Você está na página 1de 5

QUÍMICA E SOCIEDADE

Trilogia: Química, Sociedade e Consumo

Julieta Saldanha de Oliveira, Márcio Marques Martins e Helmoz Roseniaim Appelt

A química, a sociedade e o consumo sempre estiveram interligados. Desde os primórdios das civilizações, o
homem faz uso de procedimentos que podem ser considerados como uma química empírica. As desafortunadas
condições que cercaram o mau uso e a aplicação do saber químico a estigmatizaram, sendo considerada como
um conjunto de conhecimentos negativos e indesejáveis para a sociedade. Apresenta-se uma retrospectiva
histórica comentada acerca da trilogia química-sociedade-consumo, enfatizando as inter-relações existentes.

história, sociedade, química

Recebido em 06/07/09, aceito em 03/02/10


1

O
primeiro homem que desco- inquebrável a partir de uma rocha, altamente desenvolvida e militarizada
briu os diversos usos do fogo seja porque outro povo conseguiu de- temia o poderio bélico dos hititas. O
para assar a carne e, assim, senvolver um medicamento poderoso fato de estes serem detentores de
ingerir um alimento com melhor sabor ou ainda porque alguém descobriu uma tecnologia única, que permitia
e de forma mais agradável já podia como fazer para preservar o couro produzir artefatos bélicos de ferro, era
ser considerado um químico. dos animais e usar este como uma aterrador para os faraós. Os egípcios
Esse mesmo homem, temente às vestimenta eficaz contra os gelados não conheciam o ferro e não tinham
forças da natureza, rendia culto aos invernos, lá estava a técnica e a arte a menor ideia de como produzi-lo.
seus deuses, pintando nas paredes da química se fazendo presentes. Suas ferramentas eram feitas do
de suas cavernas cenas do seu Os povos que desenvolviam um macio e maleável cobre e duravam
cotidiano. Para tanto, ele procurava conhecimento apurado nesse ramo pouco. Esse desconhecimento dos
pigmentos nas rochas coloridas, detinham o poder sobre os menos egípcios forçou-os a estabelecer um
desenvolvia a técnica correta para desenvolvidos. Eles possuíam a tratado, em que ambas as partes
preparar uma tinta que podia ser apli- tecnologia que era capaz de ajudar concordavam em não se atacar e a
cada às paredes e que permaneceria outros povos ou até mesmo de manter relações de amizade mútua.
ali ao longo das eras, reverenciando prejudicá-los. Relações comerciais Essa relação pacata durou até o mo-
os deuses. Esse homem era um quí- podiam ser estabelecidas entre mento em que ambos passaram a ter
mico prático. povos com diferenças gigantescas prejuízo monetário, e os dois impérios
Em todas as atividades humanas, de tecnologia, e benefícios enormes sentiram necessidade de expandir
havia um pouco de química. Em cada podiam ser obtidos por quem detinha suas fronteiras em busca de novos
copo de vinho bebido, pão consumi- maior conhecimento químico. As so- mercados para seus produtos e bens
do, unguento passado nas feridas ciedades antigas foram impulsiona- de consumo.
do soldado ou flecha envenenada das em seu desenvolvimento graças A exemplo desses dois povos,
lançada contra um inimigo durante ao domínio de certos conhecimentos. podemos dizer que a química esteve
uma guerra, havia a química por trás. Povos muito abastados conseguiam presente na aurora das civilizações
O papel desempenhado pela produzir centenas de barris de vinho e impulsionou o desenvolvimento de
química nas sociedades é inegável, e e cerveja, cuja produção dependia de muitas culturas antigas (e modernas),
os seus efeitos são sentidos de forma conhecimentos químicos. estando ligada ao conceito de con-
mais ou menos intensa, mas sempre Um bom exemplo disso é a re- sumo, tão familiar a todos nós nos
sentidos. Seja porque um povo des- lação entre egípcios e hititas (Jacq, dias de hoje.
cobriu como extrair um metal duro e 2005), na qual uma sociedade egípcia “Química” e “sociedade de con-

