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*Danado aquele Malhadinhas

de Barrelas, homem sobre o


meanho, reles de figura, voz
täo untuosa e tal ar de sisu-
dez que nem o próprio Demo o
julgaria capaz de, por um no-
nada, crivar à naifa o abdó-
men dum cristäo. Desciam-lhe
umas farripas ralas, em guisa
de suíças à borda das orelhas
pequeninas e carnudas como
cascas de noz; trajava jaleca
curta de montanhaque; sapato
de tromba erguida; faixa pre-
ta de seis voltas a aparar as
volutas dobradas da corrente
de muita prata -- e, Aveiro
vai, Aveiro vem, no ofício
de almocreve, os olhos sempre
frios mas sem malícia apenas
as mandíbulas de dogue a
atraiçoar o bom-serás) as
suas façanhas deixaram eco
por toda aquela corda de po-
vos que anos e anos recorreu.
Na velhice, o negócio tilin-
tado através de geraçöes, as
andanças de recoveiro, o ver
e aturar mundo, tinham-no
provido de lábia muito pito-
resca, levemente impregnada
dum egoísmo pândego e glorio-
so. Nas tardes de feira,
sentado da banda de fora do
Guilhermino, ou num dos
poiais de pedra, donde já ti-
vessem erguido as belfurihas,
alegre do verdeal, desboca-
va-se a desfiar a sua crónica
perante escriväes da vila e
manatas, e eu tinha a impres-
säo de ouvir a gesta bárbara
e forte dum Portugal que
morreu.*
.he 13

Quando comecei a pôr vulto


no mundo, meus fidalgos, era
a porca da vida outra droga.
Todas as semanas contavam
dias de guarda e, por cada
dia de guarda, armava-se o
saricoté nos terreiros. Näo
andaria Nosso Senhor de
terra em terra -- eu cá nunca
me avistei com ele -- mas a
verdade é que a neve vinha
com os Santos e as cerejas
quando largam do ovo os per-
digotos. Bebia-se o briol
por canadöes de pau até que
bonda. Um homem mesmo com os
dias cheios tinha pena de
morrer.
Näo tenho cataratas nos
olhos, ainda que me hajam ro-
dado sobre o cadáver quase
dois carros de anos, mas os
dias de hoje näo os conheço.
.he 13-14
Ponho-me a cismar e näo os
conheço. E, quanto mais cis-
mo, mais dou razäo ao Migue-
läo da Cabeça da Ponte, que
falava como livro aberto, o
grande bruxo. Muitas vezes
lhe ouvi dizer quando estava
de boa lua, o que nem sempre
assucedia:
-- Tempos viräo em que o
governaräo as terras väs e os
filhos das barregäs.
:,
.he 14
Agora deitem Vossorias
consultas e digam-me: quem
tudo lo manda no concelho?
Quem? O doutor Alípio, o
filho da Ruça da Folgosela,
com porta aberta aos mar-
chantes na feira de S.
Mateus. Quem recolhe boas
novidades? O pele-de-asno do
Bisagra com umas barreiras
rabosanas, donde näo valia a
pena enxotar a milheira,
quando ainda o mundo andava
torto. E, vejam, o meu rico
linhar do Paul -- água quan-
ta quer, estrume do cortelho,
sacho e mais sacho -- näo
paga a mantença do cultiva-
dor!
Voltou-se tudo; de meu
tempo, também, homem de pala-
vra era como se trouxesse
sempre consigo um alforge de
libras. Ajustava o que que-
ria e levantava o que queria
de proprietários e de tendei-
ros. Palavra era palavra,
mais ouro de lei que uma peça
de D. Joäo. Assinava-se de
cruz e muito judeu seria
aquele que negasse os dois
rabiscos lavrados de seu pu-
nho, por que näo era só negar
dois rabiscos, mas o grande
sinal de lisura e de verdade
que Jesus Cristo deixou aos
homens ao morrer num madeiro
para nos remir e salvar!
Väo lá agora com essas!...
.he 14-15
Barrelas vestia-se com a
estopa e o linho dos seus
linhares e o burel apisoado
das próprias ovelhas. Uma
capucha da marca durava duas
vidas.
No Outono, assim que as
sombrias começavam a cair nas
esparrelas, um cristäo reco-
lhia-se à toca. Lar bem sor-
tido de lenha, porco na sal-
gadeira, pipinha
:,
.he 15
com o espicho a compasso, o
boizana do temporal podia bu-
far. Seroava-se nas lojas
das vacas e aos sábados ba-
tia-se a ribaldeira até as
Três Marias empalidecerem
no céu. Invernos inteiriços
como os dos lagartos. Mas,
ah, logo que se ouvia a cor-
colher: *tem-te lá, tem-te
lá*, Barrelas vazava-se por
esses caminhos de Cristo em
votos e romarias. Ia-se à
Senhora da Lapa, à Senho-
ra da Penha do Vouga, de
cruz, estandarte e borracha a
tiracolo, no bornal o päo
amarelo de azeite e ovos, no
merendeiro as trutas do Pai-
va. Em toda a parte punha
ramo a nossa mocidade -- ra-
pazes capazes de arremeter
contra uma baioneta, moças a
puxar para loirinhas, que por
aqui näo correu sangue afri-
cante. A gente näo era falsa
a bródios e funçöes, näo só
pelo preito que nos mereciam
os santos como porque ninguém
seria mais amigo de espaire-
cer e folgar.
Ah, velha Barrelas dum
sino! Tomara-me eu outra vez
com vinte anos e saber o que
hoje sei! Diabos me levem se
näo fosse rei. Mas rei a va-
ler, e nenhum rei de copas,
ali... de ceptro em punho,
todos ajoelhados diante de
.he 15-16
mim a lamber-me os butes, sa-
bendo que o era, pois rei era
eu sem o saber. Que menos,
com o rapariguedo à volta:
*Antoninho, cravo roxo!*
saúde de cavalo, açafate o
que se chama farto, caminhos
desimpedidos?!
Que o mundo é outro --
apregoa para aí o mestre-
:,
.he 16
-régio. -- Virou para me-
lhor... Há menos atropelos,
maior igualdade, menos a pata
do rico sobre o cachaço do
pobre... A prova näo é boa
de tirar. Lá que há mais
instruçäo, isso há. No meu
tempo sabia ler o Manuel
Abade, e ganhou esta alcunha
a ler nos seröes o *Mestre
da Vida* e a *História de
Carlos Magno e dos Doze
Pares de França*. Mas sa-
ber ler näo basta para ser
fino, ser cavalheiro, e muito
menos ser feliz. Eu só tar-
de, moço do senhor vigário,
estudei letra redonda. Sala-
manca a uns sara, a outros
manca, olhem, meus senhores,
ainda me näo apontava o buço
e já por minhas próprias e
boas artes era dono dum ma-
chito, täo bom para estardio-
ta como para carga, de jarre-
tes rijos como aço, só um
pouco rifador o dianho: o
frade missionário que mo ven-
deu tinha três dentes estoi-
rados dum senhor coice que
lhe pregou. Deu-me na fanta-
sia para pôr-lhe campainhas
castelhanas na barbela, cor-
nachas de cores acima das
orelhas, franjas na retranca,
eh! parecia mesmo a cavalga-
dura dum bispo! Eu de riba
dele e, tepe, tepe, por aque-
les povos de Cristo, mais
veloz que o raio, ouvia vo-
zear das portas: "Lá vai o
.he 16-17
Diabo para fora da terra!"
Adiante, antes chalaças que
chumbada!...
Pois é verdade, ainda näo
me picava a barba e já eu,
desta Barrelas de ara direi-
ta, perdida no calcanhar do
mundo atrás de caminhos exco-
mungados, batia até a Costa
Nova, à cata de sal, de sar-
dinha e
:,
.he 17
doutros géneros daquelas pa-
ragens, que ao tempo se ven-
diam mais caro que os poses",
da botica.
E ia trocá-los pelo azei-
te, a azeitona, o linho em
adeitos, a termos de Pene-
dono, e destas recovagens
umas por outras, quatro li-
bras, andavam em voga as de
cavalinho, dançavam no saco.
Nada se me punha pela fren-
te, nem a noite, nem as in-
vernias, nem os ladröes das
estradas, qual o quê! Com
latim, rocim e florim andarás
mandarim.
-- És um cäo a marchantear!
-- dizia-me meu tio Agos-
tinho, que antes de ser meu
sogro foi meu mestre, e do
negócio ainda deixou cabonde
para se lhe rezar o responso.
Näo haja dúvidas, eu era
um adregas, hoje aqui, amanhä
lá nos quintos, sabe Deus.
Virava-me em cima duma moeda
de dez réis. À dita confita,
achei-me com dois pintos no
bolso e, eles a chocalharem,
a chocalharem-me também nos
ouvidos as gargalhadas de
Brízida, minha prima direi-
ta, raparigaça, como poucas,
apetecedora de legítima e de
presença, trunfa preta sobre
o rosto benza-te Deus, gran-
de cantarina de seröes e de
romarias, e täo guapa em seu
amanho como videira no gover-
.he 17-18
ninho da casa.
-- Tate -- dizia-me o co-
raçäo -- ali arde Tróia.
Rampanei, mas já lhe ren-
tavam, sem contar vizinhos, o
Tenente da Cruz, que corria
as feiras montado num garrano
rinchäo, o lódäo entalado na
perna, todo
:,
.he 18
frança, e arrotava o morga-
dio, e o abade de Britiande,
que a vira na festa do Már-
tir e ficara a morrer por
ela. Dois macanjos de alto
lá com eles.
-- Ó primo, pois tu duvi-
darás do meu bem-querer? --
dizia-me ela, com um jeitinho
na boca, que parecia mesmo
abrir a porta do peito, salvo
seja, para eu entrar. -- Ou
tua ou de mais ninguém.
Pois sim, mas eu via-lhe
voadeiras de frangainha real,
e o palonço do meu tio, vai
senäo quando, começou a mos-
trar-se muito ancho com a re-
questa do abade que, além de
ser homem novo, muito bem
afigurado, pregador de fama e
grande batedor de montes, es-
tava provido numa das fregue-
sias mais rendosas da dioce-
se. Dei tento nisso, uma
noite que íamos de jornada
vale do Vouga arriba, toca
que toca, ao ouvir-lhe elogiar
o padre, mais do que manda
a cartilha a um confessado, e
deitar contas, que nem mordo-
mo, à côngrua, pé-de-altar e
alcavalas da igreja de Bri-
tiande. O marau do padre deu
também em vir fazer montarias
para os coutos de Barrelas,
hospedando-se em casa do tio
Agostinho com muito alarde e
folgança.
-- António -- pus-me a ma-
lucar para comigo e para com
Deus -- os lobos pilham-te a
.he 18-19
borrega quando menos te pre-
catas. Que se há-de fazer?!
Se a pedes ao pai, diz-te
que näo. Duvidas? Oh, apa-
nhas com o näo mais redondo
que um coice do macho se o
coçares
:,
.he 19
abaixo da rabadilha. Apa-
nhas; näo andasse ele tonto
de todo a sonhar a filha aba-
dessa! Ela... ela jurou-te
amor verdadeiro, é certo, mas
isto de moça louçä, cabeça
vä! Que se há-de fazer?...
Um dia fui-lhe com as
queixas assolapadas. Ela re-
cebeu-me com uns risinhos täo
sem propósito, que mais me
capacitei que a moça, ensan-
decida com as finezas dos ga-
lantes, andava vaidosa de si,
esgarrada, na tal maré do
carvoeiro, em que as mulheres
se deixam pegar como bogas
com trovisco.
-- Olha, Brízida -- disse
eu -- albardado seja quem se
ilude. Até há pouco o pai
era por feiras e adjuntos tu
cá tu lá com o Tenente da
Cruz. Já lhes chamavam os
dois da vigairada. Agora é
com o abade de Britiande.
Mas deixa, eu dê ainda hoje
um estoiro no inferno se o
padreca näo for corrido daqui
a toque de caixa...
-- Que mal te fez o senhor
abade, primo? Entäo já näo é
senhor de estar onde lhe ape-
teça?
-- É; mas eu também sou
senhor de lhe fazer a barba à
coroa, cá a meu modo, para
lhe lembrar que é casado com
a Igreja.
-- Credo!
-- Credo, digo eu. O pa-
dre é o vosso santantoninho
por quem sois. Cuidas que
sou cego? Mais de uma vez te
.he 19-20
apanhei a espenujares-te dian-
te dele, que nem parecias
donzela de assento.
:,
.he 20
-- Anjo custódio! Outra
venha que rabo tenha.. .Rio-
-me para ele; que mal tem?
-- Tem muito. Alguém
acredita que o coroado vem
para aqui caçar por caçar?
Lebres e perdizes tem-nas a
dois passos, a dar com um
pau, na serra de Tarouca.
Ela fitou-me muito séria
no fundo das meninas a escru-
tinar, e tornou:
-- Vem entäo pelos meus
bonitos olhos?
Raio de cachopa, encarei
também muito nela, e de salto
me acudiu que mente Marta
como sobrescrito de carta,
isto é, que muito na mulher é
negaça. Estive vai näo vai
para torcer-lhe as voltas,
mas ná, para trás anda o ca-
.he 20-21
ranguejo, e respondi-lhe
afoito:
-- Vem, vem pelos teus bo-
nitos olhos! Mas também juro
à fé de quem sou: näo será
ele que se goze de ti.
-- Näo fales à rebentina,
primo, que me derrancas a
alma. O dito, dito.
-- E que vale? Teu pai
näo consente...
-- Que lhe hei-de fa-
zer!?...
-- Há um remédio: foge.
Abalamos daqui uma noite e
vamos direitinhos ao abade da
Penajóia, que nos deite a
bênçäo. Ele ainda se há-de
lembrar que lhe salvei a
vida...
-- Fugir?! Jesus, que näo
diriam de mim!
:,
.he 21
-- Que haviam de dizer?
Se honrada vais, mais honra-
da vens.
-- Näo; é muito feio.
-- Pois, se é feio fica-te
com a tua, que eu vou-me com
a minha. Com penas de ir
acabar nas cadeias celulares,
sem ver sol nem lua, näo será
ele que se goze de ti.
Adeus!...
E rodei, tonto de todo,
täo tonto que se pudesse ar-
rancar o coraçäo e atirá-lo
para cima dum telhado, como
minha mäe me fez ao isqueiro,
da primeira vez que me apa-
nhou a acender o paivante,
fazia-o, ah, isso lhes juro
eu que fazia!
.he 22

