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A música e seus aspectos

Ensaio sobre a crença no belo 1

Antonio Herci Ferreira Júnior


(Programa de Pós Graduação em Estética e
História da Arte, MAC/USP)
antonioherci@gmail.com

O que percebo no raiar do aspecto não é uma propriedade


do objeto, é uma relação interna entre ele e outros objetos.
Wittgenstein

RESUMO:
O que permite identificar, para além dos sons captados pelo ouvido, a
beleza ou valor da música e um discurso carregado de sentidos que, embora
provoque nítidas sensações — ‘belo’ ou ‘feio’; ‘alegre’ ou ‘triste’; ‘coerente’ ou
‘caótico’ —, não pode ser descrito verbalmente?
A partir de fragmentos de Wittgenstein interpreta-se o discurso musical
como um jogo de linguagem que, ancorado no reconhecimento de aspectos
das formas de vida, é capaz de produzir uma ‘crença estética’: uma certeza
inabalável de determinadas sensações a partir da obra de arte.

Palavras-chave: Aspectos; Hábito; Crença estética; Jogos de


linguagem; Pró-ao-contra.

-------
The music and its aspects
Essay on the beautiful belief

ABSTRACT:
What allows us to identify, beyond the sounds picked up by the ear, the
beauty or value of music and a discourse laden with meanings that, although
provoke sharp sensations — 'beautiful' or 'ugly'; 'gay' or 'sad'; 'coherent' and
'chaotic' —, may not be verbally described?
From Wittgenstein’s fragments, the musical discourse is interpreted like a
language-game that, anchored in the recognition of aspects of life forms, is able
to produce an ‘aesthetic belief’: an unshakable certainty of determinate
sensations from the works of art.

Keywords: Aspects; Habit; Aesthetic belief; Language games;


Pro-to-counter.

1
Texto apresentado no IX Colóquio Nacional/ VI Colóquio Internacional “Wittgenstein
e seus aspectos”, Campinas, UNICAMP, setembro de 2014.
1
O que nos dá a certeza de estarmos diante de algo ‘belo’?
Essa sensação — a do reconhecimento do belo — é inevitável ou
podemos escolher o que achar “bonito ou feio”?
Isto é de fato um ver! Até que ponto é isto um ver?
(WITTGENSTEIN 1996, II Parte, XI, p. 266)2

O que fornece a base de sua crença no espírito humano: uma


sensação propriamente dita ou uma interpretação?

A questão é: o que realiza a evidência imponderável? [...]


Existe uma essência de beleza, que pode ser revelada a partir da
obra de arte? Ou a beleza é a expressão ou realização de uma
expectativa de beleza que a obra de arte pode satisfazer sob diversos
aspectos?

“Trata-se de uma vivência visual autêntica? ” A questão é: até


que ponto é uma tal vivência? (IF p. 267)
De que forma somos levados às evidências muitas vezes
imponderáveis mas suficientes para essa persuasão de beleza?

[...] À evidência imponderável pertencem as sutilezas do olhar,


dos gestos, do tom. Posso reconhecer o autêntico olhar de amor,
distingui-lo do olhar fingido (e, naturalmente, pode haver aqui
um fortalecimento ‘ponderável’ de meu juízo.) Mas posso ser
completamente incapaz de descrever a diferença. (IF p. 294)

A querela das essências


Estas perguntas têm tomado grande parte do debate estético e
acabaram por se tornar central na didática, no ofício de artista e na
crítica musical, principalmente a partir do final do século XIX, quando
alguns valores consagrados do gosto foram sendo questionados.
As primeiras décadas do século XX ficaram marcadas pelo signo da
ruptura estética e, na música, regras antigas e consolidadas de
harmonia e composição sonoras são violadas: as dissonâncias afloram e
colocam-se em segundo plano a hierarquia da ‘solução musical modal
ou tonal’. Schoenberg (1950, pp. 104/105) utiliza o termo “emancipação
da dissonância” para referir-se à equiparação de “compreensibilidade”
desta com relação à dissonância. A polirritmia quebra a constância e
regularidade do pulso e o silêncio [não som] e o ruído [interrupção ou
interferência destrutiva na comunicação] acabam por invadir o terreno
da música.
Além disso, o avanço tecnológico, a análise mecânica e
reprodutibilidade que as novas mídias possibilitavam acabam por
2
Nas próximas remissões às “Investigações Filosóficas”, vamos nos referir pela
abreviação IF, seguida da página [p.] ou o fragmento [§].
2
mudar radicalmente determinados preceitos técnicos que, antes, eram
entendidos como ‘necessidades expressivas’ ou ‘essenciais’. O exemplo
mais contundente deste último fenômeno é a voz transmitida pelo rádio,
que altera significativamente o status e propriedade do que seria
chamado, doravante, de ‘estrela’ ou ‘grande astro’ da música.
Se antes podia-se falar mais ou menos intuitivamente de uma
‘imagem mental’ do tema musical, com a introdução da música serial,
dodecafônica, microtonal ou de escalas exóticas e alteradas, essa
clareza de uma ‘imagem temática ou melódica’ apresenta alguns
problemas, principalmente pelo fato de que grande parte das pessoas
não parecia mais capaz, enquanto público ouvinte, de sair de um
concerto e relembrar uma ‘série dodecafônica’ ou uma ‘progressão
microtonal’ cantarolando e rememorando seus intervalos.

