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J
crítica cultural e sociedade
Sociólogo, filósofo, músico, crítico literário,
Theodor W. Adorno é um representante do
apogeu da cultura humanista européia neste
século em meio aos sinais de sua dissolução.
Prismas é a mais importante reunião de
ensaios do autor, e demonstra a força de um
pensamento que não se deixa endausurar pelos
limites rígidos das disciplinas acadêmicas.

"Quanto mais totalitária for a sociedade,


tanto mais reificado será também o espírito,
e tanto mais paradoxal será o seu intento
de escapar por si mesmo da reificação.
Mesmo a mais extremada consciência do
perigo corre o risco de degenerar em conversa
fiada. A crítica cultural encontra-se diante
do último estágio da dialética entre cultura
e barbárie: escrever um poema após Auschwitz
é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo
o conhecimento de por que hoje se tornou
impossível escrever poemas."

1: 1• • •
Para Theodor W. Adorno (1903-
1969), a forma mais adequada ao
exercício de uma crítica cultural
que não se contenta com a
simples classificação e avaliação
dos objetos é o ensaio, capaz
de iluminar os diferentes ângulos
e matizes que constituem as
obras de arte e o pensamento.
Publicado em 1955, Prismas
é a mais importante reunião de
ensaios do autor, e demonstra
a força de um pensamento que
não se deixa enclausurar pelos
limites rígidos das disciplinas
acadêmicas.
Nos doze textos que constituem
o livro, a crítica de Adorno
focaliza os mais diversos
assuntos, sempre buscando
recuperar nos objetos o teor
de verdade que os vincula ao
movimento geral da sociedade
e da história.
A relação viva com as obras
de arte e com o pensamento é
posta em questão no confronto
das considerações de Valéry e
Proust a respeito dos museus e
no exame das próprias condições
"de possibilidade da crítica
cultural em um mundo "dividido,
em preto e branco, por
categorias que giram em falso".
O Adorno sociólogo revela o
alcance da teoria da classe
ociosa desenvolvida por Veblen;

ressalta a ideologia da sociologia
do conhecimento de Mannheim;
e repensa, após a Segunda
Guerra, o declínio do Ocidente
diagnosticado por Spengler.
Nos textos de crítica literária,
Adorno defende uma interpre-
tação materialista da obra
de Kafka; questiona o sentido
da utopia negativa do Brave
New World de Huxley; e
discute os interesses poéticos
e pessoais na correspondência
entre dois grandes nomes
da literatura alemã: George
e Hofmannsthal.
Por fim, esta antologia reúne
três dos mais importantes
ensaios sobre música escritos
por Adorno - músico e
compositor, aluno de Alban
Berg e autor da Filosofia da
Nova Música - : a homenagem,
sempre crítica, a Schoenberg,
por ocasião da morte do
compositor; o combate a uma
visão historicista da música de
Bach; e a polêmica que ilumina
o caráter repressivo do jazz.
Em todos os ensaios, a força
da negação determinada retoma
as promessas de libertação
do Iluminismo e questiona
se a sociedade destes tempos
sombrios "irá finalmente
determinar a si mesma ou
provocar a catástrofe terrestre".
PRISMAS
crítica cultural e sociedade

Theodor W. Adorno

Tradução de
Augustin Wernet e
Jorge Mattos Brito de Almeida

m
e,litora álira
SÉRIE TEMAS

Volume 64
Sociologia e crítica cultural

Título original
PRISMEN. Kulturkritik und Gescllschaft

Copyright© Suhrkamp Verlag I'rankfurt am Main 1969

Editor
Fernando Paixão

Editor assistente
Otacílio Nunes

Editor de arte
Marcello Araujo

Capa e projeto gráfico


Claudia \Varrak

Editoração eletrôhica
Claudia Warrak

EDITORA. AFILIADA

Impresso nas oficinas da


Gráfica Palas Athena
ISBN 85 08 06667-8

1998
Todos os direitos reservados

Editora Ática
Rua Barão de Iguape, 110
01507-900 São Paulo SP
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Endereço telegráfico "Bomlivro"
Internet: http://www.atica.com.br
e-mail: editora@,nic,1.com.br
SUMÁRIO

Crítica cultural e sociedade 7

A consciência da sociologia do conhecimento 27

Spengler após o declínio 43

O ataque de Veblen à cultura 69

Aldous Huxley e a utopia 91

Moda intemporal - sobre o jazz 117

Em defesa de Bach contra seus admiradores 131

Arnold Schoenberg (1874-1951) 145

Museu Valéry Proust 173

George e Hofmannsthal -
correspondência: 1891-1906 187

Caracterização de Walter Benjamin 223

Anotações sobre Kafka 239

Notas 271

Anexo:
Réplica a uma crítica a "Moda intemporal" 281
Crítica cultural e sociedade~:-

A sonoridade da expressão "crítica cultural" deve incomodar quem


está acostumado a pensar com os ouvidos, e não apenas porque
combina, como a palavra "automóvel", termos do grego e do latim.
Ela recorda uma flagrante contradição. O crítico da cultura não está
satisfeito com a cultura, mas deve unicamente a ela esse seu mal-
estar. Ele fala como se fosse o representante de uma natureza ima-
culada ou de um estágio histórico superior, mas é necessariamente
da mesma essência daquilo que pensa ter a seus pés. A insuficiência
do sujeito que pretende, em sua contingência e limitação, julgar a
violência do existente - uma insuficiência tantas vezes denunciada
por Hegel, com vistas a uma ap·ologia do status quo - torna-se
insuportável quando o próprio sujeito é mediado até a sua compo-
sição mais íntima pelo conceito ao qual se contrapõe como se fosse
independente e soberano. Mas a impropriedade da crítica cultural,
no que diz respeito ao conteúdo, não decorre tanto da falta de res-
peito pelo que é criticado quanto do secreto reconhecimento, arro-
gante e cego, do objeto de sua crítica. O crítico da cultura mal
consegue evitar a insinuação de que possui a cultura que diz faltar.
Sua vaidade vem em socorro da vaidade da cultura: mesmo no gesto
acusatório, o crítico mantém a idéia de cultura firmemente isolada,
inquestionada e dogmática. Ele desfoca o ataque. Onde há deses-
pero e incomensurável sofrimento, o crítico da cultura vê apenas
algo de espiritual, o estado da consciência humana, a decadência da

,,. Escrito em 1949, publicado em Soziologische Forschung in unser Zeit, em comemoração


ao 75º aniversário de Leopold von Wiese, 1951.

7
THEODOR W. ADORNO

norma. Na medida em que a crítica insiste nisso, cai na tentação de


esquecer o indizível, cm vez de procurar, mesmo que não tenha
poder para tanto, afastá-lo dos homens.
A atitude do crítico da cultura lhe permite, graças à sua dife-
rença cm relação ao caos predominante, ultrapassá-lo teoricamente,
embora com bastante frcqüência ele apenas recaia na desordem.
Mas o crítico da cultura incorpora a diferença no aparato cultural
que gostaria de suplantar, aparato que precisa, ele mesmo, dessa
diferença para poder se apresentar como cultura. É próprio da pre-
tensão da cultura à distinção, por meio da qual ela procura se dis-
pensar da prova das condições materiais de vida, nunca se julgar
distinta o suficiente. O exagero da presunção cultural, que por sua
vez é imanente ao próprio movimento do espírito, aumenta a dis-
tância cm- relação a essas condições à medida que a dignidade da
sublimação, confrontada com a possibilidade de satisfação material
ou ameaça de aniquilação de incontáveis seres humanos, torna-se
questionável. O crítico da cultura faz dessa pretensão aristocrática
um privilégio s~u, perdendo sua legitimação ao cooperar com a cul-
tura como um flagelo honrado e bem-pago. Isso afeta, no entanto,
o teor da crítica. Mesmo o implacável rigor com que esta enuncia a
verdade sobre a consciência não-verdadeira permanece confinado
na órbita do que é combatido, fixado cm suas manifestações. Quem
se proclama superior sente-se ao mesmo tempo como sendo do
ramo. Se alguém estudasse a profissão de crítico na sociedade bur-
guesa, que avançou finalmente até a posição de crítico cultural,
encontraria certamente cm sua origem um elemento usurpador,
como aquele que Balzac, por exemplo, ainda podia observar. Os
críticos profissionais eram, sobretudo, "informantes": orientavam
sobre o mercado dos produtos espirituais. Alcançavam ocasional-
mente com isso uma visão mais profunda da questão, permane-
cendo, contudo, sempre também como agentes do comércio, cm
consonância, se não com seus produtos individuais, com a esfera
do comércio enquanto tal. Eles trazem as marcas disso, mesmo que
tenham abandonado o papel de agente. Que lhes tenha sido con-
fiado o papel de perito, e depois o de juiz; foi algo inevitável do
ponto de vista económico, embora acidental no que diz respeito a
suas qualificações objetivas. A agilidade que lhes proporcionava
posições privilegiadas no jogo da concorrência - privilegiadas

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PRISMAS

porque o destino do que era julgado dependia em grande parte de


seu voto - conferia aos seus julgamentos a ilusão de competência.
Ocupando habilmente as lacunas e adquirindo, com a expansão da
imprensa, uma maior influência, os críticos acabaram alcançando
exatamente aquela autoridade que a sua profissão pretensamente já
pressupunha. Sua arrogância provém do fato de que, nas formas da
sociedade concorrencial, onde todo ser é meramente um ser para
outro, até mesmo o próprio crítico passa a ser medido apenas
segundo seu êxito no mercado, ou seja, na medida em que ele exer-
ce a crítica. O conhecimento efetivo dos temas não era primordial,
mas sempre um produto secundário, e quanto mais falta ao crítico
esse conhecimento, tanto mais essa carência passa a ser cuidadosa-
mente substituída pelo eruditismo e pelo conformismo. Quando os
críticos finalmente não entendem mais nada do que julgam em sua
arena, a da arte, e deixam-se rebaixar com prazer ao papel de pro-
pagandistas ou censores, consuma-se neles a antiga falta de caráter
do ofício. As prerrogativas da informação e da posição permitem
que eles expressem sua opinião como se fosse a própria objetivi-
dade. Mas ela é unicamente a objetividade do espírito dominante.
Os críticos da cultura ajudam a tecer o véu.
O conceito de liberdade de opinião, e mesmo o próprio con-
ceito de liberdade espiritual na s~ciedade burguesa, no qual a crítica
cultural se baseia, possui a sua própria dialética. Pois, enquanto se
liberava da tutela teológico-feudal, o espírito, graças à progressiva
socialização de todas as relações humanas, caía cada vez mais sob o
controle anônimo das relações vigentes, que não apenas se impôs a
partir de fora, como também se introduziu em seu feitio imanente.
Essas relações se impõem tão impiedosamente ao espírito autô-
nomo quanto antes os ordenamentos heterônomos se impunham ao
espírito' comprometido. Não só o espírito se ajusta à sua venalidade
mercadológica, reproduzindo com isso as categorias sociais predo-
minantes, como se assemelha, objetivamente, ao status quo, mesmo
quando, subjetivamente, não se !ransforma em mercadoria. As
malhas do todo são atadas cada vez mais conforme o modelo do ato
de troca. Este permite à consciência individual cada vez menos
espaço de manobra, passa a formá-la de antemão, de um modo cada
vez mais radical, cortando-lhe a priori a possibilidade da diferença,
que se degrada em mera nuance no interior da homogeneidade da

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THEODOR W. ADORNO

oferta. Simultaneamente, a aparência de liberdade torna a reflexão


sobre a própria não-liberdade incomparavelmente mais difícil do
que antes, quando esta estava em contradição com uma não-liber-
dade manifesta, o que acaba reforçando a dependência. Esses
momentos, em conjunto com a seleção social dos portadores do
espírito, têm como resultado a regressão do espírito. Sua responsa-
bilidade transforma-se, de acordo com a tendência preponderante
da sociedade, em ficção. De sua liberdade, o espírito desenvolve
apenas o momento negativo, a herança de sua condição monadoló-
gica e sem projetos: a irresponsabilidade. Fora disso, porém, ele
adere cada vez mais firmemente, como mero ornamento, à infra-
estrutura da qual pretendia se destacar. As invectivas de Karl Kraus
contra a liberdade de imprensa não devem, é claro, ser tomadas ao
pé da letr;;t: invocar a sério a censura contra os escribas seria exor-
cizar o demônio apelando a Belzebu. Mas a tolice e a mentira que
florescem sob a proteção da liberdade de imprensa não são, segura-
mente, algo de .acidental na marcha histórica do espírito; são os
estigmas da escravidão na qual se encena sua libertação, os estigmas
da falsa eman~ipação. Em nenhum outro lugar isso se torna tão evi-
dente quanto lá onde o espírito arranca seus próprios grilhões: na
crítica. Quando os fascistas alemães proscreveram a palavra Kritik
e a substituíram pelo aguado conceito de Kunstbetrachtung [con-
templação da arte], seguiam apenas o forte interesse do Estado
autoritário, que ainda temia na irreverência do colaborador de
folhetins o pathos do Marquês de Posa. Mas a arrogante barbárie
cultural que reclamava aos berros a eliminação da crítica, a irrupção
da horda selvagem no recinto do espírito, retrucava, sem perceber,
com a mesma moeda. Na raiva animalesca do camisa-parda contra
os criticastros não vive somente a inveja de uma cultura odiada
porque o exclui, nem apenas o ressentimento contra aqueles que
podem expressar o negativo que ele próprio teve de reprimir. O
decisivo é que o gesto soberano do crítico encena aos leitores a inde-
pendência que ele não possui, e presume um papel de comando que
é irreconciliável com o seu próprio princípio de liberdade espiritual.
Isso enerva os seus inimigos. O sadismo destes foi idiossincratica-
mente atraído pela fraqueza, astuciosamente disfarçada de força,
daqueles cuja gesticulação ditatorial teria suplantado com tanto
gosto a dos posteriores donos do poder, muito menos sutis. Mas os

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PRISMAS

fascistas sucumbiram à mesma ingenuidade dos críticos: a crença na


cultura enquanto tal, agora restrita à ostentação e aos gigantes do
espírito mais convenientes. Eles se sentiram os médicos da cultura e
a livraram do aguilhão da crítica. Com isso, não apenas se rebai-
xaram ao oficialismo, como também deixaram de reconhecer o
quanto a crítica e a cultura estão entrelaçadas, para o bem ou para o
mal. A cultura só é verdadeira quando implicitamente crítica, e o
espírito que se esquece disso vinga-se de si mesmo nos críticos que
ele próprio cria. A crítica é um elemento inalienável da cultura,
repleta de contradições e, apesar de toda sua inverdade, ainda é tão
verdadeira quanto não-verdadeira é a cultura. A crítica não é injus-
ta quando destrói - esta ainda seria sua melhor qualidade - , mas
quando, ao desobedecer, obedece.
A cumplicidade da crítica cultural com a cultura não reside na
mera mentalidade do crítico. É ditada sobretudo pela relação do
crítico com aquilo de que trata. Ao fazer da cultura o seu objeto, o
crítico torna a objetivá-la. O sentido próprio da cultura, entretanto,
consiste na interrupção da objetivação. Tão logo a cultura se con-
gela em "bens culturais" e na sua repugnante racionalização filo-
sófica, os chamados "valores culturais", peca contra a sua raison
d'être. Na· destilação desses "valores" - termo no qual ecoa, não
por acaso, a linguagem da troca de mercadorias - a cultura se
entrega às determinações do mercado. Mesmo no entusiasmo por
grandes civilizações exóticas pulsa a excitação com uma peça rara,
na qual pode-se investir algum dinheiro. Quando a crítica cultural,
até mesmo em Valéry, alia-se ao conservadorismo, deixa-se con-
duzir secretamente por um conceito de cultura que aspira, na era do
capitalismo tardio, a uma forma segura de propriedade, que não
seja afetada pelas oscilações da conjuntura. Esse conceito de cultura
se apres·enta como livre em relação ao sistema e capaz de garantir
uma segurança universal em meio à dinâmica universal. O crítico da
cultura tem como modelo, além do crítico de arte, o colecionador
que avalia com desprezo os objetÓs que deseja adquirir. A crítica
cultural lembra geralmente o gesto do comerciante regateador,
como no caso do especialista que contesta a autenticidade de um
quadro ou o classifica entre as obras menores de um mestre.
Despreza-se o objeto para lucrar mais. Enquanto avaliador, o críti-
co da cultura tem inevitavelmente de se envolver com uma esfera

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THEODOR W. ADORNO

maculada por valores culturais, mesmo quando luta zelosamente


contra a mercantilização da cultura. Em sua atitude contemplativa
em relação a ela, introduz-se necessariamente um inspecionar, um
supervisionar, um pesar, um selecionar: isto lhe serve, aquilo ele
rejeita. Justamente sua soberania, a pretensão de possuir um conhe-
cimento profundo do objeto, a separação entre o conceito e seu
conteúdo através da independência do juízo, ameaça sucumbir à
configuração reificada do objeto, na medida em que a crítica cultu-
ral apela a uma coleção de idéias estabelecidas, fetichizando catego-
rias isoladas como "espírito", "vida" e "indivíduo".
Mas o seu supremo fetiche é o conceito de cultura enquanto tal.
Pois nenhuma obra de arte autêntica e nenhuma filosofia ver-
dadeira jamais esgotaram seu sentido em si mesmas, em seu ser-
em-si. Sempre estiveram relacionadas ao processo vital real da
sociedade, do qual se separaram. Justamente a renúncia à rede de
culpa de uma vida que se reproduz cega e rigidamente, a insistência
na independência e na autonomia, no rompimento com o reino
estabelecido do~ fins, implica, ao menos corno elemento incons-
ciente, a referência a uma situação na qual a liberdade seria realizá-
vel. Mas a liberdade permanecerá uma promessa ambígua da
cultura enquanto sua existência depender de uma realidade misti-
ficada, ou seja, em última instância, do poder de disposição sobre o
trabalho de outros. O fato de que a cultura européia como um todo
tenha degenerado em mera ideologia aquilo que oferece ao con-
sumo, hoje prescrito a populações inteiras por managers e técnicos
em psicologia, provém da mudança de sua função em relação à
práxis material, de sua renúncia a uma intervenção direta. Essa
mudança certamente não foi nenhum pecado original, mas algo
imposto historicamente. Pois apenas fragmentariamente, no reco-
lhimento em si mesma, a cultura burguesa alcança a idéia de pureza
em relação aos traços deformadores de uma desordem que se
expande sobre a totalidade dos setores da existência. A cultura bur-
guesa só permanece fiel aos homens quando subtrai a si própria, e
assim aos homens, da práxis que se converteu em seu oposto, da
sempre renovada produção da mesmice, da prestação de serviços ao
cliente como serviço ao manipulador. Mas essa concentração da
cultura burguesa em sua substância intrínseca, que encontrou sua
maior expressão na poesia e na teoria de Paul Valéry, trabalha ao

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PRISMAS

mesmo tempo para o esvaziamento dessa substância. No momento


em que a ponta do espírito voltada para a realidade é afastada, o sen-
tido do espírito se modifica, apesar da mais rigorosa preservação de
seu sentido. Pela resignação diante da fatalidade do processo vital, e
mais ainda por sua consolidação como um âmbito especial entre
outros, o espírito se alia ao mero ente [bloss Seienden] e transforma-
se ele próprio em um mero ente. A castração da cultura, que pro-
voca a indignação dos filósofos desde os tempos de Rousseau e do
"século dos espalha-tintas" do drama Die Rduber de Schiller, pas-
sando por Nietzsche e chegando até os pregadores do engagement
por amor ao próprio engagement, é o resultado do processo no qual
a cultura toma consciência de si mesma enquanto cultura, opondo-
se forte e consistentemente à crescente barbárie do predomínio do
poder econômico. O que parece ser a decadência da cultura é o seu
puro caminhar em direção a si mesma. A cultura deixa-se idolatrar
apenas quando está neutralizada e reificada. O fetichismo passa a
gravitar na órbita da mitologia. Os críticos da cultura se embriagam,
na maioria das vezes, com ídolos provenientes da Antigüidade e até
do duvidoso e já evaporado calor da era liberal, que exortava sua
origem no momento em que sucumbia. Como a crítica cultural se
levanta contra a progressiva integração de toda consciência no apa-
rato de produção material, mas não consegue ver para além disso,
volta-se para o passado, seduzida· pela promessa de imediatidade. É
levada a isso por sua própria força gravitacional, e não simplesmente
pela influência de uma ordem social que se vê obrigada a encobrir,
com uma gritaria contra a desumanização e o progresso, todo pro-
gresso no processo de desumanização por ela conduzido. O isola-
mento do espírito em relação à produção material certamente eleva
sua cotação, mas também o transforma, na consciência g"eral, em
bode expiatório de tudo o que é perpetrado pela práxis. A culpa é
atribuída ao esclarecimento enquanto tal, não ao esclarecimento
enquanto instrumento da dominação efetiva: daí o irracionalismo da
crítica cultural. Uma vez que ela r~tira o espírito da dialética que
este mantém com as condições materiais, passa a concebê-lo unívo-
ca e linearmente como um princípio de fatalidade, sonegando assim
os momentos de resistência do espírito. O crítico da cultura não é
capaz de compreender que a reificação da própria vida repousa não
em um excesso, mas em uma escassez de esclarecimento, e que as

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THEODOR W. ADORNO

mutilações infligidas à humanidade pela racionalidade particularista


contemporânea são estigmas da irracionalidade total. A abolição
dessa irracionalidade, que coincidiria com a abolição da separação
entre trabalho manual e trabalho intelectual, aparece à cegueira da
crítica cultural como o caos: para quem glorifica a ordem e a estru-
tura de qualquer espécie, esta separação petrificada torna-se um
arquétipo do eterno. Que a cisão mortal da sociedade possa um dia
terminar é para ele sinónimo de uma fatalidade mortal: é preferível
o fim de todas as coisas do que a humanidade pôr um fim à reifi-
cação. O medo de que isso possa ocorrer se harmoniza com os inte-
resses dos interessados na manutenção da negativa material. Sempre
que a crítica cultural se queixa de materialismo, promove a crença
de que o pecado é o desejo dos homens por bens de consumo, e
não a organização do todo que nega aos homens esses bens: para o
crítico da cultura, o pecado é a saciedade, e não a fome. Se a huma-
nidade dispusesse da abundância, arrancaria os grilhões dessa bar-
bárie civilizada que os críticos da cultura debitam na conta do
progresso do e~pírito, em vez de debitá-la na do atraso das condi-
ções materiais. Os valores eternos aos quais a crítica cultural se
refere espelh'am a doença perenizada. O crítico da cultura se ali-
menta da teimosia mítica da cultura.
Porque a existência da crítica cultural, qualquer que seja o seu
conteúdo, depende do sistema económico e está atrelada ao seu
destino. Quanto mais completamente as ordens sociais contempo-
râneas, especialmente as do Leste, se apropriam dos processos de
vida, inclusive do "ócio", tanto mais se imprime a todos os fenóme-
nos do espírito a marca da ordem. Seja como entretenimento ou
como edificação, eles colaboram imediatamente para a manutenção
da ordem e são consumidos exatamente como expoentes dessa
ordem, ou seja, justamente em virtude de sua pré-formatação
social. Conhecidos, garantidos e aprovados, esses fenómenos do
espírito se aninham na consciência regressiva, recomendando-se
como naturais e permitindo a identificação com os poderes vigen-
tes, cuja preponderância não deixa outra alternativa senão a do falso
amor. Em outros casos, os fenómenos culturais se transformam,
por sua discordância, em raridades, o que os torna novamente ven-
dáveis. No transcorrer da era liberal, a cultura caiu na esfera da cir-
culação. O definhamento paulatino dessa esfera acabou afetando o

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PRISMAS

próprio nervo vital da cultura. Com a eliminação do comércio e de


seus refúgios irracionais pelo calculado aparato de distribuição da
indústria, a mercantilização da cultura completa-se até a insânia.
Inteiramente dominada, administrada e de certa forma cultivada
integralmente, a cultura acaba por definhar. A denunciadora frase
de Spengler sobre o parentesco entre dinheiro e espírito prova-se
correta. Mas sua simpatia pelas formas imediatas de dominação fez
com que ele defendesse uma concepção de existência distante tanto
das mediações econômicas quanto das mediações espirituais. Mali-
ciosamente, Spengler vincula o espírito a um tipo econômico na
verdade já superado, em vez de reconhecer que o espírito, por mais
que seja também um produto desse tipo econômico, implica, ao
mesmo tempo, a possibilidade objetiva de superá-lo. - Assim
como a cultura surgiu no mercado, no comércio, na comunicação e
na negociação como algo distinto da luta imediata pela autopre-
servação individual; assim como ela se irmana, no capitalismo clás-
sico, ao comércio; e assim como os seus portadores se incluem entre
as "terceiras pessoas" e se sustentam como intermediários; assim a
cultura, considerada "socialmente necessária" segundo as regras
clássicas, ou seja, algo que se reproduz economicamente, restringe-
se novamente ao âmbito em que se iniciou, o da mera comunicação.
Sua alienação do humano deserpboca na absoluta docilidade em
relação a uma humanidade metamorfoseada em clientela pelos
fornecedores. Em nome dos consumidores, os que dispõem sobre a
cultura reprimem tudo o que poderia fazer com que ela escapasse à
imanência total da sociedade vigente, permitindo apenas o que serve
inequivocamente aos seus propósitos. A cultura dos consumidores
pode por isso vangloriar-se de não ser um luxo, mas o simples pro-
longamento da produção. Em consonância com isso, as etiquetas
política~ calculadas para a manipulação das massas estigmatizam
unanimemente como luxo, esnobismo e highbrow tudo o que na
cultura desagrada aos comissários. ,Somente quando a ordem esta-
belecida passa a ser aceita como medida de todas as coisas a sua
mera reprodução na consciência converte-se em verdade. A crítica
cultural aponta para isso, reclamando contra a "superficialidade" e a
"perda de substância". Ao restringir sua atenção, porém, ao entre-
laçamento entre cultura e comércio, a própria crítica cultural par-
ticipa da superficialidade, agindo de acordo com o esquema dos

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THEODOR W. ADORNO

críticos sociais reacionários, que contrapõem o capital produtivo ao


capital usurário. Na medida em que de fato toda cultura toma parte
no contexto de culpa da sociedade, ela deve sua existência à injustiça
já cometida na esfera da produção. O mesmo ocorre, segundo a
Dialética do Esclarecimento, com o comércio. É por isso que a crí-
tica cultural desloca a culpa: ela é ideologia, na medida em que
permanece como mera crítica da ideologia. Os regimes totalitários
de ambos os genêros, buscando proteger o status quo das últimas
inconveniências que temem de uma cultura já reduzida à condição
de lacaio, conseguem convencer pela força essa cultura, e sua auto-
consciência, de seu servilismo. Eles atacam o espírito, que já se
tornou insuportável em si mesmo, e com isso ainda se sentem puri-
ficadores e revolucionários. A função ideológica da crítica cultural
atrela à id-eologia sua própria verdade, a resistência contra a ideolo-
gia. A luta contra a mentira acaba beneficiando o mais puro terror.
"Quando ouço falar em cultura, destravo o meu revólver", dizia o
porta-voz da C~mara de Cultura do Reich de Hitler.
Mas a crítica cultural somente pode reprovar tão incisivamente
a cultura por sua decadência, apontada como uma violação da pura
autonomia d~ espírito, uma prostituição, porque a própria cultura
surge da separação radical entre trabalho intelectual e trabalho
braçal, extraindo dessa separação, desse "pecado original", a sua
força. Quando a cultura simplesmente nega essa separação e finge
uma união harmoniosa, regride a algo anterior ao seu próprio con-
ceito. Somente o espírito que, no delírio de seu caráter absoluto, se
afasta por inteiro do mero existente determina verdadeiramente o
mero existente em sua negatividade: mesmo que apenas um mínimo
de espírito permaneça ligado à reprodução da vida, ele também há
de ficar comprometido com ela. O desprezo dos atenienses pelo
vulgar consistia basicamente em duas coisas: o orgulho arrogante
de quem não suja as próprias mãos com aqueles de cujo trabalho
vive e a preservação da imagem de uma existência que aponta para
além da coerção existente por trás de todo trabalho. Ao dar voz à
má consciência, projetando-a nas vítimas como "baixeza", essa ati-
tude denuncia, ao mesmo tempo, o estado em que as vítimas se
encontram: a submissão dos homens às formas vigentes da repro-
dução da vida. Toda "cultura pura" tem causado mal-estar aos
porta-vozes do poder. Platão e Aristóteles sabiam muito bem por

16
PRISMAS

que não podiam deixar vingar essa concepção de cultura, preferindo


defender, em questões sobre o julgamento da arte, um pragmatismo
que se encontra em surpreendente contraste com o pathos dos dois
grandes metafísicos. A mais recente crítica cultural burguesa tor-
nou-se, sem dúvida, demasiado cautelosa para segui-los abertamen-
te neste ponto, embora se acalme secretamente com a divisão entre
alta cultura e cultura popular, entre arte e entretenimento, entre
conhecimento e visão de mundo descomprometida. Essa crítica cul-
tural burguesa é tão mais "antivulgar" do que a antiga elite ate-
niense quanto o proletariado é mais perigoso do que os escravos. O
moderno conceito de cultura pura e autônoma indica que o anta-
gonismo tornou-se inconciliável, tanto pela falta de compromisso
para com o que é para outro quanto pela hybris da ideologia, que se
entroniza como o que é em si.
A crítica cultural compartilha com seu objeto o ofuscamento.
Ela é incapaz de deixar aflorar o reconhecimento de sua fragilidade,
que é intrínseca à separação entre trabalho intelectual e trabalho
manual. Nenhuma sociedade que contradiga o seu próprio concei-
to, o de humanidade, pode ter plena consciência de si mesma. Para
impedir que isso ocorra não é preciso nem mesmo o aparato ideo-
lógico subjetivo, ainda que este, em períodos de grandes mudanças
sociais, costume reforçar o ofuscamento objetivo. Pelo contrário, a
afirmação de que todas as formas de repressão foram necessárias, de
acordo com o estado da técnica, para a preservação da sociedade
geral, e que a sociedade tal como ela é reproduziu de fato, apesar de
todo o seu absurdo, a vida sob as condições existentes, suscita obje-
tivamente a aparência de legitimação social. A cultura, enquanto
conteúdo essencial da autoconsciência de uma sociedade constituí-
da por classes antagônicas, não pode libertar-se dessa aparência,
como também não o pode aquela crítica cultural que mede a cultura
segundo seu próprio ideal. Em uma fase na qual a irracionalidade e
a falsidade objetiva se escondem atrás da racionalidade e da necessi-
dade objetiva, a aparência tornou-se total. Ainda assim, em virtude
de sua violência real, os antagonismos acabam se impondo também
na consciência. Justamente porque a cultura, para a glorificação da
sociedade, afirma como válido o princípio de harmonia na socie-
dade antagônica, não pode evitar o confronto da sociedade com o
seu próprio conceito de harmonia, o que leva a cultura a tropeçar

17
THEODOR W. ADORNO

em desarmonias. A ideologia que afirma a vida entra em contra-


dição com a vida pelo impulso imanente do ideal. O espírito, que
percebe que a realidade não se iguala a ele em tudo, mas sim está
sujeita a uma dinâmica inconsciente e fatal, é impelido, contra a sua
própria vontade, para além da apologia. O fato de que a teoria se
transforma em um poder real quando empolga os homens funda-
menta-se na objetividade do próprio espírito, que por força do
cumprimento de sua função ideológica tem de perder a fé na ideolo-
gia. Movido pela incompatibilidade da ideologia com a existência, o
espírito, ao expressar o ofuscamento, expressa ao mesmo tempo a
tentativa de escapar a ele. Desiludido, o espírito percebe a crueza da
mera existência e passa a responsabilidade à crítica. Então, ou ele
amaldiçoa a base material, a partir do sempre questionável critério
de seu prinêípio puro, ou toma consciência, por sua incompatibi-
lidade com a base material, de sua própria questionabilidade. Por
força da dinâmica da sociedade, a cultura torna-se crítica cultural.
Esta mantém o conceito de cultura, demolindo porém as suas mani-
festações contemporâneas como meras mercadorias e meios de
emburrecimento. Uma tal consciência crítica permanece submissa à
cultura na medida em que, lidando com ela, aparta-se do horror,
mas ao mesmo tempo essa consciência crítica também a determina
como complemento do horror. - A postura ambivalente da teoria
social em relação à crítica cultural é uma conseqüência disso. O pro-
cedimento da crítica cultural está, ele mesmo, submetido a uma
crítica permanente, tanto em seus pressupostos gerais, em sua ima-
nência à sociedade vigente, quanto nos juízos concretos que enun-
cia. Pois a subserviência da crítica cultural acaba se revelando por
seu conteúdo específico, e somente nele esta subserviência pode ser
captada de modo conclusivo. Simultaneamente, porém, a teoria dia-
lética - caso não queira sucumbir ao mero economicismo e a uma
mentalidade que acredita que a transformação do mundo se esgota
no aumento da produção - está obrigada a assumir para si mesma a
crítica cultural, que é verdadeira na medida em que traz a inverdade
à consciência de si mesma. Se a teoria dialética mostra-se desinte-
ressada pela cultura enquanto um mero epifenômeno, acaba con-
tribuindo para que a confusão cultural continue a se propagar e
colabora na reprodução do que é ruim. O tradicionalismo cultural
e o terror dos novos déspotas russos possuem o mesmo sentido.

18
PRISMAS

O fato de que ambos afirmam seu compromisso com a cultura


como um todo, ao mesmo tempo que proscrevem todas as formas
de consciência não ajustadas, não é algo menos ideológico do que a
atitude da crítica que se limita a denunciar diante do seu tribunal
uma cultura desorientada, ou responsabilizar seu alegado negativis-
mo pelo que há de nefasto. Aceitar a cultura como um todo já é reti-
rar-lhe o fermento de sua própria verdade: a negação. O entusiasmo
pela cultura está em consonância com o clima produzido pela pin-
tura de cenas de batalha e pela música militar. O que distingue a
crítica dialética da crítica cultural é o fato de a primeira elevar a
crítica até a própria suspensão [Aufhebung] do conceito de cultura.
Contra a crítica imanente da cultura pode-se argumentar que ela
sonega o aspecto decisivo: o papel assumido pela ideologia nos con-
flitos sociais. Supor, ainda que apenas metodologicamente, algo
como uma lógica autônoma da cultura seria colaborar, pelo des-
membramento da cultura, com o proton pseudos ideológico, pois o
conteúdo da cultura não residiria exclusivamente em si mesma, mas
em sua relação com algo que lhe seria externo: o processo material
da vida. A cultura, conforme Marx ensinou a propósito das relações
jurídicas e das formas de Estado, não poderia ser entendida "a partir
de si mesma [... ], nem a partir do assim chamado desenvolvimento
universal do espírito humano~'. Ignorar isso significaria pratica-
mente transformar a ideologia no próprio tema da discussão, e com
isso fortalecê-la. De fato, a versão dialética da crítica cultural não
deve hipostasiar os critérios da cultura. A crítica dialética posiciona-
se de modo dinâmico ao compreender a posição da cultura no inte-
rior do todo. Sem essa liberdade, sem o transcender da consciência
para além da imanência cultural, a própria crítica imanente não seria
concebível: só é capaz de acompanhar a dinâmica própria do objeto
aquele que não estiver completamente envolvido por ele. Mas a
exigência tradicional de uma crítica da ideologia também está sujei-
ta a uma dinâmica histórica. Ela foi concebida contra o idealismo,
visto como a forma filosófica na qual se espelharia a fetichização da
cultura. Hoje, no entanto, a determinação da consciência pelo Ser
tornou-se um meio de escamotear toda consciência que não estiver
de acordo com o existente. O momento da objetividade da verdade,
sem o qual não se pode conceber a dialética, passa a ser tacitamente
substituído pelo positivismo vulgar e pelo pragmatismo, ou seja, em

19
TI IEODOR W. ADORNO

última instância, pelo subjetivismo burguês. Na era burguesa, ateo-


ria predominante era a ideologia, e a práxis oposicionista se contra-
punha imediatamente a ela. Hoje, a rigor, quase não há mais teoria,
e a ideologia é como o ruído produzido pelas engrenagens da práxis
inexorável. Não se ousa mais pensar nenhuma frase que não inclua
gentilmente, em todas as áreas, indicações precisas sobre a quem ela
deveria favorecer, o que antigamente era tarefa da polêmica desco-
brir. Mas o pensamento não-ideológico é aquele que não se deixa
reduzir a operational terms, procurando, em vez disso, ajudar a con-
duzir a própria coisa àquela linguagem que seria, de outro modo,
bloqueada pela linguagem dominante. Desde que toda associação
político-econômica avançada passou a considerar óbvio e evidente
que o que importa é modificar o mundo, e que é bobagem ficar
interpretando-o, tornou-se difícil simplesmente invocar as Teses
contra Feuerbach. A dialética inclui também a relação entre ação e
contemplação. Em uma época na qual as ciências socias burguesas,
segundo Scheler,. "saquearam" o conceito marxista de ideologia,
diluindo-o no relativismo generalizado, o perigo de se desconhecer
a função das iqeologias já é menor do que o perigo representado
pela tendência de se dispor, de maneira administrativa, classifi-
catória e estranha ao objeto, sobre as formações espirituais, enxer-
tando-as simploriamente nas constelações de poder vigentes, que
caberia ao espírito desvendar. Como vários outros elementos do
materialismo dialético, também a noção de ideologia foi transfor-
mada de um meio de conhecimento em um meio de controle do
conhecimento. Em nome da dependência da superestrutura em
relação à infra-estrutura, passa-se a vigiar a utilização das ideolo-
gias, em vez de criticá-las. Ninguém mais se preocupa com o con-
teúdo objetivo das ideologias, desde que estas cumpram sua função.
Mas a própria função das ideologias torna-se manifestamente
cada vez mais abstrata. A suspeita dos antigos críticos culturais se
confirmou: em um mundo onde a educação é um privilégio e o apri-
sionamento da consciência impede de toda maneira o acesso das
massas à experiência autêntica das formações espirituais, já não
importam tanto os conteúdos ideológicos específicos, mas o fato de
que simplesmente haja algo preenchendo o vácuo da consciência
expropriada e desviando a atenção do segredo conhecido por todos.
No contexto de seu efeito social, é talvez menos importante saber

20
PRISMAS

quais as doutrinas ideológicas específicas que um filme sugere aos


seus espectadores do que o fato de que estes, ao voltar para casa,
estão mais interessados nos nomes dos atores e em seus casos amo-
rosos. Conceitos vulgares como "entretenimento" são muito mais
adequados do que considerações pretensiosas sobre o fato de um
escritor ser representante da pequena burguesia e outro, da alta bur-
guesia. A cultura tornou-se ideológica não só como a quintessência
das manifestações subjetivamente elaboradas pelo espírito objetivo,
mas, em maior medida, também como esfera da vida privada. Esta
esconde, sob a aparência de importância e autonomia, o fato de que
é mantida apenas como apêndice do processo social. A vida se
transforma em ideologia da reificação, em máscara mortuária. É por
isso que a tarefa da crítica, na maioria das vezes, não é tanto sair em
busca de determinados grupos de interesse aos quais devem subor-
dinar-se os fenômenos culturais, mas sim decifrar quais elementos
da tendência geral da sociedade se manifestam através desses fenô-
menos, por meio dos quais se efetivam os interesses mais podero-
sos. A crítica cultural converte-se em fisiognomonia social. Quanto
mais o todo é despojado de seus elementos espontâneos e social-
mente mediado e filtrado, quanto mais ele é "consciência", tanto
mais se torna "cultura". O processo material de produção se mani-
festa finalmente como aquilo que era em sua origem, ao lado dos
meios de manutenção da vida, na relação de troca: como uma falsa
consciência das partes contratantes uma a respeito da outra, como
ideologia. Inversamente, contudo, a consciência torna-se cada vez
mais um mero momento de transição na montagem do todo. Hoje
"ideologia" significa sociedade enquanto aparência. Embora seja
mediada pela totalidade, atrás da qual se esconde a domina~ão do
parcial, a ideologia não é redutível pura e simplesmente ·a um inte-
resse parcial; por isso, de certo modo, está em todas as suas partes à
mesma distância do centro.
A teoria crítica não pode adm,itir a alternativa entre colocar em
questão, a partir de fora, a cultura como um todo, submetida ao
conceito supremo de ideologia, ou confrontá-la com as normas que
ela mesma cristalizou. Quanto à decisão de adotar uma postura
imanente ou transcendente, trata-se de uma recaída na lógica tradi-
cional, criticada na polêmica de Hegel contra Kant: todo e qualquer
método que determina limites e se mantém dentro dos limites de

21
THEODOR W. ADORNO

seu objeto suplanta, justamente por isso, esses limites. A posição


que transcende a cultura é, em certo sentido, pressuposta pela
dialética como aquela consciência que não se submete, de antemão,
à fetichização da esfera do espírito. Dialética significa intransigência
contra toda e qualquer reificação. O método transcendente, que se
dirige ao todo, parece mais radical do que o método imanente, que
pressupõe desde o início este todo questionável. O método trans-
cendente pretende assumir uma posição semelhante a um ponto
arquimediano, que transcenda a cultura e a rede de ofuscamento, a
partir da qual a consciência conseguisse pôr em movimento a tota-
lidade, por maior que fosse a inércia desta. O ataque ao todo retira
sua força do fato de que quanto mais o mundo possui a aparência
de unidade e totalidade, maior é o avanço da reificação e, portanto,
da divisão. Mas a liquidação sumária da ideologia, que na esfera
soviética já se tornou um pretexto para o terror cínico, na forma de
respeito ao "objetivismo", concede demasiada honra a essa totali-
dade. Esta atitudt: compra en bloc da sociedade a sua cultura, sem
levar em conta a maneira pela qual a sociedade a utiliza. A ideologia,
ou seja, a aparência socialmente necessária, é hoje a própria socie-
dade real, na m~dida em que o seu poder integral e sua inexorabili-
dade, a sua irresistível existência em si, substitui o sentido por ela
própria exterminado. A escolha de um ponto de vista subtraído da
órbita da ideologia é tão fictícia quanto somente o foi a elaboração
de utopias abstratas. É por isso que a crítica transcendente da cul-
tura, semelhante à crítica burguesa da cultura, vê-se obrigada a
retroceder, conjurando aquele ideal do "natural", que já é por si
mesmo uma peça-chave da ideologia burguesa. O ataque trans-
cendente à cultura fala geralmente a linguagem da falsa ruptura, a
linguagem do "homem natural" [Naturbursche]. Ele despreza o
espírito: as formações espirituais, apesar de tudo, são feitas pelo
homem e servem apenas para encobrir a vida natural. Em nome
dessa suposta futilidade, as formações epirituais deixam-se manipu-
lar arbitrariamente, sendo utilizadas para fins de dominação. Isso
explica a insuficiência da maioria das contribuições socialistas à
crítica cultural: elas fogem à experiência daquilo com que se ocu-
pam. Ao desejar, como que por um golpe de borracha, apagar o
todo, desenvolvem afinidades com a barbárie, e as suas simpatias
são inegavelmente com o mais primitivo, o menos diferenciado, por
PRISMAS

mais que isso também esteja em contradição com o próprio estágio


de desenvolvimento da força de produção intelectual. A rejeição
peremptória da cultura torna-se pretexto para promover os mais
rudes, os mais "saudáveis", eles mesmos repressivos, e sobretudo
para resolver obstinadamente a favor da sociedade o eterno conflito
entre sociedade e indivíduo - um conflito que deixa marcas em
ambos - segundo os critérios dos administradores que se apodera-
~am da sociedade. A partir desse p~-;,.to, basta um passo para a rein-
trodução oficial da cultura. O procedimento imanente, por ser o
mais essencialmente dialético, resiste contra isso. Ele leva a sério o
princípio de que o não-verdadeiro não é a ideologia em si, mas a sua
pretensão de coincidir com a realidade. Crítica imanente de for-
mações espirituais significa entender, na análise de sua conformação
e de seu sentido, a contradição entre a idéia objetiva dessas forma-
ções e aquela pretensão, nomeando aquilo que expressa, em si, a
consistência e a inconsistência dessas formações, em face da cons-
tituição da existência. Uma crítica como esta não se limita ao reco-
nhecimento geral da servidão do espírito objetivo, mas procura
transformar esse reconhecimento em força de observação da pró-
pria coisa. A compreensão da negatividade da cultura só é con-
cludente quando demonstra ser a prova certeira da verdade ou
inverdade de um conhecimento, da coerência ou incoerência de um
pensamento, do acerto ou desacerto de uma formação, da substan-
cialidade ou nulidade de uma figura de linguagem. Quando depara
com insuficiências, não as atribui precipitadamente ao indivíduo e
sua psicologia, ou à mera imagem encobridora do fracasso, mas
procura derivá-las da irreconciliabilidade dos momentos do objeto.
Essa crítica persegue a lógica de suas aporias, a insoJubilidade
intrín~eca à própria tarefa. Compreende nestas antinomias as anti-
nomias sociais. Para a crítica imanente uma formação bem-sucedida
não é, porém, aquela que reconcilia as contradições objetivas no
engodo da harmonia, mas sim a que exprime negativamente a idéia
de harmonia, ao imprimir na sua estrutura mais íntima, de maneira
pura e firme, as contradições. Diante dessas formações, perde senti-
do o veredito de que algo é "mera ideologia". Ao mesmo tempo, no
entanto, a crítica imanente não cansa de pôr em evidência que todo
espírito, até hoje, encontra-se submetido a uma interdição. Ele não
tem o poder de suspender, a partir de si mesmo, as contradições nas

23
T!IEODOR W. ADORNO

quais trabalha. Mesmo a mais radical reflexão quanto ao próprio


fracasso é limitada pelo fato de que permanece apenas uma reflexão,
sem alterar a existência que testemunha o fracasso do espírito. Por
isso a crítica imanente não consegue se confortar com seu conceito.
Ela não é vaidosa o suficiente para acreditar que sua imersão no
espírito corresponderia imediatamente à libertação de seu cativeiro,
nem é suficientemente ingênua para acreditar que, por força da lógi-
ca da coisa, a firme imersão no objeto levaria à verdade, como se o
conhecimento subjetivo sobre a má totalidade não se imiscuísse a
todo instante, como que vindo de fora, na determinação do objeto.
Quanto menos o método dialético pode hoje pressupor a identi-
dade hegeliana de sujeito e objeto, tanto mais ele está obrigado a
levar em conta a dualidade dos momentos, a relacionar o conheci-
mento da sociedade enquanto totalidade, bem como o conhecimen-
to da imbricação do espírito nela, com a pretensão do objeto a ser
reconhecido enquanto tal, segundo o seu conteúdo específico. Por
isso a dialética não permite que nenhuma exigência de pureza lógica
a impeça de passar de um género a outro, de fazer com que a coisa
fechada sobre s.i própria se ilumine através do olhar voltado para a
sociedade, de apresentar à sociedade a conta que a coisa não é capaz
de pagar. Por fim, a própria oposição entre um conhecimento que se
imponha de fora e um que se imponha de dentro torna-se, para o
método dialético, suspeita de ser um sintoma daquela reificação que
ele é obrigado a denunciar. À atribuição abstrata a um pensamento
igualmente administrativo, no primeiro caso, corresponde, no
segundo, o fetichismo de um objeto que é cego quanto à sua génese,
que se tornou prerrogativa do especialista. Mas se a consideração
obstinadamente imanente ameaça recair no idealismo, na ilusão de
um espírito auto-suficiente que dispõe sobre si e sobre a realidade,
assim também a consideração transcendente corre o risco de esque-
cer o trabalho do conceito e se contentar com a rotulação prescrita
- em geral o termo "pequeno-burguês" - e com o ucasse vindo
do alto. O pensamento topológico, que sabe o lugar de cada fenô-
meno mas não sabe as características de nenhum, possui um secreto
parentesco com o sistema paranóico da loucura, que se encontra
alheio à experiência do objeto. O mundo passa a ser dividido em
preto e branco por categorias que giram em falso, e desta forma é
preparado para a dominação, contra a qual os conceitos haviam sido

24
PRISMAS

outrora concebidos. Nenhuma teoria, nem sequer a verdadeira, está


segura de jamais se perverter em suposição, se alguma vez renunciar
a uma relação espontânea com o objeto. A dialética tem de se res-
guardar contra essa perversão tanto quanto tem de se proteger do
perigo de ficar aprisionada pelo objeto cultural. Não deve se sujeitar
ao culto do espírito, nem à hostilidade contra o espírito. O crítico
dialético da cultura deve participar e não participar da cultura. Só
assim fará justiça à coisa e a si mesmo.
A tradicional crítica transcendente da ideologia é obsoleta. Por
princípio, devido à transposição direta do conceito de causalidade
do âmbito da natureza física para o da sociedade, o método sucum-
be exatamente àquela reificação que tem como tema crítico, regre-
dindo a uma posição inferior a seu próprio objeto. Mesmo assim, o
método transcendente pode invocar, em sua defesa, que só utiliza
conceitos essencialmente reificados na medida em que a própria
sociedade está reificada; que com a crueza e rigidez do conceito de
causalidade coloca uma espécie de espelho diante da sociedade, que
por sua vez transpõe para o espírito a sua própria crueza e rigidez,
bem como a sua degradação. Mas a tenebrosa sociedade unitária não
tolera mais sequer aqueles momentos relativamente autônomos e
distanciados, aos quais outrora se referia a teoria da dependência
causal entre superestrutura e infra-estrutura. Nessa prisão ao ar
livre em que o mundo está se transformando, já nem importa mais o
que depende do quê, pois tudo se tornou uno. Todos os fenômenos
enrijecem-se em insígnias da dominação absoluta do que existe.
Não há mais ideologia no sentido próprio de falsa consciência, mas
somente propaganda a favor do mundo, mediante a sua duplicação
e a mentira provocadora, que não pretende ser acreditada, mas
que pede o silêncio. Exatamente por isso a questão da dependência
causal· da cultura, que logo ressoa como a voz daquilo que lhe
impõe a dependência, contém algo de primitivo. No fim das contas,
entretanto, até mesmo o método imanente é atingido por isso. Ele é
arrastado por seu objeto para o abismo. A cultura materialistica-
mente transparente não se tornou materialisticamente mais honesta,
apenas mais vulgar. Com a perda de sua própria particularidade,
perdeu também o sal da verdade, que antigamente consistia em sua
oposição a outras particularidades. Colocá-la diante da responsa-
bilidade que recusa é apenas afirmar sua pretensão de relevância
THEODOR W. ADORNO

cultural. Neutralizada e pré-fabricada, a totalidade da cultura tra-


dicional acaba sendo hoje aniquilada: através de um processo ine-
xorável, a sua herança, reclamada pelos russos com ar virtuoso,
tornou-se dispensável e supérflua em larga escala, um refugo para o
qual os mercadores da cultura de massas podem, então, novamente
apontar com um sorriso irânico, já que eles a tratam exatamente
dessa forma. Quanto mais totalitária for a sociedade, tanto mais
reificado será também o espírito, e tanto mais paradoxal será o seu
intento de escapar por si mesmo da reificação. Mesmo a mais
extremada consciência do perigo corre o risco de degenerar em con-
versa fiada. A crítica cultural encontra-se diante do último estágio
da dialética entre cultura e barbárie: escrever um poema após
Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conheci-
mento de P,Or que hoje se tornou impossível escrever poemas.
Enquanto o espírito crítico permanecer em si mesmo em uma con-
templação auto-suficiente, não será capaz de enfrentar a reificação
absoluta, que pressupõe o progresso do espírito como um de seus
elementos, e que hoje se prepara para absorvê-lo inteiramente.
A consciência da sociologia
do conhecimento::-

A sociologia do conhecimento representada por Karl Mannheim


começa novamente a ter influência na Alemanha. Deve isso ao seu
gesto de ceticismo inofensivo. Como sua contraparte filosófico-
existencialista, a sociologia do conhecimento questiona tudo e não
ataca nada. Intelectuais que repudiam "dogmas" reais ou presumi-
dos sentem-se em casa nesse clima de ausência de pressupostos e
preconceitos, que lhes confere ainda algo do pathos da racionalidade
persistente, autoconsciente e solitária de Max Weber, como consolo
para a relutante consciência de sua autonomia. Tanto em Mannheim
quanto em seu antípoda, Jaspers, manifestam-se claramente vários
impulsos da escola weberiana; que antes estavam aprisionados no
interior do edifício do saber histórico enciclopédico. O mais impor-
tante desses impulsos é o da defesa da teoria da ideologia em sua
forma autêntica. Tudo isso pode justificar o retorno a um antigo
livro de Karl Mannheim, intitulado M ensch und Gesellschaft im
Zeitalter des Umbaus [Homem e sociedade na era da reconstrução].
Esse livro dirige-se a um círculo de leitores mais amplo do que, por
exemplo, o livro Ideologia e Utopia. Não se deve levar em conta
cada uma de suas formulações, o que importa é justamente o que ele
oferece para que se possa entender melhor a influência dessas idéias.
A mentalidade é positivista: fenômenos sociais são aceitos "como
tais" e em seguida divididos, de maneira classificatória, segundo con-
ceitos gerais. Os antagonismos sociais são com isso nivelados de
modo tendencioso: aparecem apenas como sutis modificações de um

,,. Escrito em 1937, publicado em Aufkldrung, 1953.

27
THEODOR W. ADORNO

aparato conceituai cujos "princípios" destilados se instalam auto-


craticamente e travam uma batalha de sombras: "A raiz última de
todos os conflitos da era da reconstrução contemporânea pode ser
apreendida numa fórmula bem simples. Trata-se em todos os casos
de tensões nascidas da interação não-controlada do princípio do
laisser-faire com o novo princípio da regulação". Como se tudo não
dependesse de saber quem está regulando quem. Ou ainda, em vez
de se responsabilizarem determinados grupos de pessoas ou uma
determinada forma de organização da sociedade, as privações da
época são atribuídas ao "irracional". O crescimento dos antago-
nismos é elegantemente descrito como "o desenvolvimento desigual
das capacidades humanas", como se o que estivesse em jogo fossem
personalidades, e não uma maquinaria anônima que anula o indiví-
duo. O nivelamento atinge da mesma maneira justos e injustos. A
partir destes extrai-se pela abstração o "homem médio", ao qual se
atribui, como característica "sempre presente", uma grande "estrei-
teza intelectual". Sobre a "auto-observação experimental", termo
emprestado das ciências exatas, Mannheim confessa francamente:
"Todas essas formas de auto-observação possuem uma tendência
para o nivelamento e negligenciam as diferenças individuais, porque
se interessam apenas por aquilo que há de geral no homem e em sua
variabilidade". E não em suas relações específicas e suas modifi-
cações reais. Em sua neutralidade, o ordenamento generalizante do
mundo conceituai de Mannheim é complacente com o mundo real:
utiliza-se da terminologia da crítica social, mas retira, ao mesmo
tempo, seu ferrão.
O primeiro ponto a ser nivelado é o conceito de sociedade
enquanto tal, em virtude de um discurso que apela à "integração",
um termo extremamente comprometido. Esse termo não entra em
cena por acaso. Na obra de Mannheim, o recurso à totalidade
social tem menos a função de enfatizar a intricada dependência do
homem em relação ao todo do que a de glorificar o próprio pro-
cesso social no sentido de um ajuste pela média das contradições
do todo. Através desse procedimento, desaparecem, pelo menos
teoricamente, as contradições, que constituem entretanto justa-
mente o processo de vida "da" sociedade. "Não é possível admitir
sem mais nem menos que uma opinião amplamente aceita pela
sociedade seja o resultado de um processo de seleção que integra

28
PRISMAS

diversas declarações de vida que se esforçam na mesma direção."


Em um conceito de seleção como esse desaparece o fato de que
esse mecanismo é mantido em funcionamento pela penúria huma-
na, em condições de sacrifícios insanos e contínua ameaça catas-
trófica à sociedade. A autopreservação precária e irracional da
sociedade é disfarçada e apresentada como uma realização de sua
justiça e "racionalidade" imanentes.
Quando se trata de integrar, as elites sempre estão por perto. A
"crise da cultura", na qual em Mannheim o terror e o horror são
prontamente sublimados, torna-se para ele um "problema da for-
mação das elites". Mannheim indica quatro "processos" nos quais
esse problema supostamente se cristalizaria: número crescente de
elites e decorrente enfraquecimento de sua força de influência; des-
truição da exclusividade dos grupos que formam as elites; mudanças
no processo de seleção de seus membros; e mudanças em sua com-
posição. As categorias utilizadas são, para início de conversa, alta-
mente questionáveis. O positivista que sine ira et studio registra os
fatos suporta sem maiores problemas o palavrório que os encobre.
Uma dessas falácias é o próprio conceito de "elite". A sua inverdade
consiste no fato de que os privilégios de determinados grupos são
apresentados teleologicamente como o resultado de um tipo qual-
quer de processo objetivo de seleção, quando de fato ninguém sele-
ciona as elites, a não ser elas mesmas. Ao empregar o conceito de
elite, Mannheim perde de vista o poder social. Utiliza o conceito
apenas de um modo sociológico-formal "descritivo". Isso lhe per-
mite iluminar a bel-prazer os grupos privilegiados. Mas o conceito
de elite é ao mesmo tempo tão habilmente elaborado que torna
possível deduzir a miséria atual a partir de certas perturbações igual-
mente "neutras" do mecanismo das elites, sem levar em considera-
ção a economia política. Nesse processo, Mannheim coloca-se em
conflito aberto com os fatos. Quando afirma, por exemplo, que na
sociedade da "democracia de massas" torna-se continuamente mais
fácil para qualquer pessoa o acesso a todas as esferas de influência
social, fato que teria retirado das elites "a necessária exclusividade
para a formação de seus impulsos mentais e espirituais", é contradi-
tado até mesmo pelas mais tímidas experiências pré-científicas. A
homogeneidade deficiente das elites é uma ficção, aparentada com
outras ficções em voga, como a do caos do mundo dos valores e a da

29
THEODOR W. ADORNO

destruição de toda ordem solidamente estabelecida. Quem não


preenche os requisitos é mantido do lado de fora. Nem mesmo
aquelas diferenças de convicção nas quais se imprimem as diferen-
ças de interesses reais conseguem esconder a unidade que prevalece
em todos os assuntos decisivos. Nada é mais útil para esse acober-
tamento do que a conversa mole sobre a crise da cultura, na qual
Mannheim participa sem hesitação. Essa discussão transfigura o
sofrimento real em culpa do espírito, denuncia a cultura e geral-
mente favorece a barbárie. A crítica cultural modificou sua função.
O filisteu da cultura há muito tempo deixou de ser o progressista,
uma figura com a qual Nietzsche identificava David Friedrich
Strauss. Ele aprendeu a profundidade e o pessimismo. Renega, em
nome disso, a humanidade, que se tornou incompatível com seus
interesses çontemporâneos, e seu impulso destruidor ancestral
volta-se contra aqueles mesmos bens cujo desaparecimento ele
lamenta sentimentalmente. Isso pouco importa aos sociólogos da
crise da cultura. A sua ratio heróica não tem nenhum escrúpulo em
apontar contra a ·arte moderna, de uma forma romântica e reacio-
nária, a tese já bastante gasta do esgotamento da força criadora de
estilos da arte européia, desde o fim dos tempos do Biedermeier.
Com a teoria da elite aceita-se também sua coloração específica.
Aos conceitos convencionais junta-se o respeito ingênuo por aquilo
que eles representam. Mannheim indica como princípios de seleção
das elites "sangue, propriedade e renda", sem que a paixão pela
destruição das ideologias lhe tenha levado a exigir desses mesmos
princípios sua legitimação; foi até mesmo capaz de falar, no tempo
em que Hitler estava vivo, sobre "um autêntico princípio de san-
gue", que em tempos passados teria garantido "a pureza das nobres
minorias cultivadas e de suas tradições". A partir daí é preciso só
um passo para se chegar a uma nova aristocracia "de sangue e solo".
Apenas o pessimismo cultural generalizado impediu Mannheim de
concretizar esse passo. Achava que não haveria ainda sangue sufi-
ciente. O seu medo é uma "democracia de massas" na qual sangue
e propriedade desapareçam como princípios de seleção: a mudan-
ça demasiadamente rápida das elites ameaçaria a continuidade.
Mannheim preocupa-se especialmente com o fato de que o esoteris-
mo do "verdadeiro princípio de sangue" já não funciona adequada-
mente, pois "submeteu-se a um processo de democratização, e quer

30
PRISMAS

de uma hora para outra garantir aos grupos abertos das grandes
massas o privilégio da ascensão social, sem nenhuma contraparti-
da". Assim como os nobres nunca foram mais nobres que os outros,
também nunca foram objetivamente capazes nem estiveram subjeti-
vamente dispostos a renunciar seriamente a qualquer princípio de
privilégio. Se a teoria das elites, que tanto aprecia categorias inva-
riantes, reúne como "princípios de sangue e propriedade" estágios
historicamente diferentes do que os sociólogos hoje denominam
"diferenciação social", como a feudal e a capitalista, acaba com isso
também por separar de bom grado aquilo que está relacionado à
propriedade e à produção. Max Weber demonstrou que o espírito
do primeiro capitalismo identificava os dois, ou seja, que a capaci-
dade de rendimento pode ser medida, no interior de um processo de
trabalho racionalmente constituído, em termos de seu êxito mate-
rial. A equiparação de rendimento e êxito profissional evidencia-se
psicologicamente na disposição de transformar em fetiche o êxito
enquanto tal. Mannheim ressalta isso com o conceito de "impulso
de afirmação". Na ideologia, propriedade e rendimento separam-se
apenas quando se torna evidente que o "rendimento", como ratio
econômica do indivíduo, não corresponde mais à "propriedade",
entendida como sua possível recompensa. Somente então os bur-
gueses se transformam verdadeiramente em fidalgos. Os "mecanis-
mos de seleção" de Mannheim são, portanto, invenções: sistemas de
referência arbitrariamente selecionados e distanciados do processo
de vida da sociedade real.
Esses mecanismos de seleção são obrigados a admitir conse-
qüências que se assemelham sinistramente às concepções delirantes
de Sombart e de Ortega y Gasset. Mannheim fala de uma "proleta-
rização da intelligentsia". Constata acertadamente a saturação do
mercado cultural: haveria mais pessoas "culturamente" qualificadas,
no sentido de uma educação formal, do que posições que poderiam
ocupar. Com isso, porém, o valor social da cultura diminuiria, pois
haveria uma "lei sociológica que di2 que o valor social do espírito se
orienta pelo grau de valorização social daqueles que o produzem".
Ao mesmo tempo, o "valor social" da cultura necessariamente de-
clina, pois o recrutamento da nova geração de intelectuais se estende
às camadas mais baixas, especialmente ao pequeno funcionalismo
público. O conceito de proletariado é com isso formalizado: ele

31
THEODOR W. ADORNO

aparece como mera estrutura da consc1encia, da mesma maneira


como a burguesia chama de "proletário" aquele que não conhece as
regras do jogo. A gênese do processo não é considerada, e isso leva a
uma falsificação. Ao chamar a atenção para uma assimilação "estru-
tural" da consciência às camadas mais baixas, a culpa é implicitamen-
te transferida para estas camadas e para sua pretensa emancipação em
direção a uma democracia de massas. O emburrecimento, porém, não
é obra dos oprimidos, mas sim da opressão; e afeta tanto os opri-
midos quanto os opressores, fato que Mannheim leva pouco em
conta. A saturação das profissões "intelectuais" deve-se à saturação
das profissões da vida económica, ou seja, ao desemprego tecnoló-
gico. Este não é conseqüência, como quer Mannheim, da democra-
tização das elites. O exército intelectual de reserva tem muito pouca
influência sobre a elite. Aliás, a lei sociológica segundo a qual o cha-
mado "v;lor" de uma cultura depende da cultura de seus portadores
consiste em um erro primário de falsa generalização. Basta lembrar a
música do século XVIII, cuja relevância na Alemanha de então é
indubitável. Os músicos da época, com exceção dos maestri especial-
mente relacionados com a corte, das prima-donas e dos castrati,
eram muito pouco estimados socialmente: Bach sobreviveu como
funcionário eclesiástico subalterno, e o jovem Haydn como criado.
Os músicos somente obtiveram certo prestígio social quando os
seus produtos deixaram de se adequar à utilização imediata, quando
o compositor se opôs à sociedade como indivíduo autónomo: em
suma, com Beethoven. A razão para a falsa conclusão de Mannheim
encontra-se no psicologismo de seu método. A fachada individua-
lista da sociedade esconde, para Mannheim, o fato de que a sua
essência consiste exatamente nisso: desenvolver formas que se sedi-
mentam, rebaixando os indivíduos a meros agentes da tendência
objetiva. Apesar da atitude desmistificadora, a sociologia do conhe-
cimento pertence a um ponto de vista pré-hegeliano. O seu recurso
a homens que constituem um grupo - o dos portadores da cultura,
no caso daquela "lei sociológica" - pressupõe uma concordância
em certa medida transcendental entre situação social e situação indi-
vidual, cuja inexistência é um dos objetos que mais imperiosamen-
te se impõem à Teoria Crítica. Esta última é a teoria das relações
sociais entre os homens apenas na medida em que também é a teoria
da desumanidade dessas relações.

