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Adorno - PRISMAS - Crítica Cultural e Sociedade-Ática (1998)
Adorno - PRISMAS - Crítica Cultural e Sociedade-Ática (1998)
J
crítica cultural e sociedade
Sociólogo, filósofo, músico, crítico literário,
Theodor W. Adorno é um representante do
apogeu da cultura humanista européia neste
século em meio aos sinais de sua dissolução.
Prismas é a mais importante reunião de
ensaios do autor, e demonstra a força de um
pensamento que não se deixa endausurar pelos
limites rígidos das disciplinas acadêmicas.
1: 1• • •
Para Theodor W. Adorno (1903-
1969), a forma mais adequada ao
exercício de uma crítica cultural
que não se contenta com a
simples classificação e avaliação
dos objetos é o ensaio, capaz
de iluminar os diferentes ângulos
e matizes que constituem as
obras de arte e o pensamento.
Publicado em 1955, Prismas
é a mais importante reunião de
ensaios do autor, e demonstra
a força de um pensamento que
não se deixa enclausurar pelos
limites rígidos das disciplinas
acadêmicas.
Nos doze textos que constituem
o livro, a crítica de Adorno
focaliza os mais diversos
assuntos, sempre buscando
recuperar nos objetos o teor
de verdade que os vincula ao
movimento geral da sociedade
e da história.
A relação viva com as obras
de arte e com o pensamento é
posta em questão no confronto
das considerações de Valéry e
Proust a respeito dos museus e
no exame das próprias condições
"de possibilidade da crítica
cultural em um mundo "dividido,
em preto e branco, por
categorias que giram em falso".
O Adorno sociólogo revela o
alcance da teoria da classe
ociosa desenvolvida por Veblen;
•
ressalta a ideologia da sociologia
do conhecimento de Mannheim;
e repensa, após a Segunda
Guerra, o declínio do Ocidente
diagnosticado por Spengler.
Nos textos de crítica literária,
Adorno defende uma interpre-
tação materialista da obra
de Kafka; questiona o sentido
da utopia negativa do Brave
New World de Huxley; e
discute os interesses poéticos
e pessoais na correspondência
entre dois grandes nomes
da literatura alemã: George
e Hofmannsthal.
Por fim, esta antologia reúne
três dos mais importantes
ensaios sobre música escritos
por Adorno - músico e
compositor, aluno de Alban
Berg e autor da Filosofia da
Nova Música - : a homenagem,
sempre crítica, a Schoenberg,
por ocasião da morte do
compositor; o combate a uma
visão historicista da música de
Bach; e a polêmica que ilumina
o caráter repressivo do jazz.
Em todos os ensaios, a força
da negação determinada retoma
as promessas de libertação
do Iluminismo e questiona
se a sociedade destes tempos
sombrios "irá finalmente
determinar a si mesma ou
provocar a catástrofe terrestre".
PRISMAS
crítica cultural e sociedade
Theodor W. Adorno
Tradução de
Augustin Wernet e
Jorge Mattos Brito de Almeida
m
e,litora álira
SÉRIE TEMAS
Volume 64
Sociologia e crítica cultural
Título original
PRISMEN. Kulturkritik und Gescllschaft
Editor
Fernando Paixão
Editor assistente
Otacílio Nunes
Editor de arte
Marcello Araujo
Editoração eletrôhica
Claudia Warrak
EDITORA. AFILIADA
1998
Todos os direitos reservados
Editora Ática
Rua Barão de Iguape, 110
01507-900 São Paulo SP
Caixa Postal 8656
Tel (011) 278 9322
Fax (011) 2774146
Endereço telegráfico "Bomlivro"
Internet: http://www.atica.com.br
e-mail: editora@,nic,1.com.br
SUMÁRIO
George e Hofmannsthal -
correspondência: 1891-1906 187
Notas 271
Anexo:
Réplica a uma crítica a "Moda intemporal" 281
Crítica cultural e sociedade~:-
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de uma hora para outra garantir aos grupos abertos das grandes
massas o privilégio da ascensão social, sem nenhuma contraparti-
da". Assim como os nobres nunca foram mais nobres que os outros,
também nunca foram objetivamente capazes nem estiveram subjeti-
vamente dispostos a renunciar seriamente a qualquer princípio de
privilégio. Se a teoria das elites, que tanto aprecia categorias inva-
riantes, reúne como "princípios de sangue e propriedade" estágios
historicamente diferentes do que os sociólogos hoje denominam
"diferenciação social", como a feudal e a capitalista, acaba com isso
também por separar de bom grado aquilo que está relacionado à
propriedade e à produção. Max Weber demonstrou que o espírito
do primeiro capitalismo identificava os dois, ou seja, que a capaci-
dade de rendimento pode ser medida, no interior de um processo de
trabalho racionalmente constituído, em termos de seu êxito mate-
rial. A equiparação de rendimento e êxito profissional evidencia-se
psicologicamente na disposição de transformar em fetiche o êxito
enquanto tal. Mannheim ressalta isso com o conceito de "impulso
de afirmação". Na ideologia, propriedade e rendimento separam-se
apenas quando se torna evidente que o "rendimento", como ratio
econômica do indivíduo, não corresponde mais à "propriedade",
entendida como sua possível recompensa. Somente então os bur-
gueses se transformam verdadeiramente em fidalgos. Os "mecanis-
mos de seleção" de Mannheim são, portanto, invenções: sistemas de
referência arbitrariamente selecionados e distanciados do processo
de vida da sociedade real.