IF §184. O que consiste pois o fato de alguém estar ‘certo’ de


sabe-la [a melodia]? — Pode-se dizer, evidentemente: quando
alguém diz, com convicção, que agora sabe a melodia, então ela
está, neste momento (de algum modo), inteiramente presente no
seu espírito — e esta é a explicação das palavras: “a melodia
está inteiramente presente no seu espírito”.
O reconhecimento do discurso musical atinge um outro patamar
ou tipo de racionalidade, com outros aspectos estéticos em jogo para a
compreensão e apreensão da obra. Se para um público tradicional
bastaria uma audição atenta e concentrada, passa a cobrar-se do
ouvinte uma maior proximidade e conhecimento de certos detalhes do
meio ou da partitura para sua ‘plena audição’.
As recomendações, explicações terminológicas e referências às
configurações discursivas — as chamadas ‘bulas’ das partituras —
tornam-se determinantes para a compreensão, valoração e execução
musicais. Começam a ser parte integrante das partituras ou dos
próprios concertos e apresentações as ‘explicações’ e ‘convenções
conceituais ou semânticas’ e as expressões extramusicais efetivas e
objetivas como ‘raridade do meio’, ‘dificuldade da produção’ passam a
ser considerados fatores tão importantes na determinação do valor
estético ou do padrão do gosto quanto a composição musical em si
mesma.

Uma das mais belas ironias

Bem poderíamos agora — parafraseando Marjorie — ao introduzir a


questão deste ensaio, caracterizá-la sob o aspecto de uma ‘bela
ironia’: se as questões que Wittgenstein nos coloca e, principalmente, a
maneira de proceder em sua prática filosófica, acabam oferecendo um
instrumental de interpretação e abordagem inusitados na esfera da
teoria ou sistema expositivo musical e abrem um campo novo de
racionalidade estética até mesmo para as mais enigmáticas e obscuras
expressões da arte de nosso próprio tempo... Essas obras da ‘música
3
moderna’ talvez o próprio Wittgenstein não teria demorado um segundo
para classificar de grandes porcarias [Hundedreck] (PERLOFF 2008,
p. 13)
Seu gosto musical estava mais para os clássicos — Mozart,
Beethoven ou Schumann — e talvez fosse reticente quanto a um
contexto de cultura propícia para se fazer arte, lá pelos anos de 1930.
Se tinha algumas ideias mais avançadas em arquitetura — como se
percebe em Cultura e Valor, onde se alinha às correntes suas
contemporâneas e mais ‘modernas’ — mostra-se extremamente
refratário quanto à linguagem da música moderna.
Textualmente, no esboçado prefácio para as Bemerkungen (1931),
diz “não ser capaz de compreender” (Conf. SIQUEIRA 2006, p. 85) essa
linguagem musical. Crítica que parece especialmente voltada para as
experiências atonais e dodecafônicas, amplamente desenvolvidas a
partir dos trabalhos de Schoenberg e seus discípulos (Berg e Webern),
reconhecidamente um marco nessas rupturas de abordagem filosófica e
artesanal da música (SCHOENBERG 2001).
No entanto, se observarmos as considerações filosóficas sobre o
objeto artístico, sua compreensão, estruturação e, principalmente, sua
possibilidade de criação de ‘padrões de entendimento’ que permitem o
reconhecimento direto e primitivo de aspectos expressivos, as ideias
de Wittgenstein não apenas estão em plena sintonia com toda essa
ruptura estética, como oferecem um universo interpretativo —
conceitual e terminológico — que vai muito além de sua própria época, a
malgrado de seu gosto pessoal.

Não é preciso fantasia para ouvir algo como variação de um


determinado tema? E, no entanto, através dele se percebe
alguma coisa. "Se você se representa isto assim modificado,
então você tem a outra coisa." Na representação pode-se dar
uma demonstração. Ver o aspecto e representar estão
subordinados à vontade. Há a ordem "Represente-se isto!" e a
ordem: "Veja a figura agora assim!"; mas não: "Veja a folha
agora verde!" (IF p. 277)

De forma equidistante, em seu famoso capítulo “Os sons


estranhos à Harmonia”, Schoenberg (2001) discute uma questão
estética que estaria, mesmo à revelia de sua plena compreensão na
esfera da estética, alinhada com as ideias de questionamento dos
‘fundamentos’, verdades ‘essenciais’ e com as recém descobertas sobre
a ‘incompletude e inconsistência’ dos sistemas teóricos. Nesse capítulo
Schoenberg parece mesmo construir um eco, ainda que distante, do
paradoxo de Russell.
O questionamento de Schoenberg dirige-se exatamente ao fato de
existir, como parte da teoria tradicional da música, a postulação dos
‘sons estranhos à harmonia’, convencionalmente as notas de
passagens, retardos, antecipações, dissonância soltas ou eventuais etc.
4
Sons que, pela teoria musical, deveriam ser considerados
estranhos à harmonia, mas que na prática ocorrem de fato no discurso
musical, têm plena aceitação como discurso e dialogam perfeitamente
com os ‘sons próprios à harmonia’. O paradoxal, levanta Schoenberg, é
que para serem ‘sons harmônicos’ aceitos e operacionais para a “teoria”
(que ele afirmará no decorrer do tratado não ser uma teoria, mas um
sistema descritivo), devem ser por definição ‘estranhos’ a essa teoria,
isto é, apenas são sons ‘harmônicos’ se considerados ‘não harmônicos’,
do contrário quebram a consistência inicial sobre a postulação da
própria harmonia que, ao aceitar os “sons estranhos” como expressão
válida torna-se indistinta e não pode mais hierarquizar os eventos
sonoros; e ao recusar os “sons estranhos” não dá conta nem do mais
trivial discurso musical de sua época.