Ii

Isto de a gente tratar às


escuras, procurar entendi-
mentos com coisa que se näo
vê -- como sucede em amor,
que à alma näo se lhe levanta
a tampa que a cobre -- nunca,
pensando bem, o poderá levar
à paciência homem leal de pa-
lavras e säo de juízo. Deus
fez-nos assim -- quem sabe
lá? -- talvez para se diver-
tir com as trapaças e as es-
parrelas que armamos uns aos
outros. Mas já que assim nos
fez e para mim näo era novi-
dade, um pensamento se gerou
no meu seio, onde, embora eu
seja cristäo e confessado,
nunca mais deixou de ser la-
crau a ferrar: e é que o ho-
mem é um bichinho para temer!
Bichinho para temer como
inimigo, muito mais se, em
.he 22-23
vez de calças, o que Deus
lhe talhou foram saias.
A Brízida jurara-me amor
verdadeiro, e eu bem lhe ou-
via as vozes täo afoitas como
singelas; ria-se para mim, e
nos seus olhos encontravam os
meus ternura e claridade.
Mas a alma que estava a es-
preitar à janela por trás das
reixas, que me davam essa
ideia aquelas palavras de
mel, aquelas olhadas de pom-
ba, aquela testa que, nem fa-
lando nem ouvindo, consentia
:,
.he 23
ruga, doido de mim, daria
este mundo e o outro para a
ver. Nunca adiantei o pé em
casa alheia, sem tocar a al-
draba; mas pudesse eu intro-
duzir-me no peito de Brízida
à falsa fé, embora depois me
apupassem de ladräo e houves-
sem de me lançar na cadeia,
que näo me benzia para o fa-
zer.
Depois do encontro que
tive com ela, estäo os meus
fidalgos a imaginar como fi-
quei varado, em brasas, as
brasas que Deus e o Diabo
acendem no peito dum cristäo,
talvez ao desfastio, para o
experimentar. O pior é que
cada um assopra da sua banda
e temos o lume esparralhado.
Amor por uma fêmea, isso que
ouvi a um senhor padre compa-
rar a uma febre palustre, e a
mim me parece caldeiräo de
água a ferver sem se queimar
chamiço, dança das libelinhas
por cima dum rio, ou entäo,
noite negra na terra, coalha-
da de estrelas no céu, pegou
no meu peito uma só vez e de
estaca. Sim, uma só vez e
viva o velho!
Um lindo palminho de rosto
sempre gostei de ver e admi-
rar. Para que fez o Criador
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as bonitas senäo para jardim,
ao menos, dos olhos de quem
näo é o jardineiro? Uma bo-
quinha bem feita, dessas que
säo vermelhas, carnudas e ar-
redondadas como as cerejas, e
quando as puxam ao devaneio
arranjam um jeito de vergonha
e de fugir com que redobram a
cobiça da gente, ah, tais bo-
cas sempre senti ganas de
beijar e, cedendo à tentaçäo,
aqui lhes confesso, algumas
:,
.he 24
vezes beijei. Beijei e go-
zei, que a carne é pecadora e
ninguém, a näo ser santinho
carunchoso, que näo de pau
carunchoso, sabe resistir aos
lambiscos do pecado.
Brízida trazia-me doido,
mas desta doidice, Deus nos
acuda, que näo tem paragem
nem vê mais nada. Nunca foi
täo acertado dizer: com ela
me deito, com ela me levanto.
Realmente näo se me varriam
dos olhos as suas lindezas.
Pudera, clamavam-nas o sol,
a lua, os homens que a viam e
ficavam a rinchar, as mulhe-
res que se mordiam de inveja,
a pobre da Preciosa, que fa-
zia belfurinha do corpo a pa-
taco: a minha Brízida era
branquinha de neve e perfeita
de feiçöes; alegre e airosa
no trajar; dona de casa de
primeira ordem; os seus
seios, levantados como os
päes das boas fornadas, eram
a melhor fronha para um homem
encostar a cabeça; que orgu-
lho ir com ela às romarias
quando toda a gente se punha
a admirá-la! Os seus olhos
bastaria olharem a direito
para um cego ir dar com eles.
Era uma flor, lá isso era, e
assentava-lhe bem tudo o que
agrada na Primavera e faz
lamber os beiços no vinho
.he 24-25
mosto e nos rebuçados.
Mas eu sempre fui um tanto
cismático e o Demónio ou os
seus espíritos-santos de ore-
lha levantavam a outra ponta
da manta: fia-te na cachopa,
nas suas sete falinhas doces
e, quando mal te precatas, a
:,
.he 25
pombinha bateu as asas. Pois
tu näo a sentes desarvorada?
Vê se lhe espreitas para a
alma, a arca cispada que te
faz dar o cavaco, e hás-de
acabar por encontrá-la chei-
inha com o padre. Que asno!
Para ti tem ela os modos,
mas para ele guarda os pensa-
mentos, que säo sempre o me-
lhor da festa. A ti faz-te
promessas; a ele iräo as ter-
nuras. Que esperas?! Näo
vês que o padre é um figuräo,
que lhe promete vilas e cas-
telos, e tu um labrego, dá-mo
pobre, dar-to-ei aborrecido?!
Näo lhe enxergas as mäos mi-
mosas e fidalgas de todo em
comparaçäo com as tuas, co-
bertas de surro? Entre um e
outro, bem tola seria Brízi-
da se hesitasse. O pároco
ganha-o a cantar; é um moce-
täo; faz dela um brinquinho;
näo lhe häo-de faltar criadas
para a servir. E tu quem és?
Tu näo passas do António
Malhadinhas, um pobre de
Cristo, um zé-ninguém, um
côdeas que puxa uma besta de
carga pelo rabeiro.
Assim mesmo me falava ao
entendimento o Diabo de rabo
pelado, com licença dos maca-
cos. E isto me leva a supor
que, se em verdade a alma é
treva e o Diabo é o rei das
trevas, rei das almas se lhe
pode chamar -- salvo seja a
heresia, que tudo serei menos
judeu.
Pois da conversa com Brí-
.he 25-26
zida fiquei täo fora dos meus
cinco sentidos que, pondo-me
em casa a consertar os ata-
fais da besta, näo atinei
ponto com jeito.
:,
.he 26
Mais puxa moça que corda.
E, vai, atirei o albardäo
para o inferno, e fui-me até
a venda.
Estavam os amigos pegados
ao chincalhäo de seis, num
babaréu dos demónios -- por-
que torna, porque deixa, nun-
ca tu devias queimar a sota
contra um reles terno de
paus; és um pexote; näo pas-
sas dum troixa; prego-te com
o baralho no focinho estanha-
do e comigo näo jogas tu mais
-- ao tempo que o Albino ba-
tia a dama de oiros na mesa,
saltava-lhe em riba o Alonso
com o valete, e ele berrava
para o Bisagra, que era par-
ceiro: *ó alma de cântaro, vê
lá se te deixas cornudar como
daquela que nós sabemos!*
Aquela que nós sabemos era a
mulher. Mas ele, coitadinho
dos coitadinhos, no meio da
assuada näo percebeu ou fez-
-se desentendido. Näo me de-
morei ali grandes horas. Ha-
via lance no jogo, ou dichote
daquelas bocas depravadas ca-
pazes de varrer as mágoas que
tinha no peito a morder?!
Voltei a casa, pus o apare-
lho no cavalinho e ala! Só
lá fora, depois que passei a
ponte é que perguntei para
mim e para com Deus:
-- Onde vais, cabo dos
trabalhos?
Onde ia, onde havia eu de
ir? Nunca o sentido me puxa-
ra fora de mäo; para aquelas
bandas ficava o vale de
Arouca, onde há muito trazia
o intento de carregar azeite.
Näo levava uma de cruzes,
.he 26-27
nem odres, nem outro viático
além do lódäo, mas embora, no
Castro me abonariam o preci-
so.
:,
.he 27
Era pelo mês de Abril, na
semana da Pascoela, quando
se vêem pelos caminhos, asso-
mando nos altos, desaparecen-
do nas baixas, as garnachas
negras dos padres. Lá väo,
às vezes dois até três, ou
sozinhos com o arrieiro à
frente, a cavalo de suas hor-
sas rabonas, de igreja para
igreja a confessar. Já flo-
ria o alecrim e a alfazema, e
ao passar na cabeceira dos
quintais o seu rescendor ala-
gava os ares muito lavados
das chuvas e escaioladinhos
de sol. Tupa, tupa no cava-
licoque, olhos aqui no cereal
todo verde, além no monte a
vestir pelagem nova, ou nas
águas, que nunca como nesta
altura do ano säo folgazonas,
desgarradas pelos caminhos, a
lançarem-se às cegas dos cô-
moros, sôfregas nos próprios
corgos, e täo alegres que
convidam à alegria, tupa, tu-
pa, a minha maluqueira foi
amainando. Aboletei-me essa
noite no Castro, em casa dum
amigo que me forneceu o ne-
cessário para o negócio, e
mal os galos cantaram a pri-
meira vez pus-me a pé. Dali
até Arouca säo sete léguas
das velhas, por barrancos,
onde nem reis nem ministros,
que eu saiba, romperam os sa-
patos, e tratei de picar.
Ainda restava orvalho da ma-
nhä à beira das paredes, e já
eu atravessava as serras mal-
ditas que parecem estar ali
de propósito a esconder de
olhos maus aquela abendiçoada
bacia do Arda. À vista do
convento, meti à desbanda,
.he 27-28
por um atalho, aconselhado
pelo rifäo: guar-te de homem
de vila como de cäo de fila,
direito
:,
.he 28
ao povo de Santa Eulália,
onde nunca me haviam arrefe-
cido os pés. E andava eu
correndo os cambais à cata de
fazenda, acertei passar por
um pátio onde ia grande sa-
rambeque. Rapazes e rapari-
gas -- em tal número que de-
via ter-se vazado para ali a
mocidade de muitos lugares --
batiam a ribaldeira entre ar-
cos de loureiro e buxo, como
esses que se armam nos adros
em festa de orago. Um homem
de barbas ruças tocava rabeca
e, *vira-vira-vi*, até parece
que falava o demónio do ins-
trumento. Bem repenicavam o
da viola e o dos ferrinhos,
era como se estivessem mudos.
Pois ali me pranto eu à bo-
queira do eido a admirar a
funçanata e a considerar a
casaria que, pelo ar, era de
gente abastada, quando um ho-
mem se aparta do rancho, me
fita muito, e vem de rópia
para mim. Estou a vê-lo na
andaina de saragoça preta,
chapéu terçado para a orelha,
corrente de ouro ao peito,
escanhoado como um padre, ho-
mem dos seus cinquenta, feros
e escorreitos.
-- Ande cá, seu moço --
disse-me ele. -- Ande cá,
ande, que me há-de pagar hoje
uma pedrada que me deu.
-- O senhor vem errado --
tornei-lhe com toda a pausa:
a apressada pergunta, vagaro-
sa resposta, calculando já a
vereda por onde seria possí-
vel safar-me do percalço que
me surgia pela frente. --
Näo o conheço... nunca o vi
mais gordo... :,
.he 29
-- Pois eu conheço-o. Vo-
cê näo é de Barrelas...? --
Lá isso sou, que nunca me
coube no ânimo negar a terra
em que fui nado. Mas pedrada
näo me lembra dar-lhe...
-- Deu, e saiba que a deu
ao Faustino de Santa
Eulália, que näo é homem
para esquecer uma desfeita.
Venha -- e, proferindo estas
palavras, o tipo respondia ao
meu ar desconfiado com ar de
troça.
Fui-me atrás dele, que re-
médio, se já lá ia com o meu
cavalo pela arreata! No ad-
junto, pediu a caneca e me-
teu-ma na mäo:
-- Beba e beba-lhe bem,
que é dado de vontade!
-- Homessa! Acaba de di-
zer que lhe dei uma pedra-
da...
-- Deu, torno-lho a repe-
tir. O amigo näo estará lem-
.he 29-30
brado dum sujeito que passou
no seu povo, vai fazer dois
anos para Agosto, de rota
para a festa da Senhora da
Lapa? Vocês andavam a ma-
lhar numa eira que fica à en-
trada da povoaçäo, mesmo à
ilharga das casas... Parei a
perguntar o caminho para a
Lapa, e você, seu moço, veio
de lá com uma botelha cheia
de vinho, e obrigou-me a be-
ber. Aí está a pedrada que
hoje aqui me há-de pagar!
-- Näo digo que assim näo
fosse -- respondi eu já a
sorrir -- mas, se deslembrado
estava, deslembrado fico. De
beber, pelo tempo das malhas,
damos nós
:,
.he 30
sempre a quem passa. É como
cá os senhores, com as uvas,
quando andam a vindimar.
-- Dê-lhe as voltas que
quiser, matou-me a sede que
trazia, e era grande. Nunca
mais me hei-de esquecer que
fazia naquela hora um sol de
canícula que até rechinava as
pedras. E, no íntimo, fiz
jura de lhe pagar a acçäo se
algum dia o caçasse a jeito.
Mas ande, beba-lhe.. .Es-
tará você mal comido, seu
moço?
Respondi-lhe que trincara
um pedaço de broa com queijo
e que me sobrara merenda nos
alforges, ainda que a verdade
verdadeira era trazer eu ape-
tite de lobo, para esfandegar
um cabrito, se o apanhasse
assadinho no espeto. Mas ele
näo deu crédito às minhas pa-
lavras e, guiando-me até
casa, mandou pôr a mesa.
-- O amigo a que anda, se
näo queda mal o perguntar? --
tornou-me ele.
-- Ao azeite. Ouvi falar,
se näo sonhei, que para estes
.he 30-31
lados houve grande fartura
este ano. Pois se há, disse
comigo, talvez tope com que
encher os odres do fino e em
boa conta. E, vai, tirei-me
dos cuidados e meti-me à jor-
nada...
-- Pois coma primeiro, que
eu vendo-lhe uma carga. Se
lhe servir. Mas vou jurar à
fé de quem sou que melhor fa-
zenda näo topa por todo o
vale de Arouca. O meu azei-
te é dos que ardem sem pavio.
E quanto a preço, descanse,
que näo há-de ir roubado.
:,
.he 31
-- Pois muito bem haja. E
já que a uma fineza quer
ajuntar outra, oxalá que no-
vamente Deus lhe guie os
passos pela minha terra, para
lhe dar segunda e melhor pe-
drada.
Sentei-me à mesa e veio
servir-me uma rapariga tri-
gueira, mediana de estatura,
fartinha de seios, o rosto
sobre o redondo, com olhos
castanhos, täo ternos, que
apetecia ser fidalgo para sem
vergonha lhos namorar. Tinha
as sobrancelhas muito carre-
gadas e o nariz pequeno, um
nariz que näo era como o das
mais mulheres, só dela e de
mais ninguém, mas cheio de
graça, de que apenas sei dar
relaçäo que as asas buliam
como o das coelhinhas quando
comem. Andava muito bem ves-
tida, chambre de veludilho
rente ao corpo, lenço de lä
descaído para as costas, boa
saia, boa tamanquinha de ver-
niz e, pelo meneio e pelo
rasgo, vi logo que era filha
da casa. Näo se admirem que,
a tantos anos de vista, me
lembre dela. Olhem: ficou-me
na memória, assim inteira,
assim estampada, como dentro
.he 31-32
duma medalha!
O Faustino, depois que me
viu a contas com a perna de
carneiro que enchia a espade-
la, voltou ao adjunto. E eu
fiquei só com a mocinha e da
sua boca -- tinha belos den-
tes e abria-se num sorriso
que alumiava mais que a graça
de Deus, que nunca nos aban-
dona mas näo se vê -- da sua
boca ouvi a explicaçäo daque-
la festa: as bodas do irmäo
com uma
:,
.he 32
rapariga de boa família e
muitos teres, festa täo gran-
de que nela, se se dessem a
procurar, encontrariam a nata
de Santa Eulália e dos po-
vos vizinhos, na classe de
lavradores. Contou-me ainda
quem era o pai e a mäe, coi-
sas e loisas, e de tudo vim
ao apreço que estava debaixo
de telha farta e honrada.
Comi-lhe bem, bebi-lhe me-
lhor -- que a mocinha näo me
consentia o copo doutra ma-
neira que atestado -- e com
lhe pedir perdäo de a ter
desviado do baile, perdäo a
que ela atalhou dizendo que
tinha muito tempo de dançar,
me fui dali.
No terreiro, o Faustino
veio ter comigo:
-- Ficaria mal obsequiado,
haja de desculpar.
-- Desculpa peço eu de näo
saber como lhe agradecer.
Quanto a obséquio nunca re-
cebi igual na minha vida.
-- Entäo, se me quer agra-
decer, tome parte na nossa
festa. Um rapaz novo balha
na ponta dum espeto! Ó
Rita!... Ó Rita, olha-me
para este moço... Parado as-
sim, faz-me febre!
A rapariga -- era a tri-
gueirinha que me matara a
.he 32-33
fome -- chegou-se a mim toda
fagueira e, vai, arrumei o
lódäo a um canto, apertei a
faixa na cinta, e rompemos a
bailar. Dianho de pequena,
era leve como uma andorinha!
Por leve nunca julguei que
alguém me rendesse, mas aque-
la levava-me as lampas. Leve
e entäo com uma ária, uma
graça, pai do
:,
.he 33
céu, que nem fidalga escondi-
da nos trajos de camponesa!
Por ali acima, nos volteios
e repeniques da chula, breve
éramos o alvo de todos os re-
paros. E já os olhos casta-
nhos sorriam para os meus,
confiados; e já eu, peito
contra peito, lhe dizia que
viera àquela terra por meu
mal.
Numa das pausas da chula,
o noivo veio-me saudar, mais
a noiva, que era donzela jei-
tozinha e de agradável pare-
cer. E beba, e dance, e vi-
va, todos me festejavam.
Rita näo se apartava do pé
de mim, e de ver-lhe os olhos
mais doces, e ouvir-lhe a voz
mais meiga, vinho ou quer que
era começou a trepar-me aos
cascos.
A meio do pagode, por des-
fastio, alguns rapazolas do
lugar desataram em lutas de
fortaleza. Eu pus-me de par-
te, que a tais provas näo me
era dado dizer: "presente!",
no íntimo admirando uns,
chasqueando de outros. E,
estavam eles a jogar a barra,
apareceu ali o arganaz dum
homem -- peito em aduela, ca-
chaceira de boi, cara de pou-
cos amigos -- a ensarilhar a
racha com tanta gana e fanta-
sia que nem doido varrido a
perseguir mosquitos à paula-
da. E, com grande alarde,
.he 33-34
desafiava o mais pintado para
o jogo do pau, a perder ou
ganhar uma moeda.
À minha banda, o Faustino
celebrava as artes do melian-
te:
:,
.he 34
-- Isto é um varredor de
feiras temível. Está para
nascer o primeiro que lhe
faça sombra.
De facto, pelo corpanzil,
pela bazófia, parecia faia de
respeito. Era também um dos
dançarinos e, logo de princí-
pio, lhe tomei azar porque,
quando nos rodopios da chula
à Rita calhou a dar a volta
com ele, usou dum espalhafa-
to, mostrou täo bacoramente a
dor de cotovelo de a ver bai-
lar comigo, que até a moça se
escandalizou, quanto mais eu.
Se fosse na minha terra eu
lhe ensinaria a ser mais com-
posto e bem-educado com quem
lhe näo procurava detrimento!
Mas ali acalmei-me e deixei
correr.
-- Entäo ninguém se sente
com alma de ganhar uma moeda?
Olhem bem: é ouro de lei! --
e no cimo do pau passeava, ao
que era de plano e bem apara-
do, debaixo dos olhos dos
parceiros, uma peça de D.
Joäo V, dessas que já eram
ralas ao tempo, e hoje só se
usam ao dependuräo das cor-
rentes, por galhardia.
Todos, homens e rapazes,
chalaceavam com ele, louvan-
do-o, näo pondo acanhamento
em se declararem seus subal-
ternos na destreza e no po-
der.
-- Já que ninguém se ten-
ta, torna para o saco! -- e,
puxando a moeda, fingiu que
dava com os olhos em mim: --
Com você, seu homem, näo se
fala em tal negócio...
.he 34-35
Bailäo, maricäo!
Estive um momento sem lhe
poder tornar
:,
.he 35
resposta, sufocado de raiva,
até que lá atinei com estas
razöes:
-- Se näo fosse nesta ter-
ra e na sociedade onde me en-
contro, ah, você havia de en-
golir a bosteira! Aqui só
lhe posso dizer que estou
pronto a medir o pau consigo.
Aposta uma moeda; eu, se ga-
nhar, näo lha quero; manda-me
proceder assim o respeito que
devo a este amigo. Mas se
perder, perdida tenho a moe-
da, que é dinheiro -- juro-o
pela salvaçäo da minha alma
-- que nunca mais nos meus
haveres conta.
-- Pois seja lá como qui-
ser. Tem um pau?
-- Tenho pau.
Fui buscar o lódäo e pude
.he 35-36
dizer à Rita, que me seguira
e estava branca como a cera:
-- Ó menina, empresta-me
uma faca? Uma navalhinha que
seja...? O principal é que
corte um pouco mais que quei-
jo fresco e sombra das pare-
des.
Fitou-me ela muito nos
olhos, mas eu sosseguei-a re-
batendo-lhe com firmeza de
voz o pensamento errado:
-- Esteja descansada, que
näo é para mal. Eu näo sou
homem de barulhos. Vai ver!
Deu-me um canivete, meti-o
no canhäo da véstia, e fui
para o homem:
-- Cá estamos!
O pau dele era um nadinha
mais alto que o meu, o meu um
pouco mais grosso que o dele,
segunda
:,
.he 36
desvantagem nisto de florear
gentilezas. Mas täo-pouco
aceitei que se tirassem à
sorte os paus ou se igualas-
sem, arranjando outros ou
cortando no maior. Riscou
campo o valentäo, por prosá-
pia, que tal näo é de moda, e
logo se plantou em posiçäo de
parar, pau a escorregar para
a perna esquerda, mäos à de-
vida altura. No terreiro,
havendo estacado as danças e
a zanguizarra, formaram todos
em redondo.
À minha mäo direita estava
Rita, mais trémula e inquie-
ta que o vero Anjo da
Guarda quando o Diabo nos
chuça. Relanceei uma última
vista ao bazófio -- pulsos
mais grossos que os meus, es-
tatura que se avantajava à
minha uma boa mäo travessa, o
sorriso, Deus louvado, fin-
gido, sobre o amarelo -- e à
voz: *é uma! é duas! é três!*
só armei para receber o pim-
.he 36-37
päo que caía sobre mim de
pancada alta. Varri o golpe
e, a tentear-lhe o manejo,
comecei a parar com brandura,
como a medo. Mesmo assim, do
meu lugar näo arredava tanto
como a grossura dum vintém.
Ele näo, ladeava, curvetea-
va, dava tais saltos e pirue-
tas que as pernas lhe pare-
ciam um compasso endiabrado.
Certifiquei-me do seu jogo,
que era impetuoso, mas de
pouca ou nenhuma astúcia. E,
sempre em posiçäo de defesa,
deixei-lhe quebrar o arrega-
nho, embora me custasse uma
pancada de esfarrapäo no om-
bro direito e um lanho no
pulso, em que ninguém fez re-
paro. Para os que estavam,
sem dúvida que a
:,
.he 37
superioridade era dele, pois
me vinha inquietar no meu
campo, e ali me mantinha en-
curralado como a gato, no
poial, a dentuça dum sabujo.
E até os olhos de Rita se
me afiguraram desenganados.
Gastámos uns minutos na-
quela léria, tau-tau, tau-
-tau, até que lhe vi o fôlego
azougar na garganta. E entäo
coube-me a vez de atacar. Ao
jogo dele, sempre tonto e
alto, todo de rópia, opus o
meu, baixo, curto e todo de
rapidez. E, notei, täo im-
previsto lhe era que, se qui-
sesse aos primeiros passes
despachá-lo com uma pontoada,
fazia-o täo certo como ter
sido meu mestre nesta arte o
maior jogador do Minho. Já
os olhos de Rita se alegra-
vam e me pareciam estorninhos
a saltaricar num jardim.
Sim, senhores, näo façam
troça que, tê-la ali a ver-me
como me via, se me näo trouxe
ânimo -- que tinha para dar e
.he 37-38
vender -- trouxe-me sangue-
-frio e vontade para levar a
bom termo a desafronta que
estivera magicando.
Tau-tau, a defender-se
duma pancada ao ombro, faci-
litou-se-me pular-lhe ao pei-
to, e limpei-lhe o primeiro
botäo, *o rei*. Foi täo rá-
pido que ninguém reparou e
mal me deu tempo para varrer
a resposta que me mandava à
cabeça. Todos podiam notar,
ainda que ignorantes do jogo,
que os contra-ataques do ho-
mem, muito abertos e largos,
me deixavam campo cabonde
para lhe assentar, se me ape-
tecesse,
:,
.he 38
um golpe de escacha-pesse-
gueiro. E, estranhos à minha
traça, tinham por bizarria o
que näo era mais que uma re-
falsada manha. Dois botöes,
*capitäo e soldado*, foram à
viola, um a seguir ao outro,
täo calados e cerces como o
primeiro. E, racha contra
racha, continuámos estreloi-
çando. Parecia-me ver-lhe
agora, ainda que emproado, já
que näo recebera até ali gol-
pe que se assinalasse, um
certo ar, meio de comprometi-
do, meio de desespero. Esse
ar, junto ao roxo das veias
das fontes, que pareciam san-
guessugas ao que estavam de
inchadas, e à cor dos beiços,
mais roxos ainda, lembrou-me,
sabem o quê? o luaceiro de
piedade que espelha de sua
benta charola o Senhor da
Cana Verde. Coitado, se
fosse noutro sítio e me ati-
çasse o Diabo ao mau génio,
estava há muito a fazer tor-
resmos no inferno.
Mas, bem, o homem soprava
como um toiro. Obrigado a
ter firmeza nos pulsos, pois
.he 38-39
o alarve o que se propunha
era acabar e atirava à valen-
tona, comecei a soprar tam-
bém. Foi numa dessas arreme-
tidas, quando o pau dele,
vergastado pelo meu, rodou
por largo e desceu adormeci-
do, que degolei o meu quarto
botäo, *o ladräo*. E obra
com asseio; ninguém viu, como
aliás sucedera das outras ve-
zes. O colete tinha cinco
botöes, faltava-me o último,
*o segundo rei*. Já me näo
havia de ser impossível ri-
par-lho, fulo e cego como es-
tava, a baba a
:,
.he 39
referver-lhe nos cantos da
boca. Eu näo me via ao espe-
lho, mas parece-me que guar-
dava o mesmo ar descansado
com que vim ao mundo, guardei
na paz e na guerra, e com que
conto apresentar-me um dia no
tribunal de Deus. Mas, den-
tro de mim, sentia os espíri-
tos mais inflamáveis que pól-
vora.
Como o machacaz continuas-
se a despedir-me pauladas à
mäo-tente, mandei-lhe também
uma, pela sonsa, destas que
näo fazem rumor e só dá conta
delas quem as rilha. Foi à
ilharga, e logo ele percebeu
que se näo virasse de folha
tinha mais pano da amostra.
E, de facto, dali em diante
foi mais ordeiro. Já näo
dava a escaqueirar-me a tola,
mas como quem com o cacete
quer partir um ovo, sem o
perder para a gemada. E eu
pude rematar a partida, ri-
pando-lhe o último botäo, com
mais mandinga e disfarce que
no jogo da vermelhinha.
-- Bastará? -- pronunciei
eu, plantando-me em meia de-
fesa.
O homem aprumou o pau e,
.he 39-40
encostando-se a ele, pôs-se a
limpar o suor da testa.
-- Vivam os valentes! Vi-
vam! -- exclamavam em torno
de nós. -- Näo há vencedor
nem vencido!
-- Alto lá! -- bradei. --
Há vencedor e vencido, se é
que ainda há direito em Por-
tugal. Olhem bem!
Afirmavam-se todos para
mim, afirmavam-se depois para
ele e näo percebiam.
:,
.he 40
-- Abotoe lá o colete, ca-
marada! -- tornei eu para o
mata-sete. -- Abotoe-o que
se lhe desabotoou. Está sua-
do e pode apanhar uma pneumo-
nia...
O fanfarräo ia a fazer o
que eu lhe indicara e, como
pelo tacto näo encontrasse os
botöes, tratou de certificar-
-se. Vi-o primeiro quedar
de boca aberta, depois fa-
zer-se verde como as azeito-
nas antes de começarem a pin-
tar.
-- Näo se aflija, homenzi-
nho de Deus. Eles häo-de
aparecer e pregam-se. À fal-
ta de tesoura, faca tenho eu
para tirar as linhas. Mande
vir uma agulha -- e, ao tempo
que isto dizia, deitado entre
o pulso e o canhäo da véstia,
mostrei o canivete que segara
os botöes.
Ficaram todos suspensos
quando vieram ao entendimento
completo da façanha. Uns ga-
rotos meteram-se de burrinhas
à procura dos botöes, alguns
acharam, e mostravam-nos de
mäo erguida, em grande alga-
zarra. Näo sabia o homem
onde esconder a vergonha, e
eu, mais por vénia àquela
gente que por brandura de
ânimo, desatei a rir e dis-
se-lhe em bons modos:
.he 40-41
-- Vê o camarada que näo
sou apenas bailäo!
O matula, que estivera um
bocado sem saber o que mais
lhe convinha: se fugir, se
atirar-se-me ao gasnete, se
deixar correr o marfim,
saiu-se pela porta mais natu-
ral e decerto a melhor, dando
o braço a torcer:
:,
.he 41
-- É a primeira que tal me
acontece! Caramba, você era
capaz de levar à parede o
próprio Mafarrico!
Dava-me a moeda, rejei-
tei-a sem palavras de agravo.
E como eu lhes parecesse
cordo do génio a bem, e leva-
do da breca se me puxassem a
terreiro, como a proeza näo
era päo nosso de cada dia,
dali por diante fui mais fes-
tejado que o próprio rabe-
quista. Quando tornei a na-
valha à pequena, vi-lhe os
olhos täo lânguidos e täo hú-
midos, que me veio a suspeita
de que tivesse chorado por
mim, chorado para dentro,
quem sabe lá, se de consola-
çäo, se de quê. Mas eu só
lhe soube apertar as mäos que
tremiam.
Ricos tempos em que era
capaz de tais áfricas, ricos
tempos! E Deus fale na alma
do Chico Pedreiro, de Er-
mesinde, que veio da sua ter-
ra para a nossa erguer pare-
des e, começava eu a espigar,
ia para trás do cemitério en-
sinar-me a jogar o pau! Apa-
nhei muita negra nas mäos e
nos braços, mas, honra lhe
seja, aprendi o manejo todo.
Graças a ele e à presença de
Rita, que me incutia vontade
de ser homem, pude varrer
aquela desfeita com brio! O
Chico Pedreiro era a alma
dum jogador! Dois homens a
.he 41-42
atirar-lhe pedras, as pedras
a choverem umas atrás das ou-
tras por cima dele, e ele pa-
rava-as só com o pau. Parece
balela e deixem-me confessar-
-lhes,
:,
.he 42
eu nunca vi, mas tenho-o como
verdadeiro. A tanto näo che-
guei eu, mas o mestre näo
perdeu comigo o tempo todo,
haja em vista o colete do
brutamontes de Santa Eulá-
lia que ficou varridinho como
eira ao fim das debulhas.
Quanto ao alarve, quase
tive pena dele, ao vê-lo lan-
çado ao desprezo e eu mais
apajeado que um herói que
voltou da África de bater os
pretos. O que é certo é que
depois daquela minha avaria o
danço näo pegou mais. Bem
sarrafulhava o arco da rabe-
ca; bem tiniam os ferrinhos;
todos me queriam à sua banda
a sociar do mesmo copo. O
Faustino, esse, pegou em mim
ao colo e, meio pingueiro,
gritava:
-- Um homem que trata as-
sim bem outro, sem nunca com
ele ter tido negócio, se näo
fosse valente ficava-o a de-
ver. Nunca eu me enganei com
o camarada! A minha casa é
dele. Tudo o que tenha é
dele. Se gostar da minha
Rita, dou-lha; näo haja dú-
vidas, dou-lha.
Soltavam todos grandes
surriadas e também eu, ma-
neira de quebrar o estranho
daqueles ditos, proferidos,
era notório, de gräo na asa;
mas eu bem via a mocinha que
näo mostrava cara de zangada
e reconhecia na fala de
Faustino o tom que tem a
sinceridade e näo o gracejo
ou o fingimento. E tanto as-
sim que, vindo outra vez
.he 42-43
dar-me de beber, em voz alta
repetiu:
:,
.he 43
-- Há-de me agora aqui di-
zer: gosta da minha filha?
-- Gostará ela de mim? --
retorqui eu rindo muito.
-- Há-de gostar. Olhe que
anda a rapaziada de três al-
deias, doida lamechas, a
cheirar-lhe às fraldas. Ali
onde a vê, toda risota, näo é
menina para dar trela a geri-
faltes.
Rita escondia o rosto com
o lenço, a sorrir muito; e, a
sorrir por debaixo do lenço,
me deitava um travesso e fa-
gueiro olhar.
Desfez-se a festa, os noi-
vos giraram à sua segada, o
grande peso de gente deban-
dou, cada um para seu canto.
E, quando eu esperava que o
Faustino me fosse medir o
azeite, ouvi-lhe dizer:
.he 43-44
-- O amigo hoje näo se vai
embora. Amanhä é domingo,
näo se trabalha. Dorme cá,
pois quero mostrar-lhe as mi-
nhas fazendas...
Esquivei-me com os negó-
cios e näo sei com que mais
razöes, fracas razöes, da mi-
nha cabeça transtornada.
-- Nem fum, nem fum e
meio. É uma desfeita, se
porfia...
-- Já aqui näo está quem
falou -- tornei eu, deixando-
-me convencer sem outros ra-
lhos.
-- Vamos até à quinta --
e, pela casa fora, de súcia
com o compadre e Rita, me
levou à propriedade
:,
.he 44
que entestava na moradia e
era um pomar de formosura.
Näo me cansei de admirar
as parreiras, muito bem tra-
tadas, já com pâmpanos de
palmo, o olival que trazia
boa promessa, a água que era
um Douro, e as colmeias que
começavam a sair ao sol da
Primavera. E, contente, que
näo há como um lavrador me-
diano para ter o orgulho dos
seus alqueives, dos garfos
dos seus bacelos, das maçäs
reinetas de sua enxertia, di-
zia-me:
-- O ano passado tive aqui
quinze pipas de vinho. A no-
vidade foi escassa.. .havia
cepas para mais... Botou a
cinco cântaros o mel... e a
dois lagares o azeite.
-- Näo há segunda lavoira
em Santa Eulália -- acres-
centou o homem que vinha à
nossa banda.
-- Este ano será o que
Deus quiser. Vai-me fazer
falta o rapaz que se casou
hoje...
Havia já estrelas, disse
.he 44-45
para o Faustino:
-- Amigo, grande amigo,
meça-me o azeite, que desejo
partir cedo...
-- O azeite näo lho meço
hoje. Tem de passar o dia de
amanhä connosco; já agora
há-de ver outra fazenda.
Ceámos à lareira, que a
noite estava fria, em volta
do lume, os pés de Rita täo
perto dos meus que às vezes
se esqueciam e me tocavam.
Ouvi a história
:,
.he 45
do Faustino, com seus teres,
sortes e azares, desde avós a
netos, e de tudo me capacitei
que eram lavradores fartos e
benquistos; puxado a terrei-
ro, por tabela, contei a mi-
nha história e a de meus
pais, a minha vida de negócio
e alguns dos percalços nas
jornadas, e em tudo me pare-
ceu que näo ficaram desagra-
dados. Já o lume se apagara,
demos graças e fomo-nos dei-
tar. Rita, de candeia na
mäo, levou-me a um quarto que
ficava logo à entrada da por-
ta e, desejando-me as boas-
-noites, disse sorrindo:
-- Durma bem e sonhe com
os santinhos...
-- Vou sonhar com a Rita
que também é santinha...
-- Ui! sou uma peste; lá
que sonhe comigo, näo acredi-
to.
-- Acredite que hei-de
adormecer -- se puder adorme-
cer! -- a pensar em si...
-- Jure lá...
-- Pela luz dos meus
olhos!
-- Entäo também hei-de
adormecer consigo no pensa-
mento -- e, ditas estas pala-
vras com a sua risadinha, vol-
tou a cara e fugiu.
Por muito tempo, cantaram
.he 45-46
e recantaram os galos, o meu
juízo tresvairou, divagando
acerca de tudo o que se pas-
sara, daquele agasalho täo
paternal, de Rita, täo boa e
täo linda, de que via os bra-
ços a prender-me e eu com
gana de nunca mais os desa-
pertar
:,
.he 46
de mim. E, só tarde, embala-
do na grande, grandíssima ma-
luqueira, é que adormeci.
Altas horas acordei a pen-
sar noutra que näo em Rita.
A pensar em Brízida, a mi-
nha Brízida cruel, olhos
travessos como bogas no rio,
cabelos a puxar para crioili-
nha, mas tez branca de neve,
a rir e a saracotear-se toda
diante do abade de Britian-
de. E senti nas fontes o
sangue a zoar mais do que se
me tivesse mordido uma víbo-
ra. Chamei a campo a doce, a
terna Rita. Veio, mas breve
se foi, como por bruxedo. No
fundo do meu peito quem agora
via, quem lá estava era Brí-
zida, a Brízida estouvada, a
Brízida incerta, a Brízida
que gostava de acender o ódio
de homem para homem, levada
na tirania de agradar. Bem a
amaldiçoei e me chamei maldi-
to; bem me disse que a me-
lhor vingança era lançá-la ao
desprezo e firmar pé naquela
terra, onde havia quem me
quisesse bem. Näo houve
modo.
Levantei-me de mansinho, e
mais manso que um ladräo me
vesti. Abri a porta da rua,
e com cautela a fechei. Num
rufo corri ao macho que esta-
va, à mäo de largar, no gran-
de alpendre e deitei-lhe o
aparelho. E, sem ruído, sem
voltar a cabeça, vergonhoso
de mim, saí daquela terra.
.he 46-47
Já distanciado, piquei, pi-
quei, doido de todo... a pedir
ao macho que me atirasse para
um barranco. Ao passar os
montes, como se ali se estre-
masse para mim o mundo, parei,
:,
.he 47
e, olhando atrás onde à luz
roxa da alba a neblina erguia
palácios, torres, jardins como
nos contos de fadas, verti lá-
grimas de sangue. Näo coro de
o dizer. Chorei por ela, a
meiga Rita, pela felicidade,
sabe Deus a quanta voltava
costas para nunca mais! Mas
ao dar de rédea ao cavalo para
seguir jornada, se Brízida
visse o meu braço estendido
para os longes do céu que a
cobriam, se me visse o rosto,
eu lhes juro que deitaria a
fugir, a fugir, de tal sorte
que ninguém seria capaz de a
apanhar!
.. fim cap. ii - pag 47 - (apanhar! -- linha 25)

