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O FENÔMENO RELIGIOSO
A Religião como fenômeno universal

(Josimar Azevedo – teólogo)

No início do terceiro milênio, em um mundo tão modificado pelas conquistas


da modernidade, a religiosidade, a mística e a religião com todas as suas formas
de expressão, continuam a mostrar a sua relevância na auto-compreensão do ser
humano, no processo de construção do mundo e na interpretação da vida como
um todo. Não é sem razão que a religião, como um fenômeno que atinge a
totalidade da vida humana, enquanto expressão cultural, social, ou mesmo nos
mistérios de sua interioridade, tem sido considerada como um fenômeno universal
e de expressivo interesse científico.
A religião é um fenômeno universal porque é um fenômeno humano, um
fenômeno cultural e um fenômeno social. Esta é a principal afirmação deste texto
que será refletida na sequência, mobilizando informações das várias áreas das
Ciências da Religião, especialmente da fenomenologia.
O mundo globalizado e pluralizado, em que vivemos, tem introduzido novas
questões para a pauta das atenções da humanidade. No interior dos desafios de
ordem política e econômica, como a fome, a paz e a sustentabilidade ecológica,
entre outros, está a religião, envolvida em novo dinamismo, articulando, de forma
diversa, estruturas de sentido e significado que continuam determinando os rumos
da existência humana.
Neste contexto, a presente reflexão quer apresentar uma forma de
compreender o fenômeno religioso atual, interpretando-o a partir dos dinamismos
que movem a existência humana, a cultura e a sociedade. Ou seja, parte da
afirmação de que a religião é um fenômeno universal porque é um fenômeno
humano, um fenômeno cultural e um fenômeno social. Neste sentido, vai mobilizar
conceitos de dentro das ciências da religião, especialmente da fenomenologia e
da psicologia da religião, que sejam capazes de explicitar limites e possibilidades
da religião em nosso contexto.
A religião é um fenômeno universal! Segundo Walter Burkert (1996, p. 15), a
constatação da universalidade da religião, ou seja, que todas as tribos, Estados e
cidades possuam alguma forma de religião, tem sido feita desde Heródoto. J.
Simões Jorge (1994, p. 11), ao tratar da planetariedade do fenômeno religioso,
apresenta uma série de afirmações encontradas no interior do pensamento
moderno, tal como segue:
- “Não há povo, por mais primitivo que seja, em que não se veja a religião”
(Antropólogo Bronislaw Malinowski) (MALINOWSKI, 1948, apud SIMÔES,
1994, p. 11);
- “Se encontram no passado, e se encontram até hoje sociedades humanas
que não possuem ciência, nem artes, nem filosofia. Mas nunca existiu
sociedade sem religião” (Pensador fancês Henri Bergson) (BERGSON,
1978, p. 85 apud SIMÔES, 1994, p. 11);
- “A religião (...) até épocas recentes era encontrada universalmente em
todas as sociedades humanas de que temos registro” (Sociólogo Thomas
O’Dea) (O’DEA, 1996, p. 9 apud SIMÔES, 1994, p. 11-12);
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- “O homem desenvolveu uma atividade religiosa desde a sua primeira


aparição no cenário da história e que todas as tribos e todas as
populações, de qualquer nível cultural, cultivaram alguma forma de
religião” (Pesquisador Batista Mondin) (MONDIN, 1980, p. 218, apud
SIMÔES, 1994, p. 12).
Ora, se estas informações estiverem corretas, fica a pergunta: por que o ser
humano produziu e produz “religião”? E, ainda, o que é “religião”, neste contexto
tão amplo que alcança toda a humanidade em todos os tempos históricos?
De início, a partir dos depoimentos apresentados acima, já é possível dizer,
pelo menos, que a religião tem sido uma grande presença ao longo da história da
humanidade. Não são poucos os testemunhos que identificaram na religião uma
grande companheira da humanidade, tirando-a de sua solidão no universo,
oferecendo-lhe uma orientação global, atribuindo sentido às coisas, criando
valores e normas, gerando solidariedade, construindo a realidade a fundo, a partir
de um sentido último e definitivo. No dizer de Mircea Eliade:

A manifestação do sagrado funda ontologicamente o mundo. (...) Para viver


no mundo é preciso fundá-lo – e nenhum mundo pode nascer no ‘caos’ da
homogeneidade e da relatividade do espaço profano. (...) A revelação de
um espaço sagrado permite que se obtenha um ‘ponto fixo’, e permite,
portanto, a orientação na homogeneidade caótica, o ‘fundar o mundo’ e
viver realmente (ELIADE, 1999, p. 36-37).

