Fourier o Socialismo Do Prazer

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FOURIER.

O SOCIALISMO DO PRAZER
VIDA

Gaucel e de seu ex-patrão (em Lyon) Bousquet. Em 1826 assumiu um


posto na firma norte-americana Curtis &c Lamb, incumbindo-se da cor
experiência da organização de um núcleo antecipador das novas condi
ções de vida. Essa experiência demonstraria aos contemporâneos as van-
)
respondência da filialparisiense,que porém foi fechada um ano e pouco
tagens do novo modelo e, ao se multiplicar, promoveria a verdadeira
depois pela empresa. transformação da sociedade.
Aproveitava a execução da tarefa da redação de cartas comerciais
Em 1830, para divulgar o novo livro, Fourier lançou um folheto
para escrever também cartas pessoais. Escreveu a numerosas personali
intitulado "Anúncio do novo mundo industrial". Mais uma vez se de
dades, solicitando-lhes apoio financeiro para a experiência do falansté-
frontou com uma reação desfavorável. A revista católica Universel o
rio. Encaminhou apelos, por exemplo, ao duque de Devonshire, inglês,
estigmatizou como "materialista" e "bufão". EnaReme Française uma
ao milionário norte-americando Rufus King, ao presidente de Santo Do
resenha não assinada equiparou-o a Saint-Simon e a Robert Owen, in
mingo, Boyer,à viúvade lorde Byron, a príncipesrussos, a George Sand, sinuando quea única coisa que o distinguia dos outros dois erao "estilo
Chateaubriand e Simón Bolívar. Não obteve nenhuma resposta. grotesco" em que escrevia.
Levava uma vida frugal. Comia em restaurantes baratos e bebia vi
A resenha anônima da Revue Française foi a que mais aborreceu o
nho ordinário (sempre resmungando que estava sendo envenenado).
escritor, que detestou serposto nomesmo saco que OweneSaint-Simon.
Tomava uma xícara de café depois do jantar e gostava de jogar bilhar.
Fourier atribuiu a perfídia a François Guizot, influente historiador e
Permaneceu solteirão. Protegia cuidadosamente sua vida particular, sua político, que era colaborador regular da publicação. Sua raiva foi tão
intimidade; contudo, há razões para crer que teve algumas ligações amo grande que ele nem chegou a se alegrar muito com o primeiro comen
rosas. Emile Lehouck chega a indicar o nome de uma de suas prováveis tário favorável e bem fundamentado sobre o seu trabalho, que saiu no
namoradas, Louise Lacombe (Lehouck, 1978, p. 215). Mercam de France au XDíème Siècle, assinado por um novo discípulo:
Teve diversos endereços residenciais em Paris, todos próximo ao Victor Considérant.
Palais-Royal, que o deslumbrou desde a primeira vez em que esteve na Aconcorrência das "seitas" de Saint-Simon e Owen o preocupava
cidade, aos vinte anos de idade. Todas as suas habitações eram modestas. cada vez mais. Num primeiro momento tinha ficado bem impressionado
No último apartamento onde morou (e onde morreu) vivia cercado de com asiniciativas práticas de Owen na Inglaterra e chegou a seoferecer
plantas e gatos. Os vizinhos e a porteira do prédio simpatizavam com para assessorá-lo (o oferecimento foi delicadamente recusado).
ele, porém todos o achavam bizarro. O insuspeito Pellarin, que lhe de Depois de algumas conversas com saint-simonianos (Saint-Simon ti
dicava uma admiração imensa, informa que Fourier andava pela rua nha morrido em 1825), leu uns poucos textos publicados por eles, com
falando sozinho (Pellarin, 1843, p. 177). ^ pareceu a uma assembléia da "seita" e escreveu o panfleto Armadilhas e
Escrevia muito, todos os dias. Atendendo a insistentes pedidos de charlatanismo das seitas de Saint-Simon e Owen, publicado em 1831.
seus amigos, dedicou-sea preparar um resumo (abrégé) de sua doutrina. Alguns entre os saint-simonianos estavam organizados de forma
O resumo se transformou no livro O novo mundo industrial, que saiu coesa e centralizada, como uma "igreja", em torno daliderança dePros-
em 1829. Na realidade, não era um mero resumo, porque trazia uma per Enfantin; outros, porém, preservavam sua autonomia, sua reflexão
importante inovação no seu pensamento: preocupado com a definição crítica. E dois intelectuais saint-simonianos independentes publicaram
de um caminho prático para a transição à nova sociedade, Fourier in artigos nos quais divulgavam com simpatia as idéias de Fourier: Jules
veste suas energias intelectuais no planejamento de um "falanstério" Lechevalier e Abel Transon. O mestre nãoseentusiasmou, mas os discí
(palavra composta de "falange" e "monastério"), onde se realizaria a pulosficaram gratospelaajuda.

12
13
r-

'A Harmonia não homogeneizará, não pasteurizará os


prazeres, mas também não exacerbará artificialmente
seus aspectos mais contraditórios, e com isso criará uma
situação muito diferente daquela que existe na civilização.
Otempo do prazer se modificará, adequando-se a novas
potencialidades humanas. As formas do prazer se
diversificarão, se multiplicarão, através de uma expansão
das expressões mais sutis do desejo, que atualmente
são cerceadas pela pressão do produtivismo,
pela perseguição obsessiva da 'rentabilidade' e pelas
contingências civilizadas."
Este talvez seja um dos raros casos de
um livro que engrandece sua orelha!
específicos, mas que foi pioneiro em
Foi com esse sentimento que recebi o
vários aspectos do marxismo. Embora
gentil convite para escrevê-la, e é com
não fosse revolucionário do ponto de
essa certeza que me dirijo ao leitor, na
vista político, Fourier propunha
condição de aprendiz que fala do livro
rupturas de costumes, preconceitos e
de seu mestre e amigo. Sim, porque
valores do seu tempo. Como situá-lo,
Leandro Konder não precisa de
pergunta Leandro, no quadro das
apresentações. Filósofo tão conhecido
posições de esquerda de que dispomos
entre nós, pensador sem preconceitos,
hoje? Serão as atuais categorias
sempre fiel a leituras não dogmáticas de
satisfatórias para dele formular um
autores importantes, aberto a buscar o
juízo? Provavelmente não. Entretanto,
novo que ficara escondido em outras
esse excêntrico filósofo que é Fourier,
épocas e sempre disposto a conhecer
com posições questionáveis e uma
idéias de autores pouco valorizados.
teoria discutível, considerado louco por
Leandro rejuvenesce as idéias, ensina
alguns, pode — comsua vitalidade —
que o novo se alimenta do velho e que
suscitar modos mais criativos e
presente e futuro não prescindem de
bem-humorados de pensar a realidade
uma visão crítica do passado. E este
atual na sua ambigüidade e incoerência.
traço o leitor irá encontrar fortemente
também neste livro sobre Fourier. Todos aqueles que se atreveram um dia
— e ainda se atrevem — a sonhar com
Leandro, filósofo, escritor e ensaísta,
uma sociedade mais generosa e
não abre mão da sua tarefa de professor
solidária, onde justiça social e fim de
que faz mapas para nos aventurarmos
qualquer tipo de opressão possam
pela obra, freqüentá-la, descobrir
conviver com desejo, paixão e harmonia;
atalhos. Com este livro sobre Fourier,
todos os que se inquietam e teimam
o leitor pode conhecer a vida,
em questionar o mundo e em buscar
o pensamento e o legado desse bizarro
alternativas devida mais humanas,
pensador francês que tem muito a dizer
certamente encontrarão em Fourier, o
sobre os anseios, desejos, temores,
crenças e utopias do mundo
socialismo do prazer material para uma
profunda e instigante reflexão.
contemporâneo, esse "socialista utópico"
em quem socialismo e utopia eram tão Sônia Kramer

copo EvtlynGiumocli
•Imerocâo Nillon Kanulho
DO AUTOR

Marxismo ealienação, Rio deJaneiro, Civilização Brasileira 196S Leandro Kondie r


Kafka, vida eobra, São Paulo, Paz eTerra 1966
Os marxistaseaarte, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira 19fi*
Marx,v,da eobra. Rio de Janeiro, Paz eTerra, 1967
Introdução ao fascismo, Rio de Janeiro, Graal, 1977
r T"°ZaC'a e°S COmu""t"s no Brasil, Rio de Janeiro Graal 198n
hukács, Porro Alegre, L&PM, 1980. '
O*«* í dialética, São Paulo, Brasiliense, 1981
Barão de Uararé, ohumorista da democracia, São Paulo, Brasiliense,
O*$£«, nabatalhadasidéias, Rio deJaneiro, Nova Fronteira,
Aderrota da dialética, Rio de Janeiro, Campus, 1987.
WalterBen,amin, omarxismo da melancolia, Rio de Janeiro
Campus, 1988. '
Fourier,
Intelectuais qTC en[0UqUeCÍda> m°
wSÍ t raZí°brasileiros*marxismo, SãodeJandrp, Campus,
Paulo, Oficina 1989
de Uvros, o
0Mjorf«/ffoio/ffl <fe pnfcfc, São Paulo, Paz eTerra, 1992
Flora Iristan, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1994 ' do prazer
Bartolomeu, Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1995 '
AlotZ7TTn°»aSÍh
ApoexadeBrechteaHistória,Sã°RioPauJ°'
de Janeiro, Mode™-
EditoraZahar, 19961996

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA

Rio deJaneiro
1998
>
I

COPYRIGHT OLeandro Konder, 1998.


CAPA

Evelyn Grumach

PROJETO GRÁFICO
I EvelynGrumach
JoãodeSouza Leite
PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS
Luiz Cavalcanti de Menezes Guerra
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Imagem Virtual

SS£2t CATAL0GACÃ0.NA-F0NTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ.
Kcimler. Leandro, I93fi-
KK.Íf
FüurkT„socinlislm,lIopr.1Zer/LcaIldtoKonllcr-Ri„
tfc Janeiro: ClWItaçío Brasileira. 1998. dedico otrabalho ameu fílho cSo ' "*' "^"•** E
Inclui bibliografia
ISBN: K5-2(l()-()46fi^)

1lü?* CI,,lr,,I.Título.
CS- ,772~m7- 2. Socialismo.
* t-ilosolia francesa.
CDD —194
98-074!»
CDU-1(44)

mK,o Branco 99 /20o andar, 20040-004, Rio de Janeiro RI Brasil


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Caixa Postal 23.052, RJ0 deJaneiro, RJ, 20922-970
Impressono Brasil
1998
"O serhumano razoávelse adapta ao mundo
aele. Todo progresso, então, depende do ser
humano não razoável." ^"oser
GEORGE BERNARD SHAW
I «

Sumário

INTRODUÇÃO xi

Vida 1
1- FONTES 3

2. INFÂNCIA EJUVENTUDE 4
3.GÊNESE DA TEORIA 6
4- O PRIMEIRO LIVRO 7
5. DA PROVÍNCIA APARIS 9
6. AFALANGE EXPERIMENTAL 11
7.OS ÚLTIMOS ANOS 14

Pensamento 17
1•PENSAMENTO ELINGUAGEM 19
2.AATRAÇÃO PASSIONAL 21
3. ACIVILIZAÇÃO EAS MULHERES 23
4. PERIODIZAÇÃO DO MOVIMENTO SOQAL 27
5. ASPAIXÕES 29
6. O AMOR 31

7. EROTISMO EGASTROSOFIA 33
8.AS "SÉRIES" 35
9.0FALANSTÉRIO 36
10.AEDUCAÇÃO 38
11.AHARMONIA 41
12.APERSPECTIVA 44

ix
FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZEi

O legado 49
1. NOSÉCULO XIX SI introdução
2. NOSÉCULO XX 56
3. NOSÉCULO XXI? 59

Vitalidade 63
1. ARGUMENTOS 65
2. O DESEJO 70

BIBLIOGRAFIA 75 Onome de Charles Fourier estáassociado aduas palavras "explosivas"-


utópÍoT 6****• EIe ' VÍSt° C°m° Um d°S CampeÕCS d° "S0dalism°
Opróprio Fourier, contudo, não se reconheceria nessa designação:
ele nao se apresentava como socialista efazia restrições àutopia
Onome "socialista" passou aser usado nos anos trinta do século
XIX, quando Fourier estava velho, eera adotado, predominantemente,
pelos saint-simonianos, que ele considerava mistificadores.
Fourier se via como ura "descobridor'^como um «inventor", Para
ele os inventores não precisavam dispor de conhecimentos eruditos ou
de formação acadêmica. Afirmava: «Quanto mais um inventor for ile-
trado, incapaz de desenvolver de maneira adequada suasinvenções, tan
to mais ««importante que ocorpo social lhe assegure meios para pôS
a prova (OC X, p. 25). Estava convencido de que muitas vezes as
invenções ou descobertas se devem apessoas simples, como ele, que se
orgulhava de ser autodidata, um mero "caixeiro". Eadvertia- se as in
venções não forem aproveitadas, se as descobertas forem desmoralizadas
pela ironia dos eruditos, quem sairá perdendo será asociedade
Agrande descoberta de Fourier, segundo ele, foi ada «lei da atração
passional Esua maior invenção foi ado caminho aser seguido para
que, com base nessa lei, ahumanidade venha asuperar a«civilização"
e seja capaz de criara "Harmonia".
Como a referida invenção se inseriu no movimento histórico das
ide.associahstas, Fourieracabousendo inevitavelmente consideradopor
todo mundo um teórico socialista.

xi
FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
INTRODUÇÃO
>
Adescoberta da "lei da atração passional", entretanto, lhe confere Na esteira do livro de Thomas Morus foram escritasAcidade do sol,
características extremamente originais. Fourier demonstra uma notável
confiança nas paixões humanas, quer que opoder delas seja plenamente
de Tommaso Campaneíla, eAnovaAtlântida, de Francis Bacon, nas quais
liberado e rejeita qualquer repressão sobre seu desencadeamento. Não
se manifesta amesma ambigüidade: por um lado, aprofunda insatisfação "l
admite que sofram pressões externas moderadoras. Diz: "Não é com com asituação existente, com aorganização da sociedade, com algumas
moderação que são feitas grandes coisas" (OC, I, p. 186). das características da ideologia dominante; por outro, areprodução de
Aenfática valorização das paixões manifesta, com certeza, a dimen critérios comprometidoscom aideologia contestada ecom aestreiteza dos
são romântica da perspectiva do filósofo "caixeiro". Dentro do movi
horizontes da sociedade que estava sendo contestada.
mento gerai do romantismo, contudo, sua posição é original. Michael No período que se segue àRevolução Francesa eno qual se realizam
Lõwy eRobert Sayre oincluem no "socialismo utópico-humanista", ao importantes avanços na revolução industrial, autopia começa ase re
lado de Cabet, Pierre Leroux, Enfantin, George Sand eoutros (Lõwy & vestir com as cores do socialismo moderno, sem perc^rluTcõnffadito-
Sayre, 1993, p. 32). Mas sua inclusão nessa categoria genérica corre o riedade intrínseca. Esse movimento éperceptível na "Conjuração dos
risco de sacrificar elementos altamente peculiares do que ele criou de Iguais", de Gracchus Babeuf, com sua proposta de uma "última revolu-
mais especificamente significativo. Ção"_capaz de impor aigualdade política esócio-econÔmícITèTper-
Temos boas razões para classificar Fourier como "humanista", po ceptível também na trajetória de Henri de Saint-Simon, que élevado a
rém devemos imediatamente lembrar que sua radical valorização da cria conclamar os cidadãos a uma reorganização econômica da sociedade
tividade humana está ligada à vinculação do ser humano aos desígnios através de reformas adequadas apromover oprogresso.
de Deus eàProvidência Divina. Eessa vinculação faz dele um humanista Em Babeuf, agenerosidade do programa igualitário tinha como con
bastante especial. trapartida um programa ditatorial de confiscos eviolência repressiva,
Temos também razões convincentes para classificá-lo como "utópi que deveria ser posto em prática inexoravelmente por uma liderança5
co". No entanto, não podemos deixar de registrar o fato de que ele revolucionária ascética, abnegada, com características que poderiam res
definia a utopia como "o sonho do bem sem meio de execução, sem valar para o fanatismo.
método eficaz" (OC, XI, p. 356). Como estava absolutamente seguro Em Saint-Simon, oesforço no sentido de isolar os parasitas da Corte
de ter um método eficaz e dispor do meio adequado, nada mais natural eda alta Magistratura, acúpula da hierarquia eclesiástica eos grandes
que não se considerasse utópico. proprietários de terras, leva oreformador amisturar numa mobilização
Autopia, afinal, nasceu sob o signo da ambigüidade.. Na própria conjunta os trabalhadores eos empresários, as mulheres e os grandes
origem da palavra se encontra um livro que expressa ao mesmo tempo comerciantes, oslojistas e os banqueiros.
inconformismo eimpotência: áUtopia, de Thomas Morus, denunciava Fourier divergia radicalmente tanto da proposta de revolução política
em 1516 a ociosidade parasitária da aristocracia e o culto burguês do de Babeuf como do programa reformista de Saint-Simon. Contudo, por
dinheiro, combatia ao mesmo tempo ofeudalismo ealógica embrionária mais enfático que tenha sido na expressão de suas divergências, onosso
do que viria aser ocapitalismo, porém não conseguia deixar de repro caixeiro-filósofo acabou sendo posto ao lado daqueles que criticava com
duzir, no interior mesmo do protesto, algumas das características mais
repressivas do quadro institucional vigente (como, por exemplo, aacei aspereza: aos olhos da imensa maioria dos seus contemporâneos e, mais
tação da escravidão). ainda, aos olhos das gerações subseqüentes, ele foi visto como elaborador
de uma utopia. Foi incluído entre os "socialistas utópicos".

