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EDITORA MONTERREY
430210/430823
PÓRTICO
CAPÍTULO PRIMEIRO
Onde se aprende a viajar com a morte sob os pés
Explicação que não explica e um mergulho no desconhecido
1
Bairro em que se concentra a população negra de Nova York
Na outra extremidade do corredor, uma segunda
sentinela. Ao ouvir o ruído dos passos, voltou a cabeça e
gritou:
— Quem está aí?
— Sou eu — respondeu o capitão. — Não se preocupe.
Retornou à coberta. O sol já caíra de todo. A Europa
estava em guerra. Mas era difícil pensar em morte e
destruição diante daquele mar que parecia não ter fim. Ele
tiraria uns dias de descanso, quando voltasse a Nova York.
O capitão continuava prisioneiro de seus sonhos. “Há
quanto tempo não vou em casa? Há seis, sete meses.
Pedrinho ainda estava engatinhando; deve estar andando
pela casa toda, derrubando coisas.
Havia, ainda, a esposa, a bela e doce Eunice. Ainda não
completara trinta anos; “tinha o frêmito de uma juventude
incomparável.” O capitão enxuga, com a manga da camisa,
os olhos úmidos. Continua atrelado ao sonho distante.
“Acho que passei a maior parte da vida em cima d’água.
Isto acaba cansando qualquer um.” Numa espécie de filme,
cenas desfilam em sua memória. Pouco antes de partir,
reunira amigos no pequeno mas confortável apartamento.
Abrira uma garrafa de champanha quando alguém soltou,
no meio dos presentes, uma frase que destravou o
mecanismo do riso de todos, menos de sua esposa. Um
amigo, também capitão de cargueiro, enrolara as palavras:
“Sabem? Querem mesmo saber? O nosso capitão aqui é um
enamorado do mar. Há de ter sido um irmão dos peixes,
convivido com as algas...“ Pouco depois, completamente
bêbedo, fora arrastado para o quarto do casal e atirado sobre
o sofá-cama, O capitão ainda se lembrava da expressão de
Eunice. Em. meio àquela hemorragia de risos, trincava os
lábios e crispava as mãos. Ninguém percebera, só ele.
Uma sanfona desafinada traz o capitão à realidade. Um
grupo de marinheiros, sentado no chão, cantava. Eram
vozes roucas, nostálgicas, cansadas. Uma lágrima cativa se
desprende, rola pela face enrugada do capitão; ele a enxuga
com as costas da mão e grita pelo imediato. O homem
aparece e o capitão, já controlado, sorri:
— Não é nada. É só para passar o comando. Vou dormir
um pouco.
Entrou em seu camarote. Ao lado da cama havia um
retrato que mostrava a esposa e os cinco filhos do casal. O
menor estava no colo da mãe e ria com a boca muito aberta,
mostrando gengivas vazias. O capitão suspirou e abaixou-se
para desatar o laço dos sapatos.
Foi quando a violenta explosão o atirou ao solo. No
primeiro momento não compreendeu o que se passava. O
retrato da família estava caído ao seu lado, com o vidro da
moldura em pedaços. Um pressentimento horrível
atravessou lhe o espírito. Pôs-se de pé de um salto e correu
à coberta.
O grupo de marinheiros continuava no mesmo lugar,
mas ninguém cantava. Todos estavam voltados, com os
olhos esbugalhados, em direção à escada que levava aos
porões.
O capitão levantou os braços:
— Mande parar as máquinas! — gritou.
“Parar as máquinas!” — gritaram dezenas de vozes, num
eco cada vez mais fraco. O negro que estava de sentinela
surgiu no alto da escada:
— Foi... foi lá dentro, capitão!
Tinha o ar de quem pede desculpas. O capitão apalpou
instintivamente os bolsos: as chave continuavam ali.
Precipitou-se escada abaixo. Neste momento o ar tornou-se
escaldante. Uma língua de fogo saiu do meio da
embarcação e lambeu a noite. Houve a explosão e...
O silêncio, a noite estrelada e o mar calmo.
O cargueiro mergulhou no seu túmulo de água...