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Trilogia: Química, Sociedade e Consumo Vol. X, N° X , XXX 2010
sumo” são termos altamente interco- betumes usados em asfaltos. Com- os anos de doenças infecciosas ou
nectados. Não por acaso a palavra postos biologicamente ativos como o sexualmente transmissíveis? Desistirí-
“química” tem como uma de suas DDT foram usados como antipiolhos, amos da busca por novas moléculas
possíveis origens a palavra khemea no combate do tifo e da malária, sal- capazes de curar tais doenças?
(terra negra) (Strathern, 2000), uma vando assim muitas vidas. E apenas para exemplificar um
referência ao nome dado ao Egito Durante a revolução industrial, na pouco mais, será que gostaríamos de
pelos seus habitantes antigos, cuja Europa, houve uma grande migração usar roupas tecidas por nós mesmos
subsistência dependia das enchentes do meio rural para as cidades. Com e coloridas em nossas casas? Aban-
anuais do Rio Nilo e da sua fertilizante isso, proliferaram doenças até porque donaríamos as ricas cores que nossas
lama negra. Quando os árabes pas- esgotos corriam a céu aberto. Em roupas hoje possuem? Estaríamos
saram a praticar essa ciência egípcia, 1831, houve uma epidemia de cólera dispostos a produzir os corantes e os
eles a rebatizaram de al-khemea. na Grã-Bretanha. Sequencialmente pigmentos que tingiriam nossas roupas
A ciência da al-khemea foi apreen- houve surtos de tifo e outras doenças. e nossos objetos de uso frequente?
dida pelos europeus e teve seu nome Ficou constatado que esses proble- A química está tão presente nos
latinizado para alquimia, que mais mas se deviam à água contaminada. processos produtivos modernos que
adiante originou a ciência química Então o químico Edward Frankland simplesmente não percebemos a sua
que, no início, era eminentemente (Pfaff e Buxbaum, 2005) desenvolveu abrangência e a sua importância na
prática e pouco conhecida pela so- um método de identificação de amos- sociedade da qual todos fazemos
ciedade em geral. tras contaminadas, o que acarretou parte. Muitas vezes, nem notamos o
Atualmente pode-se dizer que numa drástica diminuição do número quanto ela é importante para nós e
a percepção pública da química é de óbitos por doenças. para a sociedade moderna que, de
quase tão mal informada quanto era Ainda hoje é comum a atribuição tanto necessitar desses produtos,
na Idade Média. Não é comum consi- de que qualquer operação com po- passou a ser usada a expressão
derar que a química tenha contribuído tencial de prejudicar o meio ambiente “sociedade de consumo”.
de maneira efetiva nas mudanças ser veementemente tachada como Entretanto, sempre há dois aspec-
2 revolucionárias das sociedades, bem “química”, havendo uma antipatia tos a se considerar em se tratando de
como os livros-textos de história rara- generalizada a temas relativos a essa qualquer assunto: o positivo e o nega-
mente citam a química no que tange ciência natural. tivo. Nossa discussão anterior focou-se
a história social e econômica. Não é raro observar pessoas di- propositalmente nos aspectos positivos
A química foi determinante no zendo que têm medo “de química”, da química, nos benefícios que ela traz
surgimento da sociedade industrial, que ela é perigosa, que deve ser ao mundo moderno, e esses aspectos
sendo que podemos falar de uma evitada e que não se deve confiar positivos são inegáveis. A ciência já
revolução química envolvendo o num produto que contenha muita trouxe à humanidade um maior con-
surgimento da indústria química pe- “química”. Também não é raro vermos trole de pragas de lavoura, e isso se
sada, incluindo a fabricação de ácido pessoas desfilando com carros colo- reverteu em melhoria na qualidade de
sulfúrico, soda e cloro. ridos, com cores metalizadas, com vida da humanidade; a expectativa de
Com o desenvolvimento da indús- vidros fumê e lâminas que protegem vida aumentou consideravelmente; a
tria têxtil no séc. XIX, as fibras neces- o motorista em caso de seus vidros qualidade e a duração dos alimentos
sitavam ser branqueadas com cloro, sofrerem estilhaços, tais eventos aumentaram significativamente; do-
e a soda era usada na produção de somente são possíveis graças aos enças antes incuráveis passaram a
sabão necessário para lavar fibras avanços químicos. ter cura; novas tecnologias surgiram
têxteis, especialmente as de origem Será que abandonaríamos a vida e continuam a surgir a cada dia. A
animal (lã) (Strathern, 2000). moderna e confortável que levamos? sociedade moderna é impulsionada
A soda também era usada para Gostaríamos de ter que preparar to- por novas descobertas, e isso tudo é
fabricar vidro. Na manufatura da dos os dias o nosso próprio molho de inegavelmente positivo. E é inegável
soda e do cloro, era necessário o tomate? Ou então gostaríamos de ter também que toda a sociedade se
ácido sulfúrico. Assim, esses três que trocar a água da piscina de sete beneficia desses aspectos positivos
produtos químicos desempenharam em sete dias? Ou estaríamos dispos- da química.
papel extremamente importante na tos a preparar nossos próprios biscoi- No entanto, não podemos fingir
Revolução Industrial, alavancando tos ou massas em vez de comprá-los que os aspectos negativos não
grandes avanços tecnológicos no em uma prática embalagem plástica, existem. Eles não só existem como
início do séc. XIX. colorida e atraente, que pode ficar estão ligados aos aspectos positivos
Houve uma intensa presença da estocada durante um ou dois meses? da química.
química na 2ª Grande Guerra Mun- Será que consideramos deixar Muitas vezes, indústrias cobram
dial (Hall, 2004), sendo que aliados um filho arder em febre em vez de preços exorbitantes por novos me-
e alemães desenvolveram pesqui- ministrar-lhe um comprimido ou umas dicamentos porque somente elas
sas químicas para a elaboração de poucas gotas de um medicamento? E possuem a patente para um dado
produtos como gases venenosos e quanto aos milhões que morrem todos medicamento.