xiii
FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
INTRODUÇÃO

Quando nosdefrontamos hoje com essa designação, somos levados filosófica das categorias presentes na concepção econômico-social que
a associá-la a algumas das nossasapreensões mais vivas. Fourier tinha do presente seria uma das tarefas mais importantes emais
O conceito de "socialismo" está sendo rediscutido à luzda extinção atuais da história da filosofia do século XIX" (Lukács, 1971).
da experiência soviética, do colapso do "marxismo-leninismo", da crise Talvez o desafio ainda seja mais sério do que Lukács reconheceu: é
dasexperiências empreendidas pelossocialistas ao longodo século XX. possível que, para chegarmos a compreender onosso autor em profun
O conceito de "utopia"também estásendoreavaliado sob a pressão didade, sejamos obrigados adecifrar não só as categorias econômico-so-
dos que temem asconseqüências das tentativas de realização dos sonhos ciais que ele utilizou, mas também oque está por trás de suas fantasiosas
e a violência daqueles que se dispõem a acarretar grandes sacrifícios em categorias cosmológicas.
nome daconcretização de ideais sublimes. Alguns críticos sustentam que
Fourier émuito desconcertante. Sua obra tem comportado leituras
na utopia se manifesta, mais do que uma impossibilidade prática, uma
impossibilidade conceituai (Berlim, 1991). diversas, contraditórias. Muitos críticos recuaram diante dela, descarta
Muitas pessoas se perguntam: os utopistas não tendem a se tornar
ram-na, preferiram não comentá-la. Há casos em que aqueles que en
intolerantes e autoritários em face daqueles que não os acompanham travam em contato com as idéias de Fourier se limitaram a rir delas.
è nas tentativas de efetivarem suas quimeras? Os socialistas não acabam Existem cronistas que extraíram das insólitas concepções matéria para
sobrepondo seu compromisso com a "sociedade nova" ao respeito aos crônicas bem-humoradas. Opoeta brasileiro Olavo Bilac, numa crônica
-.
princípios democráticos na sociedade atualimperfeita? de 1907, falou de uma rua tranqüila do Rio de Janeiro que era lugar de
As condições em que os socialistas atuam hoje são extremamente reunião de cachorros felizes, de todos os tipos, e acrescentou: "Aquela
delicadas. Para ter eficácia, um projeto transformador comprometido rua era ofalanstério dos cachorros. Fourier, se avisse, teria asatisfação
com a superação dasinjustiças precisa levar emcontamúltiplas objeções, de ver, realizada por cachorros, a bela idéia que não viu realizada por
numerosas dúvidas. homens. Ali, de fato, de acordo com adoutrina fourierista, capital, tra
Nessas condições, somos levados a indagar: o que teria a teoria de balho e talento eram comuns" (Bilac, 1996, p. 765).
Fourier a nos oferecer, nasbatalhas que estamos travando, emcircunstân Alguns escritores (como Flaubert eRalph Waldo Emerson) abomi
ciasmuito distintas daquelasem que ele se encontrava há dois séculos? naram a doutrina. Outros —poucos! —entusiasmaram-se com ela. Da
A resposta a essa pergunta não é nada fácil. Uma leitura honesta dos niel Guérin chegou asustentar que as bases da revolução sexual lançada
textos de Fourierapresenta para nós enormesdificuldades. Àsvezes ele por Fourier são tão audaciosas que, comparados com ele, Freud e Wi-
parece, decididamente, incompreensível. Eemalgumas ocasiões o leitor Iliclm Reich quase parecem tímidos (Guérin, 1975, p. 13).
contemporâneo pode passar por um trechopitoresco e ser levado a ter Ainda que Daniel Guérin possa ter exagerado, sua avaliação dá con
a impressão equivocada de que o entendeu, sem contudo tê-lo efetiva ta da radicalidade do ímpeto inovador de Fourier. Eé curioso que um
mente digerido, pondo-o em conexão com outras passagens capazes de pensador que recusava firmemente qualquer idéia de revolução política
esclarecê-lo. (como está claro na crítica feita a Babeuf) chegue aser encarado na nossa
O filósofo húngaro Georg Lukács, em seu último livro, Aontologia ('•poça como umadrástica expressão de revolucionarismo.
do ser social, novolume dedicado a Hegel, advertia para o fato de que Como poderíamos situar Fourier nos quadros conceituais elaborados "~\

uma boa leitura do pensador francês precisaria averiguar o que está no para o mapeamento das posições teóricas da esquerda nasituação atual?
fundo dassuas "generalizações insólitas". Esugeria: "Uma análise crítica Podemos, de algum modo, considerar satisfatórias as categorias de

XiV
XV
FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER

que dispomos para formular um juízo global sobre a filosofia desse pen
sador?
Ocrítico português Ernesto Sampaio, no prefácio que escreveu para
uma antologia, afirmou: "Fourier é insuscetível de reabilitação porque
está fora de todos os discursos dominantes do nosso tempo" (Sampaio,
1996, p.9). Aafirmação deixa prudentemente aberta a possibilidade de
um resgate feito a partir de um "discurso" radical de oposição não ab
sorvido pelos critérios dominantes. Noentanto, não podemos deixar de
formular para nós mesmos uma questão que vai além daquela que foi
abordada pelo crítico português: em que consistiria o "discurso" con-
testador capaz de resgatar Fourier hoje? Vida
Decididamente, Fourier nos escapa. Somos obrigados a reconhecer
que não podemos confiar inteiramente no mapa que utilizamos para
atravessar o território do seu pensamento.
O presente livro tenta proporcionar aos leitores alguns elementos
para um maior contato com o "enigma Fourier", sem alimentar a pre
tensão de "decifrá-lo".
Aprimeira parte está dedicada a relembrar algumas experiências vi
vidas que marcam a trajetória do filósofo. Na segunda parte é abordado
o movimento do seu pensamento. Aterceira ea quarta partetentam refletir
sobre oseu legado esobre avitalidade que pode vir ater asuacontribuição
para os debates filosóficos dos socialistas contemporâneos.
De maneira geral, acabei aceitando a caracterização do pensador
como um "socialista utópico", mas procurei mostrar em que consiste a
especificidade da "utopia" em Fourier e me empenhei em reconstituir a
originalidade da sua fundamentação teórica de um socialismo do prazer.

xvi
I. FONTES

Informações sobre avida de François Marie Charles Fourier podem ser


obtidas principalmente através da leitura de três livros.
0 primeiro se intitula Charles Fourier, sa vie et ses théories. Seu
amor, Charles Pellarin, era discípulo de Fourier elançou aobra em 1838
pia Ltbrairie de 1'école sociétaire. Cinco anos depois (em 1843) saiu
mn.i segunda edição revista eampliada. Éum trabalho prejudicado por
.«ria ingenuidade, presente na preocupação de sublinhar as qualidades
«lu mestre, omitindo esuprimindo fatos ecircunstâncias que pudessem
parecer um tanto excessivamente perturbadores aos olhos de um amplo
publico leitor. Apesar disso, é um texto pioneiro e uma preciosa fonte
•Ir informações. Asegunda edição, em especial, utiliza dados extraídos
íkfl cartas trocadas entre Fourier eseu mais antigo discípulo, Just Mui-
»on, uma correspondência que depois se perdeu e não pode mais ser
<i insultada.
0 segundo é Vie de Charles Fourier, tem como subtítulo Uhomme
éms sa vérité, éde autoria de Émile Lehouck efoi editado por De-
nnrl/Gonthier em 1978. Beneficia-se de um maior distanciamento em
COkçao ao biografado eaproveita a nova perspectiva histórica criada a
lmi iir dos anos sessenta. Sem idealizar Fourier, Lehouck se debruça sobre
iwpcetos do personagem que Pellarin resistia aenxergar, valorizando-lhe
positivamente as "excentricidades" e a "desmesura".
Eo terceiro, Charles Fourier, the Visionary and his World, resultou
(lê urna pesquisa realizada ao longo de mais de vinte anos pelo professor
Dl I] «--americanoJonathan Beecher: foi lançado em 1986 pela University
FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER VIDA

of Califórnia Press e é a mais completa biografia disponível do escritor mais fracos. Mais confiáveis parecem ser as informações proporcionadas
francês. Beecherassumesua admiração por Fourier,mas propõe, a partir pelo próprio Fourier, anos mais tarde, quando recorda momentos da sua
do exame da trajetória do seu biografado, algumas questões que vão revolta infantil contra aqueles que oobrigavam acomer coisas que ele
além daquelas com que Lehouck já se havia defrontado. abominava, como nabo e alho-poró.
Nas páginas que se seguem utilizamos dados colhidos nesses três Desde cedo Charles manifestou sua repulsa ao comércio, que era a
livros. profissão de seu pai eàqual ele estava destinado segundo otestamento
paterno. Desde cedo também ele deixou transparecer sua desconfiança
em relação àestreiteza do catolicismo adotado por sua mãe (com aqual,
entretanto, evitava polemizar).
2. INFÂNCIA E JUVENTUDE Para escapar ao comércio, pretendeu estudar engenharia na Escola
Militar de Mézières, mas oingresso não lhe foi autorizado porque se
François Marie Charles Fourier nasceu no dia 7 de abril de 1772, em tratava de uma instituição destinada exclusivamente aos descendentes
Besançon, uma cidade atrasada, que tinha na época cerca de 35 mil de nobres. Pensou também em estudar direito na Universidade de Be
habitantes. Na região, a maior proprietária de terras era a IgrejaCató sançon, mas logo se convenceu de que as disciplinas jurídicas não lhe
lica.Aolongo do século XVIIIBesançonse mantevefechada à influência despertavam nenhum interesse.
do iluminismo e repeliu as inquietações e inovações teóricas trazidas Acabou portanto empurrado para as atividades comerciais, que não
pelas "Luzesda Razão". Balzac, em seu romanceAlbert Savarus, diz que lhe agradavam. Com odinheiro que recebeu da herança do pai, tratou
"nenhuma cidade ofereceu uma resistência mais surda e mais muda ao de fazer negócios, comprando mercadorias para revendê-las.
progresso". Suas operações mercantis coincidiram, contudo, com os anos agita
Os pais de Charles Fourier (essefoi, afinal, o nome com que passou dos da Revolução Francesa. Há indícios de que Charles acompanhou
a ser chamado) eram abastados. O pai, de quem herdou o nome, cha inicialmente com simpatia ainsurreição popular eomovimento que pôs
mava-se Charles Fourrier (com dois "erres"; só mais tarde é que o filho fim àmonarquia. Logo, porém, os conflitos se generalizaram, aguerra
suprimiria um "erre" do sobrenome): era um comerciante próspero, civil se espalhou por todo oterritório francês eojovem comerciante se
morava num casarão de três andares na principal rua da cidade. Morreu viu envolvido nas ações militares.
em 1781, aos 49 anos de idade. O filho,então, ficou órfão de pai antes Em 1793, aos 21 anos de idade, estava em Lyon para receber um
de completar dez anos. carregamento de açúcar, café, arroz ealgodão, que vinha de Marseille,
A mãe, Marie Muguet, vinha de uma família de comerciantes ricos quando se desencadeou na cidade uma rebelião contra ogoverno repu
e era uma senhora muito católica,muito conservadora.Alémde Charles, blicano de Paris, sob aliderança do general monarquista Précy. Para sua
transformado no único varão da casa, a viúva tinha quatro filhas, as mais viva irritação, Charles foi compulsoriamente recrutado pelas tropas
irmãs do futuro escritor, que se chamavamMariette, Antoinette, Lubine rebeladas esuas mercadorias foram confiscadas eusadas nos hospitais.
e Sophie. Poucos meses depois os sublevados foram derrotados ese renderam,
Sabe-se pouquíssimo da infância de Charles. Pellarin relata alguns de modo que Charles passou aser prisioneiro das forças republicanas
episódios edificantessobre atitudescorajosas tomadaspelo garoto fran vitoriosas. Conseguiu convencer seuscaptores de que era inocente, havia
zino em luta contra meninosmaiores, valentões, sempre defendendo os sido mobilizado contra asua vontade, porém continuou a ser conside-
I
FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
VI DA

»
rado suspeito de traição efoi posto sob vigilância, sujeito aperquisições opusesse àesquerda dos jacobinos ou da "Conjuração dos Iguais" lide
policiais.
rada por Gracchus Babeuf.
» Acabou sendo recrutado novamente e mandado para participar da Fourier se torna descrente em relação àluta política, em geral, tal
campanha militar do exército republicano na Alemanha, na região do
Reno, onde permaneceu algum tempo, em 1794-1795, até dar baixa por como era praticada; ese dispõe abuscar ocaminho pelo qual aimpres
> deficiências de saúde.
cindível transformação da sociedade poderia se viabilizar. No final do
I século XVIII, ele, de fato, estava empenhado em avaliar as causas da
situação em que se encontrava a humanidade, uma situação que lhe
parecia profundamente deplorável.
3. GÊNESE DA TEORIA
Em 1799, na época em que Hegel está formulando em Frankfurt a
idéia básica da sua dialética (a busca de uma razão que fosse "a união da
Aquela altura dos acontecimentos não podia retomar os negócios que união eda desunião"), Fourier, sem conhecimento algum do que oseu
empreendia por conta própria, porque estava sem capital: além da perda
contemporâneo estava fazendo, faz a descoberta do princípio daquilo
das mercadorias confiscadas em Lyon, tinha perdido outra parte da sua
que ele desenvolveria em seguida como asua crítica à"civilização".
herança em mercadorias importadas que estavam a bordo de um navio
Opróprio Fourier narra de maneira pitoresca oincidente em que
que naufragou perto do porto de Livorno, na Itália.
ele fez asua descoberta: num restaurante, ao pagar uma conta, ele des
Decidiu então trabalhar para um comerciante, Bousquet, em con
cobriu que a maçã que havia sido comida por seu amigo e eventual
dições que lhe permitiriam, como uma espécie de caixeiro-viajante, fazer
companheiro de mesa vinha de Besançon; e que em Paris ela custava
algo de que gostava: viajar. mais de cem vezes oque valia na sua terra de origem. "Tal como para
Estava convencido de que aRevolução Francesa tinha sido um equí
Newton, uma maçã se tornou para mim uma bússola capaz de orientar
voco. Partindo dapercepção lúcida e aguda de que era preciso transfor
meus cálculos" (OC, X, p. 17). Essa maçã éconsiderada "digna de se
mar asociedade, porque os seres humanos estavam submetidos àpressão
tornar famosa". Éincluída entre as "quatro maçãs célebres, duas pelos
de instituições injustificáveis, os revolucionários haviam metido os pés desastres que causaram, ade Adão eade Paris, eduas pelos serviços que
pelas mãos e tinham acabado por não mudar coisa alguma.
prestaram à ciência, a de Newton e a minha" (OC, X, p. 17). Fourier
afirma que foi apartir da "sua" maçã que se deu conta da "desordem
Analisando as relações do escritor com aRevolução Francesa, Émile fundamental do mecanismo industrial" e começou a desenvolver sua
Lehouck, no clima de entusiasmo "esquerdista" de alguns ativistas po denúncia sistemática dos males inerentes à"civilização".
líticos dos anos sessenta esetenta, chegou asustentar que "Fourier sim
plesmente ultrapassou a Revolução pela esquerda", porque "descobriu
que oreformismo não levava anada" (Lehouck, 1978, pp. 62 e79). Na
realidade, as coisas não se passaram exatamente como Lehouck as ca 4. 0 PRIMEIRO LIVRO
racterizou. Se, por um lado, Fourier, no plano ideal, tinha exigências
mais radicais do que aquelas que predominaram na condução do pro Como não tinha condições para comerciar por conta própria, passou a
cesso revolucionário, não devemos ignorar que, por outro lado, no pla trabalhar para François Antoine Bousquet. Como "commis voyageuf,
no estritamente político, ele não tinha nenhum programa definido que viajava muito etinha asatisfação de conversar com "gente comum",'

I _
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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER VIDA

pessoas que conhecia por acaso nas diligências e nos refeitórios onde peitavam (sem razão) que eleestivesse fazendo críticas veladas aos diri
comia. Mais tarde escreveria: "Se tive êxito no estudo da atração, devo gentes das campanhasnapoleônicas.
isso em parte ao cuidado com que observei as pessoas comuns, ao fato Ao que tudo indica Fourier não era adepto da política de Napoleão,
de ter me colocado em lugares de onde podia ouvir as conversasdelas" porém não se pode dizer que fosse hostil a ele. Em alguns momentos
(OC, VIII, p. 189). dava a impressão de que o autoritarismo bonapartista poderia encami
Quando não estava viajando,comparecia pontualmente ao escritó nhar transformações sociais importantes, que talvez ajudassem aprepa
rio do seu patrão, ajudava-o na contabilidade. E cultivava em Lyon um rar o terreno para a criação da "Harmonia".
círculo de amigos com os quais se divertia e aos quais expunha suas Quando Napoleão foi derrotado, em 1814, Fourier fez uma tenta
idéias. Os companheiros — entre os quais estavam Henri Brun, J. B. tiva de entrar em contato com ele, através de uma carta que foi inter
Dumas, J. B. Gaucel, Louis Desarbres e Aimé Martin—ficavam impres ceptada. O conde Beugnot, ministro da Polícia, mandou seus agentes
sionados com as teorias que lhes eram expostas, mas não chegavam a prenderem einterrogarem oescritor; depois de receber orelatório, po
aderir a elas. rém, comunicou ao rei Luís XVIII que mandara soltar oelemento, por
Em 1803 Fourier começou a publicar alguns artigos no jornal Bul- que se tratavade "um visionário, um maluco inofensivo".
letin deLyon. Pela primeira vezpassou a expor por escrito algumas das Fourier teve problemas tanto com a polícia do imperador (na era
suas idéias. Afiançava que a "civilização" não era o destino da humani napoleônica) quanto com apolícia do rei (na época da restauração mo
dade e sim uma forma particular de organização da vida em sociedade, nárquica).
uma forma que estava impedindo os seres humanos de se relacionarem Em 1807 terminou de escrever e em seguida publicou seu primeiro
de modo harmônico uns com os outros e todos com a natureza. Insistiu livro, intitulado Ateoria dos quatro movimentos. Apesar dos esforços
na tese de que Deus regia o mundo não pela coerção e sim pela "lei da do autor e de seus amigos, vendeu pouquíssimo. Um livreiro observou
atração universal". Assim como no cosmo os astros se mantinham em que o título não ajudava, dava a impressão de que era um livro de ma
equilíbrio porque eram atraídos unspelosoutros,a sociedade precisava temática. Beecher diz que é "o mais obscuro e enigmático dos trabalhos
alcançar seu equilíbrio através de um sistema — a "Harmonia" — no deFourier" (Beecher, 1986, p. 116). Acrítica foi devastadora: umrese-
qualosindivíduos pudessem liberartodasas suas paixões, que"natural nhador escreveu que se tratava com certeza de um texto redigido no
mente" se equilibrariam umas às outras. hospício eoutro pediu uma imediata intervenção doMinistério daSaúde
As teorias provocaram algumas reaçõesirritadas. Leitores do jornal Pública para internar o doente.
fizeram pelaprimeira veza Fourier umaacusação que ele viriaa enfren
tar muitas vezes: a de que era louco. O escritor respondeu lembrando
orgulhosamente que Colombo e Galileu também haviam sido conside
rados malucos. 5. DA PROVÍNCIA A PARIS
Fourierse gabava de conhecerbema geografia da Europa, que havia
estudado na escola, mas também ao longo de suas múltiplas viagens. Fourier, desgostoso, passou vários anos sem publicar coisa alguma. Com
Apoiado emseus conhecimentos geográficos, também se animava a opi a morte de sua mãe, em 1812, herdou algum dinheiro e deixou seu
nar sobre questõesestratégicas (afinal, conhecia o exército por dentro). trabalho na firma de Bousquet. Mudou-se para a região onde viviam
E, ao dar seus palpites, suscitava desconfiança nasautoridades, que sus duas das suas irmãs, procurando se reaproximar delas e de suas sobri-
FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
VIDA

nhas. De 1816 a 1820 viveu em casa delas. Foium período de intensos


estudos. Escreveu todo um livro sobre as atrações amorosas e sexuais
são. Opoeta Béranger foi processado. Henri de Saint-Simon, que logo
se tornaria uma celebridade eviria aser considerado um dos expoentes
entre as pessoas na "Harmonia", procurando determinar em que con
do "socialismo utópico", foi acusado como "inspirador" do crime. A
dições seria possível assegurar um patamarrazoável de satisfação eróti censura se tornou mais severa.
ca, no futuro, para todos os indivíduos, homens e mulheres, jovens e
Fourier teve medo de que o seu Tratado da associação doméstica-
velhos. Esse texto — O novo mundo amoroso — permaneceu inédito agrícola fosse proibido. Just Muiron levou os originais para serem sub
até 1967,quando foi finalmente publicado por Simone Debout. metidos a uma censura prévia e o censor opinou: "A leitura de tão es
Além disso empenhou-se na preparação de um novo livro, que viria
a sair em 1822,como títulodeTratado daassociação doméstica-agrícola
tranhos paradoxos apresenta tantas dificuldades que olivro não pode
ser considerado perigoso."
(e que mais tarde viria a ser reeditado com o título de Teoria da unidade
OTratado, então, foi publicado. Apublicação, entretanto, não foi
universal). Mas também foi um período de conflitoscom sua sobrinha
um sucesso. Quatro resenhas saíram na imprensa. Os resenhadores não
Hortense, filha da irmã Mariette: embora defendesse o amor livre e o
foram tão hostis como os que haviam comentado olivro publicado an
direito das mulheres aoprazer, Fourier ficou chocado com o fato de que teriormente, mas assumiram um tom condescendente, irônico, einter
a solteiraHortense, na ausência da mãe, passasse as noites fora de casa.
pretaram a obra como uma espécie de sátira. Essa interpretação não
Segundo informação dePellarin, em 1816 o escritor tinha umplano agradou nem um pouco ao autor.
de trabalho que o deveria levar a escrever nove volumes, que teriam, Fourier decidiu se instalar em Paris a partir de 1823 para cuidar
respectivamente, os seguintes temas: 1)a doutrinaabstratada atraçãoe pessoalmente da divulgação de suas idéias ede seus escritos, em contato
das paixões; 2) a síntese da atração e dos equilíbrios; 3) a análise das direto com os livreiros ealgumas personalidades da capital. Redigiu um
doze paixões fundamentais dos seres humanos e dos 810 caráteres que folheto intitulado "Sumários eanúncio do Tratado da associação domés
eles podem ter; 4) a síntese do método e a teoria da transcendência; 5) tica-agrícola", insistindo na seriedade de seus propósitos e reclamando
a análise crítica docomércio mentiroso edaconcorrência complicadora; da falta de seriedade dos jornalistas: distribuiu-o ainúmeras pessoas,
6) o exame da contramarcha das paixões; 7) a teoria da analogia uni encaminhando-o através de cartas personalizadas. Oesforço foi inútil;
versal e da cosmogonia aplicada; 8) a teoriaintegral da imortalidade da aesmagadora maioria dos destinatários não respondeu às cartas eos que
alma; e 9) um repertório e dicionário.
responderam não manifestaram em geral interesse pela obra. Oautor
Nosanos queseseguiram à elaboração desse plano Fourier foi pro comunicou melancolicamente ao amigo Muiron que aofensiva propa-
curado por um funcionário público que havia lido sua Teoria dos quatro gandística resultará na venda de três exemplares do Tratado.
movimentos e ficara fascinado: Just Muiron, quesetornou seuprimeiro
discípulo. Como Muiron era completamente surdo e não conseguia fa
zer leitura labial ou falar com clareza, o mestre e o discípulo se comu
nicavam por escrito, através de cartase bilhetes, mesmo quandoestavam 6. A FALANGE EXPERIMENTAL
frente a frente.
O ambiente político na França estava muito tenso. A monarquia Como seu patrimônio tinha ficado reduzido, retomou as atividades co
restaurada se sentia ameaçada. O assassinato doduque deBerry, impor merciais, que abominava, mas podiam assegurar sua subsistência. Para
tante figura na sucessão dinástica, foi seguido por uma ondade repres- sobreviver em Paris contou inicialmente com a ajuda de Muiron, de

