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Louco,

selvagem,
infantil
O FETICHISMO E AS
EXCLUSÕES DA RAZÃO
Exu e Exua brasileiros com um Echú Allé cubano e um Legba
da República do Benim, em 2011 (Durham, NC, Estados
DO CULTO DOS DEUSES FETICHES
O termo FETICHISMO foi proposto em 1757 pelo francês Charles De
Brosses, adotado depois pelo discurso iluminista, pelo pensamento
alemão, psicanálise e acabou se tornando uma marca recorrente e
fundante nas ciências e nas artes até a contemporaneidade.

– CHARLES DE BROSSES (1709-1777)


FETICHISTAS
1. Dão qualidades mágicas a objetos inanimados ou pessoas;

2. Interpretam fenômenos naturais como mágicos;

3. Fazem rituais bárbaros ou tem costumes inadequados;

4. Desconhecem os verdadeiros valores da civilização

06/27/2021
1. São de uma temporalidade anterior à razão, uma temporalidade
humana puramente animal;

2. Comprovação da tese radicalmente materialista: a cultura humana


não é transcendente e não surgiu dos deuses, surgiu de sua própria
FETICHISTAS: animalidade;

PURO CORPO 3. Os filósofos e religiosos tentam esconder esse tempo humano para
nos enganar e convencer da origem transcendente da razão. “os
A TRANSFERÊNCIA DE humanos criam os deuses”;
PODERES SE DÁ DE FORMA 4. EXCLUSÃO TEMPORAL. Civilizações que não evoluíram —
CORPORAL: DO CORPO DO segundo uma ordem — e ficaram estacionadas no tempo, portanto
OBJETO (UM AMULETO, POR estão por definição FORA DO CAMPO RACIONAL.
EXEMPLO) PARA O CORPO 5. ANALOGIA = EXCLUSÃO ESPACIAL. No entanto, algumas
HUMANO QUE O TOCA. civilizações “bárbaras” como nativos da África e das Américas,
mantém o mesmo tipo de raciocínio civilizatório, portanto estão
também FORA DO CAMPO RACIONAL, mas pela distância, em
uma analogia: quanto mais distante do centro de desenvolvimento,
mais primitivo como civilização.

06/27/2021
1. Não tem conhecimento ADEQUADO ou científico e guiam-se por
pensamento mágico;

2. Portanto não podem ser AGENTES ou sujeitos e devem obedecer


ordens e ser educados, regulados ou presos: de fato até no direito ao
próprio corpo não é reconhecido seu direito e decisão;

3. Mas são altamente FUNCIONAIS e o seu trabalho, fruto de


inconsciência, desumanidade e brutalidade, pode produzir muita riqueza,
que pode ser valorizada, trocada ou acumulada, inclusive na coação ou
contratação de mais trabalho.

DESDE Q UE PRONUNCIADO, NA ACADÉM IE D ES IN SCRIPTIONS ET


ΒELLES-LETTRES O TERMO IMPUTOU O SEQ UESTRO D A
CAPACIDADE DE DISCERN IM ENTO.
Desqualificação da AGÊNCIA
Agência: um ato que tenha razão de ser, que obedeça a um
raciocínio, a uma ponderação, a uma medida e uma tomada de
decisão e que mova o APARATO DO CORPO.

A imputação de FETICHISTA normalmente é feita para negativa


da capacidade de agência: não saber o que faz leva ao veto da
ação; não saber o que deseja, ao veto da escolha do desejo; não
saber o que aprecia, ao veto do gosto, e assim por diante.

06/27/2021
Excluídos da
AGÊNCIA DO Selvagem
MUNDO

Infantil

Louco
06/27/2021
Selvagem =
CASTRADO ou
Excluídos da CENSURADO
agência
Infantil

Louco

06/27/2021
Selvagem =
CASTRADO ou
Excluídos da CENSURADO
agência
Infantil =
TREINADO ou
EDUCADO

Louco

06/27/2021
Selvagem =
CASTRADO ou
Excluídos da CENSURADO
agência
Infantil =
TREINADO ou
EDUCADO

Louco = BANIDO ou
ANIQUILADO

06/27/2021
Excluídos da AGÊNCIA
Não sabe o que vê, não sabe o que faz e não sabe o que sente.

• Ao deparar-se com poderes (sobre)naturais, o fetichista não sabe


o que vê (DE BROSSES, 1988, Culte, pág. 134);

• ao produzir a mercadoria, não sabe o que faz (MARX, 2006,


Capital, Livro I, sec I, cap I, § 4) e

• ao render-se à indústria cultural da música, não sabe o que sente


(ADORNO, 1980, Fetichismo da audição, pág. 100).