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Trilogia: Química, Sociedade e Consumo Vol. X, N° X , XXX 2010
Em tempos modernos, podemos pés de barro que desconhece como substâncias naturalmente co-
citar as lutas travadas pelo domínio sua verdadeira força e se asse- radas eram almejadas por um povo
do petróleo, o qual é usado como melha muito a um bobão, mas considerado avançado, a ponto de
combustível ou precursor de diversos que tem ações, às vezes, de que tratados comerciais tivessem
bens de consumo fabricados pela sábio e outras de sabido. Aqui que ser estabelecidos somente para
indústria petroquímica. sabido nas suas duas acep- suprir um país inteiro com uma mera
A indústria petroquímica, em ções quase antípodas: uma, pedrinha azul. Não seria esse um bom
particular, detém um grande poder conhecedor, sabedor, versado, exemplo de uma sociedade de con-
mundial. É comum ver nações inteiras perito; a outra: astuto, finório, sumo da antiguidade? (Finlay, 2002).
subjugadas pelo poder do petróleo velhaco, trapaceiro. Realmen- Para que o lápis-lazuli pudesse
e de multinacionais que exploram te, muitas vezes a Ciência, ou ser minerado, ferramentas eficientes
esse rico mercado. Rudolf Diesel melhor, os homens e mulheres tiveram que ser desenvolvidas e
(Cummins, 1993), o criador do motor que fazem Ciência aparentam produtos relacionados foram con-
diesel, já previa que fontes renováveis desconhecer a força que tem cebidos. Nesse processo, proce-
de combustível como a soja e outros e agem como Golem. (p. 71) dimentos químicos tiveram que ser
grãos oleaginosos poderiam ser desenvolvidos. Em outras palavras,
utilizados para alimentar os motores Podemos citar exemplos de avan- a busca por novas cores promoveu
dos veículos. Na atualidade, devido ços tecnológicos, com implicações o desenvolvimento de novas tecnolo-
ao elevado custo dos combustíveis sociais, alavancados pelo empirismo. gias químicas, novos conhecimentos
fósseis, bem como ao aumento expo- Durante muito tempo, a humani- e investigações químicas.
nencial da poluição atribuída a estes, dade usou as peles de suas caças Na história humana, mais preci-
temos notado um interesse crescente como peça de vestuário. O primeiro samente na Idade Média, a indústria
por combustíveis de origem vegetal. homem que teve essa ideia devia não do tingimento de roupas era de suma
O emprego desses biocombustíveis ter um cheiro muito agradável, visto importância para os povos europeus.
pode ser considerado sustentável, que suas roupas deviam exalar odor Basta citar que o azul era uma cor
uma vez que o carbono liberado de carniça. Aos mais velhos do grupo, associada aos pobres, porque uma 3
na atmosfera durante a queima é geralmente desdentados, cabia a fun- planta era capaz de fornecer essa cor
reabsorvido pelas plantas por meio ção de chupar os ossos e “mastigar” aos tintureiros da época. O “vitrum”
do processo de fotossíntese, o que o couro como forma de se alimentar. (Isatis tinctoria) era uma folha que,
minora o impacto ambiental em com- O homem acabou observando com quando colhida, tingia de um azul
paração aos combustíveis fósseis. o tempo que o couro que havia sido muito escuro as mãos do tintureiro.
Outro exemplo de um aspecto chupado pelos anciões durava muito Estes preparavam tinas e mais tinas
negativo da química é dado pelo caso mais tempo. Estava criado o primeiro com uma mistura nada agradável de
genérico de uma indústria química processo de curtimento. “vitrum” picado e urina, na qual as
que quer colocar um novo pesticida Vejamos o caso dos pigmentos roupas ficavam imersas por 12 horas
no mercado. Essa indústria não se e corantes. Durante longo tempo, (Field e Davidson, 1888).
importa se o seu produto prejudica, o homem usava os pigmentos ex- A busca por novos corantes era
além da praga, a pessoa que o aplica, traídos das rochas e os corantes constante. Até o dia em que Vasco da
o solo, os lençóis freáticos, o ar, as retirados das plantas para selar orifí- Gama, um navegador português, que
plantas ao redor da plantação etc., cios nas paredes das cavernas bem saiu de seu país a fim de descobrir
ou seja, vislumbra somente o lucro, como pintar paredes e rostos para uma nova rota para a Índia, abaste-
visando o domínio de um mercado a guerra. No dia em que os homens ceu a Europa com novas substâncias
capaz de consumir aquele produto. descobriram que podiam usar esses químicas.
Assim sendo, qualquer caracterís- compostos coloridos para tingir suas Um exemplo disso é o “azul ín-
tica que possa ser citada como posi- vestes, criou-se um conceito de que digo” (Fay, 1911), um corante azul
tiva no tocante à ciência da química pessoas mais importantes deviam muito forte, de um tom muito belo e
torna-se facilmente uma característica usar cores nobres. Ou seja, as cores desejado pelas pessoas da época. O
negativa quando exacerbada. nobres eram aquelas cujos corantes índigo era tão caro que muitos dariam
No entanto, a ciência assume eram muito difíceis de serem obtidos. sua vida para conseguir um dedal
aspectos distintos conforme a época No Egito antigo, uma cor muito dele. Esse pigmento revolucionou a
e forma de pensar da sociedade vi- apreciada era o azul, associada com indústria da época de tal forma que os
gente. Essa visão é apropriadamente o deus-sol Amon. O Afeganistão pos- antigos mestres tintureiros europeus
descrita por Chassot (2008): suía extensas reservas de lápis-lazuli, ficaram com muito medo de perder
uma pedra muito dura, de um azul seu ganha-pão para o índigo.
[...] a Ciência se parece mais intenso e muito apreciada pelos egíp- Então, o índigo foi proibido na
ao Golem (Goilem), aquele cios, assim, esse país rapidamente Europa, e vários reis decretaram
ente da mitologia judaica que tornou-se o maior fornecedor de cor que o azul era uma cor demoníaca.
é descrito como um gigante de azul para o Egito. É um exemplo de Essas proibições não foram efetivas