Para Leonardo Boff (1993, p. 63) a religião é a organização mais ancestral e


sistemática da dimensão utópica inerente ao ser humano, que aposta que o
mundo não está definitivamente perdido, mas que se orienta para uma comunhão
plena entre homem e mulher, ser humano e natureza, Deus e a humanidade.
Todavia, a experiência que a humanidade faz é que os propósitos da religião
podem ser orientados historicamente para caminhos diversos. A história da
humanidade, também, está profundamente marcada por experiências negativas
de violência, etnocentrismos, autoritarismos, patriarcalismos, preconceitos, feitos
em nome da religião. Atualmente, muitos dos conflitos mundiais estão
fundamentados no fanatismo e fundamentalismo religiosos. A religião, ainda, tem
servido como fundamento de projetos políticos e econômicos desumanizantes,
que têm conduzido parte da humanidade para a fome, o abandono e a exclusão.
O fenômeno religioso, tão antigo quanto a humanidade, se apresenta como
uma realidade sempre atual e desafiante. Refletir sobre ele significa buscar
entender a teia de relações vitais na qual ele se constrói e se entende, identificar
os elementos dessa construção, suas possíveis representações, codificações,
interesses e significados. Tal conhecimento é de fundamental importância, pois
permite:
- Evitar a absolutização da própria experiência religiosa como sendo
a única ou a melhor;
- Perceber a relatividade da experiência pessoal em relação à
multiplicidade e diversidade de experiências humanas, percebendo
criticamente seus limites e possibilidades;
- Sintonizar o ideal com a problemática real, o ideal religioso
articulado com a complexidade da vida quotidiana;
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- Ampliar os horizontes de compreensão de si mesmo, do homem,


da mulher, da natureza, da sociedade e do mundo;
- Perceber, com seriedade e responsabilidade, os condicionamentos
de uma cultura em sua linguagem, no agir e em todo o modo de
ser e entender o mundo, interpretando-a no contexto das muitas
culturas;
- Tomar consciência, no contexto da sociedade globalizada, da
parcialidade de toda experiência e da necessidade das interações
entre o particular e o universal;
- Perceber as várias formas de aproximação do fenômeno religioso,
de dentro, a partir da fé, e de fora, a partir das ciências;
- Pensar o fenômeno religioso, de forma interdisciplinar, dentro do
entrelaçado das relações sócio-culturais, identificando seus
conflitos, limites e possibilidades;
- Desmitificar os preconceitos para poder possibilitar o dialogo com
o diferente;
- Construir um saber crítico sobre a religiosidade e suas múltiplas
expressões no concreto da história;

1. Um fenômeno humano

O fenômeno religioso é, antes de tudo, um fenômeno humano. Para


entendê-lo é preciso entender a dinâmica da vida humana em suas várias
dimensões e possibilidades. Neste sentido, é preciso voltar à pergunta
fundamental: por que o ser humano produz “religião”? Não são poucas as
respostas a essa pergunta. Uma, no entanto, interessa de forma particular a esta
reflexão.
Do ponto de vista histórico-fenomenológico, a existência de todo e qualquer
ser humano tem início e fim. É fato: nascemos e morremos! Contudo, todas as
vezes que o ser humano vai refletir sobre sua existência, ele jamais se deixa
enclausurar pelos limites da história. A consciência que acompanha sua existência
está sempre projetada para o mais, o maior, o melhor, o perfeito, o pleno...
sempre. Uma projeção que ultrapassa os limites da história, da vida física, do
perceptível, do compreensível, do nascer e do morrer, que desafia as realidades
de tempo e espaço. É a irreverente busca de afirmação de sentido e significado
existenciais. A sensação de incompletude, de carência que lhe assola a existência
o tempo inteiro, o remete, constantemente, na busca do eterno, do absoluto, do
definitivo. Esta abertura radical, esse excesso, essa projeção infinita do ser
humano é o que caracteriza, antropologicamente, sua religiosidade.
A religiosidade, a dimensão transcendental é inerente ao ser humano; ou
seja, todo homem tem em si a capacidade da transcendência religiosa. Para
Mircea Eliade (ELIADE, 1999, p. 29), fenemenólogo, o comportamento do homo
religiosus enquadra-se no comportamento geral do homem, contudo, tal
comportamento é muito mais evidente no contexto das sociedades tradicionais.
Para o homo religiosus a existência humana não é limitada ao modo de ser do
homem, mas corresponde à uma “existência aberta”, possui uma dimensão
“cósmica”, uma estrutura trans-humana (ELIADE, 1999, p. 174). Ou seja, a vida é
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vivida num plano duplo: desenrola-se como existência humana e, ao mesmo


