Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
BUONARROTI, Michelangelo. Cartas Escolhidas
BUONARROTI, Michelangelo. Cartas Escolhidas
Reitor
José Tadeu Jorge
Conselho Editorial
Presidente
Paulo Franchetti
Alcir Pécora – Arley Ramos Moreno
Eduardo Delgado Assad – José A. R. Gontijo
José Roberto Zan – Marcelo Knobel
Sedi Hirano – Yaro Burian Junior
Reitor
Walter Manna Albertoni
Conselho Editorial
Presidente
Ruth Guinsburg
Claudia Costin – Cynthia A. Sarti – Durval Rosa Borges
Marcia Couto – Mauro Aquiles La Scalea
Plinio Martins Filho – Vera Raquel Aburesi Salvadori
CARTAS ESCOLHIDAS
cdd 856.1
isbn 978-85-268-0822-5 (Editora da Unicamp) 709.031
isbn 978-85-61673-05-5 (Editora Unifesp) 701
Luiz Marques
A Laura, tota pulchra, e Carmen, que nasceu com este livro.
AGRADECIMENTOS
13 Apresentação
19 Prefácio
155 Personagens
191 Apêndices
203 Índice
207 Ilustrações
APRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO |
em Roma entre 1538 e 1540, e os Dialoghi de’ giorni che Dante consumò nel
cercare l’Inferno e ‘l Purgatorio, finalizados em 1546 pelo amigo e conterrâ-
neo Donato Giannotti.
Arroladas essas sete fontes indiretas, passa-se à documentação es-
crita em primeira pessoa. Antes de mais nada, as mais de 500 páginas dos
Ricordi, anotações mnemônicas, imprescindíveis por vezes para entender
o sistema de trabalho do artista. De valor incomparável, posto que patri-
mônio maior da história da literatura, é sua obra poética. Mais de 300 poe-
mas conservados permitem acompanhar o artista ao longo de quase 60
anos de meditação sobre os temas a ele mais caros — o amor, a religião e a
morte —, o que não raro lhes confere valor de um verdadeiro diário. Mas
sobre o conjunto dessas fontes paira uma décima, de longe a mais impor-
tante no plano biográfico: os cinco volumes da Correspondência, com
aproximadamente 1.400 cartas escritas e recebidas, aos quais se juntam
dois volumes de Correspondência indireta, com quase 450 cartas em que o
artista é mencionado.
Maria Berbara, tradutora e organizadora do presente volume, escre-
veu adiante o essencial do que me parece deva-se dizer da natureza e da
importância dessas cartas. Trocada, sobretudo, com familiares e amigos,
muitos dos quais artistas, a Correspondência de Michelangelo dá o timbre
inconfundível do homem. Se as outras fontes acima citadas suprem em
geral o leitor com informações mais abundantes que as cartas, o que estas
fornecem de mais precioso e insubstituível é a presença de Michelangelo,
presença pulsante de um temperamento que se transmite com a imediati-
cidade de uma descarga elétrica. Se, de todo o conjunto dos testemunhos
escritos de e sobre Michelangelo, se tivessem conservado somente as car-
tas, bastariam elas para obter um retrato íntegro da formidável potência
de sua personalidade, da intensidade e ao mesmo tempo da fragilidade de
sua existência. As cartas de Michelangelo são um unicum na história do
gênero. Antes de mais nada porque, justamente, elas não pertencem ao
gênero epistolar, tal como cultivado em seu tempo. Malgrado repetir inces-
santemente não ser a escrita sua arte (mas ele também negava ser pin-
tor...), Michelangelo comanda sua língua com a maestria do mais exímio
profissional da escrita, e qualquer um de seus poemas demonstra à sacie-
dade que ele poderia compor cartas em um estilo tão rico de recursos lite-
rários e conceptismos quanto o de Pietro Aretino ou o de Pietro Bembo, os
mais insignes mestres do gênero. Mas de nada suas cartas se distanciam
mais que do aparato preceptístico da epistola (latina ou italiana) do ho-
mem de letras, na qual se cultivam e renovam os legados de Cícero e de
Petrarca. O despojamento de suas cartas encontra paralelo talvez nas car-
tas de Maquiavel, por exemplo, a Pietro Vettori, pois em ambos os casos os
remetentes escrevem exclusiva e absolutamente a seus destinatários, não a
um leitor póstumo ou transcendente.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Mas aqui cessa todo paralelismo possível entre Maquiavel e Miche-
langelo. Ao contrário de Maquiavel, o artista jamais escreve cartas de desa-
fogo, por simples vontade de se exprimir, para dar vazão a idéias ou senti-
mentos ou ainda por simples desejo de socializar. Como faz notar Berbara,
as cartas de Michelangelo são sempre motivadas por alguma razão prática.
Não são jamais divagantes, confessionais ou filosofantes. Não se encontram
nelas relatos de seu cotidiano, impressões ou análises da crônica política,
mesmo dos eventos mais marcantes da atualidade. Em vão se buscaria uma
menção, por exemplo, ao saque de Roma de 1527 ou um comentário sobre a
evolução política da República florentina que se segue ao saque, não obstan-
te sua posição de protagonista na defesa militar de sua República. O ar-
tista definitivamente não é um produtor de discursos, um “intelectual”,
um bavard. Não há em toda a sua correspondência um só momento de
distensão. O que lateja em cada linha aqui, de modo por vezes incontido, é a
consciência da urgência de retornar ao trabalho. E, entretanto, subitamente,
estão inteiras ali sua virtù e sua resposta ao mundo, na palavra que trai a
consciência íntima de sua grandeza, o senso de humor e do ridículo, o sen-
timento moral e trágico da existência, a compaixão e a mística interior, áspe-
ra, lacônica, imbricada no trabalho, inacessível tanto aos carolas milenaris-
tas (os piagnoni), quanto ao rigorismo artrítico da Igreja de Trento.
Em uma carta de condolências ao sobrinho de Michelangelo, Leonar-
do Buonarroti, escrita em 4 de março de 1564, Giorgio Vasari pede-lhe que
envie “cartas de príncipes e de grandes homens [escritas a Michelangelo]
para melhor honrá-lo” na nova redação de sua Vida do artista, então em
curso. De fato, algumas cartas dessa Correspondência são trocadas com ca-
beças coroadas ou pertencentes ao vértice da hierarquia social e eclesiástica,
de Francisco I, rei de França, a Guidobaldo II della Rovere, Duque de Urbi-
no, de Cosimo I, Duque de Florença, aos cardeais Salviati e Cibo e aos papas
Clemente VII Medici e Paulo III Farnese, entre outros. Não escapa a Berbara
seu tom formal e decoroso, o estilo mais rebuscado que leva em conta a es-
tatura excepcional do destinatário. Mas não aflora, numa palavra sequer de-
las, o cortesão. Se já era impossível imaginar o homem “petroso” como per-
sonagem de Castiglione, mais ainda seria imaginá-lo leitor do Galateo, novo
decálogo desse Homo aulicus que Giovanni Della Casa compõe entre 1552 e
1554. O que não significa que Michelangelo fosse intolerante em relação a
esse tipo social emergente, de que Vasari e Leone Leoni, seus próximos ami-
gos, são exemplos acabados. Simplesmente, Michelangelo não se identificava
com outro ideal de nobreza que o da arte. Um dos mais constantes traços de
temperamento e de identidade que essas cartas revelam são sua indiferença
e sua terminante recusa a se deixar intimidar ou seduzir pelo mundo da
Corte ou da alta finança. Não que o artista seja um franciscano ingênuo. A
menos que não resolva dar ao seu criado ou a um amigo uma obra que va-
leria uma fortuna, será em geral preciso pagar essa fortuna por ela. Se ele
APRESENTAÇÃO |
prefere dar, ao invés de vender, o cartão para o afresco da Embriaguez de
Noé, na abóboda da Capela Sistina, e os Escravos do Louvre, respectiva-
mente aos banqueiros Bindo Altoviti e Roberto Strozzi, um dos homens
mais ricos da Itália, é por pura amizade, baseada em um senso enorme de
gratidão, em afinidades pessoais e em convicções compartilhadas. Se a afi-
nidade não existe, como é o caso do temível Aretino ou de Agostino Chigi,
o mais fastoso banqueiro de Roma, de nada valerão o ouro, o jogo da se-
dução ou a ameaça.
Em meio a tão diversas personae de Michelangelo, suas cartas são,
assim, o mais direto e veraz testemunho de um homem que elas revelam
da mesma têmpera que a de sua obra. Mas justamente pela multiplicidade de
aspectos do artista que iluminam, selecioná-las não é tarefa fácil, e tal é o pri-
meiro feito de Maria Berbara, que, nas 72 cartas por ela escolhidas, consegue
identificar, evitando lacunas significativas e possíveis redundâncias, os tra-
ços mais constitutivos da personalidade de Michelangelo. O segundo feito,
não menor, é a tradução. Vencidas as dificuldades próprias do florentino,
não se pode dizer que seja árdua a compreensão da língua das cartas de Mi-
chelangelo; não, ao menos, no sentido em que o é, por exemplo, o italiano de
Bembo, saturado de sintaxe latina. Mas da compreensão à transposição ao
português vai uma distância que só quem a tentou vencer compreende a
extensão. O tradutor de uma prosa coloquial antiga conhece o problema,
que abrange todos os demais: encontrar o tom da linguagem de destino, tão
distante historicamente da linguagem de origem; encontrar, em suma, a dis-
tância na qual posicionar sua própria língua em relação ao original, respeitan-
do o fato de que aquele coloquial não é o nosso, e que não se pode, portanto,
sem o banalizar, buscar equivalências no repertório da fala contemporânea.
Mas se o coloquial de Michelangelo é, para nós, hoje, uma língua artificial,
nem por isso deve-se incorrer no erro oposto de condená-lo a falar um por-
tuguês parnasiano ou, pior, um quimérico e pretensioso pastiche do portu-
guês de Francisco de Holanda. Como é de todos sabido, não há fórmulas ou
receitas para chegar ao resultado aqui alcançado. Tudo se decide em cada
situação e não há, para o tradutor, outras armas que o empenho, a sintonia
com o objeto e a própria sensibilidade. Este trabalho que tenho o prazer e o
privilégio de apresentar acrescenta algo tangível ao patrimônio ainda pe-
queno de traduções em português da literatura artística italiana. É, portanto,
com gratidão que o acolhemos entre os primeiros da coleção Palavra da
Arte, dedicada às fontes e à reflexão sobre a tradição clássica.
Luiz Marques
| CARTAS ESCOLHIDAS
Vejo que me imaginastes como o que Deus gostaria que eu
fosse. Sou um pobre homem de pouco valor, que vou labutan-
do naquela arte que Deus me deu para prolongar minha vida
o mais que posso.
Carta a Niccolò Martelli, janeiro de 1542
PREFÁCIO |
obras michelangianas, os quais, tendo em vista sua extensão e complexidade,
malogram quaisquer tentativas de mencioná-los de maneira resumida e
simplificada.
1 Alguns anos antes — concretamente em 1863 — publicaram-se por Cesare Guasti os poe-
mas michelangianos preservados no Museo Buonarroti e na Biblioteca Vaticana. Até essa
data, o canzoniere era conhecido fundamentalmente através da versão profundamente modi-
ficada que lhe conferira Michelangelo, o Jovem (**), sobrinho-neto do artista, em uma edição
de 1623 das Rimas.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Notas biográficas (1475-1512)
2 De acordo com o costume toscano, acrescentava-se o nome do pai entre o nome próprio e
o sobrenome (Condivi, III, p. 14).
3 Nos ricordi de Lionardo Buonarroti, indica-se o ano 1474 como o do nascimento do artis-
ta. Segundo o estilo florentino, cartas e documentos produzidos entre janeiro e março de
um determinado ano recebiam a data do ano anterior, visto o ano iniciar-se por ocasião da
Anunciação à Virgem — em março, portanto. Trata-se do assim chamado calendário ab
Incarnatione.
4 Segundo uma famosa anedota relatada por Vasari e por Condivi, Michelangelo costumava
dizer que sua habilidade com o cinzel e o martelo advinha do leite de sua balia, ou ama-de-
leite, cujo pai e esposo eram canteiros.
5 O pai de Michelangelo contrai segundas núpcias em 1485 com Lucrezia Ubaldini, que fale-
ceria em 1497.
6 Vasari/Barocchi, I, p. 5, e Condivi, V, p. 17. A idéia da oposição paterna à divina vocação
artística filial, a qual se vê confirmada e exaltada pela contrariedade, é um autêntico topos em
Vasari; cf. por exemplo as vidas de Cimabue, Brunelleschi e Botticelli (segundo E. Kris e O.
Kurz, em Die Legende vom Künstler — Viena, 1934, p. 25 e seg., reeditado em Frankfurt,
Suhrkamp, 1980 —, esse topos da biografia artística deriva da Antiguidade Clássica). No caso
de Michelangelo, não obstante, a relutância de Lodovico em permitir que o filho se dedicasse
à profissão artística se vê corroborada, por um lado, por sua própria obtusidade (da qual dá
inúmeras mostras em suas cartas a Michelangelo), e, por outro, pelo fato de a família Buonar-
roti tradicionalmente se ter dedicado, desde suas origens, ao comércio e a atividades bancá-
rias, não havendo registro de nenhum Buonarroti, anterior a Michelangelo, que se tenha tor-
nado artista ou literato. Em fins do Quatrocentos, de resto, a posição social do artista era
ainda relativamente baixa, de modo que a profissão era considerada indigna, como dizem
Vasari e Condivi, de uma antiga família aristocrática. Note-se, ainda, que Michelangelo tinha
já 13 anos ao entrar para o ateliê dos Ghirlandaio, quando a idade inicial mais comum dos
aprendizes era 10 anos.
7 O evidente talento de Michelangelo muito provavelmente teve um papel decisivo para a
permissão de Lodovico, que deve ter visto nele uma promissora fonte de renda para sua em-
pobrecida família; sabe-se que, contrariamente ao habitual, Michelangelo foi pago já durante
seu primeiro ano no ateliê dos Ghirlandaio — quando o costume era que o pagamento pro-
viesse do aprendiz nesse período (cf. a referência ao contrato entre Lodovico e Domenico
Ghirlandaio citada por Vasari em 1568 em Vasari/Barocchi, I, pp. 6-7).
8 O conceito da academia ou escola de artes laurenziana, segundo descrito por Vasari, foi
questionado em meados do século XX por historiadores que sugeriram ter sido esse um mito
inicialmente difundido por Vasari, com o intuito de enaltecer o antepassado de seu patrono,
Cosimo I, e ao mesmo tempo criar um precedente para a instituição da Accademia del Diseg-
no por parte do duque (cf. especialmente Chastel, “Vasari et la légende médicéenne: l’Ecole
du Jardin San Marc”, in Studi Vasariani, pp. 159-67, mas também, por exemplo, L. Murray,
Michelangelo; Londres, 1984, pp. 14-5). A partir dos anos 1980, porém, novas investigações
confirmaram positivamente a existência real do “orto” laurenziano, assim como sua função de
centro de conservação de obras de arte predominantemente escultóreas; nos anos 1990, en-
fim, diversos estudos conferiram renovada autoridade ao relato vasariano ao demonstrar que
o giardino não somente albergava a coleção de Lorenzo, mas também era, efetivamente, o
palco de uma ativa estrutura de ensino artístico, a qual, embora diversa daquelas que surgi-
riam em meados do Quinhentos, efetivamente funcionava como um local de instrução (cf. N.
Baldini, “Quasi Adonidos hortum. Il giovane Michelangelo al giardino mediceo delle sculture”,
in Giovinezza di Michelangelo, pp. 49-56, que apresenta extensa bibliografia sobre esta ques-
tão). Vide entrada relativa a Lorenzo Magnífico.
9 Esta é a versão de Vasari. Segundo Condivi, Buonarroti havia sido levado ao giardino do
palácio mediceo pelo próprio Granacci, seu melhor amigo durante os anos transcorridos no
ateliê dos Ghirlandaio. Condivi, de resto, omite a tutoria de Bertoldo, o que, assim como seu
menosprezo pelos ensinamentos artísticos de Ghirlandaio — os quais, em sua opinião, ha-
viam sido nulos —, indica a concepção condiviana da espontaneidade do gênio, que afloraria
independentemente de qualquer educação formal.
| CARTAS ESCOLHIDAS
filho. Nessa época, portanto, Michelangelo desfruta do privilégio de man-
ter-se em permanente contato com os mais célebres filósofos e literatos de
Florença, os quais freqüentavam assiduamente o palácio de Lorenzo; uma
de suas primeiras obras conhecidas, a Batalha dos centauros, atualmente
conservada na Casa Buonarroti em Florença, teve seu tema provavelmente
sugerido por Poliziano. Durante esses anos fulcrais em sua formação, Buo-
narroti conheceu ainda alguns dos que seriam os mais influentes persona-
gens da primeira metade do Quinhentos, notadamente Leão X (*), Clemen-
te VII (*) e Paulo III (*), os quais, aproximadamente da mesma idade que
Michelangelo, igualmente se instruíram na corte de Lorenzo. Esses três pa-
pas, que se haveriam de contar entre seus principais patrocinadores artísti-
cos e — notadamente no caso de Clemente VII e Paulo III — protetores,
sempre mantiveram com Michelangelo uma afetuosa relação de familiari-
dade, a qual, muito provavelmente, tem sua origem nesses anos de adoles-
cência compartida.
Michelangelo permanece no palácio de Lorenzo até a morte deste, Bolonha
10 Na guerra que se iniciara entre a França e Nápoles, Savonarola e o povo florentino toma-
ram o partido da primeira, e Piero de’ Medici, da segunda; por ocasião da derrota infligida
pelos franceses aos napolitanos, em 11 de setembro de 1494, os Medici encontraram-se, natu-
ralmente, em maus lençóis. Michelangelo escapa de Florença pouco depois, em meados de
outubro.
11 A respeito de Aldrovandi cf. o recente estudo de L. Ciammitti “Note biografiche su Giovan
Francesco Aldrovandi”, in Giovinezza di Michelangelo, pp. 139-41, contendo ampla bibliografia.
12 A estátua, instalada na fachada da Igreja de San Petronio, é destruída, três anos mais tarde,
quando os Bentivoglio recuperam a cidade, sendo o bronze fundido e enviado a Alfonso
d’Este em Ferrara, como recompensa pela artilharia que emprestara aos bolonheses; com o
material, Alfonso ordenou construir um canhão, jocosamente apelidado La Giulia.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Apóstolos encomendados pelos operai del Duomo; por outro, como insisten-
temente proclamava, a pintura “não era sua arte”: Michelangelo sempre se
considerara primordialmente um escultor em mármore, e mesmo a estátua
brônzea de Júlio II parecera-lhe um desvio de sua verdadeira “profissão”
(note-se que, particularmente durante os anos em que trabalhava na Sis-
tina, Buonarroti quase sempre assinava suas cartas como “Michelagniolo
schultore”). Condivi e Vasari, de resto, atribuem a obstinação do papa em
encomendar os afrescos sistinos a Michelangelo à intriga de Bramante (*),
seu inimigo, que desejava desprestigiá-lo obrigando-o a trabalhar em um
terreno — a pintura mural a fresco — no qual o mestre de Urbino supunha
reinar inconteste.13
Os anos que passou trabalhando na Capela Sistina foram extenuantes
para Michelangelo, como se depreende de diversos trechos de cartas por ele
enviadas a seus familiares, nos quais insistentemente se queixa de extrema
fadiga e das enormes dificuldades de sua empresa. Estas são descritas em um
irônico soneto composto em 1510, em cujo manuscrito Michelangelo dese-
nha o que poderia ser descrito como uma caricatura de si mesmo ao pintar
o teto (Fig. 2).14 É ainda nessa época que se estabelece um controle efetivo,
por parte de Michelangelo, sobre os negócios dos Buonarroti e mesmo sobre
o destino dos irmãos; o mestre concentra-se em melhorar a situação finan-
ceira da família através da aquisição de casas e fazendas, e faz rotineiras
doações pecuniárias ao pai e aos irmãos.
Em outubro de 1512, a magnífica realização pictórica michelangiana
é descoberta; pelo próprio Michelangelo (cf. carta IX), sabemos que o papa
aprovou o trabalho. Uma vez terminada a grandiosa empresa, Buonarroti
tencionava finalmente retornar ao projeto original da tumba; este, contu-
do, haveria de alterar-se profundamente pela morte de Júlio II, em feverei-
ro de 1513, e pela conseguinte estipulação de um novo contrato com seus
herdeiros, segundo o qual o projeto deveria ser finalizado em um período
de sete anos.
13 Vasari/Barocchi, I, pp. 35-6, e Condivi, XXXIII, pp. 64-5; cf. cartas IV e XXXIX.
14 Frey, Dichtungen, IX; Guasti, V, p. 158.
15 Cf. Vasari/Barocchi, vol. II, p. 144 e seg.; P. F. Norton, “The lost Sleeping Cupid of Miche-
langelo”; The Art Bulletin, XXXIX/4, 1957, pp. 251-7; Ruth Rubinstein, “Michelangelo’s lost
Sleeping Cupid and Fetti’s Vertumnus and Pomona”, Journal of the Warburg and Courtauld
Institutes, vol. 49, 1986, pp. 257-9, e Agosti/Farinella, pp. 44-7.
CORRESPONDÊNCIA: 14961512 |
diu-me que fosse ver certas estátuas;16 isto me ocupou o dia inteiro, de ma-
neira que não pude entregar vossas outras cartas neste dia. No domingo,
tendo ido a sua nova casa, o Cardeal mandou chamar-me. Fui vê-lo, e me
perguntou o que me pareciam as coisas que havia visto. Disse-lhe o que pen-
sava — e, certamente, parece-me que possui muitas coisas belas. O Car-
deal perguntou-me então se eu me atreveria a realizar uma bela obra.
Respondi que não faria nada tão grande, mas que ele veria o que eu iria
fazer. Compramos um bloco de mármore para uma figura de tamanho
natural, e começarei a trabalhar na segunda-feira.17
Então, na segunda-feira passada, apresentei vossas outras cartas a Pa-
golo Ruccelai,18 que me ofereceu quanto dinheiro necessitasse, assim como
aos Cavalcanti.19 Em seguida, entreguei a [vossa] carta a Baldassare [del Mi-
lanese] e lhe pedi o cupido,20 explicando-lhe que lhe restituiria o seu dinhei-
ro. Ele me respondeu muito secamente que, antes, romper-lhe-ia em cem
pedaços; que ele havia comprado o cupido e que era seu; que ele possuía
cartas demonstrando que pagou a quem o havia enviado, e que não tencio-
nava devolvê-lo. E queixou-se muito de vós, dizendo que o havíeis difamado.
Pedi a alguns dos nossos florentinos que nos reconciliassem, mas estes não
fizeram nada; agora confio em agir através do Cardeal, como me aconselhou
Baldassare Balducci.21
Manter-vos-ei informado. Nada mais. Recomendo-me a vós. Que
Deus vos guarde de males.
Michelangelo, em Roma.
16 No original, figure.
17 Este trecho desmente Condivi e Vasari, os quais afirmam que o cardeal havia desperdiçado
o privilégio da proximidade com Michelangelo ao não lhe encomendar nenhuma obra. Vá-
rios estudiosos de Michelangelo identificam o bloco aqui referido com o Baco do Museu
Bargello; cf. por exemplo P. Barocchi, Il Bacco di Michelangelo; Florença: Museu Nazionale
del Bargello, 1982, pp. 3-4.
18 Paolo di Pandolfo Rucellai (1464-1509), banqueiro pertencente à tradicional família floren-
tina, em 1495 embaixador da República florentina junto a Carlos VIII em Nápoles. Residiu
alguns anos em Roma.
19 Banqueiros e comerciantes florentinos.
20 No original, ba[n]bino.
21 Comerciante e banqueiro florentino residente em Roma, relacionado ao banco de Jacopo
Galli. Por muitos anos amigo de Michelangelo, é provavelmente quem o apresenta ao cardeal
Jean de Bilhères e ao cardeal Francesco Piccolomini, os quais posteriormente lhe encomen-
dariam respectivamente a Pietà de San Pietro e as estátuas para o Duomo de Siena.
| CARTAS ESCOLHIDAS
ano após a carta anterior, durante o primeiro período romano de Michelan-
gelo; nessa época lhe é encomendada a obra que o tornaria célebre e deter-
minaria o começo de uma nova fase em sua carreira: a Pietà de San Pietro ou
Madonna della Febbre, finalizada em 1499 e atualmente conservada em San
Pietro, no Vaticano. Também desse período, como mencionado acima, é o
Baco do Museu Bargello, encomendado pelo cardeal e posteriormente ad-
quirido por Jacopo Galli. Lodovico ocupou diversos cargos públicos meno-
res ao longo de sua vida, recebendo salários relativamente baixos (Vasari/Ba-
rocchi, II, p. 57, nota 41, para um elenco dos seus empregos); já durante esses
anos, mas crescentemente a partir de então, passa a depender em grande
medida, assim como seus outros filhos, do dinheiro enviado por Michelan-
gelo e da sua influência junto a personagens florentinos ilustres, o que have-
ria de originar não poucos litígios entre eles.
22 Refere-se ao cardeal de San Giorgio, Raffaelle Riario, que lhe havia encarregado o Baco do
Museu Bargello (cf. carta anterior).
23 Lionardo, irmão mais velho de Michelangelo, torna-se frade dominicano em 1491; alguns
estudiosos relacionam sua fuga ao fato de ser ele simpatizante de Savonarola (cf. Mastracola,
p. 310, nota 4).
CORRESPONDÊNCIA: 14961512 |
parte. Ele me disse que o merceeiro Consiglio vos está criando muitas difi-
culdades, que não quer chegar a nenhum acordo, e que vos quer mandar
prender.24 Eu vos aconselho a chegar a um acordo com ele e pagar-lhe al-
guns ducados já; informai-me do que decidirdes dar-lhe, para que eu vo-lo
mande, caso não o tenhais. Ainda que eu tenha pouco, como vos havia dito,
procurarei pedir um empréstimo, para que vós não preciseis retirar dinheiro
do banco,25 como me contou Buonarroto. Não vos assombreis se eu às vezes
vos escrevo de modo tão ranzinza; às vezes me sinto muito turbado, devido
às muitas coisas que sucedem a quem vive longe de casa. Eu aceitei realizar
uma escultura para Piero de’ Medici26 e comprei o mármore; no entanto, ja-
mais a iniciei, visto que ele não cumpriu o que me havia prometido. Assim
sendo, estou trabalhando sozinho e fazendo uma escultura por meu próprio
prazer.27 Comprei um bloco de mármore por cinco ducados, mas este não
era bom; foi dinheiro jogado no lixo. Em seguida comprei outro bloco por
outros cinco ducados, com o qual trabalho por meu prazer. Assim, deveis
compreender que também eu tenho despesas e fadigas. Apesar disso, enviar-
vos-ei o que me pedis, nem que tenha que me vender como escravo.
Buonarroto chegou são e salvo e regressou à hospedaria, onde tem
um quarto no qual está bem e onde nada lhe faltará por quanto tempo quei-
ra ficar. Eu não posso tê-lo comigo porque estou em casa alheia;28 baste di-
zer, entretanto, que eu não deixarei que lhe falte nada. Estou bem, e assim
espero que estejais.
Michelangelo em Roma.
| CARTAS ESCOLHIDAS
munhos de Condivi e Vasari, os quais em linhas gerais condizem com o nar-
rado por Michelangelo em sua carta a Sangallo, por vários dias seguidos o
papa se nega a receber Buonarroti, o qual vinha cobrar-lhe parte do que ha-
via gastado na compra dos blocos marmóreos destinados à construção da
tumba papal, encarregada ao mestre no ano anterior. Ofendido e presa de “gran
disperazione”, Buonarroti parte para Florença. As causas da recusa do papa
em receber o mestre relacionam-se à sua hesitação quanto ao projeto da
tumba, que se atribui, segundo Condivi, à inveja e à intriga de Bramante,29 o
que é corroborado pelo Vasari de 156830 e pelo próprio Michelangelo em sua
carta de 1542 ao Monsenhor, na qual recorda estes acontecimentos.31 Sabe-
se, contudo, que nesse momento Júlio II planejava a reedificação de San Pie-
tro, a qual encarregara a Bramante, o que seguramente lhe deixava poucos
fundos disponíveis para a realização da tumba; politicamente, por outro
lado, o papa se encontrava em uma situação particularmente delicada no
momento preciso em que se deu a fuga, sendo crescentes as tensões entre o
Vaticano e Bolonha, Perugia e diversos outros estados feudais menores que
o papa tencionava anexar; nesse contexto era natural, portanto, que o projeto
da tumba despencasse no quadro hierárquico de suas prioridades.
A edição vasariana de 1550, Condivi e a carta michelangiana de 1542 nar-
ram — com algumas variantes —32 o que se seguiu à partida de Buonarroti:
saindo do palácio vaticano, Michelangelo dirige-se a sua casa, onde ordena
a seus criados que vendam todo o seu mobiliário e escreve uma carta ao
papa dizendo-lhe que, como aquele não o queria receber, de agora em diante,
se quisesse encontrá-lo, teria que buscá-lo fora de Roma; em seguida, parte
em direção a Florença. Chegando a Poggibonzi, pequena cidade toscana
atualmente pertencente à província de Siena, alcançam-no cinco cavaleiros
enviados pelo papa, os quais lhe transmitem a sua ordem: Michelangelo de-
veria retornar imediatamente a Roma, sob pena de cair em desgraça. Estan-
do já em território florentino e, portanto, não podendo os mensageiros vati-
29 “Bramante architettore, che dal papa era amato, con dir quello che ordinariamente dice il
volgo, esser mal’augurio in vita farsi la sepoltura ed altre novelle, lo fece mutar proposito.
Stimolava Bramante, oltre all’invidia, il timore che aveva del giudicio di Michelagnolo, il qua-
le molti suoi errori scopriva” (XXV, p. 50).
30 “Bramante, amico e parente di Raffaello da Urbino e per questo rispetto poco amico di
Michelagnolo, vedendo che il Papa favoriva et ingrandiva l’opere che faceva di scoltura, anda-
ron pensando di levargli dell’animo che, tornando Michelagnolo, Sua Santità non facessi at-
tendere a finire la sepoltura sua, dicendo che pareva uno affretarsi la morte et augurio cattivo
il farsi in vita il sepolcro” (Vasari/Barocchi, I, p.35).
31 Cf. carta XXXIX, em cujo pós-escrito Michelangelo menciona “a inveja de Bramante e Ra-
fael de Urbino”. Sanzio, no entanto, não poderia ter participado, ao menos diretamente, da
intriga, visto que chega a Roma somente no outono de 1508.
32 Vasari/Barocchi, vol. II, p. 377 e seg., coteja cuidadosamente estas três fontes, examinando
suas divergências.
CORRESPONDÊNCIA: 14961512 |
canos obrigá-lo com violência a retornar, Michelangelo responde que havia
sido injustamente ofendido e que jamais retornaria. Chegando a Florença,
põe-se a serviço do gonfaloniere Piero Soderini (por cuja encomenda realiza
o cartão da Batalha de Cascina), que, ao cabo de três meses — durante os
quais o papa lhe envia três mensagens exortando-o a regressar —, convence
Buonarroti a encontrar-se com Júlio II em Bolonha, que ali estava por oca-
sião da sua conquista da cidade aos Bentivoglio. O episódio que se segue é
igualmente célebre: apresentando-se, finalmente, ante o papa, este lhe teria
dito: “In cambio di venire tu a trovare noi, tu hai aspettato che venghiamo a
trovar te?”, aludindo ao fato de Bolonha estar geograficamente mais próxima
de Florença do que de Roma. Michelangelo responde que lhe perdoe, pois o
que havia feito fora por ressentimento, “non potendo sopportare d’essere
cacciato così via” (Vasari/Barocchi, Vita, I, p. 33). Nesse momento um bispo
que pretendia defender Michelangelo pede ao papa que o desculpe, pois “tali
uomini sono ignoranti e [...] da quell’arte in fuora non valevano in altro”; ao
ouvir isso, Júlio, enfurecido, bate no bispo com um bastão e expulsa-o di-
zendo: “Ignorante sei tu che gli di’villania, che non gliene diciàn noi”. Depois
disso, bendiz Buonarroti e o mantém em Bolonha, onde lhe encomenda a
sua estátua brônzea (posteriormente destruída por ocasião da retomada de
Bolonha pelos Bentivoglio).
Giuliano,
Vossa carta me informa de como o Papa levou a mal a minha parti-
da; de que Sua Santidade está disposto a pagar o depósito e fazer tudo con-
forme havíamos combinado,33 e que eu devo regressar e não me inquietar
por nada.
Quanto à minha partida, é verdade que, no Sábado Santo,34 ouvi o
Papa conversando, à mesa, com um joalheiro e com o mestre-de-cerimô-
nias,35 a quem disse que não queria gastar nem mais um centavo em pedras
[i.e., blocos marmóreos] pequenas ou grandes — o que muito me assom-
brou. Antes de partir, no entanto, fui pedir-lhe parte do que necessitava para
prosseguir com o trabalho. Sua Santidade respondeu-me que voltasse na
segunda-feira; e voltei na segunda — e terça e quarta e quinta-feira, como
ele bem viu. Por fim, na sexta-feira pela manhã, fui mandado embora, isto é,
expulso; e o sujeito que me expulsou disse que sabia quem eu era, mas que
estava cumprindo ordens. Assim, tendo ouvido no dito sábado as menciona-
33 Segundo o primeiro acordo — não se sabe se chegou a haver um contrato escrito — entre
Michelangelo e o papa, realizado ao redor de março de 1505, o prazo estipulado para a finali-
zação da tumba era de cinco anos, e o pagamento, de 10 mil ducados.
34 11 de abril.
35 Segundo Ramsden, I, p. 15, tratava-se possivelmente de Johannes Burchard de Estrasburgo,
que morre em 26 de maio desse mesmo ano e é sucedido por Paris de Grassis, que já vinha
atuando como segundo mestre-de-cerimônias desde 1503.
| CARTAS ESCOLHIDAS
das palavras, e constatando-lhes o efeito, entrou-me um grande desespero.
Mas esta não foi a única razão da minha partida; houve também outra coisa,
que prefiro não mencionar; basta dizer que ela me fez considerar que, fi-
cando em Roma, a minha sepultura seria feita antes da do Papa.36 E esta foi
a razão da minha súbita partida.
Agora me escreveis de parte do Papa, e portanto ao Papa lereis esta
carta: saiba Sua Santidade que estou mais que nunca disposto a prosseguir o
trabalho; e se realmente é a sua vontade que se realize a tumba, não deve
preocupar-se com o lugar onde eu a faça, desde que ao cabo de cinco anos,
segundo o nosso acordo, ela esteja em San Pietro, posicionada onde quer
que deseje, e que seja tão bela como eu lhe havia prometido; pois estou se-
guro de que, caso se faça, nada em todo o mundo se lhe poderá comparar.
Agora, caso Sua Santidade deseje que eu prossiga, que me faça o men-
cionado depósito aqui em Florença, onde eu lhe indique; encomendei mui-
tos blocos de mármore em Carrara, os quais mandarei trazer aqui, assim
como os que tenho em Roma. Ainda que isso implicasse grandes perdas
para mim, não me importaria, desde que pudesse realizar o trabalho aqui; e
enviarei uma por uma as peças realizadas, para que Sua Santidade as desfru-
te como se eu estivesse em Roma — ou ainda mais, porque já verá as coisas
completas, sem preocupar-se com nada. E, quanto ao dito pagamento e à
dita obra, comprometer-me-ei como queira Sua Santidade, e dar-lhe-ei, aqui
em Florença, todas as garantias que deseje; o que quer que seja, dar-lhe-ei
absoluta garantia ante toda Florença. Basta. E devo ainda dizer o seguinte:
não me é possível realizar a dita obra, por esse preço, em Roma; poderei
fazê-la aqui graças às muitas comodidades que existem aqui, e não aí, e po-
derei fazê-la ainda melhor e com maior dedicação, visto que não precisarei
preocupar-me com outras coisas. Portanto, caríssimo Giuliano, peço-vos
que me respondais, e rápido. Nada mais.
Em dois de maio, 1506.
Vosso Michelangelo escultor, em Florença.
36 Refere-se possivelmente a sua rivalidade com Bramante e ao seu receio de que este estives-
se tramando seu assassinato (cf. Symonds, I, pp. 155-9). Outra hipótese, mencionada por Ch.
Robertson (“Bramante, Michelangelo and the Sistine Ceiling”, Journal of the Warburg and
Courtauld Institutes, XLIX, 1986, p. 97 e seg.), sugere que a misteriosa “altra cosa” se refira ao
projeto de pintar o teto da Capela Sistina, o qual foi proposto a Michelangelo pouco depois
do cancelamento do projeto da Tumba, e havia sido inicialmente recusado pelo mestre (se-
gundo Vasari e Condivi, como foi dito, Bramante teria persuadido o papa a encarregar os
afrescos a Michelangelo com a maliciosa intenção de desviar Buonarroti de sua verdadeira
preferência — a escultura — e obrigá-lo a pisar um terreno no qual julgava ter Rafael a supre-
macia). Isso também explicaria, de acordo com Robertson, a obstinação de Michelangelo em
permanecer em Florença — onde poderia realizar as esculturas sem se ver envolvido no
projeto da Sistina.
