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VIGIL ÂNCIA E PUNIÇ Ã O NA ES COLA

NA PERSPECTIVA DE MICHEL FOUCAULT

Na obra Vigiar e punir, Michel Foucault trata especificamente das


instituições penais a partir dos séculos XVII e XVIII, quando as monarquias da
época clássica criaram técnicas mais eficazes de poder do que as até então
utilizadas, através dos castigos corporais e das cerimônias públicas dos suplícios.
O autor interessa-se pelo surgimento da utilização de uma tecnologia própria
de controle que incidia sobre os corpos dos indivíduos . Ele se refere ao
esquadrinhamento disciplinar da sociedade, isto é, a um trabalho de controle
minucioso, detalhado, s obre o corpo e a viija dos indivíduos, manipulando seus
gestos, seus comportamentos , seus espaços, seu tempo, suas atividades. 1 Essa
"repartição disciplinar", essa "colocação em quadro"2 representa um tipo
específico de poder que se encontrava não apenas na pri§ão, mas em outros
lugares, como o hospital, o exército, a fábrica, a escola etc . 3

calculada de seus elementos, de seus gestos , de seus comportamentos. O corpo humano entra
1. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação

numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe" (ver Michel


Foucault, Vigiar e punir: Nascimento da prisão, p . 1 27).
2. Michel Foucault, op. cit . , p. 1 3 5 .
3. Ibidem , p . 1 2 9 .

Vigilância, p u n ição e depredação escolar 25


PRIMEIRA PARTE
A ESCOLA ANTIEDUCATIVA

Não são apenas os prisioneiros que são tratados


como crianças, mas as crianças como prisionei­
ras. As crianças sofrem uma infantilização que não

é a delas. Nesse sentido, é verdade que as escolas


se parecem um pouco com as prisões. . .

Michel Foucault, Microfisica do poder


O século XIX inaugura um tipo específico de poder denominado por funcionar normas gerais de educação. Estabelece-se um sistema de igualdade

Foucault de "poder disciplinar'', característico de uma forma específica de formal que leva à homogeneidade entre os indivíduos, mas ao mesmo tempo

dominação. Ou sej a, com o desaparecimento dos suplícios entre 1 830 e 1 �8, introduz-se a gradação das diferenças individuais, permitindo a medição dos

esse poder atua não mais diretamente n o sofrimento fisico, mas no adestramento "desvios" em relação ao indivíduo-padrão proposto pela norma e tomando úteis

do corpo, exercendo pressão sobre o intelecto, a vontade, as disposições, as as diferenças .7

paixões dos indivíduos . Em lugar dos carrascos, surge uma tecnologia nova de O corretivo para a redução dos "desvios" dar-se-ia pela aplicação do castigo
controle, ativada por guardas, médicos, capelães, psiquiatras, psicólogos, disciplinar. As punições são muito mais da ordem do exercício, do aprendizado
educadores.
intensificado, multiplicado, repetido, do que a vingança da lei ultrajada.8 Na escola,

Demonstrei neste trabalho como a análise do autor com relação às assim como nas fábricas, no exército, na prisão, a repressão exerce-se por meio

instituições carcerárias as aproxima das escolares de hoje. Foucault dá-nos de micropenalidades, que dizem respeito aos desvios quanto a:

referências que permitem analisar a escola como o lugar onde o poder disciplinar
produz saber, mantém-se, é aceito e pratic ado por todos os membros da tempo: atrasos, ausências, interrupções das tarefas ;
instituição escolar, desde a figura do diretor até a dos alunos . Podemos afirmar
que na escola, assim como na prisão, a disciplina recompensa, pelo j ogo das
maneira de ser: grosseria, desobediência;

promoções que permitem estabelecer hierarquias e lugares, e pune, rebaixando


discursos: tagarelice, insolência;

e degradando.4 Essa "penalidade hierarquizante" tem dois efeito s : "distribuir corpo : suj eira, gestos não conformes;

