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RESUMO:
O que permite identificar, para além dos sons captados pelo ouvido, a
beleza ou valor da música e um discurso carregado de sentidos que, embora
provoque nítidas sensações — ‘belo’ ou ‘feio’; ‘alegre’ ou ‘triste’; ‘coerente’ ou
‘caótico’ —, não pode ser descrito verbalmente?
A partir de fragmentos de Wittgenstein interpreta-se o discurso musical
como um jogo de linguagem que, ancorado no reconhecimento de aspectos
das formas de vida, é capaz de produzir uma ‘crença estética’: uma certeza
inabalável de determinadas sensações a partir da obra de arte.
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The music and its aspects
Essay on the beautiful belief
ABSTRACT:
What allows us to identify, beyond the sounds picked up by the ear, the
beauty or value of music and a discourse laden with meanings that, although
provoke sharp sensations — 'beautiful' or 'ugly'; 'gay' or 'sad'; 'coherent' and
'chaotic' —, may not be verbally described?
From Wittgenstein’s fragments, the musical discourse is interpreted like a
language-game that, anchored in the recognition of aspects of life forms, is able
to produce an ‘aesthetic belief’: an unshakable certainty of determinate
sensations from the works of art.
1
Texto apresentado no IX Colóquio Nacional/ VI Colóquio Internacional “Wittgenstein
e seus aspectos”, Campinas, UNICAMP, setembro de 2014.
1
O que nos dá a certeza de estarmos diante de algo ‘belo’?
Essa sensação — a do reconhecimento do belo — é inevitável ou
podemos escolher o que achar “bonito ou feio”?
Isto é de fato um ver! Até que ponto é isto um ver?
(WITTGENSTEIN 1996, II Parte, XI, p. 266)2
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Crise dos fundamentos ou da essencialidade
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acordes e progressões harmônicas que não eram consideradas
“corretas” e mesmo “legais” pelas regras oficiais de harmonia.
(SCHOENBERG, 2001, nota à p. 45)
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senão que ocasionem um panorama físico ou psicológico mais
amplo (SCHOENBERG, 2001, p. 54).
Isso nos parece bem próximo das postulações de Wittgenstein,
desde mesmo seus primeiros trabalhos, por exemplo, as contestações a
Russell de 1913:
Pragmática
Em sua prática de filosofar Wittgenstein sempre utilizou-se da
música de forma privilegiada, tanto em exemplos de elucidação [no
Tractatus] quanto no levantamento de problemas e questões a investigar
[nas Investigações]4.
Esse aspecto que a música possibilita tornar central na prática de
sua filosofia é justamente uma dupla necessidade implícita no
reconhecimento do discurso musical como discurso:
(1) a significação diretamente ligada ao uso que se faz da
linguagem e
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“In philosophy there are no deductions; it is purely descriptive. [...] Philosophy gives no
pictures of reality”.
4
Cf. sobre isso: SIQUEIRA 2006
8
(2) a forma relacional com que os sentidos significam, enlaçados
por semelhanças de famílias de significados e por semelhanças
de aspectos de sensações que evocam.
1. Uso
Faço com que um tema seja repetido para mim e, a cada vez,
executado num andamento mais lento. Por fim, digo “Agora está
correto”, ou “Somente agora é uma marcha”, “Somente agora é
uma dança”. — Neste tom exprime-se também o raiar do
aspecto. (IF p. 270)
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Como um outro exemplo podemos citar a relação entre graves e
agudos: um som mais agudo ou mais grave em relação a outro é, para
quem sabe e faz uso da linguagem musical ou para o aficionado ou
apreciador acostumado com sua terminologia, uma interpretação que se
pretende objetiva da teoria musical ou do evento sonoro, onde se
aprende que um som é mais agudo que outro na medida em que
aumenta o número de vibrações de um corpo sonoro, isto é, sua
frequência.
Aprende-se, assim, que uma primeira corda vibrando na frequência
de 440Hz (a nota Lá padrão) produz um som mais agudo do que uma
segunda corda que vibra em uma frequência de 220Hz, uma oitava
(metade da frequência inicial) mais grave que a primeira. Similarmente
uma terceira corda vibrando em 880Hz seria mais aguda que a primeira
(em uma oitava) e também mais aguda que a segunda (em duas
oitavas); a primeira, entretanto, seria mais aguda que a segunda e mais
grave que a terceira corda (oitava acima e abaixo). Mas nenhuma das
três seria, em princípio, grave ou aguda em si mesma.
