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Capacitismo e racismo: uma abordagem interseccional no diagnóstico tardio


do autismo

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Vagner Rodrigues Priscila Jaeger Lucas


Universidade do Vale do Rio dos Sinos Universidade do Vale do Rio dos Sinos
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ANAIS DO VIII SIMPÓSIO INTERNACIONAL DESIGUALDADES, DIREITOS E POLÍTICAS PÚBLICAS:
NOVOS ATIVISMOS E PROTAGONISTAS NA REINVENÇÃO DA SOLIDARIEDADE SOCIAL
PORTO ALEGRE-RS – UNISINOS, 16 A 18 DE NOVEMBRO DE 2022

Capacitismo e racismo: uma abordagem interseccional


Vagner Rodrigues Garcia 1
Priscila Jaeger Lucas 2
Resumo: Caracterizado inicialmente como doença, os primeiros estudos de
observação dedicados e entender o autismo serviram de base para todo o
conhecimento acumulado ao longo dos anos. Tal material inicia um cenário que
desconsidera o autismo em pessoas negras ao não citá-lo, ou negligenciar o
diagnóstico. Isso se deve tanto ao racismo estrutural, que se ramifica em diferentes
âmbitos sociais, nesse caso na saúde, mas também a criação de estigmas a respeito do
negro. Além da situação material do povo negro, historicamente violentados e
socialmente estratificado, gerando precariedade de acesso a saúde, existe um processo
simbólico por trás. E como nos lembra Pinheiro (2014, p.123) “há certos tipos de
violências simbólicas que ocasionam mortes identitárias e históricas culturais
invisíveis, das quais quase nunca se falam (...)”. Esse processo gerado pelo
colonialismo e racismo científico pregava a noção de raça branca associada ao
desenvolvimento do intelecto, moralidade e civilidade, em contraste com a raça negra
associada a emotividade, primitivismo e natureza (Hall, 2016). No artigo buscaremos
desenvolver uma reflexão interseccional para pensar como o capacitismo e racismo se
cruzam, sendo resultado do mesmo processo histórico colonial, onde a construção
de saber a respeito do outro é definida por um grupo bem restrito de homens brancos
europeus. Mostrando que a dificuldade de diagnóstico de autismo em pessoas negras
tem uma base social, evidenciando que a relação entre essas categorias é pouco
debatida, e não é levada em conta. Essa reflexão também passa por uma crítica
epistemológica, pois demonstra a dificuldade desse padrão de ciência ocidental lidar
com a complexidade. Não levando em conta a realidade complexa que o racismo e
capacitismo requerem. Por isso a crítica da epistemologia eurocêntrica é
fundamental, pois, “A colonialidade do poder e a colonialidade do saber se
localizadas numa mesma matriz genética.” (LANDER, 2005 p. 84). Repensar formas
de compreensão do mundo, formas de produção de conhecimento sempre pressupõe

1
Mestrando em Ciências Sociais, UNISINOS - vagner85garcia@gmail.com
2
Mestranda em Ciências Sociais, UNISINOS - pjaegerlucas@gmail.com

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validar pontos de vista que até então ficaram de fora do centro de produção. Ou
olhar para outros aspectos do mesmo problema. Dessa forma traremos o tema de
capacitismo e racismo sobre um prisma interseccional, levando em conta a trajetória
dos autores enquanto uma mulher autista e um homem negro. Além de trazer a
vivência de autistas negros e suas dificuldades de diagnóstico, bem como seu processo
de construção de identidade na importância do entendimento enquanto sujeito de
direitos. Mesmo com o aumento das pesquisas do assunto em todas as áreas do
conhecimento, a estrutura que perpetua o racismo através dos séculos permanece
gerando um ciclo, a baixa prevalência dos estudos na academia científica deixa
lacunas importantes, a ausência dessa epistemologia é refletida no despreparo de
profissionais. Por essa razão, pretendemos contribuir para ampliação dessa discussão,
possibilitando novas olhares, bem como trazendo novos atores para centralidade do
debate.
Palavras-chave: capacitismo; racismo; interseccionalidade

