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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

A CONTRACULTURA E SEUS DESDOBRAMENTOS:


NOVAS EXPERIMENTAÇÕES E RELIGIOSIDADE NEW AGE

TESE DE DOUTORADO

JOELMA DO PATROCINIO DUARTE

2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIA DA RELIGIÃO

A CONTRACULTURA E SEUS DESDOBRAMENTOS:


NOVAS EXPERIMENTAÇÕES E RELIGIOSIDADE NEW AGE

Tese apresentada ao programa de Pós-Graduação em Ciência


da Religião do Instituto de Ciências Humanas da
Universidade Federal de Juiz de Fora, como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor em Ciência da Religião,
por Joelma do Patrocinio Duarte.
Orientadora: Professora Doutora Fátima Regina Gomes
Tavares.

Juiz de Fora, julho de 2010


Tese defendida e aprovada, em 16 de julho de 2010, pela banca constituída por:

__________________________________________________
Professora Doutora Fátima Regina Gomes Tavares

___________________________________________________
Professora Doutora Francisca Verônica Cavalcante

__________________________________________________
Professora Doutora Leila Amaral

__________________________________________________
Professor Doutor Marcelo Camurça

__________________________________________________
Professora Doutora Sandra Corrêa Sá Carneiro
Dedico à todos que buscam por diversos caminhos
tornar o mundo mais humano.
AGRADECIMENTOS

Agradeço à Fátima Tavares por aceitar me orientar e continuar me acompanhando


em minha trajetória acadêmica no Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião. A
ela devo os primeiros contatos que tive com a temática ao qual me dediquei nesses anos de
formação. Suas contribuições extrapolaram o campo acadêmico. Os anos convivendo com
sua personalidade marcante também trouxeram contribuições para a esfera pessoal.
Agradeço pela solidariedade e compreensão manifestada nos momentos que realmente
precisei, pelos “puxões de orelha”, pela paciência e leitura atenta do trabalho.
Ao professor do Departamento de Ciência da Religião, Marcelo Camurça, por sua
gentileza e atenção nas leituras dos trabalhos e na convivência com seus alunos. Foram
muitos os textos indicados por você, que ajudaram na minha formação em Ciência da
Religião, especialmente no campo da antropologia.
Agradeço a atual coordenação pela compreensão manifestada nos momentos que
necessitei.
Agradeço ao Antônio que sempre me atendeu com competência e atenção
À Ana Lúcia M. Cordeiro e Elam Pimentel colegas de curso que se tornaram amigas
queridas, agradeço pela gentileza, pelo constante incentivo e apoio. Foram vocês que não
me deixaram desistir de me tornar Doutora em Ciência da Religião quando insistiram
afetuosamente para que eu prestasse o concurso. Ana Lucia e Elam, de formas diferentes,
acompanharam meus momentos de desânimo, desilusão e empolgação. Em todos esses
momentos tiveram uma palavra amiga, atitudes incentivadoras que me estimulavam a
ultrapassar as “pedras no caminho”.
Aos meus colegas de pós-graduação pela agradável convivência, em especial
Rosana e Paulo. Da mesma forma, agradeço a todos os meus amigos, principalmente
Bertaísis e Rosani, pela torcida, pelo apoio e pelas influências afetivas.
À Ana Sthefan e Robert Daibert por sua amizade, carinho, atenção e cuidado em
relação aos meus estudos. Amigos que permanecem unidos desde a graduação de História e
que atualmente estão ligados também academicamente através da Ciência da Religião.
Agradeço a minha amiga Eliane Abreu por torcer e vibrar com minhas conquistas e
por me receber em sua casa todas as vezes que necessitei realizar as pesquisas nos arquivos
localizados no Rio de Janeiro. Agradeço à toda sua família por se empenharem em me
guiarem em todos os locais que precisei ir atrás de informações úteis à realização desse
trabalho.
Agradeço principalmente à minha família pelo constante incentivo, apoio e
paciência.
RESUMO

O universo ligado à Nova Era começa a emergir a partir do movimento de contestação dos
anos de 1960, denominado contracultura. Este movimento, através da transgressão como
valor, vai “pregar” a liberdade individual, o trabalho no plano da subjetividade e a partir
disso vão empreender um intenso experimentalismo através da “mistura”, produzindo os
híbridos sem qualquer constrangimento. A contracultura é um evento que se apresenta
como um contexto que dinamiza a “proliferação dos híbridos”. Desse modo, através dos
vários experimentalismos uma nova percepção ou consciência vai adquirindo,
gradativamente, visibilidade e vai se delineando à medida em que ocorre uma incorporação
dos valores transgredidos colocados em ação pela contracultura. A autonomia processada e
suas consequentes “inovações” passam a traduzir dinâmicas, operações e práticas para a
sociedade, sendo a Nova Era considerada a manifestação mais radical dessa autonomia.
Este trabalho apresenta as questões que envolveram a contracultura no mundo e no Brasil
em consonância com as reflexões de Latour sobre a referência circulante, focalizando a
questão da autonomia do transporte bem como o seu trabalho na configuração do social. A
autonomia adquirida por aquilo que é criado vai desencadear uma série de conexões que
passam a produzir vínculos sociais que são elaborados a partir de misturas ou dos híbridos.
Assim, a nossa sociedade está repleta de híbridos, não havendo, uma separação entre
natureza e cultura como afirma os modernos. Ao que parece, esses domínios, mais do que
nunca, estão conectados e a Nova Era torna-se um indicativo sofisticado dessa ocorrência.

Palavras-chave: contracultura, hibridismos, configuração do social, Nova Era.


ABSTRACT

The universe connected to the New Age starts emerging with the contestation
movement of the sixties, which is called counter-culture. Such movement, through
transgression viewed as a value, will preach the individual freedom and the work on
an subjectivity basis, and from these points of view, it will implement an intense
experimentalism through a mix, producing the hybrids without any kind of
constraint. The counter-culture is a event that is conveyed as a context that makes the
“proliferation of hybrids” something dynamic. This way, through various kinds of
experimentalisms, a new perception or consciousness gradually, starts becoming
visible and begins to be delineated with the incorporation of the transgressed values
that are started with the counter-culture occurrence. The autonomy processed and its
consequent “innovations” begin translating dynamics, operations and practices to the
society, and the New Age has been considered to be the most radical manifestation of
such autonomy. This paper conveys the questions that involved the counter-culture in
the world, and in Brasil, in accordance with the reflections made by Latour on the
circulating reference, focusing on the transport autonomy question, as well as its role
in the configuration of the society. The autonomy gotten through what is created is
going to start a series of connections, which turn out to produce social links that are
elaborated from mixes or hybrids. As a result, our society is full of hybrids, and there
is no separation between nature and culture, as the modern affirm. It seems that such
domains, more than ever, are connected, and the New Age seems to be a sophisticated
sign of such occurrence.

Key-words: counter-culture, hybridism, social configuration, New Age


SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................................11

Capítulo 1: Sobre os horizontes da Nova Era...................................................................18

1.1. Experiência e construção de novos vínculos..................................................................19


1.2.Cenário e interpretações................................................................................................. 28
1.3. Nova Era e contracultura................................................................................................38

Capítulo 2: Dos Estados Unidos para o mundo: sexo, drogas e rock?...........................53

2.1. A revolução que estava no ar.........................................................................................54


2.2. Ser hippie é subverter o significado das coisas..............................................................62
2.3. Outros “ismos”: encontros, desencontros, conciliações e salamaleques .......................71
2.4. Rock e religião................................................................................................................87

Capítulo 3: O espírito libertário que iluminava mentes e corações.............................102

3.1. Outros românticos.......................................................................................................106


3.2. A produção artística: construção e quebra de fe(i)tiches ..........................................113
3.2.1. A esquerda sob a perspectiva do CPCs, Une e reavaliações....................................114
3.2.2. O Opinião e as artes plásticas...................................................................................126

Capítulo 4: A confluência tropical: “ver com olhos livres”...........................................136

4.1. Os pioneiros: antropofagia da década de 1920............................................................138


4.2. A antropofagia dos anos de 1960: tropicalismo...........................................................141
4. 3. A profanação do terreno sagrado da Musica Popular Brasileira ................................153
4.4. É proibido proibir: tudo está solto no exercício da liberdade......................................164
4.5. Tropicalismo: explosão do espírito de vanguarda.......................................................171

Capítulo 5: A tropicalidade de uma contra-cultura.......................................................180

5.1. “Eu organizo o movimento”: densidade poética, o arcaico e o moderno:...................181


5.2. Subversão &subversões: esquerdas, tropicalismo e exílio...........................................194
5.3. Encontros que conduzem ao Kaos ..............................................................................210

Capítulo 6: Cultura alternativa e a busca pela ampliação da consciência...................222

6.1. Os marginais: a vanguarda existencial.........................................................................224


6.2. “Underground” ou “desbunde”: a cor nos anos de chumbo.......................................229
6.3. Geração Bendita: É isso aí, bicho................................................................................240
6.4. O estilo underground e a ampliação da consciência...................................................248

Conclusão...........................................................................................................................263

Referências bibliografias..................................................................................................269
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2
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AGRADECIMENTOS

Agradeço à Fátima Tavares por aceitar me orientar e continuar me acompanhando


em minha trajetória acadêmica no Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião. A
ela devo os primeiros contatos que tive com a temática ao qual me dediquei nesses anos de
formação. Suas contribuições extrapolaram o campo acadêmico. Os anos convivendo com
sua personalidade marcante também trouxeram contribuições para a esfera pessoal.
Agradeço pela solidariedade e compreensão manifestada nos momentos que realmente
precisei, pelos “puxões de orelha”, pela paciência e leitura atenta do trabalho.
Agradeço ao professor Raul Magalhãespor ter aceitado a me orientar a pedido da
Fátima e ter me acompanhado até se desligar do Departamento.
Ao professor do Departamento de Ciência da Religião, Marcelo Camurça, por sua
gentileza e atenção nas leituras dos trabalhos e na convivência com seus alunos. Foram
muitos os textos indicados por você, que ajudaram na minha formação em Ciência da
Religião, especialmente no campo da antropologia.
Agradeço a atual coordenação pela compreensão manifestada nos momentos que
necessitei.
Agradeço ao Antônio que sempre me atendeu com competência e atenção
À Ana Lúcia M. Cordeiro e Elam Pimentel colegas de curso que se tornaram amigas
queridas, agradeço pela gentileza, pelo constante incentivo e apoio. Foram vocês que não
me deixaram desistir de me tornar Doutora em Ciência da Religião quando insistiram
afetuosamente para que eu prestasse o concurso. Ana Lucia e Elam, de formas diferentes,
acompanharam meus momentos de desânimo, desilusão e empolgação. Em todos esses
momentos tiveram uma palavra amiga, atitudes incentivadoras que me estimulavam a
ultrapassar as “pedras no caminho”.

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Aos meus colegas de pós-graduação pela agradável convivência, em especial
Rosana e Paulo. Da mesma forma, agradeço a todos os meus amigos, principalmente
Bertaísis e Rosani, pela torcida, pelo apoio e pelas influências afetivas.
À Ana Sthefan e Robert Daibert por sua amizade, carinho, atenção e cuidado em
relação aos meus estudos. Amigos que permanecem unidos desde a graduação de História e
que atualmente estão ligados também academicamente através da Ciência da Religião.
Agradeço a minha amiga Eliane Abreu por torcer e vibrar com minhas conquistas e
por me receber em sua casa todas as vezes que necessitei realizar as pesquisas nos arquivos
localizados no Rio de Janeiro. Agradeço à toda sua família por se empenharem em me
guiarem em todos os locais que precisei ir atrás de informações úteis à realização desse
trabalho.
Agradeço principalmente à minha família pelo constante incentivo, apoio e
paciência.

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RESUMO

O universo ligado à Nova Era começa a emergir a partir do movimento de contestação dos
anos de 1960, denominado contracultura. Este movimento, através da transgressão como
valor, vai “pregar” a liberdade individual, o trabalho no plano da subjetividade e a partir
disso vão empreender um intenso experimentalismo através da “mistura”, produzindo os
híbridos sem qualquer constrangimento. A contracultura é um evento que se apresenta
como um contexto que dinamiza a “proliferação dos híbridos”. Desse modo, através dos
vários experimentalismos uma nova percepção ou consciência vai adquirindo,
gradativamente, visibilidade e vai se delineando à medida em que ocorre uma incorporação
dos valores transgredidos colocados em ação pela contracultura. A autonomia processada e
suas consequentes “inovações” passam a traduzir dinâmicas, operações e práticas para a
sociedade, sendo a Nova Era considerada a manifestação mais radical dessa autonomia.
Este trabalho apresenta as questões que envolveram a contracultura no mundo e no Brasil
em consonância com as reflexões de Latour sobre a referência circulante, focalizando a
questão da autonomia do transporte bem como o seu trabalho na configuração do social. A
autonomia adquirida por aquilo que é criado vai desencadear uma série de conexões que
passam a produzir vínculos sociais que são elaborados a partir de misturas ou dos híbridos.
Assim, a nossa sociedade está repleta de híbridos, não havendo, uma separação entre
natureza e cultura como afirma os modernos. Ao que parece, esses domínios, mais do que
nunca, estão conectados e a Nova Era torna-se um indicativo sofisticado dessa ocorrência.

Palavras-chave: contracultura, hibridismos, configuração do social, Nova Era.

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ABSTRACT

The universe connected to the New Age starts emerging with the contestation movement of
the sixties, which is called counter-culture. Such movement, through transgression viewed
as a value, will preach the individual freedom and the work on an subjectivity basis, and
from these points of view, it will implement an intense experimentalism through a mix,
producing the hybrids without any kind of constraint. The counter-culture is a event that is
conveyed as a context that makes the “proliferation of hybrids” something dynamic. This
way, through various kinds of experimentalisms, a new perception or consciousness
gradually, starts becoming visible and begins to be delineated with the incorporation of the
transgressed values that are started with the counter-culture occurrence. The autonomy
processed and its consequent “innovations” begin translating dynamics, operations and
practices to the society, and the New Age has been considered to be the most radical
manifestation of such autonomy. This paper conveys the questions that involved the
counter-culture in the world, and in Brasil, in accordance with the reflections made by
Latour on the circulating reference, focusing on the transport autonomy question, as well as
its role in the configuration of the society. The autonomy gotten through what is created is
going to start a series of connections, which turn out to produce social links that are
elaborated from mixes or hybrids. As a result, our society is full of hybrids, and there is no
separation between nature and culture, as the modern affirm. It seems that such domains,
more than ever, are connected, and the New Age seems to be a sophisticated sign of such
occurrence.

Key-words: counter-culture, hybridism, social configuration, New Age

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SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................................11

Capítulo 1: Sobre os horizontes da Nova Era...................................................................18

1.1. Experiência e construção de novos vínculos..................................................................19


1.2.Cenário e interpretações................................................................................................. 28
1.3. Nova Era e contracultura................................................................................................38

Capítulo 2: Dos Estados Unidos para o mundo: sexo, drogas e rock?...........................53

2.1. A revolução que estava no ar.........................................................................................54


2.2. Ser hippie é subverter o significado das coisas..............................................................62
2.3. Outros “ismos”: encontros, desencontros, conciliações e salamaleques .......................71
2.4. Rock e religião................................................................................................................87

Capítulo 3: O espírito libertário que iluminava mentes e corações.............................102

3.1. Outros românticos.......................................................................................................106


3.2. A produção artística: construção e quebra de fe(i)tiches ..........................................113
3.2.1. A esquerda sob a perspectiva do CPCs, Une e reavaliações....................................114
3.2.2. O Opinião e as artes plásticas...................................................................................126

Capítulo 4: A confluência tropical: “ver com olhos livres”...........................................136

4.1. Os pioneiros: antropofagia da década de 1920............................................................138

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4.2. A antropofagia dos anos de 1960: tropicalismo...........................................................141
4. 3. A profanação do terreno sagrado da Musica Popular Brasileira ................................153
4.4. É proibido proibir: tudo está solto no exercício da liberdade......................................164
4.5. Tropicalismo: explosão do espírito de vanguarda.......................................................171

Capítulo 5: A tropicalidade de uma contra-cultura.......................................................180

5.1. “Eu organizo o movimento”: densidade poética, o arcaico e o moderno:...................181


5.2. Subversão &subversões: esquerdas, tropicalismo e exílio...........................................194
5.3. Encontros que conduzem ao Kaos ..............................................................................210

Capítulo 6: Cultura alternativa e a busca pela ampliação da consciência...................223

6.1. Os marginais: a vanguarda existencial.........................................................................225


6.2. “Underground” ou “desbunde”: a cor nos anos de chumbo.......................................230
6.3. Geração Bendita: É isso aí, bicho................................................................................241
6.4. O estilo underground e a ampliação da consciência...................................................249

Conclusão...........................................................................................................................264

Referênicas bibliografias..................................................................................................270

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INTRODUÇÃO

Pretendo neste trabalho visitar as raízes contraculturais da Nova Era, buscando


perceber os encadeamentos ou as conexões que passam a ser processadas a partir desse
evento. A abordagem laturiana de conceituação do híbrido confere “dignidade” ontológica
a uma infinitude de “seres” num mundo onde somente ontologia “puras” como,
natureza/cultura e sujeito/ objeto me levou a interpretar a contracultura como um momento
significativo de confecção de fe(i)tiches. 1 Esse evento vai possibilitar que novas visões
sejam empreendidas. Entre tantas outras que se desdobraram a partir da contracultura tem-
se a “nova consciência religiosa” ou Nova Era, que se expressa como um campo de intensa
experimentação, onde o híbrido ou trabalho desvelado de construção é que fornece sentido
e cria vínculos nesse amplo universo que cruza espiritualidade, terapia e consumo.
A espiritualidade do tipo Nova Era realiza e se expande quando o universo
alternativo se fragmenta em múltiplas e versáteis associações. A versatilidade apresentada
pela Nova era faz com que ela promova hibridizações constantes. Assim, as vivências ou
experimentações do tipo Nova Era apontam para a perspectiva de que o religioso nesse
universo de “errância espiritual” (AMARAL, 2000) não se configura como um domínio à
parte, mas se realiza enquanto experiência híbrida.
Assim, as análises vão buscar no contexto da contracultura a questão do hibridismo
na conformação da subjetividade e seus vínculos, conexões e afinidades com a Nova Era,
fenômeno que radicaliza a questão da experiência híbrida. Minha intenção é compreender o
significado mais profundo das agitações que ocorreram na contracultura em seu estágio de
maior ebulição, identificando no fenômeno contracultural a produção de uma autonomia
que abre caminho para o surgimento de novos regimes de enunciação que vão produzir
mudanças e criar vínculos. Associado a estas questões ou como prolongamento desses

1
Uma articulação entre fatos e fetiches, rompendo com a dicotomia moderna em torno da eficácia dos
processos de ação, que distinguem o que é “crença” daquilo que é “real”. Ver Latour, 2002.

11
encadeamentos, indicarei que a intensa elaboração experimental da Nova Era reflete uma
tendência mais ampla , indicada por Latour, que é a “proliferação dos híbridos”.
A contracultura vai inspirar parte da juventude da época a vivenciar e a
experimentar outros padrões de comportamento. Toda mudança, porém, antes da sua
estabilização ou assimilação, provoca controvérsias. Assim sendo, apresentarei situações
que ilustram essas controvérsias, que, assimiladas, perdem seu caráter de novidade e
estranhamento. Nesse sentido, a contracultura, bem como a Nova Era, em função das
experimentações empreendidas, nos ilustra com sofisticação a dinâmica de construção do
social pelos processos híbridos.
Com a intenção de realizar uma leitura dos processos que envolvem a contracultura
e a Nova Era a partir da dignidade que a concepção de Latour concede aos híbridos, no
primeiro capítulo, “Sobre os Horizontes da Nova Era”, irei apresentar as idéias centrais
deste autor, aproveitando o momento para articular a questão do hibridismo no âmbito da
história da Nova Era e da contracultura. Constará também no capítulo as análises de autores
que investigam o tema, considerando os caminhos e reflexões que cada um aponta em
relação à Nova Era. Com base nos autores analisados enfatizarei o vínculo histórico entre
contracultura e Nova Era e as questões que podem ser levantadas a partir desse pressuposto.
Na esteira da efervescência política e social dos anos de 1960 ocorre a entronização
ideológica do que pode ser chamado de um “individualismo libertário”. A sexualidade é
eleita como o motor desse “individualismo libertário”. Pensadores como Herbert Marcuse
(1967; 1968) e Wilhelm Reich (1975), abrem com suas teses novas perspectivas no sentido
de indicar que a sociedade burguesa reprime a sexualidade. Para Reich e Marcuse todos os
flagelos da civilização ocidental estariam vinculados à repressão sexual.
O que qualifica essa modalidade de individualismo, segundo Salem (1991), é a
disposição de que o único regime a ser imposto ao indivíduo é o da liberação. “O preceito
da igualdade como regente das relações sociais afirma-se, assim, como condição sine qua
non da liberação, pois assegura a destotalização do indivíduo com respeito a qualquer
instância pretensamente englobante e/ ou normatizadora” (SALEM, 1991, p. 67).
Um dos movimentos de contestação que surgem a partir desse individualismo foi a
contracultura, que inaugurou o imaginário hippie, a opção por uma vida despojada, e
contribui para que a juventude norte-americana começasse a vivenciar a perspectiva “real”

12
da Era de Aquário. Há um desejo dos jovens de transformarem o mundo pacificamente
propondo uma sociedade alternativa, o amor livre, o fim da neurose, rock`n roll e as drogas
como forma de ampliação da consciência. Dos Estados Unidos para o mundo a
contracultura vai produzindo novas conexões. Essas questões serão levantadas no capítulo
dois, “Dos Estados Unidos para o Mundo: sexo, droga e rock?”, onde também serão
apresentadas algumas situações que indicam a questão da proliferação dos híbridos e as
conexões decorrentes disso. Tal ocorrência pode ser exemplificada na cultura pop que na
época era vista como uma manifestação da cultura “paz e amor”; na subversão realizada em
todos os níveis pelos hippies e nas polêmicas que envolveram o rock nos seus contatos com
a religião.
No terceiro capítulo, “O Espírito Libertário que Iluminava Mentes e Corações”, será
trabalhado o vínculo ou conexão entre arte e política, característica marcante nessa época e
que tinha o firme propósito de promover a revolução socialista através da conscientização
do povo. Esta visão, compartilhada por intelectuais, artistas e jovens engajados, foi
denominada por Ridenti (2000) como Romantismo Revolucionário. Com isso a produção
artística baseada no eixo nacional- popular era uma ideologia que marcava a estética no
Brasil e rejeitava qualquer intervenção externa ou assimilação de idéias vanguardista. Para
marcar os embates provocados pelas manifestações de vanguarda, será recuperado o
envolvimento dos artistas ideologicamente envolvidos com o Romantismo Revolucionário
(RIDENTI, 2000) através de suas atuações nos CPCs e no Grupo Opinião. O vinculo arte e
esquerda com o eixo nacional- popular vai levar os segmentos sintonizados com essa
perspectiva a rejeitarem as propostas da contracultura, ou qualquer proposta de vanguarda.
No contexto do final dos anos 60 do século passado, o estilo underground tornou-se
uma alternativa sedutora para muitos indivíduos e vai se expandir pelo mundo
influenciando a produção cultural em vários níveis. No Brasil, esse movimento apresentou
novas linguagens e rompeu com a perspectiva de arte engajada que alienava a subjetividade
e colocava a questão estética numa camisa de força. Isso vai provocar a reação de
segmentos da esquerda engajada que considerava a contracultura alienada e algo do
imperialismo norte-americano. Os jovens que se identificavam com as propostas da
contracultura eram duramente criticados e taxados de alienados. Esse desencontro de
perspectiva vai produzir embates históricos que serão analisados no decorrer do quarto

13
capítulo. Alheios às críticas, muitos artistas seguem com suas experimentações. A
manifestação que provocou mais controvérsias nesse período foi o Tropicalismo, que se
colocou como vanguarda e pode ser lido como uma das faces da contracultura no Brasil;
além de identificações desse movimento com a esquerda armada há também uma inspiração
nos princípios associados à Nova Era. Essas são as questões de fundo que serão trabalhadas
no quarto e quinto capítulos, “A Confluência Tropical: ‘ver com olhos livres’” e “A
Tropicalidade de uma Contra-Cultura”, respectivamente.
No sexto capítulo, “A Cultura Alternativa e a Busca pela Ampliação da
Consciência”, serão analisados alguns exemplos de experiências contraculturais no Brasil e
sua relação com o Regime Militar. Esses anos foram anos de muita repressão, ou melhor,
“eram anos de chumbo”. Mesmo assim, a contracultura “floresceu” e significou um canal
aberto às várias experimentações e formulações de novas linguagens. Dentro desse quadro
de novas conexões surgem os poetas marginais, como Jorge Mautner, Waly Salomão,
Torquato Neto, entre outros. Também será descrita a formação de um “território livre”,
onde “aparentemente” tudo era permitido em termos comportamentais, num contexto de
intensa repressão. Este local foi o Píer de Ipanema, na zona Sul do Rio de Janeiro e que se
tornou um local de concentração de “adeptos” da contracultura numa praia que se torna a
“praia oficial do desbunde”. Outro exemplo interessante da manifestação e registro da
contracultura no Brasil encontra-se num filme realizado por uma comunidade hippie que
deseja divulgar sua visão de mundo e uma coluna num jornal alternativo, o Pasquim, onde
são divulgados princípios da contracultura em direção à busca da ampliação da consciência.
Neste trabalho há um esforço no sentido de demonstrar os vínculos entre
contracultura e Nova Era a partir da perspectiva de que estes movimentos estão ligados ao
fenômeno de “proliferação dos híbridos”. Para a concretização do trabalho, realizamos uma
pesquisa em jornais e revistas tendo como recorte cronológico o ano de 1967 a 1973. Esse
período representou o estágio de maior ebulição da nossa contracultura. Os veículos
impressos utilizados foram revistas e jornais.
As revistas pesquisadas são: Manchete, Cruzeiro, Fatos & Fotos, Realidade, todas
com edição da época. A revista Show Bizz foi utilizada como uma fonte especializada em
cultura pop. O exemplar da Bizz consultado é uma edição especial de comemoração do
rock, enfocando a história desse estilo musical e tudo que estava associado a ele. Aspectos

14
vinculados à contracultura são comentados, inclusive com entrevistas. Uma outra revista
utilizada foi a Revista Civilização Brasileira. Uma publicação criada por Ênio Silveira e
que reunia intelectuais de esquerda que comentavam produções no campo da cultura. São
nomes associados a essa revista: Moacyr Felix, Dias Gomes, Cavalcanti Proença, Vieira
Pinto, Nelson Weneck Sodré, Leandro Konder e Carlos Nelson Coutinho. As revistas
Bondinho e Flor do Mal são consideradas publicações alternativas e foram encontradas na
Associação Brasileira de Imprensa, na Biblioteca Nacional. Segundo a atendente da ABI,
esta associação conseguiu resguardar alguma coisa que era considerado subversivo pelo
Regime Militar. Talvez isso explique a ausência dessas publicações na Biblioteca Nacional.
Os jornais pesquisados foram Jornal do Brasil, Última Hora, Folha de São Paulo e
o Pasquim. As fontes foram consultadas na Biblioteca Nacional, na Associação Brasileira
de Imprensa. Na Biblioteca Nacional a pesquisa foi realizada através de microfilmes; na
Associação Brasileira de Impressa a pesquisa foi feita através do manuseio dos exemplares.
Algumas citações dessas fontes podem não ter o número da página discriminado em função
da qualidade do microfilme.
O material de pesquisa vai indicar como aspectos da contracultura brasileira eram
abordados por esses veículos; identificar críticas, incentivos e divulgação da produção da
cultura alternativa; perceber se há notificação de práticas religiosas alternativas e também
nos proporciona avaliar em termos gerais a repercussão da contracultura ou as
manifestações a ela associadas no Brasil e sua relação com o regime militar, a questão da
censura e a produção da imagem do Brasil.
O Pasquim foi um veiculo representativo da imprensa alternativa, divulgando e
criando várias tendências. O Pasquim iniciou suas publicações em 1969 com tiragem
semanal e se tornou um sucesso de vendas no período da Ditadura. Nesse jornal, a análise
se concentra particularmente na coluna Underground, escrita por Luiz Carlos Maciel. Este
jornalista mantinha um contato com o que estava sendo produzido nos Estados Unidos, as
pessoas que liam o jornal buscavam um contato com ele, muitas delas lhe enviavam
material. Esse jornalista é considerado o introdutor no país de muitas novidades trazidas
pela contracultura a nível global. É considerado o “Guru da contracultura”, o que faz com
que ele seja citado no várias vezes no decorrer do trabalho A coluna fornece um amplo
quadro da contracultura.

15
Grosso modo, as fontes passaram por uma análise criteriosa, focalizando o teor dos
conteúdos. A análise não pretende demarcar o perfil editorial das publicações e a que grupo
de interesses elas estavam associadas. É o teor dos conteúdos que me interessa. São nesses
conteúdos que buscarei identificar a produção de motes ligados à busca da autonomia e/ ou
do estabelecimento da liberdade individual que vão permitir novas posturas
religiosas.Também não houve uma preocupação em quantificar esta triagem; optei por uma
abordagem qualitativa.
Foram utilizados sites como fontes de informações, de conteúdo sobre o tema e
como uma possibilidade de acesso a outros documentos. Também foram utilizados encartes
que acompanham as mídias, como DVD, CD e LPs. Os encartes foram utilizados por
conterem as músicas desses artistas e por apresentarem comentários que trazem a tona
sutilezas que só um crítico de música pode perceber e entender. Esse tipo de fonte nem
sempre é datado e nem apresenta números de página. Quando utilizo este tipo de fonte
explico na nota de pé de página essa ocorrência.
Um filme produzido por uma comunidade hippie, produzido em 1970, foi analisado.
Ele é um longa-metragem e pretendia através de um roteiro (fictício) retratar a experiência
da comunidade. O filme foi analisado na cinemateca do Museu de Arte Moderna. O filme é
conhecido por dois nomes, “Geração Bendita” e/ ou “É isso aí, bicho”. É considerado o
primeiro filme hippie. De forma que ele tornou-se um registro de uma época.
Busquei utilizar livros de memórias para tentar resgatar as vivências naquela época,
assim como muitas das referências bibliográficas utilizadas foram produzidas num contexto
próximo aos acontecimentos. Os livros de memórias dos indivíduos que vivenciaram aquele
momento acabam reafirmando aquilo que as fontes advindas do material jornalístico já
apontavam.
Para auxiliar essa parte mais empírica, foram acrescentadas obras básicas sobre os
temas levantados e que vão fornecer o arcabouço para a construção teórica do trabalho.
Com base nos estudos específicos de alguns sociólogos, antropólogos e historiadores,
busca-se a interpretação social e cultural que possibilite uma análise dos “primeiros
momentos” que vão inspirar o que hoje conhecemos como movimento Nova Era e sua
relação com a “proliferação dos híbridos”.

16
Em função da presença de muitos artigos, optei por jogar todas citações referentes
às fontes nas notas de pé de página, assim como também quando me referir aos sites.
Assim, as citações no corpo do texto vão ser exclusivamente bibliográficas. Esta opção,
embora mais cansativa, permite ao leitor entrar em contato com os títulos dos artigos e
matérias. Além disso, esse procedimento permite uma clareza nas informações quando as
fontes são catálogos, manifestos ou encartes.

17
CAPÍTULO 1: SOBRE OS HORIZONTES DA NOVA ERA

O panorama religioso contemporâneo é marcado pela “disputa” de fieis, uso da


tecnologia e de técnicas de marketing, crise das instituições religiosas tradicionais e suas
alternativas para o enfrentamento dessa configuração e, sobretudo, pela secularização em
pleno curso. Assim sendo, seria de se esperar que não houvesse mais espaço para
inclinações e posturas religiosas ou espirituais. Paradoxalmente, o que notamos é a
emergência de novas formas de religiosidades no universo do homem contemporâneo. 2
Segundo Amaral (2001), “nos dias atuais não é mais analiticamente produtivo optar pelo
fim da religião ou fim da secularização”, na medida em que, ao que parece, “da própria
secularização emerge uma nova imaginação religiosa, não como sua negação ou como
‘retorno do recalcado’, mas como realizações inseparáveis uma da outra” (AMARAL,
2001, p. 01).
Atualmente, a procura pelo “sagrado” e pelo sentido religioso efetua-se num campo
marcado pela pluralização, privatização e publicização das crenças religiosas. Essa busca,
no entanto, não se realiza necessariamente em consonância com os padrões das religiões
tradicionais, na medida em que elementos religiosos coexistem cada vez mais com práticas
e valores considerados modernos e seculares.
O tipo de experiência religiosa caracterizada pela interpenetração de elementos
espirituais/sagrados com elementos ditos modernos e secularizados/profanos, vem
subvertendo o padrão tradicional de filiação religiosa. A religião “subordina-se” ao
indivíduo e é ele próprio quem elabora seu universo simbólico, tendo à sua disposição uma
gama de bens culturais que são (re) elaborados de forma livre e subjetiva, envolvendo uma
magnífica diversidade de símbolos. Desta forma, o sagrado desloca-se para o Self,
incrementando o ideal de auto-cultivo ou auto-conhecimento.
2
Luiz Eduardo Soares, estudando o sentido de novas experiências religiosas na atualidade, identificou esta
ocorrência como sendo parte de um movimento amplo. Este estudo foi denominado por Soares como “Nova
Consciência Religiosa” (Soares, 1989).

18
Por outro lado, as religiões tradicionais também buscam caminhos para adequarem-
se às novas demandas de sentido exigidas pelos indivíduos contemporâneos. Assim, além
das religiões tradicionais, que buscam se adaptar ao panorama de globalização, de
pluralismo religioso e cultural, novas formas religiosas emergem no campo religioso. 3
As pesquisas e análises realizadas no Brasil acerca da religião são marcadas por
uma tendência majoritária à investigação do catolicismo. 4 Logo após, em volume de
estudos estão as religiões afro-brasileiras. Podemos perceber também que vem aumentando
significativamente o interesse em analisar as variantes “emocionais” da tradição cristã (neo-
pentecostalismo e movimento carismático). No âmbito de estudo desses “novos
movimentos religiosos” encontra-se também, em menor escala, análises que se dedicam a
uma vertente percebida como fluída, porosa e com uma plasticidade inesgotável, que
normalmente é englobada sob o rótulo de Nova Era e que encontra suas raízes mais
próximas no movimento da contracultura. As relações entre as experimentações da
contracultura, da Nova Era e o processo de proliferação dos híbridos serão os assuntos
abordados deste capítulo.

1.1 A valorização da experimentação e a construção de novos vínculos

Os estudos sobre a Nova Era apontam uma impossibilidade de demarcação, a


efemeridade das suas elaborações e o fato de ser incontestavelmente um movimento
planetário. O que convencionalmente definimos como Nova Era se rebela e recusa uma
caracterização, na medida em que tal movimento subverte as fronteiras delimitadas em
relação ao que se define classicamente como “experiência do sagrado”. A Nova Era lança
mão e se expande por domínios profanos, apropria-se da narrativa cientifica, sintoniza-se
com o consumo, aciona uma infinidade de experimentos e infiltra-se cada vez mais no
âmbito do terapêutico. Assim, vivencia-se uma experiência onde o religioso não se
estrutura ou adquire uma substância ou um domínio à parte, mas elabora-se enquanto
experiência híbrida rompendo barreiras de vários domínios.

3
Não podemos descartar que o debate sobre as perspectivas em torno da Nova Era ou da subjetivação do Self
podem estar em plena operação nas religiões tradicionais, por meio de agentes como o padre Marcelo e os
pastores exorcistas do neo-pentecostalismo.
4
Estes estudos focam a instituição católica, as suas manifestações e vertentes (populares, Teologia da
Libertação e carismática.)

19
Foi a partir dos anos 80 e 90 do século passado que houve efetivamente a difusão
dos temas alternativos à sociedade ocidental moderna (valorização do artesanato, procura
por práticas místicas e médicas orientais, movimentos ambientalistas, práticas xamânicas
dos indígenas americanos, ioga, busca de estados alterados de consciência através do êxtase
religioso, da música e das drogas, entre outros). Essa emergência teve como características
principais novas combinações e novos sincretismos, denominados, agora, de cultura
alternativa. Soares (1989) define a cultura alternativa dos anos 1980 e 1990 através dos
temas recorrentes pelos quais ela tem se manifestado, como “o trinômio corpo-espírito-
natureza e as díades saúde-violência, equilíbrio, respeito-violência, restauração-devastação,
reconciliação-ruptura, harmonia-desarmonia, fluência-bloqueio (...)” (SOARES, 1989, p.
124).
Ocorre, então, uma adesão aos valores transgredidos quando os temas associados ao
universo alternativo se fragmentam em múltiplas e versáteis combinações, prodigalizando e
realizando abertamente a “proliferação dos híbridos”, processo que a “a modernidade” tenta
ocultar em favor do discurso de purificação.
Segundo Bruno Latour (2004; 2008), a modernidade produz cada vez mais objetos
híbridos 5 . Na contemporaneidade esse processo acentua-se e, no entanto, nós continuamos
a negá-lo em favor do discurso da pureza dos sistemas, de uma “pseudo” separação radical
entre natureza (inato) e cultura (ação humana), entre diferenciação entre “nós” (os
modernos) e os “outros” (pré-modernos e cultuadores de fe(i)tiches ou construtores de
“fatos”). 6 O autor sugere que apesar do discurso sobre a pureza realizada pelos modernos, o
que chamamos de Constituição Moderna 7 terminaria, na verdade, por se caracterizar por
uma dinâmica velada entre trabalho da mediação, não reconhecido, e o processo de
purificação realizado de forma eficiente alicerçado pelo seu mediador, a ciência. Em última

5
De modo geral, os dicionários indicam que híbrido é tudo aquilo que provém do cruzamento de espécies,
raças ou variedades diferentes. Também é o que se afasta das leis naturais. Para Latour, nossa sociedade é
híbrida na medida em que o social se constitui pela circulação que atravessa e conecta vários domínios
considerados distintos, formando redes, onde cada lugar pode ser visto como somatório.
6
Ver melhor sobre o assunto em Latour (2001; 2002; 2004; 2008).
7
Tradicionalmente entendemos como sendo Constituição Moderna tudo aquilo que tem com base o
iluminismo e sua centralidade na razão e autoridade da ciência. Segundo Velho (2005), em Latour, o
cientificismo é associado à modernidade, que ele renega. O olhar que Latour tem sobre a modernidade (ou
não-modernidade) está vinculado à relação da Ciência com a sociedade e a problemática da pureza em
oposição à mistura, “ao lado, de outras dicotomias (como fato e valor, mundo e representações etc)”
(VELHO, 2005, p. 302-303).

20
instância, é o processo de purificação que acabaria definindo a configuração da
modernidade e manutenção das dicotomias.
Relacionando a perspectiva de Latour (2004; 2008) com a Nova Era, podemos
perceber que o hibridismo que caracteriza basicamente suas experiências ou vivências não é
negado e nem camuflado. No entanto, a cultura Nova Era, por privilegiar as mais
heterodoxas combinações, desvelar mediações, consagrar o efêmero e o provisório como
traços da experimentação religiosa, tem sido apontada por variados campos críticos como
sendo um caos semiológico, consumismo, uma cultura do simulacro, entre outras definições
que desqualificam o movimento tanto no campo sócio-cultural como enquanto objeto de
estudo da ciência. Segundo Tavares (2007), “não podemos perseguir esse trabalho de
mediação considerando somente o seu aspecto negativo, de crescente superficialidade, de
desvio ou de puro apelo mercadológico” (TAVARES, 2007, p. 10).
O caos semiológico atribuído ao movimento Nova Era, a construção incessante de
novos vínculos e a ausência de vínculos sociais estáveis contribuem para que se construa a
imagem de que esse conjunto de experiências religiosas pautadas por múltiplas
experimentações ou vivências são, na verdade, um amálgama difuso e fluido. No entanto,
assim como a Nova Era é híbrida e permeada por infinitas conexões, Latour indica em suas
reflexões que nossa sociedade, dita moderna e, portanto, marcada por uma distinção de
esferas e domínios que nos diferenciaria das sociedades “tradicionais” é na “verdade”
híbrida. Segundo ele, não podemos mais perceber o “social” como uma estrutura ou um
domínio específico. O autor propõe um paradigma relacional, onde o social é um tipo de
circulação. O social é permeado por conexões entre coisas não sociais e humanos. Tudo se
realiza no fluxo continuo das mediações. Daí decorrem os hibridismos; “os híbridos ou
materrs of concern, isto é, as coisas ao mesmo tempo naturais e domesticadas, os quase-
sujeitos e quase-objetos dotados simultaneamente de objetividade e paixão” (LATOUR,
2004a, p. 397).
As concepções de Latour, desmontam a ilusão moderna da separação dos vários
domínios e abre caminho para uma visão em que o mundo moderno (para Latour, não-
moderno) passa a estar conectado a todas as naturezas-culturas. As concepções clássicas de
que dispomos em relação ao que se entende como “social” não dão conta da natureza da
sociedade contemporânea.

21
E não se diga que com tudo isso ultrapassamos indevidamente os limites do
social, pois o que está em jogo é justamente o reconhecimento de um social mais
amplo, pelo critério – pragmático – de sua presença eficaz, em que proliferam
fé(i)tiches e seres, que, como diria Latour, se não fazem, “fazem fazer”; e que
sempre encontram, quando necessário, os seus porta-vozes (VELHO, 2007: p.
354).

As imagens que tradicionalmente dispomos acerca do “social”, como um lugar


feito de alguma matéria especial, reservatório último da manutenção de
vínculos, disposições, “habitus”, crenças e adesões, parece atualmente pouco
apropriada para compreender o sentimento de crise de pertencimento que se
abate sobre todos nós. Os vínculos que produzem associações encontram-se em
constante mudança: vínculos tradicionais encontram-se fragilizados enquanto
novos vínculos passam a produzir associações. O processo de “desregulação do
religioso” que atravessa a sociedade contemporânea é indicativo dessas
transformações constantes: a organização em pequenos grupos; a individuação
da religião; a cultura científica como fundamento do conteúdo religioso; a
emergência de novas linguagens (TAVARES, 2007, p. 04).

A direção apontada por Velho (2007) e Tavares (2007), ambos referendados em


Latour, sintoniza-se com a Nova Era na medida em que a singularidade desse movimento
está justamente na sua capacidade de valorizar a experimentação e a construção de novos
vínculos. Isto resulta em uma cadeia de mediadores, já que são produzidos continuamente
novos tipos de conexões entre coisas (sujeitos e objetos /humanos e não-humanos). Tal
configuração permite que no âmbito da Nova Era “constitua-se” associações que se tornam
singulares, pois apresentam as seguintes características: é uma experiência religiosa
“errante” ou um “espírito sem lar” (AMARAL, 2000); não há uma organização em igrejas
ou arcabouço doutrinário a ser assegurado; não há manutenção de vínculos temporários
entre seus participantes ou um grupo constituído que se mantenha a longo prazo, ou seja,
não há uma comunidade de praticantes. Ela só existe em rede e mesmo assim ela não é
reconhecida por eles. 8
As práticas e a experiência religiosa do tipo Nova Era, como podemos observar, têm
como centralidade a autonomia. 9 Há uma autonomia absoluta que é sacralizada e se
apresenta como “chave transformadora” (CAROZZI, 1999) na dinâmica entre o indivíduo e
o movimento. A Nova Era está afinada com os princípios de liberdade que tomaram corpo a

8
Para aprofundamento no assunto consultar Amaral (1999; 2000); Tavares (1998; 2003); Carozzi (1999).
9
Para aprofundamento no assunto consultar Carozzi (1999); Tavares (1998; 2007).

22
partir da contracultura. “Pode-se dizer que está nos princípios da contracultura, lutar contra
tudo que venha de encontro à quebra da individualidade (...)” (ALMEIDA JR, 1996). 10 A
Nova Era também rejeita qualquer cerceamento à idiossincrasia. É também, com a
contracultura que se propaga, a perspectiva da chegada da Era de Aquário. 11
A contracultura abre caminhos para o surgimento do que chamamos “nova
consciência religiosa”, a partir da rejeição dos valores tradicionais que então reprimiam e
alienavam a individualidade e a autonomia. Na época da contracultura, a juventude
acreditava que não bastava transformar a estrutura econômica e o Estado. Era preciso
mudar a própria maneira de se comportar e sentir. A revolução deveria ser total. Assim,
tinham também, como tantos outros indivíduos engajados nos movimentos de esquerda, a
visão de que sempre que se age para transformar o mundo está se fazendo política, embora
usassem métodos e práticas consideradas, na época, anticonvencionais. Dessa forma, nem
todos sonhavam com uma revolução socialista como a russa, chinesa ou cubana como
formas de transformar o mundo. Muitos jovens irão rejeitar a guerrilha, os movimentos
radicais e preferir “paz e amor” e a “transgressão” como “ações” para transformar o mundo.
Seus heróis não eram Lênin, Mao ou Che, mas Gandhi, antigos sábios chineses e gurus
indianos.
Grosso modo, o movimento da contracultura tinha como objetivo “criar” um
“mundo novo”, mais igualitário a partir do amor, da paz, quebrando os costumes, os
padrões de nossa sociedade judaico-cristã, de nossas tradições e preconceitos. Enfim,
colocando em xeque nossas instituições num quadro que podemos pintar como uma certa
“desobediência civil”.
Durkheim (1978), em “As regras do método sociológico”, apresenta uma das
definições acerca do objeto de estudo da sociologia. Como se sabe, ele indica que a
sociologia é a ciência que estuda as instituições sociais. De acordo com esse autor, para
identificarmos o que é uma instituição social e qual a sua função, somente é necessário que

10
ALMEIDA JUNIOR, Armando Ferreira. A contracultura ontem e hoje. 1996. Disponível em: http:
minerva.ufpel.edu.br/~castro/contracu.htm. Acesso em: 25 de março de 2006
11
A Era de Aquário, para os seus adeptos, traz uma Nova Era em relação às eras anteriores. A humanidade
nos últimos 2000 anos encontrava-se sob a Era de Peixes – um dos símbolos da fé cristã durante o Império
Romano. O fim da Era de Peixes também corresponderia o declínio da hegemonia do cristianismo. Após esta
era, considerada escura, violenta, patriarcal e reprimida, a humanidade entra no ciclo regido por Aquário, que
possibilita o encontro com a verdadeira liberdade do espírito, a ligação entre homem e universo: união
cósmica.

23
qualquer um vá de encontro a ela para saber a resposta: "a consciência pública reprime"
(DURKHEIM, 1978). Para tanto, “basta contestar, por exemplo, as relações sociais de
casamento, as relações familiares, o comportamento sexual estabelecido, os estamentos
raciais, a religião, as leis e a linguagem. Todas, instituições sociais” (ALMEIDA JR,
1996). 12 Estes foram domínios por onde gravitou a contracultura, que gradativamente
provocou mudanças nessas instituições sociais.
Embora os adeptos da contracultura julgassem ser possível, o movimento
contracultural não realizou o desejado “mundo novo”, mas, para além das polêmicas, fez
com que o mundo também não fosse mais o mesmo. Por ter se rebelado contra uma ampla
teia de padrões sociais pelos quais o poder se legitima, a contracultura foi sociologicamente
um fenômeno representativo, incluindo seus desdobramentos que gradativamente deixaram
menos repressivas as normas de conduta e os padrões de existência. “Pelo que deixou
enraizado em nossa cultura ocidental, tudo indica, continua fazendo sair ‘dos prédios para
as praças uma nova raça’. Como dizia uma canção de Moraes e Galvão” (ALMEIDA JR,
1996). 13
Um mundo mais justo e igualitário também foi a bandeira da tradição marxista que
se apresentava como uma alternativa, indicando na luta de classes o motor transformador.
Mas como enquadrar a análise de um fenômeno social que não tem sua expressão na luta de
classes? Como imaginar que um indivíduo da classe dominante tenha algo que o sufoque ou
o afronte? Como conceber que esse indivíduo também possa ser discriminado? Afinal, não
podemos descartar que ele, em outras instâncias, também é: enquanto mulher, negro,
deficiente e homossexual, por exemplo. Obviamente, são questionamentos que ultrapassam
a luta de classes. A contracultura abarcou esses assuntos tratando-os por perspectivas
diversas e desnudando sua natureza. Uma natureza que não é homogênea, que se constitui
pela interpenetração de vários domínios e naturezas.
A contracultura foi um momento singular na medida em que forneceu a nós,
ocidentais e modernos, múltiplas possibilidades para sermos o que somos: praticantes da
mistura. Embora estejamos mergulhados num mundo onde os híbridos se multiplicam, ao

12
ALMEIDA JUNIOR, Armando Ferreira. A contracultura ontem e hoje. 1996. Disponível em: http:
minerva.ufpel.edu.br/~castro/contracu.htm. Acesso em: 25 de março de 2006
13
ALMEIDA JUNIOR, Armando Ferreira. A contracultura ontem e hoje. 1996. Disponível em: http:
minerva.ufpel.edu.br/~castro/contracu.htm. Acesso em: 25 de março de 2006

24
mesmo tempo são lhes negado qualquer eficácia, na medida em que há um processo de
estabilização desse híbrido quando ele se acomoda. Trata-se da coletivização dessa
hibridação, ou seja, quando ele deixa de ser concebido como tal e ganha autonomia e se
torna fato. Esse processo de ocultação da perspectiva híbrida da natureza e da cultura
fornece legitimidade e dignidade ao texto da modernidade. “Não misturemos o
conhecimento, o interesse, a justiça, o poder. Não misturemos o céu e a terra, o global e o
local, o humano e o inumano” (LATOUR, 2008, p. 08). É o que acreditamos fazer.
Porém, com esse discurso não conseguimos mais dar conta de classificar as
situações “confusas” ou as medusas do mundo moderno. Para tentarmos compreender estas
situações é necessário, segundo Latour (2008), perseguirmos a tradução ou as redes,
seguindo as associações na medida em que com o advento da ciência e seu desenrolar
também há um processo que transforma humanos e não humanos em atores ou ator-rede.
Neste estudo, pretendo trabalhar com a perspectiva de que a contracultura apresenta fios, a
partir da experimentação e da transgressão, que passam a tecer e a conectar o nosso mundo,
permitindo que no encadeamento de suas redes e de suas inúmeras possibilidades, seja
traduzida também a “nova consciência religiosa”. 14
O movimento contracultural dos anos 1960 terá uma influência cultural ampla, que
se refletirá no espírito de um novo tempo, na construção de novos vínculos, novas
associações e novas percepções, realizados a partir de experiências híbridas e encontros
inusitados, que, como já salientamos, estão cada vez mais incorporadas e tornando-se cada
vez mais difícil a sua ocultação no arcabouço discursivo da modernidade.
Tendo em vista a perspectiva de circulação apontada por Latour (2001), busco
apresentar a relação entre contracultura e Nova Era, identificando na primeira a acentuação
dos processos híbridos, marcando-a como um contexto onde os diques do esquema de
ocultação de processos híbridos começam a ser rompidos e não conseguem mais conter a
explosão de experimentação, principalmente no âmbito pessoal, com a entronização da
autonomia. A autonomia liga a contracultura e a Nova Era, sendo que este último
movimento radicaliza a questão da autonomia conduzindo a um constante trabalho de
mediação. Não obstante, assim como foi na contracultura e, agora é na Nova Era, não há

14
Otávio Velho, comentando Latour, indica que “(...) a ênfase é nas mediações e nos mediadores
(distinguindo-se, porém, os seus modos de disposição e rebatimento) e a informação nunca é simplesmente
transferida, pagando por seu transporte um encargo pesado em transformações (...)” (VELHO, 2005, p. 301).

25
“(...) referente externo, ele é sempre interno às forças que o utilizam” (LATOUR, 2001, p.
254). “A referência é na verdade circulante e designa uma cadeia de transformações em sua
inteireza (...)” (VELHO, 2007, p. 349).
A perceptiva de Latour (2008) concede aos híbridos um espaço importante, na
medida em que eles, até então, sofriam um trabalho de omissão pela modernidade. Segundo
Latour (2008), a Constituição Moderna procura ocultar o trabalho de proliferação dos
híbridos, enquadrando-os a um “não-lugar” (a partir do trabalho incessante da purificação).
“O nosso passado começa a mudar. Enfim, se jamais tivéssemos sido modernos, pelo
menos não da forma como a crítica nos narra, as relações tormentosas que estabelecemos
com as outras naturezas-culturas seriam transformadas. O relativismo, a dominação, o
imperialismo, a má fé, o sincretismo seriam todos explicados de outra forma (...)”
(LATOUR, 2008, p. 16).
Assim, pretendo analisar a contracultura e sua relação com a Nova Era à luz da
teoria de Latour (2001; 2002; 2008), pois, para este autor, o “social” não pode ser mais
percebido como território específico, mas antes um tipo de conexão que põe em relação
elementos não sociais que resultam novas percepções e novas conexões, as quais passam a
constituir os vínculos entre os humanos. Por seu quadro histórico e sociológico, foi a
contracultura que lançou essa tendência com mais evidência, ou seja, esse movimento
realizou uma das duas práticas que os modernos realizam, mas que não admitem, que é
criar, construir “por tradução misturas entre gêneros de seres completamente novos,
híbridos de natureza e cultura” (LATOUR, 2008, p 16).
Com a Nova Era isso é realizado de forma absoluta, na medida em que ela conecta
várias áreas (religião, terapêutica, consumo, turismo e lazer), realiza um “sincretismo em
movimento” (AMARAL, 2000) ou hibridismos que não se substancializam utilizando
elementos da cultura moderna (religiosos e profanos/seculares) e de várias tradições
distintas, sempre “construindo” e “reinventando” suas experimentações e vivências. 15 A
dinâmica da experimentação a partir de uma mola transgressora “lançada” pela
contracultura levou à constituição de redes de práticas que passam a processar em seus
interiores a possibilidade de por tudo em relação. Nos processos das extensões dessas redes,

15
Há vários estudos, com recortes e abordagem diferentes, que demonstram questões e procedimentos que
envolvem a Nova Era. Cf. dentre outros, D`Andrea (1996); Tavares (1998); Albuquerque (1998); Bandeira e
Siqueira (1998); Amaral (1998); Magnani (1999).

26
houve traduções que abriram espaço para o surgimento de práticas do tipo Nova Era que
não separam o mediador de seus encadeamentos e prolongam os fluxos das mediações e
conexões.
A outra prática que nos torna modernos, a qual Latour (2008) chama de crítica, é a
da purificação dos sistemas. Essa prática cria duas esferas ontológicas completamente
distintas, “a dos humanos de um lado, e a dos não humanos, de outro” (LATOUR, 2008, p.
16). Dessas duas práticas surgem as dinâmicas da mediação e da purificação, onde, sem as
mediações, a prática da purificação seria desnecessária e, sem a purificação, o trabalho das
redes, a tradução, “seria freado, limitado ou mesmo interditado” (LATOUR, 2008, p. 16).
É a separação dessas práticas e a negação de uma delas (mediações) que nos permite
pensar que somos modernos. No entanto, cada vez mais estamos produzindo os híbridos e
continuamos a negar sua existência e proliferação em favor da purificação. E é exatamente
isso que fornece a liberdade para que eles sejam produzidos e, assim, os fatos podem
continuar a ser construídos a partir das conexões e traduções sem que os “modernos”
aceitem que, assim como os pré-modernos, também são construtores de fato. A diferença
entre nós e eles é que estes últimos admitem que utilizam essa prática e “medem” as
conseqüências de seus híbridos ao pensarem sobre eles. Nós, como não admitimos essa
prática, estamos envoltos num processo de proliferação desenfreada que na atualidade
parece estar enfraquecendo esse esquema “moderno” de separar o trabalho de proliferação e
o trabalho de purificação. Daí o surgimento de situações confusas que os analistas não
sabem mais como “classificar”.
Com base nessas colocações, pretendo analisar especificamente a contracultura
como uma manifestação, entre tantas outras possíveis, como um sinal de que esse esquema
moderno, ancorado na separação dos sistemas e na dinâmica das duas práticas citadas
anteriormente, está se enfraquecendo e apresentando fissuras nos seus diques.
No que se refere à Nova Era, ela se manifesta como uma das “traduções” da
contracultura, e também cabe lembrar que muitas vezes “ela” é percebida e analisada como
um caos semiológico ou um amálgama difuso. Essas atribuições tendem a desqualificá-la.
Para que essas características sejam compreendidas de uma forma positiva, indico neste
trabalho que a Nova Era realiza abertamente aquilo que os modernos praticam mas negam,
que é a mistura e a “fabricação dos fatos” e também sua sintonia com a prática da mediação

27
realizada pelo mundo moderno, indicando que ela é uma “fonte”, um indicativo já lapidado
e sofisticado de que esse esquema moderno está se debilitando.

1.2 Espiritualidade “Nova Era”: cenário e interpretações

A contracultura foi um movimento de contestação que começou a se desenrolar nos


Estados Unidos no ano de 1967 e que rapidamente tornou-se um fenômeno que atingiu
proporções continentais. Este movimento também é percebido como sendo as raízes mais
próximas da Nova Era. 16 Segundo Bellah (1986), a contracultura também significou uma
crítica à religião tradicional e aos seus valores, apresentando uma oposição e colocando em
xeque o ethos da sociedade norte- americana, fundamentado na tradição bíblica e no
individualismo utilitário (BELLAH, 1986).
Esse movimento, ao rejeitar os valores da tradição bíblica, acabou encontrando
alternativas fora do modelo judaico-cristão. Desse modo, a vertente religiosa da
contracultura não buscou referências em religiões institucionais, mas sim na experiência
direta e na relação imediata com o divino, colocando a experimentação como centro da
prática espiritual. Essa perspectiva espiritual parece ser o ponto central de identificação
entre a Nova Era e a contracultura, na medida em que em ambos movimentos o referencial
de prática religiosa apresenta-se como “uma demanda imediata, poderosa e profunda da
experiência religiosa com significado e satisfação no presente, rompendo com proposta
instrumentalista da experiência religiosa tradicional orientada para o futuro” (PEREIRA,
1998, p. 06). Nesse sentido, seus adeptos acreditam que

para que o individuo possa se sintonizar à essência cósmica e ao seu Self divino,
e assim evoluir, é preciso que envolva uma experiência Mística sobrenatural
(não ordinária). Os estados da consciência, induzidos pela meditação, pela
contemplação estética (da natureza, por exemplo), ou pela atividade artística ou
devocional, podem permitir o acesso a esta “ordem superior”. Da mesma, forma
uma percepção alterada da realidade pode ser a chave para a compreensão das
lições arquetípicas da vida, e conseqüentemente a sabedoria, o amor e a
plenitude (D`ANDREA, 1996, p. 160).

16
O Romantismo constitui-se como outra grande fonte de influências histórias sobre a Nova Era (bondade da
natureza humana), principalmente do pensamento de Rousseau. Assim como o New Spiritualism – vertente
religiosa-espiritual da reação à ortodoxia católico-protestante e ao cientificismo positivista –, ele engloba o
Espiritualismo anglo-saxão, o Espiritismo francês e a Teosofia, além de outros grupos cristãos pós-
protestantes (D`ANDREA, 1997).

28
Assim, a partir das demandas solicitadas por setores da contracultura, a relação com
o sagrado desvincula-se de dogmas cristalizados e identidades religiosas rigidamente
demarcadas e fundamentadas em uma verdade exclusiva, para vincular-se à “autoridade do
Self”, configurando uma religiosidade pós-tradicional.
Na contracultura, identifica-se uma nostalgia pela unidade que, em última instância,
representa uma reação contrária à perspectiva dualista entre corpo, mente e espírito. 17
Ademais, a contracultura trouxe propostas contra-modernas, como a “defesa da
espontaneidade, a experiência da vida total, buscando nas religiões e práticas orientais,
soluções para as conseqüências do processo civilizador” (ALBUQUERQUE, 1998, p. 06).
Na busca ou nostalgia pela unidade entra em voga a mentalidade holística, que hoje
é uma idéia cara à Nova Era. O holismo enfatiza a relação entre tudo o que existe 18 e
“supõe-se que haja ordem, mesmo onde seu sentido nos escapa” (SOARES, 1989, p. 126).
Nos anos 1960 e 1970, o holismo conquistou destaque e é um dos princípios filosóficos da
cosmologia Nova Era.
Assim como a contracultura, o movimento Nova Era vai encontrar nas filosofias
orientais um divino concebido como fundamentalmente imanente, incluindo nesta
concepção a humanidade, ou seja, o divino é imanente a todas as coisas, ao mundo e
também à humanidade. 19 A respeito da imanência do divino, Colin Campbell (1997)
esclarece que há uma

substituição da imagem transcendente do divino tradicionalmente ocidental


pela imagem imanente oriental, um processo que, embora venha ocorrendo por
cerca de duzentos anos, somente agora começa a se tornar de fato amplamente
visível. Falar de “orientalização”, portanto, não é, assim, discutir simplesmente

17
Na coluna Underground, publicada no jornal Pasquim e considerada divulgadora das novidades
contraculturais, encontramos indicações à valorização do holísmo, como por exemplo em: MACIEL, Luiz
Carlos. Trechos de um artigo sobre ação política. Underground. Pasquim. No 50. 04 a 10 de junho. 1970;
MACIEL, Luiz Carlos. O budismo de Adous Huxley. Underground. Pasquim. No 109. 03 a 09 de agosto.
1971.
18
Outros lemas que identificam o holismo são: “O todo é mais do que a soma de todas as suas partes”; “Tudo
é um, tudo flui”; “Todos e tudo estão ligados com tudo”. A concepção holística fornece à Nova Era a
concepção de que o homem é divino, pois tudo é um, e tudo é divino.
19
Também podemos encontrar várias matérias publicadas na coluna Underground que comentam esses
assuntos. As matérias vão apontar uma significativa procura pelas filosofias orientais: Qual é a tua?
Underground. Pasquim. No 60. 13 a 19 de agosto. 1970; Krishnamurt. Underground. Pasquim. No 98. 20 a
26 de maio. 1971, entre outras.

29
a introdução de idéias e valores religiosos do oriente; é referir-se ao processo
pelo qual a concepção de divino tradicionalmente ocidental e suas relações com
a humanidade e o mundo é substituída por aquela que tem predominado por
longo tempo no oriente (CAMPBELL, 1997, p. 07).

O autor aponta uma gradativa substituição do paradigma ocidental pelo paradigma


identificado como oriental. No entanto, ele localiza a origem deste processo não só no
movimento romântico, mas no progresso crescente das ciências, a partir do século XVIII.
Segundo sua avaliação, o progresso da ciência mitigou a crença das pessoas na religião
tradicional, com sua otimista fé na razão (CAMPBELL, 1997, p. 17).
Maria Julia Carozzi (1999) é uma autora que buscou interpretações sobre as
“origens” da Nova Era, identificando na década de 1960 a “gênese” das perspectivas
ligadas a esse movimento. Ela indica que a partir dos anos 1960 ocorreu um macro-
movimento reivindicando mudanças em várias situações sociais. A Nova Era localiza-se no
âmbito das ocorrências dos anos 1960 como a linha “terapêutico/religiosa de um macro-
movimento sócio-cultural pós-sessentista de afirmação autonômica” (CAROZZI, 1999, p.
24). Nesse processo o antiautoritarismo, a autonomia, a rejeição às hierarquias de
autoridades e as normas institucionais são direções de mudanças apontadas. O
antiautoritarismo e a autonomia constituem-se como marcos interpretativos da Nova Era.
Não obstante, Carozzi (1999) sugere que no coração doutrinário desse movimento
encontra-se justamente a sacralização da autonomia individual. A autora identifica na Nova
Era a ala religiosa do movimento autonômico pós-sessentista (CAROZZI, 1999, p. 186).
Assim, a linha religiosa desse movimento pós-sessentista, após colocar em pauta a
autonomia, possibilita que daí em diante se possa lançar em sua composição elementos
(religiosos, filosóficos e científicos) que são extraídos dos seus contextos originais e
mesclados com bens culturais produzidos pela modernidade. Nesses arranjos e rearranjos
são realizados cruzamentos de vários domínios considerados distintos pelo mundo
moderno, resultando em hibridismos, onde as mediações não são camufladas e nem sofrem
a “imposição” do processo de purificação. Esses conteúdos são arranjados de forma
subjetiva, criando hibridismos heterodoxos sob o critério do auto-cultivo e da busca do
auto-conhecimento, daí sua sofisticação. Isso

30
(...) representa uma nova forma do sujeito se relacionar consigo mesmo e com
o mundo à sua volta. Diz respeito ao modo como formas tradicionais de lidar
com esferas da vida (...) são paulatinamente substituídas por formas
idiossincráticas, teoricamente construídas a partir do próprio – sujeito de seus
desejos e características pessoais (D`ANDREA, 1996, p. 116).

Essas construções individuais são construídas a partir da autonomia e criam


incessantes conexões, com performances ou vivências que não se substancializam, pois são
“recriadas” a cada experiência e criam vínculos processados no interior das redes. Não
obstante, essa experiência religiosa que ocorre de forma subjetiva em um contexto
secularizado parece fazer parte da própria dinâmica da “alta modernidade”. 20 Como sugere
D`Andrea (1996), a “New Age é a própria modernidade se movendo para dentro do campo
religioso, alterando-o e transformando-o, eliminando algumas formas religiosas e
adaptando outras aos tempos de hoje” (D`ANDREA, 1996. p. 24). Para D`Andrea, a Nova
Era é uma espécie de produto da modernidade com uma face religiosa, ou um tipo de
religiosidade produzida pela modernidade. Isso pode ser compreendido com mais clareza
ao pensarmos sobre as mudanças ocorridas na sociedade como um todo, com a
generalização e a dimensão alcançadas pela modernidade, que provocam impactos no
espaço publico, no espaço privado e em todas as instituições envolvidas por eles.
Assim, a narrativa da tradição enfrenta o universo de escolha do consumidor, um
campo de mídia múltipla e de (pós-) modernidade globalizada. O conceito de Berger (1980)
de “imperativo herético” paira sobre as visões das religiões tradicionais e sinaliza para as
influências de tendências modernas e de secularização sobre elas.

A vertigem da relatividade, o abismo da incerteza, são seus resultados. Mas isto


também é uma conseqüência de um mundo em que a escolha reina suprema;
hesitação, ansiedade e dúvida parecem ser o preço pago por esse sentido de
escolha. A mudança do destino para a escolha, ou da providência para o
progresso, que supostamente seria tão libertadora, parece ter um lado mais
sombrio, que encobre a espiral para o niilismo (LYON, 1998, p. 94).
20
Alta modernidade é uma terminologia de Giddens, que aponta para um período em que as conseqüências da
modernidade estão se tornando mais radicalizadas e universalizadas do que antes (GIDDENS, 1990) Há toda
uma polêmica teórica em torno do uso do termo pós-modernidade/pós-modernismo, para se compreender a
contemporaneidade. De forma que, neste trabalho, optamos por não usá-lo, adotando em seu lugar a
terminologia de Giddens: “alta modernidade”. Todavia, tendo em mente que muitas das características
atribuídas a um ambiente pós-moderno estão em correspondência com o movimento New Age. De acordo com
Giddens, citado por D`Andrea, “não vivemos ainda num universo social pós-moderno, mas podemos ver mais
do que uns poucos relances da emergência de modos de vida e formas de organização social que divergem
daquelas criadas por instituições modernas” (D`ANDREA, 1996, p. 128).

31
Nesse cenário, destacam-se movimentos sociais tais como a ecologia, o feminismo,
a contracultura hippie, os movimentos gay e de minorias – que eclodem durante os anos
1960 a partir do movimento em prol dos direitos civis americanos, reivindicando a
incorporação de seus interesses na pauta dos partidos tradicionais. 21 Esses movimentos
fazem política agregando elementos estéticos, lúdicos, de ação direta e humor através de
happenings, performances e passeatas. 22 Não tão elaborado, mas presente, encontra-se o
movimento difuso de ceticismo ativo das massas 23 , que está vinculado a uma ampla falta de
confiança na política pelo homem comum e, ao mesmo tempo, na (re) descoberta das
interações comunitárias, locais, ordinárias, presenteístas e sem objetivos nobres em todas as
esferas, inclusive a da política.
Esses questionamentos são combinados de formas diversas em uma multiplicidade
de movimentos e posturas apolíticas mais ou menos organizadas. Tais questões marcariam
em conjunto uma perspectiva pós-moderna. O mérito principal disso é a busca do
alargamento, enriquecimento e transfiguração da política tradicional através da
fragmentação do campo político em uma multiplicidade de esferas locais e atores
concretos, incorporando de forma tolerante a pluralidade e assumindo o multiculturalismo
como valor. Nesse sentido, “a comunidade se torna um fenômeno de ser coletivo, mais do
que de ação coletiva” (SENNETT, 1988, p. 276).
Grosso modo, observa-se a ocorrência de uma revolução do espaço privado e do
espaço público, revolução contemporânea de comunicação massiva. Na dimensão pública,
os marcos ideológicos – nacionalistas, revolucionários – e as grandes utopias com
propostas coletivas de transformação da sociedade já não dizem muito ao mundo atual
(LIPOVETSKY, 1996). No âmbito privado, o direito à liberdade dissemina-se para os
costumes e para o cotidiano “e se impele à vontade de autonomia e de particularização.
Instala-se a busca da identidade própria, ‘o movimento da consciência’ e uma cultura
personalizada que permite ao ‘átomo’social voltar-se sobre si mesmo” (CONTEPOMI,
1999, p. 134).

21
Não podemos esquecer que esses partidos são considerados hierárquicos, autoritários e etnocêntricos.
22
Cf. resumo destas tendências em Jamenson (1991).
23
Refletido de forma crítica por Baudrillard (1992) e de forma entusiasmada por Maffesoli (1995).

32
As situações relacionadas acima fazem com que muitos analistas acreditem que
estamos vivenciando a pós- modernidade na medida em que estas ocorrências parecem não
24
se “encaixarem” numa perspectiva moderna. Em função disso, o termo usado por
Giddens nos “liberta” da polêmica modernidade versus pós- modernidade, pois a “alta
modernidade” abarca os desdobramentos dos produtos das “Luzes” e do advento da ciência,
que culminam em um desenvolvimento tecnológico altamente renovável, com uma
capacidade de criação que parece ser inesgotável e que se insere em todos os domínios da
sociedade atual. Aspectos que se desdobram, geram situações “confusas” e que necessitam
ser considerados tanto pelos defensores “da atualidade da modernidade” como pelos que
acreditam que ela já foi superada e então estaríamos na pós-modernidade.
A denominação utilizada por Giddens para tentar qualificar as “conseqüências” da
modernidade vai ao encontro das questões levantadas por Latour em relação à proliferação
dos híbridos e à contínua negação do encadeamento das redes. A recusa e ocultação dos
híbridos e de suas conexões acabam, em última instância, causando “incerteza” nos
analistas que tentam compreender os efeitos da radicalização e universalização do que
chamamos modernidade. Segundo Latour (2008),

estudamos estas situações estranhas que a cultura intelectual em que


vivemos não sabe bem como classificar. Por falta de opção, nos
autodeterminamos sociólogos, historiadores, economistas, cientistas políticos,
filósofos, antropólogos. Mas, a estas disciplinas veneráveis, acrescentamos
sempre o genitivo: das ciências e das técnicas. Science studies é a palavra
inglesa; ou ainda este vocábulo por demasiado pesado: “Ciências, técnicas,
sociedades”. Qualquer que seja a etiqueta, a questão é sempre a de reatar o nó
górdio atravessando, tantas vezes quantas forem necessárias, corte que separa os
conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a natureza e a cultura.
Nós mesmos somos híbridos, instalados precariamente no interior das
instalações científicas, meio engenheiros, meio filósofos, um terço instruído sem
que desejássemos; optamos por descrever as tramas onde quer que estas nos
levem. Nosso meio de transporte é a noção de tradução ou de rede. Mais flexível
que a noção de sistema, mais histórica que a de estrutura, mais empírica que a de
complexidade, a rede é o fio de Ariadne destas histórias confusas (LATOUR,
2008, p. 8-9).

Na tentativa de aplicar o que nos sugere Latour em relação a percorrer as redes,


retomando as questões que envolvem as interpretações da Nova Era e sintonizando com os
24
Alguns estudos consideram que a mídia vem impulsionando as mudanças em relação a uma visão de mundo
moderna para uma sensibilidade e discurso pós-modernos.

33
temas que envolvem a dinâmica Nova Era, modernidade, pós-modernidade e/ou a alta
modernidade, introduzimos neste momento as análises de Paul Heelas, que insere suas
interpretações sobre a Nova Era no âmbito dessas discussões.
Para Heelas (1996a), o ponto alto da “lógica cultural do capitalismo tardio” é a
produção de uma cultura de consumo, onde os indivíduos que comungam e compartilham
dessa cultura podem vislumbrar no que a Nova Era oferece, “delícías de consumo” do tipo
pós-moderno. (HEELAS, 1996a). Ou seja, indivíduos destradicionalizados, com desejos e
sonhos fragmentados que buscam incessantemente se exporem a experiências intensas. Para
esclarecer o que são as experiências da cultura de consumo, Heelas (1996a), a partir de
Mike Featherstone, faz a seguinte observação:

É comum encontrarmos, nas representações das experiências pós-modernas,


referências a uma profusão desorientada de signos e imagens, ecletismo,
estilístico, jogos de signos, misturas de códigos, ausência de profundidade,
pastiche, simulações, hiper-realidade, imediatismo, uma mistura de ficção com
valores estranhos, experiências intensas carregadas de afeto, o rompimento das
fronteiras entre arte e a vida cotidiana, uma ênfase na imagem em detrimento da
palavra, a imersão lúdica nos processos inconscientes em oposição à avaliação
consciente e distanciada, a perda da consciência da realidade da história e da
tradição; o descentramento do sujeito (HEELAS, 1996a, p. 25).

Em suma, para esse autor, elementos da Nova Era também podem ser utilizados de
uma forma pós-moderna, hedonista e utilitária, na medida em que seus produtos podem ser
encarados como bens de consumo e suas experiências enquadradas na cultura de consumo
pós-moderno, transformando-se em “Disneylândias Espirituais”. “Não obstante, pode-se
argumentar que o modo como a Nova Era é utilizada por vezes é de fato pós-moderna”
(HEELAS, 1996a, p. 25). 25 No entanto, para Paul Heelas, a Nova Era tem o meta relato do
Eu, apresentando-se como a “religiosidade do eu” – Self religiosity. Segundo esse
pesquisador, “a melhor maneira de encarar a Nova Era é vê-la como um conjunto de
caminhos, que representam variações (algumas muito diferentes sobre o tema da
religiosidade do eu)” (HEELAS, 1996a, p. 18).
Assim, o autor faz referência a uma língua franca no interior desse universo
heterogêneo, híbrido, que combina elementos que normalmente seriam considerados
antagônicos. Essa língua franca expressa a base comum, visível na concepção da existência
25
O grifo não faz parte do original.

34
de um “interior sagrado no homem” em harmonia com a natureza. 26 Esse interior sagrado
(Self), é acessado através das várias experimentações que compõem essa prática espiritual,
tendo em vista o auto-conhecimento, o auto-cultivo ou “busca do Eu”.
Em consonância com a perspectiva de “sacralização do eu” indicada por Heelas,
encontramos Anthony D`Andrea. Ele defende em seus estudos sobre a “nova consciência
religiosa”, fenômeno que ele designa como formas religiosas pós-tradicionais, que ela traz
algo novo, na medida em que empreende uma ruptura com as tradições já existentes. A
novidade encontra-se justamente, para D’Andrea, no grau de reflexividade (GIDDENS,
1990) 27 que a Nova Era solicita aos seus praticantes. Assim, o novo refere-se à
possibilidade de reformulações dos recursos sócio-simbólicos por parte dos agentes sociais.
A esse respeito D`Andrea afirma:

Provisoriamente, o “novo” aqui se refere, como vem sendo designado pela


bibliografia sobre “novos movimentos religiosos,” a ressematizações e
combinações originais de símbolos, crenças e práticas, que não obstante a
antiguidade, adquirem novos sentidos ao serem apropriados por segmentos da
população notadamente os urbanos, e configuram o que vem sendo designado
usualmente sob rótulo “novas formas de religiosidade” (D`ANDREA, 1996, p.
129).

D`Andrea advoga o caráter individualista e reflexivo dessa espiritualidade (de


sacralização do Self) reflexiva, constituída na forma de uma “religião invisível”, conforme
terminologia de Thomas Luckmann (1967). A atitude reflexivista, segundo D`Andrea, é o
que distingue as religiosidades que são de fato novas, daquelas que apenas aparentam serem
novas, mesmo que tragam conseqüências modernizantes.

26
Leila Amaral (2000) e Fátima Tavares (1999) se distanciam da perspectiva de uma língua franca que
unificaria os diversos discursos e práticas religiosas contemporâneas. Em consonância, as autoras defendem
que o cruzamento heterodoxo entre várias tradições que ocorre na Nova Era é o ponto de sofisticação desse
movimento, que anula qualquer tentativa de substancializar a crença. Essas autoras também se distanciam de
Heelas no que se refere a homogeneização do conceito de individualismo na Nova Era em torno do “pólo da
prosperidade”.
27
Segundo Giddens, “com o advento da modernidade, a reflexividade assume caráter diferente. Ela è
introduzida na própria base de reprodução do sistema, de forma que o pensamento e a ação estão
constantemente refratados entre si. (...) A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as
práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informações renovada sobre estas
próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter.” (GIDDENS, 1990, p. 45). Isso abre espaço
para um cenário pós-tradicional, possibilitando o declínio da tradição, onde o indivíduo, autonomizado é
levado a decidir sobre questões fundamentais: a sua existência, seu corpo, sua identidade, crenças e idéias.

35
Por outro lado, para Leila Amaral (2000), o movimento Nova Era – religiosidade
descentralizada, errante e com experiências efêmeras e provisórias – tem como ponto
central um “sincretismo em movimento” que aponta para a dispersão, a disponibilidade e a
descanonização do sagrado que se encontra “em todo e qualquer lugar”, não estando preso,
delimitado, absolutizado ou monopolizado pela dimensão individual ou institucional,
desvencilhado de toda e qualquer identidade cristalizada (AMARAL, 2000, p. 54-56). A
autora aponta para a perspectiva

(...) de que não existe nada que seja em si mesmo absolutamente Nova Era, mas
Nova Era seria a possibilidade de transformar, estilizar, desarranjar ou rearranjar
elementos de tradições já existentes e fazer desses elementos metáforas que
expressem performaticamente uma determinada visão, em destaque em um
determinado momento, e segundo determinados objetivos e ainda mais que um
substantivo que possa definir identidades religiosas demarcadas, Nova Era é um
adjetivo para práticas espirituais e religiosas diferenciadas e em combinações
variadas, independentes das definições ou inserções religiosas de seus
praticantes (AMARAL, 2000, p. 32).

Fátima Tavares (2007), que trabalha de forma mais específica o universo


terapêutico da Nova Era, defende em seus estudos um quadro “delineativo” acerca da Nova
Era que vai ao encontro das perspectivas apontadas por Amaral (2000). Segundo ela, no
bojo dos processos “identificados” na Nova Era, “sua peculiaridade parece ser a construção
incessante de novos vínculos” (TAVARES, 2007, p. 04). Segundo a pesquisadora, a
“experiência religiosa processada no âmbito das vivências e workshops caracteriza-se por
sua autonomia”, ou seja, não está regulada pelo espaço religioso institucionalizado,
“realizando-se através de performances provisórias e sempre sujeitas a novas produções de
sentido. Esse estilo de intensa elaboração experimental manifesta, de forma aguda,
porosidade entre domínios da vida social tidos como separados: a religião, a terapêutica, o
consumo” (TAVARES, 2007, p. 01).
A autora parece sugerir que a especificidade da Nova Era está no fato dela expressar
como característica central uma tendência mais ampla da nossa sociedade, apontada por
Latour, de proliferação dos “híbridos”. “Trata-se de vivenciar experiências nas quais o
religioso não constitui um domínio à parte, mas se realiza enquanto experiência híbrida”
(TAVARES, 2007, p. 06).

36
Em relação à globalização do movimento, Tavares (2007) aponta que ela pode ser
analisada e entendida de uma forma mais sofisticada “a partir do conceito de rede (não
somente global ou local, mas entrecruzando as duas dimensões), proposto por Latour: por
um lado, a globalização existe, mas não se caracteriza como uma totalidade sistêmica; por
outro, o contexto local não constitui um domínio facilmente delimitável” na medida em
que, “é marcado pela efemeridade das performances religiosas, mas que produzem
profundos vínculos com o ambiente mais amplo” (TAVARES, 2007, p. 01-02).
Considerando as colocações enunciadas anteriormente, podemos constatar que a
Nova Era tem como um dos seus aspectos centrais a sua difícil caracterização. Nos estudos
sobre o tema, encontramos como referência originária mais próxima o movimento
contracultural e percebemos também zelo, imprecisão para “delimitar” sua abrangência,
essência e/ou sustância. Não obstante, podemos constatar que não existe uma precisão de
limites e fronteiras.
Seguindo as sugestões de Amaral (2000), acreditamos que a “Nova Era” apresenta-
se como uma “cultura errante” e, assim, não se configura como um movimento organizado,
pois, compreende uma série variada de estilos de vida, agrega significados diferentes para
pessoas diferentes que “comungam” e tomam parte das diversas atividades disponibilizadas
e caminhos apontados.
Com esse quadro, a espiritualidade Nova Era abre espaço para o encontro e
reconhecimento da própria diversidade, na medida em que as experimentações em torno do
sentido lançam mão de um conjunto de tradições, elementos culturais, domínios humanos e
não-humanos sem busca de fundamentos. Nesse sentido, vamos também ao encontro da
perspectiva apontada por Tavares (2007), na medida em que o movimento Nova Era se
torna refratário a uma caracterização ortodoxa, pois ele avança por todos os domínios e
suas experiências não se substancializam e somente podem existir enquanto experiência
híbrida.
Assim, acredito que o movimento se caracteriza por uma “errância” apontada por
Amaral (2000), pelo hibridismo e a constituição de redes sugeridas por Tavares (2007) a
partir de Latour. Tudo isto permeado pela absoluta autonomia e por mediações e
mediadores que passam a operar transformações naquilo que foi traduzido, ou seja, há
pequenos deslocamentos na condução ordinária das coisas, resultando a formação de redes.

37
A Nova Era não separa um mediador dos seus encadeamentos; é isso que lhe dá
sentido. Segundo Latour (2004), “isolar um mediador dos seus encadeamentos, de sua série,
impede instantaneamente que o significado seja modulado e transmitido em verdade”. A
verdade não reside na “correspondência – seja entre as palavras e as coisas, no caso da
ciência, ou entre original e cópia, no caso da religião –, mas em tornar a si novamente a
tarefa de continuar o fluxo, de prolongar em um passo a mais a cascata das mediações”
(LATOUR, 2004b, p. 22). A Nova Era, toma para si esta tarefa, pois ela somente existe e se
realiza a partir dessa dinâmica.

1. 3 Configuração de uma nova “percepção”: afinidades entre Nova Era e


contracultura

Hoje, claramente pode-se notar nos espaços urbanos a abrangência de aspectos


ligados às práticas religiosas alternativas e uma ampla oferta de serviços, vivências,
produtos culturais e terapêuticos identificados com a cultura Nova Era. Assim, nos últimos
anos as práticas alternativas tiveram uma expansão considerável, sendo incorporadas por
vários segmentos sociais e conquistando uma significativa visibilidade. 28 Já não estamos
mais diante de atividades propriamente alternativas. “Com efeito, ao assumir abertamente
essas atitudes os usuários atuais afastam-se dos antigos moldes, quando uma consulta a
cartomantes, xamãs, adivinhos – feita de maneira clandestina ou envergonhada – era vista
como regressão a práticas primitivas” (MAGNANI, 1999: p. 31). Nitidamente a Nova Era
já é um recurso cultural e prático. 29 Os indivíduos que transitam pelo circuito alternativo
são, em grande maioria, da classe média urbana, com alto grau de educação formal. A Nova
Era, ao que parece, é simultaneamente um movimento social, cultural, religioso e
terapêutico (CAROZZI, 1999, p. 9-11).

28
A partir da última década do século XX, o “ ‘alternativo’ facilmente aparece colado ao cidadão
convencional, preocupado com uma moralidade civil crítica; facilmente, aparece, portanto, como o oposto da
transgressão, o que não deixa de ser curioso, se nos lembrarmos da ascendência hippie dessa categoria”
(SOARES,1989, p. 124).
29
O movimento Nova Era apresenta-se como um fenômeno muito singular, pois é possível que parte dos
clientes nem sempre esteja consciente de “participar” ou de estar consumindo mensagens dessa cultura. Isto é
possível através da grande aceitação de filmes de ficção científica como diversão, músicas de Kitaro e de
Enya como estilo musical com arranjos agradáveis, uso de técnicas de meditação e de respiração orientais
para aumentar a concentração e relaxar; os vários desenhos animados, revistas e jogos eletrônicos, entre
outros, com motes sintonizados com os princípios da Nova Era.

38
Como foi dito anteriormente, a partir dos anos 1980 e 1990 há efetivamente a
difusão dos temas alternativos à sociedade ocidental moderna, tais como a valorização do
artesanato, a procura por práticas místicas e médicas orientais, os movimentos
ambientalistas, as práticas xamânicas indígenas americanas, a ioga, a busca de estados
alterados de consciência através do êxtase religioso, da música e das drogas, entre outros.
Essa emergência caracteriza-se, sobretudo, por novas combinações e novos sincretismos,
denominados, agora, de cultura alternativa. 30
As configurações presentes nesse amplo espectro que se apresenta comumente
como Nova Era, apontam seu caráter de fluidez, de articulação de diferentes cosmologias
religiosas, os processos de sincretismos, as bricolagens e ecletismos, tendo como ponto de
partida a experiência ou vivência emocional. Nessa direção, podemos perceber ou
identificar uma redefinição significativa e um deslocamento da própria noção de religião
para determinados segmentos e indivíduos, onde o religioso e a religião estão difusos e em
franca “desregulação institucional”. 31
A constatação do afrouxamento da visão de mundo cristianocêntrica desencadeando
ateísmos, agnosticismos, anti-cristianismos de toda ordem cederam lugar a uma nova
vertente que criticou o cristianismo e ampliou sua influência: o movimento teosófico. Este
movimento, segundo Carvalho (1998), possibilitou um novo “olhar para todas as religiões
mundiais, em busca de equivalências, de complementações, de sínteses” (CARVALHO,
1998, p. 142). Assim, a pluralidade passa a ser um traço da recomposição do campo
religioso na modernidade, através do diálogo com o Cristianismo, religião, até então
dominante.
A religiosidade de determinados contextos históricos já apresentou uma relação de
proximidade com conteúdos místicos, esotéricos e ocultos.32 Não obstante, do século XVIII
aos princípios do século XX, o universo místico, esotérico e da magia se dissociou de
forma determinante da religião e também foi desvinculado da discussão científico racional,
passando a ser percebido ora como crendices e supertições, ora como práticas esotéricas.