06/27/2021
Aparato do Corpo
corpo

Modo de vida

Comunicação

06/27/2021
Excursus
Aparato
do corpo

06/27/2021
Materialidade da ideologia
APARATOS DOS CORPOS, de Pascal:

Os nossos magistrados conheceram bem esse mistério. As suas togas vermelhas, os arminhos com que se enfaixam como gatos
peludos, os palácios em que julgam, as flores-de-lis, todo esse APARATO augusto era muito necessário. […]

é mostrar, pelos cabelos, que se tem um criado grave, um perfumista, etc.; pelo ornato, o fio, os passamanes, etc. Ora, não é
simples APARATO, nem simples arnês, ter vários braços. Quanto mais braços se tem, mais forte se é. Ser elegante é mostrar a
própria força.

(Pascal, Pensamentos. §§ *82|44 e 316|95)


Materialidade da ideologia
Existem APARATOS que garantem a aplicação efetiva e imediata de determinadas questões, que são normatizadas
como: pagar passagem, ter que ter diploma, etc.

Outras aparecem de forma não explícitas, pois a característica básica da ideologia é se auto ocultar. Muitas vezes apaga
a própria história para se justificar.

O racismo, a misoginia, o preconceito não são normatizados, ao contrário, avançam leis de combate. Entretanto são
ideológicos, pois acontecem de fato na vida do dia a dia. E são regulados pelo modo de vida: vagas, ganhos,
satisfações, saldos.

O direito é virtual, mas a regulação e o constrangimento do corpo é efetivo e real. O direito não é um bem efetivo, o
constrangimento do corpo é um mal efetivo.

MATERIALIDADE DA IDEOLOGIA: pode prende-lo, tirar suas coisas, mata-lo ou ignorar sua fala.
Materialidade da ideologia
A materialidade da ideologia é sua consequência efetiva sobre os
corpos.
Quando todas as ideias se encontram censuradas ou reféns de regulação,
as pessoas não tem para onde ir ou onde estar, os corpos contrariando
tudo acabam de fato se alastrando por onde puder, rompem sua própria
limitação: ao se moverem, ao se beijarem, ao ocuparem um terreno ou
prédio abandonado, ao transcenderem um sexo biológico para assumir
uma sexualidade humana...
(...) O combate filosófico por palavras é uma parte do
combate político.

As realidades da luta de classes são 'representadas' por


OCUPAR x 'ideias' que são representadas por palavras. Toda luta de
INVADIR classes pode, às vezes, ser resumida na luta por uma palavra,
contra uma outra. Algumas palavras lutam entre si como
ARENA SEMÂNTICA inimigas. Outras são o lugar de um equívoco: a meta de uma
batalha decisiva, porém indecisa.

(Althusser, Aparelhos Ideológicos de Estado, p. 112)


LIMITES
Os corpos estão nos limites das regulações, mas podem sair deles, pois corpos se movem, disputam
territórios e se expressam.

O corpo humano, apressadamente chamado de fardo por muitos pensadores,


místicos, religiosos, políticos e outros homens de destaque do saber, em realidade
é um APARATO, talvez o único, que, embora limitado, pode irromper a limitação
dos corpos.
Aparato do Corpo
corpo

Modo de vida

Comunicação

06/27/2021
Excluídos da AGÊNCIA
Não sabe o que vê, não sabe o que faz e não sabe o que sente.

• Ao deparar-se com poderes (sobre)naturais, o fetichista não sabe


o que vê (DE BROSSES, 1988, Culte, pág. 134);

• ao produzir a mercadoria, não sabe o que faz (MARX, 2006,


Capital, Livro I, sec I, cap I, § 4) e

• ao render-se à indústria cultural da música, não sabe o que sente


(ADORNO, 1980, Fetichismo da audição, pág. 100).

06/27/2021
Movimento
Desejo

Poder

Expressão
06/27/2021
Estranhamento
Contraste entre a DIVERSIDADE DO OBJETO IMPUTADO (o fetiche, o fetichista) e a
REGULARIDADE NA FORMA GERAL DO DISCURSO que o (des)qualifica. 