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER


VIDA

Gaucel e de seu ex-patrão (em Lyon) Bousquet. Em 1826 assumiu um


experiência da organização deum núcleo antecipador das novas condi
posto na firma norte-americana Curtis 8c Lamb, incumbindo-se da cor
ções de vida. Essa experiência demonstraria aos contemporâneos as van-
respondência da filialparisiense,que porém foi fechada um ano e pouco
tügens do novo modelo e, ao se multiplicar, promoveria a verdadeira
depois pela empresa. transformação da sociedade.
Aproveitava a execução da tarefa da redação de cartas comerciais
Em 1830, para divulgar o novo livro, Fourier lançou um folheto
para escrever também cartas pessoais. Escreveu a numerosas personali
intitulado "Anúncio do novo mundo industrial". Mais uma vez se de
dades, solicitando-lhesapoio financeiro para a experiência do falansté-
frontou com uma reação desfavorável. A revista católica Universel o
rio. Encaminhou apelos, por exemplo, ao duque de Devonshire, inglês,
estigmatizou como "materialista" e "bufão". Ena Revue Française uma
ao milionário norte-americando Rufus King,ao presidente de Santo Do
resenha não assinada equiparou-o a Saint-Simon e a Robert Owen, in
mingo, Boyer,à viúvade lorde Byron, a príncipesrussos, a George Sand,
sinuando quea única coisa que o distinguia dosoutros dois erao "estilo
Chateaubriand e Simón Bolívar. Não obteve nenhuma resposta. grotesco" em que escrevia.
Levava uma vida frugal. Comia em restaurantes baratos e bebia vi
A resenha anônima daRevue Française foi a que mais aborreceu o
nho ordinário (sempre resmungando que estava sendo envenenado).
escritor, que detestou ser posto no mesmo saco que OweneSaint-Simon.
Tomava uma xícara de café depois do jantar e gostava de jogar bilhar.
Fourier atribuiu a perfídia a François Guizot, influente historiador e
Permaneceu solteirão. Protegia cuidadosamente sua vida particular, sua político, que era colaborador regular da publicação. Sua raiva foi tão
intimidade; contudo, há razões para crer que teve algumasligaçõesamo grande que ele nem chegou a se alegrar muito com o primeiro comen
rosas. Emile Lehouck chega a indicar o nome de uma de suas prováveis tário favorável e bem fundamentado sobre o seu trabalho, que saiu no
namoradas, Louise Lacombe (Lehouck, 1978, p. 215). Mercure de France au XDÍème Siècle, assinado por um novo discípulo:
Teve diversos endereços residenciais em Paris, todos próximo ao Victor Considérant.
Palais-Royal, que o deslumbrou desde a primeira vez em que esteve na Aconcorrência das "seitas" de Saint-Simon e Owen o preocupava
cidade, aos vinte anos de idade. Todas as suas habitações eram modestas. cada vez mais. Num primeiro momento tinha ficado bem impressionado
No último apartamento onde morou (e onde morreu) vivia cercado de com as iniciativas práticas de Owen na Inglaterra echegou ase oferecer /
plantas e gatos. Os vizinhos e a porteira do prédio simpatizavam com para assessorá-lo (o oferecimento foi delicadamente recusado).
ele, porém todos o achavam bizarro. O insuspeito Pellarin, que lhe de Depois de algumas conversas com saint-simonianos (Saint-Simon ti
dicava uma admiração imensa, informa que Fourier andava pela rua nha morrido em 1825), leu uns poucos textos publicados por eles, com
falando sozinho (Pellarin, 1843, p. 177). pareceu a uma assembléia da "seita" e escreveu o panfleto Armadilhas e
Escrevia muito, todos os dias. Atendendo a insistentes pedidos de charlatanismo das seitas de Saint-Simon e Owen, publicado em 1831.
seus amigos,dedicou-sea preparar um resumo (abrégé) de sua doutrina. Alguns entre os saint-simonianos estavam organizados de forma \
O resumo se transformou no livro O novo mundo industrial, que saiu coesa e centralizada, como uma "igreja", em torno da liderança de Pros-
em 1829. Na realidade, não era um mero resumo, porque trazia uma ! per Enfantin; outros, porém, preservavam sua autonomia, sua reflexão
importante inovação no seu pensamento: preocupado com a definição crítica. E dois intelectuais saint-simonianos independentes publicaram
de um caminho prático para a transição à nova sociedade, Fourier in artigos nos quais divulgavam com simpatia as idéias de Fourier: Jules
veste suas energias intelectuais no planejamento de um "falanstério" Lechevalier e Abel Transon. O mestre não se entusiasmou, mas osdiscí
(palavra composta de "falange" e "monastério"), onde se realizaria a pulos ficaram gratospelaajuda.

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER VIDA

> 7. OS ÚLTIMOS ANOS foi insuficiente e Baudet-Dulary, depois de gastar mais do que havia
> prometido, resolveususpenderseu financiamento. A tentativa fracassou.
Pouco a poucoo escritor começava a atrair ummaior númerode leitores Nova tentativa se fez na Romênia. O discípulo Teodor Diamant
e admiradores. Diversas mulheres, impressionadas com a denúncia dos conseguiu convencer um certo Manolaite Emanuel Balaceanu a financiar
prejuízos que a "civilização" acarretava para o sexo feminino, aproxi a experiência em terras que lhe pertenciam. Não se sabe exatamente o
mavam-se do teórico da "Harmonia": ClarisseVigoureux,LouiseCour- que aconteceu, mas o empreendimento não deslanchou e Diamant es
voisier, Desirée Veret, Flora Tristan, etc. Também alguns jovens de ou creveu a Fourier, em 1836, se queixando amargamente do outro (Bee
tros países vierambaterà sua porta e depoisdivulgaram suasconcepções cher, 1986, p. 483).
em seus respectivos países de origem, como Albert Brisbane (Estados Fouriernão desistia. Até o fim procurava um patrocinador. Como
Unidos daAmérica do Norte), Hugh Doherty(Inglaterra), Ludwig Gall disse francamente a Muiron, estava convencido de que um "grande pro
(Alemanha), Giuseppe Bucelatti (Itália) e Teodor Diamant (Romênia). tetor" era preferível a "cem pigmeus". Enquanto pôde, enviou cartas a
»
Formou-se um núcleo de "fourieristas" que começou a editarum se grandes personalidades, homens ricose poderosos, dirigentes políticos
I de diversas filiações partidárias. Tinha vivido noAncien Regime, na Re
manário, intitulado O Falanstério. Fourier encaminhava artigos para a
I publicação, mas osseus seguidores nãoapreciavam suacolaboração. Ten volução, no Império, na Restauração Monárquica e nos seus últimos
taram em vãoconvencê-lo a se expressar num estilo mais acessível, mais anos viviasob o governo do "rei-cidadão"Louis-Philippe, entronizado
>
simples, mais jornalístico. Pediram-lhe inutilmente que não insistisse nas cm 1830. Achava que nada de essencial havia se modificado e que a
sociedade só se transformaria, de fato, quando fosse encaminhada a
ásperas críticas que fazia aos saint-simonianos. O resultado desse empenho
superação da "civilização", de acordo com as teorias que expunha.
foi que o mestre se irritou com os discípulos; e, numa cartaao editorda
Em 1834 entregou-se à redação de uma carta aos deputados e aca
I Gazette deFrance, fez questãode esclarecer, em dezembrode 1835: "Nun
bou redigindo outro livro, que foi publicado em seguida: A. falsa indús
> ca aceitei o termo fourieristà" (Beecher, 1986, p. 487).
tria. Era um apelo veemente à mudança. O escritor Michel Butor, 136
Para Fourier, suas teorias precisavam passar pelotestede umaapli
I anos mais tarde, o caracterizaria como a mensagem de uma garrafa lan
cação prática parafinalmente demonstrarem para todoo mundo o acer
çada ao mar por um náufrago (Butor, 1970).
I to e a seriedade do seu pensamento. A experiência da "falangeexperi
Sua saúde se tornou extremamente precária. Sentia dores no estô
> mental" ou "falanstério" seria decisiva. mago, urinava com dificuldade, tinha náuseas. Levou uma queda, com
»
Em 1832 articulou-se uma tentativa de organizar o primeiro falans suspeita de fratura no crânio. O braço direitoficou paralisado. Os ami
tério. Baudet-Dulary, umdeputadoda região deSeine et Oise, cedeuum gos, preocupados, eram mantidosa certa distância: insistiaem passar as
terreno em Condé-sur-Vesgre e se dispôs a financiar parte das obras noites sozinho.
necessárias. O jornal lançou uma campanha para arrecadar os recursos Na manhã de 10 de outubro de 1837, a porteira o encontrou morto,
quefaltavam. Noentanto, oempreendimento passou a sedefrontar com inteiramente vestido com roupa de domingo, de joelhos, debruçado so
dificuldades cada vez maiores. O arquiteto Gengembre não gostava da bre a cama.
idéia de se fazer "ruas-galerias" no vasto prédio onde se instalariam os
pioneiros e Fourier insistia nadefesa dasuaconcepção (acabou achando
que o arquiteto era um sabotador). O dinheiro arrecadado pelo jornal

1 4 1 5

I
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1. PENSAMENTO E LINGUAGEM

O pensamento de Fourier não é uma construção teórica de fácil acesso.


Mesmo em seus aspectos aparentemente mais simples, ele é, de fato,
muito mais complexo do que parece.
Sua coerência mais profunda não é ostensiva e pode escapar à ava
liação rápida de um leitor menos cuidadoso. Hámomentos em que Fou
rier se compraz em misturar intuições fulgurantes com longas digressões
argumentativas. Ou se diverte em pôr lado a lado "visões" entusiásticas
c cansativas demonstrações lógico-científicas, cheias de cálculos.
Aleitura dostextos de Fourier é, com freqüência, irritante. E eleàs
vezes dá a impressão de não estar nem um pouco preocupado em ser
coerente. No entanto, um exame mais atento das relações entre os di
versos textos mostra que as idéias expostas em distintos contextos se
"encaixam" umas nas outras e mantêm uma perfeita coerência com o
peculiar modo de pensar do nosso bizarro teórico, que Henri Lefebvre
caracterizou como "semilouco" (Lefebvre, 1975, p. 5).
Uma das características que oleitor mais atento não pode perder de
vista é adaimportância dalinguagem naobra deFourier. Roland Barthes
|i1 chamou a atenção para isso (Barthes, 1971). Amaneira pela qual ele
«<* expressa está sempre fortemente ligada àquilo que elequerdizer. Para
entendermos efetivamente o que está sendo dito precisamos observar
i Qnto ele o está dizendo.
Em determinados trechos deseus escritos podemos perceber que ele
as vezes é chato por convicção. Recusa-se a pavimentar com recursos
retóricos agradáveis o caminho pelo qual insiste em ver seus leitores

1 9


FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER PENSAMENTO

avançarem com espírito honesto e predispostos a compreender a pro assustador dos grandes sentimentos edos pensamentos nobres. Eé bem
fundidade dos problemas que nos cercam. \ esse oobjetivo que se pretendia alcançar" (Debout, 1974, p. 33).
Para sublinhar anovidade do que está revelando ao leitor, permite- ] De acordo com Simone Debout, ofilósofo se comprazia em esboçar
se eventualmente bombardeá-lo com neologismos, como se o advertisse brincalhonamente ambigüidades que não cabiam nos esquemas inter-
de que só assimilando a nova terminologia (Fourier é um "criador de ; pretativos usuais dos "civilizados". E, na linha de Fourier, a ensaísta
linguagem", lembra Barthes) lhe será possível digerir o caroço da nova sublinha aambivalência do som da palavra esboçar em francês: griffon-
teoria. ner (que soa como griffe au nez, agarra no nariz...).
Mas o curioso é que o mesmoescritorque se empenha em espicaçar
o leitor com a chatice de seus esquemas minuciosos, suas insistentes
explicações "científicas" e seus neologismos é um escritor que também
mantém uma relação lúdica, prazerosa, divertida com as palavras^ 2. AATRAÇÃO PASSIONAL
Há uma carta de Fourier que só veio a ser publicada recentemente
e que é uma expressão eloqüente de como ele brinca com as palavras. Mas oponto de partida de Fourier não épropriamente uma filosofia da
Aproveitando uma característica da língua francesa, o fato de que em linguagem: éuma intuição ontológica que oconvence de que tudo no
francês a palavra escrita às vezes se distancia muito do som da palavra universo está ligado atudo. Todas as_coisas estão postas numa relação
falada, o filósofo redigiu uma carta, aparentemente dirigida a uma so de interdependência. Oque se passa amõsro, sêrèTrmmãnos, tem aver
brinha (Laura), aceitandoum convite para jantarno dia seguinte. Acarta com o que se passa com a natureza emgeral e até mesmo com osastros
está datada de sábado, 24 de agosto de 1827 (em francês: Samedi, 24 no céu. As vicissitudes do ser humano afetam oequilíbrio do cosmo.
aoüt, dix-huit cent vingt-sept). Só que o signatário escreveu: Ça me dit Aforça que move ouniverso egarante oequilíbrio eamagnífica
24, ah!ou dix-huit tes'envintcette (Issome diz 24, ah! ou então dezoito sincronização nos movimentos de todos os seres éoque Fourier chama
te veio esta). de atraçãopassional.
A carta está toda redigidadesse modo. Em lugar de domingo então "OTmpülso amoroso que leva os seres vivos ase sentirem atraídos
teremos a alegria de te abraçar (em francês: dimanche on aura doncIa uns pelos outros é o mesmo impulso que Isaac Newton descreveu na
joiedefembrasser), o que se lê é: "Dix manchons nosrats dont Vage oie física, na forma da atração gravitacional. Faltou aNewton, entretanto,
deux temps bras serre" (dez regalos nossos ratos cuja idade gansa dois disposição para examiná-lo tal como ele age tanto no cosmo como na
tempos braço aperta). Mais adiante aparece a referência a uma tia que vida social.
insiste em estofarelamesma suascadeiras (em francês: toussesfauteuils Foi com base nesse impulso que Deus organizou omundo. Só que,
sonttapissés parelle-même); e isso vira "toussait faute oeilsont à pisser enquanto os astros obedecem aos desígnios de Deus, os seres humanos'
pas, raie le m'aime"(tossia, falta olho, não são para serem mijados, eli aqui na Terra, se afastaram dos caminhos que lhes convinham eque lhes
mina o me ama). estavam indicados pela infinita bondade divina. A"civilização", com sua
Simone Debout, impressionada com esta carta, chegou a lhe dedicar peculiar mistura de lógica egoísta eirracionalidade, criou condições ins
todo um livro, na convicção de que se trata de uma brincadeira significa titucionais que acarretam graves prejuízos à expressão da atração uni
tiva, desmistificadora: "As palavras diferentes que se precipitam a partir versal. Aatração devia serreconhecida como o"impulso naturalanterior
das mesmasfazem surgiro que a consciência e a moral reprovam, o avesso àreflexão", que "persiste apesar da oposição da razão" (OC, VI, p. 57).

