ao cair
da tarde do dia seguinte. Conhecia o chefe melhor do que
ninguém. E sabia o quanto era importante, para a
organização, a confissão do impostor. Ou não seria um
impostor? Se o cara de rato estivesse mentindo... Mas havia
o episódio do “charuto” e a explicação ridícula apresentada
pelo prisioneiro. Curiosidade. Pois sim!
A chave girou na fechadura e a solidão voltou ao quarto.
McLigton sentia-se cada vez mais enfraquecido e, pouco a
pouco, a sensação de medo irreprimível voltava.
McLigton, crestado por uma série de fortes experiências
e sofrimentos, sabia que o ser humano tem reservas que ele
próprio ignora. O problema seria dominar o pânico e resistir
à dor. O cilindro continuava no mesmo lugar, silencioso e
ameaçador. Quando começaria a funcionar? Mas a
curiosidade de McLigton desaparecera. O importante,
agora, era escapar daquele quarto. Pesou a situação: sair da
casa parecia impossível, a não ser que aparecesse a polícia
ou um salvador inesperado. Destruir o cilindro, pior ainda,
não só porque era feito de material resistente e ele estava de
mãos e pernas amarradas, como também arriscaria a vida.
As pernas de McLigton, fortemente amarradas há horas,
estavam dormentes. Pensou na cena que, em outra ocasião,
seria cômica: Gomperz segurando as calças e resmungando.
Mas não sentiu vontade de rir. “Em que enrascada fui me
meter!” Nunca vivera um momento tão dramático. Mesmo
quando ficara perdido no mar, agarrado a uma tábua, havia
a esperança de que qualquer navio o recolhesse, como de
fato aconteceu. Mas agora...
Procurou desatar com os dentes o cinto que lhe prendia
os tornozelos, mas em vão: não o alcançava. Se ao menos
estivesse algemado com as mãos na frente...
As algemas! Era uma esperança. Começou a rastejar,
examinando o chão palmo a palmo, cuidadosamente;
tateava, sem ver as frestas do assoalho; seus dedos
acompanhavam as fendas em toda a extensão; depois, bem
juntos uns dos outros, deslizavam pelas partes lisas até
encontrarem outra fenda. Era preciso, ainda, sondar as
partes do assoalho, roído pelos ratos.
Súbito, conteve a respiração: os dedos haviam tocado em
alguma coisa delgada e resistente. Era o que procurava!
Tratava-se de um grande grampo, desses que as mulheres
costumam usar para prender os cabelos. Fora um dos
instrumentos de tortura usado pelos bandidos e esquecido
no chão.
McLigton esperava o que parecia impossível:
transformar o grampo em gazua. Em primeiro lugar,
precisava encontrar o buraco da fechadura.
A escuridão era completa. Sua esperança estive em que
muitos criminosos, em momentos de desespero, já haviam
conseguido livrar-se de algemas daquela maneira.
A noite trouxera de volta os ratos famintos. Um deles
passou correndo sobas pernas de McLigton que, com o
susto, deixou cair o grampo. Perdeu mais alguns preciosos
minutos procurando o objeto que parecia significar a última
esperança.
Conseguiu encontrá-lo numa fenda do assoalho; os
dedos doloridos dificultavam a operação. Segurou-o com
força, temendo que tornasse a cair e se perdesse, e procurou
acertar com o orifício da fechadura. Fez o grampo girar para
a direita, depois para a esquerda...
As algemas continuavam fechadas, firmes, em torno dos
pulsos. Um rato chiou repentinamente ao seu lado, e com o
susto o grampo quase lhe escapou novamente das mãos.
O suor escorria-lhe pelo rosto e pelo corpo. Com o
esforço, a dor aumentava a ponto de quase se tornar
insuportável. Mas a dor queria dizer, também, que ele
estava vivo. McLigton descansou durante dois ou três
minutos e reiniciou a operação. O grampo, introduzido no
buraco da algema, continuava girando para a esquerda e
para a direita. Um leve estalo o fez acreditar que tivera
êxito. Puro engano. As algemas continuavam fechadas. Por
um instante, pensou em jogar o grampo fora e dar-se por
vencido. Arrependeu-se a tempo e voltou a esgravatar a
fechadura.
De repente, um ruído estranho fez com que McLigton
parasse. Não eram os ratos, tinha certeza. Olhou na direção
do “charuto” e, neste momento. sentiu-se ofuscado: duas
grandes línguas de fogo escapavam pelas extremidades do
cilindro de chumbo.
McLigton encolheu-se junto à parede, com o rosto entre
os joelhos, à espora da explosão. Estava tudo acabado!
Sentiu um enorme mal-estar.
Fechou os amos, deixou-se cair de lado e dobrou-se
sobre si mesmo.
Contudo, nada, acontecia, McLigton levantou e cabeça:
as labaredas continuavam se movimentando, como se
tivessem vida própria, mas agora... Então era isso! Frank e
seus companheiros pressentiram o que ocorreria quando o
“charuto” se inflamasse: o fogo havia passado para as
tábuas velhas o ressequidas do assoalho e, em pouco tempo,
a casa estaria transformada numa bola de logo.
McLigton, desesperado, sem conseguir desviar o olhar,
voltou a forçar a fechadura das algemas com o grampo. As
chamas cresciam e a fumaça começava a fazer-se sufocante.
***
Hans, que dirigia o carro, apontou:
— Olhem lá!
Frank e Gomperz olharam um monte de ruínas
fumegantes substituíra a casa. O cara de rato exultou:
— Ótimo! Só sinto pena de não ter visto o cara morrer
assado, feito um porco!
Frank tinha outra opinião:
— Pena é que ele não tenha dado o serviço...
Pouco depois saltavam diante da pirâmide de cinzas e
tijolos. O calor ainda era bastante forte e não permitia que o
grupo se aproximasse muito. Gomperz voltou-se para
Frank, sorrindo:
— Ainda lamento não ter visto a cara dele! Aposto que
gritou, chorou e até rezou!
Frank e Hans estancaram ao mesmo tempo, num
movimento sincronizado. Frank encarou o cara de rato:
— Escute aqui, seu... Mesmo em se tratando de um
inimigo sou forçado a reconhecer que o cara era homem! E
muito homem!
— Claro — apoiou Hans. — E você é um covarde!
Gomperz não se ofendeu:
— Mas não foi melhor assim?
Ambos concordaram e o cara de rato assumiu um ar
vitorioso:
— Então por que não me deixaram matar o sujeito?
Hans perdeu a paciência:
— Seu imbecil! O que queremos dizer é que assim, o
corpo dele ficou irreconhecível e ninguém vai descobrir
quem é ou nos ligar ao crime. Não é isso, Frank?