30
Soares (1989) define a cultura alternativa dos anos 1980 e 1990 através dos temas recorrentes pelos quais
ela tem se manifestado, como “o trinômio corpo-espírito-natureza e as díades saúde-violência, equilíbrio-
desequelíbrio, respeito-violência, restauração-devastação, reconciliação-ruptura, harmonia-desarmonia,
fluência-bloqueio (...)” (SOARES, 1989, p. 124).
31
Ver Champiom (1988; 1989; 1990); Heelas (1996); Hervieu-Léger (1999); Amaral (2000); Tavares (2003),
entre outros.
32
Ver melhor: Morin (1979); Eliade (1979).

39
Muitos desses conteúdos (práticas divinatórias, magia, conhecimentos esotéricos e ocultos)
se refugiaram em seitas, ordens, irmandades esotéricas e iniciáticas, formando grupos
fechados que buscavam resguardar os segredos desses conhecimentos, considerados como
práticas valiosas do conhecimento científico.
Neste processo, os conhecimentos místicos-esotéricos se tornaram conteúdos
herméticos, condenados pela religião hegemônica, o Cristianismo, e pela ciência ortodoxa.
Assim, evidentemente, os conhecimentos místicos e esotéricos não eram conteúdos
acessíveis e eram vistos com preconceito, temor, enfim, fora dos padrões da sociedade
moderna, secularizada, mas ainda regida pelo paradigma cristão-ocidental. 33
Posteriormente, a partir da segunda metade dos anos 1960 e, sobretudo, nos anos
1970, ocorre um revigoramento e uma nova vivência desses conteúdos marginalizados pelo
pilar da ciência moderna e pelo pilar cristão. Esse retorno está vinculado à nova
constituição da experiência religiosa cada vez mais fundamentada no interior das
subjetividades. Por mais que se possa avaliar tais práticas como supertições e crendices, há
um significativo número de indivíduos abertos a estes conhecimentos e práticas.
O revigoramento das diversas práticas místico-esotéricas parece emergir com mais
nitidez no período que corresponde aos anos da contracultura. Esse período gerou muitas
alternativas à sociedade vigente, inspirando parte da juventude da época a vivenciar e a
experimentar outros padrões de comportamento. O fenômeno sócio-cultural da
contracultura viabilizou, entre outros fatores, a emergência de experiências espirituais
comumente englobadas sob o rótulo de Nova Era. A difusão de elementos, práticas e
experiências ligadas a este universo, surgiu na esteira da efervescência política e cultural
dos anos 1960 e se difundiu a partir da década de 1970. 34
Em contato com o movimento da contracultura, vertentes como o
transcendentalismo e o esoterismo do século XIX acabaram chegando a um público mais
amplo, aumentando o fluxo entre Oriente e Ocidente e conduzindo a novos encontros,
caminhos e tendências que vão ser traduzidas e formar redes. Conforme ressalta Magnani

33
Não podemos esquecer que há uma inflexão no que se refere a este domínio, na medida em que no século
XIX surge a Sociedade Teosófica .Trata-se de um movimento metafísico ocultista. A sua fundadora foi a
russa Helena Petrovna Blavatsky (1831-1891).
34
No Brasil, a contracultura ocorreu em meio a uma realidade antidemocrática, repressora, nos famosos “anos
de chumbo”. Além disso, o binômio Estado-indústria impunha um padrão oficial de cultura. Assim, tudo que
fosse produzido fora deste eixo era considerado alternativo e à margem dos padrões oficiais.

40
(2000, p. 13), Herman Hesse, Jiddu Krishnamurti, Allan Wats, Aldous Huxley, Gregory
Bateson, Gary Snyder, Timothy Leary, Paramahansa Yogananda, Daisetz Deitaru Susuki e
Srila Prabhupada foram alguns dos expoentes que de uma forma ou de outra e cada qual em
seu tempo contribuíram para o surgimento de movimentos na costa Oeste, principalmente
Esalen (Califórnia) 35 ; e os “grupos de luz”, no Reino Unido, com destaque para Findhorn
(Escócia). 36
A vertente religiosa da contracultura não buscou referências em religiões
institucionais, mas sim na experiência direta, na relação imediata com o divino, colocando a
experimentação, ancorada na autonomia, como centro da prática espiritual. 37 Essa
perspectiva parece ser o ponto central de identificação entre a Nova Era e a contracultura,
na medida em que verificamos em ambas a premissa de “uma demanda imediata, poderosa
e profunda da experiência religiosa com significado e satisfação no presente, rompendo
com proposta instrumentalista da experiência religiosa tradicional orientada para o futuro”
(PEREIRA, 1998, p. 06).
As raízes mais próximas ou mais recentes da Nova Era estão na contracultura.
Entretanto, esse processo de renovação espiritual e de procura por trajetórias místicas não é
38
somente fruto da efervescência da contracultura. Nos estudos sobre Nova Era percebe-se
um eixo histórico Romantismo-Novo Espiritismo-contracultura-Nova Era, sendo a
contracultura o marco mais recente e o que mais impulsionou a “constituição” desta “nova
consciência”. Em função disso, este movimento torna-se chave para a compreender a
emergência da Nova Era e a constituições de suas redes.
O campo de estudos da Nova Era no Brasil é bastante fecundo na produção de
vertentes interpretativas. Em função disso, apontaremos algumas interpretações de
pesquisadores nacionais e internacionais, destacando principalmente a perspectiva histórica
que traçam no que diz respeito às possíveis “origens” da Nova Era.

35
Tornou-se o centro irradiador do Movimento do Potencial Humano, que buscou desenvolver pesquisas e
técnicas destinadas a despertar as potencialidades do Eu.
36
Ali ocorreram experiências comunitárias que serviram de modelo inspirador para outras comunidades rurais
alternativas. Concebiam o “eu” de acordo com os princípios teosóficos, ou seja como uma centelha divina
“em eterna busca de encontro com sua fonte e origem primordial” (MAGNANI, 2000, p. 14).
37
Essa experimentação é estimulada em todos os níveis: espiritual, conhecimento sexual e estético, entre
outros. Com essa tendência, os híbridos encontram um franco espaço para sua livre manifestação.
38
Ver melhor sobre esta trajetória em Amaral (2000, p. 21-32) e Magnani (2000, p. 07-19).

41
Boa parte dos estudos de Nova Era, guardando suas especificidades e linhas
analíticas, localizam sua “gênese” no contexto do movimento contracultural e psicodélico.
Dialogando com uma literatura estrangeira, alguns estudiosos do movimento Nova Era
citam Robert Bellah como uma referência interpretativa,39 na medida em que este autor
vincula o surgimento de uma nova consciência religiosa ao contexto dos anos 1960, onde a
contracultura significou também uma crítica à religião tradicional.
De acordo com Bellah (1970), o movimento contracultural representou uma “cultura
de imaginação e não de calculo”, que solicitava uma postura de rejeição às ortodoxias
totalistas, produzida por uma “nova consciência” em relação à questão dos fins de vida e
uma nova percepção a respeito das inúmeras possibilidades da experiência humana, que não
deveria mais ser limitada pela tradição (BELLAH, 1986, p. 22-24).
A partir dessa sensibilidade, uma “nova espiritualidade” surge no Ocidente nos anos
1960, denominada pelo autor como “nova consciência religiosa”. De acordo com ele,

A demanda por uma imediata, poderosa e profunda experiência religiosa, que


fazia parte do significado e uma satisfação presente, não pôde ser atendida, em
seu conjunto, pelas corporações religiosas. (...) A religião da contracultura não
foi, em geral, bíblica. Ela foi retirada de várias fontes, incluindo a dos índios
americanos. Suas influências mais profundas, porém vieram da Ásia (BELLAH,
1986, p. 26) 40

Para Bellah, a “nova consciência religiosa” abre a possibilidade de ofertar um


conjunto de representações e símbolos para uma parcela da juventude que se encontrava
desorientada pela cultura das drogas, pelos movimentos políticos radicais e que sentiam nas
religiões tradicionais uma incapacidade de fornecer um padrão com significados de
existência pessoal e social.

39
Pesquisadores de referência na temática: D’ Andrea (1996; 1997), Amaral (2000), Tavares (1998; 2003).
40
Ainda que ao longo da história a vida religiosa européia e norte-americana tenha sofrido outros ciclos de
agitações e sucedendo também períodos de esterilidade, a crise no século XX, segundo Bellah, representou
um contraste com as crises anteriores. O âmago da questão da crise dos anos de 1960 estava no esgotamento
do sentido ofertado pelas religiões tradicionais, configurando uma “crise religiosa de significado”. As
tradições “estavam totalmente despreparadas para lidar com a nova espiritualidade dos anos 60”. As religiões
tradicionais (cristianismo) absorveram e foram absorvidas pelo racionalismo secular, moralismo e adquiriram
uma forte orientação extra-mundana (BELLAH, 1986, p. 26).

42
Anthony D’Andrea é um dos pesquisadores da Nova Era no Brasil que apontam
com clareza para o fato de ter sido Bellah um dos poucos autores a chamar a atenção para a
ruptura contracultural na religião. Segundo D’Andrea,

(...) se por um lado a bibliografia sobre “novos movimentos religiosos” é


relevante para a compreensão da Nova Era e das paraciências, por outro, no
entanto, deverá ser vista também em sentido parcialmente heurístico, já que a
constatação desta diferença fundamental (a reflexividade) só foi feita parcial e
marginalmente, em alguns poucos trabalhos que não enfatizaram a ruptura que
convergiu para o advento do que será designado de religiosidades pós-
tradicionais (à exceção de Bellah (1970) (D’ANDREA, 1986, p. 131). 41

Por fim, D’Andrea (1997), citando Mills (1994, p. 192-194), indica que a
contracultura foi a incubadora do movimento New Age, e ambos movimentos compartilham
de um projeto comum-naturalista, ocultista, antimaterialista e antitradicionalista. Para,
D’Andrea, “o primeiro marco histórico é o de que o MNA nasce na década de 70, como
continuidade da contracultura (expressão do esgotamento de valores individualistas
utilitários e da tradição bíblica) (...). Vale lembrar que, concretamente, muitos New Agers
hoje foram pessoas envolvidas com a contracultura e sua vertente hippie ou psicodélica”
(D’ANDREA, 1997, p. 03).
Paul Heelas também é um autor de referência em relação à literatura internacional.
Ele localiza a articulação de grupos alternativos de natureza religiosa no contexto da
sensibilidade contracultural que emergiu na década de 1960. No final desse período,
quando a Nova Era ainda era conhecida como “Era de Aquário”, os hippies, buscando se
libertar das “contaminações da modernidade”, caíam na estrada, sobreviviam de auxílio-
desemprego, viviam como posseiros, moravam em pequenos sítios ou comunas (muitas
vezes na costa céltica da Grã-Bretanha) ou em bolsões de pré-modernidade no Oriente.
Conforme assinala Heelas (1996b, p. 19) após um período de relativa estagnação, a ala
contracultural da Nova Era estava voltando a dar sinais de vida.
Heelas identifica a ala contracultural como sendo o “núcleo central” da Nova Era. 42
Segundo o autor, os adeptos desse pólo são os seguidores “sérios” da religiosidade do Eu.

41
O trabalho ao qual D’Andrea faz referência é Beyond Belef: essays on religion in a Post-Tradicional
World. New York: Haper&Row, 1970.
42
Há também o outro pólo, pró-capitalismo, também conhecido como o pólo da prosperidade, que enfatiza
como realidade interna o poder-energia. A natureza do Eu “não é vista em termos contraculturais (‘amor’,

43
Essa ala ou pólo enfatiza a realidade interna a partir do binômio amor-sabedoria. Apresenta
ênfase no holismo cósmico e severa crítica à sociedade estabelecida.
Na agitação da década de 1960, os jovens da contracultura indicavam a falência dos
valores e das instituições da sociedade ocidental, provocada pelo ethos individualista e
pelos limites da razão moderna. Incentivavam a liberação individual e o experimentalismo,
predominando aqui um discurso politizado e psicologizado. 43 Hoje, essa ala contracultural
enfatiza o desenvolvimento da vida comunitária, harmonia com a natureza, o discurso
ecológico. E, ainda segundo Heelas (1996b),

(...) a cultura moral moderna tem fontes múltiplas; três dessas fontes teriam
importância fundamental: “a base teísta original”, “a dignidade da razão
desinteressada” e a “bondade da natureza”. As raízes da ala contracultural nada
devem (em nenhum sentido direto) às duas primeiras “fontes”. Os adeptos desta
vertente da Nova Era rejeitam a autoridade do Deus concebido de modo teísta; e
o tipo de iluminação por eles preconizada entra em choque com o projeto
iluminista, o qual está ligado a operações intelectuais – ou seja, do ego. Porém a
ala contracultural tem muito a ver com a terceira fonte moral. Todos os temas
mais importantes da Nova Era contemporânea podem ser encontrados nos
clássicos da tradição romântica (...). Nessa literatura vamos encontrar inúmeros
exemplos dos valores e propostas da religiosidade do Eu (HEELAS, 1996b, p.
20).

Leila Amaral (2000), no seu estudo sobre a “errância espiritual da Nova Era”,
realiza uma retrospectiva histórica do movimento, assinalando que, para alguns de seus
historiadores, o momento histórico do surgimento desse fenômeno nos Estados Unidos
remonta aos anos de 1970 a 1971. Lá “tornou-se visível, naquele período, um movimento
social e religioso cujos simpatizantes pareciam demonstrar um grande apetite espiritual, ao
mesmo tempo em que se contrapunham ao domínio eclesiástico e denunciavam a morte da
Igreja, no caso, o cristianismo, tido como espiritualmente esvaziado e contaminado pelo
individualismo utilitário” (AMARAL, 2000, p. 21).
A autora faz claramente referências às análises de Bellah, o qual sugere, como já
vimos, que a “crise dos anos de 1960” explicitou uma “crise religiosa de significado”,
sobretudo de sentido religioso, onde esta vertente resultou na “nova consciência religiosa”.
A “nova consciência religiosa”, na década de 1970, segundo Bellah (1977), vai se

‘tranqüilidade’ etc.); a ‘iluminação’ do administrador visa coisas como ‘afirmação’, ‘criatividade’,


‘energização’ (...)” (HEELAS, 1996b, p. 20).
43
Ver estas considerações em : Heelas (1996a) e Amaral (1994).

44
apresentar como um campo discursivo estável, e também disponibilizar amplo espectro de
símbolos para indivíduos que se encontravam desnorteados pela cultura das drogas e dos
movimentos radicais de contestação (militância política armada).
Amaral cita as interpretações de Bellah (1977) acerca da emergência de uma “nova
consciência” como algo relevante e procedente. Porém, ela destaca que os componentes
dessa convergência das religiões orientais e míticas e o pensamento ocidental “já vinham se
articulando, desde a metade do século XIX” (AMARAL, 2000, p. 21). Segundo a autora, o
conjunto de símbolos que emergiram no fim dos anos 1960 e inicio dos 1970, já teria
começado a se originar como uma espiritualidade alternativa no “Transcendentalismo,
Espiritualismo e Teosofia, a New Thought e a Christian Science” (AMARAL, 2000, p.
21). 44
Ao traçar a perspectiva histórica do movimento em questão, a autora identifica
também no Romantismo uma tradição que delineia e dá visibilidade à Nova Era. Ela
apresenta os pontos fundamentais do Romantismo que serão assimilados e expressos pela
Nova Era. Entre eles, podemos citar sucintamente: a idéia do finito perpassado pelo infinito
– “mistério do universo”; tudo é parte integrante do divino; valorização da “imaginação”
como princípio criativo básico, da “interioridade”; idéia de coincidência entre finito e
infinito; apelo à tradição, entre outros. 45
Assim, Amaral também identifica “as origens não muito remotas” do movimento
Nova Era no século XIX. Baseando-se em Campbell (1997), ela indica, contudo, que os
anos da década de 1960 trazem uma nova relação e assimilação da tradição Romântica. “A
novidade, a partir da década de 1960, parece ser, conforme vem sugerindo Colin Campbell,
a presença não mais subordinada do Romantismo, cujos princípios vêm se apresentando
como um ‘paradigma alternativo’ à matriz cultural dominante, não só na base do
movimento histórico que dá visibilidade ao movimento Nova Era, mas ultrapassando esses
limites” (AMARAL, 2000, p. 28). Segundo Campbell, esta perspectiva foi, em grande
medida, o legado cultural deixado pelos contraculturalistas da década de 1960, “além do

44
A autora ressalta que a tradição alternativa do século XIX é caudatária de uma versão religiosa oriental
representante da Renascença Hindu (AMARAL, 2000, p. 22). Essa renascença Hindu se manifesta como “um
Hinduismo despido das deidades e dos acréscimos da religião indiana tradicional tão ofensivos ao
monoteísmo Ocidental” (MELTON, 1986, p. 109, citado por AMARAL. 2000, p. 22).
45
Ver melhor em Amaral (2000, p. 25-28).

45
material vindo do Oriente e da cultura dos povos indígenas não ocidentais por todo globo”
(CAMPBELL, 1997, p 18).
Nessa direção, podemos observar que são os contraculturalistas que efetivamente
divulgam e assimilam as culturas e filosofias orientais, tão difundidas hoje e plenamente
“adequadas” ao mundo ocidental. É na década de 1960 que se observa uma difusão mais
substancial destas tradições, embora este processo também não seja uma originalidade da
contracultura. 46
Podemos perceber que na atualidade há um realinhamento das relações entre esses
dois paradigmas, antes tão distintos e separados. O progresso da ciência e seu conseqüente
impacto sobre as religiões tradicionais do Ocidente acabam por provocar uma aproximação
que resulta em interpenetrações entre essas culturas, a ponto de Campbell usar a expressão
“orientalização do Ocidente”. Esse realinhamento entre Ocidente e Oriente, que começa a
ocorrer no século XVIII com a entronização da razão como motor do progresso, vai
encontrar na contracultura um espaço privilegiado para se realizar.
Essa perspectiva de realinhamento entre esses dois paradigmas vai ao encontro da
teoria de circulação defendida por Latour (2008), na medida em que podemos verificar
nesse fenômeno de influências do Oriente sobre o Ocidente um movimento de construção
de vínculos por traduções de misturas entre gêneros e seres distintos de natureza e cultura,
criando algo novo e híbrido. Não se trata somente de inserir elementos orientais no
Ocidente, pois o que tomamos como modelo deste “lado” do mundo é modificado quando
sofre o processo de tradução. É a dinâmica entre a mediação e a purificação que liga esses
universos distintos e que permite ocorrer o que Campbell denomina de “orientalização do
Ocidente”. 47 Campbell, além de indicar a gradativa substituição do paradigma ocidental
pelo paradigma identificado como oriental, também compreende que esse processo foi
significativamente estimulado pelo movimento da contracultura.
Podemos observar no conjunto de autores citados até este momento, a indicação de
que muitas das perspectivas e elementos defendidos, divulgados e vinculados à

46
A origem deste processo não se relaciona só com o movimento romântico e com a contracultura, mas está
vinculado também ao progresso crescente das ciências, a partir do século XVIII. Segundo Campbell, o
progresso da ciência mitigou a crença das pessoas na religião tradicional, com sua otimista fé na razão
(CAMPBELL, 1997, p. 17).
47
Sem as mediações, “as práticas da purificação seriam vazias ou supérfluas”. Sem a distinção das esferas
(...), ou purificação, “o trabalho da tradução seria freado, limitado ou mesmo interditado” (LATOUR, 2008,
p. 16).

46
contracultura já existem de longa data. No entanto, segundo Magnani (2000), haja vista a
antiguidade destes “e outros elementos, instituições e práticas, conquanto tenham sido
incorporadas pela Nova Era, por si sós não a produziram. A difusão do fenômeno dependeu
de determinadas circunstâncias que (...) surgem na esteira da efervescência política e
cultural dos anos 60 e se expandem a partir da década de 70”. (MAGNANI, 2000, p. 18-
19). As determinadas circunstâncias às quais Magnani se refere estão ligadas ao contexto da
agitação desse período, que é regido por um principio libertário que se expande em diversas
direções e adquire variados sentidos.
Para Tânia Salem (1991), no imaginário social dos anos 1960/1970 se condensa e
agudiza um “individualismo psicologizante-libertário” que não se origina e nem se esgota
neste período, mas que a partir deste contexto torna-se um código moral. O que qualifica
essa modalidade de individualismo, segundo a autora, está na disposição de que o único
regime a ser imposto ao indivíduo é o da liberação. Os sujeitos necessitam se liberar de
todas as amarras e entraves do poder e se desvencilhar de todo constrangimento social. “O
preceito da igualdade como regente das relações sociais afirma-se, assim, como condição
sine qua non da liberação, pois assegura a destotalização do indivíduo com respeito a
qualquer instância pretensamente englobante e/ou normatizadora” (SALEM, 1991, p. 67).
O individualismo libertário elege a sexualidade como um dos pontos fundamentais para sua
manifestação.
São as teses de Reich (1975) e de Marcuse que apresentam uma nova visão entre
“revolução” e “prazer”. De acordo com Reich (1975), a origem da neurose coletiva,
individual, enfim, de todos os problemas da sociedade industrial residiria na repressão
sexual, percebida como substrato da alienação da vida. A liberalização sexual e a erotização
das relações sociais fundaria uma nova ordem social.O pensamento de Marcuse (1967;
1968) possui afinidades com as teses reichianas. As críticas de Marcuse alvejam a
sociedade tecnologicamente avançada, de modo especifico sobre a produção e o consumo
supérfluos e sobre os meios de destruição por ela postos em ação. Marcuse entrevê que
essas formas ultrapassadas podem ser eliminadas por uma revolução comprometida
simultaneamente com a recusa do desenvolvimento tecnológico e do valor
trabalho/produtividade, associando a essas rejeições a liberação das dimensões eróticas dos
sujeitos (MARCUSE, 1967, p. 1968). “Vale dizer, o preceito da desrepressão desponta

47
simultaneamente como pré-requisito e como pilar da nova era que tem como meta instalar
um tipo de sociedade mais compatível com instintos de sociedade mais compatível com os
‘instintos vitais’ do homem” (SALEM, 1991, p. 68). 48
Tanto para Reich quanto para Marcuse o pleno sucesso da Nova Era, embasada na
erotização das relações sociais e na liberação do pleno sujeito, solicitaria como requisito
fundamental um absoluto questionamento das autoridades constituídas “- estado, família,
Igreja etc -, responsabilizadas pelo atravancamento das potencialidades dos sujeitos. Em
uma palavra, desvela-se uma identificação entre repressão/ normatização/poder; ou,
inversamente, entre liberação/antinormatividade/ preceito da igualdade” (SALEM, 1991, p.
68).
Em torno dessas idéias concebe-se a defesa do homem contra o sistema que se
expressa nos movimentos de contestação dos anos 60 do século passado. Nesse período, o
marxismo era a filosofia que era tida como insuperável, porém esta filosofia centrada na

48
A autora da citação baseou e Marcuse (1967, 1968) e em Cooper (1974) que dentre muitos outros , endossa
a tese: “para a ordem social burguesa e repressiva, a antipsiquiatria é política e subversiva por sua pr´pria
natureza; não apenas porque deixa o legado de uma radical liberação sexual” (COOPER, 1974 apud SALEM,
1991, p. 68). Aqui no Brasil, as idéias de Marcuse foram divulgadas por Maciel que aponta que para um
processo de dessublimação repressiva que impediria o desabrochar da “autentica” liberação sexual. Destaco a
seguir um trecho da matéria que saiu no Pasquim em dezembro de 1969 que indicava os pontos fundamentais
do pensamento de Marcuse. O fragmento inicia se assim: “Ferro na boneca. Negócio seguinte: em outro livro,
Ideologia da Sociedade Industrial, Marcuse mostra que a repressão, hoje, usa, não a necessidade de
sublimação, mas a dessublimação como arma. Antigamente, oprimia-se proibindo-se as manifestações, do
instinto sexual; hoje, oprime-se estimulando-o sem satisfaze-lo. Por exemplo, as revistinhas orientadas pelo
ninômio “sexo e violência” oferecem um máximo de excitação instintiva, sem liberar os impulsos, de forma
que se fortalecem nos leitores os mecanismos repressivos. Marcuse dá a esse fenômeno a denominação
adequada da dessublimação repressiva. Através dela, a sacanagem está presente (...) em todas as partes da
sociedade industrial contemporânea – e, em especial, nas suas representações ideológicas. Como já se tornou
hábito, vou deixar que Marcuse fale com suas próprias palavras: “- O que corre é, sem dúvida, selvagem e
obsceno, viril e saboroso, assaz imoral – e, precisamente por isso, perfeitamente inofensivo. Liberta da forma
sublimada, a sensualidade se torna um veículo para os best-sellers da opressão. Esta sociedade transforma
tudo o que toca em fonte potencial de progresso e de exploração, de servidão e satisfação, de liberdade e de
opressão. A sexualidade não constitui exceção. Segundo Freud, o fortalecimento da sexualidade (libido)
importaria necessariamente o enfraquecimento da agressividade e vice versa. Contudo, se a libertação da
libido, socialmente permitida e encorajada, é a da sexualidade parcial, e localizada, ela equivale a uma
compressão real da energia erótica e essa dessublimação é compatível com o crescimento tanto de formas não
–sublimadas como sublimadas de agressividade. Esta e desenfreada em toda a sociedade industrial
contemporânea”. Eu repito que Marcuse é um pensador denso e difícil. Mas o que ele quer dizer é bastante
claro. A dessublimação repressiva excita o instinto para adoece-lo. Homens com instintos doentes são muito
mais submissos ao sistema de dominação. MACIEL, Luiz Carlos. A esquerda pornográfica (II). A vez de
Marcuse.Pasquim. No 26. 18 a 24 de dezembro. 1969. O pensamento de Reich também é divulgado através
desse jornal, como exemplo podemos citar MACIEL, Luiz Carlos. A esquerda pornográfica (III). Finalmente
Wilhelm Reich. Pasquim. 26 a 31 de dezembro. 1969.

48
relação entre infra-estrutura e super-estrutura deixava lacunas. Nesse sentido, Sartre49
indica em “Crítica da Razão Dialética” que outras disciplinas teriam que auxiliar o
marxismo a encampar outros aspectos além dos materiais. Assim, a psicanálise é
incorporada para fornecer ao marxismo uma compreensão mais ampla. Há nesse período
uma mistura entre marxismo, existencialismo e psicanálise que visa uma mudança na
sociedade que não é mais projetada para o futuro, não depois de uma revolução, mas no
aqui e agora que deveria iniciar através de uma radical mudança interna. A grande questão
que surge é que além de mudar a sociedade é necessário mudar a si próprio. Cohen –
Bendit, famoso líder estudantil, chega a essa conclusão ao indicar que “a ideologia
revolucionária tradicional cometeu um erro quando afirmava que havia uma objetividade
necessária à transformação da sociedade, logo uma legitimidade objetiva no progresso
revolucionário... A subjetividade das pessoas desempenha um papel enorme na
transformação de uma sociedade” (apud GABEIRA, 1985, p. 48).
Esse individualismo libertário encontra naquelas décadas “uma forma privilegiada,
senão paroxística, de manifestação” e a representatividade dessa época não está vinculada
aos anos propriamente ditos, mas sim à abertura que se manifesta nesse período para um
clima, um tom, um éthos, e que se estendem para além deles .(SALEM, 1991, p. 62).
Segundo Salem (1991),

não se trata, em absoluto, de desprezar a importância sociológica da década de


60 em si mesma. Os que o fazem alegam que muitas tendências ideológicas
anunciadas no período têm uma gênese bem mais remota. Sob certa óptica, o
argumento procede: mesmo sem nos remetermos às suas origens primeiras, é
necessário reconhecer que muito do que é então proclamado já fora discutido
(...). Entretanto, ainda que admitindo que a década de 60 não inaugura nada de
novo, pode-se postular que seu destaque sociológico resida na confluência de
tendências de pensamento que, originárias das mais diferentes esferas da vida
social, estabelecem influências recíprocas e se alimentam mutuamente na
direção de um ideário que se quer revolucionário (SALEM, 1991, p. 62-63).

49
Sobre a importância de Sartre para a geração dos anos 60 do século XX Maciel (1981) indica: “O ser
humano, quando se percebe neste mundo, percebe também um vazio, que é a sua liberdade. Então Sartre nos
convida, a todos, para criar, cada um de nós, a sua própria ética, os seus próprios valores morais. E esta
experiência, de que você tem que ser o criador da sua ética a partir da sua liberdade, foi fundamental na nossa
geração, levando-nos a transições importantes, depois, em outros terrenos. A minha juventude toda foi
marcada por este debate: como eu poderia me libertar da minha formação, para alcançar uma posição moral
mais livre e mais criativa?” (MACIEL, 1981, p. 127).

49
No campo de ação dos anos 1960 consolida-se uma atmosfera receptiva para idéias
vanguardistas, e, sintomaticamente, projetos com essas perspectivas, embora anunciadas
bem antes, somente naquele contexto encontram um substrato fértil que permite que essas
idéias eclodam de modo condensado e conquistem visibilidade e assimilação de uma forma
inédita. As idéias vanguardistas extravasam os círculos intelectualizados e atingem o
grande público e “muitas vezes chegam, literalmente, às ruas. Graças, em parte, aos meios
de comunicação de massa, movimentos de contestação despontam quase simultaneamente
em diferentes países ocidentais” (SALEM, 1991, p. 63).
Com efeito, Salem reconhece que as raízes últimas da efervescência ideológica que
se verifica no período precedem aos anos 1960. Todavia, foram neles que foram
encontradas condições para que as idéias libertárias pudessem se manifestar e fincar suas
raízes. Assim, o grande legado da época, segundo a autora é a entronização ideológica do
que pode ser chamado de um individualismo psicologizante-libertário (SALEM,1991, p.
64).
Ao falar da nebulosa místico-esotérica, 50 Champion (2001) também identifica uma
relação estreita entre o surgimento desse fenômeno com o processo de desenvolvimento e
subseqüente regressão dos movimentos de contestação que se seguiram a maio de 1968.
“Disso são sinais a trajetória de vários dentre os primeiros líderes ‘místico-esotéricos,
marcada pelos movimentos contraculturais de contestação – comunitários, neo-rurais,
ecológicos... – pela experiência ‘da estrada’ ou pela experiência de ‘expansão da
consciência’ (...)” (CHAMPION, 2001, p. 27).
Carozzi (1999) também ressalta a importância dos anos 1960, quando teria ocorrido
um macro-movimento reivindicando mudanças em várias situações sociais. A Nova Era se
apresentaria como a vertente “terapêutico/religiosa de um macro-movimento sócio-cultural
pós-sessentista de afirmação autonômica” (CAROZZI, 1999, p. 24). Nesse processo, o
antiautoritarismo, a autonomia, a rejeição às hierarquias de autoridades e às normas
institucionais seriam direções das mudanças apontadas. Essas questões tornam-se, então,
marcos interpretativos da Nova Era, onde o foco principal seria a sacralização da autonomia
individual.

50
A autora chama de nebulosa místico-esotérica o conjunto das numerosas redes “místico-esotéricas”.

50
A questão da autonomia é um ponto central para se compreender a Nova Era e a
sacralização da autonomia se torna uma “chave transformadora” tanto no que diz respeito
ao sujeito como também, ao movimento. Tavares (2007) amplia o que Carozzi diz a
respeito da questão da autonomia ao indicar:

Não me parece que a autonomia possa ser tratada como uma exclusividade do
movimento e nem que configure somente uma matriz de sentido (discursiva)
funcionando como uma categoria operadora de uma “transformação
permanente”. Por um lado, a questão da autonomia atravessa, em maior ou
menor intensidade, o cenário religioso contemporâneo, sendo, então, mais
adequado, indicar que ela se agudiza no contexto desse movimento; por outro
lado, mais que uma categoria discursiva, ela parece traduzir a dinâmica das
operações práticas que são postas em ação (TAVARES, 2007, p. 05).

Assim, a autonomia é uma expressão forte do movimento Nova Era, indo além de
categoria discursiva, apresentando-se como o motor das experimentações a serem
acionadas ou a matriz de sentido que atravessa o movimento e os sujeitos que vivenciam
essas experiências religiosas. A radicalização da autonomia é um tributo da contracultura.
Nos estudos que versam sobre o tema, encontramos como referência originária mais
próxima o movimento contracultural. No entanto, encontramos também a identificação de
que há o eixo histórico Romantismo-Novo Espiritismo-contracultura-Nova Era. Podemos
indicar que a Nova Era tem como dinâmica recomposições pessoais, onde as filosofias
espirituais do século XIX, o Romantismo e as aproximações com a religião de cunho
místico e popular são antecedentes históricos desta experiência religiosa “errante”.
Não obstante, o movimento reelabora os conteúdos utilizados de uma forma
original, gerando uma mensagem que se processa a partir da autonomia. Assim, essa
autonomia centrada no individuo e que se dissemina em forma de rede, produziu
desdobramentos mais visíveis a partir do período da contracultura. No entanto, os
“fundamentos discursivos” encontram-se no século XIX, como já indicamos com base em
Campbell (1997). Não podemos, porém, identificar deste contexto em diante uma legitima
herança, propagada por “mestres” e afins, pois temos que considerar que esse repasse sofre
transformações processadas pelas mediações, que por sua vez podem passar por uma
disposição ou rebatimento na sua tradução, que não é somente repassada e sim modificada,
evidenciando a perspectiva circulante defendida por Latour (2008).

51
O século XIX representou um ponto ou um fio de um longo processo, no qual
ocorreram inúmeras redefinições nos conteúdos transmitidos (da Teosofia e dos princípios
orientais, por exemplo), os quais são transportados por traduções ou nas formações das
redes. Com a contracultura essa dinâmica ganha mais força, com a vastidão de
possibilidades de novas conexões, com o encontro de diferentes regimes de enunciação que
são apresentados a partir desse contexto, tendo como base o espírito libertário e a
autonomia.
Essas considerações me permitem afirmar que a questão acerca da origem da Nova
Era encontrar-se no século XIX, com o romantismo e em movimentos esotéricos, como a
Teosofia, ou no XX, com a contracultura, é uma falsa questão, na medida em que uma
possibilidade não exclui a outra, pois espiritualismo, romantismo, contracultura e Nova Era,
fazem parte do mesmo fluxo. Não obstante, a meu ver, a peculiaridade da contracultura
nesse processo reside no fato de que ela possibilitou a evocação de novos mediadores, a
prática da mistura sem constrangimentos e a construção de novos vínculos que por sua vez
também vão pagar o tributo do transporte e vão promover novas mediações que passam a
tecer e a conectar nosso mundo. E, nessa longa e ininterrupta cadeia de mediações, vemos a
origem de uma rede, entre tantas, que se configura como um conjunto de práticas dispares,
fluídas, que não se substancializam e que também se realizam enquanto rede.
Convencionamos chamar de Nova Era este conjunto de práticas que tem como tônica
colocar tudo em relação, transformando humanos e não humanos em atores ou ator-rede,
criando novos vínculos sociais, prolongando assim, sem restrição e subterfúgios, “um passo
a mais na cascata de mediações”.

52
CAPÍTULO 2: DOS ESTADOS UNIDOS PARA O MUNDO: SEXO,
DROGAS E ROCk?

Lemas como “faça amor, não faça guerra”, “paz e amor”, ficaram célebres no
período da contracultura. Os jovens envolvidos nesse movimento defendiam o poder da flor
em detrimento do poder das armas. Eles pretendiam mudar o mundo, buscando uma
sociedade alternativa, adotando padrões de comportamentos despojados que provocaram
uma revolução nos costumes. Surgiram, então, a estética e o imaginário hippie, que vão se
expandir rapidamente, conquistando milhares de jovens em todo o mundo. Coerentes com
uma filosofia utópica de vida, adotada pela contracultura, desencantada com a sociedade
que consideravam “doente”, procuravam criar uma cultura alternativa, underground,
situada muito além daquele meio sócio-cultural desacreditado.
A contracultura pode ser percebida como uma rebelião pessoal que se torna também
político-mística, onde os jovens manifestam o desejo de mudar o mundo a partir de um
movimento que vem de dentro para fora, onde era necessário mudar o cotidiano,
valorizando a liberdade individual. Um novo paradigma de pensamento foi assumido
objetivando a “verdadeira libertação do espírito”. A liberdade e a criatividade tornaram-se
elementos fundamentais da vida e alterações da consciência serão vistas como libertação,
como transformação. Essa tendência conduz uma predileção pelo misticismo oriental.
Neste capítulo, apresentarei as principais características da contracultura e o
contexto de sua constituição e influências. Abordarei as interpretações que giram em torno
do próprio movimento contracultural (legado, desdobramentos e a validade de suas
ideologias). Será possível observar no decorrer do capítulo que a contracultura representou,
sobretudo, uma luta no campo da ideologia e das relações, conduzindo a constituição de
novos vínculos sociais, onde seu “impacto” pode ser percebido em maior ou menor grau no
plano das instituições sociais e da espiritualidade. Radicalmente pacífica, numa
“desobediência civil” ao estilo de Mahatma Gandhi.

53
Os hippies, como foram chamados os engajados nesse movimento, não tomaram o
poder e nem modificaram a política tradicional, mas conseguiram fazer com que seu
discurso e suas praticas alterassem o mundo. No entanto, algo de seu ideário foi
transportado e transformado, alterando a marcha ordinária das coisas.
A parte mais importante dessa “política” defensora das minorias é atual e produtiva.
As questões femininas e a efetiva emancipação das mulheres começaram a ser discutidas na
época da contracultura. O Movimento Gay, a derrubada dos tabus que envolvem o sexo e o
Movimento Negro, embora anteriores à contracultura, fortaleceram-se através da abertura
de outras vias de contestação da estrutura vigente, que não a da esquerda tradicional.

2.1 A revolução que estava no ar

Em 1967, a guerra do Vietnã 51 foi a pedra de toque para desencadear uma


manifestação realizada em 15 de abril, em Nova York, onde muitos jovens se reuniram para
celebrar a paz com o lema: “Faça amor, não faça a guerra”. O evento contou com a
participação de milhares de pessoas e se repetiu durante todo o verão em outras cidades dos
Estados Unidos e na Europa. 52 Houve uma revolução nos costumes com a “quebra de
tabus” e de valores estabelecidos. Paz e amor: desbunde; aqui e agora: contra o poder das
armas, poder da flor (flower power), poder gay (gay power), a liberação feminina
(women´lib) e o poder negro (black power) (CARMO, 2001, p. 50).
A efetiva rejeição da juventude aos valores tradicionais entrava em cena de modo
radical: cabelos longos, roupas coloridas, misticismo oriental, muita música, drogas,
festivais de música, liberalização sexual, comunidades no campo e na cidade, viagens de
mochila nas costas e passeatas pela paz ocorriam em todo canto. “Florescia” e rapidamente
se espalhava o movimento hippie.

51
Em 1964, o presidente dos Estados Unidos, Lyndon Johnson, conseguiu autorização do Senado para enviar
milhares de soldados e armamentos para combater os vietcongs (guerrilheiros comunistas). Além das tropas e
forte armamento, o governo norte-americano fez uso de produtos químicos como o napalm. Apesar da grande
tropa enviada pelos E.U.A, a guerrilha na floresta estava sendo vencida pelos vietcongs. As perdas foram
significativas em ambos os lados. Os rumos que a guerra estava tomando deram origem a vários protestos.
Morreram milhões de vietcongs. Em 1975 os Estados Unidos reconheceram a impossibilidade de ganhar o
conflito e se retiraram. A guerra do Vietnã marcaria uma geração inteira de norte-americanos. E para o povo
vietnamita, também não é diferente. Cf: Olic (1988); Carmo (2001).
52
Baseado em Hills (1988); Brandão (1990); Carmo (2001); Groppo (2000).

54
Por causa da guerra do Vietnã, uma das manifestações mais dramáticas era a
queima de certificados militares. Os rapazes da época queimavam seus
certificados de alistamento militar e conseqüentemente se tornavam marginais.
Foi dessa marginalização que cresceu o movimento hippie, porque eles viraram
hippies, fantasiados, usavam aquelas roupas coloridas, deixavam o cabelo
crescer, passavam a fumar maconha o tempo inteiro, tomavam ácido de vez em
quando e começou essa chamada contracultura. 53

A maior parte dos jovens envolvidos nessas manifestações tinha acesso aos
privilégios da cultura capitalista, à educação e garantias de sucesso no mercado de trabalho.
No entanto, optaram por contestar esse estilo de vida (American Way of Life), o predomínio
da racionalidade científica e a tradição bíblica. De acordo com Carmo (2001),

o surgimento dos hippies chocava toda sisudez da velha guarda, inconformada


diante da “promiscuidade” dos jovens de cabelos compridos que faziam amor
livre, da sensualidade e da vida nômade e libertária suas armas de combate à
violência do mundo industrializado. Por outro lado, a experiência da droga,
como forma de buscar a ampliação da sensibilidade, o erotismo, a preferência
pela expressão artística no lugar do discurso político assumiam uma postura
“contracultural”, que encantava toda uma geração (CARMO, 2001, p. 54).

Os hippies se organizavam em grupos comunais, realizando atividades agrícolas,


recusando a sociedade industrial e de consumo. 54 Há um retorno à natureza, ao artesanato e
é também nesse período que se verifica um despertar da consciência ecológica. Nesse
sentido, podemos observar alguns pontos significativos que acabam marcando o tom da
rebelião: opção pelo campo em detrimento da cidade, abandono da família em função de
uma vida em comunidade e negação do racionalismo com a adoção dos mistérios pré-
modernos, descobertas do misticismo oriental e do psicodelismo das drogas, tudo isto tendo
como base a experiência direta e a liberdade individual.
Esse movimento reivindicou um estilo de vida diferente da cultura oficial. Tal estilo
também ficou conhecido como Underground, indicando que se tratava de uma cultura “à
margem” e crítica da cultura ocidental, dos valores tradicionais através de novas formas e
novos canais de ver o mundo e de expressá-lo.

53
Trecho de uma entrevista de Luiz Carlos Maciel, extraída de:www.pscodeliabrasileira.blogspot.com acesso
em 25 de março de 2006
54
Ver sobre o assunto em: Tavares (1985).

55
Os jovens deixavam os cabelos crescerem, vestiam-se com roupas
anticonvencionais (coloridas, rasgadas, indianas, ou mesmo abolindo o seu uso), reuniam-
se para assistir festivais de músicas, 55 que eram percebidos quase como rituais do
movimento. 56 Libertos da rotina do trabalho e da competição, que julgavam alienantes,
esses indivíduos se voltavam exclusivamente para o prazer. Realizavam encontros para
ouvir canções, fazer uso de drogas alucinógenas e desenvolver livremente sua sexualidade,
sem as repressões das convenções sociais. 57 Pregavam o lema “sexo, drogas e rock’n’roll”.
O rock torna-se o principal símbolo da rebeldia da juventude ocidental. Desde os
anos 1950, esse novo estilo musical, desprezado pelos conservadores, conquistou os jovens
de classe média (BRANDÃO, 1990, p. 45-47). As letras, conduzidas pelo ritmo frenético
das guitarras elétricas, falavam a língua dos jovens, contestando todos os princípios das
gerações mais velhas. A dança, por exemplo, alucinante e sensual, quebrava tabus morais.
Na década de 1960, as canções deste estilo vão incorporar e ser incorporadas pelo espírito
de contestação: paz e amor, crítica à guerra, aos poderes instituídos e à sociedade de
consumo, e valorização do espírito comunitário.
Diversos foram os ídolos musicais que colaboraram para a dimensão que o rock
assumiu na década de 1960. Os Beatles, grupo formado no início da década, constituído por
jovens nascidos na Inglaterra, em Liverpool, conseguiram enorme sucesso internacional e
se tornaram ícones da música pop, sendo referência para muitas gerações pós- anos sessenta
(BRANDÃO, 1990). Aliando baladas dançantes a letras de protesto, guitarras elétricas a
cítaras indianas, os Beatles sintetizavam a mistura de elementos ocidentais e orientais,
introduzida pela contracultura. Nos Estados Unidos, na mesma época, foi Bob Dylan o

55
O mais famoso é o festival de rock de Woodstock, ocorrido em agosto de 1969 em uma fazenda nos
arredores de Nova York. Uma multidão de quatrocentos mil rapazes e moças para ouvir músicas, cantar,
namorar, fumar, tomar banho nu no rio.
56
Sobre o valor da música para esses jovens, Almeida Junior comenta: “Não consigo pensar no papel que a
música teve na contracultura sem me remeter a Nietzsche aos 27 anos, em ‘A Origem da Tragédia no Espírito
da Música’. Não consigo assistir a um concerto de rock sem imaginar-me em um ritual dionisíaco. E ver no
cantor um sacerdote. Onde todos entram em transe e perdem a noção de tempo e espaço. Tal qual um ritual
religioso, quando nele estamos por inteiro em seus cânticos. Somente a música, única das artes que não
necessita materializar-se para nos tocar a alma, para poder nos permitir este encontro com os deuses. (No
candomblé não é diferente)” in: ALMEIDA JUNIOR, Armando Ferreira. A contracultura ontem e hoje. 1996.
Disponível em: http: minerva.ufpel.edu.br/~castro/contracu.htm. Acesso em: 25 de março de 2006.
57
Foi a década do amor livre, da contestação às uniões estáveis e formais como o casamento. As pílulas
anticoncepcionais passaram a ser vendidas em qualquer farmácia, o que contribuiu para o novo
comportamento. A liberdade sexual em parte foi inspirada pelo psicanalista Wilhelm Reich (1897-1957), que
dizia que a repressão sexual era uma forma das pessoas se manterem quietas e obedientes diante do sistema.

56
artista de maior destaque. Suas músicas com letras elaboradas transformaram-se em hinos
dos movimentos estudantis e da luta pelos direitos civis dos negros (MUGGIATI, 1985).
Na segunda metade da década de 1960, outros artistas do rock adquiriram
notoriedade e também realizavam shows ao ar livre: Rolling Stones, Janis Joplin, Jimmy
Hendrix, The Doors, entre outros. Expressavam-se utilizando elementos percebidos como
inferiores pelos padrões racionalistas da cultura ocidental: misticismo, filosofia oriental,
astrologia, improvisação e experimentação de novas formas musicais e distorção de
músicas tradicionais. Esses artistas tornaram-se ídolos rebeldes e símbolos radicais da
contracultura. 58 Muitos deles tiveram experiências marcantes com drogas e destinos
marcados por tragédias. Entre 1969 e 1971, morreram Brian Jones, dos Rolling Stones,
Janis Joplin, Jimmy Hendrix e Jim Morrison, do The Doors.
Para além dos ídolos de rock, é certo que a contracultura arrastou milhares de jovens
de todo o Ocidente, encorajando-os a abandonar suas famílias para morarem em
comunidades alternativas, onde punham em prática suas idéias libertárias. Assim, surgem
os chamados hippies, que com suas novas formas de viver impulsionaram mudanças
fundamentais aos costumes do indivíduo contemporâneo. Muitos dos “valores” e estilos da
contracultura vão ser rapidamente digeridos pela indústria de bens de consumo e/ou, numa
leitura laturiana, foram transformados após passarem pelo trabalho da mediação.

Mas durou pouco o valor contestatório (...). A moda rebelde foi logo absorvida
pela grande indústria. E se a alta-costura pôde apropriar-se rapidamente da
minissaia, isso apenas demonstrou que a crise já estava instalada mesmo nos
sistemas de valores mais conservadores. Num contexto mais amplo, a indústria
cultural também utilizaria em seu benefício os movimentos de contracultura
surgidos nos Estados Unidos dos anos 60. Assim como a alta-costura passou a
vender minissaia, a indústria cultural faturou com a venda da contestação em
livros de capas luxuosas, filmes, discos, pôsters e qualquer outra mercadoria que
se prestasse à comercialização da idéia de rebeldia. Nos anos 70, tornou-se tão
disseminada a noção de que era justo, correto e necessário ser rebelde, que a
própria indústria cultural passou a ser movida pela adrenalina liberada pelos
movimentos de contestação. A contracultura tornou-se indispensável para a
cultura. E os jovens se tornaram os principais produtores e consumidores dessa
indústria florescente. (ARBEX JR. & TOGNOLI, 1997, p. 35).

As novas propostas lançadas pelos hippies colaboraram de um modo significativo


para mudanças nos padrões de comportamentos que acabaram sendo integrados por grandes
58
Ver melhor em: Magnani (2000); Carmo (2001); Brandão (1990); Muggiati (1985).

57
empresas, que incorporaram em suas linhas de produção símbolos da contracultura. A
sociedade de consumo incorporou o “modo de vida” daqueles que a criticavam. 59
Esta “capitação” da contracultura pelo sistema foi um processo que ocorreu de
forma imediata. Para muitos, isso esvaziou o movimento na medida em que ele perdeu um
dos seus princípios fundantes: o caráter transgressor e revolucionário. Luiz Carlos Maciel,
comentando um show dos Rolling Stones em 1969 nos Estados Unidos, aponta para o
60
“fracasso da contracultura”, utilizando a referida banda e o concerto de Altamont como
exemplos cabais do fim definitivo da Era de Aquário.

Aviso aos navegantes: com o lançamento, nos Estados Unidos, do filme Gimme
Shelter, de Albert e David Mayses, sobre a célebre excursão dos Rolling Stones
em 1969, a mais recente curtição de todo mundo (e, certamente, já programada
para chegar ao Brasil nos próximos meses) é o fim definitivo da chamada Era de
Aquarius. O movimento não passou de uma desvairada fantasia coletiva e a
contracultura fracassou – proclamam os articulistas de todos os jornais. Os
episódios sangrentos de Altamont, registrados no filme, são ao mesmo tempo –
dizem – a prova e o símbolo mais forte desse final melancólico. Até os mitos
engendram o seu contrário dialético – e o Altamont foi a antítese de Woodstock.
A síntese, concluem os analistas, é o silêncio. (...) À contracultura, acusam de ter
sucumbido aos pecados mais graves que ela acusou no sistema: neurose,
sadismo, violência e um egoísmo desesperado. Ao ser absorvida pelo consumo,
servindo de assunto para jornais e televisões e enriquecendo promotores de
festivais e as fábricas de discos – entre muitos exemplos – a contracultura teria
sido irremediavelmente inoculada com os venenos mais letais do sistema que ela
negou. (...) A contracultura já vendeu a sua alma ao diabo. Aqui no Brasil, nós
tivemos oportunidade de ver como essa transa é feita, estamos tendo ainda. Em
apenas um ano, as revistas começaram a badalar o underground, qualquer
imbecil que aparece na televisão bota os dedinhos em “V”, os hippies viram uma
moda superficial – e a repressão se encarrega do resto. Com essa assimilação

59
Segundo Hobsbawm (1995), uma das peculiaridades da “nova cultura jovem” foi “seu espantoso
internacionalismo. O blue jeans e o rock tornaram-se marcas da juventude ‘moderna’, das maiorias destinadas
a tornar-se maiorias (...)”. Para o autor, as características relevantes deste processo se resumem em: ter sido
“ao mesmo tempo informal e antinômica, sobretudo em questões de conduta pessoal. Todo mundo tinha de
‘estar na sua’, com o mínimo de restrição externa, embora na prática a pressão dos pares e a moda impuseram
tanta uniformidade quanto antes (...)” (HOBSBAWN, 1995, p. 323).
60
Este concerto ocorreu quatro meses depois de Woodstock, no dia 06 de dezembro de 1969. O evento foi
uma comemoração pela excursão dos Stones nos Estados Unidos, que rendeu um milhão de dólares. Este
evento foi gratuito e ocorreu em Altamont, por ficar a quarenta milhas de San Francisco e também porque
queriam que fosse no estado da Califórnia, onde era alta a percentagem de hippies e afins. O evento foi
marcado pela violência, principalmente a praticada pelos Hell’s Angels, que realizavam o serviço de “guarda
de segurança”. Ocorreram mortes por afogamento, por atropelamentos com carros descontrolados e muitas
brigas sangrentas. Segundo Maciel, “um estudante negro chamado Meredith Hunter, foi esfaqueado por um
Angel no momento que apontava um revolver na direção do palco, enquanto Mick Jagger cantava os versos
escabrosos de “Sympathy for the Devil”. Além das drogas sintéticas, houve o consumo de bebidas. Esta
excursão dos Rolling Stones virou filme: Gimme Shelter. Cf: MACIEL, Luiz Carlos. O fracasso da
contracultura. Pasquim. Underground. Maio. 1971.

58
pelo sistema, estão plantadas as sementes da neurose e da violência. Não
tenhamos dúvidas que dentro de alguns meses, as nuvens escuras de Altamont
estarão sobre nos, da mesma maneira que ainda há pouco – brilhou o sol limpo
de Woodstock 61 .

O sonho de uma mudança radical, para muitos, foi triturado pela indústria cultural.
A onda renovadora e a rebeldia foram assimiladas pelo sistema e/ou acomodadas pelas
forças “reacionárias”. A revolução que estava no ar malogrou, era o fim de “a imaginação
do poder”.
Muitos iriam perceber que não há revoluções possíveis no mundo da comunicação
de massa e passariam a ter a nítida noção do alcance da indústria cultural. Isso marca
também o fim da inocência pop. Há um movimento considerado perverso que transformou
os principais canais pelos quais os jovens reivindicavam mudanças em veículos
privilegiados para uma conformidade massiva às regras do jogo. Um exemplo cabal dessa
ocorrência é o lançamento do álbum Sgt. Peppers`s, que se tornou referência nesse campo
ao estabelecer os signos, os procedimentos e os mitos da cultura pop.

Talvez seja algo exagerado mas nem por isso incorreto afirmar que antes dos
Beatles havia popularidade. Depois, culto pop – ou seja, esse passe de marketing
que transforma uma banda, um músico, um ator e hoje em dia até um nerd de
computador em autoridade suprema sobre qualquer assunto, criando em torno
62
dele um universo de moda, comportamento, produtos e até idéias .

Esse culto pop indicado pela comentarista faz parte de toda uma rede que passa a
processar e dar sentido a esse campo midiático e a nascente cultura pop através de uma
série de diferentes regimes de enunciações que passam a ser dinamizados a partir de
produções como o álbum dos Beatles, que até hoje é referência no mundo musical e na
história da cultura pop. Assim, Sgt. Peppers`s produz uma rede sociotécnica que não é
constituída por intermediários e sim por mediadores humanos e não humanos onde se pode
observar seres com ontologias diferenciadas (LATOUR, 2008).
Em 1970, a emblemática frase de John Lennon “o sonho acabou” ficou célebre e foi
percebida como a tradução da crença que os ideais da era hippie já tinham sido solapados.
No entanto, mesmo sendo lugar comum a idéia de que o "sistema absorveu" as contestações

61
MACIEL, Luiz Carlos. O fracasso da contracultura. Pasquim. Maio. 1971.
62
ABRAMO, Bia. O fim da inocência pop. Folha de São Paulo. Caderno Mais! 23 de fevereiro. 1997.

59
da contracultura ou que “o sonho acabou” e que houve uma vitória conservadora – nessa
luta por visões de mundo, onde o que se deseja é a hegemonia –, não podemos deixar de
considerar que uma sociedade que absorve outras maneiras de ser, mesmo que
parcialmente, já é uma sociedade que sofreu modificações. Que mudou qualitativamente a
sua hegemonia.
Cabe levarmos em consideração que não há a possibilidade de termos uma
informação direta, pois é relevante a presença das mediações e dos mediadores que são
transformadores. A informação nunca é somente passada, transferida ou informada, ela é
modificada. Ela é transportada por uma cadeia de mediadores que englobam objetos e
sujeitos. E, assim, o que foi transportado “sofre” uma transformação que sucessivamente
vai produzir novas mediações (LATOUR, 2004; 2008).
Em função dessas colocações, podemos dizer que o discurso da contracultura abriu
canais para que a sociedade atual tenha uma nova maneira de ser, não deixando de ser uma
sociedade diferente. Que mudou qualitativamente em sua hegemonia.
A contracultura e seus desdobramentos não deixaram de transformar a sociedade,
deixando menos repressivas algumas posturas e possibilitando outras visões de mundo.
Assim, ela não se condensou em uma revolução da sociedade, mas vai se constituindo
sutilmente, como a maioria dos processos que resultam em efetiva transformação social. Os
temas ou lemas levantados pela contracultura são profundamente contemporâneos –
ecologia, respeito às minorias, liberdade individual, entre outros.
A contracultura e todos os movimentos que ocorrem em 1968 traz a evocação de
novos mediadores que possibilitam uma permissão que se traduz na possibilidade de várias
posturas. Nessa direção, a contracultura torna-se um movimento que coloca objetos e
sujeitos em relação, onde é possível perceber uma seqüência em potencial de significados
suscitados e postos a agir, numa dinâmica transformativa dos sistemas de relações.
Segundo Almeida Junior (1996), “a tomada do poder pressupõe uma nova
consciência. Uma nova ideologia. Somente com novos olhos se pode construir um mundo
novo”. ‘Olhos novos para o novo’, dizia Oswald de Andrade, nosso antropofágico poeta. O

60
consenso necessário à conquista da hegemonia política pressupõe sempre uma nova
maneira de ser”. 63
Em virtude disso, é fato que a sociedade ocidental se defronta com questões que a
obrigam a discutir, buscar outros caminhos e mudar, o que pode ser percebido em questões
como: aceitação do divórcio, quebra do tabu da virgindade, legalização das drogas, do
aborto, uso de preservativos e, mais recentemente, casamentos homossexuais, entre outros
temas. Passamos a ter que conviver com uma nova visão das relações sexuais, do
casamento, da família, das relações raciais e com a natureza. Nestes exemplos temos a
referência circulante apontada por Latour (2001; 2004) e a presença de uma seqüência
infinita de mediadores.
Nesse sentido, a contracultura nos mostrou e nos abriu novas maneiras de pensar,
sentir e agir, trazendo para muitos uma “nova sensibilidade” em diversos níveis. A
religiosidade ocidental, nossos hábitos alimentares, visão de saúde, enfim, todos esses
aspectos foram colocados em suspeição. O campo de abrangência da contracultura é
extenso. Ela promoveu uma nova visão de mundo e uma nova consciência que são
processadas no âmbito de sua longa cadeia de mediadores, onde estes se tornam “atores
dotados de capacidade de traduzir aquilo que eles transportam” Não obstante, esses atores
(sujeitos e objetos) tornam-se “cidadãos livres” (LATOUR, 2008, p. 80).
No que tange especificamente ao tema que estou desenvolvendo neste estudo, o
fenômeno sócio-cultural da contracultura viabilizou, entre outros fatores, a emergência de
experiências espirituais, centrada no caráter experimental ou vivencial do sagrado,
desdobradas posteriormente no estilo Nova Era de expressão religiosa. E, embora a Nova
Era e a contracultura tenham diferenças nos métodos e práticas, ambas comungam de um
projeto alternativo que apresenta muitas afinidades (naturalista, ocultista, anti-materialista e
anti-tradicionalista).64 A esse respeito, Magnani (1999) comenta: “para além dos modismos
e efeitos midiáticos mais recentes, é possível reconhecer a existência e continuidade de uma

63
ALMEIDA JUNIOR, Armando Ferreira. A contracultura ontem e hoje. 1996. Disponível em: http:
minerva.ufpel.edu.br/~castro/contracu.htm. Acesso em: 25 de março de 2006.
64
Segundo D’Andrea, “enquanto a contracultura dos anos 60 apresentava pendores revolucionários de
esquerda, pregava o sexo livre e havia o (ab)uso de drogas (vistas como ‘expansores da consciência’, para a
‘auto-exploração’ e auto-conhecimento), no movimento New Age dos 70 aos 90, em geral, se verifica a
predominância de uma postura apolítica ou neoliberal, identificada como “centro radical”; o sexo é moderado
ainda que as apresentações sobre o corpo (‘bodymind’) acentuava aspectos sensualistas; e as drogas são vistas
com reservas” (D’ANDREA, 1996, p. 156).

61
série de valores, comportamentos, concepções de saúde, práticas corporais que remontam
ao movimento beat e à contracultura dos anos 50 e 60 e que passada a etapa da contestação
no velho estilo hippie , difundiu-se assumindo novas dimensões (...)” (MAGNANI, 1999, p.
27).

2.2 Ser hippie é: subverter o significado das coisas

Tudo começou em 14 de janeiro de 1967, quando uma grande cadeia de rádio


anunciou: “Amanhã, grande reunião das tribos, no terreno pólo da avenida. Tragam
sininhos, plumas, flores, tambores, colares, flautas, crianças, qualquer coisa, você
mesmo”. 65 E no dia marcado, eles começaram a chegar, barbudos, floridos, as moças
oferecendo flores aos que passavam, queimando incensos, pintando os rostos uns dos
outros. “À noite, Allan Ginsberg, o poeta beatnik, de pé num estrado em frente do oceano
Pacífico, começa a cantar uma ladainha hindu, acompanhando pela multidão que toca suas
cítaras e tambores. A explosão hippy aconteceu naquele momento. E desde então vem
assombrando a América e o mundo”. 66
Informações como estas chegam ao Brasil através dos meios de comunicação e
deixam evidente o espanto do mundo diante do fenômeno. Quem são eles, como vivem, o
que pensam do mundo, da vida, do sexo e do amor? São questões que tentam ser explicadas
por sociólogos, psicólogos e até políticos, além das pessoas comuns.
Por seu lado, os hippies não estavam preocupados com a percepção que a sociedade
tinha deles. Uma jovem francesa, Marie-Mireille Bigorie, que estudava Filosofia nos
Estados Unidos e adepta do movimento, definiu na época o que era ser hippie:

Ser “hip”, antes de tudo, e ser um amigo do homem, um homem, não violento e
apaixonado pela vida. Um ser que ama, autêntico e honesto, que coloca a
liberdade acima da autoridade, a criação acima da produção, a cooperação acima
da competição. Pouco importa se tem a cabeça raspada ou cabeleira de
louco.Contudo, seja nos Estados Unidos, Londres, Hamburgo ou Paris, as
cabeleiras são imensas, e as roupas coloridas. Um hippy não seria o mesmo se
tivesse os cabelos cortados? Se estivesse limpo? Por que as cores berrantes? - Os
cabelos têm o mau hábito de crescer. Mas é heresia achar que um sujeito é viril
porque raspa a cabeça, ou efeminado porque tem cabelos compridos. A mesma

65
Façam amor não a guerra. Realidade. Fevereiro. 1968. p. 110.
66
Façam amor não a guerra. Realidade. Fevereiro. 1968. p. 110.

62
coisa com as roupas: não entendo por que só as mulheres devem usar cores
berrantes. As ruas da cidade já são tão cinzentas, tristes... Nós obrigamos as
pessoas a não mais julgar pela aparência, a atingir o verdadeiro “eu” dos outros.
O que importa é fazer o que se quer, em qualquer momento ou lugar, com uma
única condição: que isto não prejudique ninguém. Não acredito nas obrigações
religiosas, morais ou familiares. Só acredito na felicidade. 67

Na “concepção” hippie, a liberdade está acima da autoridade. Esse deslocamento, a


meu ver, está vinculado à entronização ideológica do que Salém (1991) denomina como
sendo um “individualismo psicologizante-libertário”. Um ponto crucial deste ideário é o
questionamento absoluto de todas as formas de poder e tudo que tem função
normatizadora, numa perspectiva de livrar o individuo de qualquer constrangimento social.
A denúncia atinge instâncias dedicadas à educação e à socialização – escola, família,
religião, entre outras. Instaura-se o principio da igualdade como eixo norteador das relações
sociais e isto conduz a uma liberação, na medida em que garante a destotalização do
individuo em relação a qualquer instância pretensamente englobante e/ou normatizadora.
Os aspectos afetivos da vida social se sobrepõem aos aspectos normativos.
Nos anos 1960, podemos verificar um deslocamento das questões normativas
(percebidas como autoritárias) em direção ao princípio da liberdade. Tal deslocamento
também indica um aparente paradoxo ao apresentar um social valorizado/rechaçado. A este
respeito, Salem (1991) esclarece que

(...) os anos 60 revelam uma violenta aversão a quaisquer tipos de


constrangimentos sociais; por um lado – é necessário reconhecer -, noticiam, ao
mesmo tempo, uma forte valorização da sociabilidade denotada nos próprios
movimentos sociais que então eclodem. Não há contradição. Esta se dissipa
quando se invoca o valor imputado à igualdade, entendida como oposição a
englobamentos e hierarquizações (...); é ela que permite conferir inteligibilidade
aos modos diversos, mas não contraditórios, de se representar o social e a
própria sociedade. Ou seja, no imaginário da época (mas certamente não só dela)
tais instâncias se encontram bipartidas em termos valorativos: há um social que,
identificado com relações hierarquizadas, constrange a livre manifestação do
indivíduo e nessa medida, é reputado como perverso. Em contraste, o social
positivamente representado confunde-se com relações igualitárias ou não
englobantes: este seria enriquecedor, na medida em que favorece e até estimula
o pleno desabrochar do sujeito. Visto sob outra óptica, a aversão a
constrangimento normativos – encarados como dados inerentes, e maléficos, às
relações englobantes – reporta à oposição às pretensões universalizantes das
normas; inversamente, a antinormatividade – assentada e garantida pelas

67
Façam amor não a guerra. Realidade. Fevereiro. 1968. p. 112.

63
relações igualitárias – afiança processos individualizantes e por conseguinte,
permite o desabrochar desimpedido do sujeito (SALEM, 1991, p. 66). 68

A aversão a constrangimentos normativos conduzirá os hippies a romperem com os


padrões até então estabelecidos e, ao agirem assim, serão percebidos como provocadores de
escândalos e causarão verdadeiro assombro com o seu comportamento e acabarão por criar
uma estética onde a mistura dá o tom das associações. Até então, como podemos perceber,
era inconcebível para um homem usar cabelos compridos e roupas coloridas. Tal imagem
não corresponderia com a imagem de um homem. 69 Ter cabelos grandes e usar roupas
coloridas levou muitos rapazes às delegacias, onde seus cabelos eram cortados e lhes eram
dados banhos. 70
Em várias matérias 71 encontrei referências às vestimentas hippies e ao visual
adotado por eles, o que era algo que causava um grande choque e incompreensão. A
imagem associada a este estilo era percebida como excêntrica, bizarra e exótica. Encontrei
freqüentes descrições como esta: “Moças e rapazes vestiam roupas cada vez mais exóticas,
pintavam os corpos com cores berrantes, imitando, às vezes, tatuagens (alguns recorrem a
tatuagens autênticas) ou usando colares de contas coloridas, cintos e pulseiras, com
pequenos guizos, que tilintam quando dançam em público”. 72
O estilo hippie despertou os comentários escandalizados das velhas gerações, mas
entre a juventude suscitou logo muitos imitadores que, na verdade, nada tinham em comum
com eles. Somente buscavam a moda hippie 73 . O grande slogan dessa coletividade era:

68
Para um aprofundamento das questões que envolvem o individualismo e as questões paradoxais que surgem
em relação ao individualismo que se estabelece no Ocidente consultar Dumont (1993). Salem também utiliza
esse autor para tecer suas considerações.
69
O sexo único - Roupa colorida, colares: é mulher? Não. É homem. Manchete. No 49. Abril. 1970. p. 72.
70
Aqui no Brasil, por exemplo, também teve casos de jovens que foram levados para as delegacias para que
seus cabelos fossem cortados. É o que indica, por exemplo, a matéria: Artistas presos e cabeças raspadas.
Jornal O Dia. 27 de novembro. 1970. Também na coluna Underground, Maciel relatou essa prática em
relação aos jovens que deixavam seus cabelos crescerem.
71
São matérias, reportagens e artigos que por ocasião da contracultura descreviam e analisavam a emergência
da cultura hippie e as quebras de convenções que ela trazia. Vários desses artigos publicados em revistas
como Manchete, Realidade, Cruzeiro, Fatos & Fotos e em Jornais como o Jornal do Brasil e Pasquim vão ser
citadas no decorrer deste trabalho.
72
Ser hippie. Manchete. No. 44. Novembro. 1969. p. 147. Algumas cerimônias são descritas como uma festa
zen-budista, onde rapazes e moças com roupas coloridas ao estilo dos monges asiáticos dançam e cantam e,
para conseguir algum dinheiro, dedicavam-se ao artesanato, que vendiam em lojas hippies. Essas descrições
geralmente dizem respeito a uma feição da contracultura em paises do hemisfério Norte.
73
O estilo hippie virou moda. A moda do final dos anos 1960 remetia à contracultura. Assim, como a
minissaia de Mary Quant, o jovem daquele contexto expressou sua rebeldia em sua vestimenta. A alta costura
deveria ser varrida para debaixo das batas multicoloridas, das botas até o joelho, das calças boca-de-sino e do

64
Façamos o amor e não a guerra. A partir deste lema muitos jovens recusavam o serviço
militar e rasgavam suas convocações que os levaria até a guerra do Vietnã. Essa atitude vai
ajudar a aumentar o número de hippies.
Por mais que os hippies indicassem que seu movimento não era de protesto, nem
tinha qualquer fim político, eles acabaram desempenhando esta função, embora eles e a
“nova esquerda” americana (que organizava passeatas e protestos num estilo mais
tradicional e organizado contra a guerra do Vietnã, e que não contava com a participação do
movimento hippie) não se entendessem. Isto porque o primeiro movimento era visto pelo
segundo como alienado e não participativo. No entanto, isso não iria impedir que os hippies
organizassem mecanismos para que cada vez mais jovens deixassem de se alistar. Criaram
centros ilegais para orientar os rapazes a não entrarem no exercito. Ensinavam quais
doenças provocavam a dispensa, a pesquisar em seu passado se alguma daquelas doenças já
havia sido contraída e, se não, ensinavam-lhes a enganar os sargentos recrutadores. E, se
nada disso adiantasse, organizavam fugas para o Canadá. 74 Todos esses procedimentos nos
indicam a presença de diferentes formas de conectar os elementos da política, indicando o
transporte de diferentes regimes de enunciações.
As atitudes voltadas para impedir os alistamentos no exército americano estavam
relacionadas com crença na não violência. Quando agredidos, não reagiam e ainda
entregavam flores como resposta. Vejamos um comentário a esse respeito, feito por um
jovem participante a um enviado da revista Realidade:

- A não violência dá a medida da evolução de um ser, de uma sociedade ou de


uma civilização. Um luxo que se consegue aos poucos no decorrer da
história. De uma geração para outra, somos cada vez mais pacifistas não por
fraqueza, mas por termos adquirido maior consciência da vida. Vejam
nossos pais: tiveram de fazer uma guerra imposta pelos chefes de sua
geração, mas já sentiam vagamente – nós sentimos claramente- a estupidez
de lutar por idéias, pela pátria em perigo ou simplesmente o desejo vulgar de
matar. Todos os jovens devem fazer greve contra a guerra. É melhor ser
carneiro que lobo, vitima que criminoso. Imagino uns adultos importantes
sentados atrás de suas mesas. Estudam números e porcentagem e decidem
quantos homens serão enviados ainda para o Vietnã. São uns assassinos.
Acham-se no direito de matar em nome do capitalismo ou dos interesses do

lema paz & amor. Uma parte da sociedade queria ser mais solta, menos previsível. A moda industrializada
concedeu espaço a jovens estilistas reconhecidos pela sua criatividade. Os novos criadores importavam
tecidos da Índia e jaquetas do Afeganistão.
74
Cf: Façam amor não a guerra. Realidade. Fevereiro. 1968. p. 112.

65
Senhor X, ou ainda para salvaguardar as idéias democráticas. E o incrível é
que ainda existem jovens bastante ingênuos que obedecem a estes chefes e
fazem o serviço militar. Um soldado é um traidor da humanidade, mesmo
que a pátria o julgue um herói. Nós hippies queremos ser homens antes de
sermos americanos. A humanidade não é apenas uma idéia abstrata; estamos
todos unidos uns aos outros. 75

Esta referência a uma totalidade humana e a defesa de uma “comunidade humana”


está relacionada com a recuperação de elementos associados às sociedades pré- modernas.
As chamadas sociedades tradicionais são aquelas “marcadas” por uma relativa indistinção
de esferas e domínios. A totalidade social abarca por inteiro os sujeitos e suas consciências.
Assim, de certo modo, nessas sociedades a “individualidade é nula” 76 , ou melhor, o que
sobressai é a prioridade existencial e valorativa do todo em sua dinâmica com as partes,
assim como as relações também têm prioridade sobre os elementos. Os contraculturalistas
recorrem a esta concepção de comunidade; sentem-se partes de um todo, sentem-se partes
da comunidade humana e, em função disso, ser americano é uma particularidade que deve
ser minimizada diante do todo.
Podemos perceber pela citação acima que eles se identificavam como sendo “almas
amorosas em busca da sua consciência cósmica”. É nesta questão que centram o papel que
devem cumprir numa unidade maior. Sendo assim, percebem o soldado como um anti-
herói, indicando que o verdadeiro herói é aquele que se recusa a ir para a guerra, que faz a
opção pela paz e que tem a consciência de que faz parte de uma fraternidade universal. 77
Com essa convicção eles irão subverter o significado de herói que é estabelecido
convencionalmente.
Essa questão, evidentemente, não poderia deixar de inquietar os observadores da
vida norte-americana. Os hippies eram geralmente jovens com idade entre 15 e 30 anos,
cuja postura demonstra que desprezavam ou ignoravam os julgamentos que os outros
pudessem fazer sobre eles. “Para esses jovens, o inferno de Sartre simplesmente não existe.

75
Cf: Façam amor não a guerra. Realidade. Fevereiro. 1968. p. 112.
76
DURKHEIM, Emile. De la división del trabajo social. Buenos Aires: Editorial Schapiro, 1967, p. 113.
77
Esta perspectiva foi um tipo de consciência crítica radical da sociedade que na época ficou conhecida
também como underground. Aqui no Brasil o underground também teve suas versões e ficou conhecido
como movimento marginal, alternativo, “udigrude” ou “geléia geral”. Aqui ficou célebre a frase: “Seja
marginal, seja herói”, de Hélio Oiticica. No entanto, a tônica da marginalidade no Brasil se expressou de
modo contundente no campo da produção cultural. Mas havia uma parcela da juventude que era adepta da
luta armada como forma de combater a repressão implementada pela ditadura militar. Para uma melhor
compreensão da visão underground da época verificar em: Bondinho. Novembro. 1971. p. 17-23.

66
A atitude deles é de completo desligamento do meio social e das normas estabelecidas, das
quais não tomam nenhum conhecimento. Nada fazem que possa ser qualificado de
quadrado ou normal. Desprezam ou ignoram toda a espécie de convenções sociais que são
o apanágio da chamada civilização ocidental”. 78
Observadores do movimento, na época, tentavam explicar a irrupção dos hippies
nos Estados Unidos e no mundo. 79 O famoso historiador e sociólogo inglês Arnold
Toynbee declara que percebe nestes movimentos “um sinal vermelho de advertência sobre
o estilo de vida norte americano”. Em São Francisco da Califórnia, um psiquiatra fez estas
significativas declarações: “Engana-se redondamente quem quer que pense que se trata
apenas de cambada de rapazolas e garotas malucas por drogas como o LSD e outros
alucinógenos”. Ele enfatiza que “trata-se, na verdade, de um movimento social. E de um
movimento quintessencialmente idealista e romântico, de uma espécie que aparece
freqüentemente nos momentos de verdadeira crise social. É uma volta à vida natural e à
primitiva inocência do homem” 80
Até para alguns afinados com a questão, como Luiz Carlos Maciel, as posturas
defendidas pelo movimento hippie, a princípio, parecem algo intrigante. É o que podemos
perceber num trecho onde ele indica que, entre vários assuntos (sexo, drogas, underground,
entre outros) a serem tratados em seu trabalho que se iniciava no Pasquim, estaria a
temática hippie. Destaquei um trecho que transparece a irreverência que deu o tom a esta
publicação:

A questão dos hippies vai ser um papo freqüente. Atenção: muito cuidado!
Como você não está a fim de ser um hippie nem nada, você tem que se mostrar
tão para frente, que não possa correr o risco de parecer pra trás – coisa muito
fácil de acontecer quando este delicado assunto está em questão. Talvez seja
aconselhável não interferir muito na conversa e aproveitar as pausas para sorver
uns bons goles de chope, alternados com caipirinha. Eu próprio ando meio
desorientado em relação aos hippies e, talvez, o chope e a caipirinha sejam
melhores conselheiros do que eu. 81

78
Ser hippie. Manchete. Novembro. 1969. p. 147.
79
O futuro que nos cerca. Jornal do Brasil. Caderno especial. Rio de Janeiro. 31 de dezembro. 1967; A
hipilândia. Jornal do Brasil. Caderno B. 10 de Janeiro. de 1968; FRANCIS, Paulo. É a revolta contra a alma.
Realidade. Julho. 1969. p. 78-80.
80
Ser hippie. Manchete. Novembro. 1969. p. 141-148.
81
Maciel, Luiz Carlos. Cultura de verão. Pasquim. No 21. 13 a 19 de novembro. 1969. Posteriormente, a
então coluna de Maciel, Underground, se torna um veículo de esclarecimento sobre o movimento hippie, um
ponto de ligação para formação de comunidades, entre outros. Exemplos de matérias onde esses assuntos são

67
Acreditando que desprezam as formas de controle social, valorizando a vida natural
e a crença na bondade da natureza humana, os hippies indicam uma idealização romântica
da vida. Tal perspectiva cria nos observadores do movimento uma visão de que eles são
alienados e que passam a simular uma realidade a partir de suas práticas – a um só tempo
pautadas pela naturalidade, extravagância e o êxtase. Nesse sentido, podem transformar
uma bandeira nacional em uma roupa sem qualquer constrangimento e, assim, acabam
ensaiando uma subversão dos significados habituais das coisas, como alguém que toma
uma palavra qualquer para designar algo inteiramente diferente do que ela exprime para os
outros. Vejamos um trecho de reportagem onde é possível visualizar a percepção de um
observador (repórter) em relação ao movimento e sobre esta postura “subversiva”:

(...) Uma conciliação impossível entre um remoto futuro de paz e a memória da


barbárie recente. “o que nós queremos”, dizem os hippies “é construir uma
civilização super-bela”. Na prática, isto tem significado um afastamento dos
problemas desta civilização. Fazendo da inocência seu ponto de partida, usando
a música e o canto como forças rituais no caminho da transformação individual e
coletiva, esses jovens simulam uma realidade para erigir seus sonhos. O que
pode, efetivamente, ser bonito, mas é um faz de conta por vezes cruel. Na
indiferença com que um hippie cobre a cabeça com um capacete nazista –
“afinal de contas, é um objeto como qualquer outro” – há uma dimensão
aterradora. Porque não é um objeto como qualquer outro. 82

Os hippies desprezavam ou ignoravam toda espécie de convenções sociais da


sociedade ocidental. Reagiam contra elas de forma direta, entoando “estranhas” canções
orientais, queimando incenso, distribuindo flores silvestres, adotando atitudes físicas e
mentais zen-budistas, pedindo conselhos de swamis, ou eremitas hindus, que na época
começam aparecer, em certo número, para aproveitarem a onda orientalista. 83
Alguns são verdadeiros místicos, professando a religião da Igreja Neo-Americana,
uma adaptação do budismo cujos sacerdotes são todos hippies. E hippies “quadradões”, que
costumavam converter os seus colegas, celebrando casamentos nos parques das cidades,

tratados: Você está na sua: Um manifesto hippie. Pasquim. No 29. 08 a 14 de janeiro. 1970; Qual é a tua?
Pasquim. 60. 13 a 19 de agosto. 1970.
82
Ser hippie. Manchete. Novembro. 1969. p. 146.
83
A hipilândia. Jornal do Brasil. Caderno B. 10 de Janeiro. 1968; Na academia da meditação – O mestre se
chama Maharishi. Jornal do Brasil. 12 de março. 1968. p. 01; OLIVEIRA, José Carlos. O Tropicalismo
contra os hipócritas (I). Jornal do Brasil. Caderno B. 14 de março. 1968. p. 03; Ser hippie. Manchete.
Novembro. 1969. p. 147.

68
com noivas em adiantado estado de gestação. Isto indica que alguns, além de serem contra
a guerra do Vietnã, contra a bomba atômica, eram igualmente contra a pílula
anticoncepcional. Na natureza, não se deve interferir. As coisas devem correr o seu curso
natural. 84
Mas, por outro lado, é a pílula anticoncepcional que vai possibilitar em grande
medida o amor livre, tão apregoado por eles. Evidentemente, uma boa parcela dos
contraculturalistas dedicava-se ao amor livre, predominado o hedonismo e a mais ampla
liberdade sexual, sem pretensões de exclusividade, onde dois e três rapazes compartilhavam
a mesma moça, ou várias moças podiam viver conjugalmente com o mesmo rapaz. Na ética
dos hippies, tudo era permitido. 85
Na esteira da subversão dos significados, um hippie pode transformar uma simples
fruta como a banana em um objeto de culto. Acontece que um “deles tinha descoberto uma
coisa surpreendente: pegou uma banana, retirou a membrana branca e fibrosa que recobre o
interior de sua casaca, assou-a durante horas no forno até obter uma cinza; depois fez
cigarros com a tal cinza e fumou-os: era como se tivesse fumado maconha”. 86 Rapidamente
essa experiência se espalhou e muitos hippies de Nova York invadiram mercados para
comprarem grandes quantidades da fruta. A United Fruit Company teve que lançar um
comunicado esclarecendo que as bananas eram inofensivas, o que para os hippies não fazia
diferença alguma.
Outra experiência que vai nesta direção foi a tendência a se reunirem em busca do
“Som Total”. Tocavam juntos e ao mesmo tempo, sem se importar com coisa alguma e por
várias horas. Qual o sentido? Era “abrir os sentidos, expandir a consciência e exaltar o
espírito”. Gostavam de Beatles, mas acreditavam que a música “– como a religião e a moral
– é experimental. Deus, em algumas regiões da cidade, usa máscara hindu e seus profetas
são autênticos sacerdotes vindos da Índia. Um hino religioso hindu, “Hare Krisha”, tornou-
se o hino hippy, desde que Allan Ginsberg o cantou, ao ‘fundar’ o movimento”. 87
Na onda oriental e Zen-budista, adotam a comida macrobiótica, utilizando arroz em
sua dieta, como fazem os monges japoneses em seus retiros espirituais nas encostas das

84
O rei dos hippies. Manchete. 18 de novembro de 1967; Ser hippie. Manchete. Novembro. 1969.
85
FRANCIS, Paulo. É a revolta contra a alma. Realidade. Julho. 1969. p. 79; Ser hippie. Manchete.
Novembro. 1969.
86
Façam amor não a guerra. Realidade. Fevereiro de 1968. p. 113
87
Façam amor não a guerra. Realidade. Fevereiro de 1968. p. 113-114

69
montanhas. Também permitem todas as experiências descritas no Kama Sutra. Estava
presente uma preocupação com o corpo, mas também havia uma permissão para o uso de
drogas, principalmente o LSD. 88 Este era visto como uma porta para a percepção do “Amor
Universal” para com todos os homens.
Não se pode negar que certas substâncias, as assim chamadas drogas, tiveram um
papel fundamental na mudança de comportamento. A própria filosofia do movimento
psicodélico, que floresceu na West Coast a partir da crescente popularidade do LSD, é uma
mistura das iluminações do ácido e das máximas dos mestres do Zen-budismo. 89 Vale
ressaltar que na década de 1970 vive-se sob o impacto desastroso, fruto das experiências
com drogas pesadas que a geração do fim dos anos de 1960 empreendeu e, com isto,
deparam-se com a dura realidade que é o tributo pago por essas incursões.
Em muitas culturas ditas “primitivas” são utilizadas substâncias alucinógenas como
elementos sagrados. Essas drogas alucinógenas tradicionais, que em seus contextos
originais são utilizadas com finalidades religiosas, foram acrescentadas a uma droga
alucinógena criada pelo nosso mundo tecnológico: LSD. Cria-se, portanto, uma nova droga
“sagrada” ao se misturar concepções orientais com o LSD, que se torna um “passe” para
alargar a consciência. Em função dessa junção e de sua propriedade, Leary as chamou de
drogas psicodélicas, ou seja, drogas que expandem, que alargam a mente. Podemos, então,
identificar o surgimento de uma droga estimula a experiência de “hibridização”
subvertendo as ontologias substantivadas da natureza e da cultura em favor da intensidade
das ontologias variadas, prolongando, assim, a rede de conexões (Latour, 2008).
As práticas e os comportamentos dos hippies, dos descolados, dos psicodélicos e
alternativos estavam ancorados na concretização da liberdade e na defesa da fraternidade
universal. A inspiração para suas atitudes, segundo indica uma reportagem da época, viria
de dois pilares importantes da sociedade contemporânea. Eis o trecho significativo a este
respeito: Eles “têm como principais lemas uma frase que vem da Bíblia – amai-vos uns aos
outros – e esta, que foi cunhada pelo liberalismo do século XIX: laissez faire, isto é,

88
FRANCIS, Paulo. É a revolta contra a alma. Realidade. Julho. 1969. p. 79; Ser hippie. Manchete.
Novembro. 1969.
89
Na época, o papa do Zen-budismo era o filosofo Alan W. Watts. Ele escreveu ensaios sobre o LSD e
encarava a droga como um caminho legítimo para experiências místicas. Pregava uma mistura de Zen-
budismo com o uso do LSD para se alcançar a consciência suprema. Cf. MACIEL, Luiz Carlos. Zen.
Pasquim. Underground. No 60. 13 a 19 de agosto. 1970.

70
deixai fazer, não importa o que cada indivíduo pretenda, de si mesmo ou de sua vida.” 90
No entanto, o movimento hippie foi ferrenho critico do cristianismo e da sociedade liberal e
capitalista. 91
Os hippies, de algum modo, fabricam suas concepções a partir de “ídolos a serem
destruídos”, no caso, a visão cristã e um princípio básico da nossa sociedade: o liberalismo.
No entanto, por que destruir algo para depois, de certo modo, “restaurar”. Segundo Latour
(2002), “o alto destruído dos fetiches não é um illusio a mais, uma ideologia que
dissimularia, pela falsa consciência, o verdadeiro mundo da prática. Este alto desorganiza a
teoria da ação, cria o mundo independente da prática”, e lhe fornece a possibilidade de
“desdobrar-se sem ter que prestar contas instantaneamente. Graças aos ídolos destruídos,
pode-se realizar inovações sem risco, sem responsabilidade, sem perigo. Outros, mais tarde,
em algum outro lugar, suportarão as conseqüências, medirão o impacto, avaliarão as
repercussões e limitarão os estragos” (LATOUR, 2002, p. 61).