tempo, participa de uma Vida trans-humana, a do Cosmo ou dos Deuses.
Segundo Mircea Eliade:

é provável que, num passado muito longínquo, todos os órgãos e as


experiências fisiológicas do homem, assim como todos os seus gestos,
tivessem uma significação religiosa. Isto compreende-se, porque todos os
comportamentos humanos foram fundados pelos Deuses ou pelo Heróis
civilizatórios in illo tempore: estes fundaram não somente os diversos
trabalhos e as diversas maneiras dos homens se alimentarem, de
copularem, de se exprimirem, etc., mas até os gestos aparentemente sem
importância (ELIADE, 1999, p. 175-176).

Para C. G. Jung (Obras completas, 1995, p. 10) a religiosidade corresponde


a uma função natural e inerente à psique. Chegava a considerá-la como um
instinto, um fenômeno genuíno, uma atitude do espírito humano 1, uma atitude
particular de uma consciência transformada pela exigência do numinoso (JUNG,
1990, p. 10). Jung reconhece a importância da religiosidade para o ser humano:

entre todos os meus doentes na segunda metade da vida, isto é, tendo


mais de 35 anos, não houve um só cujo problema mais profundo não fosse
constituído pela questão de sua atitude religiosa. Todos, em última
instância, estavam doentes por ter perdido aquilo que uma religião viva
sempre deu em todos os tempos a seus adeptos, e nenhum curou-se
realmente sem recobrar a atitude religiosa que lhe fosse própria. Isto, é
claro, não depende absolutamente de adesão a um credo particular ou de
tornar-se membro de uma igreja" (JUNG, Psicologia e Religião, 1995, p.
153-154).

A Religiosidade pode ser interpretada, portanto, como uma atitude dinâmica


de abertura efetiva da pessoa ao sentido fundamental, radical de sua existência –
seja qual for o modo como este sentido é percebido –, a ponto de tornar-se a
orientação básica de sua vida. Parte das perguntas: de onde vim? Qual a razão de
existir? Pra onde vou?, unindo passado, presente e futuro. É uma atitude pessoal
de protesto do ser com relação ao mundo que ele integra, buscando respostas,
soluções existenciais que o extrapolem . Neste sentido, a religiosidade apresenta-
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1 "Encaro a religião como uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o emprego
originário do termo: "religio", poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação
cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como "potências": espíritos, demônios, deuses,
leis, idéias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu
mundo próprio a experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo
úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e racionais,
para serem piedosamente adorados e amados" (JUNG, Obras completas, 1995, p. 10).
2 Eliade entende que toda crise existencial é, em suma, uma crise religiosa: “na medida em que o
inconsciente é o resultado das inúmeras experiências existenciais, ele não pode deixar de
assemelhar-se aos diversos Universos religiosos. Porque a religião é a solução exemplar de toda a
crise existencial. Solução exemplar, não somente porque indefinidamente repetível, mas também
porque é considerada de origem transcendental e, por conseqüência, valorizada como revelação
recebida de um outro mundo, trans-humano. A solução religiosa não somente resolve a crise, mas
ao mesmo tempo torna a existência “aberta” a valores que já não são contingentes nem
particulares, permitindo assim ao homem ultrapassar as situações pessoais e, no fim de contas, o
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se como a dimensão mais profunda da vida, como a matriz de todas, capaz de


projetar o ser humano para além dos limites, suprir sua ignorância em relação à
existência, transcendê-lo e determinar seu modo de intervenção na história . 3