os alunos segundo suas aptidões e comportamentos , portanto segundo o uso sexualidade: imodéstia, indecência. 9
que se poderá fazer deles quando saírem da escola; exercer sobre os alunos
uma pressão constante para que se submetam todos ao mesmo modelo, para
à atenção nos
A coerção visa muito mais aos processos da atividade escolar do que o
que sejam obrigados todos j untos à subordinação, à docilidade,
seu resultado e exerce-se de acordo com uma codificação que esquadrinha o
estudos e nos exercícios e à exata prática dos deveres e de todas as partes da
tempo, o espaço, os movimentos dos estudantes .
disciplina. Para que todos se pareçam" . 5• 6
O sistema operante n o treinamento escolar é o da gratificação-sanção. 1 0
As disciplinas produziram um novo sistema punitivo e fez funcionar
O comportamento cai no campo das boas e más notas, dos bons e dos maus
novos mecanismos de sanção normalizadora. O normal estabelece-se como
p ontos . Os aparelhos disciplinares hierarquizam os "bons" e o s "maus"
princípio de coerção e com ele o poder de regulamentação. Daí Foucault referir­
à produção da "penalidade da norma" pelos dispositivos disciplinares,
indivíduos. A disciplina, ao sancionar os atos, avalia o s indivíduos "com
se
v erdade " ; a penalidade que ela põe em execução integra-se no ciclo de
estabelecendo no ensino a organização de um corpo técnico capaz de fazer
conhecimento dos indivíduos . 1 1

A s disciplinas são "métodos que permitem o controle minucioso das


operações do corpo, que realizam a suj eição constante de suas forças e lhes
4. Ibidem, p. 1 62 .

A partir deste capítulo, alguns d o s desenhos feitos por alunos de t • a 4 ª série s erão aqui
5. Ibidem, p . 1 6 3 .
6.
inseridos com o obj etivo de ilustrar aspectos da teoria foucaultiana, do Idac e os depoimentos
7. Michel Foucault, Vigiar e punir, p . 1 64.
mais significativos dos alunos d e S egundo Grau e os de 5• a 8• série do Primeiro Grau. Por
8. Ibidem, pp. 1 60- 1 6 1 .
questão de sigilo, os nomes dos alunos e das escolas pesquisadas não serão mencionados.

1 O.
9. Ibidem, p . 1 5 9 .
Quanto às nomenclaturas referentes ao Ensino de Primeiro e Segundo Graus, ver nota 3 da
Ibidem, p . 1 6 1 .
Introdução.
11. Ibidem, p . 1 62 .

26 Papirus Editora Vig ilância, p u n ição e depredação escolar 27


imp õ e m uma relação de d o c i lidade-utilidade". 12 Na e s c o l a e s s e contro l e A) Celular ou a Arte das distribuiçõe s : O j ogo da Repartiçfro espacial
minucioso do corpo ocorre através dos exercícios de esquadrinl1amento d o
Primeiramente a disciplina se preocupa com a distribuição dos indivíduos
no espaço. Cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um inàivíduo. O espaço
temp o , do espaço, dos movimentos , g e s t o s e atitude s , fabricando c � o s
submissos, exercitados e dócei s 1 3 (ver desenho n Q 1).
disciplinar divide-se em tantas parcelas quanto corpos ou elementos há a repé\1i:ir;
no fundo ele é sempre celular18 (ver desenho nQ 2).