32
PRISMAS

As distorções da sociologia do conhecimento têm o seu funda-


mento no método, que traduz os conceitos dialéticos em conceitos
classificatórios. Na medida em que o socialmente contraditório é
absorvido em cada caso pelas classes lógicas singulares, as con-
tradições sociais desaparecem, e obtém-se uma imagem harmoniosa
do todo. Quando, por exemplo, na terceira seção do artigo sobre os
três graus da consciência, Mannheim os distingue como "achar,
inventar e planejar", está simplesmente pretendendo interpretar o
esquema dialético das épocas históricas como o esquema dos modos
de comportamento fluidamente mutáveis do homem socializado,
nos quais desaparecem totalmente os antagonismos determinantes:
"Obviamente, é fluida a transição do pensamento inventivo, ou seja,
do pensamento que realiza racionalmente objetivos imediatos, para
o pensamento planificador. Ninguém pode precisar em qual espécie
de previsão e em qual ampliação do alcance da regulamentação
consciente começaria a fase da transição do pensamento inventivo
para o pensamento planificador". A concepção de uma transição
sem ruptura da sociedade liberal para uma sociedade "planificada"
corresponde à concepção da transição entre dois modos de "pensa-
mento" diferentes. Surge a crença de que o processo histórico é
guiado por um sujeito social geral inerentemente unívoco. A tra-
dução de conceitos dialéticos por conceitos classificatórios abstrai
as condições do poder social efetivo, do qual dependem, unica-
mente, aqueles estágios de desenvolvimento do pensamento: "A
novidade da reflexão sociológica sobre o passado e o presente con-
siste na visão da história como campo de experimentação para uma
intervenção reguladora". Como se a possibilidade de uma tal inter-
venção coincidisse, em cada caso, com o nível de entendimento da
reflexão sociológica. Uma tal nivelação das lutas sociais em modos
de comportamento formalmente definíveis e previamente espiritua-
lizados permite proclamações edificantes sobre o futuro: "Haveria
ainda um outro caminho, o de um planejamento uniforme funda-
mentado em acordos e compromissos, ou seja, o de uma expansão
dessa mentalidade também para os que se encontram no topo da
sociedade, pois antes esta só era possível, de fato, em pequenos
enclaves pacíficos no interior da sociedade". Através da idéia de
compromisso, as mesmas contradições que deveriam ser suspensas
[aufgehoben] pelo planejamento continuam existindo: o conceito

33
THEODOR W. ADORNO

abstrato de planejamento encobre as contradições e consiste ele


mesmo em um compromisso entre o laisser-faire conservador e a
percepção de sua insuficiência.
Conceitos dialéticos não são "traduzíveis" em conceitos socio-
lógicos-formais sem que isso prejudique sua verdade. Mannheim
flerta com o positivismo na medida em que imagina se apoiar em
fatos objetivamente dados de antemão, mas que são - segundo o
seu modo de expressão um tanto desleixado - "inarticulados", os
quais podem ser "trabalhados" pelo mecanismo do pensamento
sociológico e em seguida elevados a conceitos gerais. Nisso
Mannheim se conforma com a lógica usual da ciência. A classifi-
cação segundo conceitos ordenadores somente seria um procedi-
mento cognitivo adequado se os fatos pretensamente dados de
forma imediata pudessem ser facilmente abstraídos de seu funda-
mento, como ocorre normalmente, aliás, em uma "primeira aproxi-
mação" ingênua. Mas isso não é possível se a realidade social é
previamente ordenada em relação a qualquer "aproximação" epis-
temológica e possui um feitio "articulado", do qual dependem o
próprio sujeito científico e as circunstâncias de sua experiência. À
medida que'a análise progride, os "fatos" iniciais deixam deserdes-
critivos e auto-referentes, e a sociologia possui menos liberdade
para dispor sobre eles com o objetivo de classificá-los de acordo
com sua necessidade. A necessária correção dos "fatos" no decor-
rer do conhecimento teórico da sociedade não significa apenas que
devam ser escolhidos outros esquemas de ordenamento, diferentes
dos que parecem apropriados numa primeira experiência ingênua,
mas significa sobretudo que os fatos pretensamente dados represen-
tam mais do que um mero material para a elaboração conceituai, ou
seja, que esses dados são cunhados pela totalidade social, sendo por
isso "estruturados" em si mesmos. O idealismo somente seria aban-
donado no momento em que se renunciasse também à liberdade de
formação abstrata de conceitos. A tese do primado do Ser sobre a
consciência inclui a exigência metodológica de não se formarem
conceitos segundo o critério de unidades características adequadas a
um procedimento pragmático e utilitário, mas sim expressar com
estes conceitos a formação e o movimento das tendências dinâmicas
da totalidade. A consciência da sociologia do conhecimento fechou
seus olhos a essa exigência. Suas abstrações são arbitrárias, a partir

34
PRISMAS

do momento em que apenas se harmonizam com uma experiência


que procede pela diferenciação e correção. Mannheim proíbe a si
mesmo chegar à conclusão de que o registro "imparcial" de fatos é
fictício e o pesquisador social não tem de organizar um material
de experiência caótico e desqualificado, mas sim notar que o mate-
rial de sua experiência é o ordenamento social, um "sistema", no
sentido mais forte que qualquer filosofia possa atribuir ao termo.
Mannheim também não admite que o fator que decide sobre a ade-
quação ou inadequação dos seus conceitos é menos a universalidade
destes, ou sua aproximação aos fatos "puros", do que a questão de
saber se os conceitos captam adequadamente as leis reais do movi-
mento da sociedade e conseguem enquadrar devidamente nesse
sistema os fatos renitentes, dando-lhes certa transparência. Em um
sistema de coordenadas definido por conceitos como "integração",
"elite" e "articulação", aquelas leis determinantes aparecem, em con-
junto com tudo aquilo que elas significam para a existência humana,
como contingentes ou acidentais, como meras "diferenciações"
sociológicas. É por isso que a sociologia generalizadora e diferen-
ciadora age como se zombasse da realidade. Ela não se envergonha
diante de formulações como esta: "Sem levar em conta a concen-
tração e centralização dos capitais ... ". Estes cortes abstratos não são
neutros. A qualidade de uma teoria é determinada pelo que ela leva
ou não em conta. Se o "não levar· em conta" resolvesse tudo, a aná-
lise das "elites" poderia ser feita, por exemplo, a partir da observação
de grupos como o dos vegetarianos e o dos adeptos de Mazdaznan,
e poderia ser aperfeiçoada pelo refinamento conceituai de modo que
seu caráter manifestamente absurdo desaparecesse quase por com-
pleto. Mas nenhuma correção ou aperfeiçoamento resolve o proble-
ma da falsidade da escolha das categorias fundamentais: o mundo
não se enquadra nessas categorias. Essa falsidade deslocaria os acen-
tos de tal maneira, mesmo com toda correção, que a realidade
escaparia aos conceitos: as elites permaneceriam ainda como "grupos
do tipo Mazdaznan", dotadas da' qualidade adicional de serem
pensadas enquanto "poder social". Quando Mannheim afirmou,
em certa ocasião, que "no setor cultural (e propriamente também
no econômico) nunca houve um liberalismo absoluto, no sentido
de que ao lado do livre desenvolvimento das forças sociais não
houvesse também contínua regulamentação, como, por exemplo, a

35
THEODOR W. ADORNO

existente no âmbito educacional", ele estava se esforçando clara-


mente em conseguir uma correção diferenciadora da crença de que
o princípio do laisser-faire, há muito desmascarado como ideo-
lógico, teria reinado sem restrições. Mas na própria escolha desse
conceito inicial, diferenciado apenas posteriormente, haveria uma
deturpação do essencial: a percepção de que, mesmo no liberalismo,
o princípio do laisser-faire apenas ocultou a disposição econômica,
e portanto a seleção dos bens culturais teria sido feita, basicamente,
em função de sua conformidade com os interesses sociais predo-
minantes. A percepção da existência de um dado fundamental da
ideologia dilui-se em mera finesse: o método quer mostrar, concilia-
doramente, que não esquece o concreto, em vez de se orientar
desde o início por este concreto, sem autonomizar os inevitáveis
conceitos gerais.
A insuficiência do método torna-se evidente em seus pólos: na
lei e nos "exemplos". Quando fatos renitentes são subsumidos, pela
sociologia do conhecimento, em unidades gerais superiores, como
meras diferen'ciações, um poder autônomo sobre os fatos é atribuí-
do a essas generalizações arbitrárias, enquanto "leis sociais", do tipo
da que estabelece a relação entre bens culturais e prestígio social dos
produtores culturais. As leis são hipostasiadas. Às vezes assumem
até mesmo um caráter extravagante: "Há, entretanto, uma lei deci-
siva, sob cujo signo vivemos nos tempos atuais. De um lado há
setores não-planejados que se regulam unicamente pela seleção
natural, e de outro, estruturas conscientemente construídas e minu-
ciosamente planejadas. Ambos podem coexistir sem atrito somente
na medida em que os setores não-planejados predominem". Afir-
mações quantificadas deste tipo não são em nada mais evidentes do
que colocações semelhantes feitas pela metafísica de Baader, sobre a
qual possuem unicamente a vantagem da falta de imaginação. A fal-
sidade da hipostasiação dos conceitos gerais pode ser percebida com
precisão quando Mannheim introduz os chamados "principia
media", aos quais foram rebaixadas as leis dialéticas do movimento.
Encontramos, por exemplo, colocações como: "Mesmo que seja
necessário historicizar e diferenciar com rigor os 'principia media' e
seus conceitos correspondentes ('imperialismo', 'desemprego estru-
tural' ou 'ideologia do funcionário público'), não devemos nos
esquecer de que neles estão diferenciadas e individualizadas as

36
PRISMAS

determinações abstratas e gerais (forças de atuação universais). Em


um certo sentido, os 'principia media' não são nada mais do que
feixes de cadeias causais temporariamente estáveis, que devido à sua
coesão atuam como um único complexo causal. Percebe-se clara-
mente nos exemplos que se trata de 'forças gerais atuantes' histori-
cizadas e individualizadas. Por trás desta primeira observação há o
princípio universal do funcionamento de uma ordem social com-
posta por pessoas livres, que podem assumir uma determinada
condição jurídico-contratual; por trás da segunda observação está
a questão dos efeitos psicológicos universais provocados pelo
'desemprego' em geral; e por trás da última há a lei universal, se-
gundo a qual as esperanças de ascensão social de grupos e indiví-
duos tendem a agir no sentido de encobrir sua situação coletiva".
Mannheim indica que "negligenciar ou ignorar, nos modos concre-
tos de comportamento desses tipos históricos, o princípio universal
da psique humana" não seria um erro menor do que acreditar que
concepções do "homem em geral" seriam suficientes para dar conta
desta situação. De acordo com isso, o evento histórico parece estar
determinado, de um lado, por causas "universais" e, de outro, por
causas "particulares", que juntas formariam um "feixe" causal qual-
quer. Isso implica entretanto uma confusão entre graus de abstração
e causas. Mannheim acredita que a fraqueza decisiva do pensamen-
to dialético consiste no desconhecimento das "forças gerais", como
se conceitos como "forma mercadoria" não fossem "gerais" o sufi-
ciente para as questões que ele coloca. Mas essas "forças gerais" não
são autônomas em oposição às "forças particulares", como se um
evento concreto tivesse sido "causado", em primeiro lugar, pelo
princípio da causalidade e, em seguida, pela situação histórica con-
creta. Nenhum evento é causado por forças gerais ou mesmo por
leis: a causalidade não é a "causa" dos eventos, mas a mais elevada
universalidade conceituai, sob a qual causações concretas podem ser
apreendidas em conjunto. Mesmo as considerações de Newton
sobre a queda da maçã não quererrí dizer que, nesta queda, a legali-
dade universal da causalidade "efetiva-se", com um menor grau de
abstração, em um conjunto de fatores. A causalidade opera apenas
no particular, e não em adição a este. Apenas nessa medida a queda
da maçã pode ser chamada de "expressão da lei da gravidade": esta
lei é tão dependente da queda da maçã quanto o contrário. O jogo

37
THEODOR W. ADORNO

concreto de forças pode ser reduzido esquematicamente a diversos


graus de universalização, mas não há "forças universais" e "forças
particulares" estanques. O pluralismo de Mannheim, no qual o
aspecto único e decisivo parece ser apenas uma das perspectivas
possíveis, não quer, obviamente, desfazer-se da adição de forças de
atuação universais e particulares.
Por isso, o "fato", previamente batizado como "situação única",
torna-se um mero exemplo - enquanto a teoria dialética, assim
como a kantiana, não pode admitir esse conceito de "exemplo". Os
exemplos funcionam como ilustrações convenientes e substituí-
veis; por isso freqüentemente são escolhidos ou inventados exem-
plos que mantêm uma cômoda distância das necessidades reais da
humanidade atual. Uma atitude como esta, entretanto, logo tem de
arcar cop:1 as conseqüências. Mannheim sugere o seguinte caso:
"Um caso esclarecedor de perturbações oriundas da irracionalidade
substancial pode ser visto, por exemplo, quando diplomatas de um
país elaboram cuidadosamente um plano de ação, preocupando-se
inclusive em combiná-lo com outras séries de atividades, e então, de
repente, um dos diplomatas envolvidos, por causa de um colapso
nervoso, age de maneira contrária ao plano combinado, chegando a
destruí-lo". Não há sentido algum em atribuir tanta importância a
ocorrências privadas como essa, classificando-as como "forças efe-
tivas": não apenas se superestima romanticamente o raio de ação de
cada um dos diplomatas envolvidos, como cada um desses erros
poderia ser resolvido em cinco minutos por um telefonema, exceto
nos casos em que o erro se situasse no âmbito de desenvolvimentos
políticos mais fortes que as ponderações dos diplomatas. Eis um
exemplo de Mannheim que possui, de certa maneira, a plasticidade
de um livro infantil: "Como soldado preciso controlar meus impul-
sos e desejos de modo diferente do que quando atuo como um caça-
dor de fim de semana; este não se mantém fixamente atento a seu
alvo, e também só ocasionalmente precisa controlar-se: no instante,
por exemplo, em que deve atirar na caça". Todos sabem que a pro-
fissão de caçador cedeu lugar nos últimos tempos à caça por espor-
te, mas até mesmo um caçador esportista, se fica atento apenas "no
momento em que atira na caça" - provavelmente para não se
assustar com o barulho da própria espingarda - , dificilmente terá
êxito em sua caçada, talvez nem encontre os animais selvagens, ou,

38
PRISMAS

se os encontrar, acabará afugentando-os. A futilidade de tais exem-


plos tem uma estreita ligação com a própria influência da sociologia
do conhecimento. Os exemplos afastam-se da realidade por serem
escolhidos com a maior "neutralidade" subjetiva possível, e por isso
são de antemão exemplos que não se referem a questões essenciais.
Sociologia significava, na sua origem, uma crítica dos princípios da
sociedade na qual o sociólogo vivia. A sociologia do conhecimento
se contenta com reflexões sobre o caçador em seu uniforme verde
ou o diplomata em seu fraque escuro.
As conseqüências finais do formalismo dessa formulação con-
ceituai mostram-se, do ponto de vista do conteúdo, tão logo são
alardeadas as exigências programáticas. Postula-se um optimum de
organização integral da sociedade, sem levar devidamente em con-
sideração as fissuras que a afastam desse optimum. Tudo poderia ser
colocado em ordem, se as pessoas apenas se sentassem ao redor de
uma mesa e conversassem racionalmente umas com as outras. Isso
corresponde ao ideal que Mannheim chama de "linha desejada"
entre um "conservadorismo inconsciente" e uma "utopia pior": "A
partir disso é possível ao mesmo tempo entrever uma solução pos-
sível para as tensões da atualidade, ou seja, uma espécie de demo-
cracia autoritária com planejamento, que poderia criar um sistema
equilibrado a partir dos princípios hoje em dia divergentes". Essa
atitude combina também com a elevação estilística do termo "crise"
para "problema do homem", e nisso Mannheim se identifica, apesar
de suas declarações em contrário, com a antropologia neogermânica
e com os filósofos existencialistas. São sobretudo dois traços, entre
outros, que marcam o conformismo da sociologia do conhecimento
mannheimiana. Em primeiro lugar: ela permanece um pensamento
preocupado com sintomas. Está integralmente disposta a· sobreva-
lorizar·a importância das ideologias em relação aos interesses que
defendem. Compartilha ainda pacificamente com as ideologias a
concepção equivocada do "irracional", no qual justamente deveria
ser colocada a alavanca da crítica: ''Seria preciso perceber, aliás, que
o irracional não é em todas as circunstâncias algo prejudicial mas,
pelo contrário, talvez seja a mais valiosa das faculdades do homem,
quando contribui, por exemplo, como um poderoso impulso para
alcançar fins objetivos e racionais, ou também quando cria valores
culturais na forma de sublimações e cultivações, ou ainda quando o

39
THEODOR W. ADORNO

irracional, como pura vitalidade, aumenta a alegria de viver, sem


destruir inadvertidamente a vida social". Não há maiores indicações
do que seja este "irracional", capaz de produzir valores culturais
que são, no entanto, ex definitione o produto da educação culta, ou
capaz de "aumentar" uma alegria de viver que já é irracional por
si mesma. Em todo caso, a equiparação do irracional com o poder
dos instintos tem efeitos pouco salutares, pois o conceito cobre
igualmente, com uma postura de "neutralidade axiológica", a libido
e a figura de sua repressão. O "irracional" parece em Mannheim
emprestar às ideologias uma substancialidade que na verdade é
repreendida paternalmente, mas que não é destruída pela indicação
daquilo que a ideologia esconde. A prática predominante do mate-
rialismo vulgar se irmana com essa aceitação positivista dos sinto-
mas e o, pouco respeito pelas ideologias. Embora a fachada do
edifício permaneça intacta ao olhar desse modo benévolo de obser-
vação, a última sabedoria dessa sociologia é que no interior não
poderia dar resultado nenhuma excitação que ultrapassasse seria-
mente os limÍtes fixados de antemão: "De fato, o conjunto das
idéias existentes nunca ultrapassa (e o mesmo se aplica ao vocabu-
lário) o horizonte e o raio de ação da comunidade social existente".
Obviamente, tudo o que "realmente o ultrapassasse" poderia ser
classificado facilmente como algo que "tende a provocar emoções
ou estimular valores espirituais etc.". Esse materialismo é seme-
lhante à postura de um pai de família ao qual parece de antemão ser
impossível que seu filho possa pensar uma idéia nova, pois tudo já
foi pensado, e por isso lhe aconselha que seria melhor que ele se
preocupasse em ganhar dinheiro. Esse materialismo, muito expe-
riente e desencorajante, é o reverso de um idealismo historiográfico,
ao qual Mannheim permanece fiel, especialmente nas suas coloca-
ções sobre "racionalidade" e progresso. Mannheim acredita que
modificações no nível de consciência "seriam capazes de alterar
fundamentalmente, a partir de dentro, o princípio estrutural da
sociedade".
A verdadeira força de atração dessa sociologia do conhecimen-
to deve ser procurada no fato de que aquelas modificações da cons-
ciência, resultado da "razão planificadora", possuem uma relação
imediata com a razão daqueles que hoje planejam: "O fato de que
as seqüências de ações de uma sociedade funcional integralmente

40
PRISMAS

racionalizada somente puderam ser pensadas como um todo pelas


cabeças de poucos organizadores assegura a estes uma posição-
chave na sociedade". Torna-se aqui claro um motivo que tem maior
alcance do que a consciência da sociologia do conhecimento: o
espírito objetivo fala por sua boca, enquanto espírito de alguns
poucos organizadores. Enquanto a sociologia do conhecimento
sonha com novos setores de trabalho acadêmico, acaba servindo,
sem o saber, a organizadores que não hesitam sequer um único
instante em abolir os seus mercados de trabalho. As reflexões de
Mannheim, alimentadas pelo common sense liberal tradicional,
levam-no finalmente a recomendar o "planejamento" da sociedade,
sem que ele tenha compreendido seus fundamentos sociais. As con-
seqüências do absurdo, que se tornou óbvio e que Mannheim vê
apenas superficialmente como "crise da cultura", devem ser apazi-
guadas por cima, pelos que controlam os meios de produção. Isso
tudo significa apenas que o liberal, que não vê nenhuma saída, age
como porta-voz de um aprimoramento ditatorial da sociedade,
mesmo quando pensa que se opõe a este processo. Certamente o
nosso sociólogo do conhecimento responderia que a instância do
seu planejamento não seria o poder, mas a razão, e que cabe a ela
converter os poderosos. Mas todo mundo já deve ter percebido,
desde os reis-filósofos de Platão, o que significa essa conversão. Se
Mannheim antes admirava a au"sência de compromissos dos inte-
lectuais, não poderia contrapor a esta idéia o postulado reacionário
do seu "enraizamento no ser", e também deveria ter lembrado que
esta mesma intelligentsia, que pretensiosamente se diz "descom-
promissada", está ao mesmo tempo tão profundamente enraizada
no ser que deveria ser modificado, que a sua crítica a ele é apenas
fingida. "Racional" significa para ela o optimum da vida ~m socie-
dade, no sentido de possibilitar o adiamento da catástrofe, sem
questionar se esse funcionamento, na sua totalidade, já não é o
optimum do irracional. Nos sistemas totalitários de todas as espé-
cies, o planejamento que pretende 'manter a vida acaba empurrando
para baixo da superfície, com uma violência bárbara, as contra-
dições que esses próprios sistemas produzem. Os advogados de um
tal planejamento entregam o poder, em nome da razão, àqueles aos
quais o poder já pertence. O poder atual da razão é a razão cega
dos atuais poderosos. Mas como este poder leva à catástrofe, acaba

41
THEODOR W. ADORNO

seduzindo o espmto que o nega moderadamente, para que este


abdique dessa negação. Mannheim ainda se diz um liberal, mas
para ele a liberdade "nada mais é, do ponto de vista sociológico, do
que a desproporcionalidade entre o crescimento do raio de ação
dos mecanismos de influência centralmente organizados, por um
lado, e o crescimento do volume da unidade grupal a ser influen-
ciada, por outro". A sociologia do conhecimento instala campos de
reeducação para a intelligentsia sem teto, onde esta deve aprender a
se esquecer de si mesma.

42
Spengler após o declínio:~

Se a história da filosofia consiste menos na solução dos seus proble-


mas do que no fato de que a dinâmica do espírito faz continuamente
com que os problemas em torno dos quais ela se cristaliza sejam
esquecidos, então Oswald Spengler foi esquecido com a rapidez da
catástrofe, em direção à qual, segundo sua própria teoria, caminhava
a história do mundo. Após um sucesso popular inicial, a opinião pú-
blica alemã voltou-se rapidamente contra as idéias contidas em O
declínio do Ocidente [Der Untergang des Abendlandes]. Os filósofos
oficiais repreenderam a sua superficialidade, as ciências especiali-
zadas oficiais falaram de incompetência e charlatanice, e no alvoroço
do período de inflação e estabilização ninguém na Alemanha queria
saber da tese do declínio. Enquanto isso, o próprio Spengler, com a
publicação de uma série de escritos menores de tom pretensioso e
estilo polêmico barato, se expôs de tal modo que acabou facilitando
em muito sua refutação pela sadia vontade de viver.
Quando o segundo volume da obra principal foi publicado, em
1922, nem de longe chamou tanta atenção quanto o primeiro, ainda
que somente naquele a tese do declínio tenha sido desenvolvida
concretamente. Os leigos, que leram a obra de Spengler como antes
haviam lido as de Nietzsche e Schopenhauer, haviam nesse meio
tempo se afastado da filosofia, e a c"orporação dos filósofos se apega-
va a Heidegger, que conferia ao aborrecimento uma expressão mais
elevada e consistente. Heidegger enobreceu a morte, que Spengler

, _ Conferência (1938) publicada em inglês em 1941 em Studies in Philosophy and Social


Science, e em alemão em Der Monat, 1950.

43
THEODOR W. ADORNO

havia decretado sem levar em conta as pessoas, e prometeu transfor-


mar o pensamento sobre o assunto em um segredo profissional aca-
dêmico. Spengler foi deixado para trás: sua brochura sobre M ensch
und Technik [O homem e a técnica] não era capaz de concorrer
com as publicações mais competentes da antropologia filosófica da
época. Quase não se tomou conhecimento de suas relações com os
nacional-socialistas, de seu desentendimento com Hitler e, final-
mente, de sua morte. Na Alemanha, Spengler foi repudiado como
pessimista e reacionário, no sentido que os poderosos de então
davam a estas palavras, e no exterior foi considerado um dos cúm-
plices ideológicos da recaída na barbárie.
Diante de tudo isso, há boas razões para levantar uma vez mais
a questão sobre a verdade ou inverdade da obra de Spengler. Seria
concede~-lhe uma enorme vantagem querer extrair da história uni-
versal, que o atropelou em sua marcha para uma nova ordem, um
juízo histórico sobre o valor de seu pensamento. E haveria de fato
razões para tanto, pois o percurso da própria história universal con-
firmou de tal maneira seus prognósticos imediatos que as pessoas se
espantariam, se ainda se lembrassem deles. O Spengler esquecido se
vinga com a ameaça de estar certo. Seu esquecimento em meio à
confirmação de suas teses confere um momento objetivo à ameaça
de cega fatalidade que emanava de suas concepções. Quando sete
acadêmicos alemães se reuniram na revista Logos com o objetivo
de liquidar este outsider, o zelo filistino desses especialistas pro-
vocou sarcasmo. Hoje em dia esse zelo tem um aspecto menos ino-
fensivo. Testemunha uma certa impotência intelectual, comparável à
impotência política da República de Weimar em relação a Hitler.
Spengler não encontrou sequer um adversário à sua altura: o esque-
cimento funciona como evasiva.
Basta ler o livro de Manfred Schroter, Der Streit um Spengler
[A polêmica em torno de Spengler], que oferece um panorama com-
pleto das críticas até 1922, para compreender com clareza o quanto
o espírito alemão fracassou diante de um oponente que parecia ter
incorporado a força histórica do próprio passado desse espírito.
Mesquinharia pedante a respeito de assuntos concretos; otimismo
sentenciosamente conformista na força das idéias, ao qual se juntava
freqüentemente uma confissão involuntária de fraqueza na afirma-
ção enfática de que a situação de nossa cultura não estaria, afinal de

44
PRISMAS

contas, tão ruim; ou o truque sofístico de diluir a própria postura


relativista pelo exagero do relativismo de Spengler - isso foi tudo
o que a filosofia e a ciência alemãs conseguiram reunir contra ele,
que as maltratou como um sargento maltrata os recrutas novatos.
Poder-se-ia quase suspeitar nesse desamparo grandiloqüente um
impulso secreto de acabar obedecendo a este sargento. Porém,
quanto mais o mundo marchava no ritmo indicado por Spengler,
tanto maior seria a urgência de considerar o sentido dessas senten-
ças, que proclamavam um destino para a humanidade que, com o
assassinato de milhões de seres humanos, acabou superando as suas
mais tenebrosas profecias. O poder da obra de Spengler torna-se
visível pelo confronto de algumas de suas teses com os aconteci-
mentos posteriores. Além disso, as fontes que conferem tanto poder
a uma filosofia que sofre de evidentes insuficiências teóricas e empí-
ricas deveriam ser melhor investigadas. Por fim, dever-se-ia pôr em
questão, com uma desconfiança fundamental em relação ao thema
probandum, quais considerações possibilitariam o enfrentamento
de sua obra, sem assumir uma postura de força e sem a má cons-
ciência do otimismo oficial.
Para mostrar a força de Spengler, não se deve partir da discussão
sobre os fundamentos histórico-filosóficos gerais de suas idéias
acerca do crescimento e definhamento vegetativo das culturas, mas
sim da culminação dessa filosofia da história na fase que Spengler
acreditava ser iminente, e que chamava, em analogia com o período
do Império Romano, de "cesarismo". As previsões mais significati-
vas tratam de temas como a dominação das massas, a propaganda, a
arte de massa e, posteriormente, as formas políticas de dominação,
especialmente certas tendências intrínsecas da democracia para a
conversão de si mesma em ditadura. Em consonância com a con-
cepção·geral de Spengler, que não trata a economia como suporte da
realidade social, mas a entende como "expressão" de uma deter-
minada "Seelentum" ["alma coletiva"], os prognósticos propria-
mente económicos são deixados em segundo plano. A questão da
formação de trustes não é colocada, ainda que Spengler tenha perce-
bido argutamente as conseqüências culturais da crescente centrali-
zação do poder. A sua percepção vai longe o suficiente para permitir
certas conclusões económicas pertinentes, principalmente no que
se refere à morte da economia monetária.

45
THEODOR W. ADORNO

No segundo volume de O declínio do Ocidente encontramos


reflexões sobre a civilização na era do cesarismo. Para começar,
algumas frases sobre a "fisiognomonia das metrópoles". A respeito
de suas casas, Spengler escreve que "já não seriam casas onde Vesta
e Janus, os Penatos e os Lares teriam algum lugar, mas meros aloja-
mentos, criados não pelo sangue, mas pela função, não pelo senti-
mento, mas pelo espírito económico empresarial. Enquanto o fogo
da lareira era, no sentido religioso, o centro real e significativo de
uma família, ainda não havia desaparecido a última ligação com o
campo. Somente quando até mesmo essa ligação é perdida, e a
massa de inquilinos e hóspedes leva, nesse mar de casas, uma exis-
tência errante, passando de um abrigo a outro como os pastores e
caçadores de antigamente, é que se completa a formação do nómade
intelectl.J.al. A metrópole é um mundo, é o mundo. É apenas como
uma totalidade que ela possui o sentido de habitação humana. As
casas nada mais são do que os átomos que compõem uma metró-
pole". Reflexões muito parecidas foram feitas, no início do século,
por Werner Sombart, em seu livro Warum gibt es in Amerika
keinen Sozialismus? [Por que não há socialismo na América?].
A imagem do morador das cidades modernas como um segundo
nómade merece ser ressaltada. Ela não apenas expressa a angústia e
a alienação, mas também a a-historicidade crespuscular de uma
situação na qual os homens ainda se sentem como objetos de pro-
cessos intransparentes, não sendo mais capazes, entre um choque
repentino e um brusco esquecimento, de uma experiência de tem-
po contínua. Spengler percebe a conexão entre atomização e tipo
humano regressivo, que se revelaria inteiramente apenas com o
advento do totalitarismo: "Cada uma dessas metrópoles suntuosas
abriga uma miséria horrível, um embrutecimento de todos os hábi-
tos de vida, que já está gerando, entre portais e mansardas, sótãos e
quintais, um novo homem primitivo".
Essa regressão torna-se evidente nos "acampamentos" de todos
os tipos, que não conhecem mais a noção de "casa". Spengler não
sabe muito sobre as condições de produção que levaram a esta
situação. Em contrapartida, porém, vê com maior exatidão o estado
de consciência que se apodera das massas fora do processo de pro-
dução propriamente dito, ao qual elas estão atreladas: os fenómenos
costumeiramente designados como pertencendo ao "tempo livre".

46
PRISMAS

"A tensão intelectual conhece apenas uma forma de descanso, aque-


la que é específica da metrópole: o relaxamento, a 'distração'. O
jogo autêntico, a alegria de viver, o prazer e a embriaguez nasceram
de um ritmo cósmico que não pode mais ser apreendido em sua
essência. Mas alguns fenômenos são recorrentes em todas as metró-
poles de todas as civilizações: a substituição do trabalho intelectual
prático e intensivo pelo seu contrário, a estupidez praticada cons-
cientemente; a substituição da tensão espiritual pela tensão corporal
do esporte; e finalmente a substituição da tensão corporal pela ten-
são sensual do 'prazer', e da tensão espiritual pela 'excitação' pro-
porcionada por jogos e apostas; a pura lógica do trabalho cotidiano
é reposta por uma mística conscientemente saboreada."
Spengler progride nessa reflexão até chegar à tese de que a pró-
pria arte acabaria por se transformar em esporte. E ele não conhecia
nem o jazz nem o Quiz Show. Mas, caso se quisesse resumir em uma
fórmula as principais tendências da arte de massas contemporânea,
nenhuma seria tão abrangente quanto a do esporte, pela superação
de obstáculos rítmicos e pela competição tanto entre os executantes
quanto entre a produção e o público. O desprezo de Spengler não
recai sobre os manipuladores, mas sobre as vítimas da indústria civi-
lizada de uma cultura publicitária: "Surge o tipo dos felás".
O "felá" é definido como o resultado da expropriação da cons-
ciência humana pelos meios centralizados da comunicação pública.
Spengler ainda entende esse processo como sendo dominado pelo
dinheiro, embora pressinta o fim da economia monetária: segundo
ele, o espírito, no sentido de uma autonomia ilimitada, só pode exis-
tir em conexão com a unidade abstrata do dinheiro. Seja como for,
sua descrição aplica-se inteiramente à situação sob um regime
totalitário, que ideologicamente declara guerra tanto ao· dinheiro
quantoº ao espírito. Poder-se-ia até afirmar que Spengler percebeu
na imprensa escrita a presença de traços que apenas foram plena-
mente desenvolvidos com o advento do rádio - assim como levan-
tou contra a democracia objeções que só mostraram todo o seu peso
diante da ditadura. "A democracia substituiu completamente, na
vida intelectual das massas populares, o livro pelo jornal. O mundo
dos livros, que com sua riqueza de pontos de vista exige do pensa-
mento a escolha e a crítica, pertence hoje em dia apenas a alguns cír-
culos restritos. O povo lê um jornal, o 'seu' jornal, que em milhões

47
THEODOR W. ADORNO

de exemplares penetra diariamente em todas as casas, submete desde


cedo os espíritos ao seu domínio, e por meio de seu formato faz
com que a leitura dos livros caia no esquecimento. E se um ou outro
livro ainda suscita algum interesse, sua influência é logo neutrali-
zada por uma crítica prévia."
Spengler vê nessa época de dominação universal algo do caráter
ambíguo do esclarecimento. "A necessidade de educação escolar
universal, que não existia de forma alguma na Antigüidade, está
relacionada com a imprensa política. Nesse fenómeno há uma inten-
ção inteiramente inconsciente de submeter as massas, enquanto
objeto da política partidária, ao instrumento de poder do jornal.
Aos idealistas dos primórdios da democracia a imprensa aparecia
como o esclarecimento sem segundas intenções, e ainda hoje existem
por aí alguns ingênuos que se entusiasmam com a idéia da liberdade
de imprensa, mas é justamente isso que abre o caminho para os futu-
ros césares da imprensa mundial. Quem aprendeu a ler sucumbe ao
poder deles, e a tão sonhada autodeterminação transforma-se, na
democracia tardia da atualidade, em um processo de determinação
radical dos povos pelos poderes que comandam a palavra impressa."
O que Spengler atribuía aos tímidos magnatas da imprensa
durante a Primeira Guerra Mundial atingiu a maioridade na técnica
dos pogroms manipulados e das manifestações populares "espontâ-
neas". "Sem que o leitor se dê conta, o jornal, e com isso ele pró-
prio, muda de dono" - esta observação tornou-se literalmente
verdadeira no Terceiro Reich. Spengler chama isso de "estilo do
século XX". "Hoje um democrata como os de antigamente não
lutaria pela liberdade de imprensa, mas pela liberdade em relação à
imprensa; nesse meio tempo, porém, os líderes se modificaram em
'parvenus', que devem assegurar sua posição diante das massas."
Spengler profetizou Goebbels: "Nenhum domador jamais teve
tanto poder sobre seus animais. Solta-se o povo como massa leitora,
e este corre pelas ruas, lançando-se sobre o alvo indicado, quebrando
janelas e ameaçando. Um leve aceno com o chicote da imprensa, e a
massa se acalma e volta para casa. A imprensa é hoje um exército
com tropas cuidadosamente organizadas, que têm jornalistas como
oficiais e leitores como soldados. A situação é a mesma em qualquer
exército: o soldado obedece cegamente, e as modificações nos obje-
tivos de guerra e nos planos de operação são feitas sem o seu conhe-

48
PRISMAS

cimento. O leitor nada sabe do que se pretende com ele, e nem deve
saber, nem mesmo o papel que desempenha nisso tudo. Não existe
sátira mais terrível da liberdade de pensamento. Antigamente não se
podia ousar pensar livremente; agora isto é permitido, mas não se
consegue mais fazê-lo. As pessoas desejam pensar apenas o que se
deseja que elas pensem, e exatamente isso é sentido como liberdade".
Os prognósticos específicos não são menos espantosos. Prin-
cipalmente o militar, que deve ter sido influenciado por certas
experiências do Alto Comando Militar alemão durante a Primeira
Guerra Mundial, que nesse meio tempo foram postas em prática.
Spengler considera obsoleto o princípio "democrático" do serviço
militar obrigatório, e os meios táticos desenvolvidos a partir dele.
"Os exércitos permanentes serão de agora em diante gradual-
mente substituídos por exércitos profissionais de soldados volun-
tários e entusiastas da guerra. No lugar dos milhões novamente os
cem mil, mas justamente por isso este segundo século" (após as
Guerras Napoleônicas) "será de fato o século dos Estados belige-
rantes. A mera existência desses exércitos não constitui um substi-
tuto para a guerra" (como teria ocorrido, segundo Spengler, no
século XIX). "Eles existem para a guerra e anseiam por ela. Dentro
de duas gerações, a vontade desses exércitos será mais forte do que a
dos que desejam a paz. As guerras pela herança do mundo serão
travadas por continentes, e países como a Índia, a China, a África do
Sul, a Rússia e os países do Islã serão chamados à luta, em um con-
fronto de novas técnicas e táticas. Os grandes centros metro-
politanos do poder vão dispor ao bel-prazer sobre os pequenos
Estados, sobre seus territórios, sua economia e seus habitantes; estes
permanecerão apenas como províncias, objetos, meios para deter-
minados fins, seu destino não terá nenhuma importâne"ia para o
curso dos acontecimentos. Aprendemos em poucos anos a não mais
prestar atenção a acontecimentos que, antes da Primeira Guerra
Mundial, teriam horrorizado o mundo."
Nesse meio tempo, recordar Áuschwitz já é tido como sinal de
ressentimento enfadonho. Ninguém mais se interessa pelo passado.
Após o período que Spengler denominou "a era dos Estados belige-
rantes" se seguiria, segundo seu esquema, um "tempo sem história",
no sentido demoníaco da expressão. A tendência da economia con-
temporânea de criar, com a eliminação do mercado e da dinâmica da

49
THEODOR W. ADORNO

concorrência, uma situação estat1ca e, no sentido propriamente


econômico, "sem crises", regida pela disponibilidade imediata, cor-
responde claramente aos prognósticos de Spengler. Estes se revelam
ainda mais acertados e sensatos quando pensamos no imobilismo
da "cultura", cujos experimentos mais avançados a sociedade,
desde o século XIX, nega-se a compreender e assimilar verdadeira-
mente, forçando a repetição incessante e mortal do que já foi aceito,
enquanto a arte de massas estandardizada exclui de antemão a his-
tória, graças a seus modelos "congelados". Poder-se-ia até mesmo
considerar toda arte especificamente moderna como a tentativa
desesperada de manter viva a dinâmica da história, ou de aumentar
o horror ao imobilismo até o choque, até a catástrofe, na qual o a-
histórico assumiria de repente um aspecto arcaico. As profecias de
Spengler, sobre o destino dos pequenos Estados começam a valer
também para os próprios homens, inclusive para os habitantes dos
grandes Estados, justamente os mais poderosos. Por isso a história
parece extinta. Tudo acontece com eles, e não por meio deles.
Mesmo os maiores empreendimentos estratégicos e êxitos triunfais
possuem um aspecto de ilusão, de algo não inteiramente real. Essa
experiência foi fixada de uma vez por todas pela expressão ameri-
cana phony. Os acontecimentos se passam entre os oligarcas e os
seus especialistas em assassinatos, não se originam mais da dinâmica
da sociedade, mas sim submetem a própria sociedade a uma admi-
nistração intensificada até o ponto do extermínio.
Como objetos da violência política, os homens se desfazem de
sua espontaneidade: "Desde o advento da era imperial não há mais
problemas políticos. As pessoas se acomodaram à situação e aos
poderes existentes. Na época dos Estados beligerantes, rios de
sangue haviam tingido de vermelho os muros de todas as metrópoles
para transformar em realidade as grandes verdades da democracia e
conquistar os direitos sem os quais a vida não parecia digna de ser
vivida. Agora estes direitos foram conquistados, mas os netos não
querem mais utilizá-los, nem mesmo sob a ameaça de punição".
O prognóstico de Spengler acerca da mudança de natureza dos
partidos políticos foi radicalmente confirmado no nacional-socia-
lismo: os partidos tornaram-se "séquitos". Sua caracterização dos
partidos, inspirada provavelmente em Robert Michels, possui
aquela lucidez que o fascismo soube explorar tão satanicamente: a

50
PRISMAS

inverdade de um humanismo que se declara parâmetro do mundo


sem ter sido realizado torna-se uma justificativa da inverdade e da
desumanidade absolutas. Spengler percebe que o sistema partidário
é próprio do liberalismo burguês. "A entrada de um partido aris-
tocrático no parlamento é algo intrinsecamente tão falso quanto a
entrada de um partido proletário. Somente a burguesia se sente em
casa no parlamento." Spengler enfatiza os mecanismos que permi-
tem ao sistema partidário se converter em ditadura.
Considerações como estas são familiares à filosofia cíclica da
história desde o tempo dos estóicos. Maquiavel desenvolveu a idéia
de que a corrupção das instituições democráticas leva necessaria-
mente, com o tempo, ao retorno das didaturas. Mas Spengler, que
em certo sentido retoma no final da era burguesa a posição que era,
no seu início, defendida por Maquiavel, mostra-se superior ao antigo
filósofo político em razão da experiência da dialética histórica, cujo
nome em nenhum lugar menciona explicitamente. Para Spengler, o
princípio da democracia desdobra-se em seu contrário graças ao
domínio dos partidos.
"A era do autêntico domínio dos partidos mal abrange dois
séculos, e entre nós já se encontra em plena decadência desde a
Guerra Mundial. Que a massa total do eleitorado, por um impulso
comum, possa eleger homens que devem defender seus interesses -
como é sugerido, de maneira bastante ingênua, em todas as consti-
tuições - somente foi algo possível num primeiro momento, e
pressupõe que as tendências para a organização de determinados
grupos jamais estejam dadas de antemão. Este era o caso da França
em 1789 e da Alemanha em 1848. A existência de uma assembléia
implica imediatamente a formação de alianças táticas, cuja coesão
baseia-se na vontade de conservar a posição dominante conquista-
da. Ess-as alianças já não se consideram de modo algum porta-vozes
de seus eleitores, pelo contrário, dispõem de todos os meios de agi-
tação política para torná-los submissos e assim utilizá-los para seus
objetivos. Uma tendência que consiga se organizar no interior do
povo torna-se quase imediatamente um instrumento da organiza-
ção, e percorre sem resistência todo o percurso que transforma essa
organização em instrumento do Führer. A vontade de potência é
mais forte que qualquer teoria. No início, a direção e o aparato da
organização são constituídos em função do programa, depois os

51
THEODOR W. ADORNO

que ali estão a defendem em razão do poder e dos benefícios adqui-


ridos, como ainda hoje é o caso por toda parte, em todos os países
onde milhares de pessoas vivem dos partidos e das funções e cargos
ligados a eles, e finalmente o programa desaparece da lembrança e a
organização trabalha apenas para si mesma."
Referindo-se especificamente ao caso da Alemanha, Spengler
escreve, prevendo os anos dos governos minoritários que contri-
buíram para a ascensão de Hitler ao poder: "A constituição alemã
de 1919, proclamada já no início do declínio da democracia, permite
ingenuamente uma ditadura das máquinas partidárias, que conce-
deram a si mesmas todos os direitos e não precisam prestar contas
seriamente a ninguém. O famigerado sistema de representação pro-
porcional e as listas elaboradas pela direção nacional lhes asseguram
a contir;midade. Em vez dos direitos do 'povo', que figuram ainda,
pelo menos idealmente, na constituição de 1848, há na de 1919 uni-
camente os direitos dos partidos, o que pode parecer inofensivo,
mas implica o cesarismo das organizações. Nesse sentido, a consti-
tuição de 1919 é de fato a mais progressista de nosso tempo. Ela per-
mite entrever o próprio fim; bastam algumas pequenas alterações
para que ela conceda a alguns indivíduos um poder ilimitado".
Spengler pressente como o curso da história faz com que os
homens esqueçam a idéia e a realidade da própria liberdade. "Esses
ideais abstratos possuem um poder que se estende por quase duzen-
tos anos: o poder da política partidária. Em última instância, eles
não são refutados, tornam-se simplesmente enfadonhos. O mesmo
aconteceu com Rousseau, e não vai demorar muito para que este
também seja o destino de Marx. Não se abandona por fim esta ou
aquela teoria, mas a crença na teoria em geral, e com isso o otimis-
mo delirante do século XVIII, que acreditava poder aprimorar
situações insatisfatórias por meio da utilização de conceitos" - -
"Que ninguém se iluda quanto a isso: a era da teoria chegou ao fim,
mesmo para nós."
O prognóstico da morte iminente da força do pensamento cul-
mina na proibição do pensar, que procura se legitimar pela inexora-
bilidade do curso da história.
Com isso atinge-se ao mesmo tempo o ponto arquimédico do
projeto de Spengler. A sua afirmação histórico-filosófica sobre a
morte do espírito e as conseqüências hostis ao pensamento que

52
PRISMAS

disto decorrem não se referem apenas à fase da "civilização", mas


são dados fundamentais da concepção spengleriana do homem
enquanto tal. "As verdades existem para o espírito; já os fatos exis-
tem apenas em relação à vida. A observação histórica, aquilo que
chamo de compasso fisiognomônico, é uma questão de sangue, o
conhecimento do homem expandido sobre o passado e o futuro, um
olhar inato para personalidades e situações, para eventos, para o que
foi necessário, para o que teve de existir, e não a mera crítica cientí-
fica e o conhecimento de datas."
Decisivo aqui é o conceito de "conhecimento do homem" e a
sua conexão com a ideologia do sangue, que nesse meio tempo levou
de fato ao sangue e ao horror prenunciados por Spengler. Por trás de
tudo isso encontra-se também, implicitamente, a tese maquiavélica
da imutabilidade da natureza humana, que deve apenas ser percebi-
da, especialmente na sua dimensão de indignidade, para ser contro-
lada de uma vez por todas, pois ela permanece sempre a mesma.
"Conhecimento do homem" significa, em sentido amplo, "desprezo
pelo homem": os homens são assim mesmo. O interesse episte-
mológico condutor da observação é o interesse da dominação. As
categorias são todas forjadas segundo esse interesse. Toda a simpatia
de Spengler fica do lado dos dominantes, e este filósofo da história,
da história da desilusão, quando passa a falar da suposta enorme
inteligência e vontade férrea dos líderes das economias modernas,
chega a se exaltar como um dos pacifistas que ele tanto ridicularizou.
Sua concepção geral de história é medida pelo ideal da dominação. A
afinidade eletiva com a dominação empresta a Spengler o mais pro-
fundo dos olhares sempre que se trata de potencialidades de domi-
nação, e o cega com ódio tão logo ele depara com motivos que
superam a história, entendida como história das condições de domi-
nação: A tendência dos sistemas do idealismo alemão de elevar os
grandes conceitos universais a fetiches e sacrificar-lhes friamente
a existência individual na teoria - tendência que Schopenhauer,
Kierkegaard e Marx contestaram ém Hegel - exalta-se em Spengler
ao ponto da alegria manifesta diante de sacrifícios humanos efe-
tivos. Onde a filosofia da história de Hegel fala, sob o mais rígido
luto, do matadouro da história, Spengler vê unicamente fatos que,
de acordo com o temperamento e a disposição da pessoa, podem
ser lamentados, mas com os quais aquele que se encontra em uma

53
THEODOR W. ADORNO

certa cumplicidade com a necessidade histórica, e cuja fisiogno-


monia está ao lado dos batalhões mais fortes, faria melhor em não
se preocupar muito. Crítico imparcial, James Shotwell escreveu nos
seus Essays in intellectual history: "Spengler está interessado pelo
drama grandioso e trágico que ele relata, e não desperdiça muita
simpatia inútil para com as vítimas das trevas, trevas que retornam
eternamente".
O motivo da dominação expressa-se no gesto grandiosamente
soberano com que Spengler escolhe seus conceitos, jogando com
culturas como se fossem pedrinhas coloridas e "pondo em ação"
(como diziam os nazistas) com extrema indiferença os conceitos de
destino, cosmo, sangue e espírito. Quem reduz abertamente todos
os fenômenos à fórmula "não há nada de novo" perpetra por isso
mesmo ,um regime autoritário de categorias, demasiado próximo
ao regime político com o qual Spengler se entusiasma. Ele situa a
história nas seções de seu plano grandioso, da mesma forma como
Hitler deslocava as minorias de um país para outro. No final, a
conta acaba dando certo. Tudo é enquadrado, e as resistências, que
existem apenas nos setores ainda não alcançados, são liquidadas.
Por mais insuficientes que tenham sido as críticas das ciências par-
ticulares a Spengler, neste ponto elas têm razão. O único fator que
escapa à Fata Morgana da economia histórica de larga escala é o
indivíduo, cuja teimosia põe limites à subsunção autoritária. Se
Spengler mostra-se superior às ciências particulares detalhistas pela
perspectiva e grandeza de suas categorias, é ao mesmo tempo infe-
rior a elas justamente por essa grandeza, alcançada apenas pela
rejeição da dialética entre conceito e individualidade. Em vez disso,
Spengler procede através de um esquematismo que se serve do
"fato" geral e ideológico para rebaixar o pensamento, sem jamais
dedicar a este "fato" um olhar que não seja superficial e classi-
ficatório. Na perspectiva histórico-mundial de Spengler há um ele-
mento de ostentação e jactância, não muito diferente do espírito da
Siegesallee [alameda da vitória] guilhermina: apenas quando o mun-
do se transformar em uma enorme Siegesallee assumirá a forma
desejada por ele. A superstição que liga a grandeza de um filósofo
aos seus aspectos grandiosos é uma herança ruim do idealismo; é
como achar que a qualidade de um quadro depende da sublimi-
dade do que é retratado. Grandes temas não dizem nada sobre a

54
PRISMAS

grandeza do conhecimento. Se o verdadeiro, como quer Hegel, é o


todo, este somente é o verdadeiro quando a força do todo penetra
inteiramente no conhecimento do particular.
Não há nada disso em Spengler. Em nenhum lugar o particular
lhe revela algo que já não estivesse assegurado de antemão pelo
panorama esquemático de sua morfologia cultural comparativa. O
seu método chama-se orgulhosamente "fisiognomonia". O seu pen-
samento fisiognomônico está ligado, na verdade, ao caráter totali-
tário de suas categorias. Todo individual, mesmo o mais remoto,
transforma-se em índice de grandeza, de "cultura", porque o mun-
do é pensado tão compactamente que não resta espaço para nada
que não coincida submissa e essencialmente com essa grandeza. Há
nisso um elemento de verdade, na medida em que a sociedade orga-
nizada pela dominação acaba se cristalizando em totalidades que
não deixam nenhuma liberdade para o individual: a totalidade é a
sua forma lógica. A fisiognomonia de Spengler tem o mérito de diri-
gir o olhar através do "sistema" sobre o individual, até mesmo onde
este individual se reveste de uma aparente liberdade, que entre-
tanto esconde atrás de si a mera dependência universal. Mas esse
mérito é contrabalançado pelo fato de que a insistência na depen-
dência universal dos momentos singulares, enquanto uma depen-
dência dos caracteres de express~o da totalidade da cultura, faz com
que desapareçam, em sua abrangência abstrata, as dependências
concretas e fortemente diferenciadas que decidem sobre a vida dos
homens. É por essa razão que Spengler joga a fisiognomonia contra
a causalidade. Se o tipo, descrito por Spengler, do homem das mas-
sas que reage a tudo passivamente aparece sem relação de causali-
dade no mesmo plano da concentração do poder, que na verdade,
enquanto categoria-chave do "sistema" e por meio deste sistema,
produz' e reproduz esse homem das massas, então é possível sim-
plificar relações sociais de dependência em relações de destino ou
em fases da cultura, e até mesmo ,atribuir metafisicamente a esse
homem das massas a vergonha a ele atribuída historicamente pelos
césares. O olhar fisiognomônico se perde por classificar os fenô-
menos em poucas rubricas invariantes. Em vez de se aprofundar
nos caracteres expressivos dos fenômenos, Spengler apressa-se em
vender rapidamente, com uma intensa propaganda, os fenômenos
arrematados a esmo.

55
THEODOR W. ADORNO

As ciências particulares são passadas em revista com o objeti-


vo de vendê-las a granel. Caso se quisesse enquadrar o próprio
Spengler no linguajar da civilização por ele denunciada, utilizando
sua maneira peculiar de expressão, dever-se-ia comparar O declínio
do Ocidente a um supermercado onde são oferecidos em liquidação
os frutos literários ressecados da massa falida da cultura, que os
agentes intelectuais arremataram a preço baixo. Nesse ponto revela-
se o impulso amargurado e repleto de ressentimentos do erudito
alemão de classe média, que pretende finalmente transformar o
tesouro de seu saber em capital, para investi-lo nos ramos mais
promissores - a indústria pesada, na época -- da economia. A per-
cepção do desamparo dos intelectuais liberais sob a sombra do
poder totalitário emergente faz de Spengler um desertor. Denun-
ciando-!ie a si mesmo, o espírito torna-se capaz de fornecer ideo-
logias antiideológicas. A proclamação spengleriana do declínio da
cultura esconde o desejo do autor. O espírito, que nega a si mesmo e
coloca-se ao lado do poder, espera pelo perdão. O ditado de Lessing
sobre um ho'mem chamado Kluge [Prudente], que era prudente
demais para ser prudente, realiza-se plenamente em Spengler. A
introdução· a O declínio do Ocidente contém uma passagem que
merecia tornar-se célebre: "Se sob a influência deste livro os homens
da nova geração passarem a se dedicar à técnica no lugar da lírica, à
Marinha no lugar da pintura, ou ainda à política no lugar da crítica
epistemológica, estarão fazendo assim o que eu desejo, e não é pos-
sível desejar nada de melhor para eles".
A partir dessa declaração, pode-se muito bem imaginar as pessoas
às quais ele respeitosa e submissamente se dirigia. Spengler sabe que
está unido a elas pela convicção de que já é tempo de tirar dos jovens
as veleidades do pensamento. São as mesmas pessoas que mais tarde
invocaram a Realpolitik. No ódio contra pinturas, poemas e filosofias
revela-se o medo profundo de que naquela situação "sem história"
que Spengler descreve com encanto arrepiante, uma situação onde
não há nenhum "problema político" e talvez nem mesmo haja uma
economia, a cultura, se não perecesse a tempo, pudesse deixar de ser
a fachada inofensiva que ele gostaria de pôr abaixo: o medo de que
ela pudesse denunciar as contradições, que não têm mais lugar na
infra-estrutura totalmente regulamentada. A cultura oficial dos paí-
ses fascistas provocou riso e incredulidade nas pessoas, e uma boa

56
PRISMAS

parte da oposição achou refúgio nos livros, igrejas e peças teatrais


dos autores clássicos, que eram tolerados por serem clássicos, e que
deixavam de ser clássicos ao serem tolerados. O veredito de Spengler
atinge indistintamente a cultura oficial e seu contrário: o expressio-
nismo e o cinema de entretenimento são mencionados na mesma
frase. O caráter indiferenciado do veredito está totalmente de acordo
com a postura dos donos do poder nos Estados totalitários, que des-
prezam as próprias mentiras, odeiam a verdade e somente con-
seguem dormir em paz quando mais ninguém ousa sonhar.
Aos olhos de seus opositores das ciências particulares - sobre-
tudo dos países anglo-saxões - , Spengler é um metafísico que
violenta a realidade com a arbitrariedade de suas construções
conceituais. Depois dos idealistas, que sentiam que ele negava o
progresso da consciência em direção à liberdade, Spengler não
encontrou adversários mais irritados do que os positivistas. Não há
dúvida de que sua filosofia realmente comete violências com o
mundo. Mas trata-se da mesma violência que lhe é feita efetiva-
mente a cada dia. A história, tão cheia de vida que até a idéia de pro-
gresso lhe pareceu por demais mecânica, parece por isso mesmo
ainda mais propensa a ser congelada no sistema de conceitos rígidos
de Spengler. Num primeiro olhar é muito difícil dizer se uma deter-
minada filosofia é metafísica º1:1 positivista. Às vezes, os próprios
metafísicos não são nada mais do que positivistas menos recal-
citrantes ou com uma visão mais ampla. Spengler seria de fato um
metafísico, como ele mesmo e seus inimigos afirmavam? Formal-
mente, se se atém à predominância do sistema conceituai sobre o
conteúdo empírico, à dificuldade ou impossibilidade de verificação
e aos conceitos auxiliares gosseiramente irracionalistas de sua teoria
do conhecimento, ele certamente é um metafísico. Mas, quando se
examina a substância desses conceitos, chega-se sempre a deside-
ratos positivistas, especialmente no culto dos "fatos". Spengler não
deixa passar nenhuma oportunidade de ridicularizar a "verdade",
qualquer que seja o seu significado, e de glorificar aquilo que é
assim e não assado, que deve ser registrado e aceito. "Mas na reali-
dade histórica não há ideais; há apenas fatos [... ] Não há nenhum
fundamento, nenhuma justiça, nenhuma compensação, nenhum fim
último; há apenas fatos - quem não compreende isso, que escreva
livros sobre política, mas não faça política."

57
THEODOR W. ADORNO

A compreensão essencialmente crítica da impotência da verdade


na história, tal como ela se desenrolou até o presente, a compreen-
são da preponderância do mero ente sobre todas as tentativas de
romper este círculo pela ação consciente transforma-se impercep-
tivelmente para Spengler em justificação do próprio mero ente. A
idéia de que o que existe, o que tem poder e consegue se impor,
poderia ser eventualmente injusto, irracional e absurdo é um pensa-
mento que não se encontra de modo algum na obra de Spengler, um
pensamento que ele proíbe a si mesmo e aos outros. Spengler é
tomado de raiva todas as vezes que a voz dessa impotência se levan-
t.1, mas apesar disso não tem nada para opor a ela, além de dizer de
uma vez por todas que essa voz é impotente. A doutrina de Hegel
sobre a racionalidade do real degenera em caricatura. O pathos
hegeliano do real pleno de sentido e do escárnio contra os reforma-
dores do mundo [Weltverbesserer] é conservado, enquanto ao mes-
mo tempo o pensamento da dominação nua e crua priva a realidade
da pretensão de sentido e razão, que consistia exatamente no funda-
mento do pathos hegeliano. Razão e não-razão da história são para
Spengler a mesma coisa, dominação pura, e o "fato" é para ele o
local onde esta dominação se manifesta.
Nietzsche, cujo tom senhorial Spengler imita incessantemente
(apesar de jamais renunciar, como Nietzsche o fez, à cumplicidade
com o mundo), afirma em certa passagem que Kant teria defendido
os preconceitos do homem comum contra a ciência com os meios da
própria ciência. Algo semelhante vale para Spengler. Ele utilizou as
armas da metafísica para defender a crença nos fatos e a docilidade
do positivismo contra as resistências críticas da própria metafísica.
Como um segundo Comte, Spengler fez do positivismo uma
metafísica, da submissão ao existente o amor ao destino, do "nadar a
favor da correnteza" um compasso cósmico, fez do absurdo o segre-
do, da falsificação da verdade uma verdade. Por isso a sua força.
Spengler faz parte daqueles teóricos do conservadorismo rea-
cionário cuja crítica do liberalismo mostra-se em muitos pontos
superior à crítica progressista. Valeria a pena investigar o porquê. As
diferenças quanto à ideologia são um aspecto decisivo. Aos olhos da
crítica histórico-dialética, a ideologia liberal aparece em geral como
uma falsa promessa. Os porta-vozes dessa crítica não questionavam
os ideais de humanidade, liberdade e justiça, mas sim a pretensão da

58
PRISMAS

sociedade burguesa de se apresentar como a realização destes ideais.