O outro concordou, com um aceno, e Hans
Continuou:
— Matar a tiros seria pior! A polícia levantaria a
identidade do cara e olha aí a gente encrencados.
Pouco depois o automóvel partia, a toda a velocidade,
levando os três criminosos. Não lhes convinha serem vistos
nas imediações. Por outro lado, Thompson, o capataz,
esperava-os para que lhe dessem conta das novidades. E os
“charutos” continuariam a ser colocados nos porões dos
navios que transportavam armamentos para a Inglaterra.
Durante o trajeto de volta, Gomperz deu mostras de seu
bom humor; ria-se por qualquer motivo e chegou mesmo a
cantarolar uma antiga melodia. Naus passou a acompanhar
o companheiro, assobiando.
E foi assim, um assobiando e outro cantarolando, que
entraram na taberna onde Thompson os esperava.
— Como foi a coisa? — indagou, ao vê-los tão alegres.
— Tudo acabado — respondeu Hans.
Thompson não entendeu:
— Acabado como? Ele falou, deu o serviço?
Gomperz abanou a cabeça:
— Tudo acabou, já dissemos! Os detalhes só depois da
bebida!
Thompson chamou o garçom e fez os pedidos. Frank
quis apenas uma limonada.
— Você está doente? — perguntou Gomperz rindo.
O capataz encarou Frank:
— Vamos logo, diga o que aconteceu. Ele falou?
Frank custou a responder. Finalmente, começou coçar o
queixo.
— Morreu — disse simplesmente.
— Torrado — completou Hans.
Houve um curto silêncio. O capataz tornou a perguntar:
— Mas ele falou antes? O que importa é o seguinte: o
homem falou artes de morrer?
Hans hesitou:
— Não, Thompson, não falou. Não houve jeito, ele...
Você já sabe de tudo. Ele era macho que Deus me livre!
O capataz franziu o cenho. Por alguns momentos, ficou
olhando o copo de cerveja. Acabou esvaziando-o de uma só
vez. Voltou com nova pergunta:
— E você tem certeza de que ele não vai mais nos
incomodar?
O cara de rato soltou uma gargalhada.
— Só se criou asas para...
— Imbecis! — cortou Thompson, esmurrando a mesa.
— Então vocês não perceberam? E se havia mais gente
trabalhando com ele? Em que situação a gente fica? Vocês
passam cinco dias com o sujeito e conseguem o quê? Nada!
Fez um gesto de desânimo e mudou de assunto:
— Bem, Frank e Gomperz vão agora mesmo comigo
para o cais. Hoje sairá mais um navio com munição E
vocês, os dois juntos, vão colocar os “charutos” nos
depósitos dele. É preciso trabalhar rápido, porque depois da
besteira que fizeram pode surgir alguma complicação, e não
é bom perder tempo.
— E os “charutos’? — perguntou Frank.
O capataz puxou a cigarreira e entregou quatro cigarros
a cada um.
— O navio é o “Liberty” — explicou. — Parte as duas
da tarde. Mas não vão deixar para fazer o serviço na última
hora! Chega de mancada!
Levantaram-se. Hans, que esperava em silêncio durante
todo o tempo, não se conteve mais:
— E eu? Não tem nada para mim?
— Você fica para amanhã. Vai sair outro cargueiro.
Acho que é melhor, depois da palhaçada que vocês fizeram,
os três não trabalharem juntos. Poderia chamar a atenção e a
gente não sabe o que poderá Vir por ai...
Thompson, sem se despedir, deixou o bar. Frank e
Gomperz o seguiram, guardando uma certa distância.
Acabaram perdendo-se na massa humana que se deslocava
em várias direções.
As ruas se haviam tornado mais agitadas naqueles
últimos dias. Em cada esquina, viam-se pequenos grupos a
discutir a situação internacional. Guerra era a palavra mais
gasta do momento.
Gomperz ia cantarolando a musiquinha de sua
preferência. Frank, porém, procurava prestar atenção nas
conversas; parava de vez em quando para ouvir um e outro
comentário sobre a situação na Europa e a iminente entrada
dos Estados Unidos na guerra.
Frank tinha certeza de uma coisa: no momento em que
os Estados Unidos resolvessem entrar oficialmente na
guerra ao lado dos ingleses, a vigilância seria triplicada, o
que tornaria quase impossível o trabalho de sabotagem dos
navios cargueiros.
O “Liberty” estava ancorado no Cais Hoboken. Homens
armados montavam guarda nas imediações, na tentativa de
impedir que pessoas estranhas se fizessem passar por
estivadores com finalidades óbvias.
Os documentos de Frank e de Gomperz foram
examinados pelos guardas:
— Tudo OK.
Os dois passaram pelo cordão de isolamento e
começaram a trabalhar. Apanharam dois enormes sacos e
seguiram na direção do navio. Gomperz piscou um olho
para o companheiro, que lhe respondeu com um sorriso de
cumplicidade.
Desceram até os depósitos, que já estavam quase
repletos de caixotes e sacos de munição, tiraram os
“charutos” do bolso e deixaram-nos cair pelos cantos.
Missão cumprida. Bastava continuar a trabalhar
normalmente, como um estivador qualquer, para despistar.
Aquela já era uma embarcação marcada, que arrastaria sua
carga e sua tripulação para o fundo do mar. O cargueiro era
mais novo e mais bonito do que a maioria dos que
apareciam por ali.
Às 18 horas, em ponto, a sereia do “Liberty” soou,
anunciando a partida. O capitão, no seu posto de comando,
dirigia a operação de largada, transmitindo ordens através
do megafone que trazia nas mãos.
— Estou morrendo de sede — disse Gomperz. E fez a
sugestão: — Que tal uma cerveja geladinha?
Frank não aceitou o convite; preferiu ficar para ver a
partida do navio. Thompson também andava por ali, com as
mãos nos bolsos e um cigarro pendente dos lábios.
Há uma coisa que, apesar de repetida varias vezes por
dia, é sempre uma atração irresistível: a partida de um
navio. Por esse motivo, uma pequena multidão estava atenta
às manobras do “Liberty”.
Lançando ao ar o alarido intermitente de sua sereia, o
navio foi-se afastando do muro de cimento e pedra do cais.
Um acordeão começou a tocar, saudando o fim da jornada.
O cargueiro enfiou a proa mar adentro e Frank
murmurou:
— Mais um...
Thompson, ainda com as mãos nos bolsos e o cigarro na
boca, continuava olhando o mar.
— Ou menos um...
A noite caía rapidamente. Mais alguns minutos, e o
“Liberty” seria tragado pela escuridão.
CAPÍTULO SÉTIMO
Fantasma em rua deserta
Uma guerra em miniatura...
Quem não morre não vê Deus!