20 21
FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER PENSAMENTO

O grande desafio que Fourier propõeà humanidade é o de superar 3. A CIVILIZAÇÃO EAS MULHERES
essa situação. Asociedade precisa sertransformada para que os homens
venham a ser felizes, atendendo à demanda de seus sentimentos mais A civilização teve, em seus primeiros tempos, certa eficiência na intro
"naturais". —5^ • dução de novas técnicas e novos procedimentos organizativos na eco
Simone Debout enfatiza a originalidade da fundamentação teórica nomia, contribuindo para o aumento da produção de bens materiais.
dessa proposta de ação transformadora: Fourier "une a teoria do senti Desde o começo, porém, esses avanços foram acompanhados de efeitos
mento à teoria das transformações sociais" (Debout, 1978, p. 171). colateraisbastante negativos.
Como intuição ontológica, a atração passional precisava ser escla Os civilizados eram incitados abuscar oenriquecimento aqualquer
recida, trabalhada pela reflexão, e Fourier tinha clara consciência disso. preço e isso acabava por lançá-los numa competição desenfreada uns
Ao mesmo tempo, contudo, o filósofo insistia, ao longo da elaboração contra os outros, tornando-os cínicos, egoístas, calculistas, desprovidos A-
da sua obra, na sua convicção de que a."v.erdade" daatração passional de sentimentos comunitários. As diferenças naturais e fecundas entre
não estava sujeita à aprovação por parte dos "ideólogos", quer dizer, indivíduos e grupos acabaram se transformando em monstruosas desi
dos intelectuais "civilizados" pernósticos, "sofistas", que agiam a seu ver gualdades. As leis eas instituições passaram aser elementos de legitima
como prepotentes profissionais da argumentação. ção da opressão e dos privilégios. Aordem social passou a servir para
É Fourier não admitia quelheviessem impor padrões sancionados em assegurar condições nas quais uma parte dos seres humanos podia satis
orne da "ciência", critérios preestabelecidos do que devia serconside- fazer seus desejos em detrimento dos mais pobres e dos mais fracos:
ido "certo" ou "errado".Seos pretensos "sábios" não entendiam a im Essa situação vem gerando tensões internas cada vez mais graves no
portância daatração passional, pior para eles; isso seria um sinal de que interior dassociedades. Num texto de 1806,intitulado"O descaminho
haviamadotado idéiasacumpliciadas com a repressão e não conseguiam da razão" (Uégarement de Iaraison), Fourieradvertia num tom sinistro
se assumir comosujeitos desejantes. O autor da Teoria dos quatro mo os detentores dopoder e dariqueza, dizendo-lhes queostronos estavam
vimentos, então, era perfeitamente coerente ao entender que seria ab assentados sobre barris de pólvora,explosões revolucionárias sedelinea
surdo abrir mão de sua condição de sujeito desejante assumido, cons vam no horizonte; e acrescentava: "Quando pensardes nessas verdades
ciente do poder da atração passional que sentia estar presente em sua terríveis, soberanos e proprietários, estremecei!" (OC, XII, p. 670).
própria pessoa, para se impor o respeito descabido à lógica de criaturas .Nas condições criadas e mantidas pelo regime civilizado, as desi
cujo horizonte estava comprometido com a cegueira da "civilização". gualdades sociais se acentuavam e as liberdades se tornavam ilusórias.
É em torno desse "caroço", dessa intuição ontológica, que o pensa "Se não égeral, aliberdade éilusória" (OC, III, p. 162). Os privilegiados,
mento de Fourier se organiza. Ele não se desenvolve a partir de uma oprimindo os pobres,impediam-nos de seremefetivamentelivres. Fou
construção doutrinária predefinida, mas em função da recusa radical da rier denunciava: "Toda a classe pobre está inteiramente privada da li
"civilização" e da confiança na atração passional. berdade política ou social, reduzida a submeter-se a trabalhos assalaria
Procuremos lembrar aqui alguns dos marcos do movimento do pen dos que aprisionam tanto a alma como o corpo. Um subalterno que
samento de Fourier. tivesse opiniões contrárias às do seu chefe seria demitido, perderia o
emprego. Ele não tem, portanto, liberdade social ativa, nãotem direito
de opinião, nem mesmo nos limites do senso comum" (OC, III, p. 158).
Acivilização está cada vez mais dominada pelo espírito mesquinho

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
PENSAMENTO

dos comerciantes. Com a idéia fixa de obterem lucro a qualquer custo, Ocasamento monogâmico, tal como está instituído pela civilização,
os comerciantesse tornaram riquíssimose extremamente poderosos, em é contrário à natureza; por isso é quase que inevitavelmente acompa
certos casos mais poderosos que alguns reis. Fourier imprecava: "O co nhado pela traição. Uma incansável campanha contra o casamento leva
merciante é um corsário industrial" (OC, III, p. 217). E explicava: Fourier a se interessar pela figura do marido traído e o filósofo chega a
"Hoje, os comerciantes são livres, mas o corpo social não é livre nas elaborar uma lista contendo 76 espécies diferentes de cornos. Entre os
relações com eles, pois somos forçados a fazer compras, não podemos tipos de corno se destacam: o corno putativo (que sofre as dores do uso
deixar de adquirir alimentos e roupas. Comisso, ficamos nas mãosdos dos chifres antes mesmo de recebê-los), ocorno marcial (que toma drás
vendedores, entregues à velhacaria deles" (OC, III, p. 195). ticas medidas militares dentro de casa para evitar que aconteça o que
^~ Astransformações ocorridas na civilização ao longo doséculo XVIII afinal acaba acontecendo), o corno sarcástico (que ridiculariza os outros
foram contraditórias. Por um lado, houve alguns avanços tecnológicos cornos sem se dar conta de sua própria situação), o corno resignado, o
dignos de nota; por outro,contudo, o fortalecimento do espírito mer corno viajante, ocorno excessivamente absorvido pelos negócios, ocor
cantil agravou os males do regime civilizado. Ele passou a dar claros no de saúde frágil, ocorno politicamente hábil (que faz aliança com um
sinais de que estava durando muito mais do que seria razoável que du dos amantes da sua mulher para combater os outros), o corno tutelado
rasse. Com o prolongamento antinatural de sua existência, o sistema (que obedece atodas as ordens da esposa), o corno mimado (que aceita
vinha acarretando conseqüências especialmente deletérias para a massa tudo, desde que o papariquem), o corno cínico, o corno perplexo, o
dos trabalhadores e paraa metade feminina da humanidade. corno fraternal, ocorno inconformado que vive provocando escândalos,
De fato, a civilização impunhaaos trabalhadores condições inóspi etc. (OC, XI, vol. 3, pp. 249 a 272).
tas detrabalho, jornadaspenosas e cansativas, atividades mecânicas nada Avisão satírica dos maridos traídos fazia parte de uma estratégia de
criativas; paralelamente, consagrava o casamento monogâmico, manti apoio às esposas que traíam. Em sua Teoria dos quatro movimentos, o
nha formas rudes de coerção na organização da vida familiar e impunha filósofo se solidarizava resolutamente com asmulheres e com a rebeldia
às mulheres uma situação insuportável. delas, explicando que era graças à persistência com que infringiam as
Na civilização, afirmava Fourier, a mulher é pressionada para esco
regras que lhes eram impostas que as mulheres proporcionavam alguma
lher entre a prostituição mais ou menos evidente ou disfarçada e a "es alegria aos homens e a elas mesmas. Arecusa à fidelidade obrigatória
cravidão conjugai" (OC, I, p. 150). A Revolução Francesa teria dado abria caminho para os prazeres do adultério, partilhados pelas esposas
uma prova eloqüente dasua inépcia aorecuar diante dodesafio deabolir e por seus amantes. "A felicidade do sexo masculino se estabelece na
o casamento monogâmico, uma instituição que parecia ter sido inven
proporção daresistência das mulheres aos preceitos da fidelidade con-
tada para premiar os perversos. "Quanto mais um homem é astucioso e jugai"(OC,I,p.l38).
sedutor, mais fácil é paraelealcançar por meio do casamento a fortuna Trata-se de uma rebelião plenamente justificada, já que é sobre as
e a respeitabilidade" (OC, IV, p. 99). O resultado da preservação dessa
costas das mulheres que pesa a civilização, com toda a sua carga inuma
instituição era previsível: o amor, para subsistir, era obrigado a negá-la, na. "Os civilizados julgam as mulheres com base em seus costumes atuais,
tornando-se subversivo. "Não tendo outro caminho para satisfazer-se,
com base nadissimulação que é inculcada nelas, quando lhes é recusada
o amor se torna um conspirador permanente, que trabalha de maneira
toda e qualquer liberdade; eles acreditam que essa duplicidade é um
infatigável na desorganização da sociedade, desrespeitando todos os li atributo natural e invariável do sexo feminino" (OC, I, p. 90).
mites colocados pela legislação" (OC, V, p. 211). Toda a educação nas sociedades civilizadas tem se empenhado em

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
PENSAMENTO

inculcar nas mulheres um espírito de docilidade e de obediência. E é a oque elas têm afazer écuidar de se preservar, servindo-se, quando for
resistência oferecida por elas que mostra o nível das liberdades efetiva ocaso, de artifícios ementiras: "É evidente que as mulheres, oprimidas,
mente alcançadas em cada povo. perseguidas em todos os sentidos, não têm outra saída senão afalsidade;
Fourier chega mesmo a sustentar que a posição das mulheres é o eaculpa disso cabe inteiramente aos seus perseguidores eàcivilização"
melhor indicadordo nível de cultura e de progresso social autêntico em (OC, VII, p. 438).
cadasociedade: "O progresso social e as mudanças de períodos históri
cos acontecem na proporção em que se realiza o avanço das mulheres
em direção à liberdade; e o declínio social ocorre como um resultado
da diminuição da liberdade das mulheres" (OC, I, p. 132). 4. PERIODIZAÇÃO DO MOVIMENTO SOCIAL
Trinta e seis anosmais tarde,emseuManuscritos econômico-filosó-
ficos de 1844, Marx retomaria essa idéia de Fourier, escrevendo: "A \
relação imediata, natural, necessária do ser humano com o ser humano
Fourier desenvolveu uma classificação esquemática dos períodos percor
é a relação entre homem e mulher." E acrescentando: "Com base nessa
ridos pela humanidade em sua evolução social. Para ele, os seres huma
relação pode-se portanto julgar todo o nível de cultura alcançado pelo
nos passaram pelos períodos (1) edênico (ou primitivo), (2) selvagem
ser humano" (terceiromanuscrito, "Propriedade privada e trabalho"). (ou de inércia), (3) patriarcal (ou de pequena indústria), (4) bárbaro (ou
O tom com que Fourier defende a liberdade das mulheres é franca
de média indústria) echegaram à fase da (5) civilização (ou de grande
indústria).
mente polêmico. "Aliberdade amorosa desenvolve preciosas qualidades
nas classes que dela mais desfrutam: as senhoras da alta sociedade, as Oque deverá vir após o55 período? Aos olhos do pensador, asupe
cortesãs de bom-tom e as pequeno-burguesas solteiras. Éentreessas três ração da civilização apresentava inegáveis dificuldades. Segundo ele, numa
espécies de mulheres que podem ser percebidos os desenvolvimentos primeira etapa viria atransição: ainda sob opeso das instituições civiliza
mais felizes. Reunidas, as qualidades delas constituiriam a perfeição" das, os seres humanos precisariam conquistar alguns direitos, algumas ga
(OC, I, p. 135). As primeiras são finas, galantes, agem com segurança, rantias protetoras, que poderiam conter e limitar osexcessos dedestruti-
distinguem-se das burguesas vulgares e mesquinhas. As segundas são vidade da civilização. Essa seria aetapa do "garantismo" (o 62 período),
cordiais, generosas, simpáticas, estão familiarizadas com o prazer, são no qual deverá ser encaminhada a experiência do falanstério.
compreensivas. E as terceiras são criaturasurbanaslivres, que, recorren Ofalanstério assumiu no pensamento de Fourier uma importância
do à imprescindível dissimulação, podem desfrutar dasaventuras veda crescente, na medida emque ele enfrentava as dificuldades de umasu
das às moças de "boa família". peração da civilização sem admitir a hipótese de mudanças provocadas
Essa posiçãose mantémao longode toda a sua obra. Fourieradverte revolucionariamente. Excluída a via da revolução, era preciso recorrer
que uma moça inexperiente, virgem, não tem "perspicácia suficiente àvia do exemplo: uma experiência bcm-sucedida numa pequena comu
para perceber as hipocrisias de seus pretendentes, a delicadeza postiça nidade poderia demonstrar aos homens na prática como eles poderiam
deles" (OC, VI, p. 274), de modo que se arrisca a fazer um mau casa viver bem melhor em outro sistema que não o civilizado.
mento.
° í?,anstério "~9ue será abordado em outro capítulo, mais adiante
As moças, então, devem adquirir experiência na vidaamorosa, po —abriria caminho para a criação do regime "societário", permitiria o
rém devem ser prudentes; enquanto não se organizar a nova sociedade, início do 75 período, odo "sociantismo", operíodo da "associação sim-

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
PENSAMENTO

pies". E o 8- período, então, seria o da "Harmonia" ou "associação (OC, VI, p. 27). Em outro texto, ele fala de "600 mil volumes" (OC, II,
composta". p. xv). O número, afinal, não tem importância. Oque importa é que os
Ao todo, a humanidade, em sua trajetória social, atravessaria 36 civilizados cultos estão imbuídos de uma doutrina chamada moral, que
períodos,que se estenderiam ao longo de oitenta mil anos, no finaldos é inimigamortal das paixões.
quais se extinguiria a vida humana, animale vegetal, e a Terra deixaria Amoral assume, assim, na perspectiva de Fourier, ascaracterísticas
derealizar seumovimento derotação. NaTeoria dosquatro movimentos que Marx atribuirá nageração seguinte à ideologia.
há um curioso "quadro do curso do movimento social" que explicita a
previsão deum longoperíodo "ascensional" inaugurado pelaHarmonia
e o anúncio de dois longos períodos de "declínio",antes do fim.
Fourier, contudo, recusava-se a falar sobre os períodos que viriam 5. AS PAIXÕES
após a "Harmonia", alegando que seus contemporâneos não o com
preenderiam. Preferia, de fato, concentrar-se na crítica implacável à ci Os civilizados temem as paixões porque elas escapam ao controle da
vilização. moral. Quando uma paixão irrompe, nas condições devida doshomens
Como já foi dito, em suaanálise, a civilização era reconhecida como civilizados, elaassume formas preocupantes, freqüentemente muito des
umaorganização que podiaproporcionar avanços técnicos e prosperidade trutivas. Isso acontece porque a civilização não permite que as paixões
econômica. Impunha-se, porém, a ressalva: ela jamaisconseguiria tornar essenciais do ser humano sedesenvolvam todas ao mesmo tempo.
o trabalhoem geral uma atividade agradável; e jamais poderia assegurar Desde 1806, quando escreveu "O descaminho da razão", Fourier se
bem-estar para todos. "Se o povocivilizado desfrutasse de um mínimo de dedicou a analisar sistematicamente aspaixões radicais dos seres humanos.
conforto e fartura, de alimentação e manutençãogarantidas, ele se entre Comparou-as, qualificou-as e chegou à conclusão deque elas eram
garia à ociosidade, porque a indústria civilizada é muito repugnante. É doze. Ao longo detoda asua obra, defendeu a idéia deque era necessário
preciso,portanto, que o trabalho,no regimesocietário,setorne tão atraen que fossem criadas condições nasquais asdoze pudessem sersatisfeitas.
te como o são hoje as festas e os espetáculos" (OC, VI, p. 13). "Deus nos deu doze paixões, só podemos ser felizes satisfazendo todas
Além da vantagem de tornar-se prazeroso, o trabalho, no regime as doze" (OC, VI, p. 413).
societário, superaria amplamente a produtividade do trabalho civiliza Nenhuma paixão radical pode sercerceada impunemente. Fourier
do: pouparia energia e obteria resultados muito melhores. Uma cozinha adverte: "Toda paixão estrangulada produz uma contrapaixão tão ma
societária, por exemplo, economizaria 9/10 de combustível e 19/20 da léfica quanto a paixão natural seria benéfica" (OC, VII, p. 390).
mão-de-obra utilizada nas cozinhas civilizadas. E a produçãoindustrial As cinco primeiras entre aspaixões radicais derivam, nasua opinião,
seria rapidamente quadruplicada. dos órgãos dos sentidos: a paixão de olhar, a de ouvir, a do paladar, a
Por que, então, as pessoasse aferram às instituições civilizadas e não do olfato e a dotato. Todas estão sendo prejudicadas pela situação em
se dispõem a aproveitar as possibilidades oferecidas pela superação da que se encontram os civilizados, vivendo em cidadesfeias, barulhentas
malfadada civilização? e fétidas, obrigados a se alimentar mal e submetidos a contatos físicos J
Fourierexplica: "Existe umavenda,uma catarata das maisespessas, desagradáveis com a sujeira. -n
que cegao espírito humano. Essacatarata se compõe de 500 mil volumes Uma segunda categoria depaixões, para Fourier, reúne aquelas que
que discursam contra as paixões e contraa atração, emvezde estudá-las" se referem a determinados afetosuniversais: a paixãoda amizade, a do
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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER PENSAMENTO

amor, a da ambição e a do "familismo". São quatro paixões que lidam a "cabalista" pode se corromperem mesquinharias intrigantes; a ambi
com as relações entre as pessoas e se distinguem das cinco anteriores, ção vira carreirismo oportunista; o "familismo" resulta em nepotismo,
que se referem às relações das pessoas comas coisas. e assim por diante.
Seguem-se, finalmente, três paixões que Fourier chama de "distri- Da mesmaforma que as paixões, os prazereslegitimamente deriva
butivas": a "compósita", a "borboleta" ea "cabalista". A"compósita" é dos delas também sãodistorcidos pelacivilização, ficam desequilibrados,
a paixão do entusiasmo, da entrega do sujeito a uma causa, a um ideal, amesquinhados, supersimplificados e empobrecidos. Fourier escrevia:
a algo que ele põe acima da sua conveniência estritamente pessoal. A "Nosso erro não é, como se acredita,o de desejar demais; é o de desejar
"borboleta" é a paixão de variar, a necessidade de ir "de flor em flor", muito pouco" (OC, III, p. 233). Na Harmonia, liberadas as paixões e
sem se fixar numa coisa só (uma espécie de contrapeso indispensável diversificados os prazeres, as distorções desaparecerão: "Quanto mais
para os possíveis excessos da "compósita"). A paixão da borboleta "é a os prazeres forem numerosos e freqüentemente variados, menos se po
sabedoria apresentada sob as cores da loucura" (OC, VI, p. 102). E a* derá abusar deles" (OC, IV, p. 551). Todos os prazeres, desde que "não
| "cabalista" é a paixão "conspirativa", que leva o sujeito a se assumir sejam nocivos ou vexatórios para outra pessoa,serão úteis e proveitosos
' como sujeito particular nointerior de qualquer coletividade: é uma pai no estado societário" (OC, III, p. 23).
xão essencial para que ocoletivo não anule as diferenças, as contradições Fourier conclamava as pessoas a se observarem e a tentarem se co
em seu interior (as divisões internas, as tensões entre indivíduos e gru nhecer melhor, cada uma abrindo espaço em seu interior para enxergar
pos, é que vivificam a dinâmica da comunidade). e desenvolver suas diversas paixões, na convicção de que assim elas es
Essas doze paixões coexistem nas criaturas e fazem de todo ser hu tavam se preparando para a vidamelhor que o futuro poderia vir a lhes
mano uma unidade complexa de forças diversas. O que une as paixões proporcionar.
é uma espécie de décima terceira paixão, o "uniteísmo": parasobreviver
humanamente, cada indivíduo sente a necessidade de orquestrar sua
inevitável complexidade anímica.
Cada pessoa é uma combinação peculiar das doze paixões radicais. A 6. O AMOR
intensidade com que cada uma delas é vivida pode variar muito decaso
para caso. Existem situações em que osujeito pode serdominado poruma Entre as doze paixões, há uma que é especialmente maltratada pela ci
única paixão (possui um temperamento "solitonal". O protagonista do vilização e à qual o filósofo dedica especial atenção: o amor.
Avarento, de Molière, por exemplo, era possuído pela paixão da ambição, A intensidade de que é capaz a experiênciaamorosa lhe confere uma"
sob aforma da avareza. Outras pessoas podem ser possuídas por duas, três dimensão religiosa: "Éna embriaguez doamor que o serhumano acre
ou mais paixões, isto é, têm temperamentos "bitonais", "tritonais", "te- dita elevar-se ao céu e partilhar a felicidade de Deus. A ilusão não é tão
tratonais"ou até "pentatonais". Robespierre (de quem Fourier não gostava nobree tão religiosa nas outras paixões; elas não elevam tão alto o grau
nem um pouco) é caracterizado como uma personalidade dominada por de embriaguez dos sentidose da alma; elasnosaproximam bem menos
três paixões: a "compósita", a "cabalista" e a ambição. da felicidade divina e são menos capazesde fornecer o embrião de uma
Quando as paixõespuderemse desenvolver simultaneamente e com religião da identificação com Deus, uma religião que sejabem diferente
total liberdade para todas, umas equilibrarão as outras. Na civilização, das religiões civilizadas, já que estassão cultos da esperança pm D^ns e
a "compósita" pode facilmente degenerar em fanatismo e intolerância; jiãocteassociação à sua felicidade" (OC, VII, p. 15).