2.3 Outros “ismos”: passes mediante encontros, desencontros, conciliações e


salamaleques

Os jovens da década de 1960, que buscavam uma alternativa ao contexto em que


viviam, também eram chamados de drop-outs. Eram assim chamados na medida em que
tentavam encontrar um novo estilo de vida, à margem das formas de conduta ditadas pela
sociedade da técnica, do consumo e segundo seus críticos – da neurose em massa. Como
negação do convencional, da ordem estabelecida, o movimento hippie, que seduziu
multidões, já sabia o que não queria, o que ficava em aberto era como isso poderia ser
sustentável.
Com certeza, estabelecer a tão sonhada sociedade alternativa era algo pouco
provável de ser alcançado. No entanto, alguns dos segmentos do movimento não deixaram
de organizar tentativas concretas e mais ousadas do que as passeatas ou as simples

90
Ser hippie. Manchete. Novembro. 1969. p. 147.
91
Segundo Maciel, no nível religioso, a experiência da contracultura se conduziu irresistivelmente. “Foram
postos em questão a cultura, a estética, a política, o próprio corpo. A realidade toda começou a ser
questionada pela contracultura, inclusive as religiões ocidentais, dualistas, ou seja que separam as coisas –
corpo do espírito, criatura do criador, homem de Deus, o natural do sobrenatural, a vida da morte, separam
tudo”(MACIEL, 1981, p. 80).

71
vibrações para a efetivação do projeto que acreditavam. Estas, contudo, não deixaram de
ser pautadas pela extravagância e, paradoxalmente, foram utilizados mecanismos próprios
de uma instituição clássica da sociedade estabelecida, como é o caso da política.
Destaco dois exemplos ilustrativos desse tipo de manifestação, que mostram uma
atuação diferenciada usando o sistema político tradicional. O primeiro refere-se ao partido
dos Panteras Brancas, um partido hippie das décadas de 1960 e 1970; o outro resume-se na
candidatura de um hippie à presidência dos Estados Unidos.
O White Panthers Party foi um partido político organizado nos Estados Unidos,
fundado por Lawrence Plamond (Pun), Leni e Jonh Sinclair. O Partido dos Panteras
Brancas tornou-se conhecido pela radicalidade de suas propostas. A figura central da
organização foi Sinclair, um escritor, poeta e empresário ligado ao mundo da música,
principalmente à banda MC5 (Motor City Five). Os Panteras Brancas vão pregar “sexo nas
ruas” e o fim do capitalismo. “O partido dos White Panthers era um veiculo para
expressarmos nossa frustração com os rumos que o país estava tomando na época (1968-
1974)”, explica Wayne Kramer, guitarrista e líder do MC5. 92
A idéia de se fundar o partido dos Panteras Brancas nasce das declarações do co-
fundador dos The Black Panther Party, Huey P. Newton, quando no decorrer de uma
entrevista perguntaram-lhe se brancos poderiam entrar para sua organização. Newton
respondeu que os brancos deveriam fundar sua própria organização. Tendo como exemplo
a organização afroamericana, indivíduos brancos decidiram fundar os Panteras Brancas
com objetivo de realizar a revolução cultural, lutar por um país mais limpo e pela libertação
dos prisioneiros políticos. Fundamentaram seu ideário num manifesto que tem similaridade
com os pontos dos Panteras Negras. 93
A organização se manifestou mais ativa na zona de Michigan, especialmente nas
cidades de Detroit e Ann Arbor. A organização tinha vínculos com bandas de rock dessa
região. Antes de fundar os Panteras Brancas, Sinclair já dinamizava a cena beatnick e
hippie de Detroit, mas não pretendia estar somente ligado a bandas de rock. Era um escritor
talentoso e escrevia para vários jornais e revistas, chegando até a fundar um pequeno jornal

92
White Panters Party. Capturado em http://pt.wikipedia.org/wik/white_panter_party Acesso em 23 de
setembro de 2009
93
Panteras Brancas. Capturado em http://pt.wikilingue.com/gl/Panteras_Brancas Acesso em 28 de janeiro de
2010.

72
chamado Guerrilha, que advogava uma grande revolução cultural. Surgia assim um grupo
denominado Trans-Love Energies Limited, uma mistura de comunidade hippie e
cooperativa trabalhista que tinha como objetivo organizar eventos de contra-cultura.
Paralelamente a essa atividade, criou o movimento dos White Panthers, que como vimos se
espelhava na organização dos The Black Panther Party, formado por negros na Califórnia.
O partido foi fundado em 1968 e a comunidade que tinha sido Trans-love acabou se
tornando uma via de propagação das ideologias dos Panteras Brancas, que teve seu inicio
como um braço do Youth Internacional Party – fundado em Chicago no começo de 1968
por Abbie Hoffman 94 - mas rapidamente adquire autonomia e consegue afiliados em todo o
país. Para promover sua visão de mundo, Sinclair passou a ser empresário de várias bandas
da região de Detroit. 95

94
Abbie Hoffman é um dos principais líderes da juventude americana no contexto dos anos sessenta. Fundou
junto com Rubin o Yippie – Youth Internacional Party (partido Internacional da Juventude) que deu origem
ao termo hippie. Foram processados por terem sido considerados líderes das agitações e manifestações
ocorridas durante a realização da Convenção do Partido Democrático. As agitações referem-se a um evento
organizado por Abbie Hoffman e Allen Ginsberg em agosto 25 de agosto de 1968 no Lincoln Park em
Chicago. O evento foi idealizado por Hoffman e Ginsberg como um Festival da Vida promovido pelo
Chicago Seven (Abbie Hoffman, Rennie Davis, Tom Hayden, Jerry Rubin, Lee Weiner, John Froines e David
Dellinger). A prefeitura não deu permissão para o evento. Mas mesmo assim ele foi realizado. Centenas de
jovens se dirigiram para o parque onde músicos se apresentariam, Allen Ginsberg cantou “Hare Krishna” e
representantes do Yippie (que apresentariam como seu candidato à presidência um porco chamado Pigasus) e
dos Panteras Brancas discursaram contra o Presidente Lyndon Johnson. O parque foi cercado por milhares de
policiais, membros da Guarda Nacional e Tropas de Choque enviadas pela Presidência e todos tinham ordens
de atacar indiscriminadamente. Hoffman e seus companheiros foram considerados inimigos da América. O
grupo de Chicago foi condenado a cinco anos de prisão acusados de promoverem as agitações. Cf em:
http://www.beatrix.pro.br/mofo/mc5.htm acesso em 28 de fevereiro de 2010 e em MACIEL, Luiz Carlos.
Abbie.Pasquim. Underground. No 48. 21 a 27 de maio. 1970.
95
Uma das bandas que iriam tocar no Festival da Vida em agosto de 1968 foi o MC5, banda empresariada por
Sinclair e vinculada ao Partido dos Panteras Brancas. Naquela manifestação, muitas bandas desistiram de
tocar. Mas o MC5 se apresentou. Segundo a visão da banda, eles “atiçaram o público com a musica, John
Sinclair fez seu discurso inflamado. Allen Ginsberg cantou “Hare Krishna” e “The Grey monk”, e logo depois
mais uma seqüência de MC5 inflando o público. Quando terminam de tocar, a polícia entrou em ação. “Uma
hora antes de começarmos a tocar nos deram uns biscoitos feitos de haxixe e avisaram para comermos apenas
um porque era muito forte. É claro que comemos vários e durante nossa apresentação, quando tocávamos
“Starship”, que fala sobre guerra e as leis dos homens começamos a ver helicópteros da polícia acima de nós.
Eles faziam um ruído infernal e eu pensava que casava lindamente com nossas guitarras”, Lembrou Wayne
Kraner. Já Dennis Thompson que não concordava muito com a ideologia e as atitudes políticas de Sinclair,
lembra que sentiu medo. “Eu era o único da banda que não gostava nem um pouco das idéias de misturarmos
nossa musica com essas manifestações políticas. Eu não queria ficar levantando bandeiras que diziam “vamos
fumar marijuana, vamos usar LSD e trepar nas ruas” porque isso não era o MC5. O verdadeiro MC5 era uma
banda de rock and roll, tentando ser melhor que o The Who, The Rolling Stones e The Kings juntos. Por isso,
quando vi todos aqueles policiais, eu só pensava “Jesus Cristo, se isso é uma revolução nós já perdemos. E de
repente percebi que não havia mais nenhum caminhão dos outros artistas que iriam tocar e berrei para John
onde estavam os outros. Parecia o General Custer contra os índios. Eu me perguntava onde estava a cavalaria,
porque não havia mais ninguém para nos ajudar. Eu pensava onde estava Janis Joplin, que tinha ido buscar

73
O White Panthers defendia comida, roupa, moradia, drogas, música, corpos e
cuidados livres para todos. Fim do dinheiro e liberdade para os irmãos presos. Buscavam de
forma radical o rompimento com os limites não naturais que, de acordo com o que
pregavam, foram imaginados somente pelos seres da linguagem. 96
Numa perspectiva hippie, o Partido dos Panteras Brancas organizou um manifesto
constituído de dez itens. 97 Eis os itens do partido dos Panteras Brancas para a paz universal
e individual:

I. Queremos liberdade, queremos que todos tenham o poder de determinar o


seu próprio destino.
II. Queremos justiça, queremos o fim de qualquer repressão política, pressão
contra as mulheres, os negros e todas as minorias.
III. Queremos uma transformação completa do chamado sistema jurídico, de
maneira que as leis, os tribunais e a política atuem unicamente em função
dos interesses de todos. Queremos o fim de toda e qualquer violência
contra o povo.
IV. Queremos uma economia mundial livre, baseada na troca de energia e
materiais – e o fim do dinheiro.
V. Queremos um sistema educacional livre que ensine a todos os homens,
mulheres e crianças da terra exatamente o que todos nós devemos saber
para sobreviver e crescer.
VI. Queremos libertar todas as estruturas do domínio das grandes companhias
e transferir todos os edifícios e toda a terra para o povo.
VII. Queremos um planeta limpo. Um povo são.
VIII. Queremos acesso livre a todas informações, a todos os meios de
comunicação e a toda tecnologia.
IX. Queremos a liberdade de todos os prisioneiros mantidos injustamente nas
prisões e estabelecimentos penitenciários. Queremos que todos os
perseguidos sejam devolvidos à comunidade
X. Queremos um planeta livre, uma terra livre, comida, teto, roupas para todos.
Queremos uma arte livre, cultura livre, meios de comunicação livres,
tecnologia, educação, assistência médica para todos, corpos livres,
pessoas livres. Tempo e espaço livres – Tudo livre, para todos. 98

As reivindicações apresentadas pelos Panteras Brancas apontam para a perspectiva


de uma sociedade igualitária e justa, mas efetivamente de caráter utópico. No entanto,

cerveja. O parque inteiro estava cercado de policiais”. Capturado em:


http://www.beatrix.pro.br/mofo/mc5.htm acesso em 28 de fevereiro de 2010.
96
Capturado em http://www.omelete.com.br/omele-TV/rock-n-roll-ishere-to-stay-29-05-2007 acesso em 29
de outubro de 2009.
97
Luiz Carlos Maciel Leu o manifesto hippie dos Panteras Brancas no programa da TV Tupi, o Abertura ,
num quadro dirigido por Glauber Rocha no fim da década de 1960. Esta performance pode ser vista no You
Tube.
98
O texto original em inglês “brinca” com a palavra free, podendo fornecer o sentido de livre e gratuito. Na
versão utilizada por Maciel ela esta indicando “livre”, numa tradução realizada por este autor.

74
guardadas as devidas proporções, muitas dessas propostas se desdobraram e estão
colocadas hoje em pauta por várias instituições e organizações que defendem esses
princípios – movimentos dos sem terra, sem teto, ecológicos, direitos humanos, das
minorias, entre outros, muitos desses representados nas ONGs.
Outra manifestação interessante e até pitoresca dos adeptos da contracultura através
da política convencional foi a candidatura à presidência dos Estados Unidos de um
“desbundado”. Seu nome é Louis Abolafia. Ele conseguiu espaço nos meios de
comunicação e foi recebido por personalidades americanas. Ele era apresentado como o
candidato paz e amor. Uma descrição entre outras similares o coloca como: “Um homem
nu, segurando um chapéu-côco estrategicamente colocado, e os dizeres: “não tenho nada a
esconder” – esse é o cartaz de propaganda de Louis Abolafia (...). Louis é o candidato dos
beatniks, dos hippies, dos psicodélicos, dos partidários de mais amor e menos guerra”. 99
Nesses dois exemplos podemos perceber o uso nada convencional de um veiculo
bastante convencional: a política partidária e eletiva. Mesmo combatendo a sociedade
estabelecida, os hippies não se furtaram em lançar mão de instrumentos próprios da
sociedade que estavam criticando. Maciel, também descreve em seu livro “Negócio
seguinte” uma outra manifestação que indica esta prática:

Nos Estados Unidos, nos sessenta, os Yippies e seu partido de malucos faziam atos
políticos, como por exemplo, ir à Bolsa de Nova Iorque e jogar notas de um dólar,
lá de cima. A Bolsa de Nova Iorque parou porque os caras deixaram de fazer
negócios de milhões para sair catando notas de um dólar. Eles estavam negociando
milhões só nos números, abstratos. Mas as notas de um dólar eram de verdade. E foi
uma loucura na Bolsa de Nova Iorque. Um frege, uma bagunça, uma coisa de
criança, de garotada. Os Yippies se vestiam de vietcongues, usavam metralhadoras
de brinquedo. Faziam essas palhaçadas para aparecerem na televisão, usando-a
apropriadamente, como veículo mais eficiente do nosso tempo. O que eles faziam
era montar números para a televisão. (...) E saía na televisão. (MACIEL, 1981, p.
79).

Freqüentemente encontramos nos observadores do movimento uma preocupação


com os caminhos apontados e uma constatação da inviabilidade da permanência da
perspectiva sustentada pelos hippies. Tal indicação pode ser ilustrada no seguinte trecho:
“Na busca de saídas criadoras, porém – descoberta de uma iluminação – ainda não sabe

99
Abolafia, o candidato Psicodélico. Manchete. 23 de setembro. 1967.

75
para onde vai. Diante dessa mãe hippie – Madona, talvez de uma nova Renascença – o
espanto desconfortável do homem comum equivale à perplexidade elaborada dos cientistas
sociais. Crianças da era espacial, os hippies são um projeto por ser construído”. 100
Paulo Francis, em um artigo da época, também tenta compreender a manifestação
hippie e suas práticas. Ele indica que a opção de ser um drop-out, ou seja, aquele que
“saltou” fora da sociedade, manifesta um desencontro com o mundo adulto, pelo menos
aparentemente, pois é difícil concebê-los aos sessenta anos, por exemplo, e não vê-los
como “vagabundos” tradicionais. “A juventude tem as suas graças inalienáveis e
intransferíveis. E é preciso situá-los no tempo e no espaço. Estariam, por exemplo, em
campos de trabalhos forçados nos países comunistas. Morreriam de fome até nas grandes
cidades das nações subdesenvolvidas (deixemos de lado o campo, pois lá o nocaute das
drogas bastaria para quebrar a realidade)” se nestas regiões suas presenças fossem tão
numerosos como nos EUA e na Europa Ocidental. O autor finaliza apontando para um
ponto a ser considerado como procedente e explicativo da explosão hippie nos paises do
hemisfério Norte, quando indica que “subsistem somente no mercado dos países prósperos,
que absorve toda e qualquer forma de entretenimento, transformando-a em bem de
consumo” 101 .
Na direção apontada pelas citações que tentam explicitar algo sobre o futuro do
movimento hippie, encontrei uma reportagem que descreve um fato curioso: a implantação
de uma “cidade” hippie no Nepal. Este fato é bastante elucidativo sobre o caráter funcional
ou não funcional da visão de mundo dos hippies, além do que nos aponta mais uma vez
para a questão da referência circulante, pois, os hippies, tendo como uma das fontes
inspiradoras as filosofias orientais, quando estão no cenário de origem das tradições
orientais, não são reconhecidos como tendo algo que os una com a comunidade local. Isso
se deve ao fato de que entre os contraculturalistas lançarem mão do orientalismo e tomá-lo
como um paradigma e a forma como ele é vivido no oriente “há uma série de mediações
que atravessam a diferença entre coisas e palavras, na medida em que a idéia de tradução e
de diferença num mundo contínuo parece impor-se e consolidar-se a partir de múltiplos
trajetos e direções” (VELHO, 2007, p. 348-349).

100
Ser hippie. Manchete. novembro. 1969. P. 141-142
101
FRANCIS, Paulo. É a revolta contra a alma. Realidade. julho. 1969. p. 79.

76
A reportagem em questão diz respeito à organização de uma comunidade hippie em
Catmandu, ao pé do Himalaia, formada por hippies do mundo inteiro. Este acontecimento
demonstra com clareza a percepção de mundo dos hippies, contrastando com a percepção
dos povos asiáticos, dos quais os hippies adotaram muitas práticas filosóficas percebidas
por eles como “modelo” ideal e alternativo à sociedade ocidental.
A matéria inicia-se assim: “não durou muito a terra prometida dos hippies, ao pé do
Himalaia. Algumas poucas semanas foram o suficiente para que as autoridades nepalesas,
com o apoio dos habitantes da região, dispersassem o grupo de hirsutos e imundos que
haviam fundado, em novembro, a Capital da Hipilândia na pequena aldeia de (?)” 102 .
No inicio, não houve nenhum problema de convivência. Os camponeses praticantes
do Budismo ou do Hinduismo, apresentavam-se muito tolerantes e não protestaram e nem
colocaram resistência à instalação da Capital hippie em sua aldeia. “Embora perplexos, os
camponeses foram indulgentes com aquele bando de vagabundos filosóficos que chegavam
da América, da Austrália, da Europa Ocidental e dos paises escandinavos”. Mas, os hippies,
ao praticarem métodos comerciais poucos ortodoxos, como comprar um quilo de arroz por
um punhado de flores e “se não gostou que se dane”, aos poucos foram despertando nos
camponeses uma indignação, uma perplexidade e escândalo diante de hábitos considerados
bárbaros, entre os quais a permissão para que os cachorros compartilhassem da refeição dos
homens nos próprios pratos em que eles se serviam.
A rejeição chegou ao seu limiar quando os hippies se puseram a apoderar-se de
objetos nas casas vizinhas para enfeitar suas tendas.

A simpatia inicial pelos jovens e estranhos sacerdotes daquela estranha religião


transformou-se em revolta. Os camponeses evitavam que seus filhos se
aproximassem da “comunidade bárbara”, para que não fossem contaminados
“pelos maus exemplos”, como disse um habitante do lugar, Harkha Man Sainjer,
de 65 anos – Os homens e suas companheiras praticam atos amorosos ao ar
livre, com a maior tranqüilidade. Os rapazes e as moças se vestem de forma
absolutamente igual, e a primeira vista era difícil dizer a que sexo pertenciam. E
depois percebíamos que cada mulher não pertencia a seu marido (...). 103 .

102
A hipilândia. Jornal do Brasil. Caderno B. 10 de janeiro. 1968. No microfilme, não consegui identificar o
nome da aldeia, pois havia uma falha de impressão devido à má conservação do original que gerou o
microfilme.
103
A hipilândia. Jornal do Brasil. Caderno B. 10 de janeiro. 1968.

77
Até a fonte na qual os hippies costumavam tomar banho era percebida como
inutilizável para os habitantes do lugar. Depois que os estrangeiros foram afastados da
aldeia, os habitantes recorreram a um sacerdote para purificá-la.
A chamada Hipilândia teve uma vida curta e sua criação é atribuída a Lee Hitcher,
segundo descrição da época um “barbudo californiano” de 30 anos, que todos os habitantes
da comunidade hippie tratavam respeitosamente de rei. Este tratamento provavelmente se
deve ao fato de ele ser o patrocinador da instalação de uma capital hippie no Nepal. Com
muito dinheiro para gastar, Hitcher representava a própria figura do Tio Sam para muitos
daqueles “vagabundos iluminados” que sobreviviam por vezes com apenas uma rúbia por
dia. 104
O sonho hippie por uma nova sociedade não era muito compreendido pela maioria
dos indivíduos que percebiam o universo “hiponga” como sonhos e devaneios inadequados
às realidades necessárias. Freqüentemente os hippies são identificados como bárbaros,105
numa associação clara entre o movimento hippie e as invasões bárbaras que colaboraram
para o fim do Império Romano. E o episódio da Hipilândia nos dá uma idéia da dificuldade
enfrentada pela contracultura ao simplesmente tentar especificar seu projeto mais amplo.
Enquanto isso, no Brasil, o cenário era bastante sombrio. O governo militar iniciava
seu processo de acirramento da censura para “calar a boca” da cultura nacional. Caetano
Veloso e Gilberto Gil, representantes do desbunde cultural, começaram a ser considerados
ameaças e haviam sido convidados a deixar o país para um exílio na Inglaterra, em julho de
1969. Chico Buarque já estava exilado na Itália, enquanto Nara Leão passava seu período
de “cala a boca” na França. Chico Buarque foi um dos artistas mais censurados pelo AI-5,
chegando a lançar mão do uso do pseudônimo Julinho da Adelaide para assinar muitas de
suas composições e textos para o teatro.
Os festivais, como o Primavera – que seria realizado em São Paulo, em 1969 –,
foram suspensos por supostamente incitarem a desordem e a bagunça. A produção cultural
nessa época iria sofrer muitas restrições, pois muitas produções eram consideradas uma
ameaça à ordem estabelecida pelo regime militar. O campo da cultura iria tornar-se uma via

104
A hipilândia. Jornal do Brasil. Caderno B. 10 de janeiro.1968.
105
A palavra “bárbaro” era utilizada na antiguidade greco-romana para denominar as nações não pertencentes
àquela cultura ou ainda não “civilizadas” por ela. No Império Romano, aqueles que não falassem o latim eram
considerados primitivos, incultos, atrasados e brutais.

78
de “combate” à ditadura. Nesse hiato, comunidades hippies, como a organizada pelos
Mutantes na Serra da Cantareira e a do Moca do Mato, dos Novos Baianos, no Rio de
Janeiro, começam seus projetos de “sociedade alternativa”, enquanto outros jovens
optavam por um enfrentamento armado como via de implantação de seus projetos de uma
sociedade mais igualitária.
O fato é que, ser um “desbundado” em um país de terceiro mundo que vivia regido
por uma ditadura não era nada fácil. Quem soube disso foi Janis Joplin, “na última das
últimas horas, viera ao Rio de Janeiro passar o Carnaval de 1970 e tentar ficar longe das
drogas – de quebra, acabou sentindo na pele o que era ser uma hippie num país terceiro-
mundista governado por uma ditadura e repleto de preconceitos por todos os lados”. 106
Em relação à formação de comunidades alternativas no Brasil podemos citar a
coluna de Maciel como uma via de informação aos interessados no assunto. A coluna
Underground, de Maciel, recebia muitas correspondências pedindo informações sobre as
formações das comunidades alternativas. “O assunto que tem mais motivado os leitores
refere-se à formação das comunas. Underground, como já dissemos, vai apenas estabelecer
os contatos. Muitas cartas chamam atenção para a responsabilidade envolvida nessa jogada.
E estão certas”. 107 Em sua coluna, Maciel transcreve a carta de um adepto da vida em
comunidade onde ele deixava claras as dificuldades de concretizar esta opção:

Desde mais de um ano, temos aqui um crash pad (veja definição no PASQUIM
de 9-15/7/70) e uma comunidade embrional. O crash pad funciona
continuamente. A comunidade, depois de várias tentativas, não chegou ainda a
se estabelecer definitivamente, apesar de bons começo. Soube de outras
comunidades que também estão em estado de crise. Mas temos bastante
experiência de convivência com pessoas de diferentes tipos, idades e inclinações
e, entre muitas observações, uma se destaca sempre e sempre: Pode-se formar
uma tribo de pessoas com os mesmos interesses e ocupações (artísticas ou não)
ou de mesma atitude para com a vida, iguais inclinações, etc. Mas tudo isso não
basta. A única coisa que é mesmo essencial é aquela capacidade (bastante rara)
de amar o próximo como a si mesmo. Se esse amor é uma constante na tribo, os
outros fatores ocupam o segundo lugar, e o sucesso da vida em comunidade é
certo. Mas se os outros fatores pesam mais, o fracasso é praticamente certo, mais
cedo ou mais tarde. Essa capacidade de amar, de conservar o coração aberto para
os outros é difícil de encontrar. Tivemos dias bem diferentes durante reuniões da

106
SCHOT, Ricardo. Tempo de despertar. Bizz. Coleção história do Rock. Vol. 02. 1964/1971. Maio. 2005. p.
74
107
MACIEL, Luiz Carlos. Qual é a tua? Pasquim. Underground. No 60. 13 a 19 de agosto. 1970.

79
tribo. Houve um verdadeiro derramamento de amor, uma união e um calor tão
extraordinários que eu nunca havia experimentado. 108

Formar uma comunidade e mantê-la, como tivemos oportunidade de observar, não


era fácil. As formações de comunidades alternativas no Brasil não se tornaram algo
facilmente praticado na medida em que a sobrevivência de uma comunidade, como nos
aponta o trecho, parece ter sido algo difícil de se manter. Essa tarefa já era complicada em
países de economia próspera, imagine num país do terceiro mundo, cheio de preconceitos e
que ainda tinha a agravante de um regime ditatorial.
Mas isso não impediu que as idéias e os projetos da contracultura, logo que se
manifestaram nos Estados Unidos, chegassem rapidamente ao Brasil, sendo amplamente
divulgadas pelos meios de comunicação. Ademais, podemos ver o impacto quase que
imediato da contracultura no plano da nossa cultura numa perspectiva que vai ao encontro
de uma renovação estética, levada a cabo principalmente pelos Tropicalistas, o que vai
causar espanto, indignação, assimilação e combate por vários setores da sociedade.
Aqui, como no restante do mundo, o hippie era visto como um ser totalmente
estranho e exótico e, principalmente, como alienado. Para comprovar esta visão, a revista
Bondinho resolveu fazer uma experiência ao levar um hippie para uma cidade do interior
para depois descrever o impacto disso num artigo intitulado “Um cabeludo em Serra
Azul”. 109 A cidade chama-se Serra Azul e fica a 370 quilômetros da capital do estado de
São Paulo. Na cidade havia cinemas e alguns televisores. De resto, era similar a qualquer
cidade do interior, com um razoável número de habitantes.
A matéria indica que foram diversas as impressões. Em primeiro plano, o próprio
rapaz que estava passando pela experiência (o hippie) afirma o seguinte: “Eu sabia que
podia apanhar a qualquer momento. Então ficava quieto.” 110 Outros desconfiam do fato de
ele ser realmente hippie, uma vez que ele estava ali presente, naquela cidade, e não pelas
estradas com as mochilas nas costas; vale lembrar que a imagem do errante das estradas era
a imagem que muitos tinham do que era ser um hippie. Isso é percebido pelo seguinte
comentário: “Ele não é hippie não. Hippie pega a mala e sai pelo mundo”. 111 Já alguns

108
MACIEL, Luiz Carlos. Qual é a tua? Pasquim. Underground. No 60. 13 a 19 de agosto. 1970.
109
Um cabeludo em Serra Azul. Bondinho. 1970. p. 32
110
Um cabeludo em Serra Azul. Bondinho. 1970. p. 32
111
Um cabeludo em Serra Azul.Bondinho. 1970. p. 33

80
expressam claramente seu preconceito e estranhamento de uma forma mais tradicional ou
usando o vocabulário próprio da juventude da época. Eis dois trechos que apontam esta
percepção: “Tem uma mulher jogando bilhar lá no bar do Wilson” – “vem cá minha loira.
112
Quero que minha mulher veja a loira que arrumei”; “As meninas dizem que ele é um
pão, mas esse cara é bicha!”. 113
As impressões relativas ao rapaz são formadas de modos diversos, e são construídas
a partir do seu tipo de cabelo, seu tipo de roupa e adereço, sexo, bagagem, estrada, entre
outros, formando as conexões que levam ao evento, onde este é constituído por muitas
pessoas e coisas. Assim, aqui também podemos identificar mediações e mediadores entre
pessoas e coisas, resultando uma percepção do social que é o produto de um conjunto
heterogêneo de mediações.
De modo geral, aqui no Brasil, em 1967 e 1968, o movimento da contracultura, em
sua vertente hippie, era bastante noticiado como um fenômeno mundial, mas as notícias
giravam em torno do que ocorria no exterior. É Caetano Veloso quem começa a despertar a
atenção da imprensa e do público no sentido de que havia uma expressão contracultural
aqui no Brasil, que a princípio é mais visível como uma expressão estética de vanguarda.
José Carlos de Oliveira chama a atenção no caderno B, do Jornal do Brasil, num
tom bastante crítico, a tendência da imprensa brasileira encomendar às agências
internacionais reportagens ligadas à contracultura ou enviar repórteres para cobrir esses
eventos lá fora. Ele aponta o Tropicalismo como sendo redentor e via de anulação dessa
tendência, que para ele é uma cultura “importada” que se tornou mais um produto de
exportação dos paises desenvolvidos.
José Carlos Oliveira indica, entre outras coisas, que “parece que a cidade se
incendiou com a discussão em torno do Tropicalismo. (Prefiro chamá-lo de Tropicalismo e
não Tropicália – porque esta última palavra, graças ao talento e a fama de Caetano Veloso
corre o risco de circunscrever em tema nacional ao domínio exclusivo da música popular).
Em todo mundo se manifesta com simpatia, raiva ou sarcasmo”. 114 Para Oliveira, o
Tropicalismo era uma tímida instituição que surgia e que atingia, no seu ponto de vista, o

112
Um cabeludo em Serra Azul. Bondinho. 1970. p.31
113
Um cabeludo em Serra Azul. Bondinho. 1970 p. 32
114
OLIVEIRA, José Carlos. O Tropicalismo contra os Hipócritas (I). Jornal do Brasil. 14 de março. 1968. p.
03.

81
seu primeiro objetivo, que era “empurrar para longe de nós a moda importada”. E que
ninguém mais, principalmente os jornalistas e publicitários, podia negar a existência do
Tropicalismo. 115
Portanto, segundo ele, para exemplificar diários e semanários, não havia mais
necessidade de serem encomendadas às agências internacionais de notícias todas aquelas
reportagens pagas sobre bailes psicodélicos em Paris, manifestações hippies em Nova
Iorque, ascensão dos povos em Amsterdã, conversão dos Beatles ao comércio esotérico –
espiritual de Maharishi Mahesh, atração dos Rolling Stones pela marijuana (ou maconha),
protest song, flower power, LSD, e entre outros no gênero que ele define como sendo um
“festival de besteiras” que assola o planeta.
Oliveira desdenha revistas como Manchete, Cruzeiro e Fatos&Fotos, por mandarem
dinheiro para o exterior ao comprarem artigos sobre a contracultura e por enviarem seus
repórteres para cobrir eventos e fatos contraculturais. De acordo com ele, esses veículos
tinham naquele momento a possibilidade de comprar outro produto igualmente interessante
e que tem a vantagem de ser do Brasil. O produto era o Tropicalismo. “Tem roupas, tem
maneira de pentear, tem letra e música, tem excêntricos, tem capitais – São Paulo e Rio – e
pode apenas mistificar a multidão brasileira como aturdir a juventude (...). Logo, estamos
falando a linguagem do nosso tempo e neste sentido só os hipócritas podem ficar
embaraçados com a nossa onda.” 116
Para este jornalista, o Tropicalismo estava sintonizado com as manifestações dos
jovens do mundo inteiro, sendo que era uma manifestação que ocorria em terras brasileiras
e o olhar da imprensa e, conseqüentemente, do público, não deveria estar voltado para fora
e sim para as manifestações de vanguarda que ocorriam aqui e no máximo na América-
Latina. Ele conclui deixando bem claro esta perspectiva: “Abaixo o grifo! Abaixo Rolling
Stones, Beatles, marijuana! Viva o Tropicalismo! Palmas para o português claro! Mas, se

115
O lançamento do Tropicalismo ocorreu nos tradicionais festivais da MPB em 1967 por Gilberto Gil e
Caetano Veloso. Causou espanto e choque. A provocação continuou no ano seguinte, reforçada por roupas
ousadas. Havia outras importantes figuras que formavam o movimento, como Torquato Neto (o ideólogo),
Rogério Duprat (o maestro), Guilherme Araújo (o empresário), Manoel Baarenbein (o produtor), os Mutantes
e os Beat Boys (as bandas de apoio). Jards Macalé, Tom Zé, Gal Costa e Walter Franco também fizeram
discos importantes sob os conceitos antropofágicos.
116
OLIVEIRA, José Carlos. O Tropicalismo contra os Hipócritas (I). Jornal do Brasil. 14 de março. 1968. p.
03.

82
devemos ser artisticamente solidários com outros povos, então escolhemos os pobres como
nós – nossos irmãos latino-americanos. Prefiro o portunhol ao portuglês”. 117
Caetano Veloso, entretanto, em Verdade Tropical, enfatiza que a Tropicália exerceu
sua prática da convivência na diversidade. “Nós, de nossa parte, queríamos, entre outras
coisas, acabar com o hábito de se ter uma “bola” a cada vez, apostando numa pluralidade de
estilos concorrendo nas mentes e nas caixas registradoras” (VELOSO, 1997, p. 281). Esta
“saudável destruição de hierarquias está na origem do que alguns críticos chatos chamam
de “complacência cínica pós- 60” (VELOSO, 1997, p. 181). Esta indicação de Caetano
aponta a presença do referencial relacional ou circulante proposto por Latour (2004).
Assim, o Tropicalismo é uma tradução das tendências percebidas como importadas (como
as guitarras, por exemplo) conectadas com nossos arcaísmos ou o elemento “cafona”.
De acordo com Caetano, a palavra central para entender o Tropicalismo seria
sincretismo (VELOSO, 1997, p.192). Em uma declaração da época, Caetano apresenta
aquilo que propunham:

Eu e Gil estávamos fervilhando de novas idéias. Havíamos passado um bom


tempo tentando aprender a gramática da nova linguagem que usaríamos, e
queríamos testar nossas idéias junto ao público. Trabalhamos noite adentro,
juntamente com Torquato Neto, Gal, Rogério Duprat e outros. Ao mesmo
tempo, mantínhamos contatos com artistas de outros campos, como Glauber
Rocha, José Celso Martinez, Hélio Oiticica e Rubens Gerchman. Dessa mistura
toda nasceu o Tropicalismo, essa tentativa de superar nosso subdesenvolvimento
partindo exatamente do elemento “cafona” da nossa cultura fundindo ao que
houvesse de mais avançado industrialmente, como as guitarras e as roupas de
plásticos. Não posso negar o que já li, nem posso esquecer onde vivo. 118

Já Celso Favaretto, um analista do movimento, indica que o Tropicalismo “nasce”


logo após a apresentação de Gilberto Gil e Caetano Veloso, cantando, respectivamente,
Domingo no Parque e Alegria, alegria, no festival da canção de 1967 na rede de televisão
Record, de São Paulo. Ele surge como

moda; dando forma a certa sensibilidade moderna, debochada, crítica e


aparentemente não-empenhada. De um lado, associava-se a moda ao
psicodelismo, mistura de comportamento hippie e música pop, indiciada pela
síntese de som e cor; de outro, a uma revivência de arcaísmos brasileiros, que se

117
OLIVEIRA, José Carlos. O Tropicalismo contra os Hipócritas (I). Jornal do Brasil. 14 de março. 1968. p.
03.
118
Acontece que ele é baiano. Realidade. 1968. p. 196.

83
chamou de “cafonismo”. (...) Quando justapõe elementos diversos da cultura,
obtém uma suma cultural de caráter antropofágico, em que contradições
históricas, ideológicas e artísticas são levadas para sofrer uma operação, segundo
a teorização oswaldiana, efetua-se através da mistura dos elementos
contraditórios – enquadráveis basicamente nas oposições arcaico-moderno, local
–universal – e que , ao inventaria-las, as devora. Este procedimento do
Tropicalismo privilegia o efeito crítico que deriva da justaposição desses
elementos (FAVARETTO, 1996, p. 21 e 23).

As citações a respeito do Tropicalismo nos sugerem que há um ponto em comum no


que diz respeito ao entendimento de que este movimento articula elementos modernos e
arcaicos, processando-se também novos regimes de enunciação, embora haja variações nas
interpretações acerca do significado estético e político dessa articulação. “Parece que há no
movimento algo que se pode nomear conjunção tropicalista, a qual retoma criativamente a
tradição cultural brasileira (...) e a incorporação antropofágica a ela de influências do
exterior” (RIDENTI, 2000, p. 274), evidenciadas pela polemizada introdução da guitarra
nos anos 1960 na MPB. “Os tropicalistas abriram suas portas e janelas para o mundo, para
arejar o ambiente impregnado do caldo de cultura do chamado nacional-popular; mas as
janelas estavam instaladas no coração do Brasil, abertas também para que entrem ‘todos os
insetos’ do exterior” (RIDENTI, 2000, p. 274).
O movimento tropicalista pode ser entendido como a releitura pop e hippie da
antropofagia de Mario e Oswald de Andrade, numa retomada da perspectiva inaugurada
pela Semana de Arte Moderna de 1922.
Retomando a afirmação de Caetano em Verdade Tropical, onde ele indica que sua
perspectiva artística no Tropicalismo está relacionada com a convivência na diversidade,
encontramos influências como o som (inter)nacional da Bossa Nova, o contato com os
concretistas, alinhados com as vanguardas internacionais, a influência do cinema
experimental de Godard, pelos Beatles e outras bandas de rock e pela onda da
contracultura. Além de todos os outros acontecimentos que ocorriam pelo mundo afora
naquele momento.
Em São Paulo, entraram em contato com os textos de Oswald de Andrade na peça
“O rei da vela”, montada pelo teatro Oficina. O conceito antropofágico do modernista
Oswald de Andrade se encaixou perfeitamente com o ponto de vista dos tropicalistas, na
medida em que abria a possibilidade para se articular a amplitude cultural da época em

84
escala internacional com a preocupação com a constituição de uma identidade nacional. A
busca por uma identidade brasileira era a preocupação de setores do Cinema Novo, dos
CPCs da UNE e fundamentava também a ligação dos intelectuais com o povo brasileiro.
Os tropicalistas, assim como Oswald de Andrade, também se preocupavam com o
nacionalismo. No entanto, “ao invés do nacionalismo tacanho e autocomplacente, um
nacionalismo crítico e antropofágico, aberto a todas as nacionalidades, deglutidor-redutor
das mais novas linguagens da tecnologia moderna”. Logo, foram “formas inéditas, de
procedência estrangeira (...) que Oswald se instrumentou para redescobrir o Brasil e
descobrir a própria poesia sufocada pelo massacre da ‘tradição’ e das ‘formulas’
nacionalistas, ou antes nacionalóides” (CAMPOS, 1993, p. 161).
Assim, Gil e Caetano beberam de modo antropofágico nas fontes da turma do iê-iê-
iê e na virada estilística e experimental dos Beatles, desta vez com Sgt. Pepper`s Lonely
Hearts Club Band, que serviu de inspiração para Gil e Caetano e até Ronnie Von, que
realizou incursões nas viagens psicodélicas na época.
Até um programa na TV Tupi foi dado àquela turma anárquica e “desbundada”, era
o “Divino Maravilhoso”. A partir de então, as guitarras são definitivamente incorporadas ao
cenário, assim como as roupas extravagantes, as frases situacionistas (“É Proibido Proibir”)
e as letras concretistas (“Bat-Macumba”). O Tropicalismo, em sua busca por uma “cara
brasileira”, era a favor das misturas: aceitava sem problemas de Vicente Celestino à Jovem
Guarda em seu caldeirão, apresentando novas formas de conexão do campo da estética. O
movimento ganhou prestígio internacional como a resposta brasileira ao psicodelismo.
Dessa forma, retomando as impressões de Oliveira, podemos indicar que para os
tropicalistas era preciso, sim, ter português claro, mas também era permitido um
“portunhol”, um “portuglês” e todos os idiomas possíveis. O Tropicalismo vai trabalhar
com o híbrido, neste sentido estava aberto a incorporar novas mediações ao juntar o
nacional com o que estava sendo produzido internacionalmente, ao conectar o arcaico e o
moderno através do processo de tradução.
Assim, a contracultura no Brasil começa a dar seu tom como a vanguarda musical
dos tropicalistas, que a principio causou escândalos com a opção pelos cabelos longos, as
batas, colares, uso da “maconha” e, principalmente, pelo uso das guitarras. Passado o
choque inicial, os tropicalistas tornam-se ídolos e seu estilo hippie à maneira “tupiniquim”

85
tornou-se um veículo de marketing. É o que podemos verificar em uma propaganda da
então gravadora Philips em uma revista, que utilizou duas páginas onde apareciam as
cabeças dos baianos ostentando suas cabeleiras, numa formatação artística no estilo
psicodélico e que também pode ser identificado com a pop art de Andy Warhol. Tal
anúncio trazia o logotipo da Philips e a seguinte frase: “A mensagem deles é tão velha que
há 1972 anos um outro cabeludo disse as mesmas coisas”. E logo em seguida vinha o
seguinte texto:

Você vive num/ Mundo regido por/ forças que procuraram/ embotar a sua
sensibilidade/ Esse mundo abafa as emoções /reais para lhe vender/ emoções
artificiais. / Esse mundo está acabando./ E está começando a nascer o/ mundo de
Caetano de/ Gal, de Bethânia/ e de um outro/ barbudinho/ inconveniente, há/
muito crucificado/ Estes meninos/ baianos encontraram/ dentro de si os sons/
mais doces da nossa língua/ Eles dizem coisas tão agressivas/ como paz e amor./
Eles falam direto/ ao nosso coração, afrontando o/ universo bem comportado
das/ convenções. / Por isso/ Provocam paixões /extremadas./ Ou são/
profundamente/ amados ou são/ profundamente odiados./ De que lado? Você
está? 119

O perfil anárquico, cabeludo, e o inconformismo radical que era manifestado pelos


baianos com o Tropicalismo, resultado de uma expressão estética de vanguarda, estavam
estreitamente ligados à contracultura pop, embora este fenômeno social e psicológico que já
agitava desde 1967 os Estados Unidos e já era bastante falado por aqui, em terras
brasileiras, fosse algo percebido como uma coisa ainda muito marginal. Com o tempo, a
assimilação vai manifestar-se mais na apreciação ao rock, no modo de vestir ou na adoção
de um estilo, como algo associados à artistas de vanguardas. A marca da contracultura no
Brasil não foi a opção por uma vida tipo drop out. Aqui o tom da “rebeldia” se traduz mais
em formulações de novas linguagens e sensibilidades.
Em geral, a contracultura era considerada mais como uma curiosidade, um
exotismo, num país que enfrentava problemas considerados mais “concretos”, como o
regime militar implantado em 1964 e seu endurecimento com o AI-5 em 1968. No entanto,
Gil, Caetano e companhia vão ser importantes garotos propagandas desse estilo, como
podemos perceber pelo anuncio que explorou suas imagem hippie, já na década de 1970 e

119
BONDINHO. 3 de fevereiro.1972. p. 56-57.

86
após terem sido exilados. Após o ano de 1970, a coluna Underground também se apresenta
como um importante veiculo de divulgação da contracultura no Brasil.
Num contexto onde ser hippie era ser marginal, embora os baianos já tivessem
adquirido fama, temos uma propaganda de uma grande marca explorando e associando a
sua marca à imagem de “desbundado”. A propaganda remete ao estilo musical dos
“cabeludos” como estando sintonizada com a mensagem da contracultura que, por sua vez,
também é associada à mensagem da tradição cristã. Isto nos mostra e ilustra a prática da
junção de coisas percebidas como distantes e inconciliáveis, ou seja, articula-se uma prática
que visa a quebra de tradições com um baluarte da tradição, de uma crença convencional
com o objetivo de vender um produto, que por sua vez e associado a uma imagem dos
baianos, que também viram um produto de consumo, bem de acordo com a dinâmica
capitalista.
Perseguindo e realizando uma interpretação da junção dessas associações, parece-
me que elas acabam, por fim, a levar o “receptor” a entender que a mensagem
contracultural e a cristã acabam correspondendo ao mesmo universo. Assim, vejo vínculos,
percepções e estilos construídos a partir do encontro de diferentes regimes de enunciação
que promovem a mistura entre domínios distintos, usando um tipo de mensagem que, por
sua vez, também será mediada pelo receptor. Esse tipo de dinâmica vai adquirir cada vez
mais espaço a partir dos anos de 1960, contexto que acredito ter sido um espaço
privilegiado de elaboração de novos regimes de enunciação a partir da mistura de vários
domínios que até então não eram concebidos.

2.4 As polêmicas: rock e religião

Uma das mais famosas polêmicas entre rock e religião foi provocada por John
Lennon, em 1966, que levou muitos “fanáticos” americanos a se juntarem em campanhas
para a queima dos discos do Beatles. Tudo começou com uma entrevista.
Desde que começaram sua carreira profissional, os Beatles nunca tinham ficado sem
excursionar, gravar, ou filmar. Em 1966, resolveram tirar umas férias. Mas como eram
muito famosos isso praticamente era impossível. No entanto, no final de fevereiro, John
Lennon resolveu dar uma entrevista em sua mansão em Weybridge para a jornalista Mauree

87
Cleave, jornal Evening Standard, de Londres. Esta jornalista tinha algum contato com a
banda e sugeriu ao seu editor uma matéria que retratasse “como vive um Beatle?” E
respondia, na própria matéria, “John Lennon vive assim”. E assim, relatou sobre a vida
doméstica do Beatle, seus aparelhos eletrônicos e sobre as pequenas excentricidades de
quem era “tão famoso quanto a rainha”. E em dado momento, perguntou sobre a música
indiana, que influenciaria canções recentes como “Norwegian Wood” e que Lennon ouvia
durante a entrevista. “Ela é tão cool!”, assegurava o Beatle. A repórter foi mais fundo sobre
aquela “cultura milenar” que havia encantado a juventude da Grã Bretanha. Lennon deu sua
sugestão a esse respeito dizendo: “O cristianismo vai passar, vai desaparecer e encolher.
Não preciso argumentar, estou certo e o tempo vai provar. Atualmente, somos mais
populares do que Jesus Cristo; não sei o que vai passar antes, se o rock`n`roll ou o
cristianismo. Jesus estava certíssimo, mas seus discípulos eram fracos e medíocres. A
distorção que produziam arruinou tudo para mim” (apud ALEXANDRE, 2005, p. 33). 120
A matéria ira chegar às bancas da capital londrina no dia 04 de março e, logo
depois, os Beatles retomaram seu ritmo de trabalho e começaram a produzir “Revolver” e a
realizar uma turnê americana. Quatro meses depois, uma revista para o público adolescente,
a Datebook, divulgou que os Beatles tinham declarado: “Somos mais populares do que
Jesus Cristo”. Tal divulgação se alastrou pela América e se transformou na polêmica
“Somos maior do que Cristo”. A crença nesta frase, fez com que os segmentos bíblicos,
principalmente nos estados onde o fervor religioso era mais forte, reagissem com violência
àquele grupo de “depravados cabeludos”. Os sulistas percebiam aqueles ingleses de visual
afeminado com grande desconfiança e preconceito “desde que a banda ousou proibir
platéias segregadas em seus shows. Com a “blasfêmia de Lennon, a festa estava feita: a
rádio WACI, do Alabama, anunciou boicote às músicas do grupo; a KLUE, do Texas,
organizou as famosas “fogueiras-Beatle”, conclamando os ouvintes a levarem discos para
serem queimados publicamente” (ALEXANDRE, 2005, p. 34). A polêmica foi tamanha
que Lennon, e os demais Beatles tiveram que ir a público para dar explicações.
Os Beatles passaram então a ser blasfemos, solaparam sua imagem de bons moços.
Agora faziam coisas “de mau gosto”. Nessa época, os Beatles tinham feito um LP,

120
ALEXANDRE, Ricardo. O inferno é fogo. Bizz. História do Rock. Coleção história do Rock. Vol. 02.
1964/1971. Maio. 2005. p. 33- 34

88
“Yesterday...and Today”, cuja capa trazia o grupo vestido de branco e no colo de cada um
bonecas decapitadas e peças de carne crua. A Capitol foi obrigada pelos lojistas a recolher o
LP. No entanto, descobre-se que a polêmica vende. Os shows continuavam vendendo,
jornais e revistas estampavam seus rostos diariamente. A coletânea “Yesterday... and
Today” conquistou a primeira parada de sucesso e sua “capa de açougueiro” tornou-se um
valioso objeto de colecionador. E, assim, o universo do rock descobriu um fator importante
para a industria do entretenimento: a polêmica vende. 121
A entrada dos Beatles para o cenário do rock`n`roll angariou uma parcela de jovens
para quem a religião não tinha nenhuma importância. Para um precursor do rock, Elvis
Presley, que foi criado num ambiente de tradição bíblica, a religião era algo ocasional, onde
ele requebrava, cantava que estava sozinho e podia morrer, e de vez enquanto organizava
um disco gospel, entoando os mesmo hinos que os protestantes utilizavam em seus cultos.
A partir de 1966, quem não era limitado pela consciência resolveu se aprofundar em
conteúdos esotéricos, símbolos pagãos e muitos manifestavam a preferência pelo “lado
negro” – “nem que fosse só para provocar os conservadores e fazer marketing rebelde”
(ALEXANDRE, 2005, p. 34).
Independente de ser marketing ou não, muitos se aprofundavam nos conteúdos
destas temáticas. Os Doors, por exemplo, deram este nome à banda a partir da inspiração do
livro “Doors of Perception” (As portas da Percepção), de Adous Huxley. 122 Nessa época há
um crescimento da influência dos escritos de Adous Huxley sobre a juventude, que buscava
a junção entre filosofias orientais e as drogas como vias de expansão da consciência.
Essa procura estava estreitamente relacionada com a psicodelia, já que muitos
jovens associaram o uso de drogas, ao xamanismo e às práticas orientais. Esta combinação
estava em sintonia com a prática da juventude na medida em que “os acid test e os festivais
de rock tinham aquele quê de transe coletivo das religiões indígenas” (ALEXANDRE,
2005, p. 35). Essa tendência foi inaugurada por Timothy Leary, no livro “A experiência

121
Cf: ALEXANDRE, Ricardo. O inferno é fogo. Bizz. História do Rock. Coleção história do Rock. Vol. 02.
1964/1971. Maio. 2005. p. 33- 34
; ABRAMO, Bia. O fim da inocência pop. Folha de São Paulo. Caderno Mais! 23 de fevereiro.1997.
122
MACIEL, Luiz Carlos. Jim Morrison morto. Pasquim. No.109. 22 a 28 de julho.1971. Também na coluna
de Maciel, vemos divulgadas as idéias de Aldous Huxley, como por exemplo em : O budismo de Aldous
Huxley. Pasquim. 3 a 9 de agosto. 1971.

89
Psicodélica” (1964) e foi ele quem fez a conexão entre ácido lisérgico e religiões
“primitivas”, especificamente, com o “Livro Tibetano dos Mortos”.
Jim Morrison, quando tinha 5 anos de idade, acreditava que tinha passado por uma
experiência com um xamã ao ver um morrendo na beira da estrada no Novo México. Tal
fato o teria influenciado para sempre e isto produziu reflexos em sua carreira, na medida em
que em algumas canções dos Doors há a presença de referências ao paganismo e ao
universo indígena, como, por exemplo, em “Yes, the River Knows”, “Wild Child”,
“Shaman`s Blues”.
Assim, podemos identificar na postura e atitudes de Morrison no palco uma relação
com esse universo, já que em suas performances ele se apresentava sensual, hipnótico e
ritualístico. Isso “tanto ajudou a cultivar sua imagem icônica quanto a dragar sua vida num
carrossel de drogas, sexo e idolatria até sua morte precoce, aos 27 anos” (ALEXANDRE,
2005, p. 35).
Outro exemplo de associação do rock com práticas religiosas místicas e esotéricas
pode ser observado nos Rolling Stones, que mesmo negando a religião não se furtam em
utilizar a religião para mexer com o imaginário da época. Em janeiro de1968, dois
membros dos Stones fizeram uma visita ao Brasil, e obviamente tudo que faziam era
noticiado. Eram Mick Jagger e Keith Richards em viagem de férias. As notícias sobre eles
giravam em torno da capacidade e talento do grupo e apontavam, de forma geral,
observações como: “as palavras dos cinco estudantes que sabiam com certa perícia a
guitarra, a bateria e outros instrumentos, se tornaram leis”. 123 Falavam sobre trabalho e
perspectivas do grupo, mas em algum momento o assunto acabava caindo em religião, e
Keith Richards, o teórico do grupo, comentou:

Somos ateus convictos. Desafio qualquer um a encontrar um de nós em uma


igreja. Nossa religião é a destruição de todas as religiões e de todos os
preconceitos. Nós queremos a libertação dos homens. Os partidos políticos que
pregam a liberdade não sabem enfrentar o mundo com justeza, mas os jovens de
todo o mundo sabem como deve ser colocada a questão da liberdade e como
124
resolvê-la: estourando os velhos esquemas e replicando os novos.

123
Os rebeldes com mil causas. Jornal do Brasil. 10 de janeiro de 1968.
124
Os rebeldes com mil causas. Jornal do Brasil. 10 de janeiro de 1968.

90
Esse discurso de quebra de todos os esquemas em nome da liberdade não impediu
os Stones de utilizarem muito bem o discurso religioso para vender de modo eficiente a
imagem da banda, entrando para círculo dos pop star e se tornando uma das bandas de rock
mais bem sucedidas do mundo. Com formação em economia e com uma sagacidade
apurada, Mick Jagger utilizou com eficiência o ocultismo como forma de provocar
polêmicas, excessos e excentricidades como marketing pessoal.
Na visita que fizeram ao Brasil, a dupla se encontrou com a comunidade hippie de
Arembepe, na Bahia, realizando também uma visita a um centro de macumba, bem
direcionado ao turismo. Ao voltarem para a Inglaterra, Keith Richards sugeriu “transformar
uma longa canção folk de Jagger em um samba de terreiro, sem partes rápidas ou lentas,
sem modulações, apenas um groove hipnótico – ou apenas transe. Era “sympathy for the
Devil” (ALEXANDRE, 2005, p. 35). Grande parte dessa canção foi inspirada no livro “The
Máster and Margarita”, do escritor russo Mikhail Bulgarov. Nela, Mick Jagger canta as
confusões da humanidade em primeira pessoa, como se ele fosse o próprio Lúcifer, da
mesma forma que aparece no livro. Em dezembro de 1968, em um especial de televisão
chamado Rock and Roll Circus, o vocalista da banda Stones se apresenta com o peito nu,
todo riscado com tinta preta à maneira vodu, cantando ameaçador: “O que é confuso para
você, é a natureza do meu jogo”. 125
Um outro conjunto que buscou no “lado negro” a inspiração para construir seu perfil
foi o Grupo Black Sabbath, que em fevereiro de 1970 lançou o primeiro disco. Este LP foi
lançado em uma sexta- feira 13 e com uma capa bem sugestiva, onde aparecia uma mulher
coberta por uma capa defronte a uma casa perto de um lago, em uma floresta. A
composição das cores da capa sugere uma atmosfera de magia. Muitos acreditam que a
mulher era realmente uma bruxa.

125
A figura habitual do diabo, segundo algumas fontes, teria sido herdada de Pan, um alegre e musical deus
da mitologia grega, que foi “convertido” para as forças do mal por alguns movimentos religiosos”. As
articulações entre Lúcifer e a música não são uma originalidade do rock. Já no século VIII, o violinista
clássico Niccolo Paganini teria feito um “pacto com o diabo” em troca de uma perícia com o instrumento. O
mito do “pacto com as trevas” se tornou algo clássico, onde já se afirmou a mesma coisa do bluesman Robert
Johnson, que trabalhou o tema em “Me and the Devil Blues” (no qual dizia “andar lado a lado com Satã”).
Com a explosão do rock nos anos 1960, diversos segmentos religiosos se colocaram contra o ritmo,
considerado a “música do diabo”, e declarações como a de John Lennon (“os Beatles são mais famosos do
que Jesus Cristo”) incrementou ainda mais essa polêmica. Apesar dessa temática ter servido de inspiração
para os Stones, a relação com o rock se deu definitivamente nos anos 1970, “por intermédio de Black
Sabbath, Led Zeeppelin, Raul Seixas, AC/DC e Eagles. E o heavy metal, com Iron Maiden, Marlyn Manson,
Venom e Danzig”. Adaptado de Bizz. História do Rock. Vol. II. 1964/ 1971.Galeria Pop. Maio de 2005. p. 36.

91
Esse imaginário cultivado a partir do ocultismo no mundo do rock também teve
conseqüências mais nefastas além do marketing.

A questão foi ficando tão estranha que abriu espaço para que um maluco como
Charles Manson conseguisse lugar na cena hippie, compondo com o Beach Boys
e circulando com Neil Young. Depois de ver frustrada a carreira artística,
envolveu-se com assassinatos e tornou-se a encarnação do fim do sonho dos
anos 60. Em 1983, quando seu Beach Boy mais próximo, Dennis Wilson, morreu
afogado, pessoas ligadas a ele disseram se tratar de um ‘trabalho’ de Manson,
por ver a canção ‘Cease to Exist’ transformada em ‘Never Learn not to Love’
sem sua permissão e credito... (ALEXANDRE, 2005, p. 36).

O escritor Gary Lachman, em seu livro “Turn off your Mind – The Mystic Sixties
and the Dark Side of the Age of Aquarius”, percebe o misticismo dos roqueiros da década
de 1960 como sendo a “renascença do ocultismo”, na medida em que ele lê esta ocorrência
como algo já previsto por. Madame Blavatsky. Assim, Gary Lachman interpreta o
movimento hippie como uma “concretização” do cenário já previsto por Madame
Blavatsky em pleno século XIX. Esta “renascença” não se restringe ao universo do rock, é
mais ampla, indo além e compondo redes e conexões em torno dessas perspectivas.
Como indícios dessa ocorrência, podemos destacar o livro “Le matin des
Magiciens” (1960), de Louis Paulwels e Jacques Bergier, que também são os criadores de
“Planète”, na França. É neste período que morre Hermann Hesse (1962) e “nasce” um culto
em torno do livro “Sidarta”, que narra a busca de um jovem pelo auto-conhecimento;
também há a estréia da revista em quadrinhos dos X-Men (1963), que mostra as aventuras e
desventuras de adolescentes com poderes parapsicológicos; e em 1964 começa nos Estados
Unidos um interesse em torno da obra de J. R. R. Tolkien e de seu universo mitológico.
No entanto, foi a música que catalisou mais essas informações, pois era o veículo
pop que mais causava impacto. Nesse sentido, O LP “Sgt. Pepper”, além de seu conteúdo
revolucionário, também trouxe uma capa que dizia muito sobre o momento. A produção
multicolorida da capa, no melhor estilo psicodélico da época, apresenta os quatro rapazes
de Liverpool vestidos em ternos coloridos estilizados com inspiração em uniformes
vitorianos (a última moda em Londres naquele momento), onde eles se transformaram em
membros da Banda do Sargento Pimenta.
Nas mãos, trazem instrumentos de banda, e no bumbo, colocado à frente, vem a
inscrição “Sgt. Pepper`s Loney Hearts Club Band”. Há uma boneca vestindo uma camiseta

92
com a seguinte frase: “Welcome the Rolling Stones” (Bem-vindos os Rollings Stones).
Traz, em primeiro plano, flores que formam o nome da banda e uma guitarra . Como pano
de fundo há uma colagem de vários ícones da cultura pop – Charles Claplin, Marlon
Brando, Elvis, Dylan, Fellini, Oscar Wilde, Karl Marx, o Gordo e o Magro, Marylyn
Monroe, James Dean, entre outros. E ainda estão presentes os rostos do mago Aleister
Crowley e de Adous Huxley. Dizem que Hitler também estaria lá, mas conta-se que na
última hora, John achou que sua presença seria de extremo mau gosto e a retirou. As
estatuetas no jardim vieram da casa dos Beatles. O disco traz ainda um enorme encarte em
papel-cartão, com vários itens relacionados à banda para recortar – divisas, emblemas,
bigode, ente outros.
Até aquele momento, nunca alguém havia ousado tanto em termos de
experimentação. E não se esperava que o resultado fosse tão perfeito. “Raras vezes na
história a ousadia é tão rapidamente coroada de êxito. A confecção de Sgt. Pepper`s foi um
happening. E até hoje, ouvi-lo pode ser transformar em outro” (Kubrusly). 126
O LP foi lançado em 01 de junho de 1967 na Inglaterra, em 02 de junho nos Estados
Unidos e em setembro do mesmo ano no Brasil. Segundo os críticos especializados, ele é
considerado a mais profunda e planetária revolução musical da história da humanidade.
Assim como sua capa já apresentava um caleidoscópio de gente, também o trabalho em sua
totalidade representou uma sucessão vertiginosa de referências e sensações. É sem dúvida
um registro documental da época, com referências à Índia, aos hippies e também com
criticas à sociedade estabelecida.
Até então, não havia conhecimento de músicas tão elaboradas, que se conectavam
formando um tema homogêneo, como na música erudita ou na ópera. Sgt. Pepper`s chegou
às lojas após nove meses de comentários que indicavam o fim da banda.“ O álbum vendeu
500 mil cópias em duas semanas e estreou direto em primeiro lugar na Inglaterra e nos
Estados Unidos”. Além de promover “a conexão com linguagens musicais eruditas,
também incentivou a abertura das diversas culturas jovens no mundo do rock – e, na via
inversa, a integração de sons regionais com o rock. Havia no disco, de vaudevile ao ragga
indiano, de acid rock a experiências eletrônicas. No Brasil, esse processo resultou na
tropicália (...)” (ROSA, 2005, p. 25), que baseou sua experimentação na junção do

126
KUBRUSLY, Maria Emília. Encarte The Beatles. Editora Três. Sem data.

93
experimentalismo dos Beatles, o psicodelismo, comportamento hippie estilizado, música
pop mediados pelos arcaismos brasileiros que os tropicalistas denominaram de cafonismo.
Segundo os críticos de música, esse álbum representa uma surpreendente viagem
psicodélica de 40 minutos que começa com o clima marcial da música título e segue com
outras doze pérolas da música pop. Ringo comprova sua capacidade como crooner em
“With a little help from my friends”; Lennon experimenta LSD (ou não?) em “Lucy in the
sky with diamonds”, e George toca cítara e mergulha de corpo e alma na mítica “Within
you, without you”. As belíssimas “When I`m sixty four” e “A day in the life” fazem deste
trabalho um marco da carreira dos Beatles e da música pop. 127
Foi um álbum pioneiro: até então nunca tinha havido um disco pop com um mesmo
assunto, com as faixas interligadas uma às outras, o uso de orquestração e instrumentos
estranhos ao rock, assim como uma grande produção. “Desta maneira, foram maiores os
desafios à habilidade” pois tiveram que “conseguir, entre outras coisas, ruídos bucólicos
(como mugidos de vacas e relinchos eqüinos), uma orquestra de 41 figuras para tocar sem
partitura, um som que só fosse audível por cachorros (...) Enfim, a palavra de ordem não
era o Real, mas o sonho” (KUBRUSLY). 128
Entretanto, havia aqueles que condenavam tudo o que o álbum trazia, afinal, isso já
era previsto, se não fosse assim, não teria sido um trabalho de vanguarda. Spiro Agnew (na
época era governador de algum dos estados dos Estados Unidos e posteriormente seria vice
de Nixon) fez tudo para proibir a execução de “With a little help from my friends” nas
rádios, por entender que a frase “I get high” (eu fico alto) era uma referência à utilização de
drogas. “A day in the life” foi excluída da BBC pela mesma razão. Os Beatles não
camuflavam as referências às drogas presentes no álbum, que segundo Kubrusly se
“transformou num símbolo da abertura das portas da percepção (aliás, Adous Huxley, autor
do Livro As portas da Percepção, onde descreve uma experiência com mescalina, está
representado na capa do disco)”. 129
Em Sergeant Pepper`s Loney Hearts Club Band, a música também reflete o
misticismo hindu de George e o interesse de todos em drogas. O disco foi considerado o

127
Dados obtidos através do Guia The Beatles: A maior banda de todos os tempos, agora na era digital. Ágata
Editora. p. 08. sem data.
128
KUBRUSLY, Maria Emília. Encarte The Beatles. Editora Três. Sem data.
129
KUBRUSLY, Maria Emília. Encarte The Beatles. Editora Três. Sem data.

94
130
mais criativo da música popular. Essa criatividade é fruto da habilidade dos Beatles, das
mistura de vários elementos até então inimagináveis, da cultura hippie, da associação do
LSD com as filosofias orientais, apresentando um produto híbrido, dotado
“simultaneamente de objetividade e paixão” (Latour, 2004a, p. 394).
Falando do LSD, que tomara em 1965, George diz: “Foi como se eu antes nunca
tivesse experimentado, falado, visto, ouvido e pensado nada direito”. 131 A questão do uso
do LSD pelos Beatles gerou muitas polêmicas e a mais interessante e criativa delas é a que
diz que “Lucy in the sky with diamonds” (Lennon – McCartney) está relacionada com o
LSD. Essa associação reflete o trabalho que os Beatles dão aos que desejam interpretar suas
músicas. É o caso, por exemplo, de “Lucy in the sky with diamonds”, que segundo os
Beatles, nada tinha a ver com o LSD; Julian, filho de John, tinha desenhado uma menina de
sua classe no céu. “A expressão ‘meeting a man from the trade’ não se referia a nenhum
‘fazedor de anjos’, como os americanos pensaram; e sim um amigo deles, que fora
vendedor. Paradoxalmente, alguns termos obscenos típicos de Liverpool passaram
despercebidos, por serem muito locais”. 132
Afinal, um desenho de Julian Lennon ou LSD? Era essa a polêmica gerada pela
canção, induzida pelo conteúdo da letra e pelas iniciais do título, que também formam a
sigla LSD. Mas segundo Paul, não era essa a intenção deles:

As pessoas chegam com um ar muito espertinho e dizem: “Saquei, é LSD”, e


isso aconteceu quando os jornais não paravam de falar em LSD, mas jamais
pensamos nisso. O que aconteceu foi que o filho de John, Julian, trouxe um
desenho da escola e disse que era Lucy in the sky with diamonts (Lucy no céu
com diamantes). Achamos que era um bom título e fizemos a letra num clima de
Alice no País das Maravilhas, tudo meio irreal. De vez enquanto entra o
estribilho Lucy in the sky with diamonds, tomando conta do céu da história.
Essa Lucy é Deus, é o coelho branco de Alice. Você pode escrever uma canção
com imaginação em cima de palavras e foi isso o que nós fizemos. 133

130
Beatles: De repente, o sucesso e a fortuna. Realidade. Janeiro. 1970. p. 127.
131
Beatles. De repente, o sucesso e a fortuna. Realidade. Janeiro. 1970. p. 127.
132
Beatles: De repente, o sucesso e a fortuna. Realidade. Janeiro. 1970. p. 127.
133
KUBRUSLY, Maria Emília. Encarte The Beatles. Editora Três. Sem data. Esta canção também é um dos
pontos altos do filme “Submarino Amarelo”. John esta nos vocais principais e o órgão Hammond, que pode
ser ouvido logo no começo, sofreu uma modificação para emitir um som de harpa semelhante ao que se
imagina ser o som celestial. O que pretendiam era apresentar uma viagem “irreal” entre flores de papel
celofane verde e amarelo e uma menina de olhos caleidoscópicos; e, lá em cima no céu, aparece Lucy com
diamantes.

95
Em geral, os Beatles divertiram-se com os esforços empregados para tentar
interpretá-los. Geralmente usavam palavras sem sentido ou mesmo inventavam, como
“obladi, obladá”, que não quer dizer coisa alguma mas tem uma bela sonoridade; mas
davam o que fazer para quem tentava interpretá-los. Sobre isso John diz:

É bom quando gostam de nossas músicas (...) – Só que tudo perde o sentido,
quando começam a tecer grandes considerações. Detestamos quando nos
compararam com Beethoven, por exemplo: aí tudo vira fraude. Sabemos que
estamos enganando e que as pessoas gostam de ser ludibriadas. Aposto que
Picasso fez o mesmo, e durante oitenta anos vem rindo disso. Beethoven,
também, como nós. Mas será que as pessoas têm consciência da fraude? Será
que o primeiro-ministro sabe que é um sujeito como outro qualquer?
Perguntaram-me qual o sentido de Mr. Kite. Não havia nenhum! Simplesmente
compus. E ninguém quer acreditar nisso. Pensam que sabemos as coisas. Ora,
134
não sabemos nada!

A discordância de John em relação às tentativas de atribuir sentidos e interpretações


às composições dos Beatles está relacionada ao fato de que não havia uma preocupação
com a mensagem, e sim em compor uma letra de música utilizando palavras que rimassem
ou tivessem um bom efeito sonoro. Assim, quando tentavam interpretar suas canções, ele
percebia isto como uma fraude, na medida em que os interpretes vêem sentidos que
parecem não ter relação alguma com o que era proposto por eles. No entanto, o fato de algo
ter um contexto original e um sentido a ele atribuído naquele momento, não impede que
haja equivalente alhures. Também não podemos acreditar que desde seu contexto original o
evento funcione sempre como modelo, o que John não leva em consideração, ou leva? São
as mediações que compõem redes que não são controladas, mas que passam a estabelecer
vínculos concretos.
Nas propostas inovadoras e experimentais dos Beatles eles entraram em contato
com o universo indiano. A cultura indiana foi sem dúvida uma fonte de inspiração para os
Beatles, que tiveram encontros com mestres de meditação e andaram estudando na Índia
com o mestre Maharishi Mahesh yogi. Na “escola” deste mestre, havia alunos ilustres que
eram capazes de largar tudo para segui-lo até o Himalaia, onde uma sessão de meditação
podia durar trinta longas horas. Sem ter pão, água, sem dormir e sem conforto. No entanto,

134
Beatles: De repente, o sucesso e a fortuna. Realidade. Janeiro. 1970. p. 127.

96
John Lennon e George Harrison eram, segundo notícias da época, alunos empenhados e
disciplinados. 135
A influência da Índia foi bastante significativa. Isso vai se refletir em outra canção
de Sgt. Pepper`s, a “Within you Without you”, de George Harrison. A canção é realizada
com vários instrumentos indianos misturados com violinos e violoncelos. Trata-se de um
desdobramento da experiência apresentada em “Love You To”, no álbum Revolver. Sobre a
realização dessa música, George comenta: “Klaus (Voorman) tinha em casa um harmônico,
que eu nunca havia tocado antes (...) - Comecei a brincar com o instrumento e “Within
You” foi saindo. Primeiro veio a melodia, depois o primeiro verso. A letra fala do que
estávamos conversando naquela noite” (Kubrusly). 136
Os Beatles mantiveram um contato tão estreito com a cultura indiana que chegaram
a formar parceria com um indiano em suas incursões no orientalismo. O nome dele é Ravi
Shankar, que era um especialista em sitar, um instrumento indiano. Além de estar com os
Beatles, ele também tinha suas apresentações individuais, que se tornaram sucesso de
público, como podemos depreender do trecho abaixo:

O sucesso relativamente fácil dos Beatles e dos Rolling Stones forma um grande
contraste com Ravi Shankar, atual líder musical dos dois grupos. Para chegar a
ser um grande conhecedor e concertista da música clássica da Índia, como é
atualmente, Ravi teve que estudar sete anos e meio (...). Seus discos vendem aos
milhares e dá recitais de duas horas, coisa até então inconcebível para um
oriental, com audiência que conta com muitos hippies e relativamente poucos
estudiosos da música oriental. A influência da Índia se faz sentir no mundo
ocidental em vários setores. São hippies os maiores responsáveis pela sua
propagação: as tatuagens, a projeção que alcançaram entre eles os gurus, swamis
e outros chefes espirituais de centenas de milhares de pessoas, Ravi Shankar é
hoje o líder musical destas mesmas pessoas e muitas outras. O primeiro aluno
ocidental de Ravi foi George Harrison (...). 137

Na matéria, Ravi se refere a George Harrison como uma pessoa humilde e um aluno
empenhado, mas indica a impossibilidade de George aprender a centésima parte do que
Ravi sabia. George, porém, impressionado com o que havia aprendido, usou-o com grande
impacto sonoro em “Norwegianwood” e, mais tarde, de forma deliberada, em “Strawberry

135
Na academia da meditação. Jornal do Brasil. 12 de março. 1968. p.01; ALEXANDRE, Ricardo. O inferno
é fogo. Bizz. História do Rock. 1964/1971. Vol. 02. Maio de 2005. p.34-35.
136
KUBRUSLY, Maria Emília. Encarte The Beatles. Editora Três. Sem data.
137
Um sitar no iê, iê, iê. Jornal do Brasil. Departamento de Pesquisa. Caderno B. 19 de março.1968. p. 08

97
Fields Forever e Penny Lane”. Nesta última canção, ouve-se várias notas de sitar, que se
prolongam por muitos segundos depois do final aparente do disco.
Depois disso, outros seguidores usaram os sons hindus, fabricados artificialmente
com violão elétrico, em seus arranjos de música moderna. O interessante é que também
tentaram reproduzi-los industrialmente. O resultado foi um instrumento elétrico que na
época custava 295 dólares, mas que, segundo Ravi, não possuía a mesma sensibilidade do
sitar original, feito à mão.
Ravi olhava para a inesperada admiração pela raga (música clássica indiana) com
um pouco de incredulidade. Para ele, os que se entusiasmavam com ela somente estavam
atrás de um novo som, diferente, e mais cedo ou mais tarde estariam encantados por outro.
Shankar não acreditava que o seu sucesso popular iria muito longe, principalmente entre os
jovens. Mas o mais interessante de tudo é que Ravi acreditava ser impossível misturar
música clássica oriental com a ocidental. Segundo ele, usar o som da raga para compor
música popular é como “aprender chinês para escrever poemas em inglês”. 138
Para Ravi era impossível usar a raga para compor música ocidental. No entanto, é o
que Harrison faz em Sgt. Pepper`s ao introduzir a sitar. Ele conecta dois domínios
considerados inconciliáveis e abre caminho para que outros façam o mesmo. É o sitar
original na música ocidental, é a raga que passa pelos violões elétricos, é a fabricação de
um sitar eletrônico que não tem a sensibilidade do original, mas que passa a produzir um
som que é uma mistura ocidental e oriental. Isso é possível através do trabalho das
mediações, que liga dá sentido às misturas de gêneros e culturas distintos. Assim, “nossos
coletivos são mais reais, mais naturalizados, mais discursivos do que cansativos homens-
entre- eles nos deixam ver” (LATOUR, 2008, p. 89).
Sgt. Peppers é o resultado de uma ousadia, inquietude e experimentação que
transformaram este LP num dos discos mais famosos da história da música pop. Segundo
Bia Abramo, “ouvir Sgt. Pepper`s (...) é um antídoto contra a caretice e o conformismo, que
andam se alastrando como praga. Ainda que remeta à perda da inocência pop contém um
senso de absurdo, uma vivacidade estilística e uma coragem de experimentar que todas as
bandas dos anos 1990 deveriam invejar.” 139

138
Um sitar no iê, iê, iê. Jornal do Brasil. Departamento de Pesquisa. Caderno B. 19 de março.1968. p. 08
139
ABRAMO, Bia. O fim da inocência pop. Folha de são Paulo. Caderno Mais! 23 de fevereiro. 1997.

98
É também com Sgt. Pepper`s que se estabelecem os signos, os procedimentos e os
mitos do pop que se apresentam como um espaço onde se cruzam várias redes. Sgt Pepper`s
pode ser considerado o evento fundador desse amplo terreno de mediações e mediadores
que é o universo pop e da indústria cultural. “Essa aparentemente pequena, mas decisiva
transformação viraria de pernas para o ar a face, o formato e o alcance dos fenômenos da
indústria cultural pelos próximos trinta anos”.140
As conexões realizadas a partir desse universo estavam se proliferando. As questões
que envolvem o campo pop e o religioso causam polêmicas e criam perspectivas sociais.
Assim, não foram só as declarações de Lennon em relação a serem mais populares do que
Cristo que despertavam a condenação dos religiosos. Havia uma mistura de xenofobia,
religião e política que se tornou material para livros e até investigação do FBI.
O pastor David Noebel escreveu livros como “Rhythm, riots and revolution: an
analysis of the communist use of music – the communist máster music plan” (1966) e “The
Beatles: a study in drugs, sex and revolution” , onde ele indica que “a dura verdade é que a
música pesada se tornou o catalisador de jovens radicais em seu plano de não apenas
destruir a cultura ocidental mas destronar Deus” (apud ALEXANDRE, 2005, p. 37).
Assim, a música dos anos 1960 utilizou um discurso religioso para vender disco e
construir imagens, a religião também lançou mão dessas polêmicas para “vender” seu
discurso. Segundo Alexandre (2005), essa dinâmica ficou tão séria e acirrada que acabou
por camuflar a verdade dos fatos, onde nem tudo era tão “diabólico” como divulgado, era
mais uma estratégia. “Na verdade, no rastro de espiritualização do pop houve também uma
abertura para o bom e velho cristianismo” (ALEXANDRE, 2005, p. 37).
Essa tendência de espiritualização da música, do universo da cultura pop-rock nos
ilustra que foram colocadas em ação novas formas de conectar elementos de domínios
distintos e que, simultaneamente, passam a operar novas conexões no interior de suas redes.
Assim, a The Band subverteu o período de exageros e excentricidades com a
“Music from big pink”, que trazia a tona os valores familiares e a questão da fé. “Nós
estávamos nos rebelando contra a rebelião”, diria Robbie Robertson.
Nesta época, também surgiram no circuito evangélico, grupos gospel-psicodélicos
como The Addicts Psalm, All Things New, All Saved Freak Band e Jon Ylvisaker.

140
ABRAMO, Bia. O fim da inocência pop. Folha de São Paulo. Caderno Mais! 23 de fevereiro. 1997.

99
Simultaneamente, ocorreram vários eventos para levar a mensagem cristã aos jovens, como
o musical “Godspell”, o filme “The gross and the switchlde” ou o disco “Some beautiful
day – a rock celebration of the Life of a dreamer called Jesus”.
Havia os hippies que eram cristãos e ficaram conhecidos como “Jesus Freaks”, ou
“Doidões de Cristo”. Um famoso “Jesus Freak” foi o desenhista Rick Griffin, da revista
Zap Comix, também autor da famosa marca que identifica o grupo Rolling Stones. Griffin,
em 1971, se tornou um cristão convertido e “publicou na revista Surfer uma HQ encerrada
com uma enorme oração e confissão de pecados. De fato, publicou uma história cristã na
própria Zap e continuou fazendo capas para o ‘Gratefuul Dead’”. Faleceu ao se acidentar
em sua moto Harley, em 1991, “amado e admirado por cristãos, doidões, surfistas,
roqueiros psicodélicos e nerds de quadrinho. Amai-vos uns aos outros é tipo isso aí”.
(ALEXANDRE, 2005, p. 37).
A partir do contexto dos anos 60 do século passado, podemos identificar uma
conexão entre religião e universo pop. Esse encontro cria um campo que a princípio
alimenta polêmicas que acabam por ajudar a vender a imagem dos roqueiros, das bandas e
do próprio universo religioso. Os hibridismos que surgem a partir desses domínios
possibilitaram que a religião se tornasse parte e fonte de inspiração da cultura pop, como
tivemos oportunidade de apontar neste item em alguns exemplos dessa ocorrência.
Assim, religião e cultura pop vão desencadear uma rede de mediações e mediadores
que passam a produzir vínculos sociais concretos. As novas conexões que passam a ser
processadas daí por diante vão possibilitar, só no campo musical, por exemplo, a ocorrência
das bandas de rock de Cristo; os cantores evangélicos e/ou bandas evangélicas, pastores e
padres cantores que passam a utilizar em suas apresentações mega produções com
estruturas idênticas às inauguradas pelo mundo pop-rock. Hoje, setores da igreja Católica,
de igrejas protestantes e as variantes pentecostais e neo-pentecostais introduziram em seus
cultos instrumentos do universo pop-rock (baterias, guitarras, baixos entre outros), além da
presença de coreografia durante a execução de alguns hinos.
Enfim, as instituições religiosas participam e criam cultura popular. As culturas
populares de consumo – mídia, música, textos culturais, cinema, esporte, cibercultura,
televisão – configuram-se como canais privilegiados de expressão do sagrado na sociedade

100
contemporânea. 141 A cultura popular se transformou, assim, numa via de manifestação e
circulação de novas posturas religiosas, trazendo para a cena pública o elemento religioso.

141
O conceito de cultura popular aqui utilizado refere-se à cultura tecnológica, eletrônica, da informação onde
o consumo é o vetor cultural da sociedade contemporânea. Também se refere à quebra diferenciação entre
cultura erudita e popular. A cultura popular é o espaço da experiência do híbrido e da coexistência simultânea
da diversidade. Cf. Forbes e Mahan (2000); Kellner (2001).

101
CAPÍTULO 3: O ESPÍRITO LIBERTÁRIO QUE ILUMINAVA
MENTES E CORAÇÕES

A década de 1950 caracterizou-se pelo constante embate entre dois modos de vida
absolutamente contrários um do outro: o norte-americano e o soviético. 142 O primeiro
apresentava como vantagem o progresso do padrão material das camadas médias e de uma
parte dos operários, através do acesso a incontáveis bens de consumo. Essa característica,
contudo, era criticada pelos socialistas, que julgavam que tal situação conduziria não só à
massificação do consumo e à competição desenfreada entre os indivíduos, mas também à
exclusão das camadas mais pobres, como os negros, os indígenas e os imigrantes.
O modelo soviético exibia como vantagem a implementação de uma política de
ampla proteção estatal direcionada para os trabalhadores, assegurando-lhes emprego,
moradia, educação e lazer. Esse modelo, porém, era criticado por limitar a participação
política dos operários e favorecer o surgimento de uma extensa burocracia, que, além de
controlar o poder, adquiriu privilégios especiais.
Embora essas duas potências tenham dividido o mundo em dois blocos político-
ideológicos antagônicos, segundo Arnaut e Motta (1994), as diferenças de estrutura social e
de objetivos entre EUA e URSS “não devem ocultar a semelhança dos discursos dos dois
‘donos do mundo’. Ambos o discursos sugeriam o mundo como dividido em duas partes: a
do mal e a do bem, a da tirania e a da liberdade. Sempre o país que falava era apresentado
como defensor do bem, e o outro como promotor do mal, e, portanto, o inimigo”
(ARNAUT e MOTTA, 1994: 26).
Com a década de 1960, ocorre o questionamento de ambos os modos de vida,
mobilizando pessoas em todo mundo e que se traduziu em várias formas de contestação.
Aconteceram manifestações estudantis, movimentos de contracultura e lutas por direitos
dos negros e de outras minorias em diferentes países.

142
As diferenças de estrutura social e de objetivos entre EUA e URSS estão baseadas em: Hobsbawn (1991);
Arnaut e Motta (1994); Tota (2000) e Stalin (1938), citado por Arruda (1986, p. 142).

102
Nos países de linha socialista, esses movimentos foram “organizados” por
estudantes e intelectuais insatisfeitos com a centralização política, com a falta de
participação política e com a burocratização do regime. Estavam estreitamente vinculadas
às transformações ocorridas no socialismo no final da década de 1950: a descentralização
realizada na União Soviética por Nikita Kruchev, as lutas pela autogestão operária na
Hungria, em 1956, duramente sufocadas pelas tropas soviéticas, e os novos rumos para o
socialismo, apontados pela China durante a Revolução Cultural. Na Tchecoslováquia, com
a Primavera de Praga, o povo ousou contestar o stalinismo da URSS em função de um
socialismo com mais liberdade e democracia.
Já nos países capitalistas, os movimentos de contestação assumiam características
que variavam de acordo com a situação histórica de cada região. Os movimentos estudantis
promovidos nos países ricos, em particular nos Estados Unidos, na França e na Alemanha,
indicavam uma crescente participação social dos jovens.
Essa faixa etária da população havia se ampliado significativamente em função do
crescimento da natalidade nas décadas anteriores. Esta geração é conhecida como baby
boom, do pós-guerra. Esses jovens, particularmente os oriundos das camadas médias,
possuíam uma boa situação econômica e, em sua grande maioria, tinham acesso à
universidade. 143 No entanto, assumiram uma postura que contestava o ensino tradicional, a
valorização exagerada da tecnologia nas sociedades modernas, o culto ao consumo em
massa, propagados pelos meios de comunicação. 144 Protestavam também contra muitas
guerras que vinham sendo estimuladas pelas superpotências em países pobres de outros
continentes. Segundo Pereira (1986), “rejeitavam-se não apenas os valores estabelecidos
mas, basicamente, a estrutura de pensamento que prevalecia nas sociedades ocidentais.
Criticava-se e rejeitava-se, por exemplo, o predomínio da racionalidade científica,
tentando-se redefinir a realidade através do desenvolvimento de formas sensoriais de
percepção” (PEREIRA: 1986, p. 23).
Nos países africanos, os movimentos estudantis engajaram-se nas lutas pela
eliminação da dominação colonial. Representantes dos negros norte-americanos
participaram dos congressos pan-africanos, nos quais se pregava a idéia de negritude. A

143
Moreira (1986); Alves (1988); Hobsbawn (1995); Magnani (2000); Carmo (2001).
144
Ver sobre o assunto em: Olic (1988); Moreira (1986); Paes (1992); Arbex Jr e Tognoli (1996); Carmo
(2001).

103
defesa de uma identidade negra foi introduzida por esses líderes nos Estados Unidos e lá
foram assimiladas com as propostas radicais do movimento pelos direitos civis dos negros.
Na América Latina, os estudantes lutavam contra as influências culturais,
econômicas e políticas que os Estados Unidos exerciam sobre toda a região. Combatiam,
por isso, as ditaduras militares instauradas nesses países com o apoio dos Estados Unidos.
Parcela dessa juventude percebia na revolução cubana, ocorrida em 1959, o modelo ideal a
ser seguido. 145
Segundo Carlos Alberto Pereira (1986), os anos da década de 1960,
internacionalmente, foram realmente um tempo de muita agitação, esperança e renovação
nas formas de luta política. Basta lembrar, por exemplo, (...) a Revolução Cultural Chinesa,
a resistência popular vietnamita à agressão armada dos Estados Unidos e a guerrilha de Che
Guevara na Bolívia. Em todos estes casos, o que estava em jogo era a abertura de novos
espaços de contestação política e de luta (...)” (PEREIRA, 1986, p. 33).
Os jovens e os negros acreditavam encontrar novos canais de participação política
em sociedades marcadamente repressoras. Na ausência de canais institucionais para a ação,
os contestadores propunham formas alternativas de organização social e novos tipos de
intervenção política. 146
Os jovens estudantes realizavam manifestações com faixas, bandeiras vermelhas ou
negras, gritando palavras de ordem. 147 As forças policiais os reprimiam com energia.
Inspirados no movimento hippie, os estudantes criaram novas formas de ação política: à
repressão armada da polícia, respondiam com flores e slogans pichados nas paredes. Nesses
escritos, anônimos, apareciam os princípios do movimento. 148
Para protestar contra o envolvimento dos E.U.A na Guerra do Vietnã (1961-1973),
os jovens norte-americanos pichavam com tinta spray (grafites) frases como “Faça amor,
não faça a guerra”, “Paz e amor” ou “A imaginação no poder”. Já os franceses reagiram à
inscrição oficial que dizia “É proibido colar cartazes, lei de 29/07/1881” com a sátira que se
tornou celebre no mundo inteiro: “É Proibido Proibir, lei de 10/05/1968”. Uma outra

145
Ver melhor sobre assunto em: Galeano (1989).
146
Cf: Saraiva (1987); Sampson (1988).
147
Em 1968 ocorreu uma rebelião estudantil mundial em nome da luta contra o padrão de sociedade vigente.
A de maior impacto aconteceu em Paris, onde foram organizadas barricadas pelas ruas para barrar a reação
dos policiais. Outra importante manifestação estudantil foi a que ficou conhecida como a Primavera de Praga,
onde jovens tchecoslovacos que acreditavam no socialismo ousaram contestar o stanilismo da URSS.
148
Ver melhor sobre o assunto em: Cohn-Bendit (1968); Foracchi (1972); Lefevre (1976); Matos (1981).

