Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
MICHEL FOUCAULT
CURITIBA
2004
JUNIO LUIZ CAMARGO
MICHEL FOUCAULT
CURITIBA
2004
“Aos meus pais, Osmair Antônio Camargo e Ana
Vicente da Silva Camargo que me mostraram o
caminho da vontade, coragem, honestidade, força
e fé.E às minhas irmãs, Juliane e Jacqueline,
sinceras amigas.
AGRADECIMENTOS
A quem objetivamente devo agradecer? Não queria eu, de forma alguma ter
agradecer “aos vermes que irão corroer minha carne”, por outro lado, seria muito
mesquinho de minha parte, voltar-se para mim com singular mérito, ora, não tenho
direito algum sobre isso. A verdade é que tenho muito a agradecer... Não
simplesmente por realizar esta monografia, mas por perceber que qualquer das
reflexões feitas durante estes anos – “eu” – não estava sozinho. De fato, não sou
nenhum autodidata, a filosofia para mim, se revelou nos rostos das pessoas, e por
isso, agradeço aos meus amigos e professores e que juntos, possamos dizer assim:
mesmo que esta pareça estar longe de nossas mãos... mesmo assim... buscamos a
Verdade.
Obrigado.
“A Loucura é algo raro em indivíduos – mas
em grupos, partidos, povos e
épocas é a norma.”
Friederich Nietzsche
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7
CAPÍTULO I .................................................................................................................. 14
2 UM OLHAR SOBRE A “HISTÓRIA DA LOUCURA” NA IDADE CLÁSSICA ............................ 14
2.1 O POR QUÊ DE UM ESTUDO DA LOUCURA EM MICHEL FOUCAULT ............................ 14
CAPÍTULO II ................................................................................................................. 29
3 OS DISCURSOS SOBRE A LOUCURA............................................................................ 29
3.1 EM BUSCA DE UM DOMÍNIO ...................................................................................... 29
3.2 O PODER PSIQUIÁTRICO .......................................................................................... 35
5 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 59
6 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 61
7 ANEXO ..................................................................................................................... 62
1 INTRODUÇÃO
questão do “insano”. Durante a Idade Média, tal problema era visto simplesmente
como um erro, uma falha da razão. Neste período, o maior enfoque de exclusão seria
dado, segundo Foucault, sobre o leproso (FOUCAULT, 1972, p. 3). Porém, com o
acaba se tornando um sinal de contradição nestes meios, de modo que já não será
tratado apenas como um mero erro, mas, também, como uma ameaça à razão. No
discurso de forma que o louco não seja mais um problema da sociedade, mas sim,
Ora, analisando esta situação, queremos mostrar nesta pesquisa, que estes
tranqüilidade.
poder, isolamento e punição, no intuito de mostrar que tanto o saber médico, quanto
que ela realmente é. A loucura, entretanto, será vista pelo mundo psiquiátrico como a
ameaça de uma doença à sociedade. E como toda doença, deve-se fazer existir uma
cura.
Para tanto, como ilustração, podemos observar que no final da Idade Média
loucura seria tratada sobretudo na Idade Moderna, com exclusão: os loucos seriam
colocados em navios, Stultifera Navis (A nau dos loucos), e lançados ao mar. Porém,
após o século XVIII, quando a loucura deixa de ser apenas um erro ou ilusão para
tornar-se uma ameaça, surge o internamento, uma ilha dentro da própria civilização
cuja maior preocupação não seria talvez com a perturbação da mente do louco, mas
sim, com a perturbação que este poderia causar com o seu modo de agir. No entanto,
temerá esta figura alienada e a sua ameaça racional. Restará se defender, tratando
loucura com um novo modo de analisar o Insano, ou seja, não será por uma via
médica especulativa e neurológica e nem mesmo por uma via psicológica, mas sim,
por uma ótica, da qual, busca-se a raiz da patologia mental na história das relações
humanas.
mantendo contatos com os internos (LOGOS, 1990, p. 693). Mesmo assim, procurou
será uma descrição sobre uma história da loucura, baseada em teorias relativas ao
tratamento dos doentes mentais, mas a partir das práticas de isolamento: práticas de
discursos que surgirá esta sina de isolamento e punição da loucura. E desta forma,
em três capítulos.