.he 48

III
Aquela noite, tinha-se
acabado de cear, botei o apa-
relho ao macho com cilha do-
brada para maior segurança.
E, depois de meter o baca-
marte e a merenda nos alfor-
ges, fui prendê-lo com nó
singelo, bom de desatar, à
boqueira da quintä de meu tio
Agostinho como viageiro pa-
cato que deixa ali a besta e
vai dar o seu recado, se é
que näo entrou na taverna a
beber meio. O muro era baixo
e quedei-me, cotovelos por
cima da albarda, a espiar a
casa e a vizinhança, à espera
da paz morta de Barrelas,
quando as ruas ficam apenas
para os gatos e as almas do
outro mundo. Estava o ar
fresco e, na hora pasmada que
começara a correr, uns taman-
.he 48-49
cos ao largo a descer o patim
para os cortelhos, o vagido
dum menino de mama, prato a
tinir contra prato, eram como
pedras que caíam num poço e
ficavam afundidas. Aqui e
além, na oficina do Bártolo
sapateiro, no sótäo do Albi-
no alfaiate, a luz da candeia
riscava as portas gretadas e
cosia com seu fio amarelo os
rombos das almofadas carcomi-
das. Entretanto que serena-
va, tanto ia olhando umas
coisas e outras,
:,
.he 49
como me entretinha a deitar
palpites sobre o êxito da em-
preitada, nanja a perguntar
aos meus botöes se fazia bem,
se fazia mal. Estava decidi-
do e mais que decidido, e na-
da deste mundo me desviaria
do propósito, nem o anjo Ga-
briel de espada em riste ou
um santo com as melhores ra-
zöes do céu. Pudera, eu a
chegar do vale de Arouca, no
estado de espírito que os
amigos calculam, e a Maria
Mulata a dizer-me: -- Antó-
nio, se näo andas a horas, a
pássara bate as asas, sem di-
zer por qui me vou!
Tudo se sabe neste mundo,
e eu soube por ela o que näo
gostava, mas bem preciso me
era näo ignorar. Soube que a
Brízida, naquela tarde em
que a ameacei, correu a dei-
tar tudo no regaço da Clau-
dina Bisagra, que trazia ar-
rendada ao Ramos a loja tér-
rea ali ao pé, onde tinha
dois cabos de cetolas e o
monte das batatas e, mais que
tudo, utilizava para fazer os
favores a quem ela queria. E
soube que a zarga, longe de
pô-la da minha banda -- aqui-
lo o padre tinha-a convidado
-- matou-lhe mas foi o bicho
.he 49-50
do ouvido com histórias do
meu mau génio, que algum dia
chacinava um homem e me man-
davam para o degredo, e o meu
ofício näo era de molde a er-
quer casa com soalho. Ao
mesmo tempo, ia-a adoçando à
ideia, que sempre lhe causara
engulhos, de ser ama de pa-
dre.
E, rebatendo-a assim por
um lado, enfatuava-a
:,
.he 50
por outro com celebrar-lhe as
virtudes do masmarro, homem
de chaço que seria capaz de
fazer dela fidalga, com boas
chinelinhas nos pés, papo
branco, e filhos no tarde or-
denados ou doutores.
-- Olha-me para o Dr.
Laurindo, que até vai à caça
com el-rei! Näo é filho do
padre Bezerra e duma criada
que levou das Arnas?! Há-
beis e danados para a vida
näo há como filhos de pa-
dre...
-- Meu primo era capaz de
me esfolar -- dissera ainda a
Brízida.
-- Esfolar, esfola ele as
cabras para lhes safar os
odres. O abade de Britiande
também tem unhas.
-- Qual o quê, o António
é uma fera...
-- Apanhes-te tu em Bri-
tiande e que vá lá arrancar-
-te com quanta bófia tem...
Assim mesmo a grandessís-
sima madragoa. A Maria Mu-
lata, que tinha casa costas
com costas e nunca mais per-
doou à Claudina ter-lhe re-
laxado o marido, contara-me
isto e forçoso me era acredi-
tar, que nunca foi mulher de
despiques nem de falsos tes-
temunhos. Por isso, toca,
António, a tomar as tuas
disposiçöes. Quais elas fos-
.he 50-51
sem, depois de muito malucar,
väo Vossorias saber...
Por cima da albarda do ma-
chinho observei, tornei a ob-
servar, passou-se um bom mi-
galho, e, quando me pareceu
tudo sossegado, entrei na
quintä do meu tio, o mato
abafava-me os passos, e cha-
mei Brízida.
:,
.he 51
A moça, ainda que há um cer-
to tempo se mostrasse esqui-
vadota, veio logo ter comigo
e sem dar o menor sinal de
desconfiança. Estou a vê-la,
rosto branco que alumiava no
escuro, lenço à volta do pes-
coço caído para as costas so-
bre o xaile, roca espetada na
cinta -- como se erguera de
seroar, sentada no banquinho,
pés virados para a fogueira.
-- Que há, primo?
-- Chega aqui -- segredei,
passando-lhe a manápula. --
Anda comigo...
-- Aonde?
-- Aonde, eu to direi.
Pöe a roca!
-- Quero saber primeiro...
-- Mau!
-- Quero saber...
Senti-a estrebuchar, com
ganas de semear alarme, e ra-
pei da faca:
-- Vês esta folha? Tem-se
farto de matar cabras. Näo
queiras tu espetar-te nela,
depois espetar-me eu!
Acomodou-se, que ela sabia
a rês que eu era, e sem tugir
nem mugir, com pequena resis-
tência, se foi deixando ar-
rastar rente ao muro. Lá na
rua, sentindo que passavam
uns homens com tabuleiros
para o forno, ainda gemeu a
manhosa:
-- Ó primo, para onde me
queres levar?
-- Chiu! Näo dês um pio.
.he 51-52
Se acordas as pedras, temos
o caldo entornado.
:,
.he 52
À ilharga, mais mansa e
mais humilde, nem a minha
sombra. Chegámos junto do
macho, travei dela, enrodi-
lhei-a sobre o albardäo, e de
um salto pus-me à garupa.
Tudo isto fi-lo em menos
tempo do que se gasta a di-
zer. Ia jurar que minha pri-
ma só deu bem acordo do meu
intento quando a tracei pela
cinta e o animal picado ar-
rancou. Entäo, sim, pôs-se a
esbravejar e a ganir. Vieram
cabeças aos janelos, mas já
nem Deus nem Demo lhe acu-
diam. Barrelas fora, trupe,
trupe, podiam largar-me à
perna a cavalaria de Chaves,
que näo me pilhava.
Fora do povo pareceu-me a
noite ainda mais negra, o céu
mal esclarecido pelos foga-
chos da Estrada de Santiago
e por um minguante estreito e
mais vermelho que foice en-
ferrujada. Poucos metros se
viam adiante do nariz, mas o
mulinho era forçudo, valente
dos cascos, e conhecia o tri-
lho melhor que eu às minhas
mäos. Os rumores que se ti-
nham alevantado pela vila es-
moreceram à distancia, cala-
ram de todo, e eu ia na boa
paz do Senhor, com lume sim,
mas mais pimpäo do que se näo
houvesse gente, lobos e medos
por esse mundo além, e uma
rapariga na turquês dos meus
braços. O escuro, que era o
principal, lá o ia cortando o
peito do macho, ora ladeando,
ora direito, sem tropeçar.
Além de teso, por mais de
oito dias lhe dei raçäo de
cevada e a folga toda. A
moça, ao cabo dum certo tem-
po, convencida :,
.he 53
de que nada ganhava em zare-
lhar, deixava-se conduzir sem
resistência, o tronco caído
para a frente sobre a argola
dos meus pulsos, assim como o
girassol à noitinha. Às ve-
zes lá lhe trepava um soluço
do fundo da arca e, por isso
só, eu jurava que vivia.
Eu, boca calada.
Falar-lhe, para quê? O ga-
viäo näo diz à perdigota:
"Deixa-te ir que vais bem".
Leva-a tolhida, céus fora,
até o recato dos montes. A
rédea arrepanhada para a pal-
ma da mäo, a alma a cantar
uma aleluia mais alta que a
dos padres no sábado da
Ressurreiçäo com o folar à
entrada da barra, lá íamos.
Piavam para os outeiros as
corujas excomungadas: deixa
piar! As ferraduras do ma-
chinho feriam lume nas fragas
escorregadias: tem-te nas
.he 53-54
gâmbias, que mais melindrosa
só uma carga de ovos!
Dobra que dobra, depois
trota que trota, breve passá-
mos a aldeia do Touro, en-
tanguida de sono, com a igre-
ja branca do caio a fralde-
jar, e o rio por ali abaixo,
roçando as pedras, abocanhan-
do as rincolheiras que säo a
madre das trutas, chocalhando
umas águas mais tagarelas que
mulheres à boca do forno.
Saltaram-me os cäes ao ca-
minho, béu, béu, só me lar-
gando para lá das hortas.
Depois, a subir a serra, só
ouvia o choutar da besta;
atrás, em volta, a todo o re-
dondo da boca de cuba, que é
o que me lembrava
:,
.he 54
a terra, parece que o ermo e
a noite se fechavam sobre nós
para nos engolir. Lá no al-
to, figurou-se-me que estava
a cair orvalhada; eram as lá-
grimas de Brízida a esba-
goar-se-me para as mäos.
-- Ora adeus! -- trauteei
com os meus botöes. -- Cho-
ras, deixa-te chorar! Antes
tu chores ao toledo do que eu
ficasse a tocar berimbau, lo-
grado na minha boa fé.
No topo dos montes que
olham Touro e Carvalhas --
Adomingueiros lhe chamam --
e onde há cortes de gado para
os pastos de veräo, pus pé em
terra.
-- Segura a rédea -- ro-
guei para minha prima.
Charriscando palitos sobre
palitos, às apalpadelas, lá
topei o cardenho onde era
costume acoitar-me quando os
temporais me colhiam à volta
de Lamego.
-- Abaixo, Brízida -- vim
a dizer-lhe. -- Vamos aqui
pernoitar. A noite está es-
.he 54-55
cura como breu e caminhos
mais estuporados näo os tri-
lhou Cristo quando veio a
este mundo para salvar os pe-
cadores. Amanhä, com a alba,
rompemos.
Entrámos para a cortinha
bem lastrada de mato, com um
alpendre de giestas a agasa-
lhá-la do cieiro. Entrámos é
um modo de dizer, que foi-me
preciso dar-lhe um bom empur-
räo. Acomodei o machito ao
fundo; com a roupa do apare-
lho armei a cama. E ali, sem
mais testemunhas que Deus do
céu, depois de breve briga --
tinha de ser -- da coitanaxa
fiz dona.
:,
.he 55
Mal luziu a telha, nós,
que näo tínhamos pregado
olho, largámos das mantas.
"Porque eu era um malvado!
Porque a bem nunca o seu
corpo havia de ser meu, quan-
to mais minha muller! Antes
moça de porta aberta!" -- e,
porque torna, porque deixa,
ali me atirou com quantos
diabos e maldades lhe vieram
à cabeça. Näo chorava. As
palavras que proferia parece
que feriam lume. Só depois,
quando a baldeei de novo para
cima do albardäo e que, dei-
tando olhos, só viu ermo, gi-
estal e mato a boiar no ne-
grume, desatou -- vejam o
disparate -- a carpir-se e a
rogar-me que a matasse.
-- Prima -- disse-lhe eu
em boas maneiras, que meia
partida estava ganha -- à
face do Senhor que nos vê,
amanhecemos casados; uma cruz
sobre nós e duas lengalengas
de latim é quanto falta; va-
mos por elas à Penajóia que
näo é lá para que se diga no
cabo do mundo. Está lá o
cara-unhaca dum padre que
.he 55-56
prefere ir de catrâmbias para
o inferno a deixar de fa-
zer-me a vontade.
Cavalgámos novamente. Já
cantava a cotovia, embora se
näo visse a torre que vai er-
guendo quando sobe ao céu.
Às duas bandas a serra come-
çava a dilatar-se e a bran-
quear, com o negro todo a es-
correr para os corgos e a su-
mir-se pelos matagais. E,
com o clarear, o mato tin-
gia-se, vermelho, amarelo,
roxo, consoante, que chegara
a Primavera. O caminho näo
:,
.he 56
tinha que o estudar, assina-
lado pelas rodeiras, sempre
deserto, sempre adiante de
nós direito à casa de Deus e
à Penajóia. E eu täo ufano
ia da sorte que até aos pene-
dos redondos, que nos iam fi-
cando à desbanda e me pareci-
am às vezes ladröes acocora-
dos, depois de os reconhecer,
eu sentia ganas de salvar.
Ela, näo, mantinha-se na
muda languidez, mal gemendo,
mal chorincando, olhos fecha-
dos ao abril, ouvidos surdos
aos pássaros que, de púlpito
nos ramos das urgueiras, er-
quiam suas ladainhas. Eh,
cantavam pelas pássaras, como
no meu peito se cantava pela
minha, feliz felizardo que a
pilhara no laço.
-- Porque fungas, menina?
-- perguntei ao cabo de muita
paciência.
-- Choro o meu triste
fado.
-- Que fado?! Näo estava
escrito e com a tua letra?
-- Nunca te julguei täo
desumano...
-- Outros o säo mais do
que eu.
-- Quem? Nem os matadores
dos caminhos... Porque me
.he 56-57
näo arrancas a vida?...
Arranca-ma, que te perdoo!
Olha, atira-me do aparelho
abaixo para cima duma rocha e
acabou-se. Näo te gozaste já
de mim? Atira-me, e per-
doo-te a morte e o mal que me
fizeste! Atira!
E, agora dizes tu, logo
digo eu, a rapariguinha
foi-se adiantando no palavre-
ado, até que tive de lhe
:,
.he 57
mandar calar a sanfona com
mau modo. Ao descer para
Mondim, encontrámo-nos com a
Ana Malaia oveira, que vi-
nha da cidade.
-- És tu? -- exclamou ela.
-- Volta para trás,
António, que caminhas à per-
diçäo. Teu tio Agostinho já
lá vai estrada fora mais os
capangas dos Maçäzeiros, ar-
mados até os dentes. Väo-te
no encalço...
-- Essa é boa! Quem diria
a meu tio que cortámos desta
banda?
-- Deram conta e meteram
para aqui ao palpite. Sabem
que é teu amigalhaço o padre
da Penajóia e fazem-te nesse
rumo.
-- E näo se enganam.
-- Já vês que aventaram a
ariosca.
-- Mas meu tio andava lá
para a Bezelga...
-- Tu a saíres e ele a en-
trar. Escapaste por um cabe-
lo. Agora, se te pilha, es-
fola-te vivo. Pois roubas-
-lhe a moça, a ele, teu se-
gundo pai? Bem diz o outro:
cria o corvo, tirar-te-á o
olho. Carrasco, näo podes
ser ajudado de Deus!
-- Onde se cruzou com
eles, santinha?
-- No Castanheiro do
Oiro. Olha, sabes que mais,
.he 57-58
a Brízida que torne comigo e
tudo pode ficar em águas de
bacalhau.
-- Qual, para a frente é
que é Almeida... Saudinha!
:,
.he 58
-- O anjo da guarda te
acompanhe... Eu cá näo adi-
antava mais um passo!
Estas palavras näo eram
ditas, cheguei espora ao ma-
chinho: quem tem medo compra
um cäo. Lá adiante, voltei a
cabeça para trás. A Malaia
oveira lá estava, estática no
meio do caminho, de bochechas
aparvoadas, a ver-me tropi-
car. Era uma pobre de Cris-
to, em nada e por nada má mu-
lher, que, segundo depois
constou, morreu santa.
Morreria. Do que morreu à
certa foi de fome, quando já
näo podia trabalhar. Pelo
repouso da sua alma: padre
nosso que estais no céu...
À ponte de Dalvares havia
dois caminhos: um directo,
estrada fora, pelo Casta-
nheiro do Oiro; outro pela
Ucanha e Gouviäes, ambos
com passagem por Lamego.
Este oferecia a vantagem de
desviar-se de Britiande,
onde o tio Agostinho, näo me
encontrando rasto, poderia
ter feito alta e reunir a si
o abade maila tropa fandanga.
Mas perdia umas boas horas
e, com a moça que era gordu-
cha e eu que näo era estopa,
talvez o machito näo aguen-
tasse o estiräo até a Pena-
jóia. Boa rota deixara ao
sair de Barrelas -- Pendi-
lhe, Meijinhos, Penude,
serra, sempre serra -- mas
quê, näo tocava em nenhum
Adomingueiros!
Obra de cem passos da pon-
te de Dalvares levei
:,
.he 59
na incerteza: rompo à frente,
tomo à mäo esquerda? Chegado
à primeira guarda, ora, ani-
mei-me e meti afoito pela es-
trada, como se comigo näo
carregasse contrabando de tal
vulto. O que fosse soaria, a
cachopa já era mais minha do
que doutrem e, quanto a mor-
rer, a gente só morre quando
chega a data assente no livro
de Deus.
Pela estrada fora, toca
que toca, alcançámos e deixá-
mos à retaguarda mulheres que
carregavam à cabeça a canas-
trinha do negócio; burros
tropiqueiros, ajoujados de
carqueja para a cidade; vian-
dantes, de saquitel ao ombro,
passo largo, na sua rotina
com Deus ou o Diabo; reses
para o talho, arrebanhadas a
granel de aldeia em aldeia,
com as cabras a barregar pelo
pegulhal, um moço à frente a
.he 59-60
chamar, atrás o marchante, de
pau e manta, a tanger, e täo
embrulhados na nuvem de poei-
ra que mal se viam. Cava-
leiros todos farófias, que
näo davam a salvaçäo, rompiam
por nós e desapareciam num
rufo. Eu, ainda que martela-
do de cismares, a todos tira-
va o chapéu, e também a cape-
linhas, nichos de almas e
cruzes de homem morto, que
sarapintam o caminho, como
passageiro que vai em paz e
dia bom. O Sol subiu no
céu, doirou a natureza, mor-
deu-nos a pele, e com a alga-
zarra da Primavera e o banzé
do mundo näo puderam ir mo-
lhados por mais tempo os
olhos da lagoia. Embezerrada
sim, pouco caso fazendo à
:,
.he 60
promessa de lhe comprar na
cidade um bom xaile de lä
mais um par de ciganas de
oiro.
Obra de meia manhä apeámos
numa tasca e puxámos do far-
nel para almoçar. A estala-
jadeira pôs-se a olhar muito
fita para nós a pontos que eu
lhe disse:
-- Parece que nunca viu
gente!
Ela, sorrindo, replicou:
-- Passaram aí uns homens
a cavalo e estiveram a tirar
informaçöes dum sujeito e
duma rapariga que pelos si-
nais säo vossemecês.
-- Já lá väo há muito?
-- Estaria a nascer o
Sol. Já botaram a Lamego
se era esse o destino...
Contou como eram e näo
eram: um meio velhote, alto e
grosso, olhos azuis, guedelha
espessa que nem a murça dum
cónego, e dois moços, duas
vergastas tesas, com ares de
poucos amigos. Estava tirado
.he 60-61
o retrato de meu tio Agos-
tinho e dos dois mequetrefes
dos Maçäzeiros.
-- Pois se eles iam em
busca de nós, estäo com sorte
que nos encontram.
-- Lá se avenham...
Dali a Britiande era um
salto; cavalo bem disparado
cobria a distância num quarto
de hora. Fui-me afrouxando o
passo para que o animal pu-
desse deitar o fôlego todo se
lho pedisse, e desta feita
confesso -- que o receio näo
é cobardia -- confesso que me
:,
.he 61
encomendei a todos os santos
e santas da minha devoçäo, em
especial ao milagroso Padre
Santo António, que tem o
mesmo nome que eu, é padroei-
ro de namorados, e quando
quer fazer um milagre näo
pergunta quem tem razäo. Näo
me esqueci de me encomendar
também aos Santos Mártires
de Marrocos que lhe levam a
perna numa dificuldade.
Muitas vezes ouvi dizer a
minha mäe: roga ao santo até
passar o barranco. E medo
para trás das costas. Toque,
toque, Britiande lá avulta-
va, apertada às bandas da es-
trada, com casas caladas, ca-
sas antigas de pedra bruta,
mulheres a catar-se às por-
tas, e meninos nus pelos pa-
tins a esganiçar-se pelas
mäes. Estava tudo em sosse-
go; pelos vistos näo era ali
que eu quebrava osso. Já
dava graças a Deus quando,
ao desandar da última esqui-
na, uma porta se abriu e meu
tio Agostinho, os Maçäzei-
ros, o padre e uma choldra
sem conta me saltaram à fren-
te. Deitei a mäo ao baca-
marte, de cara para a patu-
leia que estarreceu com o meu
.he 61-62
rompante:
-- Olá, amigos, que é
isso?
Aquilo lá se lhes afigurou
que eu ou havia de segurar a
moça ou combater, ou que re-
cobrassem ânimo, facto é que
cresceram para mim depois de
terem hesitado. Entestei o
bacamarte ao peito do mais
adiantado, que por sinal era
o meu tio:
-- Tenha-se, senäo morre!
:,
.he 62
-- Hás-de pagá-las, cäo!
-- Tenha-se, tenha-se, se-
näo morre!
Já eu tinha o dedo no ga-
tilho quando o homem estacou.
Estacou, e acobardado com o
ineu rasgo, vendo os púrrios
mais irresolutos que ele,
pôs-se a gaguejar a distan-
cia:
-- Pula abaixo, Brízida!
Pula abaixo!...
A maluquinha ia a mexer-
-se... Näo custou muito tê-
-la queda, pouco menos queda
do que se jazesse entre as
mäos da Ana Malaia que era
quem amortalhava os defuntos:
-- Ó Brízida, tu pulas
abaixo, mas és a primeira a
cair. Se näo tens amor à
vida, faz lá! Agora vosse-
mecês deixem seguir quem vai
seu caminho... que eu morrer
morrerei, mas a trouxa näo a
largo...
-- Isso é que larga! --
rosnou o abade.
-- Assim eu largue a luz
dos olhos! Para mais, o se-
nhor chega ao destempo. Quer
saber?... Quer saber? Ove-
lha que tinha de ser do lobo
foi do lobo. Quem aqui vai
näo é nenhuma donzela... näo
senhor, que eu näo sou parvo.
Quem aqui vai é a mulher que
Deus escriturou no seu livro
.he 62-63
para ser minha e que já o é.
Se Vossa Reverendíssima
nos quisesse abençoar.. ?
Quando estas falas ouviu,
o padre rompeu para mim, mais
branco que a neve antes de
derreter. Meti a arma à
cara.
:,
.he 63
-- Mata, ladräo! -- gri-
tou-me.
-- Näo mato, mas ponha-se
de largo!... De largo!!
O abade näo se intimidou e
se näo é o macho, chuçado no
ilhal por um dos Maçäzeiros,
curvetear à altura precisa em
que eu ia disparar, matava-o.
Desencostámo-nos deste jeito
um do outro, mas a grande
sorte foi ele näo vir armado,
porque lá lhe pareceu mal,
quando näo havia chacina. Em
menos dum amém ateou-se ali
grande alvoroço. Acudia gen-
te de todas as casas.
Brízida carpia-se como uma
madalena; meu tio Agostinho,
depois que lhe dei a cheirar
a realidade, abraçou-se ao
poste dos fios a chorar; em
roda o povoléu botava alari-
do.
-- Eh lá, gentes! -- gri-
tei, meio matreiro, meio de-
satinado, para a quadrilha
que me tolhia o passo, apon-
tando-me paus e espingardas.
-- Se alguém se atravessa,
está aqui está no inferno!...
Cravei a espora... O
Roque Maçäzeiro ergueu mäo
para as rédeas... Fiz fogo,
e o machinho pinchou. Lá
adiante torci a cabeça: le-
vantavam o homem do chäo...
corriam atrás de mim e manda-
vam-me salvas de tiros. Por
entre matas e granjearias, eh
macho! eh macho! ao galope
fulo que levava, mal me roça-
vam pela vista silvedos, pa-
.he 63-64
redais e cabeças de olhos as-
sarapantados. E escapei.
O abade da Penajóia des-
pachou-nos para um
:,
.he 64
casalório que tinha no Dou-
ro, onde ficámos a resguardo.
Quando o Maçäzeiro enri-
jou da zagalotada e meu tio
Agostinho reconheceu que näo
havia outro remédio, casámos.
O homem de Deus, à volta da
igreja, prantou-me uma bolsa
de libras nos joelhos, dizen-
do:
-- Aqui tens, rapaz. E
agora, juizinho!
Paz à sua alma. Näo era
má pessoa, nem pasmado ne-
nhum. Se näo é a amiga que
arranjou já com os dias quase
cheios, teria deixado os seus
dois vinténs.