Para eles as ideologias eram aparências, mas aparências da verdade.
Com isso, um reflexo conciliador recai, senão sobre a realidade
existente, pelo menos sobre as suas "tendências objetivas". O dis-
curso sobre o crescimento dos antagonismos e o reconhecimento da
possibilidade real da recaída na barbárie foram levados tão a sério
que as ideologias quase foram vistas como algo pior do que disfar-
ces apologéticos, ou seja, como o contra-senso que ajudaria a trans-
formar a sociedade da livre concorrência na sociedade da opressão
imediata. A questão, por exemplo, de como exatamente essas ideo-
logias deveriam modificar a situação existente, cujo fardo elas têm
de suportar, quase não foi colocada. Conceitos como os de "massa"
e "cultura" continuaram sendo aceitos positivamente, sem que se
tenha ao menos percebido sua dialética, ou mesmo o fato de que a
categoria específica de "massa" tenha sido produzida no estágio
atual da sociedade, simultaneamente à transformação da cultura em
um sistema de controle. Tampouco chegaram a ter consciência de
que as "idéias" na sua forma abstrata não apenas expõem a verdade
regulativa, mas também padecem elas próprias da injustiça sob cujo
signo são pensadas.
Para os que se encontravam à direita era mais fácil perceber o
que estava por trás das ideologias, já que estes não se interessavam
pela verdade que nelas está conr"ida sob uma forma falsa. Os advo-
gados dos fortes, para quem humanidade, justiça e liberdade nada
mais representam do que uma fraude concebida pelos fracos para se
protegerem contra os fortes - e nisso os teóricos da reação alemã
seguiam geralmente Nietzsche - , podem perfeitamente apontar a
contradição existente entre essas idéias, previamente atrofiadas, e a
realidade. A crítica às ideologias volta-se sobre si mesma: Ela vive
do desl'ocamento da percepção da realidade perversa para a perver-
sidade das idéias, que deve ser demonstrada pelo fato de as idéias
não terem se efetivado. O que empresta a essa crítica unilateral sua
força de conhecimento é sua profÚnda cumplicidade com os pode-
res constituídos. Spengler e seus semelhantes são menos os profetas
do caminho tomado pelo espírito do mundo do que seus diligentes
promotores.
Já na forma do prognóstico está implícita a disposição sobre os
homens como afirmação da impotência deles próprios. A teoria que

59
THEODOR W. ADORNO

espera tudo dos homens e de suas atuações, que não conta mais com
"relações de forças" políticas, mas que quer pôr um fim no "jogo de
forças", não se dedica a fazer profecias. Spengler diz que o impor-
tante na história é contar, na mais alta medida, com incógnitas. Mas
as incógnitas da humanidade são justamente aquilo com o que não
se pode contar. A história não é uma equação, não é um juízo analí-
tico. A concepção que afirmasse isso eliminaria já de antemão a pos-
sibilidade do outro. A previsão spengleriana da história remete aos
mitos de Tântalo e Sísifo e às sentenças dos oráculos, que desde os
tempos antigos anunciam o mal. Spengler é mais um adivinho do
que um profeta. Na adivinhação gigantesca e destrutiva, o pequeno-
burguês triunfa.
A morfologia da história universal serve, em Spengler, aos mes-
mos propósitos aos quais serve a grafologia em Klages. No desejo
do pequeno-burguês de adivinhar o passado pela análise grafológica
e o destino pelas cartas esconde-se exatamente aquilo que Spengler
cinicamente d~nuncia nas vítimas: a renúncia à autodeterminação
consciente. Ele se identifica com o poder, mas sua teoria ao mesmo
tempo trai, por sua configuração adivinhatória, a impotência da
identificação'. Spengler está tão seguro de sua causa quanto o carras-
co após a sentença ter sido pronunciada pelos juízes. Na fórmula
histórico-filosófica do mundo perpetuam-se não apenas as fraque-
zas alheias, mas também as próprias.
Talvez uma tal caracterização do modo de pensar de Spengler
permita algumas considerações de princípio a propósito de sua crí-
tica. A sua metafísica é positivista por se resignar àquilo que é da
maneira como é, por excluir qualquer possibilidade e pelo ódio con-
tra todo pensamento que leva a sério o possível em sua oposição ao
real. Em um ponto decisivo, entretanto, Spengler rompe com esse
positivismo - e de tal maneira que alguns dos seus comentaristas
teológicos acreditaram poder reivindicá-lo como um companheiro.
Trata-se da concepção de Spengler sobre a força motriz da história,
a "Seelentum": a índole enigmática, completamente interior e inex-
plicável, de um tipo particular de homem ou, como Spengler oca-
sionalmente o chama, de uma "raça", que inexplicavelmente aparece
de quando em quando na história.
Apesar de toda a crença nos fatos e de todo o ceticismo rela-
tivista, um princípio metafísico é evocado para a explicação última

60
PRISMAS

da dinâmica histórica; um princ1p10 que estaria prox1mo, como


Spengler freqüentemente afirmava, do conceito leibniziano de
entelequia, e assim também daquilo que Goethe denominou
"gepragte Form, die lebend sich entwickelt" [forma elaborada que
se desenvolve vivendo]. Essa metafísica da alma coletiva que, como
uma planta, se desenvolve e depois definha aproxima Spengler de
filósofos vitalistas como Nietzsche, Simmel e mesmo Bergson, que
ele condenava. Para Spengler, com seu procedimento tático, falar de
alma e de vida é um bem-aceito expediente para denunciar o mate-
rialismo como algo superficial, que ele na verdade apenas rejeita por
não considerá-lo suficientemente positivista, e porque o materialis-
mo gostaria que o mundo fosse diferente do que é.
Mas a metafísica da Seelentum tem ainda conseqüências de
maior alcance do que as conseqüências táticas. Poder-se-ia até falar
de uma filosofia latente da identidade. Exagerando-se um pouco,
poder-se-ia dizer que a história do mundo torna-se história do esti-
lo: os destinos históricos da humanidade são tanto o produto de sua
interioridade quanto as obras de arte. O homem apegado aos fatos
desconhece o papel das necessidades vitais na história. O conflito do
homem com a natureza, que produz a tendência de dominação da
natureza, que por sua vez se prolonga na dominação do homem
pelo homem, não é tratado em O declínio do Ocidente. Spengler não
vê quanto a fatalidade histórica, ·que absorve toda a sua atenção, é o
resultado da coação ao conflito com a natureza. Spengler estetiza a
imagem da história. A economia se transforma, como a arte, em um
"mundo de formas"; uma esfera de mera expressão da alma configu-
rada assim e não de outra maneira, que se constitui essencialmente
como algo que não depende da exigência de reprodução da vida.
Não é por acaso que, no tocante à vida econômica, a compreen-
são de Spengler permaneceu desalentadoramente diletante. Ele fala
da onipotência do dinheiro no mesmo tom com que um agitador
pequeno-burguês vocifera contra a conspiração mundial da bolsa.
Ele desconhece que para a vida ec~nômica o fator decisivo sempre
foi a produção, e não o meio de troca. Spengler é tão fascinado pela
fachada monetária e pela "força simbólica" do dinheiro que faz do
símbolo a própria coisa. Ele acusava até os partidos operários - em
flagrante oposição a todos os programas - de não pretenderem
"superar os valores monetários, mas sim possuí-los". Economia

61
THEODOR W. ADORNO

escravista, proletariado industrial e economia mecanizada não pos-


suem, enquanto categorias, diferenças fundamentais em relação a
categorias como as de artes plásticas, polifonia musical ou cálculo
infinitesimal. Elas evaporam até se tornarem signos de algo mera-
mente interior. Embora as conexões que Spengler estabelece entre
as categorias heterogêneas de realidade e de imagem freqüentemente
focalizem de maneira surpreendente a unidade das épocas histó-
ricas, acabam deixando escapar neste processo tudo o que não per-
tence, livre e autonomamente, às faculdades humanas de expressão.
Apenas em discursos vagos sobre correlações cósmicas sobrevive em
Spengler algo que não se deixa reduzir, enquanto símbolo, à natureza
humana, vista por ele como soberana, apesar de todo fatalismo.
É assim que o mundo fatal da concepção spengleriana de his-
tória se transfigura em um reino da liberdade. Mas o é apenas na
aparência. Forma-se uma constelação altamente paradoxal: justa-
mente porque para Spengler tudo o que é externo se converte em
imagem de algo interior, e porque não se encontra em sua obra
qualquer processo, propriamente dito, entre sujeito e objeto, o
mundo parece crescer organicamente a partir da substância da alma,
como a plan'ta a partir da semente. A história, reduzida desse modo
à essência da alma, assume um caráter fechado em si mesmo, com
o aspecto de uma forma perfeita, mas por isso mesmo um caráter
propriamente determinista. Karl Joel, em sua crítica publicada no
número especial da revista Logos dedicado a Spengler, explica que
"toda a doença desse importante livro consiste no fato de ele ter se
esquecido do homem, de sua criatividade e liberdade. Apesar de
toda interiorização, a história é desumanizada em uma conseqüên-
cia de processos tipicamente naturais; apesar da onipresença da
alma, o livro corporaliza o processo histórico ao querer apresentar a
sua 'morfologia' e a sua 'fisiognomonia' e com isso comparar suas
figuras exteriores, suas formas de expressão, e os traços particulares
de seus fenômenos".
Não é "apesar de toda interiorização", contudo, que a história
é desumanizada, ela o é justamente em virtude de sua interioriza-
ção. A natureza, com a qual o homem sempre se defronta no decor-
rer da história, é soberanamente deixada de lado pela filosofia de
Spengler. Com isso, a própria história transforma-se em segunda
natureza, cega, fatal e inexorável como qualquer vida vegetal. O que

62
PRISMAS

se poderia chamar de liberdade do homem constitui-se apenas nas


tentativas humanas de romper com a coação da natureza. Se ela é
ignorada, o mundo é transformado em uma mera configuração da
essência pura do homem, e assim a liberdade se perde na total huma-
nidade da história; se ela é posta como absoluto e a Seelentum é ele-
vada a princípio dominante, esta cai diante da mera existência.
A hybris da concepção spengleriana de história e sua degradação
do homem são, na verdade, a mesma coisa. Cultura não significa,
como na obra de Spengler, a vida de almas coletivas em desenvolvi-
mento, mas sim algo gerado na luta do homem pelas condições de
sua reprodução. A cultura contém, por isso, um elemento de con-
tradição em relação à necessidade cega: a vontade de autodetermi-
nação a partir do entendimento. Spengler afasta a cultura desse
impulso de sobrevivência inerente à humanidade. A cultura torna-
se, para ele, um jogo da alma consigo mesma. Mas Spengler equa-
ciona o fantasma da cultura, produto da mera interioridade, com as
forças históricas reais, ou melhor, com as forças naturais, pois as
outras são excluídas, junto com a realidade, único lugar onde aque-
las forças poderiam ser postas à prova.
Mas é justamente por isso que o idealismo spengleriano coloca-
se a serviço da filosofia do poder. A cultura torna-se imanente à
própria dominação; o processo que se origina em mera interiori-
dade e necessariamente termina em mera interioridade transforma-
se em destino, e a história se desintegra naquela atemporalidade da
ascensão e queda das culturas, que Spengler atribui às civilizações
tardias e que está na base de seu próprio plano mundial. O elemen-
to na cultura que resiste a ser absorvido pela natureza é escamo-
teado. Seelentum pura e dominação pura são a mesma coisa, assim
como em Spengler a alma domina brutal e implacavelmente os seus
portado'res. A história real é transfigurada ideologicamente em
história da alma, pois somente assim tudo aquilo que há de antitéti-
co e de revolta no homem, sua consciência, sucumbe plenamente à
necessidade cega. Spengler pôs à pr~va, uma última vez, a afinidade
entre o idealismo absoluto - a doutrina da Seelentum é herança de
Schelling - e a mitologia demoníaca. Em certas passagens excêntri-
cas, pode-se tocar com as mãos a propensão mítica. A periodicidade
regular de certos eventos, como lemos em uma nota de rodapé do
segundo volume, "é mais uma indicação de que os fluxos cósmicos

63
THEODOR W. ADORNO

na forma de vida humana presentes na superfície de um pequeno


corpo celeste não são algo consistente em si, mas algo que está em
sintonia com o movimento infinito do universo. Em um pequeno
e interessante livro de R. Mewes, Die Kriegs und Geistesperioden
im Volkerleben und die Verkündingung des nachsten Weltkrieges
[Os períodos de guerra e de idéias na vida dos povos e o anúncio
da próxima Guerra Mundial] (1896 ), é estabelecida a afinidade dos
períodos de guerra com certos períodos do clima, com manchas
solares e constelações dos planetas, e em conseqüência disso foi
feita a previsão de uma grande guerra para os anos de 191 O a 1920.
Mas estas e inúmeras outras conexões semelhantes que entram no
âmbito de nossos sentidos ocultam um mistério que somos obri-
gados a respeitar".
Apesar de todo o seu desprezo pela mística civilizatória, Spengler
aproxima-se muito, em tais formulações, da superstição astrológica.
Assim termina a glorificação da alma.
O retorno do eterno mesmo, no qual termina essa doutrina do
destino, nada mais é do que a reprodução perpétua da dívida do
homem para com o homem. No conceito de "destino", que submete
o próprió homem a uma dominação cega, reflete-se a dominação
exercida pelos homens. Cada vez que Spengler fala de destino, trata-
se da subjugação de um grupo de homens por outro. A metafísica da
alma vai ao encontro do positivismo para hipostasiar como algo•
eterno e inexorável o princípio da dominação que se reproduz inin-
terruptamente. A inexorabilidade do destino é na verdade definida
pela dominação e pela injustiça, e isso é escamoteado pela ordem,
mundial de Spengler. A justiça aparece em sua obra como a antítese
proscrita do destino. Em uma de suas passagens mais brutais, uma
paródia involuntária de Nietzsche, Spengler lamenta "que o senti-
mento mundial em relação à raça; o sentido político, e portanto
nacional, dos fatos - 'right or wrong, my country' -; a decisão de
ser sujeito e não objeto do desenvolvimento histórico - pois não há
uma terceira possibilidade -; em suma, a vontade de potência,
sejam vencidos por uma tendência cujos líderes na maioria das
vezes são homens desprovidos de criatividade, e por isso obcecados
pela lógica, que se sentem em casa num mundo de verdades, ideais e
utopias, homens de cultura livresca que acreditam poder substituir
o real pelo lógico, a violência dos fatos por uma justiça abstrata, e o

64
PRISMAS

destino pela razão. Isso começa com os homens eternamente ame-


drontados, que se retiram do mundo real para os mosteiros, gabine-
tes de estudos e comunidades espirituais, proclamando a indiferença
para com a história universal, e termina, em toda cultura, nos após-
tolos da paz mundial. Cada povo produz este tipo de entulho, enten-
dido aqui de um ponto de vista histórico. Fisiognomonicamente,
já as cabeças formam um grupo à parte. Elas ocupam uma alta posi-
ção na 'história do espírito' - encontramos aí uma enorme série de
nomes famosos - mas, do ponto de vista da história real, essas pes-
soas valem muito pouco".
Resistir a Spengler significa portanto suspender [aufheben] his-
toricamente o "ponto de vista da história real", que não é nenhuma
história, mas natureza ruim, e realizar o historicamente possível,
chamado por Spengler de impossível, porque ainda não se realizou.
A crítica contundente de James Shotwell vai ao fundo da questão:
"Até hoje, o inverno sempre sucedeu ao outono, porque a vida se
repetia em ciclos e se desenrolava no espaço limitado de uma eco-
nomia autárquica. O intercâmbio entre as diferentes sociedades
assumia um caráter mais predatório do que estimulante, porque a
humanidade ainda não havia encontrado nenhum meio, para a
conservação da cultura, que não dependesse excessivamente de pes-
soas que não contribuíam em nada para seus benefícios materiais.
Das primeiras pilhagens selvagens e da escravidão até os proble-
mas industriais dos nossos dias, todas as culturas foram construídas
sobre falsos fundamentos económicos e sustentadas em casuísmos
morais e religiosos também falsos. Faltava-lhes o equilíbrio interno,
pois tinham como ponto de partida a injustiça da exploração. Não
há razão para supor que a moderna cultura deva forçosamente repe-
tir esse ritmo cíclico".
Ess.t intuição torna possível implodir toda a concepção spen-
gleriana de história. Se o declínio da Antigüidade foi ditado pela
necessidade autónoma da vida e pela expressão de sua Seelentum,
então este declínio assume de fato Ó aspecto de destino, e pode-se
facilmente transpor os traços da fatalidade para a situação atual.
Mas se o declínio da Antigüidade deve ser entendido, no sentido
das palavras de Shotwell, a partir do sistema latifundiário improdu-
tivo e da economia escravista a ele relacionada, então, quando se
consegue superar essas e outras formas semelhantes de dominação,

65
THEODOR W. ADORNO

é possível tomar as rédeas do destino. Assim, a estrutura universal


de Spengler revela-se como uma falsa conclusão por analogia, pois é
feita a partir de uma única ocorrência.
É óbvio que isso envolve mais do que a crença no progresso
contínuo e na sobrevivência da cultura. Spengler enfatizou de tal
forma o caráter natural da cultura que toda confiança em sua força
conciliatória deveria ter sido de uma vez por todas abalada. Ele
demonstrou mais peremptoriamente que qualquer outro pensador
o modo como o caráter natural da cultura leva reiteradamente ao
declínio e como a própria cultura, enquanto forma e ordem, é cúm-
plice da dominação cega que, em permanente crise, é fatal para si
mesma e para suas vítimas. O que pertence à cultura traz a marca da
morte - negar isso seria permanecer impotente diante de Spengler,
que revelou os segredos da cultura tanto quanto Hitler revelou os
da propaganda.
Para escapar do círculo mágico da morfologia de Spengler não
é suficiente difamar a barbárie e confiar na saúde da cultura -
Spengler poderia sorrir com desprezo diante dessa confiança ingê-
nua. Mais do que isso, seria necessário reconhecer os elementos de
barbárie ha própria cultura. Apenas considerações nesse sentido
teriam uma chance de sobreviver ao veredito de Spengler, que não
desafia menos a idéia de cultura do que a realidade da barbárie. A
concepção spengleriana de uma alma vegetativa da cultura, o "estar.
em forma" vital, o arcaico mundo simbólico inconsciente, em cuja
força expressiva ele se embriaga, todos esses testemunhos de uma
vida que glorifica a si mesma são mensageiros da fatalidade, onde,
quer que eles apareçam na realidade. Pois todos são testemunhas da
coação e do sacrifício que a cultura impõe aos homens. Confiar
nela e negar o declínio significaria apenas sucumbir ainda mais pro-
fundamente ao seu enredo mortal. Significaria ao mesmo tempo a
vontade de restaurar aquilo que já foi condenado por esse veredito
da história, veredito que para Spengler é algo definitivo. A história
universal, ao executar a sua sentença, faz justiça ao que foi conde-
nado com justiça, precisamente por sua irrevocabilidade.
O atento olhar de caçador de Spengler, que mira impiedosa-
mente as cidades da humanidade como se estas fossem regiões sel-
vagens, o que elas são, deixou escapar algo: as forças liberadas na
queda. "Wie scheint doch alles werdende so krank" [Como parece

66
PRISMAS

doente tudo que está em devir] - a frase do poeta Georg Trakl trans-
cende a paisagem spengleriana. Em um mundo onde a vida é violen-
ta e opressora, a decadência torna-se o refúgio de algo melhor, que
se recusa a acompanhar essa vida, sua cultura, crueza e sublimidade.
Os impotentes, que segundo o mandamento de Spengler serão mar-
ginalizados e aniquilados pela história, incorporam negativamente
na negatividade dessa cultura tudo aquilo que promete romper os
seus ditames e pôr fim ao horror dessa pré-história da humanidade,
mesmo que não tenha forças para tanto. No protesto dos impoten-
tes está a única esperança de o destino e o poder não ficarem com a
última palavra. O que se opõe ao declínio do Ocidente não é a cul-
tura ressurrecta, mas a utopia contida, em um questionamento sem
palavras, na imagem da que sucumbe.

67
O ataque de Veblen à cultura::•

A Teoria da classe ociosa de Veblen ficou famosa pela tese do "con-


sumo conspícuo", segundo a qual o consumo de bens teria em larga
medida servido, desde um primitivo estágio "predatório" da histó-
ria até o presente, não para a satisfação das verdadeiras necessidades
humanas, que Veblen prefere chamar de "plenitude da vida", mas
sim para a manutenção do prestígio social, do "status". A partir da
crítica do consumo de bens como mera ostentação, ele chegou a
conclusões que se aproximam muito, do ponto de vista estético,
daquelas da Neue Sachlichkeit- como as que foram formuladas na
mesma época por Adolf Loos - e, do ponto de vista prático, das
idéias da tecnocracia. Os elementos historicamente efetivos da
sociologia de Veblen, porém, não circunscrevem adequadamente os
impulsos objetivos de seu pensamento, que se dirigem contra o
caráter bárbaro da cultura. A expressão "barbarian culture", que
aparece já na primeira frase do livro, é apresentada insistentemente
como uma máscara ritual, por toda a obra principal de Veblen. Ape-
sar de essa expressão se referir especificamente a uma certa fase da
história - uma fase, é verdade, de dimensões incomuns, pois vai
dos caçadores e guerreiros ancestrais aos senhores feudais e monar-
cas absolutos, deixando propositadamente tênue sua fronteira com
a era capitalista - , fica nítida, em inúmeras passagens, a intenção
de denunciar a Modernidade como sendo bárbara, justamente onde

,:- Conferência apresentada no Instituto de Pesquisa Social em Nova York, outono de


1941, publicada em inglês em Studies in Philosophy and Social Science, 1941, em alemão
emDerMonat, 1953.

69
THEODOR W. ADORNO

ela reivindica enfaticamente o título de cultura. Os próprios tra-


ços que a Modernidade ressalta ao se apresentar como uma era que
escapou à utilidade nua e crua, uma era digna do homem, são vistos
como relíquias de épocas históricas há muito superadas. Para
Veblen, a emancipação do reino dos fins não é outra coisa senão o
índice de uma ausência de fins, derivada do fato de que as "institui-
ções" culturais - a linguagem filosófica alemã deveria traduzir o
conceito vebleniano de "institution" por "forma de consciência"
[" Bewustseinsform"], e não por "instituição" [" Einrichtung"]; ele
mesmo definiu uma vez "institutions" como "habits of thought" -
e os feitios antropológicos não se modificariam no mesmo tempo e
no mesmo sentido das mudanças nos modos econômicos de pro-
dução, mas sim estariam sempre atrasados e em determinados perío-
dos e111 aberta contradição com estes. Caso o pensamento de Veblen
seja seguido em seus rumos, e não em suas formulações oscilantes
entre a raiva e a prudência, as características da cultura nas quais a
cobiça, a busca de vantagens e a limitação à mera imediatidade pare-
cem ser superadas passam a ser apenas os resíduos de formas objeti-
vamente obsoletas de cobiça, busca de vantagens e má imediatidade.
Elas se ori-ginam da necessidade de provar aos homens que as con-
siderações da vida prática foram dispensadas, que alguém pode gas-
tar o seu tempo com coisas sem utilidade imediata, para com isso
mesmo elevar sua posição na hierarquia social e fortalecer o seu
poder sobre outras pessoas. A guinada da cultura contra a utilidade
ocorre em razão de uma utilidade mediada. A cultura traz as mar-
cas da mentira na qual baseia sua própria vida. Seguindo as pistas
dessa mentira, Veblen mostra uma persistência semelhante à de seu
contemporâneo Sigmund Freud na investigação dos "resíduos do
mundo fenomênico". Sob o olhar sombrio de Veblen, a bengala de
passeio e a relva, os árbitros esportivos e os animais domésticos
tornam-se alegorias que traem o aspecto bárbaro da cultura.
Por causa deste seu método, e não apenas em razão de suas
idéias, Veblen foi difamado como destrutivo, louco e outsider.
Quando era professor em Chicago, provocou um escândalo acadê-
mico que levou a sua demissão. Ao mesmo tempo, entretanto, sua
teoria foi assimilada, e encontra hoje uma ampla aceitação oficial.
Sua terminologia marcante chegou até mesmo às publicações jorna-
lísticas. Seria possível reconhecer em tudo isso a tendência objetiva

70
PRISMAS

de neutralizar, pela aceitação de suas idéias, o veneno de um opo-


nente desagradável. Mas o pensamento de Veblen não contradiz
totalmente essa recepção. Ele é menos outsider do que num primeiro
momento possa parecer. Para investigar sua genealogia intelectual
seria preciso indicar três fontes. A primeira e mais importante é o
pragmatismo americano. Veblen pertence inteiramente a essa antiga
tradição, que possui um certo tom darwinista. O capítulo central de
sua obra mais importante começa da seguinte maneira: "A vida do
homem em sociedade, assim como a vida de outras espécies, é uma
luta pela existência, e, portanto, um processo de adaptação seletiva.
A evolução da estrutura social foi um processo de seleção natural de
instituições. O progresso que houve e está havendo nas instituições
e no caráter humanos pode ser atribuído amplamente a uma seleção
natural dos hábitos de pensamento mais ajustados e a um processo
de adaptação forçada dos indivíduos ao meio, que mudou progres-
sivamente com o crescimento da comunidade e com as instituições
em mudança sob as quais o homem vivia". No centro de todo o seu
raciocínio está o conceito de "adaptação" ou "ajuste". O homem é
submetido à vida como se esta fosse um experimento estipulado por
um chefe de laboratório desconhecido: espera-se que ele se adapte
às condições históricas e naturais impostas, para que tenha reais
possibilidades de sobrevivência. Os pensamentos são considerados
verdadeiros na medida em que favorecem a adaptação e contribuem
para a sobrevivência da espécie. As críticas de Veblen visam sempre
as falhas na adaptação. Ele percebe muito bem as dificuldades que a
tese da adaptação enfrenta no âmbito social, pois sabe que as con-
dições às quais os homens devem se adaptar são em larga medida
produzidas socialmente; sabe ainda que existe uma interação entre
as condições internas e as externas e que a adaptação pode reforçar
relações reificadas. Essa percepção faz com que ele modifique e
aperfeiçoe continuamente sua teoria da adaptação, mas quase nunca
o leva a pôr em questão a necessidade absoluta da adaptação
enquanto tal. Progresso é adaptação, nada mais. Veblen se recusa a
ver que a constituição interna desse conceito e sua dignidade pode-
riam ser qualitativamente diferentes nos seres dotados de consciên-
cia e no contexto cego da natureza. A harmonia entre essa posição
fundamental de Veblen e o clima intelectual que o rodeava facilitou
em grande parte a recepção de suas heresias.

71
THEODOR W. ADORNO

Mas o conteúdo específico de sua teoria da adaptação remete a


uma segunda fonte do positivismo tradicional, à escola de Saint-
Simon, Comte e Spencer. O mundo ao qual os homens de Veblen
devem se adaptar é o mundo da técnica industrial. Assim como
Saint-Simon e Comte, Veblen defende a supremacia da técnica. Na
sua opinião, progresso significa concretamente a adaptação das
formas de consciência e de "vida", enquanto esferas de consumo, à
técnica industrial. O meio para isso é o pensamento científico,
considerado por Veblen como a aplicação universal do princípio
da causalidade, em oposição aos resquícios animistas. Pensamento
causal significa para ele o triunfo das relações objetivas e regulares,
concebidas a partir do trabalho industrial, sobre as concepções
personalistas e antropomórficas. É necessário, sobretudo, eliminar
qualqu,er noção de teleologia. A concepção de história como um
progresso lento e irregular, mas em si ininterrupto, de adaptação e
desencantamento do mundo corresponde a uma teoria de classi-
ficação dos estágios históricos não muito diferente daquela defen-
dida por Cómte. Nesse contexto, Veblen por vezes sugere que
espera para a próxima fase histórica a abolição da propriedade pri-
vada dos meios de produção. Isso remete a Marx como a terceira
fonte de seu pensamento. A posição de Veblen diante do marxis-
mo é controversa. A sua crítica não é uma crítica da economia
política da sociedade burguesa a partir de seus pressupostos, mas
uma crítica de sua vida não-econômica. O constante recurso à
psicologia e aos "hábitos de pensamento" para a explicação de
fatos econômicos é incompatível com a objetiva teoria do valor
marxista. Entretanto, Veblen incorporou em sua visão fundamen-
talmente pragmatista todas as teorias secundárias do marxismo às
quais teve acesso. Basta pensar na origem de categorias específicas
como as de "gasto conspícuo" e "reversão". A idéia de um consu-
mo que ocorre não em função de si mesmo, mas basicamente como
um reflexo das qualidades sociais dos objetos de troca, é parente
da teoria marxista do caráter fetichista da mercadoria. A tese da
"reversão", a regressão forçada a formas obsoletas de consciência
sob a pressão de condições econômicas, é no mínimo devedora de
algumas idéias de Marx. Em Veblen, assim como em Dewey, a ten-
tativa de compreender os antagonismos do processo de adaptação,
concebido de modo pragmatista, acabou produzindo motivos

72
PRISMAS

dialéticos. O seu pensamento é um amálgama de positivismo e mate-


rialismo histórico.
Uma fórmula como esta, porém, contribui muito pouco para a
compreensão do núcleo de sua teoria. O importante é a força que
mantém esses motivos coesos. A experiência fundamental de Veblen
poderia ser caracterizada como a experiência de uma falsa unidade.
Quanto mais avança a produção industrial em massa e a distribuição
organizada de bens que se assemelham uns aos outros, tanto menos
a ordem técnico-econômica da vida admite a individuação do hic et
nunc baseado no modo de produção artesanal, e tanto mais a apa-
rência deste hic et nunc, daquilo que não pode ser substituído por
outros objetos, torna-se mentira. A pretensão de cada coisa à singu-
laridade, uma pretensão sempre exagerada no interesse da venda,
parece zombar de uma situação da humanidade na qual todos estão
submetidos ao princípio da igualdade. Veblen não consegue supor-
tar esse sarcasmo. Ele insiste energicamente que o mundo poderia
apresentar-se a si mesmo nesta igualdade abstrata de seus objetos,
predeterminada pelas relações de produção. Quando argumenta a
favor de uma organização racional do consumo, Veblen na verdade
está exigindo que a produção em massa, que calcula de antemão o
comprador como seu objeto, mostre sua face verdadeira na esfera
do consumo. A partir do momer:ito em que "deliciously different" e
"quaint" se transformaram em fórmulas estandardizadas de propa-
ganda, a experiência de Veblen tornou-se um lugar-comum. Ele foi
o primeiro, entretanto, a alcançá-la espontaneamente, reconhecendo
a falsa individualidade das coisas, muito antes de o procedimento
técnico-industrial dar cabo da individualidade. Ele decifrou a menti-
ra do particular na inconsistência dos próprios objetos: na contra-
dição entre sua forma e sua função. Com certo exagero, poder-se-ia
dizer que ele viu no kitsch do século XIX, na forma da ostentação 1,
a imagem de uma futura dominação autoritária. Ele notou no kitsch
uma dimensão que escapou aos crí;icos estéticos, mas que pode sem
dúvida contribuir para explicar a expressão de catástrofe chocante
que tantos edifícios e intérieurs do século XIX assumem hoje em
dia: a expressão da opressão. Sob o olhar de Veblen, os ornamentos
transformam-se em ameaças, na medida em que se assemelham a
antigos modelos de repressão. Em nenhum lugar ele diz isso com
tanta clareza quanto em uma passagem dedicada à discussão de

73
THEODOR W. ADORNO

obras beneficentes. "Certos recursos, por exemplo, talvez tenham


sido separados para a fundação de um orfanato ou um retiro para
inválidos. O desvio da despesa para gasto honorífico nesses casos
não é incomum o bastante para causar surpresa nem mesmo pro-
vocar um sorriso. Uma parcela apreciável dos recursos é gasta na
construção de um edifício revestido com alguma pedra esteticamen-
te questionável mas cara, coberta com detalhes grotescos e incon-
gruentes, e projetado, em suas paredes e torres ameadas e em seus
portais maciços e vias de acesso estratégicas, para sugerir certos
métodos bárbaros de guerra." A ênfase no aspecto ameaçador da
pompa e da ornamentação está a serviço da filosofia da história de
Veblen. Para sua crença no progresso, as imagens da barbárie agres-
siva que ele viu no kitsch do século XIX, especialmente no estilo
decorativo das décadas após 1870, representavam resquícios de épo-
cas passadas ou indícios da regressão dos que não produziam por si
mesmos, dos que não participavam no processo de trabalho indus-
trial. Mas esses mesmos traços considerados arcaicos são os indícios
do horror vindouro. Sua triste inervação desautoriza a mentalidade
confiante no progresso. Em Veblen, a história da humanidade to-
mou formà na antecipação de sua fase mais terrível. O choque que
ele experimentou ao ver asilos para crianças abandonadas construí-
dos à maneira de castelos medievais tornou-se realidade histórica na
"Casa Columbus", a câmara de tortura dos nacional-socialistas,
construída segundo o estilo da Neue Sachlichkeit. Veblen hipostasia
a dominação total. Toda a cultura da humanidade torna-se para ele a
imagem distorcida do mais puro horror. O que explica e justifica a
injustiça que Veblen comete com a cultura é a fascinação pela des-
graça. Se hoje em dia a cultura assumiu o caráter de propaganda,
de mera argamassa, em Veblen ela nunca foi outra coisa além de
propaganda e exibição de poder, roubo e lucro. Com uma misan-
tropia grandiosa, ele deixa de lado tudo aquilo que na cultura con-
segue superar essa situação. O estilhaço no seu olho torna-se o meio
de perceber os vestígios de sangue da injustiça até mesmo na ima-
gem da felicidade. Em nome de uma disposição ilimitada sobre a
história dos homens, as metrópoles do século XIX reuniram, de
maneira fraudulenta, as colunas dos templos áticos, as catedrais
góticas e os imponentes palácios das cidades-Estado italianas. Mas
Veblen dá o troco: os templos, catedrais e palácios autênticos são

74
PRISMAS

para ele tão falsos quanto as imitações. A história universal é a


exposição universal. Ele explica a cultura a partir do kitsch, e não o
contrário. Sua generalização de uma situação na qual a cultura é
absorvida pela propaganda foi formulada concisamente por Stuart
Chase, no prefácio à Teoria da classe ociosa: "As pessoas acima do
nível da mera subsistência, nesta época e em todas as épocas ante-
riores, não usam o excedente, que receberam da sociedade, para fins
úteis". A propósito de "todas as épocas anteriores", Veblen sonega
tudo o que não se assemelha à "business culture" atual: a crença no
poder real de cerimônias rituais; o motivo da sexualidade e sua sim-
bólica (a sexualidade não é mencionada nenhuma vez na Teoria da
classe ociosa); o impulso de expressão artística e todo anseio de esca-
par à escravidão dos meios. Contra sua vontade, o inimigo mortal
e pragmático de qualquer teleologia procede segundo o esquema de
uma teleologia satânica. Para sua inteligência perspicaz, o raciona-
lismo mais grosseiro é bom o suficiente para trazer à luz do dia a
dominação total dos fetiches sobre o pretenso reino da liberdade. A
concreção, que dá unidade à monotonia do que depende da natu-
reza, perverte-se em produto de massa, que enfatiza a pretensão
falaciosa de ser algo concreto.
O olhar maligno de Veblen é fecundo. Atinge fenômenos que
são ignorados ou subestimados quando as pessoas os consideram
condescendentemente como mera fachada da sociedade, o que dis-
pensa uma maior atenção. Um desses f enômenos é o esporte.
Veblen o caracteriza sucintamente como irrupção da violência, da
opressão e do espírito predatório. E isso vale para qualquer tipo
de esporte, das atividades esportivas infantis e da ginástica nas uni-
versidades até as grandes ostentações esportivas que mais tarde
floresceram nos Estados ditatoriais de ambos os tipos: "Es~as mani-
festaçõl:!s de temperamento predatório devem todas ser classificadas
sob o título de façanhas. São em parte expressões simples e irrefleti-
das de uma atitude de ferocidade competitiva, em parte atividades
assumidas deliberadamente com o'objetivo de ganhar reputação de
bravura. Os esportes de todo tipo têm o mesmo caráter geral". A
paixão esportiva é, segundo Veblen, de natureza regressiva: "A base
de uma inclinação para os esportes é uma constituição espiritual
arcaica". Mas nada é mais moderno do que esse arcaísmo: as organi-
zações esportivas foram os modelos das manifestações de massa dos

75
THEODOR W. ADORNO

Estados totalitários. Enquanto excessos tolerados, elas combinam o


momento da crueldade e da agressão com os conteúdos disciplina-
dores e autoritários das regras de jogo: são legais como os pogroms
da democracia popular e da Alemanha nazista. Veblen percebe a
afinidade entre o excesso esportivo e a camada dos líderes manipu-
ladores: "Se uma pessoa tão dotada de inclinação por façanhas está
na posição de orientar o desenvolvimento de hábitos nos membros
adolescentes da comunidade, a influência que ela exerce no sentido
da conservação e reversão à bravura talvez seja muito considerável.
É este o significado, por exemplo, do serviço prestado hoje em dia
por muitos religiosos e outros pilares da sociedade nas 'brigadas de
meninos' e em organizações pseudomilitares semelhantes". Sua per-
cepção vai ainda mais longe. Ele entende o esporte como uma pseu-
do-atividade: como canalização de energias que em outras direções
poderi~m tornar-se perigosas; como atividade sem sentido, conde-
corada com falsas insígnias de seriedade e de significado. Quanto
menos as pessoas precisam ganhar a vida, mais se sentem forçadas a
invocar a aparência de uma atividade séria e socialmente aprovada,
embora desinteressada. Ao mesmo tempo, porém, o esporte corre-
sponde ao-espírito predatório, um espírito agressivo e prático. Ele
oferece um denominador comum para os desideratos antagónicos
da ação racional e do desperdício de tempo. Transforma-se, assim,
em elemento de enganação, de make believe. A análise de Veblen
poderia, sem dúvida, ser aperfeiçoada. Pois é próprio do esporte
não apenas o impulso à violência, mas também o impulso à obediê-
ncia e ao sofrimento. Apenas a psicologia racionalista de Veblen o
impede de ver o momento masoquista do esporte, que faz do espí-
rito esportivo não tanto um resquício de antigas formas de socie-
dade, mas também, e talvez principalmente, uma adaptação inicial a
essa sua nova e ameaçadora forma - em oposição ao lamento de
Veblen de que as "instituições" teriam ficado atrasadas em relação
ao espírito industrial, que ele limita, é claro, à tecnologia. Poder-se-
ia afirmar que o esporte moderno pretende restituir ao corpo uma
parte das funções que lhe foram retiradas pelas máquinas. Mas o
esporte pretende treinar os homens da maneira mais impiedosa pos-
sível, para colocá-los a serviço das máquinas. Ele acaba por assi-
milar o próprio corpo à máquina. O esporte pertence, por isso, ao
reino da ausência de liberdade, onde quer que seja organizado.

76
PRISMAS

Um outro top1co da crítica cultural de Veblen parece menos


atual: o da chamada "questão feminina". A emancipação da mulher
era para os programas socialistas algo tão evidente que durante
muito tempo a situação concreta da mulher não foi repensada. Na
literatura burguesa, a questão feminina foi tratada, desde Shaw,
como um tema cómico. Strindberg a perverteu em questão masculi-
na, da mesma forma como Hitler transformou a questão da emanci-
pação dos judeus na questão da emancipação em relação aos judeus.
A impossibilidade da emancipação da mulher sob as condições so-
ciais vigentes não é atribuída a essas condições, mas aos defensores
da liberdade, e a fragilidade dos ideais emancipatórios, que os apro-
xima da neurose, é confundida com sua realização. A funcionária
sem preconceitos, satisfeita com o mundo porque pode ir ao cinema
com o namorado, suplantou Nora e Hedda, e se ela soubesse alguma
coisa a respeito destas, repreenderia de maneira insolente a falta de
senso de realidade de ambas. A esta mulher corresponde o homem
que usa sua liberdade erótica apenas para explorar, fria e indife-
rentemente, a condescendência limitada de sua parceira, agradecen-
do-a com o mais cínico dos desprezos. Veblen, que tem muito em
comum com Ibsen, foi talvez o último pensador de importância a
não se esquivar da questão feminina. Como apologeta tardio do
movimento feminista, ele assimilou as experiências de Strindberg.
Para Veblen, a mulher torna-se socialmente aquilo que ela é por si
mesma psicologicamente: uma chaga. Ele percebe sua humilhação
patriarcal. A posição da mulher, que Veblen inclui entre as relíquias
do período histórico dos caçadores e guerreiros, assemelha-se à do
servo. O tempo livre e o luxo que lhe são concedidos servem apenas
para fortalecer o status de seu mestre. Isso implica duas conseqüên-
cias contraditórias. O texto de Veblen poderia ser traduzido, com
alguma ·liberdade, da seguinte forma: por um lado, a mulher, exata-
mente graças a sua situação humilhante de "escrava" e objeto de
ostentação, foi em certo sentido afastada da "vida prática". Ela não é
- ou ainda não era no tempo de Veblen - exposta à concorrência
económica na mesma medida que o homem. Em algumas camadas
sociais e em determinadas épocas, a mulher era protegida da necessi-
dade de desenvolver aquelas qualidades que Veblen classifica sob a
categoria geral de "espírito predatório". Devido a sua distância do
processo de produção, ela conserva traços nos quais sobrevive o ser

77
THEODOR W. ADORNO

humano ainda não inteiramente integrado e socializado. É por isso


que as mulheres das camadas sociais dominantes parecem estar mais
dispostas a abandonar sua posição. Mas a esse abandono se opõe
uma contratendência, cujo sintoma mais proeminente é chamado
por Veblen de "conservadorismo da mulher". A mulher não parti-
cipou essencialmente, enquanto sujeito, do desenvolvimento his-
tórico. O estado de dependência no qual foi mantida a mutilou. Em
compensação, ela se beneficia da oportunidade decorrente da exclu-
são do processo de competição econômica. Comparada com a
esfera de interesses espirituais do homem, até mesmo daqueles que
são absorvidos pela barbárie do ganho, a maioria das mulheres se
encontra, segundo Veblen, num estado de consciência que ele não
reluta em qualificar de estupidez. Seguindo esta sua linha de pensa-
ment~, seria possível dizer que a mulher só escapou da esfera da
produção para ser mais perfeitamente absorvida pela esfera do con-
sumo e aprisionada pela imediatidade do mundo das mercadorias,
da mesma forma como os homens estão presos à imediatidade do
lucro. As mulheres espelham a injustiça cometida contra elas pela
sociedade masculina: assemelham-se às mercadorias. A percepção
de Veblerr indica uma mudança na utopia da emancipação. A espe-
rança não tem por objetivo uma situação na qual os caracteres so-
ciais mutilados das mulheres se igualem aos caracteres mutilados
dos homens, mas sim uma situação na qual desapareça, junto com a .
face da mulher sofredora, também a imagem do homem empreen-
dedor e capaz; uma situação na qual só sobreviva da vergonha da
diferença a felicidade que essa diferença proporciona.
Tais idéias estão, é claro, distantes de Veblen. Apesar de seu dis-
curso impreciso sobre a "plenitude da vida", sua imagem de socie-
dade não é baseada na felicidade, mas no trabalho. A felicidade é
focalizada apenas como satisfação do "instinto do trabalho", a cate-
goria antropológica suprema de Veblen. Ele é um puritano malgré
lui-même. Embora ataque incansavelmente todos os tabus, sua crí-
tica se contém diante do caráter sagrado do trabalho. Ela possui algo
daquela sabedoria paternalista que diz que a cultura não respeita
devidamente o seu próprio trabalho, mas sim se orgulha excessi-
vamente de sua exclusão do trabalho, de seu ócio. Enquanto má
consciência da sociedade, Veblen confronta esta sociedade com seu
próprio princípio utilitário, provando que, segundo este princípio,

78
PRISMAS

a cultura seria apenas desperdício e enganação, algo tão irracional


que levanta dúvidas quanto à racionalidade do sistema. Ele age um
pouco como o burguês que respeita, com uma seriedade raivosa, a
exigência da parcimônia. Com isso, toda a cultura torna-se um
gasto irracional e ostentatório, típico dos que estão falidos. Justa-
mente graças à insistência obstinada neste único motivo, Veblen
desmascara o contra-senso de um processo social que só se mantém
vivo por "calcular errado" a cada passo, construindo assim labirin-
tos de aparência e engodo. Mas Veblen tem de pagar o preço de seu
método. Ele endeusa a esfera da produção. Em seu pensamento há
implicitamente algo da distinção entre capital "predatório" e capital
"produtivo". Veblen distingue as modernas "instituições" econô-
micas em duas categorias: "a pecuniária e a industrial", diferencian-
do também as ocupações humanas e os modos de comportamento
relacionados a essas duas categorias: "Na medida em que os hábitos
de pensamento dos homens são moldados pelo processo competiti-
vo de aquisição e posse; na medida em que suas funções econômicas
são compreendidas no âmbito da propriedade de riqueza concebida
em termos de valor de troca, e sua gestão e financiamento por meio
de uma permuta de valores - sua experiência na vida econômica
favorece a sobrevivência e a acentuação do temperamento e das for-
mas de reflexão predatórios". Na medida em que não consegue
entender o processo social como.um processo total, ele faz no inte-
rior deste processo uma separação entre funções produtivas e fun-
ções improdutivas, uma distinção que se volta principalmente
contra os mecanismos irracionais de distribuição. Isso está presen-
te, por exemplo, quando trata daquela "classe de pessoas e daquela
gama de obrigações no processo econômico que têm a ver com a
propriedade de empresas que participam da indústria competitiva;
especiarmente aquelas linhas fundamentais de gestão econômica
que são classificadas como operações de financiamento. A estas
pode-se acrescentar a maior parte das ocupações mercantis".
Somente à luz dessa distinção fica~ claras as objeções de Veblen
contra a classe ociosa. O problema não é tanto a pressão que esta
exerce, mas sobretudo o fato de que essa pressão não é suficiente
para satisfazer sua própria ética puritana do trabalho. Ele não
suporta que a classe ociosa tenha a oportunidade, por mais defor-
mada que seja, de escapar a essa ética. O fato de que os economica-

79
THEODOR W. ADORNO

mente independentes ainda não estejam totalmente submetidos às


necessidades da vida parece-lhe algo arcaico: "Um hábito de pensa-
mento arcaico persiste porque nenhuma pressão econômica efetiva
constrange essa classe à adaptação de seus hábitos de pensamento
a uma situação em mudança". Uma adaptação que, deve-se notar,
é defendida por Veblen. O motivo contrário, que defende o ócio
como pressuposto do humanismo, certamente não lhe era estranho.
Mas o que prevalece aqui é um esquema de pensamento a-teorético
e pluralista. O ócio, bem como o desperdício, tem os seus direitos,
mas apenas de um ponto de vista "estético". Como economista,
Veblen não queria se meter nesse assunto. Basta notar o sarcasmo
que recai sobre o estético, isolado por essa separação. A necessida-
de de saber o que Veblen entendia propriamente por "econômico"
torna-se por isso ainda mais premente. Não se trata de ver até que
ponto seus escritos pertencem à economia enquanto disciplina do
saber, mas sim de compreender seu próprio conceito de economia.
Veblen define implicitamente o "econômico" como "lucrativo". O
seu discurso· coincide, neste ponto, com o do homem de negócios,
que rejeita como antieconômica toda despesa inútil. Os conceitos
de útil e inútil, dados de antemão, não são analisados. Veblen
demonstra que a sociedade procede, segundo seus próprios crité-
rios, de maneira antieconômica. Isto significa, ao mesmo tempo,
muito e pouco. Muito, porque ele lança uma luz penetrante sobre
a irracionalidade da razão. Pouco, porque fracassa diante do entre-
laçamento entre o útil e o inútil. Veblen transfere a questão do inú-
til para categorias heterônomas produzidas pela divisão do trabalho
científico. Em vez de compreender a oposição entre as competên-
cias como expressão da divisão fetichista do trabalho, ele se apre-
senta como um especialista em cultura cujo parecer poderia ser
vetado por colegas especializados em estética. Enquanto econo-
mista, aborda a cultura com excessiva soberania, eliminando-a do
orçamento como desperdício, ao mesmo tempo que secretamente
se resigna com sua mera existência fora do âmbito orçamentário.
Veblen não percebe que a legitimidade ou falta de legitimidade da
cultura não depende do ponto de vista da especialidade que a põe
em questão, mas sim do conhecimento dos nexos que constituem a
sociedade. É por isso que sua crítica cultural possui um momento
de bufonaria.

80
PRISMAS

Veblen gostaria de fazer tabu/a rasa, limpar o entulho da cultura


e trazer à luz as rochas primitivas. Mas a busca de "resíduos" leva
fatalmente ao ofuscamento. A aparência é dialética enquanto refle-
xo da verdade; quem rejeita a aparência acaba por tornar-se sua víti-
ma, na medida em que sacrifica, junto com o entulho, a verdade que
depende deste para aparecer. Mas Veblen se recusa a enxergar o que
está por trás de tudo aquilo que é objeto da revolta de sua experiên-
cia fundamental. Nas obras póstumas de Frank Wedekind encon-
tra-se o comentário de que o kitsch seria o gótico ou o barroco de
nosso tempo. Esta necessidade histórica do kitsch, ressaltada por
Wedekind, não foi levada a sério por Veblen. Ele vê no falso castelo
medieval apenas um anacronismo, não entende a modernidade da
regressão. As enganadoras imagens de unicidade na era da produção
em massa são para ele meros resquícios, e não respostas à meca-
nização altamente industrializada, capazes de dizer algo sobre esta
nova situação. O universo daquelas imagens que Veblen desmas-
cara como consumo conspícuo é um universo de imagens sintético,
que representa a tentativa inevitável, mas fracassada, de escapar à
perda de experiência causada pelo modo de produção moderno e de
livrar-se, por meio de uma concreção autofabricada, da dominação
do equivalente abstrato. Os homens preferem enganar a si mesmos
com a ilusão do concreto a abandonar a esperança nele contida. Os
fetiches da mercadoria não consistem apenas na projeção de relações
humanas intransparentes sobre o mundo das coisas, são também
divindades quiméricas, que representam tudo aquilo que não se
reduz à mera troca, mas que devem sua origem justamente ao pri-
mado do processo de troca. O pensamento de Veblen recua diante
desta antinomia. Mas é exatamente ela que transforma o kitsch em
estilo. O kitsch não designa apenas um desvio do trabalho. O fato
de que as imagens sintéticas representam regressões a um passado
longínquo testemunha unicamente sua inacessibilidade. A arte mais
avançada esboçou imagens que conseguem reunir o estágio atual do
tecnicamente possível e a aspiração humana ao concreto. Mas essa
arte não foi aceita pela sociedade. Talvez seja permitido formular
como uma tese a relação entre progresso - "moderno" - e regres-
são - "arcaico". Em uma sociedade onde o desenvolvimento e o
bloqueio de suas forças são conseqüências inexoráveis do mesmo
princípio, cada progresso técnico significa ao mesmo tempo uma

81
THEODOR W. ADORNO

regressão 2 • A discussão de Veblen sobre o barbarian normal mostra


que ele intuiu algo a respeito disso. A barbárie é normal não porque
consiste em meros resquícios, mas porque é continuamente repro-
duzida na mesma proporção da dominação da natureza. Veblen deu
muito pouca importância a essa equivalência. Ele percebeu a não-
contemporaneidade do castelo medieval e da estação de trem, mas
não percebeu essa não-contemporaneidade como uma lei histórico-
filosófica. A estação de trem mascara-se como castelo medieval, mas
esta máscara é a sua verdade. Somente quando o mundo técnico das
coisas serve imediatamente à dominação é possível desfazer-se de
tais máscaras. Somente nos Estados totalitários regidos pelo terror a
máscara se parece com o que ela realmente é.
Se Veblen não reconhece o elemento de coação do arcaico mo-
derno e, acredita poder eliminar as imagens sintéticas como meros
enganos, então fracassa ao mesmo tempo diante da quaestio juris
social do luxo e do desperdício, que o reformador do mundo quer
extirpar como uma excrescência. Outro aspecto importante é a am-
bigüidade do luxo. Veblen concentra sua bateria de refletores em um
lado dessa ambigüidade: aquela parte do produto social que não
serve para á satisfação das necessidades humanas nem para a felici-
dade do homem, mas que é desperdiçada para que o sistema obsole-
to seja preservado. O outro lado do luxo é a utilização de partes do
produto social que não servem, mediara ou imediatamente, para a
reposição de forças de trabalho esgotadas, mas que servem aos
homens, na medida em que estes não estão completamente presos ao
princípio da utilidade. Embora Veblen não diferencie explicitamente
estes dois momentos do luxo, sua intenção é, sem dúvida, eliminar o
primeiro como consumo conspícuo e salvar o segundo em nome da
"plenitude da vida". Na clareza de suas intenções, porém, reside a
fraqueza de sua teoria. Faux frais e felicidade não podem ser isoladas
no luxo de hoje. Elas constituem a identidade do luxo, uma identi-
dade mediada em si mesma. Embora a felicidade exista apenas nas
situações intermitentes em que os homens se afastam da má socia-
lização, a forma concreta da felicidade humana sempre contém em si
a condição geral da sociedade, o negativo 3. É possível interpretar os
romances de Proust como uma tentativa de desdobrar essa contra-
dição. Dessa maneira, a felicidade erótica nunca se refere ao homem
em si, mas sempre ao homem em sua manifestação e determinação

82
PRISMAS

social. Benjamin escreveu certa vez que, para o homem, poder


exibir-se em companhia da amante é tão importante quanto poder
possuí-la. Veblen, em sua ironia burguesa, concordaria com isso,
e falaria de consumo. Mas a felicidade que o homem realmente
encontra não pode ser separada do "consumo conspícuo". Não há
felicidade que não prometa a satisfação de um desejo socialmente
constituído, mas também não há felicidade que não prometa, nesta
satisfação, o outro. A utopia abstrata, que se engana a este respeito,
torna-se sabotagem da felicidade, jogando a favor dos que a negam.
Pois enquanto busca retirar da felicidade as marcas sociais deve
renunciar a toda pretensão concreta de felicidade e reduzir o homem
a mera função de seu próprio trabalho. Até mesmo o fetichista de
mercadorias, que sucumbiu ao "consumo conspícuo" a ponto de
tornar-se obsessivo, participa do conteúdo de verdade da felicidade.
Ao negar a própria felicidade viva e substituí-la pelo prestígio das
coisas - Veblen fala de "confirmação social"-, revela contra a sua
vontade o mistério contido em toda pompa e ostentação: não é pos-
sível uma felicidade individual que não inclua, pelo menos virtual-
mente, a felicidade da sociedade como um todo. Mesmo a maldade,
a exibição do status e o impulso de ostentação, nos quais o momen-
to social da felicidade, sob o princípio da concorrência, inexoravel-
mente se realiza, contêm o reconhecimento da sociedade e do todo
como os verdadeiros sujeitos da felicidade. Os traços do luxo que
Veblen caracteriza como "odioso", revelando má vontade, não ape-
nas reproduzem a injustiça, mas contêm, deformado, o apelo à jus-
tiça. Os homens não são piores do que a sociedade na qual vivem:
este é o corretivo para a misantropia de Veblen. Mas também essa
misantropia é um corretivo. Ela difama a má vontade em seus
impulsos mais sublimes, porque permanece obstinadamente fiel à
boa vontade.
É profundamente irônico, entretanto, que, em Veblen, esta fide-
lidade tome inevitalmente a forma que ele rejeita mais impiedo-
samente na sociedade burguesa:' a da regressão. Para Veblen há
esperança apenas no período primitivo da história da humanidade.
Toda felicidade que para ele é poupada da exigência de um realismo
sem sonhos pela adaptação obediente às condições do mundo do
trabalho industrial é projetada na imagem de uma situação original
paradisíaca: "As condições nas quais os homens viviam nos estágios

83
THEODOR W. ADORNO

mais prim1t1vos da vida em sociedade que podem ser chamados


propriamente humanos parecem ter sido pacíficas; e o caráter - o
temperamento e a atitude espiritual - dos homens nessas condições
primitivas de meio ambiente e instituições parece ter sido de uma
espécie pacífica e não-agressiva, para não dizer indolente. Para o
propósito imediato pode-se considerar que esse estágio cultural
pacífico assinala a fase inicial do desenvolvimento social. No que diz
respeito ao presente argumento, a característica espiritual domi-
nante dessa suposta fase inicial de cultura parece ter sido uma noção
irrefletida e não-formulada de solidariedade grupal, expressando-se
basicamente em uma simpatia complacente, mas de forma alguma
vigorosa, por todas as facilidades da vida humana, e uma inquieta
reação incômoda contra a inibição apreendida ou a futilidade da
vida". Os traços de desmitologização e de humanitarismo, caracte-
rísticos· da humanidade na sociedade burguesa, não significam em
Veblen uma tomada de consciência da humanidade, mas sobretudo
um retorno a essa situação original. "Nas circunstâncias da situação
protegida em que a classe ociosa é colocada, parece, portanto, haver
uma espécie de reversão à gama de impulsos não-odiosos que carac-
terizam a <mltura selvagem antepredatória. A reversão compreende
tanto o instinto de produzir como a propensão à indolência e à
camaradagem." Karl Kraus, o crítico do ornamento lingüístico, é o
autor do seguinte verso: "A origem é a meta". Da mesma forma, a
nostalgia do tecnocrata Veblen pretende a reconstituição do mais
antigo: o movimento feminista é para ele o esforço cego e incoerente
"para restaurar a situação pré-glacial das mulheres". Tais formu-
lações provocadoras parecem um insulto ao apego aos fatos defen-
dido pelo positivista. Mas aqui se revela uma das mais marcantes
conexões da teoria de Veblen: a que reúne o positivismo e a teoria
rousseauniana da situação original idealizada. Como positivista que
não admite outra norma senão a da adaptação, ele depara com a
questão de saber por que não orientar-se pelos dados dos "prin-
cípios de desperdício, futilidade e ferocidade", por que não adap-
tar-se a eles, já que segundo sua concepção estes são o "cânone da
decência pecuniária"? "Mas por que as desculpas são necessárias?
Se prevalecer um corpo de sentimento popular a favor dos espor-
tes, por que esse fato não é uma legitimação suficiente? A prolon-
gada disciplina da bravura à qual a corrida havia estado sujeita sob a

84
PRISMAS

cultura predatória e quase-pacífica transmitiu ao homem de hoje um


temperamento que se satisfaz nessas expressões de ferocidade e
astúcia. Então, por que não aceitar esses esportes como expressões
legítimas de uma natureza humana normal e saudável? Que outra
norma existe que deva ser seguida senão aquela dada na gama agre-
gada de propensões que se expressam nos sentimentos desta geração,
entre elas o traço hereditário da bravura?" Aqui a lógica de Veblen
avança em suas conclusões, com uma ironia que não era estranha a
Ibsen, até aquele ponto onde corre o risco de capitular diante do
mero ente, diante da barbárie normal. A resposta é surpreendente:
"A norma ulterior à qual se apela é o instinto de produzir, que é um
instinto mais fundamental, de prescrição mais antiga, do que a pro-
pensão à competição predatória". Esta é a chave para a teoria da
"situação original". O positivista só se permite pensar a possibili-
dade do homem na medida em que a transforma magicamente em
um dado ou, melhor dizendo, no passado. Para ele não existe nenhu-
ma justificativa para uma vida reconciliada que não seja ainda mais
dada, mais positiva, mais existente que o inferno da existência. O
paraíso é a aporia do positivista. Para trazer o paraíso e a era indus-
trial a um denominador antropológico comum, Veblen inventa inci-
dentalmente o instinto de trabalho. Segundo ele, já antes do pecado
original os homens comiam o pão com o suor de seus rostos.
Veblen se expôs demais ao· defender teorias como estas, cogi-
tações impotentes e autocaricaturais, nas quais a idéia do diferen-
te parece compactuar com a adaptação à mesmice. É fácil chamar
de maluco o positivista que não quer mais sê-lo. A obra inteira de
Veblen está permeada pelo tema do spleen, que ironiza aquele
"senso de proporção" exigido pelas regras do jogo positivistas que
predominam em seu ambiente. Veblen insiste em fazer amplas
analogias entre instituições do esporte e instituições da religião, ou
entre o código de honra agressivo do gentleman e o do criminoso.
Ele acusa até mesmo as parafernálias cerimoniais dos cultos religio-
sos de serem, do ponto de vista económico, um desperdício. Veblen
não está muito longe dos reformadores da vida. Não raro, a utopia
do tempo primordial reverte em uma crença barata no natural, e ele
se irrita com as chamadas "idiotices da moda", como saias compri-
das e coletes, em sua maioria produtos do século XVIII que o pro-
gresso do século XX eliminou, sem com isso ter acabado com a

85
THEODOR W. ADORNO

barbárie da cultura. O consumo conspícuo torna-se uma idéia fixa.