104
famosa pichação nos murros de Paris era: “Quanto mais faço amor, mais sou
revolucionário; quanto mais sou revolucionário, mais faço amor”. 149
Segundo, Hobsbawn (1995), a antinomia essencial da nova cultura jovem se
apresenta com mais nitidez nos momentos em que encontra expressão intelectual,
representada pelos

instantaneamente famosos cartazes dos dias de maio de 1968 em paris: “é


proibido proibir”, e na máxima do radical pop americano Jerry Rubin, de que
não se deve confiar em ninguém que não tenha dado um tempo (na cadeia). Ao
contrário das primeiras aparências, estas não eram declarações políticas de
princípios no sentido tradicional – mesmo no sentido estreito de visar à abolição
de leis repressivas. Não era esse o seu objetivo. Eram anúncios públicos de
sentimentos e desejos privados. Como dizia um slogan de maio de 1968: “tomo
meus desejos por realidade, pois acredito na realidade de meus desejos”( 324-
325).

A dificuldade de se expandir para além dos limites universitários e a constante


reação dos setores conservadores conduziram esses movimentos a um acentuado
esvaziamento. 150 Além da repressão policial, os defensores da ordem vigente angariaram o
apoio das chamadas “maiorias silenciosas”, ou seja, das massas incorporadas ao sistema,
mas que ainda se mantinham omissas ou neutras em relação ao conflito. As autoridades
propagavam que essas manifestações representavam uma forma efetiva de perverter os
valores tradicionais: respeito à ordem, disciplina, trabalho, família, religião e propriedade.
Assim, na década de 1960, a utopia que encantava mentes e corações era a
revolução (não era a luta pela democracia ou pela cidadania, como ocorreu nas duas últimas
décadas do século XX), tanto que o próprio golpe militar de 1964 denominou-se como
revolução. As propostas de revolução política, econômica, cultural, pessoal, enfim, em
todos os sentidos e com os significados mais variados, marcaram profundamente o debate
político e estético, especialmente entre 1964 e 1968. Enquanto uns sentiam-se iluminados
pela revolução cubana ou chinesa, outros seguiam fielmente o modelo soviético, enquanto

149
Este último slogan está vinculado ao pensamento de Reich, um dos autores mais lidos na época, que
percebe a liberação sexual como uma via de transformação social.
150
No mundo todo os contestadores formavam uma minoria da população, ainda que seu poder de agitação
fosse grande. Grande parte da classe operária e dos camponeses dos países com diretriz socialista estava
integrada ao modelo soviético de socialismo. No universo capitalista, o panorama não era diferente. A maior
parte dos trabalhadores das grandes cidades e uma parcela considerável de jovens estava integrada à
valorização do trabalho, da disciplina e da competição, típicas desse modo de vida.

105
terceiros realizavam a antropofagia do maio francês, do movimento hippie, da
contracultura, apresentando uma proposta que indicava que a revolução se daria no âmbito
dos costumes. “Rebeldia contra a ordem e revolução social por uma nova ordem
mantinham diálogo tenso e criativo, interpenetrando-se em diferentes medidas na prática
dos movimentos sociais, expressa nas manifestações artísticas e nos debates estéticos”
(RIDENTI, 2000, p. 44).
O contexto cultural do Brasil na década de 1960 vai apresentar um campo artístico e
cultural marcado por um engajamento político ligado à esquerda, que tinha como objetivo
transformar a realidade brasileira através de uma revolução socialista. Essa ideologia vai
marcar fortemente a produção cultural, que vai buscar uma conscientização política através
de procedimentos de uma “arte genuinamente” brasileira que fosse capaz de transformar o
camponês num revolucionário. A predominância dessa visão vai rejeitar qualquer tentativa
de inovação ou um questionamento mais existencial.
A arte, necessariamente, deveria ser uma arte engajada que revelasse as raízes do
povo brasileiro. Não havia abertura para uma arte de vanguarda. Buscava-se produzir uma
arte que resgatasse uma autêntica cultura brasileira embasada numa pureza e originalidade
que estaria no elemento popular ou homem do campo não contaminado pela estrutura
capitalista. É contra essa atmosfera cultural que o Tropicalismo, sintonizado com as
transformações que fervilhavam por todo mundo e associado como sendo uma das faces da
contracultura, apresentou seus procedimentos que vão significar uma ruptura com esse
padrão ao proporem uma revolução conceitual. Assim, neste capítulo, serão apresentados os
procedimentos ligados ao campo cultural da esquerda, a predominância dessa ideologia na
área, que acaba por levá-los a uma desatualização e a um descompasso com o contexto em
que estavam inseridos em função da crença no advento da revolução a partir do eixo
nacional e popular. Crença que movia amplos setores ligados ao universo cultural do Brasil
na década de 1960 e que mesmo depois do Golpe Militar de 1964 continuou dando seu tom.

3.1 Outros românticos

No âmbito internacional, tiveram êxito ou estavam em andamento várias revoluções


de libertação nacional, algumas ancoradas no ideário socialista e na ação dos trabalhadores

106
do campo, como a revolução cubana de 1959, a emancipação da Argélia em 1962, entre
outras, além da guerra anti-imperialista em cena no Vietnã e lutas anticoloniais na África. A
vitória militar dessas revoluções é fundamental para a compreensão das lutas políticas e
para se compreender o imaginário contestador nos anos 1960: “havia exemplos vivos de
povos subdesenvolvidos que se rebelavam contra as potências mundiais construindo pela
ação as circunstâncias históricas das quais deveria brotar o homem novo” (RIDENTI, 2000,
p. 34).
Na América Latina, o êxito da revolução cubana frente aos Estados Unidos tornou-
se uma esperança para os revolucionários latino-americanos. Ademais, havia um certo
“desencanto” com o socialismo soviético, que passou a ser percebido como burocrático e
sem instrumentos para conduzir às transformações necessárias para se atingir o comunismo,
e como tendo se acomodado às injunções estabelecidas pela Guerra Fria. 151
Essa percepção em relação ao socialismo de inspiração soviética vai abrir
alternativas libertadoras, “terceiro mundistas”. Essas alternativas distanciam-se da
polarização produzida pela Guerra Fria e da demarcação de alinhamento em relação a um
pólo ou outro (capitalismo x socialismo). Conforme assinala Schwarz (1989), “existe uma
estética do Terceiro Mundo?”: “Encabeçado por figuras nacionais como Nehru, Nasser ou
Castro, que propositadamente fugiam à classificação, o terceiro-mundismo deu a muita
gente a impressão de inventar um caminho original, melhor que capitalismo ou
comunismo” (1989: 127).
O “terceiro mundo” também vivenciava o processo acelerado de mercantilização
universal e a constituição da sociedade de consumo. Tudo era passível de ser subordinado
ao mercado: bens e serviços (inclusive os culturais). 152
Mas havia uma ordem estabelecida que naquele momento mostrava sua força, sua
hegemonia e crueldade na guerra do Vietnã. De um lado uma grande potência mundial e do
outro a face do subdesenvolvimento. A partir deste episódio histórico, eclodiram
151
O modelo soviético seria contestado dentro das próprias estruturas partidárias comunistas na
Tchecoslováquia, com a Primavera de Praga. Também a “revolução cultural proletária” em processo na China
a partir de 1966, era percebida por jovens de todos os cantos do mundo como uma resposta ao burocratismo
do modelo soviético. Ver melhor em: Anderson (1985, p. 84-85).
152
Caetano Veloso aponta como um dos fatores de sua vaia, o não entendimento da esquerda que o Festival
era um local onde prevalece a questão da indústria cultural. Para Caetano, a esquerda via o Festival como um
palco da tradição da música brasileira. Caetano Veloso vai se apresentar com Os Mutantes, um trio que usava
as guitarras e portanto um conjunto de ié, ié, ié, com o objetivo de romper com a tradição. Conjuntos de ié-ié-
ié eram considerados como profanadores da autêntica música popular brasileira.

107
movimentos de protesto, resistência e mobilização política no mundo todo. O ano de 1968
foi significativo: “do maio libertário dos estudantes e trabalhadores franceses ao massacre
no México; da Primavera de Praga às passeatas norte-americanas contra a guerra no Vietnã;
do pacifismo dos hippies, passando pelo desafio existencial da contracultura – notadamente
as experiências com as drogas, tidas na época como contestação à moral e aos padrões
culturais burgueses -, até os grupos de luta armada, espalhados mundo afora” (RIDENTI,
2000, p. 36).
Além da guerra, havia outros motivos de descontentamento. O ano de 1968 é
reconhecido como emblemático no quesito efervescência. 153 O mundo parecia explodir em
função de várias contestações. O novo espírito de inquietação englobava passeatas,
protestos e agitações que rapidamente se expandiram por todas as partes do mundo, sendo a
juventude a principal alavanca.
No Brasil, a esquerda 154 , por onde transitavam artistas, intelectuais e estudantes,
entre outros, tinha como preocupação central a busca da identidade nacional e a politização
do povo brasileiro, numa perspectiva de voltar-se para as raízes (o homem simples do
povo) e romper com o subdesenvolvimento, constituindo-se como um projeto que era
marcado “pela utopia da integração do intelectual com o homem simples do povo
brasileiro, supostamente não contaminado pela modernidade capitalista, podendo dar vida a
um projeto alternativo de sociedade desenvolvida”(RIDENTI, 2000, p. 12).
Segundo Ridenti (2000), a esquerda brasileira era pautada por um romantismo
revolucionário 155 que atravessava as lutas políticas e culturais das décadas de 1960 e 1970,
desde as lutas armadas de setores da esquerda até as produções político-culturais na música
popular, no cinema, no teatro, nas artes plásticas e na literatura. A utopia revolucionária
romântica dessa época priorizava, sobretudo, o desejo de mudança da sociedade capitalista,
numa perspectiva centrada na ação do homem para transformar a história, num processo de
construção do homem novo, nos termos apontados por Marx e recuperados por Che
153
Ver sobre assunto em: Paes (1992); Matos (1981); Freitas (1993,) entre outros.
154
O termo “esquerda” será usado para indicar as forças políticas críticas da ordem capitalista estabelecida,
identificadas com as lutas dos trabalhadores pela transformação social. Numa perspectiva ampla, sintonizada
com a definição utilizada por Gorender, para quem “os diferentes graus, caminhos e formas dessa
transformação social pluralizam a esquerda e fazem dela um espectro de cores e matizes” (GORENDER,
1987, p. 07).
155
O termo romantismo revolucionário é utilizado por Ridenti como uma via de compreender as lutas
políticas e culturais dos anos 1960 e princípio dos 1970. Ele identifica em sua pesquisa, através dos relatos e
das produções artísticas, várias referências ao romantismo da época.

108
Guevara. A inspiração desse homem novo estava no passado, “na idealização de um
autêntico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do ‘coração do Brasil’,
supostamente não contaminado pela modernidade urbana capitalista” (RIDENTI, 2000, p.
24) 156 Tal perspectiva caracteriza-se como um ideal romântico.
O romantismo das esquerdas era um canal pelo qual o Brasil haveria de se
modernizar, porém numa perspectiva que fazia uso de uma volta ao passado, a busca por
um homem rural, camponês. 157 Esse romantismo de esquerda recorria ao passado para
trazer à tona elementos inspiradores para a construção da utopia do futuro. Este homem
novo seria a base da ação revolucionária, uma ação a partir do campo, pois acreditavam que
nos centros urbanos a modernidade capitalista já havia se cristalizado e as cidades
representavam os “túmulos de revolucionários”.
O passado era acionado como uma alternativa para modernizar a sociedade, porém,
pretendiam uma modernização que não produzisse a desumanização, o consumismo, a
supremacia da mercadoria e do dinheiro. Segundo Ridenti ( 2000), não se tratava de “um
romantismo no sentido da perspectiva anticapitalista prisioneira do passado, geradora de
uma utopia irrealizável na prática. Tratava-se de romantismo, sim, mas revolucionário. De
fato, visava-se resgatar um encantamento da vida, uma comunidade inspirada no homem
novo, cuja essência estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas
cidades” (RIDENTI, 2000, p. 25).
O romantismo torna-se uma via crítica da modernidade, compreendida como a
“civilização moderna engendrada pela revolução industrial e a generalização da economia
de mercado”, assinalada – numa perspectiva weberiana – pelo “espírito de cálculo, o
desencantamento do mundo, a racionalidade instrumental e a dominação burocrática (...)
inseparáveis do advento do espírito do capitalismo” (LÖWY e SAYRE, 1995, p. 35, 51-
70). A crítica a partir de uma visão romântica de mundo torna-se uma autocrítica da
modernidade, ou melhor, algo que é elaborado no interior da própria modernidade,
“caracterizada pela convicção dolorosa e melancólica de que o presente carece de certos

156
Como exemplos podemos citar: “Quarup” (1967), de Antônio Callado; “Ganga Zumba” (1963), de Carlos
Diegues e “Arena canta Zumbi” (1965), de Boal e Guarnieri.
157
O camponês era percebido por esta esquerda como um símbolo, afinal acreditavam que ele ainda não tinha
sido contaminado pelo capitalismo e a sociedade de consumo voraz que começa a se estabelecer de forma
mais substancial no Brasil.

109
valores humanos essenciais que foram alienados” (LÖWY e SAYRE 1995, p. 38-40).
Segundo Löwy e Sayre (1995),

A visão romântica apodera-se de um momento do passado real – no qual as


características nefastas da modernidade ainda não existiam e os valores
humanos, sufocados por esta, continuam a prevalecer – transforma-o em utopia e
vai modela-lo como encarnação das aspirações românticas. È nesse aspecto que
se explica o paradoxo aparente: o “passadismo” romântico pode ser também um
olhar voltado para o futuro; a imagem de um futuro sonhado para além do
mundo em que o sonhador inscreve-se, então na evocação de uma era pré-
capitalista. (LÖWY e SAYRE, 1995, p. 41).

A crítica à modernidade capitalista expressa no romantismo produz a formulação


dos valores positivos do romantismo, que se tornam requisitos indispensáveis na oposição à
dimensão adquirida pelo fetichismo da mercadoria e do dinheiro: 1o - A supremacia da
subjetividade do indivíduo e da liberdade do imaginário (vinculada à luta contra a
valorização e a padronização capitalistas, sendo assim, é diferente do individualismo
liberal); 2o - A exaltação da unidade ou totalidade, da comunidade da qual o individuo
participa e se realiza como tal, sem perder de vista que faz parte de uma união com outros
seres humanos e natureza, no conjunto orgânico de um povo. Assim, a procura por recriar a
individualidade e a comunidade humana torna-se indissociável da negação da fragmentação
da coletividade na modernidade. Nesse sentido, a crítica da modernidade e os valores
românticos positivos seriam “os dois lados de uma só única moeda” (LÖWY e SAYRE,
1995, p. 45-47).
Segundo Ridenti (2000), “é polêmico interpretar como românticas as diferentes
correntes artísticas brasileiras próximas do marxismo no período, como as do Teatro de
Arena, o CPC e o Cinema Novo, na medida em que elas se propunham “modernas e
realistas – e muito se discutiu e se discute se, em cada caso, esse realismo seria socialista
(como propunha a linha oficial da arte soviética nos anos 50), crítico (com influências de
Lukàcs ou Brecht), neo-realista (inspirado no movimento do cinema italiano do pós-guerra,
nos anos 40 e 50), ou sínteses inovadoras de todos eles” (RIDENTI, 2000: 56).
Certamente, esses movimentos revelavam-se como herdeiros da razão iluminista,
pois almejavam mostrar a realidade social objetiva, de classes, a ser cientificamente
elucidada, onde as “forças materiais determinam a história e o destino da humanidade – o

110
que permite classificá-los como realistas. Contudo, ao mesmo tempo, eles tinham
características românticas” (RIDENTI, 2000, p. 57), pois, não realizavam uma distinção
entre vida e arte; eram nacionalistas, recorrendo ao passado histórico e cultural do povo;
lançando mão das raízes populares como uma via de construção no futuro de uma nação
livre, “uma utopia autenticamente brasileira”, fazendo das manifestações artísticas um
instrumento de contestação do padrão de sociedade vigente. “Cada um desses movimentos
(e cada artista em particular) realizou à sua maneira sínteses modernas de realismo e
romantismo, que globalmente podem ser classificadas como romantismo revolucionário”
(RIDENTI, 2000, p. 57). Esses hibridismos e outros, como a conexão entre política e arte,
iram elaborar redes que passam a produzir vínculos sociais, como as questões que vão
gravitar em torno do eixo nacional-popular.
A respeito do choque entre românticos e iluministas no âmbito cultural, Marilena
Chauí (1987) tece considerações que apontam perspectivas interessantes sobre este embate
e que nos permitem entender a dinâmica das produções dos intelectuais e artistas da
esquerda nos anos 1960. Segundo a autora,

a perspectiva Romântica supõe a autonomia da cultura popular, a idéia de que,


para além da cultura ilustrada dominante, existiria uma outra cultura,
“autêntica”, sem contaminação e sem contato com a cultura oficial e suscetível
de ser resgatada por um Estado novo e por uma Nação nova. A perspectiva
ilustrada, por seu turno, vê a cultura como resíduo morto, como um museu e
arquivo, como o “tradicional” que será desfeito pela “modernidade”, sem
interferir no próprio processo de “modernização”. Românticos e ilustrados
pensam a Cultura Popular como uma totalidade orgânica, fechada sobre si
mesma, e perdem o essencial: as diferenças culturais postas pelo movimento
histórico-social de uma sociedade de classes (CHAUÌ, 1987, p. 23-24). 158

Grosso modo, a maior parte dos partidos, movimentos, artistas e intelectuais de


esquerda nos anos 1960 buscava compreender e expressar as diferenças culturais numa
sociedade de classes. Com isto, não permitiam que os enquadrassem como iluministas e
muito menos como românticos. “Mas parece que, embora tentando superar essas
perspectivas, eles em certas medida apenas as fundiram de diversas formas, ao buscar no

158
Eu diria baseado em Latour (2002; 2008) que as diferenças culturais são colocadas em ação pelas
mediações processadas no interior da formação das redes.

111
passado uma cultura popular autêntica para construir uma nova nação, ao mesmo tempo
moderna e desalienada” (RIDENTI, 2000, p. 57).
Colin Campbell, como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, sugere que a
partir dos anos 1960 o romantismo assume um papel de paradigma alternativo à matriz
cultural ocidental, tornando-se uma referência para além do movimento da contracultura e
da Nova Era, dos quais o romantismo é um dos eixos históricos – e passou a se constituir
uma referência mais generalizada.
Com isto, parece-me que a utopia revolucionária dos movimentos de esquerda,
assim como a revolução proposta pelos contraculturalistas tem uma base comum: o
romantismo. Obviamente que o termo não tem um sentido único, homogêneo e singular que
possa se encaixar de forma similar nos discursos desses segmentos. Mas, os fins de suas
práticas vão ao encontro de um compartilhamento da perspectiva romântica que acaba por
ser comungada por esses dois movimentos aparentemente díspares. Assim, em última
instância, suas propostas são românticas ao proporem uma sociedade melhor, mais justa e
harmônica, lançando mão de elementos do passado para uma projeção para o futuro.
Todavia, o que os torna diferentes, ao que parece, é forma como as mediações e os regimes
de enunciação são acionados por estes dois movimentos. Tanto a esquerda como os
contraculturalistas estão em busca de suas “utopias” e ambos acreditam que elas são
realizáveis. Podemos afirmar, então, que há um pano de fundo entre essas “versões”
românticas, embora a visão em relação as conexões utilizadas não fossem semelhantes.
Nesse sentido, numa perspectiva laturiana pode-se indicar que o social emergente
nesse momento promovia novos fluxos de circulação que aproximavam projetos a princípio
pouco afinados. Novas conexões, portanto, estavam sendo engendradas. Tanto o
romantismo presente na contracultura como nos movimentos de esquerda têm como meta a
construção do homem novo, a utopia do futuro e o encantamento da vida através de uma
sociedade mais fraterna, seja baseada em Marx e em Che Guevarra, ou na perspectiva da
Era de Aquário. Ambos os movimentos buscam a humanização da vida. 159

159
A Nova Era, cujo capital ideacional pode ser percebido a partir de 1960, busca uma “visão
transformadora” de si e do mundo. A crença na Era de Aquário conduz a pensar que alterações da consciência
serão vistas como libertação, como “transformação”. Busca-se uma realidade, chamada também de “nova
consciência cósmica”, que aspira trazer uma “Nova Era” de esperança e satisfação humana.

112
3.2 A produção artística sob o eixo nacional-popular: construção e quebra de
fe(i)tiches transportadores e mediadores

No Brasil, os partidos de esquerda e outras forças esquerdistas (correntes


nacionalistas ou do nacional-popular) antes da Revolução Militar de 1964 buscavam uma
identidade brasileira e expressavam uma reação ao imperialismo norte-americano, na
medida em que tentavam, através da arte, conscientizar o povo e superar o
subdesenvolvimento. Isso vai refletir no tipo de arte proposta, que acaba por se desdobrar
em reações negativas às tentativas de alinhamento com as vanguardas internacionais e a
propostas que se diferenciassem da linha de produção cultural baseada no nacional-popular.
A esquerda em geral era marcada por um vínculo com o PCB, nos CPCs e na UNE,
e por um estreito relacionamento com os intelectuais e artistas. É importante esclarecer
essas relações, na medida em que são as perspectivas construídas nesses grupos que vão
estar presentes nas reações ocorridas nos Festivais de 1967 e 1968 e no julgamento da
esquerda em relação ao Tropicalismo e vice-versa.
Assim, havia no Brasil uma vertente da cultura que era vinculada à esquerda que
gerou o cinema novo, os CPCs da UNE, o grupo “Opinião”, que cria uma ideologia baseada
na conexão entre intelectuais, artistas e o povo brasileiro visando sempre a construção da
identidade nacional e o resgate de um autêntico homem do povo. Essa esquerda defendia
uma arte voltada para a conscientização do povo e ficou conhecida como nacional-popular.
Tal perspectiva caracteriza o que Ridenti (2000) identifica como sendo um romantismo
revolucionário que acabaria perpassando as produções de nossos artistas que estariam “em
busca do povo brasileiro.”
A cultura de esquerda visava buscar o autêntico homem do povo brasileiro –
enraizado no interior, no coração subdesenvolvido do Brasil – que serviria de base para
construir o homem novo, o homem do futuro da sociedade. Havia, portanto, a crença de que
a arte conectada com a política, ou o contrário, produziria o homem capaz de realizar a
revolução socialista, sendo que esse revolucionário, como já foi dito, surgiria do
“autêntico” homem do povo brasileiro, que em geral era percebido no homem do campo ou
no migrante que fez a trajetória do campo para a cidade. Assim, os artistas engajados
constroem nesse tipo de arte e através dela (teatro, filme, poesia, musica entre outros), a

113
perspectiva de que deveriam trazer a tona os revolucionários adormecidos nesse “autêntico
homem do Povo,” seus fe(i)tiches, no sentido proposto por Latour (2002). 160
Dessa forma, o romantismo revolucionário (RIDENTI, 2000) vai ser o pano de
fundo para as atividades desenvolvidas por artistas ligados ao comunismo, vinculados ou
não ao Partido Comunista Brasileiro. Neste item, desdobrado em dois subitens, abordarei
primeiramente as questões que envolveram as produções do Centro Popular de Cultura do
Rio de Janeiro e sua questão com a arte engajada. No subitem seguinte apresentarei
aspectos relativos à organização do grupo Opinião, já num contexto de regime militar e as
conexões que são realizadas a partir da realização do show “Opinião”.

3.2.1 A esquerda sob a perspectiva do CPCs, UNE e reavaliações

Neste subitem abordarei as perspectivas que envolvem a influência do PCB nas


produções artísticas do início da década de 1960, a organização dos Centros Populares de
Cultura e a ideologia de que fora da política não existe arte, ou que a arte tem que ser
engajada. É possível perceber através dos depoimentos o modo como as conexões advindas
do encontro de arte e política produziram vínculos sociais a partir da conexão, mas
mantinham velhas mediações em termos de uma moral estética, onde a subjetividade não
tinha autonomia.
Com a intenção de indicar como estes segmentos realizavam conexões entre arte e
política, apresentarei trechos de depoimentos de alguns artistas que eram féis partidários
desse tipo de produção artística, onde retrospectivamente fazem uma autocrítica em relação
a terem valorizado a conscientização política em detrimento a uma arte esteticamente
apurada, de vanguarda, e fruto da criação espontânea do artista.
Antes do golpe militar de 1964, esses indivíduos adotavam essa conduta na medida
em acreditavam que se manifestando dessa maneira conseguiriam atingir o povo e provocar
nele uma conscientização política – das massas – que resultasse na revolução. Por fim,

160
Segundo a tradutora Sandra Moreira, Latour (2002) usa o termo faitiche. O termo carrega a sutileza de
formar um jogo de sentido e sonoridade entre as palavras faitiche e fétiche. Em sua tradução ela vai usar
fe(i)tiche, na tentativa de conservar esse jogo sutil, na medida que “feito” e “fetiche”pode nos remeter ao
sentido proposto pelo autor, onde primeiro “parece remeter à realidade exterior”, e o segundo, “as crenças
absurdas do sujeito”. Cf. Nota do tradutor, (LATOUR, 2002, p. 06).

114
posteriormente, acabam avaliando que nem fizeram boa arte e nem atingiram as massas.
Apresentarei alguns exemplos dessa trajetória.
No início dos anos 1960, o PCB tinha seus Comitês Culturais que realizavam
reuniões específicas para comunistas nas áreas de teatro, cinema, música etc. Em geral
eram artistas militantes e simpatizantes. Sobre as atuações desses comitês, Leandro Konder
(1996) esclarece:

O comitê cultural era um órgão do Partido para atuar no front da política


cultural. Eu participei dessa experiência, dessa tentativa de definir os critérios de
uma política cultural, os métodos adequados numa nova época. A grande
preocupação era de, no diálogo com os produtores e difusores de cultura, exercer
uma influência no sentido de fortalecer elementos na atividade deles que
contribuíssem para um esclarecimento, uma consciência mais crítica, social,
política. (...) O comitê cultural não puniu ninguém, não excluiu. Não ditava
regras, não impunha coisa alguma. Ele nasceu dessa disposição – muito
interessante, pioneira – de atuar junto a artistas, escritores, e aí tinha áreas que se
organizavam especificamente para discutir seus problemas, mas sempre com
algum representante do Comitê Cultural. (...) Tinha uma espécie de comissão
executiva, que dirigia o Comitê Cultural (eu era do Comitê Cultural, mas não da
comissão executiva, de que fui uma vez suplente). O Comitê Cultural, em geral,
tinha a função de dar assistência. O assistente – sempre um sujeito da comissão
executiva – não decidia nada, só coordenava os trabalhos (apud RIDENTI, 2000,
p. 72) 161

Os Comitês de cultura estavam presentes em várias cidades, antes e depois de 1964,


mas os depoimentos aqui citados vão se aplicar ao Comitê do Rio de Janeiro, considerada
como capital cultural. No entanto, as colocações sobre esse comitê se aplicam aos outros.
Assim, no início dos anos 1960, o Comitê Cultural do PCB não determinava regras às
atividades desenvolvidas pelos artistas comunistas, ou seja, havia uma tendência a respeitar
a autonomia em relação às suas produções mesmo sendo essas marcadas de maneira
distinta pelo ideário comunista. “De modo que seria equivocado supor, por exemplo, que as
idéias dos militantes e simpatizantes do PCB no interior do CPC da UNE expressavam
posições do Partido” (RIDENTI, 2000, p. 75).
Os Comitês de Cultura, ao que parece, não intervinham de forma direta na produção
cultural, sendo que seu objetivo era estar em contato com a cultura nos seus mais diversos
níveis. Todavia, os movimentos culturais pré- 64 eram perpassados por influência do PCB,
das diferentes correntes marxistas e pelo ideário nacionalista e trabalhista. Alguns filiados

161
Trecho da entrevista concedida por Leandro Konder em 25 de janeiro, no Rio de Janeiro. 1996.

115
ao PCB também faziam parte do CPC. Porém, alguns partidários do PCB também faziam
críticas as posturas adotadas pelo CPC, que, por sua vez, tinha sua forma de se expressar,
de modo que suas posturas se diferenciavam das propostas pelos Comitês, como podemos
perceber nas colocações de Konder (1996):

A idéia do Comitê Cultural era preservar uma certa disponibilidade para lidar
com a cultura nas suas mais diversas formas, nos mais diversos níveis. Então, o
projeto do CPC era específico de um grupo de comunistas, que nós
respeitávamos. Mas que estava desenvolvendo um trabalho peculiar, em relação
ao qual eu tive algumas divergências. (...) o CPC nasceu muito sectário. O
documento programático, de autoria do Carlos Estevam Martins, era um negócio
meio aterrador, aquela divisão de uma arte para o povo, arte popular
revolucionária era boa, as outras duas eram alienadas. Eu achei um horror.
Posteriormente, o CPC na prática foi retificando a linha, mas eu fiquei sempre
preso àquela primeira imagem (apud RIDENTI, 2000, p. 76). 162

As diretrizes do “Anteprojeto do Manifesto do CPC” foram escritas pelo sociólogo


Carlos Estevam Martins, que foi o primeiro diretor do CPC, que esteve à frente deste cargo
até o término de seu mandato em dezembro de 1962; depois assumiu provisoriamente
Carlos Diegues, que ficou por três meses, sendo logo substituído por Ferreira Gullar, que
ficou na direção até seu fechamento em 1964, com o Golpe. Essas diretrizes vão sofrer
críticas e vão ser cada vez mais questionadas. No entanto, mantinha-se a perspectiva da
defesa de uma arte nacional e popular, direcionada para a conscientização. Alguns
segmentos vão discordar deste tipo de prática e vão procurar uma alternativa por alguns
artistas em direção a uma arte politizada, mas esteticamente revolucionária, como foi o caso
de Carlos Diegues. 163
Dias Gomes também indica que mesmo sendo amigo e companheiro de partido de
muitos membros do CPC, nunca se tornou um integrante, pois não concordava com suas
concepções. Dias Gomes era integrante e já havia dirigido o Comitê Cultural do PCB no
Rio de Janeiro, e vai indicar que o Comitê e o CPC “eram duas coisas completamente
diferentes; o CPC, apesar de ter vários membros do Partido, não era subordinado a esse
Comitê de modo algum. Havia um relacionamento normal de aliados” (RIDENTI, 2000, p.

162
Trecho da entrevista concedida por Leandro Konder em 25 de janeiro, no Rio de Janeiro. 1996.
163
O Cinema novo é um exemplo disso e do qual Carlos Diegues fez parte. O esteticamente revolucionário
vai em direção à frase que ficou célebre, isto é, “uma idéia na cabeça e uma câmera na mão”. Esta era a
perspectiva do Cinema Novo.

116
76). Também eram tranqüilas as relações entre militantes comunistas do campo cultural
com a direção do PCB. A esse respeito, Carlos Nelson Coutinho (1996) afirma o seguinte:

Se agente não se metesse em política, [a direção] também não se metia em


cultura. Então, você podia defender o que quisesse, Tropicalismo ou não,
contanto que não dissesse que a luta armada era a solução, ou que Lênin estava
superado, que a União Soviética era uma merda. Se você não falasse nisso, acho
que ninguém lhe aborrecia muito. O que explica, a meu ver, o fato de que só saiu
naquele momento do PC quem discordou da linha política. Ninguém saiu do PC
porque foi impedido de se expressar culturalmente (apud RIDENTI, 2000, p.
77). 164

Embora não houvesse um direcionamento do PCB sobre a produção artística, os


militantes e simpatizantes do meio das artes não deixavam de ter a preocupação com o
caráter político e de nacionalidade em suas produções. Alguns se mantinham fiéis ao
propósito da arte nacional e popular, outros buscavam uma arte politizada, mas de
vanguarda (esteticamente revolucionária e em busca do Brasil, como o pessoal do Cinema
Novo). Nestas perspectivas, porém, vão sempre estar presentes o engajamento político e a
busca pelas resoluções dos problemas sociais do homem.
Assim, vemos nas produções dos artistas engajados, militantes e simpatizantes do
comunismo, uma crença de que ocorreria uma revolução a partir de um trabalho incessante
na área da cultura, com a busca de uma pureza ou da tradição cultural que estava presente
no camponês e que seria capaz de levar à conscientização e, por fim, à revolução. A arte
não era vista como um domínio à parte, ela não era percebida sem a ação política, ficando a
questão estética subordinada à questão política. De modo que, vemos nesta busca
revolucionária o encontro de domínios distintos (política e arte; público e privado), 165
constituindo-se como uma política híbrida e uma arte igualmente híbrida, tendo como pano
de fundo a tradição ou pureza da cultura, que no caso é a busca das raízes do povo
brasileiro – homem do campo e ainda não contaminado, visto como puro e capaz de se
tornar agente da revolução.

164
Trecho da entrevista realizada em 24 de janeiro, no Rio de Janeiro. 1996.
165
Nas palavras de Carlos Diegues, “era como se não nos permitíssemos separar as coisas. (...) Estávamos de
tal modo convencidos de que iríamos construir um mundo melhor que nem alimentávamos dúvidas: no dia
seguinte, o mundo seria feliz e risonho graças aos nossos filmes, peças etc. Então, isso implicava uma
responsabilidade tão grande que a vida privada deixava de existir. A escrita privada e a vida pública tinham se
tornado um só universo. (...) O trabalho cotidiano e até mesmos as idéias já não nós pertenciam, e sim à
comunidade que participava daquilo” (MORAES, 1991, p. 107).

117
Nessa direção, foram os CPCs os maiores divulgadores da perspectiva de que “não
existe arte fora da política”. Estes centros têm sua origem no Rio de Janeiro a partir de uma
movimentação do Teatro Arena, que saiu de São Paulo para realizar uma temporada no Rio
de Janeiro. Havia uma ligação do PCB com o Teatro Arena. Isso ocorria em função de que
vários de seus integrantes faziam parte do Comitê Cultural. Sobre esse assunto, Vera Gertel
(1995) indica:

O Rio na época era muito mais ainda a capital cultural. Então, nós viajamos
muito pelo Brasil inteiro. Aqui no Rio, começou a haver uma procura de gente
que fazia cinema, que começou a se vincular, gente também ligada ao Partido,
gente de jornal. Aqui a efervescência política e cultural na época era maior do
que em São Paulo. (...) A efervescência era geral no país. A gente ia para o
teatro discutir as reformas de base, tinha-se a impressão de que o país ia mudar,
as reformas iam ser feitas. Enfim, a vida era muito diferente: você não tinha
carro, indústria automobilística [e sociedade de consumo desenvolvida]. A
criatividade era muito grande. (...) Terminada essa temporada, de um ano e
meio, o Arena volta para São Paulo. Mas o Vianna e o Chico de Assis
resolveram ficar no Rio, para fundar o CPC (apud RIDENTI, 2000, p. 106). 166

OduvaldoVianna Filho (o Vianinha), já no final da temporada do Teatro Arena no


Rio de Janeiro, começa a escrever “A mais-valia vai acaba, seu Edgar” com a intenção de
empreender um contato com as camadas mais populares, ou seja, camadas que o Teatro de
Arena não atingia. Para a elaboração dessa peça, ele necessitava de um acompanhamento
de alguém que entendesse dos conceitos referentes à mais-valia. Assim, buscou essa
acessória científica no Instituto Superior de Estudos Sociais (ISEB), na figura de Carlos
Estevam Martins, na época um jovem sociólogo, que foi procurado por Chico de Assis e
que aceitou realizar este acompanhamento (BARCELLOS, 1994).
Assim, a peça foi encenada num teatro da Faculdade de Arquitetura e seu público
era de pessoas identificadas com o grupo de teatro. Esse público era constituído
basicamente de estudantes e, para manter integrados os indivíduos que haviam
acompanhado a peça, os promotores do evento decidiram organizar o curso de História da
Filosofia, que teve como professor José Américo Pessanha. Procuraram, então, a UNE para
sediar o curso, que recebeu bem o grupo. Logo depois resolveram desenvolver em conjunto
o projeto de fazer uma arte voltada para o popular em diversos campos da cultura: teatro,
cinema, literatura, música e artes plásticas. Esse Projeto foi chamado Centro Popular de

166
Trecho do depoimento de Vera Gertel realizado em 06 de setembro, no Rio de Janeiro. 1995.

118
Cultura, com a participação de várias pessoas, com destaque para Vianinha, Leon Hirszman
e Carlos Estevam. A parte que coube a UNE foi a de emprestar seu prédio, sendo que o
CPC teve autonomia de ação, mesmo porque ele conseguia manter-se com a venda dos
ingressos de seus espetáculos, conseguindo cobrir sua folha de pagamento.
O CPC foi eficiente em suas ações e suas atividades ficaram conhecidas pelo país
como a “UNE Volante”, que levou participantes de CPC aos principais centros
universitários brasileiros no primeiro semestre de 1962, divulgando suas propostas de
“intervenção dos estudantes na política universitária e na política nacional em busca das
reformas de base, no processo da revolução brasileira” (RIDENTI, 2000, p. 108),
focalizando o fim do subdesenvolvimento e a afirmação da identidade nacional do Povo. 167
“A UNE Volante serviu como base para a organização em termos nacionais do grupo
político então hegemônico no movimento estudantil, originário da esquerda católica, que na
época” vai se articular “para constituir uma nova organização de esquerda, a Ação Popular
–cujo principal dirigente, Herbert José de Souza (Betinho), acompanhou a caravana.
Segundo depoimento de Aldo Arantes, na época presidente da UNE, a Jalusa Barcellos
(1994)”.
Segundo Ridenti (2000, p. 108), o sucesso da UNE Volante e a posterior
organização em nível nacional da Ação Popular, provavelmente não se constituiriam sem
os eventos teatrais do CPC, no qual o Partido Comunista tinha muitos representantes. “Esse
paradoxo só se explica porque, no pré-1964, a união de forças de esquerda pelas reformas
de base era mais forte que as rivalidades entre elas, que só aflorariam mais intensamente no
pós-1964, tão mais forte quanto mais se estreitavam as bases sociais das esquerdas”
(RIDENTI, 2000, p. 108-109). De acordo com Betinho, na vigência da UNE Volante, “a
diretoria da UNE conquistava as mentes, através de seu discurso, e o CPC conquistava os
corações, através da música, do teatro, da arte etc.” (BARCELLOS, 1994, p. 251).

167
A UNE Volante vai causar impacto por onde passou e vai semear vários CPCs no país, na medida em que
naquela época o Brasil não contava com uma cobertura nacional das redes de TV, a comunicação entre os
estados era complicada em função da deficiência da rede viária. Muitos dos primeiros integrantes do primeiro
CPC do Rio de Janeiro vão ficar em centros estudantis de outros estados para implantar os CPCs nas regiões
por que passavam. Muitos dos nomes que se destacaram na literatura, cinema, teatro, entre outros, eram
vinculados aos CPCs, como por exemplo: Waly Salomão, Tom Zé, Carlos Nelson Coutinho, entre outros
nomes vinculados ao CPC de Salvador. O de Belo Horizonte teve, por exemplo, como participante, o poeta
Afonso Romano de Sant`Anna. Cf: Barcellos (1994); Moreira (1986); Ridenti (2000).

119
Assim, os CPCs, através de seus integrantes, militantes ou simpatizantes da
perspectiva comunista, divulgaram uma arte que tinha como objetivo a conscientização
política voltada para o elemento popular, uma busca das raízes na cultura brasileira, no
povo. A centralidade da prática artística estava na conscientização e na luta política tendo
como eixo o nacional-popular. Essas perspectivas vão influenciar na reação contundente a
qualquer tipo de inovação que se proponha no fazer arte no país.
Como afirmei anteriormente, a preocupação com uma produção artística
esteticamente apurada ou fruto espontâneo da criação era algo fora da concepção desses
artistas. A arte deveria levar à revolução, mas não havia espaço para uma arte
revolucionária. Numa perspectiva diferenciada, Jorge Mautner, considerado um precursor
dos poetas marginais vai em 1964, num espaço reservado para ele no Jornal Última Hora,
chamado “Bilhete do Kaos” envia uma “mensagem” para os membros do CPC:

Minha missão é destruir o CPC. Pois todo artista é um sado-masoquista. A


consciência do artista sempre está se sentindo culpada, como se tivesse praticado
um crime. Sendo assim, qualquer propaganda bem bolada atinge o artista, e ele
fica com medo de ser alienado, então estraga. O maior crime que o CPC
cometeu foi assassinar poetas e pintores em nome da revolução, enquanto se
deve fazer o contrário, a revolução dentro da arte, dentro do próprio artista. O
que é grave é que essa geração do CPC vai forjar a cultura de amanhã, conheço
certos deles. Por isso minha missão e liberta-los da sanha de neuróticos, como
Ferreira Gullar, por exemplo, que encontrou no suposto “esquerdismo” o
remédio para sua paranóia, e agem como se fossem santos, dividindo aqui, o
bem, e ali, o mal, numa atitude de selvagerismo anticultural, que no fundo é uma
frustração. Quero liberta-los da sanha desses tarados que em nome do
movimento mais puro da humanidade, isto é, a libertação do homem, exercem o
mais nojento terror psicológico existente. São fanáticos, e aposto que até
Maiakovski e Kandinski seriam expulsos do CPC. 168

Como afirmei anteriormente, a preocupação com uma produção artística


esteticamente apurada ou fruto espontâneo da criação era algo fora da concepção desses
artistas. Não se cogitava abrir espaço para questionamentos existenciais ou liberdades
estéticas.
A produção cultural e artística era um instrumento de resgate do autêntico homem
do povo brasileiro. O foco era o sertanejo ou o migrante nordestino. Um exemplo disso foi
a decisão de Eduardo Coutinho filmar a trajetória do líder nordestino das Ligas

168
MAUTNER, Jorge. Bilhetes do Kaos sobre sexo, futebol e sangue. Última Hora. 01 de fevereiro. 1964.

120
Camponesas, João Pedro Teixeira, e sua luta pela reforma agrária. Ele acabou sendo
assassinado por proprietários de terra em 1962. Este crime produziu efeitos nos estudantes e
assim se tornou um tema perfeito para o CPC da UNE trabalhar. Eduardo Coutinho, então,
elaborou o projeto que foi aceito pelos seus companheiros. O filme recebeu o nome de um
título de um poema de Ferreira Gullar, “Cabra marcado para morrer”. Sobre a aceitação de
seu projeto, Coutinho esclarece: “O pessoal do CPC fez uma leitura de roteiro, que era
ruim, mas ninguém criticou (...). O Vianinha fez a leitura, numa mesa de cerca de seis
pessoas. Foi o único que leu – ele era tão fanático! – e deu uns palpites, umas críticas; os
outros não falaram nada” (apud RIDENTI, 2000, p. 98). 169
Com o Golpe de 1964, os CPCs foram fechados e o filme não se completou. Só na
primeira metade da década de 80 do século passado que Coutinho concluiu o que havia
começado no início da década de 60. O intervalo entre o golpe e a abertura permitiu que
algumas questões fossem refletidas, inclusive a própria forma de fazer arte dos CPCs. Isso
só foi possível em função do intervalo de 20 anos entre o início de sua produção e sua
posterior conclusão. O filme mostra cenas filmadas na época e a posterior trajetória da
viúva, Elizabeth, que perseguida foi obrigada a fugir, a adotar nova identidade e viver numa
espécie de exílio no Rio Grande do Norte. Assim, o filme vai além da recuperação da
história dos protagonistas, na medida em que também torna possível realizar uma leitura do
passado do cinema, da cultura e da política após 20 anos do início da ditadura que então se
encerrava. “A intenção final do diretor, na versão final, pretende-se ser crítica em relação à
prepotência do CPC e do Cinema Novo acerca do conhecimento do popular (...)”
(RIDENTI: 2000, p. 98).
Coutinho, ao concluir seu filme em 1984, parece perceber que a arte que ele
praticava no CPC acabava por ter um distanciamento da realidade do povo, que se
constituía, na verdade, mais a visão que os artistas e intelectuais tinham do povo. Nesse
sentido, ele argumenta, após uma distância do evento: “Eu fui descobrindo o prazer de
descobrir, no outro, não o que eu quero que ele diga. (...) Não me importava muito saber se
a Elizabeth continuava a ser uma heroína socialista. Eu achava que o destino dela – e o que
ela fosse – indicava uma coisa muito forte, sem contar que essas pessoas anônimas tinham

169
Entrevista realizada em 24 de janeiro, no Rio de janeiro. 1996.

121
mais força, para mim, do que o destino de Julião ou do Prestes” (apud RIDENTI, 2000, p.
98). 170
O sociólogo Paulo Menezes (1995), ao realizar um artigo sobre o filme “Cabra
marcado para morrer”, aponta um aspecto delicado e relevante em relação ao filme ao
indicar que, embora Eduardo Coutinho tivesse a intenção de apresentar de forma neutra a
voz dos camponeses, acabou por sobrepor à fala dos camponeses o seu próprio discurso e,
involuntariamente, silenciando- os, prevalecendo, assim, o discurso do diretor. Menezes
acusa Coutinho de reforçar os “mesmos artifícios que primordialmente, o filme se
esforçaria em denunciar” (MENEZES, 1995, p. 107) e que “ao tomar a palavra do outro
como se fosse a sua, acaba por condená-lo irremediavelmente ao silêncio” (MENEZES,
1995, p. 124).
“Cabra marcado para morrer” apresenta-se como um exemplo sofisticado, na
medida em que há a possibilidade de se analisar os discursos da época e sua posterior
revisão. Isso foi possível graças à forma como ele foi elaborado, havendo uma interrupção
de anos entre seu início e sua conclusão. Essa ocorrência permite que se possa perceber a
superposição contraditória de discursos que são apresentados na tela, mesmo que sob a
ótica ou enquadramento do diretor. Assim, tem-se o discurso da UNE e da esquerda dos
anos 1960 e sua autocrítica na década de 1980, os depoimentos dos entrevistados – diversos
entre si – que reafirmam e também desdizem simultaneamente os discursos de esquerda e
do regime militar. Também estão presente as falas do homem do campo, que não deixam de
se colocar, mesmo que suas vozes estejam superpostas a outras falas ou misturadas a elas.
Enfim, “o filme é revelador das contradições das classes médias intelectuais, em busca da
aproximação do suposto autêntico homem do povo” (RIDENTI, 2000, p. 99).
Esta postura de afirmar ou contradizer os discursos que estão envolvidos nesse filme
me parece – além do processo histórico que se impõe, na medida em que os fatos históricos
têm um tempo e um espaço delimitado, assim como suas interpretações – estar relacionada
à questão do mundo contínuo, tempo contínuo, ou tempo dobrado (VELHO, 2005, p. 304),
onde há uma “dinâmica transformativa dos sistemas de relações – no fluxo contínuo das
mediações, como quer Latour” (VELHO, 2005, p. 304). Assim, partindo dessa referência
circulante, o que ocorre em relação à avaliação autocrítica dos artistas da “arte engajada” é

170
Entrevista realizada em 24 de janeiro, no Rio de janeiro. 1996.

122
que eles, após o evento, ou o fim da utopia da revolução, se permitem revisar suas posturas
em função de já estarem em um contexto onde estão sob a influência da multiplicação dos
regimes de enunciação na prática da arte, da política e na própria sociedade. Eles já
ultrapassaram os meios de transporte que utilizavam por ocasião da vigência dos CPCs.
Assim, tanto a ocasião das suas avaliações autocríticas já nos anos 1980 como a
crença de que conheciam o que eles chamavam de “autêntico homem do povo” e a
“constatação” de que esta crença era ilusória, estão relacionadas com o incessante trabalho
das redes, ou seja, elas se desdobram e há a constituição de novas redes que se caracterizam
pela sua heterogeneidade e autonomia.
A tentativa de aproximação do “autêntico homem do povo” me parece que se
apresentava como um fe(i)tiche. E nesse caminho, devemos considerar os mediadores e as
mediações que eram utilizadas e realizadas tanto por parte dos artistas que buscavam
alcançar esse “homem do povo”, como também que esse homem do povo mediava essas
informações e produzia suas próprias conexões. Este processo, como já indiquei, não tem
controle; há os desdobramentos com seus porta-vozes, que são livres. Daí surgirem
constantemente novos regimes de enunciação com quebra e restauração de fe(i)tiches. 171
Assim, alguns membros dos CPCs, após seu fechamento em 1964 e com a
ascendente noção das esquerdas de que a “revolução” que almejavam tinha sofrido uma
derrota contundente com a implantação do regime militar e a vitória do projeto de
sociedade dos setores da direita, irão, já em um contexto democrático, na década de 1990,
reavaliar, revisar “autocriticamente” seus procedimentos. Nesse sentido, um dos principais
dirigentes do CPC, Ferreira Gullar vai indicar que:

O grande erro do CPC foi dizer que a qualidade literária era secundária, que a
função do escritor é fazer de sua literatura instrumento de conscientização
política e atingir as massas, porque se você for sofisticado, se fizer uma
literatura, um teatro, uma poesia sofisticada, você não vai atingir as massas. (...)
Nós nem fizemos boa literatura durante o CPC, nem bom teatro, nem atingimos
as massas. Então, nós sacrificamos os valores estéticos em nome de uma tarefa
política que não se realizou porque era uma coisa inviável (apud RIDENTI,
2000, p. 111) 172

171
Segundo Latour (2002, p. 63), nossos fe(i)tiches, ainda que destruídos, encontram-se de tal forma
remendados, que eles remetem à prática o que a teoria só pode apreender sob dupla forma da quebra e da
restauração. Esta é nossa tradição, a dos destruidores e dos restauradores de fetiche, estes são nossos
ancestrais, a serem respeitados sem excessivo respeito, como se faz em toda linhagem.
172
Entrevista realizada em 23 de janeiro, no Rio de Janeiro. 1996.

123
Também nessa direção vai a autocrítica de Aquiles Reis, membro do conjunto
MPB-4, que se originou em 1963, na cidade de Niterói, com o nome de Quarteto do CPC e
que após a proibição dos CPCs adotou o nome pelo qual é conhecido atualmente. Reis
avalia que “a música, era um instrumento daquilo em que eu acreditava, que era
conscientizar as pessoas através da arte. Tentar modificar a cabeça das pessoas, contar um
caminho novo de uma vida melhor, através dessa atuação com a música. A música
realmente era um instrumento [de luta política].” (apud RIDENI, 2000, p. 111-112). 173
Vera Gertel, ao observar que o CPC se originou de um desdobramento do Teatro
Arena, comenta sobre as perspectivas do modo de se fazer arte e os seus objetivos, tecendo
também observações críticas às pretensões de se fazer uma arte politizada para o povo:

O Boal achava que o negócio era continuar no Arena, trabalhando e burilando as


coisas. Mas o Arena começou a ficar pequeno para o Vianna, que tinha a
intenção de ampliar essas platéias. O problema era fazer o teatro popular.
Ninguém sabia bem o que era isso, mas se queria chegar a ele, não só no teatro,
mas à arte popular. Hoje a gente pode fazer uma crítica a isto. Mesmo o CPC
chegou a fazer sua autocrítica de levar teatro para as favelas, para os morros, a
linguagem é outra. Como um cara da classe média podia conseguir uma
linguagem, como se comunicar com um favelado, com o povo? Era complicado
(apud RIDENTI, 2000, p. 107). 174

O grande eixo norteador do fazer artístico dos CPCs é reavaliado criticamente anos
depois por seus integrantes. Na época, o importante era trazer à tona as tradições culturais
populares no processo da revolução brasileira. Assim, o CPC deveria dedicar-se a
promover, segundo Denoy de Oliveira (1995) “um trabalho da cultura das camadas pobres,
do povo, dessa chamada cultura popular”. Toda a produção do CPC (teatro, cinema,
literatura e música popular) estava vinculada à perspectiva que julgavam ser a função da
arte, ou seja, desvelar as raízes do povo. “Isso tudo fazia parte de um movimento que nós
sabíamos que estava ligado às raízes do povo” (apud RIDENTI, 2000, p. 112). 175
Assim, a baixa qualidade e o descarte da preocupação com a estética das produções
estavam vinculados à perspectiva de que através da arte poderiam realizar a revolução.
Sobre esse assunto Denoy de Oliveira indica que naquele contexto eles acreditavam que “só

173
Fragmento da entrevista realizada em 27 de novembro, em São Paulo. 1996.
174
Trecho do depoimento de Vera Gertel realizado em 06 de setembro, no Rio de Janeiro. 1995.
175
Comentários realizados em entrevista concedida a Ridenti em 14 de novembro, em São Paulo. 1995.

124
tinha uma coisa a fazer: era a República Popular. (...) Nós acreditávamos que estava
acontecendo” (apud RIDENTI, 2000, p. 112). 176
Na época, como mostra o depoimento de Denoy de Oliveira, eles tinham a crença
que suas atividades estariam promovendo a revolução, na medida em que julgavam estar
transformando as classes populares em revolucionários. Porém, anos depois percebemos em
diversas falas a “decepção” e a constatação do equivoco que foi a absoluta crença de que
conheciam o que chamavam de “autêntico homem do povo”, e com isso ser possível
promover uma conscientização.
No que diz respeito à constatação de que eles não conseguiram falar às massas ou
atingi-las com o seu “discurso” de “arte popular” voltada para desvelar as raízes do povo,
devemos considerar que o que eles pensavam ou consideravam ser um fracasso de
comunicação, pode ser interpretado no sentido de que “não se pode reduzir a comunicação
à transmissão de mensagem” (VELHO, 2005, p. 304), na medida em que ela se realiza em
cadeia, onde não há simples intermediários e sim transporte e tradução que adquire
autonomia através de “seus modos de disposição e rebatimento,” onde “a informação nunca
é simplesmente transferida, pagando por seu transporte um encargo pesado em
transformações (...)” (VELHO, 2005, p. 301).
A avaliação autocrítica de muitos integrantes do CPC é percebida por alguns como
o resultado de um amadurecimento artístico. Nesse sentido, Ferreira Gullar aponta o
desdobramento do seu fazer poético posterior:

Eu fui desenvolvendo meu trabalho, comecei a criticar a própria atitude do CPC


e a desenvolver uma linguagem, buscar uma concepção da arte que juntasse a
coisa cotidiana – que eu considerava alimento da própria arte – e a coisa
revolucionária, e o protesto contra a dominação, com a poesia mais sofisticada
com essa coisa cotidiana, banal. [...] O poema sujo é a busca realmente de juntar
as duas coisas. O poeta delirante, existencial e formalmente audacioso que eu fui
na Luta corporal com o cara solidário politicamente, que quer mudar o mundo
(apud RIDENTI, 2000, p. 113). 177

Todavia, há outros autores, como Iná Camargo Costa, que não excluem as
limitações do CPC, mas julgam as autocríticas dos seus ex-membros como um retrocesso
político e estético (COSTA, 1996). Ela aponta em seu livro “A hora do teatro épico no
176
Comentários realizados em entrevista dada a Ridenti em 14 de novembro, em São Paulo. 1995.
177
Entrevista realizada em 23 de janeiro, no Rio de Janeiro. 1996.

125
Brasil” uma “progressiva submissão do teatro à indústria cultural, a partir de 1964,
deixando de lado a busca por caminhos revolucionários na arte e na política, que à sua
maneira era realizada pelo CPC, a experiência brasileira mais próxima do agit-prop
europeu dos entreguerras” (apud RIDENTI, 2000, p. 113). 178
A arte produzida por setores de esquerda mantinha-se atrelada a concepções pré-
capitalistas e à tradição. Essa postura “conservadora” num contexto que processava
mudanças vai levar a um“desgaste” e impraticabilidade desse tipo de estética. A revolução
que os artistas vinculados à esquerda pretendiam realizar através da arte acabou perdendo
de vista as transformações que vinham se apresentando. Se “recusaram” a assimilar novas
tendências em um contexto onde há a multiplicação de regimes de enunciação que se
fizeram presentes com a indústria cultural. A década de 1960 foi apresentando engrenagens
que possibilitavam a constituição de redes com infinitas possibilidades e onde outras redes
acabam inevitavelmente se cruzando.
Após o golpe, e com o fechamento dos CPCs, figuras centrais desta organização e
ligadas ao PCB vão organizar oposição à ditadura em seus espetáculos. O primeiro foi o
show “Opinião”, que foi percebido na época como um ato de resistência à ditadura.

3.2.2 O Opinião e as artes plásticas: desdobramentos e conexões

O grupo que formou o Opinião pertencia aos extintos CPCs. Após organizar-se, a
primeira providência adotada foi a montagem de um teatro. Num espaço projetado para ser
uma boate, o teatro é montado com estrutura de uma empresa, pois os membros do grupo
não podiam contar com verbas governamentais. Deveriam pagar as despesas com a
bilheteria. Esta empresa era constituída por Denoy de Oliveira, Vianinha, Ferreira Gullar,
João Neves, Armando Costa, Paulo Pontes, Pichin Plá e Tereza Aragão, todos membros do
PCB. No entanto, esse grupo não poderia aparecer, pois era procurado naquele momento.
Assim, tiveram a idéia de se associarem ao nome do Teatro de Arena, de São Paulo, que já
era uma empresa.
Augusto Boal, do Arena, foi convidado para dirigir o musical Opinião, que segundo
Denoy de Oliveira foi uma “bolação” do Arnaldo Costa, Vianinha e Paulo Pontes. Eles

178
Está expressão significa arte que apresenta “agitação e reflexão”.

126
“(...) pegaram três elementos bem característicos de nossa sociedade brasileira: um homem
do campo, que era João do Vale, o malandro urbano – era Zé Kéti – e a menina da Zona Sul
179
carioca, a Nara Leão” (RIDENTI, 2000, p. 125) , que depois foi substituída por Maria
Bethânia. Nenhum deles tinha vínculos com o PCB. O espetáculo foi organizado entre o
final de 1964 e o início de 1965.
O show teve uma repercussão significativa, sendo considerado um sucesso de
público e de crítica. Essa perspectiva é confirmada pelos comentários do assistente de
direção do espetáculo, Izaías Almada, e de Ferreira Gullar, que se colocaram,
respectivamente, da seguinte forma:

Show Opinião é um marco do teatro no Rio de Janeiro e no Brasil. O sucesso foi


grande: era a primeira manifestação mais pública, mais midiática – para usar um
termo de hoje – contra o golpe de 64. Um ano depois dele, tinha um show num
teatro bem localizado no Rio de Janeiro, que superlotava diariamente. As
pessoas iam fazer uma catarse ali, contra a repressão violenta que se iniciava no
Brasil (apud RIDENTI, 2000, p. 125). 180

O show teve uma enorme repercussão; era feito com habilidade, uma coisa
engraçada, cheia de música, Narinha Leão, lindinha, conquistando as pessoas, o
João do Vale, que era um compositor do Nordeste e Zé Kéti, um compositor do
morro. Ninguém com compromisso político, com marca política nenhuma, mas
o conteúdo do show, no meio das brincadeiras, era contra a ditadura mesmo. No
fundo, reafirmar o plano da reforma agrária, a luta de classes, contra a
exploração. O povo, a intelectualidade toda e o pessoal de classe média se
identificaram, viram que aquilo era a expressão contrária à ditadura e o teatro era
lotado com meses de antecedência. Quando a ditadura se deu conta, não pôde
fazer nada, porque não podia fechar um espetáculo que era o sucesso do teatro
na época. (apud RIDENTI, 2000, p. 126). 181

O grupo em torno do Opinião começou a ter uma preocupação com uma estética
mais apurada, procurando ganhar terreno neste âmbito. Buscavam associar a reflexão sobre
a realidade brasileira com a questão da qualidade artística. Segundo Gullar,

o Opinião foi uma outra coisa. Compreendemos que no CPC tínhamos adotado
uma posição sectária, errada, que não funcionava nem esteticamente, nem
politicamente; e dentro de novas circunstâncias, que era a ditadura, nem podia

179
Declaração de Denoy de Oliveira em 14 de novembro em São Paulo. 1995. As questões que envolvem os
artistas participantes, os diretores e a estrutura do show também pode ser verificado em Veloso (1997).
180
Depoimento de Izaías Almada em 18 de agosto em São Paulo. 1995
181
Depoimento concedido em 23 de Janeiro em São Paulo. 1996.

127
continuar a experiência do CPC em outros termos. Nós criamos o Teatro
Opinião para lutar contra a ditadura e realizar nosso trabalho cultural, fazer um
teatro de boa qualidade. Tanto que ganhamos prêmios. O show Opinião é
exemplar (apud RIDENTI, 2000, p. 127). 182

Esse espetáculo combinava o charme dos shows de bossa nova em casas noturnas
com a empolgação do teatro de participação política, confirmava também a tendência de
alguns bossanovistas (Nara Leão, entre eles) a realizarem a aproximação entre música
moderna brasileira de qualidade e a arte engajada, iniciando um tipo de produção que
resultou em show de música teatralizado, com inserções de textos escolhidos na literatura
brasileira e mundial ou escritos especificamente para o espetáculo.
A canção sugeria que do ato da ave se retirasse uma lição. Fazia parte desse
momento do show a cantora recitar dados estatísticos sobre a imigração nordestina para os
grandes centro urbanos do Sul, enquanto o trio de músicos que acompanhava Bethânia
repetia a palavra carcará. O caráter de protesto social da música era confirmado, “ou pelo
menos transformava em ameaça de revolução sangrenta a retomada do refrão uns dois tons
mais alto: ‘pega, mata e come’” (VELOSO, 1997, p. 73).
Embora o show Opinião tivesse alcançado bastante repercussão e sucesso de
público, houve quem não via nele algo que apresentasse uma expressão contundente contra
a ditadura. Paulo Francis, por exemplo, na época, ainda um jornalista de esquerda, vai
escrever na Revista Civilização Brasileira, organizada por intelectuais de esquerda:

qualquer protesto é útil (...) pois, desde 1o de abril, o país parece imerso em
catatonia, precisando de ser sacudido. Mas Opinião, quando chega ao público,
pelos interpretes e a música, nada tem de indutivo à ação política. Basta-se a si
próprio, é muito agradável (...). Mas daí a considerá-lo como um evento político
vai uma certa distância, pois, nesse terreno, o espetáculo nunca vai do
Kindergarten sentimental da esquerda brasileira” (FRANCIS, 1995, p. 215-216).

Roberto Schwarz foi outro intelectual que escreveu um artigo, em 1969, que
indicava que mesmo o espetáculo tendo um tom de “conclamação e encorajamento, era
inevitável um certo mal-estar estético e político diante do total acordo que se produzia entre
palco e platéia (...). Nenhum elemento de crítica ao populismo fora absorvido”
(SCHWARZ, 1978, p. 80). Esse ensaio mostra o tipo de cumplicidade que se desenvolveu

182
Depoimento concedido em 23 de Janeiro em São Paulo. 1996.

128
na época entre público e palco, indicando assim o quanto a posição de esquerda era
hegemônica no meio cultural brasileiro. A produção cultural, principalmente o teatro,
assumiu a responsabilidade de veicular o protesto.
Através dessas duas falas podemos observar a constatação de que, embora fosse um
esforço no sentindo de uma reação diante do golpe de 1964 e que o show adquiriu
notoriedade e em função disso, também foi considerado uma expressão de resistência, o
espetáculo não conseguiu, através de seus regimes de enunciação, produzir uma ação
política mais substancial, nem provocar uma reflexão mais profunda, como alguns
esperavam. No entanto, há uma dinâmica transformativa do sistema de relações que são
promovidas pelo fluxo contínuo das mediações, onde o que é transportado pode, através do
processo de tradução sofrer redefinição, desdobramento ou mesmo traição (LATOUR,
2008, p. 80). Nesse sentido, o show Opinião vai produzir novas conexões.
A partir da realização do show Opinião, outras manifestações artísticas foram
realizadas na tentativa de manifestar uma resistência à ditadura. A organização de uma
exposição inspirada no show, vai lançar mão das tendências internacionais (realismo
europeu e pop art americana) como forma de contestação. 183 O Opinião 65 foi uma mostra
no MAM do Rio de Janeiro, com a proposta de “ruptura com a arte do passado”. Foram
participantes do evento: Antônio Dias, Roberto Magalhães, Rubens Gerchman, Vergara,
Escostegui, Hélio Oiticica, Aquino, Pasqualini, Landim, Waldemar Cordeiro, Szpigel,
Krajcberg e outros (ARAGÃO e COUTINHO, 1995). No ano seguinte foi organizado o
Opinião 66. 184
Em relação à mostra Opinião 65, vale destacar a presença de Hélio Oiticica, que
expôs pela primeira vez seus famosos “Parangolés”, que indicam a ruptura com o
academicismo e a formalidade da arte ao buscar uma nova sensibilidade. A presença dessa
obra de Oiticica nessa exposição vai romper de modo radical com as estruturas do campo

183
Neste ano, houve a VIII Bienal de São Paulo com destaque para obras super-realistas e arte fantástica.
Hélio Oiticica faz a primeira apresentação pública dos Parangolés no Opinião 65, que levou ao MAM
integrantes da Escola de Samba Mangueira, fazendo “o povo entrar no museu”. Rubens Gerchaman pinta
“Não há vagas” e em São Paulo há o “Propostas 65”.
184
Em São Paulo, neste ano, acontece o “Propostas 66”; em Belo Horizonte, a exposição “Vanguarda
brasileira”; I Bienal Nacional de Artes plásticas de Salvador (dezembro) e Rubens Gerchman pinta “A bela
Lindonéia (a Gioconda do subúrbio que vai virar tema de música dos tropicalistas)”, entre outros eventos
nesse campo. Em 1967 foi realizada a IX Bienal de São Paulo, onde ocorreu o impacto (inspirador) em
relação a pop art. Neste ano também foi realizada a mostra “Nova Objetividade Brasileira”, onde Oiticica
apresenta Tropicália, um “ambiente instalação”

129
das artes plásticas. “Os primeiros Parangolés seriam vestidos por passistas da Mangueira
na exposição Opinião 65, no MAM, em 1965. A polícia, desabituada à presença do “povo”
entre os grã-finos que prestigiavam esses eventos, proibiu a entrada das passistas no museu
e, sem querer, promoveu um happening” (CASTRO, 1999, p. 156). Oiticica, não vai aceitar
está conduta e “armou o maior banzé em protesto contra o preconceito, recebeu adesões de
Rubens Gerchman, Carlos Vergara e Antônio Dias e a exibição aconteceu ali mesmo, nos
jardins externos do MAM” (CASTRO, 1999, p. 156).
Os happening de Hélio Oiticica retrata uma época onde muitos indivíduos, por
diversos caminhos e linguagens, vão buscar romper com as estruturas consideradas
autoritárias. Em 1968, Hélio assume sua postura “marginal” ao romper com as convenções
do “mundo burguês”. “Até então dava expedientes das nove as cinco como telegrafista na
Radiobrás, no Centro. Largou o emprego, deixou crescer o cabelo, incluiu LSD em sua
dieta e criou a serie “Cosmococa”, desenhos feitos de cocaína” (CASTRO, 1999, p. 157).
Hélio foi considerado um exemplo para outros artistas que seu ideário passou a se constituir
para muitos como um “evang´Hélio”. As posturas de Hélio expressam a importância que a
autonomia assume nesse momento. A esse respeito, Caetano Veloso (1997) consegue
resumir a importância de Hélio na sua proposta de produzir a “antiarte” e fazer da sua
própria vida uma obra de arte ou uma antiobra. Segundo Caetano,

Hélio trazia para esse mundo pós-mondrianiano não apenas o “orgânico” e o


“sensível” que supostamente faltava aos “frios” paulistanos, mas os extremos do
romantismo do pop (sem fazer arte pop), a tematização ostensiva de sua
mitologia pessoal (Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, os
bandidos das favelas com quem mantinha amizade pessoal, o rock`n`roll, o sexo,
as drogas pesadas), um comprometimento de ser, ele mesmo, uma obra
conceitual. Saindo do quadro e do objeto contemplável para as instalações
(como a “Tropicália”) e as vestes transcendentais que eram os
“Parangolés”(arranjos pouco legíveis como vestimentas e impossíveis de serem
expostos como objetos autônomos, esses mantos, capas, encharpes ou gibões
feitos de materiais variados – plástico e brocado e filó... - , lançados por ele na
situação em que foram, sugerem a quem os examina um turbilhão de
pensamentos e sentimentos sobre o corpo, a roupa, a beleza plástica, a invenção,
a miséria e a liberdade), Hélio tornou-se uma espécie de happening ambulante”
(VELOSO, 1997, p. 426)

Em geral, as produções dos artistas vão ser inspiradas na pop art americana e pelo
novo realismo europeu, pretendendo, assim, uma ruptura com o passado. Esses artistas, que

130
estavam sintonizados com as vanguardas internacionais, irão produzir uma obra de arte
simultaneamente sintonizada com os problemas sociais do Brasil e com as referidas
vanguardas.
De forma geral, nessas produções, o vínculo com o popular, notadamente presente
na atuação em grupos como CPC, “dificilmente é detectável nas criações plásticas do
período. Não obstante, as temáticas da agitação política dos anos 60, com influências da
pop art e marcadamente urbanas” (AMARAL, 1987, p. 329-330) estão presentes. Mas já
uma incorporação de tendências vindas do exterior.
Ferreira Gullar vai escrever na Revista Civilização Brasileira elogios ao conjunto
das obras, pois, segundo ele, estavam “plena de interesses pelas coisas do mundo, pelos
problemas do homem da sociedade em que vivem” (GULLAR, 1965, p. 221). Esses elogios
estão intimamente ligados ao fato de que esses artistas se inspiravam na pop art (tida como
uma arte de exaltação do capitalismo) para denunciar as “mazelas” do mundo moderno,
capitalista, e de uma sociedade subdesenvolvida. Para Sérgio Sister, militante do PCBR de
São Paulo, a pop art foi “aquilo que empolgou verdadeiramente minha geração nos anos
60” (SISTER, 1995, p. 53).
Os artistas plásticos vão se encantar com a linguagem da pop art, mas tentavam não
perder de vista a perspectiva de transformação da sociedade, embora não há referências ao
eixo que norteava de modo geral as produções artísticas – o nacional e o popular. Eles vão
imprimir na pop art um conteúdo contestatório, acreditando transformá-la em outra coisa
ou em algo novo. A esse respeito, Sérgio Ferro afirma:

Eu tentava, com Flávio Império e outros, aproveitar essa experiência da pop art
americana, que trouxe a imagem naquele período para a pintura. Reaproveitava a
pop art como uma linguagem nova, nossa. A diferença é que a pop art
americana era uma pintura acrítica :via, constatava e retratava a realidade urbana
deles. No nosso caso, queríamos transformar a pintura numa arma. Era um
período de censura, de pouca possibilidade de comunicação. Nós achamos que a
pintura devia falar às pessoas – aproveitar dessa área, de que a censura entendia
pouco, para falar o que tínhamos que falar. Daí o fato de nossa pintura, mesmo
que tenha aproveitado elementos da pop art americana, ter sido bem diferente.
Era uma pintura crítica, que dirigia o olhar ao real, o olhar muitas vezes hostil,
crítico, difícil. (...) Falar, comunicar, atingir, mesmo que fosse, talvez, só
emocionalmente. Não era uma pintura de tese, mas de raiva, participação,
hostilidade à violência. E uma arma de revolução. Nosso slogan era uma
frasezinha do Picasso: “A pintura é uma arma, ofensiva ou defensiva, contra o

131
inimigo”. Sobretudo no tempo da censura, a pintura era uma arma (apud
RIDENTI, 2000, p. 191-192). 185

Nessa perspectiva de ruptura, alguns vão buscar a transformação da arte aliada à da


sociedade, com propostas vanguardistas. Nesse percurso, uns vão se tornar mais militantes
do que artistas e outros, mais artistas do que militantes. Isso pode ser ilustrado na postura
de Carlos Zito, que se sentia dividido entre esses dois domínios e decidiu fazer política,
com o crescimento da repressão do regime militar. Segundo ele, “parar de fazer arte política
e fazer política realmente, porque não tem sentido querer ficar fazendo uma espécie de
simulacro de uma de outra” (apud RIDENTI, 2000, p. 190).
Mas o interessante é observar que as fronteiras já não se encontram tão precisas. Na
fala de Carlos Zito, podemos também perceber a questão do hibridismo, que ele vê como
algo que o deixa meio sem lugar e que acaba por defini-lo, embora tenha acabado optando
pela militância com o acirramento da repressão em 1968 (Carlos Zito era militante Di-GB –
Dissidência da Guanabara-, futuro MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de Outubro). Sua
postura híbrida pode ser percebida quando ele comenta: “vivia numa situação meio
esdrúxula, porque eu era artista demais para os militantes e militante demais para os
artistas”. Desse modo podemos indicar que havia afinidades e tensões entre arte e política e,
segundo Carlos Zito, vários artistas passaram por esse tipo de impasse. “Eu vivia minha
angustia de um lado, e a Lygia Clark de outro. Eu vivia já mais militante do que artista e ela
mais artista do que militante” (apud RIDENTI, 2000, p. 190) 186 . Mas a questão política
estava sempre presente nesses posicionamentos.
Assim, o show Opinião, inspirou a realização de outras atividades que embora
também buscassem manifestar uma resistência à ditadura, vão realizar um deslocamento em
relação ao que vigorava em termos estéticos. Há a introdução das vanguardas que são
associadas ao momento político. Com a incorporação das vanguardas pelos artistas
plásticos, uma parcela vai por fim buscar colocar em ação simultaneamente a estética, a
exigência existencial e moral, resultando em uma revolução nesse campo através do
experimentalismo que abriu caminhos para novas linguagens e sensibilidades.

185
Depoimento concedido em 29 de janeiro em Grignan (França). 1997.
186
Segundo Ridenti, esta entrevista da qual eu retirei estes fragmentos foi realizada por Joana Lima em 1999,
pesquisadora da Unesp que a concedeu ao autor. Cf. Ridenti (2000, p. 420).

132
O show Opinião foi interpretado por uma grande maioria como um ato político de
resistência. Inclusive para o grupo do Cinema Novo. Cacá Diegues, por exemplo, indicava
que o show Opinião se traduziu em uma espécie de “totem”, como “expressão de
resistência” (MORAES, 1991, p. 166). O mais relevante disso tudo é que por caminhos
diversos, o show estimulou a manifestações de eventos que incorporaram novas tendências
que apresentaram novas formas, novas sensibilidades que expressavam a realidade daquele
contexto.
Depois deste show, e já com o nome de Teatro Opinião, outros espetáculos foram
organizados com a preocupação em relação à boa qualidade, mas com o foco na questão
política. Acreditavam que para conquistar a sociedade no campo político, tinham que
ganhar no campo da qualidade cultural. Buscando unir qualidade artística e reflexão sobre a
realidade brasileira, o Teatro Opinião atraía um publico contestador da ordem.
Já em 1968, com o AI-5, as coisas se complicaram e o Teatro Opinião se alinhou à
posição do PCB, que se opunha a um combate armado frente à conjuntura. A partir dessa
época e com a saída de Vianinha, o Teatro Opinião começa perder seu fôlego com o
“policiamento” do AI- 5. Dificuldades econômicas, censura e perseguições vão levar à
venda do Teatro, que continua com o mesmo nome, mas o grupo se dissolveu em1970.
Sobre o fim do grupo, Denoy de Oliveira indica que isso ocorreu em função de:

Uma perda da identidade do grupo. Nós não soubemos mais realizar uma
discussão cultural e política (...). O grupo Opinião nasceu do Vianinha. E com
sua saída perde muito a sua identidade e começa a montar uma série de
espetáculos, mais como um teatro tradicional do que, realmente, como um grupo
desbravador. (...) Ele não está mais pegando a sociedade e conseguindo
dramatizar esse momento social e político, e transformar isso em alguma coisa
que toque as pessoas (apud RIDENTI, 2000, p. 128). 187

Aqui, vemos a constatação de um membro do grupo Opinião de que seus trabalhos


já não conseguiam uma comunicação com o público da forma que idealizavam.
Começaram a se perceber como um teatro tradicional e não mais como um veículo
transformador da sociedade. Ao que parece, as conexões postas em ação por esse grupo ou
a arte engajada de forma geral passam a não produzir mais vínculos com o público.
Acredito que isso possa ser fruto da postura destes artistas que mesmo conectando arte e

187
Depoimento realizado em 14 de novembro em São Paulo. 1995.

133
política em suas produções, mantiveram-se presos a idéia de que a cultura brasileira deveria
se manter pura (nacional-popular), rejeitando qualquer inovação à partir das vanguardas
internacionais.
Amplos setores de esquerda mantiveram-se fiéis aos “velhos” mediadores e
mediações frente a uma “realidade” que se apresentava: derrota da esquerda, crescente
urbanização, universalização da cultura, indústria cultural, dissidência de artistas do PCB
que discordavam da posição do partido em se opor a luta armada, entre outras coisas.
Assim, podemos indicar que com o grupo ou Teatro Opinião ocorreu o mesmo que
aconteceu com as outras áreas artísticas que eram vinculadas ao eixo cultural nacional e
popular em face do golpe de 1964. Este evento representou uma derrota política e
ideológica. A revolução a qual julgavam se concretizar malogrou e o comportamento pré-
capitalista da esquerda estava na contramão de um fenômeno inexorável que estava em
processo ascendente no Brasil, a implantação de uma sociedade de consumo, além do que a
indústria cultural apresentava sua feição estética e material.
A derrota política de 1964 e o crescimento da indústria cultural se impõem para os
artistas que se deparam com questões que envolvem a sua própria sobrevivência. Os
primeiros a perceber a questão do mercado foram os do campo musical, devido à sua
necessária ligação com a indústria fonográfica e com a Televisão. Perceberam logo que não
podiam fugir do mercado. José Capinam é um dos artistas que começa a chamar atenção, já
em 1966, em um debate sobre os rumos da MPB, organizado pela Revista Civilização
Brasileira, para a importância do mercado. Essa posição vai ficar expressa por ocasião do
Tropicalismo, ao criticar “o comportamento pré-capitalista da esquerda brasileira, que
resiste à industrialização e vê o mercado como o grande sacrifício de sua arte”
(BARBOSA, 1966, p. 377)
A preocupação com a questão de se fazer uma arte que tivesse raízes na cultura
brasileira, ou uma arte puramente brasileira, era uma questão fundamental. As influências
externas eram rejeitadas, como podemos observar nas considerações de Ferreira Gullar em
relação à sua atuação no grupo Opinião:

Nosso problema ideológico era lutar contra a ditadura; nós não tínhamos teoria,
essas teorias complicadas do nacional-popular, ninguém pensava isso. Agora,
nós achávamos que devíamos valorizar a cultura brasileira, que devíamos fazer

134
um teatro que tivesse raízes na cultura brasileira, no povo, na criatividade
brasileira. Nós achávamos que imitar as vanguardas européias era uma coisa que
empobrecia a cultura brasileira (apud RIDENTI, 2000, p. 128). 188

Podemos perceber através dos comentários de Ferreira Gullar que o grupo Opinião
não se detinha sobre grandes reflexões teóricas, como alguns intelectuais como Leandro
Konder e Carlos Nelson Coutinho, mas a questão de uma arte vinculada às raízes brasileiras
era fundamental. Estes dois intelectuais refletiam o nacional-popular a partir de uma
perspectiva gramsciana. No entanto, a busca artística das raízes na cultura brasileira, no
povo, vai perpassar as produções do CPC, do grupo Opinião, do Teatro de Arena, dos
lukacsianos-gramscianos, e dos adeptos do Cinema Novo, que, segundo Ridenti (2000),
possibilita identificar nessas propostas o nacional–popular. 189
Não obstante, a meu ver, com o golpe de 1964 e a emergência de novas idéias e
comportamentos, na década de 1960 acabaram sendo produzidos outros regimes de
enunciação que para aquele contexto acabam por se tornar mais “aceitos” ou assimiláveis
do que aqueles produzidos a partir de conexões advindas da perspectiva nacional e popular,
vinculada à busca das raízes da cultura brasileira. Afinal, parece-me que a década de 1960,
em nível mundial, foi um o momento por excelência onde a proliferação dos híbridos, ou
novos hibridismos começaram a se tornar um processo bastante visível e, embora os
segmentos ligados ao nacional e popular realizassem conexões entre política e arte,
rejeitaram as diferentes formas de conectar que emergiram a partir da universalização da
cultura.

188
Depoimento concedido em 23 de Janeiro em São Paulo. 1996.
189
Carlos Nelson Coutinho declarou a Ridenti que “na média, considerando o tom que era seguramente
diferente entre mim e Leandro, sobretudo entre mim e Leandro [de um lado] e Gullar [do outro], e entre nós
todos e Vianinha, havia alguma coisa mais ou menos em comum. Que era essa idéia de defender uma cultura
gramscianamente nacionaL-popular, realista, valores do humanismo, da razão. Uma mistura entre Lukács e
Gramsci. Era aquilo que marcava um pouco a cultura dos intelectuais comunistas do PC nesse momento. Mas
não como uma coisa oficial. Não é que um dia nós nos reunimos e dissemos: a linha na cultura é Lukács e
Gramsci. Não foi nada disso. Eu acho que era alguma coisa que surgiu um pouco da afinidade intelectual que
nós tínhamos e também da comum opção na polêmica política que naquele momento era muito intensa entre
os defensores da posição do PC e os da luta armada” (RIDENTI, 2000, p. 129)

135
CAPÍTULO 4: A CONFLUÊNCIA TROPICAL: “VER COM OLHOS
LIVRES”

O Tropicalismo representou uma face da contracultura no Brasil, realizando uma


conexão entre esse movimento planetário com elementos relacionados às questões de uma
identidade da cultura nacional. Assim, nesse item, abordarei inicialmente o Tropicalismo e
as questões que envolveram o surgimento desse movimento, os eventos elaborados,
assimilação e cruzamento das perspectivas postas em ação. Descortina-se no conjunto de
atividades destes artistas a valorização da experimentação artística que vai produzir uma
renovação estética onde nada deveria ser limitado por um enquadramento ou
sistematização. Tudo e todos estavam plenos do espírito libertário que pairava sobre o
contexto mundial daqueles anos.
O movimento Tropicalista surge, então, do reconhecimento dos vários artistas de
que suas obras tinham conexões com a proposta inicial de Hélio Oiticica. Em sua exposição
Tropicália, Hélio Oiticica elabora um texto onde deixa explicita sua proposta estética:

(...) Creio que a Tropicália veio contribuir fortemente para a objetivação dessa
imagem brasileira total, para a derrubada do mito universalista da cultura
brasileira, toda calcada na Europa e na América do Norte, num arianismo
inadmissível aqui: na verdade, quis eu com a Tropicália criar um mito da
miscigenação – somos todos negros, índios, brancos, tudo ao mesmo tempo –,
nossa cultura nada tem a ver com a européia, apesar de estar submetida: só o
negro e o índio não capitularam a ela. Quem não tiver consciência disso que caia
fora. Para a criação de uma verdadeira cultura brasileira, característica e forte,
expressiva ao menos, essa herança maldita européia e americana terá de ser
absorvida, antropofagicamente, pela negra e pela índia da nossa terra, que na
verdade são as únicas significativas, pois a maioria dos produtos da arte
brasileira é (...), intelectualizada ao extremo, vazia de um significado próprio
(...) (OITICICA, 1968). 190

190
Helio Oiticica é radical no projeto de miscigenação cultural , na medida em que ele valoriza o
genuinamente brasileiro, porém o que ela acredita ser o genuinamente brasileiro é híbrido. Este artista vai se
colocar contra os burgueses, “caretas” e vai criticar o consumo imediato do Tropicalismo. Por outro lado,
Caetano Veloso se torna um ídolo pop e quer levar a arte às massas.

136
Para melhor entendermos a “explosão tropical” que dá seus sinais em 1967 e se
afirma em 1968, tornando-se um fenômeno de mídia e provocando com igual intensidade
admiração e condenação, é necessário que tenhamos em mente que já vinha ocorrendo um
certo amadurecimento no campo artístico e cultural que vai contribuir para o surgimento do
Tropicalismo.
Na época, a matéria da revista Realidade já apontava que por trás do rótulo
“Tropicalismo”, que, segundo eles, julgavam ser “demasiado” rígido para um movimento
que se recria a cada instante, houve todo um período de amadurecimento, com a fusão de
várias componentes. Umas mais próximas, outras mais distantes”.191 Nesse sentido, quando
Roberto Carlos marcou seu espaço indicando que o seu estilo musical tinha vindo para
ficar, e a constatação de que os Beatles eram muito mais que um grupo de jovens ingleses
que se rebelavam contra os barbeiros, começou a haver uma movimentação que tentava
captar o que estava acontecendo no mundo naquela época. “As coisas passaram a acontecer
com tal rapidez, que mesmo o comodismo petrificado de certos ambiente culturais
brasileiros começou a ser abalado” 192 .
No Brasil, foram os cineastas e pintores os primeiros a assimilarem os novos rumos
artísticos que começavam a fervilhar simultaneamente mundo afora. As exposições Opinião
(uma em 1965 e a outra em 1966), no Rio de Janeiro, e Propostas 66, em São Paulo,
indicaram que as propostas da Bienal de 1965 tinham deixado sua marca. As propostas
apresentadas nestas exposições apontavam para o fato de que nossos artistas plásticos
estavam antenados com a vanguarda mundial ao lançarem mão de toda liberdade ofertada
pelas colagens, montagens, equipamentos sonoros e luminosos. Estes eram os instrumentos
que traduziam e inventariavam a cultura moderna, uma cultura que rodeava os homens na
medida em viviam cercados de manchetes de jornais, anúncios de televisão, carcaças de
automóveis, materiais plásticos entre outros. “Afinal, o que era aquilo tudo? Era algo de
novo? Sim e não”. 193
Em geral, os “eventos fundadores” são situados em 1967 e 1968, embora esse
movimento tenha sido nomeado e “se definido” como tal no começo de 1968. Foi no campo

191
O Tropicalismo é nosso, viu?. Realidade. Dezembro.1968. p. 177
192
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro. 1968. p. 177.
193
Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro.1968. p. 177.