A religiosidade, como dimensão potencialmente constitutiva de todo ser


humano, é subjetiva, interior e anterior à religião. O ser humano é histórico, por
isso, sua religiosidade é exteriorizada, objetivada dentro de sistemas formais
(ritos, mitos, doutrinas, mistérios, celebrações, reuniões, comunidades, tradições
etc.), próprios de seu espaço cultural. Esta maneira de viver a religiosidade, no
colorido conjuntural das épocas e dos lugares, profundamente marcada pelas
circunstâncias históricas, é o que constitui a grande diversidade e pluralidade das
religiões. As religiões são as respostas, no plural, das perguntas humanas pelo
sentido, codificando seus mais nobres desejos, anseios e expectativas, suas mais
sofridas angústias e suas mais profundas esperanças.
A palavra “religião”, utilizado na linguagem comum, suscita a idéia de um
corpo doutrinário, “um sistema de crenças e de práticas relativas às coisas
sagradas”, no dizer de Durkheim (citado por DESPLAND, 1987, p. 1498ª, apud
CROATTO, 2001, p. 72). No entanto aquilo que denominamos de “religião”
constitui uma realidade muito mais complexa. O termo “religião” provém do latim
(religio) e sua provável etimologia, segundo Croatto, dá a idéia de “atadura” (re-
ligare) do ser humano com Deus. Contudo, a interpretação do cristianismo,
responsável pela difusão do vocábulo, a partir da palavra grega threskeia valorizou
mais as atitudes do ser humano religioso do que um sistema doutrinário
(CROATTO, 2001, p. 72-73).
A religião, como expressão objetiva, material, cultual, histórica da
religiosidade, é um fenômeno humano, ou seja, do tamanho do ser humano, nem
mais nem menos. É no ser humano que a religião encontra seus limites e
possibilidades. Tudo o que identificamos por “religião” é mediado pelas condições
de possibilidade da existência humana; está subordinada aos interesses e às
vicissitudes da história humana. Mais, ainda, a religião é do tamanho de cada ser
humano; ou seja, por mais que duas pessoas compartilhem a “mesma” religião, os
mesmos ritos, os mesmos símbolos, a mesma instituição, ainda assim, a forma de
acolher, interpretar, experimentar e expressar de um será diferente da do outro. A
rigor, cada ser humano, por conta do dinamismo de sua religiosidade, possui a
sua religião.
Todavia, é importante frisar que, dizer que a religião é, antropologicamente,
um fenômeno humano, subjugado às condições de possibilidade da existência
humana, não se contrapõe à afirmação religiosa e/ou teológica da transcendência.
Esta sua condição religiosa, ou mais especificamente teológica, presente nas
instituições religiosas, não elimina a sua mediação histórico-antropológica, ou

acesso ao mundo do espírito” (ELIADE, 1999, p. 216-217);


3 Para Mircea Eliade mesmo o homem profano ou a-religioso partilha ainda, no mais profundo do
seu ser, um comportamento religioso, mesmo que de forma camuflada, oculta: “entre aqueles
modernos que se proclamam a-religiosos, a religião e a mitologia estão “ocultas” nas trevas do seu
inconsciente – o que quer dizer também que as possibilidades de reintegrar uma experiência
religiosa da vida jazem, em tais seres, muito profundamente neles próprios” (ELIADE, 1999, p.
219);
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seja, Deus, o sagrado ou seus equivalentes só se dão a conhecer mediados pelo