Como é possível, porém, ver-se uma coisa segundo uma


interpretação? [...] Se parece que não haveria um lugar para
uma tal forma entre outras formas, então você deve procura-la
em uma outra dimensão. Se aqui não há lugar, por certo o
haverá em uma outra dimensão. (IF p. 263)
Essa mudança para outra dimensão, que permite uma ‘forma’
dentro de outra pode ser considerada como o raiar do aspecto, no
entendimento estético.
Por outro lado, após as postulações de Freud — vistas com
bastante reserva por Wittgenstein — de que parte da própria
racionalidade e expressividade são funções de operações ‘não
conscientes’ da razão, com efeitos reais e efetivos sobre a própria
consciência, os artistas e algumas tendências — expressionismo,
dadaísmo ou surrealismo, p.ex. — começaram a explorar algumas
dessas novas possibilidades de referências do objeto estético, por
exemplo com as remissões ou referências a discursos não explícitos,
mas ocultos, ocultados ou subliminares.

A indizível diversidade de todos os jogos de linguagem do dia-


a-dia não nos chega ao consciente, porque as vestimentas de
nossa linguagem tornam tudo igual. (IF p. 290)
As teorias e convenções em torno do objeto de arte e a postulação
de ‘cânones de beleza e coerência’ parecem cada vez mais ceder lugar à
análise e interpretação de aspectos ‘conceituais’, isto é, relações de
significados que poderiam ‘explicar’ ou ‘fixar a semântica ou
interpretação’ de uma obra não a partir de uma essência dada, mas na
inter-relação entre os diversos sentidos que se poderia suscitar em sua
compreensão.

Aqui é difícil ver que se trata de determinações conceituais. Um


conceito se impõe. Quando é que iria chama-lo de mero saber e
não de ver? — Talvez quando alguém, tratando a figura como
desenho de uma obra, a lesse como uma pintura heliográfica.
(IF p. 267)

5
Crise dos fundamentos ou da essencialidade

Parece haver em toda essa movimentação das ideias humanas, dos


problemas teóricos, estéticos, práticos e morais às movimentações
econômicas que chacoalharam a humanidade — transferência do
imperialismo britânico para o americano; revolução Russa; implosão do
colonialismo tradicional; migrações de artistas e técnicos exilados — o
aspecto geral de uma crise que podemos denominar de ‘crise nos
fundamentos’ ou uma ‘crise essencial’.
Essa crise diz respeito à capacidade que o ser humano tem de
reconhecer as coisas em suas identidades e eleger questões gerais ou
universais, ou pelo menos crer na existência delas e, por outro lado, ter
como suporte de humanidade a impossibilidade de provas ou
demonstrações sobre as questões essenciais, necessariamente
remetidas à esfera da certeza indemonstrável.
A questão parece ter sido “sumarizada” a partir das palavras de um
ensaio de Quine que, malgrado não trate de Wittgenstein nem de
música, pode situar paradigmaticamente o problema:

Há aqueles que pensam que nossa habilidade para entender


termos gerais e para ver um objeto concreto como semelhante a
outro seria inexplicável se não houvesse universais como
objetos de apreensão. E há aqueles que não conseguem
perceber, nesse apelo a um reino de entidades para além dos
objetos concretos, nenhum valor explicativo. (QUINE 2011, p.
145s)

“Teoria ou sistema expositivo?”


Schoenberg parece já estar atento a questões que envolveriam
alguns aspectos muito semelhantes a algumas preocupações filosóficas
de Wittgenstein, destacando-se, em grandes linhas evitar o
essencialismo e o psicologismo nas interpretações da teoria musical.

Muito do que se tem tido por estética — ou seja, por


fundamento necessário do belo —, não está sempre alicerçado
na essência das coisas. É a imperfeição de nossos sentidos o
que nos obriga a compromissos graças aos quais alcançamos
uma ordem. Porque a ordem não vem exigida pelo objeto, mas
pelo sujeito. (SCHOENBERG 2001, p. 72)
O compositor apontava um esgotamento do centro de referência
estético e se colocava contra uma teoria estética que se mantinha
graças à tradição e o apego a regras pedagógicas rígidas e através do
controle e regulamentação profissionais. Segundo seu tradutor,
Marden Maluf, suas vociferações contra os teóricos de sua época
provinham de disputas que lhe trouxeram dolorosas experiências:

Tais como o haver sido censurada, em Viena, a apresentação


de sua “Noite Transfigurada”, […] por conter situações de

6
acordes e progressões harmônicas que não eram consideradas
“corretas” e mesmo “legais” pelas regras oficiais de harmonia.
(SCHOENBERG, 2001, nota à p. 45)

Isso mostra a materialidade da discussão sobre a teoria da arte e


o que se podia fazer, em nome da postulação do belo: ultrapassava a
questão subjetiva do gosto e impunha uma verdadeira batalha
estética, onde a manifestação da obra de arte passava pela
necessidade do convencimento, por assim dizer, de sua validade.
Nesse contexto, Schoenberg colocaria sob suspeita qualquer tipo de
argumento baseado em leis naturais ou que remetessem a essências.