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Desenho 1 Escola nº 1 1, 4ª série

Esse trab alho s obre o corpo produz o que Foucault denomina uma

Desenho 2 Escola nº 1 1, 2ª série


"anatomia política'', 1 4 uma "mecânica do p oder" 1 5 que define como se pode
obter poder sobre o corpo dos outros, aumentando as forças do c orpo no âmbito
de sua utilidade (ou sej a, em termos econômicos) e diminuindo as forças do
S ã o importantes as presenças e as ausênci a s , s aber onde e c o m o
corpo no âmbito de sua expres são autônoma, pela imposição da obediência (ou
encontrar o s indivíduo s , vigiar o comp ortamento de c a d a u m , rompendo a s
s ej a, em termos políticos ) . 1 6 ,,
c omunicações p erigo sas e criando espaços úteis, i s t o é, trata-se de distribuir
As disciplinas funcionam como técnicas que fabricam indivíduos úteis. 1 7 )'J"i as pessoas num espaço de modo que as i s o l e e as localize, contab ilizando,
H á , s egundo Foucault, quatro tipos d e ordenação disciplinar d o s indivíduo s : comp arando suas hab ilidades. Aqui o autor s e refere ao nascimento da grande
celular, orgânica, genética e combinatória. Vej amos cada uma detalhadamente : indústria e à conseqüente decomposição individualizante da força de trabalho
(ver desenho nQ 3).
Na disciplina o que importa é o lugar que s e o cupa numa classificação. N a
1 2. Ibidem, p. 1 26 .
escola cada indivíduo se define pelo lugar que o cupa n a série, pela posição nas

1 4.
13. Ibidem, p . 1 26 .
filas, pelas tarefas , provas, sucessão de assuntos. Os lugares individuais tomam
Michel Foucault, op. cít. , p.
Aqui o autor fala cm minúcia das regularidades, de uma anatomia política do detalhe (ver

O autor refere-se a uma nova microfisica d o poder tendente a cobrir


1 28). possíveis o controle de cada um e o trabalho simultâneo de todos os suj eitos.

Ver Michcl Foucault, op. cit., p.


15. o corpo social inte iro .

M ichel Foucault , op. cít. , p. 1 27 .


1 28 .

Ibidem, p . 1 3 1 .
1 6.
1 7. Ibidem, p . 1 85 . 18.

2 8 Papirus Editora Vigilância, p u nição e depredação esco:ur 29

1
L
O espaço serial transfonnou o espaço escolar numa "máquina de ensinar,
mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar" . 1 9

A distribuição espacial permite realizar uma s érie d e d istinções entre o s


alunos d e acordo com os seus temperamentos , aplicação nos estudos, condição
econômica dos pais etc . (ver desenho nQ 4) .

A escola representa o que Foucault denomina "quadro vivo" que transforma


a multidão considerada confusa, inútil, perigosa, em multiplicidade organizada. 2 0

B) Orgânica ou Controle da atividade : Codificação das atividades

O rigor do horário sempre caracterizou a s escolas, as oficinas, o s


hospitais . N a s escolas, a divisão d o tempo v a i s e tornando cada vez mais
esmiuçante, imp ondo ritmo e regularidade à s ativida d e s . O s gestos s ão
decompostos aj ustando-se o corpo a movimentos determinados , com c erta
duração, com uma ordem de sucessão .

Desenho 3 - Escola nº.2, 4ª série


A disciplina coloca o princípio de uma utilização crescente do temp o :
"importa extrair do tempo sempre mais instantes disponíveis e d e cada instante
sempre mais forças úteis". 2 1

O u s o d o mínimo instante, o máximo de rap idez, de e fi c i ê n c i a ,


caracterizam o princíp io do aproveitamento do tempo c o m o s e ele fo s s e
inesgotável.

N a escola a utilização do tempo é intensificada: cada instante é o cupado

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por atividades determinadas, segundo um ritmo que acelere o processo de

. aprendizagem e ensine o emprego da rapidez n a passagem de uma operação à

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outra. Temos aqui o corpo do exercício, do treinamento útil, manipulado pela
autoridade. E esse c orpo , tornando-se alvo de novos mecanismos de poder,

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controle, vigilância, oferece-se a novas formas de s ab er.

i;;;l i'§ii C) Genética ou a Organização das gênese s : Acumulação do tempo

s�J - O tempo dos indivíduos é capitalizado, acumulado em seus corpos, em


� fi!#\J:i suas capacidades e suj eito a um controle.22 Como isso o corre? Pela comp osição

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rw• Michel Foucault, op. cit.
� 1 9.
20. Ibidem, p. 135.
p. 1 3 4 .