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
PENSAMENTO

AHarmonia, no futuro, vai se basear num amor humano a Deus que 7. EROTISMO E GASTROSOFIA
seapoiará naexperiência de felicidade conhecida pelos seres humanos que
pode lhes ensinar algo dafelicidade divina: a experiência do amor. Areferência às orgias pode causar espanto aos leitores. Fourier conside
Aj3ajxão_arru3r43sa^ejr^^ inelimi- rava "naturais" os impulsos orgiásticos, embora admitisse que na civili
náveis, que são a do corp^eajda-alma^tfxé^-a dos sentimentos espiri zação as orgias eram manifestações de grosseria. Nas orgias dos civiliza-
tuais e a da intensidade material das sensações^jQ&dvilizados muitas dos^jgcreyjaAudo épuro materialismo; osentimejnjonãoJ^rriJiêlínum
vezes sacrificam uma dessas dimensões à outra. Fourier sublinhatanto Jices^ojLelas" (OC, VII, p. 326). NoJu^uroi_contui^ muita
ajmportância do^razerj^ico^^as^sualidade, como a do sentimento se™bjHdji&^^ uma
depurado, que ele chama de "celadonismo^(nome extraído de um per ^Corte do Amor^TBirigida por umjvíinistroe^.PresíaBã^oTulnPontí-
sonagem literário de grande sucesso no século XVII, CéladonTaTobra fice, quecuidarãodeassegurarjm|ões deliciosas^impatiasjrratuas, en
de Honoré D'Urfé, LAstrée). contros de efeitos duradouros entre os participantes, voluntários. (OC,
Fourier chega a criticar Cervantes por ter ridicularizado os senti VII, p. 309), de modo que a bacanal e a orgia "serão enobrecidas como
mentos "celadônicos" deDomQuixoteemrelação a Dulcinéia. Na Har ato de unidade e função santa" (OC, VII, p. 220).
monia, de acordo com o pensador francês, haverá muito apreço pelo FourieTcõnfírplenamente na legitimidade de todas as manifesta
"celadonismo", as pessoas se tornarão mais "filantrópicas" no amor, ções do amor. Nada oescandaliza. Nenhuma "mania lúbrica" lhe parece
desenvolverão modos de amar mais intensos, mais^ggssasiáaisljpuis- desprezível ou meramente ridícula, já que cada uma delas expressa aseu
sanciels). O sentimento se tornará mais verdadeiro na medida em que modo um impulso significativo da atração passional. "Cada um tem sua
não estiver comprometido com a subestimação das exigências do "prin razão em suas manias.amorosas, jáque o amor é a paixão da desrazão"
cípio material". (OC, VII, p. 384).
Os que se destacarem na capacidade_de cultivar generosamente a Não existe, para Fourier, nenhum motivo para que o homossexua-
paixão amorosa serão honrados pela comunidade a que pertencerem: Iismo seja condenado. O filósofo conta que, por acaso, aos 35 anos de
receberão o título de "anjos" e farão parte de um novo "angelicato". idade, presenciou uma cena de amor entre duas lésbicas e ficou viva
TanxoJiomens como mulheres~serão.respeitados em suas escolhas pes mente emocionado, possuído de intensa atração pelo que vira. Oincesto
soais na vida amorosa, quaisquer que venham a ser as opções feitas; a também lhe parece natural, como decorrência da junção de duas paixões
coletividade, entretanto, prestará homenagens aos que se mostrarem radicais, o amor e o "familismo" (OC, VII, p. 253).
mais dadivosos em suas atividades, porque o caminho das experiências De passagem, Fourier fez uma referência ao Marquês de Sade, consi
múltiplas é o do aprimoramento individual e o daconveniência coletiva. derando-o oautor de um "sistema moral" que refletia adeficiência em seu
Eocaminho da felicidade corporal eodo fortalecimento do sentimento, criador de duas paixões radicais: a borboleta", que lhe teria permitido
da religiosidade. ligar-se avárias pessoas e, pela variedade, atenuar sua destrutividade; ea
"Quando uma mulher estiver bem provida de todo o necessário "compósita", que lhe teria possibilitado oequilíbrio que só a dedicação
amoroso, dispondo de plena liberdade, contando com a assistência de entusiástica aum ideal positivo pode proporcionar (OC, VII, p. 391).
uma boa variedade de atletas materiais em orgias e bacanais, tanto sim Há também uma rápida observação^sicanalítica" sobre uma certa
ples como compostas, então ela poderá encontrar em sua alma uma Madame Strogonoff, uma senhora njssa.que torturava sua lindaserva por-
ampla reserva para as ilusões sentimentais" (OC, VII, p. 98). que se sentia enciumada de.vê-Ja tão bela. Fourier diverge da interpretação

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
PENSAMENTO

e^dizqueela de fato sentia-se atraída gejaserva enão ousava.assumir sua paração da galinha —"a mais preciosa das aves domésticas", "o mais
homossexualidade. Se reconhecesse a paixão que a movia, talvez asduas saudável dos comestíveis" —a cozinha harmoniana chegaria a inventar
JiyessemjpoaKblse!^ amantes (OC, VII, p. 391). três mil tipos de pratos à base de frangos e ovos (OC, V, p. 341).
Além do amor, Fourier considerava extremamente importante apai
xão derivada do paladar. Segundo ele,na Harmonia seriam conferidos
títulos honoríficos e recompensas materiais não só aos que se notabili
zassem por "virtudes amorosas", mas-também-aos-que-se-destacassem 8. AS "SERIES"
por.conhecimentos científicos, por talentos artísticos e por"realizações
gastronômicas". Haveria-títulos de "santidade" e "heroísmo". Os seres humanos são dotados de uma sociabilidade natural ese juntam
Como autodidata, o filósofo estudou nutrição porsua conta e che ou se articulam, segundo Fourier, de quatro modos elementares: a ami
gou à conclusão de que as crianças tinham suas razões para apreciar os zade, a ambição, o "familismo" e o amor. Sempre inclinado às aproxi
doces, já que oaçúcar é altamente energético. Agula, a seu ver, possuía mações analógicas, o pensador socialista relaciona esses quatro modos
sua própria sabedoria. O prazer da alimentação saborosa é "o mais ge elementares da articulação aos quatro elementos que afísica clássica dos
ral", é "oprimeiro e também o último que oser humano experimenta", antigos gregos conhecia: aamizade correspondia à terra, a ambição cor
um prazer "do qual ele desfruta desde o seu nascimento até a sua morte" respondia ao ar, o "familismo" àágua; e oamor —vinculado àenergia
(OC, VII, p. 126).
"aromática" —contribuía para a fusão dos laços promovida pelo "uni-
Os civilizados banalizam, vulgarizam e corrompem esse prazer. Em teísmo", correspondente ao fogo (OC, rV, p. 539).
geral, engolem sem atenção uma comida que não foi preparada com ca Aanálise prosseguia: aamizade era o modo de associação elementar
rinho. E, quando algo lhes agrada, devoram oalimento com voracidade, que predominava na infância; o amor, najuventude; a ambição, na ma
tornam-se glutões, exageram, prejudicando tanto o prazer como a saúde. '* turidade; e o "familismo" na velhice.
Fourier propunha que a paixão que se manifesta no paladar fosse Fourier advertia: as relações humanas no estado societário não se
estudada seriamente por uma nova ciência, a "gastrosofia". A"gastro- prenderiam aesses quatro modos elementares. A"falange experimental"
sofia" deveria ser capaz de superar o elitismo da gastronomia, contri deveria permitir que nela se formassem espontaneamente aschamadas
buindo para "obem-estar da multidão dos operários" eproporcionando "séries".
"ao povo os refinamentos da boa comida, que acivilização reserva para Por mais variadas que sejam as inclinações dos indivíduos, por mais
os ociosos" (OC, VI, p. 304). Além disso, ela deveriarelacionaro sabor peculiares que sejam as características que elas possuem, as pessoas desco
e opoder nutritivo dos alimentos com os diversos tipos de temperamen brem afinidades entre elas; então, se aliam a determinadas criaturas em
tos humanos.
torno dessas afinidades e a partir de uma certa contraposição a outras
Os 810 temperamentos (ou caráteres) por ele cuidadosamente ca criaturas, unidas porafinidades diferentes. Assim seconstituem as"séries".
talogados se tornariam muito exigentes em matéria de paladar. Assu As "séries" reúnem os seres humanos a partir de convergências im
mindo suas preferências particulares, afirmando seus respectivos gostos, portantes, porém vivem também das divergências existentes entre aque
eles estimulariam uma grande diversidade de sabores na preparação dos les que as constituem. Nenhuma concórdia pode presumir aeliminação
pratos. A demanda cada vez mais refinada criaria uma oferta cada vez das discórdias, que são elementos insuprimíveis da realidade humana.
mais ricamente variada. Fourier assegurava, porexemplo, que na pre- O que levou Simone Debout a observar: o paradoxo maior de Fourier

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
PENSAMENTO

está na insistência com que ele se empenha em "fundar o acordosobre


a diferença" (Debout, 1978, p. 11). fértil, colinas, bosques eum rio. Os indivíduos selecionados para aex
Asérie ganha vitalidade porforça da diversidade das preferências periência deveriam ter várias idades, formações distintas, diversos níveis
de seus integrantes. Por isso, uma "série" equilibrada deve ter, em seu de cultura ede conhecimentos. "Quanto mais variedade nas paixões
interior, divisões e subdivisões. Ateoria de Fourier valoriza energica enas faculdades, mais fácil será harmonizá-los em pouco tempo" (OC
iy p. 428). '
mente as diferenças de grupos e de indivíduos.
O número ideal de integrantes de uma "série" deveria ser de cin Dos 1.620 habitantes do falanstério, 415 seriam homens adultos,
qüenta pessoas, com um grupo mais influente no centro e outros grupos 395 seriam mulheres adultas, 810 seriam crianças (OC, IV, p. 442).
menos influentes mas necessários à direita e à esquerda. As "séries" de Aremuneração de serviços e trabalhos seria feita de acordo com
veriam se inserir num conjunto de cerca de 400 pessoas, organizadas em uma avaliação que levaria em conta três fatores: ocapital investido
torno das atividades produtivas por elas reconhecidas como imprescin (4/12), as tarefas práticas realizadas (5/12) eotalento ou os conheci
díveis àsobrevivência eao bem-estar material. Essa organização, contu mentos demonstrados (3/12). Odinheiro circularia no falanstério eaju
daria a fazer o sistema funcionar.
do, só se legitimaria aos olhos de todos se não manifestasse incompati
bilidade com o prazer. Um "areópago" ou conselho superior, integrado por representantes
Quatro desses conjuntos de 400 pessoas comporiam a "falange ex de cada ' série", zelaria pelo bom funcionamento das atividades neces
perimental". Se tivesse muito mais de 1.600 membros, a falange se tor sárias, indicando as tarefas que estivessem por ser realizadas, sem jamais
naria caótica: se tivesse muito menos, tenderia a mostrar-se incapaz de dar ordens ou fazer imposições, "já que aharmonia nãoadmite nenhuma
assimilar numa escala "de massa" as contradições entre indivíduos e medida coercitiva" (OC, IV, p. 447).
pequenos grupos, que se amesquinhariam infecundamente. Os comportamentos se estruturariam apartir de convicções livre
mente adquiridas enão no cumprimento de ordens. As pessoas desen
volveriam hábitos mais racionais que os da civilização, porque tomariam
consciência das vantagens oferecidas por tais hábitos para todos epara
9. O FALANSTÉRIO cada um. No falanstério seriam feitas cinco refeições. As pessoas, ávidas
de participar das muitas coisas boas da vida, acordariam bem cedo (às
Fourier denominava "falanstério" o edifício onde estaria instalada a fa^ três emeia da madrugada) etomariam odesjejum às cinco. Asegunda
lange experimental. Essa instalação precisava ser minuciosamente pre refeição seria às oito, aterceira às 13, aquarta às 18 horas. Ehaveria
uma ceia às 21 horas.
parada, em todos osseus pormenores, jáque o destino dahumanidade
dependia da experiência. __ No estado societário, os médicos edentistas receberiam da comu
Cominfinita paciência, seu idealizador fez e refez cálculos destina nidade uma remuneração tanto mais elevada quanto menor fosse onú
dos averificar qual seria adimensão mais desejável para apopulação do mero eagravidade das doenças edos problemas dentários das pessoas
falanstério: chegou aonúmero de 1.620 pessoas de diferentes condições (ao contrário do que se pode observar no critério adotado na civiliza
sociais, na maioria_agricultorese artesãos, porém assegurando a presen- ção). Aeficiência dos médicos edentistas, já na falange experimental,
ç^e_urna-nnnoHa^e^apkalistãX^rtls^j intelectuais. seria medida pelos resultados da medicina preventiva (OC, V, p. 68).
Aárea deveria ser relativamente próxima a uma cidade, com terra Fourier faz uma descrição precisa da arquitetura do falanstério, que
terá "ruas-galerias" bonitas, limpas eagradáveis, cobertas eprotegidas
3 6
FOURIER. O SOCIALISMO DO PRAZER
PENSAMENTO

dos excessos de vento, frio, calor ou umidade, pelas quais as pessoas também não se apoiaria nas concepções elaboradas pelos grandes teóri
poderão passear despreocupadamente. Haverá zonas de barulho (para cos e pedagogos da civilização.
crianças, cozinha, festas, ocupações ruidosas) e zonas de tranqüilidade Fourier comentava sarcasticamente que Condillacsó conseguiu for^)
(para repouso, leitura, meditação). Haverá também salas especiais (os mar um cretino, Rousseau não educou seus próprios filhos, oprincipal/ ^~
"seristérios") planejadas para sediar as reuniões dos integrantes das di discípulo de Sêneca foi oimperador Nero eofilho de Cícero só conse-/
versas "séries". guiu se destacar como beberrão. Mesmo os maiores educadores civiliJ
A economia do falanstério não elimina a propriedade privada e zados acumularamestrondosos fracassos. y
mantém o dinheiro,bemcomopráticas demercado. No entanto,Fourier Nas bibliotecas do falanstério, os livros dos filósofos do passado se
está convencido de que as práticas do mercado e o uso do dinheiro no riam certamente lidos esem dúvida muito apreciados, mas encarados co
falanstério não assumirão ascaracterísticas que podemser vistas no fun mo monumentos divertidos da infância da humanidade (OC, II, p. 22).
cionamento do mercado tal como sevêna civilização, porque a preser Aeducação das crianças seria feita, predominantemente, pelas pró
vação da dimensão comunitária influirá decisivamente nas ações dos prias crianças: as crianças um pouco mais velhas ensinariam oque soubes
indivíduos. A civilização é inumana e o mercado emque se apoia a sua sem às outras, um pouco mais jovens eávidas por imitá-las (OC, VI, p.
economia também é inumano. Riviale observou que, na civilização, "o 218). Aintervenção dos adultos ficaria reduzida ao mínimo indispensável.
mercado, apresentado como substituto ao mesmo tempo da virtude e Taj_como o trabalho, a atividade educativa deverá ser prazerosa.
do poder, encontra-se, segundo Fourier, invadido pelo vício e pelavio Uma fungõTelevante~será cumprida pelas artes, a ópera, amúsica, a
lência" (Riviale, 1996, p. 56). dança, oteatro, amímica, apoesia, apintura, acomposição dos cenários.
O falanstério criará uma situação que nunca existiu antes. Serítín- Todos terão acesso àfruição da arte eà expressão artística: "Não haverá
do-se livres, seguros da legitimidade de seusdesejos e de suaspaixões, mais artistas de teatro (comédiens), porque todos oserão" (OC, V, p.
os indivíduos terão apreço pela organização que lhes possibilita a vida 78). E ninguém serápago para sê-lo.
que levam e não terão nenhum motivo paraa competição exacerbada e O falanstério não pode deixar de ter um bom teatro, onde serão
destrutiva que a civilização lhesimpõe. encenadas peças, óperas magníficas, espetáculos de qualidade assegura
No mundo inteiro se poderá notar uma curiosidade crescente a res da pelo intercâmbio com outros falanstérios. Aexpressão artística, en
peito do que se passa no falanstério. Turistas acorrerão emgrande nú tão, floresceria livremente, sem ser atrapalhada pelo moralismo, que
mero (sobretudo ingleses!). Quem vier visitar o local deverá pagar in
resulta em chatice eafugenta o público (OC, IX, p. 766).
gresso e isso constituirá uma boa fonte de renda.
Para cuidar das crianças muito pequenas, haveria babás, que seriam
pagas pela comunidade e serevezariam em turnos de no máximo duas
horas. Seriam pessoas qualificadas e respeitadas pelas mães.
Naturalmente gulosas, as crianças serão também desde cedo ins
10. A EDUCAÇÃO truídas na arte culinária edesenvolverão conhecimentos gastronômicos
(mais tarde, gastrosóficos). Todos os seres humanos, em última análise,
serão cozinheiros competentes (OC, V, p. 105).
Aeducação no falanstério não assumiria as características dasexperiên
Para se reconhecerem parte da natureza e poderem se identificar
ciaseducacionais que têm sido realizadas pelassociedades civilizadas. E
com ela mais profundamente, as crianças aprenderão a tratar com cari-

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39

:
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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER PENSAMENTO

»
nho os animais, que se tornarão mais felizese mais hábeis na Harmonia. Aprimeira relação amorosa não deve serbanalizada; com freqüên
Haverá educação musical para os bichos (OC,V, p. 92). cia, ela será vivida entre um jovem e uma mulher madura ou entre uma
A educação societária levará em conta em cada fase de desenvol jovem e um homem maduro, já que "a naturezaama oscruzamentose
vimento as necessidades da criança e sempre cuidará de lhe propor gosta de aproximaras idades afastadas" (OC, "V, p. 262).
cionar meios de enriquecimento individual e condições para se inte
grar mais plenamente na coletividade. Ultrapassado o período inicial
(o dos recém-nascidos, nourrissons), virá a fase dos lutins e dos pou-
pons; em seguida, uma etapa importante, a dos bambins (de 35 a 54 11. A HARMONIA
meses), na qual a criança será estimulada a aprimorar suasfaculdades
corporais. Fourier, conforme jáfoi dito, estava absolutamente convencido de que
Apartir dequatro anos emeio, quando se torna querubim, a criança existia uma forte relação deinterdependência entreo quesepassava na
passa a ganhar seupróprio dinheiro, prestando pequenos serviços à co Terra e o que acontecia no cosmo. Havia, segundo ele, uma interferência
munidade e tendo direito à suaprópria remuneração (OC, W, p. 446). mútua entre o cósmico e o histórico. Na medida em que retardavam a
O período seguinte é o dos serafins (dos 6,5 aos 9 anos), ao qual se organização da sua vida nos moldes da Harmonia, os seres humanos
seguem as fases dos liceanos (dos 9 aos 12 anos) e dos ginasianos (dos acarretavam danos aos astros.
12 aos 15 anos).
Aoshomens, aliás, cabia alterar o movimento dos astros. Deus criara
Querubins e serafins formarão "pequenos bandos" que prestarão
o universo e, para coroar suacriação,criara o ser humano,criatura livre,
ajuda nasplantações; liceanos e ginasianos formarão "pequenas hordas"
que cuidarão dos animais e da limpeza. Os integrantes das "pequenas incumbida de completar a obra divina. "Parece inconcebível que Deus
hordas" usarão uniformes vistosos, receberão medalhas e homenagens tenhaassociado a uma função tão elevada uma criatura tão desprezível
detodos, desfilarão emparadas e se incumbirão detrabalhos repugnan como nós; parece incrível que ele tenha nos incumbido de cuidar do
tes,comopor exemplo a remoção dosdetritosdofalanstério. Umcódigo movimento dos astros, de intervir nele e de modificá-lo. No entanto, é
de honra transformará "em filantropia religiosa o exercício das funções essa a atribuição do homem" (OC, VII, p. 467). Por quê? Porque "Deus
mais triviais" (OC, V, p. 148). querfazer de nósseus associados e não seus escravos" (OC, II,p. xxvii).
Finalmente, aos 16anos, a educação entrará em seu último período, Osastros dependem denósmais doquenósdeles. O Sol, porexem
e só então Fourier entende que venham a ser abordadas as questões plo, está doente, porque aTerra, corrompida como está, não correspon
interligadas do amor e do sexo. Até chegarem aos 16 anos, ascrianças de ao que ele esperava dela. A Lua,coitada,já morreu: o que os civili
sãoconsideradas rigorosamente assexuadas e assim devem permanecer, zados contemplam com enlevo é — declara Fourier sarcasticamente —
de acordo com o paradoxal pensador. apenas um cadáver. E Mercúrio não está nada bem: precisamos atraí-lo
Dos16aos 19 ou 20, osjovens deverão serencaminhados para uma para uma órbita em torno da Terra, afastá-lo um poucodo Sol.
transição prudente, sem precipitações, para o exercícioda liberdade de Os planetas são bissexuados: são masculinos pelo pólonorte e fe
amar. Fourier sustentaque no falanstério existirá estímulo para o "ves- mininos pelo pólo sul. Avida de cada planeta se beneficia dasrelações
talado", quer dizer, para uma castidade voluntária de jovens dos dois sexuais entre o norte e o sul. Além disso, os planetas copulam uns com
sexos, ao longo de dois ou três anos. os outros através de "jatos aromáticos". O espaço sideral é todo cruzado