INTRODUÇÃO

Este artigo busca investigar as intersecções dos estudos que tratam do


autismo, através do relato de vida de uma mulher adulta negra autista, as vivências e
percepções do mundo antes de receber o diagnóstico da condição, a influência do
racismo na busca por respostas, bem como seus desafios cotidianos. O trabalho utiliza
uma abordagem qualitativa biográfica, através do método de história de vida,
considerando as trajetórias e contribuições dos autores. Cabe ressaltar que os estudos
acadêmicos que buscam investigar o autismo em adultos são escassos no Brasil. E
nesse cenário as mulheres estão em posição de subdiagnóstico, tendo em vista a
dificuldade de identificação do autismo em mulheres, resultante em grande parte
pelo estereótipo do autismo ocorrer mais em meninos. Adicionar o elemento raça
como um intersecção torna ainda mais complexo o desafio, devido ao processo de
vulnerabilidade legado à população negra, bem como ao racismo institucional na
saúde.
Apesar dos autistas teoricamente terem uma chance maior de diagnóstico em
nosso país (por que SUS), o processo é longo e dispendioso. O sistema de saúde não

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está preparado para atender a demanda e as projeções são que grande parte dos
autistas no Brasil não possuem diagnóstico, adiante a dificuldade do processo do
diagnóstico será melhor explicada. Mesmo que reconheçamos os mecanismos
capacitistas que sustentam essa ignorância profissional, quando se trata da
neurodiversidade, seria necessário dedicar um trabalho exclusivamente a esse tema,
que não é o intuito deste artigo.
Alguns estudos sobre a dificuldade de diagnóstico trazem pontos importantes
na discussão. Segundo SILVA (2022):
A idade em que o TEA é diagnosticado varia com a combinação de capacidade
intelectual, comprometimento cognitivo e gravidade dos sintomas do autismo.
Crianças identificadas como tendo deficiência intelectual moderada a grave ou que
foram diagnosticadas com um distúrbio congênito podem ser diagnosticadas com
autismo aos dois anos de idade. Independentemente da inteligência, as crianças que
exibem dificuldades claras e prejudiciais associadas ao TEA, incluindo adesão a rotinas
complexas ou rígidas, resistência à mudança e fortes interesses ou aversões sensoriais,
geralmente levantam preocupações com os pais, que podem discutir essas preocupações
com os profissionais do primeiro ano. No entanto, em comparação com pais de
crianças com dificuldades de aprendizagem ou atrasos de desenvolvimento que não
foram diagnosticados com TEA, pais de crianças com TEA podem ser inicialmente
atendidos com respostas tranquilizadoras e menos proativas.

Durante a escuta do relato de vida de Regina, pôde se perceber que as


dificuldades já encaradas na busca por diagnóstico aliam-se a questão de gênero raça
e classe, esses aspectos reunidos formam obstáculos intransponíveis que impediram
o diagnóstico precoce de Regina influenciando sua formação, bem como sua visão
de mundo e a visão de si mesma.
Tratar da manifestação das características do autismo em mulheres por si só
demanda ampliar o olhar para além do estereótipo dos primeiros estudos, a dinâmica
de meninos e meninas na interação com o mundo exterior é distinta e por isso a
condição se manifesta de forma diferenciada. Por esse motivo, hoje cita-se do termo
espectro, a individualidade dos organismos por si só determina que nenhum autista
será igual a outro, das diversas razões que dificultam esse acesso, as relatadas acima
são as de maior evidência no cenário atual. (VASCONCELLOS, 2022)
Sem o diagnóstico, as mulheres autistas ao longo da vida tendem a utilizar
uma camuflagem em ambientes sociais, uma reprodução dos comportamentos