Esforços para encontrar leis artísticas, obterão, no máximo,


resultados como […] descobrir como o órgão do sujeito
observador se adapta às peculiaridades do objeto observado.
[…] Não é possível, hoje, atribuir um valor maior do que este às
leis artísticas. O que já é muito. (SCHOENBERG, 2001, p. 46)

A forma de enfocar a discussão estética, tirando-a do campo da


substancialidade ou essencialidade, estava em plena sintonia com
todo o movimento que apontava para um processo de grandes
rupturas epistemológicas ocorridas também nas áreas de filosofia,
lógica e nas matemáticas.
Por isso mesmo, Schoenberg inicia seu “Tratado de Harmonia”
exatamente com a proposição que se tornará a tese central do livro: não
se trata propriamente da construção de uma ‘teoria musical’, capaz de
deduzir valores, consequências temáticas ou análises de intenções de
terceiros, bem como dar uma autonomia para que o discurso seja
enquadrado em um conjunto de regras rígidas; mas sim de um
‘sistema descritivo’ ou ‘sistema expositivo’ que racionaliza ordens de
coisas e organiza discursivamente as ‘proposições sonoras’, não
segundo regras rígidas de nominação, significado e referência, mas sim
de acordo com o ‘uso’, a ‘construção artesanal’ e a ‘interação’ entre o
modo de vida, a organização da produção musical na sociedade e os
usos dos recursos de linguagens e técnicas.

A harmonia - equilíbrio [Ausgeglichenheit] - não é a imobilidade


de fatores inertes, porém a ponderação de forças numa tensão
máxima [...] deve ser conduzido à vida, na qual existem tais
forças e semelhantes batalhas. Representar a vida na arte, com
sua mobilidade, com suas possibilidades de mudança e com
suas necessidades (SCHOENBERG, 2001, p. 74).
Daí sua permanente preocupação de buscar semelhanças entre
aspectos da criação artística e as outras atividades humanas:

Das relações recíprocas entre o que se dá na natureza fora de


nós e o sujeito operante ou contemplador. Repito: o que digo a
esse respeito não pretende ser tomado como teoria, mas como
analogias mais ou menos desenvolvidas, onde o mais
importante não é que elas sejam corretas em todos aspectos,

7
senão que ocasionem um panorama físico ou psicológico mais
amplo (SCHOENBERG, 2001, p. 54).
Isso nos parece bem próximo das postulações de Wittgenstein,
desde mesmo seus primeiros trabalhos, por exemplo, as contestações a
Russell de 1913:

Em filosofia não há dedução: ela é puramente descritiva. [...] A


filosofia não oferece imagens mentais da realidade.
(WITTGENSTEIN, 1973, Appendix I, pag. 93) 3
Uma mesma nota ou som, emitido com a mesma frequência ou
timbre, causa um tipo diferente de sensação conforme esteja combinada
com este ou aquele timbre ou frequência diferentes. A própria técnica
da orquestração mostra isso: a combinação entre as diversas famílias
de instrumentos não é apenas uma questão de estilo, mas uma questão
estética de importância fundamental no discurso musical. Uma mesma
nota, com um mesmo valor de intensidade, ora pode aparecer mais, ora
menos agressiva ou com sensação auditiva mais ou menos ‘intensa’
conforme soe neste ou naquele contexto. O que, de fato, neste caso é
‘mais intenso’ se a intensidade é a mesma? Sendo os mesmos os
parâmetros físicos do som emitido?

IF §526. 0 que significa entender um quadro, um desenho? Aqui


também há entender e não-entender. E aqui também essas
expressões podem significar coisas diferentes. Talvez o quadro
seja uma natureza-morta; uma parte dele, porém, eu não
entendo: não sou capaz de ver ali corpos, mas vejo somente
manchas de tinta sobre a tela. — Ou vejo tudo corporalmente,
mas são objetos que não conheço (eles se parecem com
aparelhos, mas eu não conheço a sua utilidade). — Talvez eu
conheça os objetos, mas não entendo, em outro sentido — a sua
disposição.

Pragmática
Em sua prática de filosofar Wittgenstein sempre utilizou-se da
música de forma privilegiada, tanto em exemplos de elucidação [no
Tractatus] quanto no levantamento de problemas e questões a investigar
[nas Investigações]4.
Esse aspecto que a música possibilita tornar central na prática de
sua filosofia é justamente uma dupla necessidade implícita no
reconhecimento do discurso musical como discurso:
(1) a significação diretamente ligada ao uso que se faz da
linguagem e

3
“In philosophy there are no deductions; it is purely descriptive. [...] Philosophy gives no
pictures of reality”.
4
Cf. sobre isso: SIQUEIRA 2006
8
(2) a forma relacional com que os sentidos significam, enlaçados
por semelhanças de famílias de significados e por semelhanças
de aspectos de sensações que evocam.