Nem pista, nem testemunha

Thompson seria capaz de jurar que ouvira passos, que


estava sendo seguido. Era desconfiado por natureza e, além
disso, começava a preocupar-se com aquilo de sabotar
cargueiros de armamento para os ingleses. Até quando ele e
seus homens teriam chance de continuar colocando os
“charutos” nos porões dos navios?
Lembrou-se de McLigton. De onde teria saído aquele
irlandês e que planos arquitetara para conservar os
“charutos” consigo? Mas agora isso perdera a importância:
McLigton estava morto e, segunda tudo indicava, não tivera
tempo de comunicar a ninguém o que pudesse ter
descoberto. E agora...
O capataz imaginou a cena: a casa pegando fogo e o
irlandês virando carvão. Sorriu: “Foi melhor assim.”
Engraçado. Ouvira — ou tivera a impressão — um novo
ruído às suas costas. Muito trabalho e excesso de
preocupação davam naquilo. Podia ser um problema de
miragem auditiva e nada mais. De qualquer maneira,
fazendo o jogo que vinha fazendo, devia esperar sempre o
pior. Sabia que, numa ocasião dessas, não se devia olhar
para trás. Se, de fato, alguém o estivesse seguindo, esse
alguém ficaria sabendo que fora descoberto.
Continuou andando, o ouvido atento. Quem poderia ser?
Naquela parte do cais, era difícil encontrar-se alguma
pessoa à noite. Incapaz de resistir à dúvida, Thompson
agachou-se, fingindo amarrar os sapatos. E olhou
disfarçadamente para trás.
Um homem passava, naquele justo momento, sob o
poste de iluminação. E pode ver nitidamente seu rosto.
Estremeceu. Impossível! O homem era... McLigton!
Dominado pelo pânico, recomeçou a andar, apertando o
passo. Como é que podia ser McLigton? O irlandês
morrera... Ou não morrera? Pensou no trio de comparsas:
“Grandes idiotas!”
McLigton também havia apressado os passos. O
primeiro impulso de Thompson foi o de parar e enfrentar o
inimigo. Teve, porém, medo de sair perdendo. O outro era
mais moço e mais forte.
Sair correndo também não seria a solução recomendável;
o irlandês — se é que era irlandês — também o alcançaria
com facilidade.
Havia uma terceira hipótese: preparar uma emboscada.
Thompson optou por ela. Conhecia o lugar como pouca
gente e lhe seria fácil encontrar um cantinho ideal para isso.
No dia seguinte, encontrariam o cadáver e nenhuma pista do
assassino, nenhuma testemunha. O crime acabaria entrando
para os arquivos dos “crimes sem solução”.
Tornou a olhar para trás e distinguiu a silhueta do
irlandês um pouco mais perto do que antes. Era preciso
fugir de sua vista, ao menos por alguns segundos. O capataz
pôs-se a correr.
Um pouco adiante, havia uma escada de pedra, coberta
de limo, que levava ao antigo embarcadouro, agora
inteiramente abandonado por não ter mais utilidade.
Thompson desceu correndo a escada escorregadia, com
risco de levar um perigoso tombo; passou entre uma série
de colunas de cimento em ruínas, que antes serviam para
sustentar a cobertura sob a qual os viajantes se protegiam da
chuva e do sol. Acabou escondendo-se atrás de um monte
de pedras, certo de que o irlandês apareceria de um
momento para outro.
McLigton, por sua vez, ainda sofria os efeitos do inferno
em que se transformara a casa onde estivera preso durante
tantos dias: seus olhos ainda estavam machucados e ardiam,
por causa da fumaça; os lábios continuavam inchados e
apenas as equimoses começavam a desaparecer.
A imagem inesquecível das labaredas avançando,
comendo a madeira podre, vindo em sua direção; as paredes
estalando, a fumaça sufocante.
Eram recordações que o angustiavam. Jamais esqueceria
sua luta para abrir as algemas, o horror de morrer queimado
e a voz do instinto falando mais alto, ordenando-lhe que
lutasse para sobreviver.
O grampo escapava-lhe a todo instante das mãos,
resvalando por entre os dedos suados e doloridos. Por um
momento, pensou que ia enlouquecer; o crepitar das chamas
converteu-se em risadas zombeteiras; as chamas
projetavam, nas paredes, figuras fantásticas em danças
diabólicas. Durante todo o tempo, pensou em Frank, Hans e
Gomperz. Deviam estar do lado de fora, protegidos pela
distância, vibrando com o espetáculo. Chamou-os de
covardes e assassinos, e seus próprios gritos de desespero o
trouxeram à realidade.
Prosseguiu na luta contra o tempo, tentando abrir as
algemas. O grampo virava de um lado para outro e nada. As
chamas quase a lamber-lhe as roupas. E foi justamente
quando seu desespero atingia o clímax que McLigton, cego
pela fumaça e rouco de tanto gritar contra os fantasmas de
sua imaginação, ouviu o “clic” caraterístico das fechaduras
que abrem e sentiu as mãos livres.
Tratou de soltar as pernas. O cinto, porém, resistia, pois
o nó ficara mais apertado sob a nono do calor. McLigton
quase não podia respirar; o turno arranhava-lhe a garganta,
queimava-lhe os pulmões.
Por fim livrou-se e ficou de pé. Teve alguma
dificuldade, descalço como estava, para chegar à porta.
Atirou-se contra ela e teve sucesso: a fechadura, bastante
gasta, cedeu sob o impulso e o peso de seu corpo.
Saiu correndo, afastando-se o mais possível da casa que
ameaçava ruir. Precisava de ar puro e não lhe parecia
conveniente continuar nas imediações. Começava a
amanhecer e o sol traria de volta outros tipos de ratos: Frank
e os companheiros.
Só então percebeu, com espanto e satisfação, que não lhe
tinham tirado o dinheiro. Tomou um táxi e deu ao motorista
o endereço de sua casa, mas logo mudou de idéia; se Frank
e os outros dois viessem a suspeitar que ele escapara, na
certa o procurariam lá. Assim, mudou o itinerário e acabou
numa pensão em Manhattan, onde descansou durante
algumas horas. Depois, relativamente restabelecido, tomou
banho, cuidou dos ferimentos e comeu. Então, seguiu para o
porto, chegando no momento da partida do “Liberty”.
Viu Thompson com as mãos enfiadas nos bolsos do
casaco e o cigarro nos lábios, seguindo com os olhos as
manobras do cargueiro. Quando o capataz se afastou,
resolveu segui-lo.
Acontece que o capataz se havia dado conta da
perseguição e começara a correr. Onde se teria metido?
Continuou ainda algumas dezenas de metros à frente, e
depois voltou sobre seus passos, examinando todos os
lugares que poderiam servir de esconderijo.