Esses mecanismos de seleção são obrigados a admitir conse-
qüências que se assemelham sinistramente às concepções delirantes
de Sombart e de Ortega y Gasset. Mannheim fala de uma "proleta-
rização da intelligentsia". Constata acertadamente a saturação do
mercado cultural: haveria mais pessoas "culturamente" qualificadas,
no sentido de uma educação formal, do que posições que poderiam
ocupar. Com isso, porém, o valor social da cultura diminuiria, pois
haveria uma "lei sociológica que di2 que o valor social do espírito se
orienta pelo grau de valorização social daqueles que o produzem".
Ao mesmo tempo, o "valor social" da cultura necessariamente de-
clina, pois o recrutamento da nova geração de intelectuais se estende
às camadas mais baixas, especialmente ao pequeno funcionalismo
público. O conceito de proletariado é com isso formalizado: ele
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cimento. O leitor nada sabe do que se pretende com ele, e nem deve
saber, nem mesmo o papel que desempenha nisso tudo. Não existe
sátira mais terrível da liberdade de pensamento. Antigamente não se
podia ousar pensar livremente; agora isto é permitido, mas não se
consegue mais fazê-lo. As pessoas desejam pensar apenas o que se
deseja que elas pensem, e exatamente isso é sentido como liberdade".
Os prognósticos específicos não são menos espantosos. Prin-
cipalmente o militar, que deve ter sido influenciado por certas
experiências do Alto Comando Militar alemão durante a Primeira
Guerra Mundial, que nesse meio tempo foram postas em prática.
Spengler considera obsoleto o princípio "democrático" do serviço
militar obrigatório, e os meios táticos desenvolvidos a partir dele.
"Os exércitos permanentes serão de agora em diante gradual-
mente substituídos por exércitos profissionais de soldados volun-
tários e entusiastas da guerra. No lugar dos milhões novamente os
cem mil, mas justamente por isso este segundo século" (após as
Guerras Napoleônicas) "será de fato o século dos Estados belige-
rantes. A mera existência desses exércitos não constitui um substi-
tuto para a guerra" (como teria ocorrido, segundo Spengler, no
século XIX). "Eles existem para a guerra e anseiam por ela. Dentro
de duas gerações, a vontade desses exércitos será mais forte do que a
dos que desejam a paz. As guerras pela herança do mundo serão
travadas por continentes, e países como a Índia, a China, a África do
Sul, a Rússia e os países do Islã serão chamados à luta, em um con-
fronto de novas técnicas e táticas. Os grandes centros metro-
politanos do poder vão dispor ao bel-prazer sobre os pequenos
Estados, sobre seus territórios, sua economia e seus habitantes; estes
permanecerão apenas como províncias, objetos, meios para deter-
minados fins, seu destino não terá nenhuma importâne"ia para o
curso dos acontecimentos. Aprendemos em poucos anos a não mais
prestar atenção a acontecimentos que, antes da Primeira Guerra
Mundial, teriam horrorizado o mundo."
Nesse meio tempo, recordar Áuschwitz já é tido como sinal de
ressentimento enfadonho. Ninguém mais se interessa pelo passado.
Após o período que Spengler denominou "a era dos Estados belige-
rantes" se seguiria, segundo seu esquema, um "tempo sem história",
no sentido demoníaco da expressão. A tendência da economia con-
temporânea de criar, com a eliminação do mercado e da dinâmica da
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espera tudo dos homens e de suas atuações, que não conta mais com
"relações de forças" políticas, mas que quer pôr um fim no "jogo de
forças", não se dedica a fazer profecias. Spengler diz que o impor-
tante na história é contar, na mais alta medida, com incógnitas. Mas
as incógnitas da humanidade são justamente aquilo com o que não
se pode contar. A história não é uma equação, não é um juízo analí-
tico. A concepção que afirmasse isso eliminaria já de antemão a pos-
sibilidade do outro. A previsão spengleriana da história remete aos
mitos de Tântalo e Sísifo e às sentenças dos oráculos, que desde os
tempos antigos anunciam o mal. Spengler é mais um adivinho do
que um profeta. Na adivinhação gigantesca e destrutiva, o pequeno-
burguês triunfa.
A morfologia da história universal serve, em Spengler, aos mes-
mos propósitos aos quais serve a grafologia em Klages. No desejo
do pequeno-burguês de adivinhar o passado pela análise grafológica
e o destino pelas cartas esconde-se exatamente aquilo que Spengler
cinicamente d~nuncia nas vítimas: a renúncia à autodeterminação
consciente. Ele se identifica com o poder, mas sua teoria ao mesmo
tempo trai, por sua configuração adivinhatória, a impotência da
identificação'. Spengler está tão seguro de sua causa quanto o carras-
co após a sentença ter sido pronunciada pelos juízes. Na fórmula
histórico-filosófica do mundo perpetuam-se não apenas as fraque-
zas alheias, mas também as próprias.