No primeiro capítulo temos como título geral “Um olhar sobre a história da
sociedade já dita como Moderna e o seu olhar experencial sobre o louco. Trata-se de
uma análise sobre a loucura que não se tomará um rumo de prová-la cientificamente,
reclusão. Assim sendo, este capítulo será dedicado aos questionamentos das
procuraremos investigar o modo pelo qual se deu o domínio sobre a loucura. Neste
como se deu a afirmação do louco como doente e suas classificações, bem como a
isolamento. “A casa dos loucos” é o que procuraremos mostrar num terceiro capítulo.
realizar uma análise completa da obra, mas sim, das categorias de análise para a
compreensão dos discursos sobre a loucura. Assim, utilizamos também outros livros
“Porém eu, que, ainda que pareço pai, não sou contudo senão padrasto de D. Quixote, não
quero deixar-me ir com a corrente do uso, nem pedir-te, quase com lágrimas nos olhos, como por aí
fazem muitos, que tu, leitor caríssimo, me perdoes ou desculpes as faltas que encontrares e
descobrires neste meu filho; e porque não és seu parente nem seu amigo, e tens a tua alma no teu
corpo, e a tua liberdade de julgar muito à larga e a teu gosto e estás em tua casa, onde és senhor dela
como el rei das suas alcavalas...”
Miguel de Cervantes
compor uma de suas mais conhecidas obras intitulada “A Nau dos Loucos”. Uma
Renascença onde se enfrenta a dura condição enquanto louco ao ser lançado numa
Esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os
loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades
escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos
distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos.
15
exclusão pela simples indiferença da loucura, mas sim, porque esta já na Idade
Conveniente é, para o homem moderno, não enxergar os tolos e alienados, uma vez
que, estes destoavam seus povoados, contribuindo assim, para a danação de suas
cidades:
indiretamente o mercado de dementes. Ora, dizer de uma viagem sem rumo não
16
implica em dizer que não terá seu fim. É fato de que os loucos expulsos de suas
cidades não paravam à beira do caminho. Os barcos, deles carregados, iriam atracar
em outras cidades onde se diria: “malditos sejam os marinheiros que trouxeram este
simples defeito, do perigo constante identificado na idéia do mal. Desta forma, surge
sua denúncia expressa pela arte. A literatura ocidental traz consigo todo o pensar
humana e visa sua aniquilação como espetáculo. A loucura, por sua vez, por meio de
sua ilusão, demonstra sua entidade reflexa nos homens, da forma mais presente de
seu espírito: “ela reina sobre tudo o que há de mau no homem. Mas não reina
também, indiretamente, sobre todo o bem que ele possa fazer?“ (FOUCAULT, 1972,
p. 23). Desta forma, ela ocupa o primeiro lugar do agir humano, sendo mãe de todos
satírica da loucura feita por Erasmo quanto à própria sociedade e seus sistemas de
governos: “tantas formas de loucura nelas abundam, e são tantas e novas a nascer
todo dia, que mil Demócritos não seriam suficientes para zombar delas.”
reconhecimento à razão. Não que esta se confunda com o desatino, mas que,
realidade humana. Uma realidade cuja preocupação ética volta-se num tempo
clássico com novas experiências do espírito da loucura: “As figuras da visão cósmica
Brueghel, Thierry Bouts e Dürer. Enquanto que numa representação crítica mostra-
sombrio, burlesco e natural no espírito humano. Razão pela qual, seria justificável o
defeituoso no homem.