humano dialeto.
Nesta perspectiva a Religião (religare) pode ser entendida como relegere
(reler), ou seja, é preciso aprender a decodificar o fenômeno religioso presente em
cada contexto. Desta forma, não há uma definição que esgote o sentido da
religião. Em sua estrutura simbólica, a religião apresenta-se sempre revestida de
um dinamismo originário, que faz e refaz seu significado constantemente. É algo
vivo, em constante processo de construção, subordinado à complexidade das
possibilidades do ser humano conceber o universo inteiro como algo
humanamente significativo.
Como fenômeno humano, as religiões estão subordinadas as condições de
possibilidades da história, encontrando aí suas riquezas, limites e definições. Por
isso não convém falar de religião, mas de religiões, para expressar sua pluralidade
de formas e complexidade de interpretações (CROATTO, 2001, p. 73).
A religião, além de seus sentidos etmológicos, pode, ainda, ser definida a
partir de seu objeto, religião como crença em seres sobrenaturais: Deus, deuses,
espíritos etc., ou a partir de sua função, religião como um instrumento para
resolver problemas existenciais, legitimar a ordem social, proteger a pessoa contra
a angústia etc.
Desta forma, a complexidade da religião, permite que ela seja
compreendida de muitas formas:
- Como a instituição de um sistema de ritos, práticas, doutrinas,
constituições, organizações, tradições, mitos, artes que possibilitam a re-
ligação com o mundo divino;
- Como a indicação do caminho da razão, da experiência humana para
religar-se com o divino;
- Como a configuração de um sistema de representação, de orientação, de
normatividade;
- Como a tradução de uma realidade objetiva, uma tradição acumulada e
vivida por uma comunidade;
- Como a expressão visível da relação com o sagrado;
- Como a expressão histórica da relação salvífica entre Deus e a
humanidade.
Todas as definições de religião propostas mostram que religião é algo que
não se conforma dentro de uma definição. Assim como não existe a religião
perfeita, também não existe uma definição perfeita. A definição se presta ao
serviço de ser mais útil que verdadeira, por que ela é um instrumento de trabalho e
não a finalidade da pesquisa. Toda e qualquer definição possui uma subjetividade
inerente que a determina.

2. Um fenômeno cultural

Se é verdade que a religião é um fenômeno humano, identificado,


diversamente, em cada experiência humana particular, é igualmente verdade que
ela é um fenômeno cultural e social. Sócrates já dizia que o ser humano é um
animal social, porque lhe é inato viver agregado, junto, coletivamente. É por esta
condição fundamental que o ser humano vive em sociedade. É no interior da
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sociedade que o ser humano produz cultura. E é no interior da cultura que o ser
humano produz religião.
As manifestações religiosas foram se estruturando, no decorrer da história
da humanidade, no interior das diferentes culturas. Desta forma, a religião como
fenômeno universal é também um fenômeno cultural, ou seja, todos os elementos
materiais que a compõem estão profundamente enraizadas na totalidade da
experiência humana, mediada pelas diferentes culturas. Só aí podemos
compreendê-los.
Há muitos conceitos de cultura, cada um respondendo a realidades e
interesses específicos. Para Peter Berger a cultura:

... consiste na totalidade dos produtos do homem”. Alguns destes são


materiais, outros não. O homem produzi instrumentos de toda espécie
imaginável, e por meio deles modifica o seu ambiente físico e verga a
natureza à sua vontade. O homem produz também a linguagem e, sobre
esse fundamento e por meio dele, um imponente edifício de símbolos que
permeiam todos os aspectos de sua vida (BERGER, 2003, p. 19)4.

A cultura, tal como compreendida aqui, envolve a globalidade da vida de


cada grupo humano (etnia, povo, nação): a sua cultura material, social e
interpretativa. Esta globalidade da condição humana pode ser acionada em
diferentes níveis: no nível imaginário (sonhos, mitos, esperanças), no simbólico
(representação material ou cognitiva) e no real (a canoa, como meio de transporte,
é um produto cultural sem ter um sentido simbólico). O mundo natural não é
transformado apenas pelo trabalho “real”, mas também através dos símbolos, do
imaginário, da contemplação. Os três subsistemas culturais – o material, o social e
o interpretativo – e os três “registros” – o imaginário, o simbólico e o real – estão
em permanente interação. O imaginário, por exemplo, tem uma incidência sobre o
campo material, social e interpretativo, como o sistema interpretativo direcional a
imaginação, a produção simbólica e real (Cf. SUESS, 1991, p. 46) . 5

Segundo Paulo Suess, a religião possui um papel fundamental na


transmissão da herança cultural:

Ao criar coisas, o homem pode forjar um sentido. Este significado é


historicamente elaborado e transmitido. É embutido em sistemas de
símbolos e representações, administrados em instituições coletivas de
longa memória. A gênese e a transmissão da cultura não podem ser
pensadas a partir de indivíduos. Indivíduos não têm memória além de sua
morte. O samba que criaram não está no sangue dos seus filhos. A
herança cultural – e a cultura sempre é uma herança novamente
experimentada – é transmitida e aprendida em instituições coletivas do
grupo. O “aparelho religioso” em sociedades de uma certa complexidade é
uma destas instituições (SUESS, 1991, p. 46-47).