CORRESPONDÊNCIA: 14961512 |
Carta V: ao pai Lodovico, em Florença
Roma, maio/junho do 1509 37
Pai caríssimo,
Tomo conhecimento, através da vossa última carta, como aí se vem
dizendo que estou morto. Isso pouco importa, pois continuo vivo. Deixai
porém que digam o que dizem, e não faleis de mim a ninguém, pois há pes-
soas ruins.
Dedico-me a trabalhar tanto como posso. Há já treze meses não rece-
bo dinheiro do Papa, e estimo que dentro de um mês e meio receberei algum
seja como for, visto que terei feito muito bom uso do que havia recebido
anteriormente. Caso ele não me pagasse, precisaria mendigar para retornar
a Florença, pois não tenho nem um centavo. Contudo, não posso ser rouba-
do. Que Deus provenha o melhor.
Soube o relativo a Mona Cassandra; não sei o que dizer. Se pudesse
encontrar dinheiro, informar-me-ia sobre a possibilidade de transferir para
aqui o litígio sem danos para mim, ou seja, sem perda de tempo, mas teria
que arranjar um advogado, e por enquanto não tenho com que pagar. Avisai-
me, quando chegar o momento, como vai a coisa, e, caso preciseis de dinhei-
ro, ide ao spedalingo de Santa Maria Nuova,38 como já vos disse. Não tenho
| CARTAS ESCOLHIDAS
nada mais a vos dizer. Eu estou infeliz, não muito saudável e com muito
trabalho, sem instruções e sem dinheiro; tenho, contudo, a esperança de que
Deus me ajudará. Recomendai-me a Giovanni da Ricasoli e ao heraldo mes-
ser Agniolo.
Vosso Michelangelo em Roma.
Giovan Simone,
Diz-se que fazer bem aos bons torna-os melhores, e aos maus, piores.
Venho tentando já há alguns anos, através de bons atos e palavras, recondu-
zir-te a viver corretamente e em paz com teu pai e conosco, mas tu continuas
piorando. Não te digo que sejas ruim, mas comportas-te de uma maneira
que não me agrada, nem a mim nem aos demais. Poderia fazer-te um longo
discurso acerca do teu comportamento, mas seriam palavras, iguais às que já
te dirigi. Eu, para resumir, digo-te que uma coisa é certa: nada possuis no
mundo, tuas despesas e tua hospedagem sou eu quem fornece, e venho for-
necendo há algum tempo pelo amor de Deus, acreditando que fosses meu
irmão, como os outros. Agora, tenho certeza de que não és meu irmão, pois,
se o fosses, não ameaçarias meu pai; és, antes, um animal, e eu como animal
pecuniário, vindo a ser costumeiro que cidadãos florentinos depositassem seu dinheiro ali a
juros de 5%. Como se depreenderá da correspondência, Michelangelo utilizava constante-
mente os serviços bancários da instituição.
CORRESPONDÊNCIA: 14961512 |
irei tratar-te. Saibas que quem vê seu pai ameaçado ou agredido é impelido
a defendê-lo com sua própria vida. E basta.
Digo-te que nada possuis no mundo; e, caso eu ouça a menor coisa
sobre as tuas atividades, irei imediatamente até aí a mostrar-te o teu erro e
ensinar-te a destruir os teus próprios pertences e incendiar casas e fazendas
que tenhas ganhado tu.39 Não estás onde acreditas estar. Se eu for até aí, con-
tar-te-ei coisas que te deixarão banhado em lágrimas, e verás sobre o que
fundas a tua soberbia.
Hei de repetir-te que, se quiseres comportar-te bem e honrar e respei-
tar teu pai, ajudar-te-ei como aos demais, possibilitando que dentro em bre-
ve monteis um bom estabelecimento;40 caso contrário, irei até aí e resolverei
os teus assuntos de maneira a que compreendas o que és melhor do que ja-
mais o fizeste, e saberás o que tens no mundo, e o verás por onde quer que
vás. Nada mais. Suprirei com feitos o que me falta em palavras.
Michelangelo em Roma.
Buonarroto,
recebi o pão; é bom, mas não o bastante para o comércio, pois não
proporcionaria um grande lucro. Dei ao rapaz cinco carlini, e a duras penas
consegui que ele mo deixasse. Informas-me em tua última carta que Loren-
zo41 passará por aqui e que devo recebê-lo bem. Tenho a impressão de que
tu não sabes como eu vivo aqui. Perdôo-te portanto. Farei o que puder.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Quanto a Gismondo (**), entendo que virá aqui para resolver seus assuntos.
Avisa-lhe, de minha parte, que não conte comigo para nada, não porque eu
não o ame como irmão, mas porque não posso ajudá-lo em coisa alguma.
Sou obrigado a colocar-me antes dos demais, e não posso suprir as minhas
próprias necessidades. Aqui vivo em enorme ansiedade e com imensa fadiga
física; não tenho amigos de nenhuma espécie, e nem os quero; e não tenho
tempo nem sequer para alimentar-me como deveria. Portanto não me tra-
gas mais aborrecimentos, pois não poderia suportar nada mais.
Quanto ao estabelecimento, aconselho-te a ser diligente. Fico conten-
te em saber que Giovan Simone começa a emendar-se. Dedicai-vos a au-
mentar honestamente ou manter o que possuis, de maneira a que aprendais
a manejar coisas maiores; pois espero que, quando eu retorne, estareis por
vossa conta, se sois o bastante homens.
Diz a Lodovico que eu não lhe respondi porque não tive tempo, e não
vos inquieteis se não escrevo.
Michelangelo escultor em Roma.
Buonarroto,
não te escrevo há vários dias, pois não houve nada de novo; agora,
tendo ouvido aqui o que se passa aí, parece-me que devo escrever-vos o que
penso, que é o seguinte: encontrando-se o país42 em um mau momento,
CORRESPONDÊNCIA: 14961512 |
como se diz aqui, deveríeis tentar retirar-vos a algum lugar onde estejais
seguros, abandonando vossas possessões e todo o demais, pois a vida é mui-
to mais valiosa que os bens; e, caso não tenhais o dinheiro necessário para
partir, ide ao spedalingo e pedi-lhe algum. Se eu estivesse convosco, retiraria
todo o dinheiro que tenho com o spedalingo e iria a Siena, onde conseguiria
uma casa na qual permaneceria até que as coisas se assentassem aí. Creio
que a procuração que fiz a Lodovico, com a qual pode retirar o meu dinhei-
ro, ainda é válida, de modo que, se necessário, tomai-o e gastai, em casos de
perigo como este, o que preciseis, guardando o resto para mim. E, quanto ao
país, não vos envolvais em absoluto, nem com feitos nem com palavras, e
fazei como em caso de peste: sede os primeiros a fugir. Nada mais. Manda-
me notícias o mais rápido possível, pois estou muito preocupado.
Michelangelo escultor em Roma.
Esta carta anuncia o término dos trabalhos no teto da Sistina, assim como a
sua aprovação por parte do papa. As “altre cose” às quais se refere Michelan-
gelo podem muito possivelmente se relacionar ao projeto da tumba, que Jú-
lio II lhe havia ordenado retomar em seguida à finalização dos afrescos sisti-
nos, mas “con minor disegno”, segundo Vasari, que o projeto inicial43 — mar-
cando portanto a sua suposta redução inicial. A igualmente misteriosa pas-
sagem “non ho quello che bisognia a far quello che voglio fare” relaciona-se,
possivelmente, ao roubo dos blocos marmóreos que Buonarroti havia ad-
quirido em Carrara em 1505, e que, devido ao abandono do projeto da tum-
ba, haviam permanecido na praça de San Pietro, onde viriam a ser saquea-
dos ao longo dos anos que se seguiram.
Caríssimo pai,
Por vossa última carta soube que devolvestes quarenta ducados ao
spedalingo. Fizestes bem, mas, caso venhais a saber que estão em perigo,
rogo-vos que me aviseis.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Terminei a capela que pintava;44 o Papa ficou muito satisfeito, mas as
outras coisas não saíram como eu esperava; a isso culpo os correntes tem-
pos, que são muito contrários à nossa arte. Não irei aí em Todos os Santos,
pois não tenho o que preciso para fazer o que quero, e, ainda, não é o tempo
propício para isso. Dedicai-vos a viver o melhor que podeis, e não vos preo-
cupeis por nada. É tudo.
Michelangelo escultor em Roma.
Caríssimo pai,
por vossa última carta tomei conhecimento de como vão as coisas aí,
ainda que antes já conhecesse parte delas. É preciso ter paciência, recomen-
dar-se a Deus e arrepender-se de nossos erros, pois essas adversidades pro-
vêm deles, e principalmente da soberbia e da ingratidão — pois jamais tratei
com gente mais ingrata e soberba que os florentinos. De maneira que, em
vindo a justiça, é bem feita.
Quanto aos sessenta ducados que, segundo me contais, deveis pagar,45
parece-me que a soma é injusta, e encontro-me muito preocupado; entre-
tanto é preciso ter tanta paciência quanto queira Deus. Escreverei um par de
linhas a Giuliano de’ Medici,46 que anexarei a esta; lede-as, e, se quiserdes,
levai-as a ele, e vede se são de alguma utilidade. Se não, considerai a possibi-
lidade de vender o que possuímos e ir viver algures. Ainda, se notardes ser
tratado pior que os demais, procurai não pagar e permiti antes que levem o
que possuis, e avisai-me. Contudo, se vos tratarem como aos demais, tende
paciência e esperança em Deus. Segundo me contais, provestes trinta duca-
dos; retirai outros trinta da minha conta e enviai-me o resto. Levai-os a Bo-
CORRESPONDÊNCIA: 14961512 |
nifazio Fazi, que mos enviará através de Giovanni Balducci;47 pedi um reci-
bo a Bonifazio, e enviai-mo junto com a vossa próxima carta.
Concentrai-vos em viver, e, se não podeis receber as honras da terra
como os outros cidadãos, que vos baste ter pão e viver austeramente com
Cristo, como o faço aqui, onde vivo miseravelmente e não me importo nem
com a vida nem com a honra — isto é, a mundana; onde vivo com grandes-
síssimos labores e mil inquietudes. E já são quinze os anos em que vivo as-
sim, sem jamais ter passado uma hora de felicidade, e tudo para ajudar-vos,
e vós jamais o reconhecestes ou crestes. Que Deus nos perdoe a todos. Eu
estou preparado a continuar fazendo o mesmo enquanto viva, sempre que
puder.
Vosso Michelangelo escultor em Roma.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Notas biográficas ( 1513-1529)
Aproximadamente três meses após a morte de Júlio II — portanto em maio Tumba de Júlio II
de 1513 — foi redigido um novo contrato para a tumba papal, à qual Miche-
langelo parece ter-se dedicado com exclusividade durante cerca de três anos.
Em sua residência na Rua Macel de’ Corvi, no centro de Roma,48 o artista
haveria de realizar, nesse período, o magnífico Moisés e os dois Cativos do
Louvre, além de iniciar o Cristo de Santa Maria sopra Minerva, o qual lhe
havia sido encomendado por Metello Vari para a supracitada igreja.49 Du-
rante esses anos, Michelangelo se manteve afastado da Cúria; conforme a
primeira das cartas apresentadas a seguir, escrita em meados de 1515, contu-
do, Buonarroti pressentia, nesse momento, que em breve haveria de entrar a
serviço do papa.
Leão X era o segundo filho de Lorenzo Magnífico, a cuja mesa Miche- Fachada de
San Lorenzo
langelo sentara-se durante sua adolescência. Não obstante o afeto fraterno
que proclamava nutrir pelo mestre e sua admiração por sua arte, o papa
parecia sentir certo receio pelo caráter difícil e violento de Michelangelo,50 o
que vem sendo apontado por muitos historiadores como a razão pela qual o
mestre presumivelmente tenha sido preterido, no Vaticano, em favor de Ra-
fael.51 Segundo Tolnay (III, p. 4), também foi essa a razão pela qual, quando
48 Próxima à coluna de Trajano. A casa foi destruída, em fins do século XIX, quando da cons-
trução do hediondo monumento a Vittorio Emmanuele.
49 O mestre abandonaria esse projeto em 1516 devido à aparição de uma veia negra no már-
more, à altura do rosto; retomá-lo-ia em 1519 com um novo bloco, e o finalizaria, com a cola-
boração de um assistente, em 1521.
50 Como demonstram duas cartas escritas a Buonarroti por Sebastiano del Piombo,
respectivamente em 15/10/1520 (Carteggio, vol. II , pp. 246-7) e 27/10/1520 (id., pp. 252-3): “Et,
per la fede è tra nui, Sua Santità me disse più: ‘Guarda l’opere di Rafaelo, che come vide le
hopere di Michelagniolo, subito lassò la maniera del Perosino e quanto più poteva si
acostava a quella di Michelagnolo. Ma è teribile, come tu vedi: non si pol pratichar con lui’.
Et io resposi a Sua Santità che la teribelità vostra non noceva a persona, et che vui parete
terribile per amor de l’importantia de l’opere grande havete [...]”; “[...] come vui fusti a Romma,
meteresti fine a ogni cosa et otteneresti tutto quello vui voresti — non chastelli ma città —,
perché io so in che conto vi tien el Papa, et quando parla di vui par rasoni de un suo fratello,
quassi con le lacrime algli ochii; perché m’à decto a me vui sette nutriti insiemi, et dimostra
conoscervi e amarvi, ma fate paura a ognuno, insino a’ papi”.
51 Este reinava então inconteste no Vaticano, sendo desse período os afrescos da Stanza
dell’incendio (1514-1517) e o célebre retrato de Leão X rodeado por Giulio de’ Medici e Luigi
de’ Rossi (1518, atualmente nos Uffizi), entre outras obras.
| CARTAS ESCOLHIDAS
to de 1516, em maio de 1522 — para acirrar a pressão sobre o mestre e renovar
suas reclamações relativas ao atraso na finalização da obra, exigindo-lhe a de-
volução do dinheiro que lhe havia sido pago; a disputa prosseguiria durante
toda a década de 1520. É nesse período, com toda a probabilidade, que Miche-
langelo realiza os quatro magníficos Cativos atualmente conservados na Acca-
demia de Florença, originariamente concebidos para a tumba.
Quando da eleição de Clemente VII, o cardeal Giulio de’ Medici, Mi-
chelangelo retoma os trabalhos em San Lorenzo, aos quais haveria de de-
dicar-se, intermitentemente, até 1529. Paralelamente, o papa encarrega-o,
em 1524, da execução arquitetônica da Biblioteca Laurenziana, na mesma
igreja.
No plano político, crescem, a partir de 1526, as tensões entre Carlos V Saque de Roma;
expulsão dos Medici
e o papa, que rompera suas relações com o imperador para aliar-se à França e instauração da
República em Florença
através da Liga de Cognac; essa temerária e sem dúvida desastrada manobra
acabaria por acarretar, em 7 de maio de 1527, o estarrecedor saque de Roma
pelas tropas imperiais.55 Em 17 de maio, os Medici são novamente banidos
de Florença, sendo a República reinstaurada quatro dias depois. Clemente
VII, que conseguira escapar para o Castel Sant’Angelo por ocasião do saque,
rende-se em 7 de junho, sendo mantido prisioneiro na fortaleza até a noite
de 6 de dezembro, quando consegue fugir, disfarçado, para Orvieto. Devas-
tada pelo saque e por uma epidemia de peste, Roma é abandonada tanto
pelos soldados invasores quanto por grande parte de seus moradores, trans-
formando-se em uma arruinada cidade fantasma.56
55 O saque é descrito por diversos cronistas contemporâneos, como por exemplo Cellini
em sua Autobiografia (cf. ed. Ch. Hope, Oxford, 1983, p. 42 e seg.) e o próprio Francesco
Guicciardini, conselheiro do papa, em sua Storia d’Italia, escrita entre 1536 e 1540. Para re-
ferências a diversos outros testemunhos, diretos ou indiretos, da crudelíssima ferocidade
do saque — no qual não apenas se perderam milhares de vidas, mas também se extravia-
ram obras de arte, livros e documentos, destruíram-se obras arquitetônicas e profanaram-
se igrejas e tumbas — cf. Il sacco di Roma del MDXXVII, ed. de C. Milanesi; Florença: Barbè-
ra, 1867 (incluindo o texto de Guicciardini), e K. Gouwens, Remembering the Renaissance.
Humanist narratives of the sack of Rome; Leiden: Brill, 1998. Este último autor analisa, ain-
da, as conseqüências do saque do ponto de vista da elaboração do discurso renascentista
relativo a Roma, a qual, ao menos desde o Quatrocentos, personificava no imaginário hu-
manista tanto a grandeza da urbe imperial rediviva quanto a renovada potência do poder
vaticano; após a catástrofe, contudo, esse discurso precisaria ser reelaborado, dando origem
a uma série de radicais transformações tanto no plano cultural quanto no intelectual roma-
nos. No epistolário, curiosamente, não há quaisquer referências quer ao saque, quer às suas
conseqüências imediatas.
56 Mais de um cronista relata que a eclosão de peste adveio do fato de milhares de cadáveres
terem permanecido insepultos. Ao abandono definitivo das tropas imperiais, em fevereiro de
1528, seguiram-se ainda vários meses de profunda instabilidade, permanecendo a cidade as-
solada pela fome, pela peste e pelo banditismo; somente a partir de outubro, com o retorno
do papa, Roma retomaria ao menos algo de normalidade.
| CARTAS ESCOLHIDAS
gressar.60 Em fins de novembro, tendo recebido garantias de que não sofreria
represálias por parte da Signoria, retorna a Florença via Ferrara, retomando
imediatamente as obras de fortificação em San Miniato. Em agosto de 1530,
Florença capitula ante as tropas do papa e do Império; Michelangelo, temen- Capitulação da
República; retomada
do a vingança de Clemente VII, mantém-se oculto,61 abandonando seu es- das obras em San
Lorenzo
conderijo somente ao receber, por parte do papa, a garantia de que não so-
freria nenhuma represália, desde que aceitasse prosseguir com os trabalhos
em San Lorenzo.62 Em Florença, a República é imediatamente dissolvida, e
um Medici — o duque Alessandro, filho ilegítimo de Clemente VII, que con-
trai matrimônio com a filha, também ilegítima, de Carlos V — novamente
assume o poder.
Durante esses 17 anos, os projetos artísticos de Michelangelo vêem-se
constantemente turbados e desviados de seu conceito original, seja por in-
trigas palacianas, pela instabilidade de seus “patrões” ou pela turbulência
política que não parecia dar respiro à Itália. O mestre envolve-se em tare-
fas colossais, uma das quais é obrigado a abandonar após um empenho de
60 A primeira carta escrita a Michelangelo por Battista della Palla, enviada juntamente com
missivas de dez outros amigos, perdeu-se; tem-se, no entanto, as duas cartas seguintes de della
Palla, enviadas respectivamente em 24 de outubro e 19 de novembro (Carteggio, III, pp. 282-5).
61 Não se sabe exatamente onde Michelangelo se escondeu; a maioria dos estudiosos supõe,
com base nos relatos de Vasari e Condivi, que tenha sido na casa de “um grande amigo”, en-
quanto outros assumem que se tenha ocultado em uma pequena câmara secreta na capela
medicea em S. Lorenzo. Essa câmara, situada sob a abside da capela, foi descoberta somente
em 1975; polidas as paredes, vieram à vista 56 desenhos parietais em carvão estilisticamente
atribuíveis a Buonarroti — entre os quais um estudo da cabeça de Laocoonte, obra intensa-
mente admirada pelo artista, e desenhos de obras suas — como o David-Apolo, a Eva sistina,
Leda e o cisne, entre outros — cuja descoberta foi anunciada pelo então diretor do museu que
alberga a capela, Paolo dal Poggetto, em janeiro de 1976. Dal Poggetto é o primeiro a publicar
os desenhos, atribuindo-os a Michelangelo e situando-os, com base em sua análise estilística,
ao redor de 1530, ou seja, precisamente a época em que Buonarroti teve que se esconder, te-
mendo a vingança do papa. Cf. P. dal Poggetto, “I disegni murali di Michelangelo scoperti
sotto la Sagrestia Nuova”; Prospettiva, vol. 5, 1976, pp. 11-46, e I disegni murali di Michelangelo
e della sua scuola nella Sagrestia di San Lorenzo, Florença: Centro Di, 1979; F. Magi, “Miche-
langelo e il suo disegno della testa di Laocoonte recentemente scoperto”; Rendiconti della
Pontificia Accademia Romana di Archeologia, vol. 48, 1977, pp. 151-7; e C. Elam, “The mural
drawings in Michelangelo’s New Sacresty”; Burlington Magazine, vol. 123, n. 943, 1981, pp. 593-
602 (que atribui alguns dos desenhos a Giovannangelo Montorsoli, um dos principais assis-
tentes de Michelangelo a partir dos anos 1530).
62 Nesse momento, Michelangelo ocupava com total estabilidade a posição de maior artista
vivo, de maneira que o papa parecia estar muito mais interessado em reconquistar os seus
serviços do que em puni-lo. Segundo Condivi, XLV e XLVI, pp. 92-4, “[...] egli [Clemente VII]
non altrimenti ebbe rispetto nella presa di Firenze alla virtù di questo uomo, che avesse già
Marcello, nell’entrare in Siracusa, a quella di Arquimede [...] Rispettò Clemente quest’uomo
come cosa sacra, e con quella domestichezza ragionava seco, e di cose gravi e leggeri, che
arebbe fatto con un suo pari”.
| CARTAS ESCOLHIDAS
CORRESPONDÊNCIA: 1515-1529
Esta carta faz uma primeira referência a Leão X, sucessor de Júlio II, que fa-
lecera em fevereiro de 1513. Em maio desse mesmo ano um segundo contra-
to para o projeto da tumba havia sido estipulado pelos herdeiros do papa;
Michelangelo parece ter-se lançado imediatamente ao trabalho, ao qual se
dedicou exclusivamente até 1516. No momento em que escreve a seguinte
carta, entretanto, Buonarroti refere estar a ponto de se pôr a serviço de Leão
X, atestando portanto o início das negociações relativas ao malfadado proje-
to da fachada de San Lorenzo em Florença. Note-se a utilização, pela enési-
ma vez em suas cartas, da frase “non è mia professione” — relativa, desta vez,
à escrita.
Buonarroto,
escrevi a carta a Filippo Strozzi;64 vê se a aprovas e envia-a. Caso não
esteja bem, sei que mo perdoará, pois não é essa a minha profissão; bastará
que ela te seja útil.
Gostaria que fosses ver o spedalingo de Santa Maria Nuova e lhe pedis-
ses que me transfira mil e quatrocentos ducados do meu dinheiro, pois aqui
preciso fazer um grande esforço para, neste verão, terminar rapidamente este
trabalho,65 visto que em seguida deverei entrar a serviço do Papa.66 Para isso,
comprei aproximadamente vinte mil pesos de cobre, a fim de moldar certas
estátuas. Preciso de dinheiro; portanto, assim que recebas esta carta, vai ter
com o spedalingo e consegue que me faça a transferência. E, se conseguires que
64 Filippo Strozzi o Jovem, membro de uma das mais influentes a abastadas famílias florenti-
nas durante os séculos XV e XVI, havia sido eleito tesoureiro pontifício em Florença quando
da eleição de Leão X. Segundo se apreende de uma carta anteriormente escrita por Michelan-
gelo (Barocchi, Carteggio, I, p. 165), Buonarroto desejava que o irmão enviasse uma carta a
Strozzi pedindo-lhe que o ajudasse a montar seu estabelecimento, ao que Michelangelo mos-
trara-se relutante: “Dello scrivere chosa a Filipo, io non ci ò tal familiarità che io lo facessi, e
ancora so che lui non farebe conto di mia lectere”.
65 A tumba de Júlio II .
66 Leão X.
CORRESPONDÊNCIA: 15151529 |
Pier Francesco Borgherini,67 que está aí, mo pagasse dos seus próprios fundos,
ficar-te-ia muito agradecido, pois Pier Francesco é meu amigo e me facilitaria
a transação. Não comentes com ninguém este assunto, pois quero que a trans-
ferência seja feita secretamente. E, quanto ao dinheiro que resta em Santa Ma-
ria Nuova, tem cuidado com o spedalingo; tenho minhas razões para aconse-
lhar-te assim. Aguardo o dinheiro. Nada mais.
Michelangelo em Roma.
| CARTAS ESCOLHIDAS
vereiro de 1517, no entanto, o cardeal Giulio envia-lhe uma carta exortan-
do-o imperativamente a abandonar Carrara e dirigir-se a Pietrasanta (cf.
Carteggio, I, p. 244).70
Não seria senão até a assinatura do contrato formal para a realização da fa-
chada, em janeiro de 1518, porém, que Michelangelo substituiria definiti-
vamente Carrara por Pietrasanta — o que acaba por ocasionar a inimizade
carraresa em relação ao artista, a qual é referida por este na segunda das
cartas a Buoninsegni apresentada a seguir (cf. Murray, p. 92 e seg.; Tolnay,
Michelangelo, III, p. 5; Ramsden, apêndice 13, p. 261 e seg., Vasari/Barocchi,
II, nota 455, p. 716 e seg.).
Essa mudança acarretaria uma nova série de dificuldades, pois sendo efeti-
vamente precários os meios de transporte entre Pietrasanta e Florença, era
necessário finalizar a estrada — que havia sido iniciada em 1514 — unindo
Seravezza, próximo a Pietrasanta, à costa, de onde os blocos poderiam ser
transportados por via marítima.71 Michelangelo é encarregado de supervi-
sionar essa construção, trabalho em que se empenharia até, aproximada-
mente, setembro de 1518.
Messer Domenico,
Desde que vos escrevi a minha última carta, não pude chegar a reali-
zar o modelo, como vos havia dito; demoraria muito em explicar-vos o por-
quê. Anteriormente eu havia esboçado um pequeno [modelo] de argila, para
meu próprio uso aqui, o qual, ainda que amassado como uma uva-passa,72
quero enviar-vos, de maneira a que este trabalho não pareça uma farsa.
Tenho muitas coisas a vos dizer: lede com um pouco de paciência,
pois são importantes. Trata-se do seguinte: estou disposto a realizar a obra
da fachada de San Lorenzo, a qual será, tanto arquitetônica quanto esculto-
ricamente, o espelho de toda a Itália; é preciso, contudo, que o Papa e o Car-
deal73 resolvam logo se querem que eu a faça ou não. E, se querem que eu a
faça, devem chegar a alguma conclusão, ou seja, decidir se a encomendam a
mim por contrato e confiam inteiramente em mim, ou se preferem fazê-lo
de alguma outra maneira, que desconheço qual possa ser. Compreendereis
o porquê disto.
Eu, como vos escrevi, e depois de haver-vos escrito, encarreguei mui-
tos mármores, distribuí dinheiro aqui e acolá, e pus-me a extrair [os blocos]
em vários lugares. E, em alguns locais onde já havia pagado por eles, os már-
mores não saíram como eu desejava, pois são enganosos — principalmente
CORRESPONDÊNCIA: 15151529 |
esses blocos grandes de que necessito, se hão de ser tão belos como eu os
quero. E, em um bloco que eu já havia mandado cortar, apareceram certas
falhas próximas à base, as quais não se teriam podido adivinhar, de modo
que não pude realizar com ele as duas colunas que tinha em mente, e joguei
fora metade do meu investimento. Assim sendo, com esses infortúnios, é
inevitável que, de tantos blocos, eu possa aproveitar tão poucos, os quais
remontarão a algumas centenas de ducados; e eu não sei como equilibrar as
despesas, e não posso, por fim, provar os meus gastos, a não ser pela quanti-
dade de mármore que terei conseguido. De bom grado faria como o maestro
Pier Fantini,74 mas não tenho suficiente ungüento. E finalmente, porque sou
velho, não acho necessário que, para poupar duzentos ou trezentos ducados
ao Papa no relativo a esses mármores, deva perder tanto tempo. Como estou
sendo pressionado por meu trabalho aqui,75 é preciso tomar uma decisão o
quanto antes.
E minha decisão é a seguinte: se eu tivesse certeza de que estou encar-
regado de determinar o trabalho e seu preço, não me preocuparia por gastar
quatrocentos ducados, porque não teria que prestar contas quanto a eles;
selecionaria três ou quatro dos melhores homens e lhes encomendaria todos
os mármores, cuja qualidade deveria ser igual à dos que eu extraí, que são
admiráveis, ainda que poucos. Para isso, e para o dinheiro que lhes adianta-
ria, faria um bom seguro em Lucca, e daria ordens para transportar os már-
mores a Florença e iniciaria os trabalhos do Papa e os meus próprios. Não
vejo outra saída, caso não chegue ao acima mencionado acordo com o Papa.
Eu não poderia, mesmo que quisesse, enviar o mármore para o meu traba-
lho a Florença, e depois novamente a Roma, mas precisaria ir rapidamente a
Roma, pois, como vos disse, estou sendo pressionado.
Os custos da fachada, como eu penso concebê-la e realizá-la, com
tudo incluído, de maneira a que o Papa não precise preocupar-se com nada,
não poderiam ser inferiores, segundo os meus cálculos, a trinta e cinco mil
ducados de ouro, e para construí-la eu necessitaria seis anos, sendo que,
dentro de seis meses, receberia ao menos outros mil ducados relativos aos
mármores. E, caso o Papa não esteja de acordo com isso, será preciso que, ou
bem as despesas em que já incorri no tocante à supracitada obra fiquem por
minha conta e risco, e que eu restitua os mil ducados ao Papa, ou que ele
consiga outra pessoa para dar continuidade à empresa, visto que, por várias
razões, desejo sair daqui o antes possível.
74 Michelangelo faz uma alusão irônica ao médico Pier Fantini, célebre por não cobrar por
suas consultas e oferecer gratuitamente a seus pacientes os ungüentos e demais medicamen-
tos que lhes receitava.
75 Relativo à tumba de Júlio II .
| CARTAS ESCOLHIDAS
Quanto ao mencionado preço, caso eu perceba, uma vez começada a
obra, que a posso realizar por menos, tão leal sou ao Papa e ao Cardeal, que
lhes avisaria muito mais rápido do que o faria caso se tratasse de um prejuí-
zo. Antes, contudo, minha intenção é fazê-la de modo76 a que o preço não
seja suficiente.
Messer Domenico, rogo-vos que me deis uma resposta definitiva
por parte do Papa e do Cardeal, o que me será o maior favor de todos os
que me fizestes.
(Sem assinatura)
Domenico,
os mármores extraídos são bons, e, como aqueles que servem para a
obra de San Pietro, são fáceis de cortar e estão mais próximos do mar que os
outros, em um lugar chamado Corvara; e desse ponto ao mar não é necessá-
rio construir uma estrada, excetuando um trecho pantanoso que está próxi-
mo à costa. Mas, para obter os mármores que eu necessito para as estátuas, é
preciso aumentar a mencionada estrada, de Corvara a Seravezza, em cerca
de duas milhas, e em cerca de no máximo uma milha uma nova estrada de-
verá ser feita, ou seja, deverá ser cortada através da montanha com picaretas
até o ponto onde esses mármores possam ser transportados. Assim sendo, se
o Papa só está disposto a providenciar o relativo aos seus próprios mármo-
res — ou seja, à região pantanosa — eu não tenho meios para providenciar
o resto, e não poderia obter os mármores para o meu trabalho. Se ele não o
faz, eu não poderei me ocupar dos mármores para San Pietro, como havia
prometido ao Cardeal;78 mas, ocupando-se o Papa de tudo, poderei fazer o
que prometera.
Tudo isto eu já vos escrevi em outras cartas. Sois sábio e prudente, e
sei que gostais de mim; por isso rogo-vos que arranjeis a coisa a vosso modo
com o Cardeal e que me respondais logo, para que eu possa decidir-me, e,
caso nada de novo surja, volte a Roma, ao que estava fazendo. A Carrara eu
não iria, porque não obteria os mármores de que necessito nem em vinte
anos. De mais a mais, há grande inimizade contra mim ali, por causa deste
CORRESPONDÊNCIA: 15151529 |
assunto, e me veria obrigado, se retornasse a Roma, a trabalhar em bronze,
como havíamos conversado.
Informo-vos que os Operai 79 fizeram já grandes projetos relativos a
este assunto dos mármores, desde que foram informados por mim, e acredito
que já tenham estabelecido os preços e os impostos e as permissões de trans-
porte, e que notários, arquinotários, provedores e subprovedores tenham já
pensado em redobrar seu lucro naquela cidade. Então pensai bem e fazei o
que estiver a vosso alcance para que isso não lhes caia em mãos, pois depois
seria mais difícil obter algo deles do que de Carrara. Rogo-vos que me res-
pondais rapidamente dizendo o que devo fazer, e que me recomendeis ao
Cardeal. Eu sou como o seu representante aqui, e atuarei somente segundo
o que escreverdes, o que considerarei como sendo a sua intenção.
Se não vos escrevo corretamente, como se deve, ou se algumas vezes
não encontro o verbo principal, perdoai-me, pois sinto como um trinado no
ouvido, que não me deixa pensar como eu gostaria.
Vosso Michelangelo escultor em Florença.
Esta carta é uma cópia, parcial, escrita por Buonarroto. Michelangelo nela se
queixa ao cardeal de’ Medici do preço abusivo que lhe havia sido imposto,
por parte da colegiada de Santa Maria del Fiore, para a compra de um terre-
no onde pudesse realizar os trabalhos relativos à fachada de San Lorenzo —
preço este que, segundo os canônicos, havia sido estipulado por uma bula
papal; quatro dias depois, o cardeal responde-lhe que o papa ordenaria uma
redução do preço do terreno, “non obstante la bolla di Nostro Signore o qual-
sivoglia altro respecto” (Carteggio, II, p. 37).
Interessante é comparar o tom arrogantemente irônico da carta michelan-
giana com o tom conciliador da resposta do cardeal, na qual este termina
por exortar Michelangelo a levar adiante a obra em San Lorenzo sem inter-
rupções.
Monsenhor reverendíssimo,
esperando receber este ano uma certa quantidade de mármores para
a obra de San Lorenzo em Florença, e não encontrando, nem em San Loren-
zo nem em sua proximidade, um local onde trabalhá-los, iniciei negocia-
ções, a fim de adquirir tal local, para comprar um terreno em Santa Cateri-
| CARTAS ESCOLHIDAS
na,80 do Capitolo81 de Santa Maria del Fiore, o qual me custa aproximada-
mente trezentos grandes ducados de ouro.82 Estou atrás deste Capitolo por
dois meses, para conseguir o mencionado terreno. Eles me fizeram pagar
sessenta ducados a mais do que o valor do terreno, alegando que sentem
muito, mas não podem transgredir a bula sobre as vendas que obtiveram
do Papa.
Ora, se o Papa faz bulas que dão a permissão de roubar, peço a Vossa
Senhoria eminentíssima que lhe peça uma para mim também, pois a neces-
sito mais do que eles; se, contudo, não é costumário fazê-las, rogo-vos que
intercedais por mim da seguinte maneira: este terreno que eu adquiri não é
suficiente para as minhas necessidades; o Capitolo possui algumas terras
mais atrás dele, e portanto rogo a Vossa Senhoria que me consiga outra par-
cela, com a qual eu poderia recuperar o que eles me cobraram a mais por
ocasião da minha compra. E, se restam dívidas, não quero nada deles.
Quanto à obra, os princípios são difíceis... (incompleta)
Lionardo,
Em vossa última carta exortais-me a trabalhar, o que eu aprecio, pois
vejo que o fazeis por meu bem; devo esclarecer, contudo, que essas exorta-
80 Cf. Wallace, pp. 64-6, para a localização desta e da seguinte propriedade adquirida por
Buonarroti em Florença.
81 Isto é, colegiada canônica.
82 No original, ducati d’oro larghi; valiosa moeda de ouro de uso corrente em praticamente
toda a Itália, que substitui gradualmente o fiorino durante o século XVI.
CORRESPONDÊNCIA: 15151529 |
ções, por outro lado, são como punhaladas para mim, que morro de angústia
por não poder fazer o que eu gostaria, por causa da minha má sorte. Esta
noite faz oito dias que Pietro retornou comigo de Porto Venere, juntamente
com Donato,83 que estava comigo em Carrara, encarregado do transporte
dos mármores. Eles deixaram um barco carregado em Pisa, o qual nunca
apareceu porque não tem chovido e o Arno está completamente seco; ou-
tros quatro barcos estão reservados, em Pisa, para esses mármores, os
quais, assim que chover, chegarão carregados, e eu começarei a trabalhar
duramente. Por causa desta história, sou o mais descontente dos homens
do mundo. Estou sendo pressionado, ainda, por messer Metello Vari no
relativo à sua estátua,84 que também está em Pisa [i.e., o bloco marmóreo
destinado a ela] e chegará com esses primeiros barcos. Eu jamais lhe res-
pondi, e nem quero escrever a vós antes de ter começado a trabalhar; por-
que morro de constrangimento, e pareço ter-me transformado em um em-
busteiro contra a minha vontade.
Mandei preparar uma bela oficina aqui, onde poderei trabalhar em
vinte estátuas ao mesmo tempo; não posso cobri-la porque aqui em Floren-
ça não há madeira, e não se pode encarregá-la enquanto não chover — e eu
não acho que volte a chover jamais, a menos que seja para causar-me al-
gum dano.
Quanto ao Cardeal [Aginense], não vos peço que lhe digais nada, pois
sei que ele tem uma má impressão sobre o meu comportamento; mas a ex-
periência em breve lhe fará ver claramente. Recomendai-me a Sebastiano
[del Piombo] (*), e eu a vós me recomendo.