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neurotípicos que visa garantir a sobrevivência no meio, esse comportamento também


tem influência na busca por diagnóstico, gerando um obstáculo na percepção dos
profissionais pois muitas mulheres já utilizam esse mecanismo de forma automática.
Em março de 2022 o Viva Bem fez uma reportagem sobre as consequências
do diagnóstico tardio em mulheres autistas, nessa reportagem através do relato de
vida de uma ativista são explorados os tópicos relacionados a dificuldade de
diagnóstico e a consequência da falta do diagnóstico para a saúde mental da mulher,
tal relato se assemelha ao deste artigo pois ressalta que desconhecer o autismo
influencia todos os aspectos que envolvem a vida diária da mulher, tanto no meio
social quanto a percepção que a mulher autista forma de si ao aliar seu valor pessoal
a essa inadequação ao meio. (VIVA BEM, 2022)
Aliando as dificuldades já ressaltadas a questão torna se então discutir a
intersecção do racismo com as dificuldades anteriores, este como um fenômeno social
complexo também vai se manifestar na saúde pública, e consequentemente nos
diagnósticos e atendimentos recebidos pela população negra, ou a falta destes. Como
sabemos a medicina é uma área extremamente racializada, isso inclusive nas
universidades, como demonstra Fredrich et al. (2022), além da pouca formação
docente para pensar o racismo de forma crítica, nos serviços de saúde, estereótipos
associados à população negra ocasionam pior atendimento e até negação de direitos.

NOTAS DO PROCESSO HISTÓRICO RACISMO

O racismo pode ser compreendido a partir de dois argumentos diferentes que


o sustentaram historicamente, o racismo biológico e o racismo cultural
(SCHUCMAN, 2020), essas são as principais formas que justificam a divisão por
raça. O racismo biológico busca sustentar os argumentos que justificam hierarquias
sociais a partir de noções físicas herdadas, ou seja, cor da pele, cabelo, nariz. E o
racismo cultural está ligado a uma ideia essencialista de cultura que considera inferior
as religiões, costumes e os modos de vida da população negra. Porém esses dois
âmbitos do racismo se relacionam, pois mesmo a noção de cultura superior está ligada
a uma ideia de hierarquias e evolução. Segundo Lander (2005) essa lógica de
classificação, hierarquização e linearidade expressa a eficácia do pensamento
científico moderno. Por isso que ao falarmos de raça como um produto da

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modernidade, consideramos o colonialismo com a colonialidade do saber, a


colonialidade do poder e a colonialidade do ser como três componentes
fundamentais (TORRES, 2018).
A partir daí podemos compreender como se constrói a noção de raça branca
e o desenvolvimento do intelecto, instituições desenvolvidas e civilidade, em
contraste com a raça negra associada a emotividade, primitivismo e natureza (Hall,
2016). Além da escravidão, o darwinismo social, uma pseudociência com base no
determinismo racial, que se projetou inclusive no direito (SCHWARTZ, 2011),
serviu também como instrumento de classificação e hierarquização de grupos
humanos. A raça se tornaria um elemento decisivo para o direito positivo, que via no
fenótipo e nas características físicas dos indivíduos traços de “predisposição pessoal
ao delito”. Esse processo gerou várias explicações enviesadas sobre a relação entre raça
e criminalidade, contribuindo para o encarceramento em massa da população negra
e justificando a violência praticada pelo Estado. O racismo também se projetou na
saúde, tendo a medicina um papel importante na disseminação do racismo,
validando as teorias eugenistas do séc XIX. Além da atribuição de diferenças
cognitivas a fatores fenótipos e culturais, a medicina, se tratando de um espaço
privilegiado de formação e produção de saber, tornou- se um elemento essencial na
manutenção do racismo, evidenciadas até hoje em dados referentes à saúde da
população negra Fredrich et al. (2022). Porém não é apenas no sentido de violência
física que se manifesta o racismo, pois o corpo negro foi historicamente violentado
não apenas fisicamente, mas simbolicamente como nos lembra Pinheiro (2014,
p.123) “há certos tipos de violências simbólicas que ocasionam mortes identitárias e
históricas culturais invisíveis, das quais quase nunca se falam (...)”.
Por isso a construção da identidade negra deve ser refletida e pensada a partir
de análise histórica e crítica, considerando que as identidades são construídas em um
contexto, vinculadas a condições sociais e materiais. Sendo assim, reconhecer a sua
negritude é entender como se deu esse sistema de produção da diferença, bem como
as relações de poder que ainda o sustentam. Compreendemos a noção de Souza
(1983), ao conceber o tornar-se negro como um ato de tomada de consciência desse
processo ideológico que engendra uma estrutura de desconhecimento e uma imagem
alienada de si.