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
PENSAMENTO

pelos jatos aromáricos, "como balas num campo de batalha" (OC, XII, ATerra está ansiosa pela mudança. Aaurora boreal é, segundo Fou
"Cosmogonia", p. 23).
rier, "uma efusão inútil de fluido prolífico" (OC, I. p. 40) eum sinal do
Fourier considera a eletricidade e a luz movimentos "aromáricos". que ela poderá fazer na nova era que ainda não pôde começar. Sobre o
Para ele, os seres humanos deveriam se preparar para descobrir novos pólo norte vai se formar uma "coroa", um "anel luminoso", que influirá
segredos da natureza tanto no reino animal, vegetal emineral como no na incidência dos raios do Sol. As regiões geladas vão se tornar extraor
ainda pouco conhecido reino "aromai" (OC, IV, p. 219). "O aroma éo dinariamente férteis: São Petersburgo produzirá uvas eVarsóvia produ
que há de mais forte na natureza material" (OC, II, p. 191). zirá laranjas. Aágua dos oceanos deixará de ser salgada ese transformará
Júpiter e Marte, pormeio do pólo norte, copulam —aromatica- numa espécie de "limonada" (OC, I, p. 45).
mente —com o pólo sul da Terra; Saturno, por meio do pólo sul, Mais surpreendentes ainda serão as mudanças que ocorrerão com
copula com o pólo norte da Terra: essas cópulas influem no apareci os seres humanos, que terão um enorme desenvolvimento, tanto físico
mento de plantas e animais; das primeiras, nasceram o camelo, o boi como espiritual. Os órgãos dos sentidos passarão por um fantástico aper
e a vaca; das segundas, nasceram o cavalo e o jumento (OC, VII, pp feiçoamento: nosso olho poderá enxergar no escuro e fitar o Sol sem
469-471).
danos; nosso olfato superará ofaro dos cachorros, nosso ouvido escutará
Outras cópulas aromáticas geraram flores e frutos. ATerra, copu- novos sons sutilíssimos, nosso tato e nosso paladar vão se refinar de
lando com Saturno, engendrou atulipa; com oSol, engendrou a uva; maneira espantosa. Chegaremos adesenvolver acapacidade de respirar
com Mercúrio, engendrou omorango; ecopulando consigo mesma (pó debaixo da água.
lo norte com pólo sul) engendrou avioleta (OC, IV, p. 244). Os indivíduos viverão mais (cerca de 140 anos), dormirão menos e
Apersistência da civilização na Terra está causando graves prejuízos melhor (cinco horas bastarão para o repouso) e —respeitando as exi
ao intercâmbio com o Sol e osplanetas. Uma das evidências disso está gências impostas pela paixão da borboleta —nunca ultrapassarão adu
na proliferação de catástrofes e no aumento do número de animais ve ração de duas horas em nenhum trabalho. Os dedos do pé, que na civi
nenosos erepugnantes. ATerra corre orisco de morrer em pouco tempo. lização são inúteis, desenvolverão importantes habilidades ese tornarão
Ovisionário advertia: "Nosso globo está em perigo iminente etem ape meios eficazes para o aproveitamento de novos instrumentos musicais a
nas 432 anos de existência vindoura" (OC, VII, p. 488). Atragédia só serem inventados (OC, VI, p. 208).
pode ser evitada se os seres humanos conseguirem finalmente se reor As pessoas aumentarão de estatura e terão mais de dois metros de
ganizar no estado societário e criar a Harmonia. altura. Ocabelo nunca deixará de crescer, de modo que não existirão
AHarmonia proporcionará mudanças notáveis. ATerra recuperará carecas. Quem ao envelhecer perder os dentes será agraciado com uma
seu viço, sua saúde. Os animais daninhos epeçonhentos desaparecerão. nova dentição natural (OC, VIII, p. 441). Depois da 16* geração criada
Deixarão de existir ratos, vermes, insetos nocivos, animais selvagens na Harmonia, os seres humanos desenvolverão um membro-extra, que
perigosos. Em compensação, surgirão novas espécies de animais, dispos Fourier chama de "arquibraço", eque de fato será um rabo (como'o do
tos aservir aos homens: antileões, anticrocodilos, antibaleias que ajuda macaco), um prolongamento da coluna vertebral, com uma forte mão
rão os navios, antitubarões que ajudarão os pescadores, etc. (OC, IV, pp. na extremidade, para poder agarrar com firmeza quaisquer objetos. Fou
254 e255). ATerra ingressará numa nova "adolescência" (OC, XII, p. rier garantia que o"arquibraço"seria de imensa utilidade para nós (apud
53). Aatmosfera se purificará, atemperatura se elevará, as calotas po Beecher, op. cit., pp. 340-341).
lares derreterão.
Todas essas intuições se baseiam numa opção metodológica feita por

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER PENSAMENTO
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Fourier, caracterizada pela legitimação daanalogia. As"ciências" desen sua ação era a críticaà civilização. Escreveu: "Mesmo que fosse verdade
volvidas pela civilização são áridas, limitadas, pobres, não estão em con que as novas ciências aindafossem equivocadas, romanescas, continua
dições de investigar as conexões que a analogia nos revela. Fourier ria a ser seguro que sou o primeiro e o único autor a indicar um caminho
preconiza a criação de "novas ciências". O teórico do falanstério, bem- para associar as desigualdades e quadruplicar a produção através do
humorado, sustenta: "A analogia é a mais divertida das ciências; ela emprego daspaixões, temperamentos e instintos que a natureza nosdeu.
confere uma alma a toda a natureza" (OC, XII, p. 201). Eesse o ponto sobre o qual deve serconcentrada a atenção, e não sobre
as ciências que estão sendo apenas prenunciadas" (OC,VIII, p. 443).
O adversário é a civilização. O essencial é superá-la. O máximo em
penho precisa estar dirigido para libertar osseres humanos das cadeias
12. A PERSPECTIVA
que acorrentam suas paixões, amesquinham seus prazeres e os atrelam
ao trabalho.
Para Fourier existiam cinco ramos do movimento universal, interliga Nas sociedades civilizadas o trabalho não pode deixar de assumir
dos. O primeiro seria o movimento físico-mecânico, material, aquele formas desagradáveis oumesmo repugnantes, porque resulta da impo
que Isaac Newton estudou e explicou. O segundo seria o movimento sição por uma parte da sociedade de determinadas atividades a outra
aromai, da comunicação entre os astros, que ainda estava para ser cien parte da sociedade. A predominância dos interesses particulares dos
tificamente explicado. O terceiro, o movimento orgânico das formas grandes comerciantes sobre os interesses dos produtores acarreta uma
e das cores dos seres vivos. Oquarto, o movimento instintual, dos ani situação na qual as tendências parasitárias tendem a se generalizar. "Os
mais. E o quinto, afinal, era o movimento passional ou social dos seres que trabalham na manufatura e na agricultura criamriquezas. O comer
humanos.
ciantenão produz nada, é um mero agente distribuidor,um servidordos
Fourier se orgulhava de ter sido o pioneiro desbravador que havia produtos que o mantêm" (OC, XI, p. 15). Além de não produzir, o
lançado luz sobre esse último movimento e o chamava de movimento comerciante tende a promover uma desqualificaçâo da cultura p lima
"pivotal". Aos seus olhos, o movimento passional era o "coordenador" legitimação da.incultura. Diz muito sobre a civilização — anota Fourier
(OC, XII, p. 160), o"arquétipo" dos demais, achave para acompreen — "o fato de que a atividade que exige menos estudo, a atividade do
são dosoutros(OC, IX, p. A2). comerciante, seja a mais lucrativa" (OC, XI, p. 22).
Nessas condições, o campo onde lhe cabia travar a batalha decisiva Fourier chega a falar em "despotismo",em uma "ditadura dos co
na propagação de sua doutrina nãoeraa cosmogonia, não era o das es merciantes" (OC, I, p. 222).Um comerciante não precisa serculto, sen
tranhíssimas imagens analógicas, mas o daradicalidade crítica em face da sível, patriótico, para ser bem-sucedido. Freqüentemente severifica, ao
civilização, com seu sistema de repressão e desvirtuamento das paixões^- contrário, que a incultura, a falta de patriotismo e a insensibilidade fa
Era a civilização que estava estorvando o movimento passional, vorecem o êxito. E o patronato se aproveita do fato de ser mal formado
coordenador dosoutros quatro ramos do movimento universal. Em seu para encarar como "normal" a pobreza característica do mundo dos
último livro publicado —Afalsa indústria —ele procurou deixar isso trabalhadores, que o cerca.
bem claro. Em nenhum momento manifestou qualquer dúvida arespeito ..Potóer se escandaliza com o fato de que, na civilização, a riqueza
davalidade de suas concepções cosmogônicas, de suas "novas ciências" paralelamente engendre a pobreza. "Para que existam alguns ricos", es
fundadas sobre a analogia. Porém insistiu na idéia de que o essencial na creve, "é preciso que existam muitos pobres" (OC, IX,p. F6). Ospobres

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
PENSAMENTO

se_sentem mais infelizes na medida em quevêem mais riquezas acumu e aestruturação da Icâria de Étienne Cabet. Para Fourier, quaisquer
ladas nas mãos dos ricos. Impedida de participar do aumento da riqueza, formas de convivência que fossem impostas e não-voluntárias resulta
a classe pobre passa a ter um aumento de privação, pois "enxerga uma riam num acumpliciamento com a repressão civilizada. Assim, jamais
variedade maior de bens, mas são bens dos quais ela não pode desfrutar" poderia ser aceita a comunidade que, tal como Cabet queria, determi
(OC,XI,p,35).
nasse aos trabalhadores oque cada um deveria produzir elhes pagasse,
Acivilização não pode sequer assegurar à massa dos trabalhadores não em dinheiro, mas in natura.
condições materiais que lhe garantam a tranqüilidade da subsistência, A perspectiva da criação no falanstério de uma comunidade onde
porque, se isso acontecesse, como o trabalho nas sociedades civilizadas cada um faria oque desejasse encantou algumas almas rebeldes, seduziu
épor definição inumano, ninguém trabalharia. Éanecessidade que obri alguns espíritos inquietos echegou asensibilizar diversos trabalhadores
ga os trabalhadores atrabalhar; por isso, énecessário que eles se sintam politizados. Um exemplo desse efeito se encontra na carta que aoperária
aguilhoados pela necessidade.
Desirée Veret, muitos anos após amorte de Fourier, escreveu, emocio
-**Na geração seguinte, Marx se concentrará na análise crítica do"J nada, para Victor Considérant, dando testemunho do vigor com que
modo de produção capitalista everá no movimento operário osujeito fora tocada pela utopia fourierista: "A utopia étão velha quanto omun
de uma transformação revolucionária da sociedade, aforça material ca do organizado. Ela éavanguarda das novas sociedades efará asocieda
paz de forjar uma nova sociedade (e a Harmonia para ele se chamará de, aHarmonia, quando ogênio dosJiomensiizer-dela-uma-realidade"
comunismo). Fourier, contudo, empreendia sua crítica radical do capi {in Rancière, Jacques, 1988, p. 407).
talismo (para ele, acivilização) no âmbito da troca, no nível da circulação Como já foi dito, porém, os fourieristas eseus simpatizantes perma
das mercadorias. Enão lhe era possível discernir no proletariado indus- neceram minoritários. Os trabalhadores politizados, em sua maioria,
I trial incipiente da França onúcleo de ações decisivas na criação da so preferiram seguir os caminhos indicados nas ações enas teorias de Marx,
ciedade nova.
Engels, Proudhon, Lassalle, Bakunin, Blanqui e outros.
Se nateoria deFourier não havia espaço para o reconhecimento do Aobra de Fourier, contudo, não foi esquecida; não desapareceu.
papel aser desempenhado pelo proletariado na história política das dé Teve, de fato, um efeito diferenterExerceu uma influência mais difusa,
cadas subseqüentes, isso não impediu, contudo, que alguns trabalhado que só pode ser notada com maior clareza quando se observa um movi
res fossem tocados pela mensagem do seu socialismo utópico. mento mais lento, que se desenvolve ao longo de um período mais ex
Aproposta de ação encaminhada porFourier, entretanto, tinha ca tenso, de maior duração.
racterísticas muito peculiares enão correspondia às disposições subjeti Olegado do pensador manifestou sua vitalidade numa história que
vas da maioria dos trabalhadores mais combativos.
não era a daprecipitação dos conflitos mais agudos e mais imediatos da
No projeto do falanstério, o pensador fundia duas aspirações de luta política. Aeficácia alcançada pela perspectiva de Fourier, tal como
quase impossível combinação: a da revalorização doespírito comunitá foi exposta em seus escritos, aparece num tempo especial: otempo dos
rio ea da mais completa liberdade individual para todos. Sua exacerbada sonhos recorrentes, que sacodem, na cultura, a poeira das estratifica-
preocupação com a defesa da autonomia das pessoas o distinguia de ções, dos hábitos mentais envelhecidos, mas preservados pela inércia e
outros teóricos socialistas da primeira metade do século XIX, porele pelas manhas da ideologia. Um tempo de mudanças sociais sutis, de
tidos como "coletivistas". Sua perspectiva o levava a condenar as hierar transformações humanas complexas, que levam, às vezes, vários séculos
quias da"igreja" dos saint-simonianos, o "comunismo" deRobert Owen para se efetivarem.

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"d

•---^-~-
I

1. NO SÉCULO XIX

Após a morte de Fourier, os discípulos se dividiram. Henri Desroches


aborda, comdisposição polêmica, essa divisão, em seu livro La société
festive, caracterizando duas grandes tendências que se definiriam pelo
tipo de relação que pretendiam manter com o mestre: "de um lado, a
posição atestatória da ortodoxia teórica, que se tornava praticamente
conformista; de outro, a posição contestadora da dissidência, aferrada
ao seu inconformismo" (Desroches, 1975,p. 177).
A principal corrente dos fourieristas teve como líder Victor Consi
deram, que desenvolveuao longo de váriasdécadasintensa atividade de
proselitismo./ Constituíram-se contudo, à margem da atuação do grupo
liderado por Consideram, outros grupos autônomos que tomavam suas
próprias iniciativas. Eforam tomadas asprovidências iniciais paraa ins
talação de falanstérios, em diversos locais, sem que no entanto os pro
jetos tivessem podido ser levados adiante.
Um dos falanstérios que chegou a serplanejado em sua fase inicial,
segundo informação contida num livro intitulado Organisation du tra-
vail, publicado em 1845 pelo Dr. A. deBonnard (cf. Desroches, 1975),
deveria ser instalado no Brasil. Suzana Munhoz da Rocha, em 1993,
relembrou ahistória do grupo de franceses que, em 1841, sob aliderança
do médico homeopata Dr. Benoít Tules Mure,de Lyon, fundou a "Co
lônia Industrial do Saí", no município de SãoFrancisco, em Santa Ca
tarina, na mesma região onde, após o fracasso da experiência, os imi
grantes alemães viriam a fundar Joinville (Munhoz da Rocha, 1993).
Recentemente foi publicado um estudo sobre esse fascinante episó-

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
O LEGADO

dio que liga diretamente ofourierismo ao Brasil: Fourier: utopia eespe pensador. Victor Considérant influenciou um militar de nome Hippo-
rança na península do Saí, de Raquel S. Thiago (S. Thiago, 1995). A lyte Renaud, queescreveu um livro intitulado Solidarité, e a leitura desse
experiência durou pouco, porque surgiram graves dissenções entre oDr. livro marcou oescritor Émile Zola, de modo que alguns críticos pude
Mure e seus sócios, os fourieristas Jamain e Derion. Foram trocadas ram descobrir ecos das idéias de Fourier no romance Le travail, do autor
acusações: Jamain e Derion acusaram o Dr. Mure de uso indevido do de Germinal. Também Eugène Sue, em uma parte da sua obra de ficção
dinheiro da associação ede autoritarismo; eforam acusados por ele de (Les mystères de Paris e Les sept pechés capitaux, entre outros), acolhe
anárquicose influenciados pelo saint-simonismo. impressões de algum contato com as idéias de Fourier. Oque não signi
Os grupos que empreendiam as experiências práticas eram, natural fica, evidentemente, queZolaeSue tenhamsetornadofourieristas. Tam
mente, levados a fazer "adaptações", abandonando algumas das minu bém o escritor russo Tchernitchévsky, autor do Que fazer?, ficou mar
ciosas prescrições de Fourier. Enas "adaptações" surgiam, é claro, di cado pela leitura das idéias de Fourier, sem contudo tê-las adotado
vergências arespeito dequais aspectos dadoutrina deveriam serrevistos globalmente, como informa Wanda Bannour (in Lefebvre, 1975).
e quais normas deveriam ser obedecidas a qualquer custo. Entre a ação estrita dos discípulos, que disputavam emtornodahonra
Havia também grupos de autodesignados discípulos de Fourier que de serem os herdeiros mais legítimos e os sucessores "oficiais" do mestre,
renunciaram aos esforços no sentido de criar um falanstério e faziam de um lado, e, de outro, a influência difusa, exercida sobre autores que
experiências mais modestas, considerando "revolucionária" a linha se ficavam impressionados com sua grandeza ou lhe dedicavam admiração,
guida por Victor Considérant. Stanislas Aucaigne publicou um livro in porém não se comprometiam com a assimilação de suasidéias numa di
titulado Théorie sociétaire de Charles Fourier, Arthur d'Auglemont or reção socialista prática, Fourier deixou também um legado que veio a ser
ganizou uma cooperativa de consumo, Jean Czynski criou uma "padaria assumido por pensadores socialistas como, por exemplo, Marx e Engels,
verídica" para fornecer pão aos associados, todos convencidos de que que procuravam aproveitar elementos significativos dasconstruções teó
eram os autênticos "herdeiros", aqueles que haviam compreendido o ricas do autor da Teoriados quatro movimentos, adaptando-os auma pers
essencial das lições do mestre (Desanti, 1970, pp. 209-210). pectiva filosófica distinta e até contrastante com a dele. •
Paralelamente às querelas dos discípulos, entretanto, as idéias de Nos escritos de Marx e de Engels há muitas dezenas de referências
Fourier exerceram uma influência ampla edifusa nos anos que se segui aFourier. Engels, mais doque Marx, explicita com freqüência suafranca
ram aoseu falecimento. Balzac, porexemplo, ridiculariza os fourieristas simpatia em relação ao teórico do falanstério. Em 1845, quando Marx
no romance inacabado Les comédiens sans lesavoir, caricaturando um estava exilado na Bélgica, Engels tentou criar uma editora na qual seriam
pintor de talento que adere às concepções teóricas do "mestre", mas se publicados em alemão textos de "excelentes escritores socialistas estran
torna ridículo ao reduzir sua pintura amero instrumento de propaganda geiros". Para o primeiro volume da coleção, que conteria escritos de
da seita. Contudo, o mesmo Balzac, na Revue parisienne (25-8-1840), Fourier, Engels chegou a traduzir algumas páginas do autor francês. E
comparou o espírito radicalmente inovador de Fourier aode Jesus Cris escreveu para Marx, em Bruxelas: "Fourier criticou as relações sociais
to; e prestou ao teórico socialista a homenagem de reconhecer: "Ele existentes com tanta agudeza, graça e humor, que a gente perdoa gos
concebeu a tarefa colossal de adaptar o meio às paixões, destruindo os tosamente suas fantasias cosmológicas, que também se baseiam numa
obstáculos e prevenindo os conflitos." genial visão do mundo" (MEW, vol. II, p. 606).
Adifusão das concepções de Fourier se fazia muitas vezes por ca Marx eEngels não levavam asério acosmologia de Fourier, acópula
minhos indiretos, que prescindiam da leitura dos textos originais do dos astros através de jatos aromáricos, mas viam em seus escritos um