Vosso Michelangelo em Roma
(Ao meu caro amigo Lionardo sellaio, na casa dos Borgherini em Roma).
| CARTAS ESCOLHIDAS
pedir-lhe a carta de recomendação85). Em 3 de julho, o veneziano escreve a
Michelangelo contando-lhe que, quando apresentara sua carta ao cardeal, o
papa já havia encomendado as pinturas aos “garzoni de Raphaello”; relata-
lhe, ainda, que sua carta havia agradado muito ao cardeal e ao papa, os quais
se haviam divertido muito com ela: “quasi non c’è altro sugieto che rasonar
in Palazo, se non la vostra litera: e fa ridere ogn’omo” (cf. Carteggio, II, p. 233).
A ironia michelangiana pode ser mais bem compreendida levando-se em
consideração que, em março, o contrato relativo à fachada de San Lorenzo
havia sido definitivamente cancelado.
Monsenhor,
Rogo a Vossa Reverendíssima Senhoria, não como amigo ou servo,
pois não mereço ser nem um nem outro, mas como um homem vil, pobre e
louco, obter para Bastiano Veneziano, visto que Rafael está morto, parte dos
trabalhos no Palácio.86 E, caso pareça a Vossa Senhoria inútil prestar favores
a alguém como eu, penso que ainda se pode achar algum deleite, às vezes,
nos favores prestados aos loucos, assim como com as cebolas, para mudar a
dieta, quando se está já farto de capões. Diariamente prestais favores a ho-
mens de estima; rogo a Vossa Senhoria que experimente fazê-lo comigo.
Este seria um enorme favor, e, ainda que fosse desperdiçado comigo, não o
será com Bastiano, pois tenho certeza de que ele fará jus a Vossa Senhoria; o
mencionado Bastiano é um homem capaz, e sei que lhe honrará.
(sem assinatura)
85 Carteggio, II , p. 227: “[…] credo havete saputo come quel povero de Rafaello da Urbino è
morto, dil che credo vi habbi despiaciuto assai; et Dio li perdoni. Hora brevemente vi aviso
come el si ha a depingere la salla de’ pontifici, del che e’ garzoni di Rafaello bravano molto, et
voleno depingerla a olio. Vi prego vogliate arecordarvi de me et recomandarmi a monsignor
reverendissimo; et se io son bono a simel imprese, vogliate metermi in opera, perché io non
vi farò vergogna, come credo non vi haver facto insino al presente. Et avisovi come hozi io
ho portato la mia tavola un’altra volta a Palazo, con quella che ha facto Rafaello, et non ho
havuto vergogna [referindo-se à Ressurreição de Lázaro e à Transfiguração; cf. entradas
relativas a Sebastiano e Rafael] […]”.
86 Refere-se provavelmente à Sala de Constantino, no Palácio Vaticano.
CORRESPONDÊNCIA: 15151529 |
niente dos juros proporcionados pelo investimento desse capital no Mon-
te;87 a esse dinheiro, por herança, teriam direito seus filhos. Em 16 de junho
de 1523, Michelangelo havia assinado um contrato com os irmãos segundo
o qual ficava estabelecido que ele deveria pagar a Gismondo, em um perío-
do de dois anos, 500 florins de ouro, em troca de obter os direitos sobre
certas fazendas de propriedade familiar — acordo que parecera desvanta-
joso a Michelangelo, segundo a carta que enviara a seu pai poucos dias
antes da apresentada a seguir (Carteggio, II, p. 371; cf. também Milanesi, pp.
54-7). A resposta de Lodovico a Michelangelo se perdeu, de maneira que o
motivo exato do desentendimento entre pai e filho não é completamente
claro; pode-se supor, contudo, que este se refira a uma cláusula incluída a
pedido de Michelangelo no supracitado contrato de junho de 1523, segun-
do a qual Lodovico e os irmãos de Michelangelo não poderiam realizar
nenhuma transação relativa a uma certa quantia depositada no Monte sem
o seu consentimento, até a morte de Lodovico — que, entretanto, teria di-
reito à renda correspondente a esse capital enquanto vivesse; esse dinheiro,
provavelmente, é parte da doação que Michelangelo fizera à família em
1513 (cf. Carteggio, I, pp. 142-3).
A correspondência entre os dois, não obstante essa desavença, prossegue até
a morte de Lodovico — ocorrida provavelmente em 153188 — como indica
uma série de cartas que sucessivamente escreveu ao filho; as missivas envia-
das por Buonarroti ao pai, contudo, não sobreviveram.
Lodovico,
em relação à vossa carta, respondo somente às coisas que me parecem
necessárias. Quanto às demais, rio-me delas. Dizeis que não podeis sacar
vossos pagamentos do Monte, porque eu os havia registrado em meu nome.
Isto não é verdade, e é preciso que vos responda quanto a este ponto, para
que saibais que vos enganou uma pessoa em quem confiais, quem talvez o
tenha sacado e utilizado, dando-vos a entender isto por seu próprio benefí-
cio. Eu não registrei o dinheiro em meu nome, e nem poderia fazê-lo, se
quisesse. Certamente é verdade, porém, que, em presença de Rafaello da Ga-
gliano, o notário me disse: “Não gostaria que os teus irmãos fizessem ne-
nhum contrato relativo a este dinheiro no Monte, de maneira a que, depois
da morte do teu pai, tu já não o encontrasses”, e levou-me ao Monte, onde me
fez depositar quinze grossoni e estipular uma condição segundo a qual nin-
| CARTAS ESCOLHIDAS
guém poderia dispor deles enquanto estiverdes vivo, e vós tereis o seu usu-
fruto durante a vossa vida, como estipula o contrato que conheceis.
Eu vos esclareci em relação ao contrato; podeis anulá-lo se quiserdes,
visto que ele não vos satisfaz. Eu vos esclareci em relação ao Monte, e podeis
vendê-lo, se quiserdes. Eu sempre fiz e desfiz segundo as vossas ordens; não
sei mais o que quereis de mim. Se a minha existência é um fastio para vós,
haveis encontrado a maneira de compensar-vos, e herdareis a chave desse
tesouro que, segundo afirmais, eu possuo; e fareis bem, porque se sabe em
toda Florença que sois muito rico, e que eu sempre vos roubei e mereço ser
punido. Sereis muito louvado! Gritai e maldizei-me quanto queirais, mas
não me escrevais mais, pois não me deixais trabalhar, e ainda preciso des-
contar tudo o que obtivestes de mim nos últimos vinte e cinco anos. Eu não
queria ter-vos dito isto, mas não tenho outra alternativa.
Cuidai-vos, e tende cuidado com quem vos cuida,89 pois só se morre
uma vez, e não se retorna para consertar as coisas malfeitas. Haveis esperado
estar à morte para fazer semelhantes coisas! Que Deus vos ajude.
Michelangelo
CORRESPONDÊNCIA: 15151529 |
última vez, ou seja, que desejo servir Sua Senhoria reverendíssima, e me
empenharei o mais e mais rápido que puder.
Tenho uma grande tarefa a cumprir, e estou velho e indisposto, tanto
que, se trabalho um dia, tenho que repousar quatro. Não estou seguro, por-
tanto, de poder prometer-lhe nada em definitivo. Procurarei servi-lo como
seja, e assim demonstrar-vos que reconheço o afeto que me dedicais.
Nada mais. Sou sempre vosso. Recomendai-me a Sebastiano Veneziano.
Vosso Michelangelo escultor em Florença.
Ao meu caro amigo Bartolomeo Angelini em Roma.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Meu caríssimo Maestro Domenico,
Esta carta vos será entregue por Bernardino di Pier Basso,94 que irá
até aí para conseguir certos blocos de mármore que necessita. Rogo-vos que
o conduzais aonde seja bem e rapidamente atendido; eu vo-lo recomendo o
mais que posso. Nada mais, sobre isto.
Já havereis ouvido que o Medici fez-se Papa, o que, parece-me, a todos
alegrou; com isso espero que, em relação à arte, muitas coisas serão feitas.
Trabalhai bem e com fé portanto, para ser reconhecido.
Em vinte e cinco de Novembro.
Vosso Michelangelo escultor em Florença.
Ao meu caro amigo maestro Domenico, chamado Topolino, marmo-
reiro em Carrara.
94 Michelangelo menciona um Bernardino seu assistente, em uma carta escrita a seu irmão
Buonarroto em 1515 (cf. Carteggio, I, p. 170), com termos tão negativos, que é difícil aceitar,
como supôs Ramsden, que se trate da mesma pessoa aqui aludida.
95 Refere-se naturalmente ao cartão da Batalha de Cascina; na parede oposta da Sala seria
representada a Batalha de Anghiari, encarregada a Leonardo da Vinci.
96 Refere-se ao São Mateus na Accademia de Florença. Os Operai de Santa Maria del Fiori
CORRESPONDÊNCIA: 15151529 |
e já havia adquirido a maior parte dos mármores. Mas, tendo o papa Júlio
me feito partir daqui, não obtive nada, nem de um lado, nem de outro.
Depois, estando eu em Roma com o mencionado papa Júlio, encomen-
dou-me este a sua sepultura, para a qual destinavam-se mil ducados em
mármore; ordenou que me fossem pagos e enviou-me a Carrara para obter
os blocos. Lá estive oito meses, durante os quais supervisionei o seu corte.
Transportei-os quase todos à praça San Pietro [no Vaticano], tendo uma
parte permanecido em Ripa.97 Então, terminando de pagar pelo transporte
do mencionado mármore, e assim gastando completamente o dinheiro re-
cebido para a realização dessa obra, mobiliei com meu dinheiro a casa que
possuía na praça San Pietro com camas e alguns utensílios, contando com
que realizaria a tumba; além disso, trouxe três ajudantes de Florença, al-
guns dos quais ainda vivem, para trabalhar, e paguei-lhes adiantado do
meu próprio bolso. Nessa época o papa Júlio mudou de idéia e não a quis
mais realizar [a tumba]; ignorando isso, e indo pedir-lhe dinheiro, fui ex-
pulso de seu escritório, tendo por causa dessa afronta partido imediata-
mente de Roma. O que eu possuía em minha casa foi perdido, e os men-
cionados mármores que eu havia trazido permaneceram na praça San
Pietro até a consagração do papa Leão [X]. Sob todos os aspectos, tudo deu
errado. Entre outros que posso provar, dois blocos de quatro braccia e
meia, que estavam em Ripa e me haviam custado mais de cinqüenta duca-
dos de ouro, foram-me roubados por Agostino Chigi;98 estes poderiam ser
resgatados, posto que há testemunhas. Mas, voltando aos mármores, entre
o momento em que estive em Carrara para buscar os mármores, até quan-
do fui expulso do Palácio, passou-se mais de um ano; por esse período ja-
mais recebi nada, e investi várias dezenas de ducados.
Depois, na primeira vez que o papa Júlio foi a Bolonha, fui obrigado
a ir encontrá-lo, com a corda no pescoço, para pedir-lhe perdão. Então ele
me encomendou a sua estátua brônzea, a qual alcançou, sentada, a altura
de sete braccia. Quando me perguntou qual seria o seu custo, respondi que
acreditava poder realizá-la com mil ducados, mas que aquela não era a
minha arte e não queria comprometer-me. Ele me respondeu: “Vai, traba-
lha, e funde-a quantas vezes sejam necessárias; receberás o bastante para
contentar-te”. Para abreviar, eu a fundi duas vezes, e ao cabo de dois anos
dedicando-me a ela, restavam-me quatro ducados e meio. E, nesse perío-
do, não recebi nada mais; todas as despesas em que incorri durante esses
dois anos foram subtraídas aos mil ducados com que eu havia dito que
haviam encomendado o grupo de apóstolos em abril de 1503, mas somente o São Mateus se-
ria esculpido.
97 Porto romano no rio Tibre.
98 Banqueiro de origem sienense, membro de uma das mais abastadas famílias residentes em
Roma, notório protetor de Rafael (1465-1520).
| CARTAS ESCOLHIDAS
realizaria a obra, os quais me foram pagos em parcelas por messer Antonio
Maria da Legniano, bolonhês.
Instalada a estátua na fachada de San Petronio, regressei a Roma; o
papa Júlio, porém, ainda não queria que me dedicasse à sepultura, e encarre-
gou-me de pintar a teto de Sisto, para o qual fizemos um acordo de três mil
ducados. O desenho inicial dessa obra era de doze apóstolos nas lunetas, e
para o resto uma certa divisão com ornamentos, da maneira usual. Então,
uma vez iniciada essa obra, pareceu-me que o resultado seria pobre, e disse
ao Papa que, pintando apenas os apóstolos, o resultado seria pobre. Pergun-
tou-me por que, ao que lhe respondi: “Porque eles próprios foram pobres”.99
Ele então me permitiu fazer o que eu quisesse, dizendo que me contentaria,
e pedindo-me que pintasse até as cenas de baixo. Nessa época, estando qua-
se terminado o teto, o Papa retornou a Bolonha, aonde fui duas vezes para
receber o dinheiro que me correspondia, período em que não fiz nada, ten-
do perdido todo esse tempo até retornar a Roma. De volta a Roma, pus-me
a fazer os cartões para a mencionada obra, ou seja, das cabeças e rostos para
a mencionada capela de Sisto; esperando obter fundos para finalizar a obra,
nunca recebia nada, e, lamentando-me um dia com messer Bernardo da
Bibbiena100 e com Atalante,101 contei-lhes que já não podia permanecer em
Roma e que devia abandonar-me à graça de Deus, ao que messer Bernardo
disse a Atalante que o lembrasse de que, de uma maneira ou de outra, queria
dar-me dinheiro. E conseguiu-me 2.000 ducados provenientes da Camera,102
que são os que, juntamente com os primeiros 1.000 ducados para os mármo-
res, foram-me pagos em razão da Tumba. Eu esperava receber mais, devido
ao tempo perdido e ao trabalho realizado. E, do referido dinheiro, dei a mes-
ser Bernardo e a Atalante, que me haviam salvado a vida, respectivamente
100 e 50 ducados.
Em seguida, faleceu o papa Júlio, e, em princípios do pontificado de
Leão, Aginense103 quis aumentar a Tumba, ou seja, realizar uma obra maior
do que o desenho que eu havia feito anteriormente, de maneira que se fez
um [novo] contrato.104 E, não querendo eu que se subtraíssem à conta da
Tumba os 3.000 ducados que eu havia recebido, demonstrando que eu deve-
ria receber muito mais, Aginense me disse que eu era um charlatão.
(sem assinatura)
99 A anedota é contada de maneira diferente por Vasari e Condivi; cf. Vasari/Barocchi, II,
p. 444 e seg.
100 Cf. carta XVI.
101 Aluno de Leonardo da Vinci; desde 1513, um dos superintendentes da construção de
San Pietro.
102 Ou seja, o tesouro pontifício.
103 Cf. nota 78.
104 Refere-se ao contrato de 1516.
CORRESPONDÊNCIA: 15151529 |
Carta XXI: ao papa Clemente VII em Roma
Florença, fins de janeiro ou princípios de fevereiro, 1525
105 Nesta carta Michelangelo emprega não a segunda pessoa do plural, como de costume,
mas a terceira do singular, a qual corresponde, também em português, ao emprego do prono-
me de tratamento “Vossa Santidade”.
106 Refere-se provavelmente às desvantagens de ter que supervisionar ele próprio a extração
dos mármores, mas obter o resultado desejado, e às vantagens de não ter que fazê-lo pessoal-
mente, mas com isso não conseguir um produto satisfatório.
107 Refere-se ao miniaturista Stefano di Tommaso Lunetti (1465-1534), um dos principais
assistentes de Michelangelo em San Lorenzo.
108 Trata-se da elegante construção circular coroando a cúpula da capela; cf. W. E. Wallace,
“The lantern of Michelangelo’s Medici Chapel”, Mitteilungen des Kunsthistorisches Institut in
Florenz, vol. 33, 1989, pp. 17-36. Segundo uma célebre anedota contada por Vasari, alguns
amigos de Michelangelo ter-lhe-iam dito que deveria modificar a lanterna de San Lorenzo
com respeito à que Brunelleschi havia projetado para o Duomo, ao que Buonarroti responde-
ria: “Egli si può ben variare, ma migliorare no” (Vasari/Barocchi, I, p. 58).
| CARTAS ESCOLHIDAS
que também a Vossa Santidade, quando a veja. Estamos fazendo a esfera
sobre ela, a qual terá aproximadamente a altura de um braccio; pensei, para
diferenciá-la das demais, em construí-la poligonalmente, e assim se está
fazendo.
Servo de Vossa Santidade,
Michelangelo escultor em Florença.
CORRESPONDÊNCIA: 15151529 |
papa Clemente VII — que, além disso, projetava encomendar-lhe ainda sua
própria sepultura e a de Leão X. Sobrecarregado, Michelangelo tenta de to-
das as maneiras desvencilhar-se do contrato para a execução da tumba de
Júlio II. Em junho de 1525 emprega Giovan Francesco Fattucci para repre-
sentá-lo junto ao cardeal de Santiquattro (o cardeal Aginense falecera em
1520); este chega a um acordo inicial com o cardeal no tocante à continui-
dade das obras, mas Michelangelo, como se depreende da seguinte carta,
preferia simplesmente devolver o dinheiro que havia recebido e liberar-se
do projeto. Alternativamente, Buonarroti propõe abandonar a idéia da es-
trutura quadrada da sepultura a favor do modelo tradicional, contra a pare-
de — “come quelle di Pio”, i.e., Pio II e Pio III, então em San Pietro, e atual-
mente em Sant’Andrea della Valle —, proposta que não haveria de agradar
aos executores testamentários de Júlio. Note-se que aqui, contando apenas
50 anos, Michelangelo refere-se a si mesmo como um “velho”, argumento
que cobraria ao longo das décadas seguintes quase o valor de um topos em
suas cartas.
111 Em sua carta, Fattucci pedira-lhe que fosse vê-la e a avisasse de que estava bem. Esta
passagem indubitavelmente atesta o afeto que Buonarroti nutria pelo amigo.
112 O pintor Francesco Granacci, amigo e antigo condiscípulo de Michelangelo nos jardim
de San Marco.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Carta XXIV: a Battista della Palla em Florença
Veneza, fins de setembro ou princípios de outubro de 1529
113 Lettere di Giambattista Busini a Benedetto Varchi; Florença: Le Monnier, 1861. Cf. Sy-
monds, I, p. 419 e seg.
114 Para as diversas linhas de interpretação sobre a fuga michelangiana, cf. Vasari/Barocchi,
III, nota 516.
CORRESPONDÊNCIA: 15151529 |
saindo daqui, é preciso atravessar território alemão, o que é perigoso e
difícil. Quando puderdes, portanto, rogo-vos que me respondais se ainda
tendes a intenção de ir à França, e peço-vos que me digais onde desejais
encontrar-me, para que possamos ir juntos.
Eu parti sem dizer palavra a nenhum dos meus amigos, e de maneira
muito desordenada. Apesar de que, como sabeis, eu queria de qualquer ma-
neira ir à França, e diversas vezes havia pedido permissão para tal (sem re-
cebê-la), estava decidido a, sem medo algum, antes ver o fim da guerra. Mas,
na terça-feira vinte e um de Setembro, pela manhã, alguém veio do portão
San Nicolò até os bastiões, onde eu estava, e disse-me ao pé do ouvido que,
se eu quisesse salvar minha vida, deveria ir embora dali; acompanhou-me
até a minha casa, jantou comigo, trouxe-me cavalos, e não me abandonou
até que saí de Florença, dizendo-me que aquilo era para o meu próprio bem.
Se vinha por parte de Deus ou do diabo, não o sei.
Rogo-vos que respondais à pergunta que vos fiz no princípio desta
carta o mais rápido possível, pois estou ansioso por partir. E, se não tendes a
intenção de viajar, ainda assim peço-vos que me aviseis, para que eu possa
organizar-me sozinho o melhor que puder.
Vosso Michelangelo Buonarroti.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Notas biográficas ( 1530-1542)
115 Condivi, XLIV, p. 90, refere que “passato il furore, fu da papa Clemente scritto a Firenze
che Michelagnolo fosse cercato, e commesso che, trovandosi, se voleva seguitar l’opera delle
sepolture già cominciate, fosse lasciato libero e gli fosse usata cortesia”; o que é corroborado
por Varchi, Storia fiorentina, XII, 19, in Opere, I, p. 317: “Dopo molti e molti giorni Clemente,
il quale intendeva e si dilettava maravigliosamente della scultura e della pittura, commise,
essendogli uscita la stizza, che si ponesse ogni studio e si facesse ogni diligenza per rinvenir-
lo [Michelangelo] e se gli facesse affermare, lui avergli perdonato e volersi servire dell’opera
sua”. Três cartas escritas em nome do papa por Pier Polo Marzi a Giovambattista Figiovanni,
prior de S. Lorenzo, em novembro de 1530, incitam-no a tratar cortesmente Michelangelo,
que, segundo ouvira, trabalhava “con tanta diligenzia e sollicitudine” nos mármores de San
Lorenzo, e que não lhe deixasse faltar nada (cf. Gaye, II , p. 221).
116 Citada por Tolnay, III, p. 12, e Frommel, p. 12. Michelangelo encontrava-se tão sobrecarre-
gado pelo excesso de trabalho que, em 21 de novembro de 1531, o papa publica um breve
proibindo-o, sob pena de excomunhão, de trabalhar em quaisquer outros projetos que não a
tumba de Júlio II e a capela medicea (Vasari/Barocchi, III, p. 1096).
117 Para a série de cartas enviadas por Sebastiano a Michelangelo, cf. Carteggio, vol. III;
atente-se, contudo, para o fato de, ao menos em algumas das publicações desse volume,
haver erros editoriais relativos à numeração das páginas, notadamente no primeiro semes-
tre de 1531.
118 Segundo a datação proposta por Barocchi no Carteggio.
119 Cf. carta XXIII.
| CARTAS ESCOLHIDAS
tava-lhe, ainda, que o papa estava disposto a ajudá-lo em tudo, oferecen-
do-lhe inclusive que viesse a Roma por um ou dois meses a fim de organi-
zar seus assuntos (Carteggio, III, pp. 342-7). Buonarroti, porém, obstinava-
se em liberar-se completamente do encargo. Em 5 de dezembro, Sebastiano
escreve-lhe em resposta a uma carta sua que acabava de receber, na qual o
artista insistia em que estava disposto a devolver o dinheiro ao duque,
entregar-lhe desenhos e esculturas, ajudá-lo a encontrar os artistas apro-
priados para prosseguir a empresa, mas que não queria mais estar vincu-
lado ao projeto;120 em sua missiva, Sebastiano conta-lhe que havia comen-
tado o assunto com o papa, o qual, como ele próprio, acreditava que Mi-
chelangelo não deveria admitir tão abertamente que pretendia abandonar
completamente o trabalho — o projeto deveria ter “un pocco de l’onbra
vostra”, procura diplomaticamente explicar-lhe Sebastiano. As negociações
parecem ter perdurado durante todo o inverno, pois, em março de 1532,
Sebastiano exorta o artista a aceitar de uma vez por todas o trato realizado
entre ele e os agentes do duque e rapidamente chegar a um acordo defini-
tivo, aproveitando que o papa estava a seu lado e o apoiava em todos os
aspectos; caso o papa viesse a falecer, argumenta o veneziano, os herdeiros
voltar-se-iam “como serpentes” contra ele. Em abril, Buonarroti finalmen-
te vai a Roma, e o terceiro contrato é assinado em presença de Clemente
VII (cf. Milanesi, pp. 702-6). De acordo com este, os herdeiros do papa re-
tiravam todas as acusações levantadas contra o artista e outorgavam-lhe o
direito de subcontratar outros escultores; Michelangelo, por sua vez, deve-
ria projetar um novo modelo para a tumba, entregar todos os desenhos e
esculturas que havia realizado para a obra até então, e comprometer-se a
finalizá-la em um período de três anos. O artista, ademais, pagaria 2.000
ducados ao longo dos três anos seguintes e responsabilizar-se-ia por quais-
quer futuras despesas relativas ao projeto; a casa em Macel de’ Corvi, em
troca, passaria a ser de sua propriedade. Estipulava-se, enfim, que a tumba
seria erigida em San Pietro in Vincoli. O papa, por seu lado, permitia-lhe
trabalhar em Roma, supervisionando a execução do projeto da tumba, du-
rante alguns meses por ano, pelos três anos seguintes.
Um dia antes da assinatura do contrato, em 29 de abril de 1532, por
ordem do papa, Michelangelo retorna a Florença, onde imediatamente se
dedica a levantar os 2.000 ducados que devia aos herdeiros; paralelamente,
retoma os trabalhos na sacristia de San Lorenzo e na Biblioteca Laurenziana,
120 “[...] voi ditte che volete che li agenti del ducca de Urbino facino fare la sepoltura de papa
Iulio, et vui pagare nel tempo che avete scripto li denari nominati, et darete noticia degli
omeni che si sonno per farla et aiutareteli quanto potete con disegni et con modeli, ma che
vui non volete el carico de farla fare, né che l’opera sia sopra di vui. Queste quatro parole ul-
time sconza ognia cosa [...]” (Carteggio, III, p. 355).
| CARTAS ESCOLHIDAS
vamente em Roma; em maio/junho de 1534, retorna a Florença, e, em 23 de
setembro de 1534, viaja novamente a Roma.124
Apenas dois dias após sua chegada, porém, Clemente VII vem a fa- Morte de
Clemente VII
lecer, contando 56 anos. Durante seu tumultuadíssimo pontificado, a fi-
sionomia político-religiosa da Itália — e, de resto, de toda a Europa — ha-
via-se transformado indelevelmente: Roma havia sido saqueada; a Itália,
praticamente dominada pelo Império; a Inglaterra rompera com o Vatica-
no, e o cisma luterano tornara-se definitivo. A assim chamada Contra-Re-
forma anunciava-se.
Em 13 de outubro, Alessandro Farnese é eleito papa, assumindo o Paulo III e a
encomenda
nome de Paulo III. A princípio, Michelangelo parece ter querido manter-se do Juízo Final
afastado tanto de novos encargos quanto das obras em San Lorenzo, a fim de
dedicar-se exclusivamente à finalização da tumba. Conforme relatam seus
biógrafos, contudo, o papa estava ansioso para manter seus serviços ao Vati-
cano, e relutava em permitir-lhe que se dedicasse a quaisquer outras empre-
sas: segundo relata Condivi, tendo ouvido que Buonarroti estava obrigado
por contrato a trabalhar somente na realização da tumba até que esta se
completasse, teria exclamado: “Egli son già trent’ anni ch’io ho questa voglia
[i.e., de ter Michelangelo a seu serviço], ed ora ch’io son papa, non me la
posso cavare? Dove è questo contratto? Io lo voglio stracciare”.125
Paulo III acaba por conseguir vencer a relutância inicial de Miche-
langelo, e chega a um acordo com Francesco Maria de Urbino, então exe-
cutor testamentário de Júlio II, a fim de permitir que o mestre fosse legal-
mente liberado dos trabalhos na sepultura papal;126 em setembro de 1535,
Buonarroti inicia os trabalhos de execução dos cartões e desenhos prepa-
ratórios para o Juízo Final, na parede atrás do altar-mor sistino — obra
inicialmente encarregada, como se recordará, por Clemente VII.127 Duran-
124 Há uma série de discrepâncias entre os estudiosos modernos quanto à datação exata das
viagens realizadas por Michelangelo durante os meses transcorridos entre a assinatura do
terceiro contrato para a tumba, em abril de 1532, e a morte de Clemente VII, em setembro de
1534. Barocchi indica diversas fontes que corroboram a cronologia apresentada acima (Vasa-
ri/Barocchi, III, notas 537 e 542). Quanto às razões que motivaram esta última viagem de Mi-
chelangelo a Roma, em setembro de 1534, cf. Tolnay, V, p. 3 e seg.
125 Condivi, L, pp. 102-3. Vasari relata a anedota de maneira praticamente idêntica (Vasari/
Barocchi, I, p. 71).
126 Para a disputa entre o papa e Francesco Maria cf. Vasari/Barocchi, III, nota 547. Em se-
tembro de 1535, Paulo III nomeia Michelangelo “supremo architetto, scultore e pittore del
Palazzo Apostolico”, e um ano depois produz um motu proprio eximindo o artista de quais-
quer penalidades devidas ao não-cumprimento do contrato de 1532 relativo à tumba, e
ordenando-lhe que trabalhasse exclusivamente no Juízo Final até a sua finalização.
127 O projeto inicialmente encomendado por Clemente VII parece ter sido uma Ressurrei-
ção, tendo somente sob o pontificado de Paulo III sido definido o tema do Juízo Final. Se-
gundo o projeto inicial, ainda, Michelangelo provavelmente deveria apenas substituir a
Assunção de Perugino, tendo sido posteriormente concebida a idéia de pintar toda a parede
atrás do altar-mor.
128 Vasari relata que a preparação da parede havia sido deixada a cargo de Sebastiano del
Piombo, que parece ter persuadido o papa de que o melhor seria utilizar a pintura a óleo em
vez do afresco, tendo portanto dado ordens para preparar a parede de acordo com a técnica
de utilização da pintura a óleo. Ao tomar conhecimento disso, Michelangelo teria ordenado
remover toda a superfície preparatória e dito que a pintura a óleo era “arte da donna e da
persone agiate et infingarde come fra’ Bastiano”, originando assim uma disputa que acabaria
por marcar o fim da amizade entre os dois artistas (cf. a entrada relativa a Sebastiano).
129 Segundo Vasari, Buonarroti havia presenteado Cavalieri com os desenhos “perché egli
imparassi a disegnare” (Vasari/Barocchi, I, p. 118). Para uma análise dos desenhos cf. M. Hirst,
Michelangelo and his drawings; New Haven, Yale Univ. Press, 1988, pp. 111-5, e Michel-Ange dessi-
nateur (trad. de Marie-Geneviève de La Coste-Messelière); Éditions de la Réunion des musées
nationaux, Paris 1989, pp. 103-21; vide ainda a entrada relativa a Tommaso Cavalieri.
130 Cf. o artigo de D. J. Gordon, “Giannotti, Michelangelo and the cult of Brutus”, in Tomb of
Julius II and other works in Rome, ed. W. Wallace; Nova York: Garland, 1995, pp. 159-76.
131 Sobre a atividade poética de Michelangelo cf. o estudo de C. Ryan (1998), que inclusive
analisa a fortuna crìtica dos poemas durante o Novecentos.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Esta etapa biográfica buonarrotiana encerra-se com a finalização do Conclusão do
projeto da tumba
que Condivi havia batizado “a tragédia da tumba”, i.e., o interminável e
agônico projeto da sepultura de Júlio II, o qual se havia iniciado, como se
viu, em 1505. Em 1538, estando Michelangelo portanto já completamente
envolvido com a pintura do Juízo Final, falece o duque Francesco Maria da
Urbino, executor testamentário de Júlio II; o novo duque, Guidobaldo,
ansioso por não antagonizar o papa, escreve em setembro de 1539 uma
longa carta conciliatória a Michelangelo (Carteggio, IV, pp. 106-7; Vasari/
Barocchi, III, pp. 1198-9) assegurando-lhe estar disposto a liberá-lo de seu
compromisso até que os trabalhos na Sistina tivessem sido concluídos. So-
mente três semanas após o Juízo Final ter sido publicamente descoberto,
entretanto, o papa informa Guidobaldo, através de uma carta do cardeal
Ascanio Parisani (Gaye, II, p. 290; Vasari/Barocchi, III, pp. 1199-200), que
requisitava os serviços de Michelangelo para pintar a Capela Paulina, e
que, portanto, a finalização da tumba — e conseqüentemente as seis está-
tuas inicialmente encarregadas a Buonarroti — deveria ser confiada a ou-
tros artistas, os quais trabalhariam sob a supervisão do mestre. O duque
reage, ainda, de maneira amigável, insistindo porém em que o artista fina-
lizasse ao menos três das prometidas estátuas, entre as quais o Moisés (Gaye,
II, p. 289; Carteggio, IV, pp. 128-9; Vasari/Barocchi, III, 1200). Em fevereiro de
1542 é assinado um contrato segundo o qual três das esculturas da tumba — a
Virgem, a Sibila e o Profeta — são encarregadas a Raffaello da Montelupo
(Milanesi, p. 709) e em maio Michelangelo encomenda a execução da par-
te arquitetônica superior a Giovanni de’ Marchesi e Francesco d’Amadore
da Urbino (Milanesi, p. 710). Em julho, porém, Buonarroti escreve ao papa
pedindo-lhe que interceda junto ao duque a fim de dissolver suas obriga-
ções quanto ao projeto da tumba (cf. carta XXXVII). Em sua petição, o ar-
tista comunica haver substituído os dois cativos — os quais, explica, já não
se apropriavam ao novo desenho da sepultura — pelas figuras de Lia e
Raquel,132 cuja finalização desejava poder encarregar a outrem — permane-
cendo portanto o Moisés como a única estátua que desejava “dare fornito
da lui”; o artista prontifica-se, ainda, a depositar em nome do duque a
quantia destinada a completar a obra. O papa reage prontamente à missi-
va: em 26 de julho, seu neto Alessandro Farnese envia ao bispo de Sinigalia
uma carta pedindo que intervenha junto ao duque no sentido de liberar
Buonarroti. Uma vez mais, Guidobaldo parece ceder,133 e, em 20 de agosto,
132 Em 1900, C. Justi argumentou que a troca se devera ao novo espírito contra-reformístico
e conseqüentemente ao desejo de “cristianizar” a sepultura (Justi, 1900, p. 334 e seg.), uma
idéia admitida por diversos estudiosos posteriores; segundo uma outra vertente, porém, a
supressão dos cativos se relacionaria fundamentalmente a razões compositivas (cf. por exem-
plo K. A. Laux, Michelangelos Juliusmonument. Ein Beitrag zur Phänomenologie des Genies;
Berlim: Ebering, 1943, p. 34, 179 e seg., 377 e seg.).
133 Para esse intercâmbio de cartas cf. Vasari/Barocchi, III, p.1206 e seg.
134 Essa carta, assim como a anterior, constitui o argumento central de Ramsden para iden-
tificar Alessandro Farnese como o anônimo monsenhor a quem Michelangelo envia a longa
missiva de 1542 (cf. carta XXXIX); ao citá-la, traduzida ao inglês, a estudiosa no entanto inex-
plicavelmente omite o longuíssimo pós-escrito (conforme a tendência contemporânea mais
pessoal e agressivo do que a primeira parte, a ponto de posteriormente o duque referir-se à
missiva como “molto calda”) no qual Farnese faz referência a diversos pontos mencionados
na “carta ao Monsenhor”, e que portanto corroborariam sua hipótese.
| CARTAS ESCOLHIDAS
CORRESPONDÊNCIA: 1531-1542
Nos anos 1530, como se viu acima, Sebastiano del Piombo torna-se o princi-
pal intermediário entre Michelangelo e os herdeiros de Júlio II, os quais, a
partir de abril de 1531, voltam a exigir a finalização do projeto. A seguinte é
a resposta de Michelangelo a uma carta que Sebastiano lhe enviara em julho,
contando-lhe sobre o andamento de suas negociações com o duque de Urbi-
no e suas conversas com Clemente VII, que se propusera ajudá-lo a desven-
cilhar-se do encargo. Michelangelo deseja ardentemente se libertar definiti-
vamente do projeto, insistindo que seria preferível restituir aos herdeiros o
que lhe havia sido pago e indicar outros artistas aptos para finalizar a obra a
seguir ele próprio comprometido com a sua execução.
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
Papa. E, no momento de efetivar esta última, eu vos escreverei dizendo como
poderei pagar os outros mil ducados — o que, creio, não lhes desagradará.
Não vos escrevo particularmente sobre o meu estado porque não é
necessário. Digo-vos simplesmente isto: os 3.000 ducados que eu levei a Ve-
neza,137 entre ouro e moedas, reduziram-se, por ocasião do meu retorno a
Florença, a cinqüenta, e a comuna tomou-me cerca de mil e quinhentos [du-
cados].138 Portanto, agora nada posso fazer. Mas encontrarei os meios, espe-
ro, visto o favor que me promete o Papa. Sebastiano, compadre caríssimo, eu
permanecerei firme nestes propósitos, e rogo-vos que procureis firmemente
realizá-los.
(sem assinatura).
| CARTAS ESCOLHIDAS
Carta XXVI
Inconsideradamente, messer Tommaso, meu caríssimo senhor, pus-me
a escrever a Vossa Senhoria, não em resposta a alguma carta vossa que recebi-
do houvesse, mas sendo o primeiro a dar este passo, acreditando atravessar,
com os pés secos, um pequeno riacho, ou, por sua pouca água, um conhecido
vau.140 Uma vez tendo abandonado a praia, porém, não um pequeno riacho,
mas o oceano de altas ondas foi o que apareceu diante de mim, tanto que, se
pudesse, para não me submergir inteiramente nele, de bom grado retornaria à
praia de onde havia partido. Mas, uma vez que estou aqui, farei do coração
rocha, e avançarei. Se não domino a arte de navegar pelas ondas marítimas141
de vosso valoroso engenho,142 perdoai-me, e não me desprezeis por não estar
à vossa altura, nem espereis de mim o que não está em mim, pois, quem é em
tudo único, em nada pode ter iguais. Vossa Senhoria, lume do nosso século
único no mundo, não encontrando igual nem similar a si, não pode portanto
satisfazer-se com a obra de ninguém mais. Se, no entanto, alguma das minhas
coisas, que eu espero e prometo realizar, agradar-vos, eu a consideraria muito
mais afortunada do que boa. E se, como disse, pudesse ter a certeza de agradar
em algo a Vossa Senhoria, o tempo presente e todo o meu porvir haveria de
devotar-lhe, lamentando-me profundamente por não poder recuperar o pas-
sado, de sorte a servi-la muito mais longamente do que só com o futuro, que
será breve, pois sou demasiado velho.