.he 65

IV

Trastejámos aquela casa da


rua Feia, Vossorias sabem,
aquela casa onde hoje a Ca-
xarreta vende cigarros e pa-
litos. Era acanhada, era,
mas tinha bons cómodos para o
macho, e uma varanda a sul,
que a Brízida, cuidadosa no
amanho e fidalguinha no vi-
ver, trazia enfeitada com
cravos e manjericäo como nun-
ca se pilhou o altar do Már-
tir, nosso bento padroeiro.
Mal nos podíamos virar lá
dentro, mas para nós dois era
quanto bondava. Já dizia meu
pai, que näo foi patola ne-
nhum: casa em que caibas, vi-
nha quanto bebas, terra quan-
ta vejas. E eu atirei-me à
trabuzana com toda a alma,
näo só pela obrigaçäo de tra-
zer Brízidá farta e limpa,
.he 65-66
como pelo capricho de dar uma
bofetada em meu tio Agos-
tinho, que nas horas de turra
resmungava:
-- Homem, nunca hás-de er-
guer cabeça. Quanto ganhas,
comei-lo e, se o näo comeis,
leva-vo-lo a Justiça. Se
houvesse forca, acabavas a
espernear.
-- Näo roubo nada a nin-
guém...
:,
.he 66
-- Mas esfaqueias por dá
cá aquela palha.
-- Maiores calúnias arre-
cebeu Nosso Senhor dos fa-
riseus.
Eu conto aos amigos aonde
meu sogro queria chegar.
Quando tratámos de estabele-
cer casa, logo a minha Brí-
zida malucou em engordar um
bacorinho com que se pudesse
na roda do ano temperar o pa-
nelo. Houve tempos que me
deu que cismar o rifäo da
nossa terra: Dia de Santo
André, quem näo tem porco
mata a mulher. Entäo eu, lá
porque a Brízida näo me
apresentasse ceva, havia de
lhe tirar o chiadouro? Näo
era isso, cabeça rude, foi
ela própria que me explicou.
Quem näo mata porco, mata
porca, que é a mulher. Ah!
ah! Alguém nos veio dizer
que a vendeira de Segöes, a
Ingelca, criara uma ninhada
de sete, filhos duma porca
leitoa que era por pinta e
qualidade o pasmo de quem a
via.
Uma boa manhä, estavam os
Santos à porta, dou um salto
a Segöes para comprar o ber-
relho. Entro para a venda e,
como a mulher era perra no
vender e estava um taró dos
demónios, pedi, um a seguir
ao outro, dois patacos de
.he 66-67
aguardente.
-- Tem aqui vinho -- diz à
minha banda um homem, que näo
se fartava de me fitar, olhos
brancos, esses tais que, em
cara portuguesa, de filho da
puta ou erro da natureza,
alto, magro, ruivana, uma
cara que näo me era de todo
estranha, mas que, por mais
:,
.he 67
voltas que desse ao pensamen-
to, näo descortinava onde ti-
nha visto.
-- Bem haja -- respondi.
-- Tomei aguardente, agora
vinho näo vai.
-- Qual näo vai! Vinho e
aguardente é tudo a mesma fa-
mília.
-- Bem haja, pode dar-me
volta ao estômago.
-- Dá lá nada, homem!
Beba...
E tanto teima o filho duma
grandessíssima reca, que eu,
na minha boa sinceridade, es-
tendo a mäo para o copo. E
que me havia de acontecer? O
alma do diabo furtar-me o vi-
nho e virá-lo dum trago. É
verdade! Quedei-me a olhar
para ele, sem saber bem ao
certo o que concluir daquele
passo, que nos adjuntos é de
moda negacearem-se assim os
amigos para maneira de fol-
gar. Mas o machacaz pôs-se a
abanar a cornadura e foi-me
dizendo muito sério:
-- Seu Malhadas, seu Ma-
lhadas, fosse você cavalhei-
ro, näo aceitava o meu copo!
Colhido na santa boa fé,
até a fala se me entaramelou.
Ele estava diante de mim a
dar ao capitel, as mäos --
como quem näo quer a coisa --
a desenroscar a choupa ao va-
rapau, emboscado atrás das
costas. Precatei-me e lá fui
respondendo:
.he 67-68
-- Raios o partam para ex-
comungado que vem alterar ho-
mem quieto! Quem é você?
-- Já näo se lembra da pi-
cardia que me fez?
:,
.he 68
Meio recobrado dos espíri-
tos, pude-lhe contestar:
-- Lembro-me muito bem meu
pai me dizer: a judeu nem a
porco näo metas no horto.
Mas é-me bem feita. Quem me
mandou a mim dar-lhe corda?!
-- Assim é esquecido.. ?!
Palavra, näo tinha lem-
brança, nem pouca nem muita,
de dares e tomares com aquele
ruço de má pêlo. Mas espe-
ra...
-- Você näo é o
Capa-Cavalos de Sendim, o
homem da vermelhinha?
-- Eu mesmo... aqui e no
meio do inferno!
-- Pois viva lá que encon-
tra homem.
.he 68-69
-- Ninguém o havia de di-
zer! -- tornou ele, medindo-
-me de alto a fundo e arrega-
nhando a tacha. -- Assim é
que eu queria vê-lo na roma-
ria da Lapa... Quantés com
soldados a guardar-lhe as
costas quem quer é prosa.
-- Os soldados näo os cha-
mei eu. Fiz uma jura que
você havia de escarrar o di-
nheiro zarpado ao homenzinho
da Granja por manhas da ver-
melhinha, e escarrou.
-- E para que te metes,
Joäo Topete, com a carapuça
do grumete?
-- E, digo-lhe mais, as-
sente lá que para mais tesos
que você näo chama o filho de
meu pai a tropa. Se o pren-
deram, daí lavo as mäos.
:,
.he 69
-- Pois assente também lá
que ninguém mas faz que mas
näo pague.
-- Ora, ora, ronca o mar e
mijo nele -- e eu a proferir
estas palavras e o grande cäo
a mandar-me a choupa ao pei-
to.
Pulei à banda, depois per-
di de todo o acordo do que
assucedeu. Que lhe preguei
cinco punhaladas? Nunca a
bênçäo de Deus me cubra, se
dei tento de rapar da nava-
lhinha.
À-d'el-rei, mais à-d'el-
-rei! pariu ali a galega. Eu
podia ter largado, mas, como
quem näo deve näo teme, espe-
quei a pé firme. Bem mal
fiz, porque além de näo haver
uma só criatura -- nem a In-
gelca, a grande coira -- que
me desse razäo, as mulheres,
principalmente, vendo o ala-
goeiro de sangue, assanha-
ram-se de tal feitio, que
cuidei näo sossegarem antes
de me cortarem aos cibinhos e
.he 69-70
salgarem o picado para chou-
riços. Täo desesperado me vi
que estive para agarrar num
estadulho e, perdido por cin-
co perdido por dez, esparra-
lhar aquela gente à paulada.
Afinal maluquei para comigo:
"António, o teu pior inimigo
é a fama que em má hora gran-
jeaste de bulhäo e de mata-
dor. É em nome dessa fama
que o ladräo que derrubaste a
teus pés em boa e legítima
defesa se tornou em pobre de
Cristo, destes viandantes
dos caminhos que väo de terra
em terra sem fazer sombra, e
tu näo passas dum facínora
que anda às soltas. Quem
:,
.he 70
näo quer ser lobo näo lhe
veste a pele, e tu vestiste a
pele do lobo! Näo te queixes
da injustiça dos homens,
queixa-te do génio, que é as-
somadiço e falho de humani-
dade." Assim considerando
vieram-me duas lágrimas aos
olhos, e deixei-me conduzir
como um cordeiro entre quatro
cabos patudos para a cadeia
de Moimenta.
Näo foi difícil ao Sr.
Abade Sá, que era amigo,
provar a minha pouca ou ne-
nhuma culpa no brequefesta de
Segöes. Mas foi uma dos
diabos, porque o Capa-Ca-
valos esteve com os pés para
a cova e a avaria custou um
bom par de vinténs que do
corpo me saíram. E näo ficou
aqui. Volto para casa: Brí-
zida, qu'é dela!? De inculca
em inculca, vou dar com a po-
bre, mais mirradinha que as
palhas, em casa da Vicência
da Cerdeira, que era tia por
banda da mäe. Tirá-la dali
para fora, näo havia trame-
nhos. Que a deixasse, näo
queria mais viver com um mal-
.he 70-71
vado que, se Deus existisse,
tinha de ir acabar nas Pe-
dras Negras! Afinal, depois
de muito malhar e de vir em
pessoa o Sr. Padre Joäo
convencê-la do destempero, lá
anuiu em tornar para casa se
pelo descanso eterno de minha
mäe lhe jurasse... Eu lhes
digo o que me fez jurar, para
que Vossorias saibam que,
embora mulher, näo era parva
de todo, nem mal pensada.
-- Juras, António, nunca
mais entrares em adjuntos,
que é lá que o dianho as
arma?
:,
.he 71
-- Juro.
-- Juras nunca mais pousar
em feira ou romaria senäo o
tempo cabonde para atar negó-
cio?
-- Juro.
-- Juras nunca mais te to-
mares do vinho, nem jogares,
nem ter pacta com outra mu-
lher, quer casada, quer don-
zela?
-- Juro.
-- Juras nunca mais traze-
res contigo arma, faca, ou
pau que seja?
-- Näo, mulher, isso näo
juro eu. Tenho muitos inimi-
gos e, morrer por morrer,
primeiro rebentem eles.
-- Entäo nada feito.
-- Pois fica-te com o
Diabo que te leve. O que tu
me pedes é a perdiçäo. Mas
deixa, assim o queres, assim
o tenhas. Hoje mesmo abalo
para o Senhor dos Caminhos
e ou o Tenente da Cruz me
mata ou eu o mato.
-- És o cabo dos trabalhos
-- tornou ela abrandando. --
Estou a ver chegar o dia em
que seja preciso ir buscar-te
num lençol. António, homem
do meu coraçäo, porque näo me
.he 71-72
hás-de fazer a vontade?
Porque teimas em correr para
a tua desgraça e a minha?!
-- Tenho o génio esquenta-
do, tenho, minha Brízida
adorada -- respondi eu a cho-
rar, que os olhas dum hamem
näo foram só feitos para ver.
-- Negá-lo
:,
.he 72
seria negar a Deus Nosso
Senhor, mas que queres, a
gente nasce feita, näo se
faz. Ora ouve, mulher! De
hoje em diante eu te prometo
trazê-lo amordaçado, mais
amordaçado que um cäo vezeiro
no morder.
-- Só quero que me prome-
tas nunca mais andar de
faca...
-- Isso näo te prometo.
Nem tanto nem täo pouco.
-- Homem, que tragas o
pau, vá, mas deixa a faca no
açafate...
-- Näo, näo, para onde eu
for vai ela. É como a espada
dum capitäo-mor. O que juro
é nunca mais tirá-la da faixa
senäo em riscos de me manda-
rem para os anjinhos.
-- Näo basta, António,
näo basta. Näo te metas tu
com os outros, que contigo
ninguém se mete. Têm-te res-
peito.
-- Qual! Têm mas é medo
de duas polegadas de aço pelo
fole dentro.
-- Que homem este!. . .Ora
dize, alma do Senhor, näo
será mais bonito passar por
homem de assento, homem de
paz, topares os caminhos de-
simpedidos como um inocenti-
nho que vai ao seu recado, do
que andares assim receado e
receoso, à mercê duma bala
que te vire numa encruzilha-
da? Responde lá.. ?
Se lhe vissem os olhos,
.he 72-73
que já enxutos eram bonitos,
debulhados em lágrimas, sem-
pre queria ver se os fidal-
gos, no meu lugar, lhe diriam
que näo senhora.
:,
.he 73
Ora, prometi tudo, mais que
fosse, até lhe abrir o peito
para ver como por ela palpi-
tava o coraçäo. Prometi, ju-
rei as juras que me pediu e
fiz tudo quanto pode homem de
fé para honrar a palavra
dada.
Dali em diante quem me co-
nheceu e me via achava-me täo
outro como se o génio se me
tivesse virado do avesso.
Fugia que me pelava das ho-
ras do Porco-Sujo, e os
benditos nomes de S. Ga-
briel e S. Rafael andavam
mais vezes na minha boca do
que nos meus tempos de sol-
teiro as chalaças às moças
que mostrassem boa perna.
Quando, Aveiro vai, Aveiro
vem, ao atravessar das aldei-
as, um campanário botava o
seu dobre a chamar para a
missa, prendia o macho a uma
parede e ia ouvir o santo sa-
crifício.
Foi por essa época que as-
sucedeu ao Bisagra a mala-
-ventura de que Barrelas
ainda hoje ri ao desfastio e
que a mim me deu que cismar.
Sim, senhores. Näo basta um
homem bater no peito e per-
tencer à irmandade do San-
tíssimo para o anjo da guarda
lhe guardar as costas. Fia
mais fino. Se a troco de du-
as cruzes na testa, duas re-
zas, um cristäo estivesse a
coberto de percalços, escor-
regar e näo partir uma perna,
meterem-lhe as mäos nos bol-
sos e näo lhe palmarem a car-
teira, ter uma mulher de es-
talo e näo lha abarbatar o
.he 73-74
amigo, quem quer era cristäo.
Väo ver! Imaginem os senho-
res que estava à porta a fei-
ra grande de Mangualde e o
Bisagra veio ter comigo:
:,
.he 74
-- Vais à feira, António?
-- Hei-de ir, hei-de ir,
se até lá ajuntar os pre-
suntos que me faltam para fa-
zer carga.
Eu a essa altura negociava
também em presuntos; presun-
tos de Lamego, azeite do
Tedo, vinho da Meda, era
tudo do termo, e näo iam rou-
bados.
-- Pois eu também lá que-
ria dar um salto -- torna
ele. -- Tive este ano muito
alho e näo os hei-de deixar
apodrecer. Colhi também mui-
ta semente de nabo, e ainda
näo vendi o meu cornelho...
-- Cornelho deves ter uma
cheia.. ?
-- Algum, algum -- respon-
deu-me ele sem perceber. --
Com o produto e duas libras
que ando há dois anos a amea-
lhar queria comprar umas con-
tas para a Claudina. Dianho
de mulher, mata-me o bicho do
ouvido que é uma triste, to-
das andam carregadas de oiro,
bons cordöes, boas arrecadas,
bons merinos, só ela näo pas-
sa do chambre de chita e duns
brincos, täo amolgados e ve-
lhos que nem que os herdasse
da Maria Castanha.
-- Näo é o que dizem as
bocas do mundo...
-- Que dizem as bocas do
mundo, António?
-- Que a tua mulher tem
oiro como terra, mas que o
esconde bem escondido...
-- Tem uma nisga... Tem
uma nisga...!
-- É lá contigo e com ela.
Pois arranje eu a presuntada
.he 74-75
e aviso.
:,
.he 75
Arranjei carga. Vieram-me
três presuntos de Ariz, dois
do Granjal e outros dois de
Penso. Com os que eu tinha,
estava na conta. No dia da
feira, saímos com as estrelas
e tupa que tupa, os caminhos
estavam enxutos, foi-nos nas-
cer o Sol para lá de Rio de
Moinhos. Quando chegumos à
vila, estava o largo a en-
cher.
-- António -- disse-me o
Bisagra -- temos muito tempo
diante de nós. Enquanto ar-
mam e näo armam as chafaricas
e tendas, se nos fôssemos ou-
vir a santa missinha, que
está a torre a chamar...
Realmente ouvia-se o tläo,
tläo, täo vagaroso como mor-
fanho duma sineta rachada.
-- Olha, Bisagra, vai tu.
Näo venho com a devoçäo re-
.he 75-76
querida. Trago a veniaga no
juízo e era uma vergonha que
o nome de Deus passasse no
meu espírito como gato por
brasas.
-- A devoçäo é como o co-
çar, alma de cântaro! Atrás
duma ave-maria vêm as mais.
Olha que a missa näo quebra
osso...
-- Pois näo quebra, näo.
Mas hoje para mim näo é dia.
Vai tu e encomenda-me nas
tuas oraçöes.
Lá foi. Eu tratei de dar
as minhas voltas -- um bom
dia a este amigo, uma pala-
vrinha àquele, viva lá, pa-
träo, a como está o centeio?
além ao correeiro: quanto
pede pelos loros? -- fui apa-
nhar o Baratinha a tirar os
taipais da loja:
:,
.he 76
-- Aqui lhe trago, rei dos
merceeiros para estas bandas
da Serra da Estrela, do me-
lhor presunto que se cria em
Lamego, mesmo rente, renti-
nho à igreja de Almacave.
Ora, com boa treta tínha-
mos o negócio fechado, quando
o Bisagra rompeu. Dava sal-
to de corça e gania.
-- Que foi, homem, que
foi?
-- Raios partam tanto la-
dräo que há em Portugal e
até na casa de Deus! Raios
partam!
-- Mas que foi, homem?
-- Que foi? Roubaram-me
as duas libras na missa. Le-
vava-as atadas na ponta do
lenço para as näo perder.
Chego cá fora, lenço que é
dele?! Corro à sacristia,
estava o padre a desparamen-
tar-se: *Senhor, estou rou-
bado. Roubaram-me duas li-
bras na sua igreja... -- Se
está roubado, queixe-se à po-
.he 76-77
lícia. Eu näo o ronbei.* Já
viste um pastor de almas as-
sim? Raios o partam mais à
minha cabeça! Raios partam o
mundo todo!
-- Roubaram-te na casa de
Deus...? Ah, cäo, alguma
fizeste taluda! Näo andas de
bem com o anjo da guarda para
assim te desamparar...
-- Näo ando de bem com o
anjo da guarda...?! Dize lá
se é alguém a quem possa un-
tar a pata, meu safado?
E ali se pöe a vamitar im-
propérios sobre impropérios
:,
.he 77
a ponto que parou a ouvir um
sujeito de cara rapada, todo
de preto, com ares de migue-
lista ou monitor de seminá-
rio. Ouviu, ouviu, e virou a
cara à banda antes de despe-
dir, cuspindo:
-- O que lhe vale, seu ho-
mem, é estarem os pe-
dreiros-livres em cima. Se
fosse uns anos antes e esti-
vesse no poder quem devia,
arriscava-se a fazer torres-
mos na fogueira!
Pega!
Pois eu, mais de dois anos
a bem com Cristo e menos mal
com os homens, meti cara à
porca da vida e, poupando
muito e gananciando onde ca-
lhava, envidei, lá isso envi-
dei que era pobre como Job.
É de resto a nossa condiçäo.
Anda o homem a trote para
ganhar o capote.
Entrementes, a mulher
dava-me uma menina, muito me-
dradinha e perfeita, e eu
pude comprar a casa térrea da
falecida Doroteia, com arru-
maçäo para palhal e manjedoi-
ra para as bestas. Meu tio
Agostinho começou mesmo a
encarar-me com melhores
olhos, mormente depois que o
.he 77-78
Sr. Abade Sá me estendia
em público o seu cigarro, e
nas eleiçöes fazia de mim
braço direito.
Ao despautério, o Bisagra
dizia:
-- Deixa, quem nasceu lobo
há-de morrer lobo. Pouco vi-
verá quem näo ouvir falar
dele.
:,
.he 78
Bem lhe tornava meu tio
Agostinho, na sua boa fé:
-- Enganas-te, Bisagra.
O Tónio amansou.. .Por
este passo é menino para, se
o esbofetearem na face direi-
ta, se dar por quite com es-
murrar ao atrevido a face es-
querda.
O Bisagra ria de consola-
do, o grande bilontra, e era
por estas e outras que eu o
näo podia ver nem tragado.
Nanja que fosse ruim por
condiçäo. Como irmäo do
Santíssimo, näo era pior que
os demais. Lá vaidoso, dis-
se. Para que näo lhe faltas-
sem na procissäo dos domingos
terceiros com a vara do pálio
era capaz de chegar a mulher
ao abade. O ofício de ga-
lhudo, por fora de conta e
risco, o maior galhudo que a
rosa do sol cobria, é que o
tornava azedo e maldizente.
Falava mal dos outros porque
falavam mal dele. Pois por-
que havia de ser? Eu nunca
lhe tinha feito dano e, em
boa verdade, se a faca se näo
enferrujava em casa a partir
o pespé e o unto, como queria
a Brízida e eu lhe promete-
ra, há muito que dormia quie-
ta na bainha, e o meu marme-
leiro se näo erguia a casti-
gar um tratante.

.. fim pag 78 - cap iv - tratante - linha 23

.he 79

Sombra negra na minha vi-


da era ora e sempre o Tenen-
te da Cruz, que havia jurado
tirar-me o chiadouro depois
que empalmei Brízida ao pai,
pela qual se chorava ainda de
morte. Mais de ano que os
meus caminhos andavam desen-
contrados de semelhante pi-
ranga. Por mor duma briga em
que se envolvera e de que re-
sultara homem morto, tivera
de largar à revelia, e por lá
andou muito tempo a pontos de
ninguém mais falar nele. Vai
senäo quando apareceu um sá-
bado na feira de Barrelas,
mais farsola que nunca, mon-
tado numa égua pimpona. Teve
bons padrinhos o safado, como
näo podia deixar de ser, por-
que, além de rico e poder
abafar a Justiça com gordas
.he 79-80
peitas, nunca perderam a sim-
patia dos fidalgos, ia dizer
de nós todos, estes corredo-
res de valentia e arruaça.
Matam e perdoa-se-lhes se
foram destemidos a matar.
Enfim, fosse como fosse, o
ladräo voltou à praça e eu,
muito às escondidas da Brí-
zida, pus-me a afiar a faqui-
nha.
:,
.he 80
Fiquei com pulga na ore-
lha e bem haja eu. Mais de
um que me dizia, se acertava
confessar meus receios:
-- O Tenente da Cruz
assentou; está homem cordo.
Tem o casamento tratado com
a morgada da Silvä.
-- A ver vamos. Näo me
toque ele, que eu näo lhe
toco.
Ora?! Vai-se para o mer-
cado de S. Francisco, que
se faz no tempo do mosto à
sombra do convento da Ordem
Terceira, de que há vinte
anos sou irmäo pagante, sem
grande esperança de os meus
pecados pesarem menos na ba-
lança do Paraíso -- que
aquilo näo é confraria, mas
falperra de cordäo -- vai-se,
ia dizendo, para o mercado de
S. Francisco, e com quem
dou eu de cara ao pisar na
feira das bestas? Com o bir-
bantäo do Tenente.
O homem deita-me o rabo
de olho e muito na sua com-
postura -- estou a vê-lo de
botas altas à Frederica, ja-
leca curta de alamares, um
chapéu branco de muita aba,
com um vergalho na cova do
braço, alto, garboso, que era
moço alentado e bem-parecido,
lá isso era, meter pelo meio
da ciganada e sumir-se-me da
vista. -- "Hum! -- funguei
eu -- o Diabo feito ermitäo!
.he 80-81
Estás a pregá-la". Desço
para a feira do linho, e po-
nho-me a amarrar o machito ao
toro dum castanheiro. E es-
tava eu a dar a laçada, de
olhos nos senhores padres que
lá iam levados em suas garna-
chas pretas a
:,
.he 81
esfolar o geral, pumba! desce
um açoite sobre as ancas do
animal, como se fosse a tor-
nar-lhe o troco de tropelia,
e oiço:
-- Estupor, ensinou-te o
amo a coicinhar!?
Boi mau em corno cresce.
Era o Tenente, pois quem
havia de ser. Sem me bulir,
contestei-lhe:
-- Que febre lle faz o
machinho?... Olhe que também
lhe dói como a nós.
-- Apanhou ele e apanha
você...
-- E porquê, se näo fica
mal o perguntar?
-- Porque sim! Você é o
pedaço dum velhaco...
Dei-lhe salto à garganta
mais ligeiro que uma onça
contava depois o Afrânio --
e, em menos dum amém, estava
tombado por terra e eu de jo-
elhos em cima, na arca do
peito... Varreu-se-me a luz
dos olhos e já a faca vinha
largada quando atalharam o
golpe. Foi o miraculoso Pa-
dre Santo António, pelo
braço, já näo sei de que bom
burgesso, que se meteu de
permeio.
Apartaram-nos... e antes
assim. Dorido, envergonhado,
mais amarelo que a cera, a
sacudir os argalhos da roupa,
bem embora foi-me jogando:
-- Se és homem, ó Malha-
das, vem à feira de Lamas,
na quinzena...
-- Pois näo faltes, que
.he 81-82
eu näo falto! Nem que o dia-
bo dê estoiro...
E assim foi. Tratei de
pôr a vidinha em ordem, e
:,
.he 82
na véspera de Lamas pedi ao
Sr. Abade para me ouvir de
confissäo. Ajoelhei-me a
seus pés antes de se paramen-
tar para a missa e varri da
alma a ciscalhada e dois ti-
çöes que a encardiam. O dia-
bo é que o negócio foi soado
por novo e nunca visto, tra-
tando-se dum bonifrate como
eu. Brízida, já porque ti-
vesse rumores do desafio, já
porque me visse mais salamur-
do do que é meu natural, con-
cluiu que de alguma empresa
grave se tratava e à noitinha
esperluxou-me:
-- Para onde é a jornada?
-- Para Aveiro, menina!
Näo reparaste há migalho no
céu? Já sabes, vermelho para
o mar, aparelha o burro e vai
ao sal. De resto, estäo à
porta as matanças e näo há
pitadinha pelos povos.
-- Homem, näo sejas tra-
paceiro. Tu vais mas é à
feira de Lamas encontrar o
Tenente da Cruz, com quem
andas despicado...
-- Eu?!... Eu?!... Que-
ro lá nada com semelhante pi-
rata?! Nem a bem nem a mal.
-- Lembra-te que tens mu-
lher e filhos...
-- Pois é por essas e ou-
tras que näo quero meças com
ele. Terçä o parta lá longe,
que há-de morrer a dar coice!
Na alva, lavei-me, apron-
tei-me e fui à cama dizer
adeus à mulher, só adeus, que
um cavalo que há-de ir à
guerra nem corra lobo, nem o
abane égua, e dar um beijinho
na menina. Assim que vi a
inocente a :,
.he 83
dormir mais quietinha que um
anjo, veio-me um soluço aos
gorgomilos e, sem querer, de-
sabafei:
-- Deus sabe se a torna-
rei a ver!
Que tal disseste?! Brí-
zida agarrou-se a mim a cho-
rar:
-- Homem da minha alma,
que me enganas! Tu näo vais
para Aveiro?!
-- Vou, minha santa, vou.
-- Näo vais... Vais para
Lamas e diz-me o coraçäo que
näo voltas...
-- Vou para Aveiro.. .os
caminhos säo compridos.. .há
assassinos pelas encruzilha-
das.
-- Para que dizes: Deus
sabe se a tornarei a ver?
-- Por isso mesmo.. .ma-
neira de falar, que a morte é
certa e a hora incerta. Lá
reza o prudente: aos olhos
.he 83-84
tem a morte quem no corcel
passa a ponte.
-- Jura lá!
E jurei, pois antes que-
brar a palavra por bem-querer
que quebrá-la por cobardia.
A cavalinho no macho,
trupe, trupe, foi-me alvore-
cer para lá do Vouga, à vis-
ta dos carvalhais de Lamas.
Estava uma manhä muito cla-
ra, destas manhäs de Outono
em que o sol é como boi tou-
ro, mal castigado da aguilha-
da. Às duas por três, marra.
E, palavra, com o céu aber-
to, a terra toda a revessar
alegria, é preciso força de
ânimo para caminhar para um
precipício. Mas é o que
Deus quer e avante!
:,
.he 84
Quando cheguei à feira,
já andava tudo numa dobadoi-
ra: os cortadores a esquarte-
jar as reses, os ferradores a
ferrar, os burros a zurrar,
as fidalgas a apreçar com ar
de näo presta, no meio duma
algazarra de vozes, um açude
de sons, quanto bonda para se
avaliar que o negócio bate o
auge. Deito os olhos por
largo e quem avisto eu? O
Tenente da Cruz. Estava em
grande relambório com uma
tropa fandanga de caras tor-
tas e maltrapilhos, que nin-
guém gostaria de ver de noite
à volta de sua casa. Se eu
näo soubesse quem ele era,
filho de boa família e com os
seus teres, homem alto, de-
sempenado, bem vestido, ia
dizer que estava ali o capi-
täo duma quadrilha do olho
vivo, destes que guardam de
assaltos e roubalheira a par-
te de leäo e däo aos sócios o
rebotalho. Diante de tal
choldra é que me deu logo o
coraçäo baque que estavam ali
.he 84-85
para me chacinar.
-- Boa vai ela -- pensei
eu. -- Säo mais que as mäes.
Deixá-lo, quantos mais me-
lhor, menos caem no chäo.
Endireitei para a venda
da Bicha beber meio quarti-
lho, e logo os bargantes me
saíram a caminho, de través,
mas arreganhando a tacha. Um
botava uma cantiga, que tra-
zia sobrescrito, embora fosse
de mal notada carta, outro
sapateava o fado com grande
esparrame, avançando e vindo
às arrecuas até me tocar, to-
dos às upas e urros: Viva o
Tenente da Cruz! Viva quem
é cavalheiro!
:,
.he 85
Näo me dei por achado por
mais que o escabeche fosse
despropositado, e pude de meu
passo meter à taverna, onde,
em vez de meio, bebi um quar-
tilho com duas dentadas de
broa. Quando ia a pagar,
disse-me a vendeira:
-- O senhor António näo
saia lá para fora que o que-
rem matar. Entre para aquele
quarto, que desta porta para
dentro é sagrado.
Apontava-me o interior da
moradia e eu perante a sua
lisa franqueza lhe respondi:
-- Bem haja, tia Maria,
e mais lhe agradeço saber que
näo estou em terra de mouros.
Mas aqui näo há medo.
Muitas vezes um cristäo, se
defende a vida mais que uma
saca de dinheiro, é porque a
vida naturalmente é um depó-
sito. Deus lho confiou, a
ele, só a ele, tem de o res-
tituir.
-- Isto de vinte contra
um näo me cheira bem -- tor-
nou ela. -- Mas já que assim
é homem desenganado, o Padre
Santo António lhe estenda o
.he 85-86
seu divino capote.
Saio para a rua e vejo-me
logo cercado pela roda de ca-
ceteiros. Alguns conhecia eu
de ginjeira: o Samarreiro,
de Segöes, que evacuava as
balas que lhe metiam no fole
como aos caroços das azeito-
nas; o Carlos Negrola, de
Cota, tantas vezes condena-
do, que parecia mesmo um rato
das enxovias; o Ranheta, da
Póvoa, com morte de homem às
costas; o Piläo,
:,
.he 86
do Carvalhal, gatuno refina-
do e incendiário; o Zé Pi-
ranga, de Cinfäes, que vivia
da vermelhinha e do que zar-
pava aos pacóvios, etc. etc.
O Negrola apontou-me ao
bando:
-- Temos de matar este
cäo para haver paz no mundo!
-- Já dizia o meu avô: de
sangue misturado e de moço
refalsado livre-nos Deus --
retorqui. -- Se queres mos-
trar que és täo escarumba por
dentro como és por fora,
avança que eu abro-te ao ver-
de...
-- Mate-se! -- regougou o
Tenente.
-- Está dito, mate-se! O
testamento do pobre escreve-
-se na unha do dedo mendinho.
Rapo da foice que trazia
na algibeira da véstia, enca-
bo-a no pau e, depois de me
benzer, traço um círculo em
terra a todo o largo:
-- Ó rapazes, para dentro
deste risco, mando eu; para
fora, já que assim o quereis,
mandais vós. Se alguém per-
deu o amor à vida que se
afoite! -- e postei-me em po-
siçäo de varrer.
-- Mate-se! Mate-se! --
gritavam em redor, mas passar
a linha nem tanto como a
.he 86-87
grossura dum alfinete. Er-
guiam olhos para a foice, vi-
am-na afiada e a luzir e ti-
nham-lhe respeito. Näo é que
era o mesmo que correr à de-
gola!?
-- Escache-se-lhe a alma!
-- Amigos, é uma só.
Deu-ma Deus, para ele a
:,
.he 87
guardo. Se entendeis que
näo, botai à frente, e ti-
ra-se a prova!
-- Mate-se! Mate-se! --
e ia crescendo o burburinho e
ajuntando-se a feira.
Eu tinha em ponto de mira
o Tenente, como o frade da
anedota, contas na mäo, olho
no ladräo, que já o toscara
por duas vezes a fazer-me o
pau: atiro-te, näo te atiro à
tola. "O primeiro a cair és
tu -- assentei para comigo.
-- Sim, quando houver de me
decidir, é por cima do teu
corpo que tenho de passar".
Ele parece que compreendeu.
Vi-lhe o olhar embaciado e
näo sei que tremura na boca
como cristäo-velho a rezar o
*à-porta-infra*.
Trazia pau argolado, um
rico pau de marmeleiro com a
choupa e ponteira a luzir,
mas os mais estavam armados a
trouxe-mouxe, vara de casta-
nho e até a haste do carripo-
to, que cortam nas nossas
terras para estadulhos. Nada
mais que por isso acusavam o
ar desenvergonhado de roga.
A Justiça mo levaria em
conta. Eu, entrementes, es-
pecara, que o Tenente dera
um passo atrás, chamado por
um homenzinho que se pôs a
falar-lhe à orelha, e os qua-
drilheiros moderaram-se na
sanha que os movia. Pela
feira é que o alvoroço era
cada vez maior e de todos os
.he 87-88
lados se viam corrimaças.
Acudia o povo e bem se me
cortava o coraçäo. Como rom-
per aquela mó de gente, se
houvesse precisäo de pular?
:,
.he 88
Foram-se arrastando os
minutos e eu firme à espera
do assalto como um castelo.
A minha esperança era que,
acutilando dois ou três, a
malta dos tesos tresmalhasse.
Nas pernas me fiava eu.
Assim que me pilhasse no
monte que há entre o Carva-
lhal e Queiriga, monte mani-
nho onde näo medra feto nem
canta pássaro, tudo cascalho
afiado como lanças, onde eu
queria ver os ministros es-
garrados que de sorte volta-
vam a fazer mal, a salvo es-
tava eu dos matadores. A
questäo toda era dar o pulo
na devida altura e pireza!
Mas: mate-se! mate-se!
vejo vir uma cabeça à de cima
do alevante. Sombreada pelo
chapéu braguês, só lhe luziam
as suíças e à primeira näo
conheci quem era. Vinha
apartando o monte à cotovela-
da e breve rompia até a fila
dos brejoeiros. E entäo
deu-me um berro que soou ali
como o urro dum leäo. Alto
como uma torre, täo forçudo
que erguia um carro de tojo
se pusesse ombros ao chedei-
ro, jaquetäo de peles, olhos
mansos, mas destes que despe-
dem chispas com a fúria, quem
podia ser senäo o Bernardo
do Paço?!
-- Que há? Que há? --
bramou por duas vezes com a
sua voz de troväo.
-- Que há-de haver, Ber-
nardo?! -- respondi eu. --
Um bando de milhafres para
espatifar um pardal.
-- E és sozinho contra
.he 88-89
tanta gente?
-- E mais näo tenho medo.
:,
.he 89
Quando isto ouviu, o
Bernardo que era a modo dum
alcaide por todo o Vale de
Ferreira, täo temido pelo
pulso como pela consideraçäo
que gozava, tratou de se in-
teirar com este e aquele do
que houvera. E quando se
achou esclarecido voltou-se
para o Tenente:
-- Raios te partam que
näo tens vergonha nenhuma na
cara estanhada! Um homem,
que se preza, é capaz de tal
indecência?!
O Tenente ouriçava-se
todo, sem lhe tornar res-
posta.
-- Sabes o que te vale?
É ter-me já sentado à tua
mesa. Se näo fora isso, ha-
via de te torcer o pescoço
como a um frango. Envergo-
.he 89-90
nha-te, Tenente, envergo-
nha-te! Trazeres uma roga
destas para um fraca-chicha!
Em resposta o Tenente
contou dos seus agravos, um
dos quais -- há que anos isso
fora! -- era eu ter-lhe enga-
zupado Brízida. O Bernardo
retorquiu-lhe:
-- Homem por homem, aí o
tens! Lá se avenham. Agora
peitar uma dúzia de bandalhos
para dar cabo dum homem, para
mais uma vergôntea, é re-
les... é borrares a cara bem
borrada!
Em volta, os marmanjos,
ou porque näo soubessem com
quem estavam a tratar ou por-
que o ajuste fora estrafe-
gar-me, conservavam o jeito
de arremeter. O Bernardo
alçou o braço:
:,
.he 90
-- Largueza, corja de bi-
gorrilhas!
-- Tenha lá mäo, senhor!
-- dizia-lhe o Zé Piranga.
-- Näo sabe que está aqui um
matador de faca? Há-de amar-
gar hoje as safadezas que tem
praticado...
O Bernardo pôs-lhe a mäo
no toutiço como se faz a um
menino e, meio a brincar,
afocinhou-o para a frente:
-- Rapaz, näo me moas a
paciência! Desaparece-me,
que te näo deixo osso direi-
to.
A roda, quando os cace-
teiros isto ouviram e se com-
penetraram de que o negócio
estava furado, rompeu-se, e
cada um se esgueirou para sua
banda. Ficava só o Tenente,
muito amarelo, agora todo en-
grifado. Um velhote de bar-
bas até ao peito agarrou-se a
ele: *Ó filho, tu és a minha
vergonha! Pelos vistos, que-
res a minha morte?!* -- e ti-
.he 90-91
rou-o dali a gaguejar, a cada
enconträo que levava dando
dois passos à frente e um
atrás para fazer crer, imagi-
no eu, que só desviado à for-
ça näo jogava as cristas co-
migo. E, modo ainda de esca-
pulir-se pela porta da fan-
farronia, rompeu numa ladra-
çäo que näo percebi bem no
meio da balbúrdia e que se
permitia, está-se a ver, sen-
tindo as costas no seguro.
Um tanto à toa, fui-lhe di-
zendo:
-- Quando quiseres, meu
banana, estou às ordens!
Manda dizer em que descampa-
do nos havemos de encon-
trar...
:,
.he 91
-- Deixa lá, Malhadi-
nhas, deixa lá! -- arrazoava
o Bernardo. -- É um cana-
lha. Por fim o povo punha-se
todo à minha banda. Viva e
mais viva, tinham-me armado
um cadafalso, saía o herói da
festa. O Bernardo puxou-me
para a venda da Maria Bi-
cha, que ficava mal se näo
bebêssemos à sossega. De mäo
na mäo e de olhos nos olhos,
disse-lhe:
-- Bernardo, tens aqui um
irmäo.
E ele respondeu-me:
-- Tens aqui outro.
-- Prà vida e prà morte!
-- Prà vida e prà morte!
E com amigos e amigos dos
amigos passou de almude o
briol que ali bebemos.