1. Os fetichistas podem ser os mais variados: Des Brosses (1988) aponta como paradigma os selvagens da África; Marx (
2006) as próprias relações de produção da mercadoria e, por consequência, fetichizados os trabalhadores que produzem
mercadorias; Adorno (1980) as mercadorias da indústria cultural e fetichista todo ouvinte que se curvar aos seus gostos…
Os fetiches também os mais diversos: qualquer objeto de escolha, “árvore, montanha, flor… tudo o que se imaginar” (
DE BROSSES, 1988, pág. 15); o ouro (MARX, 2006, Livro I, sec I, cap III, § 3) ou mesmo o que domina todo o universo
musical “passando por Gershwin, Sibelius e Tchaikóvski, dominados por fetiches” (ADORNO, 1980, pág. 74). 

2. No entanto, a estrutura geral do discurso é sempre a mesma: aponta-se o que, diante da razão e do senso comum, não
pode ter expressão ou representação: segregado no tempo (infância, primitivo) ou no espaço (selvagem, outra raça). 

06/27/2021
JUSTIFICAÇÃO O termo FETICHISMO nasceu do choque
entre colonizadores e colonizados que foram
NECESSÁRIA E escravizados e tornou-se um operador
SUFICIENTE necessário à afirmação da ciência e da estética
DA RAZÃO modernas: para a delimitação do campo da
exclusão da razão e a desumanização do corpo
Pensamento perverso
do escravo.

Desprover de decisão sobre o próprio


corpo
DESUMANIZAÇÃO GENERALIZADA E
Desprover de expressão das próprias
razões
COISIFICAÇÃO DO CORPO
Desprover de legitimidade da
sensibilidade: dor e desejo

06/27/2021
Logos, discursivo
Silogismo: VERDADEIRO OU FALSO.
Se as premissas são aceitas, então a conclusão
é necessária.
Dialético
DEMONSTRAÇÃO. Provas.

Entimema: VEROSIMILHANÇA.
Não apresenta premissas, baseia-se no senso
Retórico comum e certeza habitual.

PERSUASÃO. São indemonstráveis ou


improvados.

06/27/2021
Gêneros do discurso
Tempo: Passado
Função: Acusação e defesa
Judicativo
Finalidade: Descoberta em cada caso
específico, do que é "Justo ou Injusto"

Tempo: Futuro
Função: Persuasão e despersuasão
Deliberativo
Finalidade: Provar que algo é profícuo ou
improfícuo

Tempo: Presente
Epidíctico, ou Função: Apreciar e depreciar
demonstrativo Finalidade: Indicar o que é honroso ou
desonhoroso

06/27/2021
ROSANE MAVIGNIER GUEDES, 2014, PÁG. 71
QUENTIN SKINNER, PÁG. 64
Segundo Aristóteles, quando uma censura se dirige a um outro
indivíduo, geralmente nos movemos pela cólera e queremos que o outro sofra, se
coloque em nosso lugar e reconsidere: está implícito no movimento a conciliação. Mas
quando a censura se dirige a um tipo de pessoas, a um perfil, não é a cólera que
prevalece, mas sim o ódio.

A cólera pode curar-se com o tempo; o ódio, não. A cólera procura fazer pena, o ódio
procura fazer mal. Porque o homem irado quer que a vítima saiba quem a feriu; o que
odeia não se importa com isso. O primeiro, à vista dos males sofridos pelo adversário, é
suscetível de sentir compaixão; o segundo não a sente em caso algum. É porque o
primeiro quer que aquele que provocou sua cólera sofra por seu turno; o outro quer que
o objeto de seu ódio seja aniquilado. (ARISTÓTELES, 2005, Livro II, § IV.IV.31)

EPIDÍCTICO: DISCURSO DE GÊNERO ACUSATIVO.


Acusar alguém de fetichista sempre visa prescrever
ajuda ou atribuir punição: a pessoa imputada
fetichista ou precisa de algo que a qualifique — por
exemplo, falta-lhe uma consciência ou entendimento;
ou deve se livrar de algo que a desqualifica — por
exemplo, gostar de pés e não vaginas ou pênis como
deveria.
Um discurso epidictico, que tem por fim acusar alguém — de
FETICHISTA — para censurar ou excluir seu direito à fala, planejamento
e gerências dos negócios humanos, seja nas artes, nos ofícios ou nas
atividades sociais. Utilizado por diversas e diversos intelectuais desde o
iluminismo, chega à contemporaneidade na crítica estética, ao alijar da
categoria de “arte” o que considera incorrer no fetiche da comunicação.

Atuação por imputação de grupos ou coletivos de humanos,


discriminados por suas aparências no corpo, hábitos ou expressões e
neste caso caracteriza-se por um discurso de ódio.

