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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

RENATO MENEZES RAMOS

MICHELANGELO COMO MODELO DE ARTISTA MODERNO


(FRANÇA, 1830 – 1876)

CAMPINAS
2015
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado, composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 06/10/2015, considerou o
candidato Renato Menezes Ramos aprovado.

Prof. Dr. Luiz Cesar Marques Filho

Prof. Dra. Patricia Dalcanale Meneses

Prof. Dr. Alexandre Ragazzi

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de vida
acadêmica do aluno.
Mãe, pai, irmão, são suas essas páginas, na esperança de
que compreendam que fiz o melhor que pude e o máximo que
minhas limitações me permitiram.
AGRADECIMENTOS

Esse trabalho é fruto de um esforço coletivo, sem o qual nenhuma dessas páginas seria sequer
realizável. Seguem aqui os mais sinceros e amáveis agradecimentos àqueles que me interferiram de
modo que essas páginas resultassem como tais.

- À Fapesp, pelo financiamento deste projeto e pela oportunidade de realizar um estágio em Paris,
onde parte dessa pesquisa foi desenvolvida e onde também as primeiras palavras desse trabalho
foram redigidas.
- Ao Luiz Marques, pelas iluminações, pela disponibilidade com que acolheu esse projeto
ambicioso, pela paciência mesmo nos momentos mais complicados, pelos minutos de extrema
erudição que me foram inspiradores e pelo seu admirável trabalho, sem o qual essa dissertação não
teria essas feições.
- À Maria Berbara, pelo carinho materno com que sempre me recebeu desde os meus primeiros
passos na História da Arte, por acompanhar o nascimento e amadurecimento da minha paixão por
Michelangelo, por ser uma constante fonte de inspiração.
- Aos Messieurs Giovanni Careri e Neville Rowlley, pela extrema disponibilidade com que me
acolheram na minha estadia em Paris, pela amabilidade, interesse e esforço em me acompanhar no
que fosse preciso.
- Aos professores Luciano Migliacio, Patricia Meneses, pelas valiosas e cuidadosas leituras na
qualificação, que acrescentaram e poliram o necessário neste trabalho, ainda à Professora Patricia
Meneses e ao Professor Alexandre Ragazzi por aceitarem compor a banca de defesa.
- À Vera Beatriz Siqueira pelas aulas durante a graduação, nas quais a semente dessa ideia foi
plantada, e pela sua constante disponibilidade.
- Também agradeço aos professores Nelson Aguilar, Marcos Tognon e Cláudia Valladão de Mattos,
pelas disciplinas cursadas na Unicamp, que de alguma maneira me ajudaram a amadurecer como
historiador da arte.
- À Renata Dargains, sempre, por ter me apontado a luz da História da Arte, e que de professora
tornou-se grande amiga.
- Aos meus amigos que me acompanharam diretamente nessa intensa jornada de trabalho, com os
quais, uns há mais e outros há menos tempo, compartilho minhas questões existenciais, embora
talvez eles mesmos não imaginem em justa medida o quanto este trabalho lhes deve: André Barros,
Antônio (Toni) Barros, Clarissa Campomizzi, Elaine Dias, Evelyne Azevedo, Fábio D’Almeida,
Felipe Martinez, Fernanda Affonso, Fernanda Correa, Fernanda Pitta, Henrico Cobianchi, Isabel
Hargrave, Juliana Guide, Laís Monteiro, Larissa Carvalho, Maíra Oliveira, Raphael Fonseca, Thaisa
Almeida, Valentine Baillot. E a Vanessa Rocha, pela sensibilidade e doçura tão inspiradoras, por
fazer eu me sentir vivo, por me ensinar há tanto tempo a ver a poesia do mundo.
- À Mme. Brugerolles, que me permitiu o acesso ao álbum de desenhos de J.-B. Carpeaux e ao M.
Schuartz, que, me permitiu o acesso à Chapelle des Louanges, bem como aos documentos relativos
a cópia do Juízo Final, ambos na École Nationale Supérieure de Beaux-Arts. Agradeço
especialmente à Mme. Patricia Gélibert, que cheia de simpatia me acompanhou pacientemente na
fotografação da capela.
- À Mme. Sandra Boujod, que me permitiu o acesso à biblioteca do Musée Rodin e ao dossiê da
viagem do artista à Itália.
- Às senhoras anônimas que me permitiram o acesso à biblioteca do Palais du Congrès.
- À Mme. Catherine Adam-Sigas, do Musée Eugène Delacroix, que tão gentilmente me acolheu e
me auxiliou junto às documentações relativas à juventude do arista.
- À Mme. Isabelle Gaëtan, conservadora de desenhos do Musée D’Orsay, em nome dos
funcionários da Bibliotèque et Service de Documentation da instituição, pela extrema simpatia e
atenção com que me receberam e pela disponibilidade.
- Aos funcionários do Musée Fabre e ao Service de Documentation, especialmente à Mme. Danièle
Haas, por me disponibilizar o que fosse preciso para o desenvolvimento da pesquisa junto aos
fundos da coleção Bruyas.
- Aos funcionários do Departamento de Escultura do Service de Documentation do Musée du
Louvre, por todo o cuidado em me acolher e me dar acesso às montanhas de papéis dos dossiês das
obras.
- À Claudia, que me permitiu o acesso à câmara da Sagrestia Nuova, momento fundamental para o
meu próprio entendimento da minha relação com Michelangelo.
- Aos funcionários da BnF – Tolbiac e da Bibliothèque Jacques Doucet (INHA) pela constante
simpatia.

Como escreveu Romain Rolland, esse trabalho é dedicado « aux âmes libres de
toutes les nations qui souffrent, qui luttent et qui vaincront ».
« Messer Giorgio mio caro, io so che voi conoscete nel mio
scrivere che io sono alle venti 4 ore e non nasce in me
pensiero che non vi sia dentro sculpita la morte ».
Michelangelo Buonarotti a Giorgio Vasari. 22 de junho de 1555.

« Je crois que j’ai dérivé dans ce que les gens du métier


appellent un hors-d’œuvre. Cependant, je laisserai ces pages,
— parce que je veux dater ma colère ».
Charles Baudelaire. Fussées. 1867.

« Tenho saudade de mim mesmo, / saudade sob aparência de


remorso, / de tanto que não fui, a sós, a esmo, / e de minha
alta ausência em meu redor ».
Carlos Drummond de Andrade. Estrambote melancólico. Sem data.
RESUMO

Ao longo do século XIX a figura de Michelangelo, artista paradigmático do assim chamado


Renascimento Italiano e o maior artista da Idade Moderna, passaria por uma profunda
reformulação. É detectável na França, caso sobre o qual esta dissertação se deterá, o florescimento
de uma compreensão particular a seu respeito, que o entende constantemente como sujeito
insubmisso, de temperamento melancólico e de difícil gênio. É sabido que tais características
emergem das fontes quinhentistas sobre as quais os olhos do século XIX voltam especial atenção,
mas é também importante compreender tal fenômeno como unidade fundamental do complexo
processo de redefinição do estatuto social do artista.
Em 1830, ano marcado pela Revolução, Eugène Delacroix redige uma biografia do mestre
florentino. Em 1876, Auguste Rodin vai pela primeira e única vez à Itália após as comemorações do
quarto centenário do nascimento de Michelangelo e envia de lá uma carta para sua companheira.
Neste intervalo temporal, diversas outras biografias para o mestre seriam escritas e sua imagem
ligar-se-ia a diversos artistas que, fosse do ponto de vista iconográfico, fosse no tocante à
formulação de seus próprios horizontes estéticos, compreenderam a melancolia de Michelangelo
como núcleo de onde derivam problemas artísticos que desembocam na desautorização crônica da
autoridade do clássico.

Palavras-chave: Michelangelo Buonarroti, arte francesa - século XIX, arte italiana.


ABSTRACT

During the nineteenth century, the image of Michelangelo, a paradigmatic artist from the Italian
Renaissance and the biggest artist of Modern Age, would pass through a deep reformulation. In
France, as this thesis will analyze, it is possible to note the flowering of a particular comprehension
regarding Michelangelo, constantly understanding him as a submissive person, with a melancholic
and temperamental behavior, being hard to deal with. It is known that the aforementioned
characteristics emerge from the sixteenth sources, to which the nineteenth century devotes special
attention, but it is also important to comprehend this phenomenon as the fundamental unity of the
complex process of redefinition of the artist’s social status.
In 1830, a year marked by the Revolution, Eugène Delacroix wrote a biography of the Florentine
master. In 1876, Auguste Rodin went for the first and only time to Italy, after the celebration of the
fourth centenary of Michelangelo’s birth. From there, he sent a letter to his companion. During this
time interval, many other biographies to the master were written and his image would be related to
many artists that, from an iconographic point of view and also regarding the formulation of their
own aesthetic horizons, understood Michelangelo’s melancholy as the core from which artistic
problems are originated, debouching in the chronicle disempowerment of the classic’s authority.

Key words: Michelangelo Buonarroti, French art - nineteenth century, Italian art.
LISTA DE IMAGENS

Figura 1 – REYNOLDS, J. Autorretrato. 1775. Óleo sobre tela. Galeria do Uffizi. Florença.
Figura 2 – RAFAEL. A Escola de Atenas (detalhe). 1509. Afresco. Stanza della Segnatura, Palacio
Pontifício, Vaticano.
Figura 3 – DAVENT, L. (atr.). Retrato ideal de Michelangelo à idade de 23 anos por um artista
francês da Escola de Fontainebleau. 1540-1560. Verso 1522. Água-forte. Britsh Museum, Londres.
Figura 4 – Manufatura de Sèvres. Bandeja. Michelangelo cego, a partir de Evariste de Fragonard.
Circa 1822. Porcelana dourada. Museu do Louvre, Paris.
Figura 5 – GÉRÔME, J-L. Michelangelo cego sendo conduzido a tocar o Torso de Belvedere.
1849. Óleo sobre tela. Dahesh Museum of Art, Nova York.
Figura 6 – MICHELANGELO. A conversão de Saulo. 1542-1545. Detalhe. Afresco. Capela
Paolina, Vaticano.
Figura 7 – LEONI, L. Medalha de Michelangelo. Frente e verso. 1561. Chumbo. Museo Nazionale
del Bargello, Florença.
Figura 8 – VOLTERRA, D. (ateliê). Busto de Michelangelo. Circa 1564. Bronze. Museu do
Louvre, Paris.
Figura 9 – RODIN, A. O homem de nariz fraturado. 1864. Gesso. Musée Rodin, Paris.
Figura 10.1 – DELACROIX, E. Sócrates e seu gênio. Circa 1841-1843. Óleo sobre tela
marruflado. Biblioteca do Palais Bourbon, Paris.
Figura 10.2 – DELACROIX, E. Michelangelo e seu gênio. Circa 1839-1841. Pastel sobre cartão.
Musée Fabre, Montpellier.
Figura 11 – DELACROIX, E. Estudo não utilizado para Michelangelo e seu gênio. Circa 1838.
Musée du Louvre, Paris. RF 9405.
Figura 12 – SIGALON, X. Cópia do Juízo Final de Michelangelo. 1837. Óleo sobre tela. Capela
da Louanges, ENSBA, Paris. Fotografado pelo autor.
Figura 13 – FEUCHÈRE, J.-J. Satan. 1833. Bronze. Musée de la Vie Romantique, Paris.
Figura 14.1 – FEUCHÈRE, J.-J. Michelangelo. Salão de 1843. Bronze. Catálogo Sothebys.
Figura 14.2 – E. DE LABROÜE. Pêndulo de Michelangelo. Circa 1850. Bronze patinado e
dourado. Museu do Louvre, Paris.
Figura 15 – MICHELANGELO. Juízo Final (detalhe). Vide ANEXO II, 3.
Figura 16 – MICHELANGELO. Capela Médici (detalhe: Alegoria da Noite). Circa 1526-1533.
Mármore. Sacristia Nova, Florença.
Figura 17 – CARPEAUX, J.-B. Ugolino. 1862. Gesso. Museu de Belas Artes de Valenciennes.
Figura 18 – CARPEAUX, J.-B. A Fonte de Oceano do Jardim de Boboli em Florença. 1858. Pena
e nanquim, com detalhes em guache, sobre papel cinza azulado. Museu d’Orsay, Paris.
Figura 19 – MICHELANGELO. Capela Médici (detalhe: Lourenço de Médici). Circa 1524-1531.
Mármore. Sacristia Nova, Florença.
Figura 20 – DELACROIX, E. A Barca de Dante. Vide ANEXO II, 5.
Figura 21 – CARPEAUX, J.-B. Jovem pescador napolitano com concha (titulo da versão em
mármore exposta no Salão de 1863). Coleção particular.
Figura 22.1 – CARPEAUX, J.-B. Profeta Jeremias. Circa 1860. Grafite sobre papel. Museu de
Belas Artes de Dijon.
Figura 22.2 – CARPEAUX, J.-B. Estudo para danado, dito Desesperado e para Bem-aventurado
elevando dois eleitos com seu rosário. Circa 1856-1858. Pena e nanquin. Museu de Belas Artes de
Valenciennes.
Figura 22.3 – CARPEAUX, J.-B. O danado, dito Desesperado. Circa 1856-1860. Óleo sobre tela.
Coleção particular.
Figura 23 – CARPEAUX, J.-B. Autorretrato, dito Carpeaux gritando de dor. 1874. Óleo sobre
tela. Museu de Belas Artes de Valenciennes.
Figura 24 – DELACROIX, E. Michelangelo em seu ateliê. 1849-1850. Óleo sobre tela. Musée
Fabre, Montpellier.
Figura 24.1/24.2 – DELACROIX, E. Estudos para ―Michelangelo em seu ateliê”. 1849.Grafiti
sobre papel. Fitzwillian Museum, Cambrige
Figura 25 – A. Mouillerron, a partir de Robert Fleury, conforme citado por Lee Johnson.
Figura 26 – PRÉAULT, A. A Matança. 1834. Bronze. Museu de Belas Artes de Chartres.
Figura 27 – DELACROIX, E. A luta entre Jacó e o Anjo. 1856-61. Óleo e cera sobre gesso. Igreja
de Saint-Sulpice, Paris.
Figura 28 – DAUMIER, H. Combate das escolas – O Idealismo e o Realismo. Le Charivari, 24 de
abril de 1855.
Figura 29 – VACCARO, T. Pollock em seu ateliê em East Hampton. Agosto de 1953. Hulton
Archive, Getty Images.
Figura 30 – Charlton Heston como Michelangelo – “Agonia e Êxtase”. Direção: Carol Reed. 1965.
SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................................................................14

Introdução.............................................................................................................................20

Parte I – O renascimento do Renascimento


1. Vasari, Condivi e além ......................................................................................................31
2. Michelangelo torna-se romântico ......................................................................................46
3. A dificuldade da representação .........................................................................................57

Parte II – A invenção da imagem do artista moderno


1. Maldição do artista, maldição artística ..............................................................................70
2. Formular a imagem de si ...................................................................................................86
3. A poética do fracasso ........................................................................................................100
4. Um novo Michelangelo .....................................................................................................107

Duas considerações finais ....................................................................................................114

Anexo I – Textos ...................................................................................................................122

Anexo II – Imagens ..............................................................................................................133

Bibliografia ...........................................................................................................................149
Apresentação

O início da gestação deste trabalho data de 2011, muito embora meu primeiro
contato com Michelangelo tenha se dado no ano anterior, sempre no curso de graduação em
História da Arte na UERJ, durante o qual fui acompanhado pela professora Dra. Maria Berbara.
Tudo começou, então, em 2011, durante uma aula da professora Dra. Vera Beatriz Siqueira, quando
ela analisou os Escravos do Louvre à luz da “tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia”,
ensaio de Alfred Gell com proposições acerca de uma antropologia da arte1. De lá até o presente
momento, o trabalho passou por um processo de amadurecimento que ainda aguarda por ser
completado, e ao qual esta dissertação não pertence senão como contribuição a um percurso que
está longe de ver seu fim.
O projeto de pesquisa inicialmente intitulado “Melancolia, Heroísmo e Fracasso: a
recepção do mito michelangiano no século XIX” foi diagonalmente reformulado. O que resta ainda
é uma ambição de proporções colossais demandada, em grande medida, pelo que Michelangelo, por
si mesmo, exige no desafio de quem quer que queira lhe enfrentar.
As palavras-chave que iniciavam o antigo título deixaram pouco a pouco de fazer
sentido, porque o fluxo das pesquisas arrastou-se por outros caminhos que as atravessavam. A ideia
de trabalhar sobre um “mito michelangiano”, que coroava o projeto correspondeu, no entanto, a
primeira alteração. Foi preciso delimitar alguns aspectos dentro de coordenadas tempo-espaciais
sobre as quais se apoiar. Isso não significa de modo algum que tais coordenadas representem a
imposição de fronteiras rigorosas cujas paredes não se podem atravessar. Ao contrário: trata-se de
limites perenes, construtores de uma espinha dorsal, de um fio condutor, a partir do qual são
propostas “costuras históricas” de distintas situações e eventos.
E justamente por isso, não diferente de qualquer trabalho histórico, parafraseando
Fernand Braudel2, essa dissertação resulta de um trabalho arbitrário de seleções mais ou menos
conscientes e, como consequência imediata, de exclusões. Pois sobre cada uma das obras de
Michelangelo é possível construir uma biblioteca e, por essa razão, refletir sobre o maior artista da
Era Moderna é uma atitude que demanda uma coragem da qual eu não tive consciência desde
sempre. Durante o estágio de pesquisa que desenvolvi em Paris junto a diversas instituições,

1
GELL, Alfred. A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia (1992). Concinnitas, ano 6, v. 8. Junho 2005, p. 41-
63.
2
BRAUDEL, Fernand. A longa duração (1958). In.: História e Ciências Sociais. Lisboa: Editorial Presença, 1960, p. 9

14
coletando e lapidando informações que aqui seguirão, tive, durante quase todo o semestre, a
impressão de que esse universo michelangiano se impunha sobre mim, dada a necessidade de
articular dois períodos completamente diferentes por meio de um artista envolvido por uma
complexidade toda especial.
A primeira dessas escolhas a que me referi se trata da decisão de trabalhar entre as artes
visuais, a literatura e a crítica de arte. Desse modo, foi possível criar um universo de reflexão onde
se priorizou todo o processo de recepção e de reinvenção da imagem e da vida de Michelangelo que
não concerne à produção intelectual acadêmica, onde sua obra obedeceu ao curso de um movimento
particular, e do qual esta dissertação não pôde dar conta. Assim, por exemplo, o conjunto de
biografias que o mestre florentino recebeu se reduziu apoiado sobre um argumento fixo.
A segunda dessas escolhas foi também do ponto de vista do manuseio bibliográfico e
diz respeito às traduções. Por uma questão estratégica, para as biografias quinhentistas de
Michelangelo foram usados como ponto de partida duas traduções: a de Condivi, a versão
espanhola de 2007, por David García López e a de Vasari, a versão brasileira de 2012, realizada por
Luiz Marques, orientador deste trabalho3. O mesmo ocorre com a tradução selecionada do
epistolário michelangiano, publicada em língua portuguesa no ano de 2009, por Maria Berbara. No
que diz respeito ao uso paralelo de diferentes edições, como no caso das Rime de Michelangelo ou
do Journal, de Delacroix, as indicações serão feitas convencionalmente. Estas decisões foram
tomadas em razão tanto da qualidade dos trabalhos, quanto pelo volume de notas oferecidas aos
respectivos textos, que auxiliaram imensamente na compreensão geral a respeito da vida e da obra
deste artista quase nonagenário que trabalhou ininterruptamente até os últimos dias de sua
existência.
Ainda no tocante às traduções, parte significativa das fontes primárias francesas do
século XIX, que constitui não apenas bibliografia, mas também material mesmo de reflexão, jamais
havia sido traduzido. Foi decido apresentá-las todas traduzidas, e quando feito por mim, a sigla
“TN” (tradução nossa) as indicará.
Esses problemas ora indicados refletem um sintoma já magistralmente detectado por
Hans Belting em seu célebre ensaio acerca do fim da História da Arte. Trata-se aqui de um trabalho-
epílogo que procurou, não exatamente apresentar nada de novo, mas sintetizar e rearticular as
principais discussões a respeito do que Michelangelo significou para o século XIX como resultado

3
É por isso que a mesma edição do livro será referida de duas maneiras diferentes: Referir-nos-emos a VASARI
quando o fragmento for extraído efetivamente do texto vasariano, enquanto a MARQUES a referência será feita quando
mencionadas a apresentação, introdução e notas, elaboradas pelo historiador.

