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A notícia como narrativa e discurso

Marconi Oliveira da Silva

Resumo Abstract
A notícia jornalística quase sempre é compreendida como Journalistic news is nearly always understood as an
um texto expositivo onde os fatos se apresentam por or- expositive text in which facts are presented in order of
dem de importância e relevância. No entanto, o texto no- importance and relevance. However, news text can also
ticioso pode também ser enquadrado como narrativa e fit into the category of narrative and discourse when
como discurso, quando as noções de narrativa são mais considering broader notions of narrative in the epic 49
abrangentes que no sentido épico. O trabalho em pauta sense. The present work seeks to show that news can be
quer mostrar que a notícia pode ser um discurso, isto discourse with evaluative positions on the facts reported.
é, com posições avaliativas dos fatos relatados. Baseado Based on the sociolinguistic theory of narrative put forth
na teoria sociolingüística da narrativa de William La- by William Labov, the narrative of a newspaper article
bov, este artigo analisa uma narrativa de uma notícia is analyzed. This study seeks to reaffirm that a social
de jornal. O que se pretende com esse estudo é reafirmar fact becomes a journalistic fact through the meanings
que um fato social vira fato jornalístico pelos sentidos offered by the evaluation.
oferecidos pela avaliação.

Palavras-chave: Key words:


Análise da narrativa, Notícia jornalística, Discurso Narrative analysis, Journalistic news, Discourse
Na aceitação de que o “homem é natural- Enquanto a Isto quer dizer que uma sociedade com iden-
mente um animal político”, destinado a viver linguagem, de tidade própria significa uma sociedade com
em sociedade e que entre todos os animais narrativa própria.
tem o dom da palavra, se pode concluir com
modo geral, é a O estudo que se segue pretende apresen-
Aristóteles que “o homem é o animal que argamassa da tar aspectos teóricos da narrativa de linha
possui o discurso”. Com isso ele pode com- sociedade e das sociolingüística representada por William
preender o que é útil ou prejudicial, o que é relações jurídicas Labov. A perspectiva que será utilizada
justo e injusto e enfim todos os sentimentos e sociais entre aqui será a relação entre narrativa e dis-
da mesma ordem cuja comunicação configu- os cidadãos, curso. Como se dá a marcação de ambos e
ra a família e o estado. A narrativa vai se como é possível o discurso que se encontra
constituir num instrumento fundamental da
a linguagem além do texto, isto é, no contexto lingüístico
visibilidade do homem dentro da sociedade e narrativa vai e mesmo socia? Quais as principais estru-
da sociedade como tal. A história é o exem- construindo o turas narrativas apresentadas para a faci-
plo mais claro de que a vida em sociedade arcabouço moral, litação da sua análise? O papel do narrador
adquire sentido e forma pela narrativa da psicológico, como peça muito importante na questão da
ação do homem sobre o mundo, que vai te- ideológico e possibilidade do discurso. E ainda, será a
cendo sua trajetória e revelando tanto um informação incompatível com o espírito da
ser político por natureza quanto um ser que
social de uma narrativa? Em suma, toda a fundamenta-
se impõe pela força e pela violência. determinada ção teórica demonstrada deverá servir de
A possibilidade da narrativa veio pela comunidade ferramenta para uma aplicação de análise
50 linguagem pela qual é possível registrar os de narrativa de uma notícia jornalística,
pensamentos, relembrar fatos passados, e que para receber essa denominação, de jor-
estabelecer a comunicação entre os indivídu- nalística, precisa ser informativa, mas, ao
os. Enquanto a linguagem, de modo geral, é mesmo tempo, relatar fatos da comédia hu-
a argamassa da sociedade e das relações ju- mana que nem sempre se reduzem à mera
rídicas e sociais entre os cidadãos, a lingua- informação.
gem narrativa vai construindo o arcabouço
moral, psicológico, ideológico e social de uma Narrativa - Segundo Todorov (1971) a
determinada comunidade. Uma sociedade narrativa é um texto referencial com tempo-
não sobrevive se não possui sua própria nar- ralidade representada. Além da proposição,
rativa ou não se reconhece nas narrativas a narrativa apresenta a seqüência constitu-
que a ela aludem. ída de pelo menos de três proposições. São
A linguagem narrativa expressa o mun- elas representadas por dois atributos de um
do e revela a realidade. Essa realidade é a agente que são aparentados, mas diferen-
própria linguagem que lhe dá sentido. Isto tes, e por um processo de transformação ou
é, a narrativa e o discurso representam a re- de mediação que permite a passagem de um
alidade e lhe servem, ao mesmo tempo, de para outro.
luz para a compreensão do tempo passado e Gérard Genette define assim a narrati-
do presente da comunidade. A importância va: “A narrativa é uma representação de
da narrativa, portanto, é calcada na própria um acontecimento ou de uma série de acon-
constituição e sobrevivência da sociedade. tecimentos, reais ou fictícios, por meio da