Com a passagem dos séculos XVI e XVII, a loucura aos poucos se encontra
com uma nova figura de si: a ilusão. Segundo Foucault (1972, p. 38), “o amor
morte, não tem outra saída a não ser a demência”. E será assim que, expresso pelos
A ilusão da loucura torna-se névoa que aos poucos ofusca a razão. Neste
séculos, perde aos poucos sua força dando espaço assim ao seu leve desprezo e
escandaliza, por vezes, uma sociedade que agora chegara a encontrar o caminho da
clássica a loucura como absurdo, o erro ao lado do sonho, assim como, o mundo
Como poderia eu negar que estas mãos e este corpo são meus, a menos
que me compare com alguns insanos, cujo cérebro é tão perturbado e
ofuscado pelos negros vapores da bílis, que eles asseguram
constantemente serem reis quando na verdade são muito pobres, que estão
vestidos de ouro e púrpura quando estão completamente nus, que imaginam
serem bilhas ou ter um corpo de vidro? (DESCARTES apud FOUCAULT,
1972, p. 45).
meio ao grupo:
Nesta dinâmica social, faz-se as exigências concretas dos asilos, prisões, hospícios
discriminação dos a-sociais retomam seus famosos ciclos na história revelados pelas
através dos anos como discursos defensivos, para o bem e a segurança do grupo,
Fator pelo qual está incluso num sistema correcional onde desta forma se constrói o
sociedade. Assim vemos a disciplina descrita por Foucault no livro “Vigiar e Punir”
(1987, p. 127):
Era então, em vista destes corpos dóceis que na história parece identificar-se
exemplo disto serão os doentes venéreos que, possuindo uma doença causada por
preciso pagar sua dívida para com a moral pública, e deve-se estar preparado, nas
que atravessam o mundo moral. Por este caminho também andará a medicina com
sua percepção comandada por uma intuição ética, que por mais tarde, prolongar-se-
á na formação dos primeiros hospícios do século XIX: “às vezes é bom abafar
(PINEL apud FOUCAULT, p. 88). No entanto, estando ainda num contexto de século
XVII, a preocupação maior com aqueles que desrespeitam a ordem social será de
22
das blasfêmias, e da magia por momentos satânica e por outros ilusória e insana.
que o espírito humano possa chegar, em virtudes, ao seu reto agir, de forma que no
nos perigos sutis da carne. Um amor que ultrapassa as barreiras da vida humana e
se entrega aos mais primitivos instintos do homem. É neste olhar que a psicanálise
suas indulgências sob a via de severos castigos. A sodomia tinha sua perseguição
sexualidade humana:
assombra estes desvios. E é por estes desvios que ela assume a conduta de
1
Pronunciamento público, assistido pelos “Senhores que constituíam o conselho de direção do Châtelet de Paris’’
em 24 de março de 1726.
24
justificativas do internamento.
interditos religiosos. Eram assim condenados por severas penas: “golilha, pelourinho,
incisão nos lábios com ferro em brasa, seguida pela ablação da língua e enfim, em
mas, especialmente com a Contra Reforma (que após as grandes lutas religiosas da
mesmo a desaparecer não por uma perda do rigor de severidade, mas porque entra-
isso, vê-se liberta de seus perigos fora das leis e entregue à clausura dos hospitais.
Perigo este, que possuirá em seu campo toda uma lista de sacrilégios que os
suicídio.