137
musical, que ele adquiriu maior destaque.com as inovações propostas por Gilberto Gil e
Caetano Veloso, no III Festival de Musica Popular da TV Record de 1967 (com Caetano
apresentando “Alegria, Alegria” – 4o lugar – e Gil, “Domingo no Parque” – 2o lugar).
Assim, em termos de música o LP que marca definitivamente o movimento é Panis
et Circensis ou Tropicália. No teatro foram as experiências inovadoras do Grupo Oficina,
com as montagens de “O Rei da Vela” e de “Roda Viva”. E, no cinema, no rastro das
propostas do Cinema Novo, foi “Terra em Transe”, de Glauber Rocha a fonte inspiradora.
A outra área que deu importante contribuição com suas propostas de experimentações foi a
das artes plásticas.
Na verdade, o termo Tropicalismo vem, antes de tudo, da exposição de Helio
Oiticica, porém já havia uma confluência de fatores e sensibilidades que abarcava este tipo
de postura em diversos setores da cultura. Há um encaminhamento para a elaboração de
uma estética baseada na experimentação, na autonomia que vai permitir a mistura de
tendências e elementos variados a partir de um inventário das coisas do Brasil. Nessa
confluência de experimentações, acreditava-se que no campo musical havia uma linha
evolutiva que deveria ser resgatada, assim como a antropofagia inaugurada pela Semana de
Arte Moderna de 1922.
Em função disso, no decorrer do capítulo realizarei uma ligeira recuperação da
Semana de Arte Moderna de 1922, haja vista que os artistas do Tropicalismo estabeleceram
uma conexão com esse movimento. Abordarei o Tropicalismo e as questões que
envolveram o surgimento desse movimento, os eventos elaborados, assimilação e
cruzamento das perspectivas postas em ação. Em suma, apresentarei exemplos de como
foram se cruzando as várias experiências empreendidas no contexto dos anos de 1960, que
retomaram a perspectivas Oswaldiana de “ver com os olhos livres” ao inventariar o Brasil a
partir da conexão entre o arcaico e o moderno.

4.1 Os pioneiros: antropofagia da década de 1920

Já no início do século passado o futurismo, o dadaísmo e o surrealismo buscavam


compreender o universo inaugurado pela máquina à partir de novas interpretações

138
colocadas em pauta pelos estudos sociais e pela psicanálise. Destas sementes plantadas na
Europa germinariam frutos, híbridos, no Brasil: a Semana de Arte Moderna de 1922.
O Modernismo brasileiro embora buscasse se libertar de uma criação artística de
modelo europeu, foi inicialmente inspirado por novas técnicas e concepções desenvolvidas
na Europa após a I Grande Guerra. Nessa época, havia uma diversidade de tendências
artísticas: Futurismo, Expressionismo, Cubismo, Dadaísmo e Surrealismo. Esses
movimentos se constituíam na “vanguarda européia” que buscava uma nova interpretação
da realidade, e de modo geral se caracterizou pela valorização da vida moderna, liberdade
de criação e de estética e valorização da visão interior e subjetiva do artista. 194
Os artistas modernistas brasileiros, em sua maioria, estudaram na Europa, e ao
retornarem ao Brasil, procuraram desenvolver uma nova arte que rompesse com a
“tradição” acadêmica. Assim, foram características do modernismo brasileiro na década de
20 do século passado: liberdade de criação; valorização dos temas nacionais; visão crítica
da realidade; primitivismo (valorização das origens); valorização da linguagem popular
cotidiana; despreocupação com regras gramaticais; valorização do concreto e formas
geométricas; busca do moderno; preocupação com o futuro e a modernização, entre outros.
O modernismo brasileiro teve seu ápice e afirmação com a Semana de Arte
Moderna, em fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo. 195 O evento tinha como
objetivos expor, explicar e justificar as novas concepções artísticas e literárias. Assim,
durante a semana de 11 a 18 de fevereiro, apareceram nomes como Anita Malfatti,
Ferrignac, João Fernando de Almeida Prado, Di Cavalcanti, Zina Aita (pintores); Vitor
Brecheret, Wilhelm Haarberg e Hildebrando Leão Veloso (escultores); Antônio Moya e
Georg Daumerie (arquitetos). E nos dias 13,15 e 17 ocorreram conferências, palestras,
leitura de poesias e prosas e espetáculos de música e dança. Essas apresentações
escandalizaram o público que reagiu com vaias. Foram Oswald de Andrade, Menotti Del
Piccchia, Graça Aranha e Plínio Salgado que receberam com mais intensidade a crítica do
público.
A Semana de Arte Moderna de 1922 se tornou um “escândalo”, pois o público
estava acostumado com uma arte convencional e com estilos artísticos e literários ditados

194
As informações sobre a Semana de 22 estão baseadas em Alambert (1994).
195
Os modernistas queriam chocar a burguesia paulista que julgavam estar somente preocupada com seus
lucros, porém foi esta burguesia que apoiou e patrocinou o evento.

139
pela academia. Nesse sentido, a platéia vai perceber aquelas exposições e apresentações
como absurdos, algo de mau gosto e não entendem nada. Essa perspectiva vai ser
amplamente divulgada na imprensa e a produção artística dos modernistas vai receber
muitas críticas negativas.
A Semana de Arte Moderna conseguiu alcançar os seus objetivos. Incomodou,
mexeu com os valores e gosto das pessoas, propagou novas tendências, conquistou adeptos
e admiradores. Marcou uma época e iniciou novos tempos na cultura brasileira na medida
em que após os trabalhos pioneiros, outros vieram deixando seu registro. 196
Em maio de 1928 Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral organizaram o Manifesto
Antropofágico, onde solicitavam a construção de uma cultura embasada no nacionalismo,
naturalismo e primitivismo. A inspiração veio da tela de Tarsila do Amaral, “Abapuru”, que
significa “aquele que come”, “o antropófago”. Esse grupo vai passar por um grande dilema
que girou em torno da questão de fugir ou não da influência estrangeira. Isso ficou expresso
na frase: “tupi or not tupi, that is the question”. A opção adotada foi a que apontava para a
negação da simples e pura assimilação: tinham sim, o espírito da deglutição antropofágica
como tônica.
A obra “Macunaíma”, de Mário de Andrade, publicada em 1928, é percebida por
muitos como o trabalho literário que melhor apresenta o Modernismo pós- Semana. Em
“Macunaíma” a personagem principal é o herói sem nenhum escrúpulo, que é ao mesmo
tempo índio, negro e branco, representando brasileiros de todos os cantos do país, tem
hábitos, crendices, alimentação, linguagem, sem apresentar um traço regional
predominante. Assume sem distinção as características das diversas culturas regionais,
tornando-se um herói sem geografia definida. Portanto uma figura híbrida.
Haja vista toda a contribuição da Semana de Arte Moderna, com o passar dos anos e
a distância do evento, produz-se uma dificuldade de um contato mais direto com os seus
resultados no campo artístico. Suas contribuições acabaram sendo diluídas diante de outras
questões e tendências que vão surgindo. Para muitas gerações, esta Semana tornou-se um

196
Após a Semana de 22, muitos trabalhos foram lançados como poesias, livros de romances, pinturas e
muitas revistas (Klaxon – Mensageiro da Arte Moderna (1922); Estética (1924); Festa (1927); Terra Roxa e
Revista de Antropofagia (1928)). Essas revistas , grosso modo, pregavam a defesa do brasileirismo,
defendendo o nacionalismo nas artes e na cultura em geral. Esse aspecto significou a politização do
movimento modernista e sua divisão: alguns grupos se alinharam ao discurso da direita e outros, para o da
esquerda.

140
item no currículo de colégios ligados às disciplinas de História, Português e à Educação.
Mas, para um grupo de jovens artistas no contexto da década de 60 do século passado, foi
na perspectiva que esta semana trouxe à tona que eles também buscaram inspiração.

4.2 A antropofagia dos anos de 1960: Tropicalismo

A perspectiva inaugurada pela Semana de Arte Moderna de 1922 será retomada em


1967, quando o Teatro Oficina resolveu levar aos palcos “O Rei da Vela”, de Oswald de
Andrade, com a direção de José Celso Martinez Corrêa. “Daí em diante, uma porção de
gente passaria a entender ‘muita coisa’; mas, ‘outros a não entender mais nada’”. Primeiro
ficava-se sabendo que, apesar do sobrenome, não havia qualquer parentesco entre Oswald e
Mario de Andrade. Segundo, descobria-se que uma peça escrita em 33 podia inquietar,
graças a encenação de José Celso, mais que todo teatro “engajado” mais recente”. 197
Assim, muitos dos elementos que iriam mais adiante se tornar parte da estética
tropicalista já vinham presentes no programa manifesto da peça “O Rei da Vela”, ao
assumir a estética do “mau-gosto” como parte dos procedimentos de vanguarda, onde uma
das propostas base desse programa é expressar o surrealismo brasileiro.
A montagem de José Celso desvia-se totalmente dos padrões da crítica de esquerda
de então, ao jogar fora o pensamento que acreditava ser revolucionário. José Celso e seus
signatários “denunciavam a sociedade brasileira como ‘teatralizada’ e a nossa história como
‘farsa’, acusando o pensamento da elite intelectual burguesa” (NAPOLITANO &
VILLAÇA, 1998, p. 05) de “mistificar um mundo onde a história não passa do
prolongamento da história das grandes potências. E onde não há ação real modificando a
matéria do mundo, somente o mundo onírico onde só o faz-de-conta tem vez (...) Tudo
procura mostrar um imenso cadáver que tem sido a não história do Brasil destes últimos
anos, à qual todos acendemos nossa vela para trazer da nossa atividade cotidiana,
alento.” 198
Para o grupo Oficina, numa visão divergente da esquerda nacionalista/populista e da
direita ufanista e conservadora, Oswald de Andrade significava a “consciência cruel e anti-

197
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. 1968. p. 178
198
Grupo Oficina. O Rei da Vela. Manifesto. In: Arte em Revista. No. 01, 04 de setembro. 1967. p. 62-63.

141
festiva da realidade nacional e dos difíceis caminhos para revolucioná-la”. 199 O “Rei da
Vela” é uma dura crítica que desvela as questões que envolvem a estrutura econômica, a
vida política, os costumes e a mentalidade que marcava a sociedade dos anos 1930. 200 Esse
material usado por Oswald é elaborado a partir do nosso modo de vida. Assim, José Celso
Martinez Corrêa vai pegar os escritos de Oswald e vai reelaborá-los com uma ousadia bem
particular. Com imagens vivas, José Celso levava esse espírito até os seus limites: “circo,
revista da Praça Tiradentes, Programa do Chacrinha, chanchada da Atlântida, o espetáculo
tinha de tudo”. 201 Buscava-se apreender criticamente o gosto das grandes massas brasileiras
(através do elemento cafona) e, com ele, o verdadeiro espírito da cultura criada no trópico.
Para tanto, usou de uma autonomia criativa e experimental que ainda não tinha sido
presenciada no teatro brasileiro.
O primeiro ato da peça trouxe uma abordagem expressionista, com o anti-herói
central, Aberlado I, recebendo em seu escritório, um a um, os devedores de seus
empréstimos, que se encontravam presos numa jaula com o assistente Aberlado II dando-
lhes chicotadas. Os trajes utilizados eram escuros, as faces pintadas de marrom, à exceção
dos dois Aberlados, que tinham os rostos maquiados de branco, como palhaços. O segundo
ato constituía-se em uma chanchada: um painel gritantemente colorido simbolizava em
traços meio cubistas, meio infantis, a baía de Guanabara, no Rio , onde Aberlado I
confraternizava com a família de sua esposa Heloisa de Lesbos: a obesa mãe que recebia os
galanteios do genro; o irmão integralista (nazi-facista); a irmãzinha caçula com suas luvas
de boxe; o irmão homossexual que deplora a família (e grita o tempo inteiro que seu
“destino é pescar nos penhascos”); a avó a quem Aberlado I oferece versos de Lamartine
[Babo] (...); o visitante americano; todos num palco giratório em que se manifestavam as
transações econômicas, pessoais, familiares, de classes, nacionais e internacionais que se
sucediam num processo dinâmico e numa vivacidade desconcertante. O terceiro ato era
apresentado em tom de ópera. Heloisa de Lesbos –, que no primeiro ato apresentava-se de
199
Grupo Oficina. O Rei da Vela. Manifesto. In: Arte em Revista. No. 01, 04 de setembro. 1967. p. 62-63.
200
O Agiota Abelardo I tem nítida consciência de sua classe: oprime aqueles que lhe deve, não se importa de
se vender ao imperialismo americano admite ser o lucro e a exploração os seus únicos objetivos admite que
seu casamento teve o propósito de lhe dar um brasão de família e por fim, quando é destruído declara toda a
sordidez de sua classe. A peça deixa transparecer em cena, o voraz apetite antropofágico de Oswald, uma
comicidade e surrealismo. Oswald “investia, com ímpeto raro, contra a aristocracia rural de São Paulo, o
imperialismo, o fascismo, o socialismo e tudo mais” (MACIEL, 1996, p. 166)
201
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro de 1968. p. 178

142
terno e fumando por uma longa piteira, e no segundo num maiô futurista prateado (...) –
nesse terceiro ato se apresentava no centro do palco com um longo vestido negro cuja
cauda ocupava o grande círculo que fora giratório no ato anterior, lastimando a miséria em
que caiu Abelardo –, um arrivista com quem ela, “aristocrata” do café, se ligara por
conveniência econômica, vítima da sagacidade de seu assistente homônimo – e do
imperialista americano.
Segundo Maciel, “havia por certo uma denotação ideológica no texto, uma intenção
política nítida por parte de Oswald. Mas o que realmente desconcertava não era isso, efeito
possível nos anos trinta, quando a peça fora escrita, mas improvável nos sessenta. Era a
conotação afetiva que era comunicada, principalmente, pelo espetáculo desreprimido de
José Celso” (MACIEL, 1996, p.166).
O grupo Oficina, ao agregar o mau-gosto, a dinâmica dos meios de comunicação,
afirmava a idéia de uma vanguarda dessacralizadora que agisse sobre as bases políticas e
comportamentais da classe média brasileira. “À frente única sexual, proposta no 2o ato do
Rei da Vela, paródica e carnavalizante, Roda Viva somava o elemento da agressão, estética
e comportamental, como procedimento básico da vanguarda tropicalista” (NAPOLITANO
& VILLAÇA, 1998, p. 05).
Caetano Veloso foi assistir a uma das apresentações da peça e se identificou com o
que estava vendo, sendo que uma semana antes teria composto “Tropicália”. Sobre essa
composição Caetano indica: “Eu compus Tropicália uma semana antes de ver ‘O Rei da
Vela’, a primeira coisa que eu conheci de Oswald. Uma outra coisa muito importante de
Oswald para mim é a de esclarecer certas coisas, de me dar argumentos novos sobre poesia
pau-brasil, antropofagismo, realmente oferecem argumentos atualíssimos que são novos
mesmos diante daquilo que se estabelece como novo”. 202
Nesta música, como no espetáculo dirigido por José Celso, havia um ponto em
comum: a nova realidade brasileira jogada em contraponto com os valores tradicionais e
consagrados do gosto popular. Caetano diria depois que dividia sua obra em antes e depois
de ter visto “O Rei da Vela”. 203 Por seu lado, José Celso se dizia fascinado com o

202
Depoimento a Augusto de Campos. In: CAMPOS, Augusto. O balanço da Bossa e outras bossas. 5a ed.
São Paulo: Perspectiva. 1993. p. 204-205. O Rei da Vela foi montada pela primeira vez em 1967, estreando
em outubro em São Paulo.
203
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro de 1968. p. 178- 179.

143
intercâmbio de contribuições que se iniciava. Sobre isso ele comentou na época: “Veja
você: fui violentamente influenciado pelo filme Terra em Transe, de Glauber Rocha. Agora
Caetano se diz influenciado pelo meu espetáculo. Tenho certeza de que nossa geração vai
começar a criar algo novo”. 204 Assim, no decorrer do ano de 1968, na medida em que o
movimento ia sendo nomeado, as criticas alvejavam a atitude de blague e paródia.
Além da aparente alienação traduzida nas atitudes de blague e paródia, a
supervalorização da liberação comportamental-individual realizada pelos adeptos do
movimento tropicalista era também criticada. Muitos artistas e intelectuais mais engajados
não aceitavam tal atitude. Um desses artistas foi Augusto Boal, que mirando suas criticas
no teatro tropicalista “(termo que ele aceitava, mas acrescentando os adjetivos chacriniano-
dercinesco – neo-romântico) considerou esta opção um grande equivoco para a arte de
esquerda”. Segundo ele, o “Tropicalismo retomava o teatro ‘burguês’, incitando uma
platéia burguesa a tomar iniciativas individuais contra uma opressão difusa e abstrata”. Para
ele o Tropicalismo: “‘é neo- romântico’, pois só atinge a aparência da sociedade e não sua
essência; é ‘homeopático’, pois quer criticar a cafonice, endossando-a; é ‘inarticulado’, pois
culmina numa crítica a- sistemática; é ‘tímido e gentil’ com os valores da burguesia; e,
finalmente não passaria de uma estética ‘importada’” (NAPOLITANO & VILLAÇA, 1998,
p. 05- 06 ). 205
Após “O Rei da Vela”, José Celso montou várias peças que foram bem sucedidas –
“Roda Viva”, de Chico Buarque, “Na Selva das Cidades” e “Galileu Galilei”, de Brecht,
“Três Irmãs”, de Tchekov, e “Gracias, Senõr”, esta última foi uma criação coletiva.
Segundo Maciel, isso significava que ele “começou a partida pra uma viagem cada vez
mais radical, levando às últimas conseqüências o desejo de revolução comportamental e de
busca de reconhecimento do indivíduo. Ou seja: se ligou ao movimento da contracultura,
não de maneira formal, mas – sim, diria eu – em espírito” (MACIEL,1996, p.179). 206
José Celso, alinhado com o teatro contracultural internacional montou o espetáculo
“Roda Viva”, em 1968, que foi denominado como “teatro de agressão”. Roda Viva não
explicitava considerações políticas. Era uma peça de Chico Buarque que abordava a

204
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro de 1968. p. 179
205
Ver também em: BOAL, Augusto. O que você pensa da arte de esquerda? Manifesto da I Feira Paulista
de Opinião. 1968. [Links]
206
O grifo não faz parte do original

144
engrenagem que cerca a criação de uma estrela da música popular.Vai levar a experiência
aos seus extremos ao apresentar uma manifestação artística de explosão do “irracional”. Em
“Roda Viva”, José Celso leva às últimas conseqüências o estilo violento e anárquico
inaugurado por ele. Há uma maior identificação do diretor com o artista pop que o texto
criticava do que propriamente com a critica que o texto original lhe fazia, mas, ao mesmo
tempo, não deixava de conduzir essa crítica aos extremos. José Celso transformava a
própria peça de Chico Buarque num ritual pop e num momento em que se revelavam os
conteúdos inconscientes do imaginário brasileiro. Essas revelações não pouparam ninguém,
fossem os personagens da peça ou os espectadores. 207
O jovem ídolo pop, personagem foco da peça, tinha uma esposa retratada como
mais honesta do que seus fãs e seu empresário. Em meio à profusão de imagens cambiantes
que se interpunham no palco e que não correspondiam ao que texto indicava, “transfigura-
se brevemente numa espécie de madona, sem contudo, tirar os rolinhos de cabelo de dona
de casa” (VELOSO, 1997, p. 385). A aparição da mulher do ídolo pop como madona vai
levar à interpretação de que era uma associação à Virgem Maria e que colocá-la com bobs
na cabeça era extrema falta de respeito. 208
Embora não houvesse conotação política na peça, sua forte linguagem cênica vai
levar grupos (militares e/ou grupos de direita) a invadir o teatro e agredir atores e
telespectadores. A experimentação era total e o público fazia parte disso:

Seu escândalo nascia da selvageria de sua linguagem cênica. Numa cena que se
dava em meio à platéia, um coro de atores representava a turba fanática que
queria tocar no seu ídolo. Zé Celso levava a ação dos fãs até o canibalismo e,
como que de dentro do corpo do cantor que tinha desaparecido sob a multidão,
surgia um fígado de boi que um dos admiradores erguia na mão crispada, não
raro respingando de sangue verdadeiro os espectadores que estivessem sentados
nas poltronas do meio, junto ao corredor. Estilizações de imagens reconhecíveis
da publicidade ou do cotidiano, da TV ou da religião, se seguiam de cargas de
presença física que eram sentidas como ameaça de nudez corporal que não quer
ser planejadamente erótica em decorativa, mas real, palpável, simplesmente

207
José Celso:Teatro roda Vida vezes cem. Jornal do Brasil. Caderno do B. 11 de abril. 1968. p. 02.
208
Segundo Caetano Veloso, durante o período que esteve detido antes de ir para o exílio, um sargento o
chamou para interrogar e perguntou-o se ele conhecia as pessoas envolvidas com a montagem de “Roda
Viva”. Segundo Caetano, o Sargento se referiu à encenação da seguinte maneira: “Você acha que a gente
pode admitir aquela putaria com a Virgem Maria” (VELOSO, 1997, p. 383) e “Boatar Nossa Senhora de
bobs na cabeça!... Eu não acredito em porra nenhuma de religião, mas um negócio desse não pode. Vocês
acham que as famílias vão ao teatro pra ver isso?” (VELOSO, 1997, p. 384). E confidenciou: “Eu estava lá.
Fui um dos que desceram a porrada naquele bando de filhos da puta” (VELOSO, 1997, 385).

145
carnal. Em suma, era tudo com que nosso trabalho, meu e de Gil – dos
tropicalistas-, se identificava (VELOSO, 1997, p. 385).

Seu escândalo era produzido pela “selvageria” da sua linguagem cênica. Nesse tipo
de espetáculo, José Celso submetia a platéia a situações que a constrangia em função de
uma interatividade, para época um absurdo. A intenção era transformar o espectador em
participante. A busca para se revolucionar a forma de se fazer teatro levou esta
manifestação artística a ser considerada como o grande laboratório tropicalista.
O Oficina, liderado por José Celso, cada vez mais vai buscar subverter a linguagem
teatral com as suas experimentações e com isso,

já não contava com atores tradicionais do grupo. Era todo formado pela nova
geração, que se afinava bastante com a nova tendência contracultural. José Celso
se colocou então como um diretor que propunha a negar toda a tradição teatral: a
contracultura propunha a subversão completa. Obviamente, esse teatro abre
caminho para toda a vanguarda que viria depois, através de um princípio
nietzchiano de subversão de valores, para qual “tudo é permitido”. (...) Depois
da experiência contracultural de José Celso, ele foi obrigado a um silêncio de
muitos anos. Aconteceu com ele o que aconteceu com a própria contracultura: a
experiência era tão libertária e anárquica que não comportava nenhuma
possibilidade de organização e estabilidade, ao mesmo tempo em que era contida
pela forte reação do Sistema. Era um movimento para acabar mesmo, se
autodevorando. Toda uma vez que uma manifestação da contracultura se
estabiliza deixava de ser contracultura, passava a ser careta. Sua existência
dependia de sua natureza fugaz (MACIEL, 1996, p. 181-182).

As experimentações de José Celso no teatro apontam seu caráter libertário e


autônomo. Sua aproximação com o caráter experimental e de vivência da contracultura
indicava que ele acreditava que para modificar o mundo, era necessário haver a libertação
do controle do sistema, realizando-se em primeira instância uma transformação interna. Ele
julgava que sua arte seria capaz de mexer com as pessoas e, a partir disso, elas realizariam
uma modificação interna e, como conseqüência, do mundo também.
Segundo José Celso, “Terra em Transe” foi uma fonte inspiradora para o seu
experimentalismo teatral e, dessa forma, para inventariar o Brasil. Embora o filme tenha
sido realizado em 1966, ainda em 1968 provocava a crítica e o público. “Terra em Transe”
aborda a política contraditória de um país fictício da América Latina, chamado Eldorado.
Este país imaginário é delineado por uma mistura de fascismo místico, populismo barato e

146
romantismo revolucionário. Glauber Rocha não se preocupou com o que era ou não de bom
gosto. “Entre uma usina hidrelétrica e o luar do sertão, não há dúvida possível – fica-se com
os dois”. Assim é em “Terra em Transe”: “na fundação de Eldorado, na primeira missa, um
índio defronta-se com um nobre – vivido por Clovis Bornay – fantasiado como quem vai ao
baile do Municipal; um interrompe seu discurso para cair no samba rasgado ao som de uma
banda de subúrbio. Aplicava-se, enfim, a fórmula descoberta por Oswald de Andrade em
1924 – ver com olhos livres”. 209
O próprio Glauber Rocha não poderia dimensionar os desdobramentos que “Terra
em Transe” teria e que um deles produziria um fruto significativo como foi o Tropicalismo.
“Terra em Transe” foi realizado sob o impacto dos acontecimentos de 1964, e vai ser
revolucionário na medida em que apresenta a questão política sob a ótica de uma narrativa
metafórica, apresentando uma estilização que vai causar uma revolução no cinema
brasileiro, embora tivesse desagradado aos críticos e ao público. Mas vai causar um
impacto positivo em muitos artistas.
Assim, de um modo estilizado, o filme narra o embate entre um ditador
(representado por Paulo Autran) e um poeta (vivido por Jardel Filho). “O antagonismo dos
personagens principais estabelece entre eles uma relação complexa, de interdependência
dialética”. O ditador e o poeta representam duas gerações diferentes, “duas visões
contraditórias da realidade, dois projetos existenciais opostos mas, entre esses dois pólos
radicais, Glauber percebe uma continuidade dialética, a necessidade histórica” (MACIEL,
1996, p. 111).
Uma cena do filme é emblemática e chocava particularmente os espectadores da
esquerda engajada. A cena mostrava que durante uma manifestação popular – um comício –
o poeta, que está no meio dos que discursam, traz para perto de si um operário
sindicalizado, e, para demonstrar que este homem do povo não tinha preparo para lutar por
seus direitos, coloca sua mão na boca do operário e brada para os demais assistentes e para
a platéia do cinema: “Isto é o povo! Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado!” Logo
após, surge um homem simples, representante da pobreza sem organização e tenta
pronunciar algo e é calado através de um revolver que lhe é colocado na boca por um
segurança do candidato. Essa imagem é enfocada através de vários closes que a reveste de

209
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro de 1968. p. 179

147
um significado que causa polêmicas (esquerda) e inspiração (tropicalistas). Segundo
Caetano Veloso, “quando o poeta de Terra em Transe decretou a falência da crença nas
energias libertadoras do ‘povo’, eu, na platéia, vi, não o fim das possibilidades, mas o
anúncio de novas tarefas para mim” (CAETANO, 1997, p. 116).
Essa cena foi interpretada como uma crítica à demagogia populista. Além dessa
cena citada acima, os populistas eram colocados no filme segurando crucifixos e bandeiras
em

carro aberto contra o céu do Aterro do Flamengo, exibindo mansões de


ostensivo mau gosto, participando das solenidades eclesiásticas e carnavalescas
que tocam o coração do populacho etc.; mas era a própria fé nas forças
populares – e o próprio respeito que os melhores sentiam pelos homens do povo
– o que aqui era descartado como arma política ou valor ético em si. Essa
hecatombe, eu estava preparado para enfrenta- lá. E excitado para examinar- lhe
os fenômenos íntimos e antever- lhes as conseqüências. Nada do que veio a se
chamar de “Tropicalismo” teria tido lugar sem esse momento traumático
(VELOSO, 1997, p. 105).

“Terra em Transe” realiza uma metáfora do Brasil, expressando uma imagem do


país que não se traduz numa cópia ou xerox da realidade. Ele vai apresentar uma imagem
recriada. Sua proposta básica é similar à que se constituiria como substrato para o
surgimento do Tropicalismo, ou seja, compreender para depois expressar a própria
personalidade brasileira, “sem acidentes que distorcem ou mascaram sua essência, uma
espécie de redução eidética, fenomenológica, do fenômeno brasileiro” (MACIEL, 1996, p.
112).
É a construção dessa imagem metafórica e estilizada 210 que vai influenciar José
Celso e tornar-se inspiração para o movimento da Tropicália ou Tropicalismo, que buscou
conhecer o Brasil para em seguida expressá-lo. O resultado disso é uma expressão artística
que apresenta um Brasil híbrido. A respeito dessa apreensão da realidade que se descortina
a partir de “Terra em Transe” e se radicaliza com a Tropicália, Maciel indica que:

210
Terra em transe é um divisor de águas em relação às artes no Brasil na medida em que é inovador
esteticamente. No entanto, ele é um filme político. Rodado após os eventos de 1964, ele não deixa de expressa
a frustração frente o triunfo da direita e a constatação de que a revolução socialista não vingou. O filme é um
retrato metafórico, mas concreto do país.

148
Essa apreensão da realidade desrespeita os cânones do realismo crítico
apregoado pela estética marxista de George Lukàcs, aceita pelos círculos
intelectuais de esquerda mais sofisticados da época. Era uma ousadia
vanguardista que Lukács certamente denunciaria como mais uma manifestação
da arte burguesa. Mas esses parâmetros eram demasiados europeizantes para
vingar entre nós, demasiado ligados a uma tradição cultural que se apresenta
precária, tênue, esgarçada, entre nós. Nossos jovens artistas tinham pelo menos
tanta – ou talvez mais até – necessidade da liberdade que a vanguarda lhes trazia
do que a revolução (MACIEL, 1996, p. 112). 211

Nessa busca por liberdade estética que Caetano encontrou em “O Rei da Vela”, em
“Terra em Transe” para Gilberto Gil a fonte de inspiração foi outra encenação que o levou a
ter certeza de que havia necessidade de encontrar novas formas estéticas para as
mensagens artísticas. Assim, foi uma montagem teatral que lhe apresentou interessantes
pontos de contato e de afirmação com as experiências musicais que o grupo baiano vinha
realizando.
Por recomendação de um amigo, Gilberto Gil foi, em certo dia, a um teatro
adaptado que funcionava numa boate subterrânea da Rua Augusta. O espetáculo se
chamava “A Cantora Careca”, de autoria de Eugène Ionesco, com a direção de Líbero
Rípoli Filho. Gilberto Gil, como já conhecia a peça indicada pelo amigo, não entendeu
muito bem o entusiasmo manifestado pelo amigo e pela recomendação. Porém, Gil iria
entender logo tudo o que aquela montagem ia significar, principalmente para ele. Líbero,
assim como José Celso, ignorou os pressupostos vigentes da época: fidelidade ao texto.
Assim, Líbero valia-se do texto “como um mero pretexto para seus achados histriônicos.
Cortava pedaços, intercalava seqüências inteiras de comerciais de televisão e, ao final,
trancava as portas do teatro para um debate. Então, sozinho, representava a peça toda de
novo, explicando cada detalhe” 212 . A peça surpreendeu Gilberto Gil de uma tal forma, que
ao final do espetáculo ele fez a seguinte pergunta:
- “Como é mesmo o nome da peça?
- A Cantora Careca, do autor romeno Eugène Ionesco.
- Que nada! Só se for A Cantora Careca Contra os Flintstones!” 213

211
Lukàcs indicava como modelo os grandes autores do realismo crítico como parâmetros de certas categorias
estéticas – como a centralidade no social através do particular, do típico – e desse modo rejeitar o
experimentalismo vanguardista, visto como uma concepção burguesa e decadente da obra de arte.
212
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro de 1968. p. 179.
213
Esse diálogo foi extraído da matéria O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. 1968. p. 179.

149
Assim, havia uma busca em alguns setores do meio artístico por novas formas de se
expressar artisticamente, e, nessa vertente, foi o Tropicalismo que se tornou mais visível e
midiático.
Nesse sentido, há uma busca por uma arte mais autônoma que rompesse com o eixo
nacional-popular e uma arte burocratizada. O caminho encontrado foi a experimentação
através de combinações de estilos diferentes, misturas de veículos artísticos e outros meios
de comunicação, revertendo em um espírito percebido como transgressor e profanador da
“verdadeira arte brasileira”. Para os que buscavam novos caminhos no fazer arte aqui no
Brasil, tratava-se de uma questão de desordem.
Artistas como Hélio Oiticica, entre outros, vão buscar uma nova objetividade como
tendência central da vanguarda brasileira. Pretende-se transformar o espectador em
participante, entre “Parangolés”, táteis e móbiles 214 . Oiticica percebeu na sua obra-
ambiência Tropicália a síntese das experiências mais atuais da vanguarda com a tradição
popular brasileira mais simples e modesta. Após a realização dessa obra sintética, declarou:

A arte já não é mais instrumento de domínio intelectual, já não poderá mais ser
usada como algo supremo, inatingível, prazer de burguês tomador de whisky e
do intelectual especulativo. Só restará da arte do passado o que puder ser
apreendido como emoção direta, o que conseguir mover o indivíduo do seu
condicionamento opressivo, dando-lhe uma nova dimensão que encontre uma
215
resposta no seu comportamento.

A perspectiva norteadora desses trabalhos é a destruição dos valores tradicionais, e é


isso que liga as atividades paralelas de Glauber Rocha, José Celso, Líbero Rípoli, Hélio
Oiticica, o grupo baiano de músicos, os Mutantes, entre outros. A esse respeito, Rogério
Duprat indica:

O que importa, hoje, na música, é o que acontece quando ela é executada. Não
queremos a tal de Arte. Hoje ela deixou de ser um objeto do artista e passou a
ser um resultado coletivo. Todo mundo cria. O que importa é o happening, o
acontecimento. Existem ordens e ordens. Umas fardadas, rígidas; outras são do
tipo que impera nos programas do Chacrinha, por exemplo. Assim, no disco É

214
Era uma roupa escultura composta por tecido, corda e cores que modificavam o tom com os movimentos
do corpo.
215
OITICICA,Hélio. O aparecimento do supra-sensorial na arte brasileira. 1968. Arte em Revista No 07, ago.
1983. p. 40-42

150
proibido proibir, acho que o lado mais importante é aquele gravado ao vivo, com
vaias do público e o discurso de Caetano. 216

Duprat percebia a música como algo já gasto. Para ele, as possibilidades musicais já
tinham sido realizadas e todas tentativas de sofisticação melódica, rítmica ou harmônica
seria inútil. A esse respeito ele diz: “Por isso, a música de Gilberto Gil, Questão de Ordem,
desclassificada no festival, em São Paulo, era propositadamente antimusical. O que
interessava era o acontecimento. E, se não quiserem chamar isso de música, então chamem
a polícia”. 217
Gilberto Gil confirma essas perspectivas musicais indicadas por Rogério Duprat,
completando mais especificamente suas novas tendências musicais. Segundo ele, havia uma
preocupação em superar os limites colocados por uma melodia – duração ritmo, tonalidade.
Assim, na época, Gil buscou se aproximar das tendências da música negra internacional.
Para ele, isso era um “novo-som”, em função de seu caráter sensorial, físico, explosivo. E
isso foi percebido pelo público como uma agressão ao ouvinte. É com essa perspectiva que
o público reagiu à apresentação de “Questão de Ordem”. Nesse sentido, Gil comenta: “Mas
a agressão não foi o meu objetivo. Ela resulta do comodismo e da passividade de quem se
sente agredido. O que importa para mim é a liberdade (...)”. 218
A liberdade de criação também é o fundamental para José Carlos Capinam, que
chocou os críticos da época ao usar o “portunhol”, a rumba, em “Soy loco por ti, América”.
Capinam acreditava na criação espontânea do artista e em função dessa visão surgiu o
desejo de realizar incursões inovadoras que quebrassem a ordem vigente da cultura
brasileira. Capinam endossa outra constante do Tropicalismo, a procura da coisa nova dita
de modo novo.
Em sintonia com essas perspectivas também estava Torquato Neto, que afirmava
que existem muitas maneiras de fazer música brasileira, e que ele acreditava em todas. Esta
flexibilidade é que possibilitou o envolvimento de muitos conjuntos de música jovem no
movimento. Na maior parte dos discos e shows tropicalistas há a presença de conjuntos
como os Beat Boys e Os Mutantes. Para estes, por exemplo, Tropicalismo é um termo

216
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro de 1968. p. 180.
217
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro de 1968. p. 180.
218
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro de 1968. p. 180.

151
prático para indicar um tipo de investigação musical, no qual diversas tendências se
cruzam.
“É mais fácil dizer a um repórter a palavra Tropicalismo do que explicar, com
detalhes, o que queremos fazer. Tenho impressão de que a principal característica do nosso
Tropicalismo é a ironia que introduzimos em todas as formas musicais acabadas. Essa
ironia as embeleza. E nós, Mutantes, queremos fazer uma música, acima de tudo, bela e
alegre”. 219
A questão da ironia e do humor também estão presentes nas composições de
Torquato Neto, visto como o lírico poeta que criou “Pra te Dizer Adeus” em parceria com
Edu Lôbo e percebido como o mais radical dos letristas brasileiros:

- Quando fiz a letra de Louvação tinha absoluta certeza do valor de cada coisa.
Daí a separação que dividi o mundo em duas metades definidas – louvando o
que merece e deixando o ruim de lado. Pois já sou capaz de distinguir entre um
particular e o processo a que ele pertence. Eu não sou de plantar bananeira em
apartamento, e quando compus Mamãe Coragem não fui movido por nenhum
sentimento edipiano. O que me preocupava era desmitificar um valor
estabelecido simplesmente porque era estabelecido. No caso foi a mãe, azar.
Podia ter sido o mito do Diploma, o anel de Doutor, sei lá. A nós tropicalistas,
não interessa derrubar o Príncipe e deixar que sobreviva o Princípio. 220

Assim, o que fez a Tropicália ou Tropicalismo não foram somente os papagaios, as


bananas que viraram símbolos e se tornaram uma feição menos profunda da proposta dos
tropicalistas, ou as roupas estilizadas, o elemento “cafona”, o uso das guitarras, a blague e a
paródia entre, outros. Tropicalismo também não se restringiu somente à música e aos
baianos. O que denominamos de Tropicalismo, ao que parece, engloba um conjunto de
opções nem sempre convergentes, mas sinônimo de uma série de atitudes e posturas
estéticas que nem sempre tinham como ponto de partida as mesmas matrizes ou
sinalizavam os mesmos objetivos. No entanto, o termo abarca uma série de atividades que
visavam romper com a ordem cultural estabelecida, percebida como uma “camisa de
força”. Havia nesse conjunto de atividades a proposta de romper com o tradicional e
entronizar a experimentação, a consagração da mistura e principalmente a liberdade como
tônica.

219
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro de 1968 p. 180
220
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. Dezembro de 1968. p. 180

152
Finalizo este item com as palavras de Caetano Veloso, que expressam o significado
mais amplo do Tropicalismo. Ele diz: “O Tropicalismo começou em mim dolorosamente. O
desenvolvimento de uma consciência social, depois política e econômica, combinada com
exigências existenciais, estéticas e morais que tendiam por tudo em questão (...). tudo o que
veio a se chamar de Tropicalismo se nutriu de violentações de um gosto amadurecido com
firmeza e defendido com lucidez” (VELOSO, 1997, p. 254).

4.3 A profanação do terreno sagrado da música popular brasileira

No âmbito musical, o trabalho que marca definitivamente o movimento é Panis et


Circensis, considerado um manifesto que indicava que o Tropicalismo ia ser mais que uma
onda, uma moda como acreditavam os críticos ferrenhos do movimento. Este LP é fruto do
encontro de Gilberto Gil, Torquato Neto, Nara Leão, Os Mutantes e, especialmente Rogério
Duprat. Panis et Circensis significou um marco, pois a perspectiva apresentada não era
somente de puro interesse musical, mas um interesse de ordem musical mais abrangente:
era uma proposta vigorosa e criativa à “camisa-de-força”, à vigência de músicas
consideradas como subprodutos e à complacência bossa-novista. Isto para a época era uma
ousadia, “mas, ao ouvir-se faixas do LP, tinha-se a nítida impressão de uma batalha ganha:
desde ‘Coração materno’, de Vicente Celestino, interpretada por Caetano, até o coro do
hino ao ‘Senhor do Bonfim’, o disco parecia equivaler a um manifesto de engajamento”
(MACIEL, 1996, p.194).
Como artistas já bastante populares, Caetano Veloso e Gilberto Gil participam dos
famosos festivais da canção. Em suas apresentações já se fazia sentir a “ruptura”
tropicalista empreendida por estes artistas e a reação da esquerda. A vanguarda tropicalista
escolheu os festivais para apresentar de forma definitiva suas propostas. Neste “palco”
(considerado terreno do tradicional), vai ocorrer um embate tendo de um lado uma
juventude “engajada” de esquerda que afirmava, entre outros pontos, o fundamento: “Fora
da arte política, não há arte popular”. Este segmento defendia uma produção artística com
base em um expresso e bem definido objetivo político-social. Numa outra vertente estava a
vanguarda artística que Caetano Veloso, Gilberto Gil e José Celso Martinez representavam

153
através do Tropicalismo. 221 “Aparecia a grande opção para a música brasileira depois das
lutas entre Bossa Nova e o samba tradicional, da Bossa Nova contra a Jovem Guarda. Todo
mundo discutia se aqueles sons eletrônicos, aquela letra fragmentada podiam ser
considerados como realmente brasileiros. 222 ”
Para Caetano Veloso, o Tropicalismo era uma retomada da linha evolutiva da MPB,
com a associação antropofágica de influências externas (guitarras) o que resultou uma
retomada criativa da tradição cultural brasileira. Para ele, a Bossa Nova tinha perdido seu
caráter evolutivo e vanguardista ao se acomodar num academicismo e purismo. A seguir,
dois trechos nos quais Caetano Veloso indica suas percepções a respeito de dois momentos
da Bossa Nova.
Ele primeiramente diz que quando a Bossa Nova surge, ela “aparecia para o Brasil
como a máquina a vapor para a Inglaterra. Era um marco a partir do qual tudo era
referenciado. Naquele tempo, tudo era Bossa Nova, como sinônimo de diferente, de novo”.
223
Seria o que hoje chamamos “Pra frente”. 224 Caetano Veloso indica assim, que a Bossa
Nova tinha representado uma “linha evolutiva” na música brasileira, mas que havia se
acomodado. Para ele, o aspecto da música inaugurado pela Bossa Nova com João Gilberto,
deveria ser retomado, na medida em que esse aspecto apontava para uma modernização. A
esse respeito, ele em 1966 esclarece suas perspectivas nesse sentido, como podemos
perceber num trecho de um texto da Revista Civilização Brasileira, onde ele tece as
seguintes considerações:

221
Para o Tropicalismo, o ano de 1967 foi decisivo, pois Caetano Veloso mudou seu perfil artístico.
Impressionado com a Jovem Guarda e influenciado pela música pop americana, ele despiu-se da imagem de
“bom moço”, tímido e bossa-novista, e se destacou no III Festival de Música da Record, conseguindo
conquistar o quarto lugar, com a canção “Alegria Alegria”, tornando-se um ídolo popular. Nesta nova fase,
deixou os cabelos crescer, optou por figurinos tipo hippie estilizado e introduziu as guitarras elétricas em suas
produções. Segundo Bueno, “os dois baianos tinham criado o movimento Tropicalista – releitura pop e hippie
da Antropofagia de Marioswald. Baseados – na verdade, muitíssimo baseados – em tudo que acontecia de
novo e de jovem em um país ainda fervilhante – cinema novo, os experimentalismos do Teatro Arena e do
Opinião, os ecos da bossa nova, a “rebeldia” pop da jovem guarda, a cultura televisiva, Chacrinha e as
telenovelas, a poesia concretista, a pintura de Hélio Oiticica -, Caetano e Gil fermentaram a geléia geral
brasileira, acima e além da caretice” (BUENO, 2003, p. 385). Ver também sobre o assunto em: Moreira
(1986).
222
BAR, Décio. Acontece que ele é Baiano. Realidade. 1968. p.195.
223
. O ano de 1960 representou o pico de um ciclo de ufanismo que se infiltrava em todos os poros da
consciência nacional. Havia a Bossa Nova, o Presidente JK (o Presidente Bossa Nova) percebido como
moderno, a construção de Brasília e a plena implantação da indústria automobilística entre outros.
224
Cf: BAR, Décio. Acontece que ele é Baiano. Realidade.1968. p. 191

154
Ora, a música brasileira se moderniza e continua sendo brasileira, à medida que
toda informação é aproveitada (e entendida) da vivência e da compreensão da
realidade brasileira (...) Para isso nós da música popular devemos partir, creio,
da compreensão emotiva e racional do que foi a música popular brasileira até
agora; devemos criar uma possibilidade seletiva como base na criação. Se temos
uma tradição e queremos fazer algo de novo e dentro dela, não só temos que
senti-la mas conhecê-la. É este conhecimento que vai dar a possibilidade de criar
algo novo e coerente com ela. Só a retomada da linha evolutiva pode nos dar
uma organicidade para selecionar e ter um julgamento de criação (...) Aliás João
Gilberto, para mim, é exatamente o momento em que isto aconteceu: a
informação da modernidade musical utilizada na criação, na renovação , no dar
um passo à frente da musica popular (FAVARETTO, 1979, p. 23) 225

Segundo Napolitano & Villaça (1998), a forma que Caetano Veloso define o termo
da linha evolutiva parece indicar uma “temporalidade própria da idéia de vanguarda:
reafirmação, cultural e ideológica, de rupturas, como eixos determinantes da relação arte-
sociedade” (NAPOLITANO & VILLAÇA, 1998, p. 07).
Já num outro momento, em fase de ditadura, havia uma turma que começava a fazer
algo diferente em termos de música: Caetano Veloso se refere a Chico Buarque, Toquinho,
entre outros, que de uma forma ou de outra, estavam tentando fazer algo diferente na
música popular brasileira. “Embora já tendêssemos cada qual para o seu próprio caminho,
havia um ponto em que concordávamos perfeitamente: era preciso um aprofundamento em
nossos recursos técnicos (...)”. 226
Assim, vai surgir um grupo de artistas que não se restringia somente ao campo
musical; que vão buscar outras técnicas que possibilitassem novos caminhos de
comunicação, o que vai causar uma grande efervescência cultural: artes plásticas, música e
teatro. E, enquanto isto, a Bossa Nova, nas palavras de Caetano Veloso:

A Bossa Nova tinha perdido seu sentido libertário, partindo para um tipo de
música acadêmica, buscando dessa forma sensibilizar o povo que estava mais
preocupado com coisas novas, como os Beatles ou Roberto Carlos, por
exemplo. Então, ninguém se dava conta de que a evolução não parava, que
Roberto Carlos era o João Gilberto da Jovem Guarda. Essa, então, era
combatida como se fosse uma praga ou uma heresia. A meninada procurava
arrumar um sotaque nordestino para lastimar as falta de reforma agrária. Eles
se preocupavam com um detalhe, ao passo que Roberto Carlos e a juventude
em geral já mandavam tudo para o inferno. Roberto derrubou padrões
estabelecidos,oficializando a tendência irreverente do brasileiro em relação à

225
Trecho do debate promovido pela Revista Civilização Brasileira e reproduzido em Celso Favaretto (1979).
226
BAR, Décio. Acontece que ele é baiano. Realidade. 1968. p. 192

155
aparência dos chamados homens sérios. Ele vinha para impor um gosto livre,
conseqüentemente um uso mais livre. 227

Mas, em 1965, Caetano Veloso ainda não tinha se detido sobre o fenômeno das
guitarras. O que ele propunha em um Festival de Música Popular era ainda fruto de suas
pesquisas literárias. Em função dessa perspectiva, sua composição “Um Dia” conquistou o
prêmio de melhor letra. Uma foto da época mostra-o muito engravatado e de cabelos rentes
à cabeça no estilo brilhantina, recebendo com um sorriso encabulado o seu prêmio.
O ano seguinte foi um ano marcante para a carreira de Elis Regina, que cantava
músicas de Caetano Veloso e Gilberto Gil, lançando-os também em seu programa. Gilberto
Gil estava em São Paulo, vindo da Bahia para trabalhar como administrador de uma fábrica
de sabonetes. Foi apresentado a Elis Regina por Edu Lobo. Suas apresentações no
programa “O Fino” provocaram apreensões na empresa onde trabalhava, pois, era
inconveniente e constrangedor um chefe de sessão aparecer na TV cantando aquelas coisas
“tão subversivas e incompatíveis com o espírito da empresa”. 228 Resultado, Gilberto pediu
demissão da empresa e passou a dedicar-se exclusivamente a compor. Sobre este período
Gilberto Gil esclarece:

Me casei em 26 de maio de 1965, dia 7 de junho de 1965 eu chego em São


Paulo, à tarde, e à noite me levam para o teatro Record onde ia acontecer o
segundo programa do Fino da Bossa, no qual aparecia pela primeira vez Ari
Toledo, cantando e fazendo um imenso sucesso. E eu sentado lá na platéia, e aí o
Zimbo Trio, Elis Regina etc., e aí eu já fiquei louco, já decidi que tava na hora
de naquele bolo. No outro dia comecei a trabalhar na Gessy, mas já sabia que
meu negócio era música. Fiquei na Gesy, trabalhando, trabalhando, trabalhei um
ano, aí conheci Vinícius, nesse período foi que Bethânia estava com o Opinião
aqui em São Paulo. E aí eu comecei, né? Redondo. Todo fim de semana de
tarde, acabava o trabalho, chegava eu de pastinha, e gravata, paletó, punha a
malinha de lado, sentava lá no Redondo e tomava aquele chope. Aí aparecia o
Vinícius, o Baden de vez em quando. Bethânia já tava conhecendo o pessoal
todo, me apresentava, e tal, aí a gente sempre tocava um violãozinho. Nessa
época eu tava morando na cidade Vargas, trabalhando na Gessy mas o tempo
todo voltado pra o mundo da música. Aí assistia a todos os Fino da Bossa, na
Record, batendo papo ali no corredor, com todo mundo, Bethânia me
apresentando a um hoje, outro amanhã;; e eu com Caetano, ficando amigos da
turma, até que o Boal inventa de fazer (...) Arena canta Bahia, ali do lado do
Redondo mesmo. Bethânia tinha acabado o Opinião, os amigos, o irmão dela,

227
BAR, Décio. Acontece que ele é baiano. Realidade. 1968. p. 192
228
BAR, Décio. Acontece que ele é baiano. Realidade. 1968. p. 195 e ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo
tudo. Bondinho. 11 a 24 de novembro. 1971. p.22.

156
tavam aí, Caetano fazia música, o amigo Gil estava, Gal tava aí, nessa época,
também. Tomzé já tinha vindo. Pronto, aí fizemos O Arena canta Bahia. Foi
mais ou menos. Aí Caetano voltou pra Bahia e eu fiquei fazendo Tempo de
Guerra, já no Oficina, com Bethânia, Gal, Tomzé e tudo o mais. Isso aí já era o
fim de 65, ou começo de 66, não me recordo bem. A Elis grava “Louvação”, é
aquele estouro; comecei a cantar na televisão, depois um show com Vinícius e
Bethânia no Rio, me mudei pro Rio de Janeiro, gravei o primeiro disco com a
Philips. 229

Aconteceu mais um Festival, Gilberto Gil foi premiado e Caetano Veloso


conquistou o quinto lugar. Caetano Veloso já estava ficando conhecido como o cantor de
voz baixa e letras complexas, o irmão de Maria Bethânia, a cantora de “Carcará”. Sem
contar que já tinha composto “É de Manhã”., “Um Dia” e “Boa Palavra” e era amigo de
Gilberto Gil, o autor de “Louvação”, premiada no Festival.

Especialmente esta música deu ao Gil a oportunidade de comandar um programa


de televisão em resposta ao “O fino...” Eu vinha do Rio toda semana para fazer o
programa, e já vinha de farda, quer dizer, já vinha de smoking. O programa
acabou esvaziando logo, mas só depois é que a gente entendeu o porquê. Nós
estávamos tentando alimentar uma guerra que, a gente entendeu o porquê. Nós
estávamos tentando alimentar uma guerra que já não estivesse perdida há muito
tempo, era pelo menos sem sentido, que era a luta contra a Jovem Guarda e seu
principal armamento – a guitarra. 230

O ano de 1966 pode ser visto como os últimos minutos de um período cultural que
trouxera em seu bojo o prêmio de Aldemir Martins na Bienal de Veneza, a inauguração de
Brasília, Antônio Carlos Jobim e João Gilberto eram percebidos como sucessores de Ari
Barroso como exemplo de música brasileira no exterior. Carlos Lyra já tocava com Stan
Gertz, João Gilberto já morava fora do Brasil. E, a voz brasileira que se destacava lá fora
era de uma Astrud Gilberto, que cantava em inglês e era desconhecida no Brasil. Segundo
Caetano Veloso, “por aqui, havia a maior confusão. O pessoal que comprava os discos dos
Beatles e dançava Roberto Carlos na boate, por uma crise de consciência, pensando estar
traindo a Pátria, resolveu retroceder todo o caminho percorrido pela Bossa Nova. Diziam
que bom mesmo é o ‘sambão’. No duro mesmo, ninguém mais tinha certeza de nada.” 231

229
Depoimento a ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo tudo. Bondinho. 11 a 24 de novembro. 1971. p.22.
230
BAR, Décio. Acontece que ele é baiano. Realidade. 1968. p. 195
231
O grifo não faz parte do original. Tropicalismo é nosso, viu? Realidade.Dezembro de 1968. p. 195

157
Um programa de TV que atingia altos pontos no IBOPE em 1967 era “Esta Noite se
Improvisa”, onde seu foco era conhecer música e ter uma boa memória para responder
rápido o que era pedido. Caetano Veloso revelou-se um campeão de primeira, quase sempre
disputando com Chico Buarque e Carlos Imperial, que por coincidência acabam
representando três vertentes da música popular. Caetano descreve a seguir seu insight:

Foi nesse ano que aconteceu o estalo. O público começou a reparar em mim,
graças a um detalhe quase circense, ou seja a facilidade que tenho até hoje de
decorar letras de músicas. Depois, passaram a notar meu aspecto plástico –
minha magreza e meu cabelo que finalmente tinha recebido independência do
pente e da tesoura. O pessoal do auditório costumava jogar flores e bombons
para os seus ídolos. Para mim, jogavam pentes aos montes. Comecei a juntar as
duas coisas: havia um efeito circense que era a minha capacidade de lembrar, a
partir de uma palavra, a letra de velhas melodias de Orlando Silva ou Carmem
Miranda; havia também o efeito plástico de minha magreza e minha cabeleira.
Faltava apenas um efeito sonoro que realizasse a grande síntese. Eu descobria
que, quando falava da Bahia, todo mundo pensava naquela Bahia pintada por Ari
Barroso, “das igrejas todas de ouro”. Afinal de contas, eu era baiano, sim, mas
também um jovem de vinte e poucos anos morando na cidade mais cosmopolita
do continente, respirando o ar das fábricas, o universo da tevê, das histórias em
quadrinhos, da propaganda, e, sobretudo, vivia num lugar que tinha como fundo
232
musical o som das guitarras elétricas.

A descoberta de tudo isso foi impulsionada pelo encontro de outras forças criadoras
que estavam inconformadas com o rótulo que lhes atribuíam o público. O maestro Rogério
Duprat era rotulado como um músico de vanguarda, era o músico com formação européia;
o conjunto Os Mutantes era somente um trio que acompanhava Ronnie Von; Os Beat Boys
se destacavam apenas por serem cabeludos e argentinos; Gilberto Gil tinha adquirido
respeito por se autor de “Louvação”; Caetano Veloso era o baiano de ótima memória, irmão
de Maria Bethânia, a cantora de Carcará. O ano de 1967 iria reuni-los todos como
iniciadores do ciclo de “festivaia” no Brasil e como precursores de um procedimento
criativo que assume a estética do “mau- gosto” ou “cafona” como parte dos procedimentos
de vanguarda.
No Festival da Canção de 1967, Caetano e Gil cantaram respectivamente “Alegria
Alegria” e “Domingo no Parque”. Naquele ano, o impacto da novidade (uso de guitarras
elétricas, letras fragmentadas) não permitiu uma reação tão contundente da platéia como foi

232
BAR, Décio. Acontece que ele é baiano. Realidade. 1968 p. 195

158
em 1968. A reação está ligada à esquerda, que se posicionou de modo consistente contra a
inovação tropicalista, na medida em que não aceitava as liberdades estéticas propostas
pelos baianos, Rogério Duprat e Os Mutantes. Acusava esses artistas de serem alienados e
vendidos para o imperialismo cultural norte-americano. Em relação a essa acusação,
Caetano comentou em entrevista na época:

A esquerda festiva encontrou no festival de 1967 sua primeira oportunidade de


expor seus recalques e preconceitos. Apesar de tudo, cantei com os Beat Boys
Alegria, Alegria e fui classificado em quarto lugar. Gil cantou Domingo no
Parque com Os Mutantes e ganhou o segundo. Rogério Duprat foi considerado o
melhor arranjador do Festival. Foi a Glória, mora. 233

A presença dos Mutantes era percebida como uma profanação de um espaço


sagrado da chamada música popular autêntica: eles eram então um conjunto de iê-iê-iê e, o
mais grave ainda, invadiram o Festival empunhando guitarras elétricas. “Os puristas da
música popular tinham espasmos de indignação. – Quando nós pisamos no palco, com
roupas coloridas e guitarras – relembra Sérgio – foi aquela vaia”. 234
O público e a crítica se dividiam ao tentar definir Os Mutantes, até mesmo porque
eles próprios colaboravam para essa confusão. Eram parte do “grupo baiano”, sem ser
baianos. Tornaram-se parte dos tropicalistas sem ser tropicalistas, e sem entender bem
exatamente o que era aquilo. Cantaram e tocaram música popular estrangeira e música
erudita. Na época o que queriam era encontrar um caminho diferente na música popular e
isto eles vão conseguir fazer com bastante sucesso. Mas até então, iriam encontrar muita
vaia pela frente.
“O grande momento de afirmação de Os Mutantes foi precisamente diante de uma
vaia formidável, dada pelas 2 mil pessoas que lotaram o Teatro Paramount, da TV Record
(...) quando eles acompanharam Gilberto Gil em Domingo no Parque, em setembro de
1967. A presença dos três ali significava uma profanação de um reduto da chamada música
popular autêntica”. 235
Antes desse episódio, a chamada música popular brasileira, ou os defensores de uma
pureza desse domínio, se colocavam em uma cruzada contra a Jovem Guarda ou “numa

233
BAR, Décio. Acontece que ele é baiano. Realidade. 1968. p. 195.
234
SOARES, Dirceu. Os Mutantes são demais. Realidade. Junho de 1969. p. 132
235
SOARES, Dirceu. Os Mutantes são demais. Realidade. Junho de 1969. 132

159
frente ampla contra a Jovem Guarda”. Esse tipo de postura pode ser ilustrado através do
seguinte posicionamento: “Antes de mais nada, devemos defender o que é nosso. Isso que
estão fazendo não é música brasileira. É uma onda que não vai durar muito. Temos certeza
de que o samba, o nosso ritmo mais autêntico, vai voltar na voz do povo!” 236
Este tipo de pensamento foi dirigido à Jovem Guarda quando ela começou a se
tornar um fenômeno, mas tal perspectiva foi igualmente dirigida aos tropicalistas pelos
defensores da “autêntica música brasileira” ou puristas. Segundo a fala de uma reportagem
daquele contexto, “não se tratava mais da disputa entre bossa-nova com o ié- ié- ié: agora
não há mais a frente ampla, há o CCC – Comando de Caça a Caetano. Agora não há mais
Jovem Guarda, há o Tropicalismo”. 237
O chamado Comando de Caça a Caetano condenava as inovações realizadas pelo
grupo tropicalista com o uso da guitarra e a sintonia com a cultura urbana internacional. Por
seu lado, o que Rogério Duprat, Caetano Veloso e Gilberto Gil queriam com a presença dos
Os Mutantes era uma tentativa de ligar duas correntes da música popular brasileira: a
tradicional, executada com arranjos característicos e instrumentos brasileiros ou já
integrados há muito no país, e o iê-iê-iê.. “O maestro Rogério Duprat, que há anos fazia
música eletrônica em Brasília e que foi o autor do arranjo definitivo de ‘Domingo no
Parque’, resolveu colocar as guitarras elétricas como provocação aos tradicionalistas:
tratava-se de enfrentá-los em seu santuário, seu campo mais forte, o festival da Record. Era
uma grande cartada.” 238
Até aquele momento, Os Mutantes praticamente só tinham tocado música jovem
estrangeira, cantando em inglês, mas também desejavam fazer música brasileira, contanto
que fosse algo diverso do que era executado no Brasil. E, por acaso, o maestro Chiquinho
de Morais, que já tinha os visto tocando na TV Bandeirantes, convidou-os para acompanhar
Nana Caymmi na gravação de “Bom Dia”, de autoria dela e de Gil. Gilberto Gil estava
buscando um grupo jovem, pouco conhecido e sem vícios musicais, para fazer um
acompanhamento em “Domingo no Parque”. Sobre isso, Arnaldo Batista comentou na
época: “Ele nos mostrou a música e falou de novas idéias, para o emprego da eletrônica na
execução de músicas brasileiras, com letras funcionais, quase como as histórias em

236
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade.1968. p. 177.
237
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. 1968. p. 177.
238
SOARES, Dirceu. Os Mutantes são demais. Realidade. Junho de 1969. p. 133

160
quadrinhos, em forma de colagens pop ou concretistas, combinando sons e palavras, mas
sem perder a característica nacional. Eu, Sérgio e Rita vibramos: estava ali o caminho
musical que procurávamos”. 239
A partir dessa apresentação, abre-se uma alternativa para a música brasileira depois
das lutas entre Bossa Nova e o samba tradicional, da Bossa Nova contra a Jovem Guarda.
Todo mundo se assombrava e discutia se aqueles sons eletrônicos e aquela letra
fragmentada podiam ser considerados como realmente brasileiros. Essas novas mediações
causaram polêmicas e criaram impactos nos críticos, nos puristas, mas cairam no gosto
popular e passaram a influenciar as futuras produções musicais.
Até os alunos da cadeira de Literatura da Universidade de São Paulo (USP) e
ligados à esquerda, após longo estudo do fenômeno, concluíram que “Alegria, Alegria”
nada mais era que um “hino à alienação”, onde aparecia “o fluir da existência
transpassando o caos”. 240 Acreditavam que se tratava de uma onda que logo passaria sem
deixar registros significativos. 241 Já um professor, Chaim Samuel Katz, comentou na época
a respeito de Caetano e sua música: “Suas letras não podem ser tomadas ao nível do
inconsciente. Ele é o menos alienado de todos”.242
Alimentando a polêmica em torno de “Alegria, Alegria”, Augusto Campos
considera que esta canção tem uma importância histórica similar à de “Desafinado”. Para
ele, “Alegria, Alegria” consegue romper com a perspectiva purista que interrompeu o
movimento de evolução da MPB iniciada com “Desafinado”. Ao contrário dos estudantes

239
SOARES, Dirceu. Os Mutantes são demais. Realidade. Junho de 1969. p. 133. Os Mutantes, após o
Festival, continuaram se apresentando com os tropicalistas. O prestígio do grupo cresceu assustadoramente
em função da ligação com o “grupo baiano”. Caetano tinha composto uma música para eles, era Panis et
Circenses, gravada no LP Tropicália, que definiu oficialmente a linha tropicalista. É considerado por muitos
críticos como melhor álbum de 1968. Neste trabalho, Os Mutantes faziam o acompanhamento da metade das
faixas, doze no total. Mas eles também já eram conhecidos e logo perceberam que não podiam ficar como
simples coadjuvantes e foram cuidar de desenvolver um trabalho próprio. Afinal com o “grupo baiano” eles já
tinham percebido qual era a saída para a música brasileira, ou seja, eles iriam compor suas próprias músicas,
fazer seus próprios arranjos, dentro de uma linha que fosse jovem como eles e ao nível das estrangeiras, mas
ao mesmo tempo brasileira. Segundo Arnaldo, “- o fato de as músicas serem brasileiras não é apenas um
detalhe patriótico (...). Há todo um campo a explorar, porque a nossa música ainda é nova, num país nôvo,
sem tradição. Existem recursos primitivos que podem ser aproveitados (...)” Esta citação foi retirada da fonte
já indicada nesta nota.
240
BAR, Décio. Acontece que ele é baiano. Realidade. Dezembro de 1968. p.195.
241
A ala estudantil e ligada a esquerda, defendiam o samba coma a verdadeira musica brasileira e também
eram partidários, obviamente das musicas de protesto, A partir disso, surge uma rivalidade no campo musical
entre Caetano Veloso (representante dos alienados e “desbundados”) e Chico Buarque (representante da
musica brasileira e o preferido da esquerda).
.242 BAR, Décio. Acontece que ele é baiano. Realidade. Dezembro de 1968, p.195.

161
de literatura, Augusto Campos também não via nada de alienação nessa música. Para ele,
“Alegria, Alegria” representava um “desabafo-manifesto ante a crise de insegurança que
gerando outros preconceitos, ameaçava interromper a marcha evolutiva da MPB (...)
Furando a maré redundante de ‘violas’ e ‘marias’ a letra de Alegria traz o imprevisto da
realidade urbana, múltipla e fragmentada, captada isomorficamente, através de uma
linguagem nova, também fragmentada (CAMPOS, 1993, p. 152). Com essa perspectiva ,
Augusto Campos ainda usa “Alegria, Alegria” para provocar e criticar o tipo de música
aceita como a autêntica música brasileira. Com essa intenção ele usa “Banda”, de Chico
Buarque, para dizer que a música de Caetano percorre o caminho inverso da de Chico
Buarque: “Das duas marchas esta mergulha no passado, na busca evocativa das purezas das
bandinhas e dos coretos da infância. ‘Alegria’, ao contrário, se encharca de presente, se
envolve diretamente no dia a dia da comunicação moderna, urbana, do Brasil e do mundo”.
(CAMPOS, 1993, p.153)
Como disse o professor citado acima, Caetano deve ser considerado o “menos
alienado” em função de que sua composição expressa justamente a apreensão que ele teve
do momento em que vivia, onde havia, de um lado, a questão do “conservadorismo” da
música popular, a negação à inovação, o fechamento dentro de uma perspectiva purista
rejeitando qualquer contribuição externa e, por outro, uma realidade que se impunha, que
era a visibilidade de uma cultura urbana – publicidades, grandes marcas, manchetes,
guitarras, amplificadores, letreiros, diversidade de publicações, indústria cultural, asfalto,
diversidade de cores, concreto armado e estruturas metálicas, entre outros –, que não
poderia ser desconsiderada.
Caetano, em “Alegria, Alegria”, captou a feição urbana do Brasil e assimilou a
cultura pop internacional. Nesse trabalho, ele musicalizou. tudo o que vivia, transformando
os diversos elementos que o cercavam em algo cinematográfico, onde a comunicação era
realizada de forma simples como a de um cartaz ou um outdoor, onde se buscava vender o
produto com textos e fotos. “Alegria, Alegria” parece expressar a constatação da
emergência de novas mediações e mediadores daquele contexto. A intenção era expressar
essa cultura urbana que era traduzida nas canções em forma de colagens e flashes.
O escândalo estava lançado, e daí por diante começou o processo de tentar entender
o que tudo aquilo significava. Quando os puristas já estavam prontos a aceitar sua música

162
como algo mais que um jingle da coca-cola, ele volta a carga compondo especialmente para
Ronnie Von, desmistificando a rosa natural em favor da flor de plástico. Seu cabelo
continuava a crescer, facilitando o julgamento da crítica perplexa: “Se ele tem algum
negócio com o zelador, o problema é dele.” 243
As figuras de Caetano Veloso e Gilberto Gil, e suas apresentações, causavam
polêmica, mas começavam a disputar com Roberto Carlos e Chico Buarque a preferência
do povo. A massa ficava com O Rei da Juventude, os universitários cultuavam Chico
Buarque e, afinal, quem gostava de Caetano Veloso, Gilberto Gil e companhia?
O certo é que eles ficavam cada vez mais conhecidos pelo grande público que
acompanhava seus “exotismos” e qualquer coisa que fizessem era visto ou mal visto e
percebido como excentricidades. Segundo Gil,

a gente era o que a gente era... É insuportável pra certas pessoas a visão do
concreto, a visão de uma pessoa inteira ofusca, a visão da integridade é uma
coisa dura, rapaz, no mundo do dual. As pessoas... pra todo lado bom tem de ter
o lado mau. Então era isso. As pessoas escolhiam o lado bom meu, como sendo
o que eu tinha deixado; e entendiam como mau aquilo que eu tava assumindo.
Eu era visto como uma figura demoníaca, mefistofélica, com aquele bigode,
aquela barba. Inclusive (...) as pessoas têm negócio de dizer que eu fico melhor,
eu fico melhor sem barba. Eu não fico melhor, eu fico outra coisa. Eu com barba
tenho uma face, sem barba tenho outra... Eu é que não vou assumir pra mim
mesmo que com barba sou o mal, e sem barba sou o bem... 244

O casamento de Caetano, de forma similar, também é um momento significativo do


impacto que a postura desses baianos causaram no Brasil do final da década de 1960. “Há
muitos anos Veloso conhecia Dedé, mas o publico conheceu-a de repente, quando correu a
notícia de mais um escândalo do baiano: ele ia se casar”. Caetano aponta que sua decisão
estava ligada com o seu momento de vida, onde seus projetos musicais estavam sendo
implantados, daí a decisão de se casar. Segundo ele: “Eu acabava de, finalmente,
reencontrar a linha de evolução que julgava brotar da Bossa Nova. Tinha conseguido uma

243
BAR, Décio. Acontece que ele é baiano. Realidade. Dezembro de 1968. p.195.
244
Depoimento a ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo tudo. BONDINHO. 11 a 24 de novembro. 1971. p.
27. Esta fala de Gilberto Gil é um comentário às condenações que foram feitas na época por ele ter deixado
um emprego promissor numa multinacional e abandonado a imagem de moço engravatado, executivo em
favor da carreira artística e principalmente, segundo percepção da época, “naqueles termos tão escandalosos”
(tipo de música e visual adotado)

163
grande certeza em meu trabalho e, ao mesmo tempo, perdera o medo do meu amor. Tudo
isso merecia uma festa”. 245
A festa a qual Caetano Veloso se referia foi o seu casamento que ocorreu em
Salvador. Em função desse acontecimento, a cidade fechou o comércio, os estudantes
abandonaram as escolas, o prefeito de Santo Amaro da Purificação decretou feriado e
colocou oito ônibus à disposição do povo. A Igreja foi descrita como estando “apinhada” de
jornalistas, cabeludos, fãs à beira do desmaio e o padre proclamava a quem quisesse ouvir:
“Se a noiva vier de mini-saia, eu não realizo a cerimônia!” 246
A noiva, Idelzuite Gadelha (Dedé), chegou com um manto cobrindo sua míni-saia,
poucas flores na mão, muitas pintadas no rosto. O noivo, Caetano Emanuel Vianna Veloso,
apareceu com uma camisa vermelha de gola alta. Alguém observou que, com aquele traje, a
cerimônia não se realizaria. Caetano trocou sua camisa com a de um irmão e achou que
estava mais discreto, com uma camisa cor de abóbora. Ao final, Caetano não teve a certeza
se realmente houve a cerimônia.
Assim, no próprio casamento de Caetano, há presença de um espírito anárquico e
afeito à incorporação de domínios inusitados. O casamento foi realizado numa instituição
tradicional (a Igreja), buscando sacramentar a formação de um núcleo familiar, outro
elemento tradicional, mas lançando mão de uma liberdade, de uma autonomia, quebrando
convenções dentro de uma tradição que é o casamento.

4.4. É proibido proibir: tudo está solto no exercício da liberdade

Retomando as participações dos baianos nos festivais, em 1968, Caetano vai


apresentar no III Festival Internacional da Canção, realizado no TUCA (Teatro da
Universidade Católica), a música “É Proibido Proibir”, que vai causar grande impacto pelo
grau de experimentalismo e espírito transgressor. A primeira apresentação foi na fase
classificatória, onde a performance ocorreu da seguinte forma:

“É proibido proibir” se transformou, com a ajuda dos Mutantes e de Rogério


Duprat ( que escrevera um arranjo para orquestra, orientou a introdução atonal
com sabor de música eletrônica execultada pelo grupo), numa peça de grande

245
BAR, Décio. Acontece que ele é baiano. Realidade. 1968. p. 196
246
Acontece que ele é baiano. Realidade. 1968. p. 196.

164
poder de escândalo. Meu cabelo estava muito grande e, entregue à sua própria
crespidão rebelde (...).Eu estava vestido com uma roupa de plástico verde e
preta, o peito coberto de colares feitos de fios elétricos com tomadas nas pontas,
correntes grossas e dentes de animais grandes.(...) Essa roupa (...) fazia
parecerem bem- comportadas nossas então já usuais (mas ainda escandalosas)
“camisolas”africanas de estamparias vivas, e até mesmos os trajes de ficção
científica que os Mutantes usavam ali mesmo ao meu lado no palco (...). Depois
da longa introdução – que já arrancava vaias por seu atonalismo e sua total
indefinição rítmica – eu começava a cantar os tolos versos (“A mãe da virgem
diz que não/ E o anuncio da televisão/ E estava escrito no porão”)
acompanhando- os de uma dança que consistia quase exclusivamente em mover
os quadris para frente e para trás, porém não tanto à maneira brusca e algo
mecânica de Elvis, antes ao modo relaxadamente sexual das baianas, das
sambistas de morro, dos homens e mulheres cubanos. Como se não bastasse, a
uma certa altura o canto e a dança eram interrompidos (mas não os efeitos dos
Mutantes) para dar lugar à declamação do poema de Fernando Pessoa sobre d.
Sebastião, o rei português que morreu ainda adolescente na última (e irrealista)
cruzada, nas areias de Alcácer Quibir, e cuja volta é conjurada até hoje em
rituais populares brasileiros em geral ligados ao culto do Espírito Santo,
constituindo um mito que alguns intelectuais dos dois lados do Atlântico (Sul)
muitas vezes retomam para significar o anúncio de uma nova era (o ‘Quinto
Império’) para o mundo (...) (VELOSO, 1997, p. 300).

Segundo Caetano, declamar o poema num programa de televisão, misturado com


guitarras e slogans surrealistas tomados em empréstimo por estudantes franceses, se
transformava em um desafio formal e também significava forçar uma percepção
implausível no ambiente. Com o objetivo de enfatizar o contraste, Caetano inverteu a
expressão popular “o diabo está solto”, ao bradar “Deus está solto”. Após anunciar essa
frase entrava no palco do teatro um rapaz americano, cuja presença não foi avisada nem
para os organizadores do evento. Caetano gritava

“Deus está solto”, como que anunciando a entrada no palco (...) de um rapaz
americano, John Danduram, um gringo evidente, alto, muito branco, envolto
num poncho hippie, sem um fio de cabelo em todo corpo, dando urror e
grunhidos inarticulados. A platéia, no auditório do TUCA (...),
predominantemente estudantil e comprometida com um nacionalismo de
esquerda (quer dizer, anti- imperialista), reagiu com violenta indignação. Várias
caras conhecidas se mostravam ostensivamente hostis a mim e não poucos
entremearam as vais convencionais (uuuuuuuu) com xingamentos e palavrões
(VELOSO, 1997, p. 301)

A experiência realizada por Caetano provocou indignação na platéia, que condenava


radicalmente tudo aquilo. O objetivo de provocar, inquietar, foi alcançado. A platéia odiou,

165
mas o júri composto por indivíduos mais velhos percebeu naquela postura algo inovador e
positivo e classificou a música para a próxima etapa do Festival.
O poema que é utilizado nesse happening é do livro “Mensagem”, obra de Fernando
Pessoa que mais impressionou Caetano na época em que estava na faculdade, por ele
perceber esses poemas como fundadores da língua portuguesa e por ser capaz, segundo ele,
de fornecer uma dignidade ao mito em torno de D. Sebastião. Mito que é muitas vezes
ridicularizado. Segundo Caetano, o termo “sebastianismo” virou sinônimo de “impotência
auto-iludida”, um quase consensual depreciativo da crítica da cultura entre nós. Mas,
Caetano, em sua época de faculdade na Bahia, entrou em contato com uma outra
perspectiva a respeito do “sebastianismo” através do professor de português Agostinho da
Silva. Este professor divulgava entre seus alunos uma versão desse mito onde se prevê a
superação da era do cristianismo.
Agostinho da Silva, que fundou em Salvador o Centro de Estudos Afro-Orientais,
direcionava as reflexões para o horizonte de superação da predominância no mundo de uma
cultura do Ocidente protestante (a filosofia alemã, Marx, os Estados Unidos, entre outros).
A visão defendida por esse professor não se configurava como uma nostalgia do
catolicismo medieval português. “Ao contrário: sendo ele tradutor de Höderlin e dos
gregos, seu amor ao sincretismo afro-lusitanos ou luso-asiáticos (e mesmo afro-asiáticos)
não queria uma negação (ou uma desistência) das conquistas da era norte- européia”
(VELOSO, 1997, p. 301). Essa visão traz um ecumenismo que “retomava paganismos
vários prevendo uma necessária superação do cristianismo: era do Filho dará lugar à era do
Espírito Santo, com Marx e tecnologia. Algo (ou muito) disso está por trás de toda a obra
de Glauber – e, em que pesem as ironias e desconfianças, de todo o Tropicalismo”
(VELOSO, 1997, p. 301). 247
A canção de Caetano Veloso, como vimos, passa da etapa de classificação e vai
para as semifinais, o que não ocorreu com a canção de Gilberto Gil, “Questão de Ordem”.
Inconformado com a desclassificação de Gilberto Gil, Caetano Veloso resolveu realizar um
discurso contra aquela visão conservadora da esquerda brasileira e dependente dos velhos
valores quando fosse se apresentar novamente.

247
Os grifos não fazem parte do original

166
Os defensores do nacionalismo e de uma arte “genuinamente” brasileira, em geral,
eram ligados à esquerda; vão para o TUCA numa espécie de acertos de conta, em função da
apresentação de “Alegria, Alegria” e “Domingo no Parque”, no ano anterior onde foram
pegos de surpresa. Já em 1968, o público já estava preparado e reagiu com vaias e uivos
indicando de forma significativa o seu estranhamento. Essa situação ocorreu numa etapa da
semifinal do Festival Internacional da Canção em São Paulo, novamente no auditório do
TUCA, setembro de 1968, onde Caetano é recebido com vaias e uivos, tomates, pois o
público já esperava o “cabeludo”, “politicamente incorreto” e novamente empunhando as
guitarras elétricas, cantando “É Proibido Proibir”. 248
Caetano, em meio às vaias da platéia e do som lancinantes das guitarras dos
Mutantes, perguntava “berrando” que juventude era aquela que queria a revolução, mas que
era tão repressora como a ditadura. “Mas é essa juventude que quer tomar o poder? Vocês
têm coragem de aplaudir este ano uma música que não teriam coragem de aplaudir no ano
passado. São a mesma juventude que vai matar amanhã o velho inimigo que morreu ontem.
Vocês não estão entendendo nada, nada, nada, absolutamente nada...” (BUENO, 2003, p.
384). 249
Esse episódio marca a história dos Festivais e foi bastante comentado na impressa,
mesmo porque os Festivais eram eventos muito noticiados. Apesar da vaia, Caetano entrou
para a etapa final, porém havia uma dúvida no ar? Ele iria participar ou não? Um das
matérias apresentava o assunto da vaia no TUCA da seguinte forma: “São Paulo está
concorrendo com oito composições; mas sem dúvida alguma, É Proibido Proibir, do hippy
de Santo Amaro da Purificação Caetano Veloso, é a música que está destinada a provocar
as maiores controvérsias, tanto junto ao público, como ao júri e aos críticos”. Ao se referir à
vaia, a matéria coloca da seguinte forma: “quando foi apresentada por seu autor, todo
vestido com roupas de plástico colorido, no Teatro TUCA, houve uma histeria coletiva: as
vaias foram tantas que Caetano se recusou a cantar, acusando o auditório de fascista e o júri

248
Nesta música, Caetano indica a afirmação repressiva dos valores estabelecidos pela estrutura social vigente
como a restrição sexual (A mãe da virgem diz que não), a manipulação da consciência em favor do
capitalismo e do consumo (E o anuncio da televisão), incita ao protesto geral, numa referência clara às
manifestações de Paris em maio de 1968 (Eles estão nos esperando/ Os automóveis ardem em chamas) e
também incita o espírito anárquico destas manifestações como uma maneira de reformular os valores
estabelecidos (derrubar as prateleiras/as estantes/as estatuas/ as vidraças/ louças/livros).
249
Esse acontecimento foi descrito na matéria “Acontece que ele é baiano” na revista Realidade em 1968 e
também pode ser encontrada no You Tube.

167
de simpático mas incompetente, por haver desclassificado a música de seu amigo Gilberto
Gil.” 250
Na primeira apresentação de “É Proibido Proibir” em setembro de 1968, no III
Festival Internacional da Canção, Caetano apresentou um happening planejado, mas a
segunda apresentação de É Proibido Proibir, como vimos acima, tornou-se um happening
improvisado, pois neste evento explodiu o choque entre defensores do nacionalismo e da
“música de protesto” e a vanguarda que realizava uma música pop considerada
americanizada e alienada.
As reações advindas da platéia nessa segunda apresentação de É Proibido Proibir
também carregavam uma certa violência que acabaram por assustar os vanguardistas. Gil,
que foi chamado por Caetano a subir no palco foi ferido por um pedaço de madeira atirado
da platéia. Ao saírem do TUCA, eram agredidos verbalmente por pessoas que estavam na
calçada. A respeito desse episódio Caetano diz:

Fiquei angustiado. De certa forma, entendi, num relance, os conteúdos das crises
eventuais de angústia relacionadas ao movimento que assolavam Gil. Eu mesmo,
, no meu discurso, dera um tom de grandeza ao que fazíamos e agora temia que
tudo fosse demasiado grande: “Deus está solto”ecoava em minha cabeça, e o
medo de ter ido longe demais em mexer com forças sobrenaturais era um modo
simbólico de eu me dizer que talvez tivéssemos tocado estruturas profundas da
vida brasileira com enorme risco para nós (VELOSO, 1997, p. 303).

O brado de Caetano “Deus está solto” se relaciona com a visão sebastianista em


relação ao Reino do Espírito Santo e do advento de futura civilização do Atlântico Sul,
baseado nas reflexões do professor Agostinho da Silva. Há um misticismo presente
decorrente das associações realizadas pelo professor que inspirou Caetano, que lança mão
para realizar essas conexões o poema místico – sebastianista de Pessoa. Além disso, “Deus
está solto” também é uma “constatação de que a religiosidade estava sendo tão reprimida
quanto o sexo” (VELOSO, 1997, p. 334).
Uma outra possibilidade para a frase descortina-se para os Tropicalistas após a
reação de segmentos ligados ao nacionalismo de esquerda que viram naquelas atitudes uma
profanação e era esta a intenção. Caetano, Rogério, Mutantes e Gil, utilizaram um templo

250
Mais uma vez, o Festival. Jornal do Brasil. 24 de setembro.1968. Caderno B. p. 01. A musica era
“Questão de Ordem”. Em Verdade Tropical Caetano indica que “Questão de Ordem” era uma canção supeiro
a dele e um número mais radicalmente inovador (VELOSO, 1997, p. 299).

168
sagrado, o palco dos festivais, para combater uma ideologia que se configurava quase como
um dogma religioso, visto às cristalizações dos posicionamentos. A música brasileira estava
presa a um padrão. Pode-se dizer que ela tinha um corpo doutrinário a ser seguido e
assegurado, assim como nas manifestações religiosas tradicionais. Os tropicalistas, ao
apresentarem algo inovador, tocaram em algo sagrado para os estudantes, os intelectuais e
os artistas ligados à esquerda nacionalista que acreditavam na existência de uma tradição da
música brasileira. A presença do eixo nacional-popular era tão forte, sua “pureza” tão
arraigada que seria impensável, até bem pouco tempo, essa forma de experimentação
musical.
Caetano chega a conclusão que estava lidando com forças sobrenaturais ao perceber
a dimensão do forte enquadramento que a música brasileira estava condicionada. Ainda
sobre o impacto das reações adversas, Caetano, Gil e companhia deram seguimento ao seu
processo de ruptura na música brasileira e prosseguem na sua cruzada “anárquica” para
deixar a música solta ou em liberdade, inaugurando, assim, uma nova era no campo
musical.
Segundo Maciel, esse episódio não só marcava o embate entre Caetano versus
público, mas também apontava para a encruzilhada em que se encontrava a música popular.
No entanto, o mais significativo, na percepção deste jornalista, é que esta noite representou
a delimitação de duas visões: uma ligada à nova atitude moral e estética, de vanguarda
(marcada pelos tropicalistas), e uma outra, que é a postura “politicamente correta”, mas
moral e esteticamente atrasada, da esquerda tradicional ligada ao PCB.
O Tropicalismo no campo musical vai misturar sem problemas instrumentos mais
variados (berimbau e guitarras elétricas, entre outros), realizar combinações de elementos
rurais, urbanos e industriais. Vai incorporar sem restrições influências da música
internacional, em suma, incorporar novos mediadores. Em função disso, os tropicalistas vão
ser apontados como alienados e de estarem a serviço do imperialismo. Já a esquerda, e a
juventude a ela aliada, vai defender uma “autêntica” música brasileira com o uso de
instrumentos considerados nossos ou já incorporados há muito tempo à nossa cultura (como
o berimbau, o violão, a viola, por exemplo). Em função disso, vão defender o samba e
músicas que tenham um engajamento político e que utilizem os instrumentos e elementos
considerados “nacionais”; tudo que foge desse padrão vai ser duramente combatido. O

169
confronto entre essas duas vertentes teve seus representantes escolhidos pela mídia e
público. Eles eram Caetano, que representaria o então chamado “desbunde”, e Chico
Buarque, compositor e cantor de sambas, e que obviamente foi o representante da esquerda
tradicional, politicamente engajada, mas estética e moralmente “reacionária”.
“A esquerda considerava os tropicalistas reacionários; mas a verdadeira reação ao
novo veio daqueles que se consideravam ‘avançados. A revolução proposta pelos jovens
tropicalistas era muito mais abrangente, porque buscava um questionamento existencial,
além das considerações econômicas, sociais e políticas: visava ao ser todo em face da vida
e do mundo” (MACIEL, 1996, p. 200).
Caetano, após a polêmica causada por sua apresentação e a reação “violenta” do
público, explica as vaias para o Caderno B do Jornal do Brasil (1968), em um depoimento
a Mônica Soutelho:

A gente só podia entender o incidente dentro da linha dos fatos que o antecedem.
Este incidente é mais um desde Alegria Alegria. A vaia é a mesma desde aquela
época, embora a memória curta dos brasileiros tivesse esquecido as do ano
passado. A única diferença está na resposta a estas vaias. Quando as pessoas não
têm oportunidade de explicar as coisas, a gente não tem oportunidade de
responder. Dessa vez houve oportunidade para que eles explodissem. Eu
conheço quase todas essas pessoas que me xingaram lá no TUCA. Elas têm
guardado esta vaia há muito tempo. Realmente, no Brasil, existe um certo tipo
de pensamento Soit disant de esquerda, que não quer nos suportar. Talvez seja o
momento de deflagrar a briga. Mas que eles eram inimigos eu já sabia. 251

Nessa entrevista, Caetano se apresenta com uma túnica (Kaftans) e com os cabelos
presos no estilo “rabo de burro”. Ele é descrito como calmo e tranqüilo e sua vestimenta
exótica. Ele fala que já havia escrito a música vaiada, “É Proibido Proibir”, no calor dos
acontecimentos, das agitações francesas, e que na época do festival, estes acontecimentos já
haviam perdido o fôlego. Por isto tudo, “eu quis revitalizá-la com um arranjo diferente do
Rogério Duprat, é uma apresentação happening”. E acrescenta: “Entrei no Festival para
destruir a idéia que o público universitário, Soint disant de esquerda, faz dele. Eles pensam
que o Festival é uma arma defensiva da tradição da música popular brasileira. E a verdade

251
SOUTELHO. Divino, Maravilhoso: Caetano explica as vaias. Jornal do Brasil. Caderno B. 26 de
setembro. 1968. p. 01.

170
mesmo é que o Festival é um meio lucrativo que as televisões descobriram. Tradição,
bacana nenhuma”.
Em relação ao III FIC, Caetano mesmo classificado, se recusou a participar do
evento. Segundo ele, o objetivo já tinha sido alcançado. As bases das propostas sugeridas
por “É Proibido Proibir” já tinham sido lançadas desde “Alegria Alegria” e “Domingo no
Parque”. Tudo já estava solto.