15
da compreensão de um fenômeno poético mal localizado em seu próprio tempo e, por isso mesmo,
composto de uma matéria que se retroalimenta de sua atualização infinita. Portanto, segundo
Belting, “onde não se descobre nada de novo e velho não é mais o velho, sempre se supõe o
epílogo”4, que neste caso circunscreve-se pretensiosamente no amplo fenômeno de fabricação do
renascimento italiano pela cultura francesa do século XIX, a partir da figura de seus grandes
mestres.
No mais importante ensaio escrito sobre a questão da elaboração desta temática
supracitada, Francis Haskell inicia-o detectando que tal fenômeno foi determinante para o que se
poderia chamar de uma “História do gosto”. Este trabalho, grosso modo, passa por essa via. No
entanto, seguiremos no fluxo contrário quando o historiador britânico afirma que “em geral, o
Michelangelo que se encontra nos quadros do século XIX não era o personagem terribile tão amado
pela antiga tradição, mas o velho homem cheio de bondade, sentado próximo do leito onde morre
seu fiel servidor”5, aludindo à obra perdida de Robert Fleury, exposta no Salon de 1831, da qual se
conhece apenas a gravura (ANEXO II, 0). Haskell, evidentemente, faz referência a uma noção
específica no tocante à noção de terribilità, em especial aquela fabricada ao longo de toda a crítica
pós-vasariana, entre a França e a Itália, mas cuja síntese é visível, por exemplo, em Henry Beyle,
em vias de se tornar Stendhal.
Desta mesma geração é “Michelangelo’s Nose: a myth and its maker”, publicado por
Paul Barolsky, em 19906. Inversamente ao movimento realizado por Haskell, Barolsky parte de uma
diversidade de temas para argumentar, em linhas gerais, que o próprio Michelangelo,
posteriormente respaldado por suas biografias, teria contribuído sobremaneira para a fabricação de
seu próprio mito em vida perante seus contemporâneos. Tal operação corresponderia, ainda segundo
Barolsky, a uma notável manobra de autolegitimação que, em longa duração, fundiria
eficientemente a vida e obra do artista. Anos mais tarde, a tese defendida por Marie-Pierre
Chabanne sob a direção de Jacques Neefs7, incorreria na mesma imprecisão rapidamente detectável
na obra de Barolsky. A historiadora da arte francesa testa a hipótese de que entre Winckelmann e
Delacroix emergiu um romantismo fértil onde Michelangelo foi germinado como artista moderno,
sem fazer distinção entre o universo de Winckelmann e aquele de Delacroix, entre os quais existe

4
BELTING, Hans. O fim da historia da arte: uma revisão dez anos depois (1983). São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 17.
5
HASKELL, Francis. Les maîtres anciens au XIXe siècle. In. : De l’art et du goût. Jadis et naguèrre (1987). Paris :
Gallimard, 1989, p. 211.
6
BAROLSKY, Paul. Michelangelo’s Nose: a myth and its maker. Pensylvania: The Pensylvania State University Press,
1990.
7
CHABANNE, Marie-Pierre. Michel-Ange romantique. Naissane de l’artiste moderne de Winckelmann à Delacroix.
Tese defendida na universidade de Paris VIII, sob a direção de Jacques Neefs, 2000.

16
um abismo. Tanto Barolsky quanto, posteriormente, Chabanne, compreendem seus respectivos
assuntos a partir de uma visão homogeneizadora sobre um fenômeno que se constitui, por
excelência, absolutamente heterogêneo, devido a vários fatores.
Consciente disso, a mostra organizada na Casa Buonarroti que recebeu por título “Il
volto di Michelangelo”, em 20088, parte de um corpus documental mais bem definido para refletir
sobre o problema da representação de Michelangelo. Parece faltar ao argumento desta exposição,
contudo, o norte para onde essa reunião de documentos apontará e seguirá. Via de regra, a saída
mais eficaz para a solução de tais problemas conformar-se-iam dentro de um modelo monográfico
para sustentar a ligação do mestre toscano com um artista específico, sempre seguindo o movimento
de tentar identificar nos elementos biográficos do artista aquilo que pertence à parte de
Michelangelo. A exposição “Michelangelo nell’Ottocento: Rodin e Michelangelo”9, realizada na
Casa Buonarroti e no Philadelphia Museum Of Art nada se diferiria desta estratégia e, mais
recentemente, a exposição “Michel-Ange au siècle de Carpeaux”10 introduziria algumas novidades a
este modelo. Se, por um lado, a exposição ancorava-se na vida e na obra de Jean-Baptiste Carpeaux,
a tendência enciclopédica das últimas exposições francesas, com a qual esta colabora sem dúvidas,
mais uma vez fez retroceder a análise do complexo processo de recepção de Michelangelo na
França ao problema da generalização.
O clássico texto de André Chastel apresentado pela primeira vez no Colóquio em
homenagem ao quarto centenário da morte de Michelangelo, intitulado “Michel-Ange en France”11
apresenta algumas das premissas que serão aqui desenvolvidas. A principal delas, e na qual Chastel
mais insiste, é de que o florescimento do interesse por Michelangelo na França se deu junto do
próprio conhecimento da literatura artística italiana, a partir, sobretudo, do terceiro quarto do século
XVIII, especialmente pela figura de Jean-Pierre Mariette, lido por Sthendal, lido, por sua vez, por
Delacroix.
A propósito, em 1830 Delacroix publicaria na Revue des Deux Mondes uma biografia
do mestre florentino. Partimos do princípio de que entre este ano e 1875-1876, quando se
comemorou o quarto centenário de Michelangelo e Rodin vai pela primeira e única vez à Itália, é
8
Il volto di Michelangelo. A cura di Pina Ragionieri. Firenze: Mandragora s.r.l., 2008.
9
Michelangelo nell’Ottocento: Rodin e Michelangelo. A cura di Maria Mimita Lamberti e Christopher Riopelle.
Milano: Edizioni Charta, 1996. Catálogo de exposição.
10
Michel-Ange au siècle de Carpeaux. Sous la direction de Mehdi Korchane. Milan : Silvana Editoriale Spa, 2012.
Catálogo de exposição.
11
CHASTEL, André. Michel-Ange en France. In. : Fables, formes, figures. Tomo II. Paris : Flamarion, 1978, pp. 189-
206. – O texto foi originalmente publicado em: Atti del Convegno di Studi Michelangioleschi. Roma: Edizione
dell’Ateneo, 1966.

17
fabricada certa imagem desse artista conforme, majoritariamente, se conhece hoje, marcado pela
sua tendência melancólica, seduzido pela autodestruição e espreitado pelo fracasso. O objetivo deste
trabalho é examinar como a recepção de Michelangelo na França, dentro deste arco temporal
privilegiado, obedeceu a um percurso particular que se diferiu absolutamente da recuperação se sua
imagem na Itália recém-unificada, onde ele incorporou/assumiu uma importante ferramenta política
fosse como sujeito italiano, fosse como cidadão que serviu à pátria florentina. Na França, por outro
lado, após um significativo período de marcado ostracismo, a renovação do interesse por sua
imagem circunscreve-se, como evidenciaremos, não apenas ao fenômeno de mitificação dos
mestres antigos, como também ao amplo movimento de reavaliação do próprio estatuto social do
artista e do intelectual, de cuja existência avança a sua subjetividade e recua o legado da razão
hermenêutica herdado do período das luzes. Em consequência última, Michelangelo acaba por se
tornar sinônimo de crise da noção canônica de clássico e símbolo excelente de sua subversão.
A longa duração desta ideia é analisada na Introdução que segue, cujo objetivo é
apontar ao leitor uma espécie de arqueologia das razões que levam à falência do mencionado
argumento de Haskell. Dessa exegese da relação de Michelangelo com a melancolia não se
ausentam os elementos absolutamente fundamentais para além do arco cronológico privilegiado,
mas com o qual eles estabelecem uma fundamental intimidade.
A Parte I deste trabalho foi decupada em três capítulos, todos ancorados nos modos de
manipulação e circulação da imagem de Michelangelo, isto é, de sua vida e sua obra. Será analisado
desde o problema da reedição de suas biografias redigidas originalmente no século XVI até as
edições de suas Rime, a elaboração de novas versões para a sua biografia, e os desafios impostos
pela sua representação visual, todos esses problemas costurados pela concepção segundo a qual a
imagem do mestre florentino foi consolidada e, até mesmo reconstruída, segundo os problemas
ligados à melancolia que, por esse motivo, promove um desajuste do clássico.
A Parte II, por sua vez, faz um percurso inverso, na tentativa de compreender os
aspectos em jogo para a formulação de certa imagem de artista moderno na qual Michelangelo
ocupa um espaço privilegiado, modelar, no panteão construído para o louvor à expressão individual,
ao fracasso e à maldição artística. Neste momento analisaremos também os aspectos que conduzem
à conclusão de uma das hipóteses lançadas neste trabalho: é por volta da década de 1870 que,
sensivelmente, perde protagonismo cada vez mais de Michelangelo seu invólucro místico, como
artista intelectual, teólogo e melancólico para ligar-se também a ele um sentido de artista formalista,
da qual a arte moderna tomará proveito.

18
Os Anexos, por fim, foram também divididos em duas partes: na primeira delas são
apresentados documentos considerados fundamentais para a compreensão de determinados aspectos
desta dissertação e pouco, ou nada, conhecidos pelo público acadêmico brasileiro. Eles foram
transcritos conforme se encontra em seus respectivos originais. Na segunda parte encontram-se
outras imagens às quais se faz referência no curso do trabalho, mas que foram arbitrariamente
liberadas da frequentação visual consoante à leitura do texto.

19
Introdução

“A presença de Michelangelo produziu sobre a arte italiana um efeito semelhante ao de um


caudaloso rio de montanha, que fecunda e devasta ao mesmo tempo. Irresistível na
impressão que deixou, arrastando todos consigo, ele tornou-se um libertador para alguns e
um destruidor para muitos.” 12

Estas são as palavras redigidas por Wölfflin no início de seu ensaio sobre Michelangelo,
que assumem forte tom confidencial. O historiador da arte alemão, que ofereceria ao mestre
florentino um silêncio perturbado durante quase toda a vida13, identificaria na desestabilidade
formal de sua obra a origem e o destino do único destruidor potencial de sua compacta convicção
acerca da divisibilidade estilística do clássico. O “ser solitário, cheio de desprezo, a quem o mundo,
tal como é, nada tem a oferecer”14 era anunciado por Wölfflin ao espelho daquilo que, mais tarde,
Rilke sintetizaria nos versos: “(...) Pois que é o Belo/senão o grau do Terrível que ainda
suportamos/e que admiramos porque, impassível, desdenha/destruir-nos? Todo anjo é terrível”15.
O valor expressivo das palavras de Wölfflin, no entanto, nada tinha de original. Em
1924, ano seguinte àquele em que Rilke publicaria, em Leipzig, suas Elegias de Duíno acima
mencionadas, Wölfflin, em Berlim, assinava a curta introdução à primeira tradução alemã para a
Histoire de la peinture en Italie, de Henry Beyle, em vias de cristalizar-se como Stendhal16.
Malgrado ele admire a vivacidade do texto stendhaliano, ele não duvidava de que a Alemanha
movimentada pela reestruturação após a derrota na Primeira Grande Guerra estava diante de um
texto cujo plano emocional sobrepunha-se às análises formais e iconográficas das obras17. Mas o
primeiro intento literário de Stendhal, mesmo assim, exerceria uma forte impressão em Wölfflin.
Stendhal, que seria acusado de plagiador, especialmente de Lanzi por Paul Arbelet em 1913 18,
parecia ecoar no historiador da arte alemão:
“Como a madeira, leves pedaços das florestas, segue as ondas da torrente que a conduz,
tanto nas cascatas e nos contornos rápidos da montanha quanto na planície, quando se

12
WÖLFFLIN, Heinrich. A arte clássica (1899). São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 55
13
No prefácio à sua tradução para a Vida de Michelangelo, de Vasari, Luiz Marques inicia com uma sensível análise
sobre o silêncio crítico de Longhi em relação a Michelangelo. Cf. MARQUES, Luiz. Prefácio. In.: VASARI, Giorgio.
Vida de Michelangelo Buonarroti. Campinas: Editora Unicamp, 2011, p. 15.
14
Idem
15
RILKE, Reiner Maria. Elegias de Duíno. São Paulo: Globo, 2001, p. 17.
16
GALLO, Daniela. Introduction. In.: Stendhal, historien de l’art. Daniela Gallo (dir.) Rennes: Presses universitaires de
Rennes, 2012, p. 7.
17
Idem
18
ARBELET, Paul. L’Histoire de la Peinture em Italie et les plagiats de Stendhal. Paris : Calmann-Lévy, 1913.

20
tornou rio tranquilo e majestoso, ora alto, ora baixo, mas sempre à superfície da onda, assim
é como as artes seguem a civilização”19.

Dez anos mais tarde, Wölfflin, discípulo e sucessor de Jacob Burckhard na Universidade
da Basiléia, organizaria os escritos deixados por seu mestre sob o título Randglossen zur Skulptur
der Renaissance (Anotações sobre a escultura do Renascimento), anotações estas elaboradas entre
1894-1895, já ao fim da sua vida20. Nota Cassio Fernandes21 que Wölfflin suprime os comentários
de Burckhardt a respeito de Michelangelo, recuperados mais de meio século depois por Maurizio
Ghelardi22. Wölfflin fazia o que lhe era previsível: forçava à sombra o motor da decadência do
clássico e da autonomia da forma que salta da análise de Burckardt, que o identificava, por sua
parte, como cerne da amargura existencial anunciadora de um futuro que já lhe era presente23. Sob
os olhos de Wölfflin, Michelangelo não passava de uma engrenagem condenada e condenante à
maldição artística, leitura à qual o mestre florentino estaria submetido desde muito antes das
palavras de Stendhal.
Quando o escritor francês encerrava seu livro afirmando que em Michelangelo restariam
sempre características odiosas e terríveis24, ele marcaria toda a geração literária francesa
subsequente, que amadureceria sob o signo das revoluções burguesas e moldaria as feições do que
hoje se compreende como a cultura romântica do século XIX. Ele ativaria o movimento
metamórfico que converteria a ideia de terribilità, termo criado por Vasari em 1550 e sobre o qual
será falado mais adiante, em capacidade artística de tornar visível a união potente entre pavor,
assombro e crueldade.
A metáfora do rio tortuoso como figuração eficiente para a representação mental de
Michelangelo reapareceria ainda em Quatremère de Quincy, ao recorrer à recuperação do mestre
florentino pela via de seu paragone com Rafael:
“É o que o leitor verá que nós tentamos expressar, na sequencia de nossas narrativas, pelas
imagens de dois rios, dos quais um, em um curso uniforme, acompanha tranquilamente seu
caminho majestoso, enquanto o outro, através de precipícios e de rochedos, permite
dificultosamente descrever o curso” 25.

19
STENDHAL. Histoire de la peinture em Italie (1817). Autour de Michel-Ange. Paris: Le Seuil, 1994, p. 311.
20
Burckhardt morreria em 1897, mas a essa altura encontrava-se em precário estado de saúde.
21
FERNANDES, Cássio da Silva. Michelangelo Furioso: Jacob Burckhardt e o lugar da figura humana na obra de
Michelangelo. In.: Anais do I Encontro de História da Arte IFCH/UNICAMP. 2005, p. 267.
22
A partir dessa edição traduzida e organizada por Ghelardi que Cassio Fernandes verteu o referido texto ao português.
Cf. BURCKHARDT, Jacob. O retrato na pintura italiana do Renascimento. Organização, tradução e apresentação de
Cassio Fernandes; Prefácio e notas de Maurizio Ghelardi. Campinas: Editora Unicamp, 2013.
23
Basta lembrar que Edward Munch executava em 1894, O Grito, a obra mais emblemática do expressionismo alemão.
24
Op. Cit. STENDHAL, 1994, p. 315.
25
QUATREMÈRE DE QUINCY, A. C. Histoire de la vie et des ouvrages de Michel-Ange Buonarroti. Paris : Firmint
Didot Frères, 1835, p XVI.

21
Stendhal, e ainda mais certamente Quatremère de Quincy, indicavam terem se
impactado com o décimo quinto e último Discours on Art, pronunciado por Joshua Reynolds em
1791, cego e com débil saúde, mas cujos escritos completos seriam vertidos ao francês já em 1806,
pouquíssimo tempo após a sua morte. Reynolds contribui imensamente para o processo de
reabilitação de Michelangelo, e daria, através de suas palavras, substrato intelectual a partir do qual
o artista italiano seria profundamente reelaborado ao longo de todo o século seguinte:
“Se a grande estima e até mesmo a alta veneração das quais Michelangelo gozou em todos
os tempos entre todos os povos podem ser atribuídas a uma prevenção, é preciso convir ao
menos que esta prevenção deve ser fundada sobre uma causa; e o tema de nossa prevenção
torna-se então a origem de nossa admiração. [...] Eu segui um outro caminho mais de
acordo com meus talentos e mais conveniente ao tempo em que eu vivi. Contudo, qualquer
debilidade que eu me sinta por semelhante empresa, si eu tivesse de recomeçar minha
carreira, eu me arriscaria a caminhar sobre os traços deste grande mestre, e eu veria minha
ambição satisfeita se eu chegasse a possuir o meio de suas perfeições.
Eu felicito a mim mesmo por me acreditar capaz de experimentar os sentimentos que ele se
propunha inspirar. O que não é sem vaidade que eu penso que todos estes Discursos trazem
um testemunho de minha admiração por este homem realmente divino, e eu faço vozes para
que as últimas palavras que eu pronunciarei nesta academia e neste lugar possam ser o
nome de Michelangelo”26.

O trecho ora reproduzido seria recuperado por Eugène Delacroix no ensaio biográfico de
Michelangelo escrito em 1830 e sobre o qual refletiremos nos capítulos que seguem, mas vale
antecipar que sua elaboração se dava no momento mesmo em que ele lia fervorosamente a crucial
Histoire de la Peinture en Italie, de Stendhal. Delacroix, ao se valer de Reynolds para conduzir às
conclusões de sua biografia michelangiana, ele repetia, em verdade, a estratégia do próprio
acadêmico inglês. Mas Reynolds encerrava energicamente seu discurso anunciando-se um seguidor
fiel de Michelangelo ao contrário do que sua arte de fato havia proclamado. Ao contrário também
do que o destino reservou ao mestre florentino, que não deixou discípulos ou, se os teve, foram
medíocres se comparável ao seu espírito e por isso os tivesse recusado. Talvez ainda porque
Michelangelo seja “maestro ai maestri”27, e aqueles que decidem tê-lo atravessado à vida, sejam
atingidos por alguma ordem de fulguração. Reynolds morreria apenas dois meses depois de
pronunciar o discurso.
A devoção michelangiana professada por Reynolds o havia acompanhado ao longo de
sua vida artística. No autorretrato executado para a galeria dedicada a tal gênero na Galleria degli

REYNOLDS, Joshua. Quinzième discours , prononcé à l’occasion de la distribution des prix, le 10 décembre 1790.
26

In. : Oeuvres complètes du Chevalier Reynolds. Paris : aos cuidados de Arthur Bertrand, 1806, pp.65-66. A citação de
Delacroix, no entanto, é ligeiramente diferente da tradução de 1806.
27
ARGAN, Giulio Carlo. Il Michelangiolismo. In.: Atti del Convegno di Studi Micheangioleschi. Roma: Edizioni
dell’Ateneo, 1966, p. 399. – Tradução brasileira: O Michelangismo. In.: Clássico anticlássico: o Renascimento de
Bruneleschi a Bruegel. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 337.

22
Uffizi, em Florença (Figura 1), o pintor inglês apresentava-se tendo à mão um pergaminho no qual
se lê: “Disegni del Divino Michelagnolo Bon...”. O drama acentuado pela luz cortante que Reynolds
admirava nos autorretratos de Rembrandt que ele observara e estudara atenciosamente, era
precedido pelo retrato executado por sua amiga Angelica Kauffman em 1767 e antecedia outro
autorretrato realizado em 1780, ambos os quais ele figurava diante do célebre busto de
Michelangelo executado por Danielle da Volterra, e que difundiria em larga escala a face rugosa do
artista estampada por um olhar vazio e terno, obra que, como será demonstrado, tornar-se-ia
referência inescapável para as representações da fisionomia tristonha de Michelangelo.