.he 92

VI
Que a minha língua era
ponteira como a faca que tra-
zia à cinta -- murmuravam as
bocas do mundo mal considera-
das. Cantigas, ó Rosa! A
faquinha, assim Deus me sal-
ve, tinha uma funçäo e näo
mais, cortar a côdea, o quei-
jo, a febra do presunto,
quando andava de jornada.
Algumas vezes, também,
arremediava-me a consertar os
atafais do macho se o Demo
queria que estoirassem.
Quando, por grande acaso, se
apartava desta pacífica mis-
säo, é que a minha vida cor-
ria perigo e trazer eu a pei-
to defendê-la, pois se Deus
ma deu -- tantas vezes o te-
nho dito -- a Deus tenho
obrigaçäo de a restituir, mas
só quando ele for servido e
.he 92-93
mais ninguém.
Quanto à língua, corta-
ram-me a trave ao nascer; mas
nunca levantei falsos teste-
munhos, nem acoimei de curta
mulher honrada, nem de cornel
sujeito que näo tivesse testa
para marrar. Guar-te de ho-
mem que näo fala e de cäo que
näo ladra, por isso eu sempre
falei, falo e falarei franco
até morrer, pois se nós o
:,
.he 93
temos no pensamento, acaute-
lá-lo da boca só por ronha ou
cobardia.
Mas onde eu punha epitá-
fio, caía mais certo que os
nabos no advento. Onde cor-
tava nos "podres" é que os
podres buliam com Deus e com
os homens. Às vezes valia
mais que lancetar um leicen-
ço. Valia! Eu lhes conto um
passo assucedido, pelo qual,
se o Pai do céu se näo es-
qucceu de o apontar no livro
da glória e a remissäo é cer-
ta, do pecado mais taludo es-
tou quite, ainda que me näo
morda nenhum de monta. Pois
oiçam, meus fidalgos:
Um entrudo, quinta-feira
mesmo das comadres, à boca da
noite, o Bisagra desafiou-me
na venda do Zé Pinto para
jogar uma partida de chinca-
lhäo. Vossorias sabem: o
Bisagra era senhor duma des-
tas galhaduras, mais formo-
sas, compridas e retorcidas
como näo há memória que an-
dasse armada a testa dum ser-
rano. Mais abundante nem pa-
liteiro com os palitos, e as-
sim falada nem a porca de
Murça. Täo coitadinho, que
seria caridade dizer-lhe ao
passar um portal: baixa que
marras!
A mulher era fêmea de
alto lá com ela, sempre mais
.he 93-94
frescal que alface, requesta-
da de fidalgo e de padre
cura.
Pegámos das cartas e o
ladräo com a felícia toda, o
sortalhäo que dizem próprio
daqueles a quem sobra o que
falta às cabras mochas! Na
cova da mäo, sempre
:,
.he 94
o cinco de oiros, a espadi-
lha, o cinco de paus, levan-
tou-me em catréfia seguida
quatro quartilhos e um bolo.
Paguei, mas bufei, que à
mandinga da sua condiçäo e
näo a jeito nem à sorte ho-
nesta atribuí eu, e comigo
todos quantos ali estavam,
aquele desaforo a ganhar.
E, maneira de desforço,
fui chasqueando nesta voz
pausada que Deus me deu,
pela qual alguns mequetrefes,
nas minhas costas, me compa-
ram à bezerrinha mansa que em
todas as vacas mama:
-- Este Manuel é o que
se chama um regaläo. Bem co-
mido, bem bebido, mais fresco
nem o nosso abade! Pois
olhem, é do mesmo ano que eu,
mas ninguém o há-de dizer.
Os trabalhinhos estragam
mais que o tempo! Sempre a
arrotar pescada, a este feli-
zardo só falta cartola e ben-
gala. As fêmeas é que däo
cabo dele. Raios o partam,
com uma mulher daquelas, tudo
o que há de mais liró, e näo
tem nojo de ir à Preciosa!
Näo te basta a Claudina,
maganäo? Ah Cristo, eu, se
pilhasse uma mulher assim,
estava-me ninando para as
mais! Também estou velho, lá
na Brízida dou um beijo
quando dou...
O Bisagra ria, muito an-
cho da canada que me bebera e
das palavras que eu proferia,
.he 94-95
e lhe sabiam täo bem como o
vinho, e a roda estava maluca
de alegria com o entremez e o
ver-me com cara de asno, que
é sempre a cara do pagante.
:,
.he 95
Mas vai senäo quando, o
Bisagra saiu fora a satis-
fazer as necessidades ou a
revessar a vinhaça, e eu vi-
rei de folha:
-- Cem cäes o comam para
chavelhudo! Vai à bostiquei-
ra da Preciosa porque a
Claudina lhe diz tó-ruça;
guarda-se para os outros,
para os figuros, para quem
ela quer. Cornambana do in-
ferno! Se fosse a mim, ia-me
a ela, e, ó menina, ou és mi-
nha mulher a valer ou te pico
aqui a barriga como à cebola
para o refogado...
Acabava eu o responso, e
näo há pior zombaria que a
verdade, o Bisagra que apa-
rece no traço da porta. E, a
abanar a cabeça, cresceu para
mim, mas sem arrogância, que
eu ainda tinha a faca na unha
para mostrar como se picava a
mouçó da mulher.
-- Entäo ela diz-me tó-
-ruça!? Apostamos uma quarta
de vinho em como te enganas.
Queres? Näo queres? Anda
comigo e vais ver. Homem, um
cântaro de vinho.. ?
Ri eu, riram todos do
desconchavo. Muito aceso, o
Bisagra continuava a protes-
tar e a pedir aposta, e eu
perdi a paciência:
-- Sabes que mais... nis-
ga! Eu repito o que dizem as
bocas do soalheiro. Se és
homem, melhor para ti, mas
ainda o näo disseram três
doutores!
-- Sou homem... Safado
dos safados, vem ver! -- e
fazia jeito de me levar. :,
.he 96
Sacudi-o e ele desandou
afinal, a mesma toada na
boca, pelo largo da feira ar-
riba:
-- Sou homem, conho!...
Sou homem!...
Desapareceu e estávamos
nós deitando contas pachou-
chada, quando se ouviu grande
banzé: o Bisagra fora encon-
trar a mulher com o Padre
Antunes da Lousadela e zu-
pava nos dois como em amassa-
doiro de linho. Foi preciso
arrancar-lhe das mäos o coro-
ado, senäo matava-o. Mesmo
assim, ficou com uma sobran-
celha deitada abaixo e mais
pingäo e lastimável que um
dos palhaços que, por folgan-
ça de carnaval, se tinham es-
fandegado no largo naquela
quinta-feira das comadres.
Passo foi aquele que muito
aproveitou a toda a gente: a
Barrelas porque o castigo
.he 96-97
público morigera, a Claudina
porque dali em diante foi
mais cautelosa a admitir ga-
lantes em casa, e ao Bisagra
porque devia ter, ao menos
por algum tempo, entrado em
posse do que era seu. E aí
está porque da minha má-
-língua veio benefício ao
mundo e eu me julgo forro, no
livro da glória, do pecado
que mais houver de me carre-
gar quando chegar às portas
do Paraíso. É verdade!
Que a minha língua era
afiada como a faca que trazia
à cinta -- teimam para aí.
Bem haja eu, que nunca dei-
xei a minha honra por mäos
alheias, nem me esqueci de
pagar agravo ou fineza rece-
bida. A panela em soar, o
homem em falar. A língua
para amansar
:,
.he 97
as mulheres e homens mulhe-
rengos que faziam pouco de
mim ou se atravessavam no meu
caminho, a faca para rebater
os tratantes que me ameaçavam
o fagote.
Se, devido à minha má-
-língua, esteve o padre da
Lousadela com os pés para a
cova, já contei a Vossorias
como foi. Se dormiu a mulher
do Duarte em lençóis de vi-
nho, eu lhes vou dizer como
se deu tal comédia.
No dia de Reis, há tan-
tos invernos, que só me lem-
bra ter vindo, por essa altu-
ra, uma trovoada medonha que
arrasou os campos e matou as
aves, estávamos eu, o Meses
regedor e o Albino alfaiate,
sentadinhos ao soalheiro, no
cabeçalho dum carro, a gozar
o ripanço do dia santo e a
dizer mal do bispo. Chegou-
-se a nós o Duarte, e vá de
cigarro, vá de amenidades,
.he 97-98
disse-nos:
-- Ó rapazes, tenho lá um
vinhinho, o pedaço dum palhe-
tinho, que até fica a rezar
nas goelas uma música celes-
tial. Só queria que provás-
seis...
-- Se ele é isso -- re-
darguiu o Albino, que também
näo era homem para se fazer
rogado -- a operaçäo é boa de
fazer.
-- Entäo vinde, vinde be-
ber um pucarinho de Molelos
-- tornou todo franco, abrin-
do marcha.
O Duarte morava para o
Oiteiro na casa que chamam
do Sargento-Mor, e é pela
obra de silharia e os
:,
.he 98
tectos em masseira uma das
sete maravilhas da nossa ter-
ra...
Sete maravilhas, sim, se-
nhores, e eu digo quais elas
säo. A primeira é a armadura
do Bisagra; mais frondosa
nem a cabeça do cervo-real.
A segunda é o bandulho do
Albino, que à semelhança de
todos os odres tem a boca an-
cha e, ao contrário dos de-
mais odres, näo há vinho que
o farte. A terceira säo as
chinelas do tio Rela em be-
zerra branca, que viram
Lisboa no Centenário de
Santo António, entraram no
Ministério do Reino e vol-
taram a penates para figu-
rarem no auto que aqui haja
de se representar do Senhor
Juiz de Barrelas. A quarta
é o pego da Ponte das
Tábuas, que näo tem fundo.
A quinta säo as trutas desse
pego que säo maiores do que
as galgas do Padre Farrus-
quinho, que até de boca fe-
chada mentia. A sexta é a
nossa igreja com obra de ta-
.he 98-99
lha como näo há em Portugal,
e a cruz de latäo do tempo do
Rei Vamba. A sétima é a
casa de que lhes estou falan-
do com esconderijos contra
ladröes e miguelistas, enxo-
via, cisterna empedrada, que
ainda viram estes olhos que a
terra há-de comer e os senho-
res já näo veräo. E näo ve-
räo, porque veio um selvagem
e deitou tudo a terra para
fazer um chiqueiro.
Mas, como ia dizendo, o
Duarte, que era um homem li-
beral e fala-barato, convi-
dou-nos de täo boa gana que
largámos do abrigo do Rama-
lhal, onde
:,
.he 99
estávamos a tomar o sol,
atrás dele. Na adega, com
broa dos tabuleiros, täo res-
cendente que consolava, e uma
lasca de presunto, que baila-
va da trave à dependura, cas-
cámos-lhe.
Estávamos nós na santa
funçäo, apareceu a mulher do
Duarte. Conhecem-na com os
dois pêlos virados no queixo
como anzóis e umas canelas
sempre täo negras e magras
que até parecem flautins para
os cäes!? Arreda! A homem
ruivo e mulher barbuda de
longe os saúda.
-- Fogueira parta os bê-
bados! -- começou logo a gri-
tar. -- Quem quer o fole
cheio, vá à taverna e puxe.
Este homem há-de desgraçar a
casinha... Mas deixa, é mäos
rotas para os amigos... os
amigos häo-de lhe arrancar os
olhos e verter água nas po-
ças!
O Albino, posto que ho-
mem correntäo, ficou varado;
o Meses, com a vergonha,
pôs-se mais vermelho que o
palhete. Adiantei-me eu a
.he 99-100
fazer face à serpente com as
manhas que me ensinou o
Padre José Farrusquinho: a
quem te der uma pássara,
dá-lhe a sua asa:
-- Viva lá, tia Joaqui-
na, viva lá! Entäo sempre na
lidairada?! Duarte, chega-me
uma canequinha aqui à tua mu-
lher. Vá, que governadeira
assim nem de encomenda. Ca-
chorro da sorte, podias pin-
tar-te com ela num retábulo!
Podias, que to digo eu! Sem
uma mulheraça destas estavas
de pernas ao ar.
:,
.he 100
-- O tio Malhadas sempre
tem coisas! -- disse ela,
quebrando a fúria.
E eu no meu sério, sem
pestanejar:
-- Vossemecê é mulher das
de bom tempo! Ja näo há des-
se barro. Näo há, näo senho-
ra! Ah! que se a minha Brí-
zida morresse e a tia Joa-
quina enviuvasse, bem sei
onde ia bater!... Deus ta
guarde por muitos anos e
bons, Duarte, que a näo me-
reces. Mas, entäo, saboreie
lá o seu vinhinho... É uma
pinga de estalo, lá isso é,
quem o negue é capaz de negar
as Cinco Chagas.
-- Está bem, bebo, mas
primeiro há-de beber vome-
cê...
-- Ai näo, primeiro quem
está primeiro: a senhora da
casa. A minha sede também
näo é de sete dias. Cäo de
Duarte, que näo sabes apre-
ciar a prenda que Deus te
deu!
-- Näo ateime, bem ha-
ja...
-- Isso é que ateimo.
Há-de beber connosco...
Pus-lhe a caneca à bei-
ça...
.he 100-1
A mulher bebeu e passou-
-ma logo, muito pronta:
-- Vá, tio Malhadinhas,
beba e beba-lhe bem!
Beba-lhe e que lhe preste!
-- Tivesse eu sede, mas
nem raça!... Näo ateime...
Olhe que lhe fico agradecido
na mesma.. .Valha-me
Deus!... Se lhe pego é para
fazer a vontade... para näo
parecer desfeita. Cäo de
Duarte, que
:,
.he 101
näo sabes dar o galardäo a
quem o merece. À sua saúde,
tia Joaquina!
-- À sua e por muitos
anos e bons!
Eu e o Albino emborcámos
aquela caneca. Veio outra.
-- Näo tenho mais apeti-
te, bem haja! -- julguei-me
obrigado a dizer para uma
terceira, como quem reza um
responso.
-- Vá, com uma lasquinha
de presunto... -- tornou ela,
e foi despendurar do tecto a
pá do porco.
Afinfámos-lhe de grande,
e eu sempre na ladainha:
-- Esta tia Joaquina pöe
o ramo. Olhem-me para ela: é
o espelho das donas de casa!
Há aí no povo melhor? Isso
há ele, nem por todas essas
Europas do mundo! Nem que
acendessem um archote a pro-
curar.
E a burgessa mais e mais
enchia os ricos pucarinhos de
Molelos e nós pingueiros
como cachos. Mas baixou a
noite e a criatura girou à
vida, que já os porcos chama-
vam do cortelho pela vianda e
punham mais esparrame que uma
filarmónica emborrachada. E
entäo chegou a vez de eu me
vingar das vozes de bêbado e
caloteiro com que ao intróito
.he 101-2
nos brindara. O Duarte es-
tava meio tocado; embora, a
palavra, como a lança, longe
alcança!
-- Raios te partam, homem
-- disse-lhe eu -- mais
:,
.he 102
à aldrúbia que meteste em
casa. Näo viste o espalhafa-
to com que rompeu! Mil dia-
bos a levem mais à barca que
para cá a passou! Irra, ir-
rório, senhor Gregório! Eu
cá se fosse a ti, ó Duarte,
chapa batida, chapa gasta,
dava-lhe todos os dias, ao
deitar e levantar da cama,
uma sova de criar bicho.
Pois ele pode haver maior
colondrina por esses mundos
fora? E andas tu nas mäos
dela como um frangalho?!
Terçä te coma, Duarte, mais
à bochada de carneiro que
Deus te deu!...
E, porque torna, porque
deixa, ali fiz a cama à mu-
lher. E täo bem feita ela
foi que Barrelas toda, à
hora de ceia, foi alvorotada
com os gritos da Joaquina.
Mas dia foi esse que o
Duarte passou a ser rei na
casa em que só havia mandona.
Que a minha língua era
ruim e envenenada? Aí está o
seu malfazer, endireitar o
mundo que andasse torto.
Dela näo temo as contas que
hei-de dar a Deus porque
ainda que a minha voz näo
seja como a ronca do abade do
Touro quando canta os la-
tins, é de falsete só no
nome. No mais foi, é, e sem-
pre será leal-verdadeira.