4.5. Implosão do tradicional e explosão do espírito de vanguarda

O sucesso e a vitalidade criativa do Tropicalismo musical terminou por restringir o


debate sobre este movimento em torno da música. Caetano, Gil, Guilherme Araújo, Gal
Costa, Tom Zé, ao deixarem de definir o movimento no momento em que brotavam suas
experimentações poético-musicais e em face de seus posicionamentos perante a tradição
musical e ao mercado musical, colaboraram para nutrir debates acalorados que criaram
polêmicas que terminaram por se expandir para outras áreas artísticas. As polêmicas
giravam em torno das questões: o Tropicalismo era uma expressão musical alienada e de
baixa qualidade? Ou seria o Tropicalismo o marco inicial de um novo momento musical no
Brasil, como ocorrera com a Bossa Nova? Vão ser muitas as controvérsias que envolvem o
Tropicalismo em sua versão musical, mas as críticas mais ferrenhas, como já foi indicado
em várias passagens, vinham do campo cultural de esquerda – estudantes, artistas e
intelectuais.
Para além das controvérsias em torno do Tropicalismo, um ponto fundamental nesse
movimento é o fato de que Caetano e Gil captaram perfeitamente as questões do contexto
social da época: a sociedade de massa, a questão da arte pop, da industrialização e seus
produtos, entre outros. É o que podemos depreender de suas falas sobre o que pretendia ou
significava o movimento empreendido por eles.
Gilberto Gil, em uma entrevista no Jornal da Tarde, ainda envolto pelo sucesso de
“Domingo no Parque”, indica que seu propósito com a Tropicália era a busca de um som
universal, próximo à estética internacional. Ele declarou: “Música pop é a música que
consegue se comunicar – dizer o que tem a dizer – de maneira tão simples como um cartaz
de rua, um outdoor, um sinal de trânsito, uma história em quadrinhos. É como se o autor

171
estivesse procurando vender um produto ou fazendo uma reportagem com textos e fotos”
(apud PAIANO, 1994, p.146).
Também Caetano, em abril de 1968, quando indagado por Augusto Campos sobre o
que seria o movimento tropicalista, um movimento musical ou comportamental, ele
responde sem muita preocupação: “Ambos. E mais ainda: uma moda. Acho bacana tomar
isso que a gente está querendo fazer como Tropicalismo. Topar este nome e andar um
pouco com ele. Acho bacana. O Tropicalismo é um neo-antropofagismo” (apud CAMPOS,
1993, p.207).
A linguagem dos meios de comunicação vai consagrar a idéia de que se tratava de
um movimento de vanguarda dessacralizadora que operaria nas bases políticas e
comportamentais da classe média brasileira. Na época, ele já indica que tudo se torna uma
mercadoria. “Até o susto é rentável. Como nos Estados Unidos. Vendem-se abrigos
atômicos atapetados, e na França houve uma companhia que lançou um disco com Sartre,
Cohn- Bendit, falando durante a revolução de maio. Tudo se vende. Outro dia soube que a
Philips juntou, no mesmo compacto que eu canto é proibido... a gravação de tudo aquilo
que falei no TUCA. Para mim, este Festival foi uma vitória. Ta entendendo como é?” 252
O grupo baiano assume o Tropicalismo e radicaliza seus procedimentos, e a partir
dessas atitudes, Augusto Campos (1993) aprofunda os debates 253 em termos das
perspectivas e possibilidades do Tropicalismo. No artigo “É proibido proibir” os baianos,
de 1968, escrito sob os ruídos das ocorrências no III Festival Internacional, Campos indica
que o movimento Tropicália é um “neo-antropofagismo” que debilita a “macumba-pra-
turistas (termo oswaldiano), entronizada pela folclorização da arte. Além disso, a
Tropicália, supera o protesto banalizado quando revolucionou a arte (CAMPOS, 1993). De
acordo com Campos, o grupo baiano ao realizar o happening no III FIC vai provocar a
ruptura dentro do próprio evento: “Em síntese, o artista dinamita o código e dinamita o
sistema. Caetano e Gil e os Mutantes tiveram a inteligência e a coragem de lançar mais esse
desafio e de romper, deliberadamente, com a própria estrutura de festival, dentro do qual os
compositores tudo fazem para agradar o público, buscando na subserviência ao código de

252
SOUTELHO. Divino, Maravilhoso: Caetano explica as vaias. Jornal do Brasil. Caderno B. 26 de
setembro. 1968. p. 01.

172
convenções do ouvinte a indulgência e a aprovação para as suas musicas ‘festivalescas’”
(CAMPOS, 1993, p. 266).
Este livro-manifesto de Augusto Campos mantém um tom argumentativo que
conduz ao entendimento de que as personalidades e os procedimentos dos baianos possam
ser traduzidos como a imagem dos heróis fundadores do que eles acreditam ser uma nova
modernidade. Gilberto Mendes, um dos autores presentes na coletânea, 254 vai perceber os
artistas de vanguarda (tropicalistas) como um tipo de herói civilizador e detentor de uma
consciência de ruptura. Segundo ele, “essa consciência tiveram Caetano e Gil, que
souberam sentir o momento exato em que a própria massa espera que o artista não se repita.
Essa consciência faltou a Vandré, por exemplo, a quem escapou este paralelo com sua
própria estória: assim, como o boiadeiro troca o cavalo pelo caminhão, o violeiro acaba
seduzido a trocar a viola pela guitarra” (MENDES, 1993, p 135).
Autores como Augusto de Campos, Gilberto Mendes, Favaretto, entre outros,
advogam que o movimento Tropicalista teve um impacto de ruptura. Os autores que
integram as correntes analíticas pró-Tropicalismo buscavam enfatizar que a contribuição
desse movimento foi no campo da crítica cultural, da estética e do comportamento artístico,
promovendo uma atualização da arte e direcionando-a às massas. Segundo Favaretto, “a
mistura notabilizou-se como uma forma sui generis de inserção histórica no processo de
revisão cultural que se desenvolvia desde o inicio dos anos 60. Os temas básicos dessa
revisão consistiam na redescoberta do Brasil, volta às origens nacionais,
internacionalização da cultura, dependência econômica, consumo e conscientização”
(FAVARETTO, 1979, p. 13).
Favaretto considera que o Tropicalismo significou uma abertura cultural no sentido
amplo, com base na autonomia. Esta foi a grande contribuição do Tropicalismo que se
verificou mais no campo da música:

253
Augusto Campos quando percebe que o movimento em torno do Tropicalismo é algo mais substancial que
uma moda lança um livro-manifesto (Balanço da bossa) em favor do Tropicalismo. Para Campos esse
movimento faz parte de um projeto de memória histórica onde há a seguinte cadeia de eventos: 1922
(modernismo antropofágico), 1956 (Poesia Concreta) e Tropicalismo num esquema das vanguardas históricas.
Cf. CAMPOS, Augusto. O balanço da bossa e outras bossas. 5a edição. Centro cultural do Banco do Brasil.
São Paulo: perspectiva. 1993. p. 207.
254
É composta por um conjunto de textos favoráveis ao Tropicalismo e tem como organizador Augusto de
Campos. Cf: Campos, Augusto. O balanço da bossa e outras bossas. 5a ed. São Paulo: Perspectiva. 1993

173
Pode se dizer que o Tropicalismo realizou no Brasil a autonomia da canção,
estabelecendo-a como um objeto enfim reconhecível como verdadeiramente
artístico (...) Reinterpretar Lupicinio, Ary Barroso, Orlando Silva, Lucho Gatica,
Beatles, Roberto Carlos, Paul Anka; utilizar-se de colagens, livres associações,
procedimentos pop eletrônicos, cinematográficos e de encenação; mistura-los
fazendo perder a identidade, tudo fazia parte de uma experiência radical da
geração dos anos 60 (...) O objetivo era fazer a crítica dos gêneros, estilos e,
mais radicalmente, do próprio veículo e da pequena burguesia que vivia o mito
da arte (...) mantiveram-se fiéis à linha evolutiva, reinventando e tematizando
criticamente a canção (FAVARETTO, 1979, p. 23).

Heloísa Buarque de Hollanda (1979) constrói sua análise partindo de alguns pontos
semelhantes ao de Favaretto, no entanto vai apontar para outra direção. Segundo ela, “o
circuito fechado e viciado em que a classe média informada se juntava para falar do ‘povo’
não produzia mais efeito. Era preciso pensar a própria contradição das pessoas informadas,
dos estudantes, dos intelectuais, do público” (HOLLANDA, 1979, p. 62).
Nesses dois trabalhos, que são considerados clássicos para o estudo do período,
vemos duas impressões que auxiliam a sintetizar os grandes eixos trilhados pelo debate
historiográfico sobre o Tropicalismo: em Celso Favaretto, ele aponta para uma perspectiva
de que houve uma “explosão” tropicalista e que esta teria conduzido, em certo sentido, uma
“abertura” político-cultural para a sociedade brasileira, ao incorporar temas do engajamento
artístico do período, no entanto, superando-os em potencial crítico e criativo. Se o
Tropicalismo foi o desdobramento ou resultado de uma crise, ele mesmo encontrou os
caminhos para superá-la em potencial crítico e criativo. Também é importante notar que
estes caminhos “abertos” nem sempre foram unívocos, ao se tentar buscar “soluções” para
os impasses. Já em Hollanda, o Tropicalismo seria o produto de uma crise, tanto dos
projetos de poder dos anos 1960 (da esquerda), quanto da própria crise das vanguardas
históricas (HOLLANDA, 1979, p. 55-74).
Em suma, no primeiro autor vemos sugerida a idéia de uma “explosão colorida”,
representada por uma abertura cultural crítica, alavancada pelo campo musical. Em
Hollanda (1979), podemos perceber que a imagem sugerida é a de uma implosão político-
cultural, onde há a perda do referencial de atuação propositiva do artista-intelectual na
construção da história. As interpretações desses dois autores são pontos de partida para
aprofundar estas questões, pois marcam as posições dos analistas do movimento.

174
Ismail Xavier (1984) vai organizar em termos bibliográficos um levantamento das
análises em torno do movimento. Neste trabalho fica visível o delineamento dos pólos que
se formaram em relação às análises do movimento. Em torno de uma leitura favorável do
Tropicalismo, destaca-se Silviano Santiago (1977), Gilberto Vasconcelos (1977) e também
Celso Favaretto (1979), já mencionado como tendências que resgatam as contribuições
históricas do projeto alegórico-tropicalista. Nos anos 1970, esses autores vão olhar
novamente para o movimento e numa sistematização já um pouco distanciada do evento,
vão endossar a vocação alegórica do Tropicalismo como a expressão mais coerente num
processo de emergência de um novo conjunto de tensões políticas, culturais e existenciais
que se tornaram presentes na sociedade brasileira urbana.
Vasconcelos (1977) indica que o Tropicalismo decidiu enfrentar de peito aberto a
“dolorosa derrota” de 1964, abrindo um novo campo para a ação de uma consciência
renovada. Silviano Santiago, no prefácio do livro de Vasconcelos (1977), percebe na
alegoria Tropicalista a expressão crítica das “matrizes culturais” do Brasil, postura que, ao
invés de reafirmá-las à esquerda, desconstruiu-nas radicalmente, explorando as
contradições inerentes da cultura brasileira. Favaretto (1984), de acordo com a
interpretação de Xavier, vai mais além: o Tropicalismo, ao “empilhar as relíquias do
Brasil” (1984, p. 24), reafirma a nossa modernidade como ruína, denunciando a formação
conflitiva da história brasileira, ocultada pelas sínteses do vencedor. A alegoria seria o
“retorno do reprimido” na história e não o recurso para um “diagnóstico geral da nação”
(XAVIER, 1984, p. 25).
Entre os críticos de primeira hora do Tropicalismo, destaca-se Roberto Schwarz
(1978). Em linhas gerais, ele indica que o Tropicalismo, mesmo fornecendo à cultura
brasileira “um alento desmistificador”, ao realizar o questionamento do nacionalismo
conservador, proclamado e defendido pela esquerda, vai, em contrapartida, associado a uma
tradição a-histórica e em decorrência disso, ideologicamente incoerente no que diz respeito
às suas próprias propostas revolucionárias. Para Schwarz (1978), ao final das
experimentações artísticas dos tropicalistas, uma angústia generalizada passa a ocupar o
espaço que antes era preenchido pela busca da ação e da consciência. Segundo Schwarz

175
(1978), a agressividade simbólica das manifestações 255 tropicalistas ocultava a impotência
de artistas e platéia frente aos desafios históricos. Para o autor, a alegoria tropicalista, de
certo modo, terminaria por reforçar a visão ideológica e conservadora de que haveria dois
tipos de Brasil e que eles seriam irreconciliáveis. 256
O jornalista, crítico e compositor engajado, Francisco de Assis, e integrante do CPC
da UNE, indica sua perspectiva em torno do movimento de forma taxativa: “Tropicalismo
beira a pilantragem, um doloroso desvio no caminho dos baianos, esses mesmos baianos
simples que conheceu anos atrás”. 257 Francisco de Assis manteve essa postura desde o
inicio do Tropicalismo, procedimento que lhe evitou o “desespero” de alguns adesistas de
primeira hora, como o compositor Nélson Motta, que não conseguiram acompanhar ou
compreender o movimento. Na época, Nelson Motta declarou: “Com cinco anos de
amizade e admiração, considero-me com inteira liberdade para dizer que Gil, com seus
atuais gritos, consegue, no máximo, chatear. Não agride a sensibilidade ou os valores,
agride fisicamente o ouvido”. 258
Os procedimentos dos tropicalistas causavam escândalos. Uns pediam menos
barulho, outros menos colares e adereços, outros mais participação. Desta última solicitação
participava Geraldo Vandré, artista que julgava o Tropicalismo como uma tentativa de
folclorizar nosso subdesenvolvimento. Considerava a Tropicália pouco “participante”
politicamente. Perspectiva prontamente replicada por Augusto de Campos: “Os que querem
a música participante, em formas conservadoras, folclóricas, deveriam lembrar-se do que

255
Este autor centra suas análises nas experimentações do “Grupo Oficina,” mais especificamente Roda Viva.
As experiências desse grupo eram pautadas pela agressividade e esta nem sempre era simbólica na medida em
que a platéia às vezes era agredida fisicamente e provocada com a intenção de tira-la de sua passividade. As
apresentações do Tropicalismo musical também eram pautadas por essa agressividade simbólica.
256
Nesse trabalho Schwarz acaba recuperando a literatura como um referencial da ação ideológica do
intelectual. Esse autor vai apontar “Quarup” de Antônio Callado, como síntese de obra que expressa
consciência histórica, não pela pedagogia, mas pela critica que carregava, no sentido de explorar as
contradições do intelectual engajado num contexto autoritário.
257
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. 1968. p. 190
258
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. 1968. p. 190. Na apresentação dos Tropicalistas na Boate Sucata
vai ter um número com Gilberto Gil e Os Mutantes. A agressão ao ouvido, ou referências aos gritos de
Gilberto Gil está relacionado com sua aproximação de Jimi Hendrix, reproduzindo em português o canto
falado do grande guitarrista, “sobre uma base rítmico-harmônica de colorido brasileiro, embora mantendo o
blues predominante do seu modelo” (VELOSO, 1997, p. 299). Essa experiência foi realizada em“Questão de
Ordem”, considerado um número radicalmente inovador. Jimi Hendrix não era muito conhecido pelo público
brasileiro.”Questão de Ordem” foi uma “provocação anárquica” ao usar o chavão das reuniões políticas de
esquerda “Questão de Ordem” e subverte-lo: ““ questão de desordem” , (...) açucarando-o com um refrão
beatleseco “em nome do amor” (VELOSO, 1997, p. 299).

176
disse o maior dos poetas participantes: não pode haver arte revolucionária sem forma
revolucionária. Não adianta transformar o Chê em clichê”259 .
Sobre a questão da universalização da música, Sidney Miller, numa postura mais
analítica, organizou um extenso artigo na Revista Civilização Brasileira, organizada por
intelectuais de esquerda, no qual realiza uma análise crítica da perspectiva universalista na
MPB, vertente representada pelos Tropicalistas. Neste artigo, Sidney Miller, também
compositor na época, busca em Mário de Andrade argumentos contra a recorrência a
Oswald de Andrade, tão vigente na época. Refletindo acerca das relações comerciais
impostas pelos países capitalistas centrais, Miller indica:

Universalização (da música popular brasileira) responde a um processo de


estagnação do mercado interno (novas demandas não entendidas) e a um
‘mecanismo empresarial’ que reflete uma iniciativa internacional no sentido da
universalização do gosto popular (...) Não se pode querer ser universal quando o
universo tem dono. Comercialmente interessa mais não distribuir uma
linguagem nacional, esquisita e apimentada, do que uma linguagem vulgar, por
ser mais técnica e menos filiada a essa cultura específica, poderia ameaçar o
produto original do país distribuidor, via de regra, tecnicamente mais perfeito e
culturalmente gasto (MILLER, 1968, p. 218).

Ao contrário do que defendiam os tropicalistas mais “militantes, Miller vai indicar


que o universalismo da música popular era apenas uma fórmula mais eficiente de expansão
do mercado pela indústria fonográfica. Assim, o Tropicalismo foi uma manifestação que
permitiu “através da universalização do gosto popular, firmarem posições aos grupos que
dominavam o mercado de disco” (MILLER, 1968, p. 207-221). Nessa direção, o
Tropicalismo não traduz nem o progresso, tampouco corresponderia a uma nova realidade
sócio-econômica. Para ele, significou uma divisão de mercado e um rótulo para vender.
No entanto, assim como o Tropicalismo recorreu à diversidade, misturou tudo,
retomando a idéia antropofágica da Semana de 1922, também sua “compreensão”, seus
desdobramento devem ser vistos a partir da perspectiva de que o Tropicalismo é a
expressão do cruzamento de todas as perspectivas levantadas por seus analistas e um pouco
mais. O Tropicalismo captou a nova realidade social, realizou um alinhamento com a
cultura mundial e a modernidade sem, no entanto, deixar de ser um movimento que tanto

259
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. 1968. p. 190 e em Campos (1993).

177
problematizou a indústria cultural como também se tornou um produto ao traduzir sua
critica radical à luz da estrutura da sociedade de massa e de consumo.
O Tropicalismo é percebido por muitos como a última vanguarda brasileira e
também vai colher frutos da própria clivagem da indústria cultural que ele ajudou a
problematizar. O movimento também não deve ser percebido somente como senso de
negócio com a rápida assimilação do seu trabalho no campo musical empreendida pelo
aparato da indústria cultural. Quando o Tropicalismo problematiza o consumo da música ou
vice e versa, ele vai abrir portas para diversas possibilidades de escuta que a diretriz
ideológica do nacional-popular, já debilitado como gênero reconhecível pelo público, não
conseguia mais acionar. A herança mais significativa do Tropicalismo em relação à música
popular brasileira pode ser resumida em duas questões: A de abrir os canais para
incorporação do consumo de elementos da cultura que foram recalcados em função da
sensibilidade estética da classe média intelectualizada e a assimilação do ruído, do exagero
e arcaísmos postos lado a lado, em valor e dignidade, aos sussurros e às sutilezas
expressivas elaboradas ou criadas pelas vertentes socialmente mais valorizadas da música
popular.
As polêmicas tentativas de interpretação também englobavam os comportamentos e
o visual dos tropicalistas, percebidos como excêntricos e ligados ao universo hippie. Na
época também surgiu um tipo de interpretação que realizava um paralelo entre
Tropicalismo e o movimento negro americano. Nessa época, os negros norte-americanos
buscavam uma volta aos padrões da Terra Mãe, organizando-se em torno de centros de
língua e cultura africanas. Os salões de alisar cabelos foram perdendo sua clientela
tradicional. Os ternos foram substituídos por vaporosos e coloridos trajes africanos.
“Mesmo que sejam feitos em série. Não seria isto o que estaria sendo feito aqui
inconscientemente – pelo Tropicalismo?” Essa foi uma pergunta colocada por uma matéria
da revista Realidade, em 1968. A indicação de que esta conexão tinha procedimento foi
confirmada pela própria matéria, que indicou:

Caetano, ao aparecer com cabeleira encaracolada, não estaria querendo


emancipar um povo de sua preocupação em acompanhar padrões estéticos que
obrigaram a se ver às voltas com toneladas de brilhantina? Seus camisolões
floridos, seu terno de linho branco, não seriam apenas sugestões de bom senso
para um clima tropical como o nosso? Será o Tropicalismo uma volta a Terra

178
Mãe, uma proposta de abandono de critérios de progresso que até aqui foram
aceitos seguir na própria matéria. 260

Todas as considerações realizadas em torno do significado ou das propostas


tropicalistas nos mostram as agitações dos críticos que se lançaram à tentativa de resolver o
enigma que os próprios tropicalistas não estavam preocupados em definir. Na época, o
Tropicalismo era um movimento que a todo instante se refazia e se transformava,
produzindo um rastro de interrogações.

260
O Tropicalismo é nosso, viu? Realidade. 1968. p. 190.

179
CAPÍTULO 5: A TROPICALIDADE DE UMA CONTRACULTURA

Após o festival de vaia no TUCA e do discurso inflamado de Caetano Veloso, ele


decidiu que não iria participar da próxima etapa do III FIC. Afinal, o Tropicalismo já havia
sido lançado. Com isso, vão continuar a empreender seus procedimentos de subversão
estética ao realizarem conexões com a cultura internacional. Assim, após os escândalos
produzidos no âmbito dos Festivais, os tropicalistas vão organizar um show em uma boate
no Rio de Janeiro, o que também vai ser percebido como uma grande provocação pautada
pela extravagância, que vai agradar uns e provocar ira em outros. As performances desse
show serão abordadas e as associações produzidas a partir dessas experimentações poéticas
musicais.
A força crítica dos procedimentos dos tropicalistas vai ser percebida pela esquerda
tradicional como uma postura alienada e vinculada ao imperialismo norte-americano, mas
vai produzir uma identificação entre tropicalistas e esquerda armada. Porém, esta mesma
ferocidade critica e subversiva no plano estético e cultural será percebida como um
estimulo à subversão política. Isso vai levar as figuras chaves do tropicalismo a um exílio
em Londres.
A partir das apresentações nos Festivais, passando pelas posteriores
experimentações Tropicalistas e o fim do movimento, com a ida dos baianos para o exílio,
percebe-se uma identificação e inspiração do Tropicalismo como o espírito e objetivos da
contracultura, que vai englobar, inclusive, uma contestação da religião tradicional.
Em relação ao episódio emblemático do TUCA, Maciel comenta sobre a
incompreensão do público, ou melhor, da esquerda, que não entendia ou rejeitava a busca
desses músicos em direção a um “som universal” Ele indica que em relação à postura dos
baianos, “bombardeava o pensamento informado e aniquilador da esquerda, apreendido em
manuais ou em discursos repetitivos e vazios de significação”. Segundo ele, sentia-se “no
projeto dos tropicalistas uma força de revolução semelhante à da contracultura nos EUA e

180
ao rock dos Beatles e dos Rolling Stones ou às canções de Bob Dylan” (MACIEL, 1996, p.
202-203).

5.1 A experimentação poética a partir da conexão entre o arcaico e o moderno

Caetano atingiu seu sucesso popular com suas apresentações inusitadas nos
Festivais da Canção de São Paulo. No entanto, o primeiro show Tropicalista ocorreu na
Boate Sucata, no Rio de Janeiro, em 1968, após ele se auto-desclassificar do Festival. Era
um show composto por Caetano, Gilberto Gil e os Mutantes, que pode ser lido como uma
resposta aos Festivais que cooperavam com o tradicionalismo da música em detrimento da
vanguarda tropicalista. O show indicava que os tropicalistas estavam dispostos a (re)afirmar
sua vanguarda. O espetáculo era dinâmico e provocativo. O público reagia tanto de forma
entusiasta como chocada com o agressivo manifesto sonoro e visual que expressava o
inconformismo dessa vanguarda. “O grau de liberdade de criação demonstrado, na Sucata,
escandalizava os conservadores, espantava mesmo os mais liberais, mas abria claros
horizontes para a música popular” (MACIEL, 1996, p. 203).
Na época, o show foi comentado por José Trajano, numa matéria intitulada “Um
Delírio Tropicalista”. Nesta matéria, o autor indica que o show era um panfleto do
Tropicalismo. Um show panfleto que vinha obtendo um grande sucesso de público. “Por
isso, durante mais uma semana e até sábado, a Sucata estará recebendo Caetano, Gil, os
Mutantes, suas latas, suas cores, suas loucuras”. 261
O show começa com os Mutantes tocando dois números, com sua graça juvenil,
alegria e ironia. Há um norte-americano, Johnny, que é encarregado de soltar berros em
quase todos os números musicais. Caetano entra e grita: “Deus está solto” 262 . Depois fica
num canto do palco onde senta e cruza as pernas. Os Mutantes tocam mais um número,
uma espécie de Charleston. Do que cantam, segundo Trajano, só se compreendia o refrão
“Light and power e companhia limitada. “Alô mulatas! O barulho que ouvem é de latas. Eu
falei latas. É Gilberto quem chega com os Mutantes batendo latas e Caetano sentado no

261
TRAJANO, José. Um delírio Tropicalista. Jornal do Brasil. Caderno B. 15 de outubro 1968. p. 04.
262
Novamente a frase“Deus está solto!” representando o processo de libertação em todos os níveis. Está frase
também foi dita na apresentação de “É Proibido Proibir” agregada ao poema místico-sebastianista de
Fernando Pessoa, como já foi expresso.

181
palco. Caetano pede um cigarro a um espectador. Fuma tranqüilamente enquanto Gil não
termina seu número”. Novamente é a vez de Caetano que canta um samba e depois “Baby”.
No final , ele se descabela porque Baby não o entende, frase que repete várias vezes.
Segundo Maciel, Caetano imprimia o sentido de rompimento com a tradição através
de sua composição “Saudosismo”. Nesta canção, ele começava cantando tranqüilamente
acompanhando-se no violão, “sentado, com uma mansidão cool da bossa-nova. A letra
homenageava João Gilberto, sendo uma colagem de versos de canções bossa-novistas. O
último deles – da canção Chega de saudade – era cantado cada vez mais alto, até Caetano
ficar berrando no palco. Explodiam então as guitarras elétricas dos Mutantes, acendiam-se
as luzes, e Gil lançava seus brados de guerra” (MACIEL, 1996, p. 203).
Gilberto Gil, que estava sentado num banco, pega o violão e começa outra música,
“berrando” e falando palavrões, “recebendo algumas vaias. Algumas pessoas chamam-no
de vigarista”. “Caminhante Noturno”, dos Mutantes, é o número mais aplaudido, onde os
espectadores cantam com o grupo e pedem bis. O americano Johnny ficou preocupado por
ter esquecido na época um instrumento que produziria um efeito para a próxima música:
“Proibido Proibi”r. As luzes não pararam de piscar e, durante alguns minutos, só se ouvia
as guitarras fortes dos Mutantes. Caetano canta enquanto as luzes piscam. Gilberto Gil
encerra o show com “Bat-macumba”. Enquanto canta, Caetano rola e dá cambalhotas pelo
palco. Os Mutantes e Johnny gritam sem parar” 263 Sérgio, Arnaldo e Rita são apresentados
ao público, dividido em vaias e gritos de “genial”. Na apresentação de Rita, todos cantam a
marcha nupcial, enquanto ela, vestida de noiva, joga beijos para todos. Ao fim do
espetáculo, via-se no palco dois cartazes: “Yes, nós temos banana” e “Seja herói, seja
marginal”.
Segundo Maciel, o ponto culminante do espetáculo era o último número, “Bat-
macumba”, vocalizado longamente por Gilberto Gil. Na verdade, como podemos observar,
“Bat-macumba” é uma poesia concreta 264 :

Batmakumba yêyê batmakumbaoba


Batmakumbayêyê batmakumbao
Batmakumbayêyê batmakumba

263
TRAJANO, José. Um delírio Tropical. Jornal do Brasil. Caderno B. 15 de outubro de 1968 p. 04.
264
Batmacumba (Gilberto Gil/ Caetano Veloso). Capturado em: www. vagalume.uol.com.b/gilbertor-
gil/batmacumba.html. Disponibilizado em: 23 de julho de 2008.

182
Batmakumbayêyê batmakum
Batmakumbayêyê batman
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayêyê ba
Batmakumayêyê
Batmakumbayê
Batmakumba
Batmakum
Batman
Bat
Ba
Bat
Batman
Batmakum
Batmakumba
Batmakumbayê
Batmakumbayêyê
Batmakumbayêyê ba
Batmakumbayêyê bat
Batmakumbayê yê batman
Batmakumbayêyê batmamankum
Batmamakumbayêyê batmankumbao
Batmakumbayêyê batmamakumbaoba

Nesta poesia, vemos a colagem de elementos da cultura brasileira (relíquias


nacionais) com itens e produtos da sociedade urbana e capitalista que indica uma
universalização da cultura. Aqui, como em “Super Bacana” 265 , vemos o diálogo com a
cultura pop internacional, ao introduzir elementos típicos dessa cultura como referências a
personagem de histórias em quadrinhos e o yê-yê-yê, numa referência aos Beatles e a
Jovem Guarda, utilizando um estilo vanguardista que é o concretismo. Esta música é
chamada por Augusto Campos (1993) de anti-macumba para turistas. 266 E por sua vez, é
percebida como uma “proposta concreto antropofágica” (FAVERETTO, 1979, p. 74-75).
Armando Freitas Filho, poeta carioca, também traça paralelos oswaldianos:

265
Toda essa gente se engana/ Então finge que não vê que/ Eu nasci pra ser o superbacana/Eu nasci pra ser o/
Superbacana, superbacana,.../ Superhomem, superflit, superfink, superrist/ Superbacana/ Estilhaços, sobre
Copacabana/ O mundo em Copacabana/ tudo em Copacabana/ O mundo em Copacabana, Copacabana/ O
mundo explode longe muito longe/ O sol responde e o tempo esconde/ E o vento espalha e as migalhas/ Caem
todas sobre Copacabana/ Me engana esconde o super amendoim/ E o espinafre biotônico/ No comando do
avião supersônico/ Do parque eletrônico do poder atômico/ do avanço econômico/ A moeda número 1 do Tio
Patinhas/ Não é minha/ Um batalhão de cowboys com/ Arrancada da legião de super-heróis/ E o superbacana/
Vou sonhando até explodir colorido/ No sol dos cinco sentidos/ Nada no bolso ou nas mãos/ Um instante
maestro! (Caetano Veloso)
266
Os artistas de vanguarda da semana de 1922 e os concretistas ironizavam o tipo de arte feita no Brasil,
identificando-as como macumba para turista ver.

183
Também em 1968 explodia na Música Popular Brasileira o movimento
tropicalista, que iria representar para as vanguardas o que o movimento
antropofágico representou para o Modernismo de 22. A contra-revolução do
Tropicalismo procurava no caos, trazer a arte brasileira para o seu chão, tal
como pretendeu, anos antes, Oswald de Andrade. Tínhamos, então, toda uma
geração voltada para a lição oswaldiana da retomada das “raízes”, com a
diferença, entretanto, de que os produtos não eram especificamente literários,
mas interdisciplinares, um pau-brasil eletrificado, ligado na tomada dos
amplificadores, um cafarnaúm onde o poema se fazia não apenas na página, mas
no papel da voz, no palco, sob o som estridente das guitarras (FREITAS FILHO,
1979, p. 89-90)

Transitando na área da cultura de massa, mas num novo nível de sofisticação, os


tropicalistas praticam uma inesperada modernidade. Bat-macumba faz parte do LP
Tropicália ou Panis et Circencis gravado em 1968, que se torna a síntese desse movimento
musical revolucionário que mexeu com a cabeça de muitas pessoas e com os rumos da
música brasileira.
Como já vimos, 1968 foi um ano marcante. Entre os vários acontecimentos, temos a
revolta dos estudantes em Paris, a passeata dos cem mil no Rio de Janeiro liderada por
artistas e intelectuais, o acirramento do controle social e político por parte da ditadura com
a decretação do AI 5 e o lançamento do LP Tropicália ocorrido em julho. Instaura-se a
Geléia Geral, que vira a mesa, propõe modismos e define comportamentos. Cantaram um
Brasil que se esperneava entre a descoberta da identidade nacional e a ditadura militar.
Super Bacana é um dos melhores retratos desta época.
Guiando a Tropicália estavam os baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil, artistas e
militantes que vão transformar a estética da canção no Brasil e propor um novo caminho
para a MPB. Vivia-se num contexto onde ocorriam profundas transformações,
impulsionadas principalmente pela juventude. No campo musical “o som mais ouvido
daquele ano era o álbum gravado em meados de 1967” que se tornará um trabalho bem
sucedido que alcançou um sucesso incontestável “pela sua concepção inovadora de não ter
interrupção entre as faixas, simular efeitos sonoros de gravação ao vivo e incluir a citára,
violino, orquestra e em algumas canções arranjos psicodélicos, tratava-se de Sgt. Pepper`s

184
Loney Hearts Club Band, dos Beatles, um dos discos mais importantes de todos os
tempos”. 267
O Brasil vivia o clima dos tradicionais Festivais da canção e ao mesmo tempo sofria
com a pressão da Ditadura. Os militares tentavam a todo custo calar os jovens que de
diversas formas empreendiam uma oposição. Nesse contexto, a rebeldia tropicalista
ganhava força e tornava-se o assunto mais badalado. Conforme o movimento Tropicalista
ia ganhando corpo, também amadurecia a idéia de que estava faltando um manifesto oficial.
Este manifesto foi expresso no álbum que contou obviamente com Gil e Caetano e as
participações de Gal Costa e Tom Zé, Nara Leão e os Mutantes.
Este LP tem como produtor Manoel Berenbein e arranjos do maestro Rogério
Duprat. Assim como em Sgt, Pepper`s Loney Club Band, o Tropicália ou Panis et
Circencis tinha faixas ininterruptas. Percebe-se tiros de canhões na música “Coração
Materno”, de Vicente Celestino, interpretada por Caetano Veloso, simulação de um jantar
em “Panis et Circencis” e sons de rua em “Geléia Geral”, revelando uma clara influência
dos Beatles.
O LP traz doze faixas 268 , onde “Parque Industrial”, de Tom Zé, que retirou este
título de um livro de Patrícia Galvão (Pagu, líder comunista na década de 1920 e 1930), traz
a imagem de um Brasil satírico, misturando bandeirolas no quintal, céu de anil, aeromoças,
jornal popular que se espreme porque pode derramar, a lista dos pecados da vedete e o
bordão “made in Brasil”. Esta composição e “Geléia Geral”, de Gil e Torquato Neto,
segundo Luiz Américo, constituem-se como as músicas mais panfletárias do disco. Em
“Geléia Geral” vemos um Brasil visto de forma alegórica, com a presença de um bumba-iê-
iê-iê; Mangueira onde o samba é mais puro; Pindorama, pais do futuro; as relíquias do
Brasil dentre outras representadas por uma doce mulata malvada e até um LP de Sinatra. A

267
AMÉRICO, Luiz. A História da MPB: Tropicália ou Panis et Circenses. Sem data. P. 01. Disponibilizado
em: www.luizamerico.com.br/fundamentais-tropicalia.php. Capturado em: 01 de setembro de 2008.
268
01- Misere nóbis (Gilberto Gil/ Capinan); 02 - Coração materno (Vicente Celestino) – interpretada por
Caetano Veloso; 03 - Panis et circencis (Gilberto Gil/Caetano Veloso – Mutantes;); 04. Lindonéia (Caetano) –
interpretada por Nara Leão; 05 - Parque industrial (Tom Zé) - interpretada por: Gilberto Gil, Caetano Veloso,
Gal Costa e Mutantes; 06 - Geléia Geral (Gilberto Gil/ Torquato Neto) - interpretada por Gilberto Gil; 07-
Baby (Caetano Veloso) – interpretada por Gal Costa e Caetano Veloso; 08 - Três Caravelas (A. Algueiró Jr. /
G. Moreau/ Versão João de Barro) – interpretada por Caetano Veloso e Gilberto Gil; 09- Enquanto seu lobo
não vem (Caetano Veloso) - interpretada por Caetano Veloso; 10 – Mamãe coragem (Caetano Veloso/
Torquato Neto) – interpretada por Gal Costa; 11 – Bat macumba (Gilberto Gil/ Caetano Veloso) - interpretada
por Gilberto Gil; 12 – Hino ao Senhor do Bonfim (João Antônio Wanderley) - Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Gal Costa e Mutantes

185
referência aos modernistas de 1922 se faz presente no verso, “alegria é a prova dos nove”,
extraído do Manifesto Antropológico de Oswald de Andrade. 269
Em “Lindonéia”, 270 de Caetano Veloso, que compôs esta canção atendendo a um
pedido de Nara Leão e inspirado num quadro de Rubens Gershman, tem-se um bolero com
“uma letra pessimista e não convencional, aliás, desconstruir o formal era uma das
características do grupo, onde não faltavam imagens como policiais, sangue e cachorros
mortos nas ruas despedaçados”. 271 Gil fez a música que era um bolero com momentos de
iê, iê, iê. Em “Panis et circencis”, encontramos a presença de um jantar e a simulação de
um disco sendo retirado inesperadamente do toca discos, que causa um efeito
impressionante.
Há nas composições uma associação de informações retiradas de um ambiente
urbano (violência, propaganda, industrialização, ente outros), com experimentações
sonoras, tudo isso conectado ao elemento cultural tipicamente brasileiro ou “cafona”. Estas
colocações, onde aparecem várias coisas juntas, resultam numa movimentação pop a partir
da junção do moderno com o que é considerado arcaico, realizando uma visão
cinematográfica do trabalho.
Gilberto Gil comenta em Bondinho que a vida urbana em São Paulo foi muito
importante para o desenvolvimento das propostas Tropicalistas:

(...) Eu não tinha consciência. O que quer dizer na verdade é que eu já tinha o
talento para vir a ser um dos fazedores do Tropicalismo, quer dizer, já estava
fadado a ser Gilberto Gil que sou hoje. Eu acho que sim, é evidente. Eu acredito
em destino nessas coisas todas, entende? Mas eu não tinha consciência nenhuma
nessa época; São Paulo é que foi me dar mesmo, essa coisa. Quando eu vim
praqui, rapaz pra esse mundo de concreto e edifício e a Gessy-lever e as fábricas
e aquelas máquinas empacotando sabão em pó e detergente, lá em Campinas,

269
Sobre as associações entre Oswald de Andrade e o Tropicalismo consultar PERRONE, Charles A. Pau-
Brasil, Antropofagia, Tropicalismo e afins: o legado modernista de Oswald de Andrade na poesia e canção
brasileira dos anos 60/ 80. University of Florida. Disponibilizado em
http://tropicalia.uol.com.br/sites/internas/leituras_gg_antropofagia3php. Acesso em: 11 de novembro. 2008.
270
O quadro de Rubens Gerchman é uma serigrafia retratando no estilo pop art, como se fosse um retrato
3X4, uma jovem do subúrbio que tinha morrido aos dezoito anos. Lindonéia era a moça que lia fotonovelas e
sonhava com amores impossíveis. O quadro e a história da Gioconda do subúrbio fora descrito por Nara a
Caetano e Gil que logo captaram a percepção de Nara. O quadro de Rubens Gerchman pode ser visto como
espécie de crônica melancólica da solidão anônima feita em tom pop e metalinguístico, “tinha parentesco
direto com o Tropicalismo musical, e a canção, nós supúnhamos, realimentaria sua carga poética” (VELOSO,
1997, p. 274). Sobre Gerchman e a descrição do quadro consultar Castro (1999, p. 142-143)
271
AMÉRICO, Luiz. A História da MPB: Tropicália ou Panis et Circenses. Sem data. P. 02. Disponibilizado
em: www.luizamerico.com.br/fundamentais-tropicalia.php. Capturado em: 01 de set. de 2008

186
aquele mundo que eu vivi no primeiro ano aqui em São Paulo, os escritórios,
aquela coisa linda de publicidade, com o pessoal transando ali... Essa coisa, esse
negócio de administração de empresa foi muito importante pra mim, pra me
introduzir esse mundo das coisas de massa e tudo o mais... Porque eu fiz
administração de empresa na Bahia, na escola, depois vim praqui, trabalhar um
ano na Gessy. Eu passei por todos os departamentos da empresa. (...) Fiquei três
meses, vendo como era a publicidade moderna, e os caras falavam naquilo tudo.
Tudo isso foi me dando essa vivência, esse conhecimento do que era uma
população urbana, o que era o homem, o indivíduo, essa massa que povoa as
cidades grandes e tudo o mais... uma coisa que em Salvador – e em Ituaçu muito
menos – eu não tinha ainda. Salvador era muito citadina, como a gente dizia, do
que urbana. Urbana é São Paulo. 272

Na capa de Panis et Circencis predominam as cores verde e amarelo, cores


características do Brasil. A foto da capa foi feita pelo fotografo da Editora Abril e todos
opinaram sobre sua composição. Percebe-se claramente a mistura dos elementos “cafonas”
com os modernos, resultando uma pop- art estilizada com elementos tropicalistas.
Aparecem na capa: o terno e a mala de Tom Zé, o pinico feito de xícara nas mãos de
Rogério Duprat, Gilberto Gil usando uma túnica verde meio hippie e oriental, segurava o
retrato de formatura, Gal Costa vestida de amarelo numa vestimenta que parece lembrar o
estilo hippie, mas com um penteado “brega”, Caetano Veloso segurava o retrato de Nara
Leão. E, ao fundo, podemos ver os Mutantes numa seriedade solene colocando em
evidência suas guitarras.
“Tropicália” ou “Panis et Circencis” representou a “institucionalização” do
Tropicalismo . Este álbum conceitual funcionou como manifesto e principal produto do
movimento. Com este trabalho o grupo indicava que estava incorporando um estilo e que
não se tratava de uma “onda” ou moda passageira. Porém, a canção que marca o
Tropicalismo é “Tropicália”, que se tornou histórica e significou uma alegoria da
experiência cultural brasileira. Segundo Favaretto (1979), esta música “era a matriz estética
do movimento” (FAVARETTO, 1979, p. 41).
O nome Tropicália surgiu de uma exposição de Hélio Oiticica, montada no Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1967, e que seria também o nome dado a uma
composição de Caetano. A exposição de Oiticica, com ênfase na experimentação, tanto
como produto artístico como enquanto fruição, é descrita por ele como sendo:

272
Depoimento a ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo tudo. Bondinho. 11 a 24 de novembro. 1971. p. 20.

187
Tropicália é um tipo de labirinto fechado, sem caminhos alternativos para a
saída. Quando você entra nele não há teto, nos espaços que o espectador circula
há elementos táteis. Na medida em que você vai avançando, os sons que você
ouve vindos de fora (vozes e todos os tipos de som) se revelam como tendo sua
origem num receptor de televisão que está colocado ali perto. È extraordinário a
percepção das imagens que se tem: quando você senta numa banqueta, as
imagens de televisão chegam como se estivessem sentadas à sua volta. Eu quis,
neste penetrável, fazer um exercício de imagens em todas as suas formas: as
estruturas geométricas fixas (se parece com uma casa japonesa-mondrianesca),
as imagens táteis, a sensação de caminhada em terreno difícil (no chão há três
tipos de coisas: sacos com areia, areia, cascalho e tapetes na parte escura, numa
sucessão de uma parte a outra) e a imagem televisiva

Eu criei um tipo de cena tropical, com plantas, areias, cascalhos. O problema da


imagem é colocado aqui objetivamente, mas desde que é um problema universal,
eu também propus este problema num contexto que é tipicamente nacional,
tropical e brasileiro. Eu quis acentuar a nova linguagem com elementos
brasileiros, numa tentativa extremamente ambiciosa em criar uma linguagem
que poderia ser nossa, característica nossa, na qual poderíamos nos colocar
contra uma imagética internacional da pop art, na qual uma boa parte dos nossos
artistas tem sucumbido (OITICICA, 1969). 273

Assim, em fins de 1967, a poesia de Caetano Veloso também remete sua criação ao
sentido dado por Hélio Oiticica em suas obras, ao sugerir um inventário das imagens de
brasilidade presentes na época. Porém, Caetano radicaliza este roteiro, identificando no
Brasil-nação o imenso monumento onde o espectador-ouvinte tem diante de si o desfile de
coisas arcaicas e modernas. Ao fundo ouve-se a Carta de Caminha, o som de florestas
tropicais e a percussão indígena. Dessa forma, a letra de Caetano elabora um monumento
simbólico num país contraditório, com uma série de elementos em oposição em vaivém
cômico-séria. Cada refrão conecta o arcaico e o atual.274

273
OITICICA, Hélio. Catálogo da Exposição na Whitechapel Galery. Londres. 1969
274
Sobre a cabeça os aviões/ sob meus pés os caminhões/aponta contra os chapadões/ meu nariz/ eu organizo
o movimento/ eu oriento o carnaval/eu inauguro o monumento? No planalto central do País/ Viva a Bossa –
as - sa/viva palhoça-ça-ça-ça-ça/ o monumento é de papel crepom e prata/os olhos verdes da mulata/a
cabeleira esconde atrás da verde mata/ Na mão direita tem uma roseira /autenticando eterna primavera/ e nos
jardins os urubus passeiam a tarde inteira/entre girassóis/Viva Maria-ia-ia? Viva Bahia –ia- ia- ia- ia-ia? No
pulso esquerdo bang-bang/ Em suas veias corre muito pouco sangue/ Mas seu coração balança a um samba/
de tamborim/ Emite acordes dissonantes/ pelos cinco mil alto-falantes/ senhoras e senhores ele põe os olhos
grandes/ sobre mim/ Viva Iracema –ma-ma /Viva Ipanema – ma- ma- ma- ma/Domingo é o fino da bossa/
segunda-feira está na fossa/terça vai a roça/Porém/ O Monumento é bem moderno/ não disse nada do modelo
do meu terno/ Que tudo mais vá pro inferno/ meu bem/viva a banda-da-da/ Carmem Miranda-da-da-da-da.

188
Nessa composição, Caetano assinala algumas criticas ideológicas, como as
direcionadas à esquerda que não se posicionava de uma forma mais efetiva (revolução
armada), quando faz referência à falta de sangue nas veias e o policiamento em torno da
cultura em função da defesa da “autêntica música brasileira (coração balança ao samba de
tamborim). Fica clara também a proposta do Tropicalismo ao dizer que inaugura o
monumento no planalto Central, no sentido de que estavam conectando as relíquias do
Brasil à tudo que é moderno, resultando, assim, em uma expressão artística antenada com a
cultura mundial e que busca a conciliação dos dois brasis percebidos por muitos segmentos
como irreconciliáveis.
A canção “Tropicália” tinha intenções definidas por Caetano, ou seja, uma
representação nada ufanista do Brasil e considerada por ele uma paródia do patriotismo. No
entanto, em função de seu exílio, ele passou por Portugal e conheceu um senhor que
tomava conta de um Castelo Medieval em Sesimbra. Este senhor português era percebido
como um alquimista. Um amigo que acompanhava Caetano pediu que ele cantasse
“Tropicália” para o senhor português. Ao final da apresentação da canção, o português
apresentou uma interpretação que aos olhos de Caetano Veloso era “a mais insólita
interpretação” de que ele tinha conhecimento (VELOSO, 1997, p. 337). A interpretação do
alquimista português indica que a canção apresenta uma valorização do Brasil, indicando
um destino a ser cumprido. Assim, por exemplo, em “eu organizo o movimento”, não
significa ser Caetano Veloso ou um individuo, e sim uma força que dizia através de
Caetano Veloso que ele (EU) organizava um importante movimento. Em “inauguro o
monumento no Planalto Central do país” tem-se uma referência à Brasília como a
manifestação da profecia de São João Bosco.
Caetano Veloso tentou explicar que suas motivações não tinham vínculos com um
ufanismo. Mas o alquimista não se mostrou surpreso diante dos esclarecimentos e protestos
de Caetano Veloso e rindo disse:

Eu sei, eu sei...”arrebatou: “o que sabem as mães sobre seus filhos?”. Entendi


que ele estava certo de conhecer melhor as intenções da minha composição do
que eu. Isso não era novidade: eu já sabia então que as canções têm vida própria
e que os outros podem revelar-lhes sentidos que seu autor não teria suspeitado.
Tampouco era-me de todo desconhecido o aspecto positivo que aquela canção
dava à representação do Brasil. (...) Mas que aquele homem não quisesse levar
em consideração o fato de na minha canção eu estar descrevendo um monstro –

189
e era um monstro que confirmava sua monstruosidade agredindo me a mim -, era
lago que á medida que ia acontecendo, ia-se-me tornando mais fascinante do que
irritante (VELOSO, 1997, p. 338-339).

As questões que envolvem o sebastianismo estavam sempre cercando Caetano


Veloso, embora ele indique que não era um estudioso e nem um militante do sebastianismo.
No entanto, ele não deixa de realizar conexões com as perspectivas colocadas pelo mito de
Dom Sebastião. Caetano Veloso indica seu profundo interesse e fascínio pelos poemas de
Pessoa, do livro “Mensagem”. Segundo ele, nesses poemas sentia a presença de algo
profundo na relação das palavras, sílabas e sons, e sugestões de idéias pareciam estar ali
como eventos “fundadores da língua ou sua justificação final. Todo começo é
involuntário/Deus é o agente? O herói a si assiste vário?E inconsciente? À espada em tuas
mãos achada? Teu olhar desce: “Que farei eu com esta espada?”/ Ergueste-a e fez-se”
(VELOSO, 1997, p. 339).
Caetano vai relacionar o fato de “Mensagem” ser o único livro de Pessoa publicado
em português com o autor ainda vivo, o poema místico-sebastianista, seus encontros com
os sebastianistas e a perspectiva apresentada a ele de “Tropicália”, em Sesimbra. Isso vai
levá-lo a ver com espanto a sua canção ser liberta de uma contundência crítica para uma
valorização positiva pela perspectiva dos sebastianistas. Segundo ele, “passei
gradativamente do espanto de ver minha canção “Tropicália” resgatada por uma visão que
anulava sua contundência crítica, à relativa adesão à perspectiva dessa visão: comecei a ver
“Tropicália” – e a pensar o Tropicalismo – também à luz da minha versão do sebastianismo
(VELOSO, 1997, p. 341).
Em “Verdade Tropical” Caetano indica seus namoros com o misticismo, ao mesmo
tempo em que recusa um aprofundamento nestas questões em função de um medo
declarado de Deus e de ser dominado por crenças (que ele denomina como medo das
sombras) e assim perder o contato com o mundo concreto. Manifestou esse mesmo temor
ao relatar as experiências que teve em 1968 ao consumir a bebida auasca. Seguindo o
exemplo de Gil, que tinha experimentado a bebida alucinógena e acreditava ter alcançado o
sentido último do momento do seu destino e do Brasil enquanto povo, sob uma opressão
autoritária. A experiência com a auasca teria fornecido a Gilberto Gil a percepção de que
havia se encontrado como individuo sozinho e podia sobretudo amar o mundo, incluindo aí
os militares autoritários e opressores.

190
Caetano Veloso resolveu fazer a mesma experiência. Ele descreve as visões que
teve e indicou uma identificação com aspectos indianos e que através dessas ilustrações
indianas ele pode quase ver a face do criador. Ao mesmo tempo em que demonstra um
fascínio, ele indica que isso o perturbou durante um tempo, pois se apegou a idéia de que
essas visões tomadas pelo seu próprio cérebro se posicionavam como mais reais do que o
mundo. Ele não sabe precisar se escolheu o nome do programa que iam fazer na TV Tupi
antes ou depois da experiência com a bebida alucinógena.
O brado “Deus está solto” foi uma criação de Caetano e a partir dela como já vimos,
muitas conexões podem ser realizadas, inclusive a que diz respeito que se trata de uma
crítica à religiosidade tradicional, como o próprio Caetano Veloso indicou. Isso pode ser
verificado em duas produções, só para exemplificar, que realizaram para um programa que
tinham em 1968 na TV Tupi que era o “Divino, Maravilhoso”. Nesse programa o
experimentalismo era total, mas contendo uma agressividade nas suas formas.
Num desses programas, os tropicalistas se colocaram no palco em posições
similares a de Cristo com os apóstolos na Santa Ceia, mas sobre a mesa havia bananas. Eles
cantavam e comiam bananas. Os Mutantes também fizeram o “enterro” do Tropicalismo.
As senhoras católicas não demoraram a reagir. Mandaram cartas protestando contra essas
ousadias. Ousadias que dividiam a opinião pública da época. A esse respeito, Caetano
indica: “isso certamente queria dizer que o que fazíamos era tomado como ofensivo por
algumas pessoas. Não nos intimidamos. (...) – Eu sobretudo – estávamos orgulhosos e
confiantes demais para nos entregarmos ao medo” (VELOSO, 1997, p. 342).
Um outro programa igualmente perturbador no quesito referente a quebra de
convenções e que de certa forma abalou até os próprios idealizadores da performance,
relacionava-se com a tradicional festa natalina. O programa seria exibido na semana do
Natal e por isso trazia uma proposta radical em relação a essa tradição. A performance se
daria da seguinte forma segundo Caetano Veloso (1997),

Eu próprio, numa homenagem ao grande compositor suicida Assis Valente, e


numa desmistificação das róseas sentimentalidades natalinas, cantaria a linda e
triste canção “Boas Festas” daquele autor (...”eu pensei que todo mundo fosse
filho de Papai Noel...”) apontando um revolver para minha própria têmpora. E
assim fiz. A canção, originalmente uma marchinha – e que no Brasil está tão
identificada com o Natal quanto “Jingle Bell” (embora a letra proteste contra o
fato de que alguns presentes de Natal e outros não) - , fora despojada de seu

191
ritmo e era apresentada como adágio (...). o resultado (que ainda vi no vídeo) era
assustador. Fiquei orgulhoso porque considerei que ali havia densidade
“poética”, mas intimamente arrependido por crer ter talvez – mais uma vez – ido
longe demais. No dia 27 de dezembro, Gil e eu fomos presos (VELOSO, 1997,
p. 343).

Caetano Veloso e Gil foram presos sem causa aparente, não havia uma acusação
formal. No entanto, eles eram a subversão com poderes sobre a opinião pública. Em função
disso, eles se tornavam inimigos do Regime. Presos no Rio por alguns meses, foram
transferidos para Salvador. Chegando lá, Gilberto Gil vai estreitar relacionamento com o
Coronel que ficou responsável por acompanhá-los de perto em função de afinidades
espirituais (Gilberto Gil com o esoterismo e o Coronel com o Kardecismo). A intervenção
desse Coronel em favor destes artistas e que vai permiti-los fazer uma apresentação pública
em Salvador para obterem renda para comprar passagens para ir para o exílio. Caetano
Veloso e Gilberto Gil estavam proibidos de se apresentarem em público. Vai ser esse
militar que vai conseguir autorização dos comandos do Rio de Janeiro e Brasília para que o
show acontecesse e garantiu que não haveria nenhuma manifestação ou incitação
subversiva (VELOSO, 1997, p. 414).
Gilberto Gil expressava livremente seu mergulho em assuntos esotéricos. Era adepto
da Eubiose, macrobiótica e se interessava por temas como discos voadores, assim como
muitos artistas e intelectuais que os cercavam também se sentiam fascinados por se
livrarem da cadeia da casualidade. Esse tropicalista se relacionava de modo confortável
com essas questões. Já Caetano Veloso, embora lutando contra isso – ou uma cristalização
de uma visão mística – tem sua trajetória permeada por explicações que envolvem uma
dinâmica entre o racional e o “irracional”. Esta postura fica clara nessas declarações:

Era uma época em que alimentávamos alucinações, fantasias de outras


dimensões, misticismos vários. Gil estava interessado em religiões orientais e
ouvia com interesse história sobre discos voadores. Além das drogas e da
política, os assuntos ocultos e esotéricos atraíam quase todos os nossos
conhecidos. Por toda parte se mesclava um medo das sombras com a alegria de
se livrar da cadeia da causalidade. Eu tinha um verdadeiro ódio à perene fome de
assombros e milagres. Como eu era muito vulnerável à tendência infantil de cair
prisioneiro das minhas próprias fantasias, reagia com agressividade a essa moda:
“vocês adoraram o que não existe, pois bem, eu só gosto do que existe!”, eu
gritava em meio às conversas sobre astrologia, teosofia, macrobiótica, e tarô. O
sebastianismo pessoano de Roberto Pinho ( que de maneira fascinante, incluía
atenção propriamente religiosa ao candomblé) se nutria também desse clima –

192
eu tendia a rejeita- lo com temor. Na verdade eu achava que minha vida já tinha
me levado longe demais da minha dimensão cotidiana. A viagem da ayuasca
seguida da prisão, a própria pletora de significados atribuíveis à minha elevação
à condição de celebridade, tudo me fazia temer a perda da razão. (...) “Sou um
irracionalista apaixonado pela razão”. (...) Em 69, no nascedouro do enjoativo
clima new-age, eu esperneava contra o irracional. (VELOSO, 1997, p. 415).

As composições tropicalistas vão apresentar em suas constituições (letras e músicas)


colagens de sons, gêneros e ritmos populares, nacionais e internacionais, sem muitas vezes
ter a preocupação de coerência sistemática. No entanto, estas composições não tem nada de
alienadas. Em meio aos fragmentos e colagens de imagens e sons, podemos perceber
referências às questões que fervilhavam naquela época, quer seja no campo político
(esquerdas ativas e inativas, governos autoritários, entre outras), no cultural
(universalização da cultura, impacto da cultura de massa, cultura pop e modernização
cultural).
Embora as músicas do Tropicalismo não falem da contracultura de modo explicito
ou numa referência formal, 275 esses artistas de vanguarda estavam sintonizados com o
“princípio”, ou melhor, com o conceito desse movimento que pode ser traduzido como a
entronização da autonomia e do espírito transgressor que se desdobram em experimentação,
levando sempre em consideração a questão da subjetividade. Assim, a produção dos
tropicalistas buscou contestar toda e qualquer imposição, rompendo tradições e inovando a
partir da mistura com a conexão de vários elementos.
Envolto em muitas polêmicas, o Tropicalismo realizou uma ruptura em vários
níveis: comportamental, político-ideológico, estético. Ora percebido como a face
contracultural no Brasil, ora percebido como ponto de confluência das vanguardas mais
radicais. O certo é que o Tropicalismo possui os seus heróis e “fundadores de eventos”.
Afinal, souberam evocar e prolongar a cascata de mediações, ao fazer a assimilação crítica
de experiências estrangeiras – músicas anglo-americana e fontes “não-musicais,” com o
intuito de sua re-elaboração em circunstâncias nacionais.
O Tropicalismo, após sua “explosão colorida”, acabou sendo algo incorporado pela
indústria cultural e da mídia como a Nova Era e tudo que um dia foi novidade e em função
disto provoca controvérsia. Quando o caráter de novidade perde sua forma e as inovações
275
Alegria, Alegria tem em sua letra referências claras as perspectivas da contracultura. Também nesta
canção, há boatos de que a frase “sem lenço e sem documento” seria na verdade uma referência, assim como
em “Lucy.”, ao LSD.

193
se estabilizam, podemos dizer que essas novas mediações foram assimiladas, foram
coletivizadas.

5. 2 Subversão & subversões: esquerdas, Tropicalismos e exílio

Como observamos, os movimentos culturais de esquerda eram pautados pelo


nacional popular. Esta era a grande bandeira da maior parte da esquerda, principalmente
dos intelectuais e artistas. Antes de primeiro de abril de 1964 a preocupação era em
construir uma identidade brasileira e a conscientização do povo em rumo a revolução
socialista. Após o Golpe Militar, a esquerda continua produzindo uma arte engajada
também para a conscientização do povo, mas a direção do PCB mantém a postura de ser
contra a luta armada, perspectiva que foi comungada por amplos setores do mundo artístico
de inspiração comunista. Esses segmentos acreditavam que o socialismo seria implantando
pelo modo clássico imaginado por Karl Marx. 276 No entanto, o golpe de 64 representou
uma grande desilusão em relação a esta perspectiva.
É nesse panorama da esquerda comunista, de ditadura militar impondo seu padrão
de conduta e cultura e cerceando expressões que pudessem contradizer esse modelo, que o
movimento contracultural desponta e se desdobra numa feição própria aqui no Brasil.
Assim, os movimentos alternativos ocorreram em meio à alterações políticas empreendidas
de forma traumática para o país, principalmente a partir de dezembro de 1968, quando é
assinado pelo então presidente Costa e Silva, o Ato Institucional número 5, o AI-5. 277 “A
fase mais dinâmica das respostas alternativas inclui justamente o ano que antecede a esse
fechamento político e os três anos seguintes, que são os primeiros da década de 1970”
(MOREIRA, 1986, p. 29-30). 278

276
Mas vai haver setores da esquerda que vão julgar essa diretriz do PCB como acomodação e vão partir para
um enfrentamento armado, utilizando a tática de guerrilha.
277
O congresso foi fechado, houve o endurecimento da repressão aos opositores. A tortura e a censura
tornaram-se quase institucionalizadas, cerceando qualquer tipo de manifestação contra o regime. Diante
destas impossibilidades, vários grupos de esquerda reuniram-se em ações armadas. Uma tática utilizada era
os seqüestros de representantes estrangeiros. O mais famoso foi o do embaixador norte-americano James
Elbrick. Em contrapartida, os militares associavam os atos armados a uma oposição comunista radical. Isto
tornou- se uma justificativa para as torturas e os misteriosos desaparecimentos. Ver em: Oliveira (1976);
Castro (1989); Holanda (1987).
278
O germe dos movimentos alternativos no Brasil ocorre nos anos 50 (com o concretismo dos irmãos
Augusto e Haroldo Campos) e nos Estados Unidos dos anos 50 aos 60 com a geração beat (poetas e

194
A contestação foi a tônica para o que se convencionou chamar de contracultura 279 .
Enquanto os alternativos norte-americanos questionavam o American Way of Life e a guerra
do Vietnam, no Brasil as manifestações alternativas ocorriam em reação ao padrão oficial
de cultura que o binômio Estado-indústria quis “determinar” como mais adequado,
defendiam a liberdade individual e se colocavam contra a “caretice” de uns.280 A inspiração
contracultural pode também ser ilustrada através do caso dos Novos Baianos. 281

Cabeludos, anárquicos e doidões, vivendo em comunidade e dispostos a fazer


amor e não a guerra, os Novos Baianos eram a ponta do iceberg hippie, que
emergia do oceano de caretice e repressão no qual se afogava a cultura brasileira.
O desregramento dos sentidos, o hermetismo lisérgico, a visão marginal, o
inconformismo radical (...) adquiriram dimensões ainda mais definitivas nesta
cena underground (ou “udigrude” em versão nacional) (BUENO, 2003, p. 392).

Por seu lado, o Estado reagia com censura a tudo que destoava do padrão idealizado
pela Revolução de 1964, sendo esta fase da história brasileira conhecida como os “anos de
chumbo”. Assim, havia um corte sistemático das manifestações que implicassem uma
ameaça ao modelo oficial estabelecido.
O panorama político e cultural do Brasil dos anos 1960/70, apresentava-se como um
período de questionamentos da ordem vigente, de busca por alternativas e também por
mudanças. Este período é marcado por vários manifestos, tantos políticos como
culturais. 282 Nesse sentido, Luiz Carlos Maciel (1996) declara: “a minha história e a da
minha geração são contadas por uma dupla procura. Num plano mais imediato, foi a busca
da liberdade individual e da felicidade pessoal; num plano mais amplo, foi a busca

escritores) e o movimento hippie (pacifista e regado a inúmeras experiências com drogas). Cf. Moreira
(1986).
279
Luiz Carlos Maciel define contracultura como “a cultura marginal, independente do reconhecimento
oficial. No sentido universitário do termo é uma anticultura”. (PEREIRA, 1983, p. 13).
280
Aqui no Brasil as contestações, no campo político, representado por universitários, sindicatos e
organizações de esquerda protestavam contra as desigualdades sociais e a submissão ao imperialismo norte-
americano ao qual era responsabilizado pelo subdesenvolvimento, bem diverso dos protestos da geração baby
boom norte-americana. Aqui o vetor das manifestações assume um tom politizado através dos Centros
populares de Cultura (CPCs) e culturalmente experimental através de trabalhos marcantes: Cinema Novo
(Terra em transe/Glauber Rocha), Teatro de vanguarda (O rei da vela/ José Celso Martinez Corrêa) e na
música popular (Tropicália/Caetano Veloso).
281
Os “Novos Baianos” foi um grupo musical composto por Moraes Moreira, Galvão, Paulinho Boca De
Cantor, Baby do Brasil e Pepeu Gomes. Eles representavam o perfil da contracultura brasileira.
282
Como já vimos, havia por um lado uma juventude comprometida com mudanças sociais e políticas,
obviamente de esquerda e por outro uma juventude ligada à mudanças culturais, considerada alienada pela
primeira vertente.

195
revolucionária por uma sociedade mais justa e mais humana. Em todos os níveis, essa busca
obrigou a uma luta apaixonada contra repressões internas e externas” (MACIEL, 1996, p.
15).
Embora houvesse uma juventude atuante no plano político, engajada e preocupada
com a conscientização política, tendo Che Guevara como herói e modelo, no plano interno
esses jovens se mantinham atrelados a “velhos” valores familiares e “estéticos”, sendo
considerados tolhidos em sua subjetividade e, em uma linguagem da época, “quadrados”.
Nesse sentido, a contracultura e suas influências sobre a subjetividade e autonomia vão
apontar essa contradição. Um exemplo cabal disso é a reação da platéia – com segmentos
que mantinham uma postura “politicamente correta”, mas moral e esteticamente atrasada –
e a resposta de Caetano na sua apresentação de “É Proibido Proibir”, que se transforma
num happening apontando essa contradição. Em meios aos sons das guitarras, Caetano grita
para uma multidão enfurecida: “É esta a juventude que quer tomar o poder?!... Vocês estão
por fora!...”. 283
Essa juventude de esquerda condenava tudo o que vinha de fora, julgava as
influências externas como uma submissão ao imperialismo. A verdadeira arte brasileira
deveria servir para conscientizar o povo. Assim, a universalização da música brasileira e a
constatação de uma cultura urbana como material de inspiração foram propostas colocadas
pelos tropicalistas que chocaram essa juventude engajada, mas esteticamente “reacionária”.
Os tropicalistas, representados na fala de Caetano, viam isso criticamente: o “nacionalismo
dos intelectuais de esquerda, sendo uma mera reação ao imperialismo norte-americano,
pouco ou nada tinha a ver com gostar de coisas do Brasil ou – o que mais me interessava –
como propor, a partir do nosso jeito próprio, soluções para os problemas do homem e do
mundo” (VELOSO, 1997, p. 87).
No livro de memórias de Caetano, estão registrados vários momentos de criticas a
este nacional-popular, que podia ser percebido com muita evidência no campo musical. Ele
faz críticas às canções de protesto que reproduzem a ideologia desse nacionalismo
(VELOSO, 1997, p. 131). Reafirma a crítica dos concretistas em relação à “folclorização
mantenedora do subdesenvolvimento, e uma tomada de responsabilidade pelo que se passa
no nível da linguagem por parte daqueles que trabalham diretamente com ela” (VELOSO,

283
BAR, Décio. Acontece que ele é Baiano. Realidade. 1968. p. 190

196
1997, p. 216), entre outras passagens que atestam que o que os tropicalistas pretendiam era
destronar o nacionalismo populista (VELOSO, 1997, p. 447). Podemos destacar também
sua percepção em relação ao espetáculo Opinião, que tinha Maria Bethânia como uma das
participantes, como “um show de bolso de esquerda populista nacionalista” (VELOSO,
1997, p. 315).
Assim, há várias passagens que atestam as criticas ferrenhas de Caetano Veloso ao
nacional-popular e o desejo de implodir esta ideologia que marcava a MPB, com o
Tropicalismo. Os tropicalistas pretendiam “poder mover-se além da vinculação automática
com as esquerdas, dando conta ao mesmo tempo da revolta visceral contra a abissal
desigualdade que fende um povo ainda reconhecidamente uno e encantador, e da fatal
alegre participação na realidade cultural urbana universalizante e internacional, tudo isso
valendo por desvelamento do mistério da ilha Brasil” (VELOSO, 1997, p. 16).
As críticas ao nacionalismo popular não devem ser lidas como se o Tropicalismo
não se preocupasse com o nacionalismo. Havia nos tropicalistas uma preocupação com a
questão da identidade nacional e com o nacionalismo, mas em moldes bem diversos dos
apregoados pelo nacional-popular, que defendiam uma pureza cultural, livre de influências
externas. As propostas dos tropicalistas iam no sentido de assumir o Brasil híbrido a partir
da mistura dos arcaísmos com tudo que houvesse de mais moderno no Brasil e no plano
internacional. Os Tropicalistas buscavam um nacionalismo sintonizado com as mudanças
que vinham ocorrendo no mundo e a partir disso buscar soluções caseiras para os
problemas do mundo. Era necessário, segundo Caetano “abrir um respiradouro nesse
universo fechado que é o Brasil. (...) Abrir diálogos mundiais francos, livrar-se de tudo que
tem mantido fechado em si mesmo como um escravo desconfiado” (VELOSO, 1997, p.
434).
Essa participação na linguagem mundial era percebida por Caetano e por muitos
músicos vanguardistas como uma força regeneradora do ambiente da música popular e
capaz de um fortalecimento enquanto povo e como afirmação de uma originalidade
(VELOSO, 1997). Em vários momentos de seu livro de memórias, Caetano indica que
sempre acreditou em forças regeneradoras. É através dessa crença que Caetano aponta uma
afinidade poética dos tropicalistas com a esquerda armada, “dadas as imagens violentas nas

197
letras de suas canções, atitudes agressivas, o horror à ditadura a transformar-se em
violência regeneradora” (RIDENTI, 2000, p. 278). 284
A identificação poética dos tropicalistas com a extrema esquerda pode ser percebida
significativamente em três canções: em “Divino, Maravilhoso”, “Enquanto seu Lobo não
Vem” e “Soy Loco por ti América”.
Em “Divino, Maravilhoso”, de 1968, podemos perceber em algumas frases a
referência de que era necessário se ter atenção. Esta canção, interpretada por Gal Costa, era
deliberadamente um pop doce. No entanto, traz sugestões do clima de rebeldia estudantil
contra o regime da ditadura. O conjunto das palavras chama uma menina para participar de
alguma coisa não mencionada, mas que requeria “atenção para as janelas no alto/ atenção,
ao pisar no chão”, tudo indo ao encontro do que o refrão anunciava: “atenção, tudo é
perigoso/tudo é divino, maravilhoso/ atenção para o refrão”. Tal ênfase interpreta-se como
sendo uma referência aos acontecimentos relacionados à ditadura e que era necessário
tomar alguma atitude sem temer a reação do sistema. Estas questões podem ser percebidas
em referências como: “é preciso estar atento e forte”, “não temos tempo de temer a morte”
e “atenção com o sangue no chão”
Na música “Enquanto seu Lobo não Vem” (do LP Tropicália, de 1968) também
podemos notar referências às perspectivas defendidas pela esquerda armada. 285 Além de o
próprio título já ser bastante sugestivo, há a introdução de um trecho do hino da
Internacional Comunista e referências a passeios na floresta escondida, a bombas e botas,
imagens facilmente associadas aos guerrilheiros brasileiros.
Também em “Soy Loco por ti, América” 286 , de Gil e Capinam, há uma homenagem
a Che, deixando transparecer o que os tropicalistas pensavam sobre ele e sua bandeira. Na

284
Também em Veloso (1997).
285
Vamos passear na floresta escondida/ meu amor/ vamos passear na avenida/ vamos passear nas veredas do
alto/ meu amor/ há uma cordilheira sob o asfalto/ A estação primeira de mangueira/ passa em ruas largas/
passa por debaixo da avenida Presidente Vargas/ Vamos passear nos estados unidos/ do Brasil (nessa parte da
canção ouve-se ao fundo parte do hino da internacional comunista)/ vamos passear escondidos/ vamos
desfilar pela rua onde a mangueira passou/ vamos por debaixo das ruas/ Debaixo das bombas das bandeiras/
debaixo das botas/ debaixo das rosas dos jardins/ debaixo da lama/ debaixo da cama/ debaixo da cama.
286
Soy loco por ti, América/ yo voy traer uma mjer plajera/ que su nombre sea Martí/.../ como se chama a
amante desse país sem nome/ esse tango, esse rancho/ dizei-me/ arde o fogo de conhecê-la/.../ El nombre del
hombre muerto/ ya no se puede decir-lo queien sabe/ antes que o dia arrebente/ antes que o dia arrebente/ el
nombre Del hombre muerto/ antes que a definitiva noite/ se espalhe em latino América/ el nombre Del
hombre es pueblo/... espero a manhã que cante/ el nombre Del hombre muerto/ não sejam palavras tristes/ soy
loco por ti de amores/.../ estou aqui de passagem/ sei que adiante/ um dia vou morrer/ de susto, de bala ou

198
música, há nítidas referências ao homem, ao povo, a guerrilha e a morte do herói sob o
ritmo frenético de uma rumba. Esta música, em especial, também nos fornece um exemplo
significativo do embate político-cultural entre esquerda e direita, onde os personagens são
Hebe Camargo e Caetano Veloso. Em 1968, Hebe Camargo era apresentadora de um
programa de grande audiência na rede de TV Record, e realizou uma entrevista com
Caetano Veloso, que colhia os frutos do Tropicalismo e tinha recentemente lançado “Soy
Loco por ti, América”. Hebe tentou a todo custo que Caetano explicasse o por que de uma
rumba? Quem era o homem morto? Sempre insistente, ela acaba recebendo de Caetano a
resposta de que ela não tinha entendido nada e que ele cantava a rumba por ser um ritmo
ótimo para se dançar.
Nesta música, usa-se uma estratégia poética para mascarar a mensagem para que ela
não fosse percebida pelos censores, mas, agregado a isto, tinha-se também a questão da
liberdade de criação. Assim, permite-se a autonomia da criação, tendo licença para se
misturar ritmos, língua, conectando política à arte espontânea, com valorização da estética e
sendo vanguarda. Essa liberdade é para José Capinam – parceiro de Caetano e Gil em
muitas composições – o suporte que dava vitalidade ao Tropicalismo. Poeta e letrista
consagrado, Capinam chocou a critica da época ao usar pela primeira vez o “portunhol”, o
que vem a ser uma mistura de português com espanhol, na época algo inconcebível

Na rumba Soy Loco por ti, América, que fiz de parceria com Gil, senti mais
possibilidade do que compor a letra de Ponteio. Dizem os críticos que uma
rumba não pode ser música brasileira e que não se pode fazer versos com
palavras em castelhano. Seria o caso de perguntar: e daí? A cultura brasileira,
para mim, não é mais exclusividade regional, é a cultura de todo o Terceiro
Mundo, de toda a América Latina, de todos os paises subdesenvolvidos. Se os
problemas nacionais são os mesmos dos outros paises latinos, temos o direito –
mais até: o dever – de nos expressar também em espanhol. O Tropicalismo nós
dá a liberdade necessária para enfrentar esse dever. O artista que policia sua
força criadora pretendendo falar a linguagem do povo comete um duplo engano.
Primeiro, ele pensar estar falando a língua do povo; segundo, o povo pensa estar
ouvindo através dele a verdadeira voz da arte. 287

vício/ de ssusto de bala ou vício/ num precipício de luzes/ entre saudades, soluços/ eu vou morrer de bruços/
nos braços, nos olhos/ nos braços de uma mulher/ nos braços de uma mulher/ mais apaixonado ainda/ dentro
dos braços da camponesa/ guerrilheira, manequim/ ai de mim/ nos braços de quem me queira/...
287
O Tropicalismo é nosso, viu? realidade. 1968. p. 180

199
A parir do que foi expresso por Capinan, podemos perceber que o projeto musical
dos tropicalistas era criticado pelos puristas que não admitiam um “desvirtuamento” da
“verdadeira música brasileira” com a universalização da MPB realizada por esse grupo de
poetas, cantores e músicos. Por outro lado, também fica nítida a desaprovação de Capinam
com relação às propostas musicais vigentes na época (nacionalismo popular na MPB). Ele
deixa clara sua condenação ao artista que submete sua criação a uma ideologia que pretende
conscientizar o povo através da arte. Isto para ele é um contra-senso, na medida em que o
artista tolhe o seu “verdadeiro” impulso criador e ao mesmo tempo a produção artística que
chega ao povo não é resultado de uma “verdadeira inspiração”, e o povo que é alvo dessa
arte, acaba recebendo uma arte equivocada, ao achar que isto é resultado de uma força
criadora, “autêntica e espontânea”.
A composição e execução dessas músicas apontam para a crítica da perspectiva de
arte submetida à política e ao eixo nacional-popular, uma afinidade entre os tropicalistas e a
esquerda armada. Mas, também, por outro lado, há indícios de que setores da esquerda
armada também se identificavam com o tipo de subversão dos tropicalistas, pois
acreditavam que este movimento representava no campo cultural a mesma reação que a
esquerda armada realizava contra a ditadura.
Cabe ressaltar que a identidade de segmentos da esquerda radical com o
Tropicalismo não era aleatória; estes dois movimentos compartilhavam a decisão de
travarem um duplo combate: a ditadura e a esquerda tradicional, “quer no seu aspecto
político – cujo principal paradigma foi o PCB – quer no aspecto estético, cujo referencial
por excelência foi a proposta dos CPCs da UNE, formulada majoritariamente por jovens
militantes ou simpatizantes do PCB. Mas esse aspecto comum – de ordem negativa – não
significa que haja uma comunhão política entre eles em termos afirmativos” (RIDENTI,
2000, p. 283).
É interessante sublinhar que a esquerda ligada ao PCB e os artistas a ele vinculado
por fidelidade partidária e ideológica presos à idéia de uma arte politizada, a partir do
nacional e popular, que julgavam que essa prática levaria à revolução socialista, vão
condenar a luta armada como combate à ditadura. Eles vão desaprovar de forma
contundente as inovações empreendidas pelos tropicalistas, taxando-os de alienados e
sintonizados com imperialismo norte-americano. Assim, paradoxalmente, vai ser a

200
esquerda armada que optou pela guerrilha que vai se identificar com a vanguarda dos
tropicalistas, na medida em que percebe nessa manifestação artística um combate à ditadura
no campo cultural, enquanto a esquerda “tradicional” se acomodou frente o golpe de 1964.
Tal ocorrência parece estar ligada à perspectiva de que as diferenças são
estabelecidas no interior de mundos contínuos, processadas no desenrolar das cadeias de
mediadores (VELHO, 2007, p. 353) ou, em outras palavras, à idéia de “tradução e de
diferença num mundo contínuo de pequenas diferenças, ao invés de grandes oposições; de
semelhanças em cadeia, no lugar de igualdade ou oposições binárias” (VELHO, 2007, p.
348).
Assim, Alex Polari (1982), que foi militante do movimento estudantil no Rio de
Janeiro e, posteriormente, aderiu à luta armada, aponta em seu livro de memórias “Em
busca do Tesouro”, que se sentia sintonizado com o Tropicalismo na medida em que no seu
ponto de vista, o Tropicalismo seria no campo cultural o equivalente à guerrilha armada, ou
seja, a insubordinação em relação às práticas da Ditadura.
Analisando o disco “Araçá Azul” (1972), de Caetano Veloso, Renato Franco (1995)
também percebe neste trabalho uma subversão à ordem estabelecida no que se refere ao
plano estético, ao desafiar o padrão estabelecido pela indústria cultural e regime militar que
teria como paralelo a guerrilha. Heloísa Buarque de Hollanda (1979) também identifica
uma conexão entre a estética inaugurada pelos tropicalistas com os movimentos de
guerrilha urbana, sem que os tropicalistas tenham praticado a guerrilha ou vice versa
Fernando Gabeira (1988), também em seu livro de memórias, onde registra
experiências de luta armada, comenta que ouvia um disco em que Gilberto Gil gritava
muito apressado o nome de Marighela, de uma forma que não houvesse uma identificação
clara do que ele dizia (GABEIRA, 1988, p. 121). Esta canção é “Alfômega”, onde Gil faz a
voz de fundo para a interpretação de Caetano Veloso e em determinado momento aparecem
gritos de Gil que muitos identificam como sendo “iê-ma-ma-Marighella”, e, depois, no
resto da música, Gil grita apenas “ma-ma”, “lê-le” e outras sílabas, não mencionando mais
o nome do guerrilheiro.
Alípio Freire conta que Alfômega era ouvida diversas vezes pelos presos políticos
do presídio Tiradentes, com especial interesse na parte em que eles julgavam ouvir o cantor
gritando o nome do líder guerrilheiro. A letra da música dizia: “O analfomegabetismo/

201
Somatopsicpneumático/ Que também significa/ Que eu não sei de nada sobre a morte/ que
também significa? Tanto faz no sul como no norte/ Que também significa/ Deus é quem
decide a minha sorte” (nesta parte é que Gil grita o nome de Marighela).
Alguns segmentos da esquerda ouviam essa música com os ouvidos “atentos” para
ver presente na canção um nome que, na época, não poderia ser falado. No entanto, Gil,
quando se refere a esta canção, diz que as influências que o levaram a ela estão no
concretismo poético, nas religiões orientais e nas ciências ocultas (GIL, 1996, p. 109). Gil
não fala nada que indique a menção de Marighela na gravação deste LP, gravado em julho
de 1969, pouco antes de Caetano e ele seguirem para o exílio em Londres.
Caetano Veloso, em “Verdade Tropical”, expressa a admiração “íntima e mesmo
secreta por Marighela e os iniciadores da luta armada”, mas esta simpatia nutrida por
Caetano pela esquerda armada “não era do conhecimento nem dos radicais nem
conservadores” (VELOSO, 1997, p. 343). Sua identificação com a extrema esquerda é tão
“estreita” que ele consagra a violência dos guerrilheiros por estarem enfrentando a
verdadeira violência que viria de duas partes: da ditadura e das esquerdas acomodadas
(VELOSO, 1997, p. 343). Em relação ao período em que esteve no exílio, Caetano também
expressa sua afinidade com a esquerda armada ao comentar:

Acompanhamos de longe o que se passava no Brasil. Sem que eu tivesse certo


do que poderia resultar de uma revolução armada, o heroísmo dos guerrilheiros
como única resposta radical à perpetuação da ditadura merecia meu respeito
assombrado. No fundo, nós sentíamos com eles uma identificação à distância, de
caráter romântico, que nunca tínhamos sentido com a esquerda tradicional e o
Partido Comunista. Nós os víamos – e um pouco nos sentíamos – à esquerda da
esquerda (VELOSO, 1997, p. 427)

Embora os tropicalistas não tenham tido muitos problemas com a censura, seu
espírito anárquico começou a incomodar os poderosos com o seu “deboche” tropicalista,
que atrapalhava a ordem estabelecida. Assim, em 1969, no Governo Médici, com
acirramento da repressão, Gil e Caetano foram presos e logo depois foram para o exílio em
Londres.
Para além das afinidades com a extrema esquerda, o Tropicalismo representou uma
vanguarda musical que trouxe ares novos para o ambiente da MPB, criando fanáticos
entusiastas ou ódios mortais. Foram chamados de profanadores da música brasileira e vistos

202
com alienados e “desbundados” pela esquerda tradicional. Afinal, eles usavam a guitarra
elétrica e aderiram à contracultura, percebida nos meios de esquerda como algo do
imperialismo norte americano. Para outros, os tropicalistas transformaram o protesto geral
da juventude em tema de música. Segundo Maciel (1996), “o interessante dos baianos é que
eles trouxeram sua crítica para o universo mais próximo, para o nível exato em que o
sistema agredia. Que nível era esse? O da camisa-de-força moral imposta pela família
patriarcal tradicional” (MACIEL, 1996, p. 217) que tentava impedir os jovens de obter uma
consciência mais ampla, dialética, intuitiva e totalizante.
O mérito dos tropicalistas, além das propostas de renovação da música popular
brasileira, uma certa afinidade com a esquerda armada, está no fato que eles também
ajudaram a promover uma nova visão simbólica. Nessa direção, retomamos a música
Alfômega, composta por Gilberto Gil, que para os guerrilheiros havia uma referência a
Mariguella, mas que na época causou grande impacto em Luiz Carlos Maciel, de tal forma
que o levou a tecer comentários de suas impressões em uma coluna de sua
responsabilidade, que se chamava Vanguarda, no jornal Última Hora. Segundo Maciel, esta
composição o chocou tanto que ele teve necessidade de expressar este sentimento em sua
coluna.
Ele percebe Alfômega como um poema metafísico “cujo assunto é a teoria do
conhecimento e a resposta gnóstica de Gil: O analfomegabetismo/Somatopsicopneumático”
(MACIEL, 1996, p. 216). Onde, segundo ele, “a ignorância metafísica é enunciada para
receber, nos versos seguintes, uma solução de natureza mística”; “Que também significa /
que eu não sei de nada sobre a morte/ que também significa/ tanto faz no sul como no norte/
Deus é quem decide a minha sorte”. A valorização de palavras específicas como “morte” e
“Deus” pelas reiterações de Gil e pela interpretação mostram de forma clara a intenção dos
versos. Esta é a visão de Maciel, que se impressiona positivamente com a composição e
execução da música, na medida em que ele acredita e, posteriormente, tem suas impressões
confirmadas por Caetano em cartas que eles trocavam na época do exílio dos dois
tropicalistas.
“Alfômega me mostrou o interesse dos baianos em transformar em experiência
musical a experiência da expansão da consciência individual. Eram os nossos insights mais
secretos, nossas descobertas filosóficas mais fundas, nossos ‘saques’ (...), que eram

203
assuntos das músicas de Caetano e Gil, onde eram invariavelmente expostos com exatidão,
argúcia, sutileza e lirismo” (MACIEL, 1996, p. 216). De modo geral, Maciel se surpreende
com a capacidade de Caetano e Gil experimentarem várias formas em suas músicas.
As impressões de Maciel acerca de Alfômega são confirmadas por Caetano numa
carta, como já mencionado acima. Eis a seguir trechos desta carta:

Hoje estive lendo, entre um monte de recortes enviados pela Philips, alguns
textos seus publicados na Última Hora, onde você fala sobre o nosso trabalho, o
que me deu vontade de escrever de novo pra você. Achei fantástico tudo. O
comentário sobre o meu disco foi importantíssimo para mim, porque eu o tinha
feito sem pensar duas vezes, ou melhor, sem pensar absolutamente: eu não tinha
a menor idéia do que seria esse disco nem o que ele pareceria aos outros; seu
comentário iluminou a imagem desse aborto na minha cabeça. Por exemplo: eu
tive vontade de gravar a Carolina (aliás foi essa decisão que me fez aceitar a
idéia de fazer o disco – coisa que me parecia absurda quando eu estava na
Bahia), depois fiquei com da Carolina porque achava que todo mundo ia tentar
interpretar ou colocar uma carga crítica no fato de eu a ter gravado quando foi
uma atitude acrítica, puramente emocional e intima etc; lendo o seu artigo,
relaxei (...) Mas o que mais me impressionou das coisas que você escreveu foi a
descoberta de Alfômega. Achei o que você escreveu sensacional. De uma certa
forma nós já tínhamos percebido que a contribuição crítica mais importante ao
nosso trabalho, do ponto de vista do conteúdo, tem sido a sua. Mas desta vez eu
fiquei surpreendido. Você adivinhou o disco do Gil através daquela música, no
meu entender, e de antemão localizou a nova fase dele. 288

Assim, no exílio em Londres 289 , Caetano e Gil vão procurando outras inspirações
musicais, como já foi apontado por Maciel ao analisar os discos que os baianos deixaram
antes de serem exilados. Mas, aqui no Brasil, o Tropicalismo musical cada vez mais vai se
tornando algo aceito e reverenciado por amplos setores, inclusive por segmentos da música
que antes, por ocasião do seu surgimento, não o tinham recebido bem, como Elis Regina, só
para citar um nome de peso. Eles tornaram-se referência para novos compositores, na
medida em que o modo como “romperam” as estruturas tradicionais da MPB também
apresentou uma visão de mundo. “As velhas tristezas românticas e o abstrato compromisso
social ou político não eram experiências próximas ao jovem bem-alimentado da classe
média” (MACIEL, 1996, p. 217) e portanto não criavam mais conexões assimiláveis e,

288
Trechos da carta que Caetano enviou a Maciel de Londres em 16 de setembro de 1968 e reproduzida em
Maciel (1996, 226).
289
Gilberto Gil e Caetano Veloso partiram para o exílio em julho de 1969 e regressaram ao Brasil em janeiro
de 1972. Cf: http://tropicalia.uol.com.br/site/internas/leituras_gg_antropofagia3.php. Capturado em: 11 de
novembro de 2008

204
sendo assim, o que os baianos realizaram foi trazer sua “critica para o universo mais
próximo, para o nível exato em que o sistema agredia” (MACIEL, 1996, p. 217), o do
comportamental. Neste sentido, os baianos conseguiram assimilar os novos regimes de
enunciação que surgiam naquele contexto a nível mundial.
Em Londres, Caetano começa a indicar as suas inclinações em direção ao lirismo.
Nas cartas que envia a Maciel, Caetano aponta essa tendência, embora reconheça que é
difícil para as pessoas reconhecerem essa vertente. Como podemos perceber, segundo
Caetano, Maciel tinha conseguido ter uma percepção do disco que nem o próprio
cantor/compositor tinha consciência, ou seja, o cantor atribui ao jornalista o conceito sobre
o seu trabalho. No entanto, não é esta percepção que outros setores do meio possuem em
relação a este trabalho, principalmente no que se refere à gravação da canção “Carolina”,
que gera polêmicas. Caetano grava esta canção de Chico Buarque de um jeito percebido ou
traduzido por entusiastas do Tropicalismo como uma “gozação” em cima de Chico
Buarque. Esta também foi a percepção dos círculos menos empolgados com o trabalho dos
baianos, como os ligados à esquerda engajada e “conservadora”.
Na época de seu exílio, Caetano escrevia textos que eram publicados no Pasquim e,
em função disto, também se correspondia com Maciel. Numa dessas correspondências,
Caetano explica a Maciel que escreveu um texto onde esclarecia a sua intenção com a
gravação de “Carolina”. Embora ele afirme que Maciel tinha entendido suas intenções e
expressado isso em sua Coluna Vanguarda, no Jornal Última Hora, pessoas como Odete
Lara, que foi enviada a Londres para realizar uma entrevista com o baiano, ao ler o texto,
percebeu-o como uma “gozação” ainda maior que a gravação da música. Vejamos trechos
desta carta:

Agora fiz mais três textos dos quais só mandarei dois desta vez, pois o terceiro
deverá ir junto com uns desenhos que ainda não pude fazer. Fotos, por enquanto,
só as que Odete tirou com o Hélio Oiticica e que deverão seguir junto com a
entrevista, se tiverem saído boas. O da Carolina eu mando agora junto com estes
novos, embora continue pedindo para não publicar absolutamente. Embora eu
goste muito dele, eu acho que seria misunderstood. Quando eu li seu artigo sobre
o meu disco fiquei feliz, mas depois que estive com a Odete vi que só você
estava à vontade com relação ao assunto para entender bem o que eu estava
querendo dizer. Porque a própria Odete, que leu o texto logo ao chegar, achou

205
que o texto era “uma gozação em cima do Chico ainda mais violenta do que a
gravação da musica”. Assim seria terrível (MACIEL: 1996: 229).. 290

Esse trecho da correspondência entre Caetano e Maciel indica as controvérsias reais


ou imaginadas (criadas) à revelia ou não de seus protagonistas: Chico e Caetano. O
primeiro era o representante da esquerda engajada e o segundo do “desbunde” e da
“alienação”. Com a ida dos baianos para o exílio, chega ao fim o trabalho desses artistas
como tropicalistas, embora aqui no Brasil eles continuassem famosos e amplamente
aceitos, enfim, eram sucesso. Assim, em Londres, tanto Caetano como Gil começam a
ampliar seus horizontes criativos em direção a uma relação mais profunda entre a
experiência subjetiva e a alegadamente objetiva.
Neste processo, Caetano aponta tanto seu caráter construtor quanto desconstrutor,
postura que provoca controvérsias. Vejamos a seguir como Caetano elabora estas questões:

Agora eu estou mais tranqüilo com relação a isso: entendi afinal que eu não
posso pedir às pessoas que me entendam profundamente etc. etc., que há coisas
definidas com relação ao meu trabalho, coisas já entendidas e das quais eu não
posso me livrar assim tão facilmente. A evidente dessemelhança de propósitos
(melhor dizer - de inspiração) entre mim e Chico é, sem dúvida, uma dessas
coisas. Embora já tenham me acontecido (como a muito de nós) tantas e
tamanhas coisas desde dezembro, eu não posso pedir a ninguém que me permita
uma sinceridade descomprometida até com tudo o que eu fiz. Não quer dizer, é
claro, que eu discorde do que fiz antes, apenas não estou fazendo mais (...)
Também não posso querer que saiba de coisas que não tiveram tempo de
aparecer antes. (...) Eu falo aí num dos textos sobre o negócio do lirismo
brasileiro. Isso é realmente um assunto que me atrai muito agora. Às vésperas de
acontecimentos violentos, nossa poesia queria aniquilar o lirismo para dar lugar
a uma saúde feroz. Mas isso é muito profundo, essa história da alma lírica. (...)
A Carolina era realmente uma questão de sentimento, de sentimentalismo. Não
de critica ou de inteligência. (MACIEL, 1996, p. 229-230). 291

Quando Caetano e Gil vão para seu exílio em Londres, o trabalho enquanto
tropicalistas acaba sofrendo um corte. Gilberto Gil lançou-se a empreender uma aventura
mais interna e Caetano, embora deprimido, acabou amadurecendo e tendo mais clareza em
relação ao seu trabalho, como ele mesmo indica no fragmento de carta acima.