� Ibidem, p . 1 40 .
Desenho 4 Escola nº 2, 1 ª série
21.
- 22. Ibidem, p . 1 42 .

30 Papirus Editora Vigilância, p u n ição e depredação escol a r 31


r

do tempo em seqüências, separadas e aj ustadas . Essas seqüências são organizadas possibilitam a gênese dos indivíduos e conseqüentemente sua caracterização,
numa sucessão de elementos dos mais simples aos mais complexos, sendo fixado s ej a em relação a um estado final, a outros indivíduos, ou a um tipo de percurso.27
um termo final marcado por uma prova que indica e diferencia a capacid cM' e de
D) Combinatória ou a Composição das forças
aprendizagem de cada indivíduo .23 _
A disciplina também é a arte de compor forças para obter um aparelho
O tempo disciplinar impõe-se à prática pedagógica organizando as séries
eficiente. Primeiramente o corpo é reduzido a sua funcionalidade. O que define
separadas umas das outras por provas graduadas, especificando programas e
o c orpo é o lugar que ele ocupa, a sua regularidade, a ordem com que opera.
exercícios de dificuldade crescente, "qualificando os indivíduos de acordo com
S egundo, o tempo de uns deve ajustar-se ao tempo de outros , extraindo-se a
a maneira como percorreram essas séries"24 (ver desenho n2 5).
máxima quantidade de forças de cada um e combinando-as num ótimo resultado
(ver desenho n2 6).

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Desenho 5 - Escola nº 7, 3ª série

O poder é que toma possível todo esse domínio sobre a duração do


t e mp o , g arantindo e controlando s u a utilizaç ão .25 As s éries múltipl a s e

Desenho 6 - Escola n º 5, 2ª série


progressivas possibilitam: um controle detalhado (diferenciações, correções,
castigos, eliminações) de cada momento do tempo ; a utilização dos indivíduos
de acordo com o nível que têm nas séries que percorrem; a acumulação do
tempo e da atividade totalizados num resultado último, que é a capacidade final Na escola, cada aluno, cada nível, cada momento são utilizados . Aqui,

de um indivíduo .2 6 Foucault s e refere às tarefas de fiscalização, de controle do trabalho, de ensino,


executadas pelos alunos mais velhos . No final, trata-se de ocupar o tempo de
As técnicas disciplinares dirigem o c omportamento dos indivíduo s,
todos os alunos, sej a ensinando, sej a aprendendo . Essa combinação das forças
impõem aos corpos tarefas repetitivas, graduadas, orientadas, cumulativas, que
exige um sistema preciso de comando. As ordens não têm de ser explicadas,
nem reformuladas, o que importa é perceber o sinal e reagir logo a ele. Poucas

Ibidem, p.
p alavras , nenhuma explicação, silêncio total só interrompido por s inais : sinos,

Ibidem, p. 1 44 .
23. 143.
palmas, gestos, olhares dos mestres . O aluno deverá aprender o código dos

Ibidem, p. 1 45 .
24.

Ibidem , p . 1 45 .
25.