4 Esta concepção está muito presente na antropologia cultural americana. Outra perspectiva, a dos
sociólogos, utiliza um sentido mais estrito, vincula o conceito de cultura à esfera mais simbólica
(BERGER, 1991, p. 19, nota 8).
5 Sobre a definição de cultura ver também LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito
antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
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A relação entre religião e cultura, em primeira mão, advém do próprio


significado do termo “culto”, que estabelece uma ligação entre os dois conceitos.
No latim, cultura agri, quer dizer, para os camponeses da Roma antiga, não
apenas trabalhar na lavoura, mas também cultus agri, uma postura religiosa em
face dos doadores dos frutos da terra e das suas forças telúricas. Esta unidade
cultural-religiosa está presente no trato que os povos indígenas ainda hoje
dispensam à sua terra. Consideram-na “terra-mãe”, Patcha Mama, divindade fiel e
generosa, e não um mero objeto sócioeconômico.
As tentativas de reconstrução histórica das primeiras culturas e religiões,
por pesquisadores, tarefa que não logrou êxito, têm possibilitado, contudo, a
verificação de suas primeiras articulações na memória mítica dos povos. Nos
mitos de origem de quase todos os povos encontra-se uma articulação íntima e
original entre cultura e religião. Quase sempre são seres divinos que estão como
criadores e/ou “ladrões” doadores na origem das aquisições culturais dos homens.
O mito, contado de geração em geração, e representado no culto, é palavra
eficaz; é verdade absoluta sobre o caminho do bem e do mal; é história sagrada
das origens, constitutiva para a identidade do respectivo grupo humano. O mito é,
ao mesmo tempo, uma palavra narrativa e lógica, afetiva e efetiva, repetitiva e
historicamente aberta.
Segundo testemunho de Paulo Suess, um dos estudiosos das culturas
indígenas no Brasil, quem teve a oportunidade de presenciar entre os povos
indígenas a narrativa ou a celebração destas origens mitológicas, percebe na
emoção do narrador ou dos celebrantes – por vezes, vai do choro ao grito – a vida
real que a narração representa. Em sociedades autóctones não-estratificadas, o
mito tem a vantagem de representar a reflexão consensual de um determinado
povo. As “intuições míticas” mostram até hoje certa força explicativa. Depois de
quase três mil anos do seu surgimento, o mito de Édipo, por exemplo, tornou-se
um conceito-chave de interpretação do homem moderno (SUESS, 1991, p. 49).
Se no contexto das culturas tradicionais é difícil dissociar cultura e religião,
o mesmo não acontece com a modernidade ocidental. Historicamente, o processo
de dessacralização da natureza, que se deu em larga escala no interior da
modernidade, deu origem a outro processo, o da secularização, profundamente
crítico em relação à religião, o que possibilitou a progressiva emancipação do
campo cultural do campo religioso, principalmente pela crescente complexidade
das respectivas sociedades. Contudo, esta emancipação, possibilitou também,
cada vez mais, que uma religião possa ser vivida em várias culturas e que uma
cultura possa fornecer as mediações materiais, institucionais e simbólicas para
diferentes religiões. Uma religião monoteísta, por exemplo, pode coexistir com um
resto cultural específico de várias culturas complexas. Nestas condições, as
mudanças culturais não significam, necessariamente, a destruição da religião,
como as mudanças religiosas não significam, automaticamente, a destruição
cultural (SUESS, 1991, p. 43-44).
Na modernidade a relação entre cultura e religião é dinâmica e mútuo
implicativa. Parafraseando Otto Maduro, ao tratar da relação entre religião e
sociedade, podemos dizer que ela se dá em três posições: a cultura exerce, com
suas estruturas, enorme influência sobre a religião; por sua vez, a religião
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influencia também a cultura; e, além disso, cada uma dessas instâncias conserva
um grau de autonomia em relação à outra.
Todavia, o sujeito da cultura é o mesmo da religião. É o mesmo ser humano
que atravessa todas as culturas, levantando as mesmas perguntas sobre o sentido
da vida, da dor, do sofrimento, da morte. É de fundamental importância considerar
que a expressão concreta do religioso passa pela diferença das culturas. Tal
consciência permite que se evite uma aproximação superficial e abstrata e se
perceba os limites inerentes a cada expressão religiosa cultural, bem como a
contribuição específica que se pode esperar dela.