***
O drama de dezenas de pessoas e de um navio foi
reduzido a quatro palavras: “Desaparecido em Alto Mar”. E
mais adiante, a explicação que não explicava coisíssima
nenhuma: “Causas Ignoradas”.
Naqueles dias, o desaparecimento de um navio em alto
mar não tinha grande importância, ainda que significasse a
perda de meia centena de homens e de um carregamento tão
necessário como o próprio sangue para a Inglaterra. Para
cada navio naufragado havia dois ou três com o mesmo
carregamento.
Só no “Foreign Office Department”2 é que se prestou a
devida atenção ao estranho desaparecimento do cargueiro.
Com um carregamento daquele tipo, uma explosão durante
o percurso estava sempre nas cogitações. Mas,
considerando-se que se haviam tomado todas as medidas
preventivas, como pode então ocorrer a catástrofe?
O chefe do WOID3 não ficou muito satisfeito com a
notícia recebida, sobretudo porque começavam a chover
sobre a mesa de seu gabinete informes relativos aos navios
neutros carregados de armamentos para a Inglaterra, que
2
Departamento de Informações do Ministério das Relações Exteriores
3
War Office Intelligence Department — Departamento de Informações do
Ministério da Guerra
sumiam no mar em conseqüência de explosões resultantes
de “causas ignoradas”...
Todos aqueles casos não podiam representar o fruto de
mera casualidade. Havia um traço comum na tragédia que
envolvia, numa onda igualitária, os navios americanos:
todos transportavam material de guerra para os ingleses.
Os informes esclareciam que haviam sido tomadas as
mais rigorosas medidas de precaução para evitar um
desastre. Mas este ocorria, apesar (ou por causa?) de tudo.
Como era possível que se produzissem as explosões, se
ninguém entrava nos depósitos onde se achavam as
munições?
Se as coisas continuassem indo daquele modo, dentro
em pouco não se encontraria mais ninguém que aceitasse a
tarefa. E cada vez mais a Inglaterra precisava da ajuda dos
Estados Unidos. A qualquer momento os alemães poderiam
atravessar o canal e invadir a ilha.
Mas um outro tipo de informação servia para dar ao
mistério uma crespa dimensão aumentando a confusão que
já perturbava a gente da WOID: as explosões deviam ser
atribuídas a causas naturais, embora desconhecidas, mas
nunca a atos, de sabotagem ou ao trabalho de espiões
nazistas.
De acordo com o testemunho do imediato de um dos
navios sinistrados, único sobrevivente da pavorosa série de
desastres, soube-se que seria impossível a qualquer pessoa
penetrar nos depósitos e provocar a explosão.
O chefe do WOID leu o informe e deu um murro na
mesa:
— A coincidência tem limites! Causas desconhecidas
coisíssima nenhuma! Alguém deve ter provocado as
explosões!
O oficial assistente, McLain chupava o cachimbo,
enquanto o chefe mordia, distraidamente, a ponta da
esferográfica. Durante alguns segundos, olharam-se em
silêncio. Finalmente, o chefe perguntou:
— Que faria você neste caso?
McLain não hesitou na resposta. Conta nos dedos:
— Primeiro entraria num cargueiro; segundo, esperaria
para ver se ele ia pelos ares. Das duas, uma: ou eu iria logo
para o inferno ou acabaria descobrindo a causa das
explosões.
Brinca:
— Elementar, meu caro chefe...
O chefe jogou a caneta sobre a mesa. Sentia-se um tanto
irritado com a resposta, pois não estava para brincadeiras,
depois de todos os informes que lera e relera. Mas sorriu
quando fez uma nova pergunta:
— E quem se encarregaria de uma missão suicida?
Conhece algum louco disponível? Até agora, só um homem
conseguiu sair vivo de um desses navios...
— O que prova que existe alguma possibilidade de
salvação para o “suicida”...
O outro tentou falar mas McLain fez um gesto:
— Um momento! Já sei o que vai dizer, chefe.
— Tirou uma longa baforada e acrescentou: — Pois
bem, eu vou. Sempre tive uma certa vocação para o
suicídio.
O chefe fingiu surpresa:
— Você?