27. Ibidem, p.
26.
145.

3 2 Papirus Editora Vigilância, pu nição e depredação escolar 33


1
l
sinais e atender automaticamente a cada um

comando e a moral da obediência28 (ver desenho n2


deles, legitimando a técnica de
7).
-(
Essas técnicas de individualização dos suj eitos abrem um camp o para

11
um tipo específico de saber sobre o homem. Na escola, o controle das mínimas
parcelas da vida e do corpo dos estudantes, por meio das práticas disciplinares,
oferece todo um conj unto de saber, de dados, de receitas que permitem o controle
e utilização dos indivíduos que configuram o ambiente escolar.29

! A escola também é um local de observação em dois sentidos: no de

1
vigilância e no de c onhecimento de c ada aluno, de seu comportamento,
disposições e progressivas melhoras. Isso implica: manter os alunos sob um
olhar permanente e registrar, contabilizar todas as observações e anotações sobre
eles, trabalho esse que permite anotar os desempenhos (boletins individuais,
modelos uniformes, em que se inscrevem observações sobre cada um), perceber
aptidões, estabelecer classificações rigorosas consideradas em relação a uma
evolução "normal", distinguindo o que é "preguiça e teimosia" do que é
"imbecilidade incurável".3º Vemos então como a vigilância está inserida na
essência da prática do ensino. Não é mais necessário recorrer à força para obrigar
o escolar à aplicação, o essencial é que o aluno, assim como o detento, se .saiba Desenho 7 - Escola nº 2, 4ª série
vigiado : "ele nunca deve saber se está sendo observado, mas deve ter certeza
de que sempre pode sê-lo".3 1 Esse processo acaba automatizando o poder, pouco
. importando quem o exerça (ver desenho n2 8).
Na escola, ser observado, olhado, contado detalhadamente, passa a ser
um m e i o de c o n tr o l e , de domina ç ã o , um m é t o d o p ara d o c um e ntar
individualidades. A criação desse campo documentário permitiu a entrada do
indivíduo no campo do saber e conseqüentemente um novo tipo de poder recaiu
sobre os corpos dos suj eitos em situação escolar.

O s efeitos de poder multiplicam-s e na rede escolar em virtude da


acumulação cada vez maior de novos conhecimentos adquiridos a partir da
entrada dos indivíduos no campo do saber. Conhecer a alma, individualidade,
consciência, comportamento dos alunos é o que tem tornado possível a psicologia
da criança, a psicopedagogia.

Ibidem , pp. 1 49- 1 50.


Ibidem, pp. 1 29- 1 30.
28.

Ibidem, pp. 1 79 e 22 1 .
29.

Ibidem , p . 1 78 . Desenho 8 - Escola nº 7, 2ª série


30.
31.

3 4 Papirus Editora
Vigilância, punição e depredação escolar 35

l
Os domínios do saber formaram-se, portanto, a partir das práticas políticas informações referentes a suas aptidões, suas capacidades, sua evoh:ção, s eus
disciplinares e a vigilância é o suporte básico dessas práticas. desvios. Todo esse conhecimento sobre o aluno é que tomará a escola local
' -f de elaboração da pedagogia. O exame, portanto, supõe um mecanismo que liga
o

A escola também é um aparelho que produz poder. E pela vigilântia que


'
um certo tipo de formação de saber e uma certa forma de exercício de pocler.35
se organiza um poder múltiplo, automático, anônimo, que atua nos indivíduos,
fazendo funcionar uma rede de relações. Nas escolas, como nas prisões e nas O exame constitui-se em um "arquivo inteiro com detalhes e minúcias
fábricas, o aparelho inteiro produz poder e distribui as pessoas nesse campo que se constitui ao nível dos corpos e dos dias". 3 6 Os códigos da individualidade
permanente e contínuo.32 d i s c i p l inar p ermitem trans crever os traço s indivi duais e s t ab e l e c i d o s
homogeneizando-os : aqui, Foucault refere-se a o código fisico d a qualificação,
No ambiente escolar, a comunicação dos indivíduos dá-se num sentido
ao código médico dos sintomas, ao código escolar ou militar dos comportamentos
vertical, provocando o isolamento, a reunião sem comunicação, o controle
e dos desempenhos.
ininterrupto. Ao mesmo tempo desenvolvem-se hábitos de s o ciabilidade
(participação em comum de exercícios úteis, execução em comum de bons O exame oferece duas possibilidades:
hábitos). Cria-se também a individualização, causando a ruptura de qualquer
relação que não sej a controlada pelo p oder ou ordenada de acordo c om a a) A constituição do aluno como obj eto descritível, mantendo seus tra­
hierarquia. 33 ços singulares, sua evolução particular, suas aptidões, sob o controle
de um saber permanente.
Outro indicador dessa modalidade de poder é a existência dos exames
na escola. O exame faz de cada indivíduo um caso, e o caso é o indivíduo b) A formação de um sistema comparativo que pennite a descrição de
des crito, mensurado, medido, comparado a outros , treinado, retreinado, grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios
classificado, normalizado. dos indivíduos entre si.