.he 103

VII

Que a minha faca era afia-


da e leveira... Se afiada a
trazia, muitas vezes tive
pena de näo ter à mäo a cata-
na de Durandarte. Há encon-
tros na vida e pendências que
um homem honrado näo provoca
nem espera, e que só se re-
solvem de pulso rijo e botan-
do as unhas a uma arma. A
faca, mesmo assim, nunca a
saquei para homem cordo de
génio e liso nas contas, nem
para jagodes pobre do juízo
ou com água chilra nas velas.
Destes tinha dó, se é que
näo era nojo, e arredava-os
com a biqueira do sapato.
Também nunca por nunca a sa-
quei sem qúe, picado ou atro-
pelado, me näo conbesse le-
vantar despique ou lavar a
cara de algum enxovalho.
.he 103-4
Nisso a minha folha de
Albacete era escrupulosa
como a espada do capitäo-mor
de Pera e Peva, que, dizia
o Mestrinho da Tabosa, nun-
ca saía da bainha sem causa
nem entrava na bainha sem
honra. Às vezes ia embai-
nhar-se na barriga dum velha-
co, sem dar os três estalos
da lei nem se lhe ver o aço
frio a relampejar, é verdade!
Mas é da guerra, meus senho-
res, é da guerra dissimular o
ataque e por nada deste mundo
dar senha ao
:,
.he 104
inimigo. Gingar, fadistar,
deitá-la na mäo aberta, a lâ-
mina entre os dedos e o cabo
a fugir pelo pulso para o ca-
nhäo da jaqueta, foram artes
que näo me lembro se aprendi,
mas, se aprendi, näo se me
amoldavam ao génio. Manda-
va-a quando podia, muitas ve-
zes com o inimigo desatento,
mas lá negacear nunca. À
face de Deus, vinguei-me
sempre com limpeza.
A faca é arma feia e cru-
el, está certo; mas se em vez
de naifa eu trouxesse um pu-
nhal com cabo de prata; se em
vez de almocreve fosse um
desses senhores D. Gaifei-
ros de que rezam os rimances,
eu queria ver se alguém er-
guia a voz a acoimar-me de
desalmado e o padre Antunes
da Lousadela me mandava em-
bora do confessionário, sem
absolviçäo, como fez uma
Quaresma com a igreja cheia
de gente para o confesso. Ao
tempo, também, ainda näo ha-
via essas pistolinhas sábias
que é o pândego tocar no ga-
tilho e estäo sete balázios
ferrados no canastro dum pu-
lha. O pau defendia-me de
cäo, de malta frente a fren-
.he 104-5
te, mas para jogos de falsa
fé e pessoas de mau sentido
näo havia como a faquinha. O
mundo já o encontrei assim
formado. Näo era o filho de
meu pai, com poucas letras e
nenhumas posses, que era ca-
paz de o consertar. Agora
também lhes digo: se o grande
fosse valente, o pequeno pa-
ciente, e o ruivo leal, a
terra seria um pombal.
Acusam-me de muitos desa-
foros, mormente dessa
:,
.he 105
rixa de Aveiro em que um ho-
mem, o Fontinhas, foi näo
sei se adubar a terra antes
do tempo, se para a enferma-
ria... Näo é essa que mais
temo quando me chamar Deus a
juízo. Há que mundos isso
aconteceu, pois nunca me pi-
cou O remorso, nem mesmo co-
mo a paragana que, tantas
noites, às voltas que um
cristäo dá no catre com os
cuidados ou uma dor, fura da
enxerga para os lençóis e
morde mais que uma pulga.
Imaginem Vossorias que um
dia eu e meu sogro botámos
até Aveiro no negócio, os
machinhos à frente, por aí
abaixo, täo santamente como
nós. Como chegássemos à ci-
dade já tarde, toca de acomo-
dar os animais na estrebaria
da estalagem e de puxar da
merenda, que a estirada fora
comprida e fizera um calor de
rachar. Estávamos nós trin-
cando o nosso migalho de päo
com chouriça, chega o Fonti-
nhas, almocreve também como
nós, com um rompante, San-
tíssimo Sacramento, nem que
fosse moço de sege do bispo!
O homem vai-se direito à es-
trebaria e deu de cara com os
nossos machos. As argolas,
que lá lhe pareciam as melho-
.he 105-6
res, estavam tomadas por
eles, e em vez de se confor-
mar, que chegara depois de
nós, näo senhores, rompeu
logo aos roncos. Estou a vê-
-lo de lampiäo ao alto, a
faixa a desbarrigar-se-lhe da
cinta, chapéu rodado a pender
para a orelha, jaleca curta,
por suíças uns belros de lä,
que pareciam manchocas de
musgo:
:,
.he 106
-- De quem säo estes ma-
chos?
Foi meu tio Agostinho
que lhe respondeu, porque,
além de saber a fraca rês que
tinha diante e temer-se duma
rixa do homem comigo, por
ânimo era pronto a dar razöes
e a aceitá-las:
-- Um é meu, o da calça
branca; o outro, de meu gen-
ro.
-- Pois tirem lá os ma-
chos para fora... e já!
-- Tirar os machos! Isso
é que näo tiramos. A estala-
gem é de quem vem. Você é
algum rei?...
-- Estas argolas, desde
que me conheço, foram sempre
as minhas. Percebe? Se per-
cebe, homem, desate lá os ma-
chos, senäo desato eu, e
toco-lhos daqui para fora a
toque de caixa!
-- Nunca tal ouvi...
-- Pois ouve-o agora.
Väo machos e vai você. E se
me refila, até lhe arrebento
a alma...
-- Essa agora!...
-- Já disse!... Tira os
machos?... Näo tira?...
Pois se näo tira, corto as
rédeas e vai tudo raso...
Era o momento de me che-
gar adiante, visto que o
birbantäo se näo rendia às
palavras leais de meu sogro:
.he 106-7
-- Que febre lhe fazem as
bestas, amigo? Deixe-as
quietinhas. Tem muito lu-
gar...
-- Näo quero cá saber.
Saem ou corto.. ?
-- Näo corte, paträozinho
do Senhor! As bestas
:,
.he 107
täo bem estäo aqui como aco-
lá. Vossemecê e nós somos
gente do mundo... näo paga a
pena apeguilhar.
-- Eu já lhe dou o tro-
co...
E aí rapa ele da navalha
e corta a arreata do macho da
calça branca. Ia a cortar a
do outro... arrumei um sopapo
ao lampiäo... e, em menos dum
ai, estava estatelado na pa-
lha:
-- À-d'el-rei que me ma-
taram! À-d'el-rei!
Espetou-se na navalha,
fiz algum gesto à toa, dei lá
conta como foi?!... Mas al-
voroçou-se a estalagem e
prenderam-me. No meio do
burburinho, já debaixo de
galfarros, pude dizer a meu
tio:
-- Safe-se com os machos,
homem! Que está aí a papar
moscas? Espere-me lá para o
Eixo. Se näo me vir por es-
tas duas horas, reze-me por
alma.
Juntou-se o povo e veio o
regedor, que polícias näo ha-
via ainda na terra àquele
tempo. E, vendo-me no meio
dos cabos, atiravam-me à cara
com dichotes deste jaez:
-- Isto é traste da Ter-
ra Quente... Olhem-lhe para
a tromba.
-- Ó meus senhores, eu cá
näo nego o berço; sou duma
terrinha para riba de Viseu,
fria e feia, onde näo vinga
oliveira, nem laranjeira, nem
.he 107-8
uva de lagar. Pior näo have-
rá, mas nós todos vivemos na
lei e graça de Deus. Näo é
a primeira vez que Nossa
Senhora aparece aos pastori-
nhos nos nossos montes...
:,
.he 108
-- Terra de cordeirinhos,
está-se a ver pela rês que tu
és!
-- Sabe Deus quantas
mortes tem às costas!
-- Olhem para ele: cara
mesmo de malvado!
E eu, pudera! com lágri-
mas na fala:
-- Ó, meus ricos senho-
res, olhem que se tenho cara
de malvado näo o herdei de
leite! Sou filho de boa
mäe... e näo me pesa na cons-
ciência, até à data, ter fei-
to mal a uma mosca...
-- Oh que patife! Melú-
rias é ele, assim tivesse o
coraçäo! Esfaquear o Fonti-
nhas, um homem täo amigo do
seu amigo!
-- Eu? Eu nem com um
dedo molhado lhe toquei.
-- Mas tocaste-lhe com a
naifa! Ela está ali, de pon-
ta e mola, mais afiada que
uma navalha de barba, que o
confessa.
-- Valha-me Deus, pobre
de quem nasceu com má estre-
la! Pobre de quem se vê so-
zinho no mundo! Também
Cristo foi cuspido e vaiado
e entregue a Caifás e pade-
ceu morte afrontosa sendo
justo! Ih! Ih! Ih!
-- Falas de santo, unha-
das de gato.
-- A morte me coma se to-
quei em tal homem.
-- E está na agonia...?!
-- Näo sei, näo tenho
culpa nenduma. O homenzinho
ia por lá a cortar a arreata,
apagou-se a candeia :,
.he 109
näo sei como nem por que jei-
to, e aquilo feriu-se no
gume...
Fiquei nas mäos dos cabos
de ordens e, uma boa hora an-
dada, à força de me verem
chorar, confranger e protes-
tar inocência, alargaram o
círculo que faziam em volta
de mim. Depois de levantarem
o Fontinhas, lá porque eu
lhes parecesse maricas no gé-
nio, começaram a fraguar co-
migo, perguntando-me pela mu-
lher e filhos e donde era e
donde näo. E a tudo eu res-
pondia no tom mais apiedável
que podia puxar das entranhas
para a garganta.
-- Temos de o conduzir
para a cadeia -- proferiu o
regedor, olhando-me de face.
-- Está bem, meu senhor.
Lei é lei. Mas eu só lhe
queria pedir um favor... Era
que me deixasse agradecer a
.he 109-10
caridade desta boa gente, a
começar pelos senhores cabos
de ordens, que säo pessoas
honradas e de peso e amanhä
häo-de ser pais de filhos, e
ninguém sabe para que é que a
gente os cria.
-- Diga lá... Se estiver
na minha mäo...
-- Se está?!... Era dei-
xar-me mandar vir uma pinga
para beber aqui com a socie-
dade.
-- Homem, guarde o di-
nheiro; pode-lhe ser preciso.
Puxei da bolsa e fiz cho-
calhar as libras contra a
palma da mäo:
:,
.he 110
-- Louvores ao Senhor,
aqui ainda há para obsequiar
os amigos!
Veio a pinga, um cântaro
de palhete, deste palhete das
margens do Däo, que parece
veludo no céu da boca e um
homem sente fugir pela goela
abaixo vivinho e ágil como um
lagartixo para a sua lorga.
Ele é de tal ordem que até
anda numa loa: päo com olhos,
queijo sem olhos, e vinho que
salte aos olhos, e tudo trom-
bou, o regedor, os cabos, as
mulheres do regedor e dos ca-
bos e os meninos dos mesmos.
Elas, as mulheres, cele-
bravam o meu rasgo liberal
com admitir que o almocreve
se pudesse ter cortado invo-
luntariamente e que Nossa
Senhora das Areias havia de
fazer o milagre de lhe resti-
tuir a fala para contar a
verdade verdadeira. E já nos
viam na fresca da ribeira,
ele a pintar-se num retábulo,
a mim, caminho da terra, com
uma cestada de ovos-moles
para a mulher e filhos. E
eu, muito contente, estava em
notar a uns chochos de todo,
.he 110-11
a outros mais pesadöes e lor-
pos que patos na engorda.
Mais uma saúde, mais umas
lérias, um que chama daqui,
outro chama dali, a noite es-
tendeu-se pela localidade, e
os cabos deixaram-me de banda
com o cântaro vazio.
Quando de tal me aperce-
bi, saltei por cima do rege-
dor, torto de borracho, rapei
do estadulho dum carro que
ali estava e, depois de var-
rer o campo com
:,
.he 111
dois molinetes, pernas para
que vos quero! Em menos tem-
po do que se pisca um olho,
estava de largo.
Foram sobre mim, mas po-
diam eles lá pilhar-me, lesto
como era, lesto como ia com o
vinho orçado para me acender
o ânimo, e na alma um agui-
lhäo: avante! avante! se näo
queres ir apodrecer no chi-
lindró! No morro, para lá de
fora de portas, à luz do luar
que ainda me deixava distin-
guir os tarantas a agatanhar
atrás de mim, gritei-lhes com
toda a alegria dum pássaro
nas cerejas, com toda a força
dos pulmöes anchos de liber-
dade:
-- Ó cagaréus de Aveiro,
vinde agora para cá!.. .Vin-
de!
Ouvi-lhes dizer que eu
devia ter pacta com o Diabo
e deixaram-me. Deixaram-me,
mas uns quatro anos näo as-
sentei pé na terra de Avei-
ro, onde juntei alguma baga-
lhoça, e as espanholas, que
entravam pela barra ou vinham
pelo ar, näo sei, me levavam
a quebrar a dieta de Barre-
las, a jejuadora.
Mesmo às cegas, a Jus-
tiça instaurou-me um proces-
so, e eu aceito dares e toma-
.he 111-12
res com tudo e com todos,
ainda com o Diabo do Infer-
no, mas lá com os ladröes da
Justiça -- *libera me Do-
mine*.
Agora respondam: D.
Gaifeiros näo teria puxado
do punhal bem cinzelado con-
tra o perro que lhe quisesse
cortar as bridas do garrano?
Devido à rixa, os cami-
nhos ficaram-me pois
:,
.he 112
bargados da banda do mar, e
com tal o negócio de levar e
trazer. Atirei-me à vida da
lavoira que, a esse tempo, já
possuía de meu alguns bens ao
luar. Mas, amigos, eu lhes
confesso, atrás das vacas pa-
chorrentas tinha saudades do
machinho, lépido a tropear
pelos caminhos de Cristo,
das jornadas com a alva, do
arrebenta-diabos nas estala-
gens, copo de verdasco em
frente no mostrador de zinco,
o polegar em cima do conduto
contra a broa, a navalha ma-
nobrada pela mäo direita.
Entrementes, os filhos go-
vernavam a casa, dirigidos
pela mäe que saíra um rei de
armas, e pude largar por fei-
ras e mercados em troquilha
de cavalos e mais bestas no
que, graças às boas manhas
que Deus me deu, me houve
com algum proveito e sempre
com honra.
Foi duma destas desarvo-
radas, na feira de ano de
Vale de la Mula, ao pé da
raia, que -- longe do meu
pensamento -- fui dar com o
Bernardo do Paço prestes a
ser esfrangalhado por uma al-
cateia de ciganos e de espa-
nhóis, de alto lá com ela.
Tinham-no num cerco, e os
paus apostados sobre ele eram
tantos que o valentäo näo sa-
.he 112-13
bia a qual havia de acudir.
Mas, ah gente! no meio da-
queles negros todos, cabeça
alta, bem escorado nas per-
nas, o lódäo a ensarilhar täo
lesto que nem se via, dava
ganas de lhe gritar:
-- Aí, filho de bô'mäe!
Aí!
Vossorias lembram-se: o
Bernardo safou-me da
:,
.he 113
roga do Tenente, correr a
salvar-lhe a vida em perigo
era a minha obrigaçäo. Man-
dava-me o ânimo, que nunca
foi peco a agradecer, e que
näo mandasse, isto de ver um
bicho esfandegado por uma
queira de sabujos até na caça
ao lobo agonia.
Foi encomendando a alma a
Deus que me atirei para o
barulho, depois de gritar ao
Bernardo:
-- Tem-te, amigo, que eu
aí vou!
Em menos dum amém, meus
senhores, quatro bordoadas à
direita e três à esquerda,
juntava costas ao valente.
-- Vamos a eles, Ber-
nardo! Agora ou nunca mais!
-- disse eu, pois naquele mo-
mento de surpresa só havia
pela frente correr a malta à
castanha ou morrer.
Sentindo-se ombreado, o
Bernardo cobrou alento, e o
pau dele, por cima das cabe-
ças, era como mangual numa
eira.
Também nunca os meus bra-
ços pareceram täo rijos e o
peito mais pronto a servir os
braços. Paulada neste, pau-
lada naquele, uns em terra,
outros pernas para que vos
quero, rompemos o cerco.
-- Onde tens a besta? --
perguntei para o Bernardo.
-- Vendi-a -- respondeu-
.he 113-14
-me todo afogadiço, a deitar
os bofes, coberto de suor e
sangue, que algumas pancadas
lhe tinham resvalado à tola.
:,
.he 114
-- Diabo, diabo! Mas
anda daí, o meu cavalinho nos
levará.
Corremos ao poldro, sal-
támos-lhe em cima e, toca de
espora, à rédea solta. A
malta, entretanto, tornara a
formar-se e largava atrás de
nós a rugir e a disparar os
pistolecos. O cavalinho era
galgaz e, eh raio! eh raio!
só deixou de dobrar em Al-
meida. Mas à porta da esta-
lagem caiu redondo para o
chäo.
-- Podem dar-lhe um tiro
no ouvido -- disse o vendei-
ro. -- Nunca mais pöe cabe-
çada.
-- De facto -- proferiu o
Bernardo -- tem os peitos
abertos. Mas descansa, An-
tónio, foi por minha causa,
eu pago-te o cavalo...
-- Näo digas mais, Ber-
nardo, näo digas mais, que já
nem te vejo todo. O cavali-
nho pateou ao meu serviço, a
perca é minha. Deixa, se se
arrastar até casa, bem sei o
que lhe hei-de fazer.
Descansámos ali a noite
e, com sopas de vinho e boa
pitança, reanimámos o animal,
a pontos de se aguentar em
pé. E, embora moêssemos um
dia até Trancoso, o cavali-
nho lá foi andando.
-- Cäo de mim -- maluquei
-- se trago o macho näo so-
fria o dano de vinte libras,
que era quanto o Orlando
dava pela bestinha no mercado
dos quinze. O mulo engolia o
estiräo sem tocar com um cas-
co no outro. Mas adiante,
va-mos a ver, talvez o Or-
.he 114-15
lando lhe pegue...
:,
.he 115
Lá chegámos a Barrelas,
mais mortos que vivos, e o
cavalinho manquitando que pa-
recia a cada passo ia acabar
seu tropecer.
Prendi-o à argola para
pensá-lo como doente que era,
sem dizer nada a ninguém.
Eu estava certo que o
Orlando, mais dia, menos
dia, voltaria a petar, a que-
rer comprar-me o garrano que
ficara na loja por um empate
de borra.
Ora, se bem o pensei, me-
lhor assucedeu. Ainda näo
tinham passado duas semanas
-- já o animalzinho ia e vi-
nha muito direito para os
pastos -- senti o troquilhas
à porta do Guilhermino ven-
deiro, mais o compadre do
Carvalhal, que também andava
no negócio. Aviso a Brízi-
da: Ó Brízida, se vierem
perquntar por mim, dize que
fui para Trevöes ao azeite e
que, mais hora, menos hora,
devo estar de volta". E des-
ci à loja, atirei com os
odres para riba do albardäo
e, pela porta travessa, de-
pois, pelo caminho dos quin-
tais, puxei o cavalinho para
largo. Cheguei atrás da
igreja, fui-me aos odres e,
sopra que sopra, pu-los mais
redondos com vento do que se
viessem a estalar com fazen-
da. Depois orcei-os no cava-
linho, apertei-lhe a cilha, e
compus os atafais. Com jei-
to, em seguida, plantei-me no
meio da carga, pés para a
frente, e toca de entrar pelo
povo abaixo, todo farófia,
mais teso que um fidalgo na
sua faca. O cavalinho ti-
nha-lhe comido bem, foi boni-
to; pelo trote que :,
.he 116
batia, ninguém se lembrava de
dizer que estava rebentado do
arcaboiço. Ao tropicar à
porta da venda, saiu fora o
Orlando mais o compadre. E
gritaram-me:
-- Ó seu Malhadinhas!
Seu Malhadinhas!
Fingi que näo ouvira.
-- Ó seu Malhadinhas!
-- Olá, amigos!
-- Desça cá beber uma
pinga...
-- Agora näo, rapazes.
Venho de Trevöes, que é lá
em casa do catano, e estou
com pressa de descarregar...
-- Entäo o bucéfalo näo
pode?
-- Eh! rapazes, com uma
capilota destas no pêlo, três
almudes de azeite e eu em ri-
ba desde a alva até agora!...
Mais de sete horas!
-- Entäo descarregue lá e
venha beber uma pinga. Hoje
.he 116-17
é que há-de vender a pile-
ca...
-- Pileca?!... Näo me
digas mais dessas que até me
ofendes! Está aqui uma es-
tampa real. Ide por essas
feiras e desencantai-me se-
gundo que vo-lo peso a prata.
Ele é tanto para carga, como
para carroça, como para cava-
laria... Pileca! Haveis
ainda de comer muita rasa de
sal para saber o que é um ca-
valo!
-- Ora adeus, adeus, des-
carregue e volte, homem!
Lá voltei e lá lhe impin-
gi o zangaralhäo que o compa-
dre estava ali para rachar a
diferença. Näo valia dinhei-
ro de cruzes!
:,
.he 117
Arrebentadinho, arreben-
tadinho, deitou a alma na
primeira ladeira. E assim me
desforrei da aventura de Va-
le de la Mula por vinte e
uma amarelinhas, näo contando
o alvaroque com que nos em-
borrachámos eu e quantos ali
estavam de Barrelas, à custa
como foi da barba longa.

.. fim pag negro 117 - fim cap vii - linha 6

.he 118

VIII

-- Cachorro de mim, se
muito dinheiro granjeei, --
muito dinheiro derreti por
mal-andanças do génio e tam-
bém pelas torpezas da sorte.
Um no vazadoiro dos proces-
sos, outro em peitas e espór-
tulas, a encher o papo da
Justiça que, à semelhança
das jibóias, só dorme quando
farta. Louvores ao Pai de
todos, os meus ossos só co-
nheceram uma vez a tábua dura
das cadeias. Foi quando o
Capa-Cavalos de Sendim se
veio despropositadamente es-
petar na minha faca, o grande
bêbado! Desde essa hora, to-
mei-me de tal asco pelas pri-
söes que, em despique ou pen-
dença, antes queria ficar no
terreiro, sob pena de näo
mais me erguer, que deixar
.he 118-19
pôr as unhas na lapela da
véstia. Aquela mestiçalha
comida de bicharia e varada
de fome, com tigelas de lata
à dependura duma cana, a pes-
car, à força de lamúrias, os
dez-reizinhos ao passante;
aquelas quatro paredes, es-
treitas de mais para a minha
viveza de pássaro, largas de
mais para se parecerem com a
tumba, com a qual o melhor
remédio é andarmos conforma-
dos; aquele ventas-de-cäo do
carcereiro, açulado sempre
para os desprotegidos, todo
rapapés para os que lhe unta-
vam a pata;
:,
.he 119
isto de ver a gente cá fora,
leva que leva, a lidairar em
paz e dia bom, deixaram-me a
aversäo dos despiques e das
zaragatas, por mor das quais
nunca faltou mamadeira aos
doutores de leis e à Justi-
ça. Deus te guarde de *par-
rafo* de legista, infra de
canonista, etcetera de escri-
väo e récipe de mata-säo.
Por isso o meu cuchilo que-
dou muitas vezes adormecido
quando devia mostrar-se es-
perto, e, pelas horas em que
näo havia que fugir, muito
escriväo, muito delegado e
tôdolos da choldra untaram a
barba com as minhas ricas
trutas e as pernas de vitela
sem conto, que deram alma ali
ao *Vinte e Um* que as cor-
tava. Também os tempos eram
outros. O Paiva näo tinha
rincolheira que näo desse um
prato de pcscado, vivinho de
arregalar o olho, trutas fi-
nas e taludas como bacalhaus,
bogas e bordalos gordos como
lontros. Hoje a ribeira pa-
rece que levou excomunhäo.
Derrotaram tudo com a coca e
a cal virgem, a pontos que é
.he 119-20
uma fortuna colher lá dois
cágados com que empulhar o
quartilho.
Pois é verdade, se ganhei
rios de dinheiro levou-mos a
Justiça, levou-mos a criaçäo
dos filhos, que o seio da mi-
nha Brízida carregou como
estas vides que trepam às ár-
vores e botam cachos que é um
louvar. Eu cá näo fui falso
ao rei. Näo paguei o tributo
de sangue com o meu rico lom-
bo, mas de dezanove filhos
que para aí andam quatro dei-
taram correias de soldado
:,
.he 120
dado e um até entrou na guer-
ra preta do Gungunhana. Ra-
pazes feros e escorreitos,
capazes de partir uma laja
com os dentes, todos de cara
direita, antes de quebrar que
de torcer. As moças é que
saíram umas repitoscas, umas
cabroilas, amigas de luxar e
gastar sabäo com os asseios.
Paciência, näo há grande ge-
raçäo sem santo nem ladräo!
Dezanove, sim senhores, foi
quantos a Brízida botou a
este vale de lágrimas, assim
fácil como na fonte sai a
água das torneiras. Destes
todos, a raça já vai longa.
O outro ano, pela consoada,
juntaram-se no pátio, que a
casa näo era cabonde para os
abrigar a todos. O Sr.
Abade viu-me no meio e pôs-
-se a chalacear:
-- Ó Malhadas, pareces o
santo padre Abraäo!
-- Ná, Senhor Abade --
retruquei eu. -- Abraäo, por
modos, foi um grande rascoei-
ro, se é certo derramar casta
por todos os andanhos da ter-
ra. Eu cá nunca saí do pas-
sadio a que o sexto mandamen-
to obriga o bom e fiel cris-
täo. Tenho uma, essa me há-
.he 120-21
-de enterrar. Depois livre-
-me Deus de a Brízida se
comparar a Sara, que näo era
difícil a fazer o seu favor,
e a minha boca à do nosso
santo padre Abraäo que che-
gava a mulher ao Faraó e a
quem lha requeria. Arreda!
E näo minto, sempre guar-
dei respeito à minha Brízi-
da, que, meus amigos, também
näo era de ânimo a sofrer que
erguesse olhos a cobiçar ou-
tros. Uma vez até se quis ir
deitar a afogar, só porque se
bacorejou
:,
.he 121
no povo que eu tinha pacta
carnal com a Ludovina da
Morte -- conheceram? -- as-
sim chamada por ser mais feia
que a morte negra. Foi o pa-
tife do Bisagra que alevan-
tou o falso testemunho, mas
ia-lhe saindo caro, pois se
um dia näo me fura por umas
silvas como raposo esparvadi-
ço, rachava-lhe um pau, bem
embora ele os tivesse mais
duros e retorcidos que os
bois do Maräo.
Sempre guardei vénia à mi-
nha Brízida, se näo por toda
a parte onde prantava butes,
aldemenos no povo, que era,
antes de ser vila, o mais me-
xeriqueiro, noveleiro, inven-
tor de galgas que à luz do
sol medrou.
Lá pelas minhas rondas de
almocreve, o corpo às vezes
pedia-me vício, se näo eram
os parceiros que me tiravam
da devoçäo. Näo raro sucedia
virem-me os meliantes com
tramóias assim urdidas:
-- Ó Malhadinhas, chegou
agora a Aveiro uma espanhola
que é capaz de dar um coice
numa estrela. Aquilo é que é
mulher! Vale um macho com a
carga em riba. Anda daí!...
.he 121-22
-- Para que me vindes ten-
tar, almas do diabo? -- res-
pondia-lhes eu. -- Está lá a
Brízida à espera, coitadi-
nha, e tenho medo de lhe le-
var o mal ruim.
-- Qual o quê?! -- torna-
vam os grandes mariolas. --
Aquilo é mais sä que um pê-
ro. Anda daí...
-- Deixai-me cá! Se sou-
bésseis as saudades que tenho
dela!
:,
.he 122
-- Saudades nas securas,
meu amor, dá cá a borracha.
E, na arca aberta o justo
peca, lá me arrastavam os ex-
comungados. À volta, ao to-
car a testada de nossa casa,
bem vontadinha sentia de ir
beijar a minha Brízida e ter
com ela aquelas práticas de
que dizia Frei Joaquim das
Sete Dores: "Telhas abai-
xo, para homem e mulher, de-
pois que o mundo é mundo, me-
lhor brincadeira näo se in-
ventou." Mas ná, contentava-
-me em estropecer na rua e
chamar:
-- Ó Brízida, estás lá?
Ela respondia-me da cama,
mais repenicada que uma fran-
ga:
-- És tu, António? Sobe,
sobe, que estás a meijengrar?
-- Näo, menina, cá vou pa-
ra Trevöes à vida.. .Seja
pelos trabalhos que Nosso
Senhor padeceu!
E ia, abalava dali a ri-
lhar os dentes, mais raivoso
que o Porco-Sujo quando deu
trambolhäo do Paraíso. Mas
era forçoso deixar tempo a
que o mal francês florisse ou
os meus receios se dissipas-
sem.
Sabia depois que a minha
Brízida, pobreta, vinha, mal
levantava a manhä, pelo cami-
.he 122-23
nho fora até junto da igreja,
acompanhada do rebanho dos
inocentes. E, ao descobrir
na areia fofa o rasto do ma-
chinho, exclamava:
-- Olhem, meus meninos,
olhem, aqui passou o
:,
.he 123
triste de vosso pai. Cá väo
as pegadas; foi-vos ganhar o
päo, aquele negro!
Informavam-me os vizinhos
deste enternecido cuidar e
vinham-me as lágrimas aos
olhos. Com remorso, ao mesmo
tempo, chamava-me perdido mil
vezes, e a Deus e ao Diabo
rogava que me sepultassem lo-
go no inferno para castigo da
minha sem-vergonha. E como
nem um nem outro me dessem
ouvidos -- o que de resto eu
já esperava -- entre o cálice
e a hóstia prometia näo vol-
tar a espanholas ou fran-
cesas, fossem elas bem embora
mais feras que as cabras do
nosso monte e mais cobiçadas
que a fruta quando se tem se-
de. Mas os tunantes dos al-
mocreves frigiam-me:
-- Rai's te pelem, que näo
és homem! Um peixäo daque-
les, saltarina e cantadei-
ra!...
E o perro de mim lá descia
outra vez o alçapäo do infer-
no.
Ah! mas volvidos uns quin-
ze dias de lazareto, ou pas-
sante jornada sem fraldas, à
minha Brízida, na primeira
noite, näo ferravam as pul-
gas. Foi assim que dezanove
filhos se lhe penduraram ao
colo, de catréfia seguida, um
a mamar, outro no ventre.
Embora, geraçäo numerosa é
uma fortuna, näo saíssem ele
estouvadas duas raparigas,
dando origem ao mal falar das
bocas badaleiras. Haviam de
.he 123-24
casar e atrasaram-se a esco-
lher homem. Isto de fêmeas
säo todas
:,
.he 124
as mesmas. Mäe, casai-me
logo, que se me arruga o ros-
to.
A Isménia, que era de
fresca e de tenrinha uma fi-
lhó antes de fritar, por
aleivosia, creio eu, acoima-
ram de se encontrar com o pa-
dre Zé Farrusquinho no só-
täo da Claudina. Bem certo
que a velhaca da Claudina,
se veio ao mundo, foi para
regalar com o seu corpo e com
o corpo das pobres doidas os
rabaceiros de fraldas; mas eu
passei muita noitada, a laza-
rina bem munida de zagalotes,
por detrás das carvalhas da
feira, à espera do gerifalte.
Assim Deus me salve se al-
guma hora eu ouvi a tamanqui-
nha dela chapejar no escuro,
ou o padre saltar os quintais
como diziam que vinha topar
as amásias. Pois malhava-lhe
dois tiros, ainda que eu seja
cristäo-velho e confessado e
mais de uma vez ouvir dizer
que se näo salva do inferno
quem toca em ungido de Deus.
Que ma pregassem nas meninas
dos olhos!? Näo era fácil,
trazendo-os eu täo abertos
como gato que anda à caça.
Se se porquearam juntos, que
a terra lhes seja leve, já
ambos deram contas ao Alto
Juiz dos desgarros da luxú-
ria.
Lá a avaria do Bentinho
foi certa; negá-lo seria ne-
gar a luz do sol, mas ele aí
anda tombado sobre a ilharga,
como perdigäo que caiu de
asa, a atestar que ninguém
mas faz que näo entale o ra-
bo.
Ela era minha neta e a
.he 124-25
afronta mais com os pais
:,
.he 125
do que comigo, mas já que näo
varriam o agravo, tomei eu a
cargo fazê-lo.
Marquei-o, como fazem os
notários, a ferro frio, e pa-
ra onde vá, tombado sobre a
direita, vinte e nove trinta,
vinte e nove trinta, vai con-
tando o troco da velhacada.
Deus me perdoe, mais valia
tê-lo despachado para o outro
mundo, que livraria muita
criatura de ir fazer tijolo
antes do tempo, pois já ouvi
ao nosso doutor que só ele
mata mais povo com as mezi-
nhas e xaropadas que todas as
pestes juntas. Digam-me de-
pois se, às vezes, a faqui-
nha, caindo uma polegada mais
fundo, ou ladeando um nadinha
para órgäo melindroso näo fa-
zia obra de acerto?!
Pois como lhes ia contan-
do, o Bentinho, barbeiro
nada mal afreguesado, com as
barbas de Barrelas ao domin-
go, e as dos Alhais sábado
de tarde, nas artes da medi-
cina mestre ouvido e chamado
por toda a Serra, pôs-se a
traquejar a minha neta Luí-
sa, mocinha airosa de corpo,
mas cabeça de alvéloa, amiga
de luxar, folgar e doidejar.
Quem me estorvou a mim de
lhe dar o correctivo? Ou os
pais porque lho näo de-
ram...?! Näo sabia eu que
menina, vinha, peral e faval
säo maus de guardar? Fechei
os olhos, é verdade, julgando
que o rapazola andava para o
bom fim. Inda que o ofício
de curandeiro, paredes meias
com o de corpo-aberto, me
desse volta ao estômago, pen-
sei que isto de homens é fa-
zenda que anda cara, e o ser
:,
.he 126
muito debiqueiro neste negó-
cio às vezes desata mal.
Vossorias todos conheceram
aquele mariola de ginjeira:
baixo, redondete, falas do-
ces, carinha de pêro camoês,
bom cantador de fados, ham?!
Com aquela cara e as mogan-
guices, era o traste o ai-je-
sus das mulheres.
Vai senäo quando, chegou-
-me aos ouvidos que o badame-
co se gabava de ter logrado a
Luísa e jurar e trejurar que
outros intuitos näo acalenta-
ra que palpar-lhe o amojo e
levá-la ao calvário. "Tanto
ladras, rosnei com os botöes,
que trincas a língua". Botei
inquiriçöes, era verdade. O
maninelo encontrava-se com a
moça no palheiro que o pai
tinha para a Tomadia; eu
próprio a vi sair muito ron-
ceira, cautelosa, com a ponta
do xaile a disfarçar o rosto,
.he 126-27
que era um espelho de formo-
sura.
Veio a festa do mártir S.
Sebastiäo, ao tempo das mais
faladas pelas redondezas, que
dava com a velha Barrelas,
durante três dias, nas panta-
nas do gozo. A gente confes-
sava-se e comungava e, depois
com a alma limpa como quando
se toma uma dessas boticadas
que aliviam o corpo dos maus
humores e o deixam livre e
lesto para os grandes apeti-
tes, era comer, beber, pande-
gar; mediante a quota de dez
tostöes quem quer podia sen-
tar-se ao almoço e jantar no
dia da festa, e à ceia, com
os créscimos, no dia seguin-
te. Quando era mocinho, nun-
ca cheguei bem a perceber
:,
.he 127
porque havia aquele intervalo
no regabofe, jantar num dia,
ceia noutro; supunha eu que
fosse trégua à digestäo, que
naquele dia se tornava tarefa
de respeito. Näo senhores;
era partido deixado à dentuça
dos mesários que tinham a
vara em punho. Certo era ha-
ver naquela data enchente
forte de vitela, cabritos e
peixe, em que o nosso Paiva
era abundoso; o vinho corria
como de fonte farta, e as
zanguizarras da terra e de
fora da terra batiam o ter-
reiro, cada qual mais assa-
nhada. Ninguém que se pre-
zasse faltava com a sua fin-
ta, certo que lhe ficaria
forra com tirar o ventre de
misérias e empaturrar-se para
uma semana inteira.
Pois, esse ano, sendo de
capricho os mordomos, as fun-
çöes tomaram vulto como näo
havia memória entre os mais
entrados na idade. Confes-
sou-se o marrano e o cristäo,
.he 127-28
ouviu-se a palavra de Deus
bem trombetada pelo nosso
reitor que, era ele querer,
fazia chorar as pedras. Foi
nesse ano, por sinal, que
houve na igreja o brequefesta
engraçado de que ainda hoje
se fala e falará na vida dos
nossos netos. O nosso abade
era, como está sabido, um
pregador de fama e por ali
fora, no púlpito, näo se en-
ganava na carreira, tratas-
se-se das *Lágrimas de S.
Pedro* ou do *Arrependimen-
to da Madalena*, tanto mais
que é só mudar os nomes aos
bois, e ele tinha aquilo mais
batido e rebatido do que anda
o burel no traseiro ali do
Bisagra,
:,
.he 128
que näo pode estar um momento
sem que se acaçape por terra,
se näo pilha banco, no chäo e
até na ponta dum chavelho. O
sermäozinho na boca dele pa-
recia a água na bica da fon-
te: *Era sina na sola e na
lua e nas telas* e já estava
na *ave-maria gracia plena* e
bota para cá uma libra que
por aqui me vou. Pois daque-
la feita o pregador de fama
engasgou-se. Mais tarde ex-
plicou ele que tinha bebido
um dedal de aguardente por
mor do frio e se lhe toldara
momentaneamente o juízo. O
facto é que se engasgou e näo
passava disto: *Sebastiäo,
Sebastiäo, miraculoso Se-
bastiäo! Ó Sebastiäo, santo
e mártir! Sebastiäo, meu S.
Sebastiäo!* E mais Sebas-
tiäo para aqui, mais Sebas-
tiäo para ali, o ladräo do
Meses que era o juiz da
igreja e como vocês sabem se
chama Sebastiäo -- mal em-
pregado nome num safardana e
desbocado daqueles -- sai de-
.he 128-29
trás da coluna e exclama:
-- Aqui estou, senhor aba-
de. Que quer ao Sebastiäo?
E vai o nosso abade, no
meio da gargalhada geral, em
vez de cair do púlpito abaixo
ou atirar com um diabo à ca-
beça do entremetido, que lhe
responde:
-- Näo é contigo, minha
besta quadrada, é com o valo-
roso legionário que nas hos-
tes do cruel Diocleciano
derramou o sangue pela fé de
Cristo!...
Por ali fora lá se meteu a
caminho e, dá-lhe que dá-lhe,
näo tardou que o templo com o
alarido,
:,
.he 129
os choros, a fungadela das
beatas lembrasse uma caravela
que vai ao fundo. Olá! Ao
fim da festividade, Barrelas
em peso abancou ao ágape, co-
mo o Manuel da Costa Pe-
reira, boticário e miguelista
dos quatro costados, lhe cha-
mava em língua de padre-mes-
tre, para o qual todas as ca-
sas emprestavam loiça, gar-
fos, e queixais. Durou os
dois dias da praxe a grande
reinaçäo, e eu com alma mais
negra do que se me tivessem
derramado nela pez a ferver.
Foi na ceia de segunda que
me decidi. Na véspera havia
tomado o corpo de Nosso Se-
nhor Jesus Cristo, que mor-
reu para nos remir e salvar,
e eu näo queria fugir à devo-
çäo e bondade daquela benta
hora.
A minha vontade seria vin-
gar-me do sedutor cristämen-
te, santamente, se possível
fosse com a faca benzida pelo
Padre Santo de Roma. Fiz
o que pude. E à hora de dar
graças, quando todos a arro-
tar, de pé, cabeça descoberta
.he 129-30
e mäos erguidas, responsavam
os seus mortos, no rosário
sem fim das rezas, encomendei
o sujador das minhas barbas:
-- Por alma de algum ir-
mäo, agora aqui ao nosso lado
e, quem sabe lá, dentro em
ponco a dar contas ao Cria-
dor, padre-nosso e ave-ma-
ria...
Rezaram todos, sem passar
a nenhum tolo pela cabeça que
rezavam por um condenado.
Deixá-lo, o ladräo já levava
lastro para S. Pedro. À
porta
:,
.he 130
esperei-o, cosido com a pare-
de, a coberto da noite que de
negra täo bem escondia o jus-
to como o pecador.
..............................
Que lhe saíram do odre,
pelos furos, pedaços de vite-
la por digerir?! Näo sei.
Acolhi-me à minha fazenda do
Sabugal com a reiuna bem es-
corvada. Lá foram os cabos
de ordens até a cancela.
-- Dê-se à prisäo, tio
Malhadinhas, que näo há juiz
que o condene. Vomecê lavou
a sua cara honrada...
-- Dizeis bem, rapazes,
dizeis bem. Lavei a minha
cara borrada. Borrou-ma
aquele cäo. Näo havia de pa-
gar a ensaboadela? Pois é,
lavei a cara borrada. Agora,
vós, se estais fartos de vi-
ver, chegai-vos cá!
Rodaram para nunca mais.
Voltei à minha lida, voltou
o Bentinho à sua, matar gen-
te, mas só dobados muitos me-
ses, descaído sobre o flanco,
como quem ladeou da cova.
Grande piranga, tinha os de-
mónios todos do inferno a
responsar-lhe o coiräo!