Foi então que viu a escada que levava ao antigo
embarcadouro. Desceu-a com cuidado, para não escorregar
e para evitar surpresas por parte do gordo e esperto capataz,
que a qualquer momento poderia aparecer empunhando uma
faca ou uma pistola.
É claro que McLigton estava preparado para unia
eventualidade dessas; antes de ir ao cais em busca de
Thompson, tratara de obter uma pistola é abundante
munição. Mas preferia agarrá-lo vivo, pois tinham muito a
conversar.
O capataz viu-o descer as escadas e parar por um
instante, indeciso, sem saber que rumo tomar. Puxou a
pistola, colocando a bala na agulha, e aguardando com o
dedo no gatilho.
Por um instante um jato de luz incidiu sobre a mão do
irlandês. E o capataz percebeu que ele também empunhava
uma automática de grosso calibre. Sobressaltou-se. Havia
pensado que a coisa ia ser fácil e, quando acaba...
McLigton caminhava, cauteloso, como se estivesse certo
de que o outro o esperava. Mas a vantagem ainda estava
com Thompson: McLigton não podia adivinhar que coluna
o escondia e de que monte de pedras surgiria, com a pistola
despejando a carga mortal.
Thompson resolveu que já era tempo. Fez cuidadosa
pontaria na cabeça de McLigton que, por casualidade, vinha
caminhando em direção ao monte de pedras que o abrigava.
Fez um esforço sobre si mesmo para não se precipitar e
multo menos ficar nervoso; o braço, porém, começou a
tremer. Com receio de perder a pontaria, apertou o gatilho.
A bala passara a mais de dois metros de McLigton.
Durante alguns segundos o estampido dominou o estrondo
das águas que se chocavam contra o molhe do
embarcadouro.
Thompson soltou uma praga. McLigton, por sua vez,
não esperou pelo segundo disparo: tratou de ocultar-se atrás
de uma das colunas e dali, guiando-se pela chama
alaranjada que saíra do cano da arma de Thompson, atirou.
E o tiroteio teve início. Era uma luta de vida e morte que
só admitia um vencedor e que não tinha testemunhas.
Furioso por ter falhado a primeira vez, perdendo um
fabulosa chance, Thompson acionava o gatilho com
vontade, esquecido de um importante detalhe: não tinha,
nos bolsos, balas sobressalentes.
Uma bala passou raspando perto de sua cabeça.
McLigton, tentando confundir o capataz, passava de uma
coluna para outra, aproximando-se cada vez mais. Quando
se punha a descoberto disparava duas ou três vezes para se
proteger, evitando que o capataz aproveitasse a
oportunidade para fazer pontaria sobre ele.
Thompson, ao contrário, não sala do lugar. Tocaiado,
aguardava o inimigo astuto e ligeiro. Um homem capaz de
suportar as torturas que lhe foram impostas, era capaz de
tudo. Viu McLigton passar correndo e perdeu a cabeça:
disparou um, dois, três tiros e teve a surpresa: a agulha
bateu no vazio.
Procurou nos bolsos, desesperado. Nem uma única bala.
Maldisse a si mesmo por ter malbaratado a munição e
pensou em fugir.
Que fazer agora senão fugir? Mas como? Fugir era
praticamente impossível; o embarcadouro não tinha outra
saída senão a escada por onde havia descido.
Ainda assim, pensou em sair correndo de coluna em
coluna. Talvez conseguisse chegar à escada e escapar.
McLigton fez ainda dois disparos contra ele; mas ao ver que
não recebia resposta, percebeu imediatamente o que
acontecia e gritou:
— Você não tem chance, Thompson! Vai sair de braços
levantados ou prefere morrer?
Mas o capataz não parecia disposto a uma rendição
pacifica. Não sabia ao certo quem era aquele irlandês, mas
de uma coisa estava seguro: depois do que mandara Frank e
os dois fazerem com ele, não podia esperar demência de sua
parte.
Por outro lado, ainda havia a questão dos “charutos”.
Não seria McLigton um agente da contra-espionagem?
Thompson estava convencido dessa e ele muitas outras
coisas. E se o irlandês o apanhasse, ninguém o livraria da
cadeira elétrica, suas atividades de sabotagem que
provocaram centenas de mortos. “Se eu me rendo, morro: se
não me rendo...”
Do seu esconderijo, McLigton insistia:
— Saia com os braços levantados!
Não. Thompson já decidira: não se entregaria por nada
deste mundo. Olhou em torno, aflito. As colunas de pedra
do antigo embarcadouro eram como gigantes ameaçadores.
Atrás de uma delas estava escondido o homem que haveria
de crivá-lo de balas, tão logo ele botasse a cabeça de fora.
Na verdade, McLigton não esperava; aproximava-se, e o
capataz. ouviu-o bem de perto:
— Vamos logo, Thompson! Saia dai!
O homem não se decidia. Agachado atrás das pedras e
contendo a respiração, olhava para todos os lados, em busca
de uma saída.
— Muito bem — McLigton voltava a falar. — Ou você
sai, agora, ou vou até aí, agarrar Você!
O capataz ordenara a tortura e o sacrifício de McLigton.
Ele não o perdoaria. E, no entanto, chegava a admitir que
talvez o irlandês não atirasse, a sangue-frio, num homem
sem munição. Mas, ainda assim, não ousava enfrentá-lo;
barrigudo e sem fôlego, perderia logo para o homem
atlético e mais moço numa luta corpo-a-corpo.
A voz de Thompson repetia, paciente:
— Entregue-se, Thompson! Você não tem munição!
A situação era de pânico e era preciso fazer alguma
coisa. O capataz correu para trás de uma coluna próxima. A
posição em que agora se encontrava o irlandês deu-lhe uma
esperança de fugir pela escada.
Se agisse depressa, talvez chegasse lá primeiro. Era
questão de sorte, e também de muita calma.
Confiava em que McLigton, sabendo-o desarmado, não
atiraria e, caso o fizesse, seria apenas para amedrontá-lo.
Pôs-se a correr. De fato, o irlandês disparou para o alto,
tentando intimidá-lo e fazê-lo parar. Como não obtivesse
resultado, saiu no seu encalço.
Nenhum dos dois se preocupava mais com as colunas;
corriam com todas as forças das pernas. Thompson
compensava o volume da barriga com o medo de ser
alcançado; a esperança de viver dava-lhe um novo e
impressionante élan, levando-se em consideração o seu
poso e idade.
A única preocupação do capataz era atingir a escada o
quanto antes. Corria perigosamente pela borda do
embarcadouro, coberto de limo e de óleo trazido pelas
águas. Sua silhueta grotesca desenhava-se contra o
horizonte. A noite estava clara, e acertar Thompson seria
talvez mais fácil do que “caçar” patinhos de madeira num
parque de diversões. Um pouco abaixo da borda,
sobressaiam as pilastras de ferro verticais e pontiagudas,
onde há anos eram amarradas as embarcações. Enfim, mais
abaixo, as águas escuras.