O exame combina a técnica da sanção que normaliza e da hierarquia que


É um controle normalizante, uma vigilância que permite classificar,
No caso das escolas, pode-se afirmar com Foucault que as técnicas de
vigia.
disciplina e o exame se constituíram em peças fundamentais para a edificação
qualificar e punir. Estabelece uma visibilidade pela qual os alunos são
da pedagogia.37
diferenciados e sancionados, o que explica que, em todos os dispositivos de
disciplina, o exame sej a altamente ritualizado. A cerimônia do exame reúne o Diante desse quadro, qual o papel da escola p ara nosso autor?
p oder, constantemente renovado, a demonstração da força, o estabelecimento
As normas pedagógicas têm a eficácia de marcar, de solidificar os
da verdade, a suj eição dos que são percebidos como obj etos e a obj etivação dos
"desvios", reforçando a imagem de alunos tidos como "problemáticos".
que se suj eitam.34
A escola, ao dividir-se em séries, em graus, salienta as diferenças
O exame compara continuamente cada um com todos, o que permite
individuais, recompensando aqueles que se sujeitam aos movimentos regulares
medir e sancionar. Por meio dele, ocorre uma troca de saberes: ao mesmo tempo
que o professor transmite seu saber, ele faz o levantamento de um campo de
conhecimentos sobre seus alunos, ou sej a, retira do aluno todo um arquivo de

35. Ibidem, p . 1 66 .
36. Ibidem, p . 1 68 .
37. Segundo o professor Maurício Tragtenberg, os exames dissimulam a exclusão em massa, uma
32. Ibidem, p. 1 5 8 . vez que o povo já está excluído da escola. Eu diria que, mesmo assim, os exames oferecem as
33. Ibidem , p. 2 1 4. poss ibilidades apontadas por Foucault, pois, por meio desse s imulacro , a escola tem um
34. Ibidem, p . 1 6 5 . instrumento a mais para qualificar, hierarquizar, punir alunos.