140 Vau, no original, guado, ambos do latim vadum (relacionado a vadere, andar, atravessar),
o ponto do rio onde a água é pouco profunda e permite que se o atravesse a pé ou a cavalo.
141 A metáfora da longa viagem marítima remonta a Dante, canto primeiro do Inferno.
142 No original, ingegnio, segundo a grafia moderna ingégno, palavra de difícil tradução,
como o demonstra a disparidade entre os vocábulos escolhidos pelos tradutores do epistolá-
rio: génie (Dormoy); endowment (Ramsden); Geist (Frommel). Do latim ingenium, “caráter
natural, índole, temperamento”; “qualidade inerente”; “inclinação natural”; “habilidade na-
tural, talento, intelecto (especialmente implicando excelência)”; “mente, enquanto o poder
gerador de pensamentos e idéias”; “talento poético ou artístico, inspiração” (Oxford latin dic-
tionary, 1968). Segundo o Grande dizionario della lingua italiana, que fornece uma longa série
de citações medievais e renascentistas, “l’insieme delle qualità intellettuali e delle facoltà na-
turali della mente (considerate per lo più dal punto di vista della loro forza e acutezza)”;
“intelligenza”; “potenza creatrice dello spirito umano che costituisce la massima espressione
del talento e dell’inteligenza; capacità creativa, ispirazione artistica o poetica, genio”. M. Kemp,
em seu belo artigo “The ‘super-artist’ as genius” (in Genius: the history of an idea, P. Murray;
Nova York: Basil Blackwell, 1989, pp. 32-53), revela como esse termo migra do campo literário
ao visual durante os séculos XIV e XV, vindo a aderir-se à imagem do que ele batiza “superar-
tista” quinhentista — i.e., Rafael, Tiziano, Michelangelo, Dürer. Aqui optamos pela forma por-
tuguesa “engenho”, obviamente de etimologia idêntica à do termo italiano, e que mantém, a
nosso entender, a mesma pluralidade de sentidos e as mesmas conotações do original (vide
por exemplo Os Lusíadas, I.2: “Se a tanto me ajudar o engenho e a arte”; V.17: “Que só por puro
engenho e por ciência”; VIII.2: “Co nome, entre os engenhos mais perfeitos”; X.80: “Que a
tanto o engenho humano não se estende”).
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
Nada mais tenho a dizer. Lede o coração, e não a carta, pois “a pluma
é incapaz de alcançar o afeto”.143 Devo desculpar-me por, em minha primei-
ra carta, ter-me mostrado maravilhosamente assombrado ante vosso singu-
lar engenho;144 em seguida, reconheci quanto me equivocava, pois não é
mais assombroso que Deus realize milagres, do que Roma produza homens
divinos. E, isto, o universo pode demonstrar.
Carta XXVII
Muito inconsideradamente pus-me a escrever a Vossa Senhoria, e fui
o primeiro, presunçoso, a dar este passo, como se obrigado a fazê-lo por
dever responder a uma carta vossa. Tanto mais, depois, reconheci meu erro,
quanto mais li e saboreei a resposta que, agradeço-vos, me enviastes. Longe
de ser um recém-nascido, como nela escreveis,145 pareceis-me haver estado
mil vezes no mundo,146 e eu por não-nascido, ou, antes, por natimorto me
tomaria, e me consideraria um desgraçado no céu e na terra, se, em vossa
carta, não tivesse lido e acreditado que Vossa Senhoria de bom grado aceita
algumas das minhas obras, o que me causa grandessíssima surpresa e não
menos prazer. E, se interiormente estimais as minhas obras, como escreveis,
se alguma delas — como espero — agradar-vos, eu antes a considerarei afor-
tunada do que boa.
Não direi nada mais. Muito para uma resposta conveniente permane-
ce, para não vos entediar, na pluma; sei que Pier Antonio,147 portador desta,
saberá e desejará suprir o que lhe falta.
No dia primeiro, para mim feliz, de Janeiro.
Seria lícito nomear as coisas que se presenteia a quem as recebe; por
serem estas óbvias, porém, eu não o farei aqui.148
143 No original: “La penna al buon voler non può gir presso”; trata-se de uma citação de
Petrarca, Rime, XXIII, 91.
144 No original, “peregrino ingegnio” (cf. nota 142), em Ramsden, “rare quality; prodigieux
talent”, em Dormoy, e “ungewöhnlichen Geist”, em Frommel.
145 Cavalieri havia escrito: “Circa di [...] quelle opre mie che con vostri occhi havete viste, per
le quali monstrate di mostrarmi non poca affectione, vi rispondo che non erano bastanti fare
che u[n] huomo eccellentissimo come voi e senza secondo, nonché senza pari, in terra, desi-
derasse scrivere a un giovane appena nato al mondo e, per questo, quanto si può essere ingno-
rante” (Carteggio, III, p. 445).
146 Como notou Frommel, p. 19, o conceito de transmigração de almas aqui aludido revela,
uma vez mais, a ressonância platônica que permeia as cartas a Cavalieri.
147 Pier Antonio Cecchini, escultor, residente no palácio do cardeal Ridolfi.
148 Refere-se, possivelmente, aos desenhos que lhe enviava, cujos temas eram conhecidos
por todos.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Carta XXVIII: a Tommaso Cavalieri em Roma
Florença, 28 de julho de 1533
149 A carta, não datada e severamente mutilada na parte superior esquerda do fólio, foi
provavelmente escrita entre meados de julho e princípios de setembro. Cf. Milanesi, p. 469;
Ramsden, I, pp. 194-5, e Carteggio, IV, pp. 14-5.
150 Esta última frase lê-se no original: “Pensate, se l’ochio avessi ancora lui la parte sua, in che
stato mi troverrei”, o que significa que, como notou Mastracola (p. 471, nota 2), se Michelangelo
pudesse ver Cavalieri, seu amor cresceria ainda mais (e não, como traduziu Bull, “Imagine in
what a happy state I would be, if my eye also had its share”). O olhar, de resto, ocupa um lugar
central na doutrina do amor platônico.
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
aquilo que fervorosamente ama, quanto um homem faminto o alimento
do qual vive; antes, muito menos se pode esquecer as coisas amadas do
que o alimento do qual se vive, porque aquelas nutrem o corpo e a alma,
o primeiro com enorme sobriedade, e a segunda com feliz tranqüilidade e
esperança de salvação eterna.
Trata-se aqui da resposta enviada por Michelangelo a uma carta escrita por
Sebastiano em 25 de julho, à qual anexava “el canto de’ vostri madrigali, qua-
li non ve despiacerano: l’uno è de messer Costanzo Festa, l’altro è de Conci-
lion; et ne ho datto ancora doi copie a messer Thomao [Cavalieri], quale si
racomanda per infinite volte” (Carteggio, IV, p. 22). No dia 2 do mesmo mês
(idem, p. 31), Sebastiano volta a mencionar os madrigais, perguntando se
haviam sido do seu agrado. Costanzo Festa de Piemonte (1490-1545) e o
francês Jean Conseil, mais conhecido como Consilium ou Concilion (m.
1535), eram renomados maestri di cappella a serviço da corte papal. Ignora-
se quais sejam os madrigais michelangianos aqui referidos.
151 Há ainda duas variantes do princípio da carta; cf. Carteggio, IV, pp. 28-9 [Fig. 10].
152 As sepulturas mediceas em San Lorenzo.
153 Giovanbattista Figiovanni (m. 1544), prior de San Lorenzo (1534), agente dos Medici, com
quem Buonarroti e Sebastiano mantinham uma relação conflituosa (cf. por exemplo a carta
deste último a Michelangelo em 17 de julho, Carteggio, IV, p. 19).
| CARTAS ESCOLHIDAS
me parece muito a propósito para quem em tudo quer ter o que dizer. Não
mostreis esta carta.154
Destes uma cópia dos supracitados madrigais a messer Tomao [Cava-
lieri], o qual muito vos agradeço. Peço-vos, se o virdes, que me recomendeis
a ele infinitas vezes, e que, quando me escreverdes, me conteis alguma coisa
a seu respeito, para que o mantenha em minha memória — pois, se me
abandonasse a mente, creio que cairia imediatamente morto.
(sem assinatura)
154 Alude seguramente ao papa, a quem Sebastiano costumava mostrar suas missivas.
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
fuoco [era notório que Buonarroti incinerava seus desenhos preparatórios],
accioché io in vita me lo goda e in morte lo porti con esso meco nel sepol-
cro? Io so che la superbia di tal prego non disdegnarà la eccelenza de l’amigo
pregato, e perché è di gentil sangue, e per non far bugiarde l’offerte che di sé
e d’ogni sua cosa m’ha fatte” (Carteggio, IV, pp. 90-1). Michelangelo jamais
responderá a essa carta, e tampouco lhe enviará seus desenhos, apesar da
insistência a princípio cordial, e, posteriormente, ameaçadora, de Aretino:
após escrever-lhe outras duas missivas, respectivamente em abril de 1544
(Carteggio, IV, pp. 181-2) e abril de 1545 (idem, pp. 208-9), nas quais pateti-
camente roga ao mestre que lhe envie “una reliquia di quelle carte che vi
son meno care” — “certo che apprezzarei due segni di carbone in un fo-
glio, più che quante coppe e catene mi presentò mai questo principe e
quello” —, Aretino resolve explicitar a velada ameaça que havia transmi-
tido, durante os meses anteriores, por intermédio de um mensageiro, de
“rivolgere secco l’affezione in disdegno”;155 em novembro de 1545, estrate-
gicamente coincidindo com a abertura do Concílio de Trento, envia-lhe
uma celebérrima carta na qual desafoga o rancor acumulado em oito anos
de infrutífera espera: fazendo eco a críticas já elaboradas nos anos prece-
dentes, o escritor censura a “impietà di irreligione” e a falta de decoro presen-
te nos afrescos; alude ofensivamente à amizade professada pelo mestre por
Gherardo Perini e Tommaso Cavalieri;156 e culmina rememorando os episó-
dios relativos ao sepulcro de Júlio II, afirmando que, tampouco no tocante a
esse assunto, Michelangelo cumprira sua promessa. Aretino finaliza sua car-
ta augurando a destruição do afresco e lamentando o fato de Buonarroti não
ter levado em consideração os seus conselhos de 1537 (Carteggio, IV, pp. 215-
7). A ameaça intimidativa de vingar-se do desdém michelangiano publican-
do o conteúdo da missiva torna-se explícita no pós-escrito: “Hor ch’io mi
sono un poco isfogato la colera contra la crudeltà vostra usa a la mia devo-
tione, et che mi pare havervi fatto vedere, che se voi siate divino, io non so’
d’acqua, stracciate questa, che anch’io l’ho fatta in pezzi, e risolvetevi pur
ch’io son tale che anco e’ Re e gli imperatori respondan a le mie lettere”.157
Michelangelo olimpicamente ignorará, uma vez mais, a carta aretiniana; o
escritor, por sua vez, perseveraria em seu empenho de conseguir os desenhos
durante os meses seguintes, como demonstra uma breve carta enviada a An-
tonio Anselmi em setembro de 1549: “Se per caso Michelagnolo mi dà i di-
155 Cf. P. Larivaille, Pietro Aretino; Roma: Salerno, 1997, pp. 297-8.
156 “Or così ve lo perdoni Iddio, come non ragiono ciò per isdegno ch’io ebbi circa le cose
desiderate [i.e., os desenhos que lhe vinha pedindo]; perché il sodisfare al quanto vi obligaste
mandarmi doveva essere procurato da voi con ogni sollecitudine, da che in cotale atto acque-
tavate la invidia, che vuole che non vi possin disporre se non Gherardi e Tommai”.
157 Este último comentário ecoa um irônico trecho da missiva buonarrotiana, como se verá.
| CARTAS ESCOLHIDAS
segni, vada in grazia di Dio; se me gli nega, ciò sia in nome del diavolo”.158
Em nenhuma de suas intimidações conseguindo remover o mestre de seu
silêncio, Aretino por fim publica no quarto volume de suas Lettere, em 1550,
a carta que escrevera a Buonarroti anos antes, transformando-a ligeiramente
e apresentando-a como tendo sido escrita, em julho de 1547, a Alessandro
Corvino, um dos secretários do duque Ottavio Farnese, sobrinho do papa
(Carteggio, IV, pp. 218-9).159 Como notou Larivaille (p. 302), possivelmen-
te mais do que expressão de seu ressentimento e consumação de sua
anunciada vingança, a publicação da carta tenha o intuito de manifestar a
adesão aretiniana ao rigor da incipiente Contra-Reforma, participando por-
tanto de um intenso projeto de autopropaganda dirigido a apoiar sua candi-
datura ao cardinalato, a qual revigora após a eleição de seu “compatriota”
Júlio III.
Ao divino Aretino
Magnífico messer Pietro Aretino, meu senhor e irmão,
ao receber vossa carta, experimentei simultaneamente alegria e dor.
Muito me alegrei porque ela me foi enviada por vós, que em virtude sois
único no mundo, mas também senti muito, pois, havendo já finalizado gran-
de parte da obra,160 não pude realizar vossa idéia, a qual é tão exata que, se o
dia do Juízo Final tivesse chegado, e vós o tivésseis presenciado, vossas pala-
vras não o descreveriam melhor. Quanto ao que escreveis sobre mim, não
somente vos respondo que muito o aprecio, mas suplico-vos que o façais, já
que reis e imperadores consideram uma grande honra ser mencionados por
vossa pluma. Entretanto, se possuo algo que seja do vosso agrado, vo-lo ofe-
reço de todo o coração. E, por fim, não rompais a vossa determinação de não
regressar a Roma somente para ver a minha pintura; isso seria excessivo.161
Recomendo-me a vós.
Michelangelo Buonarroti.
158 Aretino, Lettere (ed. de Fidenzio Pertile e Ettore Camesasca); Milão: Edizioni del Milione,
1957-1960, vol. II , p. 300.
159 Aretino, idem, pp. 175-6. Muito possivelmente a carta foi efetivamente enviada em 1547 a
Corvino, embora Aretino evidentemente a tenha adaptado no momento da publicação, visto
na versão de 1550 mencionar “il nuovo pontefice” — naturalmente Júlio III, sucessor de Paulo
III, consagrado em 7 de fevereiro de 1550.
160 No original, historia, referindo-se, obviamente, ao Juízo Final.
161 Em sua carta de setembro, Aretino escrevera: “Ma crede la Signoria Vostra che il voto
ch’io ho fatto di non riveder più Roma, non si habbia a rompere ne la volontà del veder cotale
historia? Io voglio più tosto far bugiarda la mia deliberatione che ingiuriare la vostra vertù
[...]” (Carteggio, IV, p. 84).
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
Carta XXXI: a Luigi del Riccio em Roma
Roma, ca. novembro de 1538 – maio de 1539
162 Vol. II, apêndice 29 (pp. 254-5). A estudiosa data a carta de maio de 1542.
163 No original, “a quello che m’arde”. Uma tradução perfeitamente literal é impossível, pois,
contrariamente ao que ocorre em italiano, o verbo arder é intransitivo em português.
164 Ramsden, opus cit., identifica o “nostro idolo” com Cecchino Bracci (cf. cartas XLI e XLII),
que, de acordo com ela, seria uma espécie de símbolo do patriotismo florentino. A interpre-
tação sem dúvida é forçada, quando menos porque, ainda que a carta em exame tivesse sido
escrita em 1542, como pretende a pesquisadora, Cecchino nesse momento teria acabado de
completar 14 anos.
| CARTAS ESCOLHIDAS
vos informeis com ele, e que, quando nos encontremos no próximo domin-
go, me aviseis.
Sempre vosso infinitamente obrigado.
(sem assinatura)
Se vos agradar, fazei com que se os escreva corretamente, e dai-o
àquelas cordas que atam os homens sem distinção. E recomendai-me a mes-
ser Donato [Giannotti].
165 Jacques Arcadelt (ca. 1505-ca. 1567), compositor flamengo, membro do coro sistino a
partir de 1540, musicou diversos poemas de Michelangelo; cf. carta XXXI supra.
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
il quale certamente ha crucifixe nella memoria mia quante altre picture viddi
mai. Non se può vedere più ben fatta, più viva et più finita imagine [...]” (Car-
teggio, IV, p. 104; cf. entrada relativa a Colonna). Na parte inferior do fólio,
escrito de baixo para cima, Michelangelo inclui o madrigal “Ora in su l’uno,
ora in su l’altro piede / variando cerco della mie salute”.
Senhora marquesa,
uma vez que estou em Roma, não me pareceu necessário que, a fim de
prestar-vos um serviço, entregasse o Crucifixo a messer Tomao [Cavalie-
ri], de modo a torná-lo intermediário entre Vossa Senhoria e eu, vosso
servo — especialmente porque desejava fazer mais por vós do que por
qualquer homem que jamais tenha conhecido neste mundo;166 o grande
labor no qual estava e estou empenhado,167 porém, impediu-me de comuni-
car-vos isto. E, como eu sei que vós sabeis que o amor não quer mestres, e
que quem ama não dorme, intermediários são tanto menos necessários.
Apesar de que eu aparentemente não o recordasse, realizava algo secreta-
mente, a fim de surpreender-vos. Mas frustrou-se o meu propósito. “Mal fa
chi tanta fé [sì tosto oblia]”.168
166 Mais de um estudioso tem observado que Michelangelo, sugestivamente, com freqüência
refere-se a Vittoria empregando o gênero masculino. É impossível determinar definitivamen-
te se isso seria uma espécie de “ato falho” ou se corresponderia ao uso consciente de uma fi-
gura lingüística destinada a exaltar tanto o caráter da marquesa quanto a natureza da amiza-
de que a unia ao artista; esta última hipótese, porém, parece bastante mais provável tendo em
vista o primeiro verso do madrigal a ela dedicado, o qual Michelangelo reproduz na carta a
Fattucci: “Un uomo in una donna, anzi uno dio / per la sua bocca parla” (cf. carta LIII).
167 O Juízo Final.
168 Petrarca, Rime, CCVI, 45.
169 Igualmente incerta é a datação desta segunda carta a Colonna (Ramsden e Bull: 1538/1539;
Dormoy e Gilbert: 1545; Barocchi e Mastracola: ca. 1541). Girardi abstém-se de datar tanto
esta quanto a anterior carta a Vittoria.
| CARTAS ESCOLHIDAS
A doutrina valdesiana da sola fide (cf. a entrada “Vittoria Colonna”) é clara-
mente, aqui, aludida por Buonarroti, que afirma haver pensado em realizar-
lhe algo “de sua própria mão” a fim de tornar-se digno de receber o que a
amiga desejava enviar-lhe, mas que, “visto che la grazia di Dio non si può
comperare” [i.e., não é através de obras que se pode comprar a graça, a qual
o tornaria digno], de bom grado o aceitava. Ao comentar o Crucifixo miche-
langiano, a marquesa igualmente faria referência à “gratia di Dio”: “Io ebbi
grandissima fede in Dio, che vi dessi una gratia sopranatural a far questo
Christo: poi il viddi sì mirabile, che superò in tutti i modi ogni mia exspetta-
tione [...]” (Carteggio, IV, p. 104).
170 Não se sabe a quais “cose” Buonarroti se refere; muito possivelmente a sonetos escritos
pela marquesa.
171 Francesco da Urbino, assistente e amigo de Michelangelo, a quem por 25 anos serve “mol-
to fedelmente”, como o próprio Buonarroti escreveria, anos depois, ao sobrinho Leonardo,
por ocasião da doença e posterior morte de Urbino, em janeiro de 1556 (vide carta LXI).
172 Não se sabe a qual obra Buonarroti se refere.
173 Provavelmente parente de Gherardo Perini, amigo de Michelangelo, a quem Aretino
havia maliciosamente aludido na carta que enviou ao mestre em novembro de 1545 (cf. intro-
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
hiperbolicamente louva as pinturas sistinas e inclui um soneto dedicado ao
mestre;174 Michelangelo, por sua vez, responde aos elogios com cortesia mas,
ao mesmo tempo, uma austeridade não de todo desprovida de sarcasmo.
Messer Niccolò,
Recebi, de messer Vincenzio Perini, uma vossa carta com sonetos e
um madrigal; a carta e o soneto dirigidos a mim são admiráveis, de maneira
que ninguém poderia ser tão crítico a ponto de neles encontrar algo a criti-
car.175 Eles verdadeiramente me conferem tantos elogios que, se em mim
encerrasse o paraíso, muitos menos seriam suficientes. Vejo que me imagi-
nastes como o que Deus gostaria que eu fosse. Sou um pobre homem de
pouco valor, que vou labutando176 naquela arte que Deus me deu para pro-
longar minha vida177 o mais que posso; e assim como sou, sou servidor vos-
so e de toda a casa Martelli. Agradeço-vos pela carta e pelos sonetos — mas
não o bastante, pois não alcanço tão alta cortesia.
De Roma, 20 de Janeiro de 42.
Michelangelo Buonarroti.
dução à carta XXX). Em 20 de março, Martelli envia a Vincenzo uma cópia da resposta miche-
langiana, advertindo-o de que guardaria o original “infra le altre mie cose più care” (Carteg-
gio, IV, p. 126).
174 Cf. Carteggio, IV, p. 119: “Non v’ha Iddio miracolosamente creato nella idea della fantasia
il tremendo Giuditio che di voi novamente s’è scoperto, di cui chi lo vede ne stupisce et chi
n’ode parlare di sorte ne invaghisce, che gli viene un desiderio di vederlo sì grande, che per
insin che non l’ha veduto non cessa mai e, veggendolo, trova la fama di ciò essere grande e
immortale, ma l’opera maggiore et divina? Onde con ragione si può dire un Michelangel
nuntio di Dio in cielo, et uno in terra unico figluolo et solo imitatore della natura”.
175 Martelli finalizava sua carta pedindo-lhe: “Et trovando in esse [as rimas] cose da gastigar-
le, fatelo, ch’io ve ne saperò buon grado”.
176 A troca da terceira para a primeira pessoa está presente no original.
177 “[...] quell’arte che Dio m’ha data per alungare la vita mia”: possivelmente, como notou
Mastracola (p. 486), Buonarroti se referia à glória alcançada através da sua arte, que perdura-
ria depois de sua morte.
178 Cf. nota 171.
| CARTAS ESCOLHIDAS
marmoreiros é assinado em 1o de junho (Milanesi, pp. 710-2), porém, parece
mais provável que o artista a tenha escrito na segunda metade de maio, e que
o manuscrito em questão seja uma duplicata.
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
de Luigi del Riccio, de uma petição ao papa Paulo III concernente aos traba-
lhos na tumba e na Capela Paulina. Esta última havia sido em outubro de
1541 encarregada a Buonarroti pelo pontífice, que por sua vez se comprome-
tera a mediar as relações entre o artista e o duque de Urbino, executor testa-
mentário de Júlio II, tendo em vista a consolidação de um acordo final. Cer-
ca de um mês após o envio da petição buonarrotiana seria assinado o último
contrato relativo à execução da sepultura, o qual basicamente libera o mestre
das obrigações contraídas no contrato de 1532; este, porém, demoraria meses
para ser ratificado por Guidobaldo, causando a Michelangelo, nesse ínterim,
não poucas preocupações.
Buonarroti provavelmente ditou o conteúdo central da carta ao amigo, que
lhe teria outorgado a presente estrutura; mascarados sob o estilo formal,
notarial e sem dúvida confuso de Riccio, reconhece-se claramente certos
topoi da epistolografia michelangiana, como por exemplo a insistência na
própria velhice. Note-se ainda que o mestre deixa patente a sua contrarie-
dade no tocante à execução dos afrescos paulinos através da repetida utili-
zação de verbos que univocamente indicam coerção, como astringere e for-
zare; o emprego desses termos, de resto bastante ousado em se consideran-
do seu destinatário, encontra um eco no último contrato relativo à tumba:
“[...] non possendo il medesimo messer Michelagnolo ancor per l’avenire
attendere a detta opera della sepoltura per essere costretto dalla Santità di
nostro signor Paulo papa III a dipingere la sua nuova capella [...]” (Vasari/
Barocchi, III, p. 1208).
181 O contrato, porém, tem a data de 29 de abril (Milanesi, pp. 702 e 705).
182 Guidobaldo, sucessor do duque Francesco Maria (morto em outubro de 1538).
183 Para a carta de Guidobaldo cf. Carteggio, IV, pp. 128-9.
| CARTAS ESCOLHIDAS
finalização do enquadramento,184 isto é, o ornamento da mencionada sepul-
tura, de acordo com as partes já realizadas. Sendo assim, para executar esse
acordo o citado Michelangelo delegou a realização das mencionadas três fi-
guras, que estavam já bastante avançadas — uma Nossa Senhora, de pé, com
o menino Jesus em seus braços, e um profeta e uma sibila sentados — a Ra-
faello da Montelupo,185 florentino, considerado um dos melhores mestres
dos nossos tempos, por quatrocentos escudos, como se lê no acordo que
estipularam. O resto do enquadramento e do ornamento da sepultura, exce-
tuando o último frontispício,186 foi encarregado ao mestre Giovanni de’
Marchesi e a Francesco da Urbino,187 marmoreiros e entalhadores em pedra,
por setecentos escudos, segundo os compromissos escritos por eles. Resta-
va-lhe finalizar as três estátuas de sua mão, isto é, o Moisés e dois cativos,188
as quais estão quase terminadas. Mas, como os dois cativos haviam sido
iniciados quando a obra projetada deveria ser muito maior e com mais figu-
ras — tendo sido posteriormente, de acordo com o supramencionado con-
trato, diminuída e reduzida —, já não convinham a esse desenho e de ne-
nhuma maneira poderiam servir-lhe, razão pela qual o mencionado messer
Michelangelo, para não faltar à sua palavra, iniciou as duas outras estátuas
que ladeiam o Moisés, isto é, a Vida Contemplativa e a Ativa, as quais estão
bem avançadas, de modo que facilmente podem ser finalizadas por outros
mestres. Mas novamente a supracitada Sua Santidade Nosso Senhor Papa
Paulo III buscou Michelangelo e requisitou-lhe que finalizasse os trabalhos
em sua capela, como se disse acima. Sendo esta uma grande obra, a qual
demanda sua atenção total e desobrigada de outras preocupações, e estando
Michelangelo velho e desejoso de servir com todo o seu poder a Sua Santi-
dade — tendo sido por ela obrigado e forçado — mas não podendo fazê-lo
se antes não se libera completamente da obra do papa Júlio, a qual o mantém
física e mentalmente perplexo,189 suplica a Sua Santidade, que resolutamente
solicita os seus serviços, que negocie com o ilustríssimo senhor duque de
Urbino a sua total liberação da mencionada sepultura, cancelando e anulan-
do quaisquer obrigações entre eles, de acordo com os seguintes justos ter-
mos: primeiramente, o citado messer Michelangelo pede licença para poder
encarregar as duas outras estátuas que devem ser finalizadas ao mencionado
184 No original, quadro, termo normalmente utilizado para a parte arquitetônica da sepultura.
185 Monteluppo finalizaria as estátuas em janeiro de 1545.
186 No original, frontispizio, em italiano arcaico sinônimo de frontão ou tímpano de um
edifício, porta ou janela.
187 Cf. carta anterior.
188 Naturalmente, os dois cativos do Louvre.
189 Perplesso, aqui, no sentido de indeciso, hesitante.
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
Rafaello da Montelupo ou a quem quer que agrade a Sua Excelência, por um
preço justo a ser determinado, que ele acredita estar ao redor de 200 escudos;
quanto ao Moisés, quer finalizá-lo ele próprio. Além disso, está disposto a
depositar a totalidade do dinheiro destinado à finalização da citada obra
(apesar de que isto lhe seja inconveniente, e de que tenha investido grande-
mente nela), ou seja, o que lhe falta por pagar a Rafaello da Montelupo para
finalizar as três mencionadas estátuas que lhe foram confiadas — que soma
aproximadamente 300 escudos — e o que lhe falta por pagar pela execução
do enquadramento e do ornamento, que soma aproximadamente 500 es-
cudos, além dos 200 escudos, ou o que seja necessário, destinados à finaliza-
ção das duas últimas estátuas, além dos cem escudos para o último frontis-
pício do ornamento da dita sepultura. Em total, 1.200 ou 1.300 escudos, ou o
que seja necessário, serão por ele depositados, em Roma, em um banco idô-
neo, em nome do mencionado ilustríssimo senhor Duque, em seu nome e no
dessa obra, com a expressa condição de que a quantia seja empregada na fi-
nalização da citada obra e em nada mais, e de que por nenhuma outra causa
se possa tocá-la ou sacá-la. Além disso estará contente em — na medida do
possível — supervisionar o trabalho nas estátuas e no ornamento, a fim de
que se finalizem com a diligência demandada. Deste modo, Sua Excelência
terá certeza de que a obra será finalizada e saberá onde estão os fundos para
tal efeito, e poderá, através de seus ministros, continuamente controlá-la e
conduzi-la ao seu acabamento — o que é desejável, visto estar messer Miche-
langelo muito velho e ocupado em uma obra tão absorvente que dificilmente
poderá terminá-la, quanto menos se dedicar a outras coisas. Assim, messer
Michelangelo estará completamente livre e poderá servir e satisfazer o desejo
de Sua Santidade, a quem suplica que escreva a Sua Excelência e peça-lhe que
dê as ordens idôneas aqui e que lhe mande uma procuração suficiente para
liberá-lo de quaisquer contratos e obrigações existentes entre eles.
| CARTAS ESCOLHIDAS
portanto o seu verdadeiro destinatário: note-se o tom formal e literaria-
mente mais elaborado do que o usualmente empregado na correspondência
ao amigo, e recorde-se que o assunto da ratificação já havia sido mencio-
nado tanto por Riccio (Carteggio, IV, 142) quanto por Buonarroti (idem,
p. 146) em cartas anteriores.
A seguinte carta, uma das mais célebres e certamente a mais longa missiva
michelangiana, tem por destinatário um anônimo prelado, por alguns iden-
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
tificado com o bispo de Sinigaglia, Marco Vigerio, e por outros com o cardeal
Alessandro Farnese, neto de Paulo III.192 Com ela Michelangelo pretende,
como ele próprio explica, justificar-se ante o papa e o prelado em questão,
defendendo-se das acusações lançadas contra ele pelos executores testamen-
tários de Júlio II; o artista possivelmente esperava, ainda, que o destinatário
da missiva pudesse pressionar o papa a exigir do duque Guidobaldo della
Rovere a retificação do último contrato relativo à tumba, o qual este relutava
em aceitar (cf. carta anterior). Aqui Buonarroti recapitula, com extraordiná-
ria riqueza de detalhes, praticamente todo o percurso das negociações rela-
tivas ao projeto da tumba, incluindo o célebre episódio de sua fuga de Roma,
relatado havia quase quatro décadas em sua carta a Giuliano da Sangallo
(IV) e novamente mencionado, em 1523, em uma carta a Giovan Francesco
Fattucci (XX).193
Analogamente a outras missivas michelangianas (cf. especialmente a carta
VI, endereçada a seu irmão Giovan Simone), a seguinte pode claramente
dividir-se, estilisticamente, em duas partes: a primeira, anterior à assinatu-
ra, é literariamente mais elaborada e formal, enquanto a segunda, consti-
tuída pelo longuíssimo pós-escrito, revela menor cuidado lingüístico; a
primeira parte, ainda, possui um tom mais contido e sóbrio, ao passo que
a segunda é totalmente dominada pelo que parece ser uma espontânea
exaltação. Assim como no caso da supracitada carta a Giovan Simone, o
pós-escrito foi provavelmente concebido como uma passagem mais pes-
soal, a qual poderia eventualmente ser destacada da carta, no caso de o
destinatário desejar mostrá-la a outrem.
O famosíssimo comentário final furiosamente encerra a missiva com o que
fora, para Buonarroti, a arché da tragédia da tumba: “la invidia di Bramante
et di Raffaello da Urbino”. Seriam eles, explica, que teriam convencido Júlio
II a cancelar a realização do projeto em vida, “para arruiná-lo”. A inveja e as
intrigas de Bramante são mencionadas por Condivi194 e pelo Vasari de
1568,195 estando de todo ausentes na anterior edição da Vita — o que segura-
| CARTAS ESCOLHIDAS
mente revela que o biógrafo baseou-se no texto condiviano. Ambos, ainda,
indicam que Bramante convencera o papa a encarregar o teto da Sistina a
Michelangelo com o intuito de afastá-lo do projeto da tumba, por um lado, e
por outro obrigá-lo a pintar a fresco, técnica em que se supunha ser Rafael o
máximo artista.196 Na edição torrentiniana da Vita197 e na Vita di Giuliano
da Sangallo,198 contudo, Bramante e Rafael parecem opor-se a que se entre-
gasse o teto sistino a Buonarroti, desejosos de que este fosse confiado ao
próprio Sanzio; Pietro Roselli, em uma carta enviada a Michelangelo em
maio de 1506 (Carteggio, I, p. 16), corrobora essa versão ao narrar um episó-
dio em que Bramante insidiosamente procura dissuadir o papa de encomen-
dar a Sistina a Buonarroti.199 Se, no entanto, há contradições no tocante à
Capela, Condivi, o Vasari de 68 e o trecho final da carta ao Monsenhor pare-
cem concordar com o fato de Bramante e Rafael estarem por trás do abando-
196 “[...] lo persuasono [o papa] a far che nel ritorno di Michelagnolo Sua Santità, per memoria
di Sisto suo zio, gli dovessi far dipingere la volta della cappella che gli aveva fatta in palazzo; et
in questo modo pareva a Bramante et altri emuli di Michelagnolo di ritrarlo della scoltura, ove
lo vedeva perfetto, e metterlo in disperazione, pensando, col farlo dipingere, che dovessi fare, per
non avere sperimento ne’ colori a fresco, opera men lodata, e che dovessi riuscire da meno che
Raffaello” (Vasari/Barocchi, I, pp. 35-6); “[...] gli fu messo in capo [ao Papa] da Bramante e da
altri emuli di Michelagnolo, che lo facesse dipingere la volta della cappella di papa Sisto Quarto,
ch’è in palazzo, dando speranza che in ciò farebbe miracoli. E tale ufficio facevano con malizia,
per ritrarre il papa da cose di scultura; e perciocchè tenevano per cosa certa che o non accettan-
do egli tale impresa, commoverebbe contra di sè il papa, o accettandola, riuscirebbe assai mino-
re di Raffaello da Urbino, al qual per odio di Michelagnolo prestavano ogni favore” (Condivi,
XXXIII, p. 64).
197 “Era già ritornato il Papa in Roma e, mosso dall’amore che portava alla memoria del zio,
sendo la volta della cappella di Sisto non dipinta, ordinò che ella si dipignesse. E si stimava,
per l’amicizia e parentela che era fra Raffaello e Bramante, ch’ella non si dovesse allogare a
Michelangelo” (Vasari/Barocchi, I, p. 35).
198 “Aveva allora condotto Bramante da Urbino [a Roma] Raffaello, che dipingeva le camere
papali, le quali piacevano molto al Papa; per il che, seguitando la cappella di Sisto suo zio,
volentieri arebbe fatto dipignere la volta di quella” (Vasari/Barocchi, II , p. 404).
199 “Avvisoti come sabato sera, cenando el Papa, mostra’li certi disegni, avemo a cimentarli
Bramante e io; cenato che ebbe el Papa, io li avevo mostri: lui mandò per Bramante e dissegli:
‘El Sangallo va domatina a Firenze e rimenerà in sùe Michelagnolo’. Rispose Bramante al
Papa e disse: ‘Santo Padre, e’ non ne farà nulla, perché io òne pratico Michelagnolo assai, e
àmmi detto più e più volte nonne volere attendere alla cappella, e che voi gli volevi dare
cotesto carico; e che per tanto voi non volevi atendere se non a la sepoltura e non alla
pittura’. E disse: ‘Padre Santo, io credo che a lui non li basti l’animo, perché lui non ha fatto
tropo di figure, e massimo le figure sono alte e in iscorcio: ed ène altra cosa che a dipingere
in terra’. Allora rispose el Papa e disse: ‘Se lui non viene, e’ mi fa torto, perché io credo
tornerà a ogni modo’. Allotta io mi iscopersi e dissigli una villania grandissima, presente el
Papa; e dissigli quello credo aresti detto voi per me; e per tanto non seppe quello si
rispondere e parvegli avere mal detto. E dissi pure oltre: ‘Santo Padre, lui non parlò mai a
Michelagnolo, e di quello v’àne detto ora, se gli è vero, voglio mi mozziate el capo, che lui
non gli parlò mai a Michelagnolo; e credo che lui tornerà a ogni modo, quando la vostra
Santità vorrà. E qui finì le cose’.”
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
no do projeto da tumba; estudiosos do século XX, porém, têm sistematica-
mente contestado essa hipótese, relacionando antes a decisão do papa à re-
construção de San Pietro, a qual havia sido encarregada precisamente a Bra-
mante (cf. por exemplo Tolnay, I, p. 34, ou Justi, 1900, p. 240 e seg., que inclu-
sive chama a atenção para o fato de Buonarroti ter abandonado Roma um
dia antes da colocação da primeira pedra da nova basílica), e à delicada si-
tuação político-militar que atravessava naquele momento o estado pontifí-
cio. Cf. as entradas relativas a Bramante e Rafael.
