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PARTE B

Lê o texto. Se necessário, consulta as notas.

À meia-noite estendeu Simão o braço trémulo ao maço das cartas que Teresa lhe enviara, e
contemplou um pouco a que estava ao de cima, que era dela. Rompeu a obreia 1, e dispôs-se no
camarote para alcançar o baço clarão da lâmpada.
Dizia assim a carta:
5 «É já o meu espírito que te fala, Simão. A tua amiga morreu. A tua pobre Teresa, à hora em que
leres esta carta, se me Deus não engana, está em descanso.
Eu devia poupar-te a esta última tortura; não devia escrever-te; mas perdoa à tua esposa do céu
a culpa, pela consolação que sinto em conversar contigo a esta hora, hora final da noite da minha
vida.
10 Quem te diria que eu morri, se não fosse eu mesma, Simão? Daqui a pouco, perderás da vista
este mosteiro; correrás milhares de léguas, e não acharás, em parte alguma do mundo, voz humana
que te diga: – A infeliz espera-te noutro mundo, e pede ao Senhor que te resgate.
Se te pudesses iludir, meu amigo, quererias antes pensar que eu ficava com vida e com
esperança de ver-te na volta do degredo? Assim pode ser, mas, ainda agora, neste solene momento,
15 me domina a vontade de fazer-te sentir que eu não podia viver. Parece que a mesma infelicidade
tem às vezes vaidade de mostrar que o é, até não podê-lo ser mais! Quero que digas: – Está morta, e
morreu quando eu lhe tirei a última esperança.
Isto não é queixar-me, Simão; não é. Talvez que eu pudesse resistir alguns dias à morte, se tu
ficasses; mas, de um modo ou outro, era inevitável fechar os olhos quando se rompesse o último fio,
20 este último que se está partindo, e eu mesma o oiço partir.
Não vão estas palavras acrescentar a tua pena. Deus me livre de ajuntar um remorso injusto à
tua saudade.
Se eu pudesse ainda ver-te feliz neste mundo; se Deus permitisse à minha alma esta visão!…
Feliz, tu, meu pobre condenado!…
25 Sem o querer, o meu amor agora te fazia injúria, julgando-te capaz de felicidade! Tu morrerás de
saudade, se o clima do desterro te não matar ainda antes de sucumbires à dor do espírito.
A vida era bela, era, Simão, se a tivéssemos como tu ma pintavas nas tuas cartas, que li há
pouco! Estou vendo a casinha que tu descrevias defronte de Coimbra, cercada de árvores, flores e
aves. A tua imaginação passeava comigo às margens do Mondego, à hora pensativa do escurecer.
30 Estrelava-se o céu, e a lua abrilhantava a água. Eu respondia com a mudez do coração ao teu silêncio,
e, animada por teu sorriso, inclinava a face ao teu seio, como se fosse ao de minha mãe. Tudo isto li
nas tuas cartas; e parece que cessa o despedaçar da agonia enquanto a alma se está recordando.
Noutra carta, me falavas em triunfos e glórias e imortalidade do teu nome. Também eu ia após da
tua aspiração, ou adiante dela, porque o maior quinhão dos teus prazeres de espírito queria eu que
35 fosse meu. Era criança há três anos, Simão, e já entendia os teus anelos 2 de glória, e imaginava-os
realizados como obra minha, se me tu dizias, como disseste muitas vezes, que não serias nada sem o
estímulo do meu amor.
Oh! Simão, de que céu tão lindo caímos! À hora que te escrevo, estás tu para entrar na nau dos
degredados, e eu na sepultura. […]»
Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição,

Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006, pp. 215-216.

1
obreia: folha fina de massa de farinha de trigo, usada para fechar cartas. 2anelos: desejos intensos, aspirações.

1. Explicita dois aspetos que, na carta de Teresa, aproximam Simão do conceito de «herói
romântico».

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o individualismo da personagem, o seu egocentrismo (ao optar pelo cumprimento da
pena no degredo, não equacionando as consequências dessa decisão), conducente à sua
destruição, o «degredo», e à de Teresa, visível na acusação da jovem: «– Está morta, e
morreu quando eu lhe tirei a última esperança» (ll. 16-17);
personagem que se move por grandes ideais, pela busca do absoluto, transmitida nas
cartas: «Noutra carta, me falavas em triunfos e glórias e imortalidade do teu nome» (l.
33); «os teus anelos de glória» (l. 35);
dedicação a um amor idealizado, sem limites: «Tu morrerás de saudade […]» (ll. 26-27);
«[…] não serias nada sem o estímulo do meu amor» (ll. 36-37).

2. Relaciona a reflexão de Teresa, presente no penúltimo parágrafo do texto, com o sentido da


metáfora «Oh! Simão, de que céu tão lindo caímos!» (linha 38).
Teresa exprime a felicidade sentida ao ler as cartas de Simão, nas quais o jovem fazia
planos de um futuro construído a dois;
essa felicidade sonhada é reforçada e comprovada pela metáfora «céu tão lindo», mas
que não passou de um sonho, pois caíram para o abismo: o degredo e a morte («À hora
que te escrevo, estás tu para entrar na nau dos degredados, e eu na sepultura», ll. 38-
39).

PARTE C

7. O amor-paixão condiciona o destino de Pedro da Maia, em Os Maias, de Eça de Queirós, e o de


Simão Botelho, em Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.
Escreve uma breve exposição na qual comproves a afirmação anterior, baseando-te na tua
experiência de leitura dos romances mencionados.

A tua exposição deve incluir:


• uma introdução ao tema;

• um desenvolvimento no qual explicites um aspeto que condicionou o destino de cada uma


das personagens, fundamentando cada um desses aspetos em, pelo menos, um exemplo
pertinente;
• uma conclusão adequada ao desenvolvimento do tema.

Simão Botelho (Amor de Perdição):


– Simão Botelho apaixonou-se perdidamente por Teresa de Albuquerque, estando disposto a
lutar por esse amor, contudo, a agressividade latente, o ciúme e o sentimento de desonra
levam-no a assassinar Baltasar, o que conduziu à separação dos amantes e à sua desgraça: a
prisão, o degredo e a morte.

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