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Trilogia: Química, Sociedade e Consumo Vol. X, N° X , XXX 2010
nem conseguiram barrar o avanço os custos de produção e aumentou o a roupa igual à da minha mãe ou que
desse corante pela Europa, tanto lucro das indústrias. Com o advento ajudou a produzir a TV que tenho na
é que foram finalmente abolidas e da industrialização, tornou-se cada sala – melhorou substancialmente
esse continente foi invadido por esse vez mais fácil tingir uma roupa, pro- em relação à vida dos trabalhadores
pigmento azul. duzir um alimento enlatado, pintar da Idade Média? Vejamos: com o
Voltando aos trabalhadores me- um carro com a cor que o cliente advento das linhas de produção, o
dievais, a química na época dos deseja. O produto desejado está processo produtivo foi tirado da mão
antigos tintureiros era baseada em mais acessível do que nunca ao de um único trabalhador e colocado
conhecimentos empíricos, havia consumidor final. Vejam bem que na mão de vários trabalhadores. Cada
muita mistificação, muito da química a terminologia já se alterou quando um é responsável apenas por uma
era feito por pessoas que apenas começamos a falar em processos pequeníssima etapa do processo. O
seguiam receitas repassadas de ge- de produção modernos. Não somos trabalhador é especializado em fazer
ração a geração, mantidas em sigilo mais um indivíduo que compra uma uma única tarefa, que realiza todos os
absoluto e só reveladas àqueles que roupa colorida por necessidade, nós dias, sempre da mesma forma, sem
sucederiam seus pais na arte de fa- consumimos uma roupa colorida necessitar pensar muito. Por essa de-
bricar determinado produto. simplesmente porque a enxergamos dicação, ele recebe como pagamento
Naquela época, os tintureiros eram na vitrine da loja e a cor nos agrada. um salário mensal. E esse salário
responsáveis por colher as plantas ou A roupa é colorida, e se sua é mais justo que o do trabalhador
obter os pigmentos que usariam no mãe, irmã, tia ou vizinha possuírem medieval? Talvez, depende da forma
tingimento das roupas, eles mesmos recursos financeiros para tal e se como encaramos o todo. Ele recebe
teciam suas roupas, preparavam os desejarem podem adquirir peças um salário que é igual todos os me-
banhos de corante, submergiam as idênticas, bastando dirigir-se a uma ses, graças às leis trabalhistas que lhe
roupas na mistura fétida e, geralmente, loja e solicitar à vendedora. A linha asseguram esse direito. Ele pode ter
o faziam sob supervisão de um mes- de montagem tirou o ineditismo e a até mesmo um plano de saúde, que
tre-artesão, que conhecia todos os unicidade das peças. Hoje podemos garante assistência médica em caso
4 segredos da profissão, mas raramente ter um carro idêntico ao do vizinho, de doenças. Sua aposentadoria está
os revelava aos seus discípulos ou inclusive na mesma cor. Possuir um garantida, porque parte do seu salá-
aprendizes. O resultado final variava objeto igual ao do colega passou a rio vai para o financiamento de sua