Monsenhor,
Vossa Senhoria manda dizer-me que pinte e não me preocupe com
nada. Respondo que se pinta com o cérebro e não com as mãos, e quem não
pode tê-lo consigo desonra-se; por isso, até que meu problema200 se resolva,
não faço nada bom. A retificação do último contrato201 não chega, e, como
ainda vigora o outro, feito ante Clemente,202 sou diariamente lapidado como
se tivesse crucificado Cristo. Eu mantenho que o mencionado contrato lido
na presença do papa Clemente não concorda com a cópia que me enviaram
posteriormente. O que aconteceu foi que, tendo Clemente nesse mesmo dia
me enviado a Florença, o embaixador Gian Maria da Modena esteve com o
notário e fez-lhe ampliá-lo segundo lhe convinha, de modo que, quando eu
regressei e o recuperei, descobri que o contrato incluía mil ducados a mais
do que o especificado, além da casa onde vivo e algumas outras armadilhas
para arruinar-me, as quais Clemente não teria tolerado. Frade Sebastiano
[del Piombo] pode testemunhar isso, pois ele queria que eu o contasse ao
Papa e exigisse que o notário fosse punido;203 eu não o quis, porque não es-
tava obrigado a coisas que eu não teria podido realizar, se me tivesse sido
permitido. Juro não ter tido o dinheiro que esse contrato menciona e que
Gian Maria alegava que eu tinha. Mas digamos que eu o tenha recebido —
visto que acusei sua recepção e que não posso romper o contrato — assim
como mais dinheiro, se é que se pode encontrá-lo; some-se tudo, e veja-se o
que fiz para o papa Júlio em Bolonha, em Florença e em Roma, em bronze,
mármore e pintura, e todo o tempo que estive com ele, que foi o que durou
seu pontificado, e veja-se o que eu mereço. Em base ao salário que me dá
papa Paulo, com boa consciência digo que me resta receber dos herdeiros
do papa Júlio 5.000 escudos. E acrescento o seguinte: que este tenha sido
meu prêmio pelas minhas fadigas pelo papa Júlio é minha culpa, por ter
administrado mal meus assuntos; se não fosse pelo que me deu papa Paulo,
| CARTAS ESCOLHIDAS
hoje estaria morto de fome. Mas, segundo esses embaixadores, parece que eu
enriqueci e roubei um altar, e fazem um grande alarido; eu poderia fazer-
lhes calar, mas não sou bom nisso. Depois de ter sido formulado o mencio-
nado contrato em presença de Clemente, e estando eu de regresso a Floren-
ça e começando a trabalhar para a sepultura de Júlio, Gian Maria, embai-
xador nos tempos do velho Duque,204 disse-me que, se eu quisesse fazer um
grande favor a este, fosse embora, pois ele não se importava com a sepultura,
mas levava muito a mal que eu estivesse a serviço do papa Paulo. Foi então
que compreendi por que ele havia incluído a casa no contrato: para expul-
sar-me e apoderar-se dela com base legal; assim se vê de que artimanhas
certas pessoas se valem, envergonhando seus inimigos assim como seus pa-
trões. Esse que veio agora205 procurou primeiramente o que eu possuía em
Florença, antes de averiguar como andavam os trabalhos na sepultura. Eu
perdi toda a minha juventude atado a essa sepultura, defendendo-a o quan-
to pude dos papas Leão e Clemente;206 o excesso de boa-fé, não reconhecido,
arruinou-me. Assim quis o meu destino! Eu vejo muitos que, com uma ren-
da de dois ou três mil escudos, ficam na cama, enquanto eu com grandessís-
sima fadiga consigo empobrecer.
Mas, retornando à pintura, não posso negar nada ao papa Paulo; pin-
tarei tristemente e produzirei obras tristes. Escrevi isto a Vossa Senhoria
para que, no momento oportuno, possa melhor dizer a verdade ao Papa.
Também apreciaria que o Papa o soubesse, para entender de que matéria é
feita esta guerra deflagrada contra mim. Quem puder, que entenda.
Servidor de Vossa Senhoria,
Michelangelo.
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
manteve-me dois anos em Bolonha fazendo o Papa brônzeo que foi desfeito.
Então voltei a Roma e estive consigo até a sua morte, sempre mantendo a
minha casa aberta, sem quaisquer antecipações ou pagamentos, vivendo
sempre do dinheiro da sepultura, já que não tinha outra renda. Depois, após
a morte de Júlio, Aginense207 quis dar prosseguimento à sepultura, mas am-
pliando-a; então eu transferi os mármores a Macel de’ Corvi, onde comandei
a execução da parte murada que está agora em San Pietro in Vincoli e fiz as
estátuas que tenho em casa. Nessa época papa Leão, não querendo que eu
fizesse a mencionada sepultura, fingiu querer fazer em Florença a fachada de
San Lorenzo208 e pediu-me a Aginense, que forçosamente teve que me ceder,
com a condição de que eu prosseguisse os trabalhos na dita sepultura de
Júlio em Florença. Quando eu estava em Florença para [realizar] a citada
fachada de San Lorenzo, como não tinha mármores para a sepultura de Júlio
regressei a Carrara, onde passei treze meses, e transportei para a menciona-
da sepultura todos os mármores a Florença, onde construí um ateliê para
fazê-la, e comecei a trabalhar. Nesse momento Aginense enviou messer Fran-
cesco Palavisini, que é hoje bispo de Aleria, para pressionar-me, e ele viu o
ateliê e todos os mencionados mármores e figuras esboçadas para a sepul-
tura, onde estão até hoje. Vendo isto, ou seja, que eu trabalhava para a citada
sepultura, Medici, futuro papa Clemente, que estava em Florença, não me
permitiu prosseguir, e assim estive impedido até que Medici se tornou Cle-
mente. Então, em sua presença, fez-se posteriormente o último contrato
para a dita sepultura anterior a este de agora, no qual se diz que eu havia
recebido os oito mil ducados que, segundo dizem, eu emprestei com usura.
Mas quero confessar um pecado a Vossa Senhoria: estando em Carrara,
onde passei treze meses por causa dessa sepultura, como me faltava dinheiro
gastei, nos mármores destinados a ela, mil escudos dos que papa Leão me
havia enviado para a fachada de San Lorenzo — ou, na verdade, para man-
ter-me ocupado — e justifiquei-me inventando dificuldades. Fiz isso pelo
amor que tinha a essa obra, pelo qual sou pago sendo acusado de ladrão e
usurário por ignorantes que nem sequer haviam nascido.
Escrevo esta história porque desejo justificar-me ante Vossa Senhoria
quase tanto como ante o Papa, a quem falaram mal de mim, segundo me
escreve messer Pier Giovanni, que disse ter precisado defender-me, e tam-
bém para que, quando Vossa Senhoria possa dizer uma palavra em minha
defesa, faça-o, pois eu escrevo a verdade. Ante os homens — não digo ante
Deus — considero-me homem de bem, pois jamais enganei ninguém; às
vezes, como Vossa Senhoria vê, para defender-me de malvados acabo tor-
nando-me louco.
| CARTAS ESCOLHIDAS
Rogo a Vossa Senhoria que, quando tenha tempo, leia e conserve
este relato, e saiba que de grande parte das coisas aqui escritas ainda há
testemunhos. Apreciaria, ainda, que o Papa o lesse, e que o lesse todo o
mundo, porque escrevo a verdade, e muito mais poderia escrever; não sou
um ladrão usurário, mas cidadão florentino, nobre e filho de homem de
bem, e não sou de Cagli.209
209 Cagli é uma pequena cidade próxima a Urbino. O sentido da frase perdeu-se; certamente
trata-se, porém, de uma expressão depreciativa, equivalente talvez a “não sou um provinciano”,
ou “não sou um ladrão”. Girardi (Lettere, p. 340, nota 239), porém, sugere uma alusão a Rafael.
210 A parte final da carta, sem dúvida a mais espontânea, é também a pior escrita. Buonarro-
ti certamente a compôs com pressa e mal a revisou, de maneira que abundam erros (entre
outros) de repetição, como acima.
211 No caso, a repetição parece enfatizar o sentido de indignação.
212 Segundo Ramsden, trata-se do cardeal Galleoto Fanciotti, sobrinho de Júlio II .
CORRESPONDÊNCIA: 15311542 |
empregara para fazer algumas coisas para a casa, e um marmoreiro, ainda
vivo, que também havia empregado, e disse-lhes: “Procurai um judeu e ven-
dei tudo o que há nesta casa, e ide a Florença”. Eu fui embora; tomei uma
diligência213 e me dirigi a Florença. O Papa, tendo recebido a minha carta,
enviou cinco cavaleiros atrás de mim, os quais me alcançaram em Poggi-
bonsi cerca de três horas após o anoitecer, e apresentaram-me uma carta do
Papa que dizia o seguinte: “Imediatamente após ler esta, sob pena de cair em
desgraça ante nós, retorna a Roma”. Os mencionados cavaleiros quiseram
que lhes respondesse, para demonstrar que me haviam encontrado. Respon-
di ao Papa que voltaria quando ele observasse aquilo a que estava obrigado;
caso contrário, que não esperasse voltar a ver-me jamais. E, encontrando-me
depois em Florença, enviou o citado Júlio três breves à Signoria. Ao receber
o último deles, a Signoria procurou-me e disse-me: “Não queremos iniciar
uma guerra contra o papa Júlio por ti; deves ir-te, mas, se quiseres regressar
a ele, entregar-te-emos cartas de tanta autoridade que, se fizer uma injúria a
ti, o estará fazendo a esta Signoria”. Assim se fez, e regressei ao Papa. Seria
longo contar o que se seguiu; basta dizer que este assunto deu-me um pre-
juízo de mais de mil ducados, porque, tendo eu partido de Roma, armou-se
uma grande confusão — para vergonha do Papa — e quase todos os már-
mores que eu tinha na praça San Pietro foram-me saqueados, especialmente
os pedaços pequenos, de maneira que precisei substituí-los. Por isso eu digo
e afirmo que, seja por danos ou por juros, os herdeiros do papa Júlio devem-
me 5.000 ducados. E quem me tirou toda a minha juventude, e honra, e pos-
sessões, chama-me ladrão! E ainda, como escrevi acima, o embaixador de
Urbino manda-me dizer que antes examine a minha consciência, e depois
chegará a ratificação do Duque. Antes de fazer-me depositar 1.400 ducados
não falava assim! Quanto a estas coisas que escrevo, posso equivocar-me
somente ao avançar ou recuar as datas; todo o resto é verdadeiro, e ainda
haveria mais a escrever.
Rogo a Vossa Senhoria, pelo amor de Deus e da verdade, que, quando
tenha tempo, leia estas coisas, de modo que, quando calhe, possa defender-
me ante o Papa destes que falam mal de mim sem ter conhecimento de nada,
e que com falsas informações puseram na cabeça do Duque que sou um
grande canalha. Todas as discórdias que nasceram entre o papa Júlio e mim
foram causadas pela inveja de Bramante e Rafael de Urbino, tendo sido esta
a razão pela qual ele cancelou a realização da sua sepultura em vida, para
arruinar-me. E bastante razão tinha Rafael para sentir-se invejoso,214 já que
o que sabia de arte, aprendera de mim.
213 No original, montai in sulle poste; posta era a carruagem dos correios, que também trans-
portava passageiros.
214 A interpolação “di essere invidioso” encontra-se subscrita.
Embora negociações relativas à execução dos afrescos paulinos, muito pos- Capela Paulina
215 Na primeira edição da Vita, Vasari refere-se a essa pintura como uma representação do
momento em que Cristo entrega a Pedro as chaves da Igreja — tema, aliás, tradicionalmente
mais adequado enquanto pendant da conversão de Saulo, sugerindo, ambos, a exortação divi-
na à perpetuação da obra de Cristo na terra (a entrega das chaves, de resto, já havia sido re-
presentada por Perugino na Sistina). Parece bastante provável, assim, que a pintura tenha
sido originalmente concebida como a entrega das chaves, tendo-se somente num momento
posterior optado, em seu detrimento, pela representação da crucifixão de Pedro; não se deve
descartar a hipótese, porém, de que Vasari, partindo exatamente da conexão evidente entre os
temas da entrega das chaves e da conversão de Saulo, tenha-se equivocado na edição de 1550,
hipótese fortalecida pelo fato de o aretino não fazer qualquer menção à mudança de tema na
Vita subseqüente. Note-se, ainda, que não há bases documentais para a suposição de que a
Conversão de Saulo tenha sido o primeiro dos dois afrescos pintados, baseando-se essa as-
sunção exclusivamente na análise estilística das obras (cf. por exemplo Tolnay, V, p. 70).
219 Esse projeto remonta a 1536, quando a Paulo III pela primeira vez ocorrera remodelar o
antigo centro cívico e religioso de Roma, então praticamente abandonado, a fim de prepará-
lo para a visita cerimonial de Carlos V. Em 1537, o papa transfere a monumental estátua
eqüestre de Marco Aurélio — único bronze dessas proporções remanescente em Roma — do
Palácio Laterano ao centro da praça, encarregando Michelangelo — que se opusera, de resto,
a essa mudança — de sua base; não é impossível que o mestre, já nesse momento, tenha esbo-
çado a remodelação do local. Não há documentos que demonstrem definitivamente quando
Buonarroti realiza seu projeto definitivo da fábrica capitolina, mas supõe-se que em 1547 ele
estivesse pronto (cf. Vasari/Barocchi, IV, nota 619); note-se, no entanto, que as obras relativas
à escadaria do Palazzo Senatorio são anteriores, tendo-se provavelmente levado a cabo em
1544/1545. Quanto à própria praça e a seus edifícios, muito pouco foi efetivamente construído
antes da morte do mestre; embora algumas importantes alterações em relação ao desenho
original tenham sido posteriormente introduzidas, porém, o confronto com algumas gravu-
ras representando o projeto michelangiano demonstra que este, em linhas gerais, foi obede-
cido: a estreita entrada, a pousada simetria dos edifícios emoldurando a monumental centra-
lidade da estátua, a forma oval do pavimento parecem evocar a grandeza da antiga Roma e
reafirmar a majestade do Capitólio como um redivivo umbiculus mundi. Lembre-se, ainda,
que, como revela o próprio Vasari, era Tommaso de’ Cavalieri que, juntamente com Boccapa-
duli, estava no comando da fábrica ao menos desde 1564 e até 1573 (período em que é cons-
tantemente mencionado em documentos relativos à obra), sendo possivelmente atribuível a
ele, inclusive, parte do desenho da fachada do Palazzo del Senatore. Como notaram diversos
estudiosos, foi possivelmente Cavalieri, um dos melhores amigos de Michelangelo, o deposi-
tário dos desenhos do mestre e o encarregado de assegurar que estes fossem seguidos o mais
fielmente possível após seu falecimento.
220 Ambas iniciadas em 1561. Cf. Vasari/Barocchi, I, p. 111 e notas.
221 São várias as passagens da parte final da Vita em que o biógrafo faz referência à sua vital
necessidade de esculpir (cf., por exemplo, p. 100: “E tornando Michelagnolo, fu necessario tro-
var qualcosa poi di marmo perché e’ potessi ogni giorno passar tempo scarpellando […]”).
222 Não se sabe quando Michelangelo iniciou a obra, mas supõe-se que tenha sido aproxima-
damente em 1547, coincidindo com a morte de Vittoria Colonna.
223 Que esse personagem fora concebido como o fariseu Nicodemo, no entanto, não é una-
nimemente aceito pelos estudiosos, tendo sido igualmente proposto o nome do tradicional
José de Arimatéia, mencionado, contrariamente a Nicodemo, por todos os evangelistas. A
favor de sua identificação com Nicodemo, no entanto, deve-se recordar a passagem do Evan-
gelho Segundo São João (3:1-21) em que Cristo, sendo visitado pelo fariseu, diz-lhe que “todos
os que têm fé nele não podem morrer, mas terão a vida eterna […] Quem deposita nele a sua
fé não é julgado” — palavras, evidentemente, em consonância com a doutrina da sola fide, à
qual Michelangelo, como foi dito alhures, inclinava-se nessa etapa de sua vida (cf. a entrada
relativa a Vittoria Colonna). Para esta discussão cf. W. Stechow, “Joseph of Arimathea or Ni-
codemus?”, Studien zur toskanischen Kunst, Munique, 1964.
224 “Io non mi ricordo se in tutto quello scritto io messi chome Michelagnolo lavorò tutto il
sabbato della domenica di carnovale, e llavorò in piedi, studiando sopra quel corpo della
Pietà” (Carteggio Indiretto, II , p. 198; a carta foi escrita em 11 de junho de 1564). Que se trate
da Pietà atualmente conhecida como Rondanini é corroborado pela descrição da obra feita
pelo notário que, no dia 19, inventariou os bens de Michelangelo: “Un’altra statua principiata
per um Cristo et un’altra figura di sopra, ataccata insieme, sbozzata e non finita” (apud Vasa-
ri/Barocchi, IV, p. 1849).
225 Lembre-se o belo soneto “Giunto è già ’l corso della vita mia”, citado por Vasari, que pa-
rece ter sido concebido quase em um diálogo com essas Crucifixões. A obsessão pela morte
parece acentuar-se ante a sucessiva perda da maioria de seus melhores amigos e familiares
durante os anos 1540 e 1550: Luigi del Riccio (1546), Vittoria Colonna (1547), Giovan Simone
(1548), Gismondo (1555), Urbino (1556), entre outros.
226 Orlando furioso, XXXIII.2: “Michel, più che mortale, Angel divino”. O verso aparece somen-
te nessa terceira edição do poema — publicado pela primeira vez, como se sabe, em 1516.
227 Por exemplo, Aretino, em uma das exasperadas cartas que lhe manda exigindo-lhe o en-
vio de um desenho: “se voi siate divino, io non so’ d’acqua” (Carteggio, IV, pp. 215-7). Cf. P. A.
Emison, Creating the “divine” artist: from Dante to Michelangelo; Leiden/Boston: Brill, 2004,
para a história desse epíteto.
228 Por exemplo, os medalhões de Leone Leoni, realizados no início dos anos 1560, a gravura
de Bonasone (1546), utilizada no frontispício da Vita condiviana, ou o desenho de Daniele da
Volterra (ca. 1550), o qual, juntamente com a máscara mortuária do artista, seria a base do
busto brônzeo que Daniele produziria posteriormente. Os dois únicos retratos em pintura
feitos do artista, ao menos a seguir Vasari, são as por sua vez freqüentemente copiadas telas
de Giuliano Bugiardini e Iacopo del Conte (Fig. 1); cf. D. Redig de Campos, “Das Porträt
Michelangelos mit dem Turban von Giuliano Bugiardini”, in Festschrift für Herbert von Einem;
Berlim: Gebr. Mann, 1965, pp. 49-51, que fornece bibliografia relativa aos retratos michelangia-
nos e publica pela primeira vez o original de Bugiardini, e mais recentemente P. A. Emison,
opus cit., figs. 46-54, para a reprodução de uma série de retratos de Michelangelo (note-se, con-
tudo, que ela inclui a cópia do Louvre, de autografia discutível, em vez do original de Bugiardini
anteriormente conservado em uma coleção privada genovesa). À margem dos retratos propria-
mente ditos, as feições de Michelangelo aparecem em obras de diversos artistas, como por
exemplo Vasari (na Sala di Leone X do Palazzo Vecchio), Francesco Salviati (no desenho que
representa José explicando o sonho do faraó; cf. The Medici, Michelangelo and the art of late
Renaissance Florence, figs. 45 e 46), El Greco (Cristo expulsando os comerciantes do templo, no
Institute of Arts de Minneapolis) e Rafael (cf. entrada correspondente), entre outros.
229 Vasari, como se verá, copiará várias delas na segunda edição da Vita.
230 Não há unanimidade, como se verá, quanto à identificação do destinatário da carta LXVI
com o cardeal Pio da Carpi.
231 Falece em fevereiro de 1564; seu aniversário teria sido em março.
232 A carta foi enviada em 17 de março: “Egli lavorò tutto il sabato, che fu inanti a lunedì che
ci si amalò, e la domenica, non ricordandosi che fussi domenica, voleva ire a lavorar, se non
che Antonio [seu criado] gnene ricordò” (apud Vasari/Barocchi, IV, p. 1835). Em junho, como
se viu, Daniele enviaria outra carta a Leonardo relembrando esses dias e informando que a
Andando per Roma oggi, mi è stato detto da molti che messer Michelagnolo
stava male. Sono ito subbito da lui; e con tutto che piovessi, lo ho trovato
fuori di casa a piede. Quale visto, li dissi che non mi pareva a proposito andar
lui a questi tempi fuori. “Che voi tu ch’io facci? Io sto male e non trovo quie-
te in luogo alcuno”. E mai più, con lo svariar delle parole e con la cera, mi ha
fatto temer della sua vita, se non ora; e ne dubito forte, che la non manchi fra
poco. (Carteggio Indiretto, II, p. 169)
No mesmo dia, Danielle da Volterra escreve outra carta, esta assinada por
Michelangelo, a Leonardo,233 rogando-lhe que viesse o mais prontamente
possível a Roma; a esta Diomede Leoni anexa outra missiva na qual igual-
mente o exorta a viajar prontamente, embora não com uma pressa teme-
rária que pudesse pôr sua vida em perigo “per voler correre le poste per così
cattive strade”, podendo estar seguro que “messer Tomaso del Cavaliere,
messer Daniello et io non siamo per mancare in assentia vostra di ogni offi-
tio possibile per honore et utile vostro”. Segundo conta Leoni nessa mesma
carta, a essa altura Buonarroti encontrava-se abatido, mas ainda relativa-
mente forte:
[...] vi dico che poco fa lo lassai levato, con buon sentimento et conoscimen-
to, ma molto gravato da uma continua sonnolentia, la quale per voler cacciar
via, hoggi, fra le 22 e 23,234 volle far prova di cavalcare, secondo il suo solito
di ogni sera quando fa buon tempo; ma il freddo de la stagione e la sua debo-
lezza di testa e di gambe lo impedirono; et così se ne ritornò al foco, assenta-
to in uma sedia, dove sta molto più volentieri che in letto. (Idem, pp. 171-3)
obra na qual Michelangelo trabalhara até pouco antes de adoentar-se era a Pietà Rondanini.
O mármore foi posteriormente transferido ao Palazzo Rondanini, de onde foi vendido, em
1952, à comuna de Milão, conservando-se atualmente no Castelo Sforzesco (cf. E. Sestieri,
L’ultima pietà di Michelangelo; Roma, 1952).
233 A carta é enviada no dia 15 por Diomede Leoni.
234 Segundo o sistema italiano das horas, considerava-se que o dia, dividido em 24 partes,
iniciava-se ao pôr-do-sol; o princípio de cada dia, portanto, variava significativamente de
acordo com as estações. Em fevereiro, a vigésima segunda hora corresponderia aproximada-
mente às quatro horas da tarde (cf. Ramsden, I, apêndice 7).
235 Vasari e outros testemunhos relatam que o artista faleceu às 11 horas da noite, o que cor-
responderia aproximadamente, como vimos acima, às cinco horas da tarde.
236 Pressentindo a proximidade da morte, provavelmente alguns dias antes de morrer o ar-
tista tomou a providência de queimar diversos desenhos, esboços e cartões. Segundo Vasari,
Buonarroti não queria que se notasse, através deles, “le fatiche durate da lui et i modi di ten-
tare l’ingegno suo, per non apparire se non perfetto” (Vasari/Barocchi, I, p. 117). O biógrafo
menciona, ainda, a diligência com que o duque, já cerca de um ano antes da morte do mestre,
havia secretamente arquitetado com o papa, por intermédio de Serristori, medidas preventi-
vas no sentido de extremar os cuidados relativos à manutenção das obras alojadas em Macel
de’ Corvi, a fim de que se conservassem, sobretudo, tanto aquelas relativas a San Pietro como
as referentes a San Lorenzo (idem, p. 116).
237 A essa altura o corpo já se encontrava na igreja romana de SS. Apostoli, aguardando ser
pomposamente enterrado nessa própria igreja ou, como sugerem algumas fontes, mesmo em
San Pietro (Vasari/Barocchi, I, p. 132). A história de sua transferência clandestina a Florença
reaparece na carta que Daniele da Volterra envia em 17 de março a Vasari (apud Vasari/Ba-
rocchi, IV, pp. 2142-3) e nas Esequie, p. 143 e seg. (este último texto é traduzido ao inglês por
R. e M. Wittkower em The divine Michelangelo: the Florentine Academy’s homage on his death
in 1564; Londres: Phaidon, 1964). Cosimo I, por sua vez, estava ansioso por garantir o sepulta-
mento do artista em solo florentino, como atestam diversas cartas de Vasari, Borghini e do
próprio duque (idem, nota 757). Atualmente há dúvidas, contudo, no tocante à veracidade
desse episódio, vendo nele mais de um estudioso o intento vasariano de criar uma alegoria
segundo a qual Florença impõe-se ante Roma ao triunfantemente recuperar seu célebre cida-
dão — hipótese corroborada pela implausibilidade de o corpo ter sido secreta e impunemen-
te “roubado” de SS. Apostoli. Note-se, de resto, que, assim como a suposta preservação do
cadáver de Michelangelo (vide nota seguinte), também a história do seu furto evoca o topos
cristão da furta sacra, o roubo de corpos e relíquias santas.
238 O suposto estado de conservação do cadáver é outra célebre faceta do que se poderia
chamar esse primeiro estágio de fabricação post-mortem do mito michelangiano, sendo men-
cionado por mais de uma fonte contemporânea, incluindo Vasari (cf. por exemplo Gaye, III,
p. 133 ou Wittkower, opus cit., pp. 74-7). Cadáveres que não se decompõem são uma espécie
de topos cristão tradicionalmente aplicado a santos, mas, durante o Renascimento, também a
figuras públicas: o próprio Vasari certa vez escrevera que os restos mortais de Lorenzo Mag-
nífico e seu irmão Giulio encontravam-se perfeitamente preservados ao ser transferidos à
nova sacristia de San Lorenzo. A “lenda” da preservação do corpo de Michelangelo transmi-
tir-se-ia até o século XIX (cf. Vasari/Barocchi, IV, nota 771). Para o topos da miraculosa incor-
ruptibilidade de cadáveres de santos cf. A. Vauchez, La sainteté en Occident aux derniers
siècles du Moyen Age d’après les procès de canonisations et les documents hagiographiques;
Roma: Ecole française de Rome, 1988 (demonstra como o estado de conservação dos corpos
era utilizado como evidência em processos de santificação), e S. T. Strocchia, Death and ritual
in Renaissance Florence; Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1992, especialmente p. 48.
Note-se, porém, que o fato de Michelangelo ter falecido em fevereiro — o mês mais frio do
ano — seguramente prolongou em algo a conservação de seu corpo.
239 Nas Esequie a confusão do traslado exprime-se através de um vocabulário matizado
por expressões neoplatônicas: “[…] tumulto del popolo che vi aveva tratto e che, senza
sapere perché, voleva andare come spinto da un furor divino, dove andava quel corpo” (p.
148). Tanto nesse texto como em Vasari, assim, o roubo do corpo de Buonarroti, sua supos-
ta incorruptibilidade e a multidão que acorre a acompanhá-lo e venerá-lo parecem ecoar
quase conscientemente o gênero da biografia sacra (cf. T. J. Heffernan, Sacred biography:
saints and their biographers in the Middle Ages; Oxford University Press, 1988, especialmente
pp. 72-87, 100-22 e 140-3).
240 Apenas uma pequena parte dos versos compostos para Michelangelo é reproduzida nas
Esequie; pouco depois, porém, eles seriam mais amplamente reunidos e publicados por D.
Legati (Poesie di diversi autori latine e volgari fatte nella morte di Michelagnolo Buonarroti;
Florença: Sermartelli, 1564). Seguiram-se, nesse mesmo ano, diversas publicações dedicadas a
Michelangelo, entre as quais as de Paolo del Rosso, Versi latini e toscani in lode di Michelagnolo
Buonarroti (Florença: Giunti) e Lionardo Salviati, Orazione di Lionardo Salviati nella morte
di Michelagnolo Buonarroti (Florença: Figliuoli di L. Torrentino); também as orações fúne-
bres de Giovan Maria Tarsia e Varchi foram publicadas independentemente em 1564, respec-
tivamente por Bartolomeo Sermatelli e Giunti.
241 Em uma carta enviada a Leonardo no dia 18 de março, Vasari profetiza que a cerimônia
fúnebre “sarà cosa che né’ papi né gl’inperatori né’ re non l’ànno auta mai” (Carteggio Indi-
retto, II , p. 179).
242 Projetado por Zanobi Lastricati. Mencionado por Vasari e nas Esequie, aparece no famo-
so quadro de Agostino Ciampelli — atualmente conservado na Casa Buonarroti — represen-
tando a cerimônia fúnebre (Fig. 15). Sobre o monumento, acrescentava-se uma personifica-
ção da Fama soprando sua tripla trombeta. Sobrevivem ao menos dois desenhos preparató-
rios de Zanobi, respectivamente no departamento de desenhos do museu de Munique e na
coleção Resta da Ambrosiana em Milão.
243 Note-se que as pinturas comemorativas da vida e das virtudes de Michelangelo que deco-
ravam a igreja, descritas por Vasari nessa mesma carta, glorificavam intrinsecamente Floren-
ça e os Medici.
244 O aretino, na realidade, já naquele momento ambicionava a Vitória para a sua Sala dei
Cinquecento, no Palazzo Vecchio (Carteggio Indiretto, II , p. 180, nota 6).
Leonardo,
Tomo conhecimento, através da tua [carta] e da do Padre,255 de onde
entregaste o contrato para que me fosse enviado aqui. Ele não chegou e disso
tenho certeza, porque Bettini256 mo teria enviado até em casa; acredito, por-
tanto, que tenha sido retido aí no banco onde o entregaste. Se quiseres que
eu o receba, entrega-o a Francesco d’Antonio Salvetti257 para que o enderece
Carta XLI
Roma, fevereiro (?) de 1544
Não falar algumas vezes, ainda que com uma gramática incorreta,
ser-me-ia vergonhoso, estando tão próximo a vós.262
Carta XLII
Roma, fevereiro de 1544
Nosso amigo morto fala e diz: “Se o céu tirou toda a beleza a todos os
outros homens do mundo para fazer-me só a mim belo (como o fez), e, se
por lei divina, no dia do Juízo eu deva retornar como o mesmo que fui quan-
do vivo, segue-se que a beleza que me deu não a pode oferecer a quem a re-
tirou, mas que eu deva ser mais belo que os outros eternamente, e eles
feios”.265 E isso é o contrário do conceito que me dissestes ontem; um é fábu-
la, e o outro, verdade.
Vosso Michelangelo Buonarroti.
“S’è ver, com’è, che dopo il corpo viva” (Guasti, p.26) — ele teria inserido uma frase latina. O
substantivo pratico, efetivamente, podia referir-se a quem tem o domínio de uma língua; a
expressão “essere pratico con”, no entanto, geralmente significava “ter conhecimento de”, e,
por extensão, manter (estreitas) relações com alguém (cf. Grande dizionario della lingua ita-
liana, XIV, p. 21 e seg.). O que Michelangelo quis dizer, provavelmente, foi que, dada a sua ín-
tima amizade com Riccio, não poderia deixar de atender a seu pedido e compor ele também
versos (ainda que gramaticamente incorretos) em honra de Cecchino, conforme lhe havia soli-
citado o amigo.
263 Trata-se do soneto “Messer Luigi mio, di noi che fia”, dedicado a Cecchino, que Giannotti
enviara a Riccio em janeiro com um pedido de que o submetesse à apreciação de Michelan-
gelo (Frey, Dichtungen, p. 269).
264 A frase é quase inteiramente composta por expressões em desuso, o que torna seu signi-
ficado obscuro; provavelmente, porém, Buonarroti alude ironicamente a plágios na composi-
ção de Giannotti.
265 Michelangelo aqui parafraseia um dos seus epitáfios a Cecchino, o qual aparece na parte
superior do fólio: “Non può per morte già chi qui mi serra / la beltà, ch’al mortal mie largir
volse / renderla agli altri tucti a chi la tolse / s’alfin com’ero de’rifarmi in terra” (Carteggio,
IV, p. 178, nota 1).
266 Trata-se dos mármores que haviam permanecido no ateliê da rua Mozza, comprados
pelo duque Cosimo de’ Medici e posteriormente utilizados por Baccio Bandinelli para o Coro
do Duomo florentino (Milanesi, p. 173).
267 No original, “il fructo che è onesto”, ou seja, o lucro não considerado usurário.
268 O busto de Cosimo de’ Medici.
269 No original, “massimo non possendo io servire”, o que Dormoy traduziu como “surtout
que cela ne peut aucunement me servir” (vol. II, p. 37). Neste caso, contudo, o verbo servire
seguramente significa estar a serviço de — trabalhar portanto — como demonstra a sua repe-
tição, linhas abaixo, em um contexto que não deixa margem a dúvidas quanto ao seu sentido:
“[…] perché quello che m’ha dato il papa mi potrebbe esser tolto, non servendo”. Uma frase
muito parecida a esta última aparece, também em uma carta a Leonardo, em fevereiro de
1546, sendo que dessa vez o verbo servire é substituído por lavorare (Carteggio, IV, p. 231).
Sacra Majestade,
Ignoro o que seja maior, se a graça ou o estupor por Vossa Majestade
ter-se dignado a escrever a alguém como eu, e que ainda por cima lhe requi-
site suas obras, completamente indignas do nome de Vossa Majestade. Mas,
sendo assim, saiba Vossa Majestade que por muito tempo venho desejando
servi-la, mas, por o não haver tido disponível [i.e., o tempo], nem mesmo na
Itália, para a minha arte, não pude fazê-lo. Agora me encontro velho e, du-
rante os próximos meses, ocupado com as coisas de Papa Paulo, mas, se após
essa ocupação restar-me algum espaço de vida, o que eu desejei, como disse,
por muito tempo realizar para Vossa Majestade, procurarei executar, isto é,
algo em mármore, em bronze e em pintura. E se a morte interrompe esse
meu desejo, e se for possível esculpir ou pintar na outra vida, não faltarei lá
onde não mais se envelhece.270 E a Vossa Majestade rogo a Deus que outor-
gue longa e feliz vida.
De Roma, no dia 26 de Abril, 1546.
De vossa cristianíssima majestade humilíssimo servidor,
Michelangelo Buonarroti
Ao cristianíssimo rei da França.
270 A partir deste ponto a missiva é finalizada por Donato Giannotti — já que Riccio, que habi-
tualmente auxiliava Michelangelo na redação de suas cartas, não se encontrava em Roma.
Leonardo,
Recebi os dezesseis marzolini, e paguei quatro iuli ao arrieiro. Deves
ter recebido a carta que te escrevi sobre a compra de uma casa honrada;
agora, enquanto escrevo, foi-me trazida uma tua acusando o seu recebimen-
to, na qual dizes que vais visitar Michele e Francesca (**)272 e lhes darás o
recado;273 recomenda-me a eles. Quanto à compra da casa, reafirmo o mes-
mo, isto é, que procureis comprar uma casa que seja honorável, de mil e
271 “Nel libro de’ contracti v’è una lectera del conte Alessandro da Canossa — che io ho tro-
vata in casa a questi dì — il quale mi venne già a vicitare a Roma come parente. Abine cura”
(Carteggio, IV, p. 288).
272 Francesca, irmã de Leonardo, casara-se com Michele di Niccolò Guicciardini, de quem
teria quatro filhos (um dos quais morto na primeira infância).
273 Michelangelo, na anterior missiva que enviara ao sobrinho, pedira-lhe que avisasse Fran-
cesca de que havia recebido uma sua carta (esta perdida) e que, embora não tivesse tempo de
responder-lhe, faria o que ela lhe requisitava (Carteggio, IV, p. 248).
274 O “quartier nostro”, isto é, o bairro de Santa Croce. Até 1343, Florença dividira-se em seis
distritos (sestieri) que se associavam, cada qual, a uma das portas da cidade; a partir de então,
ela se reorganiza em quatro quartieri: Santo Spirito, na margem esquerda do Arno, e Santa
Croce, San Giovanni e Santa Maria Novella, na direita. Os florentinos identificavam-se pro-
fundamente com seus quartieri, os quais possuíam também suas próprias paróquias e gonfa-
loni (estandartes).
275 No original, onorevole e onore, termos aqui e algures empregados repetidamente por
Michelangelo ao referir-se à família.
276 No original, possessione, isto é, propriedades rurais.
277 “Zur Baugeschichte des St Peter. Mitteilungen aus der Reverendissima Fabbrica di San
Pietro”; Jahrbuch der Königlichen Preußischen Kunstsammlungen, suplemento ao XXXVII vo-
lume, 1916; cf. também Ramsden, II, apêndice 36.