290
Esta carta não está datada, mas os textos das cartas se complementam, embora tenham sido escritas em
datas diferentes..
291
Conferir texto desta carta na integrar em Maciel (1996, 228- 231).

206
A questão de Gilberto Gil, a princípio, foi percebida como uma propensão a
angústia, mas ele explica sua situação da seguinte forma:

O que não era muito, era mais um negócio de assumir o recolhimento, uma
situação que era mesmo essa. Londres – como eu dizia uma vez num filmezinho
que a gente fez lá – é um mosteiro ajardinado, um lugar de recolhimento, onde a
gente não tem calor, não tem o sol, então´é um lugar onde a gente tem que...eu
por exemplo, colocava muito pra mim mesmo, como proposta, como exercício, a
ser feito, a coisa de ficar calado, de falar pouco, de pensar mais, de reflexão, que
tava tudo ligado à minha postura mística, de ioga, que eu fazia, que eu cheguei lá
fazendo, da macrobiótica; então eu não comia, eu tinha os horários
completamente diferentes, isso na época em que todos nós vivíamos juntos, Cê
ta entendendo? No primeiro ano que a gente teve lá. Então eu era assim um
marginal, um marginalizado na casa, mas sem nenhum sofrimento, aquilo era
por coisas que eu estava assumindo. O sofrimento era interior Era uma
consciência generalizada de toda uma situação. 292

Durante seu exílio em Londres, Caetano tornou-se colaborador do Pasquim. Num


desses textos, especificamente o primeiro, Caetano expressa-se com uma certa
dramaticidade que cria um impacto, em função de que ele indica no texto que no Brasil
havia pessoas que desejavam aniquilá-lo e que ele, então, dizia que tinham conseguido. Isto
gerou a interpretação de que Caetano se sentia realmente aniquilado e derrotado. A forma
como o texto foi construído, mais a editoração da página, contribuíram para reforçar essa
interpretação. Na composição da página na qual se encontrava o texto, Tarso de Castro, um
dos principais responsáveis pelo jornal, escolheu uma foto onde Caetano estava sentado
numa escada e com o rosto meio escondido pelas grades. Desde momento em diante, foi
lançada a polêmica. Isto provocou um impacto nos setores tropicalistas no Brasil, em
função da matéria ter produzido uma comoção nacional em relação a Caetano, uma
solidariedade que se reverteu em mais popularidade. 293 Esta polêmica levou pessoas como
José Celso Martinez, José Capinam, Jards Macalé, figuras ligadas ao movimento
tropicalista, a julgarem essas adesões a Caetano como reacionárias.

292
Depoimento a ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo tudo. Bondinho. 11 a 24 de novembro. 1971. p. 26.
293
Caetano em uma das cartas que troca com o jornalista Luiz Carlos Maciel vai indicar que toda a agitação
em torno do seu nome na imprensa é o que o aniquila. Segundo ele, “(...) recebi um monte de cartas do Brasil
de pessoas que querem me consolar. Infelizmente a minha relação com a turma aí está arrítmica e há mil mal-
entendidos.(...) O que eu achava era que os caras tinham conseguido me ‘aniquilar’, fazendo com que um
amor cheio de comiseração nascesse por mim aí no patropi, tornando minha imagem mais vendável do que
nunca, só que essa era a minha morte (...) (MACIEL, 1996, p. 238) Esta carta não esta datada. O autor do
livro a identifica com quinta carta.

207
Para esses dois tropicalistas, pessoas como Elis Regina, estarem naquele momento
atribuindo uma genialidade aos baianos era reacionário, na medida em que eles acreditam
que o trabalho só tem atualidade quando é executado, ou seja o happening. Isto vai em
direção ao que Caetano indicou para a platéia que o vaiou em 1968, ao disser: “Vocês têm
coragem de aplaudir este ano uma música que não teriam coragem de aplaudir no ano
passado. São a mesma juventude que vai sempre matar amanhã o velhote que morreu
ontem” (BUENO, 2003, p. 384). Ou seja, eles estavam criticando a aceitação, o consumo
do Tropicalismo, pois, para eles, o importante era o momento da performance e não sua
estabilização ou coletivização.
Esta postura de José Celso Martinez (diretor de teatro), Jards Macalé (poeta e
compositor) e José Carlos Capinam (poeta e compositor) é expressamente colocada num
debate promovido pelo Jornal Última Hora, sobre vanguarda no Brasil. O debate ocorreu
em 1969, pouco tempo depois do texto de Caetano e de ter acontecido mais um Festival
Internacional da Canção no Maracanãzinho, onde Macalé e Capinam fizeram uma música
juntos: era “Gothan City”, interpretada por Macalé, e que se constituiu em um happening e,
para variar, agradou a uns e provocou o escárnio de outros. Pelo lado do teatro, José
continuava suas experimentações com a questão do teatro participativo, com o espetáculo
“Na Selva das Cidades”, de Brecht, numa montagem bastante polêmica. Estes trabalhos vão
ser comentados no debate, assim como a simpatia generalizada pelo trabalho dos baianos.
Eis os principais eixos do debate:

José Celso – Há um público que rejeita O rei da vela mas vai procurar ver O rei
da vela em Na selva das cidades. É aquele público que chega sempre atrasado;
no ano que vem, ele não vai vaiar Gothan City, vai aplaudir Gothan City. O
Macalé e o Capinam vão estar em outra e eles vão estar pedindo Gotham City. È
o público que endeusa o Caetano Veloso, hoje em dia. Eu acho, por exemplo,
que o endeusamento que está havendo hoje, do Caetano, é muito mais
escandaloso do que o endeusamento que houve do Roberto Carlos. É uma coisa
de sentimento de culpa, fascista e viscosa. A santificação de Caetano e Gil é uma
coisa monstruosa, e é o que tende a acontecer com qualquer tipo de manifestação
294
nesse gênero, hoje.

José Celso indica sua postura em relação a uma arte participativa e efêmera. É a
vivência do momento em que ela está sendo executada que parece fornecer o sentido.

294
Debate sobre vanguarda. Jornal Última Hora. 08 de dezembro. 1969.

208
Quando ela é coletivizada, num sentido de aceitação, para ele isto faz com que ela perca a
atualidade e se torne somente um produto a ser consumido. Capinam também tem posições
semelhantes e afirma a questão da importância do que eles denominam atualidade da arte.
Assim, segundo Capinam , “quando a consciência culpada incorpora as coisas, já perdeu a
atualidade. Gotham City, por exemplo, só tem atualidade agora; quando vier a ser aceita, já
vai estar desatualizada. É um processo de só receber as coisas quando elas já não têm
nenhuma eficácia. (...). Por isso não me interessa a reação que obtive na época com
Ponteio. O que me interessa é a que obtive agora, com Gotham City” 295
A centralidade da experiência artística que se passa no momento do evento é
radicalizada por esses três, que indicam a necessidade do artista se desfazer da sua criação
quando ela já não é mais atual e já perdeu sua eficácia, pois se ela não for descartada acaba
sendo incorporada, sendo consumida, ou melhor, ela perde seu caráter de novidade e as
novas mediações decorrentes dessas experiências e experimentações são assimiladas. Para
eles, isto é inconcebível, na medida em que advogam que tudo tem que se esgotar no
momento de sua manifestação. Se não, segundo José Celso:

Vem carregado de uma carga de culpa que dá um caráter de mistificação muito


maior, como a entrevista da Elis Regina no Pasquim. É uma coisa muito
quadrada do que a própria rejeição inicial que ela tinha em relação à musica
Caetano e Gil. Hoje em dia, uma das coisas que mais me repugna, na própria
pele, é o Tropicalismo. Durante a carreira de O rei da vela, havia momentos em
que os atores não suportavam olhar as cores do cenário. Aquilo foi consumido
com tal rapidez que não tinha mais sentido. (...) e a capa do Pasquim e do seu
estilo de arte gráfica em torno da própria imagem do Caetano Veloso é uma
coisa religiosa, mística .(...) Aquela figura do Caetano rejeitado é mais forte do
que essa de hoje, uma coisa piegas, por causa do que aconteceu com ele, por ele
estar fora do Brasil etc. Na verdade, ele não é aceito, nem a musica dele. O que é
aceito é aquela coisa desgastada, que já está no patrimônio universal, como os
Beatles etc. Por isso, é inevitável que o artista rejeite as próprias obras. Uma das
características do artista é esse esporte, esse luxo que ele dá a si mesmo, de se
esnobar, de terminar uma obra e despreza-la. Recusa-la porque ela não tem mais
a menor importância para ele. O que, para as outras pessoas, deve ser preservado
e guardado, o artista verdadeiro faz questão de chutar fora. Tem de ser o
primeiro a chutar. O primeiro chute quem dá em você tem de ser você mesmo.
Ou você acredita nessa revolução permanente da arte, que é um lado masoquista
mas não neurótico, um lado de opção do artista, ou não. O que é neurótico é essa
consagração cheia de consciência de culpa, moralismo, piegas, da coisa já
incorporada. 296

295
Debate sobre vanguarda. Jornal Última Hora. 08 de dezembro. 1969
296
Debate sobre vanguarda. Jornal Última Hora. 08 de dezembro. 1969

209
Assim, podemos constatar que há nestes artistas, José Celso e Capinam, uma
perspectiva de que suas atividades artísticas não deviam adquirir uma estabilidade e a partir
daí criar vínculos sociais. Eles parecem defender uma constante criação, uma atualização
incessante, ou seja, uma obra de arte de natureza fugaz. Há, então, uma rejeição à
coletivização de suas “propostas artísticas”, o que significa que também rejeitavam que elas
se tornassem uma convenção.
Nesse sentido, eles parecem desejar a constante relativização da convenção.
Considerando, como explicita Wagner (1981) a dimensão criativa da cultura, tanto na
simbolização convencional como na diferenciante, pode-se compreender dessa forma a
dialética implicada na contracultura. Tal dialética possui, como contra-efeito, a
coletivização dos símbolos diferenciadores desses grupos, assinalando uma espiral
crescente de novos símbolos diferenciadores.
A simbolização convencional produz o mundo – por exemplo, aspectos morais. Mas
por mais convencionais que sejam os contextos, eles vão se apresentar com alguma
diferença. Quando a invenção se estabiliza é porque ela esta no modo coletivizante e já
produziu um contraste entre símbolo e coisa. De modo que, quando José Celso Martinez diz
que o artista deve “chutar fora” sua “invenção” porque senão ela vira uma “coisa já
incorporada”, isto significa que esta incorporação é justamente o resultado do processo de
simbolização convencional. Além disso, se toda invenção é, em alguma medida,
coletivizada, as “invenções” tropicalistas ou “rupturas” tropicalistas acabaram por formar
novos contextos de simbolização convencional.

5.3 Encontros que conduzem ao Kaos: múltiplas conexões

Tivemos oportunidade no item acima, de observar Caetano apontando caminhos de


sua trajetória como compositor e cantor a partir de um lirismo ou “alma lírica”. Porém, este
lirismo vai em direção à temas relacionados a uma compreensão do mundo e das suas
grandes questões. Esta busca poética e temática não foi só conceitualmente, mas
formalmente. Em relação a isto, Gil indica, em uma entrevista em 2002, que ele e Caetano
encontraram-se com Jorge Mautner no período de exílio em Londres no começo dos anos

210
1970 e que este poeta/compositor/cantor e escritor acabou influenciado o tipo de proposta
dos baianos.
Jorge Mautner é considerado como o único poeta beatnik brasileiro, e pioneiro da
ruptura provocada pela cultura “udigrude” em função do lançamento, em 1962, do livro
“Deus da Chuva e da Morte”, primeira “Trilogia do Kaos”. 297 Este autor vai misturar
existencialismo, surrealismo, cultura Zen e cultura pop, entre outros. Com isso, ele vai
desviar o eixo da crítica política, da questão da revolução política para uma rebelião
interna.Os temas levantados pela contracultura encontram-se ensaiados neste livro. 298
A partir das propostas de Kaos, Mautner se apresenta como um dos profetas da
Nova Era, um profeta com uma ironia peculiar. As percepções de Mautner desenvolvidas
nos três volumes que formam a “Trilogia do Kaos” expressam o seu sentimento de estar
próximo um momento histórico de transformação em busca de uma síntese criadora. Na
época em que os três volumes de Mautner saíram, o intelectual Mario Schenberg realizou
reflexões sobre o pensamento desse poeta/ cantor que ele julgava sendo o mais interessante
da literatura daquele contexto por abrir novos horizontes. De um longo artigo que
Schenberg, destacamos um trecho onde ele indica alguns aspectos fundamentais do
conjunto da literatura produzida por Mautner

(...) O seu Kaos seria a ideologia da Nova Era: integração contraditória e trágica
de paganismo dionisíaco, comunismo transfigurado e cristianismo reformulado.
A problemática de Mautner gira em torno da contradição entre o irracional e o
racional. Mautner profetiza que o o tédio e o sexo serão as notas dominantes
duma existência fundamentalmente poética do homem libertado da tirania das
necessidades materiais pela Tecnologia. (...) Identifica muitas vezes o
comunismo marxista com o racionalismo radical. Vê no sexo, na poesia e num
misticismo dionisíaco da natureza (com um certo colorido cristão) a essência do
irracional. Repele simultaneamente o comunismo racional e o cristianismo
ascético e sentimental, anunciando um comunismo existencial místico e um
cristianismo sexual dionisíaco. Talvez o seu Kaos possa ser simbolizado por
uma síntese Dionísios- Cristo- Marx. Vê uma nova espécie de Eterno Retorno
cósmico, num movimento espiral e ascendente como o do progresso dialético

297
O segundo livro chama-se “Kaos” e o volume que encerra a trilogia é “Narciso em tarde cinza”.
298
Segundo Caetano Veloso em um texto com data referente ao ano de 1997, comenta que “Deus da chuva e
da Morte tem uma vitalidade das canções sentimentais e dos rocks que seu autor petulantemente exaltava
contra as tendências de opinião da época. E tem a densidade do romantismo alemão. É, com tudo isso, uma
obra de humor pop que fez os tropicalistas do final dos anos sessenta reconhecerem-se ali profetizados. E não
só os tropicalistas: a imaginação no poder, o sexo na política, a religião além da irreligião – todos temas que
foram levantados pela contracultura estão nele prefigurados” (COHN & FIORE, 2002, p. 29).

211
hegeliano-marxista. O Kaos conteria também um Caos, mas o transcenderia pelo
progresso dialético, associado à contradição entre o irracional e o racional. 299

Em sua obra, Mautner propõe o surgimento de uma “Coisa Nova”, baseada na


compreensão das antinomias, da completude dos opostos ou fé na contradição. Esses
pressupostos, segundo ele, é que dão movimento ao mundo. Em “Deus da Chuva e da
Morte”, Mautner indica que esta obra tem “significado existencial, vivencial (no sentido
total do termo)” que foi inspirada a partir da sua formação. Ele indica que sua “formação
vem da filosofia irracionalista alemã (fenomenológica) e hindu. Minha obra é a discussão
entre filosofia irracional e a racional (que vai ter seu clímax em Marx e Engels). É
Nietzsche contra Marx. Até eu conseguir a síntese que é o Kaos”. 300
Esta perspectiva mautneriana vai contribuir para uma sintonia com os baianos.
Quando eles se encontram, como indicou Gil, houve uma cumplicidade e uma contribuição
de Mautner para uma maior consciência desta nova perspectiva poética que os baianos
estavam propondo. A esse respeito, Gil afirma:

realmente eu, em músicas como “Futurível”, já estava convergindo para esse


tipo de busca poética e temática. O Tropicalismo já tinha dado esta indicação. A
minha última fase tropicalista já era caracterizada por este tipo de visão. Então,
encontrar o Jorge em Londres foi tipo sopa no mel. Eu e Caetano sentimos que
tínhamos encontramos um parceiro, não só com a mesma perspectiva que
estávamos buscando, mas com uma compreensão do mundo e das suas grandes
questões muito mais completa. Já era completo nele algo que em nós ainda se
formava, pelo menos em mim, pois eu acho que o Caetano já era mais próximo
desse universo que Jorge representava. Na verdade, o que Jorge veio fazer foi
dar nitidez para uma série de coisas que já estavam esboçadas na nossa
perspectiva. O Jorge já tinha uma visão do maior avanço possível em relação a
estas idéias, não só conceitualmente, mas também formalmente: não só a forma
de ver o homem e as suas relações como mundo, com a economia, a ciência, o
existencial, o amor, a fraternidade, mas especialmente na forma de tratar isso no
campo poético. Quer dizer: a poesia que nasce disso, a fala poética que nasce
disso. O Jorge se tornou para nós , naquele momento em Londres, uma
referência. Não é à toa que tanto eu quanto Caetano nos referíamos a ele como

299
SCHENBERG, Mário. Reflexões sobre Jorge Mautner. In: Cohn, Sérgio e FIORE, Juliano. Jorge Mautner:
Trajetória do Kaos.. Editora Azougue: Rio de Janeiro. p. 64. 2002.
300
Cf; NEVES, JOÃO Alves da. Encontro com Jorge Mautner. O Estado de São Paulo. Suplemento literário.
15 de setembro de 1962. Podemos dizer que a idéia de Kaos é tudo que busca a harmonia dos opostos. É
segundo Mautner, “vida fluindo”. A “chave” em “Deus da chuva e da morte” é o comunismo místico e um
“Zen” ocidental.

212
mestre. (...) Eu colocaria a coisa assim: Caetano foi o meu primeiro mestre,
Jorge o segundo. 301

Caetano Veloso também, em “Verdade Tropical”, descreve seu encontro com


Mautner, as impressões ou “profecias” deste poeta – que desvela com lucidez irônica a
questão da “proliferação dos híbridos” – e declara a importância de Jorge Mautner para a
constituição de sua visão política e existencial.

(...) Na verdade, duas pessoas entraram em minha vida pela porta 16 da rua
Redesdale que se revelaram decisivas para minha formação ideológica; duas
personalidades antagônicas em muitos aspectos - embora nunca se hostilizassem
– e que se faziam complementares na função de estimular-me a inteligência
demonstrando como podia ser entendido o que eu queria dizer e como se devia
entender o mundo quando se assumia um ponto de vista como o meu: Jorge
Mautner e Antônio Cícero. Um, irracionalista radical, chutador assistemático,
exemplo vivo do que Décio Pignatari chamaria de “nova barbárie”; o outro
metódico e dissecador dos movimentos inteligíveis da sensibilidade. Os dois
tiveram, ao longo dos anos, funda influência em minha visão da política. (...) Em
Londres, Mautner chegou em nossa casa de Chelsea (...) sentou-se na sala com
ar suspeitamente modesto de velho chinês, falando muito baixinho e em tom de
interrogação. Em pouco tempo, encorajado com a receptividade, estava
bradando como um profeta de Israel. Ele misturava a Jovem Guarda de Roberto
Carlos, com a guarda vermelha de Mão, descrevia a revolução por que
estávamos passando como se fosse um cataclisma universal, voltava a seu velho
sonho de casar Marx com Nietzsche, (...) chegava a profecias mais precisas – e
aqui ele realmente mudava de tom, como se tudo o mais que estivera dizendo
tivesse sido mera retórica de choque -, afirmando que as lutas de minorias
sexuais inspiradas na idéia de direitos civis. Ele de fato descrevia com muita
exatidão o que vemos hoje. E era tão entusiástico em relação a uma cena assim
quanto se podia ser então – e tão irônico em relação à mesma quanto se pode ser
hoje. Ao mesmo tempo dizia: “O futuro é nosso, a velha política de esquerda e
direita, de luta de classes, de guerra fria, vai acabar: Marcuse não é nada
comparado com o que vem”, ria diabólico: “Vai ser chatíssimo: as lésbicas
negras sadomasoquistas vão disputar direitos com os pais gays brancos
protestantes etc. etc.” (VELOSO, 1997, p. 443).

Assim, o encontro com Jorge Mautner só veio confirmar uma perspectiva já iniciada
pelos baianos com o Tropicalismo, que é a centralidade na liberdade em relação ao versejar
e a incorporação temática de uma nova visão simbólica e dialética.
301
Esta entrevista foi realizada por Sérgio Cohn e Juliano de Fiore, no escritório da GG Produções, na Gávea,
Rio de Janeiro, em fevereiro de 2002 e faz parte de um volume especial que reúne entrevistas com e sobre o
autor. Este volume de entrevista foi organizado para compor a iniciativa da reunião do conjunto da obra. O
volume ao qual nos referimos é “Jorge Mautner: trajetória do Kaos”, organizado por Sérgio Cohn & Juliano
de Fiore, lançado em 2002, pela Azougue editorial. Esta publicação não apresenta numeração de página.,
assim, esta entrevista se localiza numa contagem informal realizada por mim, na 82a página.

213
Gil gravou no inicio dos anos 1970 “Maracatu Atômico”, 302 que pode ser percebido
como o retrato daquela década. De certa forma, há um salto que foi dado por “Maracatu
Atômico” em relação a Tropicália, onde a primeira obra passa a representar um outro tipo
de mentalidade. Isto significa que com “Maracatu Atômico” 303 se radicaliza a questão da
desconstrução de uma construção lógica clássica que culmina em um despojamento formal.
Essas questões percebidas por Gil nesta canção vão influenciar o trabalho deste artista.
Segundo ele, a desconstrução

De um universo arquitetônico arrumado, com edifícios construídos andar sobre


andar, o primeiro sobre o chão, o segundo sobre o primeiro, essa construção
lógica desconstruída no versejar e arrumar os versos, ou arrumar as idéias dentro
dos versos. Essa construção lógica já havia sido bombardeada aqui e ali pelo
Tropicalismo. Mas quando eu ouvi pela primeira vez o Maracatu Atômico,
construído daquele jeito absurdo, quer dizer, como edifício de pedras cósmicas,
construído à semelhança das estações espaciais, com um sistema de acoplagem
onde se encaixam peças vindas de todos os lados, debaixo, do alto, da esquerda e
da direita, foi um espanto. Isso para mim era um avanço, não só na poética, mas
também na musica que o Jacobina e o Mautner criaram. (...) Uma liberdade que
vai ser encontrada depois no meu versejar, e que se deve em grande parte a
Jorge. 304

Em Londres, Mautner indica que conversaram muito, cantaram e tocaram juntos,


passearam, viajaram pela Europa e até realizaram um filme “O Demiurgo”.305 Eis como
ocorreram os primeiros contatos, segundo o próprio Mautner:

302
Parece ser recorrente na musica de Mautner uma referência ao animismo. Algumas das composições feitas
por Gil em parceria com Mautner também faz referência a este aspecto, assim como musicas de Mautner
tocadas por Gil como “Maracatu Atômico” que fala que a “fauna grita de amor”e “Samba de Roseira”
parceria dos dois onde se conversa com plantas.
303
Atrás do arranha céu, tem o céu, tem o céu/ E depois tem o outro céu sem estrelas/ Em cima do guarda
chuva tem a chuva, tem a chuva/ Quem tem gotas tão lindas que dá vontade de come-las/ No meio da couve
flor tem a flor, tem a flor/ Que além de ser uma flor tem sabor, tem sabor/ Dentro do porta luva tem a luva,
tem a luva/ Que alguém de unhas negras e tão afiadas se esqueceu de pôr/ No fundo do para-raio tem o raio,
tem o raio? Que caiu da nuvem negra do temporal/ Todo quadro negro é todo negro? Eu escrevo seu nome
nele só pra demonstrar o meu apego? O bico do beija flor beija a flor, beija a flor? E toda a fauna grita de
amor/ Quem segura o porta estandarte tem a arte, tem a arte/ E aqui passa com raça eletrônica maracatu
atômico. (Jorge Mautner, Nelson Jacobina)
304
Trecho da entrevista de Gilberto Gil, concedida a Sergio Cohn e Juliano de Fiore. Cf: Cohn & Fiore
(2002). Em uma contagem informal, este trecho da entrevistas de Gil, localiza-se na 83a pagina.
305
Neste filme, Mautner foi diretor e ator. Segundo ele, “o filme é colorido e Caetano é um Demiurgo
(mistura de oráculo, prestigitador, pitonisa, profeta) Gil é o deus Pã, Leilah Assunção é Cassandra, e eu sou
satã, a negação”. Cf: MAUTNER, Jorge. Caetano, Gil e eu. Pasquim. 10 de junho. 1971. Este filme começou
a ser rodado em 1971 em Londres, mas quando Mautner o trouxe para o Brasil ele ficou retido pelos órgãos
da censura e quando foi liberado não conseguiu entrar no circuito comercial.

214
Eu entrei de guarda-chuva na casa de Caetano e disse uma profecia. O Caetano
ficou impressionado e disse tremulamente – “Você é profeta, é?” Eu disse mais
tremulamente: - Bem, não são bem profecias, são análises totalizantes que
incluem muitas coisas...” E falei, falei. Gilberto Gil disse – “Ei, nêgo, você toca
bandolim, é?” E eu timidamente no dia seguinte trouxe meu bandolim e
tocamos, tocamos noites, dias (...). Com Caetano eu tocava (acompanhando
fazendo ecos e fraseados) (...) aquele repertório popular de Caetano. Com Gil eu
tocava acompanhando o seu novo som africano-rock- heavy- brazilliance-
electricity. Às vezes predominava o jazz, às vezes rock & baião. Falava-se muito
de tudo. Inumeráveis discussões sobre Nietzsche, Hegel, estruturalismo, discos
voadores. Dionisius e Apolo. (...) foi na Espanha que eu e Gil e Cae falamos de
Deus e na anti-matéria, no destino dos astros, na desintegração da matéria, e nos
deuses. 306

Mautner é considerado o “único” poeta beatnik do Brasil. Vai ser principalmente


através da poesia que Mautner vai expressar suas percepções existenciais. Em 1964, em
uma entrevista – diálogo com o Kaos – realizada por Nelson Coelho para a revista Senhor,
Mautner indica que ele percebe alguns poetas como profetas. E, segundo ele, no futuro (que
já teria se iniciado em alguns lugares, núcleos isolados e grupos) o homem materialista
acabaria buscando uma religiosidade mística, de um misticismo imanente, sem a presença
de deuses, sejam eles Marx, Einstein, Jeová, dogma, lei, sangue, entre outros. Para ele, “o
homem viverá no plano mítico (mito quer dizer: poesia desindividualizada), será do sim-
não, do bem-mal, das contradições em movimento constante, sem cessar, viverá no fluir,
imerso dentro de um mundo sexualista pagão onde haverá (...) igualdade”. Será um ser
extremamente “conflituado, pois se o homem é a matéria mais complexa existente e se a
matéria está em constante movimento, transportada para o plano sensitivo este movimento
quer dizer: conflito”. No entanto, este conflito não é percebido como algo negativo, pois ele
também comporta o seu oposto. Não obstante, Mautner indica que “negativo-positivo, é a
condição humana de caminhar de síntese para síntese, numa constante destruição de síntese
para a construção das outras sempre num avanço em espiral”. 307
Essa perspectiva manifestada por Mautner, ao que parece, vai levá-lo a perceber no
versejar dos baianos uma semelhança com sua percepção. No filme dirigido por Mautner já
estão presentes algumas questões em relação à poesia e o seu papel nesta visão. Este filme
recebeu o nome de “Demiurgo”, em homenagem a Caetano, que faz o papel de poeta
exilado que tem suas revelações através da palavra (COHN & FIORE, 2002, p. 78). Esta
306
MAUTNER, Jorge. Caetano, Gil e eu. Pasquim. 10 de junho. 1971.
307
Cf: COELHO, Nelson. Dialogo com o kaos. Revista Senhor. No. 59. Janeiro. 1964.

215
identificação em relação aos baianos tem a ver com a questão da dinâmica entre os opostos,
que ele também denomina como “nova visão” e “paganismo pop”. Ele compreende como
sendo paganismo pop a perspectiva de conectar algo que religiões ou culturas não-cristãs
possuem, que ele chama de irracionalidade, com as questões do mundo industrializado.
Segundo ele, o “paganismo é o relativismo total contra a visão da unidade. E toda visão da
unidade, por mais dialética que ela seja aparentemente, ela no fundo ainda é uma visão
cristã (...) Eu digo paganismo pop porque o paganismo, esse foi pré-socrático, não volta.” O
pop entraria “dando uma idéia de elemento da indústria, então seria isso, mas já com
indústria, o que muda o próprio conteúdo desse paganismo”. 308
Sendo Gil e Caetano baianos, Mautner percebe nestes artistas a imersão nesta “nova
visão” ou no “paganismo pop”, na medida em que há neles “nítidas” e “seguras”
referências à Bahia, que ele percebia como mítica, tribal e mágica, 309 o que lhes forneciam
a possibilidade de conectar estes elementos “tribais” com o universo industrializado. Para
Mautner, o encontro com os baianos significou a abertura para um Brasil que ele acreditava
incapaz de ser. Ele indicou na época, por ocasião de seu encontro com eles em Londres,
que “os baianos são o mel, a bondade, a ternura, o cristianismo, a generosidade, o amor de
um Brasil que só agora descobri através deles. Então eu disse para Caetano e Gil: ‘VOCÊS
ME TIRARAM DA LAMA’”. 310
Mautner atribui um nível de consciência aos baianos que ele acredita vir da cultura
africana fortemente presente na Bahia. Assim, segundo ele, o paganismo no Brasil estaria
na Bahia. A chamada “nova cultura” estaria, então, inspirada na cultura negra, no que ela
possui de irracional e em outras culturas que nunca definiram as coisas de modo estático.
Assim, para Mautner, a Bahia tem uma “energia” que vem de uma referência muito segura
de cultura, por ele percebida como referências claras de uma tribo. Para ele, os próprios
baianos criam um clima místico e mítico da própria Bahia e deles mesmos. Segundo ele,
“isso tudo faz parte, essa é a grande densidade poética, isso faz você viver na fantasia”. 311
Mautner, na sua visão do que seria uma revolução cultural, advoga o princípio da
contradição, onde a saúde – mental, corporal e social – viria de uma movimentação entre

308
MAUTNER, Jorge. Caetano, Gil e eu. Pasquim, 10 de junho. 1971
309
MAUTNER, Jorge. Caetano, Gil e eu. Pasquim, 10 de junho. 1971
310
MAUTNER, Jorge. Caetano, Gil e eu. Pasquim, 10 de junho. 1971
311
MAUTNER, Jorge. Caetano, Gil e eu. Pasquim. 10 de junho. 1971

216
coisas opostas, o que ele chama de um zig-zag contínuo. Isso representaria a consciência
simultânea de um processo que nega e afirma simultaneamente e que conduziria a uma
nova síntese. Assim, a Bahia apresenta este lado místico e mítico que fornece uma
densidade poética e que faz viver na fantasia, como ele mesmo afirmou. Este lugar está no
Brasil, onde há também a sociedade industrial que apresenta um lado onde se encontra a
dilaceração da angústia. Isto representaria os opostos que levam a síntese. E, se há a união
destas duas possibilidades, teríamos um caminho nítido para a saúde ou uma “nova
cultura”. A partir desta perspectiva, Jorge acredita que os baianos, por caminhos diferentes,
conseguem expressar isto em seus versos, em suas músicas e suas posturas.
Mautner, quando conhece os baianos em Londres, se identifica com eles na medida
em que com o Tropicalismo, Gil e Caetano já vinham trilhando os caminhos em direção a
uma produção musical voltada para a liberdade poética e influenciada por uma nova
percepção de mundo que, para Mautner, já tinha se aflorado desde o fim da década de 1950
e início dos anos 1960. Surge daí o encantamento de Mautner pelos baianos e pelas
potencialidades que ele atribui à Bahia. Em relação a isto, ele esclarece:

(...) É uma cultura tribal, é uma cultura instintiva, mas ela não foi destruída pelo
mundo industrial. Isso é muito raro hoje em dia, e coincide com a procura da
vanguarda no mundo desenvolvido, num certo setor da intelectualidade também,
que começa desde beat generation com Kerouac, Allen Ginsberg, com branco
que queria ser preto, a importância desse vitalismo negro na cultura. E lá, o que
você quiser chamar, que tem elos por mais diferentes que sejam entre si, ele
também é essa cultura. Só que depois da industrialização, já da fase eletrônica.
(...) Então se chama atenção pra essas fontes, pra essas energias, isso agora
reforçado por toda uma racionalização vinda do exterior que curte a cultura
underground, justamente porque a cultura underground é basicamente africana.
Ela é basicamente instintiva, ela é basicamente música-dança, ela é fantasia
(...). 312

Para Mautner, a Bahia possuía os elementos que a “nova visão” que “surgia”
naquele contexto buscava, ou seja, referências em culturas que fugiam do modelo
cartesiano. A cultura negra, como indica Mautner, foi uma das fontes de inspiração para o
movimento – beat, underground e contracultura – que buscava seus conceitos em culturas
percebidas como não “contaminadas” pela modernidade, para traduzi-las para um contexto
moderno, industrializado e dicotômico. Ele indica que:

312
MAUTNER, Jorge. Caetano, Gil e eu. Pasquim. 10 de junho. 1971

217
Conhecer uma coisa teoricamente é diferente. Eu sacava a importância da Bahia,
é evidente, por causa da importância da cultura africana hoje em dia, a cultura
negra que se traduz por todo o movimento pop, por toda a nova cultura –
basicamente ela é negra no que tem de irracional, de dionisíaco, mas não sabia
que a Bahia era tão forte nisso. Inclusive a parte selvagem, agressiva da coisa,
sabe, que tem assim um sadismo muito grande, um sadismo meio saudável, mas
é um sadismo. Quer dizer você tem aqui uma população bem enraizada na
cultura... O candomblé dá assim uma segurança de referências pra todo baiano.
Por exemplo: Caetano e Gil – eles têm... a própria São Salvador é tudo
recortado, é tudo irregular num certo sentido, tudo é descontínuo, porque não
existe um raciocínio tipo linear. Mesmo na calma baiana, tudo é muito
fragmentado. Ao mesmo tempo, tudo tem uma referência profunda que veio do
candomblé, que veio duma vivência dos mitos. 313

Segundo ele, “o dionisíaco de Exu com comidas fervidas em sangue, vem tão
embebido em doçura de rapadura apolínea que é difícil saber quando é um ou outro. Eu
diria que a Bahia conseguiu unir o Ying e o Yang de maneira sábia, e eis o TAO de
equilíbrio trágico quase perfeito que assim foi produzido por aqui”.314 Isto significa que a
Bahia fornece a possibilidade do movimento entre um lado que representaria o
despedaçamento (angústia, tristeza, frustração, consciência da morte entre outros) com o
outro lado que corresponderia a elementos de satisfação (tranqüilidade, amor, paz, saúde,
alegria, entre outros), mas esta satisfação não é estática. Não é a busca pelo paraíso e sim a
mistura do inferno com o paraíso. “Ao passo que, se você mistura os dois, você tem a
mistura do horror com a maravilha, numa nova síntese que não tem nada a ver com os dois
e aí você fica com essa sensação, vendo as coisas através dessa visão...”315 Enfim,
reiterando mais uma vez, tudo tem que está inserido no movimento, ou seja, a negação tem
que estar contrabalanceada com a afirmação.
Jorge Mautner indica que nessa busca de preservação da vida baseada na
conciliação dos opostos, deve estar aliada a adesão a algo exterior (religião, conhecimentos
como antropologia, filosofia etc) e uma prática (ginástica, macrobiótica, ioga, entre outros)
por que se não a pessoa tende ao despedaçamento e não consegue realizar o zig-zag (ir e
voltar). Ele indica que pessoas como Janis Joplin e Jimi Hendrix, por exemplo, foram

313
MAUTNER, Jorge. Caetano, Gil e eu. Pasquim. 10 de junho. 1971
314
MAUTNER, Jorge. Nosso incrível início. Pasquim. No 134. 1 de fevereiro. 1972.
315
MAUTNER, Jorge. Caetano, Gil e eu. Pasquim. 10 de junho. 1971

218
demais para o despedaçamento ou para Dionisius por não terem uma adesão a algo que os
levassem para a unidade. Ele explica como ele realizava isso:

Pra mim são mergulhos na razão, da filosofia, da antropologia, da história, essas


coisas, referências da cultura ocidental, mesmo em transe, mesmo em pânico,
mas são elas, e ginástica, exercícios. Esse constante exercício tem que ser
simultâneo também à racionalização, porque se não, você faz uma explosão em
cadeia. Então você ta sempre pensando, articulando um modo de pensar. É a
tentativa de introduzir no pensamento um dado que sempre foi considerado
irracional, que é um dado que a intuição ganha. Por isso é difícil explicar tudo
isso nessa espécie de discurso filosófico, em que há uma linearidade, em que há
um começo, meio e fim, porque são coisas que de conteúdo não são assim. Elas
são descontínuas, não tem começo, nem meio, nem fim. Mas, como a nossa
linguagem, ela é toda organizada. Nesse sentido, só na poesia você consegue
com muito mais facilidade exprimir isso, né?” 316

Mautner tornou-se um entusiasta no que diz respeito a Gil e Caetano e por sua terra.
E seus habitantes. É da cultura baiana que ele indica a capacidade desses baianos
realizarem um caminho em direção a síntese ou unidade. De acordo com Mautner, era das
“energias” ou da vitalidade da “irracionalidade” presente na cultura baiana associada as
questões universais que se produzia a força poética dos baianos. Sobre Caetano ele indica
que “é da Bahia que vem Caetano Veloso, a complexidade e a vivência do dramático em
nível de gênio, a atormentada alma cristã e a outra metade buliçosamente infantil (ah! João
Gilberto a chave para a infância!) e polimorfa perversa, Caetano Veloso é o ponto ômega
de mil caminhos e rios, ele é um cristão baiano, o que quer dizer: cristão da Renascença,
cristão paganizado. Novamente a influência negra”. 317
Gil, de modo diverso de Caetano, também retira inspiração da sua cultura negra
baiana. Nesse sentido, Mautner lê Gil da seguinte forma: “É de lá [que] Gilberto Gil (...)
fala em orientes e aventuras cósmicas, que é a voz de uma África tão ancestral que se torna
absolutamente contemporânea, que possui a velocidade da luz, de gritos primais e
selvagens, ecos de tambores da cultura negra. Gilberto Gil é o cósmico planetário, o sábio-
samurai de uma mitologia baiana, antes do individualismo e da Razão burguesa”. 318
Esse caminho em busca da síntese, Gilberto Gil o percorre tanto no campo artístico
como também a nível pessoal, onde indica que é uma pessoa voltada para sínteses e que a
316
CARDOSO, Jary. Bondinho. Bomtner. Março. 1972
317
MAUTNER, Jorge. Nosso incrível início. Pasquim. No 134. 1 de fevereiro. 1972.
318
MAUTNER, Jorge. Nosso incrível início. Pasquim. No 134. 1 de fevereiro. 1972.

219
idéia de unidade para ele é uma coisa do universo. A esse respeito ele esclarece: “(...) o
universo pra mim, é uno, é integral. A idéia de caos é uma coisa que eu entendo, que povoa
meus sentidos, a minha razão e o meu discernimento. Mas a idéia de unidade é o sintoma
básico da minha alma, entende? (...)”. 319
Lá em Londres, os baianos, assim como muitos, começam a perceber a que o
“sonho tinha acabado”, como anunciará John Lennon numa entrevista. Com base nessa
constatação, Gil compôs uma música falando do significado da visão que o “sonho” tinha
projetado e como a elaboração da música foi cercada de uma atmosfera que tinha elementos
ligados a proposições colocadas pela contracultura.
Ele indica que começa a construir a música em Glastonbury, no último festival que
houve na Inglaterra. Foi no dia 21 de junho de 1971, e com Gil e Caetano estava um grupo
de brasileiros. A letra foi escrita à tarde no dia do solstício de verão, quando em
Glastonbury se comemorava o dia da fertilidade, num sentido ancestral da cultura dos
ingleses, ou seja, pré-cristã ou “pagã”. 320 Gil comenta que o local tinha sido escolhido em
função de que nesse vale havia numa montanha artificial um monumento dedicado a Thor,
que foi organizado de um modo que através de sua posição, no dia do solstício produzisse
uma linha que fosse direto a Stonehenge e onde, segundo Gil,

O sol concentra naquele meio de pedra, e forma uma linha de força que fertiliza
toda a região, dentro do sentido da ligação, vamos dizer, mística, com a coisa
cósmica, na visão dos antigos povos da ilha, ta entendendo? Então a festa foi
feita para comemorar tudo isso, e realmente no dia 21 de junho a gente sentiu
mesmo o sol batendo, e a linha toda de força, as vibrações, tudo, era realmente
um negócio muito forte, era um festival de musica pop, era o ultimo que tava se
fazendo na Inglaterra, havia aquela coisa toda, foi logo depois da entrevista do
John Lennon falando que o sonho tinha acabado, daquela entrevista que o
Caetano tinha feito para a revista Veja, onde ele falava de tudo isso. E eu era
uma pessoa que na época ainda não colocava, ainda não usava essa frase, não
verbalizava esse problema. Porque embora eu soubesse que o sonho tinha
acabado, a formulação dessa idéia pra mim era uma coisa que me envolvia, uma
conceituação muito mais profunda. 321

Para Gilberto Gil verbalizar que o sonho tinha acabado ele julgava necessário que
ele tivesse uma compreensão mais profunda, mais intensa e clara do que isso significava

319
Depoimento a ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo tudo. Bondinho.. 11 a 24 de novembro. 1971. p. 26
320
Depoimento a ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo tudo. Bondinho.11 a 24 de novembro. 1971. p. 18.
321
Depoimento a ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo tudo. Bondinho. 11 a 24 de Novembro. 1971. p. 18

220
para ele. Gilberto Gil indica que a composição da letra de “O Sonho Acabou” 322 o ajudou
nessa elaboração interna, ou seja, a letra dessa música apresentou-se como uma revelação
do que significava o “fim do sonho”. Gil diz: “então essa música me ajudou (...) no sentido
todo da música pop, do psicodelismo, da coisa de diluição da comunicação, da massificação
moderna, da exaustão, dessa vivência toda dos anos 60 etc”. 323
A letra foi o início da internalização por parte de Gil de que o sonho tinha acabado
e, quando ele conseguiu musicá-la, o processo de compreensão do que isso significava
estava completo, ou seja, ele tinha que acreditar. Assim, a letra dessa canção, no verso
“hoje cedo quando o céu foi demanhando, de sol vindo, vindo, vindo, dissolvendo a noite
na boca do dia”, nessa colocação ele indica sua paz em relação com a naturalidade de toda
mudança. Logo em seguida vem a questão do “desmanchando a transa do Dr. Silvana, a
trama do Dr. Fantástico”, indica o lado dos elementos modernos como o processo de
cibernetização, da massificação da vida moderna e a representação de duas figuras bastante
características disso ou duas pop-características, o Dr. Silvana e o Dr. Fantástico do filme
do Kubrick. Com os versos “o sonho acabou transformando o sangue do cordeiro em água”
expressava o aspecto da religião que esteve presente nos movimentos hippies. Com isso Gil
quer indicar “uma espécie de dissolução mesmo dos sentidos religiosos conhecidos pelas
nossas civilizações, oriental e ocidental, diluídas naquele processo todo de ansiedade, em
torno do divino, que era bem característica da juventude de agora (...).” 324
Gil escreveu a letra como um início de aceitação de que o sonho tinha chegado ao
fim, mas ainda se questionava se ele acreditava nisso. Quando acreditou fez a música para
“O Sonho Acabou”. E aí, segundo ele, encerrou a história. Para concluir, ele disse na época:
“Eu agora vou gravar, vai virar uma outra coisa qualquer já”. 325 Gil estava certo, afinal
tudo está inserido num longo e infinito processo em cadeia de mediações que, como vimos,
produzem o social.

322
O sonho acabou/ quem não dormiu no sleeping- bag/ nem sequer sonhou o sonho acabou/ hoje, quando o
céu foi demanhado/ de sol vindo, vindo, vindo/ dissolvendo a noite na boca do dia./ O sonho acabou
dissolvendo a pílula de vida do Dr. Ross/ na barriga de Maria./ O sonho acabou desmanchando/ a transa do
Dr. Silvana/ a trama do Dr. Fantástico/ meu melaço de cana./ O sonho acabou transformando/ o sangue do
cordeiro em água/ derretendo a minha mágoa/ derrubando a minha cama./ O sonho acabou/ e foi pesado o
sono/ pra quem não sonhou./ quem não dormiu no sleeping-bag/ nem sequer sonhou.
323
Depoimento a ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo tudo. Bondinho. 11 a 24 de Novembro. 1971. p. 18
324
Depoimento a ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo tudo. Bondinho. 11 a 24 de Novembro. 1971. p. 18
325
Depoimento a ALMEIDA, Hamilton. Gil está sabendo tudo. Bondinho. 11 a 24 de Novembro. 1971. p. 18

221
CAPÍTULO 6: CULTURA ALTERNATIVA E A BUSCA PELA
AMPLIAÇÃO DA CONSCIÊNCIA

A contracultura surgiu nos Estados Unidos e se difundiu pela Europa e todo


continente americano, ditando “novos padrões de comportamento”. Segundo Maciel, “nos
EUA, todos reconhecem que o “desbunde” foi um movimento inovador: contra o sistema,
contra a sociedade constituída, contra a guerra do Vietnã. Era um movimento
antiideológico que tinha como um dos seus rituais favoritos a queima de certificados de
alistamento: um jovem que o queimava não possuía mais documento, era um outsider. Seu
único caminho era a drop out” (MACIEL, 1996, p.122).
No Brasil, a contracultura se difundiu num cenário de supressão de vários direitos e
de “liberdade vigiada”. As circunstâncias da repressão política no Brasil abriram espaço
para a “importação” do movimento. Por um lado, havia uma forte censura, um moralismo e
pensamento de direita que imperavam. Por outro, uma esquerda militante e armada. Assim,
o “movimento underground”, o chamado desbunde aqui no Brasil, pode ser percebido
como uma das várias alternativas para “enfrentar” a dura realidade histórica vivenciada
naquela época. Segundo Maciel (1996), era uma contrapartida para muitos jovens que não
se exilaram (ou foram exilados) nem tinham a coragem ou a insensatez de pegar em armas.
Era uma atitude bastante condenada, em especial pela esquerda, porque significava
participar de um movimento importado dos EUA. “Me tornei um dos maiores divulgadores
da postura desbundada, que me pareceu ser a resposta mais criativa, mais eficiente e mais
enriquecedora para a situação que estávamos vivendo” (MACIEL,1996, p.121).
A contracultura emerge no Brasil num contexto de castração de direitos e liberdade.
É neste panorama que se desenrolou a história contracultural, alternativa, underground ou
“desbundada”.

Rótulos ou não, foram termos que se incorporaram ao vocabulário da época e


hoje, (...) trazem de volta, com bastante nitidez, as idéias que deram a tônica do
chamado desbunde nacional. Cultura alternativa, (...), pode ser entendida como

222
aspecto – ou mesmo reconhecimento – da alternância que existe em qualquer
cultura. Ou seja: tomando como pressuposto que tudo no mundo se desenvolve
através de ciclos históricos (que variam de acordo com condições de cada
momento e lugar), a nossa cultura alternativa desempenha um papel
inevitável – o da mudança (MOREIRA, 1986, p. 29). 326

Assim, a contracultura no Brasil parece indicar outros caminhos, com sugestões de


maneiras diferentes para se fazer um mesmo trabalho (musical, cinematográfico, literário
etc) ou, ainda, a experimentação de novas linguagens que possam apontar rumos diversos
para uma mesma prática e abriu caminhos para novas percepções, como a “nova
consciência religiosa”. É importante ressaltar, então, que o movimento da contracultura
possibilitou a emergência de novas formas de conectar os elementos, o que vai produzir
novos regimes de enunciação.
Neste capítulo, continuarei apresentando formulações de novas linguagens e
sensibilidades que se desenrolam na década de 1960 e que será denominada como cultura
alternativa ou underground. Com este objetivo, apresentarei alguns exemplos que retratam
o desenrolar da contracultura aqui no Brasil. Sendo assim, enfocarei a princípio uma
configuração geral do desbunde no país e suas relações com o contexto brasileiro.
Na busca de resgatar a importância de uma manifestação cultural, descreverei
através de um filme as dificuldades enfrentadas para efetivação das propostas da
contracultura como um todo. Apresentarei o significado do filme para os seus realizadores e
as repercussões advindas desse empreendimento. O filme é tido como o primeiro filme
hippie do Brasil ou filme “paz e amor”.
Também buscarei na chamada imprensa alternativa, elementos que indicam a
circulação de aspectos vinculados á estética libertária do período e, conseqüentemente,
ligados a “ampliação da consciência”. Para tanto, optei por escolher o Pasquim, um
“autêntico” representante da imprensa alternativa e que conquistou milhares de leitores com
seu estilo. O Pasquim foi realizado por um grupo de já experientes humoristas, jornalistas,
cartunistas, intelectuais ligados esquerda . 327
O Pasquim é considerado o veículo impresso que mais influenciou a chamada
grande imprensa, que até hoje ainda renova-se ao adotar importantes modificações

326
Grifos em negrito não fazem parte do original.
327
Como Jaguar, Ziraldo, Millôr Fernandes, Henfil e Paulo Francis.

223
introduzidas no jornalismo por este semanário que introduziu uma série de inovações em
relação ao jornalismo impresso, ou seja, esse grupo ousou experimentar, realizar misturas e
produzir novas conexões e isso resultou no Pasquim. Por esse caráter inovador, ele é
considerado o mais importante representante da imprensa alternativa, por ter, por exemplo,
introduzido a oralidade.
O Pasquim, desde seu início, teve como marca o tratamento irreverente e bem
humorado das questões sérias do Brasil e do mundo. “Ele surgiu no momento certo, com
uma finalidade exata: usar o humor inteligente para, nas estrelinhas, expor uma visão
crítica, reunir denúncias, propor soluções, convocar à reflexão e, claro, rir da própria
desgraça”. 328 Tendo em vista este perfil do Pasquim, podemos verificar que esta
publicação, com forte acento na política de esquerda, com um engajamento irreverente,
representou sem dúvida no campo jornalístico o tom daqueles anos, ou seja, a
experimentação e/ou combinações inusitadas. Nesse semanário, vou analisar
especificamente a coluna Underground.
No Pasquim, o jornalista Luís Carlos Maciel pregava o advento de “uma nova
consciência”, ao divulgar em sua coluna as tendências e propósitos da contracultura. Essa
presença contracultural no jornal vai ser tolerada por algum tempo. A saída de Tarso de
Castro e o crescente rigor do regime militar vão fazer com que qualquer referência ao
“desbunde” não fosse mais tolerada, prevalecendo uma visão mais tradicional de cultura.
Era o princípio de “aniquilar a alienação” naquele momento de inflexão do regime militar.
No entanto, por mais de dois anos, o jornal, manteve a coluna Underground, um nicho da
contracultura.

6.1. Os marginais: vanguarda existencial

Ao final da década de 60 e inicio dos anos 70 do século passado, foram criados


veículos para divulgar as idéias libertárias do momento. A movimentação dos artistas em
torno dessas propostas deu origem aos poetas e artistas marginais. O famoso cartaz ou
bandeira elaborada por Hélio Oiticica, contendo a frase “Seja marginal, seja herói” e o

328
Márcio Rezende Jr. Ziraldo comemora cem edições do “Pasquim 21”. Disponível em
http://www.reator.org/impresa/19pasquim.htm. Capturado em: 16 de janeiro de 2006.

224
corpo tombado de Cara de Cavalo, conhecido bandido carioca recém morto pela polícia,
transformou-se numa bandeira para os artistas que desejavam fugir da “ditadura” imposta
por uma cultura e postura ética presa à tradição.
Essas publicações refletiam as inquietações da época, principalmente em relação a
tudo que estivesse ligado a romper com o controle do sistema e o desejo de estabelecer a
liberdade individual. Jorge Mautner pode ser considerado o precursor da chamada cultura
“udigrude”, ao lançar, em 1962, “Deus da Chuva e da Morte”, primeira parte da Trilogia do
Kaos. Poeta e cantor, Mautner faz parte de um grupo de jovens escritores paulistas que
propunham no início dos anos de 1960 um novo sincretismo literário: surrealismo,
antiautoritarismo, hedonismo, existencialismo e revolução interna. “Em Mautner, desde
cedo, a colagem sincrética que funde a alma negra das favelas com fascínio das vanguardas
internacionais se transformará em música popular, semente de uma nova sensibilidade”. 329
Esse poeta/cantor desviou o eixo da crítica política para a questão da rebeldia
conceitual. Os poemas de Jorge Mautner apontam para a preocupação com questões
existências num ambiente impregnado de nacional-popular. Mautner inaugura a geração de
poetas marginais que acreditavam no desregramento do comportamento. Para ilustrar o
pioneirismo de Mautner, escolhi uma música que ele compôs antes de escrever seu primeiro
livro, “Deus da Chuva e da Morte”, que foi “Iluminação” (1958), que, segundo ele, é “uma
definição ideológica do pensamento do Kaos, e que foi acrescida posteriormente com
referências a Bob Dylan, Gilberto Gil, entre outros”. 330 A letra descortina a realidade
interior desse poeta ao indicar que:

Quando a chuva que é tão fria/ E cinzenta e gelada,/Mas tão quente lá por
dentro./ me molhou pela primeira vez, eu tive a Iluminação! Hei, Hei, Hei, Hei?
E vi o mundo de uma cor? Que eu nunca imaginei,? E o mundo era aquilo/Que
eu sonhei!/Vaidade, Vaidade/ Vaidade das vaidades/ tudo é vaidade eu sei! Mas
quem teve a iluminação/ É um rei, é um rei/E eu sou um rei!/ E não ligo para
toda essa gente/ Que me chama de alienado/E que diz que eu vivo errado?E que
vivo em confusão? Hei,Hei, Hei, Hei/ Tenho dó é dessa gente/ Que ainda vive
no século passado/ que ainda acredita em salvação/ (E eu me deixo influenciar/
Por tudo que existe por aí/ Homem-aranha do Gibi/ Bob Dylan, Zaratustra,/

329
ENCICLOPÉDIA ABRIL CULTURAL. Nosso Século. 1960/ 1980: Sob as ordens de Brasília. São Paulo:
Abril Cultura. 1980. p. 57.
330
ENCICLOPÉDIA ABRIL CULTURAL. Nosso Século. 1960/ 1980: Sob as ordens de Brasília. São Paulo:
Abril Cultura. 1980. p. 57.

225
Dorival Caymmi/ Gilberto Gil/ E o meu xará que é/ O Jorge Bem/ Hei, Hei,
Hei)/ E enquanto vou tomando coca-cola/ Vejo o mundo caminhando para/ A
terceira Guerra Mundial/ E eu não tenho ninguém/ E quando a chuva se encontra
com o vento/ e os dois cavalgam juntos pelo tempo? Sei que falo com Deus e
com Satanás!/ E como disse Ray Charles/ Pela música cheguei a Deus/ Quando
vi que tinha chegado a Deus/ Vi que tinha chegado ao diabo ao mesmo
tempo/(Oh) jamais quero desfazer este pacto/ Por toda eternidade/Hei, Hei, Hei,
Hei/ E os dois são meus amigos antigos? Dançam valsa dentro do meu coração/
Isto é a guerra e paz/ E eu não ligo pra ninguém/E não tenho opinião/E não ligo
pra você também/ Porque só existe solidão!/ Hei, Hei, Hei, hei/ E só existe o
ódio/ Misturado com amor/ As paixões que são átomos em turbilhões/A festa, a
dança, a bomba/ e a velha paixão (COHN & FIORE, 2002, 66). 331

Esta poesia de Mautner trabalha no campo de uma nova conformidade da


subjetividade, indo contra todas as tendências da época. Mautner deixa claro que tem
consciência de que ele não era compreendido e que sua postura estava à margem dos
padrões sociais da época, mas que ele não se preocupava com isso, pois estava certo da sua
“lucidez”. O conteúdo e o conceito presentes nas obras de Mautner podem ser percebidos
como precursores de temas levantados pela contracultura e pelo Tropicalismo. Como
Mautner, outros poetas denominados como “malditos” também buscaram essas novas
conexões, alguns ligados ao Tropicalismo, como Torquato Neto (que entre outros trabalhos,
escreveu o livro “Os últimos Dias de Paupéria”, publicado em 1972, após sua morte) e
Capinam (autor de letras de “Soy Loco por ti América” e “Misere Nobis”), cujo princípio
era não ter princípio, como já foi comentado em outra parte desse trabalho e onde eles
mesmos indicam o tom de suas rebeliões.
Esses poetas e outros, como Chacal, Charles Cacaso, Geraldo Carneiro, Roberto
Piva, Waly Salomão – autor do clássico “Udigrude me segura que eu vou dar um troço” –,
manifestam em suas obras uma revolução conceitual no campo da poesia. Assim, a década
de 1970, através dos poetas marginais ou da “geração-mimeógrafo”, que quebrou com
qualquer princípio acadêmico nessa área, vai fazer com que a poesia pare nas ruas,
divulgada por meios que na época foram considerados alternativos: folhetos, fotocópias,
pôsteres, postais e em pichações nos muros e paredes. 332 “Essa rebelião conceitual” foi
deflagrada e se materializou na obra do pintor e escultor Hélio Oiticica, os “Parangolés”.

331
O trecho entre parêntese foi acrescentado posteriormente como indicou acima o próprio Jorge Mautner
332
Verificar em : Moreira (1986), Bueno (2003), Holanda (1979)

226
No âmbito dessas propostas marginais houve iniciativas de organização de uma
imprensa underground que fugisse dos padrões tradicionais de jornalismo, tendo também
como princípio básico não ter princípio, tendo, assim, um caráter totalmente experimental e
voltado para temas associados à vanguarda existencial. Porém, várias dessas publicações
não foram em frente. Algumas publicações têm pouquíssimos números, como é o caso de
Flor do Mal (5 números), Presença (2 números) e Kaos, que não passou de um projeto
(release) de jornal. 333 São também publicações alternativas Navilouca, Bondinho e
Almanaque Biotônico Vitalidade.
Flor do Mal foi uma publicação associada ao Pasquim e ao nome de Luiz Carlos
Maciel. Essa publicação foi bem aceita nos círculos da contracultura e execrada fora desses
ambientes. Uma matéria no Pasquim sobre o lançamento de Flor do Mal indica a
perspectiva underground da revista/jornal e o tom do conteúdo, além de apontar que o
movimento underground seria o redentor da sociedade moderna. Vai realizar paralelos
entre as histórias dos mitos redentores com a “missão” do underground. Eis a perspectiva
que Flor do Mal veio anunciar:

Flor do Mal. Nasce uma estrela de absinto. A Judy Garland do jornalismo


brasileiro. Juro por Deus – não minto. Seu nome é Flor do Mal. Está à venda,
em todas as bancas. Um jornal para várias pessoas: calculistas, motoristas,
ciganos, bacharéis da Cananéia, jardineiros, artesãos, pedros das flores,
pescadores, andarilhos, internados, coolies, don Juans, leporellos, anões e
gigantes, carolas, donas-de-casa, xavieres, anjos, cachorros e o resto da patota.
Qual é o pólen? Abra Flor do Mal: pétalas, corola, insetos maravilhosos,
escaravelhos incríveis, beija-flores, algumas fadas voltejantes, serafins, gnomos,
sílfides, ogros, ondinas, nereides, etc. o pólen é o seguinte: Eva se divide em
quatro partes. Eva propriamente dita; Helena de Tróia; a Virgem Maria; e Palas
Atheneia – isso segundo o médico suíço Carl Gustarv Jung. Cada uma delas
corresponde a um ponto cardeal. Só isso. Falta uma transa aí qualquer. È a sua
Palas, oh Atheneia, que estamos esperando. Enquanto isso, vamos nos virando
com Achileia Hillefolia, isto é, sete vezes sete: quarenta e nove –sacou amizade?
Aí, como é difícil fazer jornalismo! Pero yo soy jardineiro, por te querer, por te
querer. Por ti, farei todas as loucuras; por ti, enfrentarei as feras e as

333
Kaos foi um projeto para o lançamento de uma revista underground idealizado por Luiz Carlos Maciel,
Jorge Mautner e Caetano Veloso que já tinha voltado do seu exílio em Londres. Não passou de uma
transcrição feita por esses três a partir de uma discussão gravada por eles onde discutiam como deveria ser a
revistas, os assuntos versam sobre os autores que influenciavam os jovens daquela época, simbologias,
racionalidade, irracionalidade, propostas do Kaos, filosofia, a perspectiva Oriental, princípio feminino,
princípio criativo, psicanálise entre outras questões. Mandaram para os principais jornais e revistas, todos
recusaram por achar que era coisa da contracultura e de hippie. Confira como foi esse release em “Primeira
sessão de Kaos” em Maciel (1996, p. 253- 264)

227
tempestades; por ti, por ti. Leitor amigo: aguarde em Flor do Mal, (...) o arcano
XXII. Tau. Mestre Raimundo e seus crentes. Les derèglement sistematique dès
tous les sens. – Rimbaud. Mora na filosofia, morou Maria, morou Maria, morou
Maria. – Candeia. Freud sobre Moisés e o monoteísmo: “o herói nasceu da mais
alta estirpe, é, em geral, filho de um rei. Seu nascimento foi precedido de graves
dificuldades, por exemplo, de um período de abstinência ou de longa
esterilidade, ou ainda os pais, travados por interdições ou obstáculos externos,
tiveram que manter relações clandestinas um com o outro. Durante ou mesmo
antes da gravidez, uma predição (sonho ou oráculo) anunciou que o pensamento
da criança seria a causa de uma desgraça, e geralmente é o pai que está
ameaçado. Por isso, o pai (ou algum substituto) dá ordem para matar ou expor o
recém-nascido a algum perigo externo. Em geral, o bebê é depositado numa
pequena cesta abandonada à correnteza. Em seguida ele é salvo por animais ou
pessoas humildes (pastores, por exemplo) e aleitado por um animal fêmea ou por
uma mulher humilde. Crescido, ele reencontra, depois de muitas aventuras, seus
pais nobres, vinga-se de seu pai e, por outro lado, ao se dar a conhecer, atinge a
glória e a fama”. Aí está: meu Underground sempre foi muito cultural. Mas
cultural é a Flor do Mal. Acabou o papo: vá comprá-la. 334

A longa citação se fez necessária em função da riqueza da elaboração, do


pensamento, e das conexões empreendidas. Há referências a Freud e Jung e a associação
destas duas vertentes da psicologia. O movimento underground seria o herói, o filho (mito
do redentor) que fica na clandestinidade até se confrontar um outro que, no caso, é a
sociedade moderna e capitalista ou o establischment. Mas antes disso ele é cuidado por
pessoas que o ajudam a desenvolver – o que pode ser lido como os seus divulgadores
(poetas e artistas marginais, hippies e a fins, mas também por todos que estão sendo
convocados a ler Flor do Mal) –, só que faltava o elemento feminino, 335 aquele que
alimenta e que neste caso é representado pela publicação Flor do Mal, que vai divulgar a
ideologia e, assim, alimentar o movimento para que ele se desenvolva e tome o lugar do
pai, ou seja, as propostas do movimento underground ou da contracultura tome o lugar
ocupado pela ideologia da sociedade moderna.

334
Flor do Mal.Pasquim. No 121, 26 de out. a 01 de nov. de 1971.
335
A psicologia analítica de tradição junguiana advoga que o homem possui elementos complementares que
correspondem a dinâmica da relação dos opostos: o anima, animus o feminino e o masculino.,
São termos da psicologia Junguiana. “No inconsciente de cada homem existe um elemento feminino que nos
sonhos é personificado por figuras ou imagens femininas. (...) Fontes da anima: além da influência da
materna, é a imagem herdada, como idéia de mulher própria de uma raça”. A realização da anima leva
harmonia individual. animus, também é um termo junguiano que exprime um “processo semelhante àquele
descrito para anima. No inconsciente de cada mulher existe um elemento masculino que é personificado por
figuras ou imagens masculinas”.. O processo de individuação para a mulher passa pelo reconhecimento e a
realização do próprio animus. (Sicuteri, 1998, p. 207).

228
Uns identificaram o Jornal-livro como coisa de esquizofrênico em função do seu
conceito caótico. Estão presentes nos cinco números dessa publicação poemas que apontam
para o trabalho com a subjetividade, colocando todos os questionamentos para fora,
entrevistas nada convencionais que visavam romper com censuras internas. A palavra que
representa bem o conceito da revista é: caótico. Era essa a proposta. Segundo Maciel
(1996), um dos idealizadores da publicação a definiu assim: “Viajar, em busca de uma
saúde espiritual regeneradora. Havia poemas em verso, poemas em prosa, textos absurdos,
lírica non sense. (...). no Flor, podia-se fazer o que desse na veneta. Era isso, aliás, o que
se esperava de seus colaboradores. (...) Só os malucos o compravam. Depois de cinco
números que se tornaram raridades, o jornalzinho acabou” (MACIEL, 1996, p. 247). 336

6. 2. Movimento “Underground” ou “desbunde”: a cor nos anos de chumbo

O termo contracultura era percebido no Brasil como algo exótico, uma curiosidade
vinda dos Estados Unidos que provocava a crítica de setores ideológicos da esquerda
tradicional, descrentes de sua ideologia revolucionária, considerada subjetiva e
individualista. Para eles, a contracultura era totalmente alienada e, portanto, desprovida de
ações propositivas “eficazes” para mudar a situação política e social do Brasil, que
vivenciava a ditadura militar, além do subdesenvolvimento e seus desdobramentos.
A visão tradicional de esquerda associava aos temas da contracultura um
descompromisso, um “desbunde”, advindo do movimento hippie norte-americano, ou seja,
uma expressão do imperialismo norte-americano no Brasil. Os partidários de uma luta
engajada, militante, defendiam uma arte politizada e que contribuísse para denunciar as
injustiças políticas e sociais. Já os “desbundados” travavam um embate ideológico usando
uma “ação política” que visava uma transformação que vinha de dentro para fora. Eles
acreditavam que as transformações sociais ocorreriam em decorrência de uma
transformação interna que viria da “ampliação da consciência”.

336
Os grifos não fazem parte do original. Consultamos esse jornal na Associação Brasileira de Imprensa.
Tanto a formatação como os textos, desenhos, capas em fim tudo no jornal é perpassado por essa idéia de algo
caótico. Quando consultei esses exemplares a imagem que me veio a mente foi de algo tão desconstrutor que
escapa a qualquer tipo de enquadramento, definição ou uma análise mais sistemática ou objetiva. Mas o que
me interessava era a constatação de que essa publicação tinha um caráter experimental e caótico –
desconstrutor e construtor.

229
A contracultura no Brasil, além das manifestações tropicalistas percebidas como a
sua face mais visível, desbravadora e polêmica, também se apresentou traduzida no
movimento Underground ou “udigrude”, com uma produção que buscava mudar os padrões
estéticos e uma mudança nas percepções acerca do mundo. Esta conduta era percebida
pelos grupos engajados como uma alienação e importação de algo “exótico”. Mas, para
muitos, a contracultura em terras brasileiras pode ser percebida como uma “resposta”
alternativa à castração da liberdade individual, ao endurecimento do regime militar e aos
movimentos radicais de contestação (militância armada).
No Brasil, havia esta dramática particularidade. Estávamos sob uma ditadura
militar, que iniciaria sua fase mais sombria a partir de dezembro de 1968. Intelectuais,
políticos e artistas eram perseguidos e presos. Muitos se viam obrigados a deixar o país.
Uma das palavras ditas na época – e que definia com muita precisão a atmosfera – era
“sufoco”. Segundo Gonçalves (2004),

Todos estavam no sufoco, mas nem todos da mesma forma. A maior parte da
juventude universitária interessada em política e cultura tendia a assumir
posições de esquerda, no sentido mais estrito da palavra. A vanguarda dessa
turma era formada por militantes comunistas, marxistas-leninistas, trotskistas
etc. Muitos decidiram pegar em armas. Era gente corajosa e de fortes
convicções, mas freqüentemente enquadradas do ponto de vista do
comportamento e da moral. Afinal, a classe operária não iria chegar ao poder
liderada por “desbundados”. Essa é outra palavra-chave daquele período:
“desbundado” era o modo como a esquerda tratava a turma da
contracultura, o pessoal que viajava, ouvia Janis Joplin, gostava da “beat
generation”, fazia filmes em super – 8, não cortava os cabelos e em vez de
dramatizar em seus trabalhos a luta de classes preferia perder tempo com
temas “alienados”, subjetivos ou delirantes. A conversa era assim: dois
amigos de esquerda se encontravam. Um perguntava: “E fulano, tem notícias
dele?”. E o outro: “Fulano desbundou. Foi morar num sítio com uma
comunidade, fica ouvindo rock e está traduzindo o Livro Tibetano dos
Mortos”. 337

Assim, mais uma vez podemos perceber pelas declarações de Marcos Augusto
Gonçalves que tanto a esquerda como a contracultura ou “desbunde”, como ficou
conhecida aqui, se apresentaram como possibilidades para a juventude enfrentar a rigidez
do regime militar. Porém, como já vimos em outras passagens deste trabalho, embora a

337
GONÇALVES, Marcos Augusto. Desbunde foi alternativa à rigidez da esquerda. Folha de São Paulo. 21
de março. 2004. Os grifos não fazem parte do original.

230
esquerda mobilizasse a juventude lançando mão de novas mediações na política,
“conservaram” velhas mediações na moral, ou seja, no nível da subjetividade mantiveram-
se presos às “velhas” conexões, enquanto a contracultura apresentou e abraçou novos
mediadores na conformidade da subjetividade, preenchendo os anseios da juventude no
nível comportamental, onde se sentiam mais “oprimidos”.
A contracultura no Brasil, além de ocorrer num contexto de ditadura militar,
também “enfrentava” a imposição de um padrão oficial de cultura. Assim, tudo que fosse
produzido fora desse eixo era considerado alternativo e à margem dos padrões oficiais. Em
tese, “aqueles eram anos de chumbo”, cheio de censuras, castrações, privações de direitos e
de liberdade, mas foram também “anos coloridos”, repletos de ação e de culto às drogas. E,
então, boa parte da produção cultural, além de ser divulgada por meios alternativos,
mostrou estar além da “compreensão” dos censores. Mas não apenas da deles: os artistas
“engajados” também não entendiam nada daquilo. A ruptura provocada pela cultura
“udigrude”. (BUENO, 2003, p. 392). 338
Diante dessa realidade, o Brasil não deixou de escrever uma história contracultural,
alternativa e assumidamente marginal. “Marginal, alternativo, independente, underground,
artesanal: são palavras que expressam os variados momentos da experiência cultural
brasileira, que acontece da virada dos anos 60” (MOREIRA, 1986, p.29).
O imaginário hippie, a opção por uma vida despojada, a questão da subjetividade –
características do movimento Underground –, terão influências na produção cultural em
vários níveis. Um bom exemplo dessa influência pode ser visto claramente em “Os
Mutantes” (Rita Lee, Arnaldo e Sérgio Batista) 339 que, segundo Paulo de Tarso Medeiros,
já estavam “a mil rodovias de distância da velocidade da jovem guarda” (MEDEIROS,
1984, p. 32). Se para Roberto Carlos e Erasmo Carlos a velocidade significava de modo

338
“Udigrude” é uma corrupção do termo underground e representou as mudanças empreendidas pelos
artistas desta vanguarda.
339
Eram o oposto do imaginário da jovem guarda, movimento que ocorreu antes da intensificação da guerra
do Vietnã, do movimento hippie e do grande concerto de Woodstock (1969). A jovem guarda se caracterizava
por um rock romântico, ingênuo que acompanhava as tendências internacionais – “sinônimo de jovem guarda,
a expressão iê- iê- iê originou-se do refrão da famosa canção dos Beatles: Shes loves you/ yeah, yeah, yeah
(CARMO, 2001, p. 43) e também entrou em sintonia com a emergente sociedade de consumo. Assim, não o
carro: do calhambeque ao Mustang, o importante era não andar a pé, pois a posse do automóvel, qualquer que
fosse indicava a posição social do conquistador. Nesse sentido “ o carrão vai sempre reaparecendo: ora como
símbolo, ora como signo de independência, e de uma certa agressividade, ora peça importante no jogo da
sedução amorosa,ora companheiro e parceiro no elogio à solidão magoada” (MEDEIROS, 1984, p. 32)

231
literal “afundar o pé no acelerador”, para Os Mutantes, voar era uma metáfora da “viagem”
psicodélica da contracultura: “para eles, a nova onda era pisar no acelerador da mente,
expandi-la incursionando por outros climas perceptivos e penetrando em novos registros
sensoriais” (CARMO, 2001, p. 47).
Os Mutantes, após sua experiência com o Tropicalismo, vão seguir carreira solo,
dando continuidade à postura que já haviam adotado com o grupo baiano, isto é,
assumidamente underground. Com essa perspectiva, mantiveram uma postura crítica à
sociedade de consumo, percebiam com sarcasmo a visão cristã e a valorização burguesa
dada aos automóveis. Isso se expressa, por exemplo, em “Balada do Louco”.340
Nessa canção, é fácil notar referências às questões defendidas pela contracultura e à
rejeição ao enquadramento imposto pela sociedade moderna, capitalista e seus
desdobramentos. Na ode aos marginalizados e aos malditos da sociedade de consumo, a
viagem representa a postura errante, de despojamento, de vida na estrada. Segundo Paulo
Sérgio do Carmo (2001), “signo positivo, é sinal de busca, de vivência para o
autoconhecimento, no embalo de drogas e meditações orientais” (CARMO, 2001, p. 47).
A explosão contestadora dos anos 1960 deixou seu registro em toda a geração dos
anos 1970. A princípio, isso ocorria de modo introspectivo; valorizava-se o direito a
diferença, o “estar na sua”, na continuidade dos movimentos underground e das
experiências de vida em comunidades naturalistas. Em qualquer centro urbano havia um
local onde remanescentes da contracultura se enturmavam para “trocar idéias”, conforme
indica o jornalista Ruy Castro (1999):

O Píer tornou-se a praia hippie de Ipanema, um grande underground a céu


aberto, o epicentro do desbunde – e, como tal, freqüentado por gente de todo
tipo, muitos sem nenhuma intimidade com a areia. Rose di Primo acabara de
lançar ali a tanga, mas a moda no Píer eram as saias longas com umbigo de fora
e as batas indianas. Havia também quem circulasse vestido de calças saint-
tropez, macacões e até ponchos. Sob um sol de quarenta, raros caíam n´água.
Não se raspavam as axilas – muitas moças orgulhavam-se de seus trinfais
chumaços. As pessoas se saudavam com beijos na boca (...). Não era uma praia,
era uma atitude. Tudo fazia parte da cultura (contracultura) do píer. As
conversas eram sobre mapa astral, macrobiótica,orientalismo, comunidades
alternativas, a “nova era”, o disco do Cream, a peça Hair ou o último reparte de

340
Dizem que sou louco/ por pensar assim. / Se eu sou muito louco/ por eu ser feliz, /mais louco é quem me
diz/ e não é feliz. / [...] / Se eles têm três carros, /eu posso voar, /se eles rezam muito,/ eu já estou no céu,/
Mais louco é quem me diz,/ E não é feliz, não é feliz.

232
cannabis na praça. Ali se venderam os primeiros sanduíches naturebas, os livros
de poesia da Geração Mimeógrafo e gibis, revistas e jornais alternativos
(CASTRO, 1999, p. 298). 341

O Píer era um ponto da praia localizado em Ipanema, que nos verões de 1970 a
1973 foi o ponto de encontro de jovens sintonizados com a contracultura. O Píer de
Ipanema também ficou conhecido como as Dunas da Gal ou do Barato. Segundo Castro
(1999), este ponto da praia, em frente à rua Farme de Amoedo, foi palco de três verões que
foram regidos pela total liberdade, o que acabou representando, na visão de muitos
freqüentadores, como sendo a “liberdade no poder”. Assim, era permitido vivenciar o uso
de drogas, liberdade sexual e de comportamento, enfim, celebrar tudo que ia de encontro
aos padrões morais vigentes na época. O Píer se tornou uma “República independente” num
dos mais severos momentos do regime militar, que foi o período sob o comando de Médici.
No governo Médici, o Brasil conviveu com duas realidades distintas ou dois
“Brasis” contraditórios: havia uma imagem construída oficialmente e apoiada por amplos
setores da sociedade, que era a imagem de uma nação grande que vivenciava o “milagre
econômico” (1969-1973), a conquista da Copa (1970) e da taça Jules Rimet, grandes obras
foram empreendidas e outras projetadas. Esse governo soube com eficiência usar a
propaganda para criar um clima de ufanismo no país. O clima geral do Brasil pode ser
sintetizado no emblemático slogan da época: “Brasil: ame-o ou deixe-o”. Quem discordasse
dessa ideologia acabava tendo consciência e sentindo na pele o que guardava os porões
desse “país que vai pra frente”: censura, cerceamento de liberdades individuais e de
pensamento, além dos processos mais cruéis em forma de repressão, tortura, morte e
instauração da “comunidade de informantes” (o recurso da delação). 342
Tendo esse panorama instaurado, “nunca se escutaram tão pouca criticas – a não ser
quando espocavam os tiros disparados pela guerrilha urbana e rural (das quais Médici veria
o apogeu e a decadência)” (BUENO, 2003, p. 376). Mas, no espaço do Píer, vivia-se o

341
Um outro aspecto que marcou os primeiros anos da década de 1970, na esteira underground, foi a
proliferação de trabalhos alternativos, alguns bem amadores. Na música, foram criados grupos experimentais
e pequenas gravadoras independentes utilizando poucos investimentos. Interpretes e compositores realizavam
trabalhos de bom nível e inovadores com poucos recursos, buscando apresentações em espaço culturais
alternativos. “Criar cooperativas”, produção “independente” ou “alternativa” – essas são palavras que
ganharam relevância na época. Surge uma literatura marginal com a profusão de livrinhos, principalmente no
campo da poesia. Era a chamada “geração mimeografo”. As pessoas editavam seus próprios trabalhos com
recursos próprios, em pequenas tiragens” (CARMO, 2001, p. 115).
342
Cf: Bueno (2003); Castro (1994 b).