Para entender a contradição entre essa idéia fixa e a sutileza das
análises sociológicas de Veblen, seria necessário compreender a fun-
ção cognitiva do próprio spleen. Como a imagem da pacífica situa-
ção primitiva, o spleen em Veblen - e não apenas nele - é um
refúgio da possibilidade. O observador que se deixa guiar pelo
spleen busca encontrar uma medida comum entre a negatividade
preponderante da sociedade e a sua própria experiência. Procura
tornar tangível a intransparência e a estranheza do todo, mas são
justamente estas qualidades que escapam à experiência imediata e
viva. Ao petrificar de maneira arrogante uma experiência deter-
minada e limitada, a idéia fixa substitui o conceito universal abstra-
to. O spleen gostaria de corrigir a falta de compromisso e rigor de
um cophecimento meramente mediado da realidade mais próxima:
o sofrimento real. Mas esse sofrimento deve sua origem ao des-
concerto geral e só pode ser elevado a meio de conhecimento de
maneira abstrata e "mediada". É contra isso que o spleen se revolta.
Ele esboça, 'por assim dizer, esquemas de .conversa com o senhor
Kannitverstan 4 • Mas estes esquemas fracassam, porque a alienação
social consiste justamente no fato de que os objetos do conheci-
mento são afastados do âmbito da experiência imediata. A perda de
experiência do sujeito no mundo da mesmice, pressuposto de toda a
teoria de Veblen, indica o aspecto antropológico do processo de .
alienação que desde Hegel foi determinado em categorias objetivas.
O spleen é uma reação de defesa. Sempre, e em toda parte, o seu
gesto - mesmo em Baudelaire - é o da acusação. Mas ele denuncia
a sociedade nas formas da imediatidade e da proximidade, atribu- ·
indo a culpa aos fenômenos. O preço da comensurabilidade entre
conhecimento e experiência é a insuficiência epistemológica. Nisto o
spleen se aproxima da seita pequeno-burguesa que atribui a desgraça
do mundo a conspirações de forças ocultas, ao mesmo tempo que
percebe o contra-senso dessa idéia fixa. A desproporcionalidade da
tese transforma-se em elemento de sua própria verdade quando
Veblen atribui a culpa a um fenômeno de fachada, como a ostenta-
ção da barbárie. Percebe-se nisso a inadequação entre o mundo e a
possibilidade de sua experiência. O conhecimento faz-se acom-
panhar do riso sarcástico suscitado pelo fato de que o seu objeto
próprio lhe escapa, na medida em que permanece conhecimento

86
PRISMAS

humano e percebe que ele deveria ser desumano para lidar com o
mundo desumano. A única comunicação intelectual entre o sistema
objetivo e a experiência subjetiva é a explosão que separa radical-
mente as duas, para iluminar por alguns segundos, através de sua
chama, a figura assim formada. Na medida em que este tipo de críti-
ca fixa a barbárie na esquina mais próxima, em vez de contentar-se
com abordagens de caráter genérico, conserva contra a teoria não
ingénua, diante da qual ela se cobre de ridículo, um momento que
começou a ser desprezado pelo socialismo científico e terminou no
que Karl Kraus apropriadamente chamou de "Moskauderwesch"
[algaravia moscovita]. A bitolação não é apenas um complemento,
mas às vezes também os óculos salvadores que curam o olhar que vê
muito e longe demais. É esta função que ela cumpre em Veblen. Seu
spleen deve-se ao dégout diante do otimismo oficial de um espírito
progressista, do qual o próprio Veblen é partidário na medida em
que adere ao common sense.
O spleen indica a espécie particular de sua crítica. É a desilusão,
o "desmascaramento". Veblen prefere seguir um esquema tradi-
cional do Iluminismo: o da religião como "engodo dos padres".
"Sente-se que a divindade deve ter um hábito de vida peculiarmente
sereno e ocioso. E sempre que sua moradia é representada no ima-
ginário poético, para fins de edificação ou como apelo à fantasia reli-
giosa, o pintor de palavras devoto, rotineiramente, põe diante da
imaginação de seu ouvinte um trono com uma profusão de insíg-
nias de opulência e poder, e rodeado por um grande número de
serviçais. No curso comum dessas apresentações das moradas celes-
tiais, o ofício desse corpo de servos é um ócio vicário, e seu tempo e
seus esforços são em grande medida associados a uma manifestação
industrialmente improdutiva das características e feitos meritórios
da divfndade." A maneira pela qual os anjos são acusados de traba-
lho improdutivo se assemelha às maldições secularizadas, mas tam-
bém tem algo de piada sem graça. 9 homem experiente não se deixa
enganar pelos atos falhos, sonhos e neuroses da sociedade. O seu
humor parece o de um marido que força a mulher histérica a fazer
os trabalhos domésticos para evitar que ela se entregue às neuroses.
Se o spleen se fixa obstinadamente no alienado mundo da coisas,
responsabilizando a malignidade do objeto pelas falhas do sujeito,
então a postura de "desmascaramento" é a de não se deixar enganar

87
THEODOR W. ADORNO

pela perfídia do objeto. Ele arranca o véu ideológico dos objetos


para poder manipulá-los mais tranqüilamente. Seu ódio dirige-se
mais à enganação que ao estado lamentável das coisas. Não é por
acaso que a fúria do "desmascaramento" ataca sobretudo as funções
de mediação: enganação e mediação estão estreitamente interligadas.
Mas a mediação e o pensamento também. O ódio contra o pensar é
a base do "desmascaramento" 5 • A verdadeira crítica da cultura bár-
bara não poderia contentar-se em denunciar de modo bárbaro a
própria cultura. Ela deveria determinar e rejeitar a barbárie aber-
tamente desprovida de cultura, em lugar de privilegiar grosseira-
mente a barbárie contra a cultura, apenas porque esta barbárie não
mentiria mais. Em certas formulações de Veblen, como a que insiste
na improdutividade industrial dos exércitos celestiais, a honestidade
soa CO!p.O triunfo do horror. Estes chistes apelam ao conformismo.
Quem ri da imagem da beatitude está mais perto do poder do que
aquela imagem, não importa o quanto esta esteja obviamente defor-
mada pelo poder e pela glória.
Não obstante, há algo de bom e salutar na insistência de Veblen
nos fatos, no tabu que lança sobre todas as imagens. A resistência
contra a vida bárbara aninhou-se em Veblen na força de adaptação a
esta necessidade impiedosa. Para um pragmático como Veblen, o
todo não existe: não há identidade entre ser e pensar, nem mesmo o
conceito de uma tal identidade. Ele repete insistentemente que as
formas de consciência e as exigências da situação concreta são incon-
ciliáveis: "Instituições são produtos de um processo passado, são
adaptadas a circunstâncias passadas, e portanto nunca estão de pleno
acordo com as exigências do presente. Na natureza do caso, esse
processo de adaptação seletiva nunca pode equiparar-se à situação
progressivamente mutável na qual a comunidade se encontra a qual-
quer momento; pois o ambiente, a situação, as exigências da vida
que obrigam à adaptação e ao exercício da seleção mudam diaria-
mente; e cada situação sucessiva da comunidade tende por sua vez
à obsolescência tão logo seja estabelecida. Quando se dá um passo
no desenvolvimento, este mesmo passo constitui uma mudança de
situação que requer uma nova adaptação; torna-se o ponto de par-
tida para um novo passo no ajuste, e assim por diante interminavel-
mente". A inconciliabilidade proíbe o ideal abstrato, ou o apresenta
como sendo uma fase infantil. A verdade é reduzida aos menores

88
PRISMAS

passos. O verdadeiro é o mais prox1mo, não o mais distante. A


respeito da exigência de defender o interesse do "todo" contra os
interesse de qualquer uma das partes, transcendendo assim a parcia-
lidade utilitária da verdade, o pragmatista pode com justiça objetar
que o todo não está dado em sua forma definitiva, que apenas o mais
próximo pode ser experimentado, e portanto o ideal deve necessa-
riamente ser condenado a permanecer fragmentário e incerto. Dian-
te de uma atitude como essa, não é suficiente insistir na distinção
entre um interesse total de uma sociedade verdadeira e o efeito utili-
tário limitado. Não há duas verdades, a da sociedade existente e a da
outra sociedade; a verdade desta é inseparável do movimento real no
interior do existente, e de cada um de seus momentos. Por isso, a
oposição entre dialética e pragmatismo, como toda oposição auten-
ticamente filosófica, se reduz a nuances, ou seja, à concepção do
próximo passo. Para o pragmatista, este passo é a adaptação. Ela
perpetua a dominação da mesmice. Se sancionasse isso, a dialética
renunciaria à sua própria essência, à idéia de possibilidade. Mas
como poderia ser pensada esta possibilidade, para que ela não seja
abstrata e arbitrária como a utopia condenada pelos filósofos dialé-
ticos? Por outro lado, como o próximo passo pode adquirir uma
direção e um objetivo sem que o sujeito saiba mais do que simples-
mente o que lhe é dado de antemão? Caso se quisesse formular de
modo diferente a questão kantiana, ela poderia hoje ser a seguinte:
"Como é possível algo novo?". Levando ao extremo esta questão,
percebe-se a seriedade do representante do pragmatismo, compará-
vel à do médico que segue o cânone da semelhança entre o homem e
o animal. Esta é a seriedade da morte. Mas o dialético deveria ser
aquele que não se resigna diante desta questão. Sua determinação
desfaz o "ou isso ou aquilo" da lógica discursiva. A tarefa'cognitiva
da dialetica começa exatamente onde o pragmático se resigna diante
dos fatos nus e crus, onde ele vê apenas opaque items, dados
impenetráveis que podem ser classificados, mas não conhecidos. A
dialética procede de maneira dife~ente, dissolvendo, por meio do
conceito, até mesmo os resíduos fenomenológicos, os "átomos".
Mas nada é mais opaco que a adaptação que instaura como medida
da verdade a imitação da mera existência. Se o pragmático exige o
índex histórico de qualquer verdade, também a sua idéia de adap-
tação tem o seu índex. É exatamente aquele que Freud denominou

89
THEODOR W. ADORNO

de "necessidade vital" [Lebensnot]. O próximo passo é o da adapta-


ção apenas na medida em que predominam no mundo a escassez e a
miséria. A adaptação é o comportamento que corresponde à situa-
ção de carência. Exatamente por causa disso o pragmatismo é pobre
e limitado, porque hipostasia esta situação como eterna. Os seus con-
ceitos de natureza e vida não dizem nada além disso. O que ele dese-
ja para o homem é a sua "identificação com o processo da vida", um
comportamento que perpetua o caminho que conduz os seres vivos
à natureza, enquanto esta não lhes fornecer uma quantidade sufi-
ciente de alimentos. As colocações de Veblen contra os "protegi-
dos" que, devido a sua posição privilegiada, têm a possibilidade de
escapar, em maior ou menor grau, à adaptação da situação modifica-
da nada mais são do que uma glorificação de Darwin e de sua teoria
da luta.pela sobrevivência. Mas isso é justamente a hipostasiação da
penúria, que hoje se tornou transparente, em sua forma social, por
ter sido superada pelo próprio desenvolvimento da técnica, ao qual,
segundo Veblen, os homens deveriam adaptar-se. O pragmático tor-
na-se, assim; vítima da dialética. Estar à altura da situação técnica
atual, que promete aos homens a plenitude e a abundância, significa
orientar essa técnica para a satisfação das necessidades de uma
humanidade que não precisa mais da violência, porque é senhora de
si mesma. Em uma das mais belas passagens de Veblen percebe-se
como ele notou a conexão entre a pobreza e a persistência do mal:
"O abjetamente pobre e todas aquelas pessoas cujas energias estão
inteiramente absorvidas na luta pelo sustento cotidiano são conser-
vadores porque não podem arcar com o esforço de pensar além do
dia seguinte; assim como os muito prósperos são conservadores por-
que têm pouca ocasião de descontentar-se com a situação hoje exis-
tente". Mas o pragmático, por ser ele mesmo regressivo, apega-se ao
ponto de vista daquele que não consegue pensar além do dia seguin-
te, do próximo passo, porque não sabe se viverá até amanhã. Ele
representa a pobreza. Isto é ao mesmo tempo a sua verdade, porque
os homens ainda são mantidos na pobreza, e a sua inverdade, porque
o absurdo da pobreza tornou-se evidente. Adaptar-se ao que hoje é
possível significa não mais adaptar-se, mas realizar o possível.

90
Aldous Huxley ea utopia::-

A catástrofe curopéia, anunciada pelas longas sombras que proje-


tava, fez com que surgisse pela primeira vez na América o tipo do
intelectual imigrado. No século XIX, quem ia para o Novo Mundo
era atraído por suas possibilidades ilimitadas. Emigrava para fazer
fortuna ou pelo menos alcançar aquele mínimo que os países super-
povoados da Europa lhe haviam negado. O interesse da autoprc-
servação era maior que o interesse da preservação da própria
identidade, e o crescimento cconômico dos Estados Unidos se
processava sob o signo do mesmo princípio que levava o emigrante
a atravessar o oceano. Ele se cs(orçava cm adaptar-se com sucesso,
evitando atitudes críticas que comprometessem a legitimidade e as
pretensões de seu próprio esforço. Dominados pela luta pela sobre-
vivência, os recém-chegados não estavam cm condição, nem por sua
formação e seu passado, nem por sua posição no processo social, de
distanciar-se da violência avassaladora da existência ameaçada. Na
medida cm que eles vinculavam esperanças utópicas à migração,
essas mesmas esperanças se projetavam no horizonte de uma exis-
tência àinda não definida, no conto de fadas da ascensão social, na
perspectiva de começar lavador de pratos e terminar milionário.
O ceticismo de um visitante como, Tocqucvillc, que já havia perce-
bido, cem anos antes, o aspccto de falta de liberdade que permeia a

'' Escrito no contexto de um scmin,írio do Instituto de Pesquisa Social, organizado cm


Los Angeles cm 1942, no qual Herbert Marcuse se referiu à obra de Huxley, e Max
Horkheimer e o autor apresentaram suas "Teses sobre a necessidade". Publicado cm Die
Neue Rundschau, 1951.

91
THEODOR W. ADORNO

igualdade desenfreada, permaneceu uma exceção. A sublevação


contra aquilo que no jargão do conservadorismo cultural alemão se
chamava "americanismo" existiu em maior medida em americanos
como Poe, Emerson e Thoreau do que nos recém-chegados. Cem
anos mais tarde, não foram intelectuais isolados que emigraram,
mas a intelligentsia européia enquanto camada social, de forma
alguma limitada aos judeus. Esses intelectuais não queriam viver
melhor, queriam sobreviver. As possibilidades já não eram ilimi-
tadas e por isso os ditames da adaptação, que na economia concor-
rencial prevaleciam, dominaram-nos sem piedade. Em vez da selva
que o pioneiro deveria desbravar, até mesmo espiritualmente, e na
qual ele pensava regenerar-se, existia agora uma civilização que,
enquanto sistema, encerrava toda a vida, sem nem mesmo garantir
para a consciência não-regulamentada aqueles pontos de escape que
a negligência européia, até a época dos grandes trustes, havia deixa-
do abertos. Ao intelectual estrangeiro foi deixado bem claro que ele
deveria anular-se enquanto ser autônomo se porventura quisesse
alcançar algo:· ser admitido entre os funcionários da vida condensa-
da em um supertrust. O renitente que não capitula e se recusa a
entrar na linha é abandonado aos choques que o mundo das coisas,
concentrado em blocos gigantescos, administra a todos aqueles que
não se transformam em coisa. Impotente na maquinaria das relações
mercantis que se desenvolvem por todos os lados e se tornam o
único parâmetro, o intelectual reage ao choque com o pânico.
O Brave New World de Huxley é o sedimento desse pânico,
ou melhor, sua racionalização. O romance, uma fantasia futurista
com enredo rudimentar, procura apreender o choque a partir do
princípio de desencantamento do mundo, elevar esse princípio ao
extremo do absurdo e derivar da compreensão da desumanidade a
idéia de dignidade humana. O ponto de partida parece ser a per-
cepção da semelhança universal de tudo o que é produzido em
massa, sejam coisas ou homens. A metáfora schopenhaueriana da
manufatura da natureza é tomada ao pé da letra. Fervilhantes
exércitos de gêmeos são preparados nas retortas, um pesadelo de
sósias infinitos, como o pesadelo diurno que irrompe no cotidi-
ano com a fase recente do capitalismo, o pesadelo dos sorrisos
normatizados da graça fornecida pela charm school, da consciência
estandardizada das multidões que seguem as trilhas ditadas pela

92
PRISMAS

communication industry. O "aqui-e-agora" da experiência espon-


tânea, corroído há muito tempo, é privado de todo poder: os ho-
mens não são mais meros compradores de produtos fabricados
em série pelas corporações, parecem ser eles mesmos produtos do
domínio absoluto dessas corporações, produtos que perderam
toda individuação. O olhar de pânico, diante do qual as observações
não-assimiladas se petrificam em alegorias da catástrofe, estilhaça a
ilusão do cotidiano inofensivo. O sorriso venal das modelos trans-
forma-se sob este olhar naquilo que realmente é: o desfigurado
arreganhar de dentes da vítima. Os vinte e cinco anos transcor-
ridos desde a publicação do livro providenciaram confirmações
suficientes: pequenos horrores como o exame de aptidão para
ascensoristas, que seleciona os menos inteligentes, e outras visões
apavorantes como o aproveitamento racional de cadáveres huma-
nos. O Brave New World é um campo de concentração único, que,
livre de seu oposto, toma a si mesmo por paraíso. Se, de acordo
com uma das teorias do livro Massenpsychologie [Psicologia de
massas] de Freud, o pânico é o estado no qual as poderosas iden-
tificações coletivas se desintegram e a energia pulsional liberada
transforma-se em angústia repentina, então aquele que foi tomado
pelo pânico consegue inervar o fundamento obscuro da identi-
ficação coletiva, a falsa consciência dos indivíduos que, sem nenhu-
ma solidariedade transparente e em comunhão cega com as imagens
do poder, pensam estar em harmonia com um todo cuja ubiqüi-
dade os sufoca.
Huxley está livre da tola sobriedade que encara até mesmo a
pior situação possível com um contemporizador "não é assim tão
ruim". Ele também não faz concessões à crença infantil de que os
supostos excessos da civilização técnica seriam automaticamente
compensados pelo progresso inexorável e desdenha a consolação,
tão bem aceita entre os exilados, de que os aspectos assustadores da
cultura americana seriam restos effomeros de sua primitividade ou
vigorosos fiadores de sua juventude. Não é permitido duvidar que
essa cultura não só não está atrasada em relação à européia, como na
verdade a deixou para trás; que o Velho Mundo se esforça em imitar
o Novo. Assim como o Estado Mundial do Brave New World não
distingue mais, entre os campos de golfe e os institutos de pesquisa
biológica de Mombaça, entre Londres e o Pólo Norte, nenhuma

93
THEODOR W. ADORNO

diferença que não tenha sido mantida artificialmente, o america-


nismo parodiado se instaura como mundo. De acordo com a epí-
grafe de Berdiaev, esse mundo deveria assemelhar-se à utopia; uma
utopia cuja realização pode ser antevista a partir do estado atual da
técnica. Projetando-se no futuro, o mundo se torna um inferno: as
observações sobre a situação atual da civilização são impelidas, por
sua própria teleologia, até a evidência imediata de sua monstruosi-
dade. A ênfase não recai tanto nos elementos técnicos e institucio-
nais, mas na seguinte questão: o que será do homem quando ele não
conhecer mais a miséria? A esfera político-econômica enquanto tal
perde importância. É certo que se trata apenas de um sistema de
classes racionalmente organizado e de dimensão planetária, de um
capitalismo de Estado totalmente planificado, onde coletivização
total corresponde a dominação total, e onde economia monetária e
busca do lucro continuam existindo.
Community, I dentity e Stability substituem os três lemas da
Revolução F_rancesa. Community define uma situação de comu-
nidade onde cada indivíduo está incondicionalmente subordinado
ao funcionamento do todo, e o questionamento do sentido desse
todo, no Novo Mundo, não é mais permitido, nem sequer possível;
Identity significa a extinção das diferenças individuais, a estandardi-
zação que engloba até mesmo o fundamento biológico; e Stability, o
fim de toda e qualquer dinâmica social. A situação astuciosamente
equilibrada é extrapolada a partir de certos sintomas do desapare-
cimento do "jogo de forças" econômico no capitalismo tardio, uma
perversão do milenarismo. A panacéia que garante a imobilidade
social é o conditioning, um termo de difícil tradução que entrou na
linguagem coloquial norte-americana a partir da biologia e da psi-
cologia behaviorista, nas quais designava o ato de provocar deter-
minados reflexos ou modos de comportamento por modificações
arbitrárias do meio ambiente e pelo controle das "condições".
Tornou-se assim sinônimo de toda e qualquer espécie de controle
científico das condições de vida: a expressão air conditioning, por
exemplo, designa a regulação mecânica da temperatura em recin-
tos fechados. No livro de Huxley o termo conditioning significa a
perfeita pré-formação do ser humano por meio da intervenção
social, desde a procriação artificial e o controle técnico do cons-
ciente e do inconsciente nos primeiros estágios da vida até o death

94
PRISMAS

conditioning, um training que retira das crianças o horror diante da


morte, colocando-as diante de moribundos ao mesmo tempo que são
distribuídas guloseimas, para que a partir desse momento as crianças
associem a morte a algo doce. O efeito final do conditioning, a adap-
tação perfeita, é um grau de interiorização e apropriação das pres-
sões e coerções sociais que supera em muito toda ética protestante:
os homens se resignam a amar aquilo que devem fazer, sem nem
mesmo saber que isso é um ato de resignação. A felicidade dos
homens é assim fortalecida subjetivamente, e a ordem é mantida.
Nessa ordem, todas as concepções de uma influência meramente
externa da sociedade sobre os indivíduos, por meio de agentes como
a família e a psicologia, são consideradas superadas. O que já hoje
é feito com a família é repetido, a partir de cima, no Brave New
World. "Crianças da sociedade" no sentido mais literal possível, os
homens não se encontram mais em relação dialética com a socie-
dade, mas coincidem com sua própria substância. Dóceis expoen-
tes da totalidade coletiva que já assimilou toda e qualquer antítese,
os homens são "socialmente condicionados" em um sentido não-
metafórico, e não simplesmente ajustados, através de um "desen-
volvimento" posterior, ao sistema dominante.
A relação de classes eternizada é transferida para a biologia, na
medida em que os diretores responsáveis pela reprodução decidem
ainda no estado embrionário sobre o pertencimento a esta ou
aquela casta designada com uma letra do alfabeto grego. A plebe é
recrutada por uma divisão engenhosa de células de gêmeos homo-
zigóticos, cujo crescimento físico e espiritual é limitado pela adição
artificial de álcool ao sangue. Isso significa que a reprodução da
estupidez, que antes acontecia de maneira não-consciente sob o
ditame das necessidades materiais, passa a ser uma tarefa da triun-
fante cultura de massas, agora que a miséria poderia ser eliminada.
Na fixação racional da relação irracional de classes, Huxley anuncia
o aspecto supérfluo dessa relação: a fronteira entre as classes já teria
hoje em dia perdido aquele seu ciráter "natural", cuja ilusão foi
produzida na fase não-dirigida da história da humanidade, de
maneira que a perpetuação da existência de classes é garantida ape-
nas pela seleção arbitrária e pela cooptação, pela diferenciação
administrativa na distribuição do produto social. Ao manterem, nas
incubadeiras do Brave N ew World, os embriões e bebês das castas

95
THEUiJUK W. ADORNO

inferiores com pouco ox1gemo, os dirigentes criam um ambiente


artificial de favela. Em meio a possibilidades ilimitadas, eles orga-
nizam a humilhação e a regressão. Mas uma regressão como essa,
induzida automaticamente e planejada pelo sistema totalitário, é
verdadeiramente total. Huxley, que conhece bem o assunto, mostra
as marcas da mutilação também nas classes superiores: "Even alphas
have been conditioned". Mesmo a consciência daqueles que fazem
questão de salvaguardar sua individualidade permanece dentro das
normas da estandardização, em virtude de sua própria identificação
com o "in-group". Eles não param de emitir, automaticamente, juí-
zos aos quais foram condicionados, da mesma forma como um rico
burguês de hoje alardeia, sem envergonhar-se, que o importante não
são as relações materiais, e sim uma regeneração religiosa, ou que
ele n~o entende a arte moderna. O "não entender" transforma-se
em virtude. Um casal de namorados pertencente à casta superior
sobrevoa o canal da Mancha em um dia de tempestade, e o homem
deseja retardar o vôo, para escapar da multidão e ficar sozinho com
sua namoràda, mais perto dela e de si mesmo. Pergunta então se ela
entende suas intenções. "I don't understand anything, she said with
decision, · determined to preserve her incomprehension intact". A
observação de Huxley não aponta apenas o rancor que a enunciação
da mais simples verdade provoca naqueles que não se permitem
qualquer contato com a verdade, para não colocar em risco o pró-·
prio equilíbrio, mas apresenta também o diagnóstico de um novo e
poderoso tabu. Quanto mais a existência social, graças a sua
onipotência e restritividade, transforma-se em ideologia de si
mesma aos olhos dos desiludidos, tanto mais rotula-os como
pecadores, cujos pensamentos ousam blasfemar contra a noção de
que o que existe é justo, simplesmente porque existe. Eles vivem em
aviões, mas obedecem ao mandamento: "Não voarás!". Um manda-
mento implícito como todo tabu autêntico. Aqueles que se ele-
varem acima da terra serão castigados pelos deuses da terra. O pacto
antimitológico com o existente restaura o poder de encanto do
mito. Huxley demonstra isso na fala de seus personagens. A idiotice
do small talk obrigatório e a conversação como papo furado são
levados discretamente ao extremo. Há muito tempo isso não se con-
funde mais com aquela regra do jogo que procurava impedir que a
conversa fosse tomada pelo jargão restrito dos especialistas ou por

96
PRISMAS

impertmencias insolentes. Ao contrário, o declínio da fala está


inscrito na tendência objetiva. A transformação virtual do mundo
em mercadorias, a predeterminação, pela maquinaria social, do que
é pensado e dito, torna o falar ilusório: sob a maldição da mesmice,
o falar se desintegra em uma série de juízos analíticos. As damas do
Brave New World - e nesse caso não foi preciso nenhuma extra-
polação - conversam apenas como consumidoras. Por princípio,
a conversa trata apenas do que consta no catálogo da indústria
onipresente, informações sobre o que está sendo oferecido. Objeti-
vamente supérfluas, essas conversas são invólucros vazios do diá-
logo, cuja idéia foi um dia a de encontrar aquilo que não se sabia
de antemão. Sem essa idéia, o diálogo estaria pronto para desa-
parecer. Pessoas completamente coletivizadas e que não param de
comunicar-se deveriam desfazer-se imediatamente de qualquer
comunicação, reconhecendo-se como mônadas mudas, o que já
eram secretamente desde os primórdios da era burguesa. Elas sub-
mergem na menoridade arcaica.
Estão afastadas tanto do espírito, que Huxley identifica de
maneira um tanto rude com os bens culturais tradicionais, exem-
plificando-os com Shakespeare, quanto da natureza enquanto pai-
sagem, a imagem de uma criação não violada pela sociedade. A
antítese entre espírito e natureza era o tema da filosofia burguesa em
seu apogeu. No Brave New World, os dois se unem contra a civi-
lização, que atinge a ambos e não tolera nada que seja diferente dela
mesma. Se a unidade de natureza e espírito da especulação idealista
era concebida como a suprema reconciliação, agora ela é entendida
como antítese absoluta à reificação absoluta. O espírito, síntese
espontânea e autônoma da consciência, somente é possível na me-
dida em que se contrapõe a algo não abarcado, não predetermi-
nado ca'tegorialmente, a "natureza"; e a natureza só é possível na
medida em que o espírito se pensa como antítese da reificação,
transcendendo-a, em vez de enfeitiçá-la em natureza. Ambos desa-
parecem: Huxley conhece bem o 'estilo mais recente de cidadão
comum, que contempla o mar como uma atração turística, enquan-
to permanece sentado no carro, escutando os reclames no rádio.
Isso caminha de mãos dadas com a hostilidade contra todo o passa-
do: o próprio espírito parece pertencer ao passado, um ingrediente
insípido dos fatos glorificados, do que está dado, e o que não mais

97
THEODOR W. ADORNO

existe transforma-se completamente em bric-à-brac e velharia. Uma


frase atribuída a Ford, "history is bunk", joga na lata de lixo tudo
que não corresponde aos mais recentes métodos industriais de pro-
dução, e finalmente tudo o que se refere à continuidade da vida.
Uma tal redução mutila os homens. Sua incapacidade de perceber
e de pensar tudo o que não é como eles mesmos, a auto-suficiência
sem saída de sua existência e o ditado da pura adequação subjetiva
a fins têm como resultado a pura dessubjetivação. Os sujeitos-
objetos produzidos cientificamente e purificados de todo mito,
que constituem a realização do não-espírito universal, são infantis.
As regressões meio espontâneas e meio organizadas de hoje em dia
transformam-se finalmente, no sentido da cultura de massas, em
mandamentos conscientemente compulsórios que regem o tempo
livre, ¼m "proper standard of infantile decorum", em gargalhada
do inferno diante do mandamento cristão de tomar as criancinhas
como modelo. A substituição de todos os fins por meios tem
culpa nisso. O culto da ferramenta enquanto tal, dissociada de
qualquer finalidade objetiva - no Brave New World domina lite-
ralmente a hoje ainda implícita religião do automóvel, com a subs-
tituição de Lord por Ford e da cruz pela marca do modelo T - , e
o amor fetichista a equipamentos, esses traços evidentes de loucura
que marcam justamente as pessoas que se orgulham de seu senso
prático e realista, são elevados a norma de vida. Mas isso vale tam-
bém para aqueles momentos em que a liberdade parece despontar
no Brave New World. Huxley reconheceu a contradição: em uma
sociedade na qual os tabus sexuais perderam sua força interna,
cedendo espaço à permissão do não-permitido ou se fixando por
meio de uma coerção vazia, o próprio prazer é degradado em fun,
em divertimento mesquinho, ocasião para a satisfação narcisista de
quem "teve" esta ou aquela pessoa. O sexo torna-se indiferente
pela institucionalização da promiscuidade, e mesmo o rompimen-
to com a sociedade é acolhido no interior dela mesma. O desafogo
fisiológico é desejável como parte da higiene, mas o aspecto afetivo
é cancelado como desperdício de energia sem utilidade social.
Deve-se evitar, a qualquer preço, toda emoção. A ataraxia proto-
burguesa englobou finalmente toda e qualquer reação. Ao atingir o
Eros, a ataraxia volta-se imediatamente contra o que antes era tido
como o bem supremo, a eudemonia subjetiva, em razão da qual se

98
PRISMAS

exigia a purificação dos afetos. Ao atacar o êxtase, ela ataca ao


mesmo tempo o núcleo de qualquer relação entre seres humanos, a
tentativa de escapar à existência monadológica. Huxley reconhece
a relação complementar entre coletivização e atomização.
Sua representação da orgia organizada, contudo, possui um
subtexto que desperta dúvidas quanto à tese satírica. Ao atestar o
caráter burguês do que se pretende antiburguês, a própria tese enre-
da-se nos hábitos burgueses. Huxley indigna-se com os sóbrios,
mas no íntimo é inimigo de qualquer embriaguez, e não apenas
daquela provocada pelos narcóticos, que ele antigamente condena-
va, seguindo a opinião dominante. Sua consciência, como a de tan-
tos ingleses emancipados, é pré-formada pelo próprio puritanismo
que ele abjura. Huxley não faz nenhuma distinção entre liberação e
degradação sexual. Já em seus primeiros romances a libertinagem
aparece como uma espécie de excitação localizada, sem aura, apre-
sentada de forma não muito diferente da maneira como os homens,
nas chamadas "culturas masculinas", costumam falar entre si sobre
as mulheres e o amor, com aquele gesto que mescla inevitavelmente
o orgulho da desenvoltura conquistada para abordar o assunto com
o desprezo pelo tema. Isso tudo acontece, em Huxley, de maneira
mais sublimada do que no Lawrence das four letter words, mas em
função disso há também um maior grau de repressão. A sua indig-
nação com a falsa felicidade sacrifica também a idéia da verdadeira
felicidade. Muito antes de Huxley reconhecer suas simpatias para
com o budismo, sua ironia, sobretudo na autodenúncia do intelec-
tual, traía um aspecto de sectarismo de penitente raivoso, ao qual
sua qualidade literária estava em geral imune. A fuga do mundo leva
à colônia de nudismo, onde até mesmo a sexualidade é destruída por
sua total exposição. Apesar das precauções tomadas por Huxley
para pintar como deformado, repugnante e insano este mundo do
"selvagem", um mundo atrasado em relação à absoluta cultura de
massas e encravado no Brave New World como reserva do humano,
podem-se notar os impulsos reacíonários aí presentes. Entre as
figuras da modernidade sobre as quais recai o anátema encontra-se
também Freud, que em certa passagem é equiparado a Ford e trans-
formado em mero efficiency expert da vida interior. Um sarcasmo
demasiado cômodo acusa Freud de ter sido o primeiro a ter des-
coberto the appalling dangers offamily life. Mas foi isso mesmo que

99
THEODOR W. ADORNO

Freud fez, e a justiça histórica está do seu lado: a crítica da família


como agente da opressão, muito conhecida na oposição inglesa
desde os tempos de Samuel Butler, ganhou terreno no exato mo-
mento em que a família perdeu, junto com sua base econômica, sua
última procuração para determinar o desenvolvimento humano,
transformando-se assim na mesma monstruosidade neutralizada
que Huxley denunciava com tanta insistência no âmbito da religião
oficial. Em face do encorajamento à sexualidade infantil que ele
atribui ao mundo do futuro, em um completo mal-entendido sobre
a postura demasiado ortodoxa com que Freud aderiu ao objetivo
pedagógico da renúncia aos instintos, Huxley se posiciona do lado
daqueles que criticam a era industrial menos por sua desumanização
do que pela decadência dos costumes. A questão dialética insondá-
vel qu~ procura saber se, no final das contas, a felicidade depende da
existência de proibições a serem rompidas é distorcida, pela menta-
lidade do romance, em uma resposta afirmativa, em uma desculpa
para a manutenção de proibições superadas, como se a felicidade
que provérri da transgressão do tabu pudesse legitimar o próprio
tabu, que existe no mundo não para promover a felicidade, mas sim
para frustrá-la. É verdade que, no romance, as diversas ocorrências
de orgias comunitárias e a recomendação da troca constante de par-
ceiros são conseqüências lógicas da atividade sexual oficial e roti-
neira, que transforma o prazer em um divertimento, negando-o ao .
assegurá-lo. Mas justamente na impossibilidade de encarar o prazer,
na impossibilidade de entregar-se inteiramente a ele pela reflexão,
continua tendo força o interdito ancestral, que Huxley vela pre-
maturamente. Se ele tivesse sido rompido, se o prazer realmente
tivesse se liberado dos freios institucionais que o atrelam até mesmo
na "orgy-porgy", então o Brave New World, com sua rigidez
cadavérica, se dissolveria. Seu princípio moral supremo reza que
todos pertencem a todos, a absoluta fungibilidade extingue o
homem enquanto indivíduo e liquida seu último "em si" como
mitologia, determinando o homem como mero "para outro" e com
isso, segundo Huxley, aniquilando-o. No prefácio que escreveu
após a guerra para a edição americana, Huxley descobriu o paren-
tesco daquele princípio com o enunciado de Sade que afirma que a
absoluta disponibilidade sexual de todos sobre todos deveria fazer
parte da declaração dos direitos humanos. Huxley enxerga nisso a

100
PRISMAS

consumação da loucura da razão conseqüente. Mas não percebe que


a máxima herética é inconciliável com o seu Estado Mundial do
futuro. Todas as ditaduras proscreveram a libertinagem, e os famo-
sos garanhões da SS de Himmler foram sua virtuosa contrapartida
estatal. Poder-se-ia definir a dominação como a disposição de uns
sobre outros, mas não como a total disposição de todos sobre todos.
Isso seria impensável em qualquer ordem totalitária. Essa definição
de dominação refere-se muito mais às relações de trabalho do que a
uma situação de anarquia sexual. O homem que é apenas "para
outro", o zoon politicon absoluto, teria sem dúvida se alienado de si
mesmo, mas também teria escapado do jugo da autopreservação que
mantém tanto o Brave New World quanto o antigo. A pura fungi-
bilidade destruiria o núcleo da dominação e prometeria a liberdade.
A fraqueza de toda a concepção de Huxley é o fato de ela dinamizar
radicalmente todos os seus conceitos, ao mesmo tempo que impede
cuidadosamente que estes conduzam a seu próprio oposto.
A scene à faire do romance é a colisão erótica dos dois "mun-
dos"; a tentativa da heroína Lenina, uma típica "career woman"
americana, bem-cuidada e educada, de seduzir, segundo as regras de
jogo de uma promiscuidade obrigatória, o "selvagem" que ela ama.
Seu antagonista corresponde ao tipo do adolescente tímido e sen-
sível, inibido e apegado à mãe, que prefere fruir seu sentimento na
contemplação do que expressá--lo, satisfazendo-se com a transfi-
guração lírica da amada. Um tipo, aliás, cultivado em Oxford e
Cambridge tanto quanto os ípsilons nas retortas, e que faz parte,
por isso, dos requisitos sentimentais do romance inglês recente. O
conflito surge porque John sente a entrega concreta da bela moça
como ofensa ao seu sentimento sublime, e então foge. A força per-
suasiva da cena volta-se contra seu thema probandum. O charme
artificial e a transparente falta de vergonha de Lenina não produzem
de forma alguma o efeito não-erótico pretendido, mas sim um efei-
to extremamente sedutor, ao qual, no final do romance, mesmo o
indignado selvagem civilizado nãÓ resiste. Se Lenina fosse a imago
do Brave New World, este perderia seu horror. É verdade que cada
um de seus gestos é socialmente pré-formado, faz parte de um rito
convencional. Mas na medida em que ela está inteiramente de acor-
do com a convenção, a tensão entre o convencional e a natureza
desaparece, e com isso também a violência que confere injustiça à

101
THEODOR W. ADORNO

convenção: psicologicamente falando, a má convenção é sempre o


sinal de uma identificação fracassada. O conceito de convenção
perderia a razão de ser, assim como o seu contrário. A mediação
social total produziria, de fora para dentro, uma segunda imediati-
dade, uma segunda humanidade. Não faltam tendências como essa
na civilização americana. Mas Huxley constrói reificação e huma-
nidade em uma oposição rígida, seguindo a tradição romanesca que
trata do conflito entre o homem vivo e as relações petrificadas. Ele
ignora a promessa humana da civilização porque esquece que a
humanidade, oposta à reificação, encerra em si mesma a própria rei-
ficação, não apenas como condição antitética da liberação, mas tam-
bém, positivamente, na forma sempre frágil e insuficiente pela qual
consegue realizar os impulsos subjetivos, ao objetivá-los. Todas as
categorias focalizadas pelo romance, a paternidade, a família, o
indivíduo e sua propriedade, já são produtos da reificação. Huxley
os lança como uma maldição sobre o futuro, sem perceber que as
bênçãos do passado que ele tanto evoca possuem a mesma essência.
Ele se transforma assim em porta-voz involuntário daquela nostal-
gia cuja afinidade com a cultura de massas foi percebida com
clareza por seu olhar fisiognomônico na canção sobre a proveta:
"Bottle of mine, it's you I've always wanted! Bottle of mine, why
was I decanted? ... There ain't no Bottle in all the world like that
dear Bottle of mine".
A revolta do "selvagem" contra a amada não é tanto, como tal-
vez pretendesse Huxley, o protesto da natureza humana pura con-
tra a fria arrogância da moda; a justiça poética apresenta essa revolta
muito mais como a agressão de um neurótico, a quem Freud, tão
maltratado por Huxley, poderia facilmente apontar a homossexua-
lidade reprimida como motivo de sua pureza forçada. Ele xinga a
moça de puta da mesma forma como o hipócrita treme de raiva
diante do que deve proibir a si mesmo. Na medida em que Huxley
não lhe dá razão, distancia-se da crítica da sociedade. No romance,
quem se incumbe dessa crítica é o "Alpha plus" Bernard Marx, uma
caricatura cética e complacente de judeu, que se revolta contra o
próprio conditioning. Huxley sabe muito bem que os judeus são
perseguidos por não se adaptarem inteiramente, e que por isso mes-
mo a consciência deles consegue às vezes olhar para além do sis-
tema social. Ele não suspeita da autenticidade da intuição crítica

102
PRISMAS

de Bernard. Mas até mesmo ela é atribuída a uma espécie de infe-


rioridade orgânica, ao inevitável inferiority complex, ao mesmo
tempo que o intelectual judeu radical é acusado, segundo os mode-
los tradicionais, de esnobismo vulgar, e finalmente de repreensível
covardia moral. Desde que Ibsen criou Gregers Werle e Stockmann,
e propriamente desde a Filosofia da História de Hegel, a política
cultural burguesa, falando em nome de uma mentalidade que con-
templa e pesa a totalidade, desmascarou aquele que gostaria de ser
diferente como filho ao mesmo tempo autêntico e abortado da tota-
lidade que contesta, insistindo no fato de que a verdade está sempre
com o todo, seja contra seu antagonista, seja através deste. O
romancista Huxley se solidariza com isso, enquanto o profeta cul-
tural abomina a totalidade. É certo que Gregers Werle arruína aque-
les que pretende salvar e que ninguém está livre da vaidade de
Bernard Marx, que pensa ser mais inteligente que os outros apenas
por ter-se elevado acima da estupidez geral. Mas o olhar que, livre e
soberanamente, avalia de fora e com neutralidade os fenômenos, o
olhar que pensa elevar-se acima da estreiteza da negação, acima da
arbitração da dialética, não é, justamente por essa razão, um olhar
da verdade ou da justiça. Um olhar justo e verdadeiro não deveria
apenas saborear a insuficiência do melhor para comprometê-lo com
o pior, mas sim retirar dessa insuficiência uma força adicional para a
revolta. O menosprezo das forças da negatividade, em virtude de
sua impotência, corresponde à falta de forças do positivo, que é
citado, contra a dialética, como absoluto. Quando o "selvagem", na
sua conversa decisiva com o world controller Mond, explica que
"what you need is something with tears for a change", a exaltação
deliberadamente insolente do sofrimento evoca não apenas uma
característica do individualista perdido, mas a metafísica cristã que
promete a redenção futura graças unicamente ao sofrimento. Mas
como essa redenção, apesar de toda a consciência esclarecida do
romance, não se atreve a aparecer, o culto do sofrimento torna-se
um absurdo fim em si mesmo, amaneiramento de um esteticismo
cuja ligação com os poderes das trevas Huxley não pode ignorar. O
lema nietzschiano "viva perigosamente", que o "selvagem" procla-
ma contra o hedonismo resignado do controlador do mundo, era
um lema perfeito para o totalitário Mussolini, ele próprio uma espé-
cie de "controlador do mundo".

103
THEODOR W. ADORNO

O núcleo demasiado positivo do romance aparece com clareza


em uma passagem na qual se discute um texto de biologia censura-
do pelo controlador do mundo: "The sort of idea that might easily
de-condition the more unsettled minds among the higher castes -
make them lose their faith in happiness as the Sovereign Good and
take to believing instead, that the goal was somewhere beyond,
somewhere outside the presem human sphere; that the purpose of
life was not the maintenance of well-being, but some intensification
and refining of consciousness, some enlargement of knowledge".
Apesar da formulação pálida, diluída, astuciosamente cautelosa
desse ideal, ele não consegue escapar da contraditoriedade. Ter-
mos como "intensification and refining of consciousness" ou
"enlargement of knowledge" hipostasiam sem cerimónia o espírito
diante çla prática e da satisfação das necessidades materiais. Como,
entretanto, todo espírito deve seu sentido ao processo vital da
sociedade e sobretudo à divisão social do trabalho, e como todo
espiritual, na busca de seu "preenchimento", relaciona-se com o
existente, sendo implicitamente também uma indicação à práxis,
assim, quando o espírito e as necessidades materiais são colocados
em uma oposição incondicionada e eterna, perpetua-se ideologica-
mente uma situação de divisão do trabalho e de cisão da sociedade.
Nada de espiritual, nem tampouco qualquer sonho escapista, foi
jamais concebido sem que seu conteúdo já não implicasse objeti-
vamente uma modificação da realidade material. Não há nenhum
afeto, nenhum sentimento íntimo, que não implique por fim algo
exterior, sem o qual estes se reduziriam à intenção sublimada, à
mera aparência, à inverdade. Nem mesmo a paixão abnegada de
Romeu e Julieta, que Huxley converte em uma espécie de "valor", é
um "em si" autárquico. Ela se transforma em algo espiritual, em
algo mais do que um mero espetáculo da alma, na medida em que
visa, para além do espírito, a união carnal. Huxley trai essa união em
nome do anseio que ela provoca. Pois a beleza do "Es war die
Nachtigall und nicht die Lerche" [Foi o rouxinol, e não a cotovia] é
inseparável da simbólica da sexualidade. Glorificar os versos do
"Cântico do dia" em razão de sua transcendência, sem escutar como
transcendente justamente o fato de ele não contentar-se consigo
mesmo, mas sim querer ser preenchido, seria algo tão vazio como a
sexualidade fisiologicamente delimitada do Brave New World, que

104
PRISMAS

mata a magia que não se deixa conservar como um fim em si mes-


mo. A desgraça do presente não é o predomínio da chamada cultura
material sobre a espiritual: se Huxley lamentasse isso encontraria
companheiros indesejáveis, os "Arch-Community-Songster" de
todas as seitas e visões de mundo neutralizadas. O que deveria ser
atacado é a separação, ditada socialmente, entre a consciência e sua
realização social, uma realização que consistiria na própria essência
da consciência. Exatamente o chorismus entre o espiritual e o mate-
rial, instituído pela philosophia perennis de Huxley, a substituição
da "faith in happiness" por um indefinido e abstrato "goal some-
where beyond", reforça a situação reificada, cujos sintomas Huxley
não pode tolerar: a neutralização de uma cultura que se separa do
processo real de produção. "Se as necessidades materiais são de
antemão diferenciadas das espirituais", escreveu em certa ocasião
Horkheimer, "deve-se indiscutivelmente insistir na satisfação das
necessidades materiais, pois esta implica também uma modificação
da sociedade. Ela inclui, por assim dizer, a sociedade justa, que
garante a todos os homens as melhores condições de vida possíveis.
Isso também significa a eliminação definitiva da má dominação. A
ênfase em demandas ideais e isoladas, porém, leva a um contra-sen-
so real. Não se pode afirmar o direito à nostalgia, ao conhecimento
transcendental, à vida perigosa, A luta contra a cultura de massa
pode subsistir unicamente na demonstração dos vínculos entre essa
cultura e a continuidade da injustiça social. É ridículo acusar a goma
de mascar de ser a culpada pela diminuição do interesse pela meta-
física, mas poder-se-ia muito provavelmente demonstrar que os
lucros de Wrigley e seu palácio em Chicago estão fundados na fun-
ção social de reconciliar os homens com as suas más condições de
vida, afastando-os da possibilidade de criticá-las. Vale a pena mos-
trar n:io que a goma de mascar prejudica a metafísica, mas, ao con-
trário, que ela mesma é metafísica. Nós criticamos a cultura de
massa não porque ela oferece degi.ais às pessoas ou porque torna
suas vidas demasiado seguras - deixemos isso para a teologia lute-
rana - , mas porque ela contribui para que os homens recebam
muito pouco e muita porcaria; para que camadas sociais inteiras
vivam, interna e externamente, em uma miséria terrível; para que os
homens se resignem a aceitar a injustiça; para que o mundo seja
mantido em uma situação tal, que apenas reste a alternativa entre

105
THEODOR W. ADORNO

uma catástrofe gigantesca e a conspiração de elites insensíveis para a


garantia de uma paz duvidosa". Huxley contrapõe à esfera da satis-
fação das necessidades, como corretivo, uma outra esfera, que se
assemelha de modo suspeito àquela que a burguesia costuma cha-
mar de "elevada". O seu ponto de partida é um conceito invariante
e biológico de necessidade. Toda necessidade humana, porém, é
mediada historicamente em sua configuração concreta. O caráter
estático que hoje em dia as necessidades parecem ter assumido, a sua
fixação na reprodução da mesmice, é ele mesmo um mero reflexo da
produção material, que, com a eliminação do mercado e da concor-
rência e a concomitante permanência das relações de propriedade,
acaba por assumir um caráter estacionário. Com o fim dessa imobi-
lidade, as necessidades parecerão completamente diferentes. Se a
produção fosse redirecionada incondicional, irrestrita e imediata-
mente para a satisfação das necessidades, até mesmo e especialmente
das que foram produzidas pelo sistema hoje dominante, essas mes-
mas necessidades se modificariam de maneira decisiva. A incapa-
cidade de discernir entre necessidades autênticas e falsas pertence
essencialmente à fase atual. Nela, a reprodução e a repressão da vida
formam urba unidade, que é perceptível como lei do todo, mas não
é visível em suas manifestações individuais. Um dia ficará suficien-
temente claro que os homens não precisam do lixo fornecido pela
indústria cultural, nem dos produtos de primeira classe oferecidos
por indústrias mais sólidas. A idéia, por exemplo, de que o cinema
seja necessário, ao lado da habitação e da alimentação, para a repro-
dução da força de trabalho é "verdadeira" apenas em um mundo
que prepara os homens para a reprodução da força de trabalho, cons-
trangindo as necessidades humanas de acordo com o interesse da
oferta e do controle social. A idéia de que uma sociedade emanci-
pada clame pelo histrionismo barato de Lametta ou pelas horríveis
sopas de Devory é absurda. Quanto melhor é a sopa, mais praze-
rosa é a renúncia a Lametta. Se a penúria desaparecer, a relação entre
necessidade e satisfação se modificará. Hoje em dia, a obrigação de
produzir para necessidades mediadas e petrificadas pelo mercado
constitui um dos principais meios para manter todos na linha. Nada
pode ser pensado, escrito e realizado que vá além dos limites de uma
situação que mantém em grande parte seu poder graças às neces-
sidades de suas vítimas. É inimaginável que, em uma sociedade

106
PRISMAS

modificada, a compulsão à satisfação das necessidades continue a


funcionar como grilhão. A sociedade atual se recusou em larga me-
dida a satisfazer necessidades que lhe são inerentes, mas manteve a
produção sob seu controle justamente sob o pretexto dessas neces-
sidades. É um procedimento tão prático quanto irracional. Uma
ordem social que revogue a irracionalidade envolvida na produção
de mercadorias, mas ao mesmo tempo satisfaça as necessidades,
abolirá também aquele espírito prático que se reflete até mesmo na
ausência de finalidade da l'art pour l'art burguesa. Ela não apenas
suspenderá [aufheben] o antagonismo tradicional entre produção e
consumo, mas também a sua mais recente unidade na forma do capi-
talismo de Estado, convergindo assim com a idéia de que, segundo
as palavras de Karl Kraus, "Deus não criou os homens como produ-
tores e consumidores, mas como homens". A falta de utilidade não
será mais uma vergonha. A adaptação perderá seu sentido. Somente
então a produtividade agirá sobre a necessidade em um sentido
autêntico, não desfigurado: não para saciar o insatisfeito com coisas
inúteis, mas para possibilitar que a satisfação se relacione com o
mundo sem ter de guiar-se pelo princípio da utilidade universal.
Na crítica às falsas necessidades, Huxley preserva a idéia da
objetividade da felicidade. A repetição constante da frase "Every-
body's happy now" converte-se na mais extrema acusação. Na medi-
da em que os homens são produtos de uma ordem social baseada
na frustração e no engodo, uma ordem social que forja as necessi-
dades humanas, a felicidade que corresponde à satisfação dessas
necessidades é na verdade algo ruim, o último apêndice da maqui-
naria. Enquanto no mundo totalmente integrado, que não tolera a
tristeza, o mandamento da Epístola aos Romanos, "Chorai com os
que choram", vale mais do que nunca, o "Alegrai-vos com os que
estão alegres" transformou-se em menosprezo sangrento: a porção
de alegria que a ordem social concede a suas vítimas alimenta-se da
perpetuação da miséria. Por isso, a mera renúncia à falsa felicidade
tem hoje em dia um efeito subven.ivo. A reação de Lenina ao fato
de seu "selvagem" achar repugnante um filme idiota, "Why did he
go out of his way to spoil things ?", é a manifestação típica de uma
densa rede de ofuscamento. Que não se deva acabar com essas ilu-
sões sempre fez parte das máximas dos que nos tiraram qualquer
ilusão. Mas a descrição da irritação de Lenina contém ao mesmo

107
THEODOR W. ADORNO

tempo um elemento de crítica à própria atitude de Huxley. Para ele,


demonstrar a futilidade da felicidade subjetiva, segundo os parâ-
metros da cultura tradicional, é a mesma coisa que demonstrar a
futilidade da felicidade em si. No lugar da felicidade deveria ser
introduzida uma ontologia destilada a partir da religião e da filoso-
fia do passado, segundo as quais a felicidade e o bem supremo obje-
tivo são inconciliáveis. Uma sociedade que almejasse unicamente a
felicidade encaminhar-se-ia inevitavelmente para a "insanity", para
a bestialização mecanizada. Mas a precipitada reação defensiva de
Lenina trai sua insegurança, a suspeita de que sua felicidade está
deformada pela contradição, de que o que ela sente não é felicidade,
mesmo segundo seu próprio conceito. Não é preciso recorrer hipo-
critamente a Shakespeare para perceber a imbecilidade daquele
filme e o "desespero objetivo" do espectador que o aprecia. A essên-
cia mesin.a do filme, mera duplicação e reforço do que já existe; sua
estonteante superfluidade e falta de sentido, mesmo em um tempo
livre marcado pelo infantilismo; a incompatibilidade entre o realis-
mo tautológico e a pretensão de constituir uma imagem - tudo isso
se revela no próprio filme, sem a necessidade de um recurso a
vérités éternelles citadas dogmaticamente. O fato de que o circulus
vitiosus minuciosamente elaborado por Huxley tenha suas falhas
não se deve a defeitos em sua construção imaginária, mas à concep-
ção de uma felicidade subjetivamente perfeita, mas objetivamente
absurda. Se a sua crítica à felicidade meramente subjetiva é válida,
então a idéia de uma felicidade meramente objetiva, separada dos
anseios humanos e hipostasiada, também sucumbe à ideologia. O
fundamento da inverdade é a separação entre subjetivo e objetivo,
reificada em alternativas rígidas. Mustapha Mond, o raisonneur e
advocatus diaboli do livro, que encarna a consciência mais articula-
da que o Brave New World tem de si mesmo, reduz essa alternativa
a uma fórmula. Diante da objeção do "selvagem" de que o homem
foi degradado pela civilização total, ele responde: "Degrade him
from what position? As a happy, hardworking, goods-consuming
citizen he's perfect. Of course, if you choose some other standard
than ours, then perhaps you might say he was degraded. But you've
got to stick to one set of postulares". Em ambos os sets ofpostulates,
oferecidos à escolha como mercadorias prontas, transparece o rela-
tivismo: a pergunta pela verdade se dissolve em uma relação "se

108
PRISMAS

você escolhe outro parâmetro, então ... ". É assim que o universo de
valores de interioridade e profundidade, isolado por Huxley, torna-
se presa da pragmatização. O "selvagem" relata que, em um de seus
acessos de ascetismo, permaneceu horas com os braços abertos jun-
to a um rochedo, em um dia de extremo calor, para experimentar o
que deve sentir um crucificado. Instado a explicar-se, dá a curiosa
resposta: "Because I felt I ought to. If Jesus could stand it. And
then, if one has dane something wrong ... Besides, I was unhappy,
that was another reason". Se mesmo o "selvagem" não encontra,
para a sua aventura religiosa e para a escolha do sofrimento, nenhu-
ma outra justificação além do fato de ter sofrido, dificilmente pode
contradizer seu entrevistador, que acha mais racional, para curar-se
da depressão, tomar Soma, a panacéia que leva à euforia. Irracional-
mente hipostasiado e transformado, por assim dizer, em mera exis-
tência, o mundo das idéias exige ser justificado pelo mero existente,
sendo prescrito justamente em nome daquela felicidade empírica
que deve negar.
A alternativa cruel entre sentido objetivo e felicidade subjetiva,
a tese da exclusividade, é o fundamento filosófico da conclusão rea-
cionária do romance. Deve-se decidir entre a barbárie da felicidade
e a cultura como condição objetivamente superior, mas que contém
em si a infelicidade. "A progressiva dominação da natureza e da
sociedade", interpreta Marcuse, «elimina toda e qualquer transcen-
dência, seja ela física ou psíquica. A cultura, termo que resume um
lado dessa oposição, vive da insatisfação, do anseio, da fé, da dor, da
esperança, em suma, vive do que não existe, mas que deixa suas
marcas na realidade. Isso significa, porém, que a cultura vive da
infelicidade". O núcleo da controvérsia é essa disjunção rígida: não
se pode conseguir uma sem a outra, não se tem a técnica sem o
death ronditioning, nem o progresso sem a regressão infantil
manipulada. Na própria disjunção, entretanto, deve-se distinguir
entre a incorruptibilidade do pensamento e o constrangimento
moral ideológico. Somente o conformismo poderia aceitar a atual
insanidade objetiva como um simples acidente de percurso do
desenvolvimento histórico. A regressão é essencial ao desenvolvi-
mento conseqüente da dominação. A teoria, com sua benevolente
liberdade de escolha, não pode aceitar apenas o que lhe agrada na
tendência histórica, deixando de lado todo o resto. Tentativas de

109
THEODOR W. ADORNO

assumir uma visão de mundo que adote uma "postura positiva" em


relação à técnica, advogando que seria necessário dar-lhe um sen-
tido, são consolos artificiais que favorecem apenas o questionável
entusiasmo pelo trabalho. Mas a pressão exercida universalmente
pelo Brave New World é incompatível, segundo seu próprio concei-
to, com aquela imobilidade fúnebre que ele transforma em pesadelo
angustiante. Não é por acaso que todos os personagens principais,
até mesmo Lenina, têm traços de perturbação mental. O "isso ou
aquilo" é falso. O estado de completa imanência, pintado com pra-
zer ferino, transcende a si mesmo, não em virtude de uma seleção
externa e impotente do que é desejavel e do que se deve rejeitar, mas
devido ao seu feitio objetivo. Huxley sabe que há uma tendência
histórica que se impõe por cima da consciência dos homens. Para
ele, ess:i tendência é a completa alienação e auto-estranhamento do
sujeito, que fez de si mesmo um mero meio, na ausência de um fim
qualquer. Mas Huxley fetichiza o fetichismo da mercadoria. O cará-
ter mercadoria torna-se para ele algo de ôntico, existente em si
mesmo, diante do qual ele capitula, em vez de desmascarar esse sor-
tilégio como mera forma de reflexão, como falsa consciência que os
homens têm de si mesmos, uma falsa consciência que deveria desa-
parecer junto com seu fundamento econômico. Huxley não admite
que a desumanidade fantasmagórica do Brave New World é uma
forma esquecida de relação humana, é trabalho social; ele não
admite que o homem totalmente reificado é o homem que ofuscou
a si mesmo. Em vez disso, Huxley atiça o confronto entre fenô-
menos superficiais não analisados, no estilo do "conflito entre o
homem e a máquina". Seguindo a crença dos filisteus românticos,
ele atribui à técnica uma culpa, a eliminação do trabalho, que não
reside nela mesma, mas é a conseqüência, como aliás se entrevê em
certas passagens do romance, de seu entrelaçamento com as relações
sociais de produção. Mesmo a incompatibilidade atual entre arte e
reprodução em massa não se deve à técnica enquanto tal, mas ao
fato de que um estado de coisas absurdamente prolongado obriga a
técnica a manter a pretensão à individuação, ou, para usar a expres-
são de Benjamin, a "aura", uma pretensão que ela não pode realizar.
Até mesmo a autonomização dos meios, que Huxley censura na
técnica, não priva necessariamente os fins de seus direitos. É jus-
tamente no caminho inconsciente da consciência, na arte 1, que o

110
PRISMAS

jogo cego com os meios consegue estabelecer e desenvolver fins.


A relação entre meios e fins, entre humanidade e técnica, não se
deixa regular segundo prioridades ontológicas. A alternativa aca-
ba por concluir que os homens não deveriam esforçar-se para sair
da desgraça. A humanidade é colocada diante da escolha entre a
regressão a uma mitologia, questionável até mesmo para Huxley, e o
progresso em direção à completa falta de liberdade da consciência.
Não resta espaço algum para um conceito de homem que não quer
ser subsumido nem no constrangimento coletivo do sistema, nem
no indivíduo contingente. A construção que denuncia o Estado
Mundial totalitário e exalta retrospectivamente o individualismo
que o gerou é ela mesma uma construção totalitária. O pensamento
que não deixa saída alguma já implica de antemão a liquidação de
tudo o que não é assimilado, uma liquidação diante da qual o
próprio Huxley se apavora, e com razão. A conseqüência prática do
dito burguês "não há nada a fazer", que ecoa por todo o romance, é
justamente o pérfido "deves te acomodar" do Brave New World
totalitário. A univocidade da tendência, a linearidade do conceito de
progresso empregado no romance, deriva da forma restrita pela
qual as relações de produção se desenvolveram na "pré-história".
O caráter inelutável da utopia negativa provém do fato de que ela
projeta as limitações impostas pelas relações de produção - a
entronização, condicionada pefo lucro, do aparato de produção -
como característica das forças produtivas técnicas e humanas. Ao
profetizar a entropia da história, Huxley sucumbe à aparência
propagada pela sociedade contra a qual ele protesta.
Huxley critica o espírito do positivismo. Mas como até mesmo
essa crítica se atém aos choques, às imediatidades vivenciadas, regis-
trando sem maiores questionamentos a aparência social como fato,
o próprio Huxley torna-se positivista. Apesar do tom pouco ami-
gável, ele está em consonância com a crítica cultural descritiva, que
fornece, com os lamentos acerca da inevitável decadência da cultura,
os pretextos para o fortalecimento da dominação que ele tanto
denuncia. Em nome da cultura, a civilização caminha para a bar-
bárie. No lugar dos antagonismos, Huxley tem em vista algo como
um sujeito integral da ratio tecnológica, sem nenhuma contradição
interna, e conseqüentemente um "desenvolvimento total" simplista.
Tais concepções são superficiais e pertencem às idéias correntes

111
THEODOR W. ADORNO

sobre história universal e estilo de vida. Embora ofereça uma ins-


tigante fisiognomonia da unificação [Unifizierung], ele falha em
decifrar os sintomas dessa unificação como expressões da subs-
tância antagônica, da pressão da dominação, que tem como fim a
totalidade. Apesar de Huxley ironizar o "Everybody's happy
nowadays", sua concepção de história, que revela sua essência mais
pela forma do que pela matéria de seus eventos, é profundamente
harmoniosa. Sua idéia de progresso ininterrupto distingue-se da
liberal pelos acentos, e não pelo modo de ver as coisas. Como um
liberal benthamiano, Huxley prognostica um desenvolvimento que
trará a maior felicidade possível para o maior número possível de
pessoas: o uníco problema é que esse desenvolvimento não lhe agra-
da. Ele condena o Brave New World com o mesmo saudável bom
senso q1jo despotismo é ridicularizado no livro. É por isso que o
romance está repleto de momentos não analisados, derivados exa-
tamente daquela espécie de visão de mundo desbotada que Huxley
tanto deplora. A insignificância do efêmero e a natureza catastrófica
da história são postas em contraste com. noções invariantes: a
philosophia perennis e o sol eterno do reino celestial das idéias.
Desse modo, interioridade e exterioridade recaem em uma antítese
primitiva: o mal aflige o homem desde a inseminação artificial até a
senilidade galopante, enquanto a dignidade da categoria de "indi-
víduo" jamais é posta em questão. O individualismo irrefletido se
impõe, como se o horror observado pelo romance não fosse ele
mesmo fruto da sociedade individualista. A espontaneidade indi-
vidual é eliminada do processo histórico, mas em compensação o
conceito de indivíduo é destacado da história e incorporado à
philosophia perennis. A individuação, algo essencialmente social,
torna-se novamente natureza imutável. O envolvimento do indiví-
duo na rede de culpa foi percebido pela filosofia burguesa em seu
apogeu, mas essa compreensão deu lugar ao nivelamento empírico
do indivíduo por meio do psicologismo. Seguindo uma tradição
cuja preponderância suscita mais resistência do que respeito, a idéia
de indivíduo é exaltada ao extremo, enquanto os indivíduos, por sua
vez, são convencidos de sua bancarrota moral pelos epígonos do
romantismo de desilusão. O reconhecimento da nulidade do indi-
víduo, tese verdadeira do ponto de vista social, é imputado ao já
sobrecarregado indivíduo privado. O livro de Huxley, e toda sua

112
PRISMAS

obra, atribui ao indivíduo absolutizado, em razão de sua culpa,


hipocrisia, falsidade, egoísmo limitado, em suma, de tudo o que
pode reclamar uma psicologia do Eu sutilmente descritiva, o fato de
que este seja fungível, não seja na verdade ele mesmo, mas "per-
sona" da sociedade. Em um espírito autenticamente burguês, o
indivíduo é para Huxley ao mesmo tempo tudo, porque foi um dia
a base do princípio da propriedade privada, e nada, porque é abso-
lutamente substituível enquanto mero suporte da propriedade. Esse
é o preço que a ideologia do individualismo tem de pagar por sua
própria inverdade. O fabula docet do romance é mais niilista do que
convém ao humanitarismo que o proclama.
Mas com isso comete-se uma injustiça justamente contra o
factual, tão enfatizado pela mentalidade positivista. A utopia de
Huxley partilha com todas as utopias abrangentes o aspecto da vai-
dade. Os acontecimentos tomaram outros rumos, e continuarão a
tomar caminhos diferentes. O que fracassa não é a fantasia exata,
mas o próprio olhar para o futuro distante, a tentativa de adivinhar
a facticidade do que não existe, uma postura marcada pela impotên-
cia da presunção. O momento antitético da dialética não se deixa
escamotear silogisticamente a partir, por exemplo, do conceito
genérico de esclarecimento. Quem tenta fazer isso elimina o que
não é próprio do sujeito, o que não é "espiritual" e transparente
por si mesmo, a força motriz d~ movimento dialético. Essa utopia
completamente delineada, mesmo que esteja repleta de elementos
tecnológicos materialistas, mesmo estando correta segundo os parâ-
metros das ciências naturais, é por sua própria abordagem uma
recaída na filosofia da identidade, no idealismo. É por isso que a
utopia perde com a irônica "exatidão" que as projeções de Huxley
se esforçam em apresentar. Por mais que seja certo que ó conceito
de esclarecimento total, inconsciente de si mesmo, tende a reverter-
se em irracionalismo, não é possível deduzir a partir desse conceito
se isso ocorrerá e permanecerá assim. As catástrofes políticas que se
delineiam não podem deixar de atingir também a trajetória da civi-
lização tecnológica. Ape and essence é a tentativa de certo modo
apressada de corrigir um erro que deriva não do conhecimento
insuficiente de física nuclear, mas de uma concepção linear de
história, e que portanto não pode ser corrigido pela elaboração de
materiais suplementares. Se os prognósticos do Brave New World já

113
THEODOR W. ADORNO

eram implausíveis, os de seu segundo livro sobre o futuro trazem,


por exemplo no culto ao diabo, o estigma da total inverossimi-
lhança, que dificilmente pode ser defendida, em meio à técnica rea-
lista do romance, como um procedimento de alegoria filosófica. O
viés ideológico da concepção, porém, vinga-se na inevitável defi-
ciência do pensamento. A atitude assemelha-se involuntariamente
à da grande burguesia, que assegura solenemente que, ao defender
a continuidade da economia baseada no lucro, não está agindo em
função de um interesse próprio, mas em defesa dos interesses
humanos. Pois os homens ainda não estariam maduros para o socia-
lismo e, se não precisassem mais trabalhar tanto, não saberiam o que
fazer com o tempo livre. Sabedorias desse tipo não apenas são com-
prometidas por seu uso, como são também desprovidas de qualquer
conteúdo de conhecimento, porque reificam "os homens" enquanto
dados e exaltam o observador enquanto instância livre flutuante
[freischwebend]. Essa frieza se encontra no âmago das construções
de Huxley. Repleto de uma preocupação fictícia com a desgraça que
a utopia realfzada poderia causar à humanidade, ele afasta de si a
desgraça muito mais direta e real que a utopia deixa para trás. É
inútil ficar lamentando sobre o que será do homem quando a misé-
ria e a fome desaparecerem do mundo. Pois ele é vítima da miséria e
da fome graças à própria lógica de uma civilização que o romance
não consegue acusar de nada pior do que a monotonia do País da
Cocanha, inalcançável por princípio. Mas apesar de toda indignação
contra a calamidade na base do romance há uma construção de
história que conhece o tempo. Atribui-se ao tempo uma responsa-
bilidade que seria do homem. A relação com o tempo é parasitária.
O romance transfere, de certa forma, a culpa do presente para os
que ainda estão por nascer. Nisso se reflete o funesto "nada deve
mudar", produto final do amálgama originalmente protestante
entre recolhimento e repressão. Já que o homem nasceu sob o sig-
no do pecado original e não é capaz de chegar à terra prometida, o
próprio melhoramento do mundo é pervertido em pecado. Mas o
romance não se aproveita do sangue dos ainda não nascidos, fracas-
sa devido à debilidade de um esquema vazio, enfeitado com inven-
ções por vezes grandiosas. Já que a transformação dos homens não
pode ser calculada e escapa à imaginação antecipadora, ela é substi-
tuída pela caricatura dos homens de hoje, segundo o procedimento,

114
PRISMAS

muito antigo e conhecido, da "sátira". A ficção do futuro curva-se


diante da onipotência do presente: o que ainda não foi torna-se
cómico pelo efeito medíocre de sua semelhança com o que já é,
como os deuses das operetas de Offenbach. A imagem do mais dis-
tante é substituída pela imagem do mais próximo, como quando se
olha o espetáculo com o binóculo invertido. O truque formal de
falar do futuro como se fosse o passado confere ao conteúdo um
conformismo repugnante. O aspecto grotesco que o presente assu-
me pelo confronto com sua própria projeção no futuro provoca o
mesmo riso que as cabeças aumentadas das representações natura-
listas. O conceito patético de "homem eterno" resigna-se ao con-
ceito, indigno do homem, de "homem normal", o mesmo de
ontem, hoje e amanhã. O que se deve reprovar no romance não é o
momento contemplativo enquanto tal, que este compartilha com a
filosofia e com qualquer representação, mas o fato de que ele não
inclui em sua reflexão o momento de uma práxis que poderia
romper com essa infame continuidade. A humanidade não tem de
escolher entre um Estado Mundial totalitário e o individualismo. Se
a grande perspectiva histórica é algo mais do que a Fata Morgana
do olhar controlador, então ela se encaminha para a questão de
saber se a sociedade irá finalmente determinar a si mesma ou pro-
vocar a catástrofe terrestre.