3. Um fenômeno social
A religião, especialmente depois de Émile Durkheim (francês, 1858-1917),
por sua obra As formas elementares da vida religiosa, de 1912, tem sido
reconhecida como um fenômeno social, uma forma fundamental de coesão social
(BURKERT, 1996, p. 17). Depois de Durkheim, a sociologia da religião, como um
todo, parte do pressuposto de que os fenômenos religiosos falam da realidade
social. Durkheim substituiu o conceito de idéias religiosas pelo de “representações
colectivas”. No dizer de Croatto: “o fenômeno religioso é essencialmente
comunitário e, portanto, repercute na sociedade como tal” (CROATTO, 2001, p.
18-19).
As crenças religiosas, como um fenômeno social, cristalizam-se em grupos,
comunidades, igrejas, irmandades etc., com um impacto social inevitável
(CROATTO, 2001, p. 19); interferem no ordenamento social, nas estruturas de
poder, nos processos de produção e consumo de bens e em toda a dinâmica da
vida social, legitimando ou criticando.
A experiência religiosa, como experiência humana propriamente dita, é uma
vivência relacional que se dá no encontro do indivíduo com a natureza, com outro
indivíduo e com o grupo humano em seus diferentes níveis (família, clã, bairro,
município, estado, nação, clube, associação, fraternidade, Igreja, partido político
etc.) (CROATTO, 2001, p. 42).
Para Libanio, compreender que o fenômeno religioso é contextual é aceitar
também que os fatores sociais o provocam, o alimentam, lhe dão inteligibilidade.
Neste contexto, é preciso explicitar alguns elementos fundamentais que
caracterizam a relação entre religião e sociedade. Como ponto de partida, vale
para esta relação o que foi dito acima da relação entre cultura e religião, ou seja,
que é dinâmica e mútuo implicativa (Libanio, 2002, p. 46-47).
A religião, historicamente, teve e tem uma participação significativa no
processo de construção da sociedade, influenciando seus rumos, por vezes
seguindo por caminhos nem sempre produtivos para o desenvolvimento da
humanidade. É do conhecimento de todos, as mazelas históricas feitas em nome
da religião. Todavia, é fato que a religião tem apresentado-se também,
institucionalmente ou não, como uma referência crítica para a organização social,
influenciando, com sua perspectiva humanitária, a consolidação de valores,
oferecendo, de forma particular, os fundamentos últimos para a determinação de
princípios éticos importantes para a convivência humana.
Por muito tempo, os estudos, principalmente sociológicos, que se
ocupavam da tarefa de observar a relação sociedade-religião, evidenciavam
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unicamente as influências da primeira sobre a segunda. Ora, uma análise que só