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linguagem, e mais particularmente da lin- imitação poética (mimesis), sendo o outro
guagem escrita.” (Barthes,1976:255) O Di- a representação direta dos acontecimen-
cionário de Lingüística de Dubois diz que a tos por atores falando diante do público.
narrativa é um discurso que se refere a uma (Aristóteles,1996:32-33). Platão chama a
temporalidade passada com relação ao mo- imitação propriamente dita de mimesis e
mento da enunciação.(Dubois, 1999:427). a simples narrativa de diegesis. Simples
Pelas definições apresentadas pode-se narrativa compreende tudo o que o poeta
concluir que a narrativa é a representação narra falando em seu próprio nome e não
de um acontecimento e que este aconteci- leva o ouvinte a acreditar que é outro que
mento implica numa transformação ou mu- fala.(Platão,1997:84-96). Em outros ter-
dança de um estado de coisas. O importante mos, se percebe que o discurso é o que é
é não confundir o acontecimento como tal mantido diretamente pelo falante, dito em
com o relato do acontecimento. Só o acon- seu próprio nome.
tecimento representado pela linguagem é O tempo do discurso não é o tempo exis-
que se considera como narrativa. Também tencial, mas morfológico. O que importa é a
se pode dizer que uma representação sem representação do tempo em relação ao ato
acontecimento não constitui narrativa. da enunciação. Assim, o tempo do discurso é
o tempo presente.
Discurso - O discurso comumente é toma- Os tipos de discurso são o discurso dire-
do como sinônimo de fala (parole). O discur- to e o discurso indireto. No primeiro há um
so é a linguagem em ação. O discurso é a fala narrador que repete as palavras de alguém 51
assumida pelo locutor. Nesse sentido uma como foram ditas. Para isso mantém as for-
narrativa pode ser um discurso, ou melhor, mas ligadas à pessoa do que falava que são
toda narrativa é um discurso. Porém, para os pronomes, (Eu-Tu), no lugar do falante
Benveniste o discurso está em oposição à (aqui/lá,hoje/ontem), no tempo em que fa-
narrativa.(Benveniste,1988:262-276). Esta lava (presente, futuro e passado composto).
distinção, aceita pelos estruturalistas, tem Já no discurso indireto a frase é repetida na
a seguinte explicação: na narrativa parece narrativa como um sintagma nominal pelo
que não existe locutor ou falante, e assim, conectivo integrante “que”, ou pela redução
os acontecimentos parecem evoluir e falar da forma verbal ao infinitivo. Na narrativa
por si próprios. Já no discurso se apresenta o mais comum é o uso da terceira pessoa
uma enunciação que supõe sempre um locu- A narrativa é a (Ele) e dos tempos verbais: passado simples
tor/falante e um ouvinte/leitor. Há por parte representação de e mais que perfeito.
do locutor uma vontade de influenciar o ou- um acontecimento
vinte. No discurso não são apenas os aconte- e que este A narrativa como discurso - Conside-
cimentos contados que importam, mas como acontecimento ra-se a narrativa como discurso quando este
o narrador organizou e ordenou seu relato discurso é dirigido pelo narrador ao leitor/
para o ouvinte.
implica numa ouvinte. Isto é, a narrativa é utilizada como
Esta relação entre narrativa e discur- transformação ou forma de discurso, para afirmar ou dizer mais
so já existia em Aristóteles. Para ele, a mudança de um do que diz a história. O processo desse dis-
narrativa (diegesis) é um dos modos de estado de coisas curso segundo, Todorov (Barthes,1976), leva
em conta: (a) o tempo da narrativa que é a o romance e o conto, William Labov está inte-
relação entre tempo da história e o tempo da ressado nos relatos orais de pessoas comuns
narrativa; (b) os aspectos da narração que é sobre suas experiências de vida. As narrati-
como a história é percebida pelo narrador; (c) vas surgiram de modo espontâneo ou qua-
os modos da narrativa, que é a utilização es- se espontâneo como a narração de alguma
pecífica de um discurso1. vivência de uma situação em que se passou
Quando se diz que a narrativa tem objeti- pelo perigo de vida. E como as histórias se
vidade e o discurso resvala para a subjetivida- passam dentro de um determinado contexto,
de, considera-se que tanto objetividade quanto verificou-se que as narrativas possuíam uma
subjetividade devem ser entendidas do ponto de função referencial e uma outra função que foi
vista lingüístico. A presença do eu, por exemplo, denominada de avaliação. A partir daí, La-
é uma marca de subjetividade. Já a objetivida- bov vai elaborar uma teoria da narrativa ca-
de da narrativa se define pela ausência de toda paz de facilitar a análise através das partes
referência ao narrador. Também se pode dizer da estrutura da narrativa e pelos elementos
que o presente quase nunca se identifica com o (orações) que compõem essa estrutura.
momento da enunciação do discurso. Narrativa é um método de recapitular ex-
Na narrativa a significação é oferecida pelo periências passadas através de uma seqüência
próprio desenrolar dos acontecimentos, já no verbal de orações que corresponde à seqüência
discurso a situação mesma do ato de falar é de acontecimentos ocorridos no mundo real.
o centro das significações mais importantes. Veja o exemplo:
52 Porém, não se deve procurar as essências da
narrativa e do discurso, pois nunca são encon- .João pegou o revólver
tradas em estado puro. .apontou para o ladrão
Quais os motivos dessa assimetria entre dis- .e atirou
curso e narrativa? É ainda Genette que apre-
senta três razões: (1) sendo o discurso o modo A seqüência temporal da narrativa é im-
natural da linguagem, o mais aberto e univer- portante para definir o processo da função
sal não tem nenhuma pureza a preservar; (2) referencial, mas nem toda recapitulação de
a narrativa, pelo contrário, é uma forma parti- experiência é uma narrativa. Para que seja
cular que possui restrições e exclusões, como a uma narrativa mínima2 é preciso que duas
recusa do presente, da primeira pessoa etc. (3) orações sejam ordenadas temporalmente, isto
o discurso pode “narrar” sem deixar de ser dis- é, que uma mudança na ordem original resul-
curso, já a narrativa não “pode discorrer” sem tará numa mudança na seqüência temporal, e
sair de si mesma. Por outro lado, a narrativa acarretando uma mudança semântica. Uma 1
O presente é objetivo, por exemplo,
não pode se abster do discurso pois ficaria sem juntura temporal significa que cada oração su- numa transmissão de um jogo de
atrativo. (Barthes, 1976:272) cede outra oração numa seqüência ininterrup- futebol, quando o narrador enuncia
ta. Cada oração está relacionada a outra como o acontecimento no momento
Narrativa segundo William Labov seqüência x conseqüência, seguinte x conse- mesmo que acontece.
Ao contrário dos estruturalistas que diri- guinte. A seqüência narrativa sugere relações 2
Narrativa mínima é definida
giram sua atenção para a antálise da narrativa causais como na expressão latina post hoc, ergo como aquela que contém uma única
estabelecida em textos escritos, principalmente propter hoc. juntura temporal.(Labov, 1972:361)