muito, já que o trabalho era manual, ser uma necessidade psicológica, subsistência no futuro, quando ele
artesanal e, como uma arte, o resulta- porque pensamos coletivamente, parar de trabalhar.O trabalhador atual
do variava de acordo com o empenho e acreditamos que se aquilo que o não é insubstituível, pois com tempo
que o artista empregava ao realizar nosso amigo consome é bom para e dedicação outros podem ocupar o
sua obra. Havia uma retenção, uma ele, deve ser necessariamente consu- lugar deste. No processo produtivo,
centralização do conhecimento e da mido por nós. Os preços, que antes ele não é, afinal, tão importante assim.
técnica na figura paternalista do mes- podiam girar em torno de dezenas Ainda mais se levarmos em conside-
tre. O conhecimento era elitizado, pois de “moedas de ouro”, hoje corres- ração que o trabalhador das linhas
poucos podiam exercer sua profissão pondem ao equivalente a frações de de produção não tem conhecimento
e, muitas vezes, trabalhavam em troca moedas de ouro. O produto final está do processo como um todo, porque
de um teto e um prato de comida. Os mais perto de cada um de nós do que a ele só é dado conhecer uma parte
produtos eram acessíveis a poucas jamais esteve. Um dos veículos de muito pequena do processo. Ele não
pessoas, visto que eram muito caros. aproximação dos bens de consumo é dono do procedimento que usa
Não havia uma padronização: uma é a televisão. Aliás, esse aparelho só para produzir sua peça, visto que
batelada produzida era diferente da está ali na nossa sala porque alguém outros são os verdadeiros responsá-
subsequente. desenvolveu um processo químico veis pelo processo produtivo e pelos
Nos dias atuais, a produção é um para produzir os componentes eletrô- conhecimentos químicos envolvidos.
tanto quanto diferente: há uma maior nicos, o seu corpo de plástico, o seu Não conhecendo o todo, ele não é
democratização na disseminação tubo de imagens ou até mesmo sua mais necessário que o colega que faz
do conhecimento químico, visto que tela de cristal líquido. Tudo isso para a mesma função ao seu lado, todos
essa é uma ciência ensinada nas que a indústria conseguisse produzi- os dias durante anos.
escolas, nas universidades, e o que la no menor tempo possível, com o Mesmo na sociedade moderna,
há de mais moderno na pesquisa menor preço de custo e com o maior ainda há uma grande concentração
química é oferecido aos desejosos de lucro para quem a desenvolveu. A TV de conhecimento nas mãos de pou-
saber, o qual está disponível em pe- da minha casa é igual à TV do vizinho, cos. Podemos citar como um exem-
riódicos especializados, que podem e nós dois nos sentimos felizes por plo as patentes, que são o conjunto
ser acessados pela rede mundial de possuirmos aparelhos modernos e de procedimentos que devem ser
computadores. iguaizinhos. seguidos para que um determinado
A criação das linhas de monta- No entanto, será que a vida do processo químico (ou não químico)
gem por Henry Ford (2004) diminuiu trabalhador – que ajudou a produzir possa ser executado com sucesso. A