Talvez uma tal caracterização do modo de pensar de Spengler
permita algumas considerações de princípio a propósito de sua crí-
tica. A sua metafísica é positivista por se resignar àquilo que é da
maneira como é, por excluir qualquer possibilidade e pelo ódio con-
tra todo pensamento que leva a sério o possível em sua oposição ao
real. Em um ponto decisivo, entretanto, Spengler rompe com esse
positivismo - e de tal maneira que alguns dos seus comentaristas
teológicos acreditaram poder reivindicá-lo como um companheiro.
Trata-se da concepção de Spengler sobre a força motriz da história,
a "Seelentum": a índole enigmática, completamente interior e inex-
plicável, de um tipo particular de homem ou, como Spengler oca-
sionalmente o chama, de uma "raça", que inexplicavelmente aparece
de quando em quando na história.
Apesar de toda a crença nos fatos e de todo o ceticismo rela-
tivista, um princípio metafísico é evocado para a explicação última
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doente tudo que está em devir] - a frase do poeta Georg Trakl trans-
cende a paisagem spengleriana. Em um mundo onde a vida é violen-
ta e opressora, a decadência torna-se o refúgio de algo melhor, que
se recusa a acompanhar essa vida, sua cultura, crueza e sublimidade.
Os impotentes, que segundo o mandamento de Spengler serão mar-
ginalizados e aniquilados pela história, incorporam negativamente
na negatividade dessa cultura tudo aquilo que promete romper os
seus ditames e pôr fim ao horror dessa pré-história da humanidade,
mesmo que não tenha forças para tanto. No protesto dos impoten-
tes está a única esperança de o destino e o poder não ficarem com a
última palavra. O que se opõe ao declínio do Ocidente não é a cul-
tura ressurrecta, mas a utopia contida, em um questionamento sem
palavras, na imagem da que sucumbe.
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O ataque de Veblen à cultura::•
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humano e percebe que ele deveria ser desumano para lidar com o
mundo desumano. A única comunicação intelectual entre o sistema
objetivo e a experiência subjetiva é a explosão que separa radical-
mente as duas, para iluminar por alguns segundos, através de sua
chama, a figura assim formada. Na medida em que este tipo de críti-
ca fixa a barbárie na esquina mais próxima, em vez de contentar-se
com abordagens de caráter genérico, conserva contra a teoria não
ingénua, diante da qual ela se cobre de ridículo, um momento que
começou a ser desprezado pelo socialismo científico e terminou no
que Karl Kraus apropriadamente chamou de "Moskauderwesch"
[algaravia moscovita]. A bitolação não é apenas um complemento,
mas às vezes também os óculos salvadores que curam o olhar que vê
muito e longe demais. É esta função que ela cumpre em Veblen. Seu
spleen deve-se ao dégout diante do otimismo oficial de um espírito
progressista, do qual o próprio Veblen é partidário na medida em
que adere ao common sense.
O spleen indica a espécie particular de sua crítica. É a desilusão,
o "desmascaramento". Veblen prefere seguir um esquema tradi-
cional do Iluminismo: o da religião como "engodo dos padres".
"Sente-se que a divindade deve ter um hábito de vida peculiarmente
sereno e ocioso. E sempre que sua moradia é representada no ima-
ginário poético, para fins de edificação ou como apelo à fantasia reli-
giosa, o pintor de palavras devoto, rotineiramente, põe diante da
imaginação de seu ouvinte um trono com uma profusão de insíg-
nias de opulência e poder, e rodeado por um grande número de
serviçais. No curso comum dessas apresentações das moradas celes-
tiais, o ofício desse corpo de servos é um ócio vicário, e seu tempo e
seus esforços são em grande medida associados a uma manifestação
industrialmente improdutiva das características e feitos meritórios
da divfndade." A maneira pela qual os anjos são acusados de traba-
lho improdutivo se assemelha às maldições secularizadas, mas tam-
bém tem algo de piada sem graça. 9 homem experiente não se deixa
enganar pelos atos falhos, sonhos e neuroses da sociedade. O seu
humor parece o de um marido que força a mulher histérica a fazer
os trabalhos domésticos para evitar que ela se entregue às neuroses.
Se o spleen se fixa obstinadamente no alienado mundo da coisas,
responsabilizando a malignidade do objeto pelas falhas do sujeito,
então a postura de "desmascaramento" é a de não se deixar enganar
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você escolhe outro parâmetro, então ... ". É assim que o universo de
valores de interioridade e profundidade, isolado por Huxley, torna-
se presa da pragmatização. O "selvagem" relata que, em um de seus
acessos de ascetismo, permaneceu horas com os braços abertos jun-
to a um rochedo, em um dia de extremo calor, para experimentar o
que deve sentir um crucificado. Instado a explicar-se, dá a curiosa
resposta: "Because I felt I ought to. If Jesus could stand it. And
then, if one has dane something wrong ... Besides, I was unhappy,
that was another reason". Se mesmo o "selvagem" não encontra,
para a sua aventura religiosa e para a escolha do sofrimento, nenhu-
ma outra justificação além do fato de ter sofrido, dificilmente pode
contradizer seu entrevistador, que acha mais racional, para curar-se
da depressão, tomar Soma, a panacéia que leva à euforia. Irracional-
mente hipostasiado e transformado, por assim dizer, em mera exis-
tência, o mundo das idéias exige ser justificado pelo mero existente,
sendo prescrito justamente em nome daquela felicidade empírica
que deve negar.