Thompson sorriu. Já se achava bem próximo da escada.
Olhou para trás: o irlandês ganhava terreno. O capataz fez
um derradeiro esforço, curvou-se para a frente e...
De súbito, McLigton parou: sobre a borda do
embarcadouro, o capataz dava início a uma estranha
exibição de “ballet”. A perna direita estava esticada,
enquanto os dois braços faziam um movimento
sincronizado semelhante ao que fazem os que se equilibram
sobre a corda bamba ou os patinadores. Só que a “pista” de
Thompson em de óleo e limo...
McLigton ainda gritou:
— Cuidado!
O pesado corpo de Thompson deu uma meia volta,
tornou a levantar uma das pernas e saiu do campo óptico de
McLigton.
O irlandês, com a pistola na mão, aproximou-se com
precaução: um dos ferros pontiagudos recebera o corpo do
homem. Thompson ainda mantinha os dedos crispados, mas
logo deixou-os cair. Seus olhos estavam abertos e vazios,
fixando um ponto qualquer no horizonte.
Nada mais havia a fazer. McLigton tratou de sair do
local. Receava que alguém aparecesse, atraído pelos
disparos, e queria evitar maiores complicações; havia ainda
o perigo de tropeçar com a polícia, que iria querer saber o
que fazia por ali com uma pistola no bolso. Achando que
passara o perigo, jogou a arma no mar,
Por sorte, não encontrou ninguém. Rumou para uma
dessas pensões baratas cujos porteiros nunca fazem
perguntas indiscretas. Estava exausto e um pouco
desapontado por não ter conseguido pegar Thompson vivo.
Saiu da pensão bem cedo na manhã seguinte.

CAPÍTULO OITAVO
“Perdoa-me, meu amor!”
Há peixes de todos os tamanhos
Uma pantera morena e o fim dos “charutos” malditos

Bárbara jamais madrugava. Tarde ou cedo que se


deitasse nunca deixava a cama antes das dez horas. Por isso,
o belo corpo da moça ainda se encontrava entro lençóis
quando ouviu que batiam à porta do bem montado
apartamento.
Talvez fosse o maldito leiteiro. Precisava, com urgência,
resolver o problema do pagamento mensal. Uma vez de
trinta em trinta dias, o homenzinho batia para receber a
conta.
— Diabo! Já vou! — Bárbara explodiu.
Não tinha outro remédio senão saltar da cama e resolver
o problema.
Bocejou sem pressa, com os braços esticados.
Espreguiçou-se e já começava a pensar em mandar o
leiteiro para o inferno, quando a campainha soou
novamente, dessa vez com insistência desusada. Ergueu-se,
alarmada, envolveu-se num cobertor
e dispôs-se a sair da cama. Pôs os pés no chão e... Mas
onde estavam os chinelos? A campainha tornou a soar,
ainda com mais insistência.
— Calma! Já estou indo! — gritou mal-humorada.
Onde estavam os malditos chinelos? Curvou-se e olhou
debaixo da cama; não estavam lá. Olhou o relógio na
mesinha: ‘Como é cedo, meu Deus!’
O leiteiro jamais vinha antes das nove. Ficou revoltada:
roubavam-lhe preciosos minutos de sono! Era um assalto!
Acabou descobrindo os chinelos perto do armário-
Calçou-se e, enrolada no cobertor, foi abrir a porta.
Descerrou o ferrolho com ódio, girou a chave na
fechadura e abriu a porta.
Bárbara levou uma das mãos ao pescoço e recuou,
pálida:
— Você! Mas não é possível!
McLigton, para evitar que a moça fechasse a porta,
colocara a mão no trinco. Entrou, empurrando-a devagar.
Dizia-lhe sorrindo:
— Sou eu, Bárbara! E olhe: pode beliscar aqui, nada de
fantasmas, querida...
— Mas, não... – Sinceramente...
Passou o braço em torno do seu pescoço e beijou-o na
boca. Os lábios da moça desceram ao pescoço e voltaram ao
rosto de McLigton; beijou-lhe os olhos, o nariz e,
finalmente, pendurou-se no seu pescoço:
— Há quanto tempo, meu amor! E eu pensando... Oh,
querido! Pensei que tivesse deixado Nova York e se
esquecido de mim...
O irlandês sorriu:
— Estive fora, meu anjo! Negócios...
Procurou devassar, com o olhar, o interior do
apartamento.
— Você está sozinha?
— Mas é claro! Quem é que pensou que estivesse aqui?
McLigton segurou a ponta da orelha. Por alguns
momentos ficou encarando a moça:
— Não sei...
A garota abre os braços:
— Bobinho! — brinca com o nariz do rapaz. — Hum...
seu bobinho ciumento! Pensa que arranjei outro, não é? Pois
tique sabendo que pensei em você o tempo todo. E mais
ainda. Especulei:
“Aquele monstro me abandonou.. Ri e faz um gesto:
— Mas fique a vontade! Vamos tomar alguma coisa..
— ... é cedo!
— ... para comemorar sua volta? Ah, sim, é cedo! Já sei:
um coquetel de café bem forte com creme!
Deu uma corridinha até a janela e abriu as cortinas. O
apartamento foi inundado de luz. E, então, Bárbara parecia
reparar no aspecto de McLigton:
— Santo Deus! Você está abatido. — E machucado nas
mãos... Que foi isso, meu Deus?
Ela se havia livrado do cobertor e seus selos redondos
dançavam sob a camisola. Teve ímpetos de abraçá-la, de
apertá-la, de...
Apenas disse:
— Depois eu explico, sim?
Bárbara abriu o armário e apanhou uma toa. lha limpa:
— Segure a toalha e vá tomar um bom banho, anda!
Depois eu faço curativo no seu dodói, tá?
McLigton continuava de pé, no meio do quarto, com a
toalha nas mãos, Pensava nas torturas, na casa incendiada,
no tiroteio da noite anterior. Só agora, diante de Bárbara, é
que via como era bom estar vivo.
Bárbara colocou as mãos nas cadeiras:
— Como é, menino levado! Vai ou não vai tomar banho!
Quer umas palmadinhas?
Notou a expressão do rosto de McLigton e mudou de
tom:
— Em que está pensando, meu bem?
— Em nada — respondeu sorrindo. — Em nada...
A moça não se deu por satisfeita:
— Você vai me contar essa história direitinho, não vai?
— Contar o quê? Ah, sim... Vou. Mas não foi nada, só
uma briguinha entre “amigos”, por causa de bobagem...
— É — disse Bárbara examinando o mais de perto —
por causa dessa... bobagem quase mataram o meu amor!