278 De acordo com os registros da Fabbrica, já em dezembro de 1546 Michelangelo dedicava-
se à preparação de um modelo lígneo. Não existe o documento da commissione papal, o que
levou alguns estudiosos a supor que, ao menos inicialmente, o encargo tenha sido exclusiva-
mente oral. Um ricordo de um dos arquitetos empregados na construção da basílica, contudo,
280 Para uma descrição dos sucessivos projetos de reconstrução da basílica, de Bramante a
Michelangelo, cf., entre outros, A. Schiavo, San Pietro in Vaticano, forme e strutture; Roma:
Istituto di Studi Romani, 1960, especialmente capítulo VI; J. S. Ackerman, The architecture of
Michelangelo; Londres: Zwemmer, 1961, capítulo VIII e catálogo (vol. II , pp. 83-112); F. Wolff
Metternicht, “Le premier project pour St. Pierre de Rome, Bramante et Michel-Ange”; in The
Renaissance and mannerism. Studies in western art (Atti del XX congresso internazionale di
storia dell’arte). Nova York, 1961 (Princeton, 1963), II, pp. 70-81; C. L. Frommel, “Sangallo et
Michel-Ange: 1513-1550”, in Le Palais Farnèse; Roma, 1981, I, pp. 127-224; o artigo de G. Zan-
der (“La Basilica nel Cinquecento”) em C. Pietrangeli (ed.), La Basilica di San Pietro; Flo-
rença: Nardini, 1989 (reeditado em 1995); G. C. Argan e B. Contardi, Michelangelo architetto;
Milão: Electa, 1990, p. 322 e seg., e G. L. Hersey, High Renaissance art in St. Peter’s and the Va-
tican; Chicago e Londres: University of Chicago Press, 1993, p. 89 e seg.
281 Juan Bautista de Toledo, nomeado por Buonarroti segundo arquiteto. A seu propósito
cf. S. Giner Guerri, “Juan Bautista de Toledo y Miguel Angel en el Vaticano”; Goya, 126, 1975,
pp. 351-9.
282 Citado por G. C. Argan e B. Contardi, opus cit., p. 322.
283 As reprovações michelangianas reaparecem, ainda, na Vita de Antonio da Sangallo (Va-
sari/Barocchi, III, pp. 1448-9).
284 Michelangelo reenvia essa carta a Bartolommeo Ferratino (o que, de resto, serve como
principal pista para identificar o “Bartolommeo” ao qual escreve a presente missiva) acres-
centando esta nota: “Di grazia leggete questa lettera e considerate chi sono questi dua giocti
che, così com’ànno mentito di quello che io ò fatto al palazzo di Farnese, così mentono della
informazione che danno a’ deputati della fabbrica di San Pietro. Questo mi si viene pe’ piace-
re ch’io ò fatto loro; ma e’ non s’à d’aspettare altro da dua vilissimi furfanti contadini”.
285 Vasari/Barocchi, III, pp. 1456-8; para uma tradução inglesa do texto cf. Ramsden, II,
pp. 308-9. A pedido de Buonarroti, o texto declara que o artista não havia aceitado qualquer
remuneração por seus serviços em San Pietro — observação que julgava necessária, segura-
As duas cartas apresentadas a seguir, escritas entre abril e junho de 1547, fa-
zem referência ao segundo dos celebérrimos discursos proferidos por Varchi
em Santa Maria Novella sob os auspícios da Accademia Fiorentina — ou
Accademia degli Umidi, como era conhecida originariamente — em março
de 1547 e publicados em Florença por Lorenzo Torrentino em 1550293 sob o
título: “Due lezzioni di messer Benedetto Varchi, nella prima delle quali
si dichiara un sonetto di messer Michelagnolo Buonarroti, nella seconda si
disputa quale sia più nobile arte, la Scultura o la Pittura”. Em seu primeiro
discurso, o humanista florentino realiza uma detalhada exegese do célebre
soneto michelangiano “Non ha l’ottimo artista alcun concetto”,294 analisando
exaustivamente seu vocabulário, indicando a influência de Dante e Petrarca,
e concluindo com uma louvação de Michelangelo baseada na doutrina do
amor platônico. O segundo discurso compreende três disputas, baseadas no
Livro VI da Ética a Nicômano, sobre respectivamente a nobreza das artes
(“Della maggioranza e nobilità dell’arti”), os méritos da pintura e da escultu-
ra (“Qual sia più nobile, o la scultura o la pittura”), e as diferenças e seme-
lhanças entre poetas e pintores (“In che siano simili et in che differenti i
poeti et i pittori”). A pedido de Varchi, oito artistas — a saber, Vasari, Bron-
zino Tribolò, Pontormo, Cellini, Francesco da Sangallo, Battista di Marco del
Tasso e naturalmente Michelangelo — enviaram-lhe cartas comentando a
questão do paragone qual foi apresentada no libreto; essas cartas, incluindo a
de Buonarroti, serviram como uma espécie de apêndice à edição original das
Due Lezzioni.
292 Alude, novamente, ao seu desgosto por ver-se forçado a aceitar o encargo vaticano.
293 A publicação aparece datada em janeiro de 1549 ab Incarnatione, seguindo o estilo flo-
rentino.
294 Cf. aquele que é, talvez, o mais difundido estudo a respeito desse soneto, a saber, o capítulo
6 de Idea de E. Panofsky; Berlim: Bruno Hessling, 1960 (primeira edição: Leipzig, 1924). Sobre as
Due Lezzioni cf. principalmente M. Pepe, “Il paragone tra pittura e scultura nella letteratura ar-
tistica rinascimentale”, Cultura e Scuola, VIII, n. 30, abr./jun. de 1969, pp. 120-31; F. Quiviger,
“Varchi and the Visual Arts”; Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. 50, 1987,
pp. 219-24, e L. Mendelsohn, Paragone: Benedetto Varchi’s due lezzioni and Cinquecento art
theory; Michigan: Ann Arbor, 1982.
295 A editio princeps das Lezzioni inclui a carta na qual Varchi roga a Martini que envie o libre-
to a Michelangelo e peça-lhe o comentário; esta é reimpressa por Barocchi, Trattati, I, p. 1.
296 Della statua (ed. Giusti-Ferrario; Milão, 1804), p. 8 (apud Vasari/Barocchi, II , p. 229).
Carta XLVII
Roma, fins de março ou princípios de abril de 1547
Messer Benedetto,
A fim de tornar manifesto que de fato recebi o vosso libreto, procura-
rei responder, ainda que de maneira ignorante, às perguntas a mim dirigi-
das. Digo que a pintura parece-me tanto melhor, quanto mais se aproxima
ao relevo, e o relevo, tanto pior, quanto mais se aproxima à pintura; parecia-
me, assim, que a escultura fosse o farol299 da pintura, e que a ambas separas-
se a mesma distância que há entre o sol e a lua.300 Agora, porém, após haver
lido em vosso libreto que, filosoficamente falando, as coisas que têm um
mesmo fim são uma mesma coisa,301 mudei de opinião, e sustento que, se o
mais elevado juízo302 e as maiores dificuldades, empecilhos e fadigas, não
implicam em maior nobreza, então a pintura e a escultura são uma mesma
coisa, e, portanto, nenhum pintor deveria desprezar a escultura em favor da
pintura, e, similarmente, nenhum escultor deveria desprezar esta em favor
daquela. Por escultura entendo o que se faz pelo esforço de tirar, e o que se
faz pela via do agregar assemelha-se à pintura. Basta dizer que, sendo am-
bas — ou seja, pintura e escultura — provenientes de uma mesma inteli-
gência, dever-se-ia permitir que fizessem as pazes e abandonar tantas dis-
putas, visto que se perde mais tempo com estas do que com a execução das
figuras. Se quem escreveu que a pintura é mais nobre do que a escultura
houvesse compreendido da mesma maneira as outras coisas que escreve,
299 No original, lanterna, o que poderia traduzir-se tanto por lanterna, enquanto objeto que
projeta luz ao seu redor, quanto por farol em seu sentido náutico, sendo este último, a meu
ver, o correto: a escultura não é o que ilumina a pintura, mas a sua estrela polar, sua referência
e guia (“a pintura é tanto melhor quanto mais se aproxima do relevo”).
300 Sugestivamente, uma imagem semelhante aparece na carta a Varchi de Benvenuto Cellini:
“La differenza che è dalla scultura alla pittura è tanta quanto è dalla ombra e la cosa che fa
l’ombra” (Trattati, I, p. 81), isto é, o objeto “verdadeiro” e o projetado; a mesma metáfora re-
pete-se no Disegno partito in più ragionamenti (1549), de Anton Francesco Doni, que a põe
na boca do próprio Michelangelo: “Io dico con Michelagnolo che è intelligente della scoltura,
della pittura e del disegno perfettamente, ch gl’è differenza tanto dalla pittura alla scoltura,
quanto è da l’ombra al vero” (apud Pepe, p. 127).
301 Refere-se à passagem da segunda disputa varchiana: “Dico dunque, procedendo filosofica-
mente, che io stimo, anzi tengo per certo, che sostanzialmente la scultura e la pittura siano una
arte sola, e conseguentemente tanto nobile l’una quanto l’altra, et a questo mi muove la ragione
allegata da noi di sopra, cioè che l’arti si conoscono dai fini e che tutte quelle arti c’hanno il
medesimo fine siano una sola e la medesima essenzialmente […]” (Barocchi, Trattati, I,
pp. 43-4).
302 No original giudicio: o “anticanonico giudizio dell’occhio” indicado por Barocchi, que
lembra uma carta de 1570 enviada por Vasari a M. Bassi: “Onde diceva il gran Michelagnolo
che bisognava avere le seste [i.e., o compasso] negli occhi e non in mano, cioè il giudicio”
(Trattati, I, nota 2 à p. 82).
Michelangelo faz referência, aqui, ao “Bando sopra quelli che avessero parla-
to ai banditi”, promulgado em Florença, pelo duque Cosimo, em 27 de no-
vembro de 1547, o qual tinha por objetivo detectar e isolar fuorusciti.304 Em-
bora o bando tenha sido promulgado semanas depois da redação desta carta,
proliferavam rumores a seu respeito, em Florença, ao menos desde princí-
pios de outubro, como demonstra uma carta de Luca Martini a Varchi, data-
da no dia 8 desse mês.305 Lendo-se a missiva buonarrotiana, não se pode
deixar de pensar que o artista era, ou ao menos acreditava estar sendo, vigia-
do, e que escrevera ao sobrinho tendo em vista uma possível fiscalização por
parte das autoridades florentinas: Michelangelo não só insiste em sua ausên-
cia de vínculos com quaisquer fuorusciti — o que, sabemos, não era uma
informação verdadeira — como também procura defender-se da suposta
acusação de se ter alojado na casa dos Strozzi — notórios republicanos, ba-
nidos de Florença desde 1537 — no curso da grave enfermidade que padece-
ra em 1545/1546.
Leonardo,
Alegro-me de que me tenhas informado sobre a proclamação [ban-
do], pois, se até agora me tenho guardado de freqüentar e falar com fuorus-
citi, guardar-me-ei ainda mais no futuro. Quanto a me ter hospedado na
casa dos Strozzi durante minha doença, não considero ter estado em sua ca-
sa, mas nos aposentos de messer Luigi del Riccio, que era muito amigo
303 Segundo Barocchi (Carteggio, IV, p. 266), esta é uma referência ao Libro del Cortegiano, I,
XLIX-LII (pp. 81-6 em Opere di B.Castiglione, G. della Casa, B. Cellini, editadas por C. Cordiè;
Milão, Nápoles, 1960), onde o alter ego de Castiglione, o conde Ludovico de Canossa, afirma
ser “[…] la pittura più nobile e più capace d’artificio che la marmoraria”. Para M. Pepe, con-
tudo, tratar-se-ia de uma alusão a Leonardo (opus cit., p. 126).
304 O documento é publicado por Lorenzo Cantini em seu imenso Legislatione toscana (Flo-
rença, 1800, I, p. 363).
305 In Lettere serie, erudite e famigliare di diversi uomini scienziate; Veneza, 1735, p. 267.
À recente perda de seus caríssimos amigos Luigi del Riccio, em 1546, e Vitto-
ria Colonna, em fevereiro de 1547, soma-se a morte do irmão de Michelan-
gelo, Giovan Simone, em janeiro de 1548. Este sempre havia sido uma espécie
de “ovelha negra” da família e, desde a juventude, o alvo das mais severas
críticas por parte do artista (cf. carta VI). O interesse principal da seguinte
missiva relaciona-se à observação buonarrotiana sobre os últimos momen-
tos de vida de Giovan Simone: tendo inquirido, em uma carta anteriormente
enviada ao sobrinho (Carteggio, IV, p. 289), se o irmão “è morto confessato e
comunicato com tucte le cose ordinate dalla Chiesa”, e sido posteriormente
informado por Leonardo [em uma carta perdida] que “se bene non ha avuto
tucte le cose ordinate dalla Chiesa, [...] ha avuto buona contrizione”, o artista
conclui que “questa per la salute basta” — comentário evidentemente confor-
me com a assim chamada doutrina da sola fide, de acordo com a qual a sal-
vação da alma humana não depende de obras ou práticas religiosas, mas
somente da fé (cf. carta XXXIV).
Leonardo,
Depois de escrever-te pela última vez, encontrei em casa uma carta
onde me informas sobre todos os pertences de Giovan Simone que se en-
306 Ao cair doente, entre dezembro de 1545 e fevereiro de 1546, Michelangelo aloja-se no
apartamento de Riccio, que, empregado do banco Strozzi, residia no palazzo da família.
307 Em dezembro de 1540.
308 No outono de 1546.
309 No original, ho fatica di vivere.
310 Michelangelo faz referência à carta em que Leonardo participava ao tio a morte de Gio-
van Simone, ocorrida no dia 9 de janeiro; essa carta, perdida, é anterior ao dia 21, quando
Buonarroti lhe envia uma resposta (Carteggio, IV, p. 289). Entre este dia e 4 de fevereiro, como
aqui informa a própria missiva michelangiana, Leonardo enviaria mais duas cartas ao mestre,
na primeira das quais listaria os pertences deixados por Giovan Simone, e, na segunda, rela-
taria as circunstâncias de sua morte.
311 Trata-se da casa pertencente ao diplomata e filósofo florentino Giovanni di Bardo Corsi,
posta à venda por ocasião de sua morte. É mencionada pela primeira vez por Michelangelo
em junho de 1547 (Carteggio, IV, p. 270).
Leonardo,
Recebi o cesto de peras, que somaram oitenta e seis; enviei trinta e três
delas ao Papa, a quem lhes pareceram ótimas e muito se regozijou. Quanto
ao cesto de queijos, a alfândega alega que aquele transportador é um sem-
vergonha e que nunca o levou ali, de modo que, se eu descobrir que ele está
em Roma, far-lhe-ei o que merece, não pelo queijo, mas para mostrar-lhe o
pouco respeito que tem pelas pessoas.
Tenho estado muito mal estes dias por não poder urinar, o que é uma
minha grande debilidade; agora, porém, estou melhor.313 Escrevo-te isso
312 Carteggio, IV, p. 379. A tríade nobreza–saúde–bondade é repetida diversas vezes por Buo-
narroti ao aconselhar seu sobrinho quanto à escolha da noiva; cf. por exemplo Carteggio, IV,
pp. 357-8.
313 Michelangelo padecia de cálculo renal, problema que se intensificaria em março do ano
seguinte (cf. Carteggio, IV, pp. 315-7, e carta LII).
Leonardo,
Respondendo à tua última, é verdade que a morte do Papa foi para
mim uma grande tristeza e não menor perda, pois recebi muitos benefícios
de Sua Santidade, e esperava receber ainda mais. Esta foi a vontade de Deus;
é preciso resignar-se. Sua morte foi bela, tendo mantido o conhecimento até
a última palavra. Que Deus tenha misericórdia de sua alma. Nada mais me
ocorre a este respeito. Creio que os assuntos daí caminham bem, e, quanto
ao teu casamento, não me parece haver nada mais a dizer; acredito que estás
considerando a questão, sem ainda encontrar o que te convém. Quanto a
mim, vivo o melhor que posso com a minha doença, e, em comparação com
318 O conclave em que se elegeu o sucessor de Paulo III, Júlio III, foi um dos mais longos da
história, tendo-se iniciado em 29 de novembro de 1549 e concluído somente em 8 de fevereiro
do ano seguinte.
319 No reverso do fólio lê-se um soneto (“Se ben concietto ha lla divina parte”) e um madri-
gal (“Un uomo in una donna, anzi un dio”) de Michelangelo. Tanto a carta quanto os versos
são cópias redigidas por Leonardo.
320 Também nesta passagem, não se sabe se por um ato falho, força de expressão ou manobra
retórica, Michelangelo emprega o gênero masculino ao referir-se a Vittoria. Cf. carta XXXIII.
Leonardo,
Tomo conhecimento, através da tua, que Cassandra deu à luz um belo
filho, que está bem, e que lhe dareis o nome Buonarroto;324 todas essas notí-
cias alegram-me sobremaneira. Que Deus seja louvado, e que o faça ser bom,
para que nos honre e mantenha a casa. Agradece à Cassandra e recomenda-
me a ela. Nada mais me ocorre acerca disso.
Eu te escrevi, meses atrás, que, quando se encontrasse uma casa à ven-
da que fosse honrada e em boa localização, me avisasses, e agora repito que
me avises se aparecer tal coisa; caso não surja algo apropriado agora, não
deixes de procurar.
324 Esse nome havia sido sugerido por Michelangelo em suas duas cartas anteriores: “Circa
al nome a’ figliuoli che tu aspecti, a me parrebbe che tu rifacessi tuo padre, e se è femina nos-
tra madre, cioè Buonarroto e Francesca” (à primeira filha de Leonardo, morta com nove dias
de vida em outubro de 1556, deu-se o nome Francesca; cf. Carteggio, V, p. 77); “Arei ben caro
che questo nome Buonarroto non mancassi in casa, sendoci durato già trecento anni in casa”
(idem, p. 12).
325 No original, trionfo, numa referência às grandiosas festividades que acompanham o cor-
tejo triunfal; o termo é empregado, como se verá, no sentido irônico.
326 É possível que Michelangelo aludisse, com isso, à violência de acontecimentos político-
militares contemporâneos, notadamente a guerra medicea contra Siena (cf. Symonds, II,
p. 286). Sem dúvida, porém, essa nota de pessimismo é bastante característica da fase final
do epistolário, permeada por referências às penas e dificuldades intrínsecas à existência.
327 Como bem notou Barocchi, na Vita o encontro entre Michelangelo e Cosimo, por ocasião
da visita deste último a Roma, torna-se, “nella versione del cortigiano e municipalistico Va-
sari, un mezzo per avvalorare quell’antagonismo tra le imprese della Firenza medicea e della
Roma papale”, antagonismo esse que se encontra igualmente patente na supracitada carta
vasariana a Buonarroti (Vasari/Barocchi, IV, p. 1754).
328 Ao menos desde 1546; cf. cartas do bispo Tornabuoni a G. Francesco Lottini em 2.10.1546
e de Tribolo a Varchi em 15.2.1547 (apud Vasari/Barocchi, IV, p. 1598).
329 E essas pressões, assim como as escusas michelangianas, prosseguiriam no futuro (cf. por
exemplo Carteggio, V, p. 30, e carta LIX abaixo).
Carta LIX
Roma, 22 de junho de 1555
330 No original: “[…] che io sie vechio e pazzo a vole’ far sonecti; ma perché molti dicono ch’i’
son rinbanbito, ho voluto far l’uficio mio”. Na Vita, Vasari anacronicamente sugere que as
acusações de ser rimbambito proviessem do arquiteto Pirro Ligorio, que, de acordo com o
biógrafo, teria iniciado sua participação na fábrica de San Pietro sob Paulo IV; como já nota-
ra Fea, contudo, Ligorio passa a trabalhar na fábrica somente após a morte de Michelangelo
(C. Fea, Notizie intorno Raffaelle Sanzio; Roma, 1822, p. 38).
331 Aqui, Michelangelo, ironicamente ainda, faz referência à passagem da missiva vasariana:
“Date il resto del riposo a coteste ossa honorate a quella città che vi diede l’essere”.
332 No original, ghiocti, literalmente “glutões”, mas, como sinalizou Mastracola (p. 601, nota
3), no sentido arcaico ribaldi, mascalzoni, isto é, velhacos, infames, patifes, pilantras.
333 Marinozzi da Ancona.
334 Esta bela imagem se torna ainda mais graficamente poderosa ao recordar-se que, de
acordo com o estilo italiano das horas na época, como foi visto anteriormente, o dia se inicia-
va ao pôr-do-sol; a vigésima quarta hora correspondia, portanto, à última de luz.
335 Esse pensamento ecoa no soneto que o artista escreve por ocasião da morte de Urbino e
envia ao monsenhor Beccadelli, arcebispo de Ragusa: “Per croce e grazia e per diverse pene
Son certo, Monsignor, trovarci in cielo; Ma prima ch’a l’estremo ultimo anelo, Goderci in
terra mi parria pur bene. Se l’aspra via coi monti e col mar tiene L’un da l’altro lontan, lo
spirto e l’zelo Non cura intoppi o di neve o di gelo, Né l’alia del pensier lacci o catene. Ond’io
con esso son sempre con voi, E piango e parlo del mio morto Urbino, Che, vivo, or forse saria
costà meco, Com’ebbi già in pensier. Sua morte poi M’affretta e tira per altro camino, Dove
m’aspetta ad albergar con seco”.
Carta LXII
Roma, maio de 1557
Senhor Duque,
Cerca de três meses atrás, ou pouco menos, dei a entender a Vossa
Senhoria que ainda não podia deixar a fábrica de San Pietro sem sua grande
perda e minha grandessíssima vergonha, e que, para deixá-la do modo dese-
jado, sem que lhe faltassem as coisas necessárias, eu ainda precisaria de não
menos que um ano, e pareceu-me que Vossa Senhoria concordava em dar-
me esse tempo. Agora porém recebi uma nova carta de Vossa Senhoria, a
qual incita-me a regressar ainda mais [cedo?] do que eu esperava, o que me
provocou não pouca consternação, já que os assuntos da fábrica causam-me
mais penas e aborrecimentos que nunca. Isso porque na cúpula da capela do
rei da França — que é obra engenhosa e original —, por ser eu velho e não
poder ir freqüentemente até lá, surgiu um erro, pelo qual preciso desfazer
grande parte do que havia feito; de qual seja essa capela, pode dar testemu-
Carta LXIII
Roma, 22 [?] de maio de 1557
336 Ou seja, Sebastiano Malenotti, responsável pelo erro (cf. cartas LXIV e LXV). Michelange-
lo demite-o sumariamente nessa ocasião, dando origem, segundo contara ao sobrinho, a que
dissesse “molte bugie” (Carteggio, V, p. 104).
337 Cardeal Ridolfo Pio da Carpi, a quem Michelangelo escreveria posteriormente.
338 Lembrando que Michelangelo insistira em não receber gratificações financeiras por seu
trabalho na fábrica.
339 Pela enésima vez no epistolário, observe-se o emprego da frase “non è mia arte” — dessa
vez, referida à escritura.
340 Matteo Realdo Colombo (m. 1559), médico, trata Michelangelo desde seu primeiro ata-
que de cálculos, em 1549.
341 No dia 26 de setembro de 1534, como se recordará.
342 A sua planta remonta aos tempos da antiga basílica constantiniana, tendo-lhe sido origi-
nariamente destinada a função de mausoléu imperial. Em 1490, é posta sob a proteção do rei
da França, a quem Inocêncio VIII concede o jus patronato; em 1500, recebe a Pietà michelan-
giana. Em 1544, é demolida por ordem de Antonio da Sangallo, que pretendia em seu lugar
construir o braço meridional da nova San Pietro; Michelangelo, porém, sobrepõe à área do
antigo mausoléu a abside meridional da igreja, à qual se transfere o nome de capela do rei da
França (durante o pontificado de Paulo V, porém, esse título seria cedido à capela que atual-
mente contém os altares de Santa Petronilla e San Michele). Para a descrição dessa “capela”
durante a participação buonarrotiana na fábrica cf. A. Schiavo, op. cit., capítulo III.
Carta LXIV
Roma, 1 o de julho de 1557
Carta LXV
Roma, 17 de agosto de 1557
Messer Giorgio,
Para que melhor se entenda a dificuldade da cúpula cujo desenho vos
enviei, mando-vos uma planta, o que ainda não havia feito. A fim de obser-
var seu nascimento desde o chão, foi necessário dividir a cúpula em três
partes, correspondentes às janelas abaixo, separadas por pilastras, como ve-
des, que convergem em forma piramidal ao semicírculo do alto da cúpula,
assim como a base e as laterais das cúpulas. Foi preciso ajustá-las com infi-
nitos cimbros, pois sofrem tantas alterações de cada lado e de ponto em
ponto, que não é possível ater-se a uma regra absoluta. E os círculos e qua-
345 Seu pontificado duraria apenas três semanas, entre abril e maio de 1555.
346 O termo “teoria” deve naturalmente ser empregado com extrema cautela: Michelangelo
não pretendia absolutamente, aqui ou algures, elaborar preceitos didáticos a partir dos quais
desenvolveria concretamente um princípio, mas expressar sua convicção acerca da organici-
dade arquitetônica, à qual paraleliza a do corpo.
Monsenhor reverendíssimo,
Quando uma planta tem diversas partes, todas as que têm a mesma
qualidade e quantidade devem ser adornadas de um mesmo modo e de uma
mesma maneira, analogamente às que lhes são opostas. Mas, quando a plan-
ta muda inteiramente sua forma, é não apenas lícito, mas necessário, trans-
formar também os ornamentos, assim como seus opostos; já as partes cen-
trais, estas são tão livres quanto queiram, assim como o nariz, que está no
centro do rosto, não se subordina nem a um olho nem ao outro, mas uma
mão sim está obrigada a ser como a outra, e um olho, como o outro, visto
347 Para os estudos michelangianos de anatomia cf. o longo comentário de Barocchi (Vasari/
Barocchi, II , nota 109). Vasari conta que o mestre se dedicara à dissecação de cadáveres em sua
juventude (idem, I, p. 13; cf. também p. 116); décadas mais tarde — ao menos desde 1549 — Buo-
narroti retomaria suas investigações anatômicas auxiliado por seu médico, o supracitado Real-
do Colombo, que nesses anos dedicava-se à composição do tratado De re anatomica, publicado
em Veneza em 1559 (idem, IV, pp. 2133-4). Tanto Vasari quanto Condivi fazem referência ao
projeto acalentado por Michelangelo de escrever sobre anatomia, que jamais realiza, de acordo
com ambos os biógrafos, por não se sentir suficientemente treinado no manejo da pena (cf.
introdução). A existência real dessa intenção é corroborada por uma carta que Colombo envia
a Cosimo I, na qual faz menção à colaboração michelangiana em seu De re anatomica (in K.
Frey, Deutsche Militärärztliche Zeitschritft, XLI, 1912, p. 26 e seg.). Também Giannotti, ao pôr em
boca de Michelangelo o desejo de um dia escrever sobre pintura, faz referência precisamente à
sua inclinação pela anatomia (Dialogi, pp. 41-2).
348 Cf. Ackerman, opus cit., capítulo I, que propõe uma análise do break through michelan-
giano no campo da arquitetura a partir da exegese dessa carta: “[…] Michelangelo’s approach
to architecture appears as a radical departure from Renaissance tradition. His association of
architecture to the human form was no longer a philosophical abstraction, a mathematical
metaphor. By thinking of buildings as organisms, he changed the concept of architectural
design from the static one produced by a system of predetermined proportions to a dynamic
one in which members would be integrated by the suggestion of muscular power […] While
fifteenth-century architecture required of the observer a certain degree of intellectual con-
templation to appreciate its symbolic relationships, Michelangelo’s was to suggest an imme-
diate identification of our own physical functions with those of the building” (p. 5).
Seria Bartolommeo Ammanati, como dito acima (carta LX), o executor final
da escadaria laurenziana, em San Lorenzo; a ele Buonarroti envia diretamen-
te, em 1558, novas instruções e um modelo em argila, ao qual faz referência
nesta carta. As obras concluir-se-iam em 1560.
Messer Bartolomeo,
Eu vos escrevi que havia feito um pequeno modelo em argila da esca-
daria da biblioteca, o qual agora vos envio em uma caixa; por ser pequeno,
não vos pude dar mais que uma idéia, recordando que o que antes vos havia
prescrito era isolado e se apoiava somente à porta da biblioteca. Imaginei
manter o mesmo método, e, quanto às escadas postas aos lados da principal,
não quisera que tivessem balaustradas em suas extremidades, como a prin-
cipal, mas um assento a cada dois degraus, como indicado.350 Não é necessá-
rio que vos fale sobre os ornamentos, base, filetes, plintos e demais cornijas,
pois tendes competência e, estando no local, muito melhor que eu vereis o
que é necessário. Quanto à altura e ao comprimento, ocupai o menor espaço
possível, diminuindo ou aumentando segundo vos pareça necessário.
Acredito que se essa escadaria fosse feita em boa madeira351 ficaria
melhor que em pedra, e melhor combinaria com os bancos, o teto e a porta.
Nada mais me ocorre. Sou todo vosso, velho, cego, surdo e inepto com as
mãos e o corpo.
Vosso Michelangelo Buonarroti em Roma.
349 Partindo do princípio de que a carta tenha sido escrita em 1550, Ramsden acredita que
Michelangelo esteja referindo-se às mudanças por ele recentemente operadas sobre o mode-
lo sangalliano da basílica, notadamente sua substituição do emprego misto das ordens jônica,
toscana e coríntia pela exclusividade desta última. O “nariz”, nesse sentido, corresponderia à
cúpula (II, apêndice 42).
350 Essa é a sua aparência atual.
351 No original, d’un bel noce, referindo-se à madeira, muito apreciada então, da nogueira.
Ammanati transmitiria a sugestão michelangiana ao duque, que, não obstante, ordenaria a
sua execução em pedra.
356 No dia 29 de março, o próprio duque escrevera a Michelangelo rogando-lhe que aconse-
lhasse Vasari (Carteggio, V, p. 217). Como indica Barocchi, Giorgio discutiu com o mestre não
somente questões relacionadas ao Palazzo Vecchio, mas também ao projeto de Ammannati
para a ponte de Santa Trinita.
A carta traduzida a seguir não comparece nem em Milanesi nem nas su-
cessivas edições e traduções anteriores ao Carteggio, em cujo apêndice é pu-
blicada juntamente com outras três missivas escritas, nesses mesmos anos,
aos deputados da fábrica; esses documentos, pertencentes ao Archivio della
Fabbrica di San Pietro (AFSP), foram redescobertos e publicados em 1983 —
concomitantemente ao último volume do Carteggio portanto — por L. Bar-
deschi Ciulich. Como relata Vasari, em seus últimos meses de vida Miche-
langelo aceitara Danielle da Volterra como seu substituto em San Pietro; um
dos deputados da fábrica, porém, encarregara ao florentino Nanni di Baccio
Bigio — antigo inimigo de Michelangelo, a cuja participação na fábrica já em
1547 se opusera o mestre — a direção da obra, o que enfurecera Buonarroti,
que ameaçara retornar a Florença caso Nanni não fosse imediatamente afas-
Leonardo,
Recebi a tua última, a qual incluía os doze belos e bons marzolini;
agradeço-te, alegrando-me porque estás bem, assim como eu. Recebi recen-
temente mais [cartas] tuas, mas não respondi porque a mão não me serve;
doravante, portanto, pedirei a outros que escrevam, e eu assinarei. Nada mais
me ocorre.
De Roma, no dia 28 de Dezembro de 1563
Eu, Michelangelo Buonarroti.
359 Cf. L. Bardeschi Ciulich, “Nuovi documenti su Michelangelo architetto maggiore di San
Pietro”; Rinascimento (Florença: Sansoni), vol. 23, 1983, pp. 173-86. Nanni era discípulo de
Baccio Bandinelli, outro inveterado inimigo de Michelangelo; sua obra escultórica mais des-
tacada, possivelmente, é uma cópia da Pietà buonarrotiana em Santo Spirito (Florença).
360 No original, “han fatto come le monache da Genova”, locução que significa, como aponta
Mastracola (p. 657, nota 2), justificar ou obrigar a aceitar um fato consumado.
(*) — Pietro del Tura, conhecido como Aretino (Arezzo, 1492 — Veneza,
1556): poeta, escritor, colecionista. Um dos mais renomados letterati italia-
nos, célebre sobretudo por seu epistolário, mas também por escritos religio-
sos, políticos e eróticos, Aretino cedo revela um marcado interesse pelas
artes visuais, em especial pela pintura. Em 1512 muda-se para Perugia, onde
escreve seu primeiro livro de poemas, e, em 1517, para Roma, permanecendo
inicialmente sob a proteção de Agostino Chigi, abastado banqueiro sienês e
patrono das artes; nessa época produz escritos políticos de teor satírico, as
pasquinate, nas quais ridiculariza principalmente a Cúria, e conhece alguns
dos mais destacados artistas do período, entre os quais Rafael, Michelangelo
e Sebastiano del Piombo. Após a morte do banqueiro, em 1520, incorpora-se
ao círculo de artistas e literatos congregado ao redor de Leão X; quando, em
1522, o puritano Adriano VI é eleito seu sucessor, Aretino abandona Roma e
instala-se em Mântua, onde se põe a serviço de Federico Gonzaga e do con-
dottiere Giovanni de’ Medici “delle Bande Nere”. Morto este, no ano seguinte,
o escritor regressa a Roma, onde tampouco nessa ocasião permaneceria por
muito tempo: em 1525, publica os assim chamados sonetti lussuriosi, os quais
descrevem 16 modi, ou posições sexuais, que haviam sido no ano anterior
desenhados por Giulio Romano e gravados em cobre por Marcantonio Rai-
mondi, valendo a este último o encarceramento por ordem do papa. A fim
de escapar ele próprio à prisão, e ameaçado por um antigo inimigo, o cardeal
Giovanni Matteo Giberti, Aretino deixa temporariamente Roma; ao seu re-
gresso, é atacado e por pouco não é assassinado pelos sicários de Giberti,
após o que decide uma vez mais abandonar Roma, buscando inicialmente a
proteção de Giovanni delle Bande Nere; depois da morte deste em 1526, ins-
tala-se definitivamente em Veneza, onde falece, de morte natural, em 1556.
Em 1525 escreve a comédia satírica La Cortigiana, publicada em 1534; ao
longo das duas décadas seguintes, produz outras cinco peças teatrais. Para-
lelamente, escreve textos religiosos, nos quais estuda, entre outros, as vidas
de Jesus, Santa Catarina de Siena e São Tomás de Aquino, além de duas sé-
ries de Diálogos, os Ragionamenti (1534-1536) e as Carte Parlanti (1542), am-
bos de teor marcadamente satírico, que retratam sobretudo o ambiente cor-
rupto de Roma. Entre seus escritos mais difundidos está sua vastíssima cor-
respondência, a qual, contando cerca de três mil missivas, foi publicada por
Lodovico Dolce, em seis volumes, entre 1537 e 1557. Nessas cartas, Aretino
PERSONAGENS |
elogiava ou ridicularizava algumas das grandes figuras do universo político,
religioso ou artístico italiano e internacional, tendo mais de uma vez recebi-
do presentes ou favores a fim de aplacar sua pluma — razão pela qual, já por
seus contemporâneos mas também por posteriores estudiosos de sua obra,
foi acusado de arrivismo e mercenarismo.
O epíteto que celebremente sintetizou sua espetacular mordacidade
foi, sem dúvida, aquele outorgado por Ariosto na redação final do Orlando
Furioso: o “flagello dei príncipi” (XLVI, 15); de seus escritos, dizia-se que ti-
nham o poder de enterrar os vivos e ressuscitar os mortos. Em suas hiperbó-
licas lisonjas, muitas vezes o limite entre a homenagem e a caricatura diluía-
se; sua notável vocação satírica e sua eloqüente retórica adulatória ao mes-
mo tempo aterrorizavam e seduziam políticos, artistas e prelados. Em Vene-
za, onde levava uma vida glamourosa, circundado por alguns dos mais in-
fluentes personagens contemporâneos em sua luxuosa Casa Aretina, sua
fama cresceu extraordinariamente; de acordo com um crítico contemporâ-
neo, o escritor foi a primeira celebrity do mundo moderno.361 Sua amizade
com diversos artistas resultou em vários retratos seus, entre os quais se des-
tacam as pinturas de Sebastiano del Piombo e Tiziano, as quais por sua vez
serviram de modelo para inúmeras xilogravuras.
Bibliografia: A literatura relativa a Aretino é copiosa; para uma exten-
sa bibliografia compreendendo edições da obra aretiniana e literatura se-
cundária, cf. a monografia de P. Larivaille, Pietro Aretino; Roma: Salerno,
1997, pp. 517-39; para seu epistolário, vide a edição de E. Camesasca e F. Per-
tile; Milão: Edizioni del Milione, 1957-1960.
361 Anthony Oldcorn em seu artigo sobre poesia lírica quinhentista italiana, in The Cam-
bridge history of italian literature, ed. Peter Brand, Cambridge Univ. Press, 1996, p. 272.
362 Laura foi autora de ao menos 400 poemas em italiano, incluindo três éclogas; estas, con-
cebidas como alegorias políticas, exaltam a corte de Cosimo, a quem celebra como uma espé-
cie de Augusto redivivo (cf. artigo de V. Kirkham em Eisenbichler, pp. 149-75).
363 A fonte jamais seria erigida no interior do palácio; Michelangelo, no entanto, chegou a ver
e elogiar seus desenhos preparatórios (cf. carta LXIX). Seus componentes encontram-se atual-
mente no Museo Nazionale del Bargello, em Florença.
PERSONAGENS |
e contemporâneos, Bramante foi autor de obras arquitetônicas tão emble-
máticas como o tempietto em San Pietro in Montorio, primeira edificação
circular renascentista a reviver o motivo da colunata circundando a cella.