A alternativa cruel entre sentido objetivo e felicidade subjetiva,
a tese da exclusividade, é o fundamento filosófico da conclusão rea-
cionária do romance. Deve-se decidir entre a barbárie da felicidade
e a cultura como condição objetivamente superior, mas que contém
em si a infelicidade. "A progressiva dominação da natureza e da
sociedade", interpreta Marcuse, «elimina toda e qualquer transcen-
dência, seja ela física ou psíquica. A cultura, termo que resume um
lado dessa oposição, vive da insatisfação, do anseio, da fé, da dor, da
esperança, em suma, vive do que não existe, mas que deixa suas
marcas na realidade. Isso significa, porém, que a cultura vive da
infelicidade". O núcleo da controvérsia é essa disjunção rígida: não
se pode conseguir uma sem a outra, não se tem a técnica sem o
death ronditioning, nem o progresso sem a regressão infantil
manipulada. Na própria disjunção, entretanto, deve-se distinguir
entre a incorruptibilidade do pensamento e o constrangimento
moral ideológico. Somente o conformismo poderia aceitar a atual
insanidade objetiva como um simples acidente de percurso do
desenvolvimento histórico. A regressão é essencial ao desenvolvi-
mento conseqüente da dominação. A teoria, com sua benevolente
liberdade de escolha, não pode aceitar apenas o que lhe agrada na
tendência histórica, deixando de lado todo o resto. Tentativas de
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Moda intemporal
sobre o jazz::~
Por mais de quarenta anos, desde que em 1914 irrompeu nos Estados
Unidos o entusiasmo contagiante pelo jazz, este tem se mantido
como fenômeno de massa. O procedimento jazzístico, cuja pré-
história remonta a certas canções da primeira metade do século
XIX, como "Turkey in the straw" ou "Old zip coon", permaneceu
inalterado em sua essência, a despeito de todas as declarações de
seus historiadores propagandistas. O jazz é uma música que com-
bina a mais simples estrutura formal, melódica, harmônica e métri-
ca com um decurso musical constituído basicamente por síncopas
de certo modo perturbadoras, sem que isso afete jamais a obstina-
da uniformidade do ritmo quaternário básico, que se mantém sem-
pre idêntico. Isso não quer dizer que nada aconteceu no jazz: o
piano monocromático que predominava no ragtime foi suplantado
por pequenos conjuntos, geralmente de sopros; os aspectos selva-
gens das práticas das primeiras jazzbands de Chicago e do Sul do
país, especialmente de New Orleans, amenizaram-se com a cres-
cente comercialização e com a ampliação do público, para serem
novamente reanimados por tentativas de especialistas, que entre-
tanto, quer se chamem Swing ot1 Bebop, logo sucumbem nova-
mente ao comércio, perdendo rapidamente o gume. Além disso, o
próprio princípio da síncopa, que no começo precisou impor-se
pelo exagero, tornou-se nesse meio tempo tão evidente que pode
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até mesmo abrir mão dos acentos nos tempos fracos do compasso,
antes indispensáveis. Quem ainda hoje utiliza esses acentos é ridi-
cularizado como corny, fora de moda como os vestidos de noite de
1927. A rebeldia transformou-se em "fluência" à segunda potência,
e a forma de reação do jazz se sedimentou de tal maneira que toda
uma geração de jovens ouve desde o início em síncopas, quase não
mais sustentando o conflito original entre estas e a métrica funda-
mental. Mas isso tudo não muda nada no que se refere à mesmice
do jazz, que levanta a questão de como é possível que milhares de
pessoas ainda não tenham se cansado desse estímulo monótono. O
hoje mundialmente conhecido redator de arte da revista Life,
Winthrop Sargeant, a quem devemos o melhor, mais sério e equili-
brado livro sobre o assunto, escreveu há dezessete anos que o jazz
não seria de forma alguma um novo idioma musical, mas "mesmo
em su~s manifestações mais complexas, um caso muito simples de
fórmulas incessantemente repetidas". Uma observação imparcial
como essa só é possível na América. Na Europa, onde o jazz ainda
não se tornou uma instituição cotidiana, existe a tendência, espe-
cialmente entre os devotos que adotam o jazz como visão de mun-
do, a compreendê-lo erroneamente como irrupção da natureza
original e indomada, como um triunfo sobre os bens culturais
museificados [musealen Kulturgüter]. A presença de elementos afri-
canos no jazz não pode ser posta em dúvida mas também não há .
