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FACULDADE ARQUIDIOCESANA DE FILOSOFIA

OS DISCURSOS SOBRE A LOUCURA COMO INSTRUMENTO DE PODER EM

MICHEL FOUCAULT

CURITIBA
2004
JUNIO LUIZ CAMARGO

OS DISCURSOS SOBRE A LOUCURA COMO INSTRUMENTO DE PODER EM

MICHEL FOUCAULT

Monografia apresentada como requisito parcial


à conclusão do Curso de Filosofia da
Faculdade Arquidiocesana de Filosofia.

Prof. Ezequiel Westphal

CURITIBA
2004
“Aos meus pais, Osmair Antônio Camargo e Ana
Vicente da Silva Camargo que me mostraram o
caminho da vontade, coragem, honestidade, força
e fé.E às minhas irmãs, Juliane e Jacqueline,
sinceras amigas.
AGRADECIMENTOS

A quem objetivamente devo agradecer? Não queria eu, de forma alguma ter

a infelicidade de seguir o exemplo de meu amigo Brás Cubas e no caso de dedicar,

agradecer “aos vermes que irão corroer minha carne”, por outro lado, seria muito

mesquinho de minha parte, voltar-se para mim com singular mérito, ora, não tenho

direito algum sobre isso. A verdade é que tenho muito a agradecer... Não

simplesmente por realizar esta monografia, mas por perceber que qualquer das

reflexões feitas durante estes anos – “eu” – não estava sozinho. De fato, não sou

nenhum autodidata, a filosofia para mim, se revelou nos rostos das pessoas, e por

isso, agradeço aos meus amigos e professores e que juntos, possamos dizer assim:

filosofamos! discutimos! E por fim, buscamos despertar o espírito da sabedoria,

mesmo que esta pareça estar longe de nossas mãos... mesmo assim... buscamos a

Verdade.

Obrigado.
“A Loucura é algo raro em indivíduos – mas
em grupos, partidos, povos e
épocas é a norma.”

Friederich Nietzsche
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 7

CAPÍTULO I .................................................................................................................. 14
2 UM OLHAR SOBRE A “HISTÓRIA DA LOUCURA” NA IDADE CLÁSSICA ............................ 14
2.1 O POR QUÊ DE UM ESTUDO DA LOUCURA EM MICHEL FOUCAULT ............................ 14

CAPÍTULO II ................................................................................................................. 29
3 OS DISCURSOS SOBRE A LOUCURA............................................................................ 29
3.1 EM BUSCA DE UM DOMÍNIO ...................................................................................... 29
3.2 O PODER PSIQUIÁTRICO .......................................................................................... 35

CAPÍTULO III ................................................................................................................ 44


4 A CASA DOS LOUCOS ............................................................................................... 44
4.1 DO INTERNAMENTO À TERAPIA ................................................................................ 44
4.2 A ANTIPSIQUIATRIA E A DESPSIQUIATRIZAÇÃO ........................................................... 51

5 CONCLUSÃO ............................................................................................................. 59

6 REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 61

7 ANEXO ..................................................................................................................... 62
1 INTRODUÇÃO

Durante todo o decorrer da história, pouca importância fora dada com a

questão do “insano”. Durante a Idade Média, tal problema era visto simplesmente

como um erro, uma falha da razão. Neste período, o maior enfoque de exclusão seria

dado, segundo Foucault, sobre o leproso (FOUCAULT, 1972, p. 3). Porém, com o

advento da Idade Moderna, observaremos o surgimento de um novo ideal que

consistirá na exaltação da razão. É a partir deste ideal de racionalidade, que o louco

acaba se tornando um sinal de contradição nestes meios, de modo que já não será

tratado apenas como um mero erro, mas, também, como uma ameaça à razão. No

início da contemporaneidade, novas idéias, teorias e instituições, iriam reforçar este

discurso de forma que o louco não seja mais um problema da sociedade, mas sim,

um problema puramente do domínio científico. Com o surgimento da Psiquiatria e as

mistificações da ciência, a loucura ganharia casa e padrastos, por meio de discursos

que a legitimariam como doença. Assim, considerando certos domínios científicos, a

loucura passaria a ser criminosa, perigosa e talvez “contagiosa”.

Ora, analisando esta situação, queremos mostrar nesta pesquisa, que estes

discursos seriam aceitos por uma pluralidade de receptores onde também se

tornariam emissores destes. No entanto, a problemática aqui apresentada não estaria

apenas sobre um idealizador, cruel que dominaria um monopólio do discurso, mas de

uma sociedade em sua complexidade que concomitantemente exclui e deporta não


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só os loucos, mas todo e qualquer indivíduo que ameaçar a sua “suposta”

tranqüilidade.

Desta forma, queremos, por meio do pensamento de Michel Foucault,

pesquisar o discurso sobre a loucura durante os séculos XV a XIX como formas de

poder, isolamento e punição, no intuito de mostrar que tanto o saber médico, quanto

a internação psiquiátrica, tornaram-se alguns dos instrumentos de poderes

institucionais da época. Conseqüentemente, este saber médico juntamente com

outras ciências podem ter sido os grandes responsáveis por estabelecerem a

fronteira entre a racionalidade e a loucura sem ao menos ter total conhecimento de o

que ela realmente é. A loucura, entretanto, será vista pelo mundo psiquiátrico como a

ameaça de uma doença à sociedade. E como toda doença, deve-se fazer existir uma

cura.

Durante o século XVIII, o fenômeno de exclusão para com os loucos torna-se

muito mais evidente com as internações. Serão os hospícios que se transformarão

em fins terapêuticos e penitenciários. Desta forma, cabe-nos a pergunta: como surgiu

esta necessidade de um aprisionamento do louco?

Para tanto, como ilustração, podemos observar que no final da Idade Média

quando os leprosários já não recebiam mais doentes, surgiria um novo problema,

uma nova forma de substituir os internatos para enchê-los novamente de “doentes”;

este problema seria a loucura. A respeito deste assunto, Foucault (1972, p. 8)

demonstra um fato curioso:

É sob a influência do modo de internamento, tal como ele se constituiu no


século XVIII, que a doença venérea se isolou, numa certa medida, de seu
contexto médico e se integrou, ao lado da Loucura, num espaço moral de
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exclusão. De fato, a verdadeira herança da lepra não é aí que deve ser


buscada, mas sim num fenômeno bastante complexo, do qual a medicina
demorará para se apropriar.
Esse fenômeno é a Loucura.”

A partir desta concepção sobre a loucura, Foucault afirma que a medicina

demorará para se apropriar da Loucura e se utilizaria de medidas talvez pouco

científicas, ou seja, com alguns métodos de punição. Num primeiro momento, a

loucura seria tratada sobretudo na Idade Moderna, com exclusão: os loucos seriam

colocados em navios, Stultifera Navis (A nau dos loucos), e lançados ao mar. Porém,

após o século XVIII, quando a loucura deixa de ser apenas um erro ou ilusão para

tornar-se uma ameaça, surge o internamento, uma ilha dentro da própria civilização

cuja maior preocupação não seria talvez com a perturbação da mente do louco, mas

sim, com a perturbação que este poderia causar com o seu modo de agir. No entanto,

no século XIX a Psiquiatria (FOUCAULT, 1997, p. 27) toma as rédeas da loucura e,

com as promessas de cura, justificaria as formas de asilamento:

1 Assegurar sua segurança pessoal e de sua família;


2 Libertá-los das influências pessoais;
3 Submetê-los à força a um regime médico;
4 Impor-lhes novos hábitos intelectuais e morais;

Assim, denota-se que estas justificativas estão imersas em um discurso de

poder, ou melhor, questões de poderes voltados à própria relação institucional, onde

se construiria um saber acerca da loucura em total domínio da medicina.

Este discurso de continência e domínio da loucura parece vicioso na história;

o período marcado pelo método cartesiano e conhecido como o “século da razão”

temerá esta figura alienada e a sua ameaça racional. Restará se defender, tratando

os loucos como animais e isolando-os para que não promovam a desordem.


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Foucault, influenciado por Nietszche, parece fazer uma genealogia da

loucura com um novo modo de analisar o Insano, ou seja, não será por uma via

médica especulativa e neurológica e nem mesmo por uma via psicológica, mas sim,

por uma ótica, da qual, busca-se a raiz da patologia mental na história das relações

humanas.

A História da Loucura tornou-se uma obra ousada mesmo porque Foucault,

no início de seus estudos, possuía um grande interesse pela psicologia, chegando a

se especializar em psicopatologia fazendo estágios em hospitais psiquiátricos e

mantendo contatos com os internos (LOGOS, 1990, p. 693). Mesmo assim, procurou

através da história do internamento, as ilusões da ciência psiquiátrica e as

mistificações da própria ciência moderna. Ao contrário do que se poderia pensar, não

será uma descrição sobre uma história da loucura, baseada em teorias relativas ao

tratamento dos doentes mentais, mas a partir das práticas de isolamento: práticas de

isolamento se assemelham a práticas discursivas, pois talvez seja através dos

discursos que surgirá esta sina de isolamento e punição da loucura. E desta forma,

procuraremos apresentar neste estudo alguns elementos para os quais possamos

compreender estas questões sobre a loucura. Assim, sistematizamos este trabalho

em três capítulos.

No primeiro capítulo temos como título geral “Um olhar sobre a história da

loucura na Idade Clássica”, de modo a dizer o porquê do estudo da história da

loucura em Foucault. Neste capítulo, buscaremos expor os fatos iniciais da loucura na

sociedade já dita como Moderna e o seu olhar experencial sobre o louco. Trata-se de

uma análise sobre a loucura que não se tomará um rumo de prová-la cientificamente,

mas sim, de abrir os horizontes da questão num sentido histórico de exclusão e


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reclusão. Assim sendo, este capítulo será dedicado aos questionamentos das

próprias intuições impostas pela sociedade/ciência sobre a insanidade.

Já no segundo capítulo intitulado “Os discursos sobre a loucura”,

procuraremos investigar o modo pelo qual se deu o domínio sobre a loucura. Neste

tópico trabalharemos praticamente o centro de todas as discussões sobre a doença

mental, os discursos que a envolvem, como também a construção de uma análise de

como se deu a afirmação do louco como doente e suas classificações, bem como a

configuração do poder psiquiátrico em seu domínio.

O louco já como uma propriedade da ciência, terá seu chão fixo no

isolamento. “A casa dos loucos” é o que procuraremos mostrar num terceiro capítulo.

As práticas discursivas estão imbricadas às práticas concretas de asilamento, no

entanto, procuraremos observar nesta parte as internações de modo discriminado,

como fruto do saber médico e como instrumentos de poder, utilizando-se de

exemplos históricos e experiências da loucura. E mesmo nesta afirmação de domínio,

faremos uma exposição dos questionamentos de uma antipsiquiatria e os

movimentos de despsiquiatrização que procuraram duvidar de uma posição

privilegiada do médico no asilo.

Para a pesquisa deste monografia, utilizamos basicamente, levantamentos

bibliográficos com análise crítica e reflexiva acerca da loucura e de suas internações

considerando as seguintes fontes: como obra referencial deste trabalho, temos a

“História da Loucura na Idade Clássica”, de forma que não é de nossa pretensão

realizar uma análise completa da obra, mas sim, das categorias de análise para a

compreensão dos discursos sobre a loucura. Assim, utilizamos também outros livros

de Foucault como “Vigiar e Punir”, “A Ordem do Discurso”, “Microfísica do Poder”,


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entre outros, para melhor compreensão da reclusão, das práticas discursivas, e do

poder-saber. E conseqüentemente utilizamos outros referenciais teóricos sobre o

assunto, entre eles inclui-se também revistas e dicionários especializados.

Neste sentido, queremos dizer que foi através de um pensar sobre as

incertezas da loucura que motivou o estudo deste trabalho. De modo que

pretendemos ao decorrer do mesmo, entreter-nos com essas formas do saber que

ainda hoje são altamente emergentes.


BOSCH, Hieronymus. A Nau dos Insensatos.
CAPÍTULO I

2 UM OLHAR SOBRE A “HISTÓRIA DA LOUCURA” NA IDADE CLÁSSICA

“Porém eu, que, ainda que pareço pai, não sou contudo senão padrasto de D. Quixote, não
quero deixar-me ir com a corrente do uso, nem pedir-te, quase com lágrimas nos olhos, como por aí
fazem muitos, que tu, leitor caríssimo, me perdoes ou desculpes as faltas que encontrares e
descobrires neste meu filho; e porque não és seu parente nem seu amigo, e tens a tua alma no teu
corpo, e a tua liberdade de julgar muito à larga e a teu gosto e estás em tua casa, onde és senhor dela
como el rei das suas alcavalas...”