em caso de seu fracasso, a própria morte: “Aquele que empregou mãos violentas
25
sobre si próprio e tentou matar-se não deve evitar a morte violenta que pretendeu
profanação. A pena de morte que lhe era comedida, agora abre espaço para outras
punições, entre elas, a coação, onde se impede de o suicida de realizar tal ato: “em
p. 95). Não perdendo, entretanto, sua fúria contra si, o suicídio terá seus métodos
um buraco feito na parte superior para a cabeça, e à qual as mãos estão amarradas,
abrange assim não apenas todas as formas excluídas da sexualidade como também
todas essas violências contra o sagrado”. (FOUCAULT, 1972, p. 94). Assim, certifica-
se cada vez mais a Insanidade como a excelência nas renegações da conduta moral,
extremo e impiedoso par aqueles que praticarem estes rituais maléficos e sombrios:
religioso da feitiçaria e sua evolução [...]” (FOUCAULT, 1972, p. 95). Também pelo
as durante o século XVII perde-se no campo religioso e ganha-se o caráter moral das
à sociedade com suas poções e venenos. Porém, as condenações terão, por fim,
consciência social: “encarada deste modo, a mágica vê-se esvaziada de toda sua
eficácia sacrílega: ela não é mais profana, ilude”. (FOUCAULT, 1972, p. 96).
proteção destas condenações, uma vez que estas não se acabarão, nem perderão o
ela “cega os que não tem o espírito reto nem uma vontade firme”. (FOUCAULT,
27
1972, p. 97). Não há poderes transcendentais na magia, mas sim, o erro que se
encontra também presente nos bobos e ingênuos. Ela em si não é crime, mesmo
espaço que a condena como ilusão e que a transforma em perigo. Desta forma, a
Encara-se, então, como raiz destas desordens, uma força culposa que há
tempos já era vista como presente no agir humano e que agora toma-se em amplas
quem ela realmente é, e por que ela habita sobre o homem de forma tão obscura e
procura de sua domesticação permanecerá ainda nos séculos XVII e XVIII como
coação de suas atividades, de forma que o internamento nestas épocas, terá seu
corpo dócil e imprimir-lhe valores morais, parecia ainda objetivos distantes de serem
elemento se mantém certo: a loucura nestes períodos, torna-se livre dentro dos
entanto, sua busca não estará na proteção de si, mas na proteção dos outros. Mas,
certos loucos, uma vez que já não se valha da quebra de leis, pois estes se tornaram
isentos de seu cumprimento e de suas penas? Quem deverá ser internado e quem
exclusão que se tem desta, mas também, os olhares que identificaram quem é o
louco. Os olhares que apontam onde estará o delírio, a fúria, o ócio e a ilusão, mas
que não foram capazes de captar o seu verdadeiro espírito. Uma consciência que
vez que a loucura continuará misteriosa e sombria. Desta forma, a ela apresenta-se,
“Não espereis de mim nem definição nem divisão de retórico. Aqui, não caberia tal coisa.
Definir-me seria impor-me limites que a minha força desconhece. Dividir-me seria distinguir os
diferentes cultos que me prestam, e eu sou adorada igualmente em toda a Terra.”
Erasmo de Roterdã
situação que lhe força a ficar distinto, ou talvez, muito mais que isto: uma situação
que o exclui. Seria um olhar que ao mesmo tempo em que o vê, também o julga.
Entretanto, é somente devido à experiência (a este contato com o louco) que será
momentos. A simples exclusão traria apenas o reflexo de um poder social, mas não o
possível a busca de sua conquista que tem por base a mudança do cenário do delírio
uma presença constante e disforme, pautada por reações como a literatura e arte,
compreende, uma vez que se faça reflexão da loucura sob suas idéias. Neste
sentido, o filósofo Gilles Deleuze põe a questão “o que seria o poder para Foucault”
dominantes mas também aos dominados. Assim, não torna-se puramente único e
seus instrumentais, e como diria Deleuze (1991, p. 79): “não nos perguntamos ‘o que
é o poder? E de onde vem?’ mas – como se exerce?”. Ou seja, fazer uma análise do
mirar em seus interditos, seus truques e mistérios, e perceber aquilo que poucos
enxergam, escutam e sentem. Conta-se então, com uma raiz do poder nascida não
apenas de jogos e interesses, mas também, de olhares, falas e contatos muito mais
Desde a Alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular
como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e
não seja acolhida não tendo verdade nem importância, não podendo
testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato [...]
Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas
eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas
nem escutadas. (FOUCAULT, 1996, p. 10–11).
desejos:
32
Assim, efetua-se não apenas os jogos abertos de poder, mas também, trata-
morais e, principalmente, racionais. Será o privilégio de estar são, que dará força ao
apropria em mostrar, ou seja, não será (como já havemos dito anteriormente) uma
história crítica da idéia de loucura, onde a própria loucura se encontra nas mãos de
pressupostos culturais:
2
Neste mesmo aspecto os autores também prosseguem com as palavras de Roudinesco onde: “... a loucura não é
um fato de natureza, mas de cultura, e sua história é a das culturas que a dizem loucura e a perseguem. Da mesma
forma, a ciência médica só intervém como uma das formas históricas da relação da loucura com a razão.”
33
nobre ferramenta que se pôde fazer valer da experiência do louco para as suas
loucura, pois esta é uma preocupação que nascerá após uma longa experiência do
abertura para o discurso científico que traz consigo mesmo a noção de que “nem
toma para si o que de fato seria realmente concreto, constatado, científico. Um novo
quais estão regrado aos seus procedimentos que aos poucos tornaram-se
que Foucault denomina de saber – poder, onde também se aplica os diversos outros
tipos de dispositivos:
validade científica:
35
Neste sentido, podemos observar que, tanto o poder médico quanto o poder
Assim, neste domínio do discurso, a psiquiatria partirá para as suas mais constantes
médico do asilo será capaz de dizer a verdade do doente e submetê-lo aos tais
procedimentos.
loucura outorgava poderes para a razão, agora uma nova formação aos poucos se
enquadra e cada vez mais vai se afirmando em seu poder sobre o louco. “Aos
que se atribuía aos mais visíveis.” (FOUCAULT,1972, p. 119). Assim, era a falta da
prática médica que nos permite ver o instinto social em seu modo infalível, como
36
melhor, o louco já havendo revelado há tempos sua separação entre razão e loucura,
se aproximava cada vez mais da noção de animalidade. Assim, esta visão de uma
não cessaram até mesmo no século XIX: “em 1815, ainda, a acreditar num relatório
Desta forma, a loucura desdobra-se não apenas sobre os risos de uma platéia
entretida com a fúria ou atitudes bizarras dos loucos, mas também, de sua cogitação
e a rápida adaptação dos asilos para jaulas de zoológicos: “No hospital de Nantes, o
1972, p. 150). Assim, era a comparação do louco em sua fúria. Entretanto, Foucault
Pela rapacidade é um lobo, pela sutileza um leão, pela fraude e engodo uma
raposa, pela hipocrisia um macaco, pela inveja um urso, pela vingança um
tigre, pela maledicência, pelas blasfêmias e detrações um cão, uma
serpente que vive de terra pela avareza, camaleão pela inconstância,
pantera pela heresia, basilisco pela lascívia dos olhos, dragão que sempre
3
arde de sede pela bebedeira, um porco pela luxúria.
3
Este trecho retirado da obra Lê Fouet des Paillards (Rouen, 1623, p.175), encontra-se na nota nº36 desta página
de modo a fazer um interessante reforço à idéia de que a loucura igualmente a outros vícios, no classicismo,
possui o relacionamento imediato do homem com sua animalidade.