.he 131
IX

Näo há trabalho sem traba-


lhos, é täo certo como uma
Escritura, mas deixasse-me
hoje o Pai do Céu tornar à
minha mocidade, que eu pegava
logo no meu ofício e näo dou-
tro, inda que fosse o do nos-
so abade, que leva a vidinha
a cantar, ou o do Heitor bo-
ticário, que com uma pipa de
água fabrica um lagar de di-
nheiro. Morte mate, se pega-
va doutro!
Muitas vezes ouvi dizer a
Fr. Joaquim das Sete Do-
res... Vossorias já näo co-
nheceram, era irmäo da Ordem
de S. Domingos e andava ao
peditório de terra em terra
para o colégio de fradinhos
da Fraga, com um rucilho
tropiqueiro. Ia por aqui, ia
por ali, e convidava as boas
donas, a troco de chouriço,
.he 131-32
naco de presunto, cereais ou
fruta, com ossos dos santos
mártires, lascas do Santo
Lenho, pingos de água do
Jordäo, ou pó para matar as
pulgas, e já me näo lembra
que mais destes santos ingre-
dientes. Pois a Fr. Joa-
quim das Sete Dores, muitas
vezes ouvi dizer: Arrieiro
no tarde chora por arrieiro,
nanja por cavaleiro. Só ago-
ra, mais dia menos dia com o
Viático a
:,
.he 132
badalar-me à porta, é que vim
ao fundamento de tal senten-
ça. Choro pela minha vida de
almocreve, e dessem-me hoje o
machinho, tornassem-me as mi-
nhas pernas e a boa disposi-
çäo, com dias grandes ou noi-
tes sem fim, näo se furtava o
filho de meu pai a recomeçar
o fadário por Franças e
Araganças. Mas ao tempo o
meu pensar era outro, e tinha
às vezes batidas com o frade
mais puxadas que léguas das
velhas.
Uma vez, lembra-me como se
fosse ontem, vinha eu das
Antas, aconteceu-me tropeçar
com ele na Serra da Lapa,
botados ambos lá de baixo do
Vale do Távora. Vossorias
conhecem aquelas serranias
onde Nossa Senhora apareceu
a uma pastorinha de gado, que
era muda...?! Se näo conhe-
cem, eu lhes digo: desertos
mais danados, fraga sobre
fraga, penedos sobre penedos,
postos ali para purgatório do
passageiro, näo quero que
haja debaixo da rosa do sol.
Caía neve, uma nevasca,
Deus nos acuda, täo baça e
emaçarocada que o céu era
mais tapado que um capuz, e
ceguinha de gota-serena a
terra inteira. Apagara-se de
.he 132-33
todo o lume do caminho, e eu
larguei corda bamba ao macho
que, embora pouco trilhado
daquela rota, melhor a palpi-
taria que eu. Também näo ti-
nha outro remédio. Abrir os
olhos que valia?! Que vales-
se, o cäo do vento, que bufa-
va de frente, chapava-me ne-
les tais manchocas de neve
que näo havia remédio senäo
fechá-los.
:,
.he 133
Eu praguejava como é pró-
prio de gente pouco paciente
e nada habituada a rezar:
-- Raios partam a vida,
näo me fazer minha mäe fidal-
go! Se mil diabos me levas-
sem maila cadela da sorte!...
-- Companheiro dos meus
pecados -- disse-me entäo
Fr. Joaquim das Sete Do-
res, de riba da azémola, to-
que, toque, atrás de mim, täo
enfarinhado que só a coca do
capuz guardava um arzinho de
negro -- näo blasfemes! Olha
que Deus está a ouvir-nos e,
se quiser, pode muito bem se-
pultar-nos debaixo da neve
como sepultou os egipcianos
no mar das Arábias. Querias
ser fidalgo, ham?! Näo que-
rias mais nada...? Tu näo
sabes o que queres nem sabes
o que dizes. Pöe lá na tua
que as vidas näo säo piores
nem melhores, elha por elha.
Säo vida e basta!
-- Em boa hora sai Vossa
Paternidade com o sermonário
-- respondi eu. -- Entäo a
condiçäo dos letrados, de ca-
deira, a cardar os desavin-
dos; a dos padres -- e perdoe
Vossa Paternidade se lhe
estou em casa -- a comer os
dízimos e, lá de quando em
quando, a louvar no Bre-
viário ao criador dos melros,
podem comparar-se a esta sa-
.he 133-34
fadeza de ofício, raçoar de
seco, dormir quando Deus
quer, às vezes torricado do
sol, outras molhando pingan-
do, como desta feita, que até
já levo uma lagoa no umbigo?!
Outra porta, que aqui mora
um surdo!
:,
.he 134
-- António -- tornava ele,
tangendo rijo a bestiaga para
aparceirar com o machinho,
que era andeiro -- o teu en-
tendimento anda mal ensinado.
O bicho homem, quem quer que
seja e o quer que faça, tem
sempre consigo a mesma peço-
nha. E esta peçonha sabes o
que é? É o nunca estar con-
tente com a sua sorte. Quan-
to mais tem mais apetece, de-
seja e torna a desejar para
logo ou amanhä aborrecer.
Como näo há-de cansar-se da
vida nesta alcatruzada de
aborrecer e desejar?
-- Assim será, meu irmäo.
Agora cá eu, franqueza,
franquezinha, antes queria
ser o fidalgo da quinta da
Ucha, boa brasa aos pés,
bons bifes à manja, boas fê-
meas para o gozo, que o pi-
lorda que aqui vai por baixo
duma nevasca, Anjo Bento,
que até se me afigura que deu
foeira no céu.
-- Sim, lá horas por horas
até Cristo as trocaria e
mais era Deus, a julgar pe-
las palavras ditas no Horto
das Oliveiras: *Pai, se é
possível, passai de mim este
cálice!* Que queres, a fruta
mais saborosa tem caroço no
meio. Mas, lá vida por vida,
näo vale a pena apeguilhar.
Se é verdade que aonde oiro
fala, tudo se cala, o fidal-
go, que tu tanto invejas, näo
será uma vez nem duas que, ao
ver-te seguir de rotina, ra-
.he 134-35
beiro pelos ombros, a assobi-
ar descuidado diante do ma-
cho, näo sinta ganas de te
estar na pele. A neve que
agora te aflige é para ele o
enfado que o toma,
:,
.he 135
quando mal se precata, de sua
cortesania, säo os cuidados
da fazenda que estäo ferrados
nele a comer como vacas no
toro dos velhos castanheiros,
sabes, aqueles cogumelos gor-
dos da grandura dum chapéu.
Säo ainda os percalços da
honra que näo é coisa para
graças. Podes crer, caem ne-
vadas em todas as vidas e em
todas as condiçöes, tanto na
do homem de leis como na do
rico ou do frade. Sabes o
que é preciso ter? Paciên-
cia. Paciência, meu homem!
-- Paciência tenho e de
mais. Ainda ontem um banda-
lho me chamou ladräo e näo
lhe saquei as tripas ao sol.
-- Fizeste bem. Dos so-
fredores é o reino dos céus.
-- Entäo tenho um lugar à
mäo direita de Deus Padre.
-- Näo digo que näo e, já
que essa virtude te näo fal-
ta, vai mais devagar. O teu
macho vai täo depressa que
nem que levasse fogo ao rabo.
Modera, homem, senäo o meu
burrinho näo aguenta.
Sofreei o macho. Caía
neve, se Deus a dava, em
rala, em grandes flocos, às
mancheias, assim à tola, como
gräo lançado a um campo por
semeador arrenegado ou pouco
experiente de mäo. Nascera a
Lua, mas que lua!? Uma cara
bochechuda de estalajadeira à
espreita, lá do fundo da ca-
sa, para o estendedoiro da
sua roupa branca. O mundo
mais näo era que bragal pu-
ríssimo, bragal que, batido
.he 135-36
às vezes por uma refega
:,
.he 136
de vento, alevantava para
deixar a nu pedaçöes de terra
e do mato, sujos e negros co-
mo montes de esterco mal co-
bertos pela vessada.
Näo era desta neve que do-
ba mansa do céu e parece,
bailando, o esflorar das pe-
reiras na Primavera; era a
neve *ladroa* -- como para aí
lhe chamam -- a neve das mos-
cas brancas que voltejam, gi-
ram, rodopiam, vêm de trás,
de diante, de baixo, dos la-
dos, metem-se por todas as
fisgas e grelhas à busca de
coiro vivo em que ferrar.
Soprava-lhes o nordeste, o
grande bufador, e era vê-las
de asas ligeiras, enchendo o
ceu, a voar, a voar umas
atrás das outras, ora muito
juntas, ora desenrodilhadas,
num vira sem fim.
.he 136-37
-- Homem, näo corras! --
rogou-me o frade segunda vez.
-- Toque-lhe -- respondi.
-- O macho ainda vai mais
insofrido do que eu.
Raio dum raio! Os pinhei-
ros tinham ar zaranza, malu-
co, como se fossem todos eles
os pinheiros que se levantam
na nossa cabeça quando se
está a delirar, nunca vistos
ou sonhados. Perdidos pelos
cerros, lembravam, uns, gran-
des rocas barrigudas, carre-
gadas com um linho mal asse-
dado; outros, as forcas, em
que ouvi falar, com justiça-
dos ao penduräo. Olhava para
eles e pareciam-me uma grande
maltesia que estacasse naque-
la mesma hora a espiar-nos a
derrota, a firmar-se em nos-
sas pcssoas, como se as
:,
.he 137
trouxas brancas que pareciam
levar à cabeça fossem trouxas
roubadas e que nós lhes fôs-
semos a tirar. Realmente
passávamos, e eles tinham o
jeito também de romper mar-
cha, já resolutos, mas len-
tos, derreados, naquela birra
ora de seguir à nossa ilharga
ora de trepar os montes.
Grande bruxa que era a neve!
-- Toque-lhe, Sr. Frei
Joaquim! -- fartava-me eu de
gritar. -- Toque-lhe, que
morremos ensocados na neve, e
näo há alma penada que nos
acuda.
De verdade, serra fora,
por aqueles altos carrapitos,
näo se ouvia rumor de viven-
te, pio sequer de mocho ou
coruja, corneteiros de má
morte. Fugira tudo, aves e
animais para abrigos e lapas,
gente e rebanhos para povos e
corujeiras. Silêncio e neve!
Silêncio e neve, de mäos da-
das, a fazer do mundo um mau-
.he 137-38
soléu -- ouvia rosnar a Fr.
Joaquim, e sentença foi que,
por muito batida, nunca mais
se me apagou da memória.
Andando, andando, escure-
ceu-nos, e já ia alta a Lua,
uma Lua que o mais do tempo
se näo via e, quando se via,
lembrava uma candeia de azei-
te a alumiar um casaräo de-
samparado. Eu ia gelado até
a alma e pegara-me a soneira,
como se os espíritos me fos-
sem de todo a abandonar.
Dormia, sonhava, delirava,
sei lá! Consoante os vaga-
lhöes da neve, diante de mim
umas vezes trancava-se um
muro fosco, formidável, e eu
me dizia: homem, por aqui näo
há passo. Outras
:,
.he 138
vezes, os longes recuavam,
recuavam através da poalha
branca, täo bem cirandada ao
luar, como se um mar se es-
tendesse por ali fora, até
cascos de rolha, sem ruga,
nem onda. Näo era raro ainda
que um penedal de mil cris-
tas, de mil ravinas, se le-
vantasse repentinamente à
beira do caminho; depois,
esse penedal avançava, rolava
ao meu encontro e derretia-
-se. Derretia-se, e logo na
brancura rasa se levantava
outro, mais deslumbrante e
medonho. E, formando-se e
abatendo-se por milagre, ia
zombando dos meus olhos.
Chocando assim mil pesade-
los, mal me sentindo levado,
buzinou-me aos ouvidos um vo-
zeiräo terrível como dizem
que há-de ser a trombeta do
Vale de Josafat:
-- António! António!
Diante de mim, atravessa-
va-se uma alma penada täo
brusca e desconforme que, em-
bora resoluto como sou, den-
.he 138-39
tro das entranhas senti ber-
rar: ai Jesus! Mas o que
era estava escanchado num ju-
mento e o jumento sacudia a
neve das orelhas e levantava
para o macho olhos muito pa-
cíficos e tristes, modo nos
brutos de trocar cumprimentos
ou pedir consolaçäo. Depois,
uma cara nédia e gordalhuda
mostrou-se e caí em mim. Re-
loucara. Era o frade, o bur-
ro, a neve, a serra, esperta-
dos do torpor que me pegou...
Mas Fr. Joaquim estendia o
braço e a sua voz tremia:
-- Näo vês, António.. ?
Näo vês?!...
:,
.he 139
Sentado sobre os quadris,
à beirinha do caminho, estava
um lobo. Tinha o topete co-
berto de neve, neve que aca-
mava à maneira de solidéu dum
bispo, e era sinal de que as-
sentara ali o pouso de caça
ou de espreita depois de nos
farejar de longe. Luziam-lhe
as duas lanternas dos olhos,
e, desconfiado eu que o bicho
näo trouxesse roga, digo para
o frade:
-- Berre Vossa Paterni-
dade comigo à côa!
E ambos a um tempo, ele
com a ronca habituada aos la-
tins, eu com toda a força dos
pulmöes, que investiam com
uma botelha de meia canada e
lhe arrancavam as tripas dum
sorvo, gritámos:
-- À côa!... À côa!...
Santa Maria, até se me
puseram os cabelos em pé ao
som do nosso berro, ali no
meio do ermo! Mas aquilo foi
também um esticäo que demos à
febra, e continuámos mais
animosos a esporteirar. O
mariola do bicho nem sequer
se mexeu, mas, näo sei por-
quê, o escuro, a toda a roda,
.he 139-40
mais se chegou para nós e, no
anel de claridade que ia
transportando-se à medida do
nosso passo, a neve bailava
como uma bêbada!
-- Toque cá para diante,
homem! -- instei com o frade.
-- Deu-lhe para rezar aí o
Breviário.. ?!
Picou o rucilho e, vai se-
näo quando, o lobo levanta,
tepe-tepe, mete por diante
das cavalgaduras e, chegado
ao oiteirinho, desata a ui-
var. Uivou, uivou contra o
vento, o focinho muito esgal-
gado erguido
:,
.he 140
para o céu, aqueles uivos que
parecem vagidos de criança
doentinha a quem estäo a bu-
lir no axe. Um uivo que nem
uma sovela a furar. Os se-
nhores riem-se? Também eu
agora me rio do meu cagaço.
Pois creiam que de través
para nós, especada nas quatro
patas, a fera punha respeito.
-- Companheiro -- proferiu
o frade, puxando das contas
-- encomendemo-nos a Deus.
-- Deixe o rosário em paz
-- respondi -- e, se traz
faca ou outra arma, saque
dela, que vem sobre nós uma
alcateia que nem os pés nos
poupa nos sapatos!
-- Será o que Deus qui-
ser! Cumpra-se a sua divina
vontade!
Escurentava agora o luar a
pontos de a neve parecer ao
largo cinza e mais cinza que
caía. Mas, diante dos olhos,
os flocos faiscavam e bati-
am-nos nas ventas rijos como
areia.
O lobo, quando chegámos ao
cabeço distante uma centena
de passos do sítio em que
aparecera, calou a serenata.
E nós rompemos adiante, como
.he 140-41
se näo déssemos conta de sen-
tinela täo mal-intencionada.
Ele mudo e quedo como um pe-
nedo.
-- Hum -- maluquei com os
meus botöes -- estás à espera
dos colegas...
E, se bem o pensei, melhor
assucedeu. Obra de cinco mi-
nutos adiante, saem-nos qua-
tro lobos pelas costas, mas
que velhacos! Muito mansar-
röes, passo
:,
.he 141
descosido, focinho por terra,
como pessoas näo-te-rales que
väo ao seu destino. Quatro
feras de vulto para esposte-
jar um vitelo meio touro e
ficar com fome.
-- À côa, Sr. Fr.
Joaquim, à côa! -- exclamei
eu, virando-me para o frade.
E com toda a alma berrá-
mos:
-- À côa!... À côa!...
Os birbantes, entäo, esta-
caram um momento, menos com
ar de espavoridos pela nossa
manha, que admirados com a
malcriadez.
-- Novamente, Sr. Fr.
Joaquim...
-- À côa!... À côa!...
Caramba, o grito e atrás
do grito o eco lá iam céu
fora a esparvar aves e ani-
maizinhos monteses, com mais
afliçäo que sinos a rebate.
E a neve mais se encarniçava
contra nós, fustigada pelo
vento. Nas suas reviravoltas
e sarabandas era mais endemo-
ninhada que os burburinhos
que se levantam, quando mal
se pensa, de uma eira, e pöem
palha, gräo, praganal numa
polvorosa.
Os lobos formaram com todo
o descaro à nossa banda. Nem
uma patrulha. O luar era
mortiço, mas eu bem lhes via
.he 141-42
o lombo saraivado e pelo jogo
das pernas como se iam man-
dando connosco a compasso.
Quando anoiteceu de todo,
os maganos, sempre leva que
leva à nossa mäo, chegaram-se
para mais
:,
.he 142
perto. Eu quase os podia
chuçar com o estribo; mas que
ganhava? Todo o meu zelo era
levar os olhos neles que já
se me afigurava tolherem-se
näo sei por que resto de co-
bardia de nos saltar. O fra-
de vinha atrás de mim a bater
os queixais de medo e, acre-
ditem Vossorias se quiserem,
täo forte batiam que os enge-
nhos que se armam nos milhos
contra os gaios näo fariam
maior estreloiçada.
-- Passe para a minha ban-
da -- disse-lhe eu, que já me
parecera ver um dos moinan-
tes, o mais alentado, esticar
os jarretes, com mentes de
pular à garupa do burrico.
O frade lá se ajeitou à
esquerda, täo cosido contra
mim que cheguei a supor que
animal e frade queriam montar
no machito. Ouvi-lhe gemer:
-- É hoje o nosso último
dia!
-- Vossa Paternidade näo
traz nada... navalha, ferro,
pau que seja?
-- Nada.
-- Mas que é isso que há
um bocado vinha a tilintar
nos alforges?
-- É um turíbulo; é o tu-
ríbulo da igreja das Arnas,
que trago para consertar.
-- Dê-mo cá...
-- Hem?
-- Dê-mo cá.. .Depressa,
homem!
O frade passou-me o turí-
bulo para as mäos,
:,
.he 143
atravessei a faca nos dentes,
e aí me pus a tocar ferri-
nhos, a bimbalhar, a fazer
uma matinada que nem camba-
lheiras arrastadas por um ca-
valo! E, querem Vossorias
saber, os lobos meteram o
rabo entre as pernas e desar-
voraram. Certo, assim Deus
me salve!
Ouvimo-los ainda uivar pa-
ra a cernelha do morro, mas
näo lhes tornámos a pôr a
vista em cima, nem as bestas
deram sinal de que nos fossem
a acompanhar. O frade erguia
graças a Deus e berrava:
-- Milagre! Milagre!
Aos parvos aparecem os
santos. Milagre foi, nanja
por o turíbulo ser bento e
servir nas cerimónias divi-
nas, mas trazê-lo ali o fra-
de, visto que os lobos se as-
sarapantam facilmente com o
ruído dos metais e se se pe-
.he 143-44
tisca fogo. Por desgraça, só
em rapaz fui fumador, e nem
sequer trazia lumes comigo.
Dizia o frade, depois, que
isto de afugentar os lobos
com o cigarro aceso era cren-
ça sem fundamento; sempre as-
sim o ouvi dizer, e ele a
teimar e eu a petar, fomos
andando caminho.
Mas a nevada continuava a
subir, já as bestas enterra-
vam as pernas até a joga e
näo se via palmo diante de
nós. E íamos alagados por
dentro, vestidos de alva por
fora, e o frade com o capuz
erguido, os olhos a luzir, as
mäos encabadas nos canhöes da
cogula e o rosário ao pendu-
räo, até me lembrava um fan-
tasma, desses que levantam
das campas e, nas
:,
.he 144
horas em que Deus ou Diabo
lhes däo corda, vêm vagar
pelo mundo.
As bestas emperravam, mor-
mente o jumentinho, que, so-
bre andar mal pensado e esta-
fado de jornadear, trazia
além dos alforges, cheios com
o peditório, o pote de enxún-
dias do fradalhäo. E näo se
via para que erguer olhos,
menos o luaceiro da neve do-
bando sempre, fraldejando sua
serguilha ruça, como se nos
quisesse falsear o passo da-
queles montes.
-- António -- disse-me ele
-- rezemos a Nossa Senhora
para que nos leve a porto de
salvamento.
Engrolámos padres-nossos e
ave-marias uns atrás dos ou-
tros, pudera! se queres
aprender a orar, entra no
mar. Ao cabo, tornou-me o
frade:
-- Tu conheces bem o cami-
nho?
.he 144-45
-- Conheço, mas é a mesma
coisa que andar por terras
nunca vistas nem pisadas.
Com esta nevasca e este es-
curo, como quer Vossa Pa-
ternidade que eu descubra o
norte? Näo se vê nada por
onde um desgarrado possa ori-
entar-se. Vamos à aventura
de Nosso Senhor.
-- E näo vamos mal, que
näo há segundo guia para os
cegos. Mas queres tu saber:
o meu asno conhece estes an-
durriais melhor que à manje-
doira do convento, onde há
dez anos é burro. Se nós o
deitássemos adiante?
-- Toque lá Vossa Pater-
nidade.
:,
.he 145
-- Sim, mas tu bem sabes
que, só de me sentir sobre o
espinhaço, há-de lhe faltar a
liberdade de meter por onde
lhe pede a cachimónia. É
sendeiro e basta.
-- Entäo?
-- Olha, além de se sentir
dirigido e se näo dirigir,
vai estafadinho como vês.
Leva-me a mim que pcso seis
arrobas, afora os pecados, e
carrega com os alforges onde
as boas almas meteram com que
entreter a debilidade de meus
irmäos em S. Domingos, ba-
tatas, cebolinhas, alhos, um
pouco de carne e näo sei
quantos salpicöes de lombo.
Ora tu precisas do meu burro
que te guie nas duas escuri-
döes que säo a neve e a noi-
te. Queres tu pagar-lhe o
serviço que poderá prestar-
-nos?
-- Quer Vossa Paterni-
dade que leve o burro ao
colo?
-- Homem, näo.
-- Que lhe compre uma vés-
tia...?
.he 145-46
-- Véstias tem para ele e
para ti...
-- Que lhe mande uma car-
rada de feno?
-- Näo seria mau, mas tam-
bém näo é isso. Ouve: o teu
machinho é forte, é pimpäo, e
vai sem carga. Aceitas le-
var-me na garupa, e tocamos o
sendeiro para a frente, que
ele guia-nos?...
Dito e feito. O frade es-
carranchou-se na albarda
atrás de mim e rompemos como
foi combinado.
:,
.he 146
O burro lá ia na dianteira
trupe, trupe, de tempos a
tempos avisado pela ponta da
minha arreata que a sua obri-
gaçäo era seguir lesto e rota
certa.
Foi entäo, investindo con-
tra a neve, cada vez mais la-
droa, que o frade, amigo de
falar e contar anedotas, me
pregou um sermäo que nunca
mais esqueci.
-- Acredita -- dizia ele
-- quando fores velho e que os
netos te engatinhem pelas
pernas, hás-de ter saudades
destes tempos, com invernos
que arrastam as pontes, neves
que cegam a gente, fome,
sede, sono, pelos caminhos
compridos dos viandantes.
Oh, se hás-de ter! E se pu-
desses voltar atrás näo esco-
lherias outra vida, que lá
diz o provérbio: arrieiro no
tarde chora por arrieiro,
nanja por cavaleiro.
E tinha razäo o raio do
frade.
Mas, como lhes ia contan-
do, deitámos o burro a bater
caminho e o finório do animal
lá acabou por acertar. Che-
gámos ao convento mais mortos
que vivos, gelados até a alma
à força de andar léguas e lé-
.he 146-47
guas perdidos na neve.
Os frades aboletaram-me no
convento e deram-me uma tige-
la de mel e leite que me pôs
fino para a jornada. Mas só
consentiram que abalasse ao
outro dia quando o sol come-
çava a fundir o grande neväo,
que tinha derrotado as matas
e apagado caminhos e atalhos
em logradoiros e ermos.
Fr. Joaquim das Sete
Dores veio ter comigo
:,
.he 147
no instante em que estava de
pé no estribo para desandar e
disse-me:
-- Pega: isto é um ossinho
do braço de S. Joäo de
Deus, que foi o anjo da pa-
ciência; este cabelo, um pe-
linho da barba de S. Teo-
tónio, de muito préstimo nas
dores repentinas. Trá-los ao
pescoço e verás que nunca
mais entra contigo o Porco-
-Sujo, nem nas jornadas tens
maus encontros.
Pedi-lhe a bênçäo e lar-
guei.
O monte lembrava um lençol
esburacado. Se a neve derre-
tera aqui, conservava-se ema-
çarocada além, à volta de
sargaços e tojeiras e onde
quer que houvesse farfalha.
O sol, às vezes, vinha uma
nuvem e cobria-se. Mas ele
voltava a correr alegre e
ruivo pelo mundo, mais bonito
que o novilho duma vaca rati-
nha, ainda mamäo, a pinchar
no prado. As águas desciam
dos altos tagarelas como nun-
ca, e pelas eiras os passari-
nhos debicavam, muito gru-
lhas, as espigas esbanjadas
pelos palheireiros. Havia
nuvens e mais nuvens no céu,
brancas, rebolonas, em ban-
dos. Tocava-as um ventinho
repontäo, e davam ideia de
.he 147-48
belros de ovelha carmeados,
antes de enfardar. O mundo
era como Lázaro ao atirar
com a mortalha aos quintos.
Por toda a parte, caminhos,
matos e árvores, a neve der-
retia. Pinheiros e carvalhos
se do lado do poente continu-
avam cabisbaixos e oprimidos
pelo
:,
.he 148
seu peso, à outra banda er-
guiam já ramos desembaraça-
dos. A morte branca rodara
por esta vez.
Acertando o rumo pelos ca-
beços, que viravam ao esca-
veirado natural, e pelo can-
tar dos galos nos poviléus,
lá consegui endireitar para a
minha terra.
As nóminas pô-las Brízida
ao peito, presas por um nega-
lho, e verdade seja que, se
nunca tivera ruins partos,
täo-pouco os teve a partir
dessa data, nem lhe faltou
leite para os meninos. Mas
de tudo, o que me näo esque-
ceu foi aquela do *arrieiro
no tarde chora por arrieiro,
nanja por cavaleiro*.
Sim, senhores, o frade me-
tia num chinelo ao mais es-
pertalhäo dos doutores, que
de abades näo se fala.