Miguel de Cervantes

2.1 O POR QUÊ DE UM ESTUDO DA LOUCURA EM MICHEL FOUCAULT

No final do século XV, o pintor holandês Hieronymus Bosch acabaria por

compor uma de suas mais conhecidas obras intitulada “A Nau dos Loucos”. Uma

representação plástica e, ao mesmo tempo, singular de um espírito misterioso,

composto por diversas faces e comumente denominado por loucura.

Desta forma, o quadro denuncia historicamente as primitivas reações da

loucura manifestada na Idade Clássica. Assim sendo, encontra-se num contexto de

Renascença onde se enfrenta a dura condição enquanto louco ao ser lançado numa

viagem sem retorno:

Esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os
loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades
escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos
distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos.
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Esse costume era freqüente particularmente na Alemanha em Nuremberg,


durante a primeira metade do século XV, registrou-se a presença de 62
loucos, 31 dos quais foram escorraçados. Nos cinqüenta anos que se
seguiram, têm-se vestígios ainda de 21 partidas obrigatórias, tratando-se
aqui apenas loucos detidos pelas autoridades municipais. (FOUCAULT,
1972, p. 9).

Fato semelhante e anterior a esta prática de exclusão, são, na Idade Média,

os leprosários. Lançados muito mais ao esquecimento desta célula doente, o

leproso. Assim, assumindo de certa forma esta herança, o louco preenche as

propriedades excludentes deixadas pela lepra. (FOUCAULT, 1978, p. 8).

Neste sentido, encontramos no processo dos navios insanos, não uma

exclusão pela simples indiferença da loucura, mas sim, porque esta já na Idade

Moderna começava a se revelar tão assustadoramente quanto à lepra de modo que

o horror da loucura faça-se presente a necessidade de procurar esquecê-la.

Conveniente é, para o homem moderno, não enxergar os tolos e alienados, uma vez

que, estes destoavam seus povoados, contribuindo assim, para a danação de suas

cidades:

Água e navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde


não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil
caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio
da mais livre da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita
encruzilhada. É o passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da
passagem, E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se
sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única
pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem
pertencer. É esse ritual que, por esses valores, está na origem do longo de
toda a cultura ocidental? Ou, inversamente, é esse parentesco que da noite
dos tempos, exigiu e em seguida fixou o rito do embarque? Uma coisa pelo
menos é certa: a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo nos
sonhos do homem europeu. (FOUCAULT, 1972, p. 8).

Jogando aos mares os loucos, as cidades acabariam por comercializar

indiretamente o mercado de dementes. Ora, dizer de uma viagem sem rumo não
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implica em dizer que não terá seu fim. É fato de que os loucos expulsos de suas

cidades não paravam à beira do caminho. Os barcos, deles carregados, iriam atracar

em outras cidades onde se diria: “malditos sejam os marinheiros que trouxeram este

louco! Por que não o jogaram no mar?” (FOUCAULT, 1972, p. 13).

Era esta insolente ambigüidade da figura do louco que perpassa desde a

Idade Média atingindo a Renascença para se tornar a ameaça do desatino, do

simples defeito, do perigo constante identificado na idéia do mal. Desta forma, surge

sua denúncia expressa pela arte. A literatura ocidental traz consigo todo o pensar

crítico, onde sua imagem marginal torna-se o centro e o reflexo da verdade:

Antes de mais nada, toda uma literatura de contas e moralidades. Sua


origem, sem dúvida, é bem remota. Mas ao final da Idade Média, ela assume
uma superfície considerável: longa série de vícios e defeitos, aproximam-nos
todos não mais do orgulho, não mais da falta de caridade, não mais do
esquecimento das virtudes cristãs, mas de uma espécie de grande desatino
pelo qual, ao certo, ninguém é exatamente culpável mas que arrasta a todos
numa complacência secreta. A denúncia da loucura torna-se a forma geral e
crítica. Nas farsas e nas sotias, a personagem do Louco, do Simplório, ou do
Bobo assume cada vez maior importância. Ele não é mais, marginalmente, a
silhueta ridícula e familiar: toma lugar no centro do teatro, como o detentor
da verdade. (FOUCAULT, 1978, p. 14).

Assim se identifica na literatura uma sutil transposição:

A substituição do tema da morte pelo da loucura não marca uma ruptura,


mas sim uma virada no interior da mesma inquietude. Trata-se ainda do
vazio da existência, mas esse vazio não é mais reconhecido com termo
exterior e final, simultaneamente ameaça e conclusão; ele é sentido do
interior, como forma contínua e constante da existência. E enquanto outrora
a loucura dos homens consistia em ver apenas que o termo da morte, agora
a sabedoria consistirá em denunciar a loucura por toda parte, em ensinar
aos homens que eles não são mais que mortos, e que se o fim está próximo,
é na medida em que a loucura universalizada formará uma só e mesma
entidade com a própria morte. (FOUCAULT, 1972, p. 16).
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Desta maneira, a morte se remete ao vazio. Certifica-se da contingência

humana e visa sua aniquilação como espetáculo. A loucura, por sua vez, por meio de

sua ilusão, demonstra sua entidade reflexa nos homens, da forma mais presente de

seu espírito: “ela reina sobre tudo o que há de mau no homem. Mas não reina

também, indiretamente, sobre todo o bem que ele possa fazer?“ (FOUCAULT, 1972,

p. 23). Desta forma, ela ocupa o primeiro lugar do agir humano, sendo mãe de todos

os pecados. Assim, se evidencia a loucura como uma razão própria.

Foucault deixa claro esta percepção ao citar a personificação mitológica e

satírica da loucura feita por Erasmo quanto à própria sociedade e seus sistemas de

governos: “tantas formas de loucura nelas abundam, e são tantas e novas a nascer

todo dia, que mil Demócritos não seriam suficientes para zombar delas.”

(FOUCAULT, 1972, p. 24).

Assim, esta razão crítica da loucura encontra-se, sobretudo na arte, seu

reconhecimento à razão. Não que esta se confunda com o desatino, mas que,

apesar de sua nitidez ofuscada, a loucura reconhece seu lugar no interior da

realidade humana. Uma realidade cuja preocupação ética volta-se num tempo

clássico com novas experiências do espírito da loucura: “As figuras da visão cósmica

e os movimentos da reflexão moral, o elemento ‘trágico’ e o elemento ‘crítico’.”

(FOUCAULT, 1972, p. 27). No elemento trágico, encontramos a experiência dos

rostos furiosos, dos fantasmas e da alquimia das representações de Bosch,

Brueghel, Thierry Bouts e Dürer. Enquanto que numa representação crítica mostra-

se as mais sátiras denúncias do erro humano, de sua gênesis brotada de dentro do

coração do homem, das experiências de Brant e Erasmo.


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Submetida a tais visões, a loucura, ainda no Renascimento, terá seu aspecto

sombrio, burlesco e natural no espírito humano. Razão pela qual, seria justificável o

seu afastamento se esta, ao mesmo tempo, representasse o que há de trágico e

defeituoso no homem.

Com a passagem dos séculos XVI e XVII, a loucura aos poucos se encontra

com uma nova figura de si: a ilusão. Segundo Foucault (1972, p. 38), “o amor

decepcionado em seu excesso, sobretudo o amor enganado pela fatalidade da

morte, não tem outra saída a não ser a demência”. E será assim que, expresso pelos

movimentos literários (sobretudo com Cervantes e Shakespeare), a loucura toma seu

lugar como delírio ou a paixão demasiada.

A ilusão da loucura torna-se névoa que aos poucos ofusca a razão. Neste

momento, aquela experiência trágica sobre a loucura, definitivamente, nestes

séculos, perde aos poucos sua força dando espaço assim ao seu leve desprezo e

sua fuga aos mares:

A experiência clássica da loucura nasce. A grande ameaça surgida no


horizonte do século XV se atenua, os poderes inquietantes que habitavam a
pintura de Bosch perderam sua violência. Algumas formas subsistem, agora
transparentes e dóceis, formando um cortejo, o inevitável cortejo da razão. A
loucura deixou de ser, nos confins do mundo, do homem e da morte, uma
figura escatológica; a noite na qual ela tinha os olhos fixos e da qual nasciam
as formas do impossível se dissipou. O esquecimento cai sobre o mundo
sulcado pela livre escravidão de sua Nau: ela não irá mais de um aquém
para um além, em sua estranha passagem; nunca mais ela será esse limite
fugidio e absoluto. Ei-la amarrada, solidamente, no meio das coisas e das
pessoas. Retida e segura. Não existe mais a barca, porém o hospital.
(FOUCAULT, 1972, p. 42).

Neste sentido, Foucault apresenta esta eminente passagem da modernidade

onde se deixará as velhas naus ancoradas em seus portos, dando o espaço da

loucura para as internações. O louco na sua ilusão, na sua razão desatinada,


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escandaliza, por vezes, uma sociedade que agora chegara a encontrar o caminho da

dúvida e a busca da verdade racional. A contribuição cartesiana trouxe para a época

clássica a loucura como absurdo, o erro ao lado do sonho, assim como, o mundo

exterior possa também estar dotado de erros:

Como poderia eu negar que estas mãos e este corpo são meus, a menos
que me compare com alguns insanos, cujo cérebro é tão perturbado e
ofuscado pelos negros vapores da bílis, que eles asseguram
constantemente serem reis quando na verdade são muito pobres, que estão
vestidos de ouro e púrpura quando estão completamente nus, que imaginam
serem bilhas ou ter um corpo de vidro? (DESCARTES apud FOUCAULT,
1972, p. 45).

Assim, esta concepção do insano revelará a incapacidade dos mesmos a

uma integração à sociedade e a prestação de serviços a qualquer trabalho. Desta

forma, neste sistema de florescimento do racionalismo, a internação constituirá, ao

mesmo tempo, uma medida econômica e social ao perceber os parâmetros desta em

meio ao grupo:

A internação é uma criação institucional própria ao século XVII. Ela assumiu,


desde o início, uma amplitude que não lhe permite uma comparação com a
prisão tal como esta era praticada na Idade Média. Como medida
econômica e precaução social, ela tem valor de invenção. Mas na história
do desatino, ela designa um evento decisivo: o momento em que a loucura é
percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho,
da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a
inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações
atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os
valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura
e modificam-lhe o sentido. (FOUCAULT, 1972, p. 78).

Torna-se, desta maneira, o louco como uma ferida heterogenia, um mal-estar

profundo perante a sociedade moderna, racionalista e sobretudo burguesa. Eliminar

estes elementos não sociáveis era a constituição do sonho burguês. “O internamento


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seria assim a eliminação espontânea dos ‘a-sociais’.” (FOUCAULT, 1972, p. 79).

Nesta dinâmica social, faz-se as exigências concretas dos asilos, prisões, hospícios

e hospitais na afirmação de instituições que ordenam o sonho burguês de sociedade,

promovendo assim, estas réplicas de exclusão já de tempos ulteriores. A evidente

discriminação dos a-sociais retomam seus famosos ciclos na história revelados pelas

práticas de exclusão. A perturbação essencialmente política e moral perpassa

através dos anos como discursos defensivos, para o bem e a segurança do grupo,

dos contratos não observados, da incapacidade de observá-los, para a sua punição.

Fator pelo qual está incluso num sistema correcional onde desta forma se constrói o

que chamamos de disciplina, ou seja, todo um conjunto de coação, regras e

contratos, sobre o indivíduo a favor de uma eficácia técnica e política de uma

sociedade. Assim vemos a disciplina descrita por Foucault no livro “Vigiar e Punir”

(1987, p. 127):

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis. A


disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade)
e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em
uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma
aptidão, uma capacidade que ela procura aumentar; e inverte por outro lado
a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de
sujeição estrita.