37
período Clássico. Também é mister salientar que surgem controvérsias acerca desta
Paula no século XVII, a proteção e a doação pelo irmão internado porque a “norma é,
aqui, Nosso Senhor, que quis ficar rodeado por lunáticos, endemoniados, loucos,
Certamente que ainda na razão clássica, o louco possui uma sentença e uma
visão ao mesmo tempo paradoxal: mesmo encontrando-se ora animal, ora humano,
por vezes, é sempre perdoado, porém, isolado. Deste modo, Foucault mostra de
Eis então, que tempos mais tarde, surge a psiquiatria no mundo clássico, no
intuito de rejeitar, com todas as suas forças, as antigas práticas conceituais sobre o
entanto, “contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela
Parece-nos então, que um saber, ainda que se preocupe em encontrar seu critério
38
puramente científico, estará preso em seus escândalos morais por parte da figura um
sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”. (FOUCAULT,
disciplinar, mas não perde suas discussões e debates que sempre retornam no curso
figura inferior à razão, também o julga como uma ameaça à ordem, atribuindo assim,
sem recorrência ao saber que: “esse aí é um louco”. Assim, neste olhar substancial,
o louco, como o reconhecemos e como podemos apontá-lo sem errar. Deste modo,
percebe-se que por mais que se procure defini-la, a loucura aparece silenciosa
39
quanto sua forma, porém, não escapa aos olhos de quem a vê. Talvez então, a
alteridade do louco demonstra melhor resposta para quem ele é e como ele é. No
entanto, este reconhecimento aos poucos irá se fechando. Não basta porém,
somente apontar quem é o louco, mas também demonstrar a própria sanidade por
parte de quem o julga. Podemos ver assim estas idéias expressas nas palavras
Sendo assim, o louco já não pode nem mais dizer que é louco, muito menos
história: o são. Este, que possui a verdade, torna-se sábio, que por sua vez, torna-se
num modo de classificação de espécie, torná-la possível à medicina e, por sua vez, a
(FOUCAULT,1972, p. 193-195).
O olhar psiquiátrico torna-se desta forma responsável até então por dividir a
De fato uma construção que já não está nas mãos de uma simples moral ou dos
olhos daqueles que se dizem são, mas, agora, pertencerá à uma ciência
Para além de uma psiquiatria que se estabelece sobre o louco, vemos seus
ter medo e confiar numa ciência que resolverá este problema antropológico de
científica. Ora, tomemos como exemplo atual a discussão que hoje se faz acerca dos
métodos da homeoterapia4 que não se utiliza das verdades conhecidas pela ciência
mas que possui resultados testemunhados – a ciência em seu passado não agia de
alquímicos.
de que a loucura seria causada por supostos vapores e calores presentes no corpo e
4
Diferentemente dos métodos utilizados pela medicina tradicional que vê o homem como uma máquina, a
homeopatia se preocupa em tê-lo como um todo de energias: “A homeopatia foi assim desfigurada e pode-se
compreender por que, em conseqüência, não foi compreendida por pensadores e cientistas. Para que ela seja
reconhecida, será preciso primeiramente descobrir a sua verdadeira face, a de uma medicina holística energética.
Cf. VITHOULKAS, 1985, p. 108.
42
5
Black analisou os alienados de Benthleem no período de 1772 a 1787.
43
um sistema terapêutico para a loucura; uma vez que esta estará sob sua vigilância e
Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos. Excedeu-
se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os
cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista fez curas pasmosas, que exitaram a mais
viva admiração em Itaguaí.
Machado de Assis
desprovido de sanidade mental e deve possuir um lugar especial que não é mais o
louco possa manifestar livremente sua loucura, mas que agora possuirá dentro de
seus sintomas a esperança e a necessidade de sua cura, pois o hospital, agora nos
médico:
louco quanto ao seu delírio, “a volta às afeições morais dentro de seus justos limites”.
(ESQUIROL apud FOUCAULT, 1979, p. 119). Desta forma constrói-se a partir deste
médico. Neste sentido, faz-se possível analisar toda uma ocasião de experiências
terapêutico, o contato com a natureza, de modo a imaginar que esta, sendo a forma
visível de verdade, dissiparia com o erro. Assim, este tipo de retiro, será uma das
46
psiquiátrico.