— E por que não? Além do mais, chefe, aqui em
Londres a coisa está cada vez pior, e qualquer dia desses
uma parede acaba caindo na minha cabeça. Há um outro
detalhe: estou precisando dar uma voltinha por Nova York.
O chefe olhou nos olhos de McLain:
— Pode ser a sua última voltinha ...
— Problema de opção: entre morrer metralhado pelos
alemães em Londres e desaparecer nas verdes águas do
oceano, prefiro a segunda hipótese. Eu sempre tive atração
pelo mar, sabia? Talvez o apelo marinho que existe no
fundo de cada um de nós, sei lá... Olha: há alguns anos, eu...
— Está bem, está bem. Não precisa continuar.
McLain esfregou as mãos de contentamento:
— Ótimo. Quer dizer que posso ir?
O chefe hesita:
— Não. Ou melhor, dê-me algum tempo para pensar
nisso. Afinal, essa missão quase significa um contrato com
a morte e — quem sabe? — sem nenhum resultado
positivo...
McLain senta-se na ponta da mesa:
— O senhor teria uma sugestão melhor?
O chefe abanou a cabeça:
— Confesso que não. Mas você deve compreender que a
responsabilidade é minha e sou eu quem deve resolver.
Vamos fazer o seguinte: volte aqui amanhã, digamos, às 9
horas, está bem?
McLain deu de ombros e deixou o gabinete. Sentia-se
um pouco desapontado. Acreditava que receberia, além de
tapinhas nos ombros, uma ordem de partida. A verdade é
que não era qualquer um que se arriscaria espontaneamente
a enfrentar uma missão daquele calibre.
A luz dos holofotes varria o céu à procura de aviões
inimigos. As ruas desertas e escuras lembravam cenário de
filme de mistério. De certa maneira, Londres parecia mais
bela naquelas circunstâncias, apesar de mais sinistra. “Ou
mais pacifica”, pensou McLain, sorrindo com o paradoxo.
Resolveu dar umas voltas, antes de ir para casa. A noite
estava esplêndida, a não ser... “Aquele velho rabugento!”
Por que não o tinha enviado, de uma vez, para a tal voltinha
em Nova Iorque? Afinal de contas, pesando bem as coisas,
que teria ele a perdei- com isso? Estava entre o fogo e a
água e, de qualquer forma, o resultado seria a morte.
De repente, as sereias vararam a noite. Aviões nazistas,
bombardeios, perigo! Pessoas encheram as ruas, saídas das
casas com o mesmo objetivo: refúgio. Eram crianças,
mulheres e homens que se misturavam e tinham entre si um
traço comum: o medo da morte. Corriam olhando para o
alto, tropeçavam e continuavam a correr.
McLain apertou o passo e meteu-se também num abrigo.
Gente afluía de toda parte, gemendo, chorando. Alguns
lançavam pragas e ameaças contra os alemães, mas seus
gritos eram logo abafados pelo zumbido ameaçador dos
aviões. Os canhões antiaéreos entravam em ação,
vomitando fogo e aço.
Apoiado à parede do refúgio, McLain mordia os lábios.
A cada “visita” dos aviões inimigos, a sua Inglaterra ficava
mais debilitada. E como salvar o pais que começava a
agonizar, se os cargueiros continuassem a explodir? E que
dissera o velho? “Essa missão quase significa morte certa”.
De uma coisa McLain tinha absoluta certeza: sua vida de
nada valia diante do massacre de milhões de pessoas. E era
o que acontecia diariamente.
Uma bomba caiu nas proximidades do refúgio, fazendo
tremer suas paredes. As mulheres apertaram mais
fortemente os filhos contra o peito. A multidão aquietou-se,
vendo a morte tão perto. Um pesado silêncio desabou sobre
aquela gente. Finalmente, Um novo sinal informou que o
perigo passara. E, pouco a pouco, a massa humana se foi
escoando para fora do refúgio.
McLain, com as mãos nos bolsos, também voltou às
ruas, que pouco a pouco se tornavam desertas. Ao longe,
um incêndio. Palmas de fogo pareciam querer alcançar o
céu. Uma ambulância passou em disparada, enquanto os
holofotes varriam de luz as águas do Tâmisa.