Era então, em vista destes corpos dóceis que na história parece identificar-se

as sociedades com suas disciplinas e punições. Trata-se aqui, de um dever (moral) a

ser cumprido. Entretanto, é necessário que todos os indivíduos pratiquem as ordens

disciplinares de forma que, para aqueles que não as cumprem (bandidos,

vagabundos, libertinos, loucos, assassinos, homossexuais, doentes venéreos, entre


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outros.), faz-se necessária a correção. Assim, este presente método (o punir),

adquiriu elementares formas nas mais diversas culturas do mundo Ocidental:

A título de hipótese, pode-se distinguir, segundo os tipos de punição


privilegiados, sociedades de banimento (sociedade grega), sociedades de
resgate (sociedades germânicas), sociedades de marcagem (sociedades
ocidentais do final da Idade Média), e sociedades que enclausuram (a
nossa?). (FOUCAULT, 1997, p. 27).

Estes métodos ou táticas punitivas resumem uma inspiração social quanto às

aproximações representativas de cada espécie deste grupo dos a-sociais. Um

exemplo disto serão os doentes venéreos que, possuindo uma doença causada por

um desvio puramente moral, durante o século XVII possuirão um tratamento médico

diferenciado, submetidos assim, a formas punitivas em ocasião de seus pecados: “ é

preciso pagar sua dívida para com a moral pública, e deve-se estar preparado, nas

sendas do castigo e da penitência”. (FOUCAULT, 1972, p. 84).

Grande espaço torna-se o campo das soluções para os problemas dos a-

sociais. Grande espaço também será para as soluções do louco. As punições

tornam-se na Idade Clássica, os remédios solucionadores e eficazes para aqueles

que atravessam o mundo moral. Por este caminho também andará a medicina com

sua percepção comandada por uma intuição ética, que por mais tarde, prolongar-se-

á na formação dos primeiros hospícios do século XIX: “às vezes é bom abafar

fortemente a imaginação de um alienado e imprimir-lhe um sentimento de terror.”

(PINEL apud FOUCAULT, p. 88). No entanto, estando ainda num contexto de século

XVII, a preocupação maior com aqueles que desrespeitam a ordem social será de
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acolhida aos mesmos nas internações com a preocupação de simplesmente não

deixar estas personagens vagarem livremente pelas ruas da cidade:

A instituição visa apenas impedir a mendicância e a ociosidade, na medida


em que são fontes de desordem: ela também funciona como centro de
trabalho forçado, embora seja de fato o lugar privilegiado da ociosidade. A
loucura acha-se compreendida aqui sob as categorias da pobreza, da
mendicância e do ócio. (MARIETTI, 1977, p. 106).

Estas causas explícitas do internamento continuarão à procurar, para uma

integração do grupo, a proteção dos conflitos, em nome da família burguesa,

encarando os delírios a favor de condenação éticas. Neste sentido, encaremos aqui,

aqueles elementos heterogêneos numa exposição de maior objetividade, onde se

exibe e se explica a loucura em certas faces: do amor desatinado, das profanações e

das blasfêmias, e da magia por momentos satânica e por outros ilusória e insana.

1 – A partir do Classicismo, o amor assumirá dois lados amplamente

opostos. O primeiro se refere a um amor racional levando em si todas as implicações

que o espírito humano possa chegar, em virtudes, ao seu reto agir, de forma que no

segundo revela-se o amor desatinado, perdido em seus desejos materiais e imerso

nos perigos sutis da carne. Um amor que ultrapassa as barreiras da vida humana e

se entrega aos mais primitivos instintos do homem. É neste olhar que a psicanálise

atribuirá, no século XX, à loucura o resultado de alguma sexualidade perturbada.

“Sempre dentro dessas categorias da sexualidade, seria necessário acrescentar tudo

o que se diz respeito à prostituição e à devassidão.” (FOUCAULT, 1972, p. 90).

É assim, nestes desejos impuros, que se condena a sodomia e a

homossexualidade. Obviamente que estes sentimentos possuíam no Renascimento


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formas toleráveis, sobretudo a homossexualidade. Entretanto, agora, encontram

suas indulgências sob a via de severos castigos. A sodomia tinha sua perseguição

na França constando apenas a condenação e não o seu internamento. Assim vemos

o veredicto1 dado pelo tenente de polícia Hérauldt:

Étienne Benjamin Deschauffours é declarado devidamente culpado de ter


cometido os crimes de sodomia mencionados no processo. Como
reparação, e outros casos, o dito Deschauffours é condenado a ser
queimado vivo na Place de Grève, suas cinzas jogadas ao vento, seus bens
confiscados pelo Rei. (FOUCAULT, 1972, p. 88).

No entanto, a sodomia só deixará de ser perseguida com as punições da

homossexualidade. Esta, pertencente ao amor desatinado, perde sua “liberdade de

expressão” permanecendo apenas no interdito de uma sensibilidade que escandaliza

e dessacraliza o amor. (FOUCAULT, 1972, p. 89). Assim, certifica-se do profundo

distanciamento entre o que é racional e o que é desatino de acordo com o prisma da

sexualidade humana:

Em todos os tempos, e provavelmente em todas as culturas, a sexualidade


foi integrada num sistema de coações; mas é apenas no nosso, e em data
relativamente recente, que ela foi dividida de um modo tão rigoroso entre a
Razão e o Desatino, e logo, por via de conseqüência e degradação, entre a
saúde e a doença, o normal e o anormal.

Nestes caminhos diversos, vê-se um denominador comum implícito, revelado

nas figuras dos doentes venéreos, homossexuais devassos e pródigos, condenados

assim, pela moral em ocasião de suas libertinagens sexuais. É a insanidade que

assombra estes desvios. E é por estes desvios que ela assume a conduta de

1
Pronunciamento público, assistido pelos “Senhores que constituíam o conselho de direção do Châtelet de Paris’’
em 24 de março de 1726.
24

culpabilidade, entregando assim, estas formas (ainda que pecaminosas) para as

justificativas do internamento.

2 – Encontra-se nos perigos da sociedade Clássica e na sua escandalização,

as presentes categorias de profanação e blasfêmia já vistas no século XVI sob

formas violentas e furiosas no campo do sagrado, mesmo pertencendo ao seus

interditos religiosos. Eram assim condenados por severas penas: “golilha, pelourinho,

incisão nos lábios com ferro em brasa, seguida pela ablação da língua e enfim, em

caso de nova reincidência, a fogueira.” (FOUCAULT, 1972, p. 93). Dois âmbitos, o da

Reforma e o da Contra Reforma alternaram as visões de blasfêmias e punições,

mas, especialmente com a Contra Reforma (que após as grandes lutas religiosas da

Reforma viu-se a relatividade das condenações) trará novamente estes tradicionais

castigos: “Entre 1617 e 1649, houve 34 execuções por causa de blasfêmias”.

(FOUCAULT, 1972, p. 93). No entanto, tais execuções e penas reduzirão e chegarão

mesmo a desaparecer não por uma perda do rigor de severidade, mas porque entra-

se o internamento como reclusão dos blasfemadores: “as casas de internamento

estarão cheias de blasfemadores.” (FOUCAULT, 1972, p. 93).

A violência destas profanações traz consigo o espírito de desordem, e por

isso, vê-se liberta de seus perigos fora das leis e entregue à clausura dos hospitais.

Perigo este, que possuirá em seu campo toda uma lista de sacrilégios que os

próprios homens da Idade Clássica temiam. Destes sacrilégios, encontramos o

suicídio.

Assim, visto como um próprio homicídio a si, o suicídio enquanto um “crime

de lesa-majestade humana ou divina” (FOUCAULT, 1972, p. 45), terá com punição

em caso de seu fracasso, a própria morte: “Aquele que empregou mãos violentas
25

sobre si próprio e tentou matar-se não deve evitar a morte violenta que pretendeu

dar-se”. (FOUCAULT, 1972, p. 94).

Porém, com o internamento, o suicídio perderá seu valor original de

profanação. A pena de morte que lhe era comedida, agora abre espaço para outras

punições, entre elas, a coação, onde se impede de o suicida de realizar tal ato: “em

si mesma, a tentativa de suicídio indica uma desordem da alma”. (FOUCAULT, 1972,

p. 95). Não perdendo, entretanto, sua fúria contra si, o suicídio terá seus métodos

punitivos voltados para um sistema de retenção do indivíduo: “a jaula de vime, com

um buraco feito na parte superior para a cabeça, e à qual as mãos estão amarradas,

ou o ‘armário’ que fecha o indivíduo em pé, até o pescoço, deixando apenas a

cabeça de fora”. (FOUCAULT, 1972, p. 95).

Deste modo, encontramos presente, tanto nas punições de blasfêmias

quanto a estas punições do suicídio, a visão das condenações éticas. É neste

mesmo espaço do sacrilégio ao profano, que se encontra em par, a Insanidade. “Ela

abrange assim não apenas todas as formas excluídas da sexualidade como também

todas essas violências contra o sagrado”. (FOUCAULT, 1972, p. 94). Assim, certifica-

se cada vez mais a Insanidade como a excelência nas renegações da conduta moral,

demonstrando-se assim,. toda sua alteridade oposta e inimiga.

3 – A legislação contra a magia durante o século XVII possuía um rigor

extremo e impiedoso par aqueles que praticarem estes rituais maléficos e sombrios:

Se se encontrar no futuro pessoas suficientemente más a ponto de misturar


à superstição a impiedade e o sacrilégio... desejamos que as que forem
culpadas sejam punidas com a morte. (FOUCAULT, 1972, p. 96).
26

Obviamente que até esta época e anterior a mesma, as condenações

religiosas contra bruxas e feiticeiros, supersticiosos e adivinhos, possuíam

condenações severas. No entanto, Foucault preferirá se ater mais em nível dos

rituais e de seus conteúdos. “Deixemos de lado, por um momento, o horizonte

religioso da feitiçaria e sua evolução [...]” (FOUCAULT, 1972, p. 95). Também pelo

fato de se analisar a perda do sentido da magia na Idade Clássica e suas

inconsistências na realidade do internamento. Assim, já no que vimos anteriormente,

as durante o século XVII perde-se no campo religioso e ganha-se o caráter moral das

intenções de magias malignas. Estas intenções representarão profundo desrespeito

à sociedade com suas poções e venenos. Porém, as condenações terão, por fim,

diminuídas ainda no século XVII em vista de um novo episódio, uma nova

consciência social: “encarada deste modo, a mágica vê-se esvaziada de toda sua

eficácia sacrílega: ela não é mais profana, ilude”. (FOUCAULT, 1972, p. 96).

Assim, é interessante observar que as práticas de, por exemplo, queimar

bruxas em praças públicas, agora se torna incomum devido ao próprio esvaziamento

de seu poder sombrio e de suas intenções malignas. O internamento torna-se

proteção destas condenações, uma vez que estas não se acabarão, nem perderão o

seu rigor, mas sim, as suas práticas:

No entanto, as práticas condenadas não desaparecem: o Hospital Geral e


as casas de internamento recebem em grande número pessoas que
mexeram com feitiçaria, magia, adivinhação, às vezes mesmo alquimia.
(FOUCAULT, 1972, p. 96).

Desta maneira, a magia revela-se como ilusão, exterior à realidade. Assim,

ela “cega os que não tem o espírito reto nem uma vontade firme”. (FOUCAULT,
27

1972, p. 97). Não há poderes transcendentais na magia, mas sim, o erro que se

encontra também presente nos bobos e ingênuos. Ela em si não é crime, mesmo

resultando em intenções maléficas, pois provém de um espírito que a provoca, de um

espaço que a condena como ilusão e que a transforma em perigo. Desta forma, a

magia pertence também aos mares da insanidade.

Encara-se, então, como raiz destas desordens, uma força culposa que há

tempos já era vista como presente no agir humano e que agora toma-se em amplas

faces e se reduz na denominação de insanidade. Desta forma, se dirige o

internamento ao domínio: um domínio que trará não só reclusão mas todos os

sistemas de correção para a sua identificação. Dominar a loucura, significa procurar

quem ela realmente é, e por que ela habita sobre o homem de forma tão obscura e

degradante. É o que mais tarde, a medicina e a psiquiatria procurarão realizar ao

enquadrá-la em diagnósticos sob formas de protocolos de doenças. No entanto, a

procura de sua domesticação permanecerá ainda nos séculos XVII e XVIII como

coação de suas atividades, de forma que o internamento nestas épocas, terá seu

olhar intuitivo e confuso, mas sem as pretensões de seu conceito.