Figura 1

Reynolds corresponde ao marco fundamental da renovação do interesse por


Michelangelo, que se perdera progressivamente desde fins do próprio século XVI. Se Vasari impõe
tacitamente a autoridade de Michelangelo como nec plus ultra localizando-o ao fim de sua
teleologia artística, isto é, postulando a partir dele o próprio fim da arte, o discurso de Reynolds
funciona como uma resolução a este problema, e alcançariam nas palavras de Delacroix em 1837,
uma síntese definitiva: “Michelangelo é o pai da arte moderna”28.
As palavras de Reynolds resignado do completo hermetismo de seus discursos refletem
também alguma instância de reação ao rigor neoclássico de Mengs e Winckelmann, já difundidos
em toda a Europa, manifestando, por outro lado, a sinalização contra a aventura arqueológica do

28
DELACROIX, Eugène. Sur le Jugement Dernier. Revue des Deux Mondes. Paris. Tome XI. Numéro juillet/août.
1837, p. 343.

23
gosto, em favor de um futuro distante, mas certo29. A reversão instaurada pelo seu discurso faz
nascer a noção de que o conteúdo subjetivo da arte de Michelangelo o coloca no limite da essência
benigna ou maligna da existência humana, aspectos estes implícitos e dissolvidos na literatura
oitocentista que encontrará em Michelangelo a essência antecipada daqueles tempos.
Ainda na Inglaterra, antes da aurora michelangiana do século XIX na França,
reconhecer-se-ia justamente no mestre florentino a oportunidade de filiação e legitimação para o
esvaziamento do valor do clássico. Quando Fussli, por exemplo, vai a Roma, em lugar de se
encantar por Rafael, onde está sintetizada a razão plástica a partir da qual seria, posteriormente,
fabricada a unidade fundamental do que se chamaria Renascimento italiano, ele se interessa de um
lado pela força esmagadora do gigantismo ciclópico dos colossos antigos e, por outro, pela
convulsão petrificada de Michelangelo. Blacke, por outro lado, encontraria nos escritos
michelangianos, a revelação de uma poesia mística e extasiante, de conexão direta com o divino e
de ligação com os mistérios do universo. Atribuem-se a estes dois artistas, e alguns outros que não
cabe aqui comentar, o nascimento da arte romântica, partindo-se do princípio de que o romantismo
consistiria em uma resposta indefinível e heterogênea à concepção estética do mundo organizado
pela regulação da mimesis30. O romantismo, como afirmou Baudelaire, nunca esteve nem na escolha
dos temas nem na verdade exata, pois ele é um modo de sentir, orientado pelo olhar sistemático
para o passado, movimento gerado e gerador do direito de se contradizer31. Romantismo, desse
modo, não caracteriza nem define um período, mas identifica a natureza de um fenômeno32.
Equivocadamente acredita-se que reside aí o embrião da própria noção de moderno,
fundamental para a compreensão das páginas que seguirão. Em geral, contudo, a percepção do
moderno estaria ancorada na capacidade do indivíduo de compreender a si mesmo como ser dotado
de subjetividade, agente de suas próprias decisões e senhor de seu próprio destino; como capacidade
de refletir sobre o seu próprio tempo e de se colocar a favor ou contra ele. Dessa maneira, se à ideia

29
VENTURI, Lionello. Histoire de la critique d’art (1964). Paris : Flamarion, 1969, p. 151.
30
WAT, Pierre. Naissance de l’art romantique. Peinture et théorie de l’imitation en Allemagne et en Anglaterre (1998).
Paris : Flammarion, 2012, pp. 15-30.
31
BAUDELAIRE, Charles. Salon de 1846. In: Oeuvres Complètes (II). Curiosités Esthétiques. Paris: Michel Levy
Frères, 1868, pp. 84-87. – Baudelaire reafirmaria tal concepção mais tarde, no ensaio intitulado “Edgar Poe, sa vie et
ses oeuvres”, que serve de prefácio a: POE, Edgar Allan. Histoires Extraordinaires (1856). traduites par Charles
Baudelaire. Paris: Michel Levy Frères, 1875, p. XVIII: “Entre a extensa enumeração dos direitos do homem que a
sabedoria do século XIX retoma com tanta frequencia e prazer, duas bastante importantes foram esquecidas, que são o
direito de se contradizer e o direito de ir embora ».
32
É basicamente este o motor do importante ensaio de Löwy e Sayre, que identificam o romantismo em distintos
contextos históricos e culturais. Cf. LÖWY, Michael e SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na
contracorrente da modernidade (1992). São Paulo: Boitempo, 2015.

24
de moderno está ligado tudo aquilo que rompe com uma tradição33, e a tradição é praticamente
sinônima de Rafael, Michelangelo significa modernidade na medida em que ele se opõe
absolutamente ao ideal artístico de seu rival, e nisto se inclui a conformação de suas respectivas
personalidades. Basta lembrar que enquanto Rafael é artista erudito, bem relacionado, detentor de
rudimentos de latim e conhecedor de toda literatura antiga, Michelangelo, por sua parte, resiste em
tornar-se um cortesão quando o movimento social dos artistas segue intensamente nesse fluxo, ele
recusa-se em liderar um atelier, acredita que a força de suas vontades é equiparável ao poder de um
Papa, ele é alguém, em suma, que não impressionaria se sobre ele fosse afirmado que se recusou a
dar um desenho para uma autoridade para oferecê-lo a uma pessoa qualquer. Nesse sentido,
Michelangelo seria, inclusive, incoerentemente divinizado em vida, e foi assim que certa geração de
franceses preferiu entendê-lo.
Deste modo, a reflexão mais recorrente na França
que tende a identificar no artista toda a forma de castigo e
condenação humana imposta pelo mundo sob a forma de uma
sulfurosa melancolia não é mera projeção do século XIX.
Entretanto, a identificação de Michelangelo como o pensieroso
da “Escola de Atenas” (Figura 2), executada por Rafael na
Stanze della Segnatura em 1509, no mesmo momento em que
Michelangelo recusava qualquer ajuda para a execução dos
afrescos do teto da Capela Sistina, não foi testemunhada pelo
século XIX e, portanto, tal intepretação não será sobreposta às
reflexões que se seguirão, pois fazê-lo seria de um desmedido
anacronismo. Esta identificação seria proposta e defendida pela
Figura 2 primeira vez apenas em 1942 por Deoclécio Redig de
34
Campos . Este ensaio antecedia os diversos estudos de Leo Steinberg a partir dos quais iria se
naturalizar a suspeita de que Michelangelo teria executado diversos autorretratos velados35.

33
COMPAGNON, Antoine. Le cinq paradoxes de la modernité. Paris: Éditions Seuil, 1990, p. 7.
34
CAMPOS, Deoclecio Redig de. “Il pensieroso dela Segnatura”, In.: Michelangelo Buonarroti nel IV centenário del
―Giudizio Universale” (1541-1941). Studi e Saggi. Firenze. 1942, pp. 205-209. O artigo seria posteriormente reeditado
em: Idem. Raffaello e Michelangelo. Studi di Storia dell’arte. Roma: Bardi, 1946, pp. 83-98. – A identificação de Redig
de Campos seria muito bem aceita e repetida por Wittkower (1963), por exemplo.
35
Sobre a identificação de Michelangelo como Saulo, chancelada por Steinberg, Cf. infra. Parte I; 1, p. 38. Steinberg é
autor de diversos ensaios nos quais argumenta sobre esta hipótese, sempre partindo do método deslizante da semelhança
fisionômica. Muitos outros estudos seguiriam encontrando outros autorretratos em sua obra, identificando Michelangelo
invariavelmente na face do supliciado. A autenticidade deste problema toca às possíveis manobras que teria realizado o

25
Contudo, eliminar os riscos da sedução do anacronismo não significa excluir toda a possibilidade de
articulação de ideias e momentos históricos distintos, que não estão diretamente ligados. Este é o
caso do epistolário michelangiano, muito pouco conhecido na França oitocentista e que, portanto,
não alimentou intensamente a reformulação da imagem melancólica de Michelangelo, mas ao qual é
preciso recorrer pontualmente. Este trabalho constrói-se sobre o pressuposto de que a vida que
Michelangelo assume na França ao longo do século XIX é resultado de um complexo processo de
imaginação decorrente do fenômeno de mitificação de sua imagem, pelo qual passou durante os
séculos XVII e XVIII. Trata-se, antes de tudo, da compreensão de que há estilhaços dissolvidos pela
história, que apesar de serem indicadas por documentos, essas reminiscências os ultrapassam e se
transformam. Essa transformação é o resultado da conformação da potência desta presença
silenciosa de uma ideia que faz imagem.

***

A razão do sensível processo de reformulação biunívoca entre a imagem e a obra de


Michelangelo ligava-se intimamente à procura apaixonada pelas raízes históricas do presente. Pois
no século do materialismo histórico por excelência, o mestre florentino parecia ser o sujeito que
incarnava precisamente todo o mal du siècle36 fora (e antecipador) de seu próprio tempo,
constituindo-se duplamente da inadequação catalisadora daquele tão desejado mal estar utópico.
Michelangelo incarnava um tipo prematuro de Ubermensch romântico; sujeito que, em toda a sua
grandeza, comporta todo o desespero e veneno do mundo. Lembra-nos Yves Hersant, na esteira do
que o casal Wittkower já havia longamente refletido, que quando superabunda a bile negra entre os
fluidos do corpo, ela provoca um desequilíbrio tal que, ora ela conduz o sujeito a um absoluto
estado de torpor, ora desperta as mais nobres efusões orgânicas 37. Um ruído ocorre no momento em
que se instaura gradualmente uma profunda ressignificação da ideia de melancolia, desligando-se
dela o caráter de qualidade orgânica para equivaler-se a um mal da alma38. Elevada ao grau das

próprio artista para se fazer reconhecer por seus contemporâneos sempre no lugar do transfigurado, como acreditou
Wittkower [1963] e Barolsky [1990], por exemplo.
36
A expressão fora utilizada pela primeira vez por Auguste Musset em “Confession d’un enfant du siècle”, de 1836, e
acabou por sintetizar os anseios da segunda geração romântica francesa, isto é, aquela que sucede a geração que
enfrentou a Revolução de 1789 e precede a chamada geração decadente.
37
HERSANT, Yves. Le marteau de Michel-Ange. Communications. 64. 1997, p. 80
38
O processo que aqui se refere diz respeito às diversas interpretações das teorias humorais dos antigos, desde Galeno e
Hipócrates, no campo da medicina, até Platão e Aristóteles e Platão, na filosofia.

26
forças mentais, ela seria entendida justamente como fator originário de uma pathosformel à qual a
obra de Michelangelo seria desde tão cedo associada.
Em todo caso, muito antes de Rolland Fréart de Chambray chancelar a expulsão do
“maldito anjo da pintura” do paraíso onde reinava Poussin, abençoado pelo gracioso Rafael39,
Michelangelo já aparecia em terras francesas, na qual nunca pisou, como um jovem acometido por
um desequilíbrio humoral. Na gravura atualmente atribuída a um artista francês não identificado do
círculo da Escola de Fontainebleau (Figura 3), a figura ideal de Michelangelo libera a cabeça sobre
a mão dobrada, enquanto as pernas se entregam ao peso da fadiga física. A inscrição, causadora de
uma imensa discórdia da imagem consigo mesma, indica a idade de 23 anos do jovem escultor, isto
é, ela se reportaria ao ano de 1498, marcado pela encomenda da Pietà vaticana pelo cardeal francês
Jean Bilhères de Lagraulas, para a capela dos Reis de França na basílica de São Pedro,
popularizando na Itália o tema do sofrimento materno diante do corpo morto de seu filho, já
bastante familiar aos franceses. Nascia então a primeira relação do mestre florentino com a França
registrada pela gravura, não obstante sua datação imprecisa, cuja execução seria, com grande
probabilidade, posterior ao período indicado pela idade de Michelangelo, posterior ainda à execução
da Escola de Atenas. Esta imagem, por outro lado, seria prova consistente do impacto causado pela
imagem düreriana do ser alado, de face soturna e andrógina, que reflete sobre a crueldade do tempo
que tudo consome, tal como Heráclito refletiu sobre o impiedoso tempo devorador.

Figura 3

39
Sobre a crítica de Roland Fréart de Chambay vide infra, Parte I; 1, p. 41.

27
Ao passo que se fabricava o conceito de Renascimento italiano como núcleo em torno
do qual gravitava a ideia de que sobre esse momento repousaria um luminoso otimismo acerca do
passado, do presente e do futuro, a partir da reelaboração dos princípios do mais incorruptível
classicismo, a recuperação de Michelangelo, paradoxalmente, postulava o contrário. O objetivo
deste trabalho é demonstrar como o renascimento do interesse pelo artista na França durante o
século XIX, e mais intensamente no arco temporal aqui privilegiado, realizou um duplo movimento:
de um lado, esteve ligado à ideia de desajuste, seja da própria noção de clássico, seja da consciência
do indivíduo sobre si próprio e sobre o seu tempo. De outro lado, o fenômeno de (re)formulação do
nó que une a vida à obra de Michelangelo coincide e se confunde com uma profunda redefinição do
estatuto social do artista e, de modo geral, do estatuto da própria arte.

***

“A paixão do escultor é fazer-se todo extensão para que, do fundo da extensão, uma
estátua de homem possa brotar. Pensamentos de pedra o perseguem”40. – Estas palavras de Sartre
que não se referiam a Michelangelo, mas sim a Giacometti, parecem defini-lo com precisão ou,
mais do que isso, parecem condensar a definição de toda a genealogia de “artistas modernos” sobre
a qual Michelangelo, de certo modo, exerce um caráter de paternidade. Não se deve dispensar que
seria, em grande medida, o próprio Michelangelo a se valer da figura da morte existente sob a pedra
bruta que ele, pouco a pouco, desbastava e revelava, à semelhança de sua teoria artística, segundo a
qual todo mármore traz em si antecipadamente uma existência latejante. Séculos depois, por outro
lado, sua concepção artística traduziria um cosmos expressionista avant la lettre, do qual nenhum
ser escapa da condenação, nem mesmo aquele corpo que ainda aguarda por conhecer a luz do
mundo. A engrenagem romântica ativaria ainda a válvula de um Michelangelo equacionado pela
fórmula da existência precedida pela essência41, razão da amargura de onde nasce toda criação
potente: “Obrigado ao silêncio, quis dar uma linguagem às artes mudas, multiplicar as alegorias, os
símbolos, escreveu um livro no teto da Sistina, torturou o mármore para forçá-lo a falar”42.
A fúria demiúrgica de Michelangelo se repetiria incontavelmente. A ela ligar-se-ia o
conceito de terribilità, catalizador da crítica michelangiana pós-vasariana, ao qual não diz respeito

40
SARTRE, Jean Paul. La recherche de l’absolu. In.: Situations, III. Lendemains de guerre. Paris: Gallimard, 1976, p.
291.
41
Axioma fundamental do existencialismo satriano.
42
SARTRE, Jean Paul. O sequestrado de Veneza (1957). São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 48.

28
apenas o temperamento saturnino do artista e sua preferência pela solidão, mas também, mutatis
mutandis, ao estilo grandioso de suas obras, revestidas de uma absoluta potência estética
terrificadora, mas atravessadas por uma difficultà da forma. Assim, o termo utilizado por Vasari
tornar-se-ia proverbial43, por indicar a ambivalência entre a impetuosidade de seu caráter e o
resultado formal de sua obra, a um só momento. Paradoxalmente, a raiz da crítica que identificaria
na obra de Michelangelo a sua capacidade de “des-cobrir” na pedra personagens atingidos por uma
agonia na qual o próprio mestre parece se projetar, seria a mesma de onde derivaria a defesa de uma
separação fundamental entre artista e obra44.
Este desejo de ruptura não passava de uma ardente vontade de revisão da premissa
fulcral das concepções de Charles Augustin de Sainte-Beuve, para quem a obra de um escritor seria
não apenas a explicação de sua vida, mas também o seu reflexo direto. Contra ele manifestou-se
Proust45, e ao seu favor esteve Sartre. Malgrado tudo, Proust haveria de concorda-lo em alguns
aspectos quando afirmou de maneira metalinguística que “os grandes literatos nunca fizeram senão
uma única obra, ou antes, apenas refrataram por meios diversos uma mesma beleza que eles
conduzem ao mundo”46. Mas seria Sainte-Beuve que, ainda muito jovem, ao ser marcado indelével
por Michelangelo, reconheceria que dele não se ultrapassava “a semelhança aos mortais” e o
“desengano da glória”.

43
WITTKOWER, Rudolf e Margot. Nati sotto Saturno. La figura dell’artista dall’Antiquità ala Rivoluzione francese
(1963). Torino: Einaudi, 2014, p 86.
44
Trata-se aqui da defesa argumentada por Merleau-Ponty no célebre ensaio “La doute de Cèzanne”, escrito em 1945. É
preciso lembrar da profunda relação entre a fenomenologia e o existencialismo, do qual Sartre, neste mesmo momento,
levantaria bandeira. Na França, outro personagem a quem se liga o problema da união intrincada entre sujeito e obra é o
Marquês de Sade, que passou, ao longo do século XIX a assumir a face criminosa e pervertida de seus personagens.
45
Trata-se do célebre ensaio de Proust intitulado “Contre Sainte-Beuve”, que nomeia também a coletânea na qual tal
ensaio se insere, publicada postumamente em 1954.
46
PROUST, Marcel. La prisonnière (2). La recherche du temps perdu (vol. 12). Paris : Gallimard, 1923, pp. 218-219. –
Esta mesma referência é feita por Charles de Tolnay em: TOLNAY, Charles de. Miguel Ángel: pintor, escultor y
arquitecto (1975). Madrid: Alianza Forma Editorial, 1992, p 9.

29
PARTE I

O renascimento do Renascimento

30
1. Vasari, Condivi e além

O interesse por Michelangelo que a França viu renascer no início do século XIX após o
absoluto ostracismo ao qual foi relegada a obra do mestre parece se dever, em grande medida, à
redescoberta de sua poesia47. Já no século XX, a reavaliação da lírica michelangiana passaria pelo
crivo de “Ungaretti e Montale, Binni, Contini e Testori, que chegaram a colocar o artista no topo
dos valores da literatura italiana do seu tempo”48, embora Benedetto Varchi já tivesse reconhecido
nele a indiscutível qualidade de seus poemas e a sua íntima ligação com a sua escultura49.
Em 1960, Enzo Noè Girardi reorganizaria as Rime de Michelangelo50, publicada pela
primeira vez por Michelangelo Buonarroti, il Giovani em 1623, em Florença. Entre uma e outra
publicação, duas edições são especialmente importantes: a de 1863, organizada por Cesare Guasti51,
como ricordi do tricentenário de morte do artista florentino, e, anteriormente, a edição parcial de
1821, organizada por G. Biagioli52 e fartamente enriquecida por seus comentários, publicada em
Paris, inteiramente em italiano. Na impossibilidade de acesso à raríssima publicação do século
XVII, era possivelmente esta edição parcial consultada por toda a geração romântica, na qual o
jovem Charles Augustin de Sainte-Beuve se incluía.
Em setembro de 1829, antes de se afirmar como um dos principais verbetes da literatura
de seu tempo, Sainte-Beuve realizava uma livre tradução para um soneto de Michelangelo. Tratava-
se de “Ma barque est tout-a-l’heure aux bornes de la vie”, cujo primeiro verso do original italiano –

47
Entre as obras mais importantes sobre o trabalho poético de Michelangelo destacam-se: DESPLACES, Auguste.
Michel-Ange, poète. RP. T.18. 1840, pp. 129-140; LANNAU-ROLLAND, A. Michel-Ange poète. Prémière traduction
complète de ses poésies, précédé d’un étude sur Michel-Ange et Vittoria Colonna. Paris : Didier ET Ce, Libraires-
Éditeurs. 1860 ; RAYSSAC, Saint-Cyr de. Quinze sonnets de Michel-Ange. GBA. T. XI. 1875, pp. 5-18.
48
MIGLIACCIO, Luciano. Poemas de mármore: Michelangelo escultor e poeta nas Lezioni de Benedetto Varchi. Rev.
bras. Hist. [online]. 1998, vol.18, n.35 [cited 2014-12-12], pp. 207-216. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01881998000100009&lng=en&nrm=iso Argan
desenvolve, em seu conhecido ensaio, algumas questões fundamentais para a compreensão do trabalho poético de
Michelangelo, inseridas no ponto levantado. Cf. ARGAN, G. C. Michelangelo artista e poeta. In.: ARGAN, G. C.,
CONTARDI, Bruno. Michelangelo (1987). Firenze: Giunti, 1999.
49
Na segunda edição da Vita di Michelangelo Vasari incorpora tal soneto, celebrizado por Benedetto Varchi nas “Due
Lezzione” (pronunciadas em 1547 e publicadas em 1550), de onde Vasari extrai a referência. Para a reedição do texto,
Cf. RECUPERO, Jacopo. Michelangelo. Roma: De Luca editore, 1964, pp. 297-314.
50
GIRARDI, E. N. Michelangelo Buonarroti, Rime, con Varianti. Apparato, Nota filológica. Milano: Rizzoli. 1960.
51
GUASTI, Cesare (ed.). Le Rime di Michelangelo Buonarroti pittore scultore e architetto cavate dagli autografi.
Firenze: Felice Le Monier. 1863.
52
BIAGIOLI, G (ed.). Rime di Michelangelo Buonarroti il Vecchio, col comento di G. Biagioli. Parigi: Presso l’Editore.
1821.