Um clima de ódio e desolação envolvia a grande ilha.
CAPITULO SEGUNDO
Obstinação suicida
Um sonho de luzes e o cheiro da morte
Todos são suspeitos
O prato do dia...
4
Cidade da Inglaterra, próxima de Londres. Pela importância de suas
trocas comerciais, é considerada como o segundo porto da Grã-Bretanha
O outro acompanhava com indiferença o movimento dos
estivadores. Voltou-se apenas para confirmar:
— Sim, suíço.
O capitão continuou examinando o passaporte.
Finalmente, disse:
— Escute aqui. Gosto das coisas às claras, sem mentira
ou embromação.
Enquanto conversava, estalava os nós dos dedos.
— Suponho que você já sabe que tipo de carga vamos
levar e o que tem acontecido aos navios que transportam
munição para os aliados. Ou está pensando que vai passear?
Se quiser voltar atrás...
Max Scheele limitou-se a dar de ombros sem olhar o
capitão,
— Por que é que você quer embarcar?
Dessa vez o marinheiro encarou-o, com o cenho franzido
e um ar de desafio:
— Os suíços não lhe agradam, não é verdade, amigo?
O velho hesitou:
— Bem... Não é isto — protestou, com um sorriso.
Devolveu o passaporte e acrescentou: — É que o risco é
grande, como já disse. Entrar num navio destes é comprar
passagem de ida para o inferno.
— Mas o senhor... as autoridades, enfim, devem ter
tomado precauções para impedir...
O velho corta:
— Sim, sim! E dai? Ou você pensa que os outros
também não tomaram?
A hostilidade sofreu um desgaste fatal. O capitão fala,
com cordialidade:
— É o diabo, filho! Ninguém consegue adivinhar
quando, como e por que acontecem as explosões!
Scheele tornou a dar de ombros, demonstrando uma
indiferença que, no fundo, agradava ao capitão. A verdade é
que o velho suara muito para encontrar o pessoal que havia
recrutado e, ainda assim, levava a tripulação incompleta.
Um homem que embarcava com uma obstinação suicida e,
mais ainda, que sorria diante da perspectiva de voar em
pedaços, era muito bem-vindo...
***
O “Excelsior” levantou âncora ao anoitecer. No cais,
ruminando seus ressentimentos, ficaram os estivadores
irlandeses.
Max Scheele, debruçado na amurada, olhava a terra que
se afastava; Nova York, com sua floresta de arranha-céus,
sua aura de luz, a estátua da Liberdade, todo aquele mundo
que parecia esquecido da guerra.
Enquanto nos países europeus os homens só tinham
coração para o ressentimento e para o ódio, Nova York
continuava vivendo o seu sonho de luzes; os cinemas, os
cabarés continuavam superlotados; as fábricas funcionavam
ininterruptamente.
— Ao trabalho! — A voz do capitão sacudiu o
marinheiro, trouxe-o á realidade objetiva e cruel.
Scheele voltou-se: o velho capitão gesticulava
energicamente, dando ordens para todos os lados. A
tripulação estava desfalcada, o que obrigava os homens a
um superesforço. Claro que em compensação pagavam
muito mais do que o habitual.
Max Scheele observou o seguinte: no momento em que
Nova York saiu do campo visual da tripulação, os homens
não conseguiram dissimular o receio. Dir-se-ia que a grande
cidade, mesmo à distância, os preservava de qualquer
perigo. Cercados de horizontes por todos os lados, sentiam-
se desprotegidos. Os movimentos dos marinheiros
tornaram-se nervosos. O próprio capitão e seus oficiais não
pareciam muito tranqüilos. Tinham medo, um medo que
não se manifestava com palavras, mas com olhares
inquietos que examinavam o mar e o céu; um avião poderia
surgir do abismo azul, um submarino poderia irromper das
águas, qualquer dos dois significaria a destruição e a morte.