O movimento experiencial da loucura traz os discursos de seu espírito

misterioso no modo mais prático possível. Entretanto, tratá-la e transformá-la em

corpo dócil e imprimir-lhe valores morais, parecia ainda objetivos distantes de serem

alcançados com os simples castigos aplicados pelas casas de internamento. Mas um

elemento se mantém certo: a loucura nestes períodos, torna-se livre dentro dos

hospitais. Neles, ela poderá manter-se escondida, e isenta de grandes penas. No

entanto, sua busca não estará na proteção de si, mas na proteção dos outros. Mas,

quem serão distintamente estes outros? Qual será a justificativa do internamento de


28

certos loucos, uma vez que já não se valha da quebra de leis, pois estes se tornaram

isentos de seu cumprimento e de suas penas? Quem deverá ser internado e quem

deverá ser julgado?

Parece que tais questionamentos culminam-se na preocupação dos limites

da insanidade. Foucault demonstrará de modo histórico, não simplesmente a

exclusão que se tem desta, mas também, os olhares que identificaram quem é o

louco. Os olhares que apontam onde estará o delírio, a fúria, o ócio e a ilusão, mas

que não foram capazes de captar o seu verdadeiro espírito. Uma consciência que

procura libertar-se de equívocos pela racionalidade, mas vê-se presa e

impossibilitada de alcançar as formalidades desejadas.

Assim, é necessário que se volte para seus discursos de dominação, uma

vez que a loucura continuará misteriosa e sombria. Desta forma, a ela apresenta-se,

assustadoramente, como entidades nebulosas e, ao mesmo tempo, telúricas para

todo o Mundo Clássico.


CAPÍTULO II

3 OS DISCURSOS SOBRE A LOUCURA

“Não espereis de mim nem definição nem divisão de retórico. Aqui, não caberia tal coisa.
Definir-me seria impor-me limites que a minha força desconhece. Dividir-me seria distinguir os
diferentes cultos que me prestam, e eu sou adorada igualmente em toda a Terra.”

Erasmo de Roterdã

3.1 EM BUSCA DE UM DOMÍNIO

Determinantemente encontramos, em todo momento da história do louco, uma

situação que lhe força a ficar distinto, ou talvez, muito mais que isto: uma situação

que o exclui. Seria um olhar que ao mesmo tempo em que o vê, também o julga.

Entretanto, é somente devido à experiência (a este contato com o louco) que será

possível julgá-lo, ou melhor, cabe aqui sublinhar antes o reconhecimento de sua

loucura, para posteriormente, buscar seu conhecimento.

Não obstante, sua exclusão tornou-se complexa e variada ao decorrer de seus

momentos. A simples exclusão traria apenas o reflexo de um poder social, mas não o

domínio do louco, de modo que as naus e o grande internamento possuiriam a

preocupação principal de uma defesa moral e normativa. Assim, era necessário

transformar o louco em objeto, e sua loucura em alvo. Somente assim, torna-se

possível a busca de sua conquista que tem por base a mudança do cenário do delírio

misterioso para o triunfo da razão clara e distinta.


30

Desta forma, podemos analisar dois fatos já postos em questão:

sociedade/louco, razão/loucura. Tanto um quanto outro giram em torno de um

mesmo pressuposto: o poder. Tal e qual nos é apresentado, desde as práticas de

exclusão até chegar ao engendramento das divisões de doenças, o poder possuirá

uma presença constante e disforme, pautada por reações como a literatura e arte,

governo e polícia, médicos e psiquiatras.

Assim, é de suma importância entender o poder à maneira que Foucault o

compreende, uma vez que se faça reflexão da loucura sob suas idéias. Neste

sentido, o filósofo Gilles Deleuze põe a questão “o que seria o poder para Foucault”

e, ao mesmo tempo, a sua breve explicação (1991, p. 79):

O poder não é essencialmente repressivo (já que “incita, suscita, produz”);


ele se exerce antes de se possuir (já que só se possui sob uma forma
determinável – classe – e determinado – Estado); passa pelos dominados
tanto quanto pelos dominantes (já que passa por todas as forças em
relação) um profundo nietzscheísmo.

O poder, desta forma, é relacional e acontece antes de sua ação, de seu

domínio: é o que denominamos de relações de poder. Não pertence apenas aos

dominantes mas também aos dominados. Assim, não torna-se puramente único e

repressivo, mas sim, múltiplo, microfísico e produtor. Ao mesmo tempo em que se

utiliza exclusão e disciplina, também se formará saber.

Porém, neste percurso um tanto quanto capilar do poder, deve-se desvelar os

seus instrumentais, e como diria Deleuze (1991, p. 79): “não nos perguntamos ‘o que

é o poder? E de onde vem?’ mas – como se exerce?”. Ou seja, fazer uma análise do

poder em Foucault é essencialmente observar o seu misterioso campo de atuação e


31

captar aquilo que passa e perpetua-se na história de um modo desapercebido. É

mirar em seus interditos, seus truques e mistérios, e perceber aquilo que poucos

enxergam, escutam e sentem. Conta-se então, com uma raiz do poder nascida não

apenas de jogos e interesses, mas também, de olhares, falas e contatos muito mais

próximos do que se imagina. Mas, não devemos a nenhum momento esquecer do

aspecto dominante do poder. Obviamente que se existe a reclusão e exclusão, são

por conseqüências de forças ou ações que encontramos de uma rede heterogênea

formada por discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões

regulamentares, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas

que “metodologicamente se definem por dispositivos.” (FOUCAULT, 1979, p. 244).

Desta maneira, estes chamados dispositivos de poder que assumem variadas

formas na sociedade, atuaram de maneira constante sobre o louco na Idade

Clássica, principalmente a partir de sua experiência para seus discursos e

enunciados científicos. Assim, o discurso sobre o louco tratará de um domínio mais

palpável e eficaz, iniciando, primeiramente, sobre o próprio reconhecimento de seu

discurso, ou melhor, o discurso que o próprio louco enuncia:

Desde a Alta Idade Média, o louco é aquele cujo discurso não pode circular
como o dos outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e
não seja acolhida não tendo verdade nem importância, não podendo
testemunhar na justiça, não podendo autenticar um ato ou um contrato [...]
Era através de suas palavras que se reconhecia a loucura do louco; elas
eram o lugar onde se exercia a separação; mas não eram nunca recolhidas
nem escutadas. (FOUCAULT, 1996, p. 10–11).

Em contrapartida, os discursos aceitos são as formas explícitas do poder; são

os nossos discursos muitas vezes estratégicos que procurarão manifestar nossos

desejos:
32

Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as


interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o
desejo e com o poder [...] – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz
as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta,
o poder do qual nos queremos apoderar. (FOUCAULT, 1996, p. 10).

Assim, efetua-se não apenas os jogos abertos de poder, mas também, trata-

se de critérios de verdades. Estes critérios enunciam-se a partir de verificações

morais e, principalmente, racionais. Será o privilégio de estar são, que dará força ao

discurso de reconhecimento sobre o louco e, para mais tarde, lança-lo ao mar,

interná-lo, defini-lo, puni-lo e curá-lo. É justamente desta história que Foucault se

apropria em mostrar, ou seja, não será (como já havemos dito anteriormente) uma

história da loucura baseada na preocupação científica ou médica, mas sim, uma

história crítica da idéia de loucura, onde a própria loucura se encontra nas mãos de

pressupostos culturais:

Uma importante inovação de Foucault foi recontar a História da Psiquiatria


através de uma abordagem diferente daquela dos historiadores da
psicopatologia, psiquiatras e psicólogos. A história da loucura que constava
nos registros científicos do alienismo e da psiquiatria era, na verdade, a
história linear de uma suposta doença mental; era contada sob a ótica da
ciência e do saber médico [...]. O pano de fundo da argumentação de
Foucault é a idéia de que a loucura não é natural, mas cultural, idéia que já
existia, por exemplo, na antropologia ou no culturalismo e em correntes
2
sociológicas antecedentes. (AMARANTE; TORRE, 2001, p. 12-13).

Neste sentido, a loucura torna-se capturada pela forma insubstituível do

discurso. Este, capaz de expressar toda uma carga de condutas, costumes,

sentimentos e desejos, procura na loucura a sua verdade. Disto, é que nos

2
Neste mesmo aspecto os autores também prosseguem com as palavras de Roudinesco onde: “... a loucura não é
um fato de natureza, mas de cultura, e sua história é a das culturas que a dizem loucura e a perseguem. Da mesma
forma, a ciência médica só intervém como uma das formas históricas da relação da loucura com a razão.”
33

asseguramos que expressando todos estes elementos, os discursos que precedem a

loucura (e já revelados como dispositivos) são de fato instrumentos de poder. Esta

nobre ferramenta que se pôde fazer valer da experiência do louco para as suas

condutas, tornar-se-á cada vez mais repleta de certificações racionais. No entanto,

como proposições racionais no campo epistemológico do louco, encontra-se as

restrições e as liberdades de seu próprio interior uma vez que:

As “coisas”, em conseqüência de toda cultura, se encontrem derivadas no


discurso, (pelo menos se tem consciência daquelas que são dizíveis no
discurso e aí “dizíveis” deve-se entender não somente no sentido de
“lingüisticamente” dizíveis, mas também dizíveis “segundo as convenções”,
“segundo o conformismo”, segundo o que é preciso dizer e não dizer “– e
nessas restrições de conveniência estão em jogo relações de forças sócio-
econômicas, pois “não se deve dizer” o que aqueles que dominam não
querem ouvir: Nietzsche e Marx estão, diante disso, longamente explicados).
(MARIETTI, 1977, p. 42).

Estes jogos de forças e relações tendem a se desenvolver na produção de

saberes muitas vezes excludentes como a Stultifera Navis, e recludentes como as

internações. Mas o importante a dizer é como se procurará o domínio sobre a

loucura, pois esta é uma preocupação que nascerá após uma longa experiência do

desatino e uma suposta evolução da sociedade da razão.

Assim sendo, estas conseqüências da sociedade/razão possibilitará uma

abertura para o discurso científico que traz consigo mesmo a noção de que “nem

tudo é verdadeiro...” (FOUCAULT,1979, p. 113). E desta maneira se diz, indica e

toma para si o que de fato seria realmente concreto, constatado, científico. Um novo

critério de verdade surge, impondo normas ao conhecimento, num círculo restrito; na

inclusão dos iniciados e entendidos e na veracidade de suas palavras. Trava-se uma


34

espécie de fim das tecnologias de verdades com localizações, calendários, rituais e

meios produtivos para as atualizações das práticas científicas:

Podemos então supor na nossa civilização e ao longo dos séculos a


existência de toda uma tecnologia da verdade que foi pouco a pouco sendo
desqualificada, recoberta e expulsa pela prática científica e pelo discurso
filosófico. A verdade aí não é aquilo que é, mas aquilo que se dá:
acontecimento. Ela não é encontrada mas sim suscitada: produção em vez
de apofântica. (FOUCAULT, 1979, p. 114).

A ciência teria como fonte do saber, a prova e a comprovação, segundo as

quais estão regrado aos seus procedimentos que aos poucos tornaram-se

universais. Conseqüentemente, estas são as novas formas de produção de verdades

incluídas como discursos, se tornando assim, saberes e instrumentos de poder; é o

que Foucault denomina de saber – poder, onde também se aplica os diversos outros

tipos de dispositivos:

Trata-se sim de formas de poder– e– de– saber, de poder – saber que


funcione se efetivam ao nível da “infra estrutura” e que não dão lugar à
relação de conhecimento sujeito – objeto como nome do saber.
(FOUCAULT, 1979, p. 117)

Mas talvez se pergunte: onde estará tal consistência da ciência para as

afirmações de tais verdades? A comprovação empírica com certeza é o que

possibilitou o reforço para os grandes discursos científicos. Mas em sua origem

possui um elemento de interessante importância técnica da verdade. Uma

comprovação empírica só será de fato executada por meio de procedimentos que

carregam em si as técnicas universais. E é então neste momento que se certifica da

validade científica:
35

Produzir fenômenos numa aparelhagem de laboratório não é o mesmo que


suscitar ritualmente o acontecimento da verdade. É uma maneira de
constatar uma verdade através de uma técnica cujas entradas são
universais. A partir daí, a produção de verdade tomou a forma da produção
de fenômenos constatáveis por todo sujeito de conhecimento.
(FOUCAULT,1979, p. 117).