1 3 6 Papirus Editora Vigilância, p u n ição e depredação escolH 37


que o sistema escolar impõe e punindo aqueles que não obtêm sucesso, ou que se Bentham.42 As salas de aula e a área administrativa distribuem-se de o utra
rebelam contra essa exigência de passagem hierarquizante de uma sé rit a outra. forma, mas a vigilância é constante, sendo exercida por diretores, professores,
inspetores de alunos e outros funcionários (ver desenho nº- 9).
O modelo pedagógico tradicional permite localizar os indivíd� s sobre
os quais se pode efetuar uma vigilância constante. As punições, ao serem feitas, Existem alguns prédios que chegam a se assemelhar com os presídios
não têm como obj etivo acabar com os infratores, mas distingui-los, diferenciá­ ao apresentarem altos muros, protegidos com fileiras de arame farpado ou cacos
los, separá-los como grupo restrito e fechado de indivíduos que caracterizam de vidro, grades de proteção nas janelas e fechamento das áreas de circulação
"a desordem, o crime, a loucura".38 dentro do prédio (ver desenhos nº- 10 e nº- 1 1 ).
A escola pass a a se constituir num observatório político, num aparelho Quando ocorrem a s depredações d o prédio escolar, digo que elas abrem
que permite o conhecimento, o controle perpétuo de sua população por meio um campo delimitado de violência sobre o qual é possível localizar os indivíduos
do corpo docente, dos diretores, dos funcionário s e dos próprio s alunos . portadores de um potencial desviante.
Delimitando os papéis, a escola ensina a delação . É muito comum alunos
Mais adiante tornarei mais explícita a idéia de que a escola se protege da
considerados "bonzinhos" delatarem os "outros" que conversam muito, fazem
depredação assinalando comportamentos marginais. A escola associa depredação
agitação, depredam o prédio escolar etc.
com marginalidade, com delinqüência. É o "mau aluno", é o "maloqueiro'', é o
Pode-se afirmar que na escola o poder de punir torna-se natural e legítimo.
"favelado" que depreda. De certo modo, a escola pretende reduzir as depredações
Para Foucault o poder de punir não é essencialmente diferente do de educar. 39
esquadrinhando comportamentos, distinguindo os "bons" dos "maus" alunos.
A escola e suas técnicas disciplinares fazem com que as pessoas aceitem o
O padrão estabelecido é o do bom aluno, aquele que não depreda a escola;
poder de punir e de serem punidas. Cada indivíduo, na posição que ocupa, faz
quem depreda é o marginal. Com isso, impede-se que a depredação resulte em
"reinar a universalidade do normativo'', submetendo o corpo, os gestos, os
formas mais amplas de manifestação. Essa idéia se aproxima das reflexões de
comportamentos, as condutas, as aptidões, os desempenhos aos inúmeros
Foucault quando ele se refere ao sistema carcerário que separou ilegalidade de
mecanismos de disciplina exercidos pela sociedade.
delinqüência e se utilizou desta última para controle das ilegalidades.43
Quanto às rebeliões, às revoltas, aos motins, pode-se alegar que os
mecanismos disciplinares funcionam de modo que sejam evitados. Os horários,

(. . .) na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas
os treinamentos, a vigilância dominam os movimentos de massa, disciplinando­
42. "

os e neutralizando os efeitos de contrapoder que nascem da disciplina.40 Além que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma
disso, Foucault leva-nos a entender que, como o detento, o estudante é induzido
correspondendo às janelas da torre, outra que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela
atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas j anelas, uma para o interior,

a sentir-se sempre vigiado e controlado .

doente, um condenado, um operário, ou um escolar" (Michel Foucault, op. cit., p. 1 77).


de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um
Cada um em seu lugar é visto pelo vigia; na prisão, os muros laterais
impedem a comunicação com os companheiro s . "É visto, mas não vê"4 1 e é 43 . Referindo-se à delinqüência: "Não devemos ver nesta a forma mais intensa e mais nociva da
ilegalidade ( . . . ) ela é antes um efeito da penalidade que permite diferenciar, arrumar e controlar
essa a garantia da ordem. Eu diria que, na escola atual brasileira, a arquitetura
as ilegalidades. Sem dúvida a delinqüência é uma das formas da ilegalidade; em todo caso,
dos prédio s escolares p ermite uma c erta aproximação ao panóptico de tem suas raízes nela; mas é uma ilegalidade que o sistema carcerário, com todas as suas
ramificações, investiu, recortou, penetrou, organizou, fechou num meio definido e ao qual deu
um papel instrumental, em relação às outras ilegalidades ( . . . ) Vimos como o sistema carcerário

Michel Foucault, Vigiar e punir, p. 262.


substituiu o infrator pelo 'delinqüente' e afixou também sobre a prática jurídica todo um

Ibidem, p . 265 .
3 8.

se une à operação política que dissocia as ilegalidades e delas isola a delinqüência. A prisão
horizonte de conhecimento possível. Ora, nesse processo de constituição a delinqüência-objeto

Ibidem, p. 1 9 3 .
39.