Amigo e “aliado” de Rafael na Cúria,364 granjeia uma profunda inimizade
com Michelangelo, que, anos após sua morte, escreveria em sua célebre “car-
ta ao monsenhor”, de 1542: “Tutte le discordie che naqquono tra papa Iulio e
me fu la invidia di Bramante et di Raffaello da Urbino; et questa fu causa che
non e’ seguitò la sua sepultura in vita sua” (Carteggio, IV, p. 155; aqui carta
XXXIX). Também Vasari e Condivi assinalam, em diversos momentos, que
Bramante e Rafael eram inimigos de Michelangelo, e que procuravam eclip-
sá-lo na Cúria.365 Condivi afirma, ainda, que a inveja e a antipatia de Bra-
mante por Michelangelo relacionavam-se ao fato de este último “descobrir
muitos de seus erros” (XXV, p. 50), relatando posteriormente um episódio
relacionado à construção dos andaimes que Buonarroti utilizaria para pin-
tar a Sistina:
364 Note-se, porém, que, contrariamente a uma crença generalizada que remonta a Varchi e
Vasari, Rafael e Bramante não tinham nenhuma relação de parentesco.
365 Cf. entrada Rafael, e cartas IV e XXXIX.
366 Condivi, LXI, pp. pp. 130-1. O episódio, ausente na edição torrentiniana, é repetido por
Vasari em 1568; o aretino, no entanto, acrescenta a possibilidade, supostamente ponderada
por Buonarroti, de a torpeza de Bramante ter sido proposital: “Conobbe Michelagnolo che o
Bramante in questo valeva poco, o che gli era poco amico” (Vasari/Barocchi, I, p. 36).
(*) — Tommaso Cavalieri (Roma (?), ca. 1518/20 — Roma, 1587): membro
de uma das mais tradicionais famílias aristocratas romanas (cf. Frommel, p.
97, para a árvore genealógica da família Cavalieri), entra pela primeira vez
em contato com Michelangelo na segunda metade de 1532, época em que
o artista se encontrava em Roma. Segundo o testemunho de vários con-
temporâneos, entre os quais Varchi, Cavalieri distinguia-se por sua extra-
ordinária beleza, mas também por uma elegância inata, uma poderosa in-
teligência e um refinado gosto no referente às artes.368 Pouco se sabe a
respeito de sua biografia, sendo desconhecidas as datas exatas de seu nas-
cimento e casamento, assim como as do nascimento de seus filhos, Mario
e Emilio (para datas conjeturais cf. Ramsden, I, apêndice 23). Sabe-se que
falece em 30 de junho de 1587, e que é enterrado em sua capela familiar em
Santa Maria in Aracoeli, próxima ao Capitolino. Cavalieri ocupou diversos
cargos públicos ao longo de sua vida, tendo sido inclusive o responsável,
juntamente com seu amigo Prospero Boccapaduli, pela supervisão das
PERSONAGENS |
obras de remodelação do Capitólio, projetado por Michelangelo mas rea-
lizado somente após a sua morte.
Muito se tem especulado acerca da natureza da profunda relação es-
tabelecida entre os dois, tendo freqüentemente prevalecido a interpretação
de tom neoplatônico, segundo a qual a beleza do jovem patrício revestir-se-
ia, para Michelangelo, de um poder quase divino. A predominância dessa
interpretação deriva em grande parte das próprias cartas e poemas escritos
por Michelangelo a Cavalieri, os quais têm sido quase unanimemente rela-
cionados ao neoplatonismo florentino.369
Segundo Vasari, Michelangelo
369 Cf. principalmente o estudo de Frommel, que resume essa vertente, e P. L. De Vecchi,
“Studi sulla poesia di Michelangelo”, Giornale Storico della Letteratura Italiana, 1963, 140, pp.
30-66 e 364-402; vide também Ryan, p. 94 e seg. Os versos iniciais de um dos mais célebres
poemas buonarrotianos a Cavalieri parecem querer ilustrar, em chave poética, a doutrina do
amor platônico segundo a concepção contemporânea: “Veggio nel tuo bel viso, signor mio /
quel que narrar mal puossi in questa vita / l’anima, della carne ancor vestita / con esso è già
più volte ascesa a Dio”. A idéia de que a beleza é o único sinal da presença divina na Terra e a
única via possível de ascensão a Deus, perfeitamente conforme com a filosofia neoplatônica,
reaparece nos versos finais do poema: “A quel pietoso fonte, onde siàn tutti / s’assembra ogni
beltà che qua si vede / più c’altra cosa alle persone accorte / né altro saggio abbiàn né altri
frutti / del cielo in terra; e chi v’ama con fede / trascende a Dio e fa dolce la morte”.
370 Para uma análise detalhada dos desenhos, incluindo uma bibliografia relativa a cada um,
cf. M. Hirst, Michel-Ange dessinateur (trad. de Marie-Geneviève de La Coste-Messelière);
Éditions de la Réunion des Musées Nationaux: Paris, 1989, pp. 103-21; para as fontes antigas
dos desenhos cf. Agosti e Farinella, capítulo XII. Com exceção do Ganimedes, todos os demais
desenhos mencionados por Vasari sobreviveram: Tityos e o Bacanal se encontram atualmente
em Windsor, Royal Library; do Faetonte existem três versões, respectivamente em Windsor,
Londres (British Museum) e Veneza (Accademia). Em outra passagem da Vita (1568), Vasari
acrescenta à série de desenhos de apresentação para Cavalieri uma representação de Cleópa-
tra, conservada na Casa Buonarroti (a este respeito cf. P. Barocchi e G. Agosti, The Verso of
Cleopatra, Milão 1988). A prudência religiosa que caracteriza a biografia condiviana é, sem
dúvida, a justificativa mais plausível para a sua omissão dos desenhos, os quais poderiam
sugerir, em plena Roma da década de 1550, uma relação perigosamente suspeita entre Buo-
narroti e Cavalieri.
371 Esse desenho é geralmente considerado perdido, mas sua descrição encontra-se em uma
anotação manuscrita a um exemplar da Vita vasariana conservado na Biblioteca Corsiniana
de Roma (cf. Agosti e Farinella, p. 97, nota 3).
372 Cf. Symonds, II , p. 133 e seg. Em seu catálogo sobre a escritura de Michelangelo, Bardeschi
Ciulich observa como, paralelamente ao empenho estilístico, Michelangelo apura similar-
mente sua ortografia e caligrafia nas cartas a Tommaso (capítulo VII, p. 48 e seg.). Uma análo-
ga diligência reapareceria, posteriormente, nos escritos a Vittoria Colonna.
373 Cf. por exemplo Carteggio, IV, p. 340.
PERSONAGENS |
sável por supervisionar a realização do inventário relativo aos bens do mes-
tre, e, em sua presença e com seu selo, lacrou-se o baú onde o artista zelosa-
mente guardara os escudos que desejava legar a seu sobrinho, de modo a
que este pudesse permanecer intacto até a chegada deste último a Roma
(Vasari/Barocchi, IV, p. 1.848 e seg.).
Bibliografia: vide notas.
(*) — Clemente VII (Giulio de’ Medici, Florença, 1478 — Roma, 1534; papa
entre 1523 e 1534): filho ilegítimo de Giuliano de’ Medici e portanto sobri-
nho de Lorenzo Magnífico, nasce um mês após o assassinato do pai durante
a conspiração dos Pazzi. Em 1513, é nomeado arcebispo de Florença e car-
deal por seu primo Leão X. Em 1517, torna-se conselheiro do papa, transfor-
mando-se em uma das figuras mais poderosas e influentes da corte pontifí-
cia. A partir de 1519, governa Florença, procurando consolidar ali as bases
do poder dos Medici. Em novembro de 1523, é eleito papa, com grande alí-
vio da comunidade artística, oprimida pela austeridade puritana de seu an-
tecessor Adriano VI (cf. carta XIX). Seu objetivo político, assim como o de
seus antecessores italianos, era evitar a dominação estrangeira na Itália; com
esse fim, envolve-se em uma série de malfadadas alianças políticas, primei-
ramente com Carlos V contra a França, e em seguida com a França e contra
o Império (Liga de Cognac, em 1526); esta última acabaria por desembocar
no desastroso saque de Roma pelas tropas imperiais, em 1527, e em sua hu-
milhante fuga para Viterbo. A esses acontecimentos seguiu-se uma nova
aliança com Carlos V (Tratado de Barcelona), a quem Clemente acaba por
coroar Imperador em 1530. Além do terrível assédio e destruição de Roma,
o pontificado do último papa Medici presenciou uma triste série de catás-
trofes no plano bélico, político e religioso, entre as quais a derrota de Pavia e
a excomunhão do rei da Inglaterra (março de 1534), origem do cisma angli-
cano. Clemente faleceria poucos meses depois disso, vitimado por uma do-
lorosa enfermidade.
Notório patrono das artes já enquanto cardeal, encarregou diversas
obras a Rafael, Sebastiano del Piombo e Baccio Bandinelli; imediatamente
após a sua consagração, confirmou a encomenda feita a Michelangelo por
Leão X relativa à capela de San Lorenzo, e, em 1524, encarregou ao mestre a
execução da Biblioteca Laurenziana. Posteriormente, em 1533, encomen-
dou-lhe a pintura do Juízo Final no altar maior da Capela Sistina, obra que
o artista iniciaria apenas após a sua morte.
Bibliografia: L. von Pastor, vol. IV/2 (1907), segundo a tradução ingle-
sa de Frederick I Antrobus et al., vols. 9 e 10; G. F. Young, The Medici; Lon-
dres: Murray, 1910 (2 vols.), pp. 435-6 e 464-92; J. R. Hale, Florence and the
Medici: the pattern of control; Londres: Thames & Hudson, 1977; S. E. Reiss,
“Cardinal Giulio de’ Medici as a patron of art”; Princeton University Press
(dissertação), 1992; A. Prosperi, entrada “Clemente VII” no Dizionario bio-
(*) — Vittoria Colonna (Marino, ca. 1490 — Roma, 1547), marquesa de Pes-
cara: provavelmente nenhuma das amizades que Michelangelo cultivou ao
longo de sua vida, nem mesmo aquela com Tommaso Cavalieri, tenha sido
com tanta freqüência objeto de estudo por parte de estudiosos do Oitocen-
tos e do Novecentos quanto a que unia o artista a Vittoria Colonna. À mar-
gem do desenvolvimento de uma acurada investigação histórica, filosófica,
teológica e artística, a relação entre Buonarroti e a marquesa originou o sur-
gimento de uma reconstrução quase mítica, em chave artística e poética, da
sua amizade, sendo inumeráveis as citações, os poemas e as pinturas que
idealmente os representam.
Michelangelo e Vittoria conhecem-se, muito provavelmente, em 1536,
encontrando-se o mestre já permanentemente estabelecido em Roma.374
Pertencente a uma das mais antigas famílias da nobreza romana, filha do
príncipe Fabrizio Colonna, comandante dos exércitos espanhóis a serviço
do papa Júlio II, e neta por parte de mãe do grande condottiere Federigo da
Montefeltro, Vittoria casa-se em 1509 com Ferrante d’Avalos, marquês de
Pescara, um dos mais célebres e capazes generais do imperador Carlos V, que
viria a falecer em dezembro de 1525 em conseqüência de uma ferida infligi-
da durante a batalha de Pavia, em fevereiro do mesmo ano. Durante os pri-
meiros meses de sua viuvez, refugia-se no convento romano de San Silvestro
in Capite; por ocasião do saque, contudo, desloca-se para seu castelo fami-
liar, em Ischia, abandonando-o em 1531 devido a uma epidemia de peste.
Dirige-se primeiramente a Arpino e, de lá, a Roma, onde permanece até
1537, época em que inicia um período de viagens por Bolonha, Florença,
Pisa e Lucca. Em 1538, retorna a Roma; o antagonismo entre o papa e a fa-
mília Colonna, porém, intensifica-se em fins dos anos 1530, o que a leva a
refugiar-se primeiramente no convento de San Paolo em Orvieto, e em se-
guida em Santa Caterina, Viterbo. Em 1544, regressa a Roma, instalando-se
no convento de Santa Ana, onde transcorrem seus últimos anos.
Poeta e intelectual, culta, inteligente e dotada de uma extraordinária
capacidade de influenciar os demais, Vittoria, longe de levar uma vida reclu-
374 Mais de um estudioso moralista do século XIX assumiu que Michelangelo e Vittoria ha-
viam-se conhecido em 1533 — data extremamente improvável, visto não residir a marquesa
em Roma —, propondo, de maneira completamente infundada, que as cartas e os poemas
escritos a Tommaso Cavalieri eram na realidade endereçados a ela (Guasti, p. XXII e seg.;
Milanesi, p. 468, n. 2; A. Gotti, Vita di Michelangelo, narrata con l’aiuto di nuovi documenti;
Florença: Gazzetta d’Italia, 1875 [2 volumes], I, pp. 231-4, entre outros). Ainda no Oitocentos,
porém, alçaram-se vozes de protesto contra essa absurda proposta (P. Fanfani, Spigolatura
michelangiolesca; Pistoia: Cino, 1876, p. X, e Symonds, II, pp. 133 e 137).
PERSONAGENS |
sa durante os anos de residência conventual, posicionava-se no epicentro
das principais discussões artísticas, filosóficas, literárias e teológicas do mo-
mento. Entre os intelectuais com quem manteve uma relação de amizade,
atestada no mor das vezes por seu vastíssimo epistolário, contam-se Paolo
Giovio (que a seu respeito escreveu que superava todas as mulheres, assim
como Roma superava todas as cidades), Lodovico Dolce, Marcantonio Fla-
minio, Ariosto, Bernardo Tasso, Giulia Gonzaga e o cardeal Giberti. Entre
seus amigos encontravam-se diversos seguidores da assim chamada Refor-
ma Católica375 propagada pelos capuchinhos, os spirituali, relacionados
principalmente às doutrinas de Juan de Valdés e Bernardino Ochino, as
quais, sob muitos aspectos, roçavam o protestantismo. Um dos conceitos
fulcrais do círculo de Valdés, que se havia estabelecido em Nápoles em 1534,
era o da sola fide, a justificação somente pela fé. Segundo essa idéia, já ante-
riormente expressada por Savonarola em seu Trattato dell’Umiltà, a salvação
da alma humana independe completamente das obras ou práticas religiosas,
sendo somente a fé outorgada pela divindade capaz de infundir a graça.376
Essa doutrina se reflete, parcialmente, em muitos dos poemas escritos
pela marquesa. Suas Rime compreendem, como sistematicamente vêm no-
tando os estudiosos, três grupos: primeiramente, o dos poemas de amor,
dedicados à memória de Ferrante; os assim chamados epistolares, i. e., com-
posições escritas ao longo de sua vida que dizem respeito a acontecimentos
pessoais ou relativos a amigos e familiares, como por exemplo a morte de
um parente; e os espirituais, possivelmente o grupo mais numeroso, os quais,
embora inicialmente relacionados ao marido, paulatinamente vão assumin-
do um teor puramente religioso, profundamente inspirado pelas correntes
espirituais reformistas.
375 Normalmente há uma certa confusão entre os termos Reforma Católica e Contra-Refor-
ma, por oposição, ambos, à Reforma Protestante. A expressão Reforma Católica, utilizada já
no Quinhentos e retomada no século XX pelo historiador Hubert Jedin, veio contempora-
neamente designar todas as iniciativas que, desde princípios do Quatrocentos, buscavam
uma renovação da sociedade cristã e uma reforma moral da Igreja in capite et in membris; por
Reforma Católica, aqui, refiro-me especificamente ao movimento de renovação da Igreja
compreendido no arco temporal dos anos 1530-1540, que precede portanto o Concílio de
Trento e a Contra-Reforma propriamente dita, e que, contrariamente a esta última, tende a
identificar-se com certos aspectos da Reforma Protestante.
376 Cf. por exemplo a carta enviada em 1542 por Marcantonio Flaminio, um dos melhores
amigos de Vittoria, a Carlo Gualteruzzi: “Io non saprei proporvi libro alcuno (non parlo
della Scrittura santa) che fusse più utile di quel libretto De imitatione Christi [famosíssimo
livro de piedade], volendo voi leggere non per curiosità, nè per saper ragionare e disputare
delle cose cristiane, ma per edificare l’anima vostra e attendere alla prattica del viver cristia-
no, nella qualle consiste tutta la somma, come l’uomo ha accettato la grazia dell’Evangelio, cioè
la giustificazione per la fede” (Ferrero, p. 306). A relação entre Vittoria e a doutrina da sola fide
seria explorada, anos mais tarde, pelo tribunal da Inquisição (cf. Ferrero e Müller — vide
bibliografia).
PERSONAGENS |
Patiens, portanto, Michelangelo representa-o ainda vivo; os olhos voltados
ao céu, a expressão facial de sofrimento e a violenta torção muscular, toma-
das de empréstimo ao Laocoonte, corroboram a afirmação condiviana se-
gundo a qual o artista tinha em mente as últimas palavras de Cristo de acor-
do com o Evangelho segundo São Mateus: “Senhor, Senhor, por que me
abandonaste?” (Mt. 27,50).379 Essa até então assaz inusual representação, a
qual haveria de determinar um novo rumo para as imagens de Cristo na
cruz durante os decênios seguintes, relaciona-se com o círculo valdesiano
na medida em que sublinha o aspecto sacrificial da morte de Cristo, fulcral
na doutrina da sola fide.380 A teologia cristocêntrica de Valdés e Ochino
transparece, ainda, na Pietà ofertada à marquesa pelo artista, onde a ênfase
parece recair na fé exemplar da Virgem.
Ao lado das próprias cartas, dos poemas e dos desenhos, diversos são
os testemunhos contemporâneos da profunda amizade existente entre Buo-
narroti e a marquesa, sendo particularmente célebres os Diálogos em Roma
de Francisco de Holanda, nos quais o artista português relata os encontros
entre ele próprio, Lattanzio Tolommei, Vittoria e Buonarroti em S. Silvestro
em Montecavallo (atual Quirinale), onde residia a marquesa.381 Vasari e
Condivi, ainda, testemunham o “onesto e dolcissimo amore” que Buonarroti
nutria por Vittoria, sendo particularmente significativa a passagem condi-
viana:
379 Para a interpretação teológica dessas palavras desde a patrística até o século XX cf. o estu-
do de L. Mahieu, “L’abandon du Christ sur la croix”; Mélanges de Science Religieuse, vol. 2,
1945, pp. 209-42.
380 Para uma interpretação diversa do desenho do British Museum cf. a tese doutoral de
Reiner Haussherr, “Michelangelos Kruzifixus für Vittoria Colonna”; Opladen: Westdeutscher
Verlag, 1971. O estudioso relaciona a obra buonarrotiana com o que aponta ser outro impor-
tante tema de discussão nos círculos de Valdés e Ochino, a saber, a Gottverlassenheit, o aban-
dono divino, o qual desde a Idade Média suscitara enormes problemas teológicos, uma vez
que parece contradizer o princípio da unio hypostatica, a união indissolúvel entre Deus, Cris-
to e o Espírito Santo. De acordo com Haussherr, no âmbito valdesiano as palavras de Cristo
assumiriam um valor metafórico, aludindo, em plena crise religiosa de princípios dos anos
1540, ao abandono da Igreja.
381 Trata-se, no total, de quatro diálogos; Buonarroti participa dos três primeiros.
382 A dolorosa despedida michelangiana de Vittoria descrita por Condivi, durante a qual o
mestre deferentemente beija-lhe as mãos, vindo posteriormente a arrepender-se de não lhe
haver beijado a fronte ou a face, tornar-se-ia célebre durante os séculos posteriores, especial-
mente o XIX; cf. por exemplo a tela de Francesco Jacovacci no Museu Capodimonte em Ná-
poles (1880), que representa esse momento.
PERSONAGENS |
propria et antichità, sì per aver fatto parentado col sangue imperiale”.383 Uma
outra característica bastante particular do texto condiviano, a qual cimenta
a hipótese da direta intervenção buonarrotiana na sua elaboração, é a insis-
tência na concepção de um Michelangelo quase autodidata, omitindo-se
por exemplo quaisquer menções ao ateliê de Ghirlandaio, onde o artista foi
pela primeira vez profissionalmente instruído nas artes do desenho (Condi-
vi, inclusive, chega a acusar Ghirlandaio de ser “invidiosetto” em relação ao
promissor Buonarroti). A Vita condiviana indubitavelmente serviu como
fonte para a segunda edição da biografia vasariana (1568), a qual dela extrai
especialmente fatos relativos à parte inicial da vida do artista; esses dois tex-
tos, somados à correspondência, formam a grande tríade sobre a qual se
assenta a reconstrução da biografia de Michelangelo.
Bibliografia: A Vita condiviana foi originalmente publicada em Roma
com os tipos de Antonio Blado, tendo sido reeditada em Florença, em 1746,
por A. F. Gori. A edição aqui utilizada é a da casa editorial florentina Barbè-
ra (1860). Para publicações modernas do texto vide E. Spina Barelli (Milão:
Rizzoli, 1964) e mais recentemente G. Nencioni (Florença: SPES, 1998). Cf. G.
Settimo, Ascanio Condivi, biografo di Michelangelo; Ascoli Piceno: G. Cesari,
1975; J. Wilde, “Michelangelo, Vasari and Condivi”, in Michelangelo, six lectu-
res; Oxford: Clarendon, 1978, pp. 1-16 (de acordo com esse estudioso, o texto
condiviano teria sido na realidade redigido por Annibale Caro); e U. Procac-
ci, “Postille contemporanee in un esemplare della Vita di Michelangiolo del
Condivi”, in Atti del Convegno di Studi Michelangioleschi (Florença, Roma,
1964); Roma, Ateneo, 1966, pp. 279-94, que examina um exemplar manuscrito
cinquecentesco da Vita condiviana cujas marginalia registram comentários
de Michelangelo; para Antonio Blado, vide G. L. Masetti Zannini, Stampato-
ri e librai a Roma nella seconda metà del cinquecento; Roma: Fratelli Palombi,
1981, I, pp. 61-84.
383 Para a relação de parentesco entre Michelangelo e a família Canossa, cf. carta XLV, envia-
da em 1546 a Leonardo. Segundo as próprias palavras de seu autor, o texto condiviano preten-
de corrigir a biografia torrentiniana de Vasari: “[...] sono stati alcuni che scrivendo di questo
raro uomo, per non averlo (come credo) così praticato come ho fatto io, da um canto n’hanno
dette cose che mai non furono, dall’altro lassatene molte di quelle che son dignissime d’esser
notate” (prefácio, pp. 8-9). Em 1568, Vasari, por sua vez, rebateria a insinuação: “[...] chi ha
scritto la Vita sua dopo l’anno 1550, che io scrissi queste Vite la prima volta, dicendo che alcu-
ni per non averlo praticato n’han detto cose che mai non furono e lassatone di molte che son
degne d’essere notate [...] né so che nessuno l’abbi più praticato di me e che gli sia stato più
amico e servitore fedele, come n’é testimonio fino chi nol sa; né credo che ci sia nessuno che
possa mostrare maggior numero di lettere scritte da lui proprio, né con più affetto che egli ha
fatto a me” (Vasari/Barocchi, I, pp. 6-7).
(*) — Giovan Francesco Fattucci, capelão de Santa Maria dei Fiori, amigo e
agente de Michelangelo em Roma em relação aos trabalhos em San Lorenzo
e à tumba de Júlio II. As datas de seu nascimento e de sua morte não são
seguras, mas acredita-se que esta última tenha ocorrido na segunda metade
PERSONAGENS |
da década de 1550, já que em 1553 Michelangelo menciona-o pela última vez
(notadamente em uma carta a seu irmão Lionardo, escrita em 24 de outubro
desse ano). Quanto ao seu nascimento, supõe-se que tenha sido aproxima-
damente contemporâneo ao de Michelangelo (cf. a frase final da carta LIII,
enviada pelo artista a Giovan Francesco em 1550: “Estou como sempre, su-
portando com paciência as privações da velhice; acredito que fazeis o mes-
mo”). Buonarroti e Fattucci escrevem-se principalmente entre 1523 e 1526,
período em que este último representa Michelangelo ante Clemente VII e os
herdeiros do papa Júlio II, negociando com eles o terceiro contrato para a
sepultura.
Bibliografia: Vide Ramsden, I, p. xli e seg.
(*) — Donato Giannotti (ou Gianotti; Florença 1492 — Florença 1573): lite-
rato florentino e ardente republicano, exila-se após a queda da República em
Roma, onde, pondo-se a serviço do cardeal Ridolfi, torna-se um dos mais
destacados membros do grupo de fuorusciti — capitaneados em Roma por
Filippo Strozzi e os cardeais Ridolfi e Salviati — e um dos principais intelec-
tuais do círculo no qual se movia Michelangelo. Entre suas obras mais reno-
madas encontram-se — além de importantes traduções do grego, como a
das Memorabilia de Xenofonte — o tratado Della repubblica fiorentina, com-
posto na primeira metade dos anos 1530, o Libro della repubblica de’ Vinizia-
ni (1526), e os Dialogi de’ giorni che Dante consumò nel cercare l’Inferno e
l’Purgatorio, redigidos, muito provavelmente, durante a primeira metade de
1546. Trata-se do relato de dois diálogos ocorridos em Roma — dos quais
participam, além do próprio Donato, Luigi del Riccio, Michelangelo e os
intelectuais fuorusciti Antonio Petreo e Francesco Priscianese (cf. ed. de Re-
dig de Campos, pp. 12-5) — nos quais se discutem questões relativas à Divi-
na Comédia, nomeadamente quanto exatamente durou a viagem de Dante
pelo Inferno e Purgatório. Analogamente aos Diálogos em Roma de Francis-
co de Holanda, há certas dúvidas quanto à autenticidade desses diálogos;
dada, entretanto, a longa e estreita amizade que unia Michelangelo a Dona-
to (da qual não restaram cartas, mas sim diversos testemunhos contemporâ-
neos), assim como a relativa coincidência entre as opiniões expressas pelo
artista nos Dialogi e em outras fontes relacionadas ao mestre, entre as quais
seus próprios escritos, diversos pesquisadores, desde o século XIX até o mo-
mento presente, vêm utilizando a obra giannotiana como uma das fontes
indispensáveis para os estudos da vida, do caráter e das concepções artísti-
co-literárias de Michelangelo.
Bibliografia: Para os Dialogi, cf. as edições de Deoclecio Redig de
Campos; Florença: Sansoni, 1939 (primeira publicação, parcialmente reim-
pressa em Guasti, pp. XXVI-XXXIV), e Joke Frommel — Haverkorn van
Rijsewijk (traduzida ao alemão); Amsterdam: Castrum Peregrini, 1968. So-
bre sua biografia cf. Roberto Ridolfi, “Nuovi contributi alla biografia di
PERSONAGENS |
Donato Gianotti”, in Lettere a Piero Vettori (ed. R. Ridolfi e C. Roth); Flo-
rença: Vallecchi, 1932, pp. 3-40; e, igualmente de Ridolfi, Altri contributi alla
biografia di Donato Giannotti; Florença: Vallecchi, 1935. A principal compi-
lação das obras giannotianas continua sendo a de F. L. Polidori, Opere poli-
tiche e letterarie; Florença: Felice Le Monier, 1850 (2 vols.); para suas obras
políticas cf. a edição de Furio Diaz Opere politiche di Donato Giannotti; Mi-
lão, 1974, e, para seu epistolário, vide R. Randolph, Donato Giannotti and his
epistolae; Genebra, 1968. Cf. ainda Bardeschi Ciulich, capítulo IX, para ano-
tações giannottianas em manuscritos contendo poemas de Michelangelo.
(*) — Júlio II (Giuliano della Rovere; Albissola, 1443 — Roma, 1513, papa
entre 1503 e 1513): membro de uma das mais tradicionais famílias italianas
do Quatrocentos, torna-se cardeal de San Pietro in Vincoli em 1471. Em 1503
sucede Pio III no trono pontifício — que havia ocupado apenas por alguns
dias — dando início a uma verdadeira revitalização do Vaticano, e transfor-
mando-o uma vez mais em um dos mais poderosos estados europeus. Seu
objetivo primordial foi o de reconsolidar o poder de facto do estado pontifí-
cio nos territórios eclesiásticos do norte da Itália; em 1506, participando pes-
soalmente das campanhas militares, obteve a rendição de Perugia de Gian
Paolo Baglioni e expulsou os Bentivoglio de Bolonha. De regresso a Roma,
Júlio II — cujo nome aludia simultaneamente a César e ao papa S. Júlio
(337-352) — é aclamado como um segundo César pela população, enquan-
to atravessa uma série de arcos triunfais. Une-se à Liga de Cambrai contra
Veneza, em 1509, obtendo desta Rimini e Faenza; em seguida, preocupado
com o crescimento do poder francês na Itália, volta a aliar-se com Veneza,
Espanha e Inglaterra na Santa Liga, contra a França. Em 1510, ataca o duque
de Ferrara, aliado do rei da França, e ocupa Modena (1511) e Mirandola
(1512). Em 1512, consegue obter a restauração dos Medici em Florença.
Paralelamente aos seus êxitos políticos e militares, Júlio II promoveu
um espetacular programa de renovação urbanística em Roma, destinado a
transformá-la em um magnífico espelho do poder da Igreja. Seu objetivo era
transformar a Santa Sé numa Roma renovada, cujo esplendor emularia e
mesmo superaria o da antiga capital imperial, a qual intensamente admira-
va; com esse fim, propõe a remodelação de várias igrejas, entre as quais San-
ta Maria del Popolo; reforma várias ruas e constrói outras, como a Via Giulia
e a Via della Lungara; no Vaticano, encarrega a Bramante a reconstrução de
San Pietro e do Cortile Belvedere, sendo neste último alojada sua magnífica
coleção de esculturas antigas, a qual incluía o Apollo Belvedere e o Laocoonte,
descoberto em 1506 e imediatamente adquirido pelo papa. Idealiza, ainda,
uma soberba redecoração pictórica do palácio vaticano, encarregando a Ra-
fael as stanze e a Michelangelo, o teto da Capela Sistina.
De acordo com o testemunho de Vasari e Condivi, sua relação com
Buonarroti foi conflitante, o que não é absolutamente de estranhar, tendo
(*) — Leão X (Giovanni de’ Medici; Florença, 1475 — Roma, 1521, papa en-
tre 1513 e 1521): segundogênito de Clarice Orsini e Lorenzo Magnífico, é, de
acordo com a tradição, destinado à carreira eclesiástica (seu irmão mais ve-
lho, Piero, herdaria a posição política do pai). Seus tutores foram nada me-
nos que os humanistas que freqüentavam os jardins de San Marco, entre os
quais Angelo Poliziano, Pico della Mirandola e Marsilio Ficino. Em 1492,
com apenas 17 anos, é nomeado cardeal pelo papa Inocente VIII. Em 1512,
sua família recupera o poder em Florença, e, em 1513, quando da morte de
Júlio II, Giovanni é eleito papa. Contrariamente a Júlio II e Clemente VII,
Leão X não padeceu os infortúnios de guerras de grande magnitude na Itália
durante seu pontificado — o qual, por esta razão, é muitas vezes considerado
uma época áurea, um breve intervalo de (relativa) paz em meio à turbulên-
cia política que caracteriza a primeira metade do Quinhentos. Há uma espé-
cie da cisma no que concerne à imagem de Leão X desde o próprio século
XVI até o momento presente: enquanto alguns o consideram puramente um
hedonista a quem faltavam tanto pulso quanto visão política (Sanuto, Pas-
tor), outros assinalam que, sob o verniz de uma aristocrática indolência,
Giovanni guardava uma real potência e privilegiada agilidade no plano po-
lítico (Pennachini, Luzio, Nitti, Picotti, Berenci), tendo sido capaz de preser-
var habilmente tanto a Santa Sé quanto o poder da casa medicea.
Assim como seu pai, Leão X dedicou grande parte de seu tempo e
energia ao desenvolvimento das artes e da ciência; sob seu patronato, deu-se
continuidade a diversos empreendimentos artísticos iniciados sob Júlio II,
notadamente as stanze vaticanas e a catedral de San Pietro. Leão X emulou
seu predecessor, ainda, em seu empenho em preservar e embelezar Roma:
realizou diversas obras urbanísticas na cidade, como a extensão da Via Ales-
PERSONAGENS |
sandrina, encarregada a Giuliano da Sangallo; ordenou a construção de ca-
pelas e a reforma de igrejas, incluindo Santa Maria Maggiore e Santa Maria
sopra Minerva, e nomeou Rafael “Romanarum Antiquitatum Praes”, tornan-
do-o responsável pela conservação das antiguidades romanas e pela super-
visão de escavações. Sua relação com Michelangelo, a quem conhecera du-
rante sua primeira juventude no Palácio Medici em Florença, era ambígua:
embora, segundo diversas fontes, o papa nutrisse um grande afeto e uma
admiração incondicional pelo mestre, ao mesmo tempo receava seu gênio
difícil e parecia preferir mantê-lo a uma certa distância da Cúria, onde Ra-
fael levava a batuta.384 Em 1516, encarrega-lhe a execução da fachada da
igreja de San Lorenzo em Florença, a qual jamais seria concretizada, e, em
1519, encomenda-lhe a realização arquitetônica e escultórica da capela me-
dicea, na sacristia da mesma igreja, projeto que seria levado adiante durante
o pontificado de seu primo Clemente VII.
Bibliografia: L. Pastor, vol. IV/1 (1906); segundo a tradução inglesa,
vols. VII e VIII (1908); G. B. Picotti, La giovenezza di Leone X; Milão: Hoepli,
1927; E. Rodocanachi, Histoire de Rom: le pontificat de Léon X; Paris: Hachet-
te, 1931; C. Falconi, Leone X, Giovanni de’ Medici; Milão: Rusconi, 1987. Cf.
entrada correspondente em Oxford dictionary of popes e Papacy (vol. II).
(*) — Paulo III (Alessandro Farnese; Canino, 1468 — Roma, 1549; papa en-
tre 1534 e 1549): educa-se na universidade de Pisa, e, posteriormente, na cor-
te de Lorenzo de’ Medici, onde, muito provavelmente, trava conhecimento
com o jovem Michelangelo. Em 1493, Alexandre VI (Borgia) nomeia-o car-
deal diácono (dizia-se que por influência de sua irmã, Giulia Farnese, então
amante do papa). Durante esses anos tem três filhos e uma filha — sendo os
meninos legitimados durante os pontificados de Júlio II e Leão X — aos
quais perseverantemente trataria de favorecer, provocando não poucas acu-
sações de nepotismo (seu filho Pier Luigi, a quem outorgaria o ducado de
Parma e Piacenza, seria assassinado em 1549 por Ferrante Gonzaga, go-
vernador de Milão). Eleito em 1534, é freqüentemente considerado como o
primeiro pontífice firmemente comprometido com a reforma da Igreja Ca-
tólica:385 preside a aprovação da Companhia de Jesus (1540), reinstaura a
Inquisição (1542), impulsiona o Concílio de Trento (1545-1563) e procura
efetivar os decretos reformistas estabelecidos durante o quinto concílio late-
rano (1512-1517). Concentra-se, igualmente, nas obras de reconstrução de
Roma, destruída e debilitada desde o saque de 1527: remodela diversos palá-
cios semi-arruinados, reergue a universidade, amplia praças (a começar por
aquela diante de seu próprio palácio familiar, erigido por Sangallo), e cons-
trói novas ruas, como a Via Paulina ou a Via del Babuino. É com esse intuito
385 Asserção, no entanto, contestada por diversos estudiosos; cf. por exemplo o Oxford dictio-
nary of popes, p. 261 e seg.
PERSONAGENS |
que dá prosseguimento às obras de reconstrução da Basílica de San Pietro,
cujo desenho encarrega em 1546 a Michelangelo, e inicia a espetacular re-
construção da Piazza del Campidoglio, também projetada por Buonarroti.
Restaura, ainda, a universidade romana e aumenta consideravelmente a bi-
blioteca vaticana. Em 1536, revive as festas de carnaval. No plano político,
procura manter-se neutro ante o conflito entre os arqui-rivais Carlos V e
Francisco I, sem no entanto deixar de considerar a França como um contra-
peso à predominância imperial na Itália; por outro lado, procura fortalecer
a defesa da península ante o poder naval otomano, que ameaçava as costas
italianas e as posições cristãs do leste.
Assim como Júlio II, Leão X e Clemente VII, Paulo III era um profun-
do conhecedor e amante das artes, e um dos maiores mecenas do século
XVI. A relação entre Michelangelo e o papa parece ter sido extremamente
amigável e afetuosa, como demonstram diversos trechos das cartas buonar-
rotianas (essas passagens, assim como alguns comentários de estudiosos do
Setecentos e do Oitocentos acerca da relação entre o artista e o papa, são
citadas em Vasari/Barocchi, III, nota 545, p. 1190). O papa, por sua vez, pare-
ce ter feito tudo o que estava a seu alcance para honrar e favorecer o mestre:
em setembro de 1535 nomeia-o supremo arquiteto, pintor e escultor do Va-
ticano (idem, nota 547, pp. 1192-6); em novembro de 1536 publica um motu
proprio liberando-o de quaisquer obrigações relativas aos trabalhos na tum-
ba enquanto estivesse trabalhando no Juízo Final; e em 1540 publica dois
outros motu proprio absolvendo-o de quaisquer acusações levantadas pela
guilda de marmoreiros romana (Tolnay, V, p. 7).