Neste sentido, podemos observar que, tanto o poder médico quanto o poder

psiquiátrico, manifestam suas verdades a partir das normas do conhecimento, nesta

produção da verdade na forma da comprovação e, por meio desta, se justificando.

Assim, neste domínio do discurso, a psiquiatria partirá para as suas mais constantes

preocupações: procurar a partir destes procedimentos universais científicos, a

comprovação e a situação da loucura. Dos diagnósticos aos quadros nosológicos, o

médico do asilo será capaz de dizer a verdade do doente e submetê-lo aos tais

procedimentos.

3.2 O PODER PSIQUIÁTRICO

Se por um lado, no início da Idade Clássica, o contato experencial com a

loucura outorgava poderes para a razão, agora uma nova formação aos poucos se

enquadra e cada vez mais vai se afirmando em seu poder sobre o louco. “Aos

insanos internados faltava apenas o nome de doentes mentais e a condição médica

que se atribuía aos mais visíveis.” (FOUCAULT,1972, p. 119). Assim, era a falta da

prática médica que nos permite ver o instinto social em seu modo infalível, como
36

postulados baseando-se na razão de modos ditos claros. No entanto, não se trata de

um poder unicamente de exclusão, mas também de um consenso de diversão, ou

melhor, o louco já havendo revelado há tempos sua separação entre razão e loucura,

se aproximava cada vez mais da noção de animalidade. Assim, esta visão de uma

besta desatinada transformava-o em atração de espetáculos já na Idade Média e que

não cessaram até mesmo no século XIX: “em 1815, ainda, a acreditar num relatório

apresentado na Câmara dos Comuns, o Hospital de Bethleen exibe furiosos por um

penny, todos os domingos”. (FOUCAULT, 1972, p. 146).

Desta forma, a loucura desdobra-se não apenas sobre os risos de uma platéia

entretida com a fúria ou atitudes bizarras dos loucos, mas também, de sua cogitação

natural, animalesca, e instintiva. Neste aspecto de animalidade é que se observa a

experiência desta fúria no internamento resultando em uma noção de domesticação

e a rápida adaptação dos asilos para jaulas de zoológicos: “No hospital de Nantes, o

‘zoológico’ tem o aspecto de jaulas individuais para animais ferozes”. (FOUCAULT,

1972, p. 150). Assim, era a comparação do louco em sua fúria. Entretanto, Foucault

apresenta esta experiência, não e tão somente em nível de um princípio racional e

do desejo ou instinto demasiado, mas também, do relacionamento moral, citando

assim Marthurim Lê Picard (FOUCAULT, 1972, p. 151):

Pela rapacidade é um lobo, pela sutileza um leão, pela fraude e engodo uma
raposa, pela hipocrisia um macaco, pela inveja um urso, pela vingança um
tigre, pela maledicência, pelas blasfêmias e detrações um cão, uma
serpente que vive de terra pela avareza, camaleão pela inconstância,
pantera pela heresia, basilisco pela lascívia dos olhos, dragão que sempre
3
arde de sede pela bebedeira, um porco pela luxúria.

3
Este trecho retirado da obra Lê Fouet des Paillards (Rouen, 1623, p.175), encontra-se na nota nº36 desta página
de modo a fazer um interessante reforço à idéia de que a loucura igualmente a outros vícios, no classicismo,
possui o relacionamento imediato do homem com sua animalidade.
37

É neste sentido que tais percepções e atribuições da loucura se formam no

período Clássico. Também é mister salientar que surgem controvérsias acerca desta

aproximação do louco e sua animalidade e sua defesa como ser humano no

sentimento de compaixão pelos enfermos e insanos já pregado por São Vicente de

Paula no século XVII, a proteção e a doação pelo irmão internado porque a “norma é,

aqui, Nosso Senhor, que quis ficar rodeado por lunáticos, endemoniados, loucos,

tentados, possuídos.” (FOUCAULT, 1972, p. 156).

Certamente que ainda na razão clássica, o louco possui uma sentença e uma

visão ao mesmo tempo paradoxal: mesmo encontrando-se ora animal, ora humano,

por vezes, é sempre perdoado, porém, isolado. Deste modo, Foucault mostra de

forma sintetizada esta estranha e múltipla moralidade (1972, p. 161):

Nisso consiste, sem dúvida, o paradoxo maior da experiência clássica da


loucura; ela é retomada e envolvida na experiência moral de um desatino
que o século XVII proscreveu através do internamento; mas ela está ligada
também à experiência de um desatino animal que forma o limite absoluto da
razão encarnada e o escândalo da condição humana. Colocada sob o signo
de todos os desatinos menores, a loucura se vê ligada a uma experiência
ética e uma valorização moral da razão; mas, ligada ao mundo animal e a
seu desatino maior, ela toca em sua inocência monstruosa.

Eis então, que tempos mais tarde, surge a psiquiatria no mundo clássico, no

intuito de rejeitar, com todas as suas forças, as antigas práticas conceituais sobre o

louco, de modo a querer enquadrá-lo numa objetividade puramente patológica. No

entanto, “contra a vontade, estavam lidando com uma loucura ainda habitada pela

ética do desatino e pelo escândalo de animalidade.” (FOUCAULT, 1972, p. 162).

Parece-nos então, que um saber, ainda que se preocupe em encontrar seu critério
38

puramente científico, estará preso em seus escândalos morais por parte da figura um

tanto quanto decadente (a seus olhos) do louco.

Assim, a psiquiatria retoma as práticas disciplinares num processo

convenientemente de domesticação. “O poder disciplinar é, com efeito, um poder

que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior <<adestrar>>; ou

sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor”. (FOUCAULT,

1987, p. 153). Conseqüentemente, o apropriar-se do louco traz consigo o poder

disciplinar, mas não perde suas discussões e debates que sempre retornam no curso

do tempo. Debates estes, que emergem consciências variadas do louco na Idade

Clássica, como podemos observar:

1. consciência crítica da loucura – apresenta-se fundamentalmente de modo

moral a partir de julgamentos que não a define mas a denuncia;

2. consciência prática da loucura – mesmo esta, considerando o louco como

figura inferior à razão, também o julga como uma ameaça à ordem, atribuindo assim,

estranhos poderes à loucura como o misterioso poder de desordem;

3. consciência enunciativa da loucura – caracteriza-se pela capacidade de dizer

sem recorrência ao saber que: “esse aí é um louco”. Assim, neste olhar substancial,

percebe-se a evidência da loucura diante de alguém que irrecusavelmente é louco;

4. consciência analítica da loucura – uma consciência que possuirá o saber

objetivo da loucura sob um olhar que a domina e elimina os seus perigos.

(FOUCAULT, 1972, p. 166-169).

Nestas consciências, médicos e sábios interrogavam sobre a loucura, quem é

o louco, como o reconhecemos e como podemos apontá-lo sem errar. Deste modo,

percebe-se que por mais que se procure defini-la, a loucura aparece silenciosa
39

quanto sua forma, porém, não escapa aos olhos de quem a vê. Talvez então, a

alteridade do louco demonstra melhor resposta para quem ele é e como ele é. No

entanto, este reconhecimento aos poucos irá se fechando. Não basta porém,

somente apontar quem é o louco, mas também demonstrar a própria sanidade por

parte de quem o julga. Podemos ver assim estas idéias expressas nas palavras

Boissier de Sauvages apontadas por Foucault (1972, p. 181): ”A saúde do espírito no

que ela tem de material depende da regularidade, da igualdade, da liberdade do

curso dos espíritos nesses pequenos canais”.

Sendo assim, o louco já não pode nem mais dizer que é louco, muito menos

reconhecer a loucura de outro pois está sob o olhar do terceiro personagem da

história: o são. Este, que possui a verdade, torna-se sábio, que por sua vez, torna-se

médico. E como já vimos anteriormente, a loucura como discurso científico possuirá

sua verdade objetivada, constatável – passando, portanto, para as mãos médicas,

acaba por se integrar nas normas e nas classificações patológicas: “a configuração

de uma tecnologia de poder-saber da psiquiatria em torno dela que fazem surgir a

existência de um objeto doença.” (AMARANTE; TORRE, 2001, p. 19).

Essa apropriação da loucura como doença, em seu discurso científico, procura

num modo de classificação de espécie, torná-la possível à medicina e, por sua vez, a

psiquiatria já com classificações desde Paracelso como Lunatici, Insani, Vesani e

Melancholici até chegar às divisões de Plantero, Linnè e Weickhard.

(FOUCAULT,1972, p. 193-195).

É a partir destas necessidades de espécies, que surgiram da classificação da

loucura como doença, que nascerão as especulações e definições diversas e

hierárquicas de acordo com os seus sintomas.


40

Uma das teses fundamentais que História da loucura traz é a da constituição


histórica da doença mental. As noções de doença mental e loucura,
sinônimos na história oficial da psiquiatria, são separadas e diferenciadas,
com o objetivo de mostrar que muda a verdade sobre a loucura. E mais que
isso, não apenas muda a verdade sobre a loucura, mas a forma de relação
que se estabelece com o diferente, a forma de experiência da loucura, a
forma de viver a sanidade. (AMARANTE; TORRE, 2001, p. 19).

O olhar psiquiátrico torna-se desta forma responsável até então por dividir a

loucura em diversas espécies de doenças e em procedimento de qualquer saber

médico à busca de uma cura:

No dispositivo da psiquiatria, trata-se, antes da própria produção da loucura,


ou melhor, da produção da doença mental. È um dispositivo histórico e
político que não se exerce apenas na forma do direito ou da interdição, que
se processa por mecanismos que extravasam o Estado, que possui táticas
pontuais localizadas, nos tratamentos e diagnósticos, mas um efeito
estratégico global definido – instituir uma certa relação com a loucura, que
atende a objetivos próprios, tais como a normalização do processo saúde-
loucura, a produção de um homus pscologicus e de uma norma de
sanidade como controle sobre o funcionamento psicológico dos indivíduos.
(AMARANTE; TORRE, 2001, p. 20).

Parece bastante forte esta questão da produção da loucura em Foucault,

mesmo porque na passagem de uma dita classificação e identificação para a

terapêutica se enxerga, mesmo que timidamente, a sutil dominação de normalidade.

De fato uma construção que já não está nas mãos de uma simples moral ou dos

olhos daqueles que se dizem são, mas, agora, pertencerá à uma ciência

acompanhada de seus profissionais que por métodos indutivos ou não, podem

guardar o normal e produzir a loucura.

Para além de uma psiquiatria que se estabelece sobre o louco, vemos seus

poderes construídos por meio de grandes discursos sobre o mesmo. Um


41

conhecimento do louco enfim constatável, que propiciaria a satisfação de não mais

ter medo e confiar numa ciência que resolverá este problema antropológico de

normalidade. Neste sentido, temos a abertura para o conhecimento psicológico que

se funda no estatuto mental, neurológico, comportamental e (não muito diferente das

raízes psiquiátricas) moral.

No entanto, estranhamente encontramos nesta possibilidade científica da

psiquiatria, métodos que podem se classificar como de baixa experimentação

científica. Ora, tomemos como exemplo atual a discussão que hoje se faz acerca dos

métodos da homeoterapia4 que não se utiliza das verdades conhecidas pela ciência

mas que possui resultados testemunhados – a ciência em seu passado não agia de

modo diferente, pois revela-se em métodos e pressupostos um tanto quanto

alquímicos.

Historicamente podemos notar numa presente especulação de Foucault, o

relato de pressupostos procurados pela medicina na Idade Clássica, como o exemplo

de que a loucura seria causada por supostos vapores e calores presentes no corpo e

não mais por conseqüências da alma:

Os cabelos do homem são bons para eliminar os vapores, se queimados e


dados para que o doente aspire a fumaça... A urina do homem recém
expelida... é boa para os vapores histéricos. (LEMERY apud FOUCAULT,
1972, p. 303).