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Orações temporalmente ordenadas são que implica que todas as orações limite são
3
Labov (1997) alerta que todas as
seqüências são orações independentes chamadas de orações narrativas. O exemplo orações seqüenciais, 4. uma oração narra-
(mas nem todas as orações indepen- dado por Labov (1972:361) é o seguinte: tiva com uma ordem maior que zero é uma
dentes são orações seqüenciais). Para oração restrita o que implica que narrativas
uma oração ser uma oração seqüen- 8. a. Eu conheci um menino chamado são grupos se orações limite, restritas e li-
cial, sua parte principal deve identifi-
car relações seqüenciais de tempo. Harry. vres. B: as orações de complicação são neces-
b. um outro menino atirou uma gar- sariamente orações seqüenciais. Isto quer
2
A estrutura de começo, meio e fim rafa bem na cabeça dele dizer que elas podem participar de junções
é a mesma apresentada por Aris- c. e ele teve de levar sete pontos. temporais como os resumos, orientações e
tóteles na Poética para a tragédia.
“Assentamos que a tragédia é a
codas. 1. um resumo é uma oração inicial em
imitação de uma a cão acabada Só as orações b. e c. são consideradas uma narrativa que conta com a seqüência in-
e inteira, de alguma extensão, como orações narrativas, pois possuem jun- teira de eventos da narrativa. 2. uma oração
pois pode uma coisa ser inteira tura temporal. Já a oração a. não possuindo de orientação dá informações da hora, lugar
sem ter extensão. Inteiro é o que
a juntura temporal pode ser deslocada para dos eventos, identidade dos participantes e
tem começo, meio e fim. Começo é
aquilo que, de per si, não se segue depois de b. ou c. sem alterar a ordem tempo- seus comportamentos iniciais. 3. uma com-
necessariamente a outra coisa, ral. Esta oração Labov a chamou de oração plicação de ação é uma oração seqüencial
mas após o que, por natureza, livre. que relata um próximo evento em resposta
existe ou se produz outra coisa;
É preciso estar atento para determina- a uma pergunta potencial: “o que aconte-
fim, pelo contrário, é aquilo que,
de per si e por natureza, vem após dos tipos de orações que aparentemente ceu depois?; 4. uma coda é uma oração final
outra coisa, quer necessária, quer são narrativas, mas que não alteram a que volta a narrativa para o tempo de fala,
ordinariamente, mas após o que ordem da narrativa. Entre elas estão as evitando uma pergunta potencial: “e o que 53
não há nada mais; meio o que de orações subordinadas já que não se pode aconteceu depois?”
si vem após outra coisa e após o
que outra coisa vem.” (Aristóteles, alterar a interpretação semântica original Há ainda as orações restritivas que se
1996:37) Elinor Ochs (1997) acres- ao invertê-la. Por isso, só as orações inde- deslocam por uma grande parte da narrativa
centa mais três estruturas além pendentes podem funcionar como orações sem alterar a seqüência temporal da inter-
das estruturas de Aristóteles e narrativas com verbos no modo indicativo pretação semântica original, porém não na
Labov. 1.Stein e Glenn – a narra-
tiva possui: a) cenário (setting); b)
e nos tempos: pretérito, presente históri- narrativa inteira. (Labov,1972:363)
evento iniciador; c) uma resposta co, ou passado progressivo. A seqüência de As narrativas mais simples são completas
interna; d) uma tentativa ostensi- orações narrativas forma a ação de com- no sentido que têm um início, meio e fim4 e
va; e) uma conseqüência. 2.Stein plicação3t. formadas só com orações narrativas, mas
e Policatro – ascrescenta um ele-
mento à estrutura anterior que é
Num ensaio recente Labov (1997:399- como há outros elementos de estruturas nar-
uma reação a c) e d) ou e). 3.Jean 403) apresenta: A: tipos temporais de ora- rativas mais desenvolvidas, a narrativa com-
Mandler e Nancy Johnson – que ções narrativas e, B: tipos estruturais de pleta pode apresentar a seguinte configura-
apenas incluem o componente orações narrativas. A: 1.a ordem da oração ção5: (a) Resumo; (b) Orientação; (c) Compli-
‘final’ nos esquemas anteriores.
narrativa é o grupo de orações narrativas cação (da ação); (d) Avaliação; (e) Resultado
3
A estrutura apresentada é específica entre o primeiro antecedente e a próxima ou Resolução; (f) Coda.
de narrativas orais de experiências junção temporal; 2. uma oração livre é uma Labov (1972) deixa claro que essa estru-
pessoais, mas que pode ser aplicada em oração que refere a condição que prende a tura é passível de inúmeros encadeamentos
outros tipos de narrativas como: contos
verdade durante a narrativa inteira; 3. uma e encaixes, sendo que a complicação é o pró-
de fadas, romances, contos, entrevistas
terapêuticas e as narrativas banais da oração temporariamente limite é uma ora- prio motor da narrativa, isto é, quando al-
vida cotidiana. (Labov,1997) ção independente com uma ordem de zero o guma ação modifica um estado de coisas é que
torna possível a narrativa. O resultado ou É a avaliação secundária que é concentrada na seção de
resolução acontece, naturalmente, quando que revela a avaliação, mas pode ser encontrada em vá-
essa cadeia de ações modificadoras ou trans- rias formas por toda a narrativa. Pode ha-
formadoras cessa.
importância da ver também orações avaliativas que não se
(a) Resumo – É uma espécie de sumari- história para o referem a um acontecimento ocorrido, mas
zação da essência da história e onde se pode leitor/ouvinte e antes um que não ocorreu. O contraste entre
ver o objetivo da mesma aos olhos do narra- evita que se diga: o que ocorreu e o que não ocorreu mas podia
dor. O foco do resumo é quase sempre enten- “e daí?” ter ocorrido serve para avaliar a narrativa.
dido como o fulcro de interesse da narrativa. “O fulcro principal ou foco da narrativa é
(b) Orientação – Comumente formada muitas vezes indicado pela concentração
por orações livres, a orientação identifica o de um número de orações avaliativas numa
tempo, o lugar, os participantes e suas ações SEÇÃO DE AVALIAÇÃO que precede ime-
e seu comportamento geral antes ou no mo- diatamente uma oração narrativa particu-
mento da primeira ação. Muitas vezes já se lar.” (Labov,1982:226).
encontram alguns elementos da orientação Em linhas gerais a avaliação tanto é
no resumo. Duas observações: (1) é muito co- realizada no nível lingüístico / gramatical
mum encontrar muitas orações de passado quanto no nível não lingüístico. No primeiro
progressivo na orientação mostrando o que caso, as indicações para a avaliação podem
estava em curso antes do primeiro evento; ser encontradas no uso dos negativos, com-
(2) é possível que todas as orações livres es- parativos, modais ou futuros. No segundo
54 tejam no começo da narrativa, mas também caso, a avaliação de um acontecimento são
aparecem em outros lugares, atendendo a informações acerca de conseqüências dos
uma função avaliativa. acontecimentos narrados que atendem a
(c) Complicação – O conjunto das ora- necessidade dos desejos humanos. Entram
ções narrativas forma o conteúdo ou os even- aqui as ênfases, estruturas paralelas, nega-
tos de uma narrativa. A complicação pode tivas e futuras. (Labov,1997:403-404).
se dá dentro de uma simples narrativa ou Há dois tipos de mecanismos de avalia-
abrangendo episódios. ção já esboçados no parágrafo anterior: há
(d) Avaliação – A avaliação de uma mecanismos de avaliação externa e meca-
narrativa pode se definir como uma parte nismos sintáticos: esquematicamente são os
da narrativa em que se revela a atitude do seguintes:
narrador quando enfatiza alguns aspectos Avaliação externa: o narrador pode pa-
da narrativa em relação a outros e com rar a narração, voltar-se para o ouvinte e
isso oferecendo várias significações para dizer-lhe qual o objetivo. Alguns narradores
o que está sendo narrado. Labov (1972) deixam que a própria narrativa leve essa
diz que a avaliação é um elemento mais informação .
importante em acréscimo à oração nar- Encaixe de avaliação: primeiro passo -
rativa básica. É a avaliação que revela a o narrador encaixa algum sentimento como
importância da história para o leitor/ou- alguma coisa que ocorre, fora da narrativa,
vinte e evita que se diga: “e daí?”. A ava- mas preservando a continuidade da narra-
liação da narrativa forma uma estrutura tiva;