Espere um instante!
Deu uma corridinha, foi até a cozinha e voltou com um
copo de uísque; ordenou:
— Beba dois goles e entre direto no chuveiro, anda!
McLigton tomou-lhe o copo da mão e quis abraçá-la. Ela
o afastou suavemente.
— Agora, não, meu bem, Depois, sim, depois... tio
sorriu. Tomou todo o uísque do copo, entrou no banheiro e
despiu-se rapidamente. Ficou na dúvida entre tomar um
banho quente ou frio. Afinal, decidiu-se por este último e
abriu o chuveiro.
Depois de tudo o que acontecera, era agradável
encontrar-se ali, junto de Bárbara. O jato de água fria
provocou-lhe um arrepio. Sentia-se reconfortado depois de
tudo por que passara.
Surpreendeu-se pensando em Bárbara. Gostava muito
dela, mais do que antes havia imaginado. E olha que ele
tinha conhecido muitas e lindas mulheres. “Vou por
remedinho no seu dodói”. Ela nunca lhe havia falado assim,
com aquele jeitinho de criança. Fazia-o lembrar uma
menina que conhecera há anos. Ah, sim! Antonelle, de
Capri, que usava tranças e vestido muito rodado...
Apesar do barulho da água que caía, percebeu que
Bárbara ligava o telefone. Achou estranho. Para quem
telefonaria àquela hora? Deixou o chuveiro ligado e foi até
a porta; entreabriu-a cuidadosamente. A voz de Bárbara
chegou-lhe, nítida:
— Ele está aqui, estou dizendo! Ah, como não sei, ora!
Mas está aqui e muito vivo...
Parecia irritada; trincava as palavras: — Imbecis! Foram
deixá-lo escapar!
McLigton sentiu um golpe no coração. Quer dizer então
que aquela mulher adorável, seus beijos, aquele cuidado
todo... “Sou um grande palhaço”, pensou, envergonhado de
si mesmo. Ela tornou a falar: — Venha depressa para cá.
Vou procurar retê-lo até você chegar. Vai ser fácil. O bobo
pensa que estou apaixonadíssima...
Estava muito segura de si mesma. McLigton sorriu. Uma
onda, mesclada de ódio e frustração, substituiu a antiga
ternura. Agora, era preciso agir com calma ou estaria
perdido.
A água continuava a cantar alegremente nos ladrilhos.
Deixou-a escorrer pelo corpo. Depois, enquanto se
enxugava, chamou:
— Bárbara! Tem ai alguma coisa que se coma?
Mas logo pensou em narcótico e arrependeu-se da
pergunta:
— O quê? — fez ela.
— Não é nada, não.
Bárbara insistiu:
— Não estou ouvindo, meu amor! Posso abrir a porta?
— Um instantinho!
Enquanto enfiava as calças rapidamente, disse:
— Pronto! Pode abrir, meu bem.
Ela apareceu sorrindo. Nada havia mudado em sua
expressão. “Sabe representar o seu papel”, pensou ele.
— Que é que você disse, bem?
Ele sorriu:
— Nada... Disse que gosto muito de você. Bonita,
amiga, sincera, em suma: um amor de menina!
Ela o enlaçou pelo pescoço e ofereceu os lábios. Era
preciso aceitar o jogo. McLigton beijou-a, procurando
disfarçar a repugnância que lhe causavam aquelas falsas
caricias.
— Acabe logo de se vestir — disse ela. — Preparei
alguma coisa para você comer.
Pouco depois, McLigton saia do banheiro. Encontrou à
sua espera uma fumegante xícara de café com leite, pão
com manteiga, queijo, marmelada e ovos fritos.
Um excelente desjejum para uma fome que ainda não se
realizara... McLigton engoliu saliva e foi sentar-se no sofá:
— Ah, meu anjo! Tanto trabalho e, quando acaba, estou
com fome nenhuma!
— Não vai comer nada? Nem um golinho de café?
Sentou-se a seu lado, bem junto dele. McLigton fez uma
expressão dolorida e respondeu:
— Perdoe-me, querida, mas estou com dor de estômago.
Deve ter sido alguma das pancadas que levei. Tenho a
impressão de que não conseguirei comer nada hoje.
Enquanto falava, pensava no que lhe convinha fazer
naquela situação. De um momento para outro o homem que
Bárbara chamara apareceria ali, certamente armado e
disposto a completar o serviço que o trio de bandidos não
conseguira terminar. Além disso era preciso não descuidar
de Bárbara; tão logo chegasse a ocasião, ela não por as
garras de fora.
Tomou uma rápida resolução. Bárbara achava-se muito
junto a ele, beijando-o sem parar. McLigton afastou-se um
pouco, como se quisesse vê-la melhor, e disse:
— Você é linda, meu bem.
Ela fingiu-se lisonjeada. Fechou os olhos e deitou a
cabeça para trás, sorrindo. McLigton aproveitou o momento
para desferir-lhe um soco no queixo. sem medir a violência
da pancada.
— Sinto muito, meu bem...
Mas ela já não ouvia. Revirou os olhos, abriu a boca e
caiu de costas sobre o sofá.
Não havia tempo a perder. McLigton foi até a janela e
arrancou os cordões da cortina. Com eles amarrou as mãos e
os pés da moça. Em seguida, amordaçou-a com um lenço,
para o caso de ela querer alarmar a vizinhança ao voltar a si.
Deixou-a no sofá. Havia a possibilidade de o tal homem
possuir a chave do apartamento, o que dificultaria um pouco
as coisas. Mas, fosse como fosse, McLigton já sabia o que
tinha de fazer.
Para que a espera se fizesse mais curta, foi até a
geladeira e pegou um bom pedaço de presunto. Não havia
ainda engolido o primeiro bocado, quando ouviu abrirem a
porta do apartamento. Largou o presunto sobre a mesa e
correu para o banheiro, ficando numa posição em que podia
divisar quase toda a sala, inclusive o sofá onde Bárbara se
encontrava.
Percebeu que o homem entrava com toda a precaução.
Imaginou-o avançando pelo corredor, na ponta dos pés.
McLigton esperava dentro do banheiro, junto à porta,
tomando cuidado para não ser visto quando o visitante
invadisse a sala, porque certamente este estaria armado e ele
cometera a burrice de jogar a pistola no mar.
Procurou conter a respiração e não mover um músculo.
Seria o cúmulo que depois de tanta tortura e do episódio
cinematográfico do incêndio, acabasse morrendo como um
rato, dentro do banheiro. Ouvia um grave roçar de pés, que
pouco a pouco se fazia mais perceptível. Por um momento,
houve completo silêncio; o homem devia ter avistado
Bárbara estendida no sofá. Logo em seguida, McLigton
pode vê-lo: empunhava fortemente uma pistola e dirigia-se
a passos rápidos para o sofá, debruçando-se .sobre a mulher
desacordada.