A desconfiança, a suspeita de cada um recaia sobre
todos. São, ambas, contagiantes. Em principio, ninguém era
inocente; a mais inofensiva das aparências talvez fosse o
disfarce de um sinistro espião. Os canalhas não são
obrigatoriamente feios, nem sempre têm aparência de
monstros do tipo que o cinema e as histórias em quadrinhos
retratam. Duas perguntas pareciam não ter resposta: quem
iria por fogo nas granadas e como conseguiria chegar aos
depósitos? Além do capitão, que possuía as chaves, mais
ninguém parecia capaz de tal façanha. À entrada das
escadas que levavam ao porão, um homem armado montava
guarda. E como se não bastasse, cada um dos membros da
tripulação vigiava por conta própria; havia sempre dois ou
três olhos fixos na porta de acesso às escadas.
Nos momentos de folga, Max Scheele distraía-se
tocando gaita ou fumando cachimbo. O “Excelsior”
continuava avançando sob um céu limpo e nada permitia
prenunciar dificuldades. No entanto, à medida que os dias
passavam, tornava-se mais evidente o medo da tripulação.
No começo, durante as horas de descanso, alguns ainda
cantavam ou dançavam ao compasso as melodias que
Scheele tirava de sua gaita. Depois os homens chegaram a
ponto de nem sequer falar uns com os outros, como se
pressentissem o perigo estreitando-se em torno deles.
Nada, porém, acontecia que justificasse esses temores.
Quando o capitão, depois de inspecionar os depósitos,
retornava à coberta, perguntavam-lhe:
— E então?
A resposta era sempre a mesma:
— Tudo em ordem.
Isto significava que os depósitos continuavam bem
trancados, que não havia sinal de que alguém tivesse
conseguido chegar até eles para provocar uma explosão.
Mas, das outras vezes não teria ocorrido a mesma coisa?
Todos os navios haviam explodido após alguns dias de
navegação, sem a menor causa aparente.
A tripulação trabalhava com lerdeza e, nas horas de
descanso cada um mantinha-se alerta para, ao menor sinal
de perigo, lançar-se à água.
O medo, que no início da viagem era apenas sensível,
quase podia ser apalpado agora. A desconfiança, por outro
lado, minava aos poucos a resistência dos tripulantes. Mas
as horas e os dias transcorriam tranqüilos.
Sentado em cima de um rolo de corda, Max Scheele
tocava sua gaita. Era talvez o único a não experimentar o
terror que esmagava a tripulação. Um marinheiro destacou-
se do grupo e aproximando-se dele.
— Pára com isso! — gritou, furioso.
Max levantou os olhos:
— E por que devo parar? A boca é minha e a gaita
idem...
O tom de voz do suíço aplacou a raiva do marinheiro.
Este falou, mais calmo:
— Sei lá! Essa musiquinha me enerva!
— Você antes gostava de ouvi-la... — disse Scheele,
olhando-o nos olhos.
— É, mas agora me deixa nervoso!
O marinheiro recostou-se na amurada, apoiado nos
cotovelos. Olhava para os lados com a fisionomia crispada.
Scheele acendeu o cachimbo, tirou uma baforada e
perguntou-lhe:
— Medo? Está com medo, colega?
— E quem não está com medo aqui dentro? — rosnou o
outro. — Maldito navio! Se arrependimento matasse... Mas
é o tal negócio: acenam com uns dólares a mais e nós
caímos como patinhos! Ah! Se eu pudesse voltar para Nova
York!
Scheele levantou-se e fez um gesto para que ele se
acalmasse.
— Que calma coisíssima nenhuma! Calma como, se
temos a morte sob os pés e sobre a cabeça?
Olha em torno:
— Talvez aqui mesmo, naquele maldito depósito! Tenho
vergonha de dizer que...
— ... que tem medo? Bobagem! Quem não tem medo? O
medo independe de nós, nasce à nossa revelia.
Colocou a mão no ombro do outro; fez blague:
— Ter medo não é vantagem. Qualquer pé-rapado tem
medo. O que pouca gente sabe e pode é agüentar firme...
Muda de tom:
— Ou você tem motivo para um medo especial? Talvez
saiba alguma coisa a respeito...
O marinheiro só falta pular:
— Ei! Que conversa é essa? Que é que você quer que eu
saiba? Ficou maluco?
Scheele sorriu, dando de ombros:
— Bem, não se trata disso. Mas talvez você tenha visto
alguma coisa suspeita...