31
“Giunto è già 'l corso della vita mia” – ele utilizaria também como epígrafe53. Eugène Delacroix,
tão jovem quanto Sainte-Beuve e ainda delineando seus interesses artísticos, não por acaso se
interessaria pelo mesmo poema, e a ele retornaria pontualmente, como será analisado mais
adiante54. O que importa é que ambos, pintor e poeta, tocavam-se pela angústia que nascia da
obsessão do artista em dar forma à ideia. Ou, mais do que isso, eles reconheciam na agonia do ser
que habita silencioso o mármore, o sofrimento da alma condenada à prisão do corpo, que aguarda a
sentença liberatória da morte.
No mês seguinte ao da realização da tradução, Sainte-Beuve dava provas de que
Michelangelo era-lhe presença constante em seus pensamentos, quando uma nova menção é feita ao
artista. Desta vez o mestre aparecia inalterado em sua permanência paralisada. Ele continuava ali
como síntese de homem desiludido, inconsolado. O mancebo, que não nutria por Michelangelo um
interesse que superasse sua essência poética, ao elencar os seus mentores espirituais, seus guias
intelectuais, ele deixa desta vez escapar:
[...]
E quem, há trinta anos, vivendo no mesmo lugar,
Em contemplação diante do mesmo Deus,
Através dos suspiros da espuma e da onda
Distingue, à noite, cantos vindos de um mundo melhor
É Michelangelo cego e lançando o cinzel;55

A concepção segundo a qual o silêncio contemplativo de Michelangelo funda um mundo


porque ele, por si mesmo, funda teorias não é de todo inverossímil, não é inédita, e nem se
encerraria aí56. O ato furioso de lançar o cinzel ao chão seria elemento marcante no tocante ao
célebre temperamento de Michelangelo, traço de sua imediata identificação como autêntico gênio,
que não age senão movido pelo impulso violento e incontrolável da inspiração. É plausível

53
SAINTE-BEUVE, Charles Augustin. Les consolations (1830). Bruxelles: Hauman Cattoir, 1837, p 93. – Em Girardi
[1960] trata-se do soneto n. 285. Na edição de Biagioli [1821] trata-se do soneto LVI, p. 123. – No ano anterior (1829),
Sainte-Beuve publicava “Vie, poésie et pensées de Joseph Delorme” no qual a poesia “À David, statuaire” (d’Angers)
recorre aos mesmos recursos expressivos daqueles empregados a Michelangelo, isto é, aquele do escultor extasiado e
angustiado, do trabalho árduo do homem que desbasta a pedra bruta para encontrar a forma ideal que nela reside e da
relação entre o trabalho artístico e poético com a morte.
54
É preciso antecipar que tais versos, reproduzidos por VASARI, 2011, p. 149, isto é, na segunda edição de sua
biografia, assinalariam a manifestação frequente de memento mori e do espírito extremamente melancólico pelo qual
Michelangelo era dominado nos anos de 1550, agravado pela perda de seu fiel criado Urbino em 1556. Data desta época
a carta enviada a Vasari, e também reproduzida na biografia, na qual o mestre florentino diz, sobre a morte de Urbino:
“A graça foi que, quando em vida, [Urbino] me mantinha vivo e, morrendo, ensinou-me a morrer sem desprazer, mas
com desejo da morte”. Cf. VASARI, 2011, p. 146; MICHELANGELO, 2009, p. 141. – Vide infra, nota 107.
55
Op. Cit. SAINTE-BEUVE, 1837, p. 106. (TN)
56
Talvez as palavras do jovem Rilke corroborem toda a ideia desenvolvida ao longo de quatro séculos. De sua viagem à
Itália resultou o célebre “O Diário de Florença”, onde afirma: “Dado que se tivesse deixado Michelangelo sozinho por
um único instante, ele teria aplicado o seu cinzel ao mundo e extraído desta esfera amassada a escultura de um escravo”.
RILKE, Reiner Maria. O diário de Florença. São Paulo: Nova Alexandrina, 2002.

32
considerar que tal referência seja efeito, de um lado, da força que a epopeia solitária da execução do
afresco na abóbada da Capela Sistina ganha no século XIX57. Por outro lado, é possível que se deva
à sua dedicação intermitente ao monumental Sepulcro do Papa Júlio II, que lhe tomou quarenta de
seus oitenta e nove anos, e nos legou diversas obras inacabadas, duas das quais Sainte-Beuve
seguramente observou no Louvre58, e anunciada na biografia michelangiana escrita por Ascanio
Condivi em 1553 como “la tragedia della sepoltura”59. Esta biografia, no entanto, parecia ser
desconhecida por Sainte-Beuve, bem como aquelas escritas por Vasari, nas quais em ambas as
edições (1550; 1568), Michelangelo é protagonista absoluto, assim como a de Paolo Giovio, de
circa 1527.
A imobilidade oriunda de um estado meditativo extasiante, a submersão do gênio
isolado na imensidão de seus pensamentos e o marcante temperamento sulfuroso de Michelangelo
compunham, compreensivelmente, as características elementares do artista retomadas pelo poeta.
Nada disso comprometeria o clássico tema da solidão criativa priorizado por Sainte-Beuve se,
contudo, ele tivesse abnegado à referência da cegueira de Michelangelo, que não passaria de um
ingênuo equívoco sobrevivente dos mitos apócrifos criados em torno do mestre. Mas se o jovem
poeta dispensa a literatura artística do Renascimento italiano como referência de apoio é porque, ou
ele prefere renunciar aos documentos para afirmar a liberdade da arte e o seu desvinculo com
qualquer tentativa de apreensão da História, ou porque ele realmente ignora o fato de que
Michelangelo, até então, havia sido o único artista a receber ainda em vida a soma de três
biografias, ou ainda pela soma desses fatores. Além do mais, sugerir a hipótese de que Sainte-Beuve
se refere a uma cegueira metafórica requer um demasiado forçoso. De todo modo, o poeta dá provas
aqui de que a recepção da literatura artística do Renascimento italiano na França era, senão
nebulosa, ao menos problemática.

57
O episódio é narrado por CONDIVI, 2007, pp. 67-74, embora seja sob as palavras de VASARI, 2011, pp. 98-108 que
o evento tenha adquirido um teor épico.
58
Trata-se dos dois Escravos, que chegam ao Louvre em 1794, saqueados em 1792 do Castelo do Cardeal Richelieu, em
Poiteau devido aos duros anos de terreur da Revolução Francesa. A trajetória dos Escravos na França é, contudo
nebulosa, e mesmo grandes especialistas da obra de Michelangelo na França revelam as incógnitas que envolvem a
obra. Diz Mariette: “Eu ignoro o tempo que elas foram substituídas para ser transferidas ao castelo de Richelieu em
Poitou, construído para o cardeal deste nome, onde essas duas estátuas atraem ainda a admiração de connoisseurs que
vão visitar esta bela residência”. Apud. MARIETTE, P. J. Observations de M. Pierre Mariette sur la vie de Michel-
Ange écrite par le Condivi son disciple. In. : CONDIVI, Ascanio. Vita di Michelangelo Buonarroti, scritta da Ascanio
Condivi. Da Ant. Francesco Gori. Firenze: G. Albizzini, 1746. Republicada em Pisa, 1823. – Entre os mais célebres
admiradores dos Escravos enquanto ainda se encontravam no Castelo de Poitou esteve Bernini, quando de sua visita à
França, em 1662.
59
Op. Cit. CONDIVI, 2007, pp. 74; 87

33
Figura 4

A ideia de que Michelangelo perde progressivamente sua visão ao fim da vida parece
saborosa ao poeta francês é porque ele não hesita em duvidar de que para um gênio artístico, a
cegueira corresponde a uma justa e desejável perda da medida de contato com o mundo exterior
como ativação potente de autoconfinamento. Ademais, para um artista como Michelangelo, a visão
é sublimável porque a arte é a substância por excelência que o compõe; é um sentido perfeitamente
dispensável. Mas Sainte-Beuve não cria esse mito ex-nihilo. A cegueira do artista era conhecida e
apreciada na França, ao menos durante a primeira metade do século XIX 60. A mais antiga referência
visual a este evento fictício que nos restou é a decoração de uma bandeja de porcelana dourada da
manufatura de Sèvres61, realizada a partir de uma pintura desaparecida de Alexandre-Evariste de
Fragonard (Figura 4), filho de Jean-Honoré de Fragonard e discípulo de Jacques-Louis David.
Michelangelo cego é orientado a tocar o Torso de Belvedere (ANEXO II, 1), em um encontro
triunfal entre o ser e a obra. Acontece aí um ato mágico de contato emocionante entre o mestre
florentino e, duplamente, seu alter-ego: ele em si mesmo, ativado pela cegueira, e ele em forma de
obra ancestral.

60
Ao que tudo indica, a primeira aparição do tema em pintura seria por obra de Bergeret (Salon de 1817, nº 17). Uma
análise desta pintura seria apresentada em: MIEL, Edmé François Antoine Marie. Essai sur les Beaux-Arts [et. al.].
Paris, L’imprimerie de Didot le Jeune, 1818, p. 303. – A segunda aparição seria de dois anos depois, em obra de Couder
(Salon de 1819, nº 243), embora Michelangelo toque o Torso de Belvedere sem qualquer evocação de sua cegueira.
Esta obra seria também reproduzida (sob o número 47) em LANDON, Charles Paul. Annales du Musée et de l’École
moderne [et. al.]. Salon de 1819, t. II, p. 71.
61
Trata-se de uma peça que faz parte, não por acaso, de um aparelho de jantar dedicado às experimentações dos
sentidos.

34
A relação de Michelangelo com o Torso enquanto ideia abstrata que, sob esta condição,
concentra em si a ambivalência de fragmento e plenitude, em momento algum é mencionada seja
por Vasari ou Condivi62. Nasce das palavras de Winckelmann, séculos mais tarde, a eficiência dessa
relação de incontestável admiração. O teórico alemão, lido fervorosamente na França, em 1759 iria
se referir ao mármore antigo como “Torso de Michelangelo”, evocando a estima que o escultor
nutria pelo torso, por ele observado e estudado inúmeras vezes63. Para além de todas as
aproximações mencionadas pelo intelectual alemão entre Michelangelo e a obra antiga, sempre
afirmativa de que haveria no fragmento uma presença antecipada do mestre florentino, ele iria
também, por meio de descrições eruditas e inflamadas, ativar sua qualidade tátil sem, no entanto,
fazer qualquer menção a Michelangelo cego que substitui sua visão perdida pelo contato físico com
o fragmento antigo.
Michelangelo, cuja vida seria inteiramente atravessada pela obsessão da grandeza do
corpo humano, e especialmente do corpo masculino, teria em seu quimérico encontro com o torso a
marca de um ato poético. Pois o ser diante da pedra exaspera a “re-união” triunfal entre o homem,
isto é, ele próprio todo em si, e a coisa, que elaboram, cada um a seu modo, as suas próprias
existências. A coisa, em toda a sua incompletude, é completa em si mesma, porque formula em si e
para si, o seu cosmos. E parece emergir daí a redenção da matéria-pura-forma sob o véu mítico que
há nela. Assim, este “ato poético” funda um processo de inversão do idealismo michelangiano por
um formalismo romântico, em grande medida antecipador do olhar sob o qual Michelangelo estaria
relegado nas últimas décadas do século XIX e princípios do século XX64.
Malgrado as sucessivas elaborações de novas versões para a biografia de
Michelangelo65, o mito de sua cegueira seria ainda retomado. A primeira publicação da obra
completa de Michelangelo na França seria precedida de um pequeno ensaio biográfico. No referido

62
O torso seria exumado em local e data imprecisos, e as primeiras menções que se fazem a seu respeito datam do
século XV. Embora não seja citado em nenhuma das edições da Vita di Michelangelo, de Condivi ou Vasari, uma das
notas da reedição do segundo por Bottari, elaborada entre 1759-1760, cumpriria o papel de conectar diretamente
Michelangelo ao fragmento antigo. Para a edição de Bottari, vide infra, p. 38. – MIEL, 1818, p. 303 dá especial atenção
para o que se poderia chamar de “completa incompletude” do mármore antigo e para a capacidade de Michelangelo “ver
com a mão”.
63
WINCKELMANN, J. J. Bibliothèque des belles-lettres et des arts libéraux, 1759. In.: De la description. Paris:
Macula. 2006, p 140.
64
Trata-se aqui da compreensão de Michelangelo segundo os princípios de Rodin, e encontrados de modo cada vez
mais intensificados em Cézanne, Matisse, Bourdelle, Henry Moore entre outros.
65
Sobre as biografias de Michelangelo, vide Parte I; 2. Até a década de 1840, já haviam sido publicadas além dos
textos de Delacroix (1830) e Dumas (1846), analisados mais adiante, somava-se aquela escrita por Quatremère de
Quincy (1835), mencionada na Introdução, p. 21.

35
livro, de autoria não anunciada e que traria também obras escolhidas de Bacio Bandinelli e Daniele
da Volterra, dois dos seguidores e propagares da obra de Michelangelo, afirmava-se:
“Temos uma forte prova, e podemos dizer muito chocante, do entusiasmo que lhe inspirava
as obras primas do cinzel grego, em uma anedota autêntica e narrada por diversos de seus
biógrafos. Ao fim de seus dias, sua vista se enfraquecia progressivamente ao ponto que ele
tornou-se completamente cego. Neste estado, ele se fez diversas vezes conduzir para perto
do sublime fragmento antigo, conhecido sob o nome de Torso de Belvedere, e aí, ele
deixava errar suas mãos sobre o mármore para que, à falta de visão, o tocar das mãos lhe
lembrasse das formas admiráveis desta estátua” 66.

Os biógrafos a que o autor se refere são, de fato, desconhecidos, assim como seria a
origem desse mito. A crença inabalável na cegueira de Michelangelo sobreviveria até, pelo menos,
1850, quando o ainda estudante J.-L. Gérôme, encantado pelos temas ligados ao universo greco-
latino, dava sua versão ao fantasioso episódio (Figura 5). Michelangelo, velho, trôpego e corcunda,
era conduzido por um jovem a tocar o torso antigo, ativando a antigo topos da comparatio não só
entre mestre e discípulo, mas também entre a grandiosidade antiga e a pequenez moderna,
inclinando-se também, em proveito do que o próprio tema lhe oferecia, à uma alegoria dos sentidos.

Figura 5

Se Gérôme dava indícios de que Sainte-Beuve era poeta atentamente lido por sua
geração, ele, por certo, não deixava dúvidas de que era leitor de Sir Joshua Reynolds, cuja obra
completa fora vertida ao francês já 1806, pouco tempo após a sua morte (em 1792), e cujo teor dos

66
Vie de Michel-Ange Buonarotti. In. : Oeuvres complètes de Michel-Ange Buonarroti, choix de Bacio Bandinelli et
Danielle da Volterre. Paris : Librairie de Firmin Didot Frères, 1844, p. 13. (TN)

36
discursos configuravam-se como importantes orientações para os artistas iniciantes. O pintor,
primeiro diretor da Royal Academy, à frente da qual esteve até o fim da vida, pronunciaria o seu
décimo quinto e último discurso com a visão gravemente comprometida, louvando a glória de
Michelangelo como mestre absoluto e insuperável. A admiração que o mestre florentino exercia
sobre o artista britânico já foi mencionada na Introdução, não obstante seja fundamental evocar
aqui sua admiração pelo Torso de Belvedere, com o qual se deixou retratar em obra de 179167. É
possível pensar que sua admiração pelo fragmento antigo nascia de seu fascínio pelo mestre
italiano, do qual ele se considerava um legítimo sucessor, e na honra de quem conduzia a sua vida
artística. Reynolds, em seu último discurso, parece pouco se importar com os episódios da vida de
seu mestre absoluto. Michelangelo era reconstruído eminentemente a partir de suas obras,
inigualáveis às dos seus contemporâneos e apenas equiparável à conquista literária de Homero, na
Antiguidade, e na qual Shakespeare, no mundo moderno, alcança o ápice:
“Eu me contentaria em observar, neste momento, que as partes subordinadas de nossa arte
e, talvez mesmo das outras artes, se desenvolvem por um lento e progressivo crescimento;
mas que aquelas que dependem de uma imaginação original e vigorosa, se mostram em
geral de um completo golpe de plenitude de sua beleza; isto do que provavelmente Homero,
mas mais certamente ainda Shakespeare, são exemplos remarcáveis. Michelangelo possuía
a parte poética de nossa arte ao mais alto nível; e o mesmo espírito ousado que permitiu
descobrir as regiões desconhecidas da imaginação, encantado pela novidade e animado pelo
sucesso de suas descobertas, não podia deixar de estimular e de conduzir em seu curso para
além destes limites, que seus sucessores, privados da mesma energia, não tiveram a força de
superar” .
68

Talvez Reynolds ignorasse, mas Homero, assim como ele, havia ao fim da vida ficado
cego também69. Isto é ao menos o traço constante em suas notas biográficas e testemunhos antigos,
que aparece como elemento construtor da figura lendária do poeta. Aspecto mais ou menos
consensual, presente, inclusive, na narrativa do mais prosaico de seus comentadores – “Sobre a vida
e a obra de Homero” de Pseudo Plutarco70 –, é cego como quase sempre a iconografia o apresenta, e

67
Trata-se do retrato executado por C. F. von Breda (127 x 101cm), localizado na Academia de Belas Artes de
Stockholm. Cf. STEEGMANN, John. Portraits of Reynolds. The Burlington Magazine for Connoisseurs. Vol. 80. N.
467. Reynolds Number (Feb., 1942), pp. 31-34.
68
Op. cit. REYNOLDS, 1806, p. 49. (TN)
69
A relação entre Michelangelo e Homero, contudo, não surge em Reynolds. Condivi, 2007, p 96, ao fim da biografia
de Michelangelo, faz alusão ao escritor antigo, equiparando a celebridade de ambos: “Não são estas coisas ordinárias e
que ocorram todos os dias, mas novas e fora dos costumes habituais, nem costuma ocorrer em virtude singular e
excelentíssima, como foi o caso de Homero, disputado por muitas cidades, cada uma delas usurpando-o e fazendo-o
seu”. BAROLSKY, 1990, p. 106 e 1994, pp. 129-137 recorda e reitera esta analogia e, partindo da premissa de que
Condivi é, na verdade, redator de um texto autobiográfico ditado por Michelangelo, ele conclui que a analogia entre o
mestre florentino e Homero é uma manipulação alçada pelo próprio Michelangelo. Cf. BAROLSKY, 1990, p 106. E
também: BAROLSKY, Paul. The faun in the garden: Michelangelo and the poetic origins of Italian Renaissance Art.
Pensylvania: The Pensylvania State University Press, 1994, pp. 129-137.
70
Segundo Pseudo-Plutarco, Homero ganha o nome pelo qual é conhecido devido a sua cegueira. Para isto, Cf.
PSEUDO PLUTARCO. Sobre la vida y la poesía de Homero. Madrid: Editorial Gredos, S. A. U., 2008, p. 40.