1. Uso

Aprenda o significado das palavras através de seus empregos! (De


modo semelhante, pode-se dizer na matemática, frequentemente:
deixe que a demonstração lhe ensine o que foi demonstrado.) (IF
p.285)
Da mesma forma se pode dizer que, em música, devemos deixar
que o uso dos sons e o exercício dos recursos musicais construam a
sua significação (musical) na proporção de sua utilização. Isto é, deixar
que a utilização dos sons para construir um sentido musical nos ensine
a respeito do sentido do que foi construído.
Além disso, a própria prática do músico mostra uma bipolaridade
implícita na construção da linguagem musical: a da exploração de
padrões ou recorrências [melodias, harmonias, modos, escalas,
soluções, memória auditiva etc.] para uma expressividade original.
Pode-se dizer que existe uma bipolaridade fundante na organização das
proposições sonoras: (i) a expressão do que é ‘em geral’, como uma
generalização expressiva de algo; e (ii) que pode guardar ou expressar o
‘particularíssimo’, que torna o tema algo único e reconhecível em sua
identidade.
A música parece, desde suas primeiras abordagens, ser um dos
protótipos mais acabados do que seja ‘significar a partir das relações
das formas de vida’, de forma que qualquer possibilidade ou interdição
de significação seja função privilegiada das relações internas que
compõe o uso da linguagem musical, no jogo que permite construir
discursos.

IF §527. Por que intensidade e andamento devem movimentar-


se exatamente nesta linha? Como se fundamentam tais
comparações? — Há aqui diferentes espécies de
fundamentações.
É um discurso portador de uma bipolaridade praticamente como
pré-condição de constituir-se como discurso e não permite conclusões
fixadas sobre: validade, consistência, significados, entendimento; pois
cada um desses aspectos revelará um padrão de consistência e certeza
que permite, a partir da organização do discurso estético, provocar esta
ou aquela composição de aspectos, conforme a remissão a uma
vivência.

Faço com que um tema seja repetido para mim e, a cada vez,
executado num andamento mais lento. Por fim, digo “Agora está
correto”, ou “Somente agora é uma marcha”, “Somente agora é
uma dança”. — Neste tom exprime-se também o raiar do
aspecto. (IF p. 270)

9
Como um outro exemplo podemos citar a relação entre graves e
agudos: um som mais agudo ou mais grave em relação a outro é, para
quem sabe e faz uso da linguagem musical ou para o aficionado ou
apreciador acostumado com sua terminologia, uma interpretação que se
pretende objetiva da teoria musical ou do evento sonoro, onde se
aprende que um som é mais agudo que outro na medida em que
aumenta o número de vibrações de um corpo sonoro, isto é, sua
frequência.
Aprende-se, assim, que uma primeira corda vibrando na frequência
de 440Hz (a nota Lá padrão) produz um som mais agudo do que uma
segunda corda que vibra em uma frequência de 220Hz, uma oitava
(metade da frequência inicial) mais grave que a primeira. Similarmente
uma terceira corda vibrando em 880Hz seria mais aguda que a primeira
(em uma oitava) e também mais aguda que a segunda (em duas
oitavas); a primeira, entretanto, seria mais aguda que a segunda e mais
grave que a terceira corda (oitava acima e abaixo). Mas nenhuma das
três seria, em princípio, grave ou aguda em si mesma.
Essas relações entre o grave e agudo encontram-se na própria
origem da convencionalmente chamada “música ocidental”, desde os
pitagóricos e, em grandes linhas, é a base da racionalização e da
formalização dos intervalos musicais até nossos dias. Mesmo em
civilizações que têm outras formas de organizar as suas escalas — os
Hindus, que subdividem a corda no que chamamos de microtons, onde
cada um do nosso menor intervalo de som (o meio tom) é subdividido
em outros; os japoneses, que organizam a escala em formações
pentatônicas (cinco notas), diferenciando-se da nossa de sete notas —,
a relação entre graves e agudos é tomada como proporções entre o
maior volume dos tubos de ar ou extensão das cordas vibrando (quanto
mais extensa [ou menos tensionada], menor a frequência de vibração,
portanto mais grave), isto é, entre corpos vibrando com maior ou menor
frequência, conforme se vá do grave ao agudo. Dentro de uma escala
onde o ouvido humano pode perceber de 20Hz a 20.000Hz.
Uma sequência que vá do agudo ao grave seria, genericamente, um
discurso musical que pode ser descrito como uma ‘sequência que
expressa notas que soam do agudo para o grave com tais e tais ritmos’ e
isso pode ser inclusive racionalizado ou expresso sobre a divisão de
uma corda, tubos de volumes diferentes, volumes de líquidos em
continentes etc., onde o que reconhecemos discursivamente como
‘agudo’ e ‘grave’ é a relação entre a maior ou menor vibração de um
corpo ao produzir sons.
Mas, a forma com que tal sequência se coloca na música como um
todo, no jogo dos timbres, no momento temporal da organização ou
sucessão dos intervalos musicais, faz com que aquela sequência
determinada do ‘agudo ao grave’ ou do ‘grave ao agudo’ tome a
proporção de uma identidade e seja reconhecida como um tema — tal
qual as coisas que encontramos e interpretamos como objetos reais no
mundo — e passa a ser reconhecível, comparável, e até mesmo
10
nominável, rememorável e memorável. Podemos mesmo sair
cantarolando tais sequências de relações entre agudos e graves e
podemos reconhecer essas sequências ao ouvi-las nos mais variados
contextos. Pode dizer-se agora da sequência: é um tema; é parte de
uma ‘obra de arte’.
E pode-se, ainda, dizer dela que expressa algo ‘belo’.