4
Diferentemente dos métodos utilizados pela medicina tradicional que vê o homem como uma máquina, a
homeopatia se preocupa em tê-lo como um todo de energias: “A homeopatia foi assim desfigurada e pode-se
compreender por que, em conseqüência, não foi compreendida por pensadores e cientistas. Para que ela seja
reconhecida, será preciso primeiramente descobrir a sua verdadeira face, a de uma medicina holística energética.
Cf. VITHOULKAS, 1985, p. 108.
42

Tais experiências chegaram em nível de pesquisas fisiológicas analisadas do


próprio material de estudo que é o corpo do demente. “Em autópsias, Bonet viu o
cérebro dos maníacos seco e quebradiço [...] na demência, a substância era muito
rígida, ou pelo contrário, excessivamente solta.” (FOUCAULT, 1972, p. 218). Os
estudos fisiológicos como de Bonet ou de Meckel concentraram-se nas regiões
cerebrais. Entretanto, a busca de uma causalidade para a loucura ultrapassa o nível
fisiológico. O mundo exterior passará também a ser visto com um dos agentes que
provocam a loucura. Esta dedução comportamental terá em vista não só os fatores
que despertam o desejo e aguçam a imaginação, mas também, se construirá por
meio de análises de internos com fez Black5 no asilo de Benthleem indicando as
seguintes etiologias:

Disposição hereditária, bebedeira, excesso de estudo, febres, seqüelas do


parto, obstrução das vísceras, contusões e fraturas, doenças venéreas,
varíola, úlceras demasiado rapidamente dessecadas; reveses, inquietação,
pesar; amor, ciúme; excesso de devoção e apego à seita dos metodistas;
orgulho. (BLACK apud FOUCAULT, 1972, p. 223).

Desta forma, o não–ser da loucura revelado pela razão agora possui

conseqüências externas, que tornam-se capazes de persuadir qualquer indivíduo

que esteja são. Elementos ou figuras da loucura como a ‘demência’, a ‘melancolia’ e

a ‘hipocondria’ tornam-se únicas nas noções psiquiátricas, mesmo porque, estas

revelam a experiência profunda do desatino:

Não se trata de fazer a história das diferentes noções da psiquiatria,


relacionando-as com o conjunto do saber, das teorias, das observações
médicas que lhes são contemporâneas; não falaremos da psiquiatria na
medicina dos espíritos ou na fisiologia dos sólidos. Mas, retomando uma a
uma as grandes figuras da loucura que se mantiveram ao longo da era
clássica, tentaremos mostrar como se situaram no interior da experiência do
desatino. (FOUCAULT, 1972, p. 251).

5
Black analisou os alienados de Benthleem no período de 1772 a 1787.
43

Desta forma, a psiquiatria partirá destes experimentos para de fato procurar

um sistema terapêutico para a loucura; uma vez que esta estará sob sua vigilância e

observação. Sobre o incontestável olhar do médico, a loucura se faz verdade e seu

discurso é capaz de fabricar alienados. Num princípio de reclusão ultrapassa a noção

de internamento: busca-se então, a recuperação para a normalidade.


CAPÍTULO III

4 A CASA DOS LOUCOS

Era a vez da terapêutica. Simão Bacamarte, ativo e sagaz em descobrir enfermos. Excedeu-
se ainda na diligência e penetração com que principiou a tratá-los. Neste ponto todos os
cronistas estão de pleno acordo: o ilustre alienista fez curas pasmosas, que exitaram a mais
viva admiração em Itaguaí.

Machado de Assis

4.1 DO INTERNAMENTO À TERAPIA

Uma realidade nova está para surgir no internamento após o surgimento da

psiquiatria na história do louco. Graças então a uma nova consciência sobre o

mesmo que não se permanecerá à visão do desatino, da desordem. O louco, neste

momento, é o doente que se difere dos outros perigosos do internamento. Esta

passagem se certificará da necessidade de surgir a mudança de lar. O louco não é

mais confundido com os bandidos, assassinos e etc. Ele é fraco de saúde,

desprovido de sanidade mental e deve possuir um lugar especial que não é mais o

internamento. Procura-se então, a Psiquiatria, um novo internamento para o louco,

tratando-se de uma doença, um hospital – a casa dos loucos:

Fenômeno quase tão repentino quanto o do grande Internamento do século


XVII mas que, ainda mais que este, passou despercebido. No entanto, sua
significação é essencial. Já em 1695 havia sido aberto em Aix um hospital
para os insensatos, com a condição de que fossem violentos e perigosos, o
que indicava bem o caráter puramente repressivo, ainda, dessa instituição.
45

Mas no século XVIII o internamento em casas reservadas estritamente aos


loucos começa a ser praticado de modo regular [...] Esse é um dado quase
inteiramente novo em relação ao século XVII. Muitos loucos, que cinqüenta
anos antes teriam sido encerrados nas grandes casas de internamento,
encontram agora uma terra de asilo que é só deles. (FOUCAULT, 1972,
p. 382).

O hospital já não passa a ser o espaço artificial da loucura, um lugar onde o

louco possa manifestar livremente sua loucura, mas que agora possuirá dentro de

seus sintomas a esperança e a necessidade de sua cura, pois o hospital, agora nos

cuidados da medicina, passa a ser residência experimental e constatável do saber

médico:

Sabemos bem que a biologia de Pasteur simplificou prodigiosamente todos


estes problemas. Determinado o agente do mal e fixando-o como organismo
singular, permitiu que o hospital se tornasse um lugar de observação, de
diagnóstico, de localização clínica e experimental, mas também de
intervenção imediata, ataque voltado para a invasão microbiana.
(FOUCAULT, 1979, p. 119).

Podemos muito bem dizer que o internamento psiquiátrico (a exemplo dos

hospitais na Idade Clássica) tornou-se o grande laboratório experimental da loucura.

Entretanto, se parte da percepção relacional de cura, onde se enxerga a melhora do

louco quanto ao seu delírio, “a volta às afeições morais dentro de seus justos limites”.

(ESQUIROL apud FOUCAULT, 1979, p. 119). Desta forma constrói-se a partir deste

pressuposto o processo último de cura, o critério valioso da verdade alcançado pelo

médico. Neste sentido, faz-se possível analisar toda uma ocasião de experiências

terapêuticas nos asilos, em busca desta melhora do doente mental.

Todavia, encontramos como um dos primeiros momentos deste lugar

terapêutico, o contato com a natureza, de modo a imaginar que esta, sendo a forma

visível de verdade, dissiparia com o erro. Assim, este tipo de retiro, será uma das
46

recomendações de Esquirol ao fazer planos para a construção de um hospital

psiquiátrico.

As prescrições dadas habitualmente pelos médicos eram, assim, a viagem,


o repouso, o passeio, o retiro, o corte com o mundo artificial e vão da
cidade. Esquirol se lembrará disso, quando, ao projetar os planos de um
hospital psiquiátrico, recomendava que cada pátio fosse largamente aberto
com vista para um jardim. (FOUCAULT, 1997, p. 47).

Assim, seguem-se estas idéias terapêuticas praticadas nos hospitais como por

exemplo a imersão onde a água, numa visão de panacéia, era o líquido que

purificava qualquer loucura, ou mesmo os banhos gelados, no intuito de consolidar o

organismo. (FOUCAULT, 1972, p. 313-316). Mas a visão na natureza como

dissipação do erro não pára por aí: as chamadas regulamentações dos movimentos

serão aplicadas, uma vez que a loucura, sendo desordem, poderá suscitar no

doente, movimentos naturais que lhe devolva o bom senso. Nesta imaginação,

destacam-se as terapias como andar de cavalo, viagem no mar, exercícios ao ar livre

e o famoso processo de centrifugação por uma espécie de máquina giratória descrita

por Foucault:

Um pilar perpendicular é fixado no teto e no assoalho; amarra-se o doente


numa cadeira ou numa cama suspensa a um braço horizontal móvel ao
redor do pilar; graças a uma ‘engrenagem pouco complicada|’, imprime-se ‘à
máquina o grau de velocidade desejado’. Cox cita uma de suas próprias
observações; trata-se de um homem atingido por uma melancolia lia sob a
forma de estupor: “sua pele estava escura, os olhos amarelos, o olhar
constantemente fixo no chão, os membros parecendo imóveis, a língua seca
e sulcada e o pulso lento”. (1972, p.320-321).
47

Desta forma, o asilo não só estará aberto para as terapias de cunho físico,

mas também, por meio de formas discursivas ou teatrais. A intenção era de

confrontar ou se utilizar da própria loucura para obter resultados:

Lusitanus narra assim a cura de um melancólico que se acreditava danado,


desde sua vida terrestre, por causa da enormidade dos pecados que tinha
cometido. Na impossibilidade de convence-lo através de argumentos
razoáveis, segundo os quais ele poderia salvar-se, aceita seu delírio, e faz
com que lhe apareça um anjo vestido de branco, espada na mão, que, após
severa exortação, anuncia-lhe que seus pecados foram redimidos.
(FOUCAULT, 1972, p. 329-330).

A representação teatral não se prende apenas à pura imagem do delírio, pois

ela ultrapassa a noção do simples engano, da pobre mentira: ela continua o discurso

delirante. O louco em sua loucura obedece sim, a uma razão, “há uma voz que fala;

ela obedece à sua gramática, e enuncia um sentido”. (FOUCAULT, 1972, p. 330). O

louco possui um mundo próprio e uma língua própria que deverá ser descoberta e

interpretada pela ciência. O médico é aquele que sabe falar na língua dos doentes,

mas que trará o limite entre a doença e a saúde. O psiquiatra então, representa o

verdadeiro limite da loucura; ele é a referência da loucura por saber de seus

sintomas, entender seu idioma e encontrar (obtendo resultados) a sua cura.

Seu conhecimento e seu saber lhe permitem emitir verdades e manifestar sua

vontade sobre o corpo do doente. Deste modo, podemos perceber que os

procedimentos utilizados (por mais heterodoxos que sejam) partem das

determinações do médico do Asilo em seu total direito sobre o louco. Sua relação

com o doente será curiosamente de senhor para com seu vassalo, do mestre que

bem entende de sua propriedade e nela exerce sua liberdade:


48

Isolamento, interrogatório particular ou público, tratamentos - punições como


a ducha, pregações morais, encorajamentos ou repreensões, disciplina
rigorosa, trabalho obrigatório, recompensa, relações de vassalagem, de
posse, de domesticidade e às vezes de servidão entre doente e médico –
tudo isto tinha por função fazer do personagem do médico o “mestre da
loucura”, aquele que a faz se manifestar em sua verdade quando ela se
esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina,
a acalma e absorve depois de a ter sabiamente desencadeado.
(FOUCAULT, 1979, p. 122).

Este espaço de grande laboratório dado ao médico que é o asilo, concedeu-

lhe poderes científicos e sociais do mesmo nível de um biólogo ou físico. E como já

temos visto, o desvinculamento da internação não provocará uma idéia de prisão,

mas sim, um profundo processo imaginário de cura. Nestas intenções, as

justificativas para o internamento tornam-se constantes. O estudo científico da

loucura expressará suas essências num papel cada vez mais sistemático e essencial

para a existência dos asilos. Como vimos, este papel do hospital primeiramente é, de

fato, reduzir a loucura em sua total verdade onde a mesma se expressa de modo

objetivo e experimental. Estabelecer então, conseqüentemente, à própria razão

através do retiro e da natureza do mundo é querer de fato que a loucura seja

conduzida à verdade única no homem que é seu estado puro: racional, moral e

natural.

A instituição permite estabelecer critérios para a busca desta verdade.

Voltamos então à sutileza efetiva do poder, exercida e obtida pelo olhar, a

visibilidade e a observação do médico. A esta concepção do espaço institucional,

temos a noção de geografia do poder já pesquisada por Goffman que, assim como

Foucault, analisou os modos de como este poder se atua através das disciplinas e

punições. Será dentro deste espaço de poder que teremos os frutos das relações de
49

poder, no caso, o objeto científico da loucura – o corpo do louco. Assim nos explica o

artigo escrito por Costa-Rosa (2003, p. 37):

A vida no contexto institucional produz “suposições” referentes à natureza,


aos modos de ser e agir dos seus diversos habitantes: costumo ser
normativa e normativizante. Esses atores institucionais podem enfrentar de
modo variável essa “definição de si mesmos” que a instituição produz:
podem resistir abertamente “e desafiar com desfaçatez os olhares de
redefinição que as pessoas lhes dirigem”.

Percebemos bem esta força do discurso médico: além de se estar reafirmando

através de dados científicos, objetivos e comprovados, também possui o espaço

institucional em suas mãos, que lhe garante a possibilidade de fazer suposições

acerca de seus pacientes, de modo que, submetê-los aos métodos mais bizarros

possíveis, dentro dos muros do hospício, não represente grandes problemas.