115
Moda intemporal
sobre o jazz::~

Por mais de quarenta anos, desde que em 1914 irrompeu nos Estados
Unidos o entusiasmo contagiante pelo jazz, este tem se mantido
como fenômeno de massa. O procedimento jazzístico, cuja pré-
história remonta a certas canções da primeira metade do século
XIX, como "Turkey in the straw" ou "Old zip coon", permaneceu
inalterado em sua essência, a despeito de todas as declarações de
seus historiadores propagandistas. O jazz é uma música que com-
bina a mais simples estrutura formal, melódica, harmônica e métri-
ca com um decurso musical constituído basicamente por síncopas
de certo modo perturbadoras, sem que isso afete jamais a obstina-
da uniformidade do ritmo quaternário básico, que se mantém sem-
pre idêntico. Isso não quer dizer que nada aconteceu no jazz: o
piano monocromático que predominava no ragtime foi suplantado
por pequenos conjuntos, geralmente de sopros; os aspectos selva-
gens das práticas das primeiras jazzbands de Chicago e do Sul do
país, especialmente de New Orleans, amenizaram-se com a cres-
cente comercialização e com a ampliação do público, para serem
novamente reanimados por tentativas de especialistas, que entre-
tanto, quer se chamem Swing ot1 Bebop, logo sucumbem nova-
mente ao comércio, perdendo rapidamente o gume. Além disso, o
próprio princípio da síncopa, que no começo precisou impor-se
pelo exagero, tornou-se nesse meio tempo tão evidente que pode

, _ Escrito em 1953, publicado em Merkur, 1953.

117
THEODOR W. ADORNO

até mesmo abrir mão dos acentos nos tempos fracos do compasso,
antes indispensáveis. Quem ainda hoje utiliza esses acentos é ridi-
cularizado como corny, fora de moda como os vestidos de noite de
1927. A rebeldia transformou-se em "fluência" à segunda potência,
e a forma de reação do jazz se sedimentou de tal maneira que toda
uma geração de jovens ouve desde o início em síncopas, quase não
mais sustentando o conflito original entre estas e a métrica funda-
mental. Mas isso tudo não muda nada no que se refere à mesmice
do jazz, que levanta a questão de como é possível que milhares de
pessoas ainda não tenham se cansado desse estímulo monótono. O
hoje mundialmente conhecido redator de arte da revista Life,
Winthrop Sargeant, a quem devemos o melhor, mais sério e equili-
brado livro sobre o assunto, escreveu há dezessete anos que o jazz
não seria de forma alguma um novo idioma musical, mas "mesmo
em su~s manifestações mais complexas, um caso muito simples de
fórmulas incessantemente repetidas". Uma observação imparcial
como essa só é possível na América. Na Europa, onde o jazz ainda
não se tornou uma instituição cotidiana, existe a tendência, espe-
cialmente entre os devotos que adotam o jazz como visão de mun-
do, a compreendê-lo erroneamente como irrupção da natureza
original e indomada, como um triunfo sobre os bens culturais
museificados [musealen Kulturgüter]. A presença de elementos afri-
canos no jazz não pode ser posta em dúvida mas também não há .
dúvida de que toda espontaneidade foi nele acomodada, desde o
início, a um esquema rígido, que associou e continua a associar ao
gesto da rebeldia também a disposição à obediência cega, da mesma
forma como, segundo a psicologia analítica, o tipo sadomasoquista
se rebela contra a figura do pai, mas mesmo assim o admira secreta-
mente, deseja igualar-se a ele, mas aprecia a odiosa submissão. É jus-
tamente essa tendência que favorece a estandardização, a exploração
comercial e o enrijecimento do meio. Não foram os comerciantes
inescrupulosos que em primeiro lugar fizeram mal à voz da natu-
reza, o próprio jazz se encarregou disso, e seus próprios usos leva-
ram a esse abuso, contra o qual os puristas do jazz autêntico e não
aguado protestam indignados. É possível que já os Negro Spirituals,
forma precursora do Blues, tenham unido, enquanto música de
escravos, o lamento sobre a falta de liberdade à sua confirmação
submissa. Aliás, é muito difícil isolar os elementos autenticamente

118
PRISMAS

negros no jazz. É certo que o lumpemproletariado branco tomou


parte na pré-história do jazz, antes de este ter sido iluminado pelos
holofotes de uma sociedade que parecia estar à sua espera, já fami-
liarizada, pelo Cake-walk e pelo sapateado, com os seus impulsos.
Mas justamente o pequeno suprimento de procedimentos e
peculiaridades, a exclusão rigorosa de qualquer entonação não
regulamentada, é o que dificulta a compreensão da persistência de
uma especialidade que admite modificações apenas quando estas
lhe são impostas, geralmente com fins propagandísticos. Enquanto
o jazz estabeleceu para si mesmo um pequeno pedaço de eterni-
dade em meio a um período histórico extremamente dinâmico, não
demonstrando a menor disposição em ceder algo de seu mono-
pólio, mas procurando unicamente adaptar-se aos seus ouvintes,
altamente especializados ou indiferentemente regressivos, este não
perdeu nada do seu caráter de moda. O que se fez durante quaren-
ta anos é tão efémero como se durasse apenas uma saison. O jazz é
uma maneira de interpretação. Como nas modas, o importante é o
espetáculo, e não a coisa em si. O jazz não é mais composto, ape-
nas frisa a música "leve", os produtos mais desoladores da indús-
tria de hits musicais. Os fanáticos - nos Estados Unidos eles se
chamam fans - percebem isso com clareza, preferindo invocar os
aspectos de improvisação da execução jazzística. Mas essas impro-
visações são meros embustes. Qualquer adolescente precoce nos
Estados Unidos sabe que a rotina hoje em dia não deixa mais espa-
ço para a improvisação e o que aparece como sendo espontâneo foi
estudado cuidadosamente, com precisão maquinal. E mesmo onde
há realmente improvisações, nos conjuntos heterodoxos que talvez
ainda hoje improvisam por prazer, as canções de sucesso são o úni-
co material. Por isso as chamadas improvisações nada mai:s são que
paráfra'ses de fórmulas básicas, sob as quais o esquema, embora
encoberto, aparece a todo instante. Até mesmo as improvisações
são em certo grau normatizadas, e sempre voltam a se repetir. O
alcance do que é permitido no jaz; é tão limitado quanto um corte
especial de vestido. Diante das enormes possibilidades de invenção
e tratamento do material musical - até mesmo, quando absoluta-
mente necessário, na esfera do entretenimento -, o jazz apresen-
ta-se em um estado de completa indigência. O que ele utiliza das
técnicas musicais disponíveis é inteiramente arbitrário. Já apenas a

119
THEODOR W. ADORNO

proibição de modificar vividamente o compasso fundamental no


decorrer da peça limita a execução a tal ponto que a obediência a
essa proibição exige antes uma regressão psicológica do que uma
consciência estética de estilo. As restrições de natureza métrica, har-
mônica e formal não são menos constrangedoras. A mesmice do
jazz não consiste em uma organização básica do material, na qual a
fantasia, como em uma linguagem articulada, poderia evoluir livre-
mente e sem inibições, mas em uma promoção de truques, fórmu-
las e clichês bem definidos, que excluem todo o resto. É como se
alguém se agarrasse desesperadamente ao fascínio do que está em
voga, negando a imagem de um determinado ano, na medida em
que se recusa a arrancar a folha do calendário. A moda entroniza a
si mesma como algo permanente, sacrificando justamente por isso
a dignidade da moda: sua efemeridade.

Para ente~der por que um par de receitas circunscreve toda uma


esfera, como se não houvesse nada de diferente, é necessário livrar-
se de todo o palavreado sobre "vitalidade" e "ritmo do tempo"
recitado maquinalmente pela propaganda, por seu anexo jornalís- ·
tico e finalmente também pelas próprias vítimas. O jazz é extrema-
mente pobre justamente no que se refere ao ritmo. A música séria
desde Brahms já havia desenvolvido por si mesma tudo o que cha-
ma a atenção no jazz, sem deter-se nisso. Mais questionável ainda ·
é a vitalidade de um procedimento estandardizado até mesmo em
seus desvios. Os ideólogos do jazz, sobretudo os da Europa, come-
tem o erro de tomar uma soma de efeitos psicotecnicamente calcu-
lados e testados como a expressão daquele estado de alma, uma
vitalidade ilusória suscitada no ouvinte pela indústria. Isso ocorre,
por exemplo, com as estrelas de cinema, cujos rostos calmos ou
sofridos foram estilizados segundo os retratos de pessoas célebres,
como se fossem portanto do mesmo porte de Lucrécia Bórgia ou
Lady Hamilton, personalidades que talvez já tenham sido mane-
quins de si mesmas. O que a inocência entusiástica e obstinada vê
como floresta virgem é inteiramente mercadoria fabril, mesmo nas

120
PRISMAS

ocasiões especiais onde a espontaneidade é apresentada como um


ramo do negócio. A imortalidade paradoxal do jazz tem o seu fun-
damento na economia. A concorrência do mercado cultural pro-
vou o sucesso de um certo número de técnicas como a síncopa,
sons meio vocais e meio instrumentais, harmonia impressionista
imprecisa e instrumentação opulenta de acordo com a regra do
"não economizamos em nada". Essas técnicas foram em seguida
selecionadas e rearranjadas caleidoscopicamente em combinações
sempre novas, sem que houvesse a menor relação recíproca entre o
esquema do todo e os não menos esquemáticos detalhes. Tudo o
que restou é resultado da concorrência, ela mesma talvez não
muito livre, e o procedimento foi nivelado como um todo, sobre-
tudo através do rádio. Os investimentos feitos nas name bands,
orquestras de jazz famosas graças à propaganda cientificamente
elaborada, e ainda as quantias gastas pelas firmas na compra de
tempo radiofônico para fins propagandísticos, programas musicais
de best-sellers como os hit-parades, tornam toda divergência um
risco. Além disso, a estandardização significa sempre um domínio
firme e constante sobre as massas de ouvintes e seus conditioned
reflexes. Espera-se que elas anseiem unicamente por aquilo a que
estão acostumadas e fiquem com raiva quando algo não correspon-
de a suas expectativas, cujo cumprimento é considerado como o
respeito aos "direitos humanos·,, do cliente. E mesmo que fossem
feitas tentativas para a introdução de algo realmente diferente na
música leve, essas tentativas seriam de antemão condenadas ao fra-
casso em virtude da concentração econômica.
Na insuperabilidade de um fenômeno inerentemente con-
tingente e arbitrário reflete-se algo da arbitrariedade do controle
social contemporâneo. Quanto mais perfeitamente a indtlstria cul-
tural erradica as diferenças, reduzindo com isso as possibilidades
de desenvolvimento do próprio meio, tanto mais esta empresa,
orgulhosa de seu dinamismo, aproxima-se de uma situação estáti-
ca. Assim como nenhuma peça de jazz conhece, em um sentido
musical, a história, como todos os seus componentes podem ser
desmontados e remontados, e como nenhum compasso segue a
lógica do decurso musical, assim a moda intemporal torna-se
parábola de uma sociedade planejadamente petrificada, não muito
diferente do pesadelo retratado no Brave New World de Huxley.

121
THEODOR W. ADORNO

Os economistas poderiam se perguntar se há nisso uma tendência


da sociedade regida pela superacumulação para a regressão a um
estágio de simples reprodução do que a ideologia expressa ou con-
firma. O temor que marca os últimos escritos de um desiludido
Thorstein Veblen, de que o jogo das forças sociais e econômicas
seja imobilizado em uma situação hierarquizada, negativa e a-his-
tórica, uma espécie de sistema feudal potencializado, pode ter
pouca probabilidade de se confirmar, mas é inerente ao jazz como
seu maior desejo. A imago do mundo técnico possui indiscutivel-
mente um aspecto a-histórico que torna possível a sua utilização
como miragem mítica de eternidade. A produção planejada parece
retirar do processo de vida todo o imprevisto, o imprevisível e o
incalculável, privando-o assim do genuinamente novo, sem o qual
a história dificilmente pode ser pensada. Além disso, a forma dos
produtos de massa estandardizados confere também uma expres-
são de mesmice à seqüência dos acontecimentos no tempo. Numa
locomotiva de 1950 parece ser paradoxal o fato de que ela seja
diferente de ~ma locomotiva de 1850: por isso os mais modernos
trens de alta velocidade são decorados com fotografias de modelos
antigos. Dêsde Apollinaire, os surrealistas, que têm muito em
comum com o jazz, foram sensíveis a esta camada de experiência:
"lei même les automobiles ont l'air d'être anciennes". Incons-
cientemente, alguns vestígios disso foram assimilados pela moda
intemporal. O jazz, que não por acaso se solidariza com a técnica,
coopera com o "véu tecnológico" como um culto rigorosamente
repetido, mas sem objeto, sugerindo que o século XX seria um
Egito de escravos e dinastias intermináveis. Isso permanece como
sugestão, pois enquanto a técnica é simbolizada conforme o mode-
lo de uma roda girando monotonamente, as suas forças intrínsecas
se desenvolvem até o incomensurável, e ela é envolvida por uma
sociedade na qual a irracionalidade ainda subsiste, uma sociedade
cujas tensões a impulsionam adiante, garantindo aos homens mais
história do que eles talvez gostariam. A intemporalidade é projeta-
da através da técnica a uma concepção de mundo que evitaria se
modificar, para não entrar em colapso. Mas a falsa eternidade é
desmentida pela contingência e mediocridade que se erigem como
princípios universais. Os senhores dos atuais reinos de mil anos se
assemelham a criminosos, e a gesticulação perenizante da cultura

122
PRISMAS

de massa é a-social. O fato de que tenha cabido justamente ao


truque da síncopa a ditadura musical sobre as massas faz lembrar a
usurpação que caracteriza a técnica quando, apesar de toda racio-
nalidade, converte-se em meio para o controle totalitário irra-
cional. No jazz estão presentes mecanismos que pertencem na
verdade à indústria cultural como um todo, ao conjunto da ideolo-
gia contemporânea. Esses mecanismos são visíveis no jazz porque,
sem conhecimento técnico, não podem ser escondidos tão facil-
mente como, por exemplo, no filme. Mas mesmo o jazz toma as
suas precauções. Paralelamente à estandardização há uma pseudo-
individualização. Quanto mais os ouvintes são mantidos na linha,
menos devem percebê-lo. Procura-se fazê-los crer que se trata de
uma "arte para consumidores" feita sob medida para eles. Os
efeitos específicos com os quais o jazz preenche o seu esquema,
sobretudo a própria sincopização, apresentam-se a cada instante
como irrupção ou caricatura de uma subjetividade incontida -
virtualmente a do ouvinte - ou também como uma fina sutileza
que honra a audiência. Mas o método fica preso nas malhas de sua
própria rede. Enquanto promete incessantemente ao ouvinte algo
de especial, instigando sua atenção com algo que deve escapar à
monotonia, não deve jamais ultrapassar limites bem definidos. A
música deve ser sempre nova _e sempre a mesma. Por isso os
desvios são tão estandardizados quanto os standards, sendo reco-
lhidos no próprio momento em que são introduzidos: o jazz,
como toda a indústria cultural, satisfaz os desejos apenas para, ao
mesmo tempo, frustrá-los. Quanto mais o sujeito do jazz, o repre-
sentante do ouvinte na música, tenta comportar-se de maneira
original, cada vez menos consegue ser ele mesmo. Os traços indi-
viduais que não combinam com a norma são cunhados pela
própria' norma, são marcas da mutilação. Apavorado, o sujeito se
identifica com a sociedade que teme, pois ela o transformou naqui-
lo que ele é. É isto que confere ao ritual do jazz o seu caráter afir-
mativo: a aceitação na comunidade dos igualmente privados de
liberdade. Em nome dessa comunidade o jazz pode apelar, com
diabólica boa consciência, para as próprias massas de ouvintes.
Procedimentos estandardizados que reinam incontestes e que são
praticados durante muito tempo acabam produzindo reações
estandardizadas. Seria demasiado ingênuo acreditar que mudanças

123
THEODOR W. ADORNO

na política de programação, sugeridas por vários educadores bem-


intencionados, poderiam impor aos homens tiranizados algo me-
lhor, ou mesmo uma alternativa. Mudanças sérias na política da
programação, na medida em que não ultrapassam o âmbito ideo-
lógico da indústria cultural, seriam na verdade rejeitadas com
indignação. A população está tão acostumada com as tolices que
lhe são impostas que não quer renunciar a elas, mesmo quando
percebe isso. Pelo contrário, ela precisa aumentar o próprio entu-
siasmo para convencer-se de que a vergonha é um privilégio. O
jazz esboça esquemas de um comportamento social do qual os
homens não podem escapar. Os homens podem praticar no jazz
essas formas de comportamento, e eles o amam ainda mais porque
isso torna mais fácil aquilo que é inevitável. O jazz reproduz a sua
própri~ base de massas, o que não diminui a culpa dos que o pro-
duzem. A eternidade da moda é um círculo vicioso.

Os seguidores do jazz subdividem-se, como David Riesmann


recentemente ressaltou, em dois grupos bem definidos. No núcleo
encontramos os experts, ou aqueles que se consideram como tais
- pois muitas vezes são fanáticos que usam e abusam de uma ter-
minologia propagada por eles mesmos e que distinguem, com uma
seriedade pretensiosa, vários estilos de jazz, mas dificilmente são
capazes de dar conta, em termos técnico-musicais precisos, daqui-
lo que os entusiasma. A maioria se toma por vanguardista, em uma
confusão que hoje pode ser observada por toda parte. Entre os sin-
tomas da decadência da formação cultural, não é o menos impor-
tante o fato de que a diferença entre arte "elevada" autônoma e
arte "leve" comercial, uma diferença sem dúvida discutível, não
seja mais refletida criticamente e nem mesmo notada. Depois que
alguns intelectuais derrotistas jogaram uma contra a outra, os vul-
gares defensores da indústria cultural ainda têm a orgulhosa
certeza de estar marchando na vanguarda do "espírito do tempo"
[Zeitgeist]. A divisão organizada nesse meio tempo - conforme o
esquema highbrow, middlebrow e lowbrow - de programas para

124
PRISMAS

ouvintes de primeira, segunda e terceira classe, conforme o seu


nível cultural, é repugnante. Mas essa situação não pode ser supe-
rada simplesmente pelo fato de as seitas lowbrow se declararem
highbrow. O justificado mal-estar da cultura oferece o pretexto,
mas de modo algum a razão, para glorificar o setor altamente
racionalizado da produção em massa, que degrada e negocia aque-
la cultura sem ao menos transcendê-la, apresentando-o como um
novo sentimento do mundo [Weltgefüh{J e confundindo-o com o
cubismo, a lírica de Eliot e a prosa de Joyce. A regressão não é a
origem, mas a origem lhe serve de ideologia. Todo aquele que se
deixa seduzir pela crescente respeitabilidade da cultura de massa,
acreditando que uma canção de sucesso é arte moderna unica-
mente porque um clarinete emite notas falsas, e que um trítono
com dirty notes é música atonai, já capitulou diante da barbárie. A
cultura degenerada em cultura recebe o castigo apropriado: quanto
mais ela espalha a confusão, mais se confunde com seus próprios
dejetos. O preço do privilégio da formação cultural é o analfa-
betismo orgulhoso, que encara o estupor do abuso tolerado como
o reino da liberdade. Em uma rebelião sem forças, eles estão sem-
pre dispostos a se esquivar, seguindo o que lhes prescreve o jazz,
que os integra, cambaleantes e adiantados, aos passos da marcha
coletiva. Há uma enorme semelhança entre o tipo característico do
entusiasta do jazz e vários jovens seguidores do positivismo lógi-
co, que se desembaraçam de sua formação filosófica com o mesmo
zelo com que aquele se livra de sua formação musical. O entusias-
mo transformou-se em conformismo, no qual os sentimentos se
apegam a uma técnica que é hostil a qualquer sentido. As pessoas
se sentem seguras no interior de um sistema tão bem definido que
não permite nenhum erro, e o reprimido anseio pelo que estaria
fora desse sistema manifesta-se em ódio intolerante e em uma ati-
tude na qual se misturam o pedantismo do iniciado e a pretensão
do desiludido. A trivialidade triunfante, a prisão na superficiali-
dade como certeza indubitável, t;ansfigura a covarde renúncia a
toda reflexão sobre si mesmo. Ao se apresentarem como filosofia,
todas essas formas costumeiras de reação perderam ultimamente
sua inocência e se tornaram extremamente perniciosas.
Em torno desses conhecedores de um assunto onde há muito
pouco a entender além das regras do jogo se cristalizam os segui-

125
THEODOR W. ADORNO

dores vagos e inarticulados. Na maioria das vezes eles se embria-


gam na glória da cultura de massa, uma glória que os manipula.
Esses fanáticos podem reunir-se em um clube para a veneração de
uma estrela de cinema ou colecionar autógrafos de pessoas conhe-
cidas. A eles interessa a servidão como tal, o sentimento de per-
tencer a algo, sem prestar muita atenção a seu conteúdo. Se são
garotas, treinam para desmaiar ao ouvir a voz de um crooner ou de
um cantor de jazz. O som de seus aplausos, indicados a partir de
um sinal de luz, é transmitido junto com a música nos programas
populares de rádio que elas acompanham; elas chamam a si mes-
mas de jitterbugs, besouros que executam movimentos reflexos,
atores de seu próprio êxtase. O mero entusiasmo por alguma coisa,
a posse de algo supostamente próprio, é a compensação de sua
existência pobre e indistinta. O gesto do adolescente, que decide
"ficar doido" por isso ou aquilo de um dia para outro, sempre com
a possibilidade de condenar amanhã como tolice o que adorou
hoje, é socializado. É claro que na Europa não se percebe facil-
mente que os seguidores do jazz no continente se distinguem
daqueles dos Estados Unidos. Os elementos de excesso e insubor-
dinação qtie ainda podem ser sentidos na Europa faltam hoje nos
Estados Unidos. A lembrança das origens anárquicas, que o jazz
compartilha com todos os movimentos de massa atuais, foi inteira-
mente reprimida, mesmo que ainda consiga sobreviver abaixo da
superfície. O jazz como instituição é algo dado, taken for granted,
limpo e asseado. O momento de docilidade presente no frenesi
paródico ainda é compartilhado, no entanto, pelos entusiastas do
jazz de todos os países. Nisso o comportamento deles assemelha-
se à seriedade animalesca dos séquitos nos Estados totalitários,
mesmo se a diferença entre jogo e seriedade possa ali ser uma
questão de vida ou morte. A propaganda para uma canção de jazz
tocada por uma banda conhecida era a seguinte: "Follow Your
Leader, X. Y.". Enquanto nas ditaduras européias os líderes das
duas tendências totalitárias bradavam contra o aspecto decadente
do jazz, a juventude de outros países já se deixava eletrizar pelas
danças sincopadas, cujas bandas se originaram, não por acaso, de
bandas militares. A divisão entre o núcleo central e os seguidores
inarticulados tem algo em comum com aquela separação entre a
elite do partido e o restante dos "camaradas".

126
PRISMAS

O monopólio do jazz baseia-se na exclusividade da oferta e no


enorme poderio econômico que o sustenta. Mas esse monopólio já
teria se dissolvido se esse gênero onipresente não contivesse algo
universal que atrai os homens. O jazz tem de ter uma "base de
massas", a técnica tem de ligar-se a um momento nos sujeitos que
remeta com certeza à estrutura social e a conflitos típicos entre o
sujeito e a sociedade. Na procura desse momento, pensa-se em
primeiro lugar no clown excêntrico ou fazem-se comparações com
antigos cômicos do cinema. A manifestação de fraquezas indivi-
duais é revogada e a hesitação é confirmada como uma espécie de
habilidade superior. Na integração do a-social, o esquema do jazz
tem pontos de contato com a estandardização do romance policial
e de suas variantes, onde o mundo é sistematicamente desfigurado
- ou revelado - como se o a-social e o crime fossem a norma
cotidiana e onde também, pela vitória inevitável da ordem, afasta-
se como por magia a contestação atraente e ameaçadora. Somente a
teoria psicanalítica poderia oferecer uma explicação adequada des-
ses fenômenos. O objetivo do jazz é a reprodução mecânica de um
momento regressivo, uma simbologia da castração, cujo signifi-
cado talvez seja o seguinte: deixe a sua pretensa masculinidade de
lado, deixe-se castrar, como prodama e zomba o som eunuco da
jazzband, pois fazendo isso você receberá uma recompensa, o
ingresso em uma fraternidade que compartilha com você o segredo
da impotência, a ser revelado no rito de iniciação 1• Que essa inter-
pretação do jazz, de cujas implicações sexuais os inimigos cho-
cados têm uma idéia melhor do que os seus apologetas, não é
arbitrária nem exagerada, pode ser demonstrada em inúmeros
detalhes 'da música, assim como nos textos das canções. No livro
American jazz music, Wildon Hobson descreve um antigo diri-
gente de banda de jazz, chamado Mike Riley, que executava, como
excentricidade musical, verdadeiras mutilações nos seus instru-
mentos: "The band squirted water and tore clothes, and Riley
offered perhaps the greatest of trombone comedy acts, an insane
rendition of Dinah during which he repeatedly dismembered the
horn and reassembled it erratically until the tubing hung down like
brass furnishings in a junk shop, with a vaguely harmonic honk

127
THEODOR W. ADORNO

still sounding from one or more of the loose ends". Já muito antes
Virgil Thomson havia comparado as performances do célebre músi-
co de jazz Louis Armstrong com as dos grandes castrati do século
XVIII. As fórmulas que diferenciam long-haired e short-haired
musicians são representativas de toda essa esfera. Os últimos são
aquelas pessoas do jazz que ganham dinheiro e, portanto, podem
apresentar-se com uma aparência boa e cultivada. Os outros, como
por exemplo a caricatura do pianista eslavo com os cabelos compri-
dos, pertencem a um tipo menos prestigiado: o do artista que passa
fome, que não liga para as exigências convencionais. Esse é o con-
teúdo manifesto dessas fórmulas. Quase não é preciso explicar o
que representa o cabelo cortado. No jazz, os filisteus, superiores a
Sansão, declaram-se vencedores.
Os filisteus, realmente. Pois enquanto a simbologia da cas-
tração está profundamente entranhada no aparato do jazz, subtraí-
da da consciência pela institucionalização da mesmice (e talvez se
fortaleça justamente por isso), as práticas do jazz afetam social-
mente até· a psicologia do sujeito, para que este aceite continua-
mente um mundo realista e sem sonhos, purificado de qualquer
vestígio 'de algo não totalmente controlado. Para que se entenda a
"base de massas" do jazz é preciso levar em conta o tabu que há na
América, apesar de toda a indústria artística oficial, sobre a expres-
são artística, um tabu que afeta até mesmo o impulso expressivo
das crianças - a progressive education, que insiste na criação livre,
proclamando a capacidade de expressão como um fim em si mes-
mo, é já uma reação contra isso. Embora o artista seja parcialmente
tolerado e parcialmente integrado na esfera da cultura como fun::
cionário ou como entertainer, tornando-se assim submisso às
exigências do serviço como um garçom bem-pago, o estereótipo do
artista é ao mesmo tempo o de uma pessoa introvertida, um tolo
egocêntrico, freqüentemente um homossexual. Mesmo que tais
características sejam perdoadas para o artista profissional, e mesmo
que dele seja até mesmo esperada, como parte do divertimento,
uma vida particular um pouco escandalosa, toda pessoa torna-se de
antemão suspeita pela atividade artística espontânea e não social-
mente dirigida. Uma criança que prefere ouvir música séria ou
tocar piano em vez de assistir a um jogo de baseball ou ver tele-
visão é tida como sissy, um fracote efeminado, seja pelo grupo ao

128
PRISMAS

qual pertence, seja por pessoas que representam a autoridade,


como os pais e os professores. O impulso expressivo é exposto à
mesma ameaça de castração simbolizada e controlada ritualmente
no jazz. Apesar disso, não é possível extirpar totalmente, sobre-
tudo na puberdade, a necessidade de expressão, que não tem nada a
ver com a qualidade objetiva da arte. Os jovens ainda não são do-
minados pela vida econômica e por seu correlato mental, "o princí-
pio de realidade". Seus impulsos estéticos não são facilmente
apagados pela submissão, mas apenas desviados. O jazz é o meio
preferido desse desvio. Ele fornece às massas de jovens que a cada
ano aderem a essa moda intemporal - muito provavelmente para
esquecê-la após alguns anos - um compromisso intermediário
entre a sublimação estética e a adaptação social. O elemento "irrea-
lista", imaginativo e não-pragmático é admitido na medida em que
se assemelha cada vez mais, no seu próprio caráter, ao movimento
real, reproduzindo e obedecendo a seus mandamentos. A arte é
desartizada [entkunstet]: ela mesma se transforma em peça daquela
adaptação que é contrária a seu próprio princípio. A partir daí
podemos entender outros traços específicos do jazz. Assim, por
exemplo, o papel do arrangement, que não se explica unicamente a
partir do anafalbetismo musical dos assim chamados compositores.
Nada deve ser o que é em si, tudo deve ser ajustado, deve ter os
vestígios de uma preparação que, pela aproximação a algo já conhe-
cido, torna tudo mais compreensível, confirmando que tudo está à
disposicão do ouvinte, sem idealizá-lo. Esses arranjos, por fim,
recebem a aprovação do complexo empresarial, não pretendendo
nenhum tipo de distância, mas sim que se entre no jogo, sem reser-
vas: uma música que não finge ser melhor do que é.
O princípio da adaptação comanda também aquela espécie par-
ticular d·e habilidade que o jazz exige dos músicos, de certa maneira
também dos ouvintes, e seguramente dos que dançam querendo
imitar a música. A técnica estética, como soma final dos meios de
objetivação de uma coisa autônom.1, é substituída pela capacidade
de superar obstáculos, de não deixar-se confundir por fatores per-
turbadores como a sincopização, realizando mesmo assim a ação
particular que está por trás da abstrata regra do jogo. A execução
estética transforma-se em um esporte dentro de um sistema de tru-
ques. Quem o domina revela ao mesmo tempo um senso prático.

129
THEODOR W. ADORNO

O trabalho do músico e também do conhecedor de jazz apresenta-


se como superação de uma seqüência de testes. Mas a expressão,
verdadeiro suporte do protesto estético, é atingida em cheio por
aquele poder contra o qual ela luta. Diante desse poder, ela assume
o som do miserável e desgraçado que ainda se disfarça furtivamente
em um som deslumbrante e provocante. O sujeito que se expressa,
expressa o seguinte: eu não sou nada, eu sou lixo, é bem feito que se
faça isso comigo. Já se tornou potencialmente um daqueles acusa-
dos à moda russa que, mesmo sendo inocentes, cooperam de
antemão com o procurador do Estado e não acham nenhuma
punição severa demais para si mesmos. Se outrora o âmbito estético,
enquanto uma esfera de leis próprias, surgiu do tabu mágico que
separa o sagrado do cotidiano, para deixar o sagrado em estado
puro, agora o profano vinga-se no sucessor da magia: a arte. Esta
apen~s tem direito à vida quando renuncia a ser diferente e enqua-
dra-se no domínio total do profano, no qual se transformou final-
mente o tabu. Nada deve ser que não seja como o que já é. O jazz é
a falsa liquidação da arte: a utopia, em vez.de se realizar, sai de cena.

130
Em defesa de Bach
contra seus admiradores~:~

A visão sobre Bach que hoje predomina entre os musicólogos coin-


cide com o papel a ele atribuído pela estagnação e industriosidade
que marcam a ressurreição da cultura. Sustenta-se que em sua obra
se manifestariam novamente, em pleno século do Iluminismo, os
constrangimentos assegurados pela tradição, o espírito da polifonia
medieval e o cosmo teologicamente organizado. Sua música se ele-
varia acima do sujeito e de sua contingência; nela ouviríamos menos
a voz do homem e de sua interioridade do que a ordem do Ser, obri-
gatória em si mesma. A estrutura deste Ser, representada como
imutável e inexorável, converte-se em um sucedâneo do sentido: o
que não pode aparecer de outro modo torna-se justificativa de si
mesmo. A Bach se apegam todos aqueles que, por terem perdido a
fé ou a autodeterminação, ou por não estarem mais aptos a exercê-
las, buscam uma autoridade que lhes assegure a desejada segurança.
A função atual de sua música é semelhante à da moda ontológica:
ambas prometem superar a condição individualista através de um
princípio abstrato superior ao homem, destituído de existência e ao
mesmo tempo livre de qualquer conteúdo teológico inequívoco.
Estas pessoas apreciam a ordem da música de Bach porque precisam
subordinar-se a alguma ordem. A obra gerada na estreiteza do hori-
zonte teológico apenas para rompê-lo e alcançar a universalidade é
chamada de volta aos limites que um dia superou: Bach é degradado

,,. Escrito em 1951, publicado em Merkur, 1951.

131
THEODOR W. ADORNO

pela nostalgia impotente para aquele mesmo papel de "compositor


eclesiástico" contra cujas atribuições sua música se insurgiu, e ao
qual ele só se submeteu em meio a grandes conflitos. O que o afasta
dos procedimentos de sua época não é entendido como a contra-
dição do conteúdo de sua música com estes, mas serve apenas para
elevar ao âmbito do classicismo a auréola da limitação artesanal. A
reação conservadora, privada de seus heróis políticos, apropria-se
agora inteiramente daquele que já há tempos havia confiscado sob o
nome ultrajante de Thomaskantor. Escolas de diletantes o monopo-
lizam, e sua influência não se exerce, como ainda ocorria no tempo
de Schumann e Mendelssohn, a partir do valor musical de sua obra,
mas sim pelo estilo e jogo, fórmula e simetria, pelo mero gesto do
que é ratificado. Na medida em que o neo-religioso Bach é posto a
serviço dos interesses dos convertidos, torna-se limitado e pobre,
e é expropriado até mesmo do conteúdo musical específico de sua
obra, ao qual deve seu prestígio. Ocorre com ele o que os seus
zelosos promotores almejam em última instância: Bach se trans-
forma em um neutralizado bem cultural; onde o sucesso estético
se mistura nebulosamente com uma verdade não mais substancial
em si mesma. Seus promotores o transformaram em uma espécie
de "compositor para festivais de órgão" de cidades barrocas bem-
conservadas - em uma peça de ideologia.

A mais simples reflexão histórica deveria despertar certa descon-


fiança sobre esta imagem historicista de Bach. Contemporâneo dos
enciclopedistas, ele morreu seis anos antes do nascimento de Mozart
e vinte anos antes do de Beethoven. Nem mesmo a mais ousada
especulação sobre a "não-contemporaneidade" da música poderia
sustentar a tese de que em um Eu individual tivesse sido possível
manter substancialmente vivo tudo aquilo que o espírito da época
dissolveu, como se a verdade de um fenômeno pudesse depender do
grau de seu atraso. O individualismo perverso e a crença supersti-
ciosa no intemporal convergem nesse ponto: somente um procedi-
mento arbitrário é capaz de isolar o indivíduo de sua relação com o

132
PRISMAS

estágio histórico da consciência, por mais polêmica que possa ser


esta relação. À objeção de que Bach, em seu atelier musical pratica-
mente a-histórico (no qual, entretanto, encontravam-se presentes
todas as inovações técnicas da época), teria conhecido do espírito do
tempo apenas o pietismo dos textos de sua música sacra, ou seja,
uma tendência hostil ao Iluminismo, poderíamos responder que o
próprio pietismo, como todas as formas de restauração, estava re-
pleto de forças desse mesmo Iluminismo. O sujeito que acredita ser
capaz de obter a graça divina por meio da imersão em si mesmo, ou
por meio de uma "interioridade" reflexiva, já se encontra de antemão
livre da ordem dogmática, e pode andar com suas próprias pernas,
autônomo na escolha da heteronomia. Entretanto, certas caracterís-
ticas da música de Bach testemunham indiscutivelmente sua parti-
cipação na vida cultural de seu tempo. Os que insistem na oposição
entre a geração de Philipp Emanuel Bach e a de seu pai esquecem
que sua obra abarca toda a esfera do "galante", não apenas em mode-
los estilísticos como os das Suítes francesas, onde a mão poderosa do
mestre parece ter estabelecido antecipadamente os gêneros típicos
do século XIX, mas também nas grandes formas integralmente cons-
truídas, como a Abertura francesa, onde o agradável e o organizado
se interpenetram, no estilo de Bach, com uma perfeição que nada
deixa a dever à conseguida mais tarde no classicismo vienense. Mas
quem já tocou do início ao fim o· Cravo bem-temperado (cujo título
é uma declaração de pertencimento ao processo de racionalização)
sem encontrar um elemento lírico cuja diferenciação, individuali-
zação e liberdade remetem antes à Vierzehnheiligen do que a uma
imagem já problemática de Idade Média? Basta lembrar o Prelúdio e
fuga em fá sustenido maior do primeiro volume, em cuja fuga, que já
foi comparada por um compositor à "Tanzlegendchen" de Keller,
não ap'enas se exprime uma elegância subjetiva imediata, mas o
próprio decurso composicional zomba de todas as regras de estru-
turação da fuga estabelecidas pelo próprio Bach, na medida em que o
motivo da seção intermediária tr~nsmite seu impulso à seção do
desenvolvimento. Ou ainda a Fuga dupla em sol sustenido menor do
segundo volume, que o Beethoven maduro parece ter conhecido
muito bem: essa fuga surpreende não apenas por seu cromatismo,
que encontramos em várias obras de Bach, mas principalmente por
sua harmonização conscientemente imprecisa e flutuante, que de

133
THEODOR W. ADORNO

certo modo evoca, também em razão do compasso 6/8, as obras de


maturidade de Chopin. O todo apresenta uma música estilhaçada
em incontáveis facetas coloridas, moderna em todos os sentidos jus-
tamente por possuir aquela sensibilidade nervosa que o histori-
cismo procura exorcizar. Quem, ao contrário, prefere falar de um
mal-entendido romântico, deveria, para provar sua tese, renunciar a
toda relação espontânea com o sentido do idioma musical, relação
que, de Monteverdi a Schoenberg, é um pressuposto de qualquer
compreensão da música. Ouvir nessas composições, à custa do
próprio sujeito, tão-somente a ordem do Ser, em vez de perceber o
eco pleno de nostalgia que esta ordem encontra ao submergir na
consciência, significa apreender apenas o caput mortuum. O fantas-
ma da ontologia bachiana se realiza mediante o ato mecânico de
violênçia do filisteu, que deseja unicamente se esquivar da arte, por
não possuir os órgãos para apreender seu sentido.

Temos de admitir que contra tudo isso existem traços em Bach que
já em sua própria época foram sentidos como anacrônicos. Eles são
um dos motivos da inexplicável amnésia que se abateu sobre sua
obra e a escondeu durante oitenta anos, o que teve certamente con-
seqüências incalculáveis para a história da música ocidental, pois
impediu que as suas conquistas se incorporassem à tradição e fos-
sem transmitidas diretamente e em sua totalidade ao classicismo vie-
nense. Bach não apenas realizou completamente o espírito do baixo
contínuo, do pensamento harmônico baseado nas relações entre os
graus da escala, como também foi, no âmbito desse espírito, ao mes-
mo tempo o polifonista que, a partir dos passos iniciais e titubeantes
do século XVII, criou a forma da fuga, da qual permaneceu o único
e absoluto mestre - a teoria da fuga deriva de sua obra assim como
a teoria do contraponto estrito deriva da de Palestrina. Mas é pre-
cisamente essa duplicidade de uma consciência ao mesmo tempo
harmônica e contrapontista - que circunscreve cada um dos pro-
blemas composicionais solucionados paradigmaticamente por Bach
- o que não combina com sua imagem de consumador da Idade

134
PRISMAS

Média. Se ele tivesse sido apenas isto, essa duplicidade não poderia
estar presente em sua obra e, sobretudo nas obras especulativas da
última fase, ele não poderia ter se esforçado em resolver um para-
doxo inconcebível para a consciência polifônica tradicional: o de
como a música pode se mostrar harmonicamente plena de sentido,
de acordo com as normas do baixo contínuo, e ao mesmo tempo se
organizar por inteiro polifonicamente, através da simultaneidade de
vozes autônomas. A expressividade de muitas das peças de Bach
consideradas arcaicas já deveria levantar suspeitas. O tom afirmativo
da Fuga em mi bemol maior do segundo volume do Cravo bem-
temperado não é de modo algum a expressão musical de uma certeza
imediata, garantida pela revelação da verdade divina e compartilhada
por uma comunidade religiosa; tamanha ênfase e afirmação faltam a
todos os mestres flamengos. Na substância desse tom afirmativo, e
certamente não em sua consciência subjetiva, encontra-se a reflexão
sobre a felicidade de uma ação confirmada, a felicidade da seguran-
ça musical, que só é concedida ao sujeito emancipado, pois somente
este pode conceber a música como promessa enfática de salvação
objetiva. Uma fuga com estas características pressupõe o dualismo.
Ela mostra quão belo seria se a mensagem da salvação objetiva fosse
reconduzida do cosmo infinito para o homem: é romântica, para
indignação dos neófitos religiosos da atualidade, mas romântica em
um sentido muito mais abrange·nte do que veio a ter mais tarde o
estilo romântico. Essa música não reflete a imagem do sujeito solitá-
rio como fiador do sentido, significa, ao contrário, a superação deste
em um absoluto objetivamente completo. Mas esse absoluto é evo-
cado, afirmado e assumido exatamente porque e na medida em que
não está presente na experiência concreta; toda a força da música de
Bach consiste nessa evocação. Bach não foi um artesão a.ntiquado,
mas um gênio da rememoração. Apenas a barbárie emergente, que
reduz as obras de arte à sua facticidade e que é cega para a diferença
entre essência e aparência, é capaz de confundir ingenuamente o Ser
de sua música com a intenção que "!:!la exprime, eliminando com isso
precisamente aquela dimensão metafísica que pretende defender. E
como a barbárie, ao obscurecer a essência, nem mesmo se dá conta
daquilo que tem diante dos olhos, não pode compreender que os
meios polifônicos específicos que Bach utiliza para a construção da
objetividade musical pressupõem, desde o início, uma subjetivação.

135
THEODOR W. ADORNO

A arte da composição de fugas é a arte da economia dos motivos: a


arte de produzir um todo integral pela utilização e exploração das
menores partes constitutivas de um tema. É uma arte da decomposi-
ção, quase poder-se-ia dizer da dissolução do Ser posto como tema,
e é inconciliável com a idéia geral de que esse Ser, na elaboração
integral da fuga, se mantenha imutável ou estático. Em comparação
com essa técnica, Bach utiliza a forma polifônica tipicamente
medieval, a imitação, apenas subsidiariamente. Mesmo nas raras
passagens e peças onde a imitação predomina, como por exemplo
nos stretti e na extremamente complexa Fuga em ré maior do segun-
do volume, a utilização dessa técnica venerável está a serviço de um
efeito pungente e dinâmico, indiscutivelmente moderno. E o fato de
que a identidade dos temas recorrentes possa ter sido mantida,
mesm9 sob o ataque dos novos meios de composição, liberada dos
compromissos com a polifonia não significa a construção de algo
estático. O mesmo acontece com Beethoven, que em sua concepção
dinâmica da sonata permaneceu fiel à exigência tectônica da reex-
posição, ent'endendo-a como resultado do próprio "processo" do
desenvolvimento [Durchführung]. Em seu último livro, Schoenberg
se refere à· técnica de Bach como sendo a técnica da "variação pro-
gressiva" [entwickelnden Variation], que se transformou em princí-
pio básico de composição no classicismo vienense. Uma decifração
social da música de Bach teria provavelmente de se referir à relação
entre essa elaboração do tematicamente dado, efetuada pela reflexão
subjetiva sobre os seus motivos, e as modificações no processo de
trabalho que se afirmaram na mesma época e basicamente consis-
tiram na decomposição dos antigos procedimentos artesanais em
suas operações mais simples. Se essas transformações tiveram como
resultado a racionalização da produção material, em Bach, cuja
principal obra instrumental traz já em seu título as importantes con-
quistas técnicas da racionalização musical, cristalizou-se pela pri-
meira vez a idéia de uma obra racionalmente constituída, a idéia do
domínio estético da natureza. A verdade mais íntima de Bach talvez
resida no fato de que em sua obra esta tendência da sociedade, que
perdura até hoje como a mais poderosa da era burguesa, não apenas
tenha sido conservada, mas se concilie com a voz do verdadeira-
mente humano, condenada ao silêncio quando esta mesma tendên-
cia se desenvolveu.

136
PRISMAS

Mas se Bach foi de fato moderno, por que foi também arcaizante?
Pois não pode haver dúvidas de que em seu mundo formal e em
algumas das manifestações mais significativas de seu estilo tardio -
ainda há pouco grotescamente mal compreendido por Hindemith
- havia muitos aspectos que já em sua época eram tidos como
ultrapassados, e que parecem suscitar traiçoeiramente os mal-enten-
didos de estudiosos pedantes e professorais. É impossível não
perceber o tom do século XVII até mesmo em concepções gran-
diosas, como, por exemplo, a Fuga tríplice em dó sustenido menor
do primeiro volume do Cravo bem-temperado, onde, para acentuar
o mais drasticamente possível a oposição entre os três temas, Bach
não atribui um perfil temático claro às passagens que não se referem
imediatamente a este contraste, deixando-as em uma condição
quase pré-temática, sem desenvolver nem mesmo os motivos, bem
de acordo com os modelos rudimentares de fugas pré-bachianas -
uma delas, o "Ricercare", é aludida em um jogo de palavras presente
na Oferenda musical. Como essa, também a Fuga em mi maior do
segundo volume, escrita em compasso "alla breve", porta o arcaís-
mo até na grafia das notas, como se tivesse sido escrita no espírito
de um passado já fictício e extr~mamente estilizado, bem ao estilo
do afamado Concerto italiano para cravo. Bach segue muitas vezes
uma tendência dificilmente compatível com a solidez existencialista,
quando faz experiências com idiomas estrangeiros escolhidos arbi-
trariamente, procurando despertar nestes a força estruturante da
configuração musical. Em sua obra, a racionalização da técnica de
composição traz consigo o predomínio da razão subjetiva, que per-
mite a livre escolha dos procedimentos objetivamente disponíveis.
Bach não se sente ligado cega ou substancialmente a nenhum destes,
mas de quando em quando se serve dos procedimentos que melhor
se adaptam às suas intenções composicionais. Esta liberdade diante
do antigo não pode, entretanto, ~er entendida de forma alguma
como consumação da tradição, que necessita justamente impedir
qualquer liberdade de escolha entre as diversas possibilidades. Seria
ainda menos possível classificar o sentido do recurso de Bach à
tradição como restaurador. As peças de aparência arcaizante são,
ao mesmo tempo, muitas vezes também as mais ousadas, não

137
THEODOR W. ADORNO

somente no que diz respeito à combinatória contrapontista, que


deriva diretamente das conformações polifônicas antigas, mas tam-
bém no que se refere ao aspecto avançado de seu efeito. Aquela
Fuga em dó sustenido menor, por exemplo, que começa como se
fosse um denso entrelaçamento de linhas igualmente relevantes,
cujo "tema" parece ser apenas o discreto cimento responsável pela
junção das vozes, revela-se em seu percurso, a partir da entrada do
segundo tema figurado, como um "crescendo" irresistível e estru-
turalmente calculado, com a potente explosão da entrada do tema
principal no baixo, o extremo adensamento de um falso stretto a dez
vozes, até atingir o ponto de inflexão com uma dissonância muito
ressaltada, para em seguida desaparecer como por um portão escu-
ro. Nenhuma insinuação sobre o caráter estático do cêmbalo ou do
órgão é capaz de enganar quanto à dinâmica impressa unicamente
na estrutura da composição, quer ela tenha sido realizada como um
"crescendo" nos instrumentos da época, quer este "crescendo"
tenha sido apenas "imaginado" por Bach- uma questão, em última
análise, inútil. Em nenhum lugar está escrito que a idéia que um
compositor faz sobre sua própria obra deve coincidir com a essên-
cia imanente ou com a lei objetivamente intrínseca de sua música.
Uma obra com estas características é "barroca" muito mais no sen-
tido dado ao teatro do século XVII - com seus excessos, e onde a
expressão alegórica é levada ao extremo na busca de uma dimensão
perspectivista - do que no sentido do "pré-clássico", um conceito
insuficiente em todos os casos em que se trata daquilo que é espe-
cífico a Bach, e ainda em maior grau quando se trata de suas "ten-
dências arcaicas". Para fazer justiça a essas tendências, é necessário
perguntar-se por sua função no interior da estrutura composi-
cional. Ao se fazer isso, depara-se com uma ambigüidade do pró-
prio progresso, que nesse tempo se desenvolvia universalmente.
Via-se como "moderno" tudo aquilo que se desfazia do peso da
"res severa" para promover o "gaudium", o lúdico e o agradável
sob o signo da comunicação, do respeito ao ouvinte presumido,
para o qual, juntamente com o desaparecimento da antiga ordem
teológica, desapareceu também a consciência que exigia nesta or-
dem a necessidade de uma determinada linguagem formal. Não se
pode negar a necessidade histórica da arte de desfazer-se dos meios
que não mais estejam sustentados por um espírito objetivo, nem

138
PRISMAS

que esta reviravolta tenha gerado, na música, forças de uma elo-


qüência humana destinada definitivamente a revelar-se em uma
imagem superior da verdade. Mas o preço pago por esta conquista
foi a perda da coerência interna da música. Justamente os primeiros
produtos do assim chamado estilo "não-erudito", e principalmente
as obras dos próprios filhos de Bach, tiveram de pagar este preço. O
caráter enigmático da ambigüidade do progresso vem à luz clara-
mente ao se compararem modelos formais do classicismo vienense
aos seus equivalentes em Bach, ou o rondó de um concerto de pia-
no de Mozart com o Presto do Concerto italiano. Apesar de toda a
flexibilidade e leveza da composição, a "elegância" proverbial de
Mozart possui - enquanto pura "peinture" musical - algo de
mecânico e rústico, quando a comparamos com o procedimento
não-esquemático de Bach, onde estão presentes incontáveis media-
ções. É uma "elegância" mais do som do que da partitura. Quanto
mais nítidos se tornam os contornos da forma, tanto mais sua pura
e densa coerência parece ser substituída pelo apelo ao esquema
preestabelecido. Quem, depois de ter se dedicado intensamente à
música de Bach, retorna à música de Beethoven acha às vezes que
se trata de uma espécie de música decorativa de entretenimento,
onde apenas o clichê cultural suspeita haver alguma profundidade.
Um juízo como este é certamente deformado e limitado e julga o
objeto com um parâmetro externo. Não é por acaso que os apo-
logetas atuais de Bach concordariam com esta sentença. Todavia
ele contém alguns elementos da constelação histórica que constitui
a essência de Bach. Os traços arcaizantes de sua produção repre-
sentam a tentativa de estancar o empobrecimento e o endure-
cimento da linguagem musical, que representam o lado sombrio do
progresso inexorável; significam a resistência contra o çaráter de
mercadoria que se impõe incessantemente à música, com sua ten-
dência à subjetivação. Mas, ao mesmo tempo, esses traços equiva-
lem à modernidade de Bach, na medida em que representam a
prioridade da coerência real da própria lógica musical em detrimen-
to da mera adaptação ao gosto de uma época. O "Bach arcaizante"
se diferencia dos classicistas tardios, incluindo Stravinsky, pelo fato
de que confronta um ideal estilístico abstrato com o estado histó-
rico do material. Contudo, o passado se transforma em meio para
enquadrar forçosamente o contemporâneo no futuro da própria

139
THEODOR W. ADORNO

evolução. A reconciliação entre o erudito e o galante, que, como


bem acentuou Alfred Einstein, é desde Haydn a característica típi-
ca do classicismo vienense, já se encontra, em certo sentido, em
Bach. Mas nele esta não se refere a um equilíbrio ou meio-termo
entre os dois elementos. Bach procurava combater a indiferença
entre os dois extremos de uma maneira tão radical como encon-
tramos apenas, mas posteriormente, no estilo tardio de Beethoven.
Bach, o mais progressista mestre do baixo contínuo, renunciou ao
mesmo tempo, na qualidade de polifonista tradicional, à obediên-
cia à tendência da época da qual ele próprio era o representante,
para que esta tendência alcançasse sua verdade mais íntima: a
emancipação do sujeito em relação à objetividade, no interior de
uma totalidade sem rupturas que tem a sua origem na própria sub-
jetividade. Trata-se da coincidência integral entre a dimensão har-
mônic~-funcional e a contrapontística, até nas determinações mais
sutis da estrutura. O passado longínquo transforma-se em porta-
dor da utopia do sujeito-objeto musical, o anacronismo transfor-
ma-se em mensageiro do futuro.

Isso tudo, entretanto, não apenas contradiz a opinião corrente sobre


a música de Bach, como afeta até mesmo a relação imediata com ela.
Esta relação é determinada substancialmente pela prática da inter-
pertação, que, no entanto, sob a influência nefasta do historicismo,
assumiu hoje em dia um gesto sectário. O historicismo suscita um
interesse fanático que não mais diz respeito à própria obra. Às vezes
é impossível não suspeitar que os admiradores atuais de Bach se
preocupam unicamente em evitar uma dinâmica não-autêntica,
modificações dos "tempi", e grandes corais e orquestras, como se
estivessem esperando com uma raiva potencial por qualquer apelo
humano que se manifestasse nas execuções. A crítica à imagem infla-
da e sentimental de Bach feita pelo romantismo tardio não precisa
ser colocada em discussão, muito embora a relação com Bach pre-
sente na obra de Schumann se revele incomparavelmente mais pro-
dutiva do que a imagem pura e objetiva que está sendo difundida

140
PRISMAS

hoje em dia. O que se pode questionar nesta crítica é justamente


aquilo que ela mais preza: a objetividade. Somente seria "objetiva" a
representação de uma música que se mostrasse adequada à essência
de seu objeto. Esta não coincide, entretanto, com a idéia da primeira
execução histórica dessa música, como ainda defendia Hindemith.
Alguns fatos indicam exatamente uma direção oposta à sustentada
pela intenção de imitar fielmente a interpretação usual da época: a
dimensão timbrística da música praticamente não era conhecida no
tempo de Bach, ou pelo menos não era empregada como um meio
de composição; os compositores não faziam uma distinção rigorosa
entre os diferentes tipos de instrumentos de teclado e o órgão, e
deixavam em larga medida que a escolha do instrumento adequado
coubesse ao gosto de cada intérprete. Mesmo que Bach tivesse fica-
do realmente satisfeito com os órgãos e cêmbalos de sua época, e
também com os pobres coros e orquestras de que dispunha, isto
ainda não seria suficiente para afirmar que estes fazem justiça à
essência de sua música. A consciência que os artistas tiveram de si
mesmos - é impossível reconstruir a "idéia" que fizeram sobre a
própria obra - poderia sem dúvida contribuir para o conhecimento
das próprias obras, mas ainda não indicaria uma regra definitiva
para sua execução. As obras autênticas desenvolvem no tempo seu
conteúdo de verdade, que supera o âmbito da consciência indivi-
dual, por meio da objetividade -de sua própria lei formal. Aliás,
muito do que se escreve sobre o intérprete Bach está em contradição
com as noções de estilo desenvolvidas pela história da música, fato
que revela uma flexibilidade que prefere renunciar ao monumentàl,
dando preferência à possibilidade de adaptação do próprio som à
emoção subjetiva. A famosa biografia escrita por Forkel certamente
foi publicada muito tempo depois da morte de Bach e não pode
reivindicar um grau elevado de autenticidade, mas o que ~le relata
sobre o intérprete Bach está de acordo com informações precisas e,
levando em consideração que esse relato foi escrito num tempo em
que ainda não se conhecia esta controvérsia e não havia muita sim-
patia pelo cravo, não há razão para suspeitar que essa imagem tenha
sido falsificada. "Bach preferia sobretudo tocar o cravo. Os outros
cêmbalos, ainda que possuíssem diversas possibilidades de exe-
cução" - no que se refere ao registro - , "eram na sua opinião
muito sem alma, e o pianoforte se encontrava na época no início de

141
THEODOR W. ADORNO

seu desenvolvimento, sendo ainda muito tosco para que Bach tives-
se ficado contente com o seu uso. Por isso Bach considerava o cravo
o melhor instrumento para o estudo e também para o entreteni-
mento musical privado. Considerava este instrumento o mais cômo-
do para a execução de seus mais delicados pensamentos musicais e
não acreditava que outro tipo de cêmbalo ou pianoforte pudesse
produzir a enorme variedade de matizes sonoras conseguidas pelo
cravo, sem dúvida pobre de timbres, mas de grande flexibilidade em
relação aos detalhes". Mas o que vale para a diferenciação da esfera
da intimidade vale também, e com mais razão, para a dinâmica
exuberante das grandes obras corais. Pouco importa quais tenham
sido as condições de execução na Igreja de São Tomás; uma apresen-
tação da Paixão segundo São Mateus com relativamente poucos
meios técnicos apresenta-se para os ouvintes de hoje como algo páli-
do e pouco convincente, quase como um ensaio ao qual comparece-
ram apenas alguns músicos, e adquire ao mesmo tempo um aspecto
didático e pedante. Além disso, uma performance como esta entra
em conflito• com a própria essência da música de Bach. A dinâmica
objetivamente incrustada em sua obra merece uma única interpre-
tação, aquela que a realiza. Pois a verdadeira interpretação é uma
radiografia da obra; tem a função de revelar no fenômeno sensível a
totalidade de todos os caracteres e conexões musicais, e este conhe-
cimento se conquista no estudo aprofundado da partitura. O argu- .
mento preferido dos puristas, o de que tudo já está expresso na
própria obra, de que basta que o intérprete se anule para que a obra
fale por si mesma, de que a execução propriamente interpretativa
seria um grito forçado e deformado, enquanto a auto-revelação da •
obra seria mais simples, natural e convincente; este tipo de argu-
mento não tem valor. Na medida em que a música precisa de uma
interpretação, sua lei formal consiste na tensão entre a essência
composicional e o fenômeno sensível. Colocar a obra numa tal ten-
são só se justifica se a execução é testemunho da própria essência. É
justamente este o papel da reflexão no sujeito e em seu esforço. A
tentativa de fazer justiça ao conteúdo objetivo de Bach, direcionan-
do o esforço subjetivo apenas para a eliminação do sujeito, volta-se
contra si mesma. A objetividade não permanece como resto após a
subtração do sujeito. Jamais e em nenhuma passagem o texto musi-
cal da partitura é idêntico à obra; sempre se impõe a exigência de

142
PRISMAS

apreender, mantendo-se fiel ao texto, o que nele se oculta. Sem esta


dialética, a fidelidade ao texto transforma-se em traição: a interpre-
tação que não· se preocupa com o sentido musical porque este se
revelará automaticamente, em vez de entendê-lo como algo que se
constitui durante a execução, acaba perdendo-o. O sentido de uma
execução musical não é garantido pela purificação de qualquer
suposto exibicionismo, pelo contrário, este tipo de interpretação,
carente de sentido por si mesma e que não se distingue de uma inter-
pretação "não-musical", transforma-se em um obstáculo diante do
sentido, ao invés de abrir as portas para ele, como pretende. Com
isso não quero defender as monstruosas apresentações de músicas
de Bach que mobilizavam massas imensas, como as que foram reali-
zadas costumeiramente nos anos posteriores à Primeira Guerra. A
dinâmica na qual insisto não se refere à abrangência e à intensidade
do "crescendo" e do "decrescendo". Esta dinâmica é a soma final
[Inbegriffj de todos os contrastes composicionais, de todas as medi-
ações, divisões e subdivisões, transições e relações que fazem parte
de uma obra musical. E no tempo de Bach a arte da composição era,
mais do que em qualquer período posterior, uma arte de transições
infinitesimais. A execução deve tornar evidente toda a riqueza do
decurso musical, em cuja integração se baseia realmente sua força,
em vez de contrapor a este todo pleno de sentido uma multiplici-
dade monótona, ou a aparência ~mla de uma unidade que ignora a
multiplicidade que deveria dominar. A reflexão sobre o estilo não
deve eliminar o conteúdo musical concreto, ou satisfazer-se timida-
mente ao assumir a pose de um Ser transcendental. A apresentação
deve permanecer fiel à estrutura composicional da música, que está
escondida sob a superfície da sonoridade. A atitude mecânica dos
instrumentos utilizados no baixo contínuo ou dos pobres corais
escolares não contribui para a sagrada serenidade, mas sim para a
frustração maliciosa, e é pura superstição a idéia de que os fortes
órgãos do barroco conseguiam captar as extensas ondas das enormes
e lapidares fugas bachianas. A músrca de Bach se encontrava a uma
distância astrônomica do nível geral da produção de sua época. Ela
tornar-se-ia novamente eloqüente se fosse retirada da esfera do
ressentimento e do obscurantismo, do triunfo dos carentes de sujei-
to sobre o próprio subjetivismo. Eles dizem Bach, mas querem
dizer Telemann, e sentem-se em casa na tendência à regressão da

143
THEODOR W. ADORNO

consciência musical, que amedronta já por si mesma sob a pressão


da indústria cultural. Mas obviamente também existe a possibilidade
de que não seja mais possível por muito tempo silenciar a contra-
dição entre a substância composicional de Bach e os meios de sua
realização sonora, tanto os de sua época quanto os reunidos hoje
sob a tradição. À luz dessa possibilidade abre-se um novo horizonte
para a tão evocada "abstração" sonora da Oferenda musical e da
Arte da fuga, as obras que apresentariam a maior abertura para a
escolha dos instrumentos. É possível que nelas já estivesse plena-
mente realizada a contradição entre música e material sonoro, como
ocorre na inadequação do som do órgão em relação à estrutura
minuciosamente articulada da obra de Bach. Neste caso, Bach teria
prescindido do som, e suas obras mais maduras ainda estariam
aguardando por um som que estivesse à sua altura. Estas peças são
as últimas a se satisfazerem com a ação de filólogos, que nada enten-
dem da arte da composição, quando estes completam as vozes que
faltam e as atribuem aos instrumentos ou grupos de instrumentos
normalmente utilizados. Coloca-se, ao contrário, a real exigência de
repensá-las para uma orquestra que não enfeita nem poupa, mas que
funciona c·omo elemento de uma composição integral. Um esforço
deste gênero foi feito até agora apenas por Fritz Stiedry, cuja reela-
boração não passou da estréia em Nova York. Não se faz justiça a
Bach pela usurpação realizada por especialistas em estilo, mas unica-
mente pelo estado mais avançado da arte da composição, que mostra
certa convergência com o processo de aperfeiçoamento contínuo da
obra de Bach. As poucas instrumentações que foram elaboradas por
Schoenberg e Anton von Webern, especialmente as da grande Fuga ·
tríplice em mi bemol maior e do Ricercare a seis vozes, onde cada
traço da composição foi transcrito num timbre correlato e o conjun-
to do tecido das linhas foi dissolvido em suas menores conexões
motívicas para posteriormente ser reunido através da disposição
construtiva geral da própria orquestração, são modelos de posturas
para com a obra de Bach que possuem um elevado grau de verdade
e consistência. Talvez a obra da Bach, da maneira como foi trans-
mitida, tenha ficado ininterpretável. Neste caso, sua herança recai
sobre a composição, que deve permanecer-lhe fiel ao romper com
essa fidelidade, explicitando o seu conteúdo e recriando novamente
sua obra.