37
é por esse epíteto que teria sido conhecido o sujeito nascido em Quios, a quem era sempre preciso
que alguém guiasse. Dos mármores antigos até os seus retratos imaginários nos frontispícios das
reedições de suas obras no século XVIII, passando pelo célebre “Parnaso” (1511) de Rafael,
Homero apresenta, na brancura opaca de suas pupilas, uma completa desorientação do olhar, que se
contrasta com o esclarecimento prévio da genialidade de sua escrita enérgica e vigorosa.
Isso posto, parece, pois, que o mito de
Michelangelo cego teria nascido na França a partir de
sobreposições de outros mitos e de acontecimentos que
atravessam os desdobramentos de sua fortuna crítica,
superando definitivamente os elementos das biografias de
Vasari e Condivi. É preciso lembrar também que ao fim da
vida Michelangelo parecia emprestar sua face a Saulo
(Figura 6), fulgurado pela luz divina que o atingira certeiro.
O ancião de nariz achatado e barba bifurcada não deixaria
alternativas para que se encontrasse nele as feições do
Figura 6 artista71, muito embora tal atribuição não fosse identificada,
salvo engano, por nenhuma de suas numerosas reflexões oriundas da crítica francesa que se
arriscava em analisar o artista à luz de alguma possibilidade de psicologismo. O afresco no qual se
insere o velho, cujo raio divino tirou-lhe a visão por três dias, jamais seria refletido, na França, pela
chave da “inclusão do eu”72 enquanto dramatis personae por parte do artista florentino, e do século
XVII ao século XIX nenhuma afirmação seria feita a esse respeito 73. Antes disso, a cegueira de
Michelangelo como Saulo em vias de se tornar São Paulo poderia ser um fator a se somar na
sobreposição de todos os elementos que, articulados, parecem conduzir para a identificação da
origem desse mito, se não fosse o fato de que os afrescos paolinos não conheceriam qualquer
fortuna crítica advinda do mundo francófono. Giulio Carlo Argan afirma que destes afrescos “a
crítica falou pouco e com ressalvas infinitas”74. Talvez isso se deva ao que ele próprio reconhece

71
STEINBERG, Leo. Michelangelo’s last paintings: The Conversion de St. Paul ad the Crucification of St. Peter in the
Capella Paolina, Vatican Palace. London: Phaidon Press Limited, 1975, p. 39.
72
Idem. STEINBERG, 1975, p. 37. – Assim é nomeado o quinto capítulo deste livro.
73
A identificação dos autorretratos espirituais de Michelangelo é tardia, sendo mencionadas por G. Papini [1949],
Tolnay [1951] e Joannides [1997], segundo lista MARQUES, 2011, p. 569, nota 540.
74
ARGAN, Giulio Carlo. Michelangelo na Capela Paolina (1975). In.: Clássico Anticlássico: o Renascimento de
Bruneleschi a Bruegel. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 325. – O silêncio crítico identificado por Argan pode ser
explicado pelo fato desta capela nunca ter deixado sua condição privada, isto é, sempre teve seu público restrito. Afirma
ainda Burckhardt que “por longo tempo, somente a Pietà, o Davi e o teto da Capela Sistina foram acessíveis a todos”.
BURCKHARDT, Jacob. Michelangelo furioso (1895). In.: O retrato na pintura italiana do Renascimento. Campinas:

38
timidamente, mesmo enquanto defensor da ideia de que essas obras possuem forte teor testamental,
que nestes afrescos o mestre chega a parecer anti-michelangelesco75. Michelangelo é um artista
erudito, profundo conhecedor da literatura pagã e cristã; isso ele demonstra muito bem em todas as
suas obras e, portanto, a inserção de sua face como o supliciado Saulo, cujos olhos se fecham por
não conseguir ver o mundo que se apresenta diante de si, não seria por acaso. Ainda assim, não
obstante as palavras daqueles sujeitos sensíveis, que foram capazes de perceber nestas obras um
agudo sentido expressionista e existencial, o silêncio crítico em relação a essa operação pode ser
detectado em longa duração, mesmo entre aqueles que denunciam tal silêncio, como o próprio
Argan.
Outro elemento muito sugestivo e sedutor, porém mais próximo do limite do
descartável, está ligado à medalha-retrato que fez Leone Leoni de Michelangelo (Figura 7), em
cujo verso existe a figura de um homem cego guiado por um cão 76. É aceitável, no entanto, que o
conteúdo da moeda, ainda que jamais mencionada por qualquer um dos comentadores de
Michelangelo na França, tenha sido naturalizado, de maneira ainda mais eficiente quando somado
aos comentários oriundos de Condivi e acrescentados por Vasari na segunda edição de suas Vite, no
tocante aos efeitos perniciosos que os trabalhos na abóbada da Capela Sistina ter-lhe-iam provocado
na visão77. Ainda que passageiros, estes problemas romantizam potencialmente o episódio da
execução da abóbada da Capela, talvez a obra de Michelangelo mais comentada na França do
século XIX, junto do Juizo Final e da Capela Médici.

Editora da Unicamp, 2012, p. 207. – Por outro lado, vale observar que o ensaio de Argan é originalmente escrito
também em 1975, tal como o de Steinberg. Neste ano comemorou-se o quinto centenário do nascimento de
Michelangelo, no qual estiverem envolvidos os principais nomes ligados aos estudos michelangianos na segunda
metade do século XX, como Paola Barocchi, que reeditou e anotou extensamente a Vida de Michelangelo de Vasari, e
Charles de Tolnay, presidente da Casa Buonarroti, na época.
75
Idem. ARGAN, 2001, p. 335.
76
É VASARI, 2011, p 159 quem menciona a medalha-retrato oferecida por Leone Leoni a Michelangelo em seu
aniversário de 86 anos, tendo-lhe muito agradado. O biógrafo afirma ainda que a medalha circularia “por toda a Itália e
fora dela”. Entretanto, as páginas seguintes deste capítulo tratarão de demonstrar como a entrada tardia de Vasari na
França impôs limites à construção da imagem de Michelangelo. Além do mais, o elemento torso, sempre presente na
estória do artisa cego e, neste caso, ausente, é fator que enfraquece a possibilidade de origem do mito. De todo modo, a
iconografia da medalha é comentada por MARQUES, 2011, p. 619, nota 639.
77
“[A Capela Sistina] Foi executada com grandíssimo desconforto por trabalhar com a cabeça levantada, o que de tal
maneira lhe prejudicou a vista, que por muitos meses não podia ler nem olhar desenhos se não com a cabeça naquela
posição. E posso dar fé disto, pois não teria conseguido executar a decoração das abóbadas de cinco salas do palácio do
duque Cosimo, se não tivesse feito para tanto uma cadeira com apoio para a cabeça, e com dossal reclinante. O que,
mesmo assim, de tal maneira arruinou-me a vista e enfraqueceu-me a cabeça, que ainda disto me ressinto; e espanto-me
que Michelangelo possa ter suportado tal desconforto: é que, inflamado sempre mais pelo desejo de fazer e pelas
conquistas que fez, não sentia nem cuidava em desconfortos”. In: VASARI, 2011, pp.101-102, oriundo de CONDIVI,
2007, p. 73.

39
Figura 7

Portanto, embora a cegueira de Michelangelo se confirme não ser mera projeção


romântica, como nos demonstram os afrescos da Capela Paolina78, e nos assegura o detalhe da
medalha-retrato, a criação deste mito parece ser sintoma da entrada crítica da vida e da obra do
artista na França. Pelo que já indicam os argumentos apresentados por Leo Steinberg, referido por
Gombrich como excelente advogado e muito bom escritor79, de que tais afrescos foram concebidos
mais como objetos de manipulação da resposta do observador ao caminho único da salvação pela
via do cristianismo80, o silenciamento crítico no tocante a essas obras por parte da volumosa crítica
michelangiana francesa parece ser levado por esse fluxo, calando a autonomia da obra enquanto
problema artístico, e dando alguma razão ao historiador anglo-austríaco. Além do mais, a
identificação de Michelangelo seja como Saulo fulminado, seja nos tantos outros retratos nos quais
o artista normalmente seria compreendido no lugar da vítima terrificada, não aparece nem em
Vasari e tampouco em Condivi, confirmando-se, mais uma vez, que o entendimento de
Michelangelo em si mesmo como obra de arte, superava os limites do documento.
Malgrado o vão esforço de Delacroix, já em 183081, em desmentir o mito inexplicável da
cegueira do artista, a presença de Michelangelo na França, de modo geral, estava circunscrita a uma
memória do que nunca existiu. Ainda que François I82 tivesse manifestado expressamente o seu

78
Op. cit. STEINBERG, 1975, pp. 53-54, baseado nos mesmos critérios, a saber, a semelhança física observada por
meio da comparação com outras imagens, lança também a hipótese de um autorretrato de Michelangelo em “A
crucificação de São Pedro”, igualmente ignorado por qualquer outro autor.
79
GOMBRICH, Ernest Hans. Les dernieres peintures de Michel-Ange. In.: Réflexions sur l’histoire de l’art. Nîmes :
éditions Jacqueline Chambon, 1992, p. 135.
80
Op. Cit. STEINBERG, 1975, pp. 40-41.
81
Delacroix publica a biografia de Michelangelo em dois tomos consecutivos da Revue de Paris. – DELACROIX,
Eugène. Michel-Ange. Revue de Paris. Tome XV. Juillet, pp. 41-58 ; Tome XVI Août, pp. 164-178. – Para esta
afirmação [1830, Tomo 2:178]
82
Assim relata CONDIVI, 2007, p. 96 (TN): “Francisco de Valois, rei de França, o solicitou por muitos meios, pondo a
sua disposição em Roma, cada vez que quisesse fazer, três mil escudos para a viagem”. – Tal passagem demonstra o

40
desejo em acolhê-lo no elenco formado em torno da decoração de seu castelo em Fontainebleau,
Michelangelo, recusando-se em tornar-se um artista de corte, se renderia apenas a enviar algumas
obras ao rei francês. Por nunca ter estado presente na França, sua imagem seria construída
potencialmente pelos mistérios em torno dos quais essas obras girariam, mas também, em grande
medida, por intermédio dos artistas italianos que identificavam nele o nec plus ultra da arte, que
tendiam a imitar o estilo vigoroso de suas figuras corpulentas e nele percebiam o impacto que o seu
humor instável provocava.
Enquanto Vasari e Condivi permaneciam desconhecidos na França, a obra de
Michelangelo experimentava um período de absoluta proscrição interrompida por sazonais
profanações entre as quais a censura ao Juízo Final (ANEXO II, 3) realizada por Roland Fréart de
Chambray, que condenaria Michelangelo por empreender imperdoavelmente a corrupção do
clássico, e, a um só tempo, aproximar a escatologia cristã do mito antigo, isto é, o divino e o
pagão83. As “Idées de Perfection de la Peinture”, publicadas em 1662, alcançariam enorme
sucesso84 e delas emergiam a superioridade dos antigos aos modernos, resguardada na admiração da
contenção do desenho apolínio, da qual Poussin, seu protegido e fiel herdeiro de Rafael, tão bem
representava, em oposição ao furor enérgico de Michelangelo, razão sobre a qual, segundo ele,
“(...) poder-se-ia dizer em verdade, que um é o Bom e o outro o Mau Anjo da Pintura:
porque como nota-se na maioria das Composições de Rafael uma gentileza de Intenção
nobre e poética, nós vemos também quase sempre naquelas de Michelangelo, uma
gravidade rústica e pesada (...)”85.

Após o vácuo crítico ao qual esteve relegada a obra de Michelangelo, Pierre-Jean


Mariette, indiscutivelmente o maior amateur do desenho italiano na França de seu tempo, ele

prestígio que Michelangelo tinha diante do rei. Demonstra também o quanto o artista era bem articulado com as mais
importantes personalidades de seu tempo. Além disso, é uma das razões que leva Condivi a louvar a fama do mestre,
precedendo, portanto, a sua analogia à fama de Homero.
83
Gabriella Rèpaci-Courtois, por sua parte, defende que a crítica francesa que atribui a Michelangelo a origem do mal
na arte precede Fréart de Chambray, isto é, data do próprio século XVI. Para isso, Cf. RÈPACI-COURTOIS, Gabriella.
Michel-Ange et les écrivains français de la Renaissance: Grâce et disgrace d’um itinéraire critique. Nouvelle Revue du
Seizième Siècle. 1990. nº 8, pp. 63-81. – Sobre a trajetória da recepção crítica do confronto entre Michelangelo e Rafael
na França, de onde nasce o triunfo de Rafael e o consequente envilecimento de Michelangelo, Cf. SAINT GIRONS,
Baldine. Michel-Ange et Raphaël: les enjeux d’une confrontation (1662-1824). In.: Les fins de la peinture. René
Démoris (Org.). Paris: Desjonquères, 1990, pp. 173-194.
84
Assim afirma Jacques Thuillier : « O sucesso que teve a Idée de la perfection não deixa dúvidas. O livro é traduzido
alguns tempos mais tarde ao inglês e ao italiano». Na nota a esta afirmação, Thuillier lista : Tradução inglesa, feita em
1668 e tradução italiana, embora tenha sido feita em 1685, foi publicada apenas em 1809, junto das «Riflessioni sopra
Michelangelo Buonarroti del Cav. Onofrio Boni in risposta a quanto ne scrisse Rolando Fréart Sig. De Chambray
nell’opera Idée de la Perfection de la peinture... daté de Florence, 5 décembre 1808 ». Tal acréscimo e utilizado por
Thuillier como argumento para a defesa da existência de um anti-michelangelismo global, manifestado de maneira mais
explícita por Fréart de Chambray. Vide infra, notas 54-56 – THUILLIER, Jacques. Polémiques autour de Michel-Ange
au XVIIe siècle. In. : Revue Dix-septième siècle. n. 36-37. Juillet-Octubre. 1957, p. 368, nota 20.
85
FRÉART DE CHAMBRAY, Roland. Idée de la perfection de la peinture (1662). Paris: École nationale supérieure
des beaux-arts, 2005, p. 227. (TN)

41
mesmo grande colecionador de desenhos, seria o primeiro a identificar no motivo da abnegação, o
fator de interesse da obra do mestre florentino. Em 1746, ele seria convidado a comentar o catálogo
de desenhos da coleção de Crozat. Ele ultrapassava os limites de uma descrição restrita às
características do conjunto de desenhos do colecionador, outrora afirmado como o maior possuidor
de obras gráficas de Michelangelo na França86. Mariette identifica um poderoso descompasso entre
Michelangelo e Rafael, recorda do difícil gênio do mestre e de seu temperamento melancólico,
enaltece seus pioneiros estudos de dissecação anatômica, e afirma ter sido Michelangelo “le plus
terrible dessinateur” que Crozat teve em sua coleção87. Ele deixa transparecer aí sua admiração por
Michelangelo pela via de Vasari, o primeiro a utilizar o termo terribilità para definir certas
características presentes na obra do mestre florentino refletidas por seu temperamento.
Naquele mesmo ano, o erudito toscano A. Francesco Gori se empenharia em reeditar e
atualizar a “Vida de Michelangelo” escrita por Condivi, empresa que mobilizaria distintos
conhecedores da obra do mestre florentino, entre os quais Mariette. A ele coube a função de
comentar o texto, correspondendo, por outro lado, à única intervenção em língua francesa na obra,
majoritariamente em italiano, evidentemente. Mariette é, portanto, o primeiro francês a cotejar
Condivi e Vasari, observando as concordâncias e discordâncias entre os autores, embora se possa
observar que o erudito faça, vez ou outra, tábula rasa de Vasari no sentido de não dar atenção em
justa medida para as alterações irrompidas da primeira para a segunda edição de sua obra
monumental. Note-se que Vasari, por sua parte, depois de permanecer longo tempo desconhecido
em língua francesa, começa a recobrar a luz por meio das notas de Mariette, cujo protagonismo era
de Condivi. Mariette, como erudito que era, admirava as dissonâncias entre os estilos de Vasari e
Condivi, além de ser, por si mesmo, a mais preciosa fonte de informações a respeito de
Michelangelo na França88. Suas notas, e a edição de Gori, como um todo, seria amplamente
difundida no meio intelectual francês no XIX, e se configuraria, doravante, como componente
fundamental para a composição do que Michelangelo se tornava.

86
MARIETTE, P. J. Observations de M. Pierre Mariette sur la vie de Michel-Ange écrite par le Condivi son disciple.
In. : CONDIVI, Ascanio. Vita di Michelangelo Buonarroti. Publicata da A. Gori. Firenze: per G. Albizzini, 1746
[reeditada em 1823, em Pisa], p. 180.
87
Description sommaire des desseins des grands maisres de l’Italie, Pays-Bas e de France, du Cabinet de Feu M.
Crozat. [...]. Paris, chez M. Pierre Mariette. 1746, p. 4.
88
A propósito do cartão perdido de “Leda e o Cisne”, levado para a França em 1531, comprado pelo Rei por
supostamente danificado no século XVII, segundo MARQUES, 2011, p. 506, nota 443, diz Mariette na nota XLVII:
“(...) Diz-se que depois de terem-na fortemente deteriorado, ele [o ministro] dá ordens de queimá-la [a pintura]. Mas a
ordem não foi executada e eu vi aparecer este quadro há sete ou oito anos; é verdade que ele estava fortemente
danificado de modo que em uma infinidade de lugares não restava senão a tela, mas através dessas ruínas não se
deixava de reconhecer o trabalho de um grande homem, e eu confesso que não vi nada de Michelangelo tão bem
pintado”. MARIETTE-GORI, 1746, pp. 185-186.

42
A crítica francesa insistiria na preferência de Condivi, por parte de Mariette, em
detrimento de Vasari. Especialmente Chastel argumenta nesse sentido, utilizando as palavras do
próprio Mariette para sustentar a sua proposição: “Le récit de Condivi est le plus simple et le plus
exacte” 89. Contudo, defender essa tese é demasiado arriscado por várias razões, entre as quais o fato
de que, como bem notara Luiz Marques, Mariette, para além de ter o próprio nome de Vasari em
sua coleção desenhos, ele demonstra sua intimidade com o trabalho do Vasari historiador no
Abecedario, que iria se constituir como a obra mais conhecida do erudito depois de publicada, entre
1851 e 186090.
Talvez seja mais aceitável que a biografia de Condivi tivesse alcançado uma
popularidade maior, em grande medida por razões práticas, isto é, devido sua unicidade, posto que
as dimensões monumentais da obra de Vasari iriam tornar difíceis e dispendiosas as suas futuras
edições, favorecendo, inclusive, sua fragmentação. Ocorre que a reedição de 1746 e os comentários
de Mariette ao texto de Condivi parecem ter sido um meio para reacender o interesse por
Michelangelo na França. Em 1783, no ano anterior a publicação de seu “Logique française pour
préparer les jeunes gens à la rhétorique”, o Abade Hauchecorne, professor do prestigiado Collège
de Quatre-Nations, propõe o que ele próprio chama de “tradução livre” para o texto de Condivi,
muito provavelmente a partir desta edição preparada aos cuidados de Gori, cujas notas de Mariette
ele não apenas leu, como também cita em seus introitos.
Malgrado a escolha do texto de partida seja Condivi e não Vasari, o abade percorre todo
o preâmbulo à biografia argumentando as qualidades e a eminente importância dos escritos
vasarianos. É possível conjecturar que a decisão por Condivi em detrimento de Vasari teria sido
orientada pela ideia que pouco seria lembrada posteriormente:
“Ascanio Condivi compõe a vida de Michelangelo sob os olhos e durante muito tempo
antes da morte de Michelangelo. É da própria boca de seu herói que ele apreende todas as
anedotas das quais ele pode ser testemunha; é por sua autoridade que ele confirma ou que
ele refuta o que não era fundado senão sobre boatos. Enfim, pode-se adiantar que é de
alguma maneira o próprio Michelangelo que fez sua vida” 91.

A concepção segundo a qual a biografia escrita por Condivi em verdade tratava-se de


uma autobiografia de Michelangelo não estava presente em Mariette e seria praticamente

89
Apud. Op. cit. CHASTEL, 1978, p. 200.
90
MARQUES, Luiz. Taunay, superação e morte do artista. In.: Nicolay-Antoine Taunay no Brasil: uma leitura nos
trópicos. Org. Lilia Moritz Schwarcz com Elaine Dias; ensaios de Claudine Lebrum Jouve [et. al.]. – Rio de Janeiro:
Sextante, 2008, p. 205. – Especialmente as notas 19 e 20 tratam desse problema.
91
HAUCHECORNE, Abade. Vie de Michel-Ange Buonarroti, peintre, sculpteur et architecte. Paris: chez L. Cellot,
1783, p. iii. (TN) – A afirmação segura de que a biografia escrita por Condivi tratar-se-ia, em verdade, de uma
autobiografia seria feita posteriormente, como é o caso de Barolsky, Cf. supra. Nota 69.

43
abandonada ao longo do século XIX. Mesmo em Stendhal “que, em geral, não recorre a Vasari
senão para citações que faltam inteiramente em Condivi”92, que é sua fonte primeira de acesso à
vida de Michelangelo, tal concepção parecia não ter importado muito.
Paralelamente ao empreendimento de Gori na reedição de Condivi que se entrecruza aos
trabalhos de Mariette, uma reedição de Vasari era preparada pelo filólogo e eminente erudito
italiano Giovanni Gaetano Bottari, publicada entre 1759-1760, cujos trabalhos Mariette
acompanhou de perto93. Enquanto esta publicação seria sucedida por diversas outras reedições, não
menos castigadas que esta, demonstrando, por outro lado, que Vasari era sucesso vivo para o
público italiano, na França ele era ainda redescoberto. O trabalho de Bottari, que anota vastamente o
texto de Vasari, seria a base para a primeira tradução de Vasari ao francês, na edição incompleta
elaborada aos cuidados de Charles Claude Lebas de Curmont. A obra, publicada entre 1803 e 1806,
seria compreendida de três volumes, cada um dos quais arrastados por um dos artistas da célebre
tríade artística louvada por Vasari, sendo o último volume dedicado exclusivamente a
Michelangelo. Criava-se, portanto, uma excelente oportunidade de reformular a imagem de Vasari
para o público francês, tentativa que não escapou ao editor da obra:
“Apenas a vida de Michelangelo formará esse terceiro volume da tradução literal das vidas
dos pintores escritas por Vasari e, malgrado todo interesse que ela apresente, eu não duvido
que para os antagonistas deste escritor, assim como para todos os seus ecos, este não seja
ainda um meio de fazer ressoar para longe sua censura ordinária no tocante a sua
prolixidade”94.

A tentativa de reverter as cada vez mais recorrentes críticas ácidas à verborragia


vasariana parece perder força para a sombra política que envolvia a obra. Publicada no mesmo
momento em que Napoleão transplantava para França a Roma imperial à qual Paris deveria emular
e superar, a tradução francesa de Vasari, perfeitamente compreensível nessa esteira, seria sucedida
por mais uma reedição fragmentada, classificada por André Chastel como “truncada e deficiente”95.
Chastel retomaria, no prefácio à reedição das vidas selecionadas de pintores toscanos organizadas
sob sua direção, as suas concepções já manifestadas em 1964 a respeito da recepção de Vasari e

92
ARBELET, Paul. L’Histoire de la Peinture em Italie et les plagiats de Stendhal. Paris : Calmann-Lévy, 1913, p. 329.
(TN).
93
Bottari declara abertamente ter consultado Mariette e, especialmente, as suas notas a biografia condiviana de 1746.
Além disso, diversas cartas trocadas entre eles dão prova da existência de um contato próximo e das suas trocas
intelectuais.
94
VASARI, G. Vies des peintres, scupteurs et architectes les plus célébres. Paris : Boiste, 1806, p.2. (TN)
95
Trata-se da edição organizada em 10 volumes por Jeauron et Lechanché, aparecida entre 1839 e 1842.
Cf. VASARI, G. Les peintres toscans. Textes réunis et présentés par André Chastel. Paris : Herman 1966, p 223.