McLigton avançou ás suas costas, cautelosamente. O
homem, entretanto, percebeu qualquer coisa. Sobressaltou-
se e procurou voltar-se rapidamente. Mas já McLigton
agarrara seu braço e o torcia, obrigando-o a soltar a arma,
que caiu ao chão com estrondo.
— Ah, é o senhor — exclamou McLigton.
Diante dele, lívido, estava o senhor Kleist, diretor da “E.
S. Kleist Inc.”
— Irlandês atrevido! Miserável! Vou...
Livrou-se com um gesto rápido e descarregou o punho
no nariz de McLigton, procurando alcançar a porta e fugir.
A mão de McLigton segurou-o pela gola do paletó.
— Venha cá, sabichão! Você não quer terminar a
briguinha que começou?
Kleist voltou-se com as mãos prontas para agarrar o
pescoço do adversário, ficando assim desguarnecido para o
golpe que McLigton lhe aplicou no estômago. Curvou-se,
soltando um gemido. McLigton juntou as mãos e deixou-as
cair pesadamente em sua nuca. Não precisou de mais nada
para vê-lo prostrado no chão.
Amarrou-o do mesmo modo que fizera com Bárbara e
continuou a comer o presunto. Não havia mais perigo, por
enquanto, e ele estava com uma fome devoradora.
Sentou-se e ficou esperando tranqüilamente, que os dois
recuperassem os sentidos. Era preciso reconhecer, apesar de
chocado, que ela fizera com perfeição o papel de mocinha
ingênua e secretária eficiente, incapaz de fazer mal a uma
mosca. Kleist a mantinha em seu gabinete para servir de
isca aos que, como McLigton, eram sensíveis aos encantos
femininos.
Era até engraçado: enquanto ele procurava sondá-la a
respeito do que havia por trás da sociedade exportadora e
importadora “E. S. Kleist Inc”, ela por sua vez, de comum
acordo com o chefe, procurava descobrir o que havia por
trás de seu interesse pelas atividades da empresa.
Compreendia, agora, alguns detalhes que estavam em
branco. Por exemplo: fora Bárbara que informara Kleist
sobre ele, fazendo com que o chefe do bando procedesse a
uma rigorosa investigação sobre a vida do novo estivador.
Finalmente, Gomperz testemunhou que aquele não era o
verdadeiro Samuel McLigton, de quem fora amigo.
Agora não havia dúvida de que a “E. S. Kleist Inc.” era
mais do que uma inofensiva e honrada sociedade de
exportação e importação: era dali que saiam os “charutos”
incendiários.
Ocorreu-lhe uma idéia, de repente; levantou-se e
começou a revistar os bolsos de Kleist. Esperava encontrar
em seu poder alguns “charutos” e acertou: o homem levava
em seu poder alguns dos pequeninos mas terríveis
instrumentos de destruição.
Naquele momento, Kleist abriu os olhos:
— Vou denunciá-lo às autoridades — exclamou,
colérico:
— É verdade?
Pôs-lhe um “charuto” diante do nariz:
— Conhece este negócio? Sabe o que significa? Você
vai para a cadeira elétrica, mocinho.
Retirou o envoltório de um dos “charutos” e examinou
por alguns instantes o pequeno cilindro de chumbo. Depois,
disse:
— Vou ficar com dois deles para ver o que há dentro.
Continuo curioso, senhor Kleist. Deve ser um mecanismo
muito delicado.
Na falta de argumentos, o homem resolveu ficar calado.
Bárbara voltara a si a tempo de ouvir as palavras “cadeira
elétrica” e empalidecera.
— Agora — disse o irlandês — vou arranjar um
encontro entre vocês e o Serviço Secreto, está bem? Vocês
vão adorar...
Retirou o fone do gancho e discou um número.
— Alô, rapazes, se vocês desejam por as mãos em cima
do chefe dos sabotadores que têm feito explodir os
cargueiros de munição e armas para a Inglaterra, podem dar
um pulinho até aqui: número 36 da Rua Cinqüenta e Dois,
apartamento 601.
Do outro lado, houve um rebuliço. Pediram-lhe que
repetisse o endereço. Ele repetiu e acrescentou:
— Vocês conhecem o famoso senhor Kleist, da “E. S.
Kleist Inc.” e sua... bonita secretária Bárbara? Pois são eles,
amigos. E vão encontrar, ainda, muitos dos “charutos” que
são usados para fazer explodir os navios.
Um novo rebuliço. Insistiram para que se identificasse.
Negou-se:
— Esperem alguns dias e saberão. Vai chegar de
Londres um informe completo. Ah, sim! E não se esqueçam
de perguntar ao senhor Kleist sobre os seus cúmplices
Frank, Hans e Gomperz. que trabalham no cais Hoboken.
Desligou. Aproximou-se de Bárbara e acariciou-lhe o
queixo.
— Sinto muito, meu anjo, mas preciso sair daqui. E
você, Kleist, procure não dificultar o trabalho do Serviço
Secreto. De qualquer forma, eles já estão a par de tudo...
***
Na rua, procurou um local onde pudesse observar a porta
do edifício sem despertar suspeitas. Um bar, instalado na
calçada oposta, foi o ponto de observação. Minutos mais
tarde, viu chegarem os homens do Serviço Secreto, que não
demoraram em descer com Kleist e Bárbara ambos
algemados. Fizeram-nos sentar no banco traseiro de um dos
carros e partiram.
“Missão cumprida”, murmurou para si mesmo. Entrou e,
junto ao balcão, pediu um copo de cerveja e acendeu um
cigarro.
De súbito, lembrou-se de que havia esquecido de algo
fundamental: O “Liberty” já estava viajando há doze horas e
não demoraria a explodir. Era preciso avisar ao seu
comandante. Pediu para falar ao telefono e ligou para o
Serviço Secreto:
— Vocês precisam mandar o “Liberty” voltar para Nova
York e...
Não compreendiam o que ele dizia:
— O “Liberty”, gente: — gritou o irlandês. — Saiu do
cais Hoboken ontem à tarde e vai explodir daqui a um ou
dois dias. Dêem ordem para que volte a façam uma vistoria
nos porões, junto á carga. Vocês encontrarão objetos
parecidos com cigarros, mas são cilindros disfarçados, que
se inflamam num certo momento e fazem a munição
explodir...
Faltava ainda uma coisa a fazer: naquela manhã, enviou
um cabograma a Londres, dirigido ao chefe do W.O.I.D. do
Intelligence Service.
EPÍLOGO

O chefe do W.O.I.D deu um salto da cadeira ao ler


aquele cabograma. Esfregou os olhos e tornou a lê-lo.