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Trilogia: Química, Sociedade e Consumo Vol. X, N° X , XXX 2010
indústria que desejar reproduzir esse A partir da década de 1950, cada ou seja, se o consumo é bom ou mau.
procedimento deve comprar o direito vez mais esses dois produtos come- Podemos dizer que consumir
à sua utilização e pagar os direitos çaram a ser usados em tudo que se é uma necessidade, a qual passa
aos autores da patente. pudesse imaginar. Hoje os alimentos a ser um problema quando suas
Essa é uma relação mercantilista, podem ser acondicionados em latas proporções extrapolam os limites
que não difere muito das relações metálicas revestidas internamente necessários a um viver saudável.
comerciais da antiguidade já des- com materiais plásticos. Copos de Como a fronteira entre o consumo
critas anteriormente. Outro exemplo plástico podem ser usados em vez saudável e o desenfreado é muito
de como a química influenciou a de similares de vidro. O plástico tênue, urge que haja uma educação
sociedade e como estimulou o substituiu materiais tradicionais como para o consumo, visando formar
consumo dos dias atuais é o do o vidro, o papel e a madeira, permi- cidadãos conscientes de suas reais
desenvolvimento dos catalisadores. tindo maior durabilidade e segurança necessidades de consumo e não fa-
O mais famoso deles é o chamado entre outras qualidades dos produtos zendo com que o objetivo de sua vida
de Ziegler-Natta (Hermann e Hess, manufaturados. Por outro lado, esse seja o consumo, sua única fonte de
2005). Com ele, foi possível desen- incremento no uso dos plásticos alegria e prazer, substituindo o afeto
volver metodologias para a produção gerou novos problemas, associados e a convivência com outras pessoas
de larga escala de um novo material à poluição ambiental. Não é raro por uma sacola cheia de bens de
chamado plástico. vermos plásticos dos mais variados consumo adquiridos no “shopping
Antes da existência desse ca- tipos presentes nos lixões de nossas center” mais próximo de sua casa.
talisador, a química influenciou o cidades. O plástico está presente em
mundo com o lançamento do plástico todos os campos da vida humana.
Julieta Saldanha de Oliveira (julieta@unifra.br), licen-
rígido chamado de baquelite. Era Nossos óculos, computadores, rou- ciada em Química e em Química Industrial, mestre e
um plástico que podia ser colorido e pas e produtos de higiene e limpeza doutora em Química Inorgânica pela Universidade
era muito apreciado pelas pessoas. em nossas casas contêm plásticos Federal de Santa Maria (UFSM), é professora do
Substituiu a madeira em caixas de em suas estruturas. Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Márcio
Marques Martins (marciomm@unifra.br), bacharel
rádio, TV e tocadores de discos de Vemos aí um campo fértil para em Química pala Universidade Federal do Rio 5
vinil. O catalisador de Ziegler-Natta a discussão da importância da quí- Grande do Sul (UFRGS), licenciado em Química pela
permitiu a produção em larga escala mica em nossa sociedade, já agora Universidade Luterana do Brasil (ULBRA), doutor
de (poli)etileno e de (poli)propileno, indiscutivelmente “de consumo”. Não em Química Teórica pela UFRGS, é professor da
UNIFRA. Helmoz Roseniaim Appelt (helmoz@unifra.
dois plásticos que revolucionaram o cabe na presente discussão a respos- br), químico industrial, mestre e doutor em Química
mundo moderno. ta aos questionamentos remetidos, Orgânica pela UFSM, é professor da UNIFRA.