— Pois se eu tivesse visto alguma coisa, todo o mundo
já estaria sabendo — afirmou categórico. Sacudiu os punhos
fechados: — O pior é que ninguém sabe de nada, nem
suspeita de coisa alguma. E quando a gente menos esperar
— bum!
— e entramos para o “menu” dos tubarões como prato-
do-dia...
Scheele sorriu:
— E se não acontecer nada disso?
O marinheiro olhou-o, desconfiado, e disse, afastando-
se:
— Então, meu amigo, é porque o nosso santo é muito
forte. Muito forte mesmo.
Scheele recostou-se na amurada e tornou a acender o
cachimbo. Anoitecia e o mar soprava uma brisa suave.
Os marinheiros continuavam intranqüilos, andando de
um lado para outro. O que montava guarda junto às escadas
polia a carabina; mas sua presença era quase dispensável. A
própria tripulação estava atenta e intensificava cada vez
mais a vigilância para que ninguém tentasse aproximar-se
das escadas; e, evidentemente, ninguém o tentaria.
Max Scheele fumava tranqüilamente, observando-os.
O capitão cruzou a ponte com andar balanceante,
embora o navio deslizasse suavemente pelo mar calmo,
como se patinasse na neve. Parou perto da sentinela. Falou-
lhe qualquer coisa e seguiu adiante, depois mudou de idéia,
deu meia volta e desceu as escadas.
Era a rotina de todas as noites, O capitão não conseguia
dormir antes de dar uma olhadela nos depósitos. E fazia
mais: abria todas as portas; o jato da potente lanterna do
velho varria a escuridão, à procura do detalhe que indicasse
o perigo.
Demorou bastante tempo a voltar. Passava próximo de
Max, quando este lhe perguntou:
— Tudo em ordem, capitão?
— Tudo bem.
As chaves pendiam do cinturão. Estava sem cachimbo e
explicou por quê:
— Deixei-o no camarote. Gosto de fumar mas odeio
explosões. Não me arrisco...
O capitão não era uma exceção da regra numerosíssima.
Tinha medo e não fazia segredo disso. Estava, porém,
estranhamente bem-humorado. Scheele voltou à carga:
— Você acha que há algum perigo?
O capitão riu e abanou a cabeça:
— Como? Só se surgir um submarino, um avião, sei lá!
Aqui dentro, meu rapaz, nunca! Além da impossibilidade
material de colocar qualquer coisa dentro do depósito, seria
preciso que tivéssemos, como companheiro, um desses
fanáticos japoneses, um autentico suicida. E não temos, na
tripulação, ninguém de olhos rasgados...
Aquela noite transcorreu em calma, como que
confirmando as esperanças do capitão. Mas, ao amanhecer,
todos acordaram com os gritos da sentinela:
— Fogo! Fogo!
Os homens deixaram suas tarimbas, onde se haviam
instalado, de roupa e tudo, e correram para a coberta. Rolos
de fumaça saiam do porão, mas ninguém se preocupou com
o incêndio. Havia coisa mais importante a fazer: salvar a
própria pele; a qualquer momento o navio explodiria e,
então...
Os tripulantes apavorados procuravam, melhor seria
dizer disputavam, os escaleres, enquanto o capitão, do alto
da ponte, gritava inutilmente:
— Idiotas! Covardes! Que é que estão fazendo? É
preciso apagar o incêndio!
Os tripulantes não pensavam da mesma maneira. Que
importância tinham, naquele momento, o navio e sua carga?
Os ingleses e os alemães? O medo passou a dar as ordens,
era o grande capitão. Alguns nem mesmo esperaram que os
escaleres fossem baixados; lançaram-se ao mar e nadavam
desesperadamente para afastar-se do navio. As chamas
cresciam, vermelhas como o sol que acordava no horizonte.
O capitão agitou os braços, continuou a gritar do alto da
ponte:
— Voltem, seus cretinos! Precisamos apagar o fogo!
Ninguém lhe dava atenção. O capitão desceu à coberta e,
sozinho, tentou apagar o fogo. Mas a mangueira era pesada
demais para um só homem e o capitão não conseguiu
arrastá-la até às escadas.