Podemos notar ainda que a referida ‘crise nos fundamentos’ não


aplaca esse anseio que nós, humanos e inter-relacionados através de
uma forma de vida, temos de buscar certezas e mesmo fundamentos ou
bens que consideramos ‘essenciais’ ou valores que supomos portarmos
de forma ‘inequívoca’ ou mesmo ‘inata’.
Segundo António Marques (2003, p. 177s) é um ponto “certamente
pacífico” que o conceito de “forma de vida” é, juntamente com o de “jogo
de linguagem”, “o mais primitivo e fundamental dos conceitos” em
Wittgenstein.
O fundamento da compreensão da música pode ser visto como um
jogo de linguagem que pode prescindir, quase que por completo, da
parte descritiva das coisas do mundo e concentrar-se na remissão a
aspectos de uma expressividade que materializa-se sem significados
nessa esfera descritiva ou referencial, mas com um sentido relacional
ligado a sensações, modos de ser, lembranças e, fundamentalmente, a
construção de si (no sentido da construção de subjetividade) como um
ser dotado de algo que é incomunicável pelo discurso em seu aspecto
descritivo, mas que pode ser compreendido a partir de aspectos de si,
compartilhados como sensações de vivências.
O que se compartilha e serve de fundamento é o que é suportado
por todos, a forma de vida.

O que deve ser aceito [suportado], o dado — poder-se-ia dizer —


são formas de vida. (IF p. 292)

Certas opções no campo do que a tradição filosófica chama de


racionalidade prática, são geradas de acordo com a forma de vida.
Segundo Marques, essa ideia de forma de vida como ‘algo que se tem
que suportar’ faz parte integrante do próprio conceito de formas de vida,
onde esse ‘algo a suportar’ possibilita um elo de ligação com o outro e
que faz dele para nós um ser humano.

A minha atitude em relação a ele (ao outro) é uma atitude em


relação a uma alma. Eu não sou da opinião que ele tenha uma
alma. (IF p. 267)
Da mesma forma que não é uma mão que sente a dor de um corte,
e nem é uma mão que responde à dor, mas uma pessoa que sofre por
inteiro (IF § 286), também o ouvinte do discurso musical é um outro por

11
inteiro e os aspectos acabarão marcando também campos e escopos
inusitados na relação ou campo inicial do discurso.
Podemos interpretar isso como uma bivalência no conceito de
forma de vida, isto é, por um lado uma relação segura e necessária da
‘valorização de uma irredutível subjetividade’ do outro como detentor de
uma mente, mas ao mesmo tempo, uma subjetividade não
completamente exteriorizável. Segundo Marques,

O que interessa ao filósofo [Wittgenstein] é precisamente duas


coisas em relação ao estatuto das outras mentes: por um lado a
afirmação destas como possuindo um interior, por outro lado
interessa-lhe que esse interior não deixe de possuir uma certa
clausura relativamente ao outro. (MARQUES 2003, pag. 179s)

Nesse contexto de bivalência é que pode ser entendido um


componente de algo que pode ultrapassar o marco do discurso
descritivo entre seres dotados linguisticamente: a expressão
linguística. Mas que também será o limite do entendimento desse
interior alheio, mediado por essa mesma expressão.

Devemos entendê-la [expressão] aqui na acepção técnica que


Wittgenstein lhe dá, ou seja a exteriorização de experiências,
vivências que o sujeito humano começa por concretizar sob a
forma natural do grito, do gesto, etc. e acaba por substituir pela
expressão linguística. Assim o grito de dor da criança é
substituído pela expressão “tenho uma dor” ao longo de uma
aprendizagem mais ou menos longa. (MARQUES, p. 179s)
Por forma expressiva refere-se aqui ao grito de dor ou o choro,
antes mesmo que se aprenda o significado da palavra dor. Dor que, por
outro lado, mesmo expressa ou exteriorizada em palavras
posteriormente no aprendizado linguístico, não teria sentido de
comparação como alteridade, já que não se pode comparar as dores de
duas pessoas diferentes sem incorrer em um absurdo lógico, pois
faltaria aí um padrão para a comparação5.
Ninguém pode olhar diretamente dentro do outro, entre os seres
humanos sob uma forma de vida, mas a expressão sempre estará
interposta entre eles.

Mas, aquilo que está nele, como o posso ver? Entre a sua
vivência [Erlebnis] e eu está sempre a expressão!
(WITTGENSTEIN, 1992, 2, p. 92)

A expressão linguística é mediadora entre os sujeitos e permitem


que se comuniquem através dessas expressões. Isso porque dizer “tenho
uma dor”, “desejo x”, “creio que y” não são meras informações
descritivas de objetos ou eventos, mas formas de exteriorização.

5
Cf., por exemplo, IF §§ 286, 302, 666 e a II Parte, I, IV, V e IX.
12
A diferença essencial entre esses dois momentos, ainda segundo
Antonio Marques, é que o primeiro corresponde a um jogo de linguagem
expressivo e o segundo um jogo descritivo. Existiria uma parte
fundamental e mais original da atividade linguística e que seria
expressiva, por oposição a uma outra parte que se encontra igualmente
presente nessa atividade, mas é de ordem descritiva.

O primeiro é anterior na ordem da aprendizagem da língua (a


criança primeiro deseja p e só depois o descreve) e permanece
como uso da linguagem irredutível e primário. (MARQUES 2003,
p. 186)
Se uma criança cai, sente uma dor e exprime essa sensação
através do choro, os adultos o consolam e ensinam-lhe a usar a palavra
‘dor’ como substituição linguística da expressão natural da dor.