Assim, seguem-se estas idéias terapêuticas praticadas nos hospitais como por
exemplo a imersão onde a água, numa visão de panacéia, era o líquido que
dissipação do erro não pára por aí: as chamadas regulamentações dos movimentos
serão aplicadas, uma vez que a loucura, sendo desordem, poderá suscitar no
doente, movimentos naturais que lhe devolva o bom senso. Nesta imaginação,
por Foucault:
Desta forma, o asilo não só estará aberto para as terapias de cunho físico,
ela ultrapassa a noção do simples engano, da pobre mentira: ela continua o discurso
delirante. O louco em sua loucura obedece sim, a uma razão, “há uma voz que fala;
louco possui um mundo próprio e uma língua própria que deverá ser descoberta e
interpretada pela ciência. O médico é aquele que sabe falar na língua dos doentes,
mas que trará o limite entre a doença e a saúde. O psiquiatra então, representa o
Seu conhecimento e seu saber lhe permitem emitir verdades e manifestar sua
determinações do médico do Asilo em seu total direito sobre o louco. Sua relação
com o doente será curiosamente de senhor para com seu vassalo, do mestre que
loucura expressará suas essências num papel cada vez mais sistemático e essencial
para a existência dos asilos. Como vimos, este papel do hospital primeiramente é, de
fato, reduzir a loucura em sua total verdade onde a mesma se expressa de modo
conduzida à verdade única no homem que é seu estado puro: racional, moral e
natural.
temos a noção de geografia do poder já pesquisada por Goffman que, assim como
Foucault, analisou os modos de como este poder se atua através das disciplinas e
punições. Será dentro deste espaço de poder que teremos os frutos das relações de
49
poder, no caso, o objeto científico da loucura – o corpo do louco. Assim nos explica o
acerca de seus pacientes, de modo que, submetê-los aos métodos mais bizarros
racionalmente julga atos, vigia corpos e observa, escuta e fala com os doentes: “mas
ao mesmo tempo uma psicologia da loucura torna-se possível, uma vez que sob o
conhece de fato a loucura? Vejamos o papel do retiro (asilo) em seu início: era a
preocupação propriamente de cura, mas que por traz disto, está a verificação da qual
médico possuía sua posição moral e social inabalável porque domina um saber
camuflado.
para uma esfera micro, um estado constituído de paredes e muros que é o hospício.
Um país onde reside sua nação insana que segue, na sua dinâmica, os mesmos
padrões dos homens sãos e civilizados. O louco reside em sua casa, mas vive com o
espírito voltado para fora destes muros, não porque este se desprendeu de sua
loucura, mas porque a civilização habita no seu lar. O vigilante desalienador que lhe
absoluta sobre o mundo asilar na medida em que, desde o começo, foi Pai, Juiz,
Família e Lei”. (FOUCAULT,1972, p. 498). O louco, deste modo, regride, aceita sua
mais variadas (vassalo, lacaio, objeto e criança) terão ainda seus impasses. Mesmo
51
na pessoa do médico, sua atuação estará para ser questionada. Mas ainda restará
substituído ou o médico em si? Talvez seja este o fator importante que se possa
Os interesses de cura médica para o louco não são por menos de ordem
ajudaram ainda mais para a medicina se afirmar perante o louco como a sociedade e
médico, pois seria ele próprio o direto transmissor da doença nos hospitais: “o
médico transmitia as doenças que ele devia combater”. (FOUCAULT, 1997, p. 51). O
médico pode disseminar doenças, já que não mais possui domínio sobre elas. Eram
desvinculado de seus métodos. Fato é que após estas suposições, um novo olhar
acerca de qualquer doente está para aparecer. O médico é questionado ao seu agir.
52
a crise, as suspeitas eram da própria produção de doenças que antes eram certezas:
1997, p. 52).
ainda poderá viver nos hospitais, porém, será tratado com elementos químicos
do psiquiatra.
poder entre o médico e o doente será a regra de uma liberdade discursiva do louco –
Não mais poderás te vangloriar de enganar o teu médico, já que não mais
responderás às perguntas feitas; dirás aquilo que te vem à cabeça, sem que
tenhas nem mesmo de me perguntar àquilo que penso, e se quiseres me
enganar infringindo essa regra, não serei enganado realmente; tu serás
enganado, preso na armadilha, já que terás perturbado a produção da
verdade e aumentado de algumas sessões a soma daquilo que me deves.