233
clima de “é proibido proibir”, da liberdade no poder, de paz e amor e princípio da
igualdade. Será?
A história do Píer tem sua origem com uma armação de ferro e madeira, instalada
no ano de 1979, no trecho da praia entre as ruas Farme de Amoedo e Teixeira de Melo, para
que fosse instalado um emissário em Ipanema. As estacas e tubulões ocuparam uns
trezentos metros do mar, que acabou por produzir ondas altas que espantaram os banhistas
tradicionais e atraíram a atenção dos surfistas. “Os jovens surfistas do Arpoador (...) sempre
de olho na qualidade das ondas, logo se mudaram pra lá com suas pranchas. A mística do
surfe estava no auge e, no rastro dos surfistas, veio o séqüito das gatas. Pegar onda ali era
coisa para profissionais – mas o espetáculo na areia era irresistível para os amadores”
(CASTRO, 1999, p. 297).
A areia que foi jogada do mar para a construção do emissário submarino formou
dunas artificiais que atraíram Gal Costa, que desejava descansar após a temporada de seu
show “Fa-tal”. Ela trouxe consigo os compositores Jards Macalé, Jorge Mautner, Nelson
Jacobina, Waly Salomão, Jorge Salomão e os Novos Baianos; os atores José Wilker, Odete
Lara, Sônia Braga, Tânia Alves e o jornalista Luiz Carlos Maciel; os cineastas Júlio
Bressane, Neville d`Almeida e Rogério Sganzerla; a cantora Elba Ramalho, entre outros
nomes que já eram destaque no meio cultural. “Todos eles arautos de uma nova cultura –
aliás de uma ‘contracultura’” (CASTRO, 1999, p. 297).
Os verões do Píer foram regados com muito rock, Tropicalismo “ou o que resultara
deles. Cantava-se, tocava-se violão e fumava-se baseado nas dunas, que, por isso, passaram
a ser chamadas de dunas do barato” (CASTRO, 1999, p. 298). Inspirados no uso livre da
Cannabis Sativa e das fumaças lançadas pelos navios que por ali passavam, Jards Macalé e
Waly Salomão fizeram a canção “Vapor Barato”, que se refere tanto aos vapores dos navios
como aos vapores dos cigarros de sustâncias alucinógenas que provocavam os “baratos”.
O Píer, além de ser freqüentado por pessoas com visibilidade (artistas, intelectuais,
rapazes e moças bem nascidos da Zona Sul), era considerado um “território livre” e com
isso atraiu muitas pessoas sintonizadas com a perspectiva da “Era de Aquário”, hippies,
turistas e curiosos. Pessoas vindas do Brasil inteiro desembarcavam no Píer em busca desse
“underground aberto”. Isso vai gerar um aglomerado que, segundo os freqüentadores
pioneiros, vai tornar o lugar impraticável. As impressões de Ruy Castro (1999) sobre o

234
“inchaço” são bastante elucidativas no que diz respeito aos “contraculturalistas de
Ipanema”. Segundo ele:

Com o Píer aparentemente out bounds, era inevitável seu inchaço. Seus
aderentes iam desde o garoto Cazuza, então com treze anos, à veterana e
louquíssima Vera Sant`Anna, que criara um “laboratório de pesquisas sexuais”
(...). Enquanto durou a “sublime convivência de pessoas bonitas, livres, leves e
soltas” (como a definiu Scarlet Moon em seu livro Areias escaldantes), o Píer
ainda respirou. Mas, apenas dois verões depois, a praia em que sempre cabia
mais um já estava ficando impraticável. Os pseudo- hippies chegavam em
falanges, intrometendo-se nas rodas e mendigando na areia. O piolho, extinto no
país havia anos, instalou-se até nas cabeças mais bem pensantes. E Ônibus de
excursão despejavam levas de turistas na praia, os quais tinham faniquitos
quando viam os artistas. O “craudionor [de crowd, multidão] tornou-se
insuportável a frequentação do Píer”, escreveu Scarlet, “e começou a diáspora”.
Os surfistas foram os primeiros a ir embora (...). Os artistas também foram
saindo de fininho e deixando o ponto para a turba. No fim do verão de 1973, o
Píer já estava entregues aos turistas. Em 1974, com o fim das obras do
emissário, as dunas foram aplainadas e o píer explodido, como que se
evaporaram todos – afinal, era um vapor barato (CASTRO, 1999, p. 299).

Nessas considerações sobre a crescente popularidade do Píer podemos notar que os


fundadores dessa “República da liberdade” se sentiam livres e comungando dos princípios
da contracultura. No entanto, podemos perceber a inclinação para uma convivência
doméstica e dentro dos padrões de uma sociabilidade burguesa. Há uma ironia presente em
relação às posturas que geralmente são associadas ao “povo” ou a turba quando se referem
ao tipo de linguagem e à tietagem. Postura bem diversa daquela manifestada pelos jovens
no Festival de Woodstock ou por outros jovens que acreditavam na eliminação de qualquer
idéia pré-estabelecida, postura que é bem identificada por uma passagem que já citamos em
outra ocasião, mas que ajuda a marcar as formas distintas de como a contracultura foi
apreendida. O trecho refere-se à definição dada por uma jovem francesa que morava nos
Estados Unidos sobre o que era ser hippie:

- Ser hippie, antes de tudo, e ser um amigo do homem, um homem, não violento e
apaixonado pela vida. Um ser que ama, autêntico, que coloca a liberdade acima
da autoridade, a criação acima da produção, a cooperação acima da competição.
Pouco importa se tem cabeça raspada ou cabeleira de louco. Contudo, seja nos
Estados Unidos, Londres, Hamburgo ou Paris, as cabeleiras são imensas, e as
roupas coloridas. Um hippie não seria o mesmo se tivesse os cabelos cortados?
Se estivesse limpo? (...) Nós obrigamos as pessoas a não mais julgar pela
aparência, a atingir o verdadeiro “eu” dos outros. O que importa é fazer o que se

235
quer, em qualquer momento ou lugar, com uma única condição: que isto não
prejudique ninguém. Não acredito nas obrigações religiosas, morais ou
familiares. Só acredito na felicidade. 343

A colocação da jovem francesa define bem o que era ser “hippie” quando essa visão
de mundo surgiu, sintetizando a filosofia “paz e amor”. Com base nessa “definição”, pode-
se perguntar: quem seriam os “falsos” hippies que invadiram o Píer em falanges, trazendo
inclusive o piolho e mendigando? Parece-me que no meio dessa multidão de pseudo-
hippies que passaram a habitar a “República da liberdade”, havia os chamados drop out,
que romperam com o establisment por acreditar que a sociedade era algo decadente,
neurótico e, em função disso, buscaram construir uma cultura alternativa ou underground
tendo a liberdade individual como valor. E, baseados nisso, romperam com todas as
convenções, e com isso, sua subsistência teve que ser provida por outros.
Por outro lado, na praia “oficial da contracultura” (CASTRO, 1999, p. 229), os
pseudo-hippies também são representados pelos indivíduos que assimilaram a contracultura
mediada através do sistema, onde o valor contestatório foi utilizado pela indústria cultural
em seu benefício. Com os anos 1970, expande-se de forma generalizada a perspectiva de
que era justo, correto, ser rebelde, que a indústria cultural passou a potencializar essa
postura a partir da própria adrenalina produzida pelos movimentos de contestação (ARBEX
JR. & TOGNOLI, 1997, p. 35). Assim, os pseudo hippies também são aqueles que
compraram a “etiqueta da rebeldia”. Isso pode ser percebido nas próprias impressões de
Ruy Castro, em sua Enciclopédia sobre Ipanema, na parte que ele tece seus comentários
sobre Luiz Carlos Maciel, o “guru da Contracultura”. Neste trecho ele indica que a praia do
Píer tornou-se a praia oficial da contracultura e manifesta sua posição em relação a isso:

Oficial até demais.Em pouco tempo, o “sistema” provou se mais uma vez
invencível: assimilou a “rebeldia” jovem (...) Num instante, até corretores de
seguros estavam usando rabo-de cavalo e a perfumada Ipanema tinha mais
hippies que San Francisco – todos de araque. As multinacionais do disco
silenciaram toda musica que contivesse melodia – harmonia- ritmo e fizeram do
rock o novo establishment. Tudo que era clandestino tornou-se permitido ou
obrigatório, exceto a droga – mas os traficantes, que são a face oculta do
“sistema”, começaram a disseminá-la na classe média mais conservadora. Em

343
Façam amor não a guerra. Realidade. Fevereiro. 1968. p. 112.

236
1973, até o LSD já vinha falsificado. O sonho acabara de vez (CASTRO, 1999,
p. 229)

No entanto, nesse “underground a céu aberto”, a total manifestação da liberdade


individual de uns foi de encontro às percepções de liberdade individual de outros. O Píer se
apresenta como um exemplo ilustrativo de como as questões levantadas pela contracultura
foram mediadas e colocadas em ação. Assim, o Píer de Ipanema, Dunas da Gal ou Dunas
do Barato pode ser considerado um laboratório a céu aberto das traduções e conexões
realizadas a partir da contracultura.
O grupo que inaugurou o primeiro verão do Píer era formado por jovens
intelectuais, artistas, enfim representantes de vários campos da cultura e ligados ao
movimento cultural denominado “udigrude”, e por jovens da classe média carioca.. Esses
segmentos estavam sintonizados com a contracultura no aspecto que dizia respeito à
necessidade de uma transformação ética, ou seja, mudaram sua maneira de ver a vida num
sentido de ruptura com a moral repressiva da sociedade. Buscavam a expansão da
consciência como via para romperem com os condicionamentos da consciência normal,
centrando seu protesto em direção a uma mudança no status quo moral e espiritual sem
romperem com o sistema.
Segmentos como os identificados com a contracultura, que possuíam o perfil dos
“fundadores” do Píer, se colocam como vanguarda existencial com a adoção de posturas
que insuflavam a renovação a partir da transgressão e experimentalismo em uma sociedade
marcada pela rigidez tanto de ordem moral quanto estética. Porém, manifestaram
contrariedade e desencanto quando há um desdobramento dessa cultura inventada pela
juventude quando suas condutas deixam de ser consideradas clandestinas. Com os
desdobramentos da contracultura, muitos aspectos perdem seu caráter clandestino, pois os
desdobramentos concedem permissões que são coletivizadas.
Nessa dinâmica de coletivização, os contraculturalistas viam como sendo o fim do
sonho a perda do caráter “totalmente” transgressor de suas práticas. Porém, o “sonho” da
contracultura cumpriu a sua função, e ela não deve ser percebida como o fim do sonho ou
como algo transformado em produto pela indústria cultural, mas como “aquela invenção”
que, dotada de autonomia, permite que as inovações sejam realizadas sem risco. “Ainda que
o fetiche não seja nada senão aquilo que o homem faz dele, ele acrescenta, contudo,

237
alguma coisa: ele inverte a origem da ação, ele dissimula o trabalho humano de
manipulação, ele transforma o criador em criatura.” (LATOUR, 2002, p. 27).
A partir da emergência da simbolização diferenciante da contracultura pode-se dizer
que o mundo não foi mais o mesmo. Assim, parece-me que o “sonho não acabou”; ele
apenas faz parte de um processo amplo que Latour (2008) denomina como “proliferação
dos híbridos”.
No entanto, muitos adeptos da contracultura não conseguem valorizar a dimensão
adquirida pelos seus desdobramentos, centralizando suas críticas no “fim do sonho”, na
medida em que para eles não houve uma concretização de uma mudança radical no sistema
e que este conseguiu “calar” o surto libertário através de vários mecanismos que
desvirtuaram as propostas desse movimento. Duas colocações são exemplos dessa
percepção:

Sim, as ousadias da época tiveram de ser anuladas, ou eliminadas, ou, pelo


menos, distorcidas para que o mundo continuasse a ser o que era e “os mesmos
patifes de sempre continuassem a mandar em tudo”, conforme disse John
Lennon, ao declarar o fim do sonho. Para isso, os meios de anulação, eliminação
e distorção foram aperfeiçoados e refinados. A redução do milagre da
consciência a um fenômeno material, físico, químico ou biológico, na cega
tentativa, tão ampla quanto refinada, de manter o status quo (...) (MACIEL,
1996, p. 274).

Talvez tivesse sido mesmo um sonho, do qual nunca se deveria ter acordado. Do
uso “responsável e adulto” de maconha , e acido que a contracultura pregava, o
que veio à tona depois dela foi a cocaína até entre garotos em idade de catar
melecas. A liberdade reduziu-se a uma calça velha, azul e desbotada – desde que
seja Calvin Klein. Três sujeitos no palco podiam produzir três toneladas de som
sem saber uma nota de música. O individualismo transformou-se em egoísmo:
hippies históricos converteram-se em yuppies, ninguém mais falou em mudar o
mundo e cada um ficou rigorosamente na sua. A própria reedição de Woodstock,
trinta anos depois, terminou em incêndio e violência. Não olhe agora, mas
Aquarius promete ser um fiasco (CASTRO, 1999, p. 127).

O “desbunde” no Brasil promoveu, por caminhos diversos, uma “nova consciência”


que trouxe para o campo da subjetividade a elaboração de novas posturas que atingiram
vários domínios da sociedade. O “Underground” brasileiro representou a rebelião interna
para se libertar das amarras dos sistemas de controle – família, religião, educação, entre
outros – e seguir seus próprios instintos. Em função de uma forte atuação da esquerda no

238
campo artístico, marcado por um apego à tradição e rejeição a liberdades estéticas, vai levar
esses questionamentos existenciais para o campo da arte como forma de libertar a arte da
“opressão” da política.
Nesse processo, a religião tradicional foi questionada e também passou a ser
elaborada em novos contextos que desafiam dualidades como religiosidade institucional/
subjetiva. Os jovens contraculturalistas, em seu espírito transgressor e experimental, vão
ressignificar a experiência religiosa através da “substituição da imagem transcendente do
divino tradicionalmente ocidental pela imagem imanente oriental (...)” (CAMPBELL, 1997,
p. 07), o que vai possibilitar o surgimento dos posicionamentos religiosos do tipo pós-
tradicionais e o encadeamento das redes que por sua vez se originaram dos desdobramentos
da contracultura.
Os freqüentadores do Píer representavam o desbunde, as comunidades hippies, as
drogas alucinógenas, o Poder Jovem, a vanguarda existencial, a macrobiótica, filosofias
orientais, como o Tao, o Living Theatre, Woodstock, enfim, um elenco que proclamava
uma nova consciência, uma nova cultura. “Nessa nova era que parecia às porta - a de
Aquarius -, todos teriam direito de ficar na sua (...) [onde ] a jovem revolução seria
individual e mística” (CASTRO, 1999, 229). 344 Assim, muitos acabaram tendo um
comprometimento mais profundo com essa ampliação da consciência, como Luiz Calos
Maciel (com a coluna Underground) e Odete Lara, que publicou livros narrando a sua
busca espiritual. 345 Também em meados da década de 80 do século passado, no boom da
literatura esotérica em função da abordagem desse fenômeno, ele tem seu nome associado
ao universo esotérico. Essa associação foi mencionada da seguinte: até a Vozes, tradicional
editora católica, entrou firme nessa linha e lança esse mês Para viver em paz, do Monge
tibetano Thic Nhat Hahn, prefaciado e traduzido pela atriz Odete Lara, que há cinco anos
trocou carreira garantida no cinema pela paz do misticismo oriental”. 346

344
Grupo de teatro norte- americano que propunha uma nova maneira de viver, fazendo teatro em
comunidade, criação coletiva e com liberação sexual nas relações do grupo e como temática de suas
encenações. Houve contatos ente o Living Theater e José Celso Martinez. A questão da liberdade sexual
tornou-se um aspecto central nos trabalhos de José Celso após os contatos com esse grupo.
345
Os livros foram : Minha jornada interior (1990) e Meus passos em busca da paz (1997). Em 1976 Odete
Lara saiu da cena artística para se refugiar em seu sítio em Nova Friburgo.
346
RITO, Lucia. Sucessos ocultos: livros esotéricos não saem nas listas de ‘best-sellers’, mas batem todos os
recordes”. Jornal do Brasil. Revista de Domingo.14 de abril de 1985. p. 26.

239
Passado o período de ebulição contracultural, outros nomes conhecidos que
freqüentavam o Píer de Ipanema permaneceram vinculados aos aspectos veiculados pela
“Era de Aquário”. Baby do Brasil (ou Consuelo) e Pepeu Gomes, por exemplo, na década
de 1980 expressaram em suas músicas e através de posturas no palco, princípios ligados à
Nova Era. Eles ficaram conhecidos por uma saudação esotérica que Baby Consuelo
realizava quando entrava no palco. Elba Ramalho também adotou uma postura mística que
ficou mais nítida nos últimos tempos e Tânia Alves, outro nome associado ao Píer,
desenvolveu atividades ligadas ao universo alternativo num Spa localizado na região
serrana do Rio de Janeiro.

6.3. Geração bendita: É isso aí bicho!

Em 1970, em Nova Friburgo, região serrana do Rio de Janeiro, um grupo de jovens


que moravam nos sítios Quiabo`s e Abóbora`s formaram a primeira comunidade hippie do
Brasil. A história dessa comunidade se inicia com Carl Kohler, que decidiu, em 1968, se
fixar nos sítios onde começou a plantar rosas e abriu uma loja de flores que logo fechou por
acreditar que não era correto comercializar flores. Optou por morar no sítio e comercializar
produtos da lavoura. Com o tempo foi chegando amigos que foram se espalhando pelas
duas casas do sítio, que tinha 52 metros quadrados. Eram casas simples de pau a pique e
telhas. Só tinham acesso à água através de uma bomba manual e que ficava do lado de fora
da casa. Ou seja, não contavam com nenhum conforto ou estrutura que fornecesse uma
praticidade. No entanto, havia um rio, uma cachoeira, árvores e mato, o que significava um
contato direto com a natureza.
O grupo realizava atividades artesanais, como trabalhos em couro e cobre, que
levavam para vender na feira daquela localidade. Organizavam pequenas exposições,
reproduzindo pinturas antigas do Egito, levavam meses para montá-las. Segundo Carl
Kohler (Carlinhos) “essa época foi a fase mais bonita do sítio; havia muita harmonia, os
amigos apareciam para visitar a gente, todo mundo sem ‘grilos’”. 347

347
Cf: “Filme mostra a vida de ‘hippies’ em Friburgo”. http://www.spectrum.mus.br/clipping.htm. Capturado
em 11 de maio de 2008. Essa matéria é da época do lançamento do filme, no entanto, no site de onde ela foi
extraída não consta o nome do jornal nem a data.

240
A comunidade que se formou em torno dos sítios Quiabo`s e Abóbora`s começou a
crescer, com pessoas vindo em busca de “começar uma coisa nova.” Um desses habitantes
que chegavam à comunidade foi Carlos Bini. Ele possuía uma câmera e começou a registrar
as atividades cotidianas da comunidade. Dessa experiência surgiu a idéia de se fazer um
longa metragem sobre as propostas e experiências daquela comunidade. Bini, que já tinha
alguma experiência como cineasta, indica qual foi sua intenção: “parti para fazer uma coisa
nova. A gente faz aquilo que sente, pode ser melhor ou pior, não importa. Nessa época,
estava acontecendo Woodstock, e nós formávamos a única comunidade ‘hippie’ do
Brasil”. 348
A intenção com esse projeto era apresentar para o homem condicionado da cidade
uma outra possibilidade, que era a opção pelo natural – plantar, colher, sentir, realizar a
fraternidade e retomar os laços com a terra e a espontaneidade perdidos com o processo
civilizador. Com esse intuito, pensaram em fazer um filme para mostrar a sociedade que
julgavam estar decadente. Mas acabaram chegando a conclusão de que tal intenção não
funcionaria, na medida em que ela não estava, ela sempre foi decadente. Assim, optaram
por apresentar a vivência comunitária e divulgar esse tipo de opção.
Começaram a se organizar para a execução do filme. Todos eram amadores, o único
que tinha alguma experiência era Carlos Bini. Mas segundo Bini, todos“eram pessoas
espontâneas e, como o filme pretendia retratar a comunidade, não era preciso ser artista”.349
O Quiabo`, que era usado como um espaço da comunidade, transformou-se na fábrica do
projeto ou estúdio. Em função desse projeto, cessaram os trabalhos com artesanato, a
vendinha que comercializava produtos da lavoura, também foi fechada, pois não tinham
mais tempo para realizarem essas atividades. Começaram a rodar o filme em agosto de
1970. Todas as atividades que caracterizavam a comunidade foram abandonadas para que
fosse realizado o filme que iria narrar a história daquela comunidade. O roteiro constitui-se
em uma mistura entre a realidade e a ficção. À realidade, acrescentou-se como ficção a
perseguição da comunidade por um pastor batista que desejava convertê-los. Há na trama

348
Cf: “Filme mostra a vida de ‘hippies’ em Friburgo”. http://www.spectrum.mus.br/clipping.htm. Capturado
em 11 de maio de 2008.
349
Cf: “Filme mostra a vida de ‘hippies’ em Friburgo”. http://www.spectrum.mus.br/clipping.htm. Capturado
em 11 de maio de 2008.

241
um advogado que adere à comunidade e adota um novo estilo de vida. Esta mudança vai
provocar conflitos entre ele e sua namorada, uma moça que pertencia a uma família rica da
cidade.
Iniciaram as filmagens em agosto de 1970, com recursos técnicos bem precários.
Rodaram o longa-metragem com uma câmera 35 mm sem Zoom, que faz com que a
qualidade da imagem seja bastante prejudicada. O filme tornou-se uma experiência artística
da comunidade que contava com um elenco amador: a própria comunidade. Tinham um
roteiro pré-estabelecido, mas que sofria improvisações na hora da rodagem. O próprio
grupo fez a dublagem mesmo não tendo nenhuma experiência nessa técnica.
As cenas do filme se passavam na estrada, no sítio e nas redondezas de Nova
Friburgo. Quando já estavam por concluir o longa-metragem, o delegado de Nova Friburgo
mandou prender todo mundo. Esse fato teve alguma repercussão, sendo na época noticiado
na impressa. O jornal O Dia colocou a questão da seguinte forma:

Prendendo, artistas, diretores e produtores do filme “Geração Bendita”, que


mostrava cenas atuais de juventude “hippie”, o Delegado de Friburgo, Sr. Nei
Richard, impediu a realização da película, que era acompanhada por toda
população local, curiosas ante o realismo e a beleza das cenas rodadas. Todos os
protagonistas do filme, depois de terem as cabeleiras raspadas e a barbas
escanhoadas, além de despojados de suas roupas exóticas, foram postos em
liberdade. (...). 350

A polêmica foi instalada. Uns sentiam-se escandalizados com o comportamento,


roupas e cabelos, outros viam beleza e tinham simpatia pelos jovens. Esta prisão deixou
alguns moradores revoltados, os artistas indignados com a postura retrógrada do delegado
que impedia a livre manifestação do cinema nacional e outros tiveram medo. Carlos Bini se
sentiu lesado, e viu nas atitudes do delegado abuso de poder, e em função disso contratou
um advogado para entrar com uma ação solicitando também indenização pelos prejuízos
acumulados com a interrupção do filme. Os “fãs” (moradores de Nova Friburgo) dos
artistas “hippies foram para frente da delegacia e realizaram protesto coletivo contra a
prisão alguns inconformados com a desfiguração fisionômica dos astros e estrelas,

350
Artistas presos e cabeças raspadas. Jornal O Dia.. 27 de novembro. 1970.

242
chegaram a ameaçar de depredação a delegacia, sendo contidos a muito custo pelos
policiais”. 351
O filme é composto por cenas que retratam o cotidiano de uma comunidade hippie:
sua convivência familiar, as atividades cotidianas, a presença da música, as roupas
coloridas, as danças, o contato harmônico com a natureza, enfim, retrata a “vida paz e
amor” da própria comunidade em que viviam. As cenas mais audaciosas e reais que
expressavam o pensamento da época, de uma juventude que gritava por liberdade eram
filmadas dentro da própria comunidade. A Praça de Friburgo, um ponto central e
movimentado, também era usada como cenário. Foi numa cena rodada nesse ambiente que
resultou a prisão dos “artistas hippies”. Essa cena mostrava o grupo em um jipe
transformado com pinturas psicodélico, que se caracterizavam por cores fortes e desenhos
considerados fora dos padrões “normais” da época.
O delegado, que já vinha preocupado com a presença de muitos indivíduos vindos
de fora, deu voz de prisão, que é veiculada de forma quase caricatural, que pode
corresponder ao que se passou ou ser uma estratégia do jornal. A situação foi narrada da
seguinte maneira: “Corta! Está todo mundo em cana. Ninguém sai de cena. As
representações serão agora no Xadrez, mas com artistas carecas e todos de banho tomado,
asseados e limpos”. 352
Embora sob protestos e vaias, o delegado manteve sua posição em relação ao
encarceramento e a higienização, desfigurando-os da personificação de “hippies
autênticos”. O delegado Amil Nei Richard informou na época que havia resolvido cortar os
cabelos de uns vinte “hippies”, inclusive dos que não eram brasileiros em função de que
Nova Friburgo tinha se “transformado” com a presença desses indivíduos. De acordo com
as explicações do delegado, os hippies estimulavam jovens menores de idade a
abandonarem suas famílias e adotarem aquele tipo de vida e acabavam indo parar naquela
cidade onde ele era o responsável pela segurança. “A presença dos cabeludos, segundo o
delegado, causou uma série de problemas na cidade e, diante das reclamações, mobilizou
uma turma de policiais que prendeu vários hippies. Logo em seguida, convocou os
barbeiros para com suas máquinas, iniciar a “Operação Tosquia”. Após serem “tosquiados”,

351
Artistas presos e cabeças raspadas. Jornal O Dia. 27 de novembro. 1970.
352
Artistas presos e cabeças raspadas. Jornal O Dia. 27 de novembro. 1970

243
os jovens foram liberados e os que não eram moradores da região tiveram um prazo de
cinco dias para se retirarem da cidade. Outros jovens, com medo de serem presos,
“tomaram” a atitude de cortar o cabelo.
Após serem libertados, os “artistas hippies” partiram para a finalização do filme.
Quando o filme foi concluído, a comunidade já havia dispersado. O filme foi para a
avaliação da censura, ainda em 1970. Ficou retido e sofreu corte e só foi liberado em
janeiro de 1972. O nome “Geração Bendita”, considerado subversivo, teve que ser
modificado para “É isso aí, bicho!”. Para os lançamentos do filme foram elaborados dois
cartazes. No primeiro, havia uma esfera, representando a terra e pendendo – a um tronco de
árvore com dois galhos saindo de cada lado do tronco formando o símbolo da contracultura.
Ao fundo, se vê uma paisagem que fornece a impressão de ser uma mata ou nuvens. Rente
ao chão de onde nascia o tronco há desenhos de cogumelos. Junto a esses desenhos vinham
o título e os créditos do filme. Já o segundo cartaz era constituído de várias cabeças que
passam a impressão de uma alucinação, com desenhos no estilo psicodélico. As várias
cabeças representavam os temas levantados pela contracultura, assim, por exemplo, tinha
uma cabeça com um cigarro contendo alguma substância alucinógena, outras cabeças se
beijando e outras simplesmente contemplando algo.
A realização do filme só foi possível em função de que a mãe de Carl Kohler,
produtor do filme e dono dos sítios onde foi formada a comunidade, acreditou no “projeto”
e ofereceu três casas e dois terrenos para que a empreitada fosse realizada. Apesar de uma
produção simples, usando apenas uma câmara 35 mm, sem “Zoom”, e tendo um elenco de
amadores, os custos do filme colocaram Carl Kohler em dificuldades financeiras. Com a
retenção do filme pela censura por mais de dois anos, as dívidas foram se acumulando e
Carl Kohler teve que colocar à venda o Quiabo´s e o Abóbora´s.
Como o filme buscava divulgar a perspectiva “paz e amor”, o locutor do trailer do
filme o apresenta da seguinte forma: “uma história nunca vista no Brasil! Uma geração
simples, divertida, humana, bela e inteligente! Você vai fundir a cuca, bicho!”353 O filme
foi realizado com o objetivo de divulgar a visão da Era de Aquário, mas como foi detido

353
Verificar trailer em http://hipiesealternativos. Multiply.com/vídeo/item/4/4 ou em
http://www.youtube.com/watch?V=sGNSbCPV8_W. O trailer apresentado nestes sites tem suas imagens
restauradas.

244
por mais de dois anos, quando chegou aos cinemas, sua temática já não era mais novidade e
não despertou muita atenção.
No entanto, hoje o filme pode ser visto como um retrato de uma época, com um
entusiasmo nostálgico ou como uma curiosidade ou cinema trash. Essas percepções são
possíveis e ficam marcadas num trecho da matéria que indica a visão de um remanescente
da comunidade, José Luiz Caetano e o olhar distanciado do jornalista Silvio Essinger, do
Jornal do Brasil. Para visualizar as percepções, destaquei o seguinte trecho:

“O filme não é nenhuma obra- prima, mas retrata uma época”, diz hoje José Luiz
Caetano. Bondade dele: Geração Bendita poderia ser exibido hoje em dia como
uma curiosidade trash , com cenas hippies queimando um aparelho de TV,
tocando flauta à beira do rio, queimando fumo e destroçando com fúria um leitão
assado. Com interpretações constrangedoras e um fiapo de roteiro, centrado na
história de um burocrata que larga tudo para viver com os hippies que acampam
na praça principal de Nova Friburgo, Geração Bendita, o filme, tem uma cena
antológica, em que todos tomam banho nus num rio, no qual um translocado vai
derramando um balde de tinta para colorir a água. 354

Para os idealizadores do filme, ele expressava uma realidade que estava por vir e
por fazer por aquela “geração bendita”. Uma realidade baseada no contato com a natureza,
vida em comunidade, desprezo à tecnologia, com a música trabalhando a apuração dos
sentidos e busca de vivência espontânea, entre outros. Porém, anos mais tarde, o projeto de
sociedade esboçado num filme é percebido como uma curiosidade ou como algo perto do
bizarro por olhos distanciados do evento e do significado daquelas condutas. Hoje, muitas
percepções e condutas que tiveram origem naquele contexto são sentidas e vividas como
“naturais”, pois o espírito transgressor daquele período já foi diluído e, assim, torna-se até
possível ver a dramatização e o experimentalismo desses precursores como uma
curiosidade trash.
José Luiz Caetano também fazia parte da Banda Spectrum. Ele era guitarrista. Os
demais membros também moravam na comunidade formada nos sítios. Vai ser essa banda
que vai produzir a trilha do filme que deu origem ao LP “Geração Bendita”, que também
tinha como tema das músicas as promessas da “Era de Aquário” num estilo considerado
pelos críticos como rock psicodélico. No entanto, nem o filme nem o LP adquirem

354
ESSINGER, Silvio. Um clássico psicodélico: disco gravado em 1971 por uma obscura banda de Friburgo
vira cult na Europa. Jornal do Brasil. 14 de fevereiro. 2002.

245
expressão na época, o que acabou deixando cineastas e músicos frustrados com o não
reconhecimento de seus trabalhos.
O trabalho musical feito par o filme “Geração Bendita” foi, a partir de 2001,
considerado uma obra prima do rock psicodélico, uma raridade buscada por colecionadores
e amantes do gênero. Assim, só trinta anos depois, o “poder musical e poético da banda
hippie de Nova Friburgo” 355 foi reconhecida e seus membros tiveram oportunidade de ver a
amplitude de seu trabalho reconhecida.
A fama do “Geração Bendita” se espalhou. “Ele é uma jóia da música psicodélica”,
elogia Hans Pokora, autor da série de livros Record collector dreams, que copila capas de
raridades roqueiras do mundo inteiro”. 356 Luiz Antônio Torge, que é um colecionador e que
alimenta um site com capas de discos brasileiros raros, o Rato Laser (www.
ratolaser.hpg.ig.com.br) diz que esse trabalho “alem de ser ótimo, ele é raro também, o que
torna a obra ainda mais cultuada. (...) E o fato de as músicas não serem covers de bandas da
Europa ou dos Estados Unidos deixa os colecionadores loucos”. 357
Segundo os especialistas e críticos do estilo, os poucos mais de 29 minutos do disco
apresenta uma qualidade musical que surpreende os mais experientes roqueiros, embora o
som seja precário. “Não tínhamos recursos técnicos, os instrumentos eram nacionais, de
segunda mão, mas havia uma coisa maior que nos movia, que era o sentimento daquela
geração, conta Caetano”. 358 Mesmo a banda Spectrum, na época não possuindo
instrumentos novos nem condições técnicas, e as novas cópias tiveram que ser retiradas de
um LP, já que as fitas originais sumiram, fez com que este trabalho perdesse o tom de sua
criatividade e significado perante os críticos. Assim, esse trabalho é situado acima do
padrão nacional da época. “Geração Bendita” é considerado um excelente trabalho de rock,

com ecos do psicodelismo de Jimi Hendrix, o peso de Cream e Steppenwolf (a


grande paixão da banda) e das impecáveis harmonias vocais de Simon &
Garfunkel e The Mamas & The Papas. As guitarras falam alto em faixas como

355
Lemle, Marina. Um clássico psicodélico. Site Jornal do Brasil. 21 de fevereiro. 2002. Capturado em
http://jbonline.terra.com.br/jb/papel/colunas/insite/ Acesso em: 22 de fevereiro. 2002
356
ESSINGER, Silvio. Um clássico psicodélico: disco gravado em 1971 por uma obscura banda de Friburgo
vira cult na Europa. Jornal do Brasil. 14 de fevereiro. 2002.
357
ESSINGER, Silvio. Um clássico psicodélico: disco gravado em 1971 por uma obscura banda de Friburgo
vira cult na Europa. Jornal do Brasil. 14 de fevereiro. 2002.
358
ROSA, Fernando. Selo alemão relança Spectrum em vinil. Capturado em: http://www. senhorf.com.
Acesso em: 21 de fevereiro. 2002.

246
Quiabos (nome do sítio onde vivia a comunidade hippie do filme), pingo é letra
é trilha antiga. (...) Há também belas baladas, só com vozes dos integrantes e o
acompanhamento de uma viola caipira (substituindo o violão de 12 cordas,
inacessível para os garotos), que Jo´se Luiz Caetano comprou em 1970 e guarda
até hoje. Entre elas, Mary you are, tema de amor, Mother nature e Maria
imaculada. A faixa mais psicodélica mesmo é Concerto do pântano, com a
combinação da viola com slide e guitarra com efeito wah-wah. O hino hippie A
paz, amor você encerra o disco em grande estilo – nada a dever, por exemplo,
aos mutantes de Jardim elétrico. 359

O álbum “Geração Bendita” tem pouco mais de meia hora de duração, com 12
músicas falando de amor, paz, liberdade, natureza e outros temas e valores expressivos
daquele contexto. 360 A capa do LP também acompanha a temática psicodélica. Há uma
cabeça de homem ostentando sua cabeleira, com óculos de armação redonda, aparecendo
também parte do tronco, mostrando o figurino hippie. Toda concepção da capa lembra o
estilo que mescla psicodelia com a pop art.
Passada a fase da ebulição contracultural ou o “fim do sonho”, José Luiz Caetano e
os demais membros da banda continuaram morando em Nova Friburgo. José Luiz se casou
e começou a trabalhar com shiatsu e teve dois filhos. Mais tarde prestou um concurso e se
tornou funcionário publico. Os integrantes seguiram carreiras diversas: o baterista Fernando
trabalha com informática; o guitarrista Sérgio é desenhista da construção civil em Friburgo
e David, o outro baterista é pecuarista em Bom Jardim. O baixista do disco, Toby, morreu
no começo dos anos 1990 num acidente de carro. Mas todos ainda compartilham da
memória daqueles tempos que eles julgam ter sido “momentos mágicos, coloridos e
intensamente vivido.” 361
O LP “Geração Bendita”, gravado em 1971, assim como o filme, não tiveram
repercussão alguma na época. Hoje, ao contrário do filme, que é considerado como uma
produção quase inacreditável, o disco é considerado como uma raridade e um dos melhores
no gênero no Brasil. No entanto, o mérito destes dois trabalhos não reside somente nas suas
potencialidades ou nas suas qualidades enquanto gêneros artísticos. Seus méritos estão

359
ESSINGER, Silvio. Um clássico psicodélico: disco gravado em 1971 por uma obscura banda de Friburgo
vira cult na Europa. Jornal do Brasil. 14 de fevereiro. 2002.
360
O LP e composto pelas seguintes canções: Quiabos`s, Mother nature, Trilha antiga, Mary you are, Maria
imaculada, Concerto do Pântano (instrumental), Pingo é letra, 15 years old, Tema de amor (instrumental),
Thank you my god, On my mind e A paz, o amor, você.
361
ROSA, Fernando. Selo alemão relança Spectrum em vinil. Capturado em: http://www. senhorf. Acesso
em: 21 de fevereiro. 2002.

247
também no fato de apresentarem dados de que a juventude do Brasil estava antenada, em
sintonia com a contracultura a nível mundial, que compartilhavam dos sentimentos
propostos por esse movimento e buscaram compartilhar suas experiências fundamentas em
uma nova visão de mundo (musical, moral, política entre outros) mediada pela tecnologia.
A comunidade de Nova Friburgo e a banda Spectrum, embora defendendo uma
“sociedade alternativa”, vão utilizar veículos lapidados pela indústria cultural e os anseios,
dificuldades e frustrações advindas do desejo de explicitarem suas visões de mundo através
desses veículos. Com todas as dificuldades encontradas, o grupo de Nova Friburgo vai
comunicar uma “realidade” através de sons e imagens que deveria ser colocada em ação
através da indústria cinematográfica e fonográfica, domínios próprios da sociedade que
julgavam ser decadente. O que importava a essa “geração bendita” era buscar a sociedade
“paz e amor” e para isso não se furtaram em recorrer aos mecanismos e técnicas da
sociedade moderna.
Para José Luiz Caetano a ideologia dos anos sessenta ainda não acabou. Ele acredita
que o “Geração ainda é um disco atual, em letra e música” 362 e sonha inclusive em realizar
um videoclipe, com cenas do filme “Geração Bendita” que estavam em poder com Carl
Kohler, que permaneceu esses anos todos desiludido com o não reconhecimento de seu
trabalho cinematográfico. Mas com o repentino sucesso do disco e da trilha sonora, o filme
também foi relançado. “Trinta anos depois, o músico continua no clima paz e amor do
filme – em sua opinião, o sonho não acabou e os anos 70 sequer começaram. O objetivo
final do homem tem que ser o humanismo, prega José Luiz”.363

6.4 O estilo underground e a ampliação da consciência

Nesta época, houve uma profusão dos chamados “jornais nanicos”, que eram
produzidos fora do esquema oficial de imprensa. O pioneiro dessa irreverente e inovadora
imprensa é O Pasquim, realizado por um grupo eclético e com disposição criativa e
inovadora. Este jornal representa o principal exemplo de imprensa alternativa no Brasil e,

362
ESSINGER, Silvio. Um clássico psicodélico: disco gravado em 1971 por uma obscura banda de Friburgo
vira cult na Europa. Jornal do Brasil. 14 de fevereiro. 2002.
363
ESSINGER, Silvio. Um clássico psicodélico: disco gravado em 1971 por uma obscura banda de Friburgo
vira cult na Europa. Jornal do Brasil. 14 de fevereiro. 2002.

248
ao mesmo tempo, é considerado o veículo impresso que mais influenciou a chamada grande
imprensa, que até hoje ainda se renova ao adotar importantes modificações introduzidas no
jornalismo por esse periódico, como por exemplo, passam a imprimir uma forma mais
coloquial à publicidade.
Quando o grupo formado, inicialmente por Tarso de Castro, Jaguar, Sérgio Cabral,
Luís Carlos Maciel, Claudius e Carlos Prosperi, e resolveram fundar O Pasquim, o clima no
país estava tenso. 364 No Rio de Janeiro, esses jornalistas e intelectuais reuniam-se nos bares
para debater sobre a nova conjuntura política que se apresentava. Num desses encontros
surgiu O Pasquim, cujo título significa jornal vagabundo, panfleto difamador. O professor
José Luiz Braga lembra como foi:

O Pasquim nasceu nos bares do Rio, de encontros entre Jaguar, Tarso de Castro,
Sérgio Cabral, Claudius, Carlos Prosperi, Luiz Carlos Maciel. Este ultimo não
lembra como surgiu ‘O Pasquim’, mas lembra que foi num barzinho da
Cinelândia, e que ele, Maciel, foi contra o nome – ‘um lugar comum’ que sua
‘atração pelo sofisticado, sutil e o original rejeitava com certo constrangimento’
(Pasquim número 20). Coisa de jornalzinho de colégio. Mas a auto-ironia do
título era adequada ao momento. Tarso e Jaguar (este autor da sugestão)
fecharam questão, ‘é isso mesmo que a gente quer’(BRAGA, 1991, p. 23)

O Pasquim foi o primeiro e mais influente jornal de oposição à ditadura brasileira.


Iniciou suas publicações em 1969 com uma tiragem inicial de 20 mil exemplares, percebida
como pretensiosa. No entanto, o semanário alcançou a marca de 200 mil exemplares em seu
auge, por volta da metade da década de 1970. 365 A princípio, o teor do jornal girava em
torno de assuntos comportamentais (sexo, drogas, feminismo, produção artística, divórcio,
entre outros), passando posteriormente a se tornar cada vez mais politizado conforme

364
Em 1969, foi lançado o jornal de Humor O Pasquim por homens de esquerda que se uniram: Jaguar, Tarso
de Castro, Ziraldo, e até Paulo Francis em sua fase pré-neoliberal. Esse grupo uniu-se pela necessidade de rir.
O sentimento de opressão era algo sentido por todos e só podia ser ludibriado através do humor. Tudo era
proibido, mas as autoridades eram um pouco condescendentes com o humor. Até certo ponto, na medida em
que os participantes do Pasquim acabaram sendo presos, mas pelo menos demorou um pouco. As criticas
eram toleradas porque o Pasquim era engraçado e debochado. O Pasquim, acabou se tornando um jornal que
prosperou graças ao humor, mas que em plena ditadura acabou se tornando um órgão de resistência.
365
Ninguém ficou rico com a publicação, embora ela tenha vendido nos seus tempos áureos, entre 1969 e
1973, até 250 mil exemplares. Uma produção considerável, tendo em mente que atualmente os jornais de
circulação nacional , com toda informatização, sistema de assinaturas, com excelente fluxo de distribuição
tem uma tiragem por volta dos 300 mil exemplares. Cf: TV Câmara. O Pasquim – A subversão do Humor.
Disponível em: http://www.camara.gov.br/internet/tvcamara/default.asp?selecao=programa&programa.
Acesso em 16/01/06.

249
aumentava a repressão da ditadura, assumindo a função de porta-voz da indignação
brasileira. 366
Em novembro de 1970, o grupo de redação do Pasquim foi preso depois que o
jornal divulgou uma sátira do famoso quadro de Dom Pedro às margens do Ipiranga – de
Pedro Américo. 367 Os militares acreditavam que esse procedimento iria quebrar a
circulação do periódico e desmantelar a rede de leitores, mas durante o período de detenção
da equipe (até fevereiro de 1971) o semanário foi mantido com colaborações de Chico
Buarque, Antônio Callado, Rubem Fonseca, Odete Lara, Glauber Rocha e diversos
intelectuais cariocas. 368
O jornal foi irreverente, polêmico, convocava as pessoas a rir da própria desgraça,
influenciou comportamentos, convocou reflexão através do humor durante os anos de
chumbo. Em função desse perfil, a turma do Pasquim acostumou-se com os termos prisão,
exílio e censura prévia. “A verdade é que o comportamento da chamada patota do Pasquim
era tão anárquico quanto o conteúdo do jornal. E o que ganharam gastaram entre prisão,
brigas, festas e altas dosagens etílicas. Bem que os militares e a elite brasileira tentaram
sufocá-los diversas vezes e de formas variadas mas, quando conseguiram, ele já havia
disseminado uma nova forma de comportamento (...)”. 369
O termo “underground” foi difundido no Brasil pelo jornal Pasquim (1969).
Underground também era o título de uma lendária coluna assinada por Luiz Carlos Maciel,
que seguia a contracultura internacional e movimentos similares nacionais. Assim, esta
coluna divulgava assuntos como: vida da juventude norte-americana e internacional nos
anos 1960 e 1970, o mundo da Era de Aquário; o desejo dos jovens de mudar o mundo
pacificamente e criar uma sociedade alternativa; o amor livre; o fim da neurose; rock`n roll
e as drogas como forma de ampliação da consciência. A utilização da droga, segundos

366
Ver melhor em: Wikipédia, a enciclopédia livre. O Pasquim. Disponível em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Pasquim. Acesso em: 26/12/05; Nova Escola On- line- junho. O ratinho que
riu da roupa do rei. Disponível em: http://novaescola.abril.com.br/ed/119_fev99/html/junho.htm. Acesso em:
16/01/06.
367
Realizada por Jaguar, Dom Pedro aparecia às margens do Ipiranga, de braços levantados, e num balão,
como nas histórias em quadrinhos, em vez da famosa frase “Independência ou morte!”, ele bradava: “Eu
também quero mocotó!”, parodiando a música de Jorge Ben
368
As prisões dos membros de Pasquim continuaram acontecendo, e nos anos 80 as bancas que vendiam
jornais alternativos passaram a sofrer atentados a bomba. Cf. Wikipédia, a enciclopédia livre. O Pasquim.
Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/O_Pasquim. Acesso em: 26/12/05
369
Cf: TV Câmara. O Pasquim – A subversão do Humor. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/internet/tvcamara/default.asp?selecao=programa&programa. Acesso em 16/01/06.

250
muitos adeptos da contracultura, “era encarada menos como um vício e mais como uma
experiência. Ela ampliaria as possibilidades cognitivas das pessoas e estimularia um
processo de libertação mental das convenções caretas e repressivas do sistema”. 370
Luiz Carlos Maciel é jornalista, escritor, professor de filosofia, roteirista de TV e
diretor de teatro. Contestador dos valores tradicionais desde a adolescência, era
responsável pela redação e edição de duas páginas – Coluna Underground – onde
propagava idéias libertárias que circulavam pelo mundo, mas que não eram discutidas por
aqui. No Pasquim, o jornalista Luiz Carlos Maciel, responsável pela underground, pregava
o advento de “uma nova consciência” (HOLANDA, 1987) e “pode ser apontado como
introdutor no país das muitas novidades trazidas pela contracultura (movimento que
dominou a década de 60 na Europa e Estados Unidos), que chegava definitivamente através
das páginas de um digno representante das publicações alternativas” (MOREIRA, 1986, p.
35): O Pasquim.
O jornalista Luiz Carlos Maciel foi considerado, então, o guru da contracultura no
Brasil. 371 Em uma entrevista ao jornal do Brasil ocorrida em 27/05/01 perguntam-lhe sobre
sua percepção a respeito do que foi o movimento de contracultura.

(...) Foi um movimento de jovens que começaram a descobrir que a organização


do mundo tal como a conhecemos, a maneira como vivemos, a maneira como se
desenvolveu a civilização ocidental, era uma coisa neurótica, injusta. Algo que
não merecia o amor nem a solidariedade por parte dessa juventude. A
contracultura se manifestou por um processo de contestação em todos os
níveis. 372

Nesta mesma entrevista, Maciel, respondendo à pergunta da jornalista a respeito de


quais seriam as principais contestações deste movimento, esclarece:

Havia a contestação do estilo de vida, do comportamento. A questão sexual se


caracterizava por uma repressão neurotizante. Havia contestação em relação a

370
GONÇALVES, Marcos Augusto. Desbunde foi a alternativa à rigidez da esquerda. Folha de São Paulo.
Folha ilustrada. São Paulo. 21 de março. 2004.
371
O nome de Maciel é uma referência na contracultura, no jornalismo e seu nome também está associado ao
cinema novo, Tropicália e ao teatro experimental dos anos 60. Podemos verificar o reconhecimento de Maciel
como “guru” da contracultura no Brasil em: Holanda (1987); Moreira (1986), Castro (1999) e no próprio
Maciel (1996)
372
LINS, Regina Navarro. Conversa na varanda: “Sexo é um fenômeno mágico”. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro. Vida. 27 de maio. 2001.

251
valores estéticos, artísticos. Um novo som, o rock, que, pelos padrões
harmônicos da musica estabelecida era muito pobre, surgia trazendo outras
virtudes: a vitalidade, o ritmo, o fato de mexer o corpo. Os processos políticos
tradicionais eram desprezados em função de novos comportamentos. Até a
religião foi contestada em função das religiões orientais. Foi uma época de
contestação em todos os níveis e a busca de formas alternativas de se viver. 373

A ebulição cultural que eclodiu nos anos 1960 teve um papel preponderante no
processo de germinação de idéias associadas à nova consciência religiosa, na medida em
que nestes trabalhos perpassavam a idéia de autonomia, de experimentação, liberdade
individual e mudança de sensibilidade e percepção.
O Pasquim, e em particular a coluna Underground, contribuiu muito, a meu ver,
para a introdução de conceitos relacionados com as propostas do que hoje se convencionou
chamar de Nova Era. Isto pode ser percebido em vários artigos, onde Maciel focava as
tendências culturais da contracultura. Assim, notamos em várias ocasiões em Underground
menções à Era de Aquário, à necessidade de por fim a sociedade capitalista que atribuíam
um caráter neurotizante, um sinônimo de establishment; ênfase na exploração do potencial
criativo da mente, valorização do misticismo oriental e a busca de estados alterados de
consciência através de uso de alucinógenos, entre outros.
Na coluna Underground, Maciel coloca a questão da subjetividade e de um
conhecimento interno como uma forma de se encontrar um mundo paralelo à sociedade
vigente, um modo novo de perceber o mundo e as coisas. A questão do trabalho no âmbito
da subjetividade foi produto de novas conexões assim como também passam a elaborar
novas conexões a partir desse trabalho. Um dos meios usados para a expansão da
consciência foi o uso de alucinógenos e práticas orientais. Estas percepções são propagadas
por astros do rock e poetas que ganham notoriedade por seu estilo Underground.
Por seu lado, Maciel coloca em circulação estas percepções no Brasil ao escrever e
se posicionar a respeito das experiências vividas por porta vozes do movimento
underground em sua coluna, como pode ser observado a seguir:

Trechos de um artigo sobre ação política – nós já tivemos a revelação de que a


realidade de qualquer situação não existe nem, ao mesmo tempo, NÂO EXISTE.
Isso concorda com a velha sabedoria tribal e dá razão a qualquer curandeiro

373
LINS, Regina Navarro. Conversa na varanda: “Sexo é um fenômeno mágico”. Jornal do Brasil. Rio de
Janeiro. Vida. 27 de maio. 2001.

252
negro da tribo dos ayahusca, em Pecallpa, Peru, ou a qualquer feiticeiro dos
índios americanos que diga que o universo teve sua origem quando um coiote
urinou sobre uma pedra. E se estamos voltando à sabedoria tribal, voltemos à
sabedoria tribal para valer. Eu acho, por exemplo, que Stokeley Carmichael é
um feiticeiro negro. Mas ele é um feiticeiro jovem e, portanto, acho que é um
feiticeiro muito impaciente que ainda não dominou toda a magia – apenas um
dos aspectos da magia e paga por isso o preço da ulcera que ele tem. Ou de duas
más viagens de LSD. (...). O primeiro sentimento do meu senso da realidade é
que somos todos um só, acontece apenas que existem olhos demais olhando para
fora. (...) Provavelmente, a paranóia é uma coisa boa porque consiste
simplesmente no reconhecimento de que todo mundo faz parte de uma
gigantesca conspiração e possivelmente o paranóico reconheceu isso. Mas pense
que ele é o único que já reconheceu isso e não entende os sinais que lhe enviam
os outros que também o reconheceram. Paul Mc Cartney já disse: Somos todos
um só. 374

Nesse trecho da coluna Underground, vemos Maciel fazendo referências às origens


mágicas e mitológicas do mundo, apartir da cultura dos índios americanos. Ele indica que a
sabedoria tribal e a prática dos curandeiros indígenas remontam a milhares de anos, diz
respeito a um outro universo, uma outra dimensão que está ao alcance através da busca de
estados alterados de consciência 375 Ele aponta que “feiticeiro” ao dominar esta magia,
chega a uma outra realidade e que os jovens da contracultura ao fazer uso das drogas
alucinógenas também procuravam alcançar esta mesma realidade, porém não conseguiam
dominar “esta magia” ou os “estados alterados de consciência” e com isso muitos
enfrentaram os efeitos nocivos da droga. Para se chegar a esta outra dimensão – expansão
da consciência – num primeiro momento fazia-se o uso de drogas, principalmente o LSD.
É interessante notar que Maciel também aproxima o universo dos indivíduos com
distúrbios mentais às experiências dos indivíduos que passaram por estados alterados de
consciência, onde o paranóico, o esquizofrênico já teria rompido com o establisment,
alçado uma realidade alternativa, como propunha a contracultura.
Como pano de fundo, podemos perceber o holismo e a necessidade de se chegar a
uma unidade, a uma nova totalidade. Assim, o holismo enfatiza a relação entre tudo o que
existe. Esta inspiração da cultura alternativa espera “a realização de todas as integrações de
que o presente se ressente: dos homens entre si, do homem no cosmo, do homem com a
natureza, de todos os povos, de todos os saberes, de todas as ciências, de todas as
religiões...” (ALBUQUERQUE, 1998, p. 03). Ainda hoje, esta perspectiva é um aspecto

374
MACIEL, Luiz Carlos. O Pasquim. Rio de Janeiro. Underground. No 50. 04 a 10 de junho. 1970.
375
Que podem ser alcançados através do êxtase religioso, da música, das drogas e de muitas práticas orientais.

253
que perpassa as inúmeras redes que compõem a infinidade de práticas abarcadas pela
designação Nova Era.
A partir da contracultura há um o crescimento da crença de uma iminente vinda de
um mundo renovado, onde cada indivíduo se reconhecerá como fragmento da consciência
cósmica. Tal percepção está intimamente ligada à crença do advento de uma nova era ,
regida pelo signo de Aquário e seguindo o fluxo das traduções esta crença acaba nomeando
o movimento que começa a se originar no fim dos anos 60 e início dos 70 do século XX.
A partir dos anos 1960, com a contracultura, o Ocidente vai evocar, num contexto
de modernidade, elementos constitutivos de uma era pré-capitalista como a busca da
recuperação da espontaneidade, nostalgia da unidade, a opção por experiências mais
intensas e valorização de tudo que foge do crivo da razão, ou promova a distinção entre
corpo, mente e espírito. Busca-se “fundamentação”, a princípio, nas práticas e religiões
orientais, percebidas como solução para as conseqüências do processo civilizador. 376 Essa
“fundamentação” é através de traduções, misturas de domínios e elementos considerados
distintos que passam a criar vínculos sociais tanto no contexto da contracultura como nos
contextos posteriores. Os textos da coluna Underground nos apontam como essas traduções
se manifestavam no Ocidente através da juventude. Assim, praticas e tradições pré-
modernas são visitadas e incorporadas, na medida em que expressam valores integradores
como a busca da vida comunitária, a comunhão com a natureza e a reconciliação entre
corpo e a mente.
A coluna Underground deixa claro que a vertente espiritual da contracultura buscou
como uma das fontes de inspiração práticas místicas de várias tradições, e não deixa de
apontar isto aos seus leitores, como no trecho abaixo:

É sabido que estados temporários de dissociação de subjetividade separada do


corpo ocorrem em pessoas normais. (...). O misticismo em geral e oriental em
particular – ensina a separação do corpo e do espírito como uma disciplina
positiva ascese humanizadora e um objetivo fundamental da existência humana.
Todos preservando a “verdadeira subjetividade” deixando, nos casos menos
lúcidos, que uma “falsa subjetividade” transacione com o mundo falso, fútil e
morto; ou procurando, no significado profundo da “sociedade alternativa” de
que tanto fala a contracultura contemporânea”. 377

376
Processo civilizador é a expressão que Nobert Elias utiliza para sistematizar as mudanças no padrão das
relações humanas. Ver melhor sobre assunto: Elias (1990, 1993).
377
MACIEL, Luiz Carlos. Pasquim. Rio de Janeiro. Underground. Dezembro. 1970. p. 13.

254
Aqui, vemos Maciel chamar atenção para a importância da expansão da consciência,
que ele denomina como “verdadeira subjetividade”. E, para que isto ocorra, a via mais
indicada são as práticas orientais. Estas são procuradas e acionadas por não limitar a mente,
como faz o conhecimento ocidental. Práticas como as orientais, por exemplo, buscam
resgatar mecanismos interiores e níveis de consciência desconhecidos da tradição
científica. 378
Luiz Carlos Maciel, em uma outra matéria em sua coluna, conclama as pessoas a se
juntar ao Movimento Espiralista. Este movimento parece se relacionar com a busca do
auto-conhecimento, com a concepção holística e com a “responsabilidade” dos jovens da
década de 60 do século passado em empreenderem uma mudança de perspectiva, ainda que
esta perspectiva não estivesse clara para muitos. No entanto, toda a questão girava em torno
do trabalho da subjetividade. A seguir um fragmento desta matéria:

Todo e qualquer gênero de criação artística divorciada de qualquer sentido


prático imediato e principalmente se VOCÊ está em qualquer jogada nova e
verdadeiramente original junte-se a nós movimento espiralista. A espiral para
quem não sabe é um princípio de expansão do interior – para nós é o princípio
do conhecimento do mundo externo e do próprio mundo interior do indivíduo”.
Nós somos os iluminados, as respostas às novas perguntas, a renovação
necessária, os filhos dessa década e das que se lhe seguirão – só poderemos
saber exatamente O QUE SOMOS quando todos tivermos dado nossas respostas
– todos que nos responderão automaticamente passarão a fazer parte do
Movimento Espiralista – somente dessa maneira o Movimento poderá existir e
se definir – CONTRIBUA PARA O MOVIMENTO O ESCLARECIMENTO
DO ESPIRALISTA – O MOVIMENTO ESPIRALISTA SOMOS TODOS NÓS
QUE NÃO SABEMOS AINDA O QUE SOMOS JUNTOS NÓS SEREMOS.
NÓS SOMOS O CHAMADO INCONSCIENTE COLETIVO. 379

As propostas do Movimento Espiralista indicadas por Maciel, propõem mudanças


radicais, uma verdadeira mudança de “paradigma”, uma transformação na estrutura do
pensamento e da realidade. Ele também parece afirmar que a transformação individual
levará à transformação coletiva.

378
A dimensão integradora de práticas como a ioga, por exemplo “apresenta com agudeza o problema da
comunhão entre os homens e do homem com o universo (...); descondiciona a pessoa, restituindo lhe a
própria autonomia, o corpo e a alma livres de qualquer vínculo” (CHEVALIER, 1973 p. 38).
379
MACIEL, Luiz Carlos. Pasquim. Rio de Janeiro. Underground. No 86. 25 de fevereiro a 03 de março.
1971.

255
Estas perspectivas apontadas por Maciel vão ao encontro daquilo que Marilyn
Ferguson (1995) denominou de “conspiração de Aquário”. 380 “A conspiração implica em
respirar juntos, criar uma atmosfera comum, interconectar-se através de uma rede de
relações, ser cúmplices” (DIEZ, 1997, p. 17). No entanto, muitas pessoas ainda não estão
preparadas para isto, declara Ferguson. Esta falta de preparo pode ser resolvido através de
um programa de ampliação da consciência, onde alterações da consciência serão vistas
como libertação, como transformação, formando uma imensa “rede”, onde os diferentes
movimentos devem contribuir para a transformação de toda a sociedade. E a Nova Era
ancora-se nestes pressupostos e os coloca a descoberto.
Nos anos 1960 e início do 1970, a transformação da sociedade é uma tendência forte
nos segmentos inspirados pela contracultura. Busca-se uma perspectiva cuja essência mais
profunda seja de natureza espiritual e que promova transformações substanciais nas
estruturas sociais e políticas. O objetivo é a criação de uma nova cultura, um novo sistema
de valores.
Nesse sentido, acredita-se num tempo onde a liberdade e a criatividade serão
elementos fundamentais da vida. Tudo o que os homens realizarem nesta era está a
“serviço” do amor e da criatividade. Isto foi apresentado no Pasquim, por Maciel, que
também apontou as personalidades que se identificavam com essa “crença, a disseminação
dos núcleos e a divergência nos modos que se busca esta “mudança de percepção”. A
seguir, um trecho que indica como algumas dessas questões foram comentadas por ele:

(...) “Se você não sabe o que significa curtir, você não pode compreender o que
está acontecendo. Não há lideres: cada indivíduo segue sua voz interior da
maneira mais honesta possível ‘Eu vou me divertir me envolvendo nisso” ?
“Sim”. “Então Legal”. Há, contudo influências que vão de Beatles a William
Burroughs. Lideres de movimento semelhante nos E.U.A não tem muita
influência aqui, apesar de opiniões em contrário. A maioria das pessoas com
quem tenho contato na Inglaterra desconfiam inclusive de Leary, por exemplo.
(...) A Inglaterra viu surgir um novo movimento espiritual, que tem uma
característica tipicamente britânica: seu senso comum, seu senso prático. O novo
movimento é essencialmente otimista, tem uma visão feliz do homem e de seu
potencial, baseado principalmente em sua criatividade. (...) Mas a nova maneira
de agir e fazer mudanças positivas onde você estiver, bem em frente de seu
nariz. As armas são amor e criatividade. 381

380
Ferguson tem sido a porta-voz desta mudança e desta conspiração, passando a ser considerada como
destacada ideológa da Nova Era.
381
MACIEL, Luiz Carlos. Pasquim. Rio de Janeiro. Underground. No 87. 04 a 10 de março. 1971, p. 08

256
Neste texto vemos Maciel fazer referências a Timothy Leary (1920–1996) e aos
diversos “grupos de luz”, sendo o mais conhecido o da comunidade Findhorn (CAROZZI,
1999, p. 13). 382 É necessário notar que neste artigo ele menciona que o movimento que vai
se apresentando é alimentado por várias influências, e no quadro destas tendências surgem
desconfianças e opção por um ou outro centro irradiador. No entanto, as tendências não se
excluem uma das outras, o que há é uma interpenetração onde diferentes métodos são
agregados e combinados, com a finalidade de atingir um estado generalizado do “melhor
momento da vida”.
Este trecho do artigo aponta para uma certa desconfiança em relação ao carisma e a
legitimidade das experiências de Thimothy Leary, que incentivava os jovens americanos a
transformarem suas vidas promovendo o slogan: “Turn on, tune in and drop out” 383 . Este
teórico do movimento é considerado um dos gurus do movimento hippie. Segundo
Gonçalves “Leary, um sujeito fora do comum, organizava grupos e servia um coquetel de
LSD com religiosidade oriental”. 384 Leary era membro do Departamento de Psicologia da
Universidade de Harvard e vai experimentar drogas (LSD e mescalina) com seus alunos,
com o objetivo de explorar o potencial criativo da mente. Ele irá influenciar milhares de
jovens (hippies) que passam a buscar formas alternativas de expansão da capacidade da
mente.
As experiências de Leary foram incorporadas por Esalem, centro que surgiu nos
anos 196, na Califórnia, e que teve um papel importante de divulgação das novas
tendências, como, por exemplo, o movimento relacionado com o “desenvolvimento do
potencial humano”. Foi deste centro que saiu Carlos Castañeda, conhecido nos anos 1970
por seus livros, como, por exemplo, “A erva do diabo”, no qual narra suas experiências
com “curandeiros” mexicanos e drogas alucinógenas e, assim como Leary, acreditava que
as drogas eram uma chave para abrir a consciência humana. Leary também tem seu nome
associado ao Centro de Esalem.

382
Estes grupos de luz vão trabalhar para a vinda deste novo tempo e suas idéias vão ser importadas na década
de 60 pelos Estados Unidos e incorporadas ao Movimento do Potencial Humano. No Reino Unido, desde a
década de 1960, vai surgindo uma série de “grupos de Luz”, Findhorn entre eles, para discutir os escritos
proféticos e teosóficos sobre a chegada da Nova Era.
383
“Ligue-se, sintonize-se e caia fora”.
384
GONÇALVES, Marcos Augusto. Desbunde foi a alternativa à rigidez da esquerda. Folha de São Paulo.
Folha ilustrada. São Paulo. 21 de março. 2004.

257
Essa região dos EUA torna-se, desde a década de 1950, o cenário da geração
beat de São Francisco, quando Esalempassa a atrair boêmios e intelectuais da
Universidade da Califórnia, em Berkeley e em Santa Bárbara, ao redor dos
princípios básicos de suas experiências: a “ativação da força vital” e a
“celebração da grande unidade”. Ao redor de Esalem e outros centros do gênero,
vai se constituindo, assim, a origem do Human Potencial Movement. Esse
movimento é uma convergência da comunidade metafísica do oculto com a
cultura da droga e experiências míticas e psíquicas, bem como a interação da
psicologia humanista, (...) para promover a “revolução pessoal” e alcançar um
nível de consciência intensificada, através de experiências com drogas, sexo e
arte (...). (AMARAL, 2000, p. 25)

O movimento do Potencial Humano deixa seu registro na Nova Era. Este se


caracteriza por uma confiança absoluta na condição humana, no potencial da mente e nas
possibilidades de auto-realização do ser humano. O homem deve percorrer o subconsciente
com a finalidade de lá encontrar uma dimensão mítica. Segundo a perspectiva do
Movimento do Potencial Humano, o “inconsciente coletivo” é como um armazém comum e
plural das experiências humanas. Para este grupo ou perspectiva, esse seria o grande
patrimônio da humanidade. “Tudo o que o homem e a mulher têm de fazer para sua auto-
realização é explorar esse capital infinito de possibilidades, ativá-lo, colocá-lo para
funcionar. É preciso liberar as energias e potencialidades espirituais do ‘inconsciente
coletivo’” (DIEZ, 1997, p. 15).
A partir do que já foi colocado, podemos afirmar que a coluna Underground,
publicada pelo o Pasquim, inspirada pela contracultura, pela crença no advento da Era de
Aquário e do curso de uma conspiração, colocou em circulação idéias e princípios ligados a
uma mudança de percepção ou mudança de paradigma. Assim, tendo a concluir que a
perspectiva que se descortina nos textos de Maciel é o questionamento do establishment
num processo que vai de dentro para fora e evidencia que a contracultura no Brasil estava
sincronizada com o movimento mundial. Esta coluna abastecia seus leitores com
informações e perspectivas apresentadas pelo movimento a nível mundial.
Enfim, a ebulição cultural que eclodiu nos anos 1960 teve um papel significativo no
processo de germinação de princípios hoje associados à nova consciência religiosa e a
formação de suas redes. E como tivemos oportunidade de observar, a coluna de Maciel
fomentou a divulgação de temas ligados a uma mudança de percepção a milhares de
leitores. Ele resume muito bem seu papel ao indicar que:

258
Enquanto o José Celso tinha o seu grupo de “loucos”, com o qual fazia o teatro
contracultural, eu escrevia no Pasquim a coluna “underground” e me tornava –
dizem – guru de uma certa geração. Havia um desejo (ou impulso) de
modificação que ultrapassava o da sociedade; muitos se achavam neuróticos e
infelizes e queriam se modificar. Minha coluna “Underground” dizia: viva como
quiser, seja seu próprio líder, ninguém tem de se submeter a lei alguma, nem
moral nem social! Nessa época me tornei uma espécie de pára-raios de maluco.
Muita gente me escrevia pedindo conselhos. É bem verdade que houve também
quem quisesse me dar um tiro, como o pai de um artista que teria se perdido na
vida graças aos “ensinamentos” da minha coluna. (MACIEL, 1996, p 182).

A coluna Underground vai apresentar aos leitores uma postura aberta a várias
experimentações que, naquele contexto, expressavam a necessidade da juventude de mudar
os padrões de comportamento. O núcleo do sentido das propostas dessa cultura estava na
liberdade de experimentar e combinar vários processos perceptivos, numa adesão à
transgressão como valor. Isto promove e estimula as mais diversas experiências a partir de
combinações sexuais, alucinógenas, estéticas e espirituais, revelando um contexto propício
a hibridizações. As implicações mais amplas disso estão relacionadas ao fato de que a
contracultura e suas repercussões no mundo, anunciadas aqui no Brasil pela coluna
Underground, constituiu a pedra de toque para que mudanças ocorressem. As perspectivas
anunciadas pela contracultura foram traduzidas e geraram novos regimes de enunciação,
presentes em todos os níveis da sociedade atual.
A proposta de sociedade colocada pela contracultura foi assimilada de modos
diversos, desviando, desdobrando o projeto ou evento original em decorrência da
autonomia que está cultura inventada adquire, mas que produz mudanças.
Para os contraculturalistas o sistema absorveu a contracultura e “aniquilou o sonho”.
No entanto, na dinâmica da construção do social, há um domínio nesse processo que não é
controlado. Assim, a contracultura não foi assimilada do modo que os seus adeptos
desejavam, mas certamente houve tradução com desdobramento que podem ser percebidos
na mudança ocorrida nos padrões de comportamento, percepções gerando novas
sensibilidades como a nova consciência religiosa. O centro vital da contracultura foi a
expansão da consciência e isso foi processado, criando realidades que são visíveis em nossa
sociedade de diversas formas: moral, educação, religião, entre outros.
A perspectiva inaugurada e colocada em ação pela contracultura foi organizada a
partir da mescla, do híbrido. Este é um componente claramente constitutivo da

259
contracultura que construiu a realidade social conectando domínios inusitados que vão
produzir mudanças que, por sua, vez criam vínculos sociais. Passada a efervescência do
movimento e o impacto do seu caráter transgressor é preciso considerar que seu suposto
“fracasso” não elimina a percepção de que novas mediações foram construídas. Foi
necessário que o capital ideacional do movimento perdesse o caráter de “coisa construída”,
“forjada”, já que os modernos tem a “(...) proibição de apreender como se passa da ação
humana que fabrica as entidades autônomas que ali se formam, que ali se revelam (...)
(LATOUR, 2002, p. 101).”
Aquilo que foi fabricado passa a adquirir uma autonomia não controlável por
sujeitos (numa concepção moderna). As mudanças mobilizam controvérsias que colocam
novos seres em relação e até que as novas conexões sejam assimiladas, as inovações não
podem ser realizadas sem riscos. Assim, a contracultura é um momento de transição. As
experiências aí elaboradas apontaram para uma transformação caracterizada
fundamentalmente no campo da ética.
A revisão ética ou dos valores morais é a base da experiência daquela geração. A
partir disso, outras mudanças foram empreendidas em outros terrenos: política, cultura e a
religião, que acabou sendo o final de todo o processo, pois tratou de apresentar uma “nova”
relação com o todo, com a divindade, com o ser. A revisão nas posturas religiosas em
direção a uma “nova consciência religiosa” vai, no decorrer dos anos 1970, consolidar-se
como visões, percepções, sensibilidades no plano íntimo e no espaço privado. Esse
processo não se realiza mais em grandes manifestações públicas, ou noticiado por uma
coluna de jornal, ou ainda vivendo em comunas. A nova visão vai se aflorando no decorrer
da década de 1970 a partir de uma experiência existencial que envolvia a vida, o corpo, a
sensibilidade, todos os sentidos do individuo, de uma maneira mais intensa e plena à
medida que a ênfase contestatória foi se diluindo.
As tendências ligadas à Nova Era têm sua “gênese” associada ao movimento da
contracultura. No Brasil, a Nova Era tem um passado ou origem marginal, na medida em
que aqui a cultura alternativa, além de transgressora, experimental, era percebida pelos
movimentos políticos de direita, ora como um perigo subversivo, ora como algo que fugia
da compreensão dos padrões impostos por esse segmento e como ameaça alienante pela
esquerda tradicional. Alheia a estes embates, ela vai se configurando como uma alternativa

260
para segmentos que não se identificavam com nenhuma destas visões. A contracultura vai
se tornar uma “criatura sedutora na medida em que propaga que a liberdade da consciência
é fonte de todo poder revolucionário. Como no resto do mundo, no Brasil, o centro vital da
contracultura foi a expansão da consciência, livrando-a dos condicionamentos, ao
romperem, através do seu experimentalismo a consciência normal e esse procedimento
gerou espaços gerados para a emergência de uma “nova consciência religiosa”.
Realizou-se no ISER (Instituto de Estudos da Religião), nos anos de 1988/89, um
amplo estudo intitulado “Nova Consciência Religiosa” que tinha como objetivo perceber o
sentido das novas experiências religiosas nos dias de hoje. Segundo Luís Eduardo Soares:

Há (...) uma insatisfação com as experiências religiosas vividas na infância e na


adolescência, por força de pressões, estímulos ou identificações familiares. Por
outro lado, o afastamento de antigos vínculos não significa necessariamente a
extinção da curiosidade ou inclinação religiosas. Além disso, a insatisfação é
extensiva às “crenças” que se apresentaram em momentos determinados das
trajetórias individuais, como alternativas à religião. Um componente importante
foi o relativo êxito da transição democrática, responsável por um certo alívio de
tensões acumuladas ao longo das duas últimas décadas, concentradas no ponto –
chave de estrangulamento da sociedade brasileira, inclusive ao nível de suas
auto-imagens: o gargalo da repressão político-cultural. Temores, ressentimentos,
ansiedades, paixões e esperanças puderam se deslocar mais facilmente e
encontrar novos temas, novas áreas de focalização, outros horizontes de
significação. A liberdade institucionalizada converteu a política em apenas mais
um espaço de realização (...) (SOARES, 1989, p.121).

Soares percebe a abertura política dos anos 1980 como um componente importante
para a configuração da “nova consciência religiosa” no Brasil. Com o fim da repressão
político-cultural, os indivíduos da sociedade brasileira puderam focar seus interesses em
outros temas, principalmente os culturais. É nesse período que se percebe uma crescente
visibilidade das práticas associadas à chamada Nova Era. O campo cultural vai
amadurecendo na medida em que ocorre o convívio democrático e elaboração e
organização crítica de valores, tende a incentivar as experimentações mais surpreendentes
(SOARES, 1989, p. 123). 385
O deslocamento para o campo cultural foi potencializado pela abertura política
iniciada na década de 1980, no entanto, como foi indicado neste trabalho, desde o período

385
Segundo Soares a falta de uma tradição liberal tornava a construção democrática algo, percebido naquele
contexto, como precário e instável (SOARES, 1989, p.122-123).

261
da contracultura já havia um deslocamento bastante acentuado do foco da política para
questões existenciais.
Foi o deslocamento de interesses políticos, iniciado pelas manifestações
contraculturais ou marginais, para temas vinculados às questões existenciais e culturais que
abriu espaço para a elaboração e busca de sentido em uma experiência religiosa não-
convencional, abarcando a experimentação como a característica central. Há, a partir desse
momento, uma ascendente relativização e subjetivação das crenças religiosas, o que vai
possibilitar a emergência de novas formas de experiência religiosa. Esta experimentação
promove o cruzamento entre os pontos de vistas ético, cultural, religioso.
Há, portanto, um complexo ambiente de recomposição do sagrado que serve de
orientação das práticas sociais dos indivíduos. Foi essa recomposição da crença que “abriu
caminho” para a visibilidade na Nova Era, sendo essa espiritualidade parte desse processo.

262
CONCLUSÃO

A Nova Era se torna impermeável a uma caracterização ortodoxa e apresenta uma


subversão no que diz respeito ao que tradicionalmente é definido como a “experiência do
sagrado”. A forma com que essa espiritualidade é vivenciada possibilita o entrecruzamento
de domínios que, numa perspectiva moderna, são tidos como separados: sagrados e
profanos. O “sagrado” nas experiências do tipo Nova Era encontra-se em constante
movimento, constituindo um “sincretismo em movimento” (AMARAL, 2000). Seu perfil é
eclético, as experiências são efêmeras. Também não há uma constituição de corpo
doutrinário a ser assegurado, não se organizam em igrejas já que seus grupos se articulam
através de redes. Sendo assim, a Nova Era, como indica Amaral (2000) torna-se um
“espírito sem lar”.
A Nova Era e as práticas identificadas com ela estão em ascendência e, como já
vimos, perderam seu caráter transgressor: “o alternativo facilmente aparece colado ao
cidadão convencional, preocupado com a moralidade civil crítica” (SOARES, 1989:124).
Assim, hoje a Nova Era é um fenômeno visível e com muitos perfis. No entanto, nos anos
60 o que estava em voga era a entrada no signo de Aquário que daria início a uma nova era.
Sob este signo, acredita-se que a humanidade estaria indo ao encontro da “verdadeira
libertação do espírito” (FERGUSON: 1995). De alguma forma tal “previsão” está sendo
cumprida nos dias de hoje.
A este respeito, Otávio Velho em sua apresentação do livro de Amaral (2000),
indica que “num certo sentido ousaria dizer que, crescentemente, a “Nova Era” somos nós
todos. Sutilmente, sua influência se faz sentir, em graus variados, nos hábitos, costumes e
crenças, seja no interior das instituições religiosas, nos establishments científicos, nas
grandes corporações” (apud AMARAL, 2000, p. 07). Ele também aponta que as pesquisas
e análises sobre os grupos “Nova Era” são importantes não só por seu valor intrínseco, mas
pela penetração e abrangência de sua cultura na atualidade em várias instituições e

263
segmentos sociais. Isso pode ser entendido como algo que caracterizaria o espírito de um
“novo tempo”. Um tempo que recorre a aspectos de um passado que a modernidade
acreditava ter suplantado. Mas que, simultaneamente antecipa novos padrões de
relacionamento. “O tempo transcorrido desde os anos 60 já permite que retrospectivamente
possamos nos surpreender com o grau de incorporação de novos padrões, que então
pareciam restritos a pequenos grupos que hoje talvez possamos considerar proféticos”
(apud AMARAL, 2000, p. 07).
As profecias de grupos dos anos de 1960 relacionam-se com a perspectiva de que a
partir da contracultura há um processo de elaboração de novas conexões. A subversão
promovida pela contracultura formulou um “estilo” que se constrói abertamente através das
mediações. As mediações realizadas pelos contraculturalistas são percebidas naquele
contexto como transgressoras, mas através da autonomia que estas construções adquirem,
elas vão passar a produzir novas percepções, criando novos vínculos sociais. Assim, no
encadeamento das associações realizadas a partir da contracultura há a elaboração de um
universo religioso ou “nova consciência religiosa” que hoje é conhecida como Nova Era.
O movimento Nova Era reflete o espírito de um “novo tempo” na medida em que
seu estilo de “intensa elaboração experimental manifesta, de forma aguda, a porosidade
entre os domínios da vida social tidos como separados: a religião, a terapêutica, o
consumo” (TAVARES, 2007, p. 01). A especificidade dessas novas experimentações
religiosas são reflexos de uma “característica da tendência mais ampla, apontada por
Latour, de proliferação dos híbridos na contemporaneidade” (TAVARES, 2010, p. 101).
A Nova Era não oculta seus hibridismos, pois só se realiza e adquire sentido através
do intenso processo de experimentação, colocando em ação os híbridos que passam a
produzir vínculos no interior de suas redes. Isso se apresenta como um sinal de que o
discurso da modernidade, embasado na distinção dos domínios, vem perdendo sua força na
medida em que presenciamos, já há algum tempo, situações que só podem ser elucidadas a
partir da aceitação do híbrido ou da proliferação dos fe(i)tiches.
Os “híbridos” na Constituição Moderna são renegados e “esquecidos” na medida em
que mantemos o discurso da distinção dos domínios. Latour indica que é uma ilusão achar
que há uma separação entre o domínio da natureza (inato) e o domínio da política (ação
humana) (2004a, p. 397). Este autor trabalha com a perspectiva de que, embora a

264
modernidade continue negando os híbridos, o que ocorre é a sua “proliferação” e, assim
como as sociedades pré-modernas, também elaboramos os nossos fe(i)tiche(s). Assim,
identifico a contracultura como um momento de intensa produção de fe(i)tiches que vão
perder seu caráter transgressor ao sofrerem o processo de tradução. Entre os vários
encadeamentos advindos da contracultura há a conformação de práticas englobadas sob a
denominação de Nova Era, que por sua vez vão processar hibridismos sem qualquer
constrangimento ao desmascarar a ilusão de uma separação radical dos domínios.
Embora alguns dos temas levantados pela contracultura não terem sido uma
novidade apresentada naquele contexto, foi a partir dele que começou a se articular com
mais visibilidade o que hoje se conhece como “nova consciência religiosa”. Os elementos
associados à contracultura foram, até o inicio da década de 1980, relegados a um domínio
“alternativo”, mas hoje já não estamos propriamente diante de atividades à margem da
sociedade e o termo acabou por perder seu significado original, sendo aplicado com mais
propriedade para definir um conjunto de práticas e atividades.
O termo alternativo surge como referência a propostas que pregavam uma nova
visão de mundo e adquire certa visibilidade através das práticas contraculturais. Isso foi
possível na medida em que nos anos 60 do século passado houve uma forte tendência à
aceitação de idéias vanguardistas. Nessa época observa-se a proliferação de idéias que
adquirem visibilidade e assimilação de um modo nunca visto. As idéias vanguardistas
saltam dos círculos intelectualizados e influenciam também o grande público e “muitas
vezes chegam, literalmente, às ruas. Graças, em parte, aos meios de comunicação de massa,
movimentos de contestação despontam quase simultaneamente em diferentes países
ocidentais” (SALEM, 1991: 63).
Hoje sabemos que as visões de mundo, práticas e vivências “alternativas” vão
conquistando seu espaço e tornaram-se referências importantes na elaboração de novas
matrizes culturais, conformando, assim, estilos de vida “adequados” aos centros urbanos
contemporâneos. Além deste tipo de vivência religiosa representar uma opção considerável
para vários segmentos, também é fato que nos tornamos cada vez mais, de certo modo
Nova Era. Assim, “(...) crescentemente, “Nova Era” somos nós todos (...)” (apud
AMARAL, 2000, p. 07).

265
A agitação cultural e política característica da contracultura tem um significado
mais amplo que extrapola sua compreensão enquanto crise religiosa. Considerando a
argumentação deste trabalho, parece-me que as agitações produzidas no contexto dos anos
de 1960 podem ser melhor compreendidas relacionando-as à questão da “proliferação dos
híbridos”. Há uma intensa elaboração de experiências manifestada por uma cultura jovem a
partir do espírito libertário que se “impõe” naquele contexto. As construções elaboradas
pela “rebeldia jovem” adquirem liberdade que, mais cedo ou mais tarde, dão o seu tom e
passam promover mudanças que serão coletivizadas.
No contexto norte-americano, o desdobramento da contracultura foi mais influente
no questionamento da religião tradicional. Nos Estados Unidos, as experimentações do tipo
Nova Era tornaram-se algo visível já na década de 1970, apresentando-se como uma
possibilidade de vivência religiosa acolhida por indivíduos que consideravam a religião
tradicional esvaziada espiritualmente e contaminada pelo individualismo utilitário
(BELHAH, 1986). No entanto, visões, percepções contatos entre diferentes tradições e
experiências já vinham sendo acionados, por exemplo, em Esalem.
Ao percorrer as redes formadas a partir da contracultura, apresentei situações que se
imbricavam em vários contextos: rock, sexo, drogas, hippies e suas subversões. Estas
situações indicam que experiências acionadas na contracultura vão ser transgressoras, mas
também possibilitam novas conexões que adquirem autonomia e produzem mudanças.
A contracultura no mundo e sua versão no Brasil podem ser entendidas como
aspecto – ou mesmo reconhecimento – da alternância que existe em qualquer cultura. Ou
seja: me conduz a interpretar a contracultura no mundo e a cultura alternativa no Brasil ou a
nossa vanguarda existencial como uma forma de produzir novas coletivizações. Isso se
manifestou através das sugestões de que se procuravam maneiras diferentes para se fazer
um mesmo trabalho (musical, cinematográfico, literário etc) ou, ainda, da experimentação
de novas linguagens, que passaram apontar rumos diversos para uma prática moral,
educacional e religiosa, por exemplo.
Esses caminhos vão ser apontados em grande medida numa dimensão pública.
Através dos festivais, da musica acreditavam produzir vibrações capazes de empreender
uma transformação coletiva. Vão ser os poetas, artistas, músicos, jornalistas (entre outros),

266
que vão expressar em suas produções essas perspectivas, usando meios não convencionais
para um padrão pré-definido de cultura
A contracultura no Brasil não se apresenta como uma “crise religiosa de sentido” e
sim como uma proposta estética inovadora, como uma opção para a juventude que não se
identificavam com a cultura sob o eixo nacional popular e nem com o compromisso político
social da esquerda. Esta parcela da juventude estava mais preocupada em se desvencilhar
dos padrões de comportamento morais impostos pela família patriarcal que cerceava a
liberdade individual do jovem, impedindo-o de julgar o mundo e a vida. Não obstante, esta
vanguarda estética tem como bandeira a liberdade individual e a mudança de percepção,
aspectos que levam a uma crítica da religião tradicional. A vanguarda existencial não
deixou de indicar, em suas produções artísticas ou em posturas pessoais, uma sintonia com
o tipo de experiência religiosa proposta pela contracultura. Esta vanguarda existencial
expressou de formas diferentes uma crítica à visão tradicional de religião.
De forma geral, a cultura alternativa no Brasil estava identificada com o movimento
contracultural. Nesse sentido, a juventude brasileira assimilou esse movimento como um
meio de propor uma mudança estética, tendo também sido apropriada como uma via de
mudança ética e existencial. As várias manifestações no campo artístico e cultural, assim
como os canais utilizados apontam para questões ligadas à contracultura mobilizadas em
ação através de espaços públicos.
A cultura alternativa no Brasil causou escândalos e incompreensão, admiração e
inspiração, mas rompeu com um padrão de estética e dinamizou a liberalização dos
costumes, além de redefinir o campo da subjetividade. Há um desvio das questões
objetivadas na política para um enfoque que propagava a perspectiva de que não existe
transformação na sociedade sem que haja, primeiro, uma revolução interna. Isso vai abrir
espaços para a emergência de uma “nova consciência religiosa”.
Segundo Soares (1989), algumas questões que envolvem a emergência da “nova
consciência religiosa” estão vinculadas ao contexto de abertura política e de
redemocratização do país, possibilitando o deslocamento de temores, ressentimentos
ansiedades para outras áreas e temas. A liberdade institucionalizada teria convertido a
política em apenas uma opção dentre tantas outras. No entanto, as manifestações
contraculturais no Brasil apresentaram-se como um espaço onde esse deslocamento foi se

267
realizando. A revolução conceitual promovida no Brasil no final dos anos 60 do século
passado já indicava um desvio de questões políticas mais objetivadas para um interesse de
cunho existencial e subjetivo.
Com isso, pode-se sugerir que a cultura alternativa propiciou a emergência de uma
nova estética – no sentido de uma nova forma de socialidade - descentrando o político,
padrão dominante naquele contexto, para dimensões mais afeitas ao existencial e novas
apropriações do intersubjetivo. Para tanto, lançou-se mão de um intenso experimentalismo
provocando uma revolução conceitual e uma nova moral.
A contracultura no Brasil, em suas várias “facetas”, pode ser traduzida no estilo
droup out ou hippie “autêntico”, na formação de grupos que buscavam uma vida
comunitária, mas também na estética tropicalista, na liberdade sexual valorizada no teatro
de José Celso e nas preocupações existenciais que eram manifestadas nas produções
“udigrude”, ao deslocarem a discussão da política para questões subjetivas. Assim, a
contracultura pode ser percebida como algo que estimulou, no Brasil, novas moralidades –
liberalização dos costumes ou desregramento de comportamentos e para romper
definitivamente com o dilema dos artistas da época do populismo “arte popular engajada
versus esteticismo de vanguarda”.
As situações apresentadas no decorrer dos capítulos apontam um deslocamento nas
formas até então “legítimas” de construção de vínculos, expressos em comportamentos
tradicionais, e por uma preocupação centrada na política para um enfoque onde novas e
insuspeitas mediações ocupam um espaço privilegiado na conformação de outras
subjetividades. Nesse sentido, descortinam-se novos regimes de enunciação que passam a
ganhar legitimidade crescente. O sonho se tornou um híbrido e, como todos os híbridos, é
“dotado simultaneamente de objetividade e paixão” (LATOUR, 2004, 397).

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