dúvida de que toda espontaneidade foi nele acomodada, desde o
início, a um esquema rígido, que associou e continua a associar ao
gesto da rebeldia também a disposição à obediência cega, da mesma
forma como, segundo a psicologia analítica, o tipo sadomasoquista
se rebela contra a figura do pai, mas mesmo assim o admira secreta-
mente, deseja igualar-se a ele, mas aprecia a odiosa submissão. É jus-
tamente essa tendência que favorece a estandardização, a exploração
comercial e o enrijecimento do meio. Não foram os comerciantes
inescrupulosos que em primeiro lugar fizeram mal à voz da natu-
reza, o próprio jazz se encarregou disso, e seus próprios usos leva-
ram a esse abuso, contra o qual os puristas do jazz autêntico e não
aguado protestam indignados. É possível que já os Negro Spirituals,
forma precursora do Blues, tenham unido, enquanto música de
escravos, o lamento sobre a falta de liberdade à sua confirmação
submissa. Aliás, é muito difícil isolar os elementos autenticamente
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still sounding from one or more of the loose ends". Já muito antes
Virgil Thomson havia comparado as performances do célebre músi-
co de jazz Louis Armstrong com as dos grandes castrati do século
XVIII. As fórmulas que diferenciam long-haired e short-haired
musicians são representativas de toda essa esfera. Os últimos são
aquelas pessoas do jazz que ganham dinheiro e, portanto, podem
apresentar-se com uma aparência boa e cultivada. Os outros, como
por exemplo a caricatura do pianista eslavo com os cabelos compri-
dos, pertencem a um tipo menos prestigiado: o do artista que passa
fome, que não liga para as exigências convencionais. Esse é o con-
teúdo manifesto dessas fórmulas. Quase não é preciso explicar o
que representa o cabelo cortado. No jazz, os filisteus, superiores a
Sansão, declaram-se vencedores.
Os filisteus, realmente. Pois enquanto a simbologia da cas-
tração está profundamente entranhada no aparato do jazz, subtraí-
da da consciência pela institucionalização da mesmice (e talvez se
fortaleça justamente por isso), as práticas do jazz afetam social-
mente até· a psicologia do sujeito, para que este aceite continua-
mente um mundo realista e sem sonhos, purificado de qualquer
vestígio 'de algo não totalmente controlado. Para que se entenda a
"base de massas" do jazz é preciso levar em conta o tabu que há na
América, apesar de toda a indústria artística oficial, sobre a expres-
são artística, um tabu que afeta até mesmo o impulso expressivo
das crianças - a progressive education, que insiste na criação livre,
proclamando a capacidade de expressão como um fim em si mes-
mo, é já uma reação contra isso. Embora o artista seja parcialmente
tolerado e parcialmente integrado na esfera da cultura como fun::
cionário ou como entertainer, tornando-se assim submisso às
exigências do serviço como um garçom bem-pago, o estereótipo do
artista é ao mesmo tempo o de uma pessoa introvertida, um tolo
egocêntrico, freqüentemente um homossexual. Mesmo que tais
características sejam perdoadas para o artista profissional, e mesmo
que dele seja até mesmo esperada, como parte do divertimento,
uma vida particular um pouco escandalosa, toda pessoa torna-se de
antemão suspeita pela atividade artística espontânea e não social-
mente dirigida. Uma criança que prefere ouvir música séria ou
tocar piano em vez de assistir a um jogo de baseball ou ver tele-
visão é tida como sissy, um fracote efeminado, seja pelo grupo ao
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contra seus admiradores~:~
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Temos de admitir que contra tudo isso existem traços em Bach que
já em sua própria época foram sentidos como anacrônicos. Eles são
um dos motivos da inexplicável amnésia que se abateu sobre sua
obra e a escondeu durante oitenta anos, o que teve certamente con-
seqüências incalculáveis para a história da música ocidental, pois
impediu que as suas conquistas se incorporassem à tradição e fos-
sem transmitidas diretamente e em sua totalidade ao classicismo vie-
nense. Bach não apenas realizou completamente o espírito do baixo
contínuo, do pensamento harmônico baseado nas relações entre os
graus da escala, como também foi, no âmbito desse espírito, ao mes-
mo tempo o polifonista que, a partir dos passos iniciais e titubeantes
do século XVII, criou a forma da fuga, da qual permaneceu o único
e absoluto mestre - a teoria da fuga deriva de sua obra assim como
a teoria do contraponto estrito deriva da de Palestrina. Mas é pre-
cisamente essa duplicidade de uma consciência ao mesmo tempo
harmônica e contrapontista - que circunscreve cada um dos pro-
blemas composicionais solucionados paradigmaticamente por Bach
- o que não combina com sua imagem de consumador da Idade
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Média. Se ele tivesse sido apenas isto, essa duplicidade não poderia
estar presente em sua obra e, sobretudo nas obras especulativas da
última fase, ele não poderia ter se esforçado em resolver um para-
doxo inconcebível para a consciência polifônica tradicional: o de
como a música pode se mostrar harmonicamente plena de sentido,
de acordo com as normas do baixo contínuo, e ao mesmo tempo se
organizar por inteiro polifonicamente, através da simultaneidade de
vozes autônomas. A expressividade de muitas das peças de Bach
consideradas arcaicas já deveria levantar suspeitas. O tom afirmativo
da Fuga em mi bemol maior do segundo volume do Cravo bem-
temperado não é de modo algum a expressão musical de uma certeza
imediata, garantida pela revelação da verdade divina e compartilhada
por uma comunidade religiosa; tamanha ênfase e afirmação faltam a
todos os mestres flamengos. Na substância desse tom afirmativo, e
certamente não em sua consciência subjetiva, encontra-se a reflexão
sobre a felicidade de uma ação confirmada, a felicidade da seguran-
ça musical, que só é concedida ao sujeito emancipado, pois somente
este pode conceber a música como promessa enfática de salvação
objetiva. Uma fuga com estas características pressupõe o dualismo.