44
Condivi na França, expostas no mencionado ensaio “Michel-Ange en France”96. Neste texto, se
Chastel asseguraria a aceitação de Condivi pela via Mariette, era porque ele acreditava haver uma
indiscutível antipatia histórica por Vasari, que remontava ao menos a André Félibien 97. Para isso,
ele recorre a um texto de Jacques Thuillier que o teria antecedido na menção de uma espécie de
anti-vasarismo na França:
“Ora, aos olhos de um Chambray, aos olhos de um crítico fracês, é um autor não menos
detestável quanto necessário. Detestável inicialmente porque ele impõe à história da pintura
uma imagem toda à glória da Itália, e na qual a França não tem nenhum ponto de partida.
Depois ele dá suas preferencias a uma forma de arte que precisamente é aquela de
Michelangelo e de seus sucessores; ele impõe um gosto, uma maneira de conceber a
pintura, que são os seus, isto é, os do maneirismo. Como se impressionar que Chambray
retome e desenvolva os ataques há tanto tempo lançados na Itália contra Vasari?” 98.

A postura de Thuillier parece ser, no entanto, convenientemente político-diplomática.


Quase duas décadas depois, seu discurso defensor de que a França, na figura de Chambray, nunca
digeriu bem o estilo demasiado desprendido de Vasari, iria amenizar-se significativamente, mais
parecendo ser modulado em função do público a quem o ensaio se dirigia. Seu tom insuflado iria
tornar-se lamento pela ausência de uma personalidade análoga a Vasari na França99.
O caminho que conectaria idealmente a Itália à França pelas fontes literárias através das
quais os artistas e intelectuais do século XIX se alimentariam era constituído por um problema cujo
núcleo era pulsante e latente, e esse problema nomeava-se Michelangelo Buonarroti e as perversões
dos cânones clássicos que ele arrastava consigo. Sua cegueira imaginária dava provas de que a
imagem deste artista não se limitava àquelas que se depreendem das narrativas de Vasari ou
Condivi, com todos os problemas que delas emergem em suas mais distintas versões. Michelangelo,
de fato, ia além.

96
Op. cit. Este ensaio Chastel apresenta pela primeira vez no colóquio organizado em 1964, em Florença, para a
comemoração do quinto centenário de nascimento de Michelangelo, do qual participaram nomes tais como Charles de
Tolnay, Eugenio Battisti, G. C. Argan e alguns outros entre os mais importantes estudiosos de Michelangelo e da
cultura artística dos séculos XV-XVI.
97
Chastel seria o organizador principal da primeira tradução completa das Vite de Vasari. É evidente que ele conhecia
profundamente a tradução de Vasari de 1806 e por isso, possivelmente, a sua argumentação seja construída com base no
prefácio a esta publicação, cujo trecho foi reproduzido.
98
Op. Cit. THUILLIER, 1957, pp. 375-376. (TN)
99
Note-se, porém, que enquanto o primeiro artigo é publicado em uma revista francesa, o outro texto é resultado de uma
conferência pronunciada por ocasião das comemorações do quarto centenário da morte de Vasari, na Itália. – Para isto,
Cf. THUILLIER, Jacques. Les débuts de l’histoire de l’art em France et Vasari. In. : Il Vasari storiografo e artista. Atti
del Congresso Internazionale nel IV centenario della morte. Arezzo-Firenze: Redit Clarior, 1974, p. 667.

45
2. Michelangelo torna-se romântico

No verão de 1830, as ruas de Paris seriam ocupadas por uma multidão, contra a ameaça
de ser revertida a luta dos franceses há exatos quarenta e um anos atrás, em 1789. A geração que
nasceria e amadureceria durante o período que se convencionou chamar de “Revoluções burguesas”
sedimentaria uma nova concepção de modernidade, agora ancorada nas concepções históricas
formuladas a partir do próprio presente. Basta evocar o elogio à liberdade que Delacroix anunciava,
reconhecendo em sua própria obra a criação de um tema moderno, conforme a célebre carta enviada
a seu irmão, sobre a pintura que acabara de finalizar: “Eu empreendi um tema moderno, uma
barricada e, se eu não venci pela pátria, eu ao menos pintarei por ela”100. Ele se referia ao
aparecimento de « Liberté guidant le peuple », que se converteria imediatamente em emblema
máximo dos três dias gloriosos101 que culminariam com a deposição de Charles X e a ascensão de
Louis-Philippe, o Roi des Français, ao poder, marcando um dos momentos mais controversos e
complexos da história contemporânea francesa, que restaurava novamente o poder monárquico.
Uma carta datada de 12 de outubro de 1830102 é prova irrefutável de que a liberdade do
povo superposta à liberdade da arte louvada por Delacroix em seus últimos suspiros de entusiasmo
político103 conviviam com o seu interesse por Michelangelo Buonarroti, cujo nome Delacroix
tomaria de empréstimo para usá-lo como título de seu ensaio biográfico publicado naquele mesmo
ano. A recém nascida Revue de Paris104 publicaria em duas partes o texto de Delacroix: a primeira
em maio e a segunda em julho, em meio a agitação da revolução. A razão que moveria Delacroix a
escrever tal ensaio é incerta, muito embora seja evidente o interesse do jovem pintor por
Michelangelo desde muito cedo105. Delacroix é um artista que se pretende erudito e por isso ele vai

100
DELACROIX, Eugène. Lettres intimes. XLVII. Paris: Gallimard, 1954, p. 191. – Carta datada de 12 de outubro de
1830.
101
« Trois Glorieuses » seria a designação pela qual seriam conhecidos os três dias de julho de 1830 – 26, 27 e 28 – nos
quais se sucederam as manifestações pela deposição de Charles X. Chama-se em consenso geral “Revolução de 1830” a
série de acontecimentos que se passaram em toda a Europa entre os quais se insere também a independência da Bélgica.
102
Vide ANEXO I, 2.
103
O tema da mulher que emerge das ruínas era revisitado por Delacroix, que executara em 1826, Grèce sur le ruines de
Missolonghi, evocativa entrelinhas à morte martirizada de Byron, muito admirado pelo pintor. Esta obra soma-se a
“Scene de massacre de Scio”, 1824 e à futura Liberté como as únicas obras-manifesto executadas pelos pincés de
Delacroix que, durante toda a sua carreira artística se alhearia dos temas assumidamente políticos, mesmo (ou talvez
sobretudo) nas suas numerosas encomendas públicas, nas quais optou majoritariamente pela temática mitológica.
104
A Revue de Paris foi criada em 1829 por Louis-Dériré Véron para fazer concorrência à Revue des Deux Mondes,
com a qual Delacroix também colaborou. O periódico existiu até 1970, quando publicou seu derradeiro número.
105
Não é descartável, contudo, que a elaboração da biografia tenha sido realizada por meio de uma encomenda, após a
biografia de Rafael, mais curta e menos entusiasmada, que Delacroix tinha acabado de publicar. Malgrado tudo,

46
às fontes até onde permite as suas limitações. Certo é que em 1824 suas pesquisas sobre o mestre
florentino avançam verticalmente. No dia 4 de janeiro, um domingo, ele anota em seu Journal a
tradução em prosa do soneto “Giunto è gia ‘l corso dela vita mia”106 de Michelangelo, que o pintor
francês torna a utilizar na segunda parte de seu ensaio107. Delacroix tinha certa inaptidão linguística
e é certo que se ele conhecesse o italiano, era insuficientemente para que fizesse a tradução de um
texto de tamanho requinte como o da poesia michelangiana.
O que leva Delacroix até Michelangelo é a sua crença de que apenas o mestre florentino
constituiu-se de uma espécie de solidão essencial, presente em cada um dos indivíduos, mas
acessível apenas aos grandes sujeitos. A solidão a que se refere o pintor francês seria um dos traços
mais recorrentes e marcantes na descrição do temperamento de Michelangelo, em cujo pensamento
perpassava também a sua amarga e constante relação com a morte. A imagem espectral que
Delacroix constrói de Michelangelo era resultado, portanto, da interseção entre a irradiação das
manifestações de um congênito memento mori e do desejo cediço de solidão que emergiam de
alguns de seus poemas, justamente aqueles mais marcantes para o jovem artista de apenas vinte e
seis anos que acreditava pensar no Michelangelo saturnino como saída eficiente para fugir destas
“frequentações eternas a tudo o que é vulgar”108.
É datável de 1830 um fragmento de carta cuja época e destinatário não são imprecisos,
embora se lance a possibilidade de tê-lo sido escrito para Frédérique Villot, com quem começara
uma amizade que seria duradoura109. Neste papel dobrado em duas partes, Delacroix solicita ao
misterioso destinatário que lhe faça a tradução de um poema de Michelangelo para utilizá-lo em seu
ensaio biográfico, o que efetivamente não acontece110.

Michelangelo é um dos nomes mais recorrentes em seu Journal, nele aparecendo mais de cem vezes. Por isso é
dubitável que os escritos tenham sido meramente resultado de um pedido.
106
Cf. DELACROIX, Eugène. Journal. Texte établi par Paul Flat et René Piot: Paris: 1893.Tomo I, p. 50. – Ao fim da
transcrição, cuja fonte não é mencionada, Delacroix acrescenta que se trata de “versos que encerram sua coletânea de
poesias”. Diante dessa afirmativa, a hipótese de que Delacroix utilizava a edição das Rime de 1821 se enfraquece, ao
mesmo tempo em que é inverossímil que ele utilizasse a raríssima edição de 1623. É possível que seja utilizada aqui
uma expressão figurada, como alusão direta ao temperamento melancólico de Michelangelo, e as suas frequentes
reflexões acerca da morte, argumento reforçado pelo comentário de Delacroix que precede à transcrição: “Eis aqui o
que o grande Michelangelo escrevia à beira de seu túmulo”. Este é o uso que Delacroix faz na reutilização deste mesmo
poema. Vide infra, nota 107.
107
Cf. DELACROIX, 1830, p. 174, tomo II – Desta vez, como nota a essa segunda transcrição, Delacroix comenta a
fama de tais versos e declara que Sainte Beuve os havia utilizado recentemente em uma poesia.
Vide supra, p. 32, n. 54.
108
DELACROIX, 1893, p. 49.
109
Villot não apenas o introduziria à técnica da gravura, como também lhe apresentaria à Champrosay, lugar onde o
pintor se refugiaria até o fim de sua vida.
110
O poema que Delacroix utiliza como epígrafe de seu ensaio biográfico seria, em verdade, um madrigal de número
LIX da edição de 1821, “Non sempre al mondo è sí pregiato e caro”, que parece corresponder a uma versão que
Girardi apresenta de maneira reformulada na rime n. 109, “Non sempre a tutti è si pregiato e caro”. Contudo, no curso

47
Em todo caso, Delacroix atravessa uma época em que ele frequenta a arte italiana, o que
é demonstrado através de seus escritos, nos quais se evidenciam algum grau de esforço de
submersão sobre o qual será falado mais adiante111. Por ora, é preciso saber que a sua relação com a
Itália dar-se-ia substancialmente pela via Stendhal, cuja “Histoire de la Peinture en Italie” ele lia
calorosamente neste momento, e deixava sobre ela um significativo volume de notas que lhe
serviram, com toda certeza, para a elaboração de seus comentários sobre Michelangelo112.
Aparentemente, Delacroix não se apoiava na recente tradução da “Vie de Michel-Ange” de Vasari
publicada em 1806, e nada também indique que ele conhecesse os comentários de Mariette a
respeito da “Vita di Michelangelo” de Condivi reeditada por Gori. Curiosamente, Vasari, no ensaio
biográfico escrito pelo pintor, é sempre referido como um artista com quem Michelangelo se
relacionou, enquanto Condivi é afirmado como seu grande biógrafo. É evidente que Delacroix não
desconhecia a existência de Vasari, tampouco ignorava a biografia que escreveu do mestre, mas
suas reservas ao artista e escritor aretino era não apenas reflexo da desconfiança alimentada pelo
próprio Stendhal, em quem Delacroix confiava inteiramente, mas era, em grande medida, resultado
da grande rêverie sobre a qual se fundava esse universo italiano que o pintor francês não dominava
totalmente.
Delacroix, em uma das raras vezes que sai da França, ele vai a Londres, em 1825, ainda
muito jovem113. Lá ele se encanta com o cromatismo vigoroso de Constable, especialmente com a
eloquência dos emplastramentos de seus verdes, com a densidade do ar de suas paisagens e com a
força dos seus céus ameaçadores, encontrando nele a medida intermediária que o levaria a Rubens.
Era este o momento em que se operaria uma importante reversão crítica a seu favor no discurso de
Adolphe Thiers, jovem advogado que se aventurava pelo deliberado universo artístico que se
constituía em torno dos Salons, cujo plus ultra era Diderot, a quem ele audaciosamente desejava
emular.

do poema nota-se a discrepância abissal entre ambas as versões. A grafia seguida por Delacroix é, evidentemente,
idêntica a da publicada na edição de 1821. O soneto mencionado na carta a Fréderic Villot corresponde exatamente ao
n. 290 da edição Girardi e n. 73 de Biagiolli.
111
Vide ANEXO I, 1 – Carta na qual Delacroix demonstra seu entusiasmo na escrita da biografia de Michelangelo e
revela suas incursões pela arte italiana.
112
As notas utilizadas por Delacroix para a posterior utilização em seus textos e às quais possivelmente ele recorreu
sempre que precisou foram pela primeira vez organizadas e publicadas como anexo à atualização da edição Piot de seu
Journal em 2009, por Michèle Hannoosh. Para as notas sobre Michelangelo e sobre o livro de Stendhal, Cf.
DELACROIX, Eugène. Journal (1858-1863). Tome II. Paris: Domaine Romantique José Corti, 2009, pp. 1488-1504
113
Delacroix faz esta viagem com o montante que recebe do governo após a compra de “Le Massacre de Scio” para o
Musée de Luxembourg. Pela venda, o pintor recebe seis mil francos. Uma metade ele destina a adquirir desenhos de
Géricault, recentemente morto, e com a outra metade ele realiza a referida viagem. É justamente após 1825 que
Delacroix interrompe seu diário inexplicavelmente até retomá-lo em 1832; a partir de então ele o mantém até o fim de
sua vida.

48
A duradoura amizade com Thiers114 e sua futura relação com Baudelaire demonstraria,
na mesma medida, as incoerências de um sujeito que, simultaneamente, escreve um ensaio
biográfico sobre Rafael, enquanto vê em Michelangelo o seu ideal artístico, sem tampouco
pretender retornar ao velho paragone entre os dois mestres. Aparentemente, o que leva Delacroix a
escrever sobre Rafael era o mesmo motivo que o moveria a escrever sobre Poussin, em 1853 115, que
constituía a ponta de lança, segundo a fórmula de Walter Friedlaender em seu famoso ensaio de
1930116, da corrente oposta àquela na qual ele identifica Delacroix. A harmonia encantadora e a
doçura que Delacroix percebe em Rafael é, no mínimo, um marcante contraste com a personalidade
sombria e expressiva que o pintor francês já havia assumido de si mesmo, e através da qual o
público já o reconhecia, sobretudo porque em 1830 Delacroix trazia em sua bagagem três brilhantes
e polêmicos Salons: “Dante et Virgile aux enfers” (1822), “Scène de massacres de Scio” (1824) e
“La mort de Sardanapale” (1827). Estas três obras tornavam também explícitas as referências
literárias do jovem artista que havia feito delas as atestações de seu compromisso com o pathos
herdado de sua admiração por Théodore Géricault, morto em 1824, e que foi um exímio atualizador
da potência terrificadora do Michelangelo do Juízo Final. Neste mesmo ano, Lord Byron também
morria em Missolonghi, lutando em favor dos gregos, cujo território era dominado pelas tropas
turcas. Enquanto Géricault morre após uma desgraçada queda de cavalo, a sua maior obsessão,
Byron morria à mimese de sua própria descrição do Gaulês Moribundo, do qual se erguia uma
imponente nobreza daquela derrota117. Ambos morriam como vítimas de uma “maravilha fatal”,
para retomar a expressão camoniana que tão bem prenunciava a sentença máxima na qual parte
significativa dos artistas da primeira metade do século XIX se dispunha submergir.
Escrever uma biografia de Michelangelo era para Delacroix, portanto, uma tentativa de
resolver um pulsante problema artístico. Por problema artístico entende-se aqui o processo por meio
do qual todo o mundo que circunda o artista é canalizado e reformulado segundo suas próprias
concepções estéticas. Desta síntese entre o mundo inflamado pela revolução até seu universo
pessoal atingido por uma inexplicável e cortante angústia ideal, Michelangelo sobressaía como

114
O registro material dessa amizade forte que se dá entre ambos é a eleição por parte de Thiers para a decoração da
câmara dos deputados, que durou de 1833 a 1837, isto é, logo depois da volta de Delacroix do Marrocos.
115
Ensaio publicado em três partes em Le Moniteur Universel, em 26, 29 e 30 de junho desse ano.
116
FRIEDLANENDER, Walter. De David a Delacroix (1930). São Paulo: Cosac Naify, 2001.
117
Hoje encontrado nos Musei Capitolini, o então chamado Gladiador ferido, célebre desde o momento em que foi
exumado, no século XVII, seria imediatamente absorvido como modelo excelente do sofrimento humano, e assim ele
seria referido por Byron em Childe Harold, no Canto IV (1818), stanzas 140–141, que reconheceria neste sofrimento
uma grandeza heroica.

49
definição perfeita. Delacroix identificava, ademais, outro traço no mestre florentino, ausente em
Rafael e, portanto, suficiente para tornar Michelangelo o ápice artístico do mundo moderno:
“A República havia lançado os olhos sobre Michelangelo para lhe fazer fortificar a cidade.
Vemos com prazer neste grande artista, um grande cidadão, cujo mérito, oferecendo seu
tempo ao serviço da pátria, era tanto maior quanto uma antiga afeição combatia em seu
coração em favor dos Médicis”118.

Décadas mais tarde, precisamente em 10 de dezembro de 1864, Alexandre Dumas


pronunciaria um necrológio à Delacroix na ocasião da abertura da primeira de suas exposições
póstumas. É nele onde Dumas nos conta do medo que o jovem pintor lhe havia manifestado
febrilmente seu medo enquanto a multidão ganhava as ruas119. Talvez Delacroix estivesse sob o
efeito de uma experiência estética extasiante que desde então ele só pudera imaginar projetando-a
em Michelangelo. Dumas, de todo modo, quando se dedica a resolver o mal entendido a respeito de
um possível autorretrato de Delacroix empunhando uma arma ao lado da Liberdade na célebre obra
de 1830, ele diz: “Aquele lá é um verdadeiro homem do povo, e, totalmente ao contrário, Delacroix
era de natureza aristocrática, se ele não foi um”120.
É preciso entender, doravante, que Dumas ocupa uma posição estratégica para o
entendimento da relação entre Delacroix e Michelangelo por, ao menos, duas razões. A primeira
delas diz respeito à problemática e pendulante relação do pintor com a Itália, que ele jamais
conheceu e nunca se perdoou por isso. Além da já mencionada viagem à Inglaterra, a segunda saída
de Delacroix da França seria para realizar a sua tão comentada estadia no Marrocos, em 1832. Era
no abismo que se fundaria entre o pintor e a arte italiana, originado pelo constante esforço de
reconstituir a observação in situ das obras primas do mundo ocidental, onde nasceria sua
imaginação fabulosa que tentaria, por sua parte, dar conta dessa defasagem. Se Delacroix procura
no mundo ainda incorrupto do oriente próximo a pureza da forma outrora encontrada nas obras
primas fundadoras do já arruinado mundo ocidental substituindo o segundo pelo primeiro, é uma
hipótese que nunca deixará de ser elucubrada, embora para Dumas, o afastamento entre o pintor e a
Itália se deva pela sua crença de que ele pertence à rara genealogia de artistas sem mestre, nem

118
DELACROIX, 1830, p. 165, tomo II. (TN) – Delacroix fazia referência à reversão da postura de Michelangelo em
relação Família Médicis, à qual ele havia se ligado desde sua juventude, nos tempos do Giardino di San Marco, mas
contra a qual ele se dirige, em favor da instauração do regime republicano em Florença. Delacroix parece identificar no
colossal projeto de fortificação para a proteção da cidade a mesma postura republicana que ele próprio defendia na
França e que o levaria a criar “A Liberdade Guiando o Povo”, ímpeto este sustentado ainda pela mencionada carta que o
pintor envia a seu irmão em 12 de outubro de 1830.
119
Assim escreve Dumas: “(...) Delacroix [...] tinha grande medo, e me testemunhou seu medo da maneira mais
enérgica”. In.: DUMAS, Alexandre. Delacroix (1864). Paris : Merure de France, 1996, p. 80. (TN)
120
Idem, p. 81. (TN) – Tal afirmação seria ainda recuperada por André Chastel: CHASTEL, André. L’art français : Le
temps de l’éloquence 1775-1825. Paris: Flammarion, 1996. Vol. IV, p. 304.