— Impossível! — exclamou
Contudo, ali estava o nome com todas as letras:
McLAIN. Para o Intelligence Service, o agente McLain
deixara de existir deste o dia em que o cargueiro
“Excelsior” desaparecera no luar. Figurava na lista dos
agentes secretos mortos em serviço.
— Impossível! — repetiu o chefe, e leu pela terceira vez
o telegrama, em voz alta: — “Resolvido enigma explosões
cargueiros munições Inglaterra pt Parto Londres hoje pt
McLain”
Isto queria dizer que, dentro de algumas horas, estaria
ali, naquele mesmo gabinete, explicando-lhe o que ocorrera
desde sua saída de Londres.
As horas que transcorreram até a chegada de McLain
foram interminavelmente longas. E o chefe do WOID. já
começava a pensar que havia sido vitima de uma
brincadeira de mau gosto, quando o viu entrar, um pouco
mais magro, o rosto coberto de equimoses, mas o bom-
humor de sempre.
— Olá, chefe! — saudou McLain alegremente. Como o
chefe demorasse a desfazer sua expressão de assombro,
disse sorrindo:
— Está surpreso de me ver voltar deste modo? Sabe
como é.. Estou um pouco maltratado pela gente e pelo clima
de Nova York. Mas são o que chamam de “ossos do oficio”.
Em péssimo estado vão ficar Kleist e seus cúmplices.
Dizem que a cadeira elétrica torra o sujeito e...
O chefe interrompe:
— Quem é Kleist?
— Ah, chefe, vamos por partes, Primeiro tenho de dizer-
lhe como escapei vivo daquele inferno em que se converteu
o “Excelsior”. Depois que os escaleres viraram e me vi
sozinho no meio daquele mundão de água, cercado de
cadáveres por todos os lados, foi que tive a idéia de trocar
de identidade. O corpo de Samuel McLigton, que bolava
sobre uma tábua, estava pertinho de mim. Então, apanhei o
passaporte dele. Por casualidade, o homem tinha uma certa
semelhança comigo; a mesma altura, as mesmas
características de corpo. A própria fotografia, em parte
estragada pela água salgada, não dava para desconfiar; e
pelo contrário: até minha mãe ficaria na dúvida.
O chefe não entendia algumas coisas:
— Por que fez isso? Podia ter telegrafado, entrado em
contato comigo e...
— Espere que já compreenderá tudo... O caso é que
consegui voltar a Nova York. Foi um milagre! Os
tripulantes do navio viram meu aceno e resolveram espiar
mais de perto. Acabei sendo içado para bordo. Isto, veja
bem, depois de eu estar dois dias perdido no mar.
Resumindo: eles me recolheram e, como não queriam
complicações com a Polícia — deviam ter suas razões para
isso. — deixaram-me na costa, perto de Nova York, sem
nada comunicar ás autoridades. Eu agradeci e...
— Sim — interrompeu o chefe. — Mas, e o tal Kleist?
— Kleist? Isso foi mais tarde. Trabalhava para os
alemães. Seus pais eram alemães, Me chegou aos Estados
Unidos ainda criança. Seu objetivo era colaborar para a
derrota da Inglaterra, na primeira etapa. O resto da turma
odiava os ingleses tanto quanto Kleist. Os Irlandeses...
— Um momento, McLain! — disse o chefe, impaciente.
— Não estou entendendo metade do que você está dizendo.
McLain estava mergulhado em suas recordações; falava
mais para si mesmo do que para o chefe:
— Não sei como Bárbara.. Parecia um anjo e, quando
acaba!
Olhou na direção da janela. Londres vivia um de seus
raros momentos de tranqüilidade. Tudo era paz e silêncio.
McLain sentiu um nó na garganta; falou sem encarar o
outro:
— Certas mulheres deviam cheirar mal...
O chefe percebeu que precisava fazer a McLain algumas
perguntas objetivas, para tirá-lo daquele transe.
— Só não consigo entender por que você se fez passar
pelo marinheiro morto.
— Simples — disse McLain, sorrindo. — Os irlandeses
não têm nenhuma simpatia por nós, e como McLigton era
irlandês, ficaria muito mais fácil para mim entrar no meio
do pessoal do cais. Eu estava certo que encontraria, entre os
estivadores, os responsáveis pelas explosões dos cargueiros.
Tirou a cigarreira do bolso e abriu-a. O chefe, pensando
que ele lhe oferecesse cigarros, recusou. McLain sorriu:
— Pegue os dois do canto, chefe.
O chefe obedeceu e ficou espantado com o peso
excessivo dos cigarros.
— Ué! Que é isto?
— Ainda não sei direito — disse McLain. —Mas vamos
procurar saber. O fato é que se trata de um mecanismo
criado pelo nosso amigo Kleist. À primeira vista, parecem
cigarros inofensivos como qualquer outro, não é? Eles os
escondem entre a carga. Passados alguns dias, essas coisas
ai soltavam umas chamas, provocando as explosões.
— Vou mandar examiná-los imediatamente — disse o
chefe.
Horas depois, tinha diante de si um relatório da seção
técnica. Correu os olhos por ele e ex clamou:
— Muito simples!
— Leia, por favor — pediu McLain.
O chefe leu pausadamente. De fato, era o que se poderia
chamar de “ovo de Colombo”. Tratava-se, apenas, de um
cilindro de chumbo, oco. No centro do tubo, haviam
introduzido e soldado um disco de cobre, que o dividia em
duas câmaras, uma cheia de ácido sulfúrico, altamente
inflamável. Pedaços de cera e rodelas de chumbo, colocados
em cada extremidade, fechavam hermeticamente o tubo,
impedindo a entrada do ar.
A espessura do disco de cobre podia variar. Se fosse
pequena, o disco logo seria corroído pelo ácido e a mistura
dar-se-ia em poucos dias. Regulando-se a espessura do
disco, era possível determinar a data em que a mistura
ocorreria.
Ao dar-se a mistura dos ácidos, produzia-se uma chama
intensa, de vinte a trinta centímetros de comprimento, que
partia de ambos os lados do cilindro de chumbo.
— Engenhoso — observou o chefe ao concluir a leitura.
— Mas também pavoroso — disse McLain, lembrando-
se das horas angustiosos que passara diante de um
mecanismo daqueles, numa casa dos arredores de Nova
York.
Levantou-se com dificuldade e desabafou:
— Estou exausto. Se o senhor me permite...
Na rua, surpreendeu-se pensando em Bárbara. Era a
única perda irreparável, em tudo aquilo.
Ia ser muito difícil esquecê-la. Sua lembrança ficaria,
durante muito tempo, pousada na sua alma e no seu destino.

A seguir: O CASO DOS TÍMPANOS VERMELHOS.

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