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CAPACITISMO

Goffman (1953) relata em seu livro “Estigma: Notas sobre a Manipulação de


uma Identidade Deteriorada” toda a estrutura que envolve a interação entre a
sociedade e a diferença do padrão tido como correto e as reações do meio externo à
diferença. Por toda a história existem relatos da sub humanização das pessoas que
possuíam alguma característica que as distinguia de seu meio, apesar dos avanços
significativos no campo dos direitos humanos, esse mesmo padrão se repete
atualmente. Na busca a referência de auxílio para conceituar o capacitismo é possível
perceber que a maioria dos sites que aparecem na primeira frase resumem essa forma
de preconceito a: discriminação a pessoas com deficiência. Tal definição tem um tom
simplista, não abrangendo a extensão do comportamento que segrega o indivíduo
atípico. Apesar da facilidade da difusão da informação, proporcionada pela
tecnologia, ainda existe a necessidade de que tais conceitos sejam ensinados ao grande
público através de uma linguagem acessível. Compreendendo todas as formas de
manifestação social que é danosa a pessoa com deficiência, e quais as normativas que
a protegem. O conceito do termo retirado do site da academia brasileira de letras traz
associado a definição do capacitismo a uma explicação prática desse fenômeno:
“Cunhado ainda em 1991, nos Estados Unidos, o termo capacitismo (ableism, em
inglês) pode ser definido como ‘preconceito contra pessoas com deficiência’. Esta é
uma atualização que faço aqui da descrição publicada pelo U.S. News & World Report,
de acordo com o Online Etimology Dictionary. Trata-se de uma estrutura de poder
socialmente construída, o equivalente ao racismo ou machismo, nas questões
relacionadas a raça e gênero. O corpo sem deficiência seria considerado o ‘normal’, ou
seja, aquele condizente com a norma social, enquanto o corpo com deficiência seria o
desviante, a ser corrigido. Essa noção de normalidade tem sua origem no paradigma
moderno colonial do mundo, e a partir de uma análise interseccional podemos ter uma
compreensão mais sofisticada das desigualdades, que vão além da questão de classe, por
exemplo.”

A maior parte dos estudos que tratam dos tópicos citados neste estudo
dedicam-se a pesquisar os tópicos individualmente o que cria uma lacuna temática
que acaba invizibilizando vivências e por consequência impedindo a real evolução na
construção do conhecimento científico, por isso a intersecção é de vital importância

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para que tais tópicos sejam abordados trazendo a tona novas dimensões temáticas e
possibilidade de estudos futuros. Nesse contexto (COLLINS, pg 76, 2020) diz que,
Uma análise interseccional revela não apenas como a violência é entendida e praticada
dentro de sistemas fechados de poder, mas também como constitui um fio comum que
liga racismo, colonialismo, heteropatriarcado, nacionalismo e capacitismo.