Ela mostra quão belo seria se a mensagem da salvação objetiva fosse
reconduzida do cosmo infinito para o homem: é romântica, para
indignação dos neófitos religiosos da atualidade, mas romântica em
um sentido muito mais abrange·nte do que veio a ter mais tarde o
estilo romântico. Essa música não reflete a imagem do sujeito solitá-
rio como fiador do sentido, significa, ao contrário, a superação deste
em um absoluto objetivamente completo. Mas esse absoluto é evo-
cado, afirmado e assumido exatamente porque e na medida em que
não está presente na experiência concreta; toda a força da música de
Bach consiste nessa evocação. Bach não foi um artesão a.ntiquado,
mas um gênio da rememoração. Apenas a barbárie emergente, que
reduz as obras de arte à sua facticidade e que é cega para a diferença
entre essência e aparência, é capaz de confundir ingenuamente o Ser
de sua música com a intenção que "!:!la exprime, eliminando com isso
precisamente aquela dimensão metafísica que pretende defender. E
como a barbárie, ao obscurecer a essência, nem mesmo se dá conta
daquilo que tem diante dos olhos, não pode compreender que os
meios polifônicos específicos que Bach utiliza para a construção da
objetividade musical pressupõem, desde o início, uma subjetivação.
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Mas se Bach foi de fato moderno, por que foi também arcaizante?
Pois não pode haver dúvidas de que em seu mundo formal e em
algumas das manifestações mais significativas de seu estilo tardio -
ainda há pouco grotescamente mal compreendido por Hindemith
- havia muitos aspectos que já em sua época eram tidos como
ultrapassados, e que parecem suscitar traiçoeiramente os mal-enten-
didos de estudiosos pedantes e professorais. É impossível não
perceber o tom do século XVII até mesmo em concepções gran-
diosas, como, por exemplo, a Fuga tríplice em dó sustenido menor
do primeiro volume do Cravo bem-temperado, onde, para acentuar
o mais drasticamente possível a oposição entre os três temas, Bach
não atribui um perfil temático claro às passagens que não se referem
imediatamente a este contraste, deixando-as em uma condição
quase pré-temática, sem desenvolver nem mesmo os motivos, bem
de acordo com os modelos rudimentares de fugas pré-bachianas -
uma delas, o "Ricercare", é aludida em um jogo de palavras presente
na Oferenda musical. Como essa, também a Fuga em mi maior do
segundo volume, escrita em compasso "alla breve", porta o arcaís-
mo até na grafia das notas, como se tivesse sido escrita no espírito
de um passado já fictício e extr~mamente estilizado, bem ao estilo
do afamado Concerto italiano para cravo. Bach segue muitas vezes
uma tendência dificilmente compatível com a solidez existencialista,
quando faz experiências com idiomas estrangeiros escolhidos arbi-
trariamente, procurando despertar nestes a força estruturante da
configuração musical. Em sua obra, a racionalização da técnica de
composição traz consigo o predomínio da razão subjetiva, que per-
mite a livre escolha dos procedimentos objetivamente disponíveis.
Bach não se sente ligado cega ou substancialmente a nenhum destes,
mas de quando em quando se serve dos procedimentos que melhor
se adaptam às suas intenções composicionais. Esta liberdade diante
do antigo não pode, entretanto, ~er entendida de forma alguma
como consumação da tradição, que necessita justamente impedir
qualquer liberdade de escolha entre as diversas possibilidades. Seria
ainda menos possível classificar o sentido do recurso de Bach à
tradição como restaurador. As peças de aparência arcaizante são,
ao mesmo tempo, muitas vezes também as mais ousadas, não
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seu desenvolvimento, sendo ainda muito tosco para que Bach tives-
se ficado contente com o seu uso. Por isso Bach considerava o cravo
o melhor instrumento para o estudo e também para o entreteni-
mento musical privado. Considerava este instrumento o mais cômo-
do para a execução de seus mais delicados pensamentos musicais e
não acreditava que outro tipo de cêmbalo ou pianoforte pudesse
produzir a enorme variedade de matizes sonoras conseguidas pelo
cravo, sem dúvida pobre de timbres, mas de grande flexibilidade em
relação aos detalhes". Mas o que vale para a diferenciação da esfera
da intimidade vale também, e com mais razão, para a dinâmica
exuberante das grandes obras corais. Pouco importa quais tenham
sido as condições de execução na Igreja de São Tomás; uma apresen-
tação da Paixão segundo São Mateus com relativamente poucos
meios técnicos apresenta-se para os ouvintes de hoje como algo páli-
do e pouco convincente, quase como um ensaio ao qual comparece-
ram apenas alguns músicos, e adquire ao mesmo tempo um aspecto
didático e pedante. Além disso, uma performance como esta entra
em conflito• com a própria essência da música de Bach. A dinâmica
objetivamente incrustada em sua obra merece uma única interpre-
tação, aquela que a realiza. Pois a verdadeira interpretação é uma
radiografia da obra; tem a função de revelar no fenômeno sensível a
totalidade de todos os caracteres e conexões musicais, e este conhe-
cimento se conquista no estudo aprofundado da partitura. O argu- .