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segundo passo – o narrador faz um encaixe 6.Adverbiais de modo ou instrumento.
como estivesse se dirigindo a alguém; tercei- 7.Adverbiais locativos.
ro passo – se introduz uma terceira pessoa 8.Adverbiais temporais e orações conse-
que avalia as ações do antagonista do nar- cutivas.
rador. Na tentativa de utilizar elementos avalia-
Ação de avaliação – é contar o que as tivos dentro da sintaxe da narrativa básica o
pessoas fizeram de preferência ao que elas narrador usa de elementos intensificadores,
disseram. comparadores, correlativos e explicações. O
Suspensão da ação – “A maior parte primeiro elemento vai reforçar um dos acon-
das marcas avaliativas mencionadas antes tecimentos de uma série linear formada por
teriam o efeito de suspender a ação da nar- orações narrativas. Esse intensificador pode
rativa. As emoções expressas podem ter sido se dar pela repetição ou por enunciados ri-
instantâneas ou simultâneas com a ação no tuais, algo que faz parte da cultura onde
momento, mas quando são expressas em a história está sendo contada. A segunda
períodos separados, a ação pára. Parar a forma de avaliar é usando comparadores,
ação chama a atenção para aquela parte da isto é, comparam os acontecimentos que
narrativa e indica ao ouvinte que isso tem ocorreram com os que não ocorreram. Os
alguma conexão com o ponto de avaliação” correlativos reúnem dois acontecimentos
(Labov,1972:374) que ocorreram de fato numa só oração in-
Avaliação por desvio da sintaxe bá- dependente. Por último, as explicações de
sica – A oração narrativa como já foi de- uma narrativa acontecem em orações se- 55
monstrado tem uma sintaxe simples, mes- paradas, mas apensas à oração narrativa
mo assim sua estrutura pode ser descrita principal. Pode ser qualificações conectadas
por uma estrutura hierárquica com oito por conjunções tais como enquanto, embo-
elementos: (1) o período adverbial; (2) fra- ra, ou causais introduzidas por desde que.
se nominal-sujeito; (3) ao (8) frase verbal. porque.(Labov,1972:378-392)
A seguir um esquema dos elementos mais (e) Resolução – a resolução de uma
complexos quando ocorrem dentro da sin- narrativa é o final de uma série de aconteci-
taxe narrativa básica.(Labov,1972:376) mentos. O narrador pode também apresen-
1.Conjunções, inclusive temporais: tar algum efeito ou conseqüência que resul-
assim, e, mas, então. tou da narrativa.
2.Sujeitos simples: pronomes e no- (f) Coda – A coda tem a função de re-
mes próprios: esta menina, meu pai. tornar a perspectiva verbal para o momento
3.O auxiliar é um simples marcador de presente, isto é, para o instante da enun-
tempo passado e os verbos ocasionais come- Depois da coda ciação. São várias as opções que o narrador
çar, iniciar,segurar, costumar, desejar. fica claro para os possui para assinalar que a narrativa aca-
4.Verbos no pretérito com partícu- bou. A coda pode ainda conter observações
las verbais: sobre, embaixo.
ouvinte ou leitores gerais ou mostrar os efeitos dos fatos sobre
5.Complementos de complexidade que os fatos mais o narrador. Depois da coda fica claro para os
variável : objetos direto e indireto. importantes já ouvinte ou leitores que os fatos mais impor-
foram narrados tantes já foram narrados.
1. Análise de uma notícia de jornal

Uma trágica história de amor


Aconteceu em Jaboatão

No dia 17 de outubro de 2000, Maviael Belarmino Costa, 54 anos, matou


Jacinete Valderina da Silva, 43 anos, e depois se enforcou no seu barraco que fica
no município de Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife. A causa
imediata do assassinato e suicídio parece clara: ele foi abandonado pela amante um
mês atrás. Os dois se conheceram há um ano e resolveram morar juntos. Porém, a
família pressionou Jacinete para que se separasse de Maviael que não era aceito
como par ideal para ela. Entretanto, Jacinete ficou visitando o amante mesmo
com a situação de separação definida. Maviael parece não ter aceito um amor pela
metade: a jurou de morte e cumpriu o juramento.

O relato acima está o mais objetivo Os limites do homem são a morte e o perigo
possível dos fatos ocorridos e publicados de vida.
56 no jornal Folha de Pernambuco - Recife, na O suicídio, geralmente, é resultado da
quarta-feira do dia 18 de outubro de 2000, impossibilidade individual de suportar
página 10 de Polícia. contrariedades ou desilusões. Não existe,
A imprensa tem como norma só divulgar porém, nenhum desgosto que possa tor-
suicídio quando ele é causa da morte de al- nar a vida intolerável a ponto de levar à
guém. Pessoas que por vontade própria tira própria morte. Há homens que passam por
a própria vida sem antes ter prejudicado situações horríveis, mas que, em vez de de-
alguém, geralmente não é objeto de divul- sistir de viver, é motivo de luta para solu-
gação. O caso que começamos a analisar cionar os problemas. Para Durkheim, que
ocorre com pessoas localizadas na base da estudou o assunto, é na sociedade que se
pirâmide social e por isso mesmo não tem a deve buscar as causas últimas do suicídio.
repercussão que casos semelhantes possuem As causas próximas não passam de eco do
quando os personagens são proeminências e estado moral da sociedade. Sendo assim,
celebridades. Mas, por que fatos como esse tudo pode servir de causa ocasional do sui-
é objeto de notícia jornalística? Ele tem im- cídio.
portância pela sua própria dimensão huma- A estrutura geral de uma notícia é compos-
na universal. São fatos relacionados com o ta de (1) título; (2) lide; (3) tdocumentação.
amor, a piedade, o ódio, o horror, o medo, a O título, segundo os manuais, deveria ser
simpatia, o ciúme e o sacrifício. É a comé- uma síntese atrativa do lide. O lide, por sua
dia humana. Aqui o fator vida se antepõe vez, formado pelo primeiro parágrafo, é uma
à própria circunstância e ao relato do fato. proposição no sentido aristotélico contendo