Bibliografia: L. Pastor, vol. V (1909); L. Dorez, La cour du Pape Paul III
(2 vols.); Paris, 1932; W. H. Edwards, Paul der Dritte, oder der geistliche Ge-
genreformation; Leipzig: Hegner, 1933; R. Harprath, Papst Paul III als Alexan-
der der Grosse: Das Freskenprogram der Sala Paolina in der Engelsburg; Ber-
lim, Nova Iorque: de Gruyter, 1978. Cf. entrada correspondente em Oxford
dictionary of popes e Papacy (vol. II).
(*) — Sebastiano Luciani, conhecido como del Piombo (Veneza [?], ca. 1485
— Roma, 1547): pintor. Discípulo de Giovanni Bellini e posteriormente
de Giorgione, dirige-se, quando da morte deste último, em 1510, a Roma,
onde se põe a serviço dos Chigi, dando início a uma década de intensa
atividade; desse período são por exemplo a Morte de Adônis nos Uffizi e
a Pietà — cujo cartão havia sido realizado por Michelangelo — do Mu-
seo Civico de Viterbo. O sucesso desta última leva o mercador florentino
Pierfrancesco Borgherini a encarregar Sebastiano, em 1516, da decora-
ção de sua capela familiar em San Pietro in Montorio, Roma; sabe-se que
Michelangelo igualmente forneceu o desenho — o qual se conserva no
British Museum — para a Flagelação, assim como o esboço inicial da
Transfiguração.
386 Sebastiano relata a Michelangelo o episódio de sua nomeação em uma carta de novembro
de 1531; cf. Carteggio, III, pp. 342-4.
387 Na Vita de Sebastiano, Vasari relaciona a associação entre Sebastiano e Michelangelo à
crescente rivalidade entre este último e Rafael, cujo colorido teria sido julgado superior ao de
Buonarroti: “[…] era venuto in tanto credito Raffaello da Urbino nella pittura, che gli amici
et aderenti suoi dicevano che le pitture di lui erano, secondo l’ordine della pittura, più che
quelle di Michelagnolo vaghe di colorito, belle d’invenzioni e d’arie più vezzose e di corri-
spondente disegno, e che quelle del Buonarroti non avevano, dal disegno in fuori, niuna di
queste parti. E per queste cagioni giudicavano questi cotali Raffaello essere nella pittura, se
non più eccellente di lui, almeno pari, ma nel colorito volevano che ad ogni modo lo passasse.
Questi umori, seminati per molti artefici che più aderivano alla grazia di Raffaello che alla
profondità di Michelagnolo, erano divenuti per diversi interessi più favorevoli nel giudizio a
Raffaello che a Michelagnolo. Ma non già era de’ seguaci di costoro Sebastiano, perché, essen-
do di squisito giudizio, conosceva a punto il valore di ciascuno. Destatosi dunque l’animo di
Michelagnolo verso Sebastiano, perché molto gli piaceva il colorito e la grazia di lui, lo prese
in protezzione, pensando che, se egli usasse l’aiuto del disegno in Sebastiano, si potrebbe con
questo mezzo, senza che egli operasse, battere coloro che avevano sì fatta openione, et egli
sotto ombra di terzo giudicare quale di loro fusse meglio” (Vasari/Barocchi, I, pp. 239-40).
PERSONAGENS |
National Gallery de Londres. A idéia de uma espécie de aliança toscano-ve-
neziana materializando-se na colaboração entre Michelangelo e Sebastiano,
ou entre a perfeição do desenho e a graciosidade do colorido, e do significa-
tivo embate entre esta e Rafael, parece ter sido, de resto, um topos já na pri-
meira metade do Quinhentos, manifestando-se por exemplo no Aretino de
Dolce,388 mas também, como visto acima, na Vita vasariana; essa associação,
contudo, por essas mesmas fontes, jamais foi concebida de maneira equili-
brada, apresentando-se Sebastiano, mais que aliado, como êmulo de Miche-
langelo — cujo verdadeiro rival, e portanto igual, era Rafael. Com a morte
deste último, em 1520, Michelangelo procura, sem êxito imediato, obter para
Sebastiano encomendas inicialmente destinadas a Sanzio (cf. a carta XVI, ao
cardeal Bibbiena, e Vasari/Barocchi, I, pp. 241-2). Os dois parecem ter-se de-
sentendido em algum momento entre fins de 1535 e princípios de 1536,
quando, segundo o narrado por Vasari, Sebastiano teria ordenado, contra a
vontade de Michelangelo, que a parede da Sistina destinada ao Juízo Final
fosse preparada para pintura a óleo, e não a fresco: “[...] avendosi a dipigner
la faccia della Cappella del Papa, dove oggi è il Giudizio di esso Buonarroto,
fu fra loro [Michelangelo e Sebastiano] alquanto di sdegno, avendo persuaso
fra’ Sebastiano al Papa che la facesse fare a Michelagnolo a olio, là dove esso
non voleva farla se non a fresco. Non dicendo dunque Michelagnolo né sì né
no et accociandosi la faccia a modo di fra’ Sebastiano, si stette così Michela-
gnolo senza metter mano all’opera alcuni mesi; ma essendo pur sollecitato,
egli finalmente disse che non voleva farla se non a fresco e che il colorire a
olio era arte da donna e da persone agiate et infingarde come fra’ Bastiano”;
de acordo com o aretino, ainda, Michelangelo jamais esqueceria “l’ingiuria
che gli pareva avere ricevuta da fra’ Sebastiano, col quale tenne odio quasi
fin alla morte di lui”.389
Bibliografia: Dussler, L., Sebastiano del Piombo; Basel: Holbein Verlag,
1942; R. Pallucchini, Sebastian Viniziano; Milão: Mondadori, 1944; M. Lucco,
Sebastiano del Piombo; opera completa; Milão: Rizzoli, 1980; M. Hirst, Se-
bastiano del Piombo; Oxford: Clarendon, 1981, em especial o capítulo 3,
“The collaboration with Michelangelo and the Pietà for Viterbo” (pp. 41-8).
(*) — Rafael Sanzio (ou Santi; Urbino, 1483 — Roma, 1520): pintor e arqui-
teto. Juntamente com Leonardo da Vinci, Michelangelo e Tiziano, foi um
388 Cf. M. W. Roskill, Dolce’s “Aretino” and venetian art theory of the Cinquecento; Nova Iorque:
New York University Press, 1968, pp. 94-5.
389 A anedota, narrada na Vita de Sebastiano del Piombo (Vasari/Barocchi, I, p. 243), encon-
tra um interessante eco na passagem dos Diálogos de Francisco de Holanda — os quais como
se sabe precedem a primeira edição torrentiniana — em que, ao discorrer sobre o valor das
obras de arte na Itália, Buonarroti refere-se a Sebastiano del Piombo como “preguiçoso pin-
tor” (Holanda/Mendes, p. 66).
PERSONAGENS |
intensa atividade pictórica, Rafael empenhou-se também em diversas em-
presas arquitetônicas, entre as quais a Villa Madama e a capela dos Chigi em
Santa Maria del Populo; em 1514, ainda, foi nomeado por Leão X um dos
arquitetos-chefes da fábrica de San Pietro, cargo que passaria a ocupar soli-
tário a partir do ano seguinte (cf. carta XLVI). Sanzio falece, prematuramen-
te, aos 37 anos, sendo honrado com um autêntico funeral de Estado e sepul-
tado nada menos que no Pantheon romano.
Sem dúvida, a rivalidade entre Rafael e Michelangelo, assim como
aquela, correlata, entre Buonarroti e Bramante, é um dos pilares fundamen-
tais da construção do mito michelangiano do Quinhentos até os nossos dias.
Em ambos os casos, há tanto coincidências quanto discrepâncias entre o
narrado por Vasari, Condivi e pelo próprio Michelangelo. Na carta a um
monsenhor, de 1542, Buonarroti afirma que tudo o que Sanzio sabia sobre a
arte havia aprendido dele (carta XXXIX), convicção corroborada por Condi-
vi em 1553: “Raffael da Urbino, quantunque volesse concorrer com Michela-
gnolo, più volte ebbe a dire che ringraziava Iddio d’esser nato al suo tempo;
avendo ritratta da lui altra maniera di quella che dal padre, che dipintor fu,
e dal erugino suo maestro avea imparata” (LXII, p. 121).391 Entre 1508 e 1512,
como se sabe, Rafael e Michelangelo trabalharam concomitantemente no
Vaticano — o primeiro nas stanze, e o segundo na Sistina; praticamente
desde então, a crítica vem procurando indicar citações buonarrotianas nas
pinturas de Rafael, contando-se provavelmente entre as mais evidentes o
Profeta Isaias da igreja de S. Agostinho, em Roma, e Deus aparecendo ante
Moisés, na abóbada da stanza d’Eliodoro.392 Embora não haja quaisquer tes-
391 A idéia de que Rafael tivesse abandonado a maniera de Perugino para seguir a de Miche-
langelo reaparece em uma carta que Sebastiano del Piombo envia a Buonarroti, na qual narra
ao artista o que lhe teria dito Leão X: “Guarda l’opere di Rafaelo, che come vide le opere di
Michelagniolo subito lassò la maniera del Perosino, e quanto più poteva si acostava a quella
di Michelagniolo” (cf. nota 50), e ainda na própria Vita vasariana de Sanzio: “Ma tornando a
esso Raffaello, gli fu col tempo di grandissimo disaiuto e fatica quella maniera che egli prese
di Pietro [Perugino], quando era giovanetto, la quale prese agevolemente, per essere minuta,
secca e di poco dissegno; perciò che, non potendosela dimenticare, fu cagione che con molta
difficultà imparò la bellezza degl’ignudi et il modo degli scorti difficili dal cartone che fece
Michelagnolo Buonarroti per la Sala del Consiglio di Fiorenza. Et un altro che si fusse perso
d’animo, parendogli avere insino allora gettato via il tempo, non arebbe mai fatto, ancor che
di bellissimo ingegno, quello che fece Raffaello, il quale, smorbatosi e levatosi da dosso quella
maniera di Pietro per apprender quella di Michelagnolo, piena di difficultà in tutte le parti,
diventò quasi di maestro nuovo discepolo e si sforzò con incredibile studio di fare, essendo
già uomo, in pochi mesi quello che arebbe avuto bisogno di quella tenera età che meglio ap-
prende ogni cosa, e de lo spazio di molti anni [...]” (apud Vasari/Barocchi, I, pp. 219-20). A
imagem de um Rafael agradecendo aos céus por ter nascido na mesma época que Michelan-
gelo, por sua vez, reaparece na oração fúnebre varchiana de 1564.
392 Já no Quinhentos, porém, escritores como Dolce e Pino reagiram veementemente à con-
cepção de um Rafael emulador de Michelangelo, assim como diversos rafaelistas dos séculos
subseqüentes, notadamente Bellori: “È cosa stabile e costante la fama che Raffaelle ingrandisse
e megliorasse la sua maniera dall’aver veduto le opere di Michelangelo, che nel passato secolo e
nel presente non vi fu né vi è oggi alcuno, o pittore o studioso di pittura, che non l’approvi ne’
discorsi […] Tale opinione s’insinuò negli animi dalla lettura di Giorgio Vasari, che noi in-
tendiamo rifiutare come non vera e senza ragione, ancorché egli in ogni periodo de’ suoi scritti
la celebri e si studi con ogni suo potere di propagarla, non ad altro fine che di sottomettere
Raffaelle e donare il primato a Michelangelo, con farlo suo discepolo” (apud Vasari/Barocchi, II,
p. 264).
393 Lembre-se a Melancolia de Dürer — artista, de resto, bem conhecido e admirado por
Rafael.
394 Embora a ausência de retratos de Michelangelo quando jovem (contaria nesse momento
cerca de 35 anos) tenha dificultado a sua identificação definitiva com Heráclito, essa identifi-
cação goza de uma amplíssima aceitação entre os estudiosos. Rafael, como quer que seja, se-
guramente introduziu essa figura — intensamente inspirada do ponto de vista formal, de
resto, nos profetas da Sistina — após a finalização do afresco (cf. D. Redig de Campos, “Il
pensieroso della Segnatura”, in Michelangelo Buonarroti nel IV centenario del “Giudizio Uni-
versale”; Florença: 1942, pp. 205-19, e mais recentemente A. Nesselrath, “Raphael’s School of
Athens”, in Recent restorations of the Vatican Museums, I, 1996, p. 20). O semblante buonarro-
tiano foi reconhecido, ainda, na figura do poeta ferrarês Antonio Tebaldi, representado no
Parnasso — uma das duas únicas figuras a encarar diretamente o observador (cf. Forlani
Tempesti, pp. 15 e 59, catálogo n. 67).
395 Uma idéia semelhante aparece na vasariana Vita de Verrocchio (cf. M. Kemp, “The ‘Super-
Artist’ as genius”, in Genius: the history of an idea, ed. por P. Murray; Nova Iorque: Basil
Blackwell, 1989, p. 46).
PERSONAGENS |
formando-se em um autêntico topos da moderna historiografia da arte e
configurando um movimento pendular relativo à supremacia de um ou ou-
tro artista: quase tradicionalmente portanto, opõe-se a “graça” de Rafael ao
“desenho” michelangiano (inserindo-se, como terceiro elemento, o “colori-
do” de Tiziano), ou a perfeição dos nus deste último ao panejamento e às
paisagens de Sanzio. O antagonismo entre os dois artistas, não raro, extra-
vasa o campo estritamente artístico e perpassa o dos temperamentos, iden-
tificando-se Rafael com a suavidade, a cortesia, a amabilidade, mas também,
em chave moralista, com a superficialidade mundana, enquanto a Michelan-
gelo adjudica-se a irascibilidade e a tendência ao isolamento que parcial-
mente compõe o mito da sua terribilità.396
Bibliografia: Há inumeráveis monografias sobre Rafael, quase todas
contendo por sua vez detalhada bibliografia; cf. por exemplo a de V. Golzio
(Vaticano, 1936); L. Dussler (Londres, 1971); K. Oberhuber (Milão, 1982); J.-P.
Cuzin (Paris, 1983); e R. Jones e N. Penny (New Haven, Londres, 1983). Para
a sua relação com Michelangelo, cf. E. Müntz, “Une rivalité d’artistes au XVIe
siècle: Michel-Ange et Raphael a la cour de Rome”, Gazette des Beaux-Arts,
XXV, 1882, pp. 281-7 e 385-400; A. Springer, Raffael und Michelangelo (2 volu-
mes); Leipzig: Seemann, 1883; A. Forlani Tempesti, Rafaello e Michelangelo;
catálogo de exibição da Casa Buonarroti (jan.-abr. de 1984); Florença, Cen-
tro Di, 1984; R. Goffen, Renaissance rivals: Michelangelo, Leonardo, Raphael,
Titian; New Haven, Londres: Yale University Press, 2002, e F. Ames-Lewis,
“Raphael’s responsiveness to Michelangelo’s draughtsmanship”, in F. Ames-
Lewis e P. Joannides (eds.), Reactions to the master: Michelangelo’s effect on
art and artists in the Sixteenth Century; Aldershot, Burlington (EUA): Ashga-
te, 2003, pp. 12-30.
396 Para referências e citações, cf. o pequeno ensaio introdutório de Forlani Tempesti.
(*) — Luigi del Riccio (m. 1546): diretor do banco Strozzi-Ulivieri em Roma,
amigo de Michelangelo e administrador de seus negócios a partir de princí-
pios de 1540, sucedendo a Bartolomeo Angiolini, que falecera em dezembro
do ano anterior. Desconhece-se a data de nascimento de Riccio, um floren-
tino do bairro de Santo Spirito; supõe-se, porém, que em 1534 tenha-se mu-
dado para Roma, onde se tornaria o principal agente do banco Strozzi-Uli-
vieri e, nos anos 1540, procurador de Roberto Strozzi, exilado na França.
Riccio administra diligentemente os negócios de Michelangelo e represen-
ta-o com eficiência e autêntica devoção em situações tão delicadas quanto a
deliberação do último contrato relativo à tumba de Júlio II; à margem dessa
relação administrativo-comercial, Buonarroti e Riccio construíram uma só-
lida amizade, a qual perduraria até a morte deste último, em 1546; em seus
Dialogi, Donato Giannotti oferece uma vívida imagem dessa relação.397 Em
duas ocasiões (julho de 1544 e no inverno de 1545 para 1546), Michelangelo,
seriamente adoecido, é acolhido por Riccio em sua residência em um dos
apartamentos do Palazzo Strozzi,398 onde se ocupa zelosamente de sua recu-
peração (cf. carta XLIX). Riccio dedicava-se, ainda, à poesia, e ao longo de
sua amizade com Buonarroti os dois estabeleceram um fértil intercâmbio
de poemas; juntamente com Giannotti, ademais, Luigi muito possivelmente
397 Em 1544 ou 1545, houve uma querela entre ambos, cuja razão não está de todo esclarecida,
a qual parece já haver sido plenamente superada em meados de 1545; a esse propósito cf. o
apêndice de Ramsden sobre Riccio. O belo soneto michelangiano “Nel dolce d’una immensa
cortesia” foi, muito provavelmente, dedicado a Riccio em princípios de 1545, por ocasião da
sua reconciliação.
398 Esse belo palácio existe ainda; encontra-se na rua Banco Santo Spirito, n. 42, sendo tam-
bém conhecido por Palazzo Niccolini. Originalmente construído por Jacopo Sansovino para
a família Gaddi, foi posteriormente adquirido pelos Strozzi (cf. E. Steinmann, “Michelangelo
im Spiegel seiner Zeit”, Römische Forschungen der Bibliotheca Hertziana, VIII; Leipzig, 1930, p.
42, nota 3, ilustrações XXX e XXXI).
PERSONAGENS |
preparava a publicação ou ao menos a sistematização do canzoniere mi-
chelangiano (no Arquivo Buonarroti encontram-se diversos cadernos de
poemas michelangianos recopilados pelos dois); o projeto, contudo, inter-
rompido pela súbita morte de Riccio, jamais chegou a se realizar.
Bibliografia: E. Steinmann, Michelangelo e Luigi del Riccio; Floren-
ça: Vallecchi, 1932; cf. também o supracitado apêndice sobre Riccio em
Ramsden, os textos introdutórios às edições de Redig de Campos e From-
mel dos Dialogi de Giannotti, e Bardeschi Ciulich, capítulo IX, para a aná-
lise dos manuscritos contendo poemas michelangianos com correções e
anotações de Riccio e Giannotti.
PERSONAGENS |
tri, 1903; U. Pirotti, Benedetto Varchi e la cultura del suo tempo; Florença:
Olschki, 1971; L. Mendelsohn, Paragone: Benedetto Varchi’s ue Lezzioni and
Cinquecento art theory; Michigan: Ann Arbor, 1982, e F. Quiviger, “Varchi
and the visual arts”, Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, vol. 50,
1987, pp. 219-24. Alguns trechos da obra varchiana, incluindo as Lezzioni e o
Della beltà e grazia, são publicados e comentados nos sempiternos Scritti e
Trattati d’arte del Cinquecento editados por Barocchi (em ambos, vol. I).
399 Cf. carta LXIX, ao duque, em que Michelangelo comenta a elevação do teto da Sala dei
Cinquecento proposta por Vasari. Os Ragionamenti sopra le invenzioni delle storie dipinte ne le
stanze nuove del Palazzo Ducale seriam publicados, postumamente, em 1588. Cf. artigo de P.
Tinagli em Eisenbichler, pp. 63-76, para quem a múltipla camada de sentidos atribuída aos
ciclos foi na realidade elaboração post facto inspirada pela então recente vitória de Cosimo
em Siena (“Claiming a place in history: Giorgio Vasari’s Ragionamenti and the primacy of the
Medici”).
400 Para a tipografia torrentiniana cf. D. Moreni, Annali della tipografia fiorentina di Lorenzo
Torrentino impressore ducale, ed. de M. Martelli; Florença: Le Lettere, 1989; G. Hoogewerff,
“L’editore del Vasari: Lorenzo Torrentino”, em Studi Vasariani, pp. 92-104, e o artigo de A.
Ricci em Eisenbichler, pp. 103-19 (“Lorenzo Torrentino and the cultural programme of Cosi-
mo I de’ Medici”).
401 Na realidade, a edição torrentiniana da Vita contém a biografia de outro artista então
vivo, Benedetto da Rovezzano, que se encontrava no entanto cego e portanto evidentemente
afastado de sua atividade artística quando o livro foi publicado.
PERSONAGENS |
grafia de Jacopo Giunti (edição “giuntina”), sendo esse o texto sobre o qual
com maior freqüência se basearam ulteriores comentários e traduções.
A bibliografia sobre Vasari, especialmente sobre o Vasari escritor, é
vastíssima, encontrando-se o aretino invariavelmente presente em quais-
quer estudos não apenas sobre os artistas por ele mencionados, mas tam-
bém em discussões sobre as origens da disciplina histórico-artística, consi-
derado que é o seu principal fundador. Embora não sejam originais nem a
apresentação cronológica das biografias de artistas — lembre-se por exem-
plo Gelli ou Giovio —, nem a idéia de outorgar-lhes uma qualidade evoluti-
va ao formar o célebre eixo toscano Giotto–Michelangelo — pense-se no
Anônimo Magliabecchiano,402 escrito provavelmente nos mesmos anos que
a primeira edição das Vite, ou o nele incluído Libro di Antonio Billi —, a obra
de Vasari sim parece construir, pela primeira vez, uma história da arte in-
trinsecamente relacionada à história do gosto e à transmutação dos estilos,
na qual sobressai a noção fundamental do desenho (de onde a incontestável
supremacia florentina). Apesar de constituir uma fonte incomparavelmente
rica e pormenorizada, porém, a veracidade de algumas passagens das Vite
tem sido com freqüência contestada, especialmente em relação ao estreito
vínculo que Giorgio mantinha com os Medici e seu suposto intuito propa-
gandístico e cortesão; como notou Bazin, certos passos de sua obra pare-
cem trair a necessidade não de serem verdadeiros, mas de parecerem ve-
rossímeis (p. 38). Além das Vite, Vasari legou um vastíssimo epistolário, o
qual é reunido no oitavo volume da edição milanesiana das Vite.
O aretino entra pela primeira vez em contato com Michelangelo, ao
que tudo indica, em 1524, quando pela primeira vez vai a Florença; nesse
momento, Buonarroti contava 49 anos e Vasari, 13. Nos anos seguintes, Gior-
gio procura aproximar-se do mestre cada vez que viaja a Roma, sendo que a
relação entre eles parece realmente “oficializar-se” somente a partir de 1543,
quando o aretino permanece por uma temporada mais longa na urbe, e
adensar-se por volta de 1550, a partir de quando se pode com propriedade
dizer que se tornam amigos. Tanto na Vita giuntina de Michelangelo quanto
em seu epistolário, é claríssima sua intenção de exagerar o grau de sua intimi-
dade com o artista, surgindo com enorme freqüência referências à periodi-
cidade de seus encontros e ao afeto que este último lhe prodigalizava; escre-
vendo ao duque em 1560, por exemplo, Vasari relata como Buonarroti cho-
rara de alegria ao reencontrá-lo após um longo período de ausência (Vasari/
Milanesi, VIII, p. 330), e, na carta de condolências que envia a Leonardo em
4 de março, chega mesmo a referir-se ao artista como um pai (“certo a me in
amor padre quanto a voi in sanguinità zio”). Embora tanta familiaridade
seja sem dúvida inverossímil — as aparentemente calorosas demonstrações
de afeto que Michelangelo lhe dispensa em suas cartas correspondem de
PERSONAGENS |
APÊNDICES
APÊNDICES |
Lionardo di Buonarrota Alessandra di Brunaccio
Simoni (1399-1458) Brunacci (c. 1432, m. 1494)
Buonarroto (1554-1628), Lucrezia, c. 1581 Bartolomea Michelangelo, Lodovico Caterina, c. 1592 Francesco
c. Alessandra di Andrea Tommaso Corsi “o Jovem” (m. 1600) Piero Chericini (1574-1632)
Macinghi, pai de Leonardo 1568-1647
(1602-1684) e ascendente
direto de Cosimo (m. 1858)
APÊNDICES |
de filho ilegítimo do próprio Clemente VII. Em 1532, Carlos V confere-lhe
o título de duque de Florença, o qual a partir de então se transmitiria a
seus descendentes. Alessandro é assassinado em 1537 — por seu primo
Lorenzino, pertencente ao ramo jovem da família — sem deixar filhos le-
gítimos, de modo que praticamente o único herdeiro possível torna-se um
membro do assim chamado ramo jovem da família, isto é, descendente de
Lorenzo, irmão de Cosimo il Vecchio: Cosimo, único filho de Giovanni de’
Medici (conhecido como delle Bande Nere) e afilhado de Leão X, a quem
seriam posteriormente conferidos os títulos de duque de Florença e Siena
e grão-duque da Toscana. A partir desse momento, a dinastia ducal medi-
cea governaria ininterruptamente Florença até 1737.
A árvore genealógica apresentada a seguir divide-se em duas seções,
correspondendo a segunda delas ao supracitado ramo jovem da família.
Lorenzo, duque de Urbino Clarice de’ Medici (1493-1528), Cardeal Maria (1499-1543), c.
(1492-1519), c. Madeleine de la c. Filippo Strozzi (1488-1538), Giovanni Salviati Giovanni de’Medici
Tour d’Auvergne (1501-1519), mãe de Piero, Roberto (m. 1566) (1490-1553) delle Bande Nere
pai de Catarina de’Medici e Leon Strozzi (1498-1526), mãe de Cosimo
(1519-1589), futura rainha da I (vide parte II)
França e mãe de Francisco II
APÊNDICES |
Lorenzo (1395-1440),
irmão de Cosimo il Vecchio Ginevra Cavalcanti
APÊNDICES |
Messer (ou messere): apelativo arcaico mais ou menos equivalente a “senhor” em português
(embora, contrariamente a este, desprovido de sua forma feminina).
Motuproprio (do latim motu proprio): ordem pessoal expedida pelo papa e imbuída plena-
mente de sua autoridade. Nesta tradução, optou-se pela forma latina em detrimento da italia-
nizada, que une a duas palavras.
Podestà: magistrado que detinha a máxima autoridade executiva e judicial na maioria
das cidades-estado italianas (excluindo Veneza, Nápoles e Sicília).
Ricordo (ou ricordanza): literalmente recordação; durante o Renascimento — especialmente
florentino — o termo podia significar tanto uma anotação geralmente concisa destinada a
registrar eventos como o nascimento de um filho, casamentos, um empréstimo pecuniário,
a venda de um imóvel etc., como o livro utilizado para essa espécie de anotações.
Scalco: originariamente, o servente encarregado de trinchar e servir as carnes (do verbo scal-
care, trinchar), e posteriormente o encarregado geral da despensa e da cozinha.
Signoria: equivalente ao poder executivo de Florença. A extensão precisa de seu poder variava
consideravelmente ao longo das sucessivas etapas de poder republicano e mediceo.
Spedalingo: reitor ou administrador, geralmente a cargo de alguma instituição financeira
(como o Hospital de Santa Maria Nuova; cf. carta V).
Stanza: quarto ou aposento; por stanze entende-se universalmente os três aposentos do pa-
lácio vaticano onde Rafael pintou seus célebres afrescos entre 1508 e 1517.
403 Alguns estudiosos se referem a este como o segundo contrato, pois contam o original,
entre Michelangelo e o próprio Júlio II, como o primeiro.
Dezembro de 1516: Início das negociações entre Michelangelo, Leão X e Giulio de’ Medici
para a fachada de San Lorenzo.
1517: Michelangelo prepara um modelo lígneo.
Janeiro de 1518: Assina-se o contrato relativo à fachada.
Março de 1520: O contrato é cancelado. Iniciam-se quase imediatamente negociações relati-
vas à Sacristia Nova de San Lorenzo.
Abril de 1521: Viagem a Carrara para obtenção dos mármores destinados à sacristia.
Dezembro de 1521: Morte de Leão X. Interrupção temporária da obra.
1524: Retomada dos trabalhos na sacristia; desenhos preliminares para a Biblioteca Lauren-
ziana.
1527: Interrupção da obra.
1530/31: Michelangelo retoma os trabalhos na sacristia e na Biblioteca, aos quais se dedica
intermitentemente até 1534, quando se muda definitivamente para Roma.
APÊNDICES |
sobre Buonarroti mundialmente produzidos até o momento presente (tarefa
em qualquer caso sisífica, dada a quantidade de novos trabalhos que surgem
constantemente). Assim sendo, aqui cito apenas enciclopédias e dicionários
mais freqüentemente consultados ao longo da pesquisa; fontes, diretas ou
indiretas, relativas às cartas, e obras de referência que, seja porque conside-
radas “clássicas” no âmbito da investigação michelangiana, seja devido à sua
relevância específica para o estudo da correspondência, são recorrentemen-
te mencionadas ao longo do presente trabalho. Muitas dessas obras incluem,
por sua vez, uma abrangente listagem bibliográfica. Note-se, ainda, que a
lista de personagens apresenta uma pequena bibliografia relativa a cada per-
sonagem tratado, e que, no corpo do texto, são freqüentemente indicados,
em notas de rodapé, títulos específicos.
Nota Bene: No texto, as obras cuja referência é oferecida, abaixo, in
extensu, são citadas abreviadamente segundo as palavras indicadas em ne-
grito. Os títulos serão apresentados, no interior de cada seção, em ordem
alfabética correspondente às iniciais das palavras sinalizadas em negrito.
X. Fontes
Michelangelo: Life, Letters and Poems (inclui uma tradução da Vita condiviana), trad. e introd.
de G. Bull; Oxford University Press, 1987.
K. T. Butler, “The Gentlest Art” in Renaissance Italy: An Anthology of Italian Letters from 1459
to 1600; Cambridge University Press, 1954.
Il Carteggio di Michelangelo Buonarroti, ed. de P. Barocchi e R. Ristori, a partir da edição
póstuma de G. Poggi; Florença: Sansoni (vols. I-III) e SPES (vols. IV-V), 1965 (vol. I); 1967
(vol. II); 1973 (vol. III); 1979 (vol. IV); e 1983 (vol. V).
Il Carteggio Indiretto di Michelangelo Buonarroti, ed. de P. Barocchi e K. L. Bramanti; Floren-
ça: SPES, 1988 (vol. I) e 1995 (vol. II).
APÊNDICES |
L. Bardeschi Ciulich, Costanza ed evoluzione nella scrittura di Michelangelo (catálogo da
exposição realizada na Casa Buonarroti entre junho e outubro de 1989); Florença: Can-
tini, 1989.
R. J. Clements, Michelangelo’s Theory on Art; New York University Press, 1961.
K. Eisenbichler (ed.), The Cultural Politics of Duke Cosimo I de’ Medici; Aldershot, Burlington
(EUA): Ashgate, 2001.
C. L. Frommel, Michelangelo und Tommaso dei Cavalieri; Amsterdam: Castrum Peregrini
Presse, 1979.
Giovinezza di Michelangelo (catálogo ed. por K. Weil-Garris Brandt; C. Acidini Luchinat; J.
David Draper e N. Penny; Florença: Palazzo Vecchio, Casa Buonarroti, out. de 1999- jan.
de 2000); Florença: Artificio Skira, 1999.
E. N. Girardi, Studi su Michelangelo Scrittore; Florença: Leo S. Olschki (Biblioteca di “Lettere
Italiane”, XIII), 1974.
C. Justi, Michelangelo. Beiträge zur Erklärung der Werke und des Menschen. Leipzig: Breitkopf
& Härtel, 1900.
The Medici, Michelangelo and the Art of Late Renaissance Florence (catálogo da exposição
apresentada entre junho de 2002 e junho de 2003 sucessivamente em Florença (Palazzo
Strozzi), no Art Institute of Chicago e no Detroit Institute of Arts); New Haven, Londres:
Yale University Press, Detroit Institute of Arts, 2002.
L. Pastor, Geschichte der Päpste im Zeitalter der Renaissance; Freiburg: Herder’sche Verlag,
1886-1933 (16 vols.).
C. Ryan, The Poetry of Michelangelo; Londres: Athlone Press, 1998.
Studi Vasariani (Atti del Convegno internazionale per il IV centenario della I edizione delle
Vite del Vasari; Firenze: Palazzo Strozzi, 16-19 de set. de 1950); Florença: Sansoni, 1952.
J. A. Symonds, The Life of Michelangelo Buonarroti (2 vols.); Londres: John C. Nimmo, 1893.
Ch. de Tolnay: Michelangelo; Princeton University Press, 1943-1960 (5 vols.).
Volume I: The Youth of Michelangelo (1943).
Volume II: The Sistine Ceiling (1945).
Volume III: The Medici Chapel (1948).
Volume IV: The Tomb of Julius II (1954).
Volume V: The Final Period (1960).
W. E. Wallace, Michelangelo at San Lorenzo: The Genius as Entrepreneur; Cambridge: Cam-
bridge University Press, 1994.
ÍNDICE |
CLEMENTE VII (Giulio de’ Medici) , , HOLANDA (ou Hollanda), FRANCISCO DE
-, , , -, , -, , , , , , , , , , , ,
-, -
CLEMENTS, R. J. JÚLIO II (Giuliano della Rovere) , -, -
COLOMBO, REALDO , , , , , , -, , , , , -, ,
COLONNA, VITTORIA , , -, -, , , , , , , , , , , ,
, , , - , , -, -, -, , -,
CONDIVI, ASCANIO , -, , -, , JUSTI, C. ,
, , -, , , , -, , -, ,
, , , , , , , , , LEÃO X (Giovanni de’ Medici) , , -,
-, -, , -, , , , , , , , , ,
COSIMO I MEDICI , , -, , -, -
LEONI, DIOMEDE -,
DANTE ALIGHIERI -, , , ,
DOLCE, LODOVICO , , , MARTELLI, NICCOLÒ -
DONI, ANTON FRANCESCO , MARTINI, LUCA -, ,
DORMOY, M. , -, -, , , MASTRACOLA, P. , , , , , , -,
,
EISENBICHLER, K. , , , MEDICI, ALESSANDRO (duque de Florença)
, ,
FARINELLA, V. , - MEDICI, GIOVANNI DE’ (chamado delle
FATTUCCI, GIOVAN FRANCESCO , -, Bande Nere) , , , -
, , , , , - MEDICI, GIULIANO DE’ (duque de Nemours)
FERRARA , -, , , , , , ,
FERRERO, G. G. , , MEDICI, LORENZO DE’ (ou Lorenzo Magní-
FICINO, MARSILIO , - fico) -, , , , , , , , -,
FLORENÇA -, -, -, -, -, - ,
, -, -, -, , , -, -, MEDICI, LORENZO DI PIER FRANCESCO
, -, , -, , -, -, DE’
-, -, -, -, -, -, MENDES, M.
, -, - MILANESE, BALDASSARE DEL -,
FRANCISCO I (rei da França) , , , MILANESI, G. , -, , , , , -,
-, , -, , , , , , ,
FREY, K. , , , , , , , -
FROMMEL, C. L. , -, , -, -, MINI, GIOVANNI BATTISTA
- MIRANDOLA, PICO DELLA -
GALLI, JACOPO , -, , OCHINO, BERNARDINO , -
GAYE, G. , , -
GHIRLANDAIO, DOMENICO -, , PALLA, BATTISTA DELLA -,
, - PASTOR, L. , -,
GIANNOTTI, DONATO , , , , - PAULO III (Alessandro Farnese) , , , ,
, , , , -, - , -, , -, -, , -, -
GILBERT, C. -, , PERUGIA , , ,
GIOVIO, PAOLO , , PERUGINO , , -,
GIRARDI, E. N. , PETRARCA, FRANCESCO , , ,
GRANACCI, FRANCESCO , PIETRASANTA -
GUASTI, C. , -, -, , , PISA , , -, , , , ,
POGGI, G.
ÍNDICE |
ilustrações
Lista de ilustrações
ILUSTRAÇÕES |
Fig. 2 – Soneto autógrafo com caricatura de Michelangelo
representando a si mesmo pintando o teto da Capela Sistina.
Florença, Arquivo Buonarroti, XIII, iiir.
ILUSTRAÇÕES |
Fig. 4 – Michelangelo, detalhe do Juízo Final (possível auto-retrato
na pele de São Bartolomeu). Vaticano, Capela Sistina.
ILUSTRAÇÕES |
Fig. 6 – Desenhos de blocos marmóreos para o projeto da
sacristia nova de San Lorenzo. Florença, Arquivo Buonarroti,
I, 144-145, fol. 260v/261r, 318 x 220 mm + 318 x 220 mm.
ILUSTRAÇÕES |
Fig. 8 – Michelangelo, Crucificação (um dos desenhos dedicados a
Vittoria Colonna). Londres, British Museum, 1895-9-15-504r. 371 x 270 cm.
ILUSTRAÇÕES |
Fig. 10 – Michelangelo, carta autógrafa a Tommaso Cavalieri
[variante da carta XXVIII]. Florença, Arquivo
Buonarroti, vol. V, 66, fol. 239r, 288 x 208 mm.
ILUSTRAÇÕES |
Fig. 12 – Carta autógrafa de Michelangelo com desenho relativo
à assim chamada Capela do Rei da França, em San Pietro.
Arezzo, Arquivo Vasariano, cód. 12, cap. 24 (284 x 211 mm).
ILUSTRAÇÕES |
Fig. 14 – Vasari, monumento fúnebre de
Michelangelo. Florença, Santa Croce.
ILUSTRAÇÕES |
Título Cartas escolhidas