144
Arnold Schoenberg
( 18 74-1951) :~

H eard melodies are sweet, but those unheard


Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;
Not to the sensual ear, but, more endear'd,
Pipe to the spirit ditties of no tone.
Keats

Para a consciência pública de hoje, Schoenberg aparece como um


inovador, um reformador, e até ~esmo como o inventor de um sis-
tema. Admite-se respeitosamente, mas com má vontade, que ele
teria preparado um caminho para outros; um caminho, é verdade,
que estes não mostraram grande disposição em seguir. Chega-se
mesmo a insinuar que o próprio Schoenberg não teria realizado
seus propósitos, e que ele já seria antiquado. Aquele que antes era
proscrito é ao mesmo tempo reprimido e absorvido como algo ino-
fensivo. Não apenas suas obras de juventude, mas tambem as do
períodÔ intermediário, que então lhe valeram o ódio de todos os
proprietários da cultura, são hoje descartadas como "wagnerianas"
e "românticas tardias", muito emb9ra em quarenta anos quase não
se tenha aprendido ainda o modo correto de executá-las. O que ele
publicou após a Primeira Guerra foi apreciado como exemplo da
técnica dodecafônica. Recentemente, é verdade, inúmeros jovens
compositores se entregaram a essa técnica, porém mais como um

,,. Escrito em 1952, publicado em Die Neue Rundschau, 1953.

145
THEODOR W. ADORNO

refúgio onde eles podem encontrar abrigo do que como um resul-


tado das necessidades da própria experiência. Eles não se preo-
cupam, por isso, com a função da técnica dodecafônica na obra
do próprio Schoenberg. Esta repressão e este modo de enfrentar o
problema devem-se às dificuldades que Schoenberg impõe a uma
audiência moldada pela indústria cultural. Aquele que não entende
alguma coisa projeta, com uma inteligência superior semelhante à
do asno da canção de Mahler, sua insuficiência sobre o objeto,
explicando-o como algo incompreensível. De fato, a música de
Schoenberg exige desde o início uma participação ativa e concen-
trada; a mais aguçada atenção à multiplicidade do simultâneo; a
renúncia às muletas habituais de um ouvinte que sempre sabe o que
vai acontecer; uma atenta percepção do único e do específico; e a
capacidade de apreender com precisão caracteres que muitas vezes
se modificam no menor espaço de tempo, e também a história des-
ses caracteres, desprovida de qualquer repetição. A pureza e a tena-
cidade com _que Schoenberg se entrega às exigências do objeto
restringiram sua influência. A seriedade, a riqueza e a integridade
de sua música provocam rancor. Quanto mais ela presenteia os
ouvintes, menos lhes oferece. Ela exige que o ouvinte componha
em conjunto espontaneamente seu movimento interno, e o incita
de certo modo à práxis em lugar da mera contemplação. Mas, com
isso, Schoenberg peca contra a expectativa, nutrida apesar de todas
as afirmações idealistas em contrário, de que a música deve apre-
sentar-se ao ouvinte acomodado como uma seqüência de estímulos
sensoriais agradáveis. Mesmo escolas como a de Debussy, apesar
da atmosfera estética da l'art pour l'art, corresponderam a essa ·
expectativa. A fronteira entre o jovem Debussy e a música de salão
era fluida, e as conquistas técnicas do Debussy maduro foram
prontamente incorporadas pela música comercial de massa. Com
Schoenberg essa cordialidade acaba. Ele denuncia um conformis-
mo que se apropria da música como um parque natural de preser-
vação de comportamentos infantis, em meio a uma sociedade que
percebeu há muito tempo que só pode ser suportável se conceder
aos seus prisioneiros uma quota de controlada felicidade infantil.
Schoenberg peca também contra o princípio da divisão da vida em
duas metades distintas, a do trabalho e a do tempo livre. Ele impõe
ao tempo livre uma espécie de trabalho que poderia desconcertar o

146
PRISMAS

trabalho propriamente dito. Seu pathos aponta para uma música


diante da qual o espírito não precisa se envergonhar, uma música
que envergonhe, por isso, o espírito dominante. A música de
Schoenberg quer emancipar-se em seus dois pólos: ela libera os ins-
tintos ameaçadores, que outras músicas só deixam transparecer
quando estes já foram filtrados e harmonicamente falsificados; e
tensiona as energias espirituais ao extremo; ao princípio de um Eu
que fosse forte o suficiente para não renegar o instinto. Kandinsky,
em cujo Blaue Reiter ele publicou Herzgewachse, formulou o pro-
grama do "espiritual na arte". Schoenberg permaneceu fiel a esse
programa não por ter elaborado abstrações, mas por ter espiritua-
lizado a própria forma concreta da música.
Por isso a repreensão predileta que lhe é feita: a de intelectua-
lismo. Ou a força imanente da espiritualização é confundida com
uma reflexão exterior ao objeto, ou exclui-se dogmaticamente a
música dessa exigência de espiritualização, que se tornou indis-
pensável para todos os meios estéticos como corretivo da meta-
morfose da cultura em bem cultural. Schoenberg foi, na verdade,
um artista ingénuo, sobretudo nas intelectualizações, muitas vezes
precárias, com as quais pretendeu justificar a própria obra. Ele obe-
deceu como ninguém à intuição musical que transborda involun-
tariamente. A linguagem da música era para esse quase autodidata
algo evidente. Foi apenas com extrema relutância que Schoenberg a
modificou de maneira tão profunda. Embora sua música canalizasse
todas as forças do Eu na objetivação de seus impulsos, ela per-
maneceu ao mesmo tempo, durante toda a vida de Schonberg, algo
"estranho ao Eu". Ele mesmo gostava de identificar-se com a figura
do eleito que resistia a sua missão. Os valentes eram para ele aqueles
"que realizam atos que excedem a própria coragem". O caráter
paradóxal da fórmula caracteriza também sua atitude diante da
autoridade. Vanguardismo estético e mentalidade conservadora
caminham de mãos dadas. Enquanto golpeia mortalmente a autori-
dade por toda a sua obra, ele quer ao mesmo tempo defendê-la de
uma autoridade oculta, para finalmente elevar a própria obra à
posição de autoridade. Para o vienense de origem modesta, as nor-
mas de uma sociedade fechada e semifeudal pareciam estabelecidas
pela vontade divina. Mas esse respeito conviveu com um elemento
contrário, também incompatível com o conceito de intelectual.

147
THEODOR W. ADORNO

Algo de não integrado, não inteiramente civilizado e até mesmo


hostil à civilização o manteve fora da ordem que ele não ques-
tionava. Como um homem sem origens, caído do céu, um Kaspar
Hauser musical, Schoenberg era sempre marginalizado. Nada deve-
ria lembrar o contexto natural ao qual ele pertencia, e isso acabou
tornando mais evidente o que havia de natural nele mesmo. Aquele
que havia cortado os laços para não dever nada a ninguém entrou
em contato, justamente nesse isolamento, com a corrente coletiva
subterrânea da música, adquirindo aquela obrigatoriedade que faz
de cada uma de suas composições um modelo do gênero inteiro.
Não havia surpresa maior do que ouvi-lo cantar, com voz rouca e
excitada, alguns compassos. Sua voz quente, livre e sonora não
conhecia o medo; esse medo de cantar que marca os homens civi-
lizados, e que torna ainda mais penosa a falsa desenvoltura do cantor
profissional. No lugar dos pais, ele colocou a própria música. Era
"musical" como alguém impregnado pela linguagem da música,
alguém que a domina como a um dialeto, e nisso é comparável a
Richard Str~uss ou aos compositores eslavos. Desde as primeiras
obras, e nitidamente na Verklarte Nacht, essa linguagem musical
emana uni calor específico, tanto no som quanto na plenitude de
figuras musicais sucessivas e simultâneas, desinibidamente férteis, de
uma fecundidade quase oriental. O suficiente não é o bastante. A
intolerância de Schoenberg contra toda a sobrecarga ornamental
provém de sua generosidade: nenhuma ostentação deve afastar o
ouvinte da riqueza musical genuína. Sua fantasia generosa, uma hos-
pitalidade artística que presenteia cada um dos convidados com o
que há de melhor, inspira-o talvez mais do que a chamada "necessi-
dade de expressão", termo aliás muito questionável. De modo mui-
to pouco wagneriano, a música de Schoenberg nasce da embriaguez
criativa, e não do anseio ambicioso: é insaciável em sua doação.
Como se não bastassem todas as matérias artísticas nas quais
Schoenberg poderia pôr-se à prova, ele mesmo criou finalmente a
própria matéria e suas resistências, em uma constante insatisfação
com tudo o que não criasse como algo inteiramente original. A
chama do indomado, do mimético, que nasce em Schoenberg a par-
tir da herança subterrânea, consome ao mesmo tempo a própria he-
rança. A tradição e o novo começo se entrecruzam em Schoenberg,
assim como o aspecto revolucionário e o conservador.

148
PRISMAS

A repreensão ao intelectualismo de Schoenberg é acompanhada


da acusação de deficiência melódica. Ele era, entretanto, o melodista
por excelência. Em vez de usar fórmulas estabelecidas, Schoenberg
produzia constantemente novas configurações. Sua inspiração
melódica quase nunca se contenta com uma única melodia, todos os
eventos musicais simultâneos são perfilados como melodias, o que
dificulta em muito a percepção. O próprio modo original segundo
o qual Schoenberg reage musicalmente é melódico: na sua obra
tudo é realmente "cantado", até mesmo as linhas instrumentais.
Isso confere à sua música o caráter articulado, ela vibra livremente
ao mesmo tempo que é estruturada até o último som. O primado da
respiração sobre a pulsação do tempo abstrato opõe Schoenberg a
Stravinsky e a todos aqueles que, melhor adaptados à existência
contemporânea, consideram-se mais modernos do que Schoenberg.
A consciência reificada é alérgica à desgastada consumação da melo-
dia, e Schoenberg a substitui pela repetição obediente de fragmentos
melódicos mutilados. Mas a capacidade de seguir sem medo a respi-
ração musical é justamente o que diferencia Schoenberg dos compo-
sitores mais velhos da escola neogermânica, como Richard Strauss e
Hugo Wolf, nos quais o desdobramento da música a partir de sua pró-
pria substância parece sempre paralisado, não ocorrendo, nem mes-
mo na canção, sem um apoio programático literário. Diante desses
compositores, mesmo as obras do primeiro período de Schoenberg,
que inclui também o poema sinfônico Pelleas und Melisande e os
Gurrelieder, já são inteiramente compostas. Schoenberg tem pouca
afinidade com os procedimentos wagnerianos e também com a
expressão wagneriana: na medida em que o impulso musical atinge
seu objetivo, em vez de ser interrompido e depois reiniciado, perde
também o momento do desejo viciado, da inibição obcecada. A ex-
pressão original de Schoenberg, generosa e, em um sentido profundo,
jovial, relembra a expressão do humano em Beethoven. Desde o iní-
cio ele está disposto a transformar-se em teimosia contra um mundo
que rejeita a generosidade. Violêrrcia e escárnio querem subjugar
a frieza, a resistência; e o sentimento daquele que não alcança os
homens, justamente porque se dirige a eles enquanto homens, torna-
se angústia. Essa é a origem do ideal de perfeição de Schoenberg.
A música é reduzida, construída, protegida; o presente rejeitado
deve tornar-se tão perfeito que terá de ser aceito. O seu amor teve

149
THEODOR W. ADORNO

de reagir endurecendo, como ocorreu com o amor de todas as men-


tes, desde Schopenhauer, que não se contentam com o que existe. O
verso de Kraus, "Was hat die Welt aus uns gemacht" [O que o mun-
do fez de nós] vale enfaticamente para o músico.
O inconformismo de Schoenberg não é uma questão de menta-
lidade. A complexidade de sua intuição musical não lhe permitiu
outra escolha senão levar a composição às últimas conseqüências.
Foi forçado à clareza; precisava resolver a tensão entre os elementos
brahmsianos e os wagnerianos. Sua fantasia expansiva se inflamou
com o material wagneriano, e a exigência de coerência composicio-
nal, a responsabilidade diante do que a música quer de si mesma,
levou-o a procedimentos brahmsianos. Diante disso, a questão
sobre o estilo brahmsiano ou wagneriano era irrelevante em
Schoenberg. O estilo wagneriano não pôde, em razão de suas limi-
tações composicionais, satisfazer-lhe, e Schoenberg também não
podia contentar-se com o aspecto acadêmico da solução de Brahms.
Em nome da "idéia", da pura elaboração de pensamentos musicais,
ele sempre rejeitou, tanto na prática quanto teoricamente, o concei-
to de estilo enquanto uma categoria anterior ao objeto e orientada
para o corisenso exterior. O que importava, em todos os níveis, era
o "quê", e não o "como", os princípios de seleção e os meios de
apresentação. Por isso não se deve atribuir tanto peso às várias fases
estilísticas em sua obra. O decisivo encontra-se já bem cedo, certa-
mente não após as Canções Op. 6 e ao Quarteto em ré menor Op. 7.
Quem compreende bem essas obras entenderá as posteriores. As
suas inovações, que um dia causaram sensação, não fazem mais do
que tirar todas as conseqüências, mesmo para a linguagem musical,
daquilo que cada um dos eventos musicais individuais havia produ-
zido na obra específica. As dissonâncias e os grandes intervalos,
procedimentos marcantes no Schoenberg maduro, são secundários,
meros derivados da conexão interna de toda a sua música. Aliás,
os grandes intervalos já se encontram nas obras de juventude. O
problema central é o domínio da contradição entre essência e
aparência. Riqueza e plenitude devem tornar-se essência, e não
mero ornamento. Mas a essência tem de vir à luz não mais como
um esqueleto rígido vestido pela música, mas concreta e manifesta-
mente no mais sutil de seus traços. Aquilo que ele chama de "sub-
cutâneo", a estrutura dos eventos musicais individuais enquanto

150
PRISMAS

momentos indispensáveis de uma totalidade consistente em si


mesma, rompe a superfície, torna-se visível e se afirma independen-
temente de qualquer forma estereotipada. O interior exterioriza-se.
O fenômeno musical é reduzido a elementos de seus nexos estrutu-
rais. As categorias ordenadoras que facilitariam a audição em detri-
mento da pura elaboração [Auspragung] da forma são abandonadas.
Essa ausência de todas as mediações introduzidas na obra a partir de
fora faz com que o decurso musical, quanto mais for organizado em
si mesmo, apareça ao ingênuo ouvinte não-ingênuo como sendo
abrupto e fragmentado. A canção juvenil Lockung do Opus 6, pro-
tótipo de um caráter que é retomado até a fase dodecafônica, tem
uma introdução de dez compassos que alinha três grupos diferentes
extremamente contrastantes, até mesmo quanto ao andamento: o
primeiro grupo tem quatro compassos, o segundo e o terceiro têm
três compassos cada um. Nenhum grupo repete claramente algo dos
anteriores, mas todos estão relacionados entre si pelo emprego efi-
caz da variação. Ao mesmo tempo, os grupos estão sintaticamente
relacionados entre si: pergunta atormentada, insistência e meia-
resposta provisória, que funciona como transição. Ocorrem inúme-
ras coisas no menor espaço, mas tudo é elaborado de tal forma que
nada parece confuso. O segundo grupo varia o primeiro, na medida
em que são conservados os inte~valos de segunda menor e de quar-
ta aumentada, mas ao mesmo tempo o compasso ternário é redu-
zido a binário, o que proporciona um caráter insistente. Em meio
a modificações tão radicais reina a economia melódica. É essa
organização da estrutura musical, e não o uso privilegiado de meios
evidentes, que consiste no propriamente schoenberguiano: a alter-
nância variegada de figuras distintas, matizadas em um contraste
completo, e a unidade universal de relações motívico-temáticas. É
uma musica da identidade na não-identidade. Todos os desenvolvi-
mentos se passam mais rápida e concentradamente do que aprova o
costume acomodado do ouvinte s,ulinário; a polifonia opera com
vozes reais, não com contrapontos travestidos; os caracteres indi-
viduais são acentuados ao extremo, a articulação rejeita os esquemas
já prontos, e o contraste, suplantado no século XIX pela transição,
converte-se em meio de estruturação formal, sob a pressão de um
estado sentimental polarizado em seus extremos. No que se refere à
técnica, a emancipação da música significa um protesto contra a

151
THEODOR W. ADORNO

estupidez musical. Se a música de Schoenberg não é intelectual, ela


requer para isso inteligência musical. O princípio fundamental de
sua música é, segundo uma expressão de Schoenberg, o da "variação
progressiva" [entwicklnden Variation]. Tudo o que aparece deseja
ser resolvido, ser levado adiante, gerar tensão e ser dissolvido até o
equilíbrio. Reinam a obrigação universal e a idiossincrasia, contra
todos os traços da música que se assemelhem à linguagem jornalís-
tica. A tolice retórica e o gesto enganador, que promete mais do que
cumpre, são banidos. A música de Schoenberg honra o ouvinte na
medida em que não lhe faz concessões.
Por isso a música de Schoenberg é acusada de ser experimental.
Por trás dessa crítica há a idéia de que o progresso dos meios artís-
ticos ocorre em uma transição contínua e orgânica. Quem inventa
por conta própria algo de novo, sem ter uma clara cobertura histó-
rica, não apenas ofende o respeito pela tradição, mas também
sucumbe ao orgulho e à impotência. Mas as obras de arte, incluindo
as musicais, ·requerem espontaneidade e consciência humanas, que
sempre aniquilam a aparência de um crescimento contínuo. Quan-
do a nova.música ainda tinha a consciência limpa por causa de sua
hostilidade àquela tradição que Mahler definiu como "desleixada",
não procurando medrosamente demonstrar que no fundo não pre-
tendia nada de mau, assumiu abertamente o conceito de experi-
mental. Somente a superstição, que confunde fetichisticamente o
reificado e o consolidado, justamente o que é estranho à natureza
com a própria natureza, está atenta para que não haja experiências
na arte. O extremismo artístico tem entretanto a responsabilidade
de dizer se obedece à lógica da própria coisa, não importando ô
quanto essa objetividade esteja oculta, ou apenas à arbitrariedade
pessoal e ao sistema abstrato. A legitimidade do extremismo artís-
tico provém essencialmente da tradição que ele nega. Hegel ensinou
que, quando algo novo torna-se visível de um modo imediato,
repentino e autêntico, está apenas rompendo a casca após uma longa
formação. Somente aquele que se nutre das seivas da tradição tem
forças para confrontá-la autenticamente; o outro tornar-se-á presa
fácil dos poderes que não conseguiu dominar em si mesmo. O liame
da tradição, porém, dificilmente equivale à mera afinidade com a
seqüência presente na história, é antes algo subterrâneo. Em seu
escrito tardio sobre Moisés e o monoteísmo, Freud comenta que

152
PRISMAS

"uma tradição fundada apenas na transmissão oral não poderia pro-


duzir a força de coação que encontramos nos fenômenos religiosos.
Ela seria ouvida, avaliada, e eventualmente rejeitada como qualquer
outra notícia. Jamais alcançaria o privilégio necessário para eximir-
se do rigor do pensamento lógico. Ela deve primeiro suportar o
destino da repressão, o estado de permanência no subconsciente,
antes de poder desenvolver em seu retorno uma influência tão
poderosa que consiga subjugar as massas". Não somente a tradição
religiosa, mas também a tradição estética é rememoração de algo
inconsciente, reprimido. Onde ela de fato desenvolve "influências
poderosas", estas não partem da consciência linear e superficial da
continuação da tradição, mas sim do ponto onde o que é incons-
cientemente lembrado rompe com a continuidade. A tradição é
atualizada nas obras acusadas de experimentais, e não nas que se
acham tradicionalistas. O que há muito tempo foi observado na
pintura francesa vale também para a música de Schoenberg e dos
compositores da Escola de Viena. Ela exerce uma crítica produtiva
ao material sonoro manifesto do classicismo e do romantismo, aos
acordes tonais e suas relações normatizadas e às linhas melódicas
equilibradas entre as tríades e os intervalos de segunda, em suma,
ela critica toda a fachada da música dos últimos duzentos anos. Na
grande música da tradição, porém, esses elementos não eram impor-
tantes em si mesmos, mas apenas na medida em que assumiam uma
função precisa na representação do conteúdo especificamente musi-
cal, naquilo que era composto. Sob a fachada havia, latente, uma
segunda estrutura. Ela era determinada em vários aspectos pela fa-
chada, mas ao mesmo tempo gerava e justificava novamente, a partir
de si mesma, a própria fachada, constantemente problematizada.
Compreender a música tradicional sempre significou ter em mente,
além d.t estrutura da fachada, aquela segunda estrutura, percebendo
a relação entre ambas. Devido à emancipação social da subjetivi-
dade, essa relação tornou-se tão precária que no final as duas estru-
turas se separaram completamente.'A espontânea força produtiva de
Schoenberg executou um veredito histórico objetivo: ele libertou a
estrutura latente e abandonou a manifesta. Tornou-se assim o
herdeiro da tradição, justamente pela "experimentação", pelo
caráter insólito do que manifestava. Schoenberg obedeceu a normas
que estavam teleologicamente contidas no classicismo vienense e em

153
THEODOR W. ADORNO

seguida em Brahms, cumprindo portanto, mesmo nesse sentido


histórico, suas obrigações. A capacidade objetivante desenvolvida
sob o primado da "composição total" ["Auskomponierens"] tor-
nou-se arbitrária a partir de Brahms, porque de certo modo passou
a girar em falso, sem intervir em uma matéria musical que lhe opu-
sesse resistência, chegando por isso a negar até mesmo seu impulso
de revolta. Em Schoenberg, porém, o momento musical individual,
até mesmo a "idéia" [" Einfall"], é em si mesmo incomparavelmente
mais substancial. A sua totalidade, fiel ao estado histórico do espíri-
to, parte do individual, não do plano ou da arquitetura. Schoenberg
introduz o elemento romântico na composição integral, seguindo o
que Beethoven, de maneira rudimentar, já havia feito. Esse elemento
romântico encontra-se também em Brahms, em suas melodias líri-
cas no interior da forma instrumental. Mas nesse caso ele é compen-
sado, contrabalançado, em uma espécie de equilíbrio perfeito com o
"trabalho", daí o caráter ilusório e, se se quiser, resignado da forma
brahmsiana, que prudentemente ameniza as oposições, em vez de
deixar que el~s se interpenetrem. Em Schoenberg, a objetivação do
impulso subjetivo tornou-se crucial. Ele pode ter aprendido com
Brahms o trabalho de variação de temas e motivos, mas a polifonia,
graças à qual a objetivação do subjetivo adquire em Schoenberg um
aspecto incisivo, pertence inteiramente a ele, é literalmente a lem-
brança de algo enterrado há duzentos anos. Poder-se-ia concluir daí
que o "trabalho temático" de Beethoven, especialmente em sua
música de câmara, assumiu compromissos polifônicos sem cumpri-
los plenamente, com algumas exceções nas obras tardias. Wilhelm
Fischer, no seu estudo "Zur Entwicklungsgeschichte des Wiener
klassischen Stils" [História da evolução do estilo clássico vienense]
chegou à seguinte conclusão: "De modo geral, a seção do desen-
volvimento [Durchführung] no classicismo vienense serve de arena
para os meios melódicos do antigo estilo clássico, que foram expul-
sos da exposicão [Exposition]". Isso é válido não somente para o
princípio "barroco" de elaboração melódica, mas também, e em
muito maior grau, para a polifonia, que constantemente se insinua
no desenvolvimento apenas para cair por terra. Schoenberg leva às
últimas conseqüências aquilo que o classicismo prometeu e não
cumpriu, e por isso destrói a fachada tradicional. Ele retomou o
desafio bachiano que foi deixado de lado pelo classicismo, inclusive

154
PRISMAS

por Beethoven, sem que com isso tivesse recaído em um estag10


anterior ao classicismo. Este, por necessidade histórica, negligen-
ciou Bach. A autonomia do sujeito musical pesou mais do que qual-
quer outro interesse e eliminou criticamente a forma tradicional de
objetivação, ao mesmo tempo que os homens puderam satisfazer-se
com a aparência de objetivação, assim como o livre intercâmbio dos
sujeitos parecia garantir a sociedade. Apenas hoje, quando a subje-
tividade, em sua imediatidade, não mais se impõe como categoria
suprema, pois sua efetivação depende da sociedade como um todo,
fica evidente a insuficiência da solução de Beethoven, que estendeu
o sujeito ao todo sem reconciliar o todo em si mesmo. A polifonia,
que em Beethoven permanece, até a Sinfonia heróica, "dramática",
não inteiramente composta a partir de seus próprios elementos,
passa em Schoenberg a determinar a seção do desenvolvimento,
como explicitação dialética dos impulsos melódicos subjetivos na
polifonia objetivamente organizada. Esse fator organizador que não
tolera a gratuidade distingue o contraponto de Schoenberg de qual-
quer outro de sua época, e supera também o peso do predomínio da
harmonia. Schoenberg teria dito certa vez que quando o contrapon-
to é realmente bom, nem sequer se pensa na harmonia; isso carac-
teriza não apenas Bach, no qual o rigor da polifonia faz esquecer o
esquema do baixo contínuo que Jhe serve de base, mas também o
procedimento do próprio Schoenberg, no qual esse rigor finalmente
torna supérfluo qualquer esquema de acordes e qualquer fachada:
sua música é a do ouvido espiritual.
A espiritualização, enquanto "variação progressiva", torna-se
um princípio técnico. Esse princípio suspende [aufhebt] toda mera
imediatidade, ao entregar-se à sua dinâmica própria. Schoenberg
comentou ironicamente que a teoria musical, na verdade,· sempre
trata do tnício e do fim, mas nunca daquilo que acontece entre esses
dois pontos, ou seja, a própria música. A sua obra inteira é uma
tentativa única de resposta a essa qutstão deixada de lado pela teo-
ria. Tanto os temas como a história desses temas, o decurso musical,
têm o mesmo peso: liquida-se até a diferença entre ambos. Isso
ocorre no conjunto de obras que começa com as Canções Op. 6 e
vai até as Canções sobre poemas de George, abrangendo os dois
primeiros quartetos, a primeira Sinfonia de câmara e o primeiro
movimento da segunda. Apenas para os obcecados com o "estilo"

155
THEODOR W. ADORNO

essas obras podem parecer meras "obras de transição"; são com-


posições extremamente maduras. O Quarteto em ré menor alcan-
çou um nível inteiramente novo de música de câmara temática e
intrinsecamente composta até a última nota. É a mesma configu-
ração que encontramos mais tarde nas obras dodecafônicas. Para
quem quer compreender essas obras, é melhor estudar o Quarteto
em ré menor do que ficar contando séries. Já a partir do primeiro
compasso, cada "idéia" é contrapontística e contém em si a possi-
bilidade de seu desenvolvimento; cada desenvolvimento observa a
espontaneidade da primeira "idéia". Nas reduzidas dimensões e na
polifonia da primeira Sinfonia de câmara, tudo o que ainda ocorria
como sucessão no primeiro quarteto é comprimido em simulta-
neidade. Com isso, a fachada, que o quarteto até certo ponto ainda
tolera, cómeça a ruir. Schoenberg, em seu último livro, descreveu e
ilustrou a maneira como, na exposição da Sinfonia de câmara,
seguiu o impulso inconsciente - ou seja, o desiderato da estrutura
latente - e sacrificou assim a idéia habitual de "coerência" de refe-
rências temáticas evidentes, alcançando a coerência, em vez disso, a
partir da est,rutura interna dos temas. As duas melodias principais
do primeiro complexo temático, superficialmente independentes
uma da outra, demonstram o seu parentesco no sentido do prin-
cípio serial da futura técnica dodecafônica; essa técnica remonta a
essas obras iniciais de Schoenberg, sendo antes uma implicação do
procedimento composicional do que uma implicação do mero
material. A compulsão, portanto, de purificar a música de elemen-
tos previamente concebidos leva não apenas a novas tonalidades,
como os famosos acordes de quartas, mas também a uma nova
esfera de expressão, distante da cópia de sentimentos humanos. Um
regente fez uma comparação feliz do campo de resolução ao final
do grande desenvolvimento com uma paisagem de geleiras. A Sin-
fonia de câmara rompe pela primeira vez com um estrato funda-
mental da música, presente desde a era do baixo contínuo, o stile
rappresentativo, a adaptação da linguagem musical à linguagem sig-
nificativa dos homens. Pela primeira vez, o calor schoenberguiano
transforma-se em seu extremo: uma frieza cuja expressão é a ausên-
cia de expressão. Mais tarde Schoenberg se voltou polemicamente
contra aqueles que exigiam da música um "calor animalesco". O
seu dictum de que a música diria algo que só poderia ser dito pela

156
PRISMAS

música esboça a idéia de uma linguagem que não se assemelha à dos


homens. A luminosidade, a agitada e ao mesmo tempo pungente
relutância dessa música são características que se acentuam no
decorrer da primeira Sinfonia de câmara, antecipando em quase
cinqüenta anos a objetividade posterior sem qualquer trejeito pré-
clássico. Uma música que se deixa levar pela expressão pura e não
deformada torna-se extremamente sensível contra tudo que pode-
ria atentar contra essa pureza, contra qualquer congraçamento com
os ouvintes, e também dos ouvintes com a música, contra a identi-
ficação e a empatia. Na coerência do próprio princípio de expres-
são reside também o momento de sua negação, enquanto aquela
forma negativa de verdade que o amor converte em força de pro-
testo inflexível.
Em seguida, e por vários anos, Schoenberg não trilhou esse cami-
nho. O primeiro movimento da segunda Sinfonia de câmara, com-
posto na mesma época, é inteiramente expressivo e sua concepção
harmônica, com enorme riqueza de graus de acordes qualitativa-
mente diferentes dispostos de modo construtivo, é um dos melhores
exemplos do uso da harmonização total [Ausharmonisieren], que a
fantasia de Schoenberg arrancou da dimensão vertical. Mas o segun-
do movimento, que por sugestão de Fritz Stiedry foi recomposto na
América, aplica as experiências d~ técnica dodecafônica à tonalidade
tardia, demonstrando um entrelaçamento entre expressão e constru-
ção que é singular até mesmo na obra de Schoenberg: a peça começa
jocosamente, como uma serenata, mas, à medida que seu contrapon-
to torna-se mais denso, vai apertando o nó trágico, terminando por
desembocar, de maneira confirmadora, no tom sombrio do primei-
ro movimento. A segunda Sinfonia de câmara está mais próxima,
tecnicamente falando, do Quarteto em fá sustenido menor Op. 10
que da primeira sinfonia. H.F. Redlich chamou a atenção para o fato
de que este quarteto representa, como um microcosmo, toda a
evolução de Schoenberg, tanto reqospectiva quanto prospectiva-
mente. Com uma extraordinária riqueza de graus e perfis temáticos,
o primeiro movimento extrai, como se estivesse apoiado sobre um
pé só, tudo aquilo que um tonalismo já exposto a um olhar sobe-
rano e explorado conscientemente como meio de exposição é capaz
de oferecer. O segundo movimento, uma espécie de scherzo, libera
toda a vívida brancura e as caricaturas negras do expressionismo de

157
THEODOR W. ADORNO

Strindberg: os demónios dilaceram a tonalidade. No terceiro movi-


mento, variações líricas sobre a Litania de George, a música medita
sobre si mesma. O tema reúne, de maneira serial, partes dos moti-
vos principais do material dos dois primeiros movimentos. A con-
strução integral consegue conter a explosão do luto. Mas o último
movimento, novamente com canto, ressoa como se viesse do reino
da liberdade, e, apesar do fá sustenido maior do final, é o teste-
munho mais puro da nova música, utopicamente inspirada como
nenhuma outra antes. A introdução instrumental deste "êxtase"
[" Entrückung"] soa veraz, como se a música tivesse se libertado
de todos os grilhões e caminhasse, sobre abismos imensos, em
direção àquele outro planeta que o poema evoca. O encontro de
Schoenberg com George, que representa uma lírica inteiramente
oposta à ·de Schoenberg mas que possui com ela certas afinidades
eletivas, é um dos poucos acasos felizes na sua experiência
esporádica e incerta daquilo que acontecia, fora da música, na vida
espiritual de s~u tempo. Enquanto ele se mediu com George, estava
a salvo das tentações literárias que remetiam, de maneira barata, ao
som primordial: Schoenberg poderia ter escolhido como a sua
máxima o v~rso de George "Strengstes maas ist zugleich hochste
freiheit" [o mais extremo rigor é ao mesmo tempo a maior liber-
dade]. A qualidade da música, certamente, não depende de modo
simplista da qualidade dos poemas, mas a música vocal autêntica
só é bem-sucedida quando encontra no conteúdo da poesia algo
autêntico. Os Georgelieder Op. 15 já mostram a clara ruptura
estilística, e por ocasião de sua estréia foram introduzidos por
Schoenberg com uma explicação programática. Mas, no que diz
respeito à substância, eles pertencem ao Quarteto em fá sustenido
menor, especialmente ao último movimento. Os meios composicio-
nais, naquele tempo totalmente estranhos e provocativas, evocam
mais uma vez a idéia dos grandes ciclos de canções: An die ferne
Geliebte; Die schone Müllerin e Winterreise. Para Schoenberg, o
"pela primeira vez" significa sempre um "mais uma vez". A brevi-
dade, a pregnância e o caráter de cada uma das canções são dignos
da arquitetura do todo, com a cesura após a oitava canção, o centro
de gravidade do adágio na décima primeira e o crescendo do últi-
mo, para o finale. O piano se despoja asceticamente de toda sonori-
dade tradicional, trazendo em seu lugar o encantamento abafado da

158
PRISMAS

distância cósmica. O calor lírico do "Sage mir auf welchem Pfad"


[Diga-me em qual vereda], a nudez revelada do "Wenn ich heute
nicht Deinen Leib berühre" [Se eu hoje não tocar seu corpo], o
pianíssimo frenético do "Als wir hinter dem beblümtem Tor. .. "
[Quando nós, atrás do portão florido ... ], junto ao clímax de uma
intensidade de expressão quase insuportável; isso tudo soa como se
não pudesse ser de outro jeito e como se tivesse sempre existido. A
sombria despedida do final expande-se sinfonicamente como outro-
ra o júbilo do "Und ein liebend Herz erreicht/ was ein liebend
Herz geweiht" [E um coração que ama alcança/ aquilo que consa-
gra um coração que ama].
Com os Georgelieder começa a fase do "atonalismo livre"', que
deu a Schoenberg a reputação de subversivo depois de a Sinfonia de
câmara e o Segundo quarteto já terem provocado escândalo públi-
co. A ruptura radical de então parece hoje apenas a ratificação do
inevitável. Schoenberg revolucionou o vocabulário, do som indivi-
dual até os esquemaas das grandes formas, mas continuou a falar o
idioma musical e a buscar uma espécie de textura musical que não
somente pela gênese, mas também por seu significado, estava em
estreita ligação com os meios por ele eliminados. Essa contradição
impulsionou o desenvolvimento posterior de Schoenberg tanto
quanto o impediu. Mesmo nas obras mais audaciosas, ele perma-
neceu tradicional; eliminou a mátéria da linguagem musical, que
desde o início do século XVII produzia o nexo musical, mas mante-
ve virtualmente intactas as categorias de nexo enquanto tal, suportes
dos momentos "subcutâneos" de sua música. O idioma musical era
para ele algo tão evidente e fora de questão quanto havia sido para
Schubert, e algo do caráter persuasivo de sua música deve-se a isso.
Mas, ao mesmo tempo, as categorias familiares de nexo musical -
como as de tema, elaboração, tensão e resolução - não combi-
navam mais com o material por ele liberado. Purificado de todas as
implicações previamente dadas, o material é ao mesmo tempo
desqualificado. Na realidade, cada 'instante e cada som deveriam
estar à mesma distância do centro, o que excluiria a organização do
decurso temporal da música que prevalece em Schoenberg. Oca-
sionalmente, em peças particularmente indomadas como a terceira
do Opus 11, ele procedeu dessa maneira, mas no geral procedeu
como se ainda estivesse tratando com um material pré-estruturado.

159
THEODOR W. ADORNO

Talvez a musica dodecafônica fosse no fundo uma tentativa de


conferir ao material, por vontade própria, algo daquela pré-estru-
turação. Do contrário, a disposição livre sobre o material transfor-
mar-se-ia em algo externo, cego e arbitrário. Em nenhum momento
isso fica mais claro do que na relação de Schoenberg com o drama
musical. Apesar de todo o expressionismo das primeiras duas
obras dramáticas, esta relação era ditada diretamente pela estética de
Wagner. Mesmo em Moses und Aron, a música não tem uma relação
com o texto diferente da que ocorre em qualquer compositor da
escola neogermânica, ainda que não tenha nada em comum com as
partituras dramático-musicais. Em Schoenberg ocorre a colisão de
elementos não-contemporâneos. O homem que em termos imanen-
temente musicais estava a anos luz de distância de sua época per-
manece, no que diz respeito ao terminus ad quem da música, à sua
função, uma criança do século XIX. Nesse sentido, a crítica feita a
Schoenberg em nome de Stravinsky não é meramente uma crítica
reacionária, mas sim marca um limite traçado pela própria ingenui-
dade de Schoenberg.
Os elementos explosivos e antiartísticos de Schoenberg se
voltam, sem dúvida, contra essa ingenuidade. As Peças para piano
Op. 11 são antiornamentais até o gesto de vandalismo. Expressão
nua e não-estilizada é o mesmo que hostilidade à arte 1• Algo em
Schoenberg, talvez a obediência ao "Du sollst dir kein Bild
machen" [Não te farás imagem alguma] citado por um texto das
Peças para coro Op. 27, gostaria de erradicar na música, arte sem
imagem, os traços de estética da representação. Mas esses traços são
ao mesmo tempo caracteres do idioma no qual cada pensamento .
musical de Schoenberg é pensado. Ele enfrentou esse problema até
o fim. Constantemente, inclusive no período dodecafônico, ele fez
esforços heróicos para esquecer, para demolir camadas musicais
encobertas, mas o idioma musical sempre se afirmou com tenaci-
dade. Por isso, as reduções são constantemente seguidas por obras
complexas e ricamente trabalhadas, nas quais torna-se linguagem
musical justamente aquilo que gostaria de romper com essa lingua-
gem. Assim, após as primeiras peças atonais para piano, surgiram as
Peças para orquestra Op. 16, que não deixam nada a desejar em ter-
mos de emancipação do material, mas que, em meio a sua "prosa",
novamente se desdobram em polifonia e trabalho temático. Muito

160
PRISMAS

antes da técnica dodecafônica, esse trablho resulta em "figuras fun-


damentais". Também o Pierrot lunaire conhece algo semelhante,
como por exemplo no Mondfleck, que se tornou célebre pelo tour
de force de uma fuga acompanhada por dois cânones retrógrados
simultâneos; além do mais, o tema da fuga e o do cânone de instru-
mentos de sopro são já rigorosamente deduzidos a partir de uma
série, enquanto o cânone das cordas forma uma espécie de "sistema
de acompanhamento", o que quase se tornou regra na técnica dode-
cafônica. Assim como o atonalismo livre se originou da estrutura
das grandes músicas de câmara tonais, o procedimento dodecafô-
nico também nasceu do modo de composição do atonalismo livre.
O fato de que as peças orquestrais tenham descoberto o princípio
serial sem enrijecê-lo em sistema faz com que elas se incluam entre
as obras bem-sucedidas. Algumas dessas peças - o intricado liris-
mo da segunda peça, por exemplo, e a última, que culmina em um
final de força perspectivista sem precedentes - estão à altura das
grandes obras de câmara tonais e dos Georgelieder. Como com-
posições, as obras cênicas Erwartung e Glückliche Hand não ficam
atrás. Mas nelas a tendência antiartística de Schoenberg, que é
estranha à arte, vai ao encontro da concepção geral. Certamente,
Schoenberg não compôs nada tão livre quanto a Erwartung. Não
apenas os meios de representação se emancipam, mas também a
própria sintaxe. Webern não exagerou quando escreveu, na primei-
ra coletânea de textos sobre Schoenberg, que a partitura seria "um
acontecimento sem precedentes. Rompe-se com toda a arquitetô-
nica tradicional; surge sempre algo novo, com mudanças abruptas
de expressão". Cada instante se entrega à emoção espontânea, e o
objeto, a representação do medo, atesta a inervação histórica de
Schoenberg, aparentado com o mais profundo expressionismo ime-
diatamente anterior a 1914. Mas Schoenberg não soube escolher o
texto. O monodrama de Marie Pappenheim é expressionismo de
segunda mão, diletante na construção e na linguagem, e isso conta-
gia também a música. Mesmo qu~ Schoenberg divida engenho-
samente o todo em três seções - procura, explosão e epílogo em
forma de lamento -, a música não consegue retirar do texto uma
forma interior e, ao apegar-se ao texto, tem de repetir constan-
temente os mesmos gestos e configurações. Assim ela transgride o
postulado do incessantemente novo. Na Glückliche Hand, que

161
THEODOR W. ADORNO

dentro de uma postura não menos expressionista tende, no que


tange à composição, a uma forma objetivamente sinfônica, e que
esboça superfícies formais pastosas, essa objetividade é compro-
metida irremediavelmente pelo sujeito insensato e narcisista. A sin-
fonia que poderia resumir a obra de Schoenberg não foi escrita.
As Canções para orquestra Op. 22 terminam com as palavras
"Und bin ganz allein in dem grossen Sturm" [E estou inteiramente
só na grande tempestade]. Schoenberg deve ter experimentado
naquele momento a extrema intensificação de suas forças. Sua músi-
ca se estira como um gigante: como se a totalidade, a "grande tem-
pestade", quisesse surgir das cinzas da subjetividade esquecida de si
mesma: "inteiramente só". É destes anos o Pierrot lunaire, a mais
conhecida das obras de Schoenberg desde o abandono do tonalis-
mo. A tendência para o objetivo e para a amplitude abrangente é
compensada com muita felicidade com aquilo que o sujeito é capaz
de cumprir. Cria-se um cosmo de todos os caracteres musicais e
expressivos irl}agináveis, mas, como no espelho da interioridade iso-
lada, em uma estufa de almas, semelhante àquela que pouco antes
havia sido cantada no poema de Maeterlinck: feérico e absurdo. O
aspecto restaurador - passacaglia, fuga, cânone, valsa, serenata e
canção estrófica - só é introduzido de modo irânico e desnatu-
rado no paradis artificie!, e os temas reduzidos a aforismos soam
apenas como o eco longínquo do que é tematizado literalmente.
Essa descontinuidade não pode ser separada da repreensão quanto
ao anacronismo. Os poemas de Albert Giraud, traduzidos por
Hartleben, regridem a antes do expressionismo, a uma esfera de
artefato, ornamentação figurativa e estilização. O que de forma e
conteúdo se opõe nesses poemas obrigatoriamente ao sujeito é a sua
própria projeção inconsciente. Não apenas o texto escolhido faz
com que a obra-prima de Schoenberg possua uma ameaçadora
afinidade com o kitsch, situação paradoxal que atinge todas as obras-
primas, mas a própria música, em sua tendência para a fluidez linear
e efeitos surpreendentes, sacrifica algo daquilo que Schoenberg con-
seguiu desde a Erwartung. Apesar de toda a virtuosa espiritualidade
do Pierrot, e ainda que nele se achem algumas de suas composições
mais complexas, o propósito musical de produzir nexos de super-
fície faz com que ele imperceptivelmente se afaste de suas posição
mais avançada. Mas não se pode atribuir isso a uma diminuição de

162
PRISMAS

sua capacidade de compos1çao. Schoenberg nunca dispôs mais


soberanamente sobre os meios quanto nos arabescos que superam
brincando qualquer força de gravidade musical. Mas Schoenberg
colide justamente com a necessidade histórica que ele, como ne-
nhum outro músico da época, incorporou perfeitamente. Ele ficou
preso na aporia da falsa transição. Desde Hegel, nada de espiritual
escapou a essa aporia, talvez porque a ausência de contradição não
pode mais ser alcançada no âmbito auto-suficiente do espírito, se é
que foi alcançada antes. Plenamente desenvolvido e mestre de si
mesmo, o sujeito estético, assim como o filosófico, não pode mais
contentar-se consigo mesmo e com a sua "expressão", mas precisa
almejar uma obrigatoriedade objetiva, como aquela que o gesto
generoso de Schoenberg pretendeu desde o início. Entretanto, mes-
mo saturada de toda dinâmica social, a mera subjetividade não pode
gerar essa obrigatoriedade se ela não estiver presente de maneira
substancial na sociedade. Mas hoje o sujeito estético é obrigado a
romper com a sociedade, justamente porque ela é desprovida
daquele conteúdo substancial. Em Schoenberg repetiu-se, de certo
modo, o destino das Novas Tábuas de Nietzsche, e também o de
George, que inventou um Deus para ter a possibilidade de fazer
poemas sacros. Não foi por acaso que Schoenberg se sentiu atraído
pelos dois. Depois do Pierrot e das canções para orquestra, ele ini-
ciou a composição de um oratório". Os fragmentos publicados dessa
música revelam mais uma vez a capacidade de Schoenberg de atingir
sem rodeios os extremos, como a martelada da Glückliche Hand.
Mas o texto revela igualmente o caráter desesperado da empreitada.
Na insuficiência literária mostra-se a impossibilidade da própria
coisa, a inadequação de uma obra coral religiosa em meio a uma
sociedade do capitalismo tardio, a inadequação da configuração
estética da totalidade. O todo, como algo positivo, não se deixa
extrair antiteticamente, pela força e vontade do indivíduo, da reali-
dade alienada e dividida. Para não degenerar em engodo e ideologia,
o todo é chamado à negação. O chef d'oeuvre ficou inacabado, e a
confissão do fracasso, o reconhecimento por Schoenberg de que a
peça é "um fragmento, como todas as outras", talvez testemunhe
mais em seu favor do que todos os êxitos. Ele poderia sem dúvida
ter completado à força aquilo que tinha em mente, mas deve ter
percebido a falsidade de seu projeto: a idéia de chef d'oeuvre é hoje

163
THEODOR W. ADORNO

enfeitiçada em genre chef d'oeuvre. A ruptura entre a substan-


cialidade do Eu e uma concepção global da existência social é hoje
tão profunda que nega ao Eu não apenas a sanção externa, mas tam-
bém as condições a priori para isso, o que não permite que as obras
de arte alcancem a síntese. O sujeito conhece a si mesmo como algo
objetivo, algo subtraído da contingência de sua mera existência, mas
este conhecimento, que é verdadeiro, é também ao mesmo tempo
não-verdadeiro. A objetividade arraigada no sujeito não pode
reconciliar-se com uma situação que nega o seu próprio conteúdo,
justamente na medida em que visa a reconciliação plena com ela,
reconciliação na qual deveria se superar, para curar-se da impo-
tência do mero "ser para si". Quanto melhor o artista, tanto maior
será a tentação do quimérico. Pois a arte, assim como o conheci-
mento, não pode esperar, mas logo que ela perde a paciência, acaba
caindo em uma cilada. Nisso Schoenberg se parece não apenas com
Nietzsche e George, mas também com Wagner. As marcas de sec-
tarismo que existem em Schoenberg e em seu círculo são sintomas
da falsa transição. Sua índole autoritária é de tal forma, que ele mes-
mo, que se colocou coerentemente como princípio de toda música,
prescreve esse princípio para si mesmo, e então tem de obedecê-lo.
A idéia de liberdade é bloqueada na sua música pela necessidade
desesperada de submeter-se a um heterônomo, porque fracassa o
esforço de ultrapassar a mera individualidade e objetivar a si mes-
mo. A impossibilidade interna da objetivação da música se manifes-
ta nos traços compulsivos de sua compleição estética. A música não
consegue sair verdadeiramente de si, e tem por isso de elevar a uma
posição de autoridade sobre si mesma a própria arbitrariedade, em
cujos traços tentava realizar seus propósitos. O iconoclasta torna-
se um fetichista. Afastado de sua realização concreta, o princípio de
uma música racionalmente transparente e que ao mesmo tempo não
exclui o sujeito se metamorfoseia, enquanto algo abstrato, em pres-
crição rígida e inquestionável.
Não se pode explicar suficientemente a pausa bíblica de criação
de Schoenberg por seu destino privado nos tempos da guerra e da
inflação. Suas forças se reagruparam, como ocorre após uma derro-
ta fatal. Naqueles anos ele se ocupou intensamente com as ativi-
dades da Vereio für musikalische Privataufführungen [Associação
para apresentações privadas de obras musicais] por ele fundada. A

164
PRISMAS

importância dessa associação para a interpretação musical difi-


cilmente pode ser superestimada. Aquele, que como compositor,
pôs o subcutâneo para fora encontrou e transmitiu um modo de
exposição no qual essa estrutura subcutânea torna-se visível, e a
execução torna-se realização integral do nexo musical. O ideal
interpretativo converge com o da composição. O sonho do sujeito-
objeto musical se concretizou tecnologicamente depois que o com-
positor desistiu de terminar a jakobsleiter. Ele já não espera
alcançar o obrigatório a partir de entidades e formas suprapessoais,
mas unicamente a partir da dinâmica própria do objeto, por meio
de procedimentos composicionais coerentes. Com isso ele se
mostrou incorruptivelmente superior a todas as tendências
usurpatórias e restauradoras que apareceram na música pós-expres-
sionista, inclusive nos pontos onde ele se aproxima da música neo-
clássica que tanto desprezou. Mas a confiança firme do Schoenberg
posterior no modo de procedimento, pensado como garantia de
uma totalidade abrangente, apenas fez recuar a aporia. Sob o prima-
do da altamente engenhosa técnica dodecafônica, a música sofreu
uma transformação quase imperceptível. É verdade que essa técnica
trouxe à consciência, codificou e sistematizou as experiências e
regras cristalizadas de maneira necessária e convincente no proces-
so composicional. Mas esse ato afeta o caráter de verdade daquelas
experiências. Elas deixam de estar abertas e acessíveis à correção
dialética. O que Kandinsky havia escrito em um ensaio de 1912 em
sua homenagem ameaça tornar-se uma Nêmesis para Schoenberg:
"O artista acha que, 'depois de finalmente ter encontrado a sua
forma', pode seguir criando tranqüilamente obras de arte. Infeliz-
mente, ele em geral não percebe que, a partir desse momento (da
'tranqüilidade'), começa rapidamente a perder essa forma final-
mente encontrada". Pois cada obra de arte é um campo de forças, e
assim como o conteúdo de verdade do juízo lógico é inseparável do
ato de pensamento, também as obras de arte são verdadeiras apenas
na medida em que superam os seÚs pressupostos materiais. O ele-
mento alucinatório, comum aos sistemas tecno-estéticos e aos cog-
nitivos, assegura a estes sistemas, sem dúvida, uma certa força de
sugestão. Eles se transformam em modelos. Mas, na medida em que
não se permitem a auto-reflexão e se tornam estáticos, adquirem
um aspecto moribundo que paralisa exatamente aqueles impulsos

165
THEODOR W. ADORNO

que antes haviam produzido o sistema. Nenhum meio-termo


escapa à alternativa. Ignorar as idéias que se coagularam no sistema
significa apegar-se de maneira impotente ao que foi superado. O
próprio sistema transforma-se em idéia fixa e em receita universal.
Não é o procedimento em si que é falso - ninguém mais pode hoje
em dia continuar a compor se não tiver percebido com os próprios
ouvidos a força gravitacional que levou à técnica dodecafônica - ,
mas sim a sua hipostasiação, a rejeição a outros procedimentos, que
ainda não foram enquadrados analiticamente. A música não deve
tomar o método, uma parte da razão subjetiva, pela própria coisa,
que é algo objetivo. Mas ela é cada vez mais obrigada a fazer isso,
quanto menos o sujeito estético consegue orientar-se em algo que
lhe é oposto e ao mesmo tempo está em harmonia com ele: a fór-
mula mágica substitui a obra abrangente, que se proíbe a si mesma.
Quem permanece fiel a Schoenberg deveria precaver-se contra
todas as escolas dodecafônicas. Na medida em que hoje elas igno-
ram tanto a prudência quanto a experimentação e o risco, coloca-
ram-se a serviço do segundo conformismo. Os meios tornam-se
fins. O próprio Schoenberg tirou proveito de sua ligação com a
tradição da linguagem musical: ele organizava através do proce-
dimento dodecafônico uma música extremamente complexa, que
necessitava desses pontos de apoio. Em seus sucessores, o proce-
dimento perde pouco a pouco essa função, e acaba sendo emprega-
do como mero substituto do tonalismo, bom o suficiente para ligar
entre si fenômenos musicais tão simples que não mereceriam tanta
complicação. Mas Schoenberg também não estava totalmente isen-
to de culpa por essa reviravolta. Naqueles anos ele escreveu gigas e
rondós dodecaf ônicos, formas nas quais a técnica dodecafônica
torna-se supérflua, enquanto permanece ao mesmo tempo incom-
patível com gêneros que pressupõem tão evidentemente a modu-
lação tonal. No início, Schoenberg utilizou empréstimos como
esses para iluminar completamente a inconsistência do demasiado
consistente, e depois se esforçou durante anos para corrigir o que
havia feito.
O potencial da técnica dodecafônica ainda permanece aberto.
Ela permitiu de fato a síntese de procedimentos inteiramente livres
e inteiramente rigorosos. Na medida em que o trabalho temático
domina integralmente o material, a própria composição poderia

166
PRISMAS

tornar-se realmente a-temática, "prosa", sem por isso sucumbir à


contingência. Mas a reificação dos modos de procedimento torna-se
flagrante no momento em que Schoenberg confia às séries dode-
cafônicas, que unicamente predispõem o material, a fundação de
grandes formas. O que o tonalismo foi uma vez capaz de realizar
graças às proporções modulatórias é inacessível a uma técnica cujo
sentido consiste justamente em não aparecer como algo externo. Se
as séries e as relações dodecafônicas se tornassem tão evidentes em
uma forma maior quanto o foram as relações tonais na música tra-
dicional, então a forma tagarelaria mecanicamente. As séries dode-
cafônicas não definem um espaço musical no interior do qual se
desenvolve a obra e a intuição é previamente regulamentada. Elas
são as menores unidades que permitem construir um todo integral
de relações universais. Se se tornassem manifestas, o todo diluir-
se-ia em seus átomos. Obviamente, Schoenberg, com sua fantasia
variativa, escondeu as séries sob o decurso real da música. Mas lá
elas também não puderam exercer o efeito arquitetônico que ele
esperava. A contradição entre organização latente e música manifes-
ta reproduz-se em um grau superior. Para prescrevê-la, Schoenberg
evoca meios formais tradicionais. Já que ele impôs à técnica do-
decafônica o fardo da objetividade como uma espécie de ordem
de conceitos gerais, um fardo_ que ela não agüentou, precisou
introduzir as categorias dessa ordem a partir de fora, sem levar em
consideração o material. Ele nunca perdeu a fé nessas categorias
musicais ordenadoras. Muitas das grandes peças dodecafônicas,
especialmente as da fase americana, alcançaram um êxito convin-
cente. As melhores peças, contudo, não confiavam nem nas séries
dodecafônicas, nem nos tipos tradicionais. São aquelas nas quais ele
opera desembaraçadamente com meios composicionais ·próprios;
dispondo em camadas, por exemplo, campos temáticos ordenados
ao redor de diferentes modelos centrais. A lógica da estruturação é
mais uma vez intensificada: a coqstrução, por exemplo, do tema
principal do primeiro movimento do Concerto para violino é mais
pregoante do que qualquer coisa composta antes da introdução da
técnica dodecafônica. A capacidade de composição se potencializou
pelas resistências a essa técnica. Mas a aparência do natural, de ordo
musical, que ela assume na consciência do adepto, como herança
perversa da tonalidade, que tampouco era natureza, mas produto da

167
THEODOR W. ADORNO

racionalização, é um mero testemunho de fraqueza, de anseio


desamparado por segurança. Isto se mostra drasticamente, por
exemplo, na relação da técnica dodecafônica com a oitava. A iden-
tidade da oitava é aceita tacitamente: sem isso, um dos mais impor-
tantes princípios dodecaf ônicos, o da possibilidade de transpor
cada som para qualquer oitava, seria impensável. Mas, ao mesmo
tempo, a oitava retém algo de "tonal", algo que perturba o equi-
líbrio dos doze semitons: a duplicação de oitavas é geralmente
associada às tríades. Essa contradição se manifestou na práxis hesi-
tante de Schoenberg. No início, e mesmo nas obras do atonalismo
livre, a oitava foi evitada. Mas logo em seguida Schoenberg voltou
a escrever oitavas, sem dúvida para diferenciar os baixos e as vozes
temáticas principais. E isso ocorreu inicialmente em uma peça que
joga com a tonalidade, a Ode a Napoleão; nela, como também no
Concerto para piano, é difícil não perceber uma certa violência e
impureza da frase musical. E mesmo no período inicial da técnica
dodecafônica,. a falsa natureza acaba se traindo na tendência ao
apócrifo, ao absurdo e ao mesquinho. De vez em quando, essa
música essencialmente formalista e sem conteúdo ameaça desfazer-
se de toda ~ sua sublimação, transformando-se em matéria bruta.
Assim como o dogma dos astrólogos relaciona o movimento das
estrelas ao prognóstico dos destinos humanos, sem que estes te-
nham qualquer vínculo entre si no ato de conhecimento, assim a
seqüência dos eventos dodecaf ônicos, determinados até a última
nota, contém resíduos de algo desvinculado. No desprezo de uma
possível síntese entre normatividade e liberdade, a necessidade
absolutizada revela-se como mero acaso.
Quando Schoenberg investiu toda a energia de sua maturidade
para eliminar o elemento apócrifo da técnica dodecafônica, o grande
compositor triunfou mais uma vez sobre o inventor. As primeiras
composições seriais, ainda não estritamente dodecafônicas, estavam
livres desse elemento. A força irruptiva da fase expressionista ainda
palpita nas primeiras quatro peças do Opus 23. Quase não há seções
rígidas. A segunda peça, por exemplo, uma peripécia daquele tipo
no qual o scherzo, sob as mãos de Schoenberg, transformou-se,
nada mais é do que um diminuendo inteiramente composto, extre-
mamente original: a irrupção se extingue rapidamente, dando lugar
a um movimento final consolador, tranqüilo como um noturno. A

168
PRISMAS

impetuosa quarta peça aproxima-se, como nenhuma outra, da idéia


de uma composição dodecafônica atemática. A Suíte para piano
Op. 25 e o Quinteto de sopros Op. 26 são já obras completamente
dodecafônicas. Elas ressaltam o aspecto coercitivo, são uma espé-
cie de música da Bauhaus, um construtivismo metálico cujo impac-
to provém justamente da ausência de expressão primária. Onde se
encontram caracteres expressivos, estes são "totalmente construí-
dos" [auskonstruiert]. O quinteto, de todas as obras de Schoenberg
a mais difícil de ouvir, remete, em sua rigidez, a sublimação a uma
dimensão extrema: é uma declaração de guerra à cor. O impulso
contra o infantilismo, contra a estupidez musical, toma conta do
meio que, mais do que qualquer outro, parece ser culinário, mera
excitação sensorial aquém da atividade do espírito. Schoenberg
arrancou a cor finalmente da esfera do ornamental, e a elevou a ele-
mento composicional por direito próprio. Entre todos os atos de
integração dos meios musicais que ele realizou, este não foi um dos
menores. A cor se transforma em um meio de clarificação do nexo
composicional. Mas essa sua inserção na composição ser-lhe-á fatal.
Em uma passagem de Style and idea, Schoenberg a repudiou expli-
citamente. Quanto mais nua a construção se apresenta, tanto menos
necessita do auxílio da cor. Assim o princípio se volta contra as
próprias conquistas de Schoenberg, comparáveis talvez apenas às
do último Beethoven, no qual toda a imediatidade sensível é redu-
zida a algo superficial e alegórico. Pode-se entender facilmente que
esta forma tardia da ascese schoenberguiana, a negação de todo e
qualquer tipo de fachada, tenha acabado por abranger todas as
dimensões musicais. A música emancipada suspeita de todo som
real enquanto tal. Do mesmo modo, com a realização do "subcu-
tâneo" também se entrevê o fim da interpretação musical: A leitura
silenciósa e imaginativa da música poderia tornar supérflua a exe-
cução musical, assim como, por exemplo, a leitura de um texto dis-
pensa a fala, e essa prática poderia, ao mesmo tempo, salvar a música
do abuso que hoje em dia quase to3as as execuções exercem sobre o
conteúdo composicional das obras. A tendência para o silêncio, que
na lírica de Webern forma a aura de cada som, é ligada a isto e tem a
sua origem na obra de Schoenberg. Mas ela não leva a outra coisa
senão ao fato de que a emancipação e a espiritualidade da arte, com
a aparência sensual, virtualmente eliminam a própria arte. Na obra

169
THEODOR W. ADORNO

tardia de Schoenberg, a espiritualização da arte procura enfati-


camente a própria dissolução, indo assim ao encontro de uma
moda abismal, ao encontro do elemento bárbaro e hostil à arte. Por
isso os esforços de abstração total como os de Boulez, por exem-
plo, e de outros jovens compositores dodecafônicos em todos os
países não são apenas um mero "desvio", mas levam adiante algo
que era a intenção de Schoenberg, embora este nunca tenha se
tornado escravo de sua própria intenção e da tendência objetivante.
A disposição rígida do material tornou-se cada vez mais severa à
medida que a idade avançou, rompendo paradoxalmente, sob
vários pontos de vista, a obrigatoriedade sistêmica da livre con-
seqüência. Sua composição nunca procurou enganar ninguém,
fingindo a existência de uma unidade original entre composição e
modos df procedimentos técnico. A experiência de que nenhum
sujeito-objeto pode ser construído aqui e agora nunca foi esqueci-
da por Schoenberg. Isto, por um lado, salvou a liberdade subjetiva
da movimentação, mas, por outro, manteve afastado do conteúdo
objetivo o dem"ônio da máquina da composição. Ela ganhou nova-
mente esta sua liberdade na medida em que podia usar a técnica
dodecafônica como uma linguagem conhecida. Isto encontra-se na
escola da jovial Sinfonia de Câmara Op. 29 e nas quase didáticas
variações orquestrais, das quais Leibowitz destilou um compêndio
da nova técnica. O contato íntimo com o texto e com as modestas
tiradas da ópera cômica Von heute auf morgen devolveu-lhe final-
mente toda a flexibilidade do idioma musical. Com esta em mente,
ele se voltou novamente para o chef d'oeuvre, adiando a conclusão
com aquela fé na vida eterna, na qual se mascara seu desespero do
"Es soll nicht sein" [não deve ser]. Que no início dos anos 30 a sua
força criativa tenha chegado ao auge foi mostrado claramente pela
estréia inesquecível, no verão de 1951 em Darmstadt, da peça
"Tanz um das Goldene Kalb", poucos dias antes de sua morte. Pela
primeira vez, uma das obras dodecafônicas foi recebida com aque-
le júbilo do qual o desprezador de aplausos precisava mais do que
qualquer outra pessoa. A intensidade da expressão, a disposição da
cor e a força da construção superavam tudo. Se julgássemos con-
forme o texto do fragmento Moses und Aron seria como obra aca-
bada um fracasso, mas a obra inacabada pertence aos grandes
fragmentos da música.