mento preferido dos puristas, o de que tudo já está expresso na
própria obra, de que basta que o intérprete se anule para que a obra
fale por si mesma, de que a execução propriamente interpretativa
seria um grito forçado e deformado, enquanto a auto-revelação da •
obra seria mais simples, natural e convincente; este tipo de argu-
mento não tem valor. Na medida em que a música precisa de uma
interpretação, sua lei formal consiste na tensão entre a essência
composicional e o fenômeno sensível. Colocar a obra numa tal ten-
são só se justifica se a execução é testemunho da própria essência. É
justamente este o papel da reflexão no sujeito e em seu esforço. A
tentativa de fazer justiça ao conteúdo objetivo de Bach, direcionan-
do o esforço subjetivo apenas para a eliminação do sujeito, volta-se
contra si mesma. A objetividade não permanece como resto após a
subtração do sujeito. Jamais e em nenhuma passagem o texto musi-
cal da partitura é idêntico à obra; sempre se impõe a exigência de
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Arnold Schoenberg
( 18 74-1951) :~
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Museu Valéry Prouse:-
Em memória de Hermann von Grab
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George e Hofmannsthal -
correspondência: 1891-1906::-
Em memória de Walter Benjamin
,:- Escrito entre 1939 e 1940, publicado no volume mimeografado Walter Benjamin zum
Gedi:ichtnis, organizado por Max Horkheimer e pelo autor, e republicado em pequena
tiragem pelo Instituto de Pesquisa Social em 1942.
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O senhor quase não consegue escrever uma estrofe que não nos
enriqueça com uma nova sensação e uma nova sensibilidade".
George se refere aqui a dois dos mais memoráveis poemas líricos
de Hofmannsthal: "Manche freilich müssen drunten sterben"
[Alguns obviamente devem morrer] e "Weltgeheimnis" [Mistério
do mundo], que também é lembrado no "Lied" do último volume
de George. O elogio despachado é seguido pela questão incom-
preensível: "O senhor tem a intenção de publicar o primeiro poema
em seguida ao 'Mistério do mundo', ou este faz parte daquele? Não
há nenhuma menção quanto a isso". A suposição da simples possi-
bilidade de que os dois poemas, um estruturado trocaicamente em
quatro e seis linhas, o outro em jâmbicos dáctilos de três e quatro
linhas, pudessem ser juntados em um único revela a mentira da
pressupdsta cumplicidade de especialistas. A pobreza em conteúdo
teórico deve, portanto, ser explicada a partir da posição dos dois
autores, que certamente não são ingênuos.
Entre os planos para a colaboração nas Bldtter für die Kunst -
expostos numa carta escrita por Hofmannsthal, em 1892, para Karl
August Kle~n, com o consentimento de George - não faltam pro-
jetos de publicações teóricas. No dia 26 de junho, por exemplo,
Hofmannsthal pergunta: "Como preencheremos os cadernos, já
que o número de colaboradores é restrito e também a produção de
verdadeiras obras de arte é quantitativamente reduzida? Ou deve-
mos dar espaço à crítica e à teoria da técnica? Se sim, quanto
espaço?". E recebe a seguinte resposta: "Ensaios críticos tradicio-
nais estão fora de questão", colocação atenuada por Klein, numa
versão de certo modo ambígua, da seguinte maneira: "Não se·
exclui, entretanto, que cada um de nós dê a sua opinião sobre uma
obra de arte qualquer". Pois, segundo o antigo linguajar franco-
saxão da décadence alemã, "seria muito interessante ouvir opiniões
novas e picantes sobre alguns quadros, uma peça de teatro ou de
música". Hofmannsthal, que àquela altura já colaborava havia muito
tempo em revistas como Die M oderne e Die M oderne Rundschau,
não fica satisfeito: "Quando me referi a artigos em prosa, pensava
menos em ensaios críticos tradicionais do que em reflexões sobre
questões técnicas, contribuições para a teoria das cores das palavras
e semelhantes produtos laterais do processo de trabalho artístico,
cuja comunicação, me parece, poderia ser útil a outros artistas". A
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Não fica claro para qual tipo de vida o jovem amigo deveria ser
preparado. Mas é possível supor que se trata da grande vida dos
attachés e oficiais que usam o nome de batismo nas conversas com
filhos de banqueiros e empresários, uma vida onde todos os envolvi-
dos ocultam discretamente o pertencimento à nobreza 6• É preciso
compreender o desejo de felicidade que inspira o esnobe, quando
este procura deslocar-se do âmbito da vida prática para uma vida
social que, pela recusa à utilidade, parece estar ligada ao espírito. As
moças dos poemas de Hofmannsthal não pertencem às camadas
médias da sociedade. Mas o espírito que se engaja nesta aventura
social não encontra muita facilidade. Ele não pode contentar-se com
o brilho da bela vida, pois deve no meio desta vida repetir a expe-
riência do "não é isto" do qual se afastou. Proust foi o único a estar
à altura,do problema. Suas fotografias da juventude se assemelham
às de Hofmannsthal, como se a história tivesse realizado duas vezes,
em lugares diferentes, o mesmo experimento. Em Hofmannsthal, ele
fracassou. O ~ntelectual rodeado por seus cães, que se dedica alegra-
mente à caça ou pretende praticar "muita equitação ao anoitecer, sob
o vento e o céu estrelado", dificilmente pode estar em paz consigo
mesmo. O espírito é quitado ao preço da denúncia de si mesmo. A
filiação de Hofmannsthal à Boêmia dissimula o zelo com que este
homem da sociedade procura manter-se afastado de outros intelec-
tuais. No seu "paradis artificiei" não reina nenhum Bergotte e nen-
hum Elstir: "Infelizmente a minha sociedade é tão pouco literária
que eu não saberia propor ao senhor nenhum colaborador sério".