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
O LEGADO

"espírito verdadeiramente poético", como se lê na Ideologia alemã


(MEW, vol. III, p. 448), e o defendiam contra as críticas do "autêntico
otrabalho vai se tornar uma atividade agradável, espontânea, prazerosa,
nas condições da Harmonia.
filisteu alemão" Karl Grün. Os autores da Ideologia alemã lamentaram
que Grün fugisse dodesafio de abordar as concepções de Fourier sobre
Marx e Engels estavam convencidos de que a visão utópica era a
expressão de um momento histórico marcado por limitações nos hori
educação, que lhes pareciam ser "de longe o que havia de melhor, no zontes do pensamento crítico, porém os avanços realizados pelo movi
seu gênero" e continham "as mais geniais observações" (MEW, vol. III, mento operário epela ciência tinham levado a uma superação das limi
p. 501). Já na Sagrada família, Marx e Engels elogiavam Fourier por tações epor isso mesmo tornavam não só dispensável como prejudicial
haver denunciado afraseologia oca que se disfarça por trás do conceito a persistência da perspectiva da utopia.
de "progresso" (MEW, vol. II, p. 88) epor ter percebido que na civili Outro teórico dosocialismo que entrou em contato com asidéias de
zação o modelo de comportamento virtuoso preconizado pelos mora Fourier, no século XIX, foi Pierre-Joseph Proudhon. Oautor de Oque é
listas só poderia vir aser adotado, de fato, por milionários (MEW, vol. apropriedade? trabalhava numa tipografia eparticipou da impressão de
II, p. 213).
O novo mundo industrial e societário, em 1829. A leitura do livro de
Em uma carta a Paul Annenkov, Marx fez uma comparação entre Fourier — seu conterrâneo, já que Proudhon também era nascido em
Proudhon eFourier eafirmou que este era mais "profundo" (MEW, vol. Besançon —marcou-o profundamente. Nos anos seguintes, entretanto,
TV; p. 491). Engels, no prólogo de seu estudo sobre aguerra camponesa assumiu posições asperamente críticas em relação aoautorda obra. Acu
na Alemanha, incluiu Fourier entre as "cabeças mais significativas de
todos os tempos" (ME\^ vol. VII, p.541). sou-o dequerer instaurar uma "pornocracia". Escreveu: "A metafísica de
Fourier não passa de rapsódia e plágio, sua classificação das paixões é
Engels também defendeu Fourier contra os ataques feitos por Düh-
ring, que considerava ofrancês um "idiota" (MEW, vol. XX, p. 29). Em errada, sua moral édetestável" (cit. por Rude in Lefebvre, 1975, p. 36).
Na seguncla metade do século XIX, os (poucos) socialistas que evo
Do socialismo utópico aosocialismo científico, reconhece-se a Fourier cavam Fourier'recordavam-no com simpatia eserenidade, como se perce
o mérito de ter "desvelado impiedosamente a miséria moral e material
be, por exemplo, no estudo que lhe dedicou o bravo social-democrata
do mundo burguês". Eé nesse texto que Engels chega a asseverar que alemão August Bebei (Bebei, 1886). Ou, ainda, nas referências que lhe são
Fourier "maneja a dialética com amesma mestria que seu contemporâ feitas de passagem pelo brilhante social-democrata italiano Antônio La-
neo Hegel" (MEW, vol. XIX. pp. 196e 197).
briola, que fala na "exuberância de um gênio não disciplinado" e numa
Aorigem da família, da propriedade privada edo Estado cita Fourier
"fantasia luxuriante e irrefreada" (Labriola, 1964). Percebia-se uma certa
em diversas passagens e exalta sua "brilhante crítica da civilização" dificuldade para lidar com os aspectos mais excêntricos da obra do "visio
(ME^ vol. XXI, p. 170). Com uma desenvoltura que não se manifesta nário". Notava-se a preocupação de adequar a imagem dele às conve
em Marx, Engels se divertia com as críticas de Fourier ao casamento
niências de um partido de massas que se dispunha a apresentar uma face
monogâmico e aos costumes sexuais dos civilizados.
"respeitável" àopinião pública. Por isso Bebei, discretamente, aponta ele
Havia, é claro, alguns pontos nos quais as divergências entre Marx mentos de "anarquismo" na perspectiva de Fourier, sugerindo que tais
e Engels, de um lado, e Fourier, de outro, saltavam aos olhos. Já foi elementos devam ser, na medida do possível, neutralizados.
mencionada a recusa da cosmologia fourieriana pelos autores do Mani
festo comunista. Mas há também a rejeição explícita por Marx da tese
de Fourier de que, para deixar de ser oque énas condições da civilização,

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER O LEGADO

2. NO SÉCULO XX trições se encontra no livro Les sources françaises du socialisme scienti-


fique, que Roger Garaudy publicou em 1949. Garaudy elogiava as crí
No século XX, redefiniu-se uma corrente que tratava de incorporar ticas de Fourier ao capitalismo, porém lamentava as "puerilidades da
elementos das teorias de Fourier a uma perspectiva socialista reformista sua imaginação", derivadas de seus "desejos de pequeno-burguês" (Ga
edecididamente não-revolucionária. E. Poisson, por exemplo, retoman raudy, 1949).
do a"leitura" de alguns dos discípulos que repeliam as posições de Victor Fourier passou a ser visto, em geral, como um pensador que tinha
Considérant por achá-las muito "radicais", reduzia o pensador a um tido um papel histórico importante na medida em que havia prenuncia
mero teórico do "cooperativismo", caracterizando-o como "opai incon do Marx eEngels, mas havia sido superado pelo movimento que passara
testável da cooperação" (Poisson, E., 1932, p. 11). EHenri Bourgin, já por ele elogo assumira um caráter mais amadurecido, na trajetória que
em 1905, propunha que se esquecesse aquela parte da obra que estava ia "do socialismo utópico ao socialismo científico" (conforme se podia
prejudicada pela "loucura" de Fourier e não apresentava mais nenhum lerno título do famoso panfleto de Engels).
interesse, para que fossem reaproveitadas algumas das suas idéias úteis, Uma das poucas exceções nesse quadro da abordagem "marxista-le-
bem como a parte sensata dadoutrina do autor de O novo mundo in ninista" do fenômeno Fourier nos é proporcionada pelo filósofo hún
dustrial esocietário, quer dizer, aparte que correspondia às necessidades garo Georg Lukács. Ao longo de sua vasta obra, Lukács serefere a Fou
do socialismo reformista no início do século (Bourgin, 1905). rier em diversas ocasiões, embora não lhe dedique nenhuma análise
ARevolução Russa de 1917 deu origem àUnião Soviética, àTerceira desenvolvida. Faz contudo observações sintomáticas que mostram uma
Internacional eaomovimento comunista mundial, que viria aseorientar percepção aguda do interesse que a perspectiva original do pensador
pela doutrina do "marxismo-leninismo". Entre os"marxistas-leninistas" francês pode ter para nós. No livro sobre ojovem Hegel, Lukács chega
prevalecia um espírito decididamente hostil ao reformismo moderado a dizer que a crítica social elaborada por Fourier se situa num nível
que havia prevalecido no campo da social-democracia. De modo que na superior à deHegel (Lukács, 1973, vol. II,p. 652). Enoensaio dedicado
interpretação de Fourier era natural que os representantes danova cor a Büchner, nó volume dedicado aos autores realistas alemães do século
rente de pensamento e ação procurassem resgatar a dimensão radical, XIX, Lukács inclui Fourier entre os poucos "grandes pensadores" que
revolucionária, que existia na obra de Fourier, independentemente das se recusaram a aceitar a contraposição ética entre o ascetismo jacobino
intenções de seu autor. e o niilismo moral cínico (Lukács, 1964).
Logo se manifestaram, contudo, algumas dificuldades. A enfática Além da vertente social-democrática e da vertente comunista dos
valorização do desejo por parte de Fourier, por exemplo, não cabia nos "marxistas-leninistas", há uma terceira tendência que marca a "recep
parâmetros das análises inspiradas pelo "marxismo-leninismo". A con ção" de Fourier no século XX: aquela que tem em alguns autores pró
vicção fourierista de que acomunidade, na Harmonia, deveria congre ximos às posições anarquistas e em alguns escritores surrealistas seus
gar indivíduos desejantes inequivocamente autônomos, independentes, representantes mais destacados.
livres, não combinava com arígida disciplina imposta pela "ditadura do André Breton, o "Papa doSurrealismo", escreveu uma Ode à Char
proletariado" epelo partido bolchevique, como formas de organização les Fourier que se tornou famosa. Nela, opoeta exalta ofilósofo por ter
da vida comunitária. compreendido que as paixões, inclusive aquelas que a moral atual con
Compreende-se então que os "marxistas-leninistas", em sua maio dena, "constituem um criptograma indivisível que ohomem é desafiado
ria, fizessem graves restrições a Fourier. Uma manifestação dessas res- adecifrar". Evê sair da cabeça de Fourier uma águia que arrebata com

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
O LEGADO

suasgarras o animal símbolo da obediência cega e do conformismo es desse ponto de vista: "O que a utopia anula é osocialismo enquanto
túpido: a ovelha de Panurge (da história de Rabelais).
política, éomovimento operário enquanto movimento puramente po
Vale apena lembrar também que ocineasta espanhol Bunuel, ligado lítico. (...) O que faz para nós toda a modernidade do fourierismo é o
ao movimento surrealista, põe na boca do personagem Don Lope, no seu apoliticismo ferrenho" (Bruckner, 1975, p. 14).
filme Tristana, palavras que Fourier com certeza aplaudiria: "Abaixo o De certo modo, ariqueza dasignificação do fenômeno Fourier não
trabalho que temos de fazer para ganhar a vida! Esse trabalho não nos cabe na apresentação de uma das suas facetas, não comporta aredução
honra, como dizem. Só serve para encher a barriga dos porcos que nos forçada do seu legado a um dos seus aspectos. Oque há de mais fasci
exploram. Em compensação, o que fazemos porvocação, enobrece o nante no velho pensador francês é o conjunto diversificado das suas
homem. Seria preciso que todos pudessem trabalhar assim." características, a integração numa totalidade extraordinariamente sur
E não pode deixar de serrecordado igualmente o ensaísta Daniel preendente de traços peculiaríssimos (ainda mais notáveis pelo fato de
Guérin, escritor prolífico, de posições libertárias, militante da extrema se juntarem e se articularem numa inédita interdependência).
esquerda, defensor combativo do movimento gay e grande admirador
de Fourier, de quem difundiu as idéias sobre o amor e o casamento
(Guérin, 1975).
Próximos aessa linha se acham intelectuais representativos daquilo 3. NOSÉCULO XXI?
que desde os anos sessenta se tem chamado de "anova esquerda". Éo
caso, por exemplo, de Herbert Marcuse, que emEros ecivilização elogia Que aspectos da obra edo pensamento de Fourier estarão vivos ao longo
Fourier por ter se aproximado bastante da compreensão da liberdade do século XXI? Aarticulação das suas concepções continuará asuscitar
como sublimação não repressiva, porém também o critica por terima espanto e curiosidade ou haverá interesse apenas por alguns aspectos
ginado um sistema de administração do trabalho livre no falanstério, determinados dasua filosofia? Seus escritos constituirão uma referência
ignorando o fato de que só o trabalho alienado pode ser organizado e significativa em debates ou reflexões importantes? Ou serão freqüenta
administrado pela rotina da razão (Marcuse, 1968). dos somente por historiadores eruditos euns poucos especialistas?
Ás vezes, no interior da revalorização dos elementos tidos como Os textos em que o filósofo seexpressa diretamente, com seus cál
mais "delirantes" da doutrina fourierista, se manifestam tendências que, culos minuciosos eseus argumentos pretensamente científicos, serão li
enfatizando a fecundidade das formas mais bizarras da inquietação de dos? Seus livros merecerão traduções ereedições? Ou os editores pre
Fourier, chegam a promover certa "despolitização" dasua obra. Claude ferirão antologias e coletâneas? E, se o caminho for o da difusão das
Morilhat aponta, com olhar vigilante, duas expressões dessas tendên coletâneas, os fragmentos das coisas que Fourier escreveu proporciona
cias, advertindo para os riscos que podem acarretar aum esforço sério rão uma compreensão suficientemente matizada da sua filosofia?
de análise de Fourier: podem incorrer numa unilateralidade simetrica- Adifusão das idéias de Fourier passará predominantemente por ou
mente oposta à dos críticos que punham sumariamente de lado o que tros caminhos que não o das edições de seus textos? Seu pensamento
lhes parecia prejudicado pela "loucura" do filósofo (Morilhat, 1991). será adaptado a relatos ficcionais, será apresentado através de imagens
A. Vergez escreveu: "O grande erro dos primeiros discípulos foi o de ou de narrações orais?
terem feito desse poeta revolucionário um economista reformador" Dominique Desanti conta que no final dos anos sessenta esteve nos
(Vergez, 1969, p. 57). ERBruckner dá um passo adiante na explicitação Estados Unidos e conversou com o líder de uma comunidade hippie
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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
O LEGADO

intitulada "Togetherness", instalada ao sul de São Francisco, que durou


18 meses. Orapaz lhe declarou que ogrupo era "fourierista". Apesqui socialista que permaneceu prisioneirade critérioseaspirações ainda exa-
sadora francesa lhe perguntou seele e seus companheiros haviam lido geradamente individualistas? Ou, ao contrário, será criticado sobretudo
Fouriere o sujeitorespondeuque não,esclarecendo: "Nos falaram dele" por nao ter conseguido ser suficientemente conseqüente na defesa das
(Desanti, 1970, p.8). Comunidades dotipo da"Togetherness" voltarão diferenças individuais, escorregando para uma perspectiva que, apesar
a aparecer? Invocarão a inspiração de Fourier, mesmo sem tê-lo lido, de seus esforços, continua sendo muito "coletivista"?
simplesmente porque ouviram falar dele? Em que medida essa espécie Seus escritos serão vistos como aexpressão de um ateísmo disfarça
de eco dissolve e banaliza o legado de Fourier? Eem que medida, de do, de uma redução panteísta de Deus ànatureza? Ou serão considera
algum modo, contribui para revitalizá-lo? dos testemunhos de uma fé genuinamente religiosa erepresentativos de
Qual a imagem de Fourier que vai preponderar? Ado teórico que uma concepção peculiar discutível porém sincera da onipotência divina?
prenuncia confusa mas agudamente tendências sociais que posterior Os exegetas que oautor de Ateoria da unidade universal vier ater
mente se apresentaram de maneira mais desenvolvidae mais nítida? Ou sublinharão seu lado pessimista, sua convicção de que aTerra um dia
a do nebuloso mas carismático "guru" que viria a inspirar algumas ex morrera eahumanidade se extinguira inexoravelmente? Ou preferirão
pressões importantes de rebeldias individuais? sublinhar seu lado épico, otimista: sua inabalável confiança nos magní
Quantos concluirão que ele era um "louco", quantos sustentarão ficos resultados da liberação de todas as doze paixões radicais dos seres
humanos?
queele eraum "gênio"? E, numa zona intermediária, como se articula
rão os juízos dos críticos que vierem a considerá-lo um "louco genial" Poderíamos nos alongar nesse elenco de questões que a obra de
ou um "gênio tresloucado"? Fourier poderá vir asuscitar na leitura aque for submetida ao longo do
O autor de O novomundo amoroso seráevocadocomo um "sonha século XXI. Formular as indagações pode ser um exercício divertido e
dorsublime", conforme a caracterização de Stendhal, ouserá recordado estimulante, desde que não nos iludamos quanto àpossibilidade de for
como um "velhote lúbrico" (salacious old man), nas palavras de Ralph mular respostas conclusivas para as perguntas que fazemos. Ofuturo
Waldo Emerson? em ultima análise, éimprevisível. Eodestino do legado de Fourier pode
nos reservar algumas surpresas.
Quais os cientistas que o estudarão com maior freqüência? Os his
toriadores? Os sociólogos? Os cientistas políticos? Oscríticos literários? Uma coisa, entretanto, pode ser constatada desde já: aobra de Fou
Os psicólogos? Ou os psiquiatras? rier conta com alguns trunfos poderosos nessa virada do milênio Quan
Qual a avaliação da sua obra que prevalecerá? Ade uma negação do vier aser interpelada pelas gerações vindouras, ela poderá contar
dafilosofia pormeio deum implacável acerto decontas com osfilósofos com alguns fortes argumentos para se impor ao reconhecimento eà
admiração de seus novos leitores.
em geral, todos encarados como cúmplices da civilização e coniventes
com a difamação sistemática das paixões humanas? Oua deuma refim- Nas páginas seguintes, que concluem este livro, tentaremos anteci
par alguns desses argumentos.
dação da filosofia, capaz de reabilitá-la pelo avesso, através de uma ou
sada ampliação darazão, para incorporar aomovimento dareflexão as
riquezas do sonho e da fantasia?
Em sua abordagem da relação entre indivíduo e coletividade, Fou
rier será predominantemente criticado por ter elaborado uma teoria

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Vitalidade

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1. ARGUMENTOS
Ao longo de sua vasta obra, Fourier cometeu numerosos equívocos e
escreveu diversas tolices. Não há nenhuma razão para que as bobagens
ditas pelo filósofo sejam sonegadas ou camufladas.
Alguns exemplos de derrapagens do pensador podem ser facilmente
recordados, sem qualquer esforço de pesquisa.
Nas páginas que dedicou à educação no falanstério, na Teoria da
unidade universal, ele —que em determinados momentos prenuncia a
aguda percepção de Freud sobre a libido —comete a ingenuidade de
supor que meninos e meninas de até 16 anos são assexuados.
Nos manuscritos publicados pela Phalange, reclama, preconceituo-
samente, ák "avareza" dos judeus; eexpressa otemor de que os judeus
venham a ter na França tanto poder como tinham na Polônia (OC, XI
pp. 36-37).
Seu pânico diante da possibilidade de que algum plagiário lhe rou
basse alguma idéia assume, às vezes, dimensões um tanto cômicas. Suas
opiniões políticas se ressentem, em certas passagens, de uma surpreen
dente superficialidade. Em Afalsa indústria manifesta uma curiosa sim
patia pela política econômica do ditador do Paraguai, Gaspar Rodriguez
de Francia, que estaria de certo modo encaminhando medidas próximas
às de uma transição para a economia societária. Escreve: "Embora sem
teoria, ele tem um instinto para aordem combinada" (OC, VIII, p. 431).
Sua recusa aenfrentar odesafio da atuação política leva-o ao ponto
de afiançar que o falanstério resultaria de "uma operação alheia aos
assuntos políticos eadmissível sob qualquer governo" (OC, IV, p. 56).
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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER VITALIDADE