O calor aumentava, tornando-se insuportável. Era
iminente a explosão dos depósitos. Estabelecia-se ali a
fidelidade do capitão à velha tradição da marinha de todo o
mundo: ele seria o último a sair ou... a ficar.
O velho avistou Max Scheele e gritou-lhe:
— Ei! Venha ajudar-me! Preciso salvar o navio!
Scheele correu até ele e agarrou-o pelo braço:
— Deixe o navio pra lá! O que é preciso é fugir e bem
depressa! Isto vai explodir, capitão!
Tentou arrastá-lo, mas o velho livrou-se com um gesto
brusco:
— Vá para o diabo! — gritou. — Vocês ficaram loucos?
Vou denunciá-los às autoridades, em Liverpool!
Puxava a mangueira com toda as forças, mas sem
resultado. Scheele insistiu:
— Vamos! É um suicídio, capitão! O navio vai explodir!
O velho encarou-o furioso, cerrando os punhos:
— Vá você, covarde, eu fico aqui!
O murro de Scheele atingiu o capitão na ponta do
queixo. O homem vacilou sobre as pernas. Antes de
começar a cair, em câmara lenta, Scheele agarrou-o pelas
pernas, colocou-o nos ombros e correu para os barcos de
salvamento.
— Ajudem-me a colocar o capitão aí dentro! — gritou
aos marinheiros mais próximos. Só um deles prestou-me
ajuda; todos os outros disputavam um lugar nos escaleres.
Scheele conseguiu lugar num dos últimos barcos, Os
marinheiros, numa perfeita sincronia de movimentos,
começaram a remar para longe do navio condenado. Os que
se haviam lançado ao mar nadavam desesperadamente.
A explosão sacudiu a nave e desencadeou gigantescas
ondas que colheram os escaleres, levantando-os a grande
altura para logo os deixar cair de borco. Então, pouco a
pouco, o “Excelsior” mergulhou nas águas tranqüilas.
Sob a alegre luz do amanhecer restavam apenas alguns
poucos homens a nadar no oceano sem fim.
***
A notícia teve a ressonância das outras. Eram gêmeas e
não poderiam deixar de provocar reação idêntica: “Mais um
navio afundado em estranhas circunstâncias”. O
Almirantado Inglês, fez a pergunta de sempre: “Que faziam
o Intelligence Service e, particularmente, o WOID que não
investigavam as causas de tantos desastres?
Até quando os Estados Unidos aceitariam perder
embarcações preciosas numa época em que, a qualquer
momento, poderiam ser obrigados a intervir no conflito
mundial? Acabaria chegando o momento em que a
Inglaterra e seus aliados ficariam inteiramente privados das
armas e munições fornecidas pela grande nação amiga. O
número de tragédias não deixava dúvida quanto ao seguinte:
a destruição dos cargueiros só podia ser atribuída à
espionagem alemã, cujos agentes, sem dúvida, agiam em
plena liberdade nos Estados Unidos, sobretudo em Nova
York, apesar da vigilância do Serviço de Informação norte-
americano.
Um segredo era propriedade exclusiva do chefe do
WOID. Só ele sabia que no último navio destruído viajava
um de seus homens, o agente McLain, e que, apesar disto,
não fora possível evitar a catástrofe.
McLain, assim como os demais tripulantes do
“Excelsior”, haviam sido tragados pelo mar; portanto, era
preciso ir pensando em enviar outro ou outros agentes a
Nova York. As investigações tinham de continuar.
CAPÍTULO TERCEIRO
“Bola, de sebo”
Sinal vermelho para os covardes
Um estranho senhor e uma bela mulher
CAPÍTULO QUARTO
O charuto mais caro do mundo
Revólver é um bom argumento
Um mergulho nas trevas
Um impostor?
CAPÍTULO QUINTO
Volúpia de matar
Morto é bom, vivo é melhor
Uma casa sinistra para homens e ratos
CAPÍTULO OITAVO
“Perdoa-me, meu amor!”
Há peixes de todos os tamanhos
Uma pantera morena e o fim dos “charutos” malditos