(FOUCAULT, 1997, p. 53).
Entretanto, neste nível ainda não é uma autêntica revolta antipsiquiátrica pois está
sobre o doente produzindo uma verdade fabricada. É assim que Basaglia apresenta
Neste sentido, falar de antipsiquiatria deduz uma forma de não se buscar uma
dominação. São por estas razões que Foucault trata a psicanálise como uma forma
de verdade da psiquiatria para si. Foucault relembra dos casos positivos e negativos
da psicanálise quando menciona sua atuação em alguns países dentre eles o Brasil:
54
Machado de Assis – que se via imerso num cenário onde o alienismo em seu poder
sobre o louco explícito pelo início das Casas de Internamento no Brasil estava
ciência: “a ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o
meu universo”. (ASSIS, 1996, p. 9). Assim, Bacamarte fundaria a Casa Verde no
que se encontravam iniciados nas modernas noções de ciência para trazer esta
sustentadas com a sua posição científica, de que se tratava de ciência, era então
preocupa aqueles que estão à sua volta. Mesmo porque, a Casa Verde aos poucos
estar sob seu total domínio: “Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos
tais limites, Bacamarte encontra uma verdadeira e coerente revelação de sua teoria
após libertar todos os internados da Casa Verde: “Mas deveras estariam eles doidos,
e foram curados por mim – ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta
Bacamarte chega a conclusão de que Louco era quem era perfeito. Ora, em que a
médico Francisco Franco da Rocha no final do século XIX. Em seu livro “O Espelho
do Mundo”, Pereira Cunha procura mostrar os múltiplos rostos daqueles que por
diversos motivos se vêem presos e dominado nas mãos de grandes médicos. Assim,
práticas de mascaração do poder científico: “dar conta das funções originárias que
chegaram no Brasil: “tido e havido como o ‘Pinel brasileiro’ [...] Franco da Rocha
retomadas nesta reclusão social tornam-se inúmeras, bem como também as suas
divisões de doenças:
remédio universal, neste caso, “o trabalho dos internos volta a ser prescrito como
58
todas essas estratégias dos “jogos de poder institucional”. (FOUCAULT, 1997, p. 55).
caminha a antipsiquiatria:
mares da loucura bem como sua perda do estatuto de doença mental. Neste sentido,
de uma antipsiquiatria?
que se diz respeito do papel do médico”. (1997, p. 57). Assim, estas possibilidades
loucura, percebemos que o inevitável se afirma: o poder obtido pelas lutas de forças
de indivíduos livres. Livres em seus discursos, no seu saber e na sua influência entre
evidências de saberes.
seja, nosso estudo pelas presentes figuras do louco ao longo da história remete-nos
à consciência dele na sua evidência, ainda válida em nossos dias. Nosso olhar o
louco já não possui o domínio de si, está entregue aos olhos e as vontades alheias.
É lançado aos mares, sem rumo, expulso; não participa do cogito da humanidade,
ele não é (não-ser); será pois, internado, escorraçado, punido e integrado aos
soberania médica.
loucura para com o adestrando, o doente, o louco. Esta questão parece caminhar a
uma certa negação destas formas. Porém, não se encontra luta para com as
das lutas e das forças, da liberdade do louco. Mas como ele mesmo diz: “não se trata
de chegar a uma conclusão.” (FOUCAULT, 1972, p. 505). É por isso que não
E assim a efetuação de uma análise da instituição médica permite ver suas formas
controle que não seja baseado nesta relação de domínio de liberdade, mas que
sã do homem.
6 REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. O Alienista. 27ª ed., São Paulo: Ática, 1996.