No hospício não há uma reprovação da loucura dos loucos, mas um

julgamento; uma ciência de doenças mentais que invadiu os asilos e que

racionalmente julga atos, vigia corpos e observa, escuta e fala com os doentes: “mas

ao mesmo tempo uma psicologia da loucura torna-se possível, uma vez que sob o

olhar é ela continuamente convocada, na superfície de si mesma, a negar sua

dissimulação.” (FOUCAULT, 1972, p. 482).

No entanto, fica-se a constante pergunta: deste conhecimento médico se

conhece de fato a loucura? Vejamos o papel do retiro (asilo) em seu início: era a

preocupação propriamente de cura, mas que por traz disto, está a verificação da qual

aspirou uma confusa divisão de doenças mentais. Os médicos Pinel e Tuke,

conseqüentemente, procuraram abrir as portas para a busca deste conhecimento

mas nada sistematizaram – não fizeram propriamente ciência, e, mesmo assim, o


50

médico possuía sua posição moral e social inabalável porque domina um saber

camuflado.

Acredita-se que Tuke e Pinel abriram o asilo ao conhecimento médico. Não


introduziram uma ciência, mas uma personagem, cujos poderes atribuíam a
esse saber apenas um disfarce ou, no máximo, sua justificativa. Esses
poderes, por natureza, são de ordem moral e social; estão enraizados na
minoridade do louco, na alienação de sua pessoa, e não de seu espírito. Se
a personagem do médico pode delimitar a loucura, não é porque a conhece,
é porque a domina; e aquilo que para o positivismo assumirá a figura da
objetividade é apenas o outro lado, o nascimento desse domínio.
(FOUCAULT, 1972, p. 498).

O hospital, reflete assim, uma estrutura delicada no seu interior. É um

processo de finuras éticas que se traduzem em nada mais do que as próprias

aspirações da sociedade burguesa. Este é o caminho pelo qual o asilo deve

percorrer: transferir uma sociedade em sua estrutura familiar, jurídica e normativa

para uma esfera micro, um estado constituído de paredes e muros que é o hospício.

Um país onde reside sua nação insana que segue, na sua dinâmica, os mesmos

padrões dos homens sãos e civilizados. O louco reside em sua casa, mas vive com o

espírito voltado para fora destes muros, não porque este se desprendeu de sua

loucura, mas porque a civilização habita no seu lar. O vigilante desalienador que lhe

é o espelho, o mestre cidadão e burguês: “o médico só pôde exercer sua autoridade

absoluta sobre o mundo asilar na medida em que, desde o começo, foi Pai, Juiz,

Família e Lei”. (FOUCAULT,1972, p. 498). O louco, deste modo, regride, aceita sua

minoridade perante o médico e a sociedade; é uma criança que necessita de

cuidados para que aprenda novamente os bons e bonitos modos.

Assim, as relações entre médico e doente no asilo caracterizadas nas formas

mais variadas (vassalo, lacaio, objeto e criança) terão ainda seus impasses. Mesmo
51

existindo a personificação do saber científico e a representação de justo e civilizado

na pessoa do médico, sua atuação estará para ser questionada. Mas ainda restará

um perigo: será o domínio representado na pessoa do médico que deverá ser

substituído ou o médico em si? Talvez seja este o fator importante que se possa

procurar quando mencionamos a psiquiatria e as hipóteses de suas possíveis

extensões de poder: a psicologia e a psicanálise.

4.2 A ANTIPSIQUIATRIA E A DESPSIQUIATRIZAÇÃO

Os interesses de cura médica para o louco não são por menos de ordem

fisiológica e psicológica. No entanto, encontrava a psiquiatria uma insuficiência

destes desenvolvimentos, no seu estudo de um objeto ainda ofuscado e misterioso

que é a loucura. As confusões das divisões taxionômicas – dos quadros nosológicos

ajudaram ainda mais para a medicina se afirmar perante o louco como a sociedade e

não propriamente como ciência. O método de esterilização descoberto por Pasteur

polemizou ainda mais estas desconfianças acerca da cientificidade do mundo

médico, pois seria ele próprio o direto transmissor da doença nos hospitais: “o

médico transmitia as doenças que ele devia combater”. (FOUCAULT, 1997, p. 51). O

médico pode disseminar doenças, já que não mais possui domínio sobre elas. Eram

as novas descobertas científicas que cobravam do poder médico que se provara

desvinculado de seus métodos. Fato é que após estas suposições, um novo olhar

acerca de qualquer doente está para aparecer. O médico é questionado ao seu agir.
52

Assim, esta vontade e liberdade do médico sobre o doente encontra suas

dificuldades durante o século XIX numa chamada idade da antipsiquiatria. Esboçada

a crise, as suspeitas eram da própria produção de doenças que antes eram certezas:

“Charcot produzia a crise da histeria de que descrevia”. (FOUCAULT, 1997, p. 51). A

contaminação dos hospitais transmitem a desconfiança do poder médico e de todos

os seus instrumentais. Conseqüentemente, esta revolta encontra-se num nível mais

de reforma do que propriamente de anulação médica. A questão não gira em torno

de uma total derrubada da instituição psiquiátrica mas de melhores recursos e

técnicas justas e mais científicas a fim de derrubar todas as ignorâncias que os

psiquiatras vinham procedendo de formas imprudentes: “a psicocirugia e a

psiquiatria farmacológica são as suas duas formas mais notáveis.” (FOUCAULT,

1997, p. 52).

A integração de um estudo científico detalhado do corpo do doente, suas

funções e formas anatômicas, juntamente com elementos químicos e eficazes para

corrigir qualquer disfunção deste corpo, foi a possibilidade da substituição daquela

suspeita alquímica do médico para as certezas científicas dos remédios. O louco

ainda poderá viver nos hospitais, porém, será tratado com elementos químicos

objetivos, elementos terapêuticos metodologicamente empíricos e não mais intuições

do psiquiatra.

Mas, outra forma de despsiquiatrização que enfraquece as relações de

poder entre o médico e o doente será a regra de uma liberdade discursiva do louco –

acabou-se os perigos de uma taumaturgia psiquiátrica, mas retoma-se um poder

semelhante ao da autoridade médica:


53

Não mais poderás te vangloriar de enganar o teu médico, já que não mais
responderás às perguntas feitas; dirás aquilo que te vem à cabeça, sem que
tenhas nem mesmo de me perguntar àquilo que penso, e se quiseres me
enganar infringindo essa regra, não serei enganado realmente; tu serás
enganado, preso na armadilha, já que terás perturbado a produção da
verdade e aumentado de algumas sessões a soma daquilo que me deves.
(FOUCAULT, 1997, p. 53).

Assim, o divã, (a psicanálise), toma forma neste espaço de despsiquiatrização.

Entretanto, neste nível ainda não é uma autêntica revolta antipsiquiátrica pois está

justamente com os pés fundados nas relações de dominação. A antipsiquiatria posta

em questão por Bernhein, Lang e Basaglia contestava justamente o poder do médico

sobre o doente produzindo uma verdade fabricada. É assim que Basaglia apresenta

as prescrições de Esquirol: “o puro poder do médico [...] aumenta tão

vertiginosamente quanto diminui o poder do doente.” (FOUCAULT, 1997, p. 55).

Neste sentido, falar de antipsiquiatria deduz uma forma de não se buscar uma

substituição do poder psiquiátrico, mas de se lutar contra uma instituição que

estabeleça o lugar do internamento para uma justificativa de sua estratégia de

dominação. São por estas razões que Foucault trata a psicanálise como uma forma

de despsiquiatrização e não de antipsiquiatria, pois sua linguagem e seu estudo,

ainda que não se encontre no interior do asilo, delegam saberes, autoridades e

promessas de cura equivalentes ao da psiquiatria, ou seja, se por um lado à

psicanálise é merecedora de aplausos por retirar o louco do asilo, por outro, é

denunciada por mascarar e reconstituir este poder médico transferindo a produção

de verdade da psiquiatria para si. Foucault relembra dos casos positivos e negativos

da psicanálise quando menciona sua atuação em alguns países dentre eles o Brasil:
54

E em certos países ainda (eu penso no Brasil), a psicanálise desempenhava


um papel político positivo de denúncia da cumplicidade entre os psiquiatras
e o poder. [...] A psicanálise, em algumas de suas atuações, tem efeitos que
entram no quadro do controle e da normalização. (FOUCAULT, 1979,
p. 150).

Os questionamentos acerca dos desenvolvimentos do poder psiquiátrico

realmente chegaram a estas formas de despsiquiatrização. No entanto, interessante

seria observar os discursos que possam sustentar a busca da antipsiquiatria.

Desconfianças que duvidam destas dominações do louco. Já no final do século XIX e

início do século XX a literatura brasileira encontrava-se envolvida com o tema da

loucura, principalmente presente nas obras de um dos grandes escritores brasileiros:

Machado de Assis – que se via imerso num cenário onde o alienismo em seu poder

sobre o louco explícito pelo início das Casas de Internamento no Brasil estava

apenas tomando seu espaço na República.

Assim, em sua principal obra sobre o assunto, o conto O Alienista, Machado

de Assis constrói toda uma história em torno de um personagem o alienista Simão

Bacamarte, que chegando a uma vila (Itaguaí) procuraria implantar a ordem e a

ciência: “a ciência, disse ele a Sua Majestade, é o meu emprego único; Itaguaí é o

meu universo”. (ASSIS, 1996, p. 9). Assim, Bacamarte fundaria a Casa Verde no

intuito de se estudar os loucos da Vila. Interessantemente é observar a sincronia das

propostas de Bacamarte com o já comum asilo na Europa e a preocupação daqueles

que se encontravam iniciados nas modernas noções de ciência para trazer esta

preocupação do asilo para a realidade brasileira. As intenções de Bacamarte eram

sustentadas com a sua posição científica, de que se tratava de ciência, era então

inquestionável sua eficácia:


55

Mas a ciência tem o inefável Dom de curar todas as mágoas; o nosso


médico mergulhou inteiramente no estudo e na prática da medicina. Foi
então que um dos recantos desta lhe chamou especialmente a atenção, - o
recanto psíquico, o exame de patologia cerebral. Não havia na colônia, e
ainda no reino, uma quase inexplorada. Simão Bacamarte compreendeu que
a ciência lusitana, e particularmente a brasileira, podia cobrir-se de “louros
imarcescíveis”, - expressão usada por ele mesmo, mas em um arroubo de
intimidade doméstica; exteriormente era modesto, segundo convém aos
sabedores. (ASSIS,1996, p. 9).

A figura de Bacamarte, no entanto, aos poucos, passa a se tornar temerosa

pois, é ele que bem através de um discurso ditado em código (erudito e

incompreensível) que lhe passa o pleno direito do olhar e a majestosa posição de

apontar o equilíbrio e a loucura. Sim, é o perfeito equilíbrio entre as faculdades que

determinaria a padronização da normalidade. Mesmo os gênios e os estudiosos não

estão longe das garras da loucura:

O padre Lopes confessou que não imaginaria a existência de tantos doidos


no mundo, e menos ainda o inexplicável de alguns casos. Um, por exemplo,
um rapaz bronco e vilão, que todos os dias, depois do almoço, fazia
regularmente um discurso acadêmico, ornado de tropos, de antíteses, de
apóstrofes, com seu recamos de grego latim, e suas borlas de Cícero,
Apuleiro e Tertuliano. O vigário não queria acabar de crer. Quê! Um rapaz
que ele vira, três meses antes, jogando peteca na rua. (ASSIS, 1996, p. 12).

Diante desta determinação de normalidade e insanidade, o Alienista amedronta e

preocupa aqueles que estão à sua volta. Mesmo porque, a Casa Verde aos poucos

vai se enchendo de amigos e conhecidos também. Até então, ao ponto de a casa

estar sob seu total domínio: “Bacamarte espetara na pobre senhora um par de olhos

agudos como punhais.” (ASSIS, 1996, p. 21).