consegue perceber as influências da sociedade sobre a religião, apresenta-se, de
início, comprometida e quando absolutizada, torna-se falsa, por desconhecer o
papel da religião na sociedade, bem como sua autonomia. A teoria marxista rígida,
que afirma que a religião não passa de uma superestrutura determinada pela infra-
estrutura econômica, é um exemplo clássico dessa leitura parcial. O mesmo vale
para as leituras que pensavam a religião imune dos processo sociais,
salvaguardada da contaminação das impurezas históricas da sociedade. Tal
realidade nunca foi possível e tal compreensão, além de não ter valor algum, não
é mais aceita.
É fato, os limites, conflitos e possibilidades da sociedade refletem dentro da
religião e vice-versa. A religião, no seu processo de organização, se apropria do
socialmente disponível. A sociedade, por sua vez, em seu processo de
construção, é profundamente influenciada pelas perspectivas e orientações
oriundas da religião. Desta forma, todo e qualquer agir da religião deve levar em
consideração as condições sociais reais. Por outro lado, toda e qualquer
intervenção na sociedade deve, necessariamente, considerar o dinamismo da
religião em seu interior.
Todavia, no contexto moderno, depois de todo o processo de secularização
não é mai possível identificar sociedade e religião. A sociedade não é a religião e
a religião não é a sociedade. A religião e a sociedade guardam sua autonomia. Se
uma fosse puro reflexo da outra a religião já não seria religião com suas regras,
com sua lei interna, com suas reivindicações e propostas, com suas demandas e
ofertas e, da mesma forma, a sociedade. O espaço da autonomia varia de acordo
com o momento histórico e o lugar, obedecendo o jogo das força no entrelaçado
das relações.
A autonomia da religião em relação à sociedade consiste na sua
religiosidade, que não é uma simples produção do meio, mas a afirmação de uma
orientação ontológica fundamental na existência humana, um dinamismo que a faz
aberta e voltada para o Absoluto, o Transcendente (Libanio, 2002, p. 47). Essa
raiz ontológica entrelaça-se com o contexto, assumindo uma forma concreta, mas
não se fundamenta nela. Essa reserva originária da religião é o que define, em
última instância, sua identidade, o que lhe dá a consistência e a preserva em
situações adversas. Essa autonomia, no entanto, varia de religião para religião.
A autonomia de ambas as esferas, quando levada a bom termo, sem
absolutismos e atropelamentos, possibilita uma ação interativa, necessária e
produtiva. A ação da sociedade sobre a religião permite manter-lhe sintonizada
com as expectativas humanas e seus projetos concretos, tornando-a companheira
no quotidiano da vida. A religião, por sua vez, ao fazer das relações sociais,
políticas, econômicas e culturais seu campo de atuação, assumindo os conflitos
próprios dessa opção, sintoniza os projetos históricos com as mais nobres
aspirações da humanidade, suas mais profundas esperanças, seu sentido
fundamental e radical, sua vocação última e definitiva, superando a condição de
ópio do povo ou reprodução da hegemonia dominante, assumindo-se como uma
força revolucionária.
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Bibliografia

BURKERT, Walter. A criação do sagrado. Lisboa - Portugal, Edições 70, 1996.

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. A essência das religiões. Lisboa –


Portugal, Ed. Livros do Brasil, 1999.

JUNG, C. G. Explicação psicológica do dogma da Trindade. In Obras completas


de C. G. Jung, (Vol. 11). Petrópolis: Vozes, 1995.

__. Mysterium coniunctionis. In Obras completas de C. G. Jung, (Vol. 14i).


Petrópolis, Vozes 1990.

__. Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes. 1995.

CROATTO, J. S,. As linguagens da experiência religiosa. Uma introdução à


fenomenologia da religião. São Paulo, Paulinas, 2001.

LIBANIO, J. B. A religião no início do milênio. São Paulo: Loyola, 2002.

BOFF, L. Ecologia, mundialização e espiritualidade. São Paulo: Editora Ática.


1993.

SIMÕES, Jorge. Cultura religiosa. O Homem e o Fenômeno Religioso. São Paulo:


Loyola, 1994.

SUESS, P. (org.). Culturas e Evangelização. São Paulo: Loyola, 1991.

BERGER, Peter. O Dossel Sagrado. Elementos para uma teoria sociológica da


religião. São Paulo: Paulus, 1985, 4ª Ed.

ATIVIDADES:
1. Propor aos alunos que assistam o filme “Quem somos nós?”, dirigido por
William Arntz, Betsy Chasse e Mark Vicente. Depois fazer um debate sobre
a religião como fenômeno humano, cultural e social. Cada aluno deverá, ao
final do debate, redigir em dupla, um texto sobre o tema.
2. Organizar um seminário sobre o “Itinerário religioso da humanidade”.
Pesquisar, em grupos temáticos, 10 tradições religiosas, relacionando a
história e identidade da religião com a cultura e a sociedade local.
Apresentar em 30 minutos e fazer debate com a turma.

SUGESTÕES DE LEITURA:
1. 1º e 2º capítulos de Dossel Sagrado – Peter Berger – Editora Paulus
2. O Sagrado – Nilton Bonder – Editora Rocco

josimarazevedo@yahoo.com.br

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