170
PRISMAS

Schoenberg, que resistiu a todas as convenções no setor musi-


cal, aceitou o papel que lhe foi destinado pela divisão social do tra-
balho, ou seja, que o restringia à esfera da música. Seu impulso de
superar esta condição, pretendendo ser pintor e poeta, foi frustra-
do. A divisão do trabalho não pode ser revogada pela pretensão de
um gênio universal. Deste modo, ele se colocou na série dos "gran-
des compositores", como se esse conceito também fosse eterno. A
mais leve crítica feita a qualquer dos grandes mestres desde Bach
era insuportável para ele. Schoenberg não apenas discutiu dife-
renças qualitativas na obra de cada um, mas também, na medida do
possível, diferenças estilísticas em seus trabalhos de diferentes gêne-
ros, como, por exemplo, a diferença entre as obras sinfônicas de
Beethoven e sua música de câmara. De certo modo, ele não admitiu
que a categoria de grande compositor pudesse variar de acordo com
as condições históricas, como tampouco teve dúvidas de que a sua
música, no tempo devido, seria estabelecida como a de um clássico.
No interior de sua obra, entretanto, e contra a sua vontade, crista-
lizou-se algo oposto ao ponto de vista imanente-musical e social
de tais idéias primitivas. A impaciência na aparência sensual de seu
estilo tardio corresponde à emasculação da arte, tendo em vista a
possibilidade de cumprir no real a sua promessa, mas corresponde
também ao temor de que, para impedir a realização de tal possi-
bilidade, destrua-se todo critérib que eventualmente poderia trans-
formar-se em imagem. Em meio à especialização deslumbrada,
surgiram em sua música as luzes que superam a esfera meramente
estética. Por outro lado, sua sinceridade e honestidade incorruptí-
veis chegaram, já nos primeiros meses da ditadura de Hitler, à con-
vicção, formulada abertamente por ele, de que a sobrevivência seria
mais importante do que a música. Se a sua obra tardia ficou pou-
pada, após a Segunda Guerra Mundial - como provavelmente
apenas a de Picasso - , da decadência inerente a qualquer música,
isso aconteceu por causa da relativização de toda a arte, para a qual
contribui o elemento da espirituatização. Esse fato talvez explique
melhor os seus traços didáticos. Os comentários de Valéry de que
o trabalho de grandes artistas depende de exercícios manuais, e
estes têm algo a ver com o estudo de obras que nunca tiveram êxi-
to, podem ser eventualmente dirigidos a Schoenberg. A utopia da
arte paira sobre as obras. Aliás, este é o meio que cria o consenso

171
THEODOR W. ADORNO

costumeiro entre músicos para quem a distinção entre produção e


reprodução. Eles percebem que trabalham na música e não nas
obras, mesmo que este trabalho ocorra através das obras. O
Schoenberg tardio, em vez disso, compõe paradigmas de uma
música possível. A idéia da música fica tanto mais transparente,
quanto menos as obras insistem nas suas aparências. Elas se aproxi-
mam do fragmentário, cuja sombra acompanhou Schoenberg
durante toda a sua vida. Não apenas por causa de sua brevidade,
mas também por causa da sua versão abreviada, as últimas obras
de Schoenberg apresentam-se como fragmentárias. No estilhaço
reconhece-se a dignidade da grande obra. Oferendas e sacrifícios
bíblicos são compensados pelos poucos minutos de narração do
Sobrevivente de Varsóvia, minutos nos quais Schoenberg, por ini-
ciativa própria, suspende a esfera estética pela rememoração de
experiências que como tais estão fora do âmbito da arte. O núcleo
da expressão de Schoenberg - a angústia - identifica-se com a
angústia da tortura e da morte de seres humanos que vivem sob o
domínio de regimes totalitários. Os sons da Erwartung, o choque
da música de cinema sobre "o perigo ameaçador, a angústia e a
catástrofe" aeertam em cheio tudo aquilo que foi dito há tempo em
profecias. A expressão da fraqueza e da impotência da alma indivi-
dual é testemunho da violência contra a humanidade naquelas pes-
soas que, como vítimas, representam o todo. Na música, o horror
nunca foi tão verdadeiro, e, na medida em que o horror se manifes-
ta, a música encontra a sua força redentora na negação. O cântico
judeu que encerra o Sobrevivente de Varsóvia é uma música de
protesto da humanidade contra o mito.

172
Museu Valéry Prouse:-
Em memória de Hermann von Grab

A expressão "museal" possui na língua alemã uma coloração desa-


gradável. Ela designa objetos com os quais o observador não tem
mais uma relação viva, objetos que definham por si mesmos e são
conservados mais por motivos históricos que por necessidade do
presente. Museu e mausoléu não estão ligados apenas pela associa-
ção fonética. Os museus são como sepulcros de obras de arte, tes-
temunham a neutralização da cultura. Neles são acumulados os
tesouros culturais: o valor de mercado não deixa lugar para a felici-
dade da contemplação. Mas mesmo assim essa felicidade depende
dos museus. Quem não possui uma coleção particular - e os gran-
des colecionadores privados tornam-se uma raridade - somente
no museu pode conhecer em larga escala pinturas e esculturas.
Quando o mal-estar em relação aos museus prevalece e são feitas
tentativas de expor os quadros em seu ambiente natural ou em
locais semelhantes, como por exemplo em castelos barrocos ou
rococós, o resultado é ainda mais penoso do que quando as obras
são retiradas de seu contexto original e reunidas no muse1.1; a sofis-
ticação· provoca mais danos à arte que o colecionismo. Algo aná-
logo vale para a música. Os programas das grandes sociedades de
concerto, em sua maioria orientados para a música do passado, têm
cada vez mais aspectos em comum com os museus. Mas o Mozart
apresentado à luz de velas é rebaixado à peça de costume, e os
esforços para retirar a música da distância da encenação e recolocá-
la em contato com a vida imediata possuem não apenas um ar de

,,. Escrito em 1953, publicado em Die Neue Rundschau, 1953.

173
THEODOR W. ADORNO

desamparo como também um certo rancor diligentemente rea-


cionário. A um bem-intencionado que lhe recomendou escurecer o
salão durante o concerto, para que se obtivesse uma "atmosfera"
adequada, Mahler respondeu com razão que uma apresentação
diante da qual não se esquecesse o ambiente não teria nenhum valor.
Dificuldades desse tipo revelam algo da situação fatal daquilo que é
chamado de "tradição cultural". No momento em que esta não cor-
responde mais a nenhuma força abrangente e substancial, mas é ape-
nas citada, porque afinal sempre é bom ter tradição, o que ainda
restava dessa tradição dissolve-se em mero meio. O aparato técnico
industrial zomba daquilo que nele deveria ser conservado. Quem
acredita na possibilidade de o original ser restituído pela vontade
fica preso a um romantismo sem esperança; a modernização do pas-
sado violenta e danifica o passado. Mas renunciar radicalmente à
possibilidade de experimentar o tradicional significaria capitular à
barbárie por pura fidelidade à cultura. Que o mundo está fora dos
eixos revela-se por toda parte no fato de que, não importa qual seja
a solução, ela é sempre falsa.
Ninguém deveria, porém, se tranqüilizar com o reconhecimen-
to geral da situação negativa. Uma disputa intelectual, como a refe-
rente ao museu, deveria ser travada com argumentos específicos.
Sobre isso há dois documentos extraordinários. Na França, os dois
escritores autênticos da última geração, Paul Valéry e Marcel
Proust, pronunciaram-se sobre a questão dos museus assumindo
posições diametralmente opostas, sem que esses pronunciamentos
tenham sido, entretanto, dirigidos polemicamente um contra o
outro, ou mesmo que algum deles demonstrasse conhecimento da
posição contrária. Valéry, em sua contribuição a uma coletânea de
artigos dedicados a Proust, ressaltou que estava muito pouco fami-
liarizado com os romances do autor. O artigo de Valéry ao qual me
refiro intitula-se "Le probleme des musées", e se encontra no volu-
me de ensaios Pieces sur l'art. A passagem correspondente em
Proust encontra-se no terceiro volume de A l'ombre des jeunes
filies en fleurs.
O plaidoyer de Valéry refere-se evidentemente ao desconcertan-
te excesso de obras de arte no Louvre. Ele declara não gostar muito
de museus. Haveria muitas obras admiráveis, mas poucas delícias. A
palavra utilizada por Valéry, défices, pertence, diga-se de passagem,

174
PRISMAS

àquelas absolutamente intraduzíveis: Kostlichkeiten soaria como um


termo de Feuilleton; Wonne possui um ar pesadamente wagneriano;
Entzückungen seria talvez o termo mais próximo do que se quer
dizer, mas nenhuma dessas palavras é capaz de expressar a leve
memória do prazer feudal que acompanha a postura da l'art pour
l'art desde Villiers de l'Isle-Adam, e que em alemão ressoa somente
no delizios cômico do Rosenkavalier. O seigneuriale Valéry já se
sente incomodado pelo gesto autoritário que lhe toma a bengala e
pelo anúncio que proíbe fumar. Uma fria confusão reinaria entre as
esculturas, um tumulto de criaturas congeladas, onde cada uma exi-
giria a não-existência da outra, uma estranha desordem organizada.
Em meio às imagens expostas para contemplação, as pessoas seriam
tomadas, zomba Valéry, por um horror sagrado: fala-se um pouco
mais alto do que na igreja, mas mais baixo do que no cotidiano. Não
se sabe bem o que se veio fazer no museu: instruir-se, buscar encan-
tamentos, cumprir um dever ou satisfazer uma convenção? Fadiga
e barbárie se encontram. Nenhuma cultura do prazer e tampouco
da razão poderia ter edificado essa casa de incoerências. Uma casa
onde se sepultariam visões mortas.
O sentido da audição, opina Valéry - que não estava familia-
rizado com a música e podia por isso cultivar ilusões a respeito - ,
estaria em melhor situação: ninguém poderia sugerir-lhe ouvir dez
orquestras ao mesmo tempo. Ném o espírito conseguiria conduzir,
simultaneamente, diversas operações distintas. Apenas o olho em
movimento necessitaria apreender, no mesmo instante, um retrato e
uma marinha, uma cozinha e uma marcha triunfal; e o que é pior:
estilos de pintura inteiramente inconciliáveis entre si. Quanto mais
bonitas fossem as pinturas, tanto mais seriam elas distintas umas das
outras: objetos raros, exemplares únicos. Freqüentemente se co-
menta que um determinado quadro mata os outros que estão ao seu
redor. Se isso é esquecido, a herança morre. Assim como o homem
perde suas forças pelo excesso de meios técnicos, ele empobrece
pelo excesso de suas riquezas.
A argumentação de Valéry possui indiscutivelmente um tom
conservador no que diz respeito à cultura. Ele sem dúvida se preo-
cupava muito pouco com a crítica da economia política. Por isso é
ainda mais surpreendente que os nervos estéticos que registram a
falsa riqueza abordem tão precisamente o dado da superacumulação.

175
THEODOR W. ADORNO

Quando Valéry fala da acumulação de um capital excessivo, que por


isso mesmo é inutilizável, utiliza metaforicamente um termo que
vale literalmente para a economia. Aconteça o que acontecer - os
artistas produzem, gente rica morre - , sempre sobra algo para os
museus. Como um cassino, eles jamais poderiam perder, e justa-
mente isso seria sua maldição. Pois os homens sentem-se desconso-
ladamente perdidos nas galerias, sós em meio a tanta arte. Não
haveria outra reação possível senão aquela que Valéry considera em
geral como a sombra do progresso da dominação do material: uma
crescente superficialidade. A arte torna-se assunto de educação e
informação; Vénus se transforma em documento. E a erudição seria,
em matéria de arte, uma espécie de derrota. Nietzsche argumenta de
forma semelhante em sua Consideração extemporânea sobre a van-
tagem e ~ desvantagem da História. Valéry, na vertigem do museu,
chega a uma intuição de caráter histórico-filosófico sobre a agonia
das obras de arte: é lá que "infligimos o suplício à arte do passado".
Mesmo depois, na rua, Valéry não consegue libertar-se do magní-
fico caos do museu - uma parábola, poder-se-ia dizer, da anarquia
da produção de mercadorias na sociedade burguesa desenvolvida -
e procura a razão de seu mal-estar. Pintura e escultura, assim lhe diz
o demônio do conhecimento, seriam crianças abandonadas. "A sua
mãe está morta, sua mãe, a arquitetura. Enquanto ela vivia, dava-
lhes lugar e utilidade. A liberdade de errar lhes era negada. Elas ti-
nham o seu espaço, a sua luz bem definida, seus temas, suas alianças.
Enquanto ela vivia, elas sabiam o que queriam ... Adeus, diz-me o
pensamento, não ouso ir adiante." A reflexão de Valéry encerra-se
com um gesto romântico. Enquanto ele a deixa aberta, evita a então
inevitável conseqüência do conservadorismo cultural radical:
renunciar à cultura para permanecer fiel a ela.
A visão de Proust sobre o museu está engenhosamente inserida
no contexto da Recherche du temps perdu. Somente ali ela revela
inteiramente o seu valor. Na obra de Proust, as reflexões - e ao uti-
lizá-las ele retoma as antigas técnicas do romance pré-flaubertiano
- não constituem em geral apenas observações sobre o que está
sendo narrado, mas se ligam por associações subterrâneas, mergu-
lhando, como a própria narrativa, em um grande continuum esté-
tico, o do monólogo interior. Ele relata sua viagem ao balneário de
Balbec, e com isso ressalta a cesura que as viagens colocam no

176
PRISMAS

decurso da vida, ao nos conduzirem "de um nome para outro


nome". Palcos desta cesura são antes de tudo as estações de trem,
"esses lugares especiais ... que quase não fazem parte da cidade, mas
contêm a essência de sua personalidade de maneira tão marcante
quanto o seu nome escrito na placa". Como tudo que cai sob o
olhar rememorativo de Proust, que suga, por assim dizer, a intenção
de seus objetos, as estações transformam-se em arquétipos históri-
cos e trágicos, porque associadas à despedida. A propósito do salão
de vidro da Gare Saint-Lazare, diz que ele "estendeu sobre a cidade
dividida um desses imensos céus repletos de dramas ameaçadores,
parecido com certos céus de Mantegna ou Veronese, de uma moder-
nidade quase parisiense, sob o qual podem ocorrer somente atos
terríveis e solenes, como a partida de um trem ou a colocação de
uma cruz " .
A transição associativa em direção ao museu é deixada implícita
no romance: o quadro daquela estação de trem pintada por Claude
Monet, pintor que Proust admirou apaixonadamente, encontra-se
agora na coleção do Jeu de Paume. Proust compara, sem muitas
palavras, a estação ao museu. Ambos estão afastados do contexto
superficial dos objetos da atividade prática, e a isso poderíamos
acrescentar que ambos são portadores de um simbolismo de morte:
a estação, do antigo simbolismo da viagem; o museu, daquele que
se refere à obra, "l'univers nouvéau et périssable", o universo novo
e perecível criado pelo artista. Assim como as reflexões de Valéry,
também as de Proust se referem à mortalidade dos artefatos. O que
aparenta ser eterno, diz ele numa passagem, contém em si os
motivos de sua destruição. As frases decisivas sobre o museu estão
inseridas na fisiognomonia da estação de trem. "Mas em todos os
setores nosso tempo tem a mania de querer nos apresentar·as coisas
em seu ambiente natural, e com isso suprimir o essencial, o ato do
espírito que as isolou desse ambiente. 'Apresenta-se' um quadro
em meio a móveis, bibelôs e cortinas da mesma época, em uma
decoração sem graça que, nas novis hospedagens, senhoras ainda
ontem completamente ignorantes sobre o assunto se esforçaram
em compor, passando seus dias em arquivos e bibliotecas; mas a
obra de arte que é vista durante o jantar não nos presenteia com a
mesma alegria inebriante que somente se pode esperar no salão do
museu, que simboliza muito melhor, em sua nudez e abstinência

177
THEODOR W. ADORNO

sóbria de todos os detalhes, os espaços interiores onde o artista se


recolhe para criar."
A tese de Proust é comparável à de Valéry, porque ambas com-
partilham o pressuposto da felicidade nas obras de arte. Assim
como Valéry fala das défices, Proust fala da alegria inebriante, a joie
enivrante. Nada poderia caracterizar mais precisamente do que este
pressuposto a distância não apenas entre a geração atual e a anterior,
mas também entre a relação alemã e a relação francesa com a arte. Já
na época em que A l'ombre des jeunes filles en fleurs foi escrita, a
expressão Kunstgenuss [prazer artístico] deveria soar em alemão tão
sentimental e filistina quanto uma rima de Wilhelm Busch. Além
disso, esse prazer, no qual Valéry e Proust crêem como se fosse a
promessa de uma mãe adorada, sempre foi algo questionável. Para
quem está próximo às obras de arte, estas representam objetos de
encanto tanto quanto a própria respiração. Ele convive com elas
como o habitante de uma cidade medieval que responde ao comen-
tário de um visitante sobre a beleza de certos edifícios com o "sim,
é bonito" meià aborrecido de quem conhece cada recanto e cada
arco. Mas somente onde reina aquela distância sólida entre as obras
de arte e o ooservador, distância que permite o prazer, pode surgir a
pergunta sobre o que está vivo e morto nas obras de arte. Quem se
sente em casa na obra de arte, em vez de visitá-la, dificilmente faria
essa pergunta. Os dois franceses, que não apenas produzem, mas
ainda refletem incessantemente sobre a própria produção, estão
porém completamente certos do prazer que as obras de arte pro-
porcionam aos que a vêem de fora. Eles concordam de tal maneira,
que ambos percebem que uma inimizade mortal entre as obras de
arte acompanha aquela felicidade originada na competição. Mas
Proust, em vez de ter horror a tal inimizade, aprova-a, como se fos-
se tão alemão como Charlus afeta ser. O processo de competição
entre as obras é para ele um processo de verdade; as escolas artís-
ticas, lemos num trecho de Sodome et Gomorrhe, devoram-se
mutuamente como microorganismos, assegurando com sua luta a
manutenção da vida. Essa concepção dialética acerca da supremacia
do ser sobre cada ente particular faz com que Proust se oponha ao
artiste Valéry, e permite sua indulgência perversa para com os
museus, enquanto para o outro interessa sobretudo a preocupação
com a permanência das obras.

178
PRISMAS

A medida dessa permanência é o aqui-e-agora. Para Valéry, a


arte está perdida quando se destrói o seu lugar na vida imediata, sua
ligação com o contexto, ou seja, quando ela perde sua relação com
um uso possível. O artesão dentro de Valéry, que produz coisas e
poemas com aquela precisão de contornos que sempre inclui o
olhar sobre seu entorno, tornou-se infinitamente clarividente quan-
to ao lugar da obra de arte - tanto o espiritual quanto o literal-,
como se nele o sentimento perspectivista do pintor tivesse ascendi-
do a uma perspectiva da realidade na qual a própria obra recebe a
sua profundidade. O seu ponto de vista artístico é o da imediati-
dade, mas uma imediatidade levada às últimas conseqüências. Ele
obedece ao princípio da l'art pour l'art até o limiar de sua negação.
Interessa-se pela obra de arte pura como objeto de uma contempla-
ção que nada pode perturbar, mas a observa por tanto tempo e tão
firmemente que acaba percebendo que a obra de arte, justamente
como objeto da contemplação pura, está prestes a morrer, degene-
rada em produto decorativo e privada daquela dignidade que cons-
titui para a obra e para o próprio Valéry a raison d'être. A obra pura
é ameaçada pela reificação e pela indiferença. O museu se impõe
através dessa experiência. Ele descobre que as obras puras que resis-
tem seriamente à observação são apenas as obras não-puras, que não
se esgotam naquela observação, mas apontam para um contexto
social. E já que Valéry, com sua ~ntegridade de grande racionalista,
sabe que essa situação da arte está irremediavelmente perdida, não
resta outra saída para o anti-racionalista e bergsoniano nele presente
senão o luto pelas obras petrificadas.
O romancista Proust começa quase no ponto onde o lírico
Valéry silencia: na vida póstuma das obras. Pois a relação primária
de Proust com a arte é o oposto da atitude do expert e do produtor.
Ele é aótes de tudo o consumidor deslumbrado, o amateur que
tende àquele respeito exagerado visto com suspeição pelos artistas,
um respeito que é próprio daqueles que estão separados das obras
de arte por um abismo. Poder-se-i~ quase dizer que a sua genia-
lidade consiste justamente em ter assumido com tanta tranqüili-
dade esta atitude do consumidor - e também daquele que se coloca
diante da vida como espectador - , que lhe foi possível revertê-la
em um novo tipo de produtividade, elevando a força da contempla-
ção do interno e do externo à rememoração, à memória involuntária.

179
THEODOR W. ADORNO

De antemão, o amador combina incomparavelmente melhor com o


museu do que o especialista. Este, Valéry, sente-se participante do
atelier, aquele, Proust, flana pela exposição. A sua relação com a
arte possui algo de extraterritorialidade, e muitos de seus juízos
equivocados, por exemplo em questões musicais, mostram do iní-
cio ao fim os traços de diletantismo - o que tem a ver o Kitsch
conciliador de seu amigo Reynaldo Hahn com o romance de
Proust, que em cada uma de suas frases descarta, com enorme deli-
cadeza, uma opinião estabelecida? Mas ele transformou magnifica-
mente essa fraqueza em um instrumento de força, como somente
Kafka havia feito até então. Se o seu juízo entusiástico sobre deter-
minadas obras de arte, principalmente as do Renascimento italiano,
soa muito mais ingénuo que os de Valéry, sua atitude para com a
arte com.o um todo era menos ingénua. Parece uma provocação
falar de ingenuidade justamente em relação a Valéry, no qual o pro-
cesso artístico de produção e a reflexão sobre este processo esta-
vam indissolu.velmente entrelaçados. Mas ele era de fato ingénuo,
na medida em que não levantava nenhuma dúvida sobre a categoria
da obra de arte enquanto tal. Ele a tomou, para usar uma expressão
inglesa, for granted, e a dinâmica de seu pensamento e sua energia
histórico-filosófica cresceram exatamente em razão do apego àquela
categoria. Ela se torna critério para o modo como se modificam a
composição interna e a experiência das obras de arte. Proust, entre-
tanto, está inteiramente livre do fetichismo inevitável do artista que
produz, ele próprio, as coisas. Para ele as obras de arte são, desde
o início, além de algo especificamente estético, algo de diferente,
um pedaço da vida daquele que as observa e um elemento de sua ·
própria consciência. Com isso ele conserva nelas uma camada bem
diferente daquela regida pela lei formal das obras. Mas essa camada,
entretanto, não é outra senão a que nas obras de arte apenas é libe-
rada com o seu desdobramento histórico, ou seja, aquela que já
pressupõe a morte da intenção viva da obra de arte. A ingenuidade
de Proust é uma ingenuidade à segunda potência; a cada grau de
consciência se reproduz ampliadamente uma nova imediatidade. Se
a fé conservadora de Valéry em uma cultura pensada enquanto puro
"ser em si" faz uma crítica cortante à cultura, uma cultura que
destrói este "ser em si" em razão de sua própria tendência histórica,
a sensibilidade extraordinária de Proust para as modificações dos

180
PRISMAS

modos de experiência, sua forma particular de reação, percebe, com


sua capacidade paradoxal, o histórico como paisagem. Ele adora os
museus como uma verdadeira criação divina, que no entanto,
segundo a metafísica de Proust, não está pronta, mas que sempre se
realiza novamente graças a cada momento concreto de experiência e
a cada intuição artística original. Em seu olhar maravilhado, Proust
salvou para si um pedaço de infância; Valéry, ao contrário, fala da
arte como um adulto. Se este sabe algo acerca do poder que a his-
tória tem sobre a produção e a percepção das obras, Proust sabe que
a história, no interior das obras de arte, ocorre quase sempre como
um processo de decomposição. "Ce qu'on appelle la posterité, c'est
la postérité de l'oeuvre", frase que poderíamos traduzir assim: o que
se chama posteridade [Nachwelt], é a vida póstuma [Nachleben] das
obras. Proust descobre na capacidade de decomposição dos arte-
fatos sua semelhança com a beleza natural, e entende a fisiogno-
monia do declínio como a descrição da segunda vida dessas coisas.
Já que para ele nada tem consistência a não ser o que foi transmitido
pela memória, o amor de Proust se apega mais a esta segunda vida,
que já passou, do que à primeira. Para o esteticismo proustiano a
pergunta pela qualidade estética é secundária. Em uma passagem
famosa, ele exaltou a música menor em função da memória de
vida do ouvinte, que retém antigas canções populares de modo
muito mais fiel e intenso do que um movimento de uma obra de
Beethoven, uma música que, por assim dizer, existe por si mesma.
O olhar saturnino da memória trespassa o véu da cultura: os níveis
culturais e as distinções, não mais isolados como domínios do
espírito objetivo, mas incluídos no fluir da subjetividade, perdem
aquela pretensão patética que as heresias de Valéry ainda lhes con-
cedia. O aspecto caótico do museu, que escandaliza Valéry porque
perturb-a a expressão das obras, ganha em Proust a sua expressão
própria: a expressão trágica. A morte das obras no museu, segundo
Proust, desperta-as para a vida. Somente através da perda da ordem
do vivente, na qual estavam inseridas, pode-se libertar a sua ver-
dadeira espontaneidade: o que a cada momento é único, o seu nome,
aquilo que nas grandes obras da cultura é mais do que mera cultura.
A forma da reação de Proust conserva em raffinement extravagante
a máxima de Goethe no diário de Otília, segundo a qual tudo o
que é perfeito em seu gênero remeteria para além desse gênero -

181
THEODOR W. ADORNO

uma afirmação pouco clássica que, entretanto, rende homenagens à


arte, ao relativizá-la.
Quem não quer contentar-se com uma abordagem de história
intelectual não pode deixar de fazer a pergunta: quem está com a
razão, o crítico ou o defensor dos museus? Para Valéry o museu é
um lugar de barbárie. Essa atitude tem como fundamento a con-
vicção do caráter sagrado da cultura, que ele compartilha com
Mallarmé. Diante de todas as objeções provocadas por essa
religião do spleen, sobretudo a da precipitada objeção social, deve-
se insistir no momento de sua verdade. Somente o que existe por si
mesmo, sem dar atenção aos homens aos quais deveria agradar,
cumpre a sua vocação humana. Pouca coisa tem contribuído tanto
para a desumanização quanto a crença geral, formada no pre-
domínio da razão manipuladora, de que formações espirituais só
se justificam na medida em que existem para servir a outras coisas.
Valéry expôs com autoridade incomparável o caráter objetivo
dessas formações, a consistência imanente da obra de arte e a con-
tingência do sujeito diante dela, pois ele mesmo chegou a compre-
ender isso através de uma experiência subjetiva, a coação presente
no trabalh~ do artista. Nisso ele era sem dúvida superior a Proust:
incorruptível, Valéry possuía uma maior resistência, enquanto o
primado proustiano da experiência, que não tolera nada rígido,
tem em comum com Bergson um aspecto sombrio, o do confor-
mismo e da fácil adaptação à situação em constante mudança. Em
Proust há passagens sobre arte que se assemelham ao desenfreado
subjetivismo daquela visão vulgar que faz das obras de arte uma
bateria de testes projetivos, enquanto Valéry, oportunamente e qua-·
se sempre com certa ironia, lamenta que a qualidade dos poemas
não possa ser testada. Conforme uma afirmação do segundo volu-
me do Temps retrouvé, a obra do escritor nada mais é do que uma
espécie de instrumento ótico que ele oferece ao leitor para que este
descubra, em si, algo que sem o livro talvez não pudesse descobrir.
Mesmo o que Proust apresenta a favor dos museus é pensado a
partir do homem, e não a partir da coisa. Não é por acaso que ele
identifica aquilo que deveria diluir-se na posteridade museológica
das obras com algo subjetivo, com o ato repentino da produção,
através do qual a obra de arte se afasta da realidade. Proust encon-
tra esse ato espelhado nas formas que Valéry considera estigmas.

182
PRISMAS

Apenas a deslealdade da subjetividade livre em relação ao espírito


objetivo habilita Proust a romper a imanência da cultura.
Nem Valéry nem Proust têm razão nesse processo de certo
modo latente entre os dois, e tampouco seria possível indicar uma
postura intermediária conciliadora. Mas esse conflito revela de
maneira mais penetrante um conflito inerente à própria coisa, e
ambos tomam o lugar de momentos dessa verdade, que reside no
desdobramento da contradição. A fetichização do objeto e a pre-
sunção do sujeito corrigem-se mutuamente. As posições se inter-
penetram uma na outra. Valéry, em uma incessante auto-reflexão,
torna-se consciente do ser em si das obras, enquanto, por outro
lado, o subjetivismo de Proust espera o ideal, a salvação do vivo
pela arte. Ele defende, contra a cultura e através dela, o ponto de
vista da negatividade, da crítica, do ato espontâneo que não se con-
tenta com o existente. Com isso faz justiça às obras de arte, que
somente o são na medida em que incorporam tal espontaneidade.
Proust conserva, em razão da felicidade objetiva, a cultura; enquan-
to a lealdade de Valéry para com a pretensão objetiva das obras
precisa dar a cultura por perdida. E como os dois representam
momentos contraditórios da verdade, ambos, os mais sábios a
escrever algo sobre arte nos últimos tempos, possuem também os
seus limites, sem os quais nã~ teria sido possível sua própria
sabedoria. Valéry não deixa dúvida de que concorda com seu mestre
Mallarmé a respeito do fato de que - como foi formulado no
ensaio "Triomphe de Manet'' - a existência e as coisas estão aí uni-
camente para serem consumidas pela arte, o mundo existe só para
produzir um belo livro, um poema absoluto seria seu coroamento.
Ele também notava claramente o ponto de fuga aspirado pela poésie
pure. "Nada leva com tanta certeza à completa barbárie quanto a
ligação exclusiva com o espírito puro", assim se inicia um de seus
ensaios. E a sua própria idéia de elevar a arte à idolatria acabou de
fato contribuindo para o processo pe reificação e desgaste da arte,
pelo qual Valéry culpa o museu: somente aí, onde as imagens estão
oferecidas à contemplação como fins em si mesmos, estas se tornam
tão absolutas quanto Valéry sonhava, e ele se espanta mortalmente
diante da efetivação de seu próprio sonho. Proust, ao contrário, sabe
qual é o remédio para esta situação. Na medida em que as obras de
arte, enquanto elementos do fluxo subjetivo de consciência do seu

183
THEODOR W. ADORNO

observador, estão de certo modo sendo levadas para casa, renunciam


à prerrogativa do culto, e desta forma liberam-se do traço usur-
patório que lhes é atribuido na estética heróica do impressionismo.
Em compensação, Proust superestima, como só os amadores sabem
fazer, o ato da liberdade na arte. Freqüentemente entende as obras
de arte quase à maneira de um psiquiatra, pensando-as como reflexo
da vida espiritual daquele que teve a sorte ou a infelicidade de pro-
duzi-las ou de fruí-las, e isso o impede de perceber que a obra de
arte, seja para o seu autor, seja para o público, já no instante de sua
concepção se impõe como algo objetivo, algo de exigente, com lóg-
ica e coerência próprias. Assim como as vidas dos artistas, também
as suas obras somente parecem "livres" se consideradas a partir de
um ponto de vista externo. Elas não são nem reflexos da alma nem
incorporações de idéias platônicas ou do puro ser, mas "campos de
força" entre sujeito e objeto. O "objetivamente necessário", a favor
do qual Valéry se manifesta, efetiva-se apenas pelo ato da espon-
taneidade subjetiva, na qual Proust coloca todo sentido e felicidade.
O combate aos museus possui algo de quixotesco, e não apenas
porque o protesto da cultura contra a barbárie passa sem ser ouvi-
do: os protestos sem esperança são necessários. Mas Valéry é ainda
um pouco inocente ao suspeitar que apenas os museus são respon-
sáveis pelo que ocorre com os quadros. Mesmo se estivessem pen-
durados em seus antigos lugares, nos castelos da nobreza, sobre os
quais encontramos mais preocupação em Proust do que em Valéry,
ainda assim seriam peças de museu fora dos museus. O que con-
some a vida da obra de arte é, ao mesmo tempo, a sua própria vida.
Se a alegoria coquete de Valéry compara a pintura e a escultura a,
crianças que perderam a sua mãe, então caberia lembrar que nos
mitos os heróis, nos quais o humano se libera do destino, são todos
homens que perderam a mãe. Somente a caminho da própria morte,
e separadas do solo provedor, as obras se tornam plena promesse du
bonheur. Proust percebeu isso claramente. O processo que hoje
delega ao museu a responsabilidade sobre toda e qualquer obra de
arte, mesmo a mais recente escultura de Picasso, é irreversível. Esse
processo não apenas é reprovável, como deixa prever um estado no
qual a arte, ao consumar a sua própria alienação em relação aos
objetivos humanos, "retorna de novo à vida", conforme um verso
de Novalis. Percebe-se algo deste fenômeno no romance de Proust,

184
PRISMAS

onde fisionomias de quadros e de pessoas se juntam quase sem


limites, em meio a recordações de vivências e passagens musicais.
Numa das partes mais explícitas do todo, na primeira página de
Du côté de chez Swann, o narrador, na descrição do adormecer,
diz: "Pareceu-me que era de mim que a obra falava: uma igreja, um
quarteto, a rivalidade entre Francisco I e Carlos V". É isto a recon-
ciliação do que foi separado, à qual se dirige o lamento irreconci-
liável de Valéry. O caos dos bens culturais se dilui na felicidade da
criança, cujo corpo se sente unido com o nimbo da distância.
Não é possível fechar os museus, e isso nem seria desejável. Os
gabinetes naturais do espírito transformaram as obras de arte em
hieroglifos da história, dando-lhes um novo conteúdo [Gehalt] à
medida que o sentido antigo se encolhia. Contra isso não é possível
oferecer um conceito de arte pura emprestado do passado, que seria
até mesmo pouco apropriado para esta época. Ninguém soube disso
melhor que Valéry, que exatamente por este motivo interrompeu
sua reflexão. É verdade, porém, que os museus exigem expressa-
mente algo que já é propriamente exigido por cada obra de arte:
algum esforço por parte do observador. Pois também o flâneur, em
cuja sombra Proust se movia, desapareceu há muito tempo, e nin-
guém mais pode vagar pelos museus para encontrar aqui e ali algum
encanto. A única relação conceb_ível com a arte, em nossa realidade
catastrófica, seria a que considerasse as obras de arte com a mesma
seriedade mortal que tem caracterizado o mundo de hoje. Só está
livre do mal tão bem diagnosticado por Valéry aquele que junto
com a bengala e o guarda-chuva também entregou, na entrada, a sua
ingenuidade; aquele que sabe exatamente o que quer, escolhe dois
ou três quadros e se detém diante deles com enorme concentração,
como se fossem realmente ídolos. Alguns museus facilitam ·este pro-
cedimento. Juntamente com o ar e a luz, também adquiriram aquele
princípio de seleção que Valéry declarou ser o de sua escola, e que
ele não encontrava nos museus. No Jeu de Paume, onde agora está
exposto o quadro Gare St.-Lazar;, convivem em paz o Elstir de
Proust e o Degas de Valéry, ainda que discretamente separados.

185
George e Hofmannsthal -
correspondência: 1891-1906::-
Em memória de Walter Benjamin

Quem lê a correspondência entre George e Hofmannsthal buscan-


do informações sobre o que se passou com a lírica alemã durante os
quinze anos cobertos pelo volume se decepcionará de antemão.
Enquanto os dois escritores, com rigor e cautela, se resguardam
mutuamente até o silêncio, a disciplina pessoal tampouco ajuda a
discussão objetiva. Predomina antes a teimosia que o pensamento.
As páginas estão repletas de detalhes de técnicas de publicação e de
política editorial, entrecortados por ataques mútuos de irritação e
de discrição e defesas estereotipadas. Passagens como a crítica de
George a uma palavra supérflua em um verso de Hofmannsthal, sua
polêmica com Dehmel e seu veredito incondicional sobre o drama
Das gerettete Venedig talvez sejam exceções. O gesto das cartas
gostaria de fazer crer que a intimidade dos artistas com o material
dispensa reflexões mais amplas, ou ainda que se estaria demasiado
seguro das experiências e observações comuns para que estas fos-
sem profanadas por uma discussão inútil.
Mas essa pretensão baseia-se mais em um acordo tácito que em
uma cohfirmação pelas próprias cartas. É desmentida também pela
maneira formal com que os poemas de Hofmannsthal são recebidos
por George, que se encontra na posição de editor do mais jovem.
Não é de George, mas sim de um ~ditor benevolente, que se espe-
ram as seguintes frases: "Recebi e li os seus poemas, que agradeço.

,:- Escrito entre 1939 e 1940, publicado no volume mimeografado Walter Benjamin zum
Gedi:ichtnis, organizado por Max Horkheimer e pelo autor, e republicado em pequena
tiragem pelo Instituto de Pesquisa Social em 1942.

187
THEODOR W. ADORNO

O senhor quase não consegue escrever uma estrofe que não nos
enriqueça com uma nova sensação e uma nova sensibilidade".
George se refere aqui a dois dos mais memoráveis poemas líricos
de Hofmannsthal: "Manche freilich müssen drunten sterben"
[Alguns obviamente devem morrer] e "Weltgeheimnis" [Mistério
do mundo], que também é lembrado no "Lied" do último volume
de George. O elogio despachado é seguido pela questão incom-
preensível: "O senhor tem a intenção de publicar o primeiro poema
em seguida ao 'Mistério do mundo', ou este faz parte daquele? Não
há nenhuma menção quanto a isso". A suposição da simples possi-
bilidade de que os dois poemas, um estruturado trocaicamente em
quatro e seis linhas, o outro em jâmbicos dáctilos de três e quatro
linhas, pudessem ser juntados em um único revela a mentira da
pressupdsta cumplicidade de especialistas. A pobreza em conteúdo
teórico deve, portanto, ser explicada a partir da posição dos dois
autores, que certamente não são ingênuos.
Entre os planos para a colaboração nas Bldtter für die Kunst -
expostos numa carta escrita por Hofmannsthal, em 1892, para Karl
August Kle~n, com o consentimento de George - não faltam pro-
jetos de publicações teóricas. No dia 26 de junho, por exemplo,
Hofmannsthal pergunta: "Como preencheremos os cadernos, já
que o número de colaboradores é restrito e também a produção de
verdadeiras obras de arte é quantitativamente reduzida? Ou deve-
mos dar espaço à crítica e à teoria da técnica? Se sim, quanto
espaço?". E recebe a seguinte resposta: "Ensaios críticos tradicio-
nais estão fora de questão", colocação atenuada por Klein, numa
versão de certo modo ambígua, da seguinte maneira: "Não se·
exclui, entretanto, que cada um de nós dê a sua opinião sobre uma
obra de arte qualquer". Pois, segundo o antigo linguajar franco-
saxão da décadence alemã, "seria muito interessante ouvir opiniões
novas e picantes sobre alguns quadros, uma peça de teatro ou de
música". Hofmannsthal, que àquela altura já colaborava havia muito
tempo em revistas como Die M oderne e Die M oderne Rundschau,
não fica satisfeito: "Quando me referi a artigos em prosa, pensava
menos em ensaios críticos tradicionais do que em reflexões sobre
questões técnicas, contribuições para a teoria das cores das palavras
e semelhantes produtos laterais do processo de trabalho artístico,
cuja comunicação, me parece, poderia ser útil a outros artistas". A

188
PRISMAS

"teoria das cores das palavras" remete provavelmente a "Voyelles",


um dos três poemas de Rimbaud que George mais tarde incluiu em
suas traduções de poetas contemporâneos. "Voyelles" é uma litania
à modernidade que influenciou até o surrealismo. O poema, no qual
Rimbaud prometia que as naissances latentes das vogais seriam
reveladas no futuro, revelou nesse meio tempo seu mistério. É a
exatidão do inexato, postulada pela primeira vez na "Art poétique"
de Verlaine como união do indécis e do précis. A poesia transforma-
se em domínio técnico daquilo que a consciência não pode dominar.
A correlação entre sons e cores, que não têm entre si nenhuma
conexão além da pouco significativa gravitação da língua, faz com
que o poema se emancipe do conceito. Ao mesmo tempo, contudo,
a instância da linguagem entrega o poema à técnica: a caracterização
das vogais não se deve tanto a sua função associativa, mas muito
mais a uma instrução sobre o seu uso adequado no poema. Também
o "Voyelles" é um poema didático. O poema de Verlaine tem o
mesmo caráter. A nuance que ele proclama como regra tem as mes-
mas características daquela correspondência entre som e cor: o fato
de ela ser subordinada ao primado da música estabelece ao mesmo
tempo uma certa distância de significado, e a coerência técnica tor-
na-se o critério das próprias nuances, como os sons afinados e desa-
finados 1• O procedimento tácito de George e Hofmannsthal apela à
mesma coisa que os manifestos· de Rimbaud e Verlaine: ao inco-
mensurável. Não se trata do absoluto metafísico que fundamen-
tava o romantismo alemão inicial, e também sua filosofia. Não é por
acaso que o suporte do incomensurável é o som: ele não é inteligí-
vel, mas sensível. Cabe à poesia registrar os momentos sensuais do
objeto - poder-se-ia quase dizer: do objeto das ciências naturais -
que não se enquadram nos métodos exatos de medição. O contraste
poético·entre a vida e sua deformação técnica também é de natureza
técnica. A tão elogiada sensibilidade do artista faz com que ele seja,
de certo modo, o complemento do cientista que estuda a natureza:
como se a sua sensibilidade lhe cápacitasse a registrar diferenças
menores dos que as que podem ser registradas pelos aparelhos 2 • A
sensibilidade é entendida como instrumento de precisão, trans-
forma-se em campo de experimentação para poder registrar e ler
numa escala das sensações aqueles estímulos básicos que, de outra
maneira, escapariam à dominação subjetiva. Enquanto técnico, o

189
THEODOR W. ADORNO

artista torna-se a instância de controle de sua sensibilidade, que


pode ligar ou desligar, como, por exemplo, Niels Lyhne comanda o
seu talento. Ele se apodera do inesperado; ou seja, de tudo aquilo
que ainda não foi incluído nos materiais de expressão correntes: da
neve recém-caída na qual nenhuma intenção deixou ainda seus
vestígios 3 • Mas se a sensação como tal se recusa a ser interpretada
pelo poeta, este a subjuga ao enquadrar sua incalculabilidade no
interior de um efeito calculado.
O mistério do dado sensorial não é nenhum mistério, e sim a
intuição cega sem conceitos. É da mesma espécie que o empirocriti-
cismo formulado na mesma época por Ernst Mach, no qual o ideal
da precisão científica é combinado com o sacrifício de toda e qual-
quer autonomia da forma categorial. O "dado puro" que esta filo-
sofia prernniza é tão intransparente como a "coisa em si" que ela
rejeita. O dado pode apenas ser obtido, não preservado. Como
memória ele não é mais ele mesmo, como palavra é ainda menos;
torna-se uma abstração, em cujo âmbito a vida imediata é subsumi-
da, para que possa ser melhor manipulada pela técnica. As formas
categoriais não são mais capazes de fixar o sujeito e o objeto: ambos
desaparecem· no "fluxo de consciência" como na verdadeira Lethe
da modernidade. O poema dedicado a George que abre a corres-
pondência traz o seguinte título: "Einem, der vorübergeht" [Àquele
que passa]. George logo percebe a inconveniência, escrevendo:
"mas para você eu sou apenas 'alguém que passa'?" 4 • Desde o início
ele está interessado em proteger o Ser da correnteza do esqueci-
mento, em cuja margem, de certo modo, ele erige suas composições.
O esoterismo lhe serve de proteção: capta-se como mistério aquilo
que de outra maneira escaparia 5. Por isso o silêncio da cumplicidade
inexistente. Este mistério preestabelecido não mais existe. A metá-
fora grandiloqüente utilizada na correspondência para designá-lo
permanece inteiramente vazia: "Mais tarde certamente teria fra-
cassado se não tivesse me sentido ligado ao 'Anel'; isto é uma das
minhas últimas sabedorias, um de meus segredos". Ele precisa ser
guardado, não tanto para impedir sua profanação, mas para evitar
ser desmascarado. As matérias em estado bruto são misturadas na
célula mística. Mas se a técnica que dispõe sobre estas matérias se tor-
nasse pública o poeta perderia com ela também sua pretensa autori-
dade, há muito tempo cedida à organização. Guarda-se segredo

190
PRISMAS

sobre o que não é secreto; a própria técnica é iniciada no racional.


Quanto mais as questões da poesia são traduzidas em questões da
técnica, mais se formam círculos exclusivos. O tapete, tecido des-
provido de intenção, coloca um enigma técnico; sua "solução",
entretanto, "não será jamais oferecida a muitos pela palavra". Mas a
justificação do Círculo, estabelecida aos olhos de George pela
colaboração nas Bléitter für die Kunst, não consiste de modo algum
na participação em algo que é secreto, e tampouco na substancia-
lidade da individualidade, refere-se antes à competência técnica:
"Não quero silenciar-me sobre o mínimo, os floreias e ornamentos
ocasionais que, considerados em si, seriam inteiramente deixados de
lado. O fato, porém, de que este mínimo possa dar tanto trabalho; o
fato de, apesar de sua irrelevância, não poder ser acusado da falta de
habilidade presente em tantos autores célebres, faz com que seja, do
ponto de vista de nosso tempo e espaço, de maior importância para
nossa arte e nossa cultura do que todas as associações e peças
teatrais das quais o senhor esperava tanto". Resta saber se a técnica
enquanto arcano, trasmitida como um sacramento, não se transfor-
ma necessariamente em insuficiência técnica: aquela rotina à qual se
refere a crítica vulgar quando se exaspera contra o formalismo.
Quanto mais vazio o segredo, mais se exige a discrição de quem
o guarda. É esta postura que George sabe elogiar, ao lado da técnica,
nos seus discípulos: "Mas você, com o seu grande sentimento para o
estilo, deve pelo menos ter sido possuído por um sentimento de inte-
resse e encanto, ao ver aqueles homens que nunca 'tomaram parte' e
nunca 'apareceram em público' manterem em seu círculo uma pos-
tura tão nobre quanto, por exemplo, a de nosso amigo comum,
Andrian". Mesmo que a não-participação e o distanciamento falem a
favor desta postura, ela é ao mesmo tempo comprometida pela uti-
lização do adjetivo "nobre", que deve determinar positivamente essa
distância. Até mesmo o termo "postura" não é muito confiável. No
mundo inteligível, ele desempenha uma função semelhante ao fumo
no mundo profano. Quem possui u~a "postura" tende a fechar-se
em sua própria personalidade: a frieza de sua expressão proporciona
uma boa impressão. Mônadas separadas por interesses divergentes se
atraem ainda mais facilmente pelo gesto de desinteresse. A miséria da
alienação é convertida em virtude da auto-afirmação. É por isso que
todos concordam no elogio da postura. Ela é elogiada tanto em um

191
THEODOR W. ADORNO

revolucionário quanto em Max Weber, e nos Nationalsozialistische


M onatshefte até cães de caça são apresentados como contidos,
impassíveis e decididos. Em uma sociedade concorrencial, o indiví-
duo vitorioso, graças a sua postura, justifica como superioridade
moral a injustiça que comete a todos os seus semelhantes. Não ape-
nas a postura severa, mas também a nobre é estigmatizada, e até mes-
mo aquela graça que ocupa, enquanto beleza do ser captado em sua
simplicidade, o posto supremo na hierarquia das idéias de George.
Se a graça foi outrora a expressão da gratidão humana - concedida
pelos deuses aos homens que souberam mover-se sem medo nem
orgulho na criação, como se ela ainda fosse uma criação divina - ,
hoje em dia ela é deformada em expressão da gratidão que a
sociedade deve aos homens, porque eles concordam com ela ime-
diataménte e sem nenhuma oposição. O charme e a graça, assim
como sua herança, a "boa aparência", servem ainda para fazer esque-
cer o privilégio. O nobre é nobre graças ao plebeu. Isso aparece clara-
mente em George, e não apenas em formulações sinistras como esta:
"Nunca quis outra coisa senão o seu bem. Espero que o senhor não
perceba issp tarde demais". Quem permanece sóbrio diante dos poe-
mas de George, sem esquecer o conteúdo pragmático destes poemas
em favor de sua pretensa identidade com o conteúdo lírico, não pode
deixar de notar o aspecto vulgar de várias passagens. Desde o célebre
ciclo "Nach der Lese" [Após a colheita], que serve como introdução
ao Das jahr der Seele [Ano da alma], é apresentado um humilhante
amor substituto, cujas restrições não se detêm nem mesmo diante da
ofensa da amada. Em meio aos mais ternos versos encontram-se, ao
mesmo tempo, versos de impensada rudez. Nenhum comerciante
teria tanta facilidade em dizer à sua amada que ela "assim se asseme-
lha àquela que está distante" e outras amabilidades tão mesquinhas
quanto esta. A referência ao "comerciante" não ocorre por acaso: o
ideal que não se pode admitir para si mesmo e que é suficientemente
bom para depreciar o que se possui constitui a razão férrea do bur-
guês. Uma tal idealidade é o avesso do Ser, do conteúdo e do kairós.
"Quem não veio hoje, que fique sempre longe!" Ele deve achatar o
nariz na grade e, ainda por cima, ser humilhado por ter um nariz
chato. O preço da cultura de George é sempre a barbárie.
A oposição entre George e Hofmannsthal se move em torno do
postulado da "postura", que George continuamente enfatiza, tanto

192
PRISMAS

pelo discurso quanto pelo modelo, e do qual Hofmannsthal se res-


guarda das mais diversas maneiras, como, por exemplo, através do
seguinte comentário: "Acho extremamente repugnante escutar
expressões como 'domínio da vida' e 'realeza da alma' da boca de
uma pessoa cujo tom não me preenche, ao mesmo tempo, de ver-
dadeira veneração"; ou na seguinte evasiva: "Em mim, a força poé-
tica talvez esteja mais profundamente mesclada a outros impulsos
do espírito que no senhor". Mas ele contrapõe à postura uma
indiferença que dificilmente se revela mais humana que a atitude
inflexível. Esta indiferença é a mundanidade do jovem senhor de
casa aristocrática, cujo passado desde sempre legendário o próprio
Hofmannsthal mais tarde estilizou: ele não precisava adotar uma
"postura", pois já a possuía de antemão. Ele se identifica desespe-
radamente com a aristocracia, ou pelo menos com aquele tipo de
society da alta burguesia, que compartilha com ela diversos interes-
ses e sabe o que está em jogo: "No mais, posso dizer que vou bem.
Passarei alguns dias deste verão em Munique, vendo as exposições
de pintura, e no outono certamente irei caçar na Boêmia. E o se-
nhor? Algumas linhas de vez em quando seriam muito bem-vindas.
Hugo von Hofmannsthal". As florestas da Boêmia lhe cativavam. A
propósito de "um de meus amigos", escreveu: "Ele pertence inteira-
mente à vida, e a nenhuma arte, e lhe dará uma bela idéia do que é
ser austríaco, com uma rica expfanação sobre suas variadas carac-
terísticas internas e externas, e também a de outros países. Trata-se
do Conde Josef Schonborn, da linha boêmia da Casa", uma "Casa"
que Hofmannsthal menciona com indiferença. George, versado em
questões deste mundo e sóbrio demais para não reconhecer a deses-
perança de uma tal insinuação, logo deu à criança o devido nome:
"O senhor escreve uma frase, meu caro amigo - 'ele pertence
inteiramente à vida, e a nenhuma arte'-, que eu poderia quase con-
siderar uma blasfêmia. Quem não pertence a nenhuma arte pode
gabar-se de pertencer à vida? Como? Isso somente seria possível em
tempos bárbaros". A indiferença de'Hofmannsthal assimila a crítica
em menos de meio ano: "Tenho em mente uma espécie de carta a
um amigo muito jovem que está a serviço da vida, ao qual deve ser
mostrado que ele nunca pode aliar-se realmente à vida, se em um
primeiro momento não alienar-se desta mesma vida, de uma
maneira misteriosa cujo instrumento é o entendimento da poesia".