Mas em grande ironia, Machado de Assis põe em questão este suposto

limite de normalidade em poder do alienista. Assim, numa procura incessante sobre


56

tais limites, Bacamarte encontra uma verdadeira e coerente revelação de sua teoria

após libertar todos os internados da Casa Verde: “Mas deveras estariam eles doidos,

e foram curados por mim – ou o que pareceu cura não foi mais do que a descoberta

do perfeito desequilíbrio?” (ASSIS, 1996, p.47). E nesta ilustre descoberta,

Bacamarte chega a conclusão de que Louco era quem era perfeito. Ora, em que a

todo tempo se julgava possuidor de todo equilíbrio de faculdades se vê obrigado a

internar a si próprio: E por final, satiricamente, Machado de Assis destaca que

Bacamarte chega a conclusão de que era ele próprio era louco:

Era decisivo. Simão Bacamarte curvou a cabeça juntamente alegre e triste,


e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde.
Em vão a mulher e os amigos lhe disseram que ficasse, que estava
perfeitamente são e equilibrado: nem rogos nem sugestões nem lágrimas o
detiveram. _ A questão era científica, dizia ele; trata-se de uma doutrina
nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em mim mesmo a teoria e a
prática. (ASSIS, 1996, p. 48).

Nesta aguda ironia, percebemos a preocupação antipsiquiátrica do conto de

Machado de Assis que possui em base este paradoxo de cientificidade. Nesta

mesma perspectiva, podemos analisar alguns fatos importantes de estudo dos

hospitais psiquiátricos como um meio crítico do saber médico. Em especial,

encontramos o estudo feito pela professora Maria Clementina Pereira Cunha no

hospital do Juquery. Fundado na cidade de São Paulo pelo então recém-formado

médico Francisco Franco da Rocha no final do século XIX. Em seu livro “O Espelho

do Mundo”, Pereira Cunha procura mostrar os múltiplos rostos daqueles que por

diversos motivos se vêem presos e dominado nas mãos de grandes médicos. Assim,

seu estudo se encontra dirigidamente aos métodos pelos quais caracterizaram o

Juquery (1986, p.15):


57

A despeito disto, o Juquery se mantém intocado desde afinal do século XIX,


apesar de que tanto o hospício quanto a psiquiatria, em suas correntes mais
ortodoxas, sejam severamente questionados em todo o Ocidente. A
violência asilar e o uso direto da psiquiatria em práticas repressivas de
governos totalitários – como atestam a psiquiatrização das dissidências no
Leste europeu ou a presença de psiquiatras como assistentes “médicos” em
sessões de tortura das ditaduras militares no Brasil, como em todo o Cone
Sul – tem acendido o debate e fundamentado a posição dos críticos da
psiquiatria e do asilo.

Deste modo, no interior do Juquery, a arrogância psiquiátrica se traduz em

práticas de mascaração do poder científico: “dar conta das funções originárias que

conduzem historicamente à gênese do saber psiquiátrico”. (CUNHA, 1986, p. 57).

Seu fundador era um dos primeiros da turma de especialistas no assunto que

chegaram no Brasil: “tido e havido como o ‘Pinel brasileiro’ [...] Franco da Rocha

desempenhava um papel fundamental na história da medicina mental e das formas

científicas”. (CUNHA, 1986, p. 63). Dentro do edifício do Juquery, as experiências

retomadas nesta reclusão social tornam-se inúmeras, bem como também as suas

divisões de doenças:

A extrema importância atribuída à produtividade – indispensável à cura ou


ao controle da loucura – é modificada no caso das mulheres. Para elas, a
reclusão do trabalho doméstico, encerrado entre as paredes daquela “casa
coletiva. A agulha, o fogão, a sala de trabalhos manuais, espaços fechados
condizentes com a idéia da normalidade da condição feminina. (CUNHA,
1986, p. 88-9).

Um hospício não muito diferente de outros é como se apresenta o Juquery;

visões positivistas quanto à sua organização e o caráter de incessante busca de um

remédio universal, neste caso, “o trabalho dos internos volta a ser prescrito como
58

panacéia para a instituição, condição de sua viabilidade, caminho de dignificação e

recuperação dos loucos”. (CUNHA, 1986, p. 208).

Neste sentido é que se situa a antipsiquiatria; questionar em primeiro ponto

todas essas estratégias dos “jogos de poder institucional”. (FOUCAULT, 1997, p. 55).

É desta maneira que a psiquiatria clássica caminhou, nos direitos estratégicos de um

poder que se encontra no seu suposto saber da verdade. Diferentemente, é claro,

caminha a antipsiquiatria:

Dando ao indivíduo a tarefa e o direito de levar a cabo a sua loucura, de


levá-la a seu termo, numa experiência que pode ter a contribuição dos
outros, mas nunca em nome de um poder que lhe seria conferido por sua
razão ou por sua normalidade; separando as condutas, os sofrimentos, os
desejos do estatuto patológico que lhes havia sido conferido, libertando-os
de um diagnóstico e classificação, mas de decisão e de decreto; invalidando,
enfim, a grande retranscrição da loucura na doença mental, que havia sido
empreendida desde o século XVII e concluída no século XIX.

A antipsiquiatria, por sinal, exige a eliminação total do controle médico nos

mares da loucura bem como sua perda do estatuto de doença mental. Neste sentido,

o problema se encontra no nível institucional deste conhecimento, a uma produção

de verdades sobre a loucura. Entretanto, será realmente possível desvincularmos

destas relações de conhecimento? Será de fato real, as implicações mais sinceras

de uma antipsiquiatria?

Para Foucault, estas questões se colocam “concretamente todos os dias no

que se diz respeito do papel do médico”. (1997, p. 57). Assim, estas possibilidades

de uma mudança da constituição de um poder-saber encontra-se em aberto, nesta

buscas de novas formas de Verdades da Loucura.


5 CONCLUSÃO

Considerando os níveis discursivos dos saberes ao longo da história da

loucura, percebemos que o inevitável se afirma: o poder obtido pelas lutas de forças

de indivíduos livres. Livres em seus discursos, no seu saber e na sua influência entre

as relações. Entretanto, a condição do louco enquanto tal, desprovido da sua força

do discurso, permite-lhe entrar para a estabilidade de escravidão. Uma exclusão nas

evidências de saberes.

Neste sentido, a investigação do poder e seus dispositivos, permite-nos

descobrir os fatos que se refletem (não somente no passado), mas no presente, ou

seja, nosso estudo pelas presentes figuras do louco ao longo da história remete-nos

à consciência dele na sua evidência, ainda válida em nossos dias. Nosso olhar o

transforma e o põe como significação de anormalidade. Assim, a possibilidade das

variadas formas de verdade se conclui com as figuras presentes na realidade. O

louco já não possui o domínio de si, está entregue aos olhos e as vontades alheias.

É lançado aos mares, sem rumo, expulso; não participa do cogito da humanidade,

ele não é (não-ser); será pois, internado, escorraçado, punido e integrado aos

a-sociais, para depois se transformar em doente mental e habitar os asilos na

soberania médica.

As contribuições de Foucault para a história da psiquiatria são importantes

para perceber estas estratégias. Desta forma, procuramos caracterizar neste

trabalho, como Instrumentos de poder, as táticas deste saber que se estende à


60

psiquiatria e as técnicas de asilamento numa relação do dominante e mestre da

loucura para com o adestrando, o doente, o louco. Esta questão parece caminhar a

uma certa negação destas formas. Porém, não se encontra luta para com as

idealizações de certas estruturas ou mesmo na simples desconstrução de

instituições. É um pensamento que parte da eliminação de um domínio da loucura

para a busca do exercício do poder. É uma verdadeira antipsiquiatria – uma

anticiência. Um estatuto que não se preocuparia em demarcar o espaço da

normalidade. Foge-se do dispositivo manicomial e encontra-se a liberdade para as

outras invenções de verdades.

Foucault nos propõe esta libertação para as verdades, para a possibilidade

das lutas e das forças, da liberdade do louco. Mas como ele mesmo diz: “não se trata

de chegar a uma conclusão.” (FOUCAULT, 1972, p. 505). É por isso que não

tratamos de resoluções categóricas para os problemas de verdades sobre a loucura.

E assim a efetuação de uma análise da instituição médica permite ver suas formas

explícitas, e por que não, implícitas do poder. Dirigimo-nos então, à procura de um

controle que não seja baseado nesta relação de domínio de liberdade, mas que

busque primeiramente a necessidade de uma devolução ética para a loucura: inicia-

se, portanto, um grande desafio que se encontra sujeito às incertezas da linguagem

sã do homem.
6 REFERÊNCIAS

AMARANTE, Paulo; TORRE, Eduardo H. História da loucura: quarenta anos


transformando a história da psiquiatria. In: Psicologia Clínica. Rio de Janeiro: v.13,
n.1, p.11-26, 2001.

ASSIS, Machado de. O Alienista. 27ª ed., São Paulo: Ática, 1996.

BENELLI, Silvio; COSTA-ROSA, Abílio. Geografia do poder em Goffman. Estudos


de Psicologia. Campinas, PUC – Campinas, v.20, n.2, maio/ago. p.35 – 49.

CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do mundo: Juquery, a história de um


asilo. 2ª ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

DELEUZE, Gilles. Foucault. 2ª ed., São Paulo: Brasiliense, 1991.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996.

________. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1972.

________. Microfísica do poder. 14ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1979.

________. Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Zahar,


1997.

________. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1994.

LOGOS. Enciclopédia luso-brasileira de filosofia. Lisboa: Verbo, 1990.

MARIETTI, Angèle Kremer (Org.). Introdução ao pensamento de Michel Foucault.


Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

PEREIRA, Antônio. A analítica do poder em Michel Foucault. Belo Horizonte:


Autêntica, 2003.

VITHOULKAS, George. A homeopatia: origens e futuro de uma nova medicina. Rio


de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
7 ANEXO

QUADROS NOSOLÓGICOS (AS CLASSES DE DOENÇAS)

Platero: Praxeos Tractatus (1609) Linnè (1763 – Genera Morborum)


MENTIS IMBECILLITAS: Classe V: Doenças mentais
_geral: hebetudo mentis; I – Ideais: delírio, congestão, demência, mania,
_particular: para a imaginação: tarditas ingeii; demonomania, melancolia.
para a razão: imprudentia II – Imaginativas: inquietação, visões,
para a memória: oblivio vertigem, terror, pânico, hipocondria,
sonambulismo.
MENTIS CONSERVATIO: III – Patéticas: gosto depravado, bulimia,
_sono não natural: polidipsia, satiríase, erotomania, nostalgia,
nas pessoas sadias: somnus immodicus, tarentismo, raiva, hidrofobia, cacositia,
profondus; antipatia, ansiedade.
nos doentes: coma, lethargus, cataphora;
estupor: com resolução (apoplexia), com Weickhard (1790 – Der Philosophische Arzt)
convulsão (epilepsia), com rigidez (catalepsia). I – Doenças do espírito (Geisteskrandheiten).
Fraquesa da imaginação;
MENTIS ALIENATIO: Vivacidade da imaginação;
_causas inatas: stultitia Falta de atenção (attentio volubilis);
_causas externas: temulentia, animi commotio; Reflexão obstinada e persistente (attentio
_causas internas: sem febre: mania, acerrima et meditatio profundo);
melancholia; com febre: phenitis, paraphrenitis. Ausência de memória (oblivio);
Erros de juízo (defectus judicii);
MENTIS DEFATIGATIO: Estupidez, lentidão do espírito (defectus,
_vigiliae; insomnia. tarditas ingenii)
Vivacidade extravagante e instabilidade do
Boissier de Sauvages (1763 – Nosologie espírito (ingenium velox, praecox,
Methodique) vividissimum);
Classe I: Vícios – II: Febres – III: Flegmasias – Delírio (insania).
IV: Espasmos – V: Esfalfamentos – VI: II – Doenças do sentimento
Debilidades – VII: Dores – VIII: Loucuras – IX: (Gemütskrandheiten).
Fluxos – X: Caqueixas. Excitação: orgulho, cólera, fanatismo,
erotomania, etc.
Classe VIII: Vesânias ou doenças que Depressão: tristeza, inveja, desespero,
pertubam a razão. suicídio, “doença da corte” (Hofkrankheit), etc.

ORDEM I: Alucinações, que perturbam a


imaginação. Espécies: “vertigem, miragem,
lapso, inquietação, hipocondria,
sonambulismo.”
ORDEM II: Bizarrias (morositates), que
pertubam o apetite. Espécies: “apetite
depravado, fome canina, sede excessiva,
antipatia, nostalgia, terror, pânico, satiríase,
furor uterino, tarentismo, hidrofobia.”
ORDEM III: Delírios, que pertubam o juízo.
Espécies: “congestão cerebral,
demência, melancolia, demonomania e
mania.”
ORDEM IV: Loucuras anormais. Espécies:
amnésia, insônia.

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