50
mesmo de si121. Mas em grande medida, Dumas se recusa a entender a existência de que “houve
uma modernidade para cada pintor antigo”122, como proclamava Baudelaire no ano anterior, isto é,
naquele mesmo em que morria Delacroix.
Em segundo lugar, Dumas, ele próprio, foi também um biógrafo de Michelangelo. Em
sua versão, a vida do artista torna-se um romance com tons teatrais. Não por acaso: o texto era
escrito em 1845 e publicado no ano seguinte, em um dos momentos mais férteis de sua produção
dramática, já estabelecida desde quando trabalhou junto à Comédie Française. Neste ano, contudo,
Dumas criará o seu próprio teatro, sob cujo nome, Théâtre Historique, foram encenadas peças de
diversos autores consagrados, tais como Shakespeare, Goethe e Schiller. É este também o momento
em que Dumas redige aquelas que se tornariam as suas mais importantes obras: Les trois
mousquetaires (1844), Le comte de Monte-Christo (1844-45) e La reine Margot (1845).
Quando Dumas decide lançar ao mundo o seu relato sobre a vida de Michelangelo, este
artista não lhe era um absoluto desconhecido, porque Florença, antes de tudo, lhe provocara um
encanto especial. Em 1835, o jovem escritor ia pela primeira vez à cidade, lá ficando por cerca de
um ano. Tempos depois, de volta a Florença em exílio voluntário123, ele publicaria “Une année à
Florence”, no qual Michelangelo era personagem presente, e cuja publicação, em 1841124,
coincidiria com o início do processo que submeteria a Galleria degli Uffizi a uma profunda
reformulação. Na iniciativa de criação de um catálogo iconográfico-literário que espelhasse o novo
formato do museu, Dumas foi sugerido para que se encarregasse da elaboração dos textos da
ambiciosa empreitada. Hoje pouco se conhece a respeito do projeto que não foi realizado
possivelmente devido ao alto custo dos trabalhos, mas é este o marco fundamental na carreira de
Dumas deslizando sobre os terrenos da História da Arte.
Até a primeira publicação da biografia michelangiana, Dumas, ainda durante seu exílio
florentino, também publicaria em 1842, “La Villa Palmieri”, relato do qual, mais uma vez, o mestre
italiano não lhe escaparia. A diferença, contudo, é que em cada um desses relatos, Dumas
desenvolve uma espécie de crônica histórica, enquanto é muito aceitável que a biografia de
Michelangelo, propriamente dita, seja um desdobramento de suas ambições junto ao projeto
frustrado da Galerie de Florence. Em ambos, sobressalta-se a sua concepção de História da Arte

121
Idem, p. 51.
122
BAUDELAIRE, Charles. Le peintre de la vie moderne (1863). In.: Oeuvres complètes (III). Art Romantique. Paris:
Michel Lévy Frères, 1869, p. 69. (TN)
123
Dumas permaneceria em Florença entre 1840 e 1843. Ele assim o fazia como forma de fuga da agitada vida que
levava em Paris.
124
Neste mesmo ano Dumas publica também “Le Midi de la France”, do mesmo gênero literário, resultado da viagem
realizada no ano anterior a sua estada italiana, isto é, em 1834.

51
como reunião de biografias de artistas, eco incontornável de Vasari, sobretudo se for considerado o
seu especial cuidado em manter um prosaísmo espirituoso e anedótico do artista e biógrafo aretino.
Dumas daria provas de sua concepção acima mencionada diversas vezes, quando
republicou o conjunto de biografias que tinha preparado a partir de recortes diferentes: “Italiens et
Flamands”, em 1861 e “Trois Maîtres” em 1869 seriam, ambas antecipadas por “Michel-Ange et
Raphael”, de 1846, que reunia a biografia de diversos outros nomes para além dos anunciados pelo
titulo, e também a silhueta mais próxima daquilo que teria sido o projeto editorial da Galleria degli
Uffizi. O escritor, por sua parte, também não desviaria da reativação do paragone tantas vezes
evocado entre a graça e a pureza clássica de Rafael, enquanto a Michelangelo reservavam-se os
traços do gênio furioso, melancólico, rebelde e insubmisso. Sem em nada se diferir de sua geração,
é sob essas características que o mestre florentino é forjado por suas palavras que tenderiam, ainda,
a recorrer às velhas (e canônicas) fórmulas literárias125, para dar à biografia o sabor movimentado e
expressivo de um drama envolvente.
Do que resulta desta biografia, a postura de Dumas poderia ser sintetizada pelo antigo
provérbio português que diz “o povo aumenta, mas não inventa”. Dumas recria com um fervor
ímpar o período da juventude de Michelangelo no qual ele é “cedido”126 pelo pai ao ateliê de
Ghirlandaio127. Em seguida, levado por Francesco Granaci ao jardim mediceo de São Marco,
quando conhece e é incorporado à família Médici, Dumas reconstrói a cena da volta de
Michelangelo à casa paterna para lhe contar o que havia lhe passado ao largo desse tempo, segundo
a fórmula da volta do filho pródigo128, parábola que renderia uma imensurável fortuna crítica.
Contudo, seria na evocação da devoradora “ideia fixa” que consome impiedosamente o artista no
fatídico momento da criação no qual o atravessa um agudo e ácido sofrimento, revelaria toda a sua
capacidade de descrição psicológica do personagem fictício que Michelangelo estava em vias de se
tornar. É este o momento em que ao artista é confiada a missão de decorar a Capela Sistina,
atribuição que lhe desestabilizara dado o seu suposto mau domínio da técnica da pintura, e dado,
ainda, a interrupção indesejada de seu prioritário projeto colossal para o sepulcro de Júlio II:
“Figurai-vos um homem que já tem quarenta estátuas na mente, que não faz mais que
castigar o mármore para ver brotar e animar suas criações gigantescas, que chega feliz e
confiante para se colocar à obra! Figurai-vos o mesmo homem, por um esforço sublime,
incrível, desesperado, completamente cambiante de lugar, de objetivo, de meios,

125
Precisamente a expressão “fórmula biográfica” é vastamente utilizada em: KRIS, Ernest. Psicanálise da arte (1952).
São Paulo: Editora Brasiliense, 1968, p. 57.
126
Assim escreve Dumas: “Ghirlandaio apressa-se em pagar o preço convencionado (...)”. In.: DUMAS, Alexandre.
Michel-Ange et Raphaël. Paris: Recoules, 1846, p. 11. (TN)
127
Idem. DUMAS, 1846, pp. 10-29.
128
A referidas parábola encontra-se em Lucas, 15:11-32.

52
esquecendo seu povo de pedras, e invocando todo um reino novo de sombras e de cores;
passando de uma arte à outra no intervalo de uma só noite! Que luta imensa, que magnífico
espetáculo! Está aí o mais brilhante triunfo da vontade humana.
Ao amanhecer Júlio II encontrou o artista no mesmo lugar em que ele havia deixado na
véspera: ele tinha a cabeça abaixada direcionada ao chão, o olhar fixo, os braços cruzados
sobre o peito e parecia absorvido por uma meditação profunda. Os sofrimentos desta longa
noite haviam deixado alguns marcantes traços sobre suas bochechas murchas, sobre seus
olhos vermelhos e secos; mas o fogo do gênio raiava em sua face”. 129

A imagem do artista que reclina inconformado, imóvel e silencioso, melancólico e


angustiado, atingido por uma amargura arrasadora, marcaria toda a fortuna crítica michelangiana na
França (como pode ser visto no modo através do qual Sainte-Beuve o anima em sua poesia) e
dificilmente algum discurso que tivesse o artista como centro gravitacional escaparia de tal
concepção, mesmo que fosse em alguma das raras tentativas de negá-la. Ainda não seria este o
objetivo de Alphonse de Lamartine, um dos protagonistas da Revolução de 1848, que eclodia,
portanto, apenas dois anos depois de Dumas publicar o seu relato biográfico de Michelangelo. Mas
enquanto Delacroix, neste ano, trancafiava-se em seu mais profundo silêncio, Dumas voltava às
ruas e mover-se-ia na vontade fracassada de construir uma carreira política, ao contrário de
Lamartine, sobre a qual, a partir de então, ele seguiria por parte significativa de sua vida. Se existiu
um panteão da literatura romântica francesa no século XIX, Lamartine esteve, certamente, presente
entre os deuses.
Quando Rimbaud, na célebre carta enviada ao poeta Paul Demeny, escrita em 1871,
reconhece em Lamartine um voyant, é porque ele o considerava, antes de tudo, um excelente
sublimador do Eu. A operação crítica realizada pelo mais emblemático enfant terrible que a França
conheceu naquele momento era de decompor a literatura ocidental, e particularmente a francesa, de
modo a retirar dela o substrato dialético que ele sintetizaria na cortante expressão: “Je est un autre”.
Neste caso, contudo, diferente de Delacroix e Dumas, o interesse de Lamartine por Michelangelo
não data de sua juventude apaixonada, mas de sua velhice arruinada. Mas, como iria se tornar um
topos da reformulação da imagem michelangiana no século XIX, o poeta encontra na vida trágica
do mestre florentino a resolução de seu próprio destino, cujo fim violentamente se aproximava.
Lamartine, “sempre fora de si, sempre em fuga dele mesmo”130, reconheceria a antecipação de seu
lamento poético na poesia de Michelangelo, pois o outro de seu Eu era, agora, aquele mesmo que se
fez escravo de seu trabalho, e foi torturado pela sua própria existência.

129
Ibid. DUMAS, 1846, pp. 62-63. (TN)
130
DIAZ, José-Luiz. Lamartine et le poète mourant. Romantisme. 1990. Nº 67, p. 52.

53
A biografia de Michelangelo elaborada por Lamartine funcionava, em certos aspectos,
como uma recapitulação dos momentos de sua vida, identificando, ele próprio, que por ela
atravessava uma profunda melancolia prostrante. Pois desde a sua juventude, a marca poética do
torpor seria indelével em suas palavras. Antes de se lançar de forma malsucedida à carreira política
em 1830, ligando-se à monarquia de julho, Lamartine já gozava de uma importante reputação,
especialmente após a publicação de Méditations poétiques (1820), na qual “Le Lac” torná-lo-ia
poeta que cantava o binômio amor-morte, elemento que costura a vida de Michelangelo à sua
própria, mesmo passado tanto tempo. Depois de 1833, quando seria eleito deputado, e reeleito
sucessivamente neste cargo até a sua anexação ao governo provisório no momento em que eclode a
Revolução, Lamartine conheceria os dias da glória que se apagaria em 1851, em razão do golpe de
Estado de Napoleão III, que instaurou o Terceiro Império. O progressismo anti-Louis-Philipe que o
levou às ruas para liderar a proclamação da Segunda República, parecia voltar-se contra si. Iniciaria
aí um longo período de infortúnios que só se encerraria com sua morte.
Antes, contudo, em 1849, o escritor publicaria “Raphaël”, aquele que se tornaria o mais
célebre de seus romances, não apenas pelo lirismo narrativo, mas também devido ao tom
autobiográfico que assumia sua mais nova empresa. Tempos mais tarde, quando Lamartine escreve,
na vida de Michelangelo, que “todo grande operário em filosofia, em religião, em política ou em
arte deixa sua vida em sua obra” – e acrescenta: “O homem não tem senão a ele mesmo a dispensar
no que ele faz”131, mais do que dar razão à Sainte-Beuve e sua teoria, ele entregava de modo
testamental que a mesma força que o levava a escrever Raphaël, era aquela que o levava a se
interessar pelo velho melancólico mestre florentino.
Lamartine, para além de renovar a fórmula do lamento do herói, ele identifica em
Michelangelo um combate titânico do homem com a pedra para fazer nascer a obra. A virilidade e
brutalidade michelangiana iria estabelecer uma união eficiente com a face lírica de seu trabalho
poético, que o escritor francês reconheceria e louvaria. Emerge daí um contraste entre a existência
pulsante dentro da matéria de mármore intocado e a expressão langorosa do lamento poético, de
onde jorra o processo de gradual encontro com o pathos extasiante: “Começamos pela agitação,
chegamos ao entusiasmo, terminamos pela destruição”132.
A dualidade amargura-terror em Michelangelo seria especialmente grave para o poeta
francês, que reconhecia no sofrimento que acompanhou o artista italiano ao longo de sua vida após

131
LAMARTINE, Alphonse de. Vie de Michel-Ange. In. : Civilisateurs et conquérants. Tome prémier. Paris : Librairie
Internationale, 1865, p. 182.
132
Idem. LAMARTINE, 1865, p. 180.

54
a morte de Vittoria Colonna uma aguda semelhança à perda de seu grande amor de juventude,
narrado em Raphaël133. Realizar uma biografia de Michelangelo para Lamartine é um dispositivo
para resolver consigo próprio a grandiosidade esmagadora de um lirismo poético amoroso-cristão
ao qual ele se verá aprisionado. Isso porque, como bem notou Diaz, “submisso a este requisito da
infinidade, o poema não será composição retórica, joia de arte cinzelada, mas melodia vibrante e
contínua de uma voz sombria. De uma só vez, fusão e infusão. Ele não será partitura escrita, estrofe
gravada, mas „canto divino’ e infinito, brilhantemente infinitamente reverberado e infinitamente
perdido de um eterno acordo”134.
Certo é que em 1855 a biografia de Michelangelo já estava escrita, como atesta a carta
que ele envia a Alfred Dumesnil135, mas ela não seria publicada senão alguns anos depois,
contrariamente ao imediatismo com que Delacroix e Dumas publicaram as suas respectivas versões
para a vida do artista italiano. Mas sua ideia de compor uma espécie de galeria de grandes homens
na qual Michelangelo a priori, ocuparia um lugar, revela explicitamente sua concepção carlyliana
no tocante às formas de narrar a História. Pois Thomas Carlyle compreenderia que a História
Universal gira em torno da figura de seus grandes homens e fazer História não é nada além de
contá-las. Em 1830, no momento mesmo em que insinuava no seio florescente da sua teoria a
impossibilidade de se fazer história136, esse plebeu irlandês, paradoxalmente, retomava e
ressignificava o efeito duradouro causado pelo tropo De viris illustribus, a partir do qual o próprio
Vasari conceberia sua célebre obra. Para além de todas as nuances e implicações do pensamento de
Carlyle, Lamartine caminhava em sua esteira.
Fato é que ao menos desde a década de 1760, escrever uma biografia de artista era
impor-se um problema artístico marcadamente exterior à obra do artista sobre quem se

133
O episódio da morte de Vittoria Colonna seria narrado por CONDIVI, 2007, p.103 (TN), não seria mencionado por
Vasari em 1550, e nem inserido na sua reedição de 1568. Assim nos narra Condivi: “Em particular amou muito a
marquesa de Pescara, de cujo divino espírito estava enamorado, sendo amado por ela apaixonadamente. [...] e a amava
tanto, que recordo tê-lo escutado contar que não se arrependia de outra coisa senão que, quando foi vê-la em seu leito de
morte, deixou de beijá-la a fronte e o rosto como o fez com as mãos. Por esta morte muito tempo permaneceu
atormentado e apático”. – O tema do amor de Michelangelo é retomado por Lamartine diversas vezes, quase sempre
conectado ao seu espírito melancólico e o seu trabalho poético. Assim narra LAMARTINE, 1865, p. 202 (TN): “Esta
morte [a de Vittoria Colonna] assombrou como nunca o horizonte já sombrio da longa vida de Michelangelo. [...] Mas
antes de se elevar sobre os traços de Vittoria Collona até a altura mística do amor divino que ela lhe revela,
Michelangelo havia amado em sua juventude. É o amor que o fizera poeta; e podemos dizer melhor: é o amor que fez
toda poesia. [...] A prosa nasce da inteligência, o verso jorra quando o coração brilha”.
134
Op. cit. DIAZ, 1990, p. 52.
135
Correspondence inédite de Alphonse de Lamartine. Tome 2. Février 1848-1866. Paris : Clermont-Ferrand, 1996, pp.
144-145.
136
BORGES, Jorge Luis. Thomas Carlyle: dos heróis; Ralph Waldo Emerson, homens representativos. In.: Prólogos,
com um prólogo de prólogos (1975). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 44.

55
escreveria137. Pois é a partir do século XVIII que as possibilidades de se fazer História da Arte
ultrapassarão os limites do gênero biográfico, do qual ela fora, desde Vasari, quase sinônima.
Quando Willian Beckford publica Memoirs of Extraordinary Painters, em 1783, em primeiro lugar
ele elaborava uma resposta idiossincrática que driblava o racionalismo hermético de seu tempo. Em
segundo lugar, ele assinalava que toda biografia é, antes de tudo, uma invenção literária. E em
terceiro lugar ele indicava que a apreciação e a contemplação da obra de arte se diferiam, doravante,
da análise do personagem-artista, invertendo a lógica do artista-personagem.
Como Beckford, nem Delacroix, nem Dumas e tampouco Lamartine fizeram do
empenho em biografar artistas o motor de seus trabalhos. Cada um destes três biógrafos de
Michelangelo percorreriam suas respectivas vidas paralelamente a essas produções e as encerrariam
sem, nem mesmo, grandes exéquias como aquelas que recebeu Michelangelo. A morte de
Delacroix, no fatídico ano de 1863, seria narrada por Dumas como atravessada por uma triste
solidão e absoluto abandono e desamparo138. Já Dumas Filho receberia as condolências de grandes
nomes da França pela morte de seu pai, em 1870, cujo corpo teria seu destino encerrado em 2002,
quando seus restos mortais foram transladados ao Panthéon. Lamartine, por sua parte, morto em
1869 já completamente paralisado, daria cabo de um longo processo de arruinamento que
culminava ao aceitar auxilio financeiro de um regime que ele próprio reprovava. Morria então a
geração que reconheceria em Michelangelo a antecipação excelente da figura do homem de seu
tempo e que o tornaria, definitivamente, um artista romântico.

137
A questão da biografia do artista identificada como um “problema” social é analisada em: Op. cit. KRIS, 1968, p. 58.
138
DUMAS, 1996, p. 118.

56
3. A dificuldade da representação

Ao fim da biografia atualizada de Michelangelo, Vasari nos conta que, deste artista,
foram realizados apenas três retratos em vida e um póstumo139, limitando sobremaneira a
autenticidade dos inúmeros retratos que dele apareceria após a sua morte140. Nada seria dito a
respeito da realização de algum autorretrato, como mais tarde tanto seria desejado encontrar141 e
nem mesmo nenhum detalhe escaparia do artista e escritor aretino que revelasse, na fisionomia de
seu tão admirado mestre, as características de seu espírito. Restaria a Vasari, na ausência de traços
angelicais e graciosos, dedicar-se à descrição da rudeza de Michelangelo, acentuando a sua
humanidade, por um lado, equilibrando-a, de outro, à providência divina de seu envio por Deus à
Terra142.
Séculos mais tarde, quando a fisionomia de Michelangelo começaria a despertar alguns
questionamentos, Walter Pater observaria entre Michelangelo e os personagens de Victor Hugo uma
estreita afinidade, entrevendo no artista italiano a presença da mesma estética do grotesco
professada pelo escritor francês143. Hugo, que desde a sua juventude apontava para uma aguda
subversão do ideal canônico do belo, desautorizava, com seus personagens, o princípio platônico da
kalokagathia e fundava um dos topos no qual sua geração iria se espelhar. Mas Pater, por sua parte,
sem bem distinguir, o efeito da aparência física do impacto provocado por sua obra, acaba por
revelar em Michelangelo a fusão irreversível entre sua vida e sua obra a que o século XIX o
submeteria. Tal concepção conheceria um efeito duradouro. A obra do artista florentino, já bem
compreendida como fenômeno e resultado de um furioso ato demiúrgico intensamente contrastante

139
Cf. VASARI, 2012, p. 159. – Trata-se da medalha retrato realizada por Leone Leoni, sobre a qual já se falou, além
do retrato executado por Bugiardini e outro de autoria de Jacopo del Conte. O retrato póstumo é o busto de bronze
executado por Daniele Ricciarelli (Da Volterra), sobre o qual será falado mais adiante.
140
Em todo caso, em 1912 era publicada em língua francesa uma obra sobre os retratos de Michelangelo na qual o
retrato datado de 1552, localizado no Museu do Louvre, cujo título revisto é “Retrato de homem, outrora dito
Michelangelo” e hoje atribuído a Giuliano Bugiardini, devido ao retrato de Michelangelo com turbante seguramente
desse artista localizado na Casa Buonarroti, era erroneamente declarado como autorretrato. Para isso Cf. BAUME,
Geroge. Michel-Ange : 44 gravures et portraits. Paris : Société des Éditions Louis Michaud, 1912. – Já no ano seguinte,
outra obra era publicada e nada se falaria sobre qualquer um dos autorretratos do artista. Para isso Cf. GARNAULT,
Paul. Les portraits de Michelange : avec vignt portraits et un tableau. Paris: Fontemoing et Cie éditeurs, 1913. Este
período parece ter sido de grande inquietude em relação ao problema dos retratos de Michelangelo, pois data também de
1913, outra obra com esse tema: DU TEIL, Le Baron Joseph. Essai sur quelques portraits peints de Michel-Ange
Buonarroti. Paris: Librairie Alphonse Picard et Fils, 1913. O problema da atribuição e da autenticidade do retrato é
comentado por MARQUES, 2011, pp. 619-621, notas 639; 641.
141
Para isso, vide supra, p. 38.
142
Cf. VASARI, 2012, pp. 178-179.
143
PATER, Walter. La poésie de Michel-Ange (1871). In. : Essais sur l’Art et la Renaissance. Paris : Klincksieck,
1985, pp. 102-103.