Não teria nenhum sentidoprocurar mitificarFourier, ignorando os da de que otrabalho pode edeve se tornar "atraente", travaram impor
elementos problemáticos de seusescritos. Como disse Henri Lefebvre tantes batalhas políticas, obtiveram alguns êxitos e podem ainda con
— que o admirava—, ele tem algumas passagens que são "pura e sim quistar novas e expressivas vitórias.
plesmente ridículas" (Lefebvre, 1975, p. 12). Outro argumento que pode ser apresentado em favor de Fourier se
Emalguns momentos, é impossível deixarmos de nos espantar com apoia no seu pioneirismo em relação àpreocupação com apreservação
algumas de suas características mais paradoxais. Ésurpreendente, por do meio ambiente nas cidades modernas. O historiador Alexandrian
exemplo, como o pensador, tão apaixonado pela liberdade individual, chega asustentar que, "entre outras antecipações, foi Fourier quem in
se preocupa com a descrição minuciosa da ordem que deveráreinar iio ventou a ecologia" (Alexandrian, 1979, p. 96).
falanstério, mesmo nas orgias!
Um levantamento dos aspectos mais frágeis dos escritos de Fourier
De fato, com seu horror àirracionalidade destrutiva da civilização,
poderia levar o pesquisador, entretanto, a perder devista o fato de que
Fourier foi levado auma campanha permanente de denúncia da degra
os tropeços e as falhas não invalidam os aspectos mais fortes do legado
dação ambiental nos centros urbanos, insalubres, fétidos, barulhentos e
feios. Epropôs, entre outras medidas concretas, que fossem feitas leis
do filósofo.
Lembremos rapidamente alguns argumentos que podem nosajudar
capazes de enfrentar a expansão da especulação imobiliária, definidas
a reconhecer a importância da sua obra, a vitalidade dassuasidéias.
normas para proteger áreas verdes etomadas medidas práticas enérgicas
Comecemos pela reflexão que ele desenvolve acerca dotrabalho. É para impedir a construção de prédios que desrespeitassem os direitos
dos cidadãos.
possível que Marx tenha tido razão quando o criticou por pretender
uma impossível assimilação do trabalho à gratuidade prazerosa da brin Não apenas as cidades, mas também ocampe é, para ele, motivo de
cadeira. Talvez se trate, realmente, de uma meta inalcançável. Havia, preocupação. São impressionantes suas advertências a respeito da des
porém, no exagero da formulação utópicauma cargadinamizadoraque truição das florestas pelos predadores industriais, bem como sobre a
impulsionava os trabalhadores e seus aliados no sentido de lutar para poluição^das fontes de água potável (OC, VI, p. 391).
conquistar melhores remunerações e melhores condições de trabalho. Numa linha de pensamento que oaproxima de Rousseau (a quem
Já em 1803, na "Lettre au Grand Juge", Fourier preconizava uma fazia seyeras restrições!), Fourier se apoia na "natureza" para criticar
legislação que garantisse aos trabalhadores uma remuneração com um ações históricas dos seres humanos. Aênfase posta no "natural" pode
teto "mínimo decente". Em certo sentido, a idéia antecipava, com mais facilmente enfraquecer acapacidade de reconhecer plenamente aforça
de um século de antecedência, aquilo que viria a ser a lei do salário da dimensão histórica dos fenômenos sociais. Em certo sentido, porém,
mínimo (Alexandrian, 1979). a referência à "natureza" mitificada, em sua contraposição àhistória,
Nos movimentos de reivindicação por condiçõesde trabalho menos proporcionava à perspectiva de Fourier um terreno com base no qual
inóspitas, os trabalhadores também encontravam na perspectiva de Fou ele podia alertar contra um ponto de vista "produtivista", que tende a
rier um programa radical que lhes permitia ir além dos pequenos avan reduzir demasiado sumariamente a natureza a algo que o ser humano
ços e das modestas conquistas parciais, para continuar e aprofundar a deve apenas "dominar" e "utilizar".
luta numa direção mais ambiciosa, que passava pela denúncia do des Como observaram Schérer e Hocquenghem, Fourier não nega a
gaste provocado por umamesma ocupação constante ao longo demais importância decisiva da produção, mas ressalta uma "aliança" dos seres
de duas horas. Os trabalhadores, mobilizados pela convicção apaixona humanos com anatureza, uma interdependência que deriva necessaria-

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER VITALIDADE
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rriente do fato de que por ambos os pólos passa um mesmo movimento neamente em torno de afinidades, mas também de contrastes; em torno
de "fluxo produtivo desejante" (in Lefebvre, 1975, p. 97). de discordâncias e concordâncias; em torno de cumplicidades e rivalida
Aperspectiva fourierista, então,manifestaria suavitalidade na con des. Não foi por acaso que ele escolheu apalavra "rivais" para caracterizar
tribuição que pode dar para a correção de uma postura utilitária, ime- a relação dasmulheres livres, no futuro, com oshomens.
diatista, que dificultou para os marxistas o aprofundamento da reflexão Preservando o imprescindível espaço da afirmação da personalida
deles sobre a gravidade dos problemas com que se defronta a luta em de, a "série" impulsionaria ao mesmo tempo omovimento pelo qual os
prol da preservação do meio ambiente. indivíduos seriam levados voluntariamente a ultrapassar os limites res
Um terceiro argumento a ser considerado é o que aponta o papel tritos de uma preocupação exclusiva de cada um com seu próprio um
pioneiro de Fourier no desencadeamento dos movimentos que têm de bigo (Urias, 1992, p. 121). Com isso, aidéia da "série" pode, ainda hoje,
nunciado nestes dois liltimos séculosas formas — ora sutis e disfarçadas,- nos estimulara aprofundar nossa reflexão sobre os meios de combinar
ora ostensivas e descaradas — de discriminação das mulheres. o apreço pela singularidade pessoal com arealização livre mas necessária
Maria Monetti, em seu livroLameccanica dellepassione, sublinhou dos valores comunitários.
a importância do papel desempenhado nesse campo por Fourier (Mo Um dos pontos mais obviamente problemáticos na obra de Fourier é
netti, 1979). Nenhum filósofo antes dele havia denunciado com tanta a correlação que ele postula, analogicamente, entre osfenômenos huma
nitidez e com tanto vigor o sistema criado pela civilização para incutir nos e os fenômenos cósmicos. Trata-se, com certeza, de uma correlação
nas mulheres um espírito de docilidade e obediência. arbitrária, cujo pressuposto é uma visão do mundo como uma imensa
Vale a pena observarmostambém que, na perspectivadessepioneiro máquina, comoum todo regido por umaracionalidade mecânica e carac
da reivindicação da igualdade dos sexos no plano dos direitos e das terizado por certa homogeneidade básica (Oliveira, 1996, p. 100).
possibilidades concretas de afirmação pessoal, nunca era negada a rei No entanto, mesmo reconhecendo o que o recurso à analogia tem
vindicaçãodas diferenças a serem assumidas.A luta contra todas as for dearbitrário, podemos argumentar que, nocaso deFourier, a desenvol
mas de discriminaçãodeveria ser acompanhada pela disposiçãodas mu tura por ele permitida propicia uma abordagem instigante, ainda que
lheres para assumirem uma identidade feminina diversa da masculina. confusa, de questões que na época ainda permaneciam fora dos quadros
O pensador prevê que no futuro "as mulheres em associação resgatarão mapeados pela razão constituída.
rapidamente o papel que a natureza lhes atribui, o papel de rivais e não As fantasias que apareceram no exercício das analogias fourieristas
de subordinadas do sexo masculino" (OC, VI, p. 141). careciam de cientificidade, porém em alguns momentos apontaram para
Exibindo sua simpatia transbordante pelo sexo feminino, ele sus aspectos ainda indecifrados da nossa experiência, para a inesgotabilidade
tenta que "a mulher, em estado de liberdade, vai superar o homem em do real, para a infinimde dialética do movimento da realidade. Philippe
todas as funçõesespirituais e também em todas as funções corporais que Riviale fala numa "reserva de significados" (Riviale, 1996, p. 49).
não forem atributos da força física" (OC, I, p. 149). Explorando, ainda que por vezes canhestramente, esse tesouro ine-
Outro argumento capaz de indicar a vitalidade do pensamento de xaurível designificações que nosescapam, Fourier, emsuas desenvoltas
Fourier é justamente aquele que chama a atenção para a sua constante estripulias teóricas, contribuiu e —podemos argumentar —pode con
preocupação comas diferenças, umapreocupação queaparece claramente tinuarcontribuindo paraque as ciências sejam mais ousadas e maiscria
em seu conceito de série. As "séries" constituiriam um nível de articulação tivas ao enfrentar o desafio permanente da autocrítica, da revisão dos
de indivíduos e grupos no falanstério. Essa articulação se faria esponta- saberes tidos como adquiridos.

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
VITALIDADE

Da contribuição do filósofoà luta pelo fortalecimento de uma pos


tura mais energicamente autoquestionadora por parte dos cientistas de
são, no marketing eno merchandising, não proporcionam aos civilizados
a perspectiva dos prazeres que o filósofo anunciava na Harmonia?
riva, igualmente, uma importante colaboração que ele presta à reflexão
sobre atemática daideologia, que viria ateremseguida umaimportância
Areivindicação do "direito ao prazer" que aparece de forma pio
crescente para a teoria do conhecimento.
neira em Fourier não teria sido atendida eao mesmo tempo miseravel
mente degradada pela abominável civilização?
Fourier se insurge contra a concepção legada pelos "ideólogos",
que, tendo à frente Destutt de Tracy, queriam apresentar a ideologia
Impõem-se algumas considerações arespeito dessas interpelações.
como uma ciênciageral das idéias, capaz de sintetizar os conhecimentos
Antes de mais nada, devemos lembrar que odesejo, na perspectiva
proporcionados por todas as ciências: umaespécie de "ciência das ciên
de Fourier, nunca se limita aos prazeres que conhecemos no presente,
cias". Contrapondo-se a essa concepção "positiva"da ideologia, o teó
porque, nas atuais condições em que nos encontramos, até os prazeres
rico do falanstério adotou uma concepção "negativa" da ideologia, ca-
que sentimos podem sofrer distorções causadas pelos mecanismos da
racterizando-a como uma distorção do conhecimento que se dá em
civilização. Precisamos, então, pensar sobre odesejo em termos que
ligação com a divisão social civilizada e com aspressões promovidas por
abranjam também, necessariamente, os prazeres futuros, que estarão ao
alcance dosseres humanos na Harmonia.
setores privilegiados poderosos.
Em sua concepção de ideologia, então, Fouriernão só se antecipou
Odesejo, por conseguinte, tal como Fourier ovaloriza, éatual, mas
a Marx, comofez algumas observações queaindatêm o poder de chamar
também é prospectivo. E, a propósito, Nicole Beaurain observa que,
a nossaatenção para fenômenos ideológicos complexos e sutis, ligados
nessa prospecção, odesejo talvez seja "o desejo do desejo" (in Lefebvre,'
1975, p. 233).
aos sonhos, às aspirações, às fantasias e sobretudo aos desejos dos seres
humanos.
Encarado desse ângulo, odesejo não pode se reduzir às formas que
lhe são impostas pelas circunstâncias em que nos achamos. Omercado,
que nos envolve, que nos arrasta, exige uma competição exacerbada,'
fortalece oegoísmo das pessoas não só nas operações de compra evenda,
2. O DESEJO
mas também no plano da sensibilidade, das afeições. Deformados, os
indivíduos passam aatribuir uma importância maior aos prazeres obti
O tema do desejo — um tema central no pensamento de Fourier —se
dos na contenda de uns contra os outros do que aos prazeres partilhados.
presta a infindáveis controvérsias. Em face dele, há quem formule a
Alguns tendem apreferir oprazer na negação dos prazeresalheios, como
suspeita deque a valorização entusiasticamente positiva do desejo acar
se viu no caso do Marquês de Sade, que Fourier, de passagem, criticou.
reta, hoje, um grave erro político.
Aansiedade que reina na vida sexual dos civilizados tende atorná-
A exaltação dos desejos não estásendo feita exatamente pela pro
los bisonhos na arte das carícias eos incita aapressar, canhestramente,
o momento da penetração.
paganda que, na civilização, acompanha e estimula o consumismo?
O hedonismo frenético dos alegres compradores não é, de certo
Fourier está absolutamente seguro de que os seres humanos livres e
modo, a realização perversa das aspirações fourieristas?
felizes que viverão na Harmonia desfrutarão de prazeres muito su
As mercadorias encantadoras que hipnotizam o público nas prate
periores aos dos civilizados, prazeres que não se assemelharão em
leiras dos supermercados, mas também nas telas do cinema e da televi-
nada àsatisfação mesquinha epobre que épropiciada pelo imediatismo
consumista.

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FOURIER, O SOCIALISMO DO PRAZER
VITALIDADE

AHarmonia—afiança o pensador—apresentará "opções deprazer


de hora em hora; até mesmo dequinze em quinze minutos. Assim, por com formas de perseguição contra homossexuais ou condenaram como
meio da própria multiplicidade dos prazeres, serão evitados quaisquer "decadentes" e "devassos" comportamentos que, no plano da vida se
excessos. Asucessão freqüentedos prazeresconstituirá uma garantiade xual, destoavam das normas constituídas. Sugeria-se, às vezes, que as
moderaçãoe saúde" (OC, VI, p. 235). opções feitas na esfera privada deveriam ficar rigorosamente subordina
Entre os civilizados, osvoluptuosos sacrificam asaúde, seenfraque das ao controle das conveniências da organização política que atuava na
cem, porque são inseguros, lançam-se ao prazer com sofreguidão, são esfera pública. Afelicidade pessoal, se não se satisfizesse com as alegrias
incitados a isso. Na Harmonia, haverá tranqüilidade, segurança emocio da luta política, deveria aguardar que fosse criada asociedade nova para
nal, autoconfiança, equilíbrio espontâneo. vir a ser objeto de um investimento significativo.
Os civilizados são induzidos pelo medo (e pelo conservadorismo) a Fourier jamais poderia concordar com isso. Para ele, os seres huma
imaginar a liberação das paixões como uma situação caótica, sem leis, nos não deveriam se limitar avalorizar odesejo em sua forma presente,
anárquica. Fourier, contudo, estáconvencido deque"a totalliberação do deveriam abranger em sua busca da felicidade as formas possíveis do
desejo e o aniquilamento da lei não conduzem ao caos, pois a ordem é desejo futuro, mas não deveriam —de modo algum! - abrir mão de
inerente ao livre desenvolvimento das paixões" (Morilhat, 1991, p. 198). seus direitos à busca da felicidade desde já.
AHarmonia não homogeneizará, não pasteurizará os prazeres, mas Com basenas idéias por ele desenvolvidas, os socialistas não podiam
também não exacerbará artificialmente seus aspectos mais contraditó largar nenhuma das duas extremidades da corrente do desejo: nem a
rios, e comisso criará umasituação muito diferente daquela que existe extremidade do futuro (prospectiva), nem a do presente. Caberia aos
na civilização. O tempo do prazerse modificará, adequando-se a novas socialistas, nas lutas que vão travando, pavimentar aestrada pela qual,
potencialidades humanas. Asformas do prazer sediversificarão, se mul assumindo seus desejos, as criaturas fossem ao mesmo tempo transfor
tiplicarão, através deuma expansão das expressões mais sutis dodesejo, mando asociedade etratando de ir conquistando afelicidade pessoal
que atualmente são cerceadas pela pressão do produtivismo, pela per de cada uma. Apavimentação dessa estrada uniria oideal de prazer
seguição obsessiva da "rentabilidade" e pelas contingências civilizadas. futuro àreivindicação dos prazeres presentes. Enão poderia legitimar
Fourier sepreocupacoma infiltração demodos depensare desentir osacrifício da geração atual no altar das gerações vindouras.
equivocados entre pessoas empenhadas em transformar a sociedade e Fourier repeliria qualquer aliança estratégica entre moralistas con
superar a civilização. Os critérios da civilização se infiltram nas convic servadores e moralistas pretensamente revolucionários, ainda que o
ções dossocialistas e os induzem a misturar preconceitos comseus an acordo invocasse anecessidade de uma união em torno de princípios
seios de inovação. éticos para barrar uma onda de "lama".
Em certosentido, o filósofo parece mesmo ter pressentido um mo Em primeiro lugar, porque ele não acreditava na eficácia de nenhum
vimento que se tornou facilmente perceptível mais tarde e que levaria "dique" construído sobre normas morais. Aproclamação de valores éti
socialistas assustados coma onda de "permissividade" a manifestar rea
çõesde tipo "moralista" diante das mudanças na esfera dos costumes.
cos não funciona e, se for acompanhada de medidas repressivas, também
não conseguirá resolver o problema.
No século XX, o fenômeno viria a alcançar dimensões surpreen
dentes. Em numerosas ocasiões, dirigentes e militantes destacados de
Em segundo lugar, porque ahegemonia nessa aliança caberia para
organizações socialistas tomaram atitudes que implicavam conivência ele aos conservadores, que estariam sendo mais coerentes que os "revo
lucionários", já que ocompromisso do conservadorismo é, de fato, com
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a resistência à mudançae com a preservação de privilégios sociais, po Bibliografia


líticos, econômicos e culturais.
E, em terceiro lugar, porque a maneira de neutralizar a "lama", a
seu ver, não consistiria em denunciá-la e proibi-la, tentandosuprimi-la,
masemaumentar a proporção da águalimpa dasdoze paixões radicais,
que acabaria por diluir e anulara "lama".
Fourier nãoignora a importância dos valores éticos navida humana,
no empenho dos seres humanos decombater asinjustiças e construir um
futuro melhor. No entanto, ele se recusa a admitir que aos princípios OC = Oeuvres Completes, edição dos escritos de Fourier em 12 volumes
morais sejam atribuídos poderes para comandar ditatorialmente ascria lançados nos anos sessenta pela editora Anthropos, abrangendo
turas desejantes, que somos todos nós.
Para poderem serefetivamente adotados por pessoas quenãosejam
inteiramente abúlicas (e, portanto,ineptas para viver), os valores éticos vol. I: Théorie des Quarre Mouvements
precisam passar pela mediação dosdesejos delas. Osdesejos sãoexpres vol. II, III, IV, V: Théorie de 1'Unité Universelle
vol.VI: Le Nouveau MondeIndustriei et Sociétaire
sões imediatas, inelimináveis, da condição humana; os valores éticos, vol. VII: Le Nouveau Monde Amoureux
reconhecidos como absolutamente necessários, são no entanto constru vol. VIII, LX: La Fausse Industrie
ções históricas. Por isso a convicção de Fourier era a de que os juízos vol. X, XI e XII: manuscritos publicados em La Phalange.
moraisdeveriam, por assim dizer,dialogarcomosdesejos, numa postura
modesta e prudente, sem alimentar a pretensão absurda de pronunciar
contra eles condenações irrecorríveis.
Sobre Fourier
Ospressupostos filosóficos da posição assumida pelo nosso excên
trico filósofo são questionáveis. A teoria das doze paixões é discutível.
Alexandrian. Le socialisme romantique. Paris : Seuil, 1979.
Contudo a perspectiva que Fourier defendia, quando confrontada com Arantes, Urias. Charles Fourier ou Vart des passages. Paris : L'Har-
a nossa realidade contemporânea, é bastante interessante. mattan, 1993.
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1953. Apresentação.
maçãoe os avanços da informática, o terreno do lazersetorna um campo Barthes, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Paris: Seuil, 1971.
debatalha quetende a assumir uma importância política cada vez maior. Bebei, August. Charles Fourier: sein Leben und seine Theorien.
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do milênio sejam convocados a encará-la de frente. Com isso sua obra Bourgin, Henri. Fourier: contribution à Phistoire du socialisme
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