A criança não começa por descrever a dor, antes começa por


exprimi-la, primeiro pelo choro, depois linguisticamente.
(MARQUES 2003, p. 186)
O que nos interessa do ponto de vista da vivência estética e
determinação dos valores, não são experiências internas em si, como
imagens ou fatos psicológicos, mas sim expressões de vivências,
compartilhadas a partir do modo de vida, que não podem ser reduzidas
à linguagem descritiva e referencial, mas que guardam uma
expressividade original onde o reconhecimento de sentido, valor ou
beleza possa ser compartilhado ou generalizado como certeza.

IF §533. Mas, como se pode, explicar a expressão e transmitir a


compreensão? Pergunte-se: como se leva alguém à
compreensão de um poema ou de um tema? A resposta a esta
questão diz como aqui se esclarece o sentido.
Não pode haver uma vivência independentemente expressa sem
esses recursos que a remissão à forma de vida fornece: quer numa
forma expressiva como um grito, quer numa forma linguística como
expressão, na primeira pessoa, de tais sensações ou crenças. Ou ainda
na expressão musical e organização interna de seu discurso que revela,
como raiar de um aspecto, as mudanças de formas que pode provocar a
partir das expectativas de resolução.

O mesmo tema musical tem, no modo menor, características


diferentes das que possui no modo maior; mas é completamente
errado falar das características do modo menor em geral. (Em
Schubert, o modo maior soa frequentemente mais triste que o
modo menor). Neste sentido, estamos realmente a pensar
apenas em usos especiais. Se o verde, como cor de uma toalha
de mesa, tiver um efeito e o vermelho outro, isso não nos
permite delinear quaisquer conclusões sobre o seu efeito num
quadro. (WITTGENSTEIN 1987, §213)
Isso parece remeter a expressão e o reconhecimento desses
aspectos expressivos diretamente à experiência de seu uso, de forma

13
que não se poderia concluir ‘em geral’ a partir de algumas sensações
provocadas pelo reconhecimento de alguns aspectos em uma
composição específica, seja uma pintura ou uma configuração sonora,
harmônica ou rítmica.

IF §531. Falamos da compreensão de uma frase no sentido de


que ela pode ser substituída por uma outra que diz o mesmo
que ela; mas também no sentido de que ela não pode ser
substituída por nenhuma outra. (Tampouco como um tema
musical por outro.)
O discurso musical parece aproximar-se de uma plenitude de
exteriorização, quase prescindindo do componente descritivo para
compor-se como discurso.

2. Relações e padrões

O segundo aspecto extremamente importante que Wittgenstein


levanta e que parece relevante para a análise musical é que, além do
uso pragmático do discurso ser um componente fundante de sua
compreensão, tal uso é quase que absolutamente relacional. Isto é, os
significados não são pontos isolados, mas resultados diretos dos jogos
que a linguagem permite realizar no entendimento e no não
entendimento de si como comunicação.
A prática da feitura e a prática da audição nos levam a esse outro
patamar de compreensão que nos permite, através de determinadas
relações, padrões e conjunções, reconhecer ou mesmo racionalizar os
sentidos.

IF §535. 0 que acontece quando aprendemos a sentir a


finalização de um modo eclesiástico como finalização?
Isso é importante pois, diferentemente do discurso que visa
comunicar algo, a música tem a peculiaridade de ter, como material
bruto, tanto o entendimento de si quanto o desentendimento, isto é,
tanto o som dito ‘musical’ quanto o que impede sua compreensão como
som musical, o ‘ruído’, sucedendo-se as escolas e aniquilando-se os
teóricos quanto ao que seja admitido ou não como valor estético
“genuíno”.

Não se esqueça que um poema, mesmo que composto na


linguagem da informação, não é usado no jogo de linguagem de
dar informação. (WITTGENSTEIN 1967, §160)

3. A crença no belo

Segundo Hume (2001), a crença pode ser entendida como uma


certeza que temos de determinadas coisas, que extrapola a
racionalidade ou demonstração dessas coisas. É parte integrante de
nossa forma de vida e nos prepara para situações onde a razão não
pode nos ajudar, no enfrentamento de determinadas situações de
14
sobrevivência em que é mais importante alguns gestos instantâneos do
que alguma certeza racionalmente estabelecida. Um sentir da mente.
(HUME 2001)
O hábito é um princípio que “me determina a esperar o mesmo para
o futuro”; a experiência é outro princípio (HUME, 2001, p. 297). Aliados
e atuando juntos na imaginação levam à formação de certas ideias de
forma mais intensa que outras. Esse conjunto de ideias são tomados
como essa certeza própria: a crença habitual.

Sem essa qualidade pela qual a mente aviva algumas ideias


mais do que outras (qualidade que aparentemente é tão
insignificante e tão pouco fundada na razão), nunca
poderíamos dar nosso assentimento a nenhum argumento, nem
levar nosso olhar para além daqueles poucos objetos presentes
a nossos sentidos. (HUME, 2001, p. 297)
Considere-se a obra de arte do ponto de vista da percepção
estética, como uma forma de entendimento que lida com uma relação
entre impressões e ideias e que consegue, através de um planejado
conjunto de dados oferecidos aos sentidos, transferir vivacidade a
algumas delas [das ideias], construindo um sistema interno à obra de
convencimento estético, que estamos por analogia chamando de
CRENÇA ESTÉTICA.