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os elementos principais que compõem o fato: É aquilo do qual o homem não pode fugir,
quem (o sujeito-personagem), que (a ação está além de suas forças e possibilidades. A
realizada), quando (a dimensão temporal qualificação trágica traz uma carga pesada
do acontecimento), onde (o espaço/cenário), de significações que cada indivíduo aplica a
como (as circunstâncias) e porque (causa, alguma situação em que se encontra o ine-
razão, motivo). O lide, portanto, é compos- vitável. Outros vocábulos ligados ao trágico
to por um sintagma nominal, que pode ser também refletem esse efeito de significado:
um substantivo, uma locução substantiva funesto, sinistro, mau fado, desgraça, in-
ou ainda uma oração integrante, um sintag- fortúnio, calamitoso, terrível, lúgubre. E
ma verbal representado pelo verbo, objeto quando o trágico é um qualificativo de uma
direto e objeto indireto, e por fim, um Sin- história de amor a carga emocional chega ao
tagma Circunstancial formado por palavras nível máximo da exacerbação dos sentimen-
que possam indicar tempo, lugar, modo, ins- tos. Amor é o centro unificador do universo
trumento, causa e conseqüência. A notícia e dos homens e quando ele é pervertido tor-
possui ainda a documentação formada pelos na-se princípio de divisão e de morte. Essa
demais parágrafos que serve para contex- perversão se concretiza pela eliminação do
tualizar e complementar o lide com orações outro quando uma parte não consegue se
adicionais. tornar o todo.
A notícia pode ser classificada como um O uso do artigo indefinido “uma” não dei-
relato porque não é seu objetivo contar um xa de ser uma percepção primária do fato e
acontecimento objetivando a transmissão de denota principalmente pouco conhecimen- 57
uma mensagem. A notícia quer prender o to dos indivíduos. Em outras palavras, o
leitor/destinatário ao texto. Para isso ordena leitor já possui no seu repertório cultural
os fatos a partir dos eventos mais importan- “tragédias amorosas”, porém os fatos que se
tes e interessantes e menos pela ordenação seguem são únicos dentro desse quadro se-
de seqüência temporal. mântico. A informação propriamente dita é
Após essas considerações, veremos a se- dada no subtítulo “Aconteceu em Jaboatão”,
guir como a notícia que estamos analisando quando o leitor fica sabendo que os aconteci-
foge um pouco desse paradigma. mentos trágicos relatados aconteceram bem
próximos dele. E proximidade aqui tem dois
2. Análise do título sentidos: proximidade geográfica e proximi-
dade existencial ou de contingência humana,
Título: UMA TRÁGICA HISTÓRIA DE isto é, o que vai ser narrado pode servir de
AMOR catarse para cada leitor.
Subtítulo: Aconteceu em Jaboatão O título pode ser considerado como Resu-
mo levando-se em consideração o uso do ar-
Ao fugir da informação6, o título apela tigo indefinido e do subtítulo. Além do mais,
para a imaginação e emoção do leitor ao as fotos que acompanham o texto comple-
unir dois pólos antagônicos: vida x morte. tam de certa forma o resumo e já oferecem
6
Um título mais informativo
seria: HOMEM ESTRANGULA Tragédia é um acontecimento que sempre algumas orientações, como é o caso do sub-
AMANTE E SE MATA. desperta piedade e terror. É o inexorável. título.
3.Análise integral do texto7 controle de ambos. Nos termos de Labov U.1
seria uma explicativa.
[Primeira seqüência da narrativa:
U.1 a U.7. A carta, a promessa, descri- U.2. Eu mato você e me enforco.
ção do quarto mortuário e uma peque-
na seção de avaliação.] Aparece a repetição (intensificador) da
futura ação, mas com o verbo no tempo
U.1. “Neta, eu vou matar você porque presente quase como uma constatação de
você me deixou por nada. uma decisão já tomada e que não tem volta.
U.2. Eu mato você e me enforco. Acrescenta em seguida: e me enforco, tam-
U.3. Não quero viver sem você. Te amo bém dito como algo já definido e inevitável. O
muito”. interessante é que a forma de seu suicídio já
foi determinada e daí não repeti o verbo ma-
O conjunto das três unidades acima é a tar. Será que ele não tinha escolhido ainda a
transcrição de uma carta escrita por Mavia- forma de morte que reservou para a amante,
el para Jacinete. Talvez se possa afirmar que ou apenas isso não era insignificante diante
a carta toma a forma catafórica para toda a do fato mesmo de matar e morrer?
narrativa. Isto é, sua referência é dada pelo
que segue. Sua interpretação é posterior. U.3. Não quero viver sem você. Te amo
Por outro lado, a carta realiza metaforica- muito”.
58 mente as ações e acontecimentos realizados
a posteriori. Não chega a ser um ato de fala, Segue uma justificativa do suicídio que se
apesar do narrador em U.5. dizer que Ma- origina da sua vontade: não quero viver sem
viael cumpriu a promessa. O que importa você. Percebe-se de imediato que o persona-
é que o leitor só tem acesso a narrativa do gem acredita que a amante pode e quer viver
estrangulamento e suicídio pela carta. sem ele, já que o deixou por nada, o que sig-
nifica, talvez, sem remorso e sem sofrimento.
U.1. “Neta, eu vou matar você porque No entanto, ele não quer separar o que ele
você me deixou por nada. acha que não pode ser separado. O sofrimen-
to da ausência da amada tem a mesma in-
Maviael parece pedir desculpas a Neta tensidade do seu amor por ela. É um conflito
pela sua decisão, mas logo acrescenta, qua- tão profundo que só lhe resta uma escolha:
se que se justificando, os motivos de tão viver ou morrer. E sua opção engloba a fi-
dolorosa determinação: ele foi abandonado gura do outro: ambos morrerão para que só
por ela, e isso já é muito duro de suportar, assim o amor os una novamente
porém, o mais insuportável ainda, é ser dei-
xado por nada. Isto talvez queira dizer que U.4. Essa foi a última carta, entre tantas
ele não deu motivos para que ela agisse as- outras, escritas pelo biscateiro Maviael 7
A notícia analisada foi dividida
sim. O amor de ambos era presumivelmente Belarmino Costa, 54 anos, a sua ex-com- em unidades (U) de significação
recíproco (?). Então, o significado de nada panheira, a cozinheira Jacinete Valderi- e numeradas na ordem em que
só pode ser algo além da razão e que foge do na da Silva, 43. aparecem no jornal.