193
THEODOR W. ADORNO

Não fica claro para qual tipo de vida o jovem amigo deveria ser
preparado. Mas é possível supor que se trata da grande vida dos
attachés e oficiais que usam o nome de batismo nas conversas com
filhos de banqueiros e empresários, uma vida onde todos os envolvi-
dos ocultam discretamente o pertencimento à nobreza 6• É preciso
compreender o desejo de felicidade que inspira o esnobe, quando
este procura deslocar-se do âmbito da vida prática para uma vida
social que, pela recusa à utilidade, parece estar ligada ao espírito. As
moças dos poemas de Hofmannsthal não pertencem às camadas
médias da sociedade. Mas o espírito que se engaja nesta aventura
social não encontra muita facilidade. Ele não pode contentar-se com
o brilho da bela vida, pois deve no meio desta vida repetir a expe-
riência do "não é isto" do qual se afastou. Proust foi o único a estar
à altura,do problema. Suas fotografias da juventude se assemelham
às de Hofmannsthal, como se a história tivesse realizado duas vezes,
em lugares diferentes, o mesmo experimento. Em Hofmannsthal, ele
fracassou. O ~ntelectual rodeado por seus cães, que se dedica alegra-
mente à caça ou pretende praticar "muita equitação ao anoitecer, sob
o vento e o céu estrelado", dificilmente pode estar em paz consigo
mesmo. O espírito é quitado ao preço da denúncia de si mesmo. A
filiação de Hofmannsthal à Boêmia dissimula o zelo com que este
homem da sociedade procura manter-se afastado de outros intelec-
tuais. No seu "paradis artificiei" não reina nenhum Bergotte e nen-
hum Elstir: "Infelizmente a minha sociedade é tão pouco literária
que eu não saberia propor ao senhor nenhum colaborador sério".
Essa abnegação desesperada do literato tem o seu fundamento
nas relações problemáticas entre o poder e os intelectuais, onde nãô
há convivência sem charme artificial e ombros flexíveis. A society
alemã, recrutada na nobreza latifundiária e no empresariado, era
menos ligada à tradição literária e filosófica do que a ocidental.
Depois de 1870, as pessoas refinadas dialogam com a cultura de
modo nervoso e inseguro. Os intelectuais, por sua vez, aproximam-
se nervosos e inseguros daqueles que não deixam esquecer, por um
instante sequer, sua predisposição de expulsar todo e qualquer inte-
lectual incómodo. Os poucos escritores que insistiram em repre-
sentar a "nação" tiveram de escolher entre glorificar a brutalidade
reinante como substancialidade e "vida", ou substituir a society real,
à qual se submeteram e da qual tinham medo, por uma society dos

194
PRISMAS

sonhos, que se orientava pelos intelectuais e que poderia servir como


modelo pedagógico para a society existente. Hofmannsthal tentou
fazer as duas coisas: confiando em momentos substanciais da tra-
dição austríaca, fez dela uma ideologia para a high life, atribuindo-
lhe aquela mentalidade humanística contra a qual se levanta a bota
de caçador, mas também idealizou uma aristocracia fictícia que espe-
lhava a realização de seus anseios. O "difícil" Kari Bühl é o resultado
deste esforço. O jovem Hofmannsthal ainda não era capaz de cria-
ções artísticas deste porte. Ele agrada à nobreza feudal como inter-
mediário do fin du siecle; de maneira ora laudatória, ora apologética,
transmite-lhes informações sobre o modo como as elites da França,
da Inglaterra e da Itália dão o tom. Tudo se passa como se ele qui-
sesse expressar sua gratidão ensinando boas maneiras intelectuais
àqueles que cortejava. Isto lhe dá, ao mesmo tempo, acesso ao mer-
cado. Os ensinamentos sobre D' Annunzio, Bashkirtzev e o modern
style que Hofmannsthal transmite ao monde vienense eram dispos-
tos como feuilletons, para que o burguês médio, excluído de todo
este mundo, ficasse com água na boca, da mesma forma que em todo
esoterismo ressoa o apelo lisonjeiro aos que não podem participar 7 •
Também neste sentido os segredos do estético se revelam ao público.
Com um ar de mistério, o conversador Loris revela o espírito do
tempo ao público ao qual ele mesmo pertence. A ala da direita alemã
com a qual Hofmannsthal simpatiza aderiu, na medida em que isso
foi permitido, ao nacional-socialismo, ou se engajou no artesanato
intelectual, cujas maiores figuras foram Lorenz e Cordula. Eles
servem à propaganda de modo sui generis: a sua sóbria moderação
desmente o horror sem medida. Em 1914, a extrema vulgaridade
contentava-se com rimas, para as quais Hofmannsthal, é verdade,
também contribuiu. Na época dos campos de concentração, os
"escrivães" aprenderam o silêncio discreto, o discurso áspero e a ple-
nitude do veranico. Hans Carossa silencia com o crescimento das
ervas os trovões dos canhões 8.
Menos mundana, a escola de Géorge provocou maior resistên-
cia. A este respeito, a postura esforçada ainda demonstrava sua
superioridade em relação à "majestade" e ao olhar "de cima"
erradamente elogiado por Borchardt em Hofmannsthal. George
pelo menos não ficou seduzido por uma mondanité capaz de orga-
nizar colóquios internacionais sobre Hitler. A "Alemanha secreta"

195
THEODOR W. ADORNO

proclamada por George se entendeu menos bem com a Alemanha


despertada do que o conformismo leviano que desde o início não se
sentia limitado às fronteiras do país, que mais tarde seriam revistas.
Ele percebeu a tolerância fatal que lhe poderia ser concedida pelos
salões mais importantes. Mas deu preferência aos conventículos, em
direção aos quais de certo modo já gravitava: como proscrito. A
correspondência testemunha isso. A razão da agitação provocada
por George na casa de Hofmannsthal, que então tinha dezessete
anos, não é mencionada. Robert Borchinger relaciona o escândalo
com um pontapé que George teria dado em um cachorro, dizendo
"sale voyou". O assunto do conflito é certamente mais bem expli-
cado numa carta de despedida que George, com a intenção de emi-
grar para o México, enviou ao pai de Hofmannsthal: "Mesmo que o
senhor, seu filho e eu não quisermos mais nos ver a vida inteira - se
ele se afasta, eu me afasto - , para mim o seu filho continua sendo a
primeira pessoa na Alemanha a compreender e respeitar devida-
mente minha obra, sem ter antes se aproximado de mim pessoal-
mente, e isto num período em que comecei a hesitar e tremer em
meu rochedo solitário. É difícil não poder explicar a alguém que
não é poeta' o quanto isso foi importante para mim. Por isso não é
de surpreender que eu me jogasse aos seus braços (Carlos? Posa?),
sem achar nada de reprovável em minha atitude". Dois dias antes,
em uma carta dirigida ao próprio Hofmannsthal, George escreveu:
"Então, em razão de algo - só Deus sabe o quê - , que você
'acredita ter entendido', dirige a um gentleman uma injúria san-
grenta, exatamente quando este estava decidido a tornar-se seu
amigo. Como o senhor pôde proceder de modo tão incauto, quan- ·
do mesmo um criminoso tem o direito de se explicar?". Esta é a
linguagem do proscrito: apenas o receio de ficar envolvido na
maquinaria da moralidade pode ter levado George a auto-intitular-
se um gentleman. Ele deveria saber, melhor que ninguém, que as
regras da linguagem excluem aquele que evoca tal palavra do con-
teúdo que ela representa. Em contrapartida, esta palavra revela nele
um segundo aspecto. O explosivo do medo promove a imagem do
gentleman como modelo histórico do George intemporal: o fan-
tasma do fin de siecle. Assim como ele invoca aqui o monstro
incógnito 9, eclesiasticamente civil, também nos protocolos oníri-
cos de Tage und Taten [Dias e ações] - e apenas nestes - cita a

196
PRISMAS

estrada de ferro que anuncia o final dos tempos. Os títulos em


inglês dos poemas de Verlaine servem para a mesma coisa. Não
parece que a "injúria sangrenta" foi infligida ao gentleman, pois
sua face insultada estava marcada desde o início por vestígios de
sangue. Nas frases de George, a palavra gentleman tem o olhar de
um assassino. Sua retidão precisa da injúria como o terno do dandy
precisa da gardênia. Na época de George, o proscrito assume para
si o peso da resistência infrutífera. Ele experimenta a desordem da
sociedade na família que ajuda a destruir. Isso é perservado no poe-
ma "Vormundschaft" [Tutoria] do Siebente Ring [O sétimo anel]:
"Als aus dem schonen sohn die flammen fuhren/ Umsperrtest du
ihn klug in sichern hofen./ Du hieltst ihn rein für seine ersten
huren .. ./ ôd ist dies haus nun: asche deckt die ofen" [Quando do
belo filho saíram chamas/ Tu o trancafiaste em cortes seguras/ O
conservaste casto para as primeiras meretrizes .. ./ Agora esta casa
está deserta: a cinza cobre os fogões]. Aquele que é protegido e
enclausurado pela família torna-se presa fácil de um mundo que é
um mercado e um deserto, contra o qual a decadência moral deve-
ria tê-lo preservado. Nas "cortes seguras" George reconhece a pro-
priedade que mantém esse mundo vivo e se posiciona contra estas
cortes no verso dedicado a Derleth: "ln unserer runde macht uns
dies zum paare:/ Wir los von jedem band von gut und haus" [No
nosso círculo isso nos faz pares:/ livres de qualquer vínculo com os
bens e com a casa] 10 • Ele se afasta da Boheme por seu desleixo, que
confia no mundo tal como é; mas liga-se a ela pela possibilidade do
crime como forma de oposição que renuncia a qualquer confiança
no mundo. O início do poema dedicado a seu amigo de juventude,
Carl August, relembra a vinha de Hanschen Rilow em O despertar
da Primavera de Wedekind: "Du weisst noch ersten stiírmejahrs
gesell/ 'Wie du voll trotz am zaun den hagelschlossen/ Hinwarfst
den blanken leib auf den blauschwarz/ die trauben hingen?" [Sabes
ainda, companheiro dos anos tempestuosos,/ Com que teimosia lan-
çaste à cerca de granizo/ teu corpo' nu do qual azul-escuras/ as uvas
pendiam]. O comentário de que Wedekind teria sido muito esti-
mado por George é esclarecedor. A possibilidade da criminalidade
está tão presente no poema "Der Tater" [O criminoso] que parece
ser mais do que apenas uma possibilidade entre outras. A ele se jun-
tam versos petrificados como o terceiro "Jahrhundertsspruch"

197
THEODOR W. ADORNO

[Adágio secular] do Sétimo anel e o "Gehenkte" [Enforcado] do


Neuen Reiches [O novo Reino]. Apenas isto já justificaria a pos-
tura de George: o orgulho baudelairiano do proscrito, "trésor de
toute gueuserie" 11 • É certo que, quando o enforcado se gaba numa
metáfora desajeitada, "und eh ihrs euch versahet, biege/ Ich diesen
starren balken um zum rad" [e antes de vocês perceberem, eu/
dobro estas duras vigas em uma roda], o espírito missionário do
George tardio degenera o blasfemo em herói. O protesto contra o
matrimónio e a família se modifica, na medida em que o Estado
totalitário, cuja sombra é perceptível nos últimos livros de George,
também rompe com o matrimónio e a família, assumindo suas fun-
ções. O incendiário, agora, transforma-se em insuflador, e o crimi-
noso em profeta do carrasco. Aquele que ainda há pouco se sabia
"livre dos, bens e da casa" sente-se agora como guerrilheiro: "Wir
einzig konnen stets beim ersten saus/ Wo grad wir stehn nachfolgen
der fanfare" [Somos os únicos que podem no primeiro momento e
sempre/ e onde quer que nos encontremos seguir a fanfarra]. A
pureza agouren·ta que já maculara o "Algabal" do jovem George,
que recomendou "O criminoso" e o espírito de grupo aos teimosos
mestres-escolas, acabou por pervertê-lo em uma figura de luz. A
transcendência de George em relação à sociedade desmascara a
humanidade. Sua desumanidade, porém, é absorvida pela sociedade.
Hofmannsthal também reivindica esta transcendência em
relação à sociedade, e a idéia da marginalidade tampouco é estranha
a alguém que precisa simular sua própria society. Mas nele trata-se
de uma marginalidade conciliatória, encantada demais consigo
mesma para ofender seriamente aos outros. "Desde minha infância
sempre fui possuído por um desejo ardente de entender o espírito
da nossa época conturbada, nos seus mais sutis disfarces e pelos
meios mais diversos. E mais de uma vez me senti atraído pelo dis-
farce de um certo jornalismo - concebido em um sentido tão
decente que até Ruskin, mas dificilmente alguém dos nossos, pode-
ria ser considerado como seu representante. Ao publicar em jornais
e revistas, estava obedecendo a um impulso ao qual preferia
explicar do que negar de alguma maneira." O gosto pelo disfarce,
que se acomoda a uma harmonia preestabelecida com as exigências
do mercado, é o impulso do ator. E George reconheceu bem cedo
o ator em Hofmannsthal. Em uma carta de 31 de maio de 1897 são

198
PRISMAS

introduzidos certos versos que reaparecem, atenuados, no Das jahr


der Seele, com as iniciais de Hofmannsthal: "Finder/ Des flüssig
rollenden gesangs und sprühend/ Gewandter zweigesprache. frist
und trennung/ erlaubt dass ich auf meine dachtnistafel/ Den alten
hasser grabe. thu desgleichen!" [Descobridor/ Da canção fluente
e ininterrupta/ dos diálogos inflamados. O prazo e a separação/ me
permitem gravar na tábua de minha memória/ o velho ódio. Faça
tu o mesmo!]. Estas palavras não caracterizam o dramaturgo, mas o
"ator dos próprios sonhos", o pajem da Tod des Tizian [A morte de
Ticiano], defendido e apostrofizado por seu amigo poeta 12 • Mais do
que qualquer estilização, e mesmo antes de qualquer intenção
dramática, os poemas de Hofmannsthal, especialmente os mais per-
feitos, ressoam a voz impostada do ator. Essa voz objetiva o poema
da mesma maneira como na música a imediatez lírica do sujeito é
objetivada pelo instrumento apropriado. Versos como: "Er glitt
durch die Flõte/ Als schluchzender Schrei,/ An dammernder Rote/
Flog er vorbei" [Ele glissou pela flauta/ Como um grito em solu-
ços/ No vermelho do crepúsculo/ Ele passou voando] trazem em si
o tom de Josef Kainz, para quem Hofmannsthal escreveu o necro-
lógio 13. A teatralidade de Hofmannsthal, sem levar em conta as
reduções psicológicas, nasce a partir do manejo técnico da lírica.
Os poemas recitam a si mesmos, como para se controlarem. Sua
eloqüência permite que os versos se escutem 14 • Daí a sua prefe-
rência pelo verso eloqüente, pelo verso branco. Hofmannsthal
aprendeu com os ingleses seu célebre meio estilístico: a sincopiza-
ção. É uma conquista do poeta técnico que serve ao ator imanente
à forma: ela introduz a liberdade pela qual um verso pode ser reci-
tado na própria forma fechada do metro poético. Mas este verso é ao
mesmo tempo a lembrança infantil de um teatro que,· desde a
juventuêle de Hofmannsthal, reserva Hamlet, e sobretudo Schiller,
para as montagens escolares. Hofmannsthal está certo em remeter a
tendência para o disfarce intelectual aos tempos de sua infância.
Quem faz teatro nessa idade se c~bre de palavras e de sua resis-
tência, como quem coloca os tradicionais figurinos de cena, colares
com pedras coloridas e cascalho do Reno. Pode-se afirmar que
Hofmannsthal repetiu incessantemente o gestual dessa criança,
reconstituindo assim a única idade que ainda é capaz de experi-
mentar o drama barroco. Nas mãos de sua voz, qualquer assunto

199
THEODOR W. ADORNO

transforma-se, como por encanto, em "infância", e é justamente


graças a esta transformação que ele escapa do perigo da postura e da
responsabilidade. A disposição mágica sobre a infância é a força do
fraco 15 : ele escapa da impossibilidade de sua tarefa como um Peter
Pan da Lírica. Trata-se realmente de uma impossibilidade. Pois a
teatralidade de Hofmannsthal, até as suas conseqüências alexan-
drinas e as pseudomorfoses do período tardio, deve-se a uma per-
cepção extremamente real: a linguagem não mais permite dizer o
que foi objeto de experiência 16 • Ou ela é a linguagem reificada e
banal das mercadorias, que de antemão falsifica o pensamento; ou
ela se auto-institui, cerimoniosa mas sem cerimônia, poderosa
mas sem poder, apoiando-se no próprio punho, em suma, um tipo
de linguagem que Hofmannsthal combateu na escola de George.
Ela se recusa totalmente ao objeto, em uma sociedade na qual a
violência dos fatos assume um tal horror que mesmo a palavra
verdadeira é tida como ironia. O teatro infantil de Hofmannsthal
é a tentativa de emancipar a poesia da linguagem. Enquanto não
se concede sub~tancialidade à linguagem, ela se cala: o balé e a ópe-
ra são as conseqüências necessárias. Sob as máscaras trágicas e
cômicas não "resta mais nenhuma face humana. A verdade da apa-
rência de Hofmannsthal se baseia nisto. Esta linguagem assume
um caráter vacilante e tenebroso justamente onde pretende falar a
partir da razão épica: "Circe Kannst Du mich horen?/ Du hast mir
fast michts getan" [Circe, consegues me ouvir?/ Não me fizeste
quase nada"], está escrito no texto de Ariadne auf Naxos. Este épico
"quase", que ainda fica limitado em face da metamorfose mítica,
retira o solo deste mesmo mito, através do fastio moderno.
Contra a teatralidade de Hofmannsthal, George apresenta a
objeção mais trivial: "O que mais lhe faz sofrer é um certo desen-
raizamento ... ". Ele parece recorrer ao linguajar de um anti-semi-
tismo, cujos traços não faltam em sua obra, apesar de sua rejeição
a Klages. Na Stern des Bundes [Estrela da Liga], o tradutor da
"Malabraise" de Baudelaire proclama: "Mit den frauen fremder
ordnung/ Sollt ihr nicht den leib beflecken/ Harret, lasset pfau hei
affe!/ Dort am See wirkt die Wellede/ Weckt den madchen tote
kunde:/ Weibes eigenstes geheimnis" [Com as mulheres de outra
ordem/ Vós não deveis macular o corpo/ Esperai, deixai pavão
com macaco/ Lá no lago reina a Wellede/ Relembrando às moças

200
PRISMAS

um ensinamento morto/ O segredo mais íntimo da mulher]. Versos


que não ficariam mal no ginásio de qualquer escola da Renânia. Mas
George realmente não quer ter nada em comum com esta atmosfera:
"Apenas a idiotice da plebe literária poderia jogar estes homens
extremamente diferentes no mesmo saco simplesmente porque
todos se distanciaram dela da mesma forma; uma seleção semelhan-
te à feita outrora pela canalha renana, que chamava de 'judeus' todos
os que se vestiam de modo diferente". Ao desenraizado, George não
queria opor o enraizamento de sua existência empírica: "Por volta
do Natal não tenho muito a fazer por aqui, nem sei se ainda estarei
aqui. A convivência no inverno num ambiente entre amigos, como
foi descrito pelo senhor (seja na cidade ou no campo), somente é
possível para alguém como o senhor, que possui um lar, mas não
para mim, que em todos os lugares sou apenas um visitante". Em
uma carta de 27 de agosto de 1892, que dificilmente pode ser enten-
dida ironicamente, encontramos uma formulação ainda mais impres-
sionante: "Acredito que o senhor não se deixa levar tão longe na
paixão pela beleza e pela sonoridade. Esta é a dureza germânica que
existe no senhor, e o que há de latino em mim. Conversando com
pessoas que falam línguas latinas, o senhor perceberá que elas são
mais ruidosas, mais genuínas quanto ao que gostam e desgostam" 17 •
Desde o início, George interpr{'.ta sua oposição ao "desenraizado"
não como uma questão de origem, mas de decisão 18• Ele não recorre
à terra, à força do ser e ao inconsciente. Foram reflexões estraté-
gicas sobre a situação, e exatamente sobre a situação literária, que
lhe inspiraram a escrever a carta fundamental de julho de 1902 a
Hofmannsthal, sem que nesta ocasião a posição contrária tenha sido
excluída de antemão como inferior ou desigual: "Permita-me que eu
diga tudo, como o senhor também o fez. O senhor acha· bonito e
elogia o deixar conduzir-se pelas facticidades multicoloridas. Para
mim elas não significam nada sem seleção e disciplina. Não entre-
mos na discussão do que seria melhor. Mas uma coisa é certa: que
algo aconteça, no universal ou no 'particular, somente é possível se
houver uma espécie de liderança. Sei muito bem que através da pos-
tura e da liderança não nascem obras de mestre - mas também é
certo que na sua ausência muito, ou tudo, é oprimido. Também o
senhor já deve ter percebido que toda a nossa arte está afetada pela
dilaceração e pelos procedimentos esporádicos, por uma série de

201
THEODOR W. ADORNO

homens fortes aos quais até então tudo foi proibido. Tudo isso se
explica pela mesma mentalidade ... E agora o jornalismo superior
que o senhor tanto elogia e ao qual se deve aplaudir - ele não pre-
cisa da sensibilidade morna e da impressionabilidade de molusco
que hoje se apresenta como 'naturalismo berlinense' e amanhã
como 'simbolismo vienense' ... - não, nós precisamos do contrário:
da concentração severa num único ponto ... ". Quanto ao declínio
da linguagem, ele tem tão poucas ilusões como Hofmannsthal:
"Tudo se torna dizível: um debulhar de palha vazia". Mas onde
Hofmannsthal pega a espingarda, George recorre desesperadamente
à violência. Ele estrangula as palavras, até que elas não possam mais
fugir: ele se sente mais seguro com as palavras mortas, embora elas
estejam tão perdidas para ele quanto se fossem palavras fugitivas. É
por isso que o heroísmo de George se exaspera. Os seus traços míti-
cos são o oposto daquela herança apropriada por políticos apologé-
ticos. São traços da obstinação. "Es ist worden spat" [Ficou tarde].
Não há nenhum traço nas obras de George que não seja parente
deste "tarde". Ele olha para as palavras tão de perto e tão estranha-
mente como se pudesse apoderar-se delas tal como foram no pri-
meiro dia daºCriação. Um tal estranhamento é tão completamente
determinado pelo século liberal quanto a política antiliberal, que na
Alemanha apelava com tanto gosto a George. Certas frases de uma
carta de 9 de julho de 1893 mostram a que ponto se mesclavam em
George a idéia liberal da segurança jurídica, o ímpeto arrogante da
dominação e um conjunto de representações de relações proto-
históricas: "Toda sociedade, mesmo a menor e a mais livre possível,
se constrói sobre contratos. A sua voz vale tanto quanto qualquer
voz. Mas o senhor deve, em todo caso, fazer-se ouvir abertamente".
Se os contratos parecem supor a plena igualdade de direitos entre os
contratantes civis, a sua invocação em questões de solidariedade
espiritual é um meio para a suspensão da igualdade e para a opressão
que pressupõe um estado de inimizade mortal entre os sujeitos,
através da qual a sociedade concorrencial se assemelha às hordas. A
exigência de "fazer-se ouvir abertamente", entretanto, que George
ressalta diante de Hofmannsthal com respeito às Blatter für die
Kunst, só pode trazer desgraça para quem está envolvido. Toda vez
que Hofmannsthal se deixa seduzir pela crítica a George e a seus
seguidores acaba se dando mal.

202
PRISMAS

Contra aquele mundo que lhe parece desenraizado, George


evoca a univocidade da natureza. Mas esta moderna natureza torna-
se unívoca apenas pela dominação da natureza. É isto que concede
às célebres estrofes finais do "Templergedicht" [Poema do templá-
rio], que descrevem a teoria da forma georgiana, o seu sentido
histórico-filosófico, que não faz parte da intenção original: "Und
wenn die grosse Nahrerin im zorne/ Nicht mehr sich mischend
neigt am untem borne/ ln einer weltnacht starr und müde pocht:/
So kann nur einer der sie stets befocht/ Und zwang und nie verfuhr
nach ihrem rechte/ Die hand ihr pressen packen ihre flechte/ Dass
sie ihr werk willfahrig wieder treibt:/ Den leib vergottet und den
gott verleibt" [E se a grande provedora por raiva/ não mais se
mesclando na fonte profunda/ Esconder o sol cansada e fria em uma
noite cósmica:/ Apenas alguém, então, que sempre a combateu/ e
forçou e nunca seguiu suas ordens/ pode apertar-lhe a mão e pegar a
sua trança/ Para que ela de bom grado recomece o seu trabalho:/
endeusando o corpo e dando corpo a Deus] 19 • Quem somente pensa
na natureza para submetê-la pela força não deveria justificar a
própria essência como natureza. A imagem que George contrapõe à
ficção de Hofmannsthal constitui este absurdo. George gostaria de
dominar Hofmannsthal. O que é dito sobre a Áustria no poema
"Den Brüdern" [Aos irmãos], dedicado a Andrian, caracteriza bem
a relação entre os dois: "Queríamos nos apoderar amigavelmente de
vós, juntamente com tudo aquilo em vós que ainda está germinando
e crescendo". Hofmannsthal está na defensiva. Da mesma maneira
como ele pessoalmente se afasta do pedido de amizade e proxi-
midade, assume literariamente o ponto de vista do não-participante
orgulhoso. Hofmannsthal não se importa se seus poemas são publi-
cados em revistas obscuras, enquanto George, quando se trata do
métier de escritor, desfaz-se de toda postura nobre e procede com
tanta paixão quanto um de seus amigos parisienses. A defensiva de
Hofmannsthal mobiliza prudentemente as mais variadas forças da
fantasia, recorrendo ao cerimoniai do velho Goethe e às cartas de
loucura de Holderlin ou colocando-se, coquete, ao lado "da massa
dos leitores"; reconciliando-se pela manifestação de interesse - até
mesmo pelos amigos de George, normalmente desprezados - ou
ofendendo pelo pathos de uma gratidão que impõe distância.
Mesmo a "proximidade" com George, afirmada inúmeras vezes e

203
THEODOR W. ADORNO

por toda a vida, é colocada a serviço da distância pelo caráter


estereotipado da afirmação. Ele se esconde na proximidade e res-
vala na linguagem de George: suas cartas a outras pessoas jamais
permitiram perceber que se tratava do mesmo autor. Mas a técni-
ca mais eficiente é a da auto-acusação. Insuperável é, neste senti-
do, o "humilde pretexto", prontamente reconhecido como tal por
George, com o qual Hofmannsthal reage à proposta de assumirem
em parceria a direção das Blatter für die Kunst. Hofmannsthal se
defende até mesmo de insinuações ofensivas feitas anteriormente
por George a respeito de sua solidariedade com a "charlatanice",
invocando o seu precário estado de saúde. Sua condescendência e
maleabilidade são tão ilimitadas que ele parece inatingível. Na car-
ta anterior, ele havia comunicado a George que a sua arrasadora
"crítica sqbre a Veneza salva, que em um primeiro momento pare-
cia ser muito dura, pouco a pouco foi aceita inteiramente": somen-
te alguém que não é atingido por nenhuma crítica pode aceitar
todas sem opor nenhuma resistência.
A amizade entre os dois está se desfazendo antes mesmo de ter
efetivamente se realizado. Naquela época, não era mais possível
fundamentar· a amizade, mesmo entre pessoas de extraordinária
força produtiva, na simples simpatia e no mero gosto, mas unica-
mente no conhecimento comum que estabelece um forte vínculo:
uma amizade por solidariedade, que inclui a teoria como elemen-
to de sua práxis. Na correspondência, o conhecimento é ansiosa-
mente excluído dos pressupostos da amizade: o trauma do primeiro
encontro em Viena continua existindo, e faz com que cada tentativa
de explicação se transforme em um novo ato da confusão: "Talvez
tenha sido severo demais com o senhor, não por causa de um ato há
muito tempo expiado, mas devido à mentalidade que ali se expri-
mia. Não levei devidamente em consideração o seu modo total-
mente diferente de sentir, nem a educação inteiramente diferente
que o senhor recebeu sob outro céu. Eu acreditava que o princípio
da espontaneidade nobre, pelo qual sempre se reconheceram os
grandes homens, não conhecesse exceção, e em meu espírito atribuí
ao senhor aquele lugar 'onde os pesados remos dos navios roçam
na água'. Mas sempre encontrei na incompreensibilidade da lou-
cura uma desculpa para o senhor, e nunca parei de amá-lo com
aquele amor cujo traço fundamental é a veneração, um amor que só

204
PRISMAS

é possível para a humanidade mais elevada. Mas basta de assuntos


pessoais". Dificilmente alguém poderia esperar resolver um assunto
pessoal com estas colocações imprecisas, ao mesmo tempo baju-
ladoras e mordazes. Elas se encontram na solene carta de reconcilia-
ção de George, onde ele anexou os versos sobre o "ódio ancestral".
No decorrer de toda a correspondência, George escreve variações
sobre a intenção fatal de esquecer e perdoar o que houve no passa-
do. Cada carta amigavelmente enviada procura expiar uma culpa,
aumentando continuadamente, com a indulgência insistente, o
montante de culpa: era necessário apenas um gesto conciliatório de
um, para inspirar no outro uma maldade ou um recuo. A casuística
das cartas dissimula também questões de prestígio e do direito de
dispor sobre o trabalho do outro - mesmo que se trate de trabalho
espiritual - , e finalmente a questão da propriedade intelectual e de
um modo de originalidade que contradiz o conceito de "estilo"
enfaticamente defendido por ambos. Em 1992, Hofmannsthal
escreve a George: "O senhor encontrará na Morte de Ticiano um
detalhe familiar: a imagem do infante". Ele se refere a um poema
dos Hinos. Com uma noblesse ostentatória e irritante, George res-
ponde: "Já que o senhor não coloca nenhuma epígrafe no prólogo,
eu retirei o meu 'infante' dos excertos de meus livros a serem
publicados no mesmo número, pois a massa poderia facilmente ser
levada a um mal-entendido". O desprezo em relação à massa não
poupou George de um ciúme que é muito comum em círculos que
seu exclusivismo desdenhava. Mas nada poderá elucidar melhor o
caráter absurdo de tais preocupações do que o objeto da contro-
vérsia. A descoberta do infante como figura exemplar não foi feita
originalmente nem por Hofmannsthal nem por George, mas por
Baudelaire 20 • São cálculos desta natureza que fazem com que a
solidariedade seja excluída e que acabam pesando até mesmo
sobre ações solidárias como as defesas públicas de um pelo outro.
Hofmannsthal escrevia repetidamente sobre George, mas este
nunca escreveu sobre aquele, mesmo que a objeção da solida-
riedade deficiente tenha partido do mais velho. Em certa ocasião,
um ensaio de George sobre Hofmannsthal quase foi publicado,
mas a comunicação deste projeto, que implicitamente reprovava
Hofmannsthal por sua fama, não deixou dúvida sobre as razões
pelas quais o ensaio jamais foi escrito: "Reflito há algum tempo

205
THEODOR W. ADORNO

sobre a possibilidade de escrever um artigo sobre o senhor, mas para


a publicação devo procurar uma revista renomada no exterior, onde
eventos artísticos realmente valem como eventos; não falarei do
senhor em uma revista que já deu a palavra a todas as tribos sel-
vagens e a todos os comerciantes de ouro e especiarias". No declí-
nio da amizade entre George e Hofmannsthal é decisivo o mercado,
em cuja negação a lírica de ambos tem a sua origem: os que se
opõem à humilhação pela concorrência perdem-se mutuamente
como concorrentes.
George teve uma postura menos ingênua em relação ao merca-
do do que Hofmannsthal. Mas em relação à sociedade a sua postura
dificilmente poderia ser mais ingênua. Assim, ele se opõe ao fenô-
meno do mercado sem tocar em seus pressupostos. Gostaria de
emancipa~ a poesia da demanda de público e ao mesmo tempo per-
manecer no interior de um contexto social que ele mais tarde mito-
logizou com palavras como "aliança" e "herói", "povo" e "ação".
"Não levar em consideração a massa leitora" significa para ele
transformá-la, àtravés de uma técnica de dominação que está em
estreita relação com a técnica artística, em uma massa de consumi-
dores forçados. Por isso a sua posição ambivalente em relação ao
sucesso. O esboço de uma carta perdida a Hofmannsthal contém as
seguintes frases: "De maneira nenhuma começaria antes de ter acer-
tado em contrato os mínimos detalhes, tais como distribuição,
salário, formato e apresentação. Com alguns de meus amigos, isto é
desnecessário; com outros, imprescindível. Nenhum imprevisto
deve impedir o sucesso, pois, como o senhor sabe, não procurar o
sucesso é uma postura nobre, mas procurá-lo, e não obtê-lo, é inde-
cente"21. O desprezo do sucesso refere-se apenas ao mecanismo de
mercado que expõe os concorrentes ao perigo do fracasso. Busca-se
chegar ao sucesso contornando o mercado. A grandeza que orgu-
lhosamente se contenta em não buscar o sucesso é a do magnata do
truste literário, uma figura na qual George inicialmente se reco-
nheceu, quando ainda pelo menos a economia alemã lhe podia
fornecer modelos: "Tinha a plena convicção de que nós, o senhor e
eu, poderíamos durante muitos anos exercer uma ditadura salutar
sobre as letras, e se isso não aconteceu a culpa é toda do senhor".
Dificilmente os ditadores podem cometer erros. Os que vivem
perigosamente têm a verdadeira segurança. São poupados, a longo

206
PRISMAS

prazo, da indecência do fracasso. Com a clarividência do ódio,


Borchardt soube atingir, na polêmica contra o Jahrbuch für die
Geistige Bewegung [Anuário do movimento espiritual], os traços
monopolísticos da "Escola de George": "O diário oficial dos indus-
triais alemães deve anunciar que a força econômica só será libertada
onde o homem quiser se vincular ao homem por causa do homem,
que o individualista excêntrico não deve se queixar da ruína eco-
nômica ... Os amigos do senhor Wolfskehl fazem dessa miséria não
tanto uma virtude, mas sim o dogma do efeito devastador e limi-
tador daquilo que chamam, negativamente, de 'isolamento', apre-
sentando a frase heróica de Schiller, 'o forte é mais poderoso em
meio aos seus', em sua versão moderna: 'o forte é mais poderoso' no
sindicato das almas" 22 • Procura-se introduzir a concorrência no
setor da dominação, e há um apelo cínico ao princípio da concor-
rência, quando a própria dominação exige isso. Em 1896, George
oferece a Hofmannsthal a co-redação das Blatter für die Kunst. Ele
ressalta a importância da oferta com as seguintes palavras: "Já que se
trata de uma reunião séria de todas as forças, a colaboração apenas
ocasional que o senhor poderia oferecer seria insignificante. Nesse
caso, seu lugar deveria ser preenchido por outra pessoa, mas prefiro
não pensar nesta perda imensa".
As Blatter für die Kunst apresentam-se como o objeto sensível
da diferença entre George e Hófmannsthal. No comportamento
dos dois em relação às Blatter e seus partidos 23 revela-se uma ver-
dadeira antinomia. Mais tarde ela também se revelou no âmbito
político, em passagens nas quais ambos os autores deixaram todos
os sonhos de lado. Em 1893, Hofmannsthal comunica a Klein:
"Não me agrada muito escrever um artigo sobre as Blatter em um
jornal diário. Nos cadernos publicados até agora há, para o meu
gosto: 1') pouca coisa de real valor; 2) muitas coisas minhas. Este
dois pontos limitariam de tal modo o meu discurso, que prefiro me
calar". Descobre-se o que está por trás desta colocação em uma
carta anterior de Hofmannsthal endereçada a Klein: "Aliás, acho
que é muito estranha a sua proposta de comentar o nosso empreen-
dimento em uma outra publicação. Para quê? Por que então não
deixar logo imprimir todas as minhas coisas por estranhos? Será
que entendi errado a essência de nosso projeto? De maneira nenhu-
ma tenho medo de me 'comprometer', e em questões artísticas não

207
THEODOR W. ADORNO

estou inibido por nenhum vínculo ou consideração. Mas, por favor,


diga-me claramente o que o senhor realmente quer, e qual a razão
disto". Tudo se passa de maneira realmente dialética: o exclusivismo
de George tende, de modo ditatorial, a um posicionamento público
e mesmo jornalístico, e com isso supera a si mesmo: mas isto per-
mite a Hofmannsthal apoiar-se no esoterismo ferido do Círculo
para que as suas coisas sejam impressas "por estranhos", com o
abandono de todo e qualquer esoterismo. O medo de se compro-
meter, que ele nega, determina o seu comportamento: comprome-
ter-se não tanto por se rebaixar a um público comercial, mas
sobretudo por se indispor com este público. O seu isolamento no
círculo das Blatter transforma-o em porta-voz compreensível do
profanum vulgus, contra o qual as Blatter haviam sido fundadas.
"O que eu pretendo é menos intrometer-me do experimentar algo
de novo. Pelo pouco que sei, posso calcular a perplexidade quase
total do público ante um empreendimento tão austero e lacônico."
Com sua percepção crítica, Hofmannsthal superou a aversão do
público. Ele não se poupou na recusa, não apenas dos poemas ruins
que encheram as Blatter, mas também dos que apenas imitavam
George. Uma formulação como a seguinte pertence às mais polidas:
"Se o senhor tivesse os amigos e os companheiros que realmente
merece, quanta alegria eu teria também". George sabia tão bem
quanto Hofmannsthal qual era a real situação das Blatter. Ele
poderia tranqüilamente devolver-lhe a objeção da pouca quali-
dade literária dos seus amigos, mas Hofmannsthal nunca se vin-
culou seriamente como George o fez com seus colaboradores. Mas
George não estava satisfeito com isso: "Eu mantenho minha
opinião ... contra a do senhor, que quer rejeitar toda e qualquer
colaboração que não seja a sua e a minha. Nem quero falar de
estrangeiros como Lieder ou Verwey. Não entendo como o senhor
pode deixar de lado poetas e pensadores como Wolfskehl e Klages
- o ardor sombrio de um e o ar agudo e calmo do outro são tão
únicos e originais que não se poderia compará-los a ninguém de seu
círculo, tal como este se manifestou até agora. Mas se o senhor fala
das estrelas menores, então é fácil fazer o julgamento que o senhor
mesmo conhece. Mas o senhor comete um grave erro, se supõe
deslealdade e falsa serenidade nas pessoas citadas, são todas pessoas
de boa disciplina espiritual, com as quais, se o senhor as conhecesse,

208
PRISMAS

poderia se dar muito bem. Elas nunca se comportaram como se fos-


sem gênios, mas o fizeram exatamente aqueles que o senhor defen-
de, contra os nossos ... Nas Blatter cada um sabe seu lugar. Aqui se
faz uma diferença precisa entre a obra nascida e a obra fabricada. -
Todo aquele que odeia as Blatter está interessado em desfazer esta
diferença ... Mas se o senhor me declarasse ver nas Blatter apenas
uma coleção de versos mais ou menos bons, sem perceber o aspecto
construtivo, aliás praticamente ignorado hoje em dia - então isso
me traria uma nova e uma grande decepção". O aspecto construtivo
inclui tanto a equiparação dos dominados quanto a unidade de uma
técnica conscientemente transmitida: opressão e aumento da força
produtiva. Hofmannsthal vê o aspecto repressivo, mas não tem
nada a oferecer, além de opiniões correntes sobre tradição e indi-
vidualidade, para inverter a situação: "Eu trocaria formas, relações
e intuições valiosas e adaptadas ao indivíduo por um pouco de
banalidade". Ambos têm razão um contra o outro. George supõe
haver em Hofmannsthal a "criatividade que logo quer transformar
o leite em manteiga, e organizar tudo de acordo com a situação do
mercado". Hofmannsthal descobre, por sua vez, a falsidade dos
que estão submetidos a ordens e privados de toda espontaneidade,
e também a fatalidade do "ordinário", ao qual eles não podem
escapar. O individualista e o org!lnizador ameaçam ambos sucum-
bir ao estado de coisas. Aquele, pela impotência que falaciosamen-
te se instala enquanto critério, mas na realidade cede a razão ao
poder inimigo. Este, pelo poder ao qual obedece e que o enquadra
dentro da injustiça à qual ele deveria opor-se, colocando-se na
fileira da oposição. Pois ambos devem viver no mundo da injustiça
universal. A postura de George ficou estigmatizada por esta injus-
tiça até mesmo em sua linguagem. No início do conflito, ºele pro-
voca Hàfmannsthal, escrevendo: "Até quando vai ainda este jogo
de esconde-esconde? Se o senhor quer falar comigo livre e franca-
mente (o que também é a minha intJnção ), eu o convido a aparecer
em um terreno neutro. A sua carta também era muito diplomática
- mas foi minha a culpa de que o senhor tenha aparecido jus-
tamente naquele infeliz Café?". Assim como mais tarde se falará
de tratados, também aqui o privado se transforma em universal
como se fosse politicamente relevante. Isso, entretanto, é um reflexo
da atividade jornalística, que atribui o genérico e politicamente

209
THEODOR W. ADORNO

importante à esfera privada. O pathos esotérico poderia facilmente


nascer no mundo das mercadorias: a dignidade do indivíduo foi
emprestada àquela das manchetes dos jornais. O gesto generoso
de George possui a ingenuidade daquele que se reveste com gran-
des palavras sem ficar vermelho. Ele não consegue compreender
nenhum tema - mesmo que fosse o mais particular - sem agir
como se tratasse de algo público. Sua estratégia literária provém de
impulsos políticos que perderam o rumo.
Uma vez, entretanto, estes impulsos tiveram a oportunidade de
reencontrar seu verdadeiro objeto. No ano de 1905, Hofmannsthal,
em nome do conde Harry Kessler - a quem já havia criticado vee-
mentemente em cartas a Bodenhausen - , tornou-se porta-voz
daquele pacifismo cintilante da ruling class, que teleologicamente já
continha em si a postura daqueles que se comportariam mais tarde,
durante a ocupação de Paris, como se esta tivesse sido organizada
pelo Pen Club para que eles pudessem almoçar no Prunier com os
seus colegas franceses. George foi convidado a participar. A carta de
Hofmannsthal,' datada em Weimar, primeiro de dezembro de 1905,
diz o seguinte:

Meu caro George,

Pediram-me que lhe escrevesse sobre um assunto muito sério e


que supera em muito as questões pessoais.
O perigo horroroso e inimaginável de uma guerra entre a
Inglaterra e a Alemanha é - embora já fosse evidente no verão
- maior e mais próximo do que podem imaginar os articulistas ·
dos jornais e a maioria dos indivíduos envolvidos em atividades
políticas. Os poucos que, deste lado, conhecem a seriedade da
situação e os poucos que, do outro lado, pretendem opor-se à imi-
nente irrupção de uma guerra concordaram - sabendo da força
dos imponderáveis em tais épocas - em trocar cartas abertas
com a assinatura de ambos os lados de aproximadamente qua-
renta a cinqüenta nomes de suma importância dos respectivos
países (exceto políticos profissionais). A carta aberta inglesa (assi-
nada por Lord Kelvin, George Meredith, A. Swinburne e outros)
será dirigida aos editores dos jornais alemães, a carta alemã aos
ingleses (pois os jornais são os verdadeiros barris de pólvora).

210
PRISMAS

Sabendo-se que o senhor não gosta da publicidade, pede-se


excepcionalmente a sua assinatura, enquanto, por exemplo, não
se pensa em incluir a do conhecido Sudermann. Deseja-se reunir,
neste assunto muito sério, as mais sérias forças intelectuais da
nação. Se agrada ao senhor, assine, por favor, a carta anexa, e
envie-a, dentro de dez dias, ao senhor H erry Conde Kessler,
Weimar, Cranachstrofe 03.

Vosso, Hofmannsthal.

A coleção modelar dos "nomes de suma importância", a exclu-


são do infeliz Sudermann, usado para fortalecer o sentimento da
superioridade dos que foram admitidos, e a vaga impessoalidade
("pede-se"), que sugere a existência de poderosas forças por trás
desta iniciativa, tão elevadas que o encarregado, com orgulhoso
respeito, não ousa citar os nomes - tudo isso tem tanto estilo como
a ]osephslegende. George não respondeu esta carta sem valor. Mas
foi conservado um esboço da resposta, que teve a frase mais impor-
tante cortada, sob a pressão do regime de Hitler, mas que é agora
publicado integralmente na correspondência reunida:

Se esta carta não tivesse sido enviada por alguém cuja inteligên-
cia eu tanto admiro, acreditária que se tratava de uma brin-
cadeira. Pois não comerciamos nem objetos materiais nem
espirituais com os de lá. O que significa isso? E mais: a situação
não é tão simples como quer crer a nota. A guerra é apenas a
última conseqüência de décadas de política absurda de ambos os
lados. A tentativa de pacificação de algumas pessoas parece-me
não ter efeito algum. E vendo um pouco adiante: quem sabe se
nós, ·como verdadeiros amigos dos alemães, não deveríamos lhes
desejar uma boa derrota no mar, para que adquirissem nova-
mente aquela humildade patriótica que é a fonte de novos valo-
res espirituais. Eu teria responáido com a maior serenidade, se
não tivesse ficado triste com o fato de que parece não haver um
único ponto sobre o qual estejamos de acordo.

Logo em seguida, um assunto editorial ofereceu o pretexto para


a separação definitiva.

211
THEODOR W. ADORNO

O "considerável entendimento do mundo", notado em George


por Borchardt, não é suficiente pra explicar o fato de que ele tenha
percebido devidamente a conexão entre empreendimentos interna-
cionais e ambições imperialistas; que o futuro emigrante já naquele
tempo usasse palavras sobre a Alemanha que deveriam ter soado
como blasfêmias para os integrantes do seu próprio Círculo; e que,
sem o devido embasamento teórico sobre a sociedade, falasse de
uma força objetiva que levaria à guerra. Tudo isso não se explica
pelo "considerável entendimento do mundo", sua força cognitiva
deve ser atribuída sobretudo ao conteúdo poético. No movimento
operário, era costume, pelo menos desde Mehring, atribuir pos-
turas artísticas naturalistas e realistas a tendências progressistas, e
posturas opostas a tendências reacionárias. Todo artista que não
expusesst; quintais, mulheres dando à luz e, ultimamente, pessoas
proeminentes, seria tido como um "místico". Tais qualificações por
vezes correspondem à consciência dos autores em questão. Mas a
insistência na reprodução da realidade social imediatamente dada
compartilha a timidez empiricista da burguesia combatida. A socie-
dade baseada na troca impele suas crianças a perseguir sempre fins
imediatos, a· viver obstinadamente em função destes, procurando
com os olhos unicamente as vantagens às quais possam agarrar-se,
sem olhar para a direita ou para a esquerda. Quem sai deste cami-
nho corre o risco de sucumbir. A imediatidade forçada impede que
o homem perceba conscientemente este mecanismo que o mutila,
pois ele se reproduz em sua consciência submissa. Essa consciência
é hipostasiada pelo postulado da intuição e reprodução da realidade
imediata, ao mesmo tempo que seu complemento, a teoria fetichis- ·
ta, é traída pela fidelidade. O realista que literariamente se compro-
mete com o palpável escreve a partir da perspectiva de um doente
mental, cujos impulsos não vão além dos meros reflexos suscitados
pelos objetos. Ele tende a comportar-se como um repórter, que
corre atrás de eventos sensacionais assim como os concorrentes
econômicos correm atrás do lucro. As obras literárias, deprezadas
hoje em dia como luxo, não têm nada a ver com isso. Hoje em dia,
a doutrina do realismo socialista perdeu todo valor, ao tornar-se
ideologia oficial do Estado. Mesmo assim, no que se refere aos
conservadores George e Hofmannsthal, acusá-los de fuga da reali-
dade não corresponderia nem mesmo a uma meia-verdade. Em

212
PRISMAS

primeiro lugar, as obras de ambos se opõem à interioridade mística:


"Schwarmer aus Zwang weil euch fas feste drückt/ Sehner aus not
weil ihr euch nie entfahrt/ Bleibt in der trübe schuldlos die ihr
preist - / Ein schritt hinaus wird allers dasein lug!" [Sonhadores
por força porque o firme lhes pesa/ Nostálgicos por necessidade
porque não vos abandonam jamais/ Permaneçam inocentes na afli-
ção que tanto elogiam-/ Um passo apenas e toda a existência será
mentira!]. Nas Conversas sobre poesia de Hofmannsthal, que nada
mais são do que uma declaração de comprometimento com a lírica
de George, encontra-se a tentativa da elaboração de uma teoria
sobre o assunto: "Em busca de nós mesmos, não devemos mergu-
lhar em nossa interioridade: temos que nos buscar lá fora, no que
é exterior. Como o arco-íris sem substância, a nossa alma estende-se
sobre a inevitável queda de nossa existência. Não possuímos o nosso
próprio Ser: ele chega a nós a partir de fora, foge de nós por muito
tempo e volta a nós na forma de um sopro". A interioridade, na con-
cepção de Hofmannsthal, se desfaz da mesma maneira como o empi-
rocriticismo chega à negação do sujeito e a um segundo e ingênuo
realismo. Mas se o segredo dos simbolistas é menos o da interiori-
dade, e mais o do métier, então certamente não é possível atribuir a
eles, enquanto "formalistas", uma função técnico-progressiva asso-
ciada a conteúdos reacionários. Muitos progressistas transferiram o
grosseiro esquema positivista da: relação entre forma e conteúdo
para a arte, como se a linguagem artística fosse aquele sistema
estanque de signos, que não existe nem mesmo na ciência. Mesmo se
eles tivessem razão, não seria o caso de supor que toda a luz recairia
sobre a forma soberana e toda a escuridão sobre o conteúdo.
Seria falso louvar ou repreender em George e Hofmannsthal, e
também nos movimentos designados pelos nomes de simbolismo e
neo-romantismo, dos quais eles se originaram, o que eles já haviam
constatado por si mesmos: que preservaram o belo, enquanto os
naturalistas resignaram-se diante da devastação da vida na época
industrial. A renúncia ao belo cons~guiu conservar a própria idéia
do belo mais poderosamente do que a aparente conservação de uma
beleza decadente. Por outro lado, nada em George e Hofmannsthal
é tão efêmero como o belo celebrado por eles: o belo objeto. Este se
aproxima das artes decorativas, às quais George não negou a sua
aprovação. Percebe-se isso tanto no prefácio à segunda edição dos

213
THEODOR W. ADORNO

Hinos, onde ele aprova o "feliz desenvolvimento da pintura e da


decoração", quanto em uma carta a Hofmannsthal, não enviada, do
ano de 1896: "Percebe-se por toda a parte, em nossa Alemanha, o
anseio por uma arte superior, e isso depois de muitos anos nos
quais predominou um esforço puramente corporal ou científico.
Este anseio vai da pintura à música e à poesia, e começa lentamente a
atingir também a moda e a própria vida, passando pela decoração e
pela arquitetura". No caminho em direção à moda e à vida, a beleza
se confraterniza com a mesma feiúra contra a qual a beleza inútil
indicara o combate. A vida da comunidade idealizada por George
tem uma coloração decorativa. "Hoje tudo isso é mais fácil de
esquecer, já que os nossos esforços foram levados a um bom termo e
atrás de nós surge uma juventude que possui confiança, disciplina e
um ardente desejo de beleza." São estes os "seres grandes e nobres",
que desde Charcot e Monna Vanna se refugiaram na doença para
fugir de suas famílias. A depravação das artes decorativas atingiu os
objetos, e junto com eles também as pessoas: a arte decorativa é o
estigma da beleza emancipada. Ela sucumbe quando os novos mate-
riais tecnicamente disponíveis podem ser fabricados à vontade e
colocados nó mercado a um preço barato. George esteve bem perto
de perceber isto, como se vê no poema final das Peregrinações, uma
obra de transição para o Algabal. Ele evoca o ideal do belo na pará-
bola da fivela: "Ich wollte sie aus kühlem eisen/ Und wie ein glatter
fester streif/ Doch war im schacht auf allen gleisen/ So kein metall
zum gusse reif/ Nun aber soll sie also sein:/ Wie eine grosse fremde
dolde/ Geformt aus feurrotem golde/ Und reichem blitzenden
gestein" [Eu a queria de ferro frio/ Como uma tira firme e lisa/ Mas•
em todos os túneis dos trilhos/ Não havia metal pronto para a
fundição/ Então ela deve ser assim:/ Como um grande e estranho
guarda-chuva/ Formado de ouro rubro/ E de ricas e brilhantes
pedras preciosas]. Se "não havia metal pronto para a fundição" não
havia nas condições da vida material a possibilidade objetiva para o
belo, que "como um grande e estranho guarda-chuva" se abre qui-
mericamente na negação da vida material, a qual por sua vez assi-
mila em seguida o quimérico através da imitação. A fivela simples
produzida em ferro barato pelos comerciantes artesanais representa
alegoricamente aquela fivela de ouro que precisou ser fundida
porque faltou ferro. A correspondência não deixa nenhuma dúvida

214
PRISMAS

sobre o caráter quimérico do material escolhido. Este emerge até


mesmo de maquinações econômicas. O pathos do bibliófilo George
inventou uma letra impressa que imita sua letra manuscrita: "Envio
novas provas da encadernação, e também da letra na qual o livro
será impresso (uma letra própria, em cuja melhoria trabalho há tem-
pos). Acredito que vai agradar ao senhor. O senhor perceberá que
ela se assemelha a minha escrita: pelo menos é uma boa tentativa de
livrar-se das antigas, já que todos os modernos desenhistas de letras
apenas enfeitaram as existentes com alguns novos arabescos". A fal-
sidade artesanal dos produtos massificados pela técnica, que se
apresenta como uma coisa original, nasce da necessidade de um
evento que não dispõe de um ideal objetivo e obrigatório do belo,
mas apenas de um obstinado programa: "livrar-se do antigo". Mas a
unicidade ilusória é planejada ao mesmo tempo em função do valor
material: "O primeiro objetivo de nosso Círculo (ampliado por
nossos assinantes no comércio) é oferecer livros realmente bonitos
e acessíveis, aos quais também para o amador não deve faltar algo
essencial: a raridade. O leitor que nos procura depois e nos é estra-
nho deve então pagar um preço mais elevado ... Não existe outro
caminho senão a subscrição". O fato de que o estímulo escolhido
possa ser expressado em termos de valores e que o individual pos-
sa ser comparado, este caráter apstrato de malaquita e alabastro,
faz com que o raro seja fungível. O belo simbólico é duplamente
deformado: por um apego demasiado à m:1terialidade e por sua
ubiqüidade alegórica. No mercado decorai.ivo, tudo pode signi-
ficar tudo. Quanto menos conhecidos os materiais, tanto mais
ilimitadas as possibilidades de seu uso. Páginas inteiras em Oscar
Wilde poderiam servir como catálogo de joalheria, e inúmeros
intérieurs fin-du-siecle assemelham-se a lojas de antiguidades.
e
George Hofmannsthal demonstram ainda um surpreendente mau
gosto em assuntos das artes plásticas de sua época. Entre os pintores
elogiados na correspondência dest~cam-se Burne-Jones, Puvis de
Chavannes, Klinger, Stuck e o inominável Melchior Lechter. Não é
feifa nenhuma menção aos representantes da grande pintura fran-
cesa da época 24 • Se George - dentro de um contexto totalmente
diferente - deplora que "os nossos melhores espíritos ... não são
mais capazes de distinguir entre um autor de borrões coloridos e
um pintor", esta colocação não é tão diferente do juízo guilhermino

215
THEODOR W. ADORNO

sobre o impressionismo e a arte dos toilettes. As pinturas nas quais


os verdadeiros impulsos do poema sobre o vento da primavera ou
das paisagens glaciais do Ano da alma se realizam são vistas como
tabus. O que ele aprova são as representações fiéis de figuras ideais,
seres bonitos de acordo com o padrão erótico da época, que assu-
mem elevados significados sem que a peinture autônoma atrapalhe a
intenção alegórica. O que se deixa de lado é justamente a lei formal
à qual a própria poesia é submetida.
Mais tarde, George se subtrai a esta lei da forma tão mais per-
feitamente quanto mais submete os materiais a interpretações, a fim
de livrar-se da objeção de esteticismo. Em sua juventude, George
era tão indiferente ao significado quanto o Rimbaud das "Voyelles":
"O senhor não precisa lastimar um dos erros de impressão: 'sangen'
[cantam] 'em vez de 'saugen' [sugam], pois ele não atrapalha em
nada. Até combina bem". O verdadeiro simbolismo é um locus a
non lucendo. No Diálogo com George escrito por Hofmannsthal, o
aluno opina sobre a linguagem: "Ela é cheia de imagens e símbolos,
substitui uma coisa pela outra". E Hofmannsthal o reprime com as
seguintes palavras: "Que idéia horrível! Estás falando sério? Nunca
a poesia substitui uma coisa por outra, pois é justamente a poesia
que se esforça febrilmente em instaurar a própria coisa, com uma
energia inteiramente diversa da surda linguagem cotidiana, e com
uma força mágica totalmente diferente da fraca terminologia da
ciência. Se a poesia faz alguma coisa, é exatamente isto: extrai avida-
mente de cada formação do mundo e do sonho o que ela possui de
mais próprio e essencial". E diante da objeção "Não há símbolos?",
ele responde: "Muito pelo contrário, não há nada além de símbolos,
não há outra coisa". O que se deseja é fazer explodir, com o material
desprovido de intenção, a realidade petrificada pelos significados
tradicionais: refugiar-se em conteúdos inéditos, para que estes não
sejam absorvidos por nenhuma comunicação costumeira no âmbi-
to do existente. Ao ir além da simples matéria disponível, esta poe-
sia se compromete por sua elaboração interpretativa: é Melchior
Lechter quem triunfa com o anjo do "Prelúdio". Mas o culpado de
tudo isso não é o ofuscamento específico de George. O que ele espe-
rava das matérias puras, estas não podiam lhe garantir. Como relí-
quias abstratas do mundo dos objetos, e também como "vivência"
do sujeito, elas pertencem àquele contexto do qual se acreditava

216
PRISMAS

tê-las afastado. Ironicamente, é Hofmannsthal quem fica com a


razão: o não-simbólico transforma-se necessariamente em simbolis-
mo universal. Nisto não há diferença alguma entre os sons puros de
Rimbaud e os materiais nobres dos poetas posteriores. É certo que
se pode chamar o jovem e estético George de realista, e o George
realista e tardio de esteticamente ruim, mas nem por isso o primeiro
anuncia o outro. As jóias preciosas que os olhos cegos da beleza
enxergam já contêm em si a ideologia do "Jovem líder da Primeira
Guerra Mundial", que oculta os negócios, de cuja maldição a magia
deveria tê-lo libertado. As jóias adquirem o seu valor pelo exceden-
te de trabalho. O segredo da matéria desprovida de intenção é o
dinheiro. Se Baudelaire é superior a todos os seus sucessores, é
porque em nenhuma passagem considerou aquela beleza como algo
positivo e imediato, mas como uma beleza irreparavelmente per-
dida, ou em situação de extrema negação. Satã, o deus absconditus
traído pelo destino, é para ele "le plus savant e le plus beau des
anges". Baudelaire não se deixa enganar pelo róseo anjo da bela
vida, de cuja imagem fiel até mesmo em George a beleza se apro-
xima. Através desta George se aproxima dos copistas realistas.
O que lhe atraiu para esta beleza não foi a vontade poética da
forma, mas um conteúdo. Como um shibolet, o objeto é brandido
diante da ruína ameaçadora, ao mesmo tempo que se invoca a sua
beleza. A correspondência com· Hofmannsthal traz um exemplo
notável disto. Trata-se da publicação da Morte de Ticiano nas
Blatter für die Kunst: "Completei os sinais de pontuação que ha-
viam sido involuntariamente omitidos ... depois, de próprio punho
(havia tão pouco tempo), a passagem sublinhada na nota 'Já que
Ticiano morreu de peste aos noventa e nove anos de idade'. Com
isso o senhor introduziu, sem dúvida involuntariamente, um ar per-
nicioso ha sua obra". A mera menção da peste na obra de arte pode-
ria prejudicá-la, e não apenas a ela. O simbolismo é dominado pela
magia da beleza torturada. Hofmannsthal procura no Diálogo com
George conceber o símbolo como rÍtual de sacrifício: "Sabes o que é
um símbolo? ... Queres imaginar como surgiu o sacrifício? ... Parece
que vejo o primeiro a oferecer um sacrifício. Ele sentiu que os deu-
ses o odiavam ... Na dupla escuridão da sua pequena cabana e de seu
coração angustiado, pegou uma faca afiada e curva, e se dispôs a
fazer correr o sangue de sua garganta para o prazer da divindade

217
THEODOR W. ADORNO

horrível e invisível. E então, embriagada de medo, de selvageria e da


proximidade da morte, sua mão mais uma vez remexeu no tosão
quente e lanoso do carneiro. E este animal, esta vida cheia de sangue
que respirava no escuro, tão próximo e tão familiar, recebeu de
repente uma facada na garganta. O sangue quente escorreu, ao mes-
mo tempo, no velo do animal e no peito e nos braços do homem: e
por um instante ele deve ter pensado que se tratava de seu próprio
sangue; por um instante, quando um grito prazeroso de triunfo se
soltou de sua garganta e se misturou com o grunhido do animal,
ele deve ter sentido o prazer de uma existência mais elevada, com a
primeira convulsão da morte. Ele mesmo deve ter morrido, por
um instante, no próprio animal, pois só assim este poderia morrer
em seu lugar... O animal morreu a morte simbólica do sacrifício.
Mas tudo· se baseava no fato de que ele havia morrido no animal,
por um instante ... Esta é a raiz de toda poesia". - "Ele morreu no
animal. E nós nos dissolvemos nos símbolos. É esta a sua
opinião?" - "~em dúvida, na medida em que eles têm o poder de
nos enfeitiçar." Essa teoria sanguinolenta do símbolo, que contém
em si as tenebrosas possibilidades políticas do neo-romantismo,
diz algo sob~e seus próprios motivos. O medo força o poeta a
adorar potências vitais hostis: assim Hofmannsthal justifica a ope-
ração simbólica. Em nome da beleza, ele se consagra ao poderoso
mundo das coisas como vítima. Mas se o homem primitivo, ao
qual Hofmannsthal atribui esta ideologia, de fato não morreu, e sim
matou o animal, o sacrifício descompromissado do homem moder-
no deve ser entendido em um sentido ainda mais dramático. Ele
quer salvar-se abrindo mão de si mesmo e se transformando na voz
das coisas. O distanciamento da arte em relação à vida, exigido por
George e Hofmannsthal para elevar a arte, reverte-se na proximi-
dade ilimitada e submissa à vida. Na verdade, o simbolismo não
busca submeter todos os elementos materiais, transformando-os em
símbolo de interioridade. É justamente essa possibilidade que leva
ao desespero e proclama que o absurdo do alienado mundo de coi-
sas, em sua intransparência para o sujeito, concederia a consagra-
ção e o sentido a este sujeito, se ele se dissolvesse no mundo das
coisas. A subjetividade não se entende mais como a alma do cosmo.
Ela se entrega ao maravilhoso, que se realizaria se as meras matérias
destituídas de sentido reanimassem a subjetividade em processo de

218
PRISMAS

dissolução. Em vez de as coisas se apresentarem como símbolos da


subjetividade, esta se apresenta como símbolo das coisas, pronta a
petrificar-se em coisa, na qual de todo modo já foi transformada
pela sociedade. Desta forma, precisamente a palavra "coisa"
tornou-se fórmula sagrada, como já havia constatado com insus-
peita familiaridade o jovem Rilke. Um tal medo mobiliza expe-
riências sobre a sociedade inacessíveis ao olhar imediato. Elas se
referem à composição do indivíduo. Antigamente, a autonomia
exigia que a exterioridade inviolável do objeto fosse ultrapassada
pela sua inclusão na própria vontade. O concorrente econômico
sobrevivia na medida em que antecipava as oscilações do mercado,
mesmo se não pudesse fazer nada a respeito. O poeta do moderno
deixa-se submeter pelo poder das coisas como o outsider sucumbe
ao cartel. Ambos ganham uma aparência de segurança: mas o poeta
ganha também o pressentimento de seu contrário. As "cifras que
a linguagem não consegue dissolver" - aquelas que se reduzem à
significação de seus objetos - tornam-se o Mené Tequél para
Hofmannsthal. A alienação da arte em relação à vida tem um duplo
sentido. Ela não implica apenas a recusa ao status quo, em contraste
com os naturalistas, sempre tentados a aceitar, como fatos da vida,
as atrocidades observadas por penetrantes e ternos olhos de artista.
George e Hofmannsthal não se acanalharam menos com a ordem
social estabelecida do que com u~a ordem social alienada. A alie-
nação organizada revela tudo o que pode ser percebido da vida
sem o uso de teorias, pois a essência da vida é a própria alienação.
Os outros expõem a sociedade capitalista mas deixam os homens
falarem ficcionalmente como se ainda fosse possível falarem entre
si. As ficções estéticas exprimem o verdadeiro monólogo, que o dis-
curso comunicativo apenas oculta. Os outros narram aconte-
cimentos como se o capitalismo ainda se deixasse narrar. Os
neo-românticos têm sempre a última palavra 25 . Os outros servem-
se da psicologia como uma espécie de cola que junta o interior ao
exterior alienado, uma psicologia q~e não está à altura das tendên-
cias sociais do século, enquanto ao mesmo tempo, conforme Leo
Lowenthal, fica atrás das tendências científicas desenvolvidas desde
o fim do século XIX 26 • No lugar da psicologia surge em seus opo-
nentes estéticos a imagem indissolúvel que - mesmo sem a devida
transparência - designa as forças que conduzem à catástrofe. É a

219
THEODOR W. ADORNO

configuração daquilo de que a psicologia dá apenas referências deri-


vadas e dispersas, da mesma maneira como também os indivíduos
se apresentam apenas como derivados da realidade histórica. As
"Pétites Vieilles" de Baudelaire, o poema "O criminoso" de George
ou o "Vocês se aproximaram do fogo" são obras que chegam mais
perto da percepção da lei do desmoronamento do que, por exem-
plo, a descrição contínua e infatigável de favelas e minas. Se as bada-
ladas da hora histórica ecoam nestas descrições, aqueles poemas
percebem o que isso significa. A forma nasce desse saber, e não de
uma prece não-atendida dirigida à beleza: nasce, portanto, da tei-
mosia. O esforço apaixonado pela expressão lingüística que afasta
a banalidade é a tentativa talvez desesperada de resgatar a experiên-
cia dos braços de seu inimigo mais mortal na sociedade burguesa
tardia: o dquecimento. O banal é destinado ao esquecimento. O que
adquire forma vale como historiografia secreta. Por isso a cegueira
diante do impressionismo: desconhece-se que nenhum poder do
mundo consegue resistir ao efémero sem ser ele mesmo um poder
efémero. A arrogância contra a sociedade é uma arrogância contra a
linguagem de~sa sociedade 27 . Os outros compartilham a linguagem
dos homens. São "sociais". Os estetas antecipam-se a eles na medi-
da em que são a-sociais 28 • Suas obras se medem pelo conhecimento
de que a linguagem dos homens é a de sua humilhação. Roubar-lhes
a linguagem, negar-lhes a comunicação, é melhor do que qualquer
tipo de adaptação. O burguês transfigura o existente em natureza
e exige de seu semelhante que fale com "naturalidade". Esta norma
é derrubada pela afetação estética. O maneirista fala como se fosse o
seu próprio ídolo, tornando-se assim um alvo fácil. Todos podem ·
provar que ele não é diferente de ninguém. Ele representa, contudo,
a utopia de não ser ele mesmo. É verdade que os outros criticam a
sociedade. Mas permanecem tão fiéis a si mesmos quanto a sua
idéia de felicidade é a de uma vida sadia, bem-estabelecida e orga-
nizada racionalmente. A utopia do esteticismo rescinde o contrato
social da felicidade. Ela vive da sociedade antagônica, de um mundo
"ou l'action n'est pas la soeur du rêve" 28. Discípulos moderados
de Baudelaire, George e Hofmannsthal procuraram a felicidade
onde ela foi proscrita. Confrontado com o proscrito, o permitido
se reduz a nada. O não-natural deveria restabelecer a multiplici-
dade do instinto, deformada pelo primado da procriação; e o jogo

220
PRISMAS

irresponsável deveria assumir a seriedade nefasta de quem quer que


seja. Ambos abalam com um barulho silencioso os muros da iden-
tidade pessoal, a partir dos quais se forma a cela mais íntima da
prisão do status quo. Seja o que for que a pessoa possa colocar em
contraste com a sociedade dominante, subordina-se a ela como
espelho do indivíduo, da mesma maneira como o anjo de George se
assemelha ao próprio poeta, e como o amante da Stern des Bundes
decifra na amada "a própria carne". O que sobrevive é a negação
determinada.

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