As impressões secundárias ou reflexivas são as que procedem


de algumas dessas impressões originais, seja imediatamente,
seja pela interposição de suas ideias. Do primeiro tipo são
todas as impressões dos sentidos, e todas as dores e prazeres
corporais. Do segundo, as paixões e outras emoções
semelhantes (HUME, 2001, §1, p. 309)

[…]

As impressões reflexivas podem ser divididas em dois tipos: as


calmas e as violentas. Do primeiro tipo são o sentimento [sense]
do belo e do feio nas ações, composições artísticas e objetos
externos. (HUME, 2001, §2, p. 310)
Da coerência desse sistema interno de CRENÇA é que decorre, em
maior ou menor grau, o consentimento do espectador em relação à
lógica interna da obra de arte.
As estéticas trabalham nesse campo de certezas: certezas que são
fundadas na experiência compartilhada como modo de vida, mas não
podem ser comprovadas por demonstrações ou determinadas apenas
por regulações. Sua materialidade está na forma de vida compartilhada
e não em algum cânone de beleza.

Inconclusões
Nesse processo de perguntas e de busca de respostas, muitos dos
problemas estéticos acabam sendo diluídos numa constatação simples,
15
mas nada trivial, de que o ‘problema dos fundamentos em arte’ é um
problema para quem espera encontrar na arte fundamentos sólidos de
validade e cânones de beleza, mas não é um problema para quem não
crê nesse terreno sólido do que seja uma ‘essência própria e verdadeira’.
Apontou-se neste texto — a partir mesmo da escolha da forma
ensaio para a abordagem da questão — a perspectiva de um terreno
ainda inexplorado mas bastante promissor de analisar e interpretar o
objeto de arte não como um ‘objeto artístico’ ou um ‘objeto estético’, ou
algo especial diante do mundo e da linguagem, mas como uma
especialidade do discurso humano em sua forma de vida:

IF §527 - A compreensão de uma frase da linguagem é muito


mais aparentada da compreensão de um tema da música do
que porventura se imagina. [...]
No discurso estético a expressividade e a descrição não se
encontram conectadas pela necessidade primordial de transmitir
informação no sentido comunicacional, mas conectados pelo
compartilhamento de parte expressiva que carregam os que interagem
como forma de vida, a partir das vivências: aspectos de um discurso
ainda não realizado com um possível sentido referencial ou descritivo,
mas pleno de sentido expressivo. Cujo fundamento é o próprio modo de
vida compartilhável.
Se o aspecto pode se tornar mais perceptível na ‘mudança de
aspecto’, na arte a quebra do fundamento ou a frustração da
habitualidade podem ser comparadas aos jogos de linguagem que
envolvem diretamente os aspectos, nesse ponto onde a crise artística
(ou clímax, como preferem alguns) pressupõe um momento de
‘entendimento’ e ‘não entendimento’, um momento de ‘querer dizer algo
universal’ mas ser ‘uma constituição no limite do particular’, que ocorre
dessa forma e não de outra, no jogo das linguagens.

IF §536. A reinterpretação de uma expressão facial é


comparável à reinterpretação de um acorde na música, quando
o sentimos ora como transição para esta, ora como transição
para aquela tonalidade.
A crença no belo pode então ser interpretada como um aspecto da
habitualidade das relações em torno do jogo discursivo e não da
imposição habitual de um costume.

A espécie da certeza é a espécie do jogo de linguagem (IF p.


290).
Uma certeza desprovida de razões mas capaz de provocar o
reconhecimento de um ‘aspecto da sensação’, numa semelhança entre
(i) aspectos organizacionais internos da obra e (ii) aspectos gerais que
organizam a forma de vida.
Não se ouve a melancolia, mas supõe-se ou crê-se ter a sensação
dela ao ouvir uma melodia. Segundo Wittgenstein, podemos nos referir a

16
‘tons maiores ou menores’ exclusivamente nos referindo ao nome de
determinadas formações de notas; mas podemos agregar epítetos ou
conceitos, por exemplo, o de ‘melancólico’ ao ‘tom menor’. Da mesma
forma, também a qualidade de ‘triste’ pode ser aplicável a traços
representando um rosto.

Eis que me vem ao espírito que, em conversa sobre assuntos


estéticos, são usadas as palavras: "Você deve ver isto deste
modo, pois é essa a intenção"; "Se você o vê deste modo, você
verá onde está o erro"; "Você deve ouvir este compasso como
introdução"; "Você deve ouvir esta tonalidade com atenção";
"Você deve frasear deste modo" (e isto pode se referir tanto ao
ouvir como ao executar). (IF p. 185)
Dessa forma, a abordagem da crença no belo — habitual e por
semelhanças de aspectos — nos desonera de colocar em dúvida ou
afirmar uma natureza ou um reino de essencialidades, pois passa a
interpretar a estética em função das relações entre os jogos de
linguagens, expressivos ou linguísticos.
O objeto de estudo na consideração da obra de arte não é o objeto
em si e nem mesmo o observador, mas a própria condição de
significação que envolve o ‘olhar estético’ e particularmente a ‘audição
musical’.

É quase como se o ‘ver o signo neste contexto’ fosse uma


ressonância de um pensamento. “Um pensamento que ressoa
no ver” — diríamos. (IF p. 276)

Antonio Herci Ferreira Júnior


São Paulo, 31 de maio de 2015

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