Quando Almeida (2019, p. 54) menciona que os regimes racistas “não


poderiam existir sem a participação do Estado e de outras instituições como escolas,
igrejas e meios de comunicação”, podemos pensar que o capacitismo também não.
Por isso a importância de pensar de forma interseccional essas violências e a sua
relação com um modelo de normalização social. Apesar de alguns avanços, hoje ainda
persiste a noção da deficiência acompanhada de colocações que indicam uma visão
angelical da pessoa e de infantilização. Não mais como não humano, mas como o ser
inocente, lembrando até mesmo a noção de “bom selvagem” disseminada no
colonialismo a respeito dos povos originários. Ao contrário dessa concepção, nós
entendemos que a diversidade humana, seja racial, de gênero, sexualidade ou de
características corporais, psicológicas, etc., deve ser celebrada. É por meio dessas
diferenças que somos capazes de construir trajetórias únicas e aprender uns com os
outros. A convivência com a pluralidade é essencial para o desenvolvimento de
criatividade, inovação, diálogo e empatia, como aponta Mendes (2021), essas são
competências notoriamente imprescindíveis para que saibamos navegar pela
profunda complexidade inerente à vida contemporânea. Ignorar isso, segundo o
autor, pode representar “perder o bonde” da jornada rumo a uma sociedade mais
justa e civilizada.
Tratando da dimensão do capacitismo, que é tratado pelo senso comum
como os atos objetivos, porém no dia a dia da pessoa atípica ele se apresenta através
de um conjunto de pequenos atos que constroem um cenário de sub-humanização e
através do estigma, a pessoa com deficiência é afastada do meio social e
arbitriaramente classificada como incapaz de estar em sociedade. No relato de vida
de Regina, no próximo capítulo, é possível perceber que ao longo da infância até a
vida adulta os atos de preconceito definiram toda a sua vida, tanto social quanto
pessoal, por não saber do diagnóstico do autismo, por um longo tempo ela não

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entendeu o motivo da reação do meio externo a sua presença e essa reação ditou a
percepção que ela tem do mundo e de si por toda a vida.

UMA HISTÓRIA PARA ACORDAR

Aqui vamos trazer a história de Regina, mulher negra que teve diagnóstico
de autismo aos 48 anos. O título deste capítulo faz referência a uma fala de Conceição
Evaristo, quando comenta sobre as escrevivências, contar as histórias não mais para
adormecer a Casa Grande, como tinham a função de fazer as pretas escravizadas, mas
para acordá-los dos seus sonhos injustos (EVARISTO, 2017). A autora coloca o
conceito como um mote de criação, justamente a vivência. Traremos aqui a vivência
de Regina e as nossas também, não apenas um apanhado de referências de homens
brancos, que afinal não compreendem nada da nossa realidade.
Relato: "Meu filho de 28 anos, hiperfoco em TEA, começou a estudar, ver vídeos sobre
funcionamento neurológico, como são diagnosticadas as pessoas com TEA... ele já
tinha diagnóstico de TDAH. Começou a observar a irmã e me chamou a atenção sobre
o comportamento dela”

Assim como muitos adultos que não tiveram o acesso ao diagnóstico, Regina
relata que o recebeu após a observação de seus filhos, aos 48 anos, se analisarmos a
idade de diagnóstico a partir de uma observação empírica este tem uma diferença
gritante com os diagnósticos de pessoas brancas. É importante entender o contexto
em que esse diagnóstico ocorreu, pois não foi um processo iniciado com um
profissional. A partir da identificação das características de comportamento da irmã
menor, o processo de busca por uma explicação foi iniciado, e ao longo do tempo
Regina e seus filhos receberam o diagnóstico.
Como mulher autista trago aqui um ponto importante: apesar das
semelhanças na vivência atípica trago aqui uma reflexão comparativa do meu
diagnóstico e do de Regina. Ao procurar um profissional de saúde a fim de entender
o que havia de “errado” comigo, a progressão natural das interações levou ao
diagnóstico do autismo, o privilégio da branquitude fez com que meu diagnóstico
acontecesse aos 24 anos a exata metade da idade em que Regina recebeu o
diagnóstico.

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Regina, através de seu relato, reflete sobre as primeiras interações com o meio
social. A experiência de uma vida de inadequação no espaço social então se tornou
uma reflexão que envolveu voltar a sua infância e observar seu desenvolvimento até
a vida adulta.
Relato: "Quando eu era criança sempre fui e me senti diferente. Não obstante me sentir
diferente como pessoa, estudava em uma escola com 100 alunos. E somente 3 negros,
eu era uma. Em meados de 70, o Black Power era completamente discriminado. E
vivia de cabelos presos em Maria Chiquinha, e tranças grossas. Sempre fui grande. A
maior da turma. Ou era a primeira da fila ou a última. Ser a última não me
incomodava, porque eu podia ver o que os/as colegas faziam e "espelhava". Geralmente
não dava certo."