Essa abnegação desesperada do literato tem o seu fundamento
nas relações problemáticas entre o poder e os intelectuais, onde nãô
há convivência sem charme artificial e ombros flexíveis. A society
alemã, recrutada na nobreza latifundiária e no empresariado, era
menos ligada à tradição literária e filosófica do que a ocidental.
Depois de 1870, as pessoas refinadas dialogam com a cultura de
modo nervoso e inseguro. Os intelectuais, por sua vez, aproximam-
se nervosos e inseguros daqueles que não deixam esquecer, por um
instante sequer, sua predisposição de expulsar todo e qualquer inte-
lectual incómodo. Os poucos escritores que insistiram em repre-
sentar a "nação" tiveram de escolher entre glorificar a brutalidade
reinante como substancialidade e "vida", ou substituir a society real,
à qual se submeteram e da qual tinham medo, por uma society dos
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homens fortes aos quais até então tudo foi proibido. Tudo isso se
explica pela mesma mentalidade ... E agora o jornalismo superior
que o senhor tanto elogia e ao qual se deve aplaudir - ele não pre-
cisa da sensibilidade morna e da impressionabilidade de molusco
que hoje se apresenta como 'naturalismo berlinense' e amanhã
como 'simbolismo vienense' ... - não, nós precisamos do contrário:
da concentração severa num único ponto ... ". Quanto ao declínio
da linguagem, ele tem tão poucas ilusões como Hofmannsthal:
"Tudo se torna dizível: um debulhar de palha vazia". Mas onde
Hofmannsthal pega a espingarda, George recorre desesperadamente
à violência. Ele estrangula as palavras, até que elas não possam mais
fugir: ele se sente mais seguro com as palavras mortas, embora elas
estejam tão perdidas para ele quanto se fossem palavras fugitivas. É
por isso que o heroísmo de George se exaspera. Os seus traços míti-
cos são o oposto daquela herança apropriada por políticos apologé-
ticos. São traços da obstinação. "Es ist worden spat" [Ficou tarde].
Não há nenhum traço nas obras de George que não seja parente
deste "tarde". Ele olha para as palavras tão de perto e tão estranha-
mente como se pudesse apoderar-se delas tal como foram no pri-
meiro dia daºCriação. Um tal estranhamento é tão completamente
determinado pelo século liberal quanto a política antiliberal, que na
Alemanha apelava com tanto gosto a George. Certas frases de uma
carta de 9 de julho de 1893 mostram a que ponto se mesclavam em
George a idéia liberal da segurança jurídica, o ímpeto arrogante da
dominação e um conjunto de representações de relações proto-
históricas: "Toda sociedade, mesmo a menor e a mais livre possível,
se constrói sobre contratos. A sua voz vale tanto quanto qualquer
voz. Mas o senhor deve, em todo caso, fazer-se ouvir abertamente".
Se os contratos parecem supor a plena igualdade de direitos entre os
contratantes civis, a sua invocação em questões de solidariedade
espiritual é um meio para a suspensão da igualdade e para a opressão
que pressupõe um estado de inimizade mortal entre os sujeitos,
através da qual a sociedade concorrencial se assemelha às hordas. A
exigência de "fazer-se ouvir abertamente", entretanto, que George
ressalta diante de Hofmannsthal com respeito às Blatter für die
Kunst, só pode trazer desgraça para quem está envolvido. Toda vez
que Hofmannsthal se deixa seduzir pela crítica a George e a seus
seguidores acaba se dando mal.
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Vosso, Hofmannsthal.
Se esta carta não tivesse sido enviada por alguém cuja inteligên-
cia eu tanto admiro, acreditária que se tratava de uma brin-
cadeira. Pois não comerciamos nem objetos materiais nem
espirituais com os de lá. O que significa isso? E mais: a situação
não é tão simples como quer crer a nota. A guerra é apenas a
última conseqüência de décadas de política absurda de ambos os
lados. A tentativa de pacificação de algumas pessoas parece-me
não ter efeito algum. E vendo um pouco adiante: quem sabe se
nós, ·como verdadeiros amigos dos alemães, não deveríamos lhes
desejar uma boa derrota no mar, para que adquirissem nova-
mente aquela humildade patriótica que é a fonte de novos valo-
res espirituais. Eu teria responáido com a maior serenidade, se
não tivesse ficado triste com o fato de que parece não haver um
único ponto sobre o qual estejamos de acordo.
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