Essas relações entre o grave e agudo encontram-se na própria
origem da convencionalmente chamada “música ocidental”, desde os
pitagóricos e, em grandes linhas, é a base da racionalização e da
formalização dos intervalos musicais até nossos dias. Mesmo em
civilizações que têm outras formas de organizar as suas escalas — os
Hindus, que subdividem a corda no que chamamos de microtons, onde
cada um do nosso menor intervalo de som (o meio tom) é subdividido
em outros; os japoneses, que organizam a escala em formações
pentatônicas (cinco notas), diferenciando-se da nossa de sete notas —,
a relação entre graves e agudos é tomada como proporções entre o
maior volume dos tubos de ar ou extensão das cordas vibrando (quanto
mais extensa [ou menos tensionada], menor a frequência de vibração,
portanto mais grave), isto é, entre corpos vibrando com maior ou menor
frequência, conforme se vá do grave ao agudo. Dentro de uma escala
onde o ouvido humano pode perceber de 20Hz a 20.000Hz.
Uma sequência que vá do agudo ao grave seria, genericamente, um
discurso musical que pode ser descrito como uma ‘sequência que
expressa notas que soam do agudo para o grave com tais e tais ritmos’ e
isso pode ser inclusive racionalizado ou expresso sobre a divisão de
uma corda, tubos de volumes diferentes, volumes de líquidos em
continentes etc., onde o que reconhecemos discursivamente como
‘agudo’ e ‘grave’ é a relação entre a maior ou menor vibração de um
corpo ao produzir sons.
Mas, a forma com que tal sequência se coloca na música como um
todo, no jogo dos timbres, no momento temporal da organização ou
sucessão dos intervalos musicais, faz com que aquela sequência
determinada do ‘agudo ao grave’ ou do ‘grave ao agudo’ tome a
proporção de uma identidade e seja reconhecida como um tema — tal
qual as coisas que encontramos e interpretamos como objetos reais no
mundo — e passa a ser reconhecível, comparável, e até mesmo
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nominável, rememorável e memorável. Podemos mesmo sair
cantarolando tais sequências de relações entre agudos e graves e
podemos reconhecer essas sequências ao ouvi-las nos mais variados
contextos. Pode dizer-se agora da sequência: é um tema; é parte de
uma ‘obra de arte’.
E pode-se, ainda, dizer dela que expressa algo ‘belo’.
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inteiro e os aspectos acabarão marcando também campos e escopos
inusitados na relação ou campo inicial do discurso.
Podemos interpretar isso como uma bivalência no conceito de
forma de vida, isto é, por um lado uma relação segura e necessária da
‘valorização de uma irredutível subjetividade’ do outro como detentor de
uma mente, mas ao mesmo tempo, uma subjetividade não
completamente exteriorizável. Segundo Marques,
Mas, aquilo que está nele, como o posso ver? Entre a sua
vivência [Erlebnis] e eu está sempre a expressão!
(WITTGENSTEIN, 1992, 2, p. 92)
5
Cf., por exemplo, IF §§ 286, 302, 666 e a II Parte, I, IV, V e IX.
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A diferença essencial entre esses dois momentos, ainda segundo
Antonio Marques, é que o primeiro corresponde a um jogo de linguagem
expressivo e o segundo um jogo descritivo. Existiria uma parte
fundamental e mais original da atividade linguística e que seria
expressiva, por oposição a uma outra parte que se encontra igualmente
presente nessa atividade, mas é de ordem descritiva.
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que não se poderia concluir ‘em geral’ a partir de algumas sensações
provocadas pelo reconhecimento de alguns aspectos em uma
composição específica, seja uma pintura ou uma configuração sonora,
harmônica ou rítmica.
2. Relações e padrões
3. A crença no belo
[…]
Inconclusões
Nesse processo de perguntas e de busca de respostas, muitos dos
problemas estéticos acabam sendo diluídos numa constatação simples,
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mas nada trivial, de que o ‘problema dos fundamentos em arte’ é um
problema para quem espera encontrar na arte fundamentos sólidos de
validade e cânones de beleza, mas não é um problema para quem não
crê nesse terreno sólido do que seja uma ‘essência própria e verdadeira’.
Apontou-se neste texto — a partir mesmo da escolha da forma
ensaio para a abordagem da questão — a perspectiva de um terreno
ainda inexplorado mas bastante promissor de analisar e interpretar o
objeto de arte não como um ‘objeto artístico’ ou um ‘objeto estético’, ou
algo especial diante do mundo e da linguagem, mas como uma
especialidade do discurso humano em sua forma de vida:
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‘tons maiores ou menores’ exclusivamente nos referindo ao nome de
determinadas formações de notas; mas podemos agregar epítetos ou
conceitos, por exemplo, o de ‘melancólico’ ao ‘tom menor’. Da mesma
forma, também a qualidade de ‘triste’ pode ser aplicável a traços
representando um rosto.
Bibliografia
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MORENO, Arley Ramos. Introdução a uma Pragmática Filosófica.
Campinas: Editora da Unicamp, 2005.
SIQUEIRA, Eduardo Gomes de. “Sobre Música: por uma gramática dos
sons em Wittgenstein”. In: Wittgenstein. Ética, estética,
epistemologia. Campinas: CLE Centro de Lógica e Epistemologia,
UNICAMP, 2006.
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__________. Tratactus logico-philosophicus. Tradução de L. H. L. dos
Santos. São Paulo: Edusp, 1994.
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