Esse relato reflete uma realidade que persiste nas escolas particulares e centrais
brasileiras, onde os alunos negros são minoria, mesmo nas escolas públicas a evazão
escolar de alunos negros é maior. Outro aspecto importante aqui é a tentativa da
mulher negra se adaptar, ou se sentir parte do ambiente, mas logo ela descobre que é
diferente. Nós pretos e pretas tivemos essa experiência algum dia, e entendemos que
“o preto é diferente’’, e sabemos muito bem que essa diferença não é positiva.
Relato: “Tive problemas com ciências na 3ª série. Todas as meninas amavam o
professor. Mas ele olhava nos olhos e eu não gostava. Me reprovou por 3/10. Mamãe
foi ao conselho escolar e refiz a prova, que não foi passada por ele. Tirei 10”.

Quando falamos do racismo existente na escola não é apenas dos alunos e


colegas, ou mesmo do conteúdo dos livros didáticos, mas sim dos professores,
diretores e da gestão escolar como um todo. Por isso a importância de políticas de
ações afirmativas, pois não são poucos os relatos de racismo cometidos na escola,
inclusive por professores.
A estrutura racista e capacitista que Regina vivenciava a sub humaniza e
mesmo que subjetivamente ao longo do tempo, o sistema que estruturava as formas
com que o mundo a via, e como o meio interagia a presença dela, resultou em uma
associação dessas reações ao seu valor pessoal, ao longo do relato é possível perceber
que tanto o racismo quanto o capacitismo tiveram essa influência em sua vida.

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A violência de gênero e raça aparece muitas vezes no relato de Regina, mesmo


não entendendo a estrutura social e não ter a percepção do motivo de ser tratada de
forma diferenciada, relata que sofreu diversos abuso tanto psicológico quanto sexual:
Relato: Meu padrasto fez o típico abuso que não acreditamos que ainda existe:
Tu e tua mãe vão pra debaixo da ponte se eu deixar vocês. Ou você pensa que os
parentes dela vão aceitar uma neguinha na família?
Se eu deixar vocês, vocês além de não ter aonde ir, vão passar fome.
E perdi a inocência em termos de abusos sexuais com ele. Na minha cabeça, eu estava
"contribuindo" para que ele não nos deixasse. Para que minha mãe não passasse fome.
Para que ela parasse de se sacrificar.

Ao ler isso podemos pensar de forma sociológica em uma estrutura de


violência onde se interseccionam raça, gênero e deficiência, mas o primeiro
sentimento que vem é de total desconforto, nossa alma se despedaça e o peito se
expreme. Mas trazer isso como elemento de análise é essencial. e mais do que isso,
dar voz a quem sempre foi visto como inferior, não humano ou objeto de
conhecimento. Somos sujeitos e iremos acordar a Casa Grande, nem que seja aos
gritos.

INVALIDAÇÃO E VULNERABILIDADE

Quanto a vulnerabilidade da mulher com deficiência é preciso ressaltar que


existem três dimensões de vulnerabilidade que se destacam no relato de vida, a
questão de gênero, raça e deficiência e por isso é necessário que alguns aspectos dessa
vulnerabilidade sejam evidenciados e referenciados para a compreensão de sua
aplicação no presente artigo
A vulnerabilidade quanto se trata do gênero por si só já estabelece uma
posição de risco extremo para a mulher que nesse caso é associada a outros
fatores.Quando falamos da deficiência, a Convenção Internacional sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949/2009) dedica um artigo específico às
mulheres com deficiência, o que evidencia a compreensão da necessidade de ressaltar
a normativa que busca proteger a mulher atípica:

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Artigo 6 Mulheres com deficiência 1. Os Estados Partes reconhecem que as mulheres


e meninas com deficiência estão sujeitas a múltiplas formas de discriminação e,
portanto, tomarão medidas para assegurar às mulheres e meninas com deficiência o
pleno e igual exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais. 2.Os
Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar o pleno
desenvolvimento, o avanço e o empoderamento das mulheres, a fim de garantir-lhes o
exercício e o gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais estabelecidos na
presente Convenção.