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Típica oração de Orientação, inicia com lugar, a opinião de familiares e conhecidos
uma anáfora referente à carta, seu remeten- da mulher. No entanto, vale ressaltar, o que
te e destinatário. O leitor fica sabendo que se busca entender não é o relato do aconteci-
esta carta é a última de muitas que Maviael mento, como tal, mas as razões que levaram
enviou para Jacinete, mas não se fica saben- àquele desfecho.
do o que elas tratavam. Pelo que as teste-
munhas disseram em U.8. e U.10. talvez as U.6. O corpo da mulher estava sobre a
cartas discutissem a rejeição a família dela cama com sinais de estrangulamento,
ao caso do dois. Maviael é biscateiro, por- enquanto Maviael, preferiu enforcar-se
tanto, vive de bico, de gancho, enfim, não nos fundos da casa, utilizando uma cor-
tendo emprego, vive de trabalho de pouca da amarrada no teto de madeira.
importância econômica/ financeira e social.
Já com 54 anos parece não haver mais pos- Há aqui uma espécie de descrição de
sibilidade de mudar seu caminho. Ela, onze cenário onde se procura encontrar sinais
anos mais nova, tem 43 anos, e é cozinhei- concretos de como Maviael cumpriu o que
ra. Nada mais é dito para o leitor. Qual o prometeu. O narrador vai contar o que vê,
estado civil do casal? Parece que a resposta mas acrescenta algumas deduções. Há um
não tem importância para a narrativa, daí a corpo que foi estrangulado estendido sobre
ausência da informação. a cama e há outro corpo enforcado nos fun-
dos da casa. O repórter deduz que Maviael
U.5. Ontem, pela manhã, ele cumpriu a preferiu enforcar-se com uso de uma corda. 59
promessa: o casal foi encontrado morto As orações podem ser consideradas como
no barraco de n°. 20, da rua Sete, no Alto avaliativas explicativas, ficando o narrador
de Dois Carneiros, Jaboatão dos Guara- oferecendo uma fotografia parada do quadro
rapes. mórbido.

Mais um trecho de Orientação, o tempo: U.7. Terminava, assim, mais um contur-


ontem, pela manhã; lugar: barraco e endere- bado caso de amor onde uma das partes
ço; ação: o casal foi encontrado morto. Não é acaba não resistindo a dor de ser deixa-
a ação do personagem principal, mas a iden- do.
tificação do efeito de um acontecimento já
relatado na carta. Onde estaria, entretanto, O narrador apresenta o seu discurso (ava-
a complicação da ação? Como já foi dito, a O narrador liação) oferecendo ao leitor uma significação
carta, cataforicamente realiza a complicação apresenta o dos acontecimentos. Para ele, esse é mais
e que agora o significado se completa pela seu discurso um caso conturbado de amor, daí ter usado
constatação do cumprimento da promessa. (avaliação) o artigo indefinido também no título. O que
Para explicar e compreender o que aconte- quer dizer que todos os casos conturbados
ceu com aqueles personagens inertes, foi
oferecendo de amor são iguais na paixão e ao mesmo
preciso encontrar a chave do sentido na car- ao leitor uma tempo são tão singulares para os envolvidos
ta, em primeiro lugar e de forma privilegia- significação dos que cada caso pode ser considerado um novo
da (já que ela inicia o relato), e em segundo acontecimentos caso de amor conturbado. Também é comum,
segundo ainda o narrador, uma parte não A metáfora da U.9. De acordo com o irmão de Jacinete,
resistir a dor de ser deixado. E aqui fica dor é carregada Ozias Eduardo de Oliveira, 29, os dois
implícito que a semântica de não resistir conheceram-se há um ano e resolveram
possa significar eliminar pelo contexto
de emoção e, por morar juntos.
apresentado até o momento. Para o narra- se acreditar que
dor o caso de amor só acabou com a mor- a linguagem não O informante aqui oferece dados relacio-
te do casal, e não quando Jacinete deixou tem condição de nados ao tempo em que eles se conheceram e
Maviael. Será que quando uma parte en- expressá-la, cada moravam juntos. Esse tempo o narrador em
volvida não aceita o rompimento o caso de leitor pode criar U.14. vai considerar como curto para um rela-
amor se perpetua? Parece soar falsa essa cionamento. O que se depreende dessa infor-
posição, já que amor sempre significou a
na sua imaginação mação é que foi uma atração fulminante entre
unificação de duas pessoas reciprocamen- parâmetros de dor ambos, onde a paixão é mais forte que a possi-
te envolvidas. A metáfora da dor é carre- bilidade de raciocinar sobre as conseqüências.
gada de emoção e, por se acreditar que a É uma forma de comparação avaliativa.
linguagem não tem condição de expressá-
la, cada leitor pode criar na sua imagina- U.10. A pressão da família da mulher
ção parâmetros de dor a partir de suas era grande sobre o casal, pois não via
próprias dores. com bons olhos o relacionamento.