EPIDÍCTICO: DISCURSO DE CENSURA.


GENERALIZAÇÃO.
Tantos fatos semelhantes, ou do mesmo tipo, estabelecem com muita
clareza, que a religião dos negros africanos e de outros bárbaros de hoje é
como antigamente era a dos povos antigos; e é a mesma em todos os
séculos, assim como em toda a terra que vemos surgir esse culto
diretamente prestado, sem figura, nas produções de animais e vegetais. (95)

Charles de  EXCLUSÃO DO CAMPO DA RAZÃO.


O fetichismo é do tipo dessas coisas tão absurdas que se pode dizer que elas
Brosses nem deixam de lado o raciocínio que gostaria de combatê-las. Em princípio,
seria difícil alegar causas plausíveis de uma doutrina tão tola. (96)
 
ESTADO ESTACIONÁRIO.
Depois de ter exposto como é o atual fetichismo das nações modernas, farei
uma comparação com a dos povos antigos; e esse paralelo naturalmente nos
leva a julgar que as mesmas ações têm o mesmo princípio, nos fará ver
claramente que todos esses povos tinham a mesma maneira de pensar, uma
vez que tinham a mesma maneira de agir, que é uma consequência daquela.
(14)
 
INSENSIBILIDADE E APATIA.
Sabemos que eles [os fetichistas] vivem em uma insensibilidade que advém
da apatia, nascida do pequeno número de idéias que não se estende além
das necessidades atuais: não sabem nada e não desejam saber: eles passam
a vida sem pensar e envelhecem sem sair da infância, dos quais retêm todas
as falhas. (114)
06/27/2021
FETICHISMO, SOCIEDADE PRODUTIVA DOS
HOMENS, SEQUESTRO DE
SUBJETIVIDADE.

Portanto, os homens relacionam entre si seus


Marx produtos de trabalho como valores não porque
consideram essas coisas meros envoltórios
“Sabemos que eles [os fetichistas] materiais de trabalho humano da mesma
vivem em uma insensibilidade que espécie. Ao contrário. Ao equiparar seus
advém da apatia, nascida do produtos de diferentes espécies na troca, como
pequeno número de idéias que não valores, equiparam seus diferentes trabalhos
se estende além das necessidades como trabalho humano. Não o sabem, mas o
atuais: não sabem nada e não fazem. (200)
desejam saber: eles passam a vida
sem pensar e envelhecem sem sair
da infância, dos quais retêm todas
as falhas”.

06/27/2021
FETICHE E CASTRAÇÃO.
Se eu afirmar agora que o fetiche é um substituto para o
pênis, certamente causarei decepção. Apresso-me então a
acrescentar que não é o substituto de um pênis qualquer,
mas de um especial, bem determinado, que nos primeiros
anos infantis tem grande importância, porém é perdido

Freud depois. Isto é: normalmente seria abandonado, mas o


fetiche se destina exatamente a preservá-lo. Colocando
isso de maneira mais clara, o fetiche é o substituto para o
falo da mulher (da mãe), no qual o menino acreditou e ao
qual — sabemos por quê — não deseja renunciar. (246)

 
NÃO É RECONHECIDO COMO DOENÇA.
Não se suponha que essas pessoas tenham recorrido à
análise por causa do fetiche, pois ele é reconhecido como
anormalidade por seus adeptos, mas raramente percebido
como sintoma de doença; em geral parecem bem
satisfeitos com ele, e chegam a louvar as facilidades que
traz à sua vida amorosa. (245)

06/27/2021
FETICHISMO E DEPRAVAÇÃO.
As obras que sucumbem ao fetichismo e se transformam
em bens de cultura sofrem, mediante este processo,
alterações constitutivas. Tornam-se depravadas. (81)
 

Adorno ETICHISMO COM INFANTILIDADE, REGRESSÃO,


DEFORMAÇÃO.
Para tais ouvintes, elabora-se uma espécie de linguagem
musical infantil, que se distingue da linguagem genuína
porque o seu vocabulário consta exclusivamente de
resíduos e deformações da linguagem artística musical.
(96)

 
FETICHISMO E ESCRAVIDÃO.
Sempre de novo os indivíduos ainda não inteiramente
coisificados querem subtrair-se ao mecanismo da
coisificação musical,estão entregues, porém na
realidade cada uma das suas revoltas contra o
fetichismo acaba por escravizá-los ainda mais a ele. (98)

06/27/2021
Espaço público:

ÁGORA E
ESPAÇO DE
DISCUSSÃO E
ASSEMBLEIA

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