Gurgel (2019) comenta esse artigo dizendo que:


A CDPD reconhece que as mulheres e as meninas com deficiência estão mais expostas
a riscos, no lar e fora dele, de sofrer violência, lesões ou abuso, descaso ou tratamento
negligente, maus-tratos ou exploração, e propõe incorporar a perspectiva de gênero aos
esforços para promover o pleno exercício dos direitos humanos e liberdades
fundamentais das pessoas com deficiência.

Nas seções anteriores a questão da vulnerabilidade relacionada ao racismo


ficou evidenciada, porém é importante citar aqui que ao final de seu relato, Regina,
espontaneamente concluiu dizendo que concedia permissão total para que seu relato
fosse utilizado. E caso alguém duvidasse era para enviar o contato dela para que o
relato fosse validado, essa fala evidenciou a questão da invalidação das vivências da
mulher negra, que busca ser ouvida e que sua experiência seja respeitada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho foi mais um esforço de mostrar as estruturas de opressão, de


pensar de forma interseccional e principalmente de propor uma epistemologia que
tenha sujeito, um sujeito atípico, que tem cor e gênero. Não basta reconhecer direitos
de forma jurídica, se na realidade alguns direitos não são possíveis para certos corpos.
Não levando em conta a realidade complexa que o racismo e o capacitismo requerem.
Por isso a crítica da epistemologia eurocêntrica deve estar presente compreendendo
como aponta Lander (2005 p. 84), “A colonialidade do poder e a colonialidade do
saber são localizadas numa mesma matriz genética”. Mesmo com o aumento das
pesquisas do assunto em todas as áreas do conhecimento, a estrutura que perpetua o
racismo através dos séculos permanece gerando um ciclo, a baixa prevalência dos

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estudos na academia científica deixa lacunas importantes, a ausência dessa


epistemologia é refletida também no despreparo de profissionais. Por essa razão,
pretendemos contribuir para ampliação dessa discussão, possibilitando novos
olhares, bem como trazendo novos atores para a centralidade do debate.

REFERÊNCIAS

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Capacitismo. Disponível em:


https://www.academia.org.br/nossa-lingua/nova-palavra/capacitismo#sdendnote1sym Acesso
em Novembro de 2022.

ALMEIDA, Sílvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.

BRASIL. Decreto nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os


Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York,
em 30 de março de 2007. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2009/decreto/d6949.htm.

COLLINS, Patricia Hill. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2020

EVARISTO, Conceição. Escritora Conceição Evaristo é convidada do Estação Plural: depoimento


[jun. 2017]. Entrevistadores: Ellen Oléria, Fernando Oliveira e Mel Gonçalves. TVBRASIL,
2017. YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Xn2gj1hGsoo. Acesso
em 29/ 11/ 2022.

FREDRICH, Vanessa C. R.; COELHO, Izabel C. M.; SANCHES, Leide C. Desvelando o


racismo na escola médica: experiência e enfrentamento do racismo pelos estudantes negros
na graduação em Medicina. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 20, 2022.
Disponível em:
https://www.scielo.br/j/tes/a/kZHZnSPXN7qxTLVjYXnc7HP/?format=pdf&lang=pt

GUGEL, Maria Aparecida. Mulher com deficiência – medidas adequadas para o seu
desenvolvimento, avanço e empoderamento. In: GUGEL, Maria Aparecida (org.). Diálogos
aprofundados sobre os direitos das pessoas com deficiência. São Paulo: RTM, 2019.

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