[Segunda seqüência da narrativa: U.8. O narrador retoma palavra para esclare-


60 a U.13: Depoimentos do conhecido do cer que toda pressão para dissolver o rela-
casal Jozivan, do irmão de Jacinete, e cionamento era da família da mulher. Mas,
de infomações da família.(avaliações por que usar um vocábulo genérico (mulher)
de encaixe).] quando já se sabe quem é Jacinete? Talvez o
narrador queira demonstrar distanciamento
U.8. “Ela tinha casa própria, família, dos fatos, não querendo se envolver na ques-
e não precisava ficar ao lado dele que tão. No entanto, é essa pressão sobre a mulher
não tinha nenhum futuro para ofere- que vai atingir o homem. Mas, o que significa
cer”, afirmou um conhecido do casal, “não via com bons olhos”? É uma expressão
Jozivan dos Prazeres de Albuquerque, mais uma vez tão aberta a significações que o
25. leitor poderá criar sua própria interpretação
tomando como base suas próprias vivências
Avaliação de encaixe na voz de uma ter- cognitivas. Percebe-se ainda que a Jacinete é
ceira pessoa. Jozivan analisa os fatos ape- alguém muito fácil de ser pressionada.
nas pelo lado material da relação. Se ela
tinha casa própria não precisava ficar no U.11. “Ela resolveu deixá-lo há cerca de
barraco do amante; se ela tinha família, ele vinte dias, mas aparecia para visitá-lo.
não poderia lhe oferecer nada com relação
ao futuro. Isto é, no momento presente e na Ozias volta a fornecer pistas do relacio-
idade em que o casal se encontra, apenas ela namento do casal com relação ao tempo. Sob
sairia perdendo. pressão familiar ela cedeu, mas cedeu só

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em parte, pois ficou visitando o amante. Era [Terceira seqüência formada ape-
um comportamento, pode-se concluir, que nas por esta Seção de Avaliação de
tentava satisfazer as restrições da família U.14.]
e conservar o relacionamento com Maviael.
Mas, este não aceitou um amor pela meta- U.14. Curiosamente, ao matá-la, o bis-
de. Para ele, visitas não configuravam amor cateiro procurou cobrir a vítima com
no sentido de doação total. Como ele diz na um lençol branco e colocou sobre a
carta: você me deixou por nada; você me fez cabeça dela um pedaço de mosquitei-
sofrer muito; não quero viver sem você. ro vermelho que servia de adorno. Aos
pés do cadáver, foram postas algumas
U.12. Infelizmente, essa foi a última visi- fotos de momentos vividos pelo casal
ta”, revelou o irmão de Neta. durante o curto tempo de relaciona-
mento.
Conclui Ozias com o advérbio “infeliz-
mente” para significar que última visita foi Uma Seção de Avaliação em que o nar-
a morte. O pesar do irmão parece resigna- rador descreve como o corpo da vítima foi
do e de certa forma confirma que a posição encontrado. Em vez de uma cama desarru-
da família contrária ao caso de amor estava mada que pudesse lembrar o instante do
correta. Infelizmente significa também que estrangulamento, o corpo de Jacinete foi
a irmã não deu ouvidos quando se dizia que cuidadosamente disposto como uma noiva
Maviael não tinha futuro a lhe oferecer. da morte. Alguns detalhes podem ser vis- 61
tos na fotografia maior colocada ao lado
U.13. Segundo informações da família direito da página do jornal. Inúmeras in-
dela, após o término do caso, Maviael terpretações são possíveis diante de tanto
passou a jurá-la de morte e prometeu se simbolismo que a cena apresenta. A posi-
matar por enforcamento depois de matá- ção do corpo que aparenta dormir; os len-
la. çóis brancos como uma mortalha, mas pode
ser um vestido de noiva que não pode dizer
O narrador mais uma vez toma a palavra, não para o amor; o mosquiteiro vermelho
e com as informações da família de Jacinete sobre a cabeça como um véu e grinalda; as
esclarece que as ameaças contidas na carta fotos que congelaram os momentos felizes
eram também ditas verbalmente por Ma- de amor.
viael para Neta. Eram mortes anunciadas, Pelas formas de matar e morrer, san-
mas tipos de intimidações são tão terríveis gue não foi derramado, o que mutilaria
que levam as pessoas a não acreditar na sua Pode-se dizer os corpos e evitaria o horror de uma cena
execução. Quase sempre o agressor é vis- que há aspectos ensangüentada. Dormir e morrer se asse-
to, principalmente o agressor apaixonado, melham na aparência. Talvez o autor do
orientadores no
como alguém que está blefando na tentativa estrangulamento olhasse a morte como o
de reconquistar o amor perdido. Pode-se di- que se refere às caminho inevitável para a vida amorosa.
zer que há aspectos orientadores no que se ações anteriores É uma contradição. E aí reside a loucu-
refere às ações anteriores dos personagens. dos personagens ra.
Lençóis brancos lembram de imediato a Não é preciso de felicidade fotografados podem retornar
pureza de almas e corpos, a vestimenta conhecer nada em outra vida. É tudo muito curioso como
nupcial. No Apocalipse, o branco é a cor da afirma o narrador.
vestimenta dos que saíram da grande tribu-
do mundo para
lação, lavaram sua roupa e branquearam-na consumir um [Quarta e última seqüência narrati-
com o sangue do Cordeiro; a brancura sim- fait-divers va formada por U.15 e U.16: Caracte-
boliza o estado celeste. Mas, será que Mavia- rizada pela Resolução ou resultado e
el pensou nesses significados quase religio- pela Coda.]
sos, ou simplesmente quis deixar o corpo da
amada bem composto e bonito? U.15. O caso será investigado pela Dele-
O narrador afirma ser um adorno o véu gacia de Cavaleiro.
vermelho colocado sobre a cabeça da mulher. U.16. De acordo com o delegado Antônio
O véu tanto pode revelar como ocultar algo. Falcão, o inquérito será complementado
Às vezes o véu esconde realidades muito cru- com outras apurações e levado para a
éis ou verdades não aceitas. Mas, a posição do Justiça como crime passional.
véu vermelho com estampas de flores mais
claras sobre a cabeça lembra noiva em bo- O tom informativo prevalece nestas duas
das de sangue, ou uma boda com a morte por últimas unidades. Sendo um caso policial
amor. O vermelho sempre simbolizou o princí- informa-se para o leitor qual delegacia fará
pio da vida, cor do fogo e cor do sangue; possui as investigações. Porém, em U.16, o delega-
62 essa ambivalência de vida e morte. É a cor da do Antônio Falcão fala de outras apurações
alma, da libido e do coração. A cor púrpura, e classifica o caso como crime passional. Isto
às vezes, tem ligação com a morte. Segundo quer dizer que esta trágica história de amor
Chevalier (1988), “exteriorizado, o vermelho não passará de um simples caso passional.
se torna perigoso como o instinto de poder, Para Roland Barthes (1982:58), crime pas-
se não é controlado; leva ao egoísmo, ao ódio, sional é o fait-divers. Enquanto um crime
à paixão cega, ao amor infernal”. Mas, o que político remete a uma situação extensiva, “o
se passou na cabeça do personagem para agir fait-divers, pelo contrário, é uma informa-
dessa maneira? Poderia ele querer dizer que ção total, ou mais exatamente, imanente;
na morte ela não poderia mais deixá-lo? ele contém em si todo seu saber: não é preci-
As fotos aos pés do cadáver são os momen- so conhecer nada do mundo para consumir
tos de felicidade e da afirmação do amor do um fait-divers; ele não remete formalmente
dois que depois se deteriorou e morreu em a nada além dele próprio”.
vida. Agora, na morte, esses momentos res- Podemos considerar U.15 e o início de
suscitam e se imortalizam. Fotos, no entanto, U.16 como a resolução do relato. A última
são instantâneos que ao mesmo tempo que oração...“levado para a Justiça como crime
recordam momentos felizes, são testemu- passional” se aproxima um pouco o que Labov
nhas mais eloqüentes de um presente que chama de Coda. O leitor volta para o tempo
nega o passado. No entanto, Maviael, no seu presente com a alma levada pelo estímulo do
entendimento de que a morte vai fazer vol- Princípio do Prazer, um dos impulsos da vida,
tar seu amor, assim também os momentos segundo Freud, talvez, mais serena e satisfeita.