Referências Bookman, 2004. A busca da sabedoria como caminho


HERRMANN, H. e HESS R. Ceras de para a felicidade: Al-Farabi e Ramon Llull.
CUMMINS, L. Diesel’s engine: from
grife: ceras/polímeros feitos sob medida Dimensões. n. 15, 2003, p. 99-115.
conception to 1918. v. 1. Wilsonville: Jr.
por catálise metalocênica. Plástico Mo- EXATAS ONLINE. A história da química.
Carnot Press, 1993. Disponível em: <http://www.exatas.com/
derno. n. 368, junho, 2005. Disponível
CHASSOT, A. Sete escritos sobre quimica/historia.html>.
Educação e Ciências. São Paulo: Cortez, em: <http://www.plasticomoderno.com.
br/revista/pm368/ceras1.htm>. Acesso HUBER, G.W. e DALE, B. Dossiê bio-
2008. combustível: gasolina do capim e outros
FAY, I.W. The chemistry of the coal-tar em 20 jun. 2009.
JACQ, C. Ramsés - Batalha de Kadesh. vegetais. Revista Scientific American
dyes. London: Constable, 1911. Brasil. São Paulo: Duetto, Ano 8, n. 87, p.
FIELD, G. e DAVIDSON, E.A. A grammar v. 3. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
26-31, agosto 2009.
of colouring applied – to decorative pain- PFAFF, G. e BUXBAUM, G. Industrial in-
RAUPP, M.A . Desafios da ciên-
ting and the arts. 4. ed. London: Crosby organic pigments. 3. ed. Weinheim: Wiley-
cia e da tecnologia no Brasil. Dispo-
Lockwood and Son, 1888. VCH, 2005.
nível em <http://www.andifes.org.br/
FINLAY, V. Colour – travels through the STRATHERN, P. O sonho de Mendeleiev: index2.php?option=com_content&do_
paintbox. London: Hodder and Stoughton, a verdadeira história da química. Rio de pdf=1&id=1698>.
2002. Janeiro: Jorge Zahar, 2000. VILLAS-BOAS, A.L. O pensamento
FORD, H. My life and work: an autobiog- científico-tecnológico no contexto de for-
raphy of Henry Ford. Whitefish: Kessinger, Para saber mais: mação e desenvolvimento do capitalismo
2004. CHASSOT, A. Ciência através dos tem- até o século XIX. Revista da Sociedade
HALL, N. Neoquímica: a química mo- pos. São Paulo: Moderna, 2004. Brasileira de História da Ciência, n. 15,
derna e suas aplicações. Porto Alegre: COSTA, R. A Educação na Idade Média. janeiro-junho, 1996.

Abstract: Trinome: society and consumption. It is well-known that chemistry, society and consumption were always connected. Since the beginning of the civilization, the mankind utilizes procedures
that can be considered as an empirical chemistry. Desafortunated conditions surrounded that incipient chemistry knowledge and contributed to estigmatize it. The chemistry science was considered
as a group of negative acquirements as well as undesirable for the society. In this work, it will be make an historical and commented retrospective about the trinome chemistry-society-consumption,
enphatisizing the existent relationships.
Keywords: History, society, chemistry.

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Trilogia: Química, Sociedade e Consumo Vol. X, N° X , XXX 2010

Você também pode gostar