.he 149

Agora, m'amigos, estou ca-


duco, nem para calço de pane-
la tenho préstimo. À espera
que me atem os pés, vou tra-
tando do bem-d'alma, pois
coisa täo melindrosa como é a
vida eterna vale mais cui-
dá-la por nossas mäos que
confiá-la a testamenteiros.
Pena é ter eu um rebanho de
filhos que me vedem de dis-
tribuir por pobres e vagabun-
dos os bens granjeados com o
honrado suor do meu rosto;
pena é, mas näo é lá em casa
que se nega esmola para as
festas e promessas aos san-
tos. Metade vai-se no papo
dos pardalöes, quando näo é
todo... Mas quem pede preci-
sa, e a fé é que nos salva.
Arde uma fornada de päo!
Acabou-se, é sabido mordomos
.he 149-50
e penitentes na quadra das
arcas cheias serem täo bastos
pelas portas como as moscas
na tenda ali do Penetra.
Pois ando compondo o bem-
-d'alma e quem me queira en-
contrar vá à igreja, suba até
o altar-mor, e onde vir um
homem dobrado dois degraus
abaixo do oficiante a bater
no peito e a chorar os seus
pecados e os do mundo, sou
eu. Lá sou certo em ofícios
e novenas e, à santa missa se
falho, é quando o sino que
:,
.he 150
está rachado se näo faz ouvir
das minhas orelhas que andam
surdas. Assim conto alcançar
o céu, ajudado da graça e com
a intercessäo do mártir S.
Sebastiäo, nosso bento pa-
droeiro, a quem fiz há quatro
anos, quando servi de mordo-
mo, a festa de arromba que
Vossorias sabem. Cäes de
Nisa, vieram duas músicas,
dois fogueteiros, e com a
fartura das comezainas estoi-
rou, por mais que me digam, o
pai Henriques de indigestäo.
Também me entrou na algibei-
ra, mas embora, morra um ho-
mem e fique fama! E fama fi-
cou, que nas funçöes que tem
havido näo é uma só boca nem
duas a dizer:
-- Mordomo como o tio
Malhadinhas, nem pintado!
Pôs o ramo para nunca mais!
Bem haja o povo, que é bem
lembrado e guarda fidelidade
à velha Barrelas que, por
voz pouco delicada -- ainda
que exprima asseio, em nada
malcheirosa como Porcalhota
e Lava-Rabos -- crismaram
neste frescal e ajudengado
nome de Vila Nova do Pai-
va. Mas com o nome de Bar-
relas nasceu, com o nome de
Barrelas há-de morrer, se é
.he 150-51
certo que as vilas têm de
passar, como rezam os livros
das Babilónias afamadas.
Ora em preparar o meu des-
canso eterno vou consumindo a
última cera do pavio. Que
armei em beato? Näo, senho-
res, sou cristäo e já vejo a
sombra negra que a minha cova
está fazendo, de goela aber-
ta,
:,
.he 151
ao lume da terra fria. O
Bisagra, cabeça de palitei-
ro, é que näo pode compreen-
der esta arrumaçäo de casa em
vésperas de largar. Uma vez,
na venda do Zé Pinto, ouvi-
-lhe por detrás do taipal di-
zer de mim para o Cabeças
dos Alhais:
-- O ladräo anda a ver se
engana Cristo com as peni-
tências cá da terra para lá
em riba lhe perdoarem as mor-
tes que tem às costas. Este
é dos tais que foram para se
benzer e quebraram os olhos.
Capaz de embarrilar Cristo
é ele, o Diabo näo sei.
Vejam o desbocado! E näo
há grandes dias, saiu-se-me
com esta:
-- Queres saber, ó Antó-
nio, o que tu havias de fazer
para entrar direitinho no
Reino dos Céus? Era ires a
Santiago de Compostela de
penitente, pés descalços, a
päo e água, e com uma pedra
às costas que pesasse umas
duas a três arrobas. Dizem
que quem lá näo vai em vida,
vai lá em morte. Aquilo é
chegar e fica o pecador com a
alma mais branca que uma pom-
ba de leque...
-- Dos meus pecados näo
tenho medo de dar contas a
Deus -- redargui -- näo tro-
que ele lá nos registos o meu
nome pelo teu. Se trocasse
.he 151-52
estava mal, lá isso estava.
Já ouvi dizer que é mais fá-
cil passar um camelo pelo bu-
raco duma agulha que entrar
de cornos no Paraíso.
Safado, que lhe importava
a minha vida! Eu cá,
:,
.he 152
digo-o alto e em bom som, näo
se passa mês que me näo con-
fesse e näo receba o sagrado
corpo de Nosso Senhor täo
real e perfeitamente como es-
tá nos céus. À boca da noite
näo me procurem nas vendas
nem no forno; procurem-me no
poial de pedra da minha por-
ta, onde estou sentado a re-
zar o terço.
-- Porque reza tanto, tio
Malhadas? -- perguntou-me um
dia destes, ao sair de casa,
o Albino alfaiate, que é vi-
zinho. -- Dá com o juízo em
droga...
E para judeu... -- Vosso-
rias conhecem-lhe o código
civil? Artigo primeiro: Al-
bino, trata de ti; artigo se-
gundo: trata de ti, Albino;
artigo terceiro: está revoga-
da a legislaçäo em contrário.
-- Pois para judeu, resposta
de judeu:
-- Rezo pelos teus peca-
dos, pelos do próximo...
Carrasco, trazes aí tanto
menino sem pai!...
-- Aí vem o tio Malhadi-
nhas! E pelos seus pecados
näo reza? Dizem que você näo
foi boa bisca...
-- Os meus de täo pouca
monta eles säo que já passa-
ram ao rol do esquecimento.
Que fiz eu, Albino?
Arranhaduras. Mais fez S.
Pedro, que cortou a orelha
ao capitäo, e é um dos pila-
res da Igreja e chaveiro do
céu.
Pois pode-se lá ser herege
.he 152-53
ou beato falso quando se con-
sidera a sagrada paixäo e
morte de N. S. Jesus
Cristo, redentor dos homens,
e a de tantos santinhos que
derramaram o sangue vela luz
da verdade?
:,
.he 153
Näo pode. O Zé Balatroco
pöe-se às vezes no seräo a
ler o *Flos Sanctorum* ou o
*Mestre da Vida* e as baga-
das caem destes olhos que
mirraram com o sol, o vento e
a poeira dos caminhos. Ah!
havia de eu lá estar! Havia
de eu lá estar quando os im-
peradores -- o nome deles dê
caganeira a quem o proferir
-- martirizavam os bons cris-
täozinhos teimosos ou as vir-
gens que, caramba, parece ti-
nham alma de aço! Ah! Cris-
tina, havia de eu lá estar
com o meu cuchilo!
Choram os padres que a re-
ligiäo leva más andanças e eu
o creio. Os templos por esse
mundo estäo às moscas. E
também vos digo, baixinho que
ninguém nos ouça, eu sou o
último cá na terra a ter medo
do inferno. Sabem os meus
fidalgos, eu só queria um dia
ser rei. Um dia näo era ca-
bonde; mas uma semana. Se
fosse rei uma semana, afian-
ço-lhes que mondava Portu-
gal. Uma fogueira em cada
oiteiro para os ministros, os
juízes, os escriväes e os
doutores de má morte. Para
estes decretava ainda cova
bem funda, com obrigaçäo de
cada homem honrado lhes pôr
um matacäo em cima. Uma
choldra de ladröes! Imaginem
Vossorias que um pobre já
nem uma bestinha pode ter!
Muito tempo conservei aquele
cavalito fouveiro -- lembram-
-se? -- para me ajudar a es-
.he 153-54
pairecer saudades dos tempos
em que corria de almocreve
Ceca e Meca e olivais de
Santarém. Vai senäo quando,
António Malhadas, salta de
lá com nove
:,
.he 154
tostöes de sumptuária. Irra,
novecentos réis por um ca-
valicoque, um chincaravelho
que näo valia, a bem dizer,
os guizos dum gato! Raios
partam o Governo mailos go-
vernados, raios partam tanto
tributo com que a gente de
bem tem de ustir para andar
aí meia dúzia de figuröes, de
costa direita, mais farófias
que pitos calçudos! Raios
partam! O governo é um corpo
da guarda que nos defende ou
é a quadrilha do olho vivo
que näo faz senäo roubar?
Quem lhe encomenda o ser-
mäo?!
Näo foi com o meu rico di-
nheirinho que eles engordaram
daquela feita, näo foi! Pus
o cavalo em praça na feira
dos quinze e, louvores ao
Senhor que tudo manda, os
compradores näo faltaram. O
mais chegadiço era o Rama-
lhoto de Peva, que é novato
em troquilhas, e eu na minha
boa sinceridade fui-lhe di-
zendo:
-- Joaquim, isto é bicho
de cara direita... o que se
chama cavalo que escapou à
remonta por eu jurar e treju-
rar que era o meu ganha-päo.
Cem cäes me mordam se de
Viseu para riba pisam quatro
estacas como ele. Tanto vale
para cilha, como para tiran-
tes, como para botar com um
homem a cascos de rolha.
Leva-o que näo vais engana-
do...
Lá levou o chincaravelho e
com isso quebrou duma vez
.he 154-55
para sempre a minha lida de
almocreve. Mas tenho sauda-
des, tantas, que às vezes pa-
rece mexer-me
:,
.he 155
no peito um ninho de lacraus.
Quando por aqui me vêem
abordoado a este pauzinho de
marmeleiro -- já tem um bom
par de anos... a certidäo de
idade trá-la na cor, esta
bela cor do vinho palhete que
eu tanto apreciava -- quando
por aqui me vêem de taverna
em taverna a matar o bicho ou
com ares de andar à sirga, é
a safar-me do vespeiro das
saudades, muito mais se me
ponho a contar o que eram os
tempos do meu tempo.
E a vida lá vai... ligeira
como uma galga doida, espar-
vada. Já noutro diaço jul-
guei que era chegada a minha
hora. Uma febre que abrasa-
va, o fôlego difícil, muitas
dores pelos lombos como se os
lódäos que defrontei em trin-
ta anos de almocreve me caís-
sem a uma voz sobre o corpo
todo -- meti-me na cama.
Mandei chamar o padre, que
me ouviu de confissäo e me
trouxe o Viático a casa, com
toda a pompa, honra lhe seja.
Depois a Brízida enviou um
próprio ao barbeiro do Tou-
ro, o Afonso Lajas, que
apareceu sem tardança e à
vista do meu nariz torceu o
dele. Em voz muito presa,
täo presa que até a mim se me
afigurou de moribundo, pedi
que me desenganasse do meu
estado... näo tivesse medo de
dizer a verdade, pois queria
ajustar de vez todas as con-
tas com o mundo.
Aquilo, lá que se afoitas-
se com o silêncio dos meus
herdeiros, que näo podia dei-
xar de ser consentidor, :,
.he 156
rendido também ao entono da
minha voz proferida no traço
da vida para a morte, o bar-
beiro declarou que eu devia
estar por horas, visto ter já
no peito o roncadoiro da ago-
nia.
-- Bem haja o amigo Lajas
-- disse-lhe eu. -- Bem ha-
ja... e Deus lhe pague o bem
que me fez... descobrindo-me
a verdade!
Despedi-me duns e doutros
e roguei que me deixassem a
sós com Brízida. Depois de
muito lhe apertar as mäos e a
considerar, reloucado de
todo, falei-lhe assim, por
modos, na minha maluqueira:
-- Mulher da minha alma,
deixa-me ver a espingarda,
aquela leal companheira, que
também lhe quero dizer adeus.
Deixa-ma cá ver...
A escopeta, lazarina de
dois canos, estava a ouvir-
.he 156-57
-nos pendurada do frontal
pela bandoleira, junto à bol-
sa do chumbo e o polvorinho.
Só faltava o podengo. Sem-
pre ali a tive carregada,
pronta ao que desse e viesse,
um tiro às perdizes ou num
mariola. Mas näo me esque-
cia, um sarrafo de papel en-
tre o cäo e o fulminante
açaimava-a contra jeito de-
sastrado ou hora do Porco-
-Sujo.
Brízida ainda alçou o bra-
ço para ma dar, mas ou porque
lhe acudisse ao pensamento
que tresloucado como estava
era por lá capaz de atentar,
antes da hora cheia, contra a
alminha que Deus me deu, ou
näo sei porquê disse-me:
:,
.he 157
-- Olha que coisas! Vais
à caça? Deixa a arma.. .En-
comenda-te mas é à Virgem
Santíssima que te receba em
seus braços.
Bem me carpi, pelo que ela
depois me contou:
-- Diabos te levem mais ao
amor que me tens. Nem da es-
pingardinha me deixas despe-
dir. Olha que a näo levo pa-
ra a tumba, alma de Barbazu!
Cá te fica! Podes fazer do
cano uma roca.
Estive dois dias a água do
cântaro cozido em febre, uma
cantilena zaranza nos lábios,
nos ouvidos os zunzuns das
comadres que se punham de
cara encapuchada à volta da
cama, às vezes tantas que nem
gralhas num vidoeiro: *está a
passar! está a passar!* Qual
o quê, na manhä do terceiro
dia, quando já ninguém me
julgava, dou um pulo da cama.
Ao contrário dos prognósti-
cos do barbeiro, preguei um
senhor pontapé na Morte.
M'amigos, vi-me entre as
.he 157-58
quatro tábuas! É verdade!
Näo dei fé do Diabo, mas,
isso vos juro eu, cheguei a
avistar o outro mundo e
Nosso Senhor, sentado numa
cadeira de oiro maciço, a
acenar-me com a mäo: --
Chega-te cá, Malhadinhas,
chega-te cá, näo tenhas medo.
Olha que tenho cá dentro
ovelhas mais tinhosas do que
tu!
Deitei os olhos à roda e
näo avistei ninguém de Bar-
relas. Mau negócio. Sim,
senhores, e näo se admirem.
A Ana Malaia, que morreu
santa como
:,
.he 158
Vossorias sabem, tanto assim
que o seu corpo está inteiri-
nho na sepultura, teve um dia
uma visäo. S. Ludovico, o
santinho de quem era devota e
que desceu ao inferno enquan-
to vivo, alcançou-lhe licença
do Senhor para ver os três
reinos do outro mundo. Co-
meçou pelo céu. Que beleza!
Eram tudo músicas e cânti-
cos, pivetes, manjares do
fino, passeatas. Nada de
fome, de frio, de ralhos e
maus tratos, e muito menos de
pontapés na bunda de ricos e
tiranos. Quem a dera lá!
-- E os da minha terra?
O santo apontou a criança-
da, mais basta que as areias
do mar, que ocupava uma gran-
de parte do reino da glória.
-- A gente grada?
-- Näo sei. Estaräo por
lá no purgatório...
-- Coitados, se estäo no
purgatório desde que Barre-
las é Barrelas, é uma tal
chusma de gente! A estas ho-
ras häo-de custar a reconhe-
cer, estorricadinhos que nem
torresmos!
-- A ver vamos, como dizia
.he 158-59
o cego de Nacomba.
Levantaram-se umas telhas
da segunda mansäo: o purgató-
rio, para a Ana Malaia es-
grelhar. Os caldeiröes com
as almas a nadar no pez e
azeite a ferver e as foguei-
ras em que eram assados, gre-
lhados, fritos, de escabeche,
só à vista. Nem as cozinhas
de todos os regimentos, de
todos os colégios, de todos
:,
.he 159
os asilos, de todas as malte-
sias, e todo o farrobodó das
fábricas e forjas de Alema-
nha davam ideia do que aquilo
era. Ainda lá näo tinha che-
gado o carväo nem a electri-
cidade, de modo que todo o
aquecimento era a lenha e de-
mandava muito braço. A Ana
Malaia de princípio toda se
confrangeu, mas à vista das
almas, todas de mäos postas a
dar graças ao Altíssimo e
umas com um olho a rir, outro
a chorar, conformou-se com a
dureza daquela purificaçäo
necessária à glória de Deus.
-- Estes estäo próximos a
ter alta! -- segredou-lhe S.
Ludovico ante os tais de
dois rostos.
-- E os da minha terra?
-- Apresentem-se as almas
de Barrelas! -- bradou o
forneiro-mor.
Saíram entäo dos caldei-
röes e fornalhas uma meia dú-
zia de almas macarenas, muito
rotinhas, muito acanaveadas,
umas tristes da maleita.
Quem elas eram? Uma era o
pai da Ana Malaia, um bom-
-serás, cosedor de panelas,
que levava a sua menina às
costas de terra em terra com
os utensílios do ofício. Ou-
tra -- ela assim mo jurou --
era a minha santa mäe. Po-
brezinha, fartou-se de carre-
.he 159-60
tar molhos da lenha, de dar o
dia, para eu näo ter fome,
que meu pai, o malvado, näo
quis saber de mim. Outra era
um pobre cego que cantava pe-
las portas, de quem os rapa-
zes faziam gato-sapato.
:,
.he 160
-- Só estas? -- atalhou a
Ana Malaia.
-- E viva o velho! -- res-
pondeu S. Ludovico. -- Va-
mos adiante...
A Ana Malaia näo quis ir
mais longe com medo de que
lhe caísse a alma aos pés.
Mas, como eu ia dizendo,
näo me cheguei para junto de
Deus daquela vez, e cá ando
com a cruz às costas até
quando os seus altos desíg-
nios hajam decretado. Mas
campa quebrada nunca sara.
Estou no fim dos dias.
Pouco faltou para dar o tom-
bo. Escapei por um cabelo.
A que pontos a minha imagi-
naçäo andava desgovernada, eu
lhes conto: Quando pedi a
lazarina à Brízida, sabem
Vossorias para que era?
Para lhe malhar um tiro e
ela ir dormir comigo na mesma
cova. Tinha o Demónio a
chocalhar-me nos miolos, mais
quentes que as papas quando
fervem na caçoila, esta de
ela quedar para aí toda lépi-
da, ainda frescalhota, a go-
zar-se com outro do que levei
a amanhar com tanto trabalhi-
nho. A viúva rica com um
olho chora, com o outro repi-
ca. E sendo certo que à mi-
nha Brízida para rica fal-
ta-lhe muito, mas também näo
precisa de andar às côdeas,
ninguém me garantia que a
coisa näo levasse as mesmas
voltas. Mas a criatura lá
desconfiou e bem haja ela.
Se me passa a canifrecha
.he 160-61
para as unhas, com o delírio
que me tomara e o Diabo à
travesseira, era milagre se
näo estivesse hoje viúvo.
Seja pelos tormentos que
Nosso Senhor
:,
.he 161
padeceu! Mas aquele Afonso
do Touro precisava a bochada
arrancada pelas costas e dei-
tada aos cäes. Um salafrário
que me dá por morto e eu ain-
da para lavar e durar!

*Provecto dos anos, uma


tarde, ergueu-se do borralho
e saiu a porta para fora, am-
parado ao porretinho de mar-
meleiro. Andava há dias a
chocar a morte e deixaram-no
ir, que era relapso a preven-
çöes e cuidados. Sentou-se
no poial de pedra, que servia
de amassadoiro do linho. Com
mäo incerta aconchegou as
abas da capucha contra os jo-
elhos regélidos. Nevara, co-
dejara, e as árvores, com o
sincelo, estalavam ao peso
das candeias. António Ma-
lhadinhas fechou os olhos à
semelhança do romeiro que
torna de Santiago, farto de
correr léguas, ver terras,
passar pontes e vaus, enxotar
cäes que arremetem ameaçado-
res de currais e quintäs, e
adormece a sonhar com o céu
num recosto do caminho. Ver-
gou brandamente a cabeça para
o peito, ao tempo que os de-
dos lhe pendiam para o chäo
como vagens maduras. E -- o
Justo Juiz lhe perdoe as
facadas que as näo deu em ne-
nhum santo -- nem se sentiu a
atravessar as alpoldras duma
margem para a outra do negro
rio.*

Lisboa, 1922
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.. folha braille 272

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