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Conclusão
O objetivo deste trabalho visava evidenciar mais aprofundado do texto noticioso com a finali-
o discurso que se apresenta nas narrativas em dade de se oferecer alternativas em que o discur-
dois momentos: primeiro por uma investiga- so fique mais claro e não oculto sob o véu da
ção teórica e depois através de uma análise de neutralidade e objetividade.
notícia de jornal que por tradição quer levar
ao leitor informações objetivas e com isso eli-
minar o discurso da figura do narrador. Sobre o autor
Diante da vastidão de teorias e escolas Marconi Oliveira da Silva, mestre em Filoso-
que tratam da narrativa optamos pela linha fia e Doutor em Lingüística pela Universidade
sociolingüística de William Labov que atra- Federal de Pernambuco. Professor Adjunto do
vés de pesquisa empírica com relatos orais de Departamento de Comunicação Social / Jor-
experiência vivida, conseguiu elaborar uma nalismo da UFPE. Autor dos livros: O mundo
estrutura que é um instrumento por demais dos fatos e a estrutura da linguagem – A notí-
útil na análise de narrativas estrito senso e cia jornalística na perspectiva de Wittgenstein.
lato senso. Muitas das contribuições ofereci- Edipucrs – Porto Alegre/RS,1998; Imagem e
das por Labov não foi possível aprofundá-las Verdade – Jornalismo, Linguagem e Realida-
pela delimitação de nosso objetivo e pela na- de. Ed.Annablume – São Paulo, 2006.
tureza do trabalho que agora se apresenta.
Acreditamos que os métodos apresentados Referências
pelos estudiosos podem ser utilizados e adap- ARISTÓTELES. Aristóteles .São Paulo:Ed.Nova 63
tados para determinados tipos de narrativa. Cultura,1996.
O que importa é que se consiga uma inter- ___________.A Política.Trad.Nestor Silveira Cha-
pretação mais próxima possível no sentido de ves.São Paulo:Ediouro,s/d.
entendimento da realidade que nos envolve. BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da
A narrativa não pode perder a sua força que narrativa. 4a.d. Trad. Maria Zélia Barbosa Pinto.
é de refletir a sociedade, firmar identidades Petrópolis: Ed.Vozes, 1976.
pessoais e sociais, ensejar a participação de __________.Crítica e verdade. Trad.Geraldo Ger-
todos numa mesma narrativa, levar a cons- son de Souza. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1982
trução do eu, do outro e da sociedade. BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política – en-
Finalmente, esperamos que análise da no- saios sobre literatura e história da cultura.Trad.Sergio
tícia Uma trágica história de amor não tenha Paulo Rouanet.2a.ed.São Paulo:Ed.Brasiliense,1986.v.1.
ficado muito subjetiva numa interpretação BENVENISTE, Émile. 1991. Problemas de Lingü-
além do que o texto permitia. No entanto, ficou ística Geral 1. Trad. Maria da Glória Novak e Ma-
claro, apesar de W.Benjamin afirmar que a in- ria Luiza Néri. 3a. ed. Campinas, SP, Pontes Ed.
formação jornalística matou ou enfraqueceu a CHEVALIER, Alain Gheerbrant.Dicionário de
narrativa, que, pelo menos a notícia analisa- Símbolos. Rio de Janeiro: Ed.José Olympio,1988.
da, o discurso narrativo está mais presente do CULLER, Jonathan.The Pursuit of Signs: Semiotics,
que se espera de um texto jornalístico. Mais Literature, Desconstruction. Ithaca, New York: Cornell
do que acusar a imprensa de ser manipulado- University Press, 1985. p.169-187. Story and Discour-
ra ideológica, é preciso de um estudo lingüístico se in the Analysis of Narrative.
DUBOIS,Jean et alli. Dicionário de Lingüística. Georgetown University Press, 1982. p.219-
São Paulo:Ed.Cultrix,1999. 247.
LABOV,William.;WALETZKY,J.Narrative ____________. Some Further Steps in Narrative
Analysis: Oral Versions of Personal Experien- Analysis, Journal of Narative and Life History.
ce. In: HELMS,June (ed). Essays on the Verbal v.7, n.1-4, 1997. p.395-415.
and Visual Arts. Seattle: University Press, 1976. PLATÃO. A República. São Paulo:Ed.Nova Cul-
p.12-44. tural,1997.
LABOV,William. Language in the Inner City. TODOROV,Tzvetan. As Estruturas narrativas.
Oxford: Basil Blackwell,1972. p.354-396. Trans- 2a.ed. Trad. Moysés Baumstein. São Paulo:
formation of Experience in Narrative Syntax. Ed.Perspectiva,1970.
____________. Speech Actions and Reactions in TODOROV,T.& DUCROT, Oswald. Dicionário
Personal Narrative. In: TANNEN,D.(ed) Analy- enciclopédico das ciências da linguagem. São
sing Discourse: Text and Talk. Washington,DC: Paulo: Ed.Perspectiva,1977.

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