Ibidem, p. 1 77 .
40. ·
é o elo desses do is mecanismos; permite-lhes se reforçarem perpetuamente um ao outro,
41. objetivar a delinqüência por trás da infração, consolidar a delinqüência no movimento das

3 8 Papirus Editora Vig ilância, punição e depredação escolar 39


Se as depredaçôes acusam os descontentamentos e críticas q toda a

instituição escolar, tenta-se impedi-las exercendo uma vigilância constante no

comportamento dos indivíduos e estabelecendo o padrão ideal de atitudes per�nte


a escola, com o obj etivo, dessa forma, de evitar que as ind i s c ip l inas se

transformem e m armas contra as estruturas j á estabelecidas.

No Brasil fala-se muito no fracasso do seu sistema educacional, mas,


aproveitando as considerações de Foucault a respeito do sistema carcerário,44
podemos afirmar que o sucesso da escola depende do s eu aparente fracasso
como instituição . Na verdade, o interesse da escola atual reside nos seus
resultadós como instituição controladora da sociedade. Se o sistema educacional
tem se constituído num fracasso, a escola tem tido sucesso como instituição
normalizadora, com a função de c lassificar, de hierarquizar, de distribuir lugares.

Desenho 9 - Escola n º 1 3, 3ª série


Visa-se ao c ontrole dos desvi o s dos aluno s como indivídu o s . As normas
pedagógicas, ao deixarem de atender ao aproveitamento escolar dos alunos,
conseguem ter a eficácia de marcar, de solidificar os desvios, reforçando a

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imagem de alunos tidos como "marginais", "índios", "maloqueiros". A escola,
ao fracassar como escola, só faz reforçar as diferenças já trazidas pelos alunos,

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discriminando o s bons dos maus, os comportados dos indóceis, os inteligentes
dos menos dotados . A escola atual cria, com suas práticas pedagógicas, a
possibilidade de esquadrinhar comportamentos , efetuando-se sobre eles uma
vigilância constante.

ilegalídades" (Michel Foucault, op. cit. , pp. 243 -244). "A delinqüência, esse outro mundo,
perigoso e muitas vezes hostil, bloqueia ou ao menos mantém a um nível bastante baixo as

245).
práticas ilegais correntes (pequenos roubos, pequenas violências, recusas ou desvios cotidianos

Desenho 1 0 - Escola nº 2, 3ª série


da lei), impede que elas resultem cm formas amplas e manifestas ( . . . ) " (ibidem, p .

mas antes a distingui-las, a distribuí-las, a utilizá-las" (Michel Foucault, op. cit. , p . 240). "O
44. " ( . . . ) a prisão e , d e u m a maneira.geral, os castigos n ã o se destinam a suprimir as infrações;

atestado de que a prisão fracassa em reduzir os crimes deve ser substituído pela hipótese de

ou economicamente menos perigosa, talvez até util izável de il egalidade ( ... ) A penalidade de
que a prisão conseguiu muito bem produzir a delinqüência, tipo especificado, forma política

detenção fabricaria ( . . . ) uma ilegalidade fechada, separada e útil", sendo possível controlá­

"É possível além disso orientar essa delinqüência f��hada em si mesma para as fonnas
Ja, "localizando os indivíduos, infiltrando-se no grupo, organizando a delação mútua" (ibidem,

j
p. 244).
de ilegalidade que são menos perigosas ( . . . ) os delinqüentes se atiram fatalmente a uma

sem conseqüência" (ibidem, p. 245). "A delinqüência ( . . . ) constitui-se em meio de vigilância


criminalidade localizada, sem poder de atração, politicamente sem perigo e economicamente

Desenho 1 1 - Escola nº 1 3, 2ª série


perpétua da população : um aparelho que permite controlar através dos próprios delinqüentes
todo o campo social" (ibidem, p. 247).

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Vigilância, p u nição e depredação escolar 41
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