57
com a expressão da mais suave doçura poética, estabeleceria um diálogo ininterrupto com os
aspectos de sua própria aparência.
Não obstante, a representação física de Michelangelo nunca se impusera explicitamente
como um problema desafiador, sobretudo porque a descrição do artista feita por Ascanio Condivi ao
fim de sua biografia, não deixaria grande margem para imprecisões144. Embora Condivi se esforce
para livrar seu admirado mestre de qualquer ordem de desonradez e iniquidade, a rudeza de sua
aparência, como também apontara Vasari, seria um traço inescapável para quem desejasse descrevê-
lo, e do qual nem mesmo Michelangelo fugiu, quando desejou comentar sua própria imagem. Sob
os olhos de Barolsky145, contudo, ao reunir uma imensa fortuna de mitos adjacentes ou perpassantes
à vida do artista, não haveria hesitações para afirmar que a formulação da imagem de si próprio por
Michelangelo constituiu sua principal manobra para oferecer ao seu tempo a sua imagem montada
por meio da articulação entre feiura e melancolia146. Ainda que não explícita, a razão de Barolsky é
pautada em elementos como a poesia 267 da numeração segundo Girardi, que, para Luiz Marques é
colorida por “tonalidades de uma crueza „expressionista’ nos anos de 1546 e 1550, anos de reveses
e perdas dolorosas, para a qual colaboram a morte de Vittoria Colonna em 1546 (...)”147:
“A minha alegria é a melancolia
E meu repouso, estes desconfortos:
que quem busca seu mal, que Deus lho dê
[...]
Chama de amor no coração não restou;
se o luto maior sempre expulsa o menor,
de penas [asas] tenho a alma bem cortadas
[...]
Meu rosto é de dar medo;
as roupas são de expulsar os corvos ao vento,
em campo apenas semeado.
[...]
A arte prezada, na qual fui outrora
tão renomado, me leva a isto, pobre velho e servo de outrem,
que estou desfeito, se não morro logo”.148

144
CONDIVI, 2007, pp. 108-109.
145
Op. Cit. BAROLSKY, 1990, p. 21.
146
No início de seu célebre ensaio sobre Leonardo da Vinci, Freud, ao analisar brevemente as condições humorais deste
artista, deixa transparecer a resistência da concepção que identifica a ligação entre melancolia e feiura, fazendo claro
uso da ideia construída em torno de Michelangelo e seu gênio: “Tampouco pertencia ele à classe dos gênios fisicamente
mal dotados pela natureza e que por isso mesmo desprezam as formas exteriores da vida e, numa atitude de penosa
melancolia, fogem a qualquer contato com seus semelhantes”. FREUD, Sigmund. Leonardo da Vinci e uma lembrança
de sua infância (1910); O Moisés de Michelangelo (1913). Rio de Janeiro: Imago, 1997, pp. 10-11.
147
MARQUES, 2011, p. 418, nota 328.
148
Segundo a tradução proposta por MARQUES, 2011, p. 419, nota 328. – As quatro estrofes estrategicamente
selecionadas por Marques evocam, cada uma delas, aos elementos sobressaltantes da fortuna michelangiana que o
conectam à melancolia, quais sejam, o bem sofrer, o sofrimento que se sobrepõe a tudo, a feiúra e o tempo corrosivo
somado ao memento mori.

58
De fato, as narrativas a respeito de sua vida ressaltariam a absoluta tristeza recaída sobre
Michelangelo até o fim de sua existência, sobretudo depois da morte de Vittoria Colonna, e o
avanço de sua idade só intensificaria seu humor já naturalmente sulfuroso 149. No entanto, malgrado
a ligação íntima entre feiura e melancolia evocada por Michelangelo em seu poema jamais tenha
sido objetivamente retomada por qualquer um de seus comentadores, tal ligação parece nunca ter
sido desfeita, de modo que este juízo seria aspecto invariável mesmo nos mais discrepantes
pensadores. O triste semblante com o qual sua velha face seria apreendida por Daniele da Volterra
suscitaria sempre comentários a respeito da completa ausência de beleza que a face do artista
apresentava.
A compra do busto de Michelangelo (Figura 8) por
Eugène Piot150, em Bolonha, em 1858, e as suas sucessivas
exposições, reativaria os comentários a propósito da aparência do
mestre. Posta a venda parte da coleção de Piot, fazendo liberar de
Baudelaire uma curta minuta a este respeito, o próprio colecionador
a recompra em 1864, legando em testamento de 1889 para o Louvre,
onde a partir de então a obra ficaria albergada desde sua efetiva
chegada, em 1890151.
Desde o comentário de Baudelaire152 sobre a preciosa
peça, sempre identificada como pertencente ao conjunto dos seis
bustos a partir do molde realizado por Daniele da Volterra, como
consta no inventário de seu ateliê feito após a sua morte, estaria
assinalada a expressão de “tristeza deste glorioso mestre”153. Em
efeito, a então chamada máscara de Michelangelo parecia substituir,
Figura 8
doravante, qualquer outro modelo para descrever suas feições, ignorando-se, quando mesmo, todos
os seus retratos que desde então já se somavam na coleção da Casa Buonarroti. Em longa duração, o
uso deste bronze como estratégia para o reconhecimento da face de Michelangelo alcançaria

149
A melancolia de Michelangelo se intensificaria após a morte de Urbino, em 1553, conforme se refere Vasari sobre a
passagem.
150
É importante destacar que a primeira viagem de Théophile Gautier à Itália fora na companhia de Piot. Esta
informação é importante para compreender uma questão levantada no próximo capítulo.
151
COURAJOD, Louis. Eugène Piot et les objets légués au Musée du Louvre. GBA. Tome 3. 1890, pp. 413-416.
152
Cf. PERROT, George. Monuments et mémoires de la Fundation Eugène Piot, Tome 1, fascicule 1, 1894, pp. 7-23.
153
Op. Cit. BAUDELAIRE, 1869, p. 125. – Baudelaire ameaça entrar em outro problema que não nos cabe aqui, que
são as discussões de atribuição de outros bronzes desta coleção a Michelangelo.

59
Charles de Tolnay154 que, defendendo sua hipótese para a identificação de um retrato satírico de
Michelangelo por Rafael em “Parnaso” (1511) a partir do suave giro melancólico da cabeça em
direção a um futuro e inatingível alinhamento da fronte com o ombro, certamente o mesmo
elemento que levaria à conclusão de Baudelaire, o grande especialista em Michelangelo, afirma que
“o aspecto da face, as bochechas salientes, a inconfundível forma do nariz e da boca, a larga
fronte sulcada de rugas, os cabelos negros e encaracolados, e barba bifurcada e curta, não
deixam nenhuma dúvida, ao que nos parece, sobre o fundamento de nossa identificação” 155.

Tolnay, apesar de sua licença anacrônica156, inseria-se como membro de um longo


movimento que tendia a identificar Michelangelo a partir das marcas de sua profunda tristeza
estampada na superfície do rosto com a mesma precisão como os veios rugosos lhe decorava. Com
efeito, o argumento da face escavada por rugas resultantes de seu mau gênio seria sustentado por
uma extensa fortuna documental, a começar pelas missivas datadas de 1509, quando a
Michelangelo é dada a árdua tarefa de decorar o teto da capela de Sisto, enviadas a seu pai e, meses
depois, a seu irmão, ambos em Florença, manifestando o tom mais febril de seu estado melancólico
de juventude157. Nela, o sofrimento que nasce da articulação dos sintomas mais variados do humor

154
TOLNAY, Charles. Un ritratto sconosciuto di Michelangelo dipinto da Raffaelo. Festschrift Friedrich Gerke,
Baden-Baden, Holle Verlag, 1962, p 167.
155
(TN) – Apesar de ser considerado, incontestavelmente, um dos maiores especialistas em Michelangelo do século
XX, é preciso destacar que Tolnay não era tão bom fisionomista. Em outro ensaio de 1962 sobre o “Michelangelo em
seu atelier” de Delacroix, o historiador conclui sua reflexão evocando uma das versões para “Rafael e a Fornaria”, de
Ingres, na qual um homem barbado aparece ao fundo da composição, portando nas mãos alguns materiais de
arquitetura. Tolnay não hesita em identificá-lo como Michelangelo, invejoso, observando a plenitude amorosa de seu
“rival”, marcando a oposição entre a graça rafaelesca e a sua própria solidão. Se assim fosse, Ingres teria formulado
uma imagem de Michelangelo que inverte toda a sua fortuna crítica oitocentista, que o entende invariavelmente como
vítima da inveja (especialmente de Bramante para favorecer Rafael) e não o invejoso, como nesse momento conclui o
especialista. Tolnay, evidentemente, mesmo tendo pessoalmente visto a obra, como é declarado em nota, se equivoca,
pois se trata, na verdade, de Giulio Romano, aluno de Rafael, cuja atividade como arquiteto é bem conhecida. Nesta
obra, desde Henri Delaborde, no catalogue raisoné das obras de Ingres, seria identificada a imagem de Romano, para
isso Cf. DELABORDE, Henry. Ingres, sa vie, ses travaux, sa doctrine ; d'après les notes manuscrites et les lettres du
maître. Paris: Henri Plon, 1870, pp. 279-280. – Além do mais, o absoluto silêncio crítico de Ingres sobre Michelangelo
é fruto de seu entendimento como fiel e legítimo herdeiro de Rafael, Poussin e Fréart de Chambray. Sobre essa
confusão entre a face de Giulio Romano e Michelangelo na pintura de Ingres, HASKELL, 1989, p. 211, nota 1 já havia
notado, embora ele não explicite a origem do erro, tampouco avance nos problemas teórico-conceituais decorrentes
deste engano. As confusões entre os retratos de Michelangelo e Giulio Romano parecem constituir outro problema mais
complexo, desde a segunda metade do século XVI já levantado, como se pode depreender do “Retrato de Micheangelo
e Giulio Romano” do Harvard Museum (ANEXO II, 2).
156
É preciso reconhecer que Tolnay encontra não só na cabeça de Michelangelo do ateliê de Volterra, executado,
possivelmente após a morte do artista (1564) a partir de uma máscara mortuária, como também em diversos retratos de
Michelangelo, todos posteriores a 1511, uma espécie de modelo antecipado para a obra de Rafael.
157
Cf. MICHELANGELO, 2009, pp. 35-37. – A primeira carta, de maio/junho de 1509, endereçada a seu pai, diz
Michelangelo: “(...) Eu estou infeliz, não muito saudável e com muito trabalho, sem muitas instruções e sem dinheiro
(...). – Já a segunda, muito mais conhecida, seria endereçada por volta de novembro do mesmo ano, desta vez ao seu
irmão, Buonarroto: (...) Aqui vivo em enorme ansiedade e imensa fadiga física; não tenho amigos de nenhuma espécie,
e nem os quero; não tenho tempo nem sequer para me alimentar-me como deveria (...)”. – Alguns fatores de ordem
prática e não apenas espiritual, isto é, ligado à predisposição humoral do artista, contribuem para que Michelangelo se
encontrasse nesse estado em dada altura, entre os quais dois se destacam. O primeiro deles é, como expresso em uma

60
negro, termina por corroborar, inclusive, com a tese de Redig de Campos para a identificação de
Michelangelo como o Heráclito da “Escola de Atenas” de Rafael158. Embora o afresco tenha sido
executado naquele mesmo período, é incerta qualquer descrição mais precisa a respeito do
semblante de Michelangelo aos trinta e quatro anos, pois seu primeiro retrato seria executado pouco
mais de uma década mais tarde, em 1522159.
Em todo caso, quando exposta no Trocadéro na ocasião da Exposition Universelle de
1878, a peça de bronze pela qual Eugène Piot alimentava um carinho especial, teria suas
características ressaltadas pelo próprio colecionador, que nela veria a mais autêntica expressão
fisionômica da melancolia de Michelangelo no último período de sua vida. Piot faria notar ainda o
contraste observado por aqueles que duvidavam da similitude do busto de bronze com a verdadeira
face do mestre florentino, no tocante a doce tristeza de seu semblante, com o seu temperamento
ardente e seu caráter selvagem160. A justificativa que ele encontraria e a conservaria sempre que
possível para a justaposição de tal contraste acabava por substituir os comentários sobre a feiura de
Michelangelo pela expressão de seu gênio.
Seria justamente nesta chave interpretativa que Lamartine seguiria no fluxo do
reconhecimento, na face de Michelangelo, de uma especial candura, reformulando, por outro lado, o
ideal platônico segundo o qual a beleza transcende a matéria, e identificando no mestre um tipo
eminentemente socrático. Naquela altura, ao fim da sua biografia michelangiana, o sofrimento
congênito de Lamartine o encaminharia ao cume da certeza do gênio literário do artista, de onde
emergia o mesmo extraordinário sentido de reprodução escrita dos sentimentos que se podia
identificar na expressão de seu rosto.
Sócrates e Michelangelo explicavam-se um ao outro, em um diálogo mágico e
ininterrupto expresso pelas suas faces que Lamartine, pela primeira vez, coloca lado a lado.
Destarte, os “olhos escondidos nas órbitas ósseas, que tinham, diz-se, cores cambiantes de acordo
com o pensamento”161 fariam de Michelangelo um filósofo místico, não muito diferente de como

das cartas, a inconstância do pagamento feita por Julio II e, em segundo lugar, o desvio de sua função de escultor do
sepulcro papal, atividade à qual ele voltava toda a atenção, para a execução dos afrescos sistinos.
158
Vide Introdução, p. 25.
159
Trata-se do supracitado retrato executado por Bugiardini.
160
PIOT, Eugène. Exposition Universelle - La sculpture a l’Éxposition Rétrospective au Trocadéro. GBA. Tome XVIII.
1878, p. 600.
161
Op. Cit. LAMARTINE, 1865, p. 233. – Não se deve a Lamartine, contudo, a originalidade desta analogia. Na
proposição do “Templo da Pintura”, por Gian Paolo Lomazzo em 1590, os dois personagens aparecem conectados pela
primeira vez, não por acaso, sob a ação de Saturno, planeta regente de ambos, assim como responsável pelo humor
melancólico.

61
será mais adiante refletido. O que importa, por ora, é que a analogia socrática162 fornecia ao escritor
francês o condimento intelectual que o faria perceber no trabalho michelangiano as “manobras
sublimes no braço de ferro, para fazer jorrar da matéria rebelde a impalpável e imaterial beleza”163.
Wittkower nos recordaria, ao evocar o paragone entre Rafael e Michelangelo, que
“nenhuma das graças, nenhum dos charmes, nenhuma das doçuras das quais o destino favoreceu
Rafael, vieram amenizar a rudeza da natureza de Michelangelo. Ele era feio, tinha caráter bruto,
rude, desconfiado e intransigente. Certamente ele não era um homem de fácil convivência” 164. Ele
marcava-se, então, na contramão da poesia que Lamartine consegue extrair do efeito de sua face
marcada desde tenra idade pelo nariz fraturado que lhe serviria quase como atributo.
Na vida de Michelangelo escrita por Vasari, as três menções feitas pelo biógrafo que
lançam especial atenção ao elemento-nariz, vinculam-se intimamente a alguns dos principais topoi
seja da própria vida do artista manifestados já em sua juventude, seja da literatura vasariana, em
geral. O jovem Michelangelo, pela primeira vez no Giardino di San Marco, faz aparecer do
mármore a figura de um horrível fauno de nariz quebrado, mesmo sem nunca antes ter trabalhado
sobre o material165. Neste momento, não apenas estaria estabelecida pela primeira vez uma ligação
do artista com Sócrates166, intensamente recuperada, como se pode notar, no século XIX, como
também seria composto um dos primeiros elementos canônicos do que se poderia chamar de
“mitologia da vida do artista” quando de sua infância reveladora167.
A segunda menção é aquela que envolve Torrigiano168, sujeito de corpulência bestial,
quase selvagem, conforme descrito por Vasari169 e confirmado por Condivi170. Michelangelo, tendo

162
PINGEAUD, Jackie. L’art et le vivant. Paris: Gallimard, 1995, p. 298.
163
Op. Cit. LAMARTINE, 1865, p. 235.
164
Op. Cit. WITTKOWER, 2014, p. 85. (TN)
165
VASARI, 2011, p. 80. – “(...) copiou alguns dias depois em mármore uma cabeça antiga de um fauno, velho e
rugoso, de nariz quebrado e a boca ridente. Sem ter jamais tocado mármore ou buris, conseguiu imitá-la tão bem, que
deixou Lorenzo [Magnífico] assombrado”.
166
BAROLSKY, 1990, pp. 13-15; 19-23.
167
KRIS, Ernest & KURZ, Otto. Lenda, mito e magia na imagem do artista: uma experiência histórica (1979). Lisboa:
Editorial Presença, 1988, pp. 25-35 – Esse topos vasariano se repete em Michelangelo em narrativa anterior, quando de
sua ida ao atelier de Ghirlandaio, mas também se revela na biografia de outros artistas, entre as quais os mais célebres
são a relação entre Cimabue e Gioto, e Verrochio e Leonardo.
168
VASARI, 2011, p. 81. – “Diz-se que Torrigiano (...), por brincadeira, mas movido pela inveja de vê-lo mais honrado
e mais valente na arte, esmurrou-o com tanta força que lhe fraturou o nariz, marcando-o para sempre (...)”. – Com esta
narrativa contrata-se aquela realizada por Benevenuto Cellini, que cita, por sua vez, as palavras do próprio Torrigiano, e
cuja versão vale a pena retomar: “Buonarroti tinha a mania de zombar de todos aqueles que desenhavam. Certo dia em
que ele me dava tal irritação fui tomado de mais cólera do que o normal e, tendo fechado o punho, eu lhe dirigi um
fortíssimo golpe sobre o nariz que senti sob minha mão quebrar-se o osso e a cartilagem como se tivesse sido uma
bolacha. E a marca de minha mão lhe ficará marcada tanto tempo quanto ele viver”. In.: CELLINI, Benevenuto. Vie de
Benevenuto Cellini écrite par lui même (1728). Paris : La Table Ronde, 2002, p. 55.
169
É importante notar a estratégia adotada aqui por Vasari que, neste episódio especialmente, toda a brutalidade pela
qual Michelangelo ficaria conhecido seria amenizada para que se reforçasse, par contre, a rudeza quase selvagem de

62
sido atingido no nariz pelo também escultor, carregaria consigo a marca deste infeliz acontecimento
para o resto da vida. A narrativa de Vasari, contrariamente a de Cellini, apontaria na direção da
inveja que involuntariamente a superioridade de Michelangelo despertava171.
O terceiro e último episódio corresponde a mais célebre anedota contada pelo biógrafo a
respeito do nariz de David, que revelaria, por outro lado o muito particular método escultórico de
Michelangelo172. Para ele, a escultura emergia do bloco de pedra não como resultado do ataque
aleatório contra todas as suas faces, mas a partir de uma frente única, a partir da qual a escultura
comportaria também um inalterável ângulo de observação, que determinaria o ponto de sua efetiva
observação173.
Ocorre que o desastre infringido por Torrigiano
contra Michelangelo desdobrar-se-ia poeticamente três séculos
depois, porque a este evento se uniria idealmente o problema da
face imaginária de Sócrates174. Pois em 1864, naquele mesmo
ano em que, vale recordar, era colocada a venda o busto de
Michelangelo da coleção de Eugène Piot, o jovem Rodin, então
Bruxelas, enviaria sem sucesso ao Salon uma cabeça mal
arranjada de gesso, que ganharia posteriormente o lacônico título
de “L’homme au nez cassé” (Figura 9), colocando todo aquele
pedaço de corpo em função de um nariz mal formatado.
Figura 9 A obra de Rodin seria recusada no Salon sob o

Torrigiano (confirmada por Cellini), expressa por seu physique du rôle semelhante aos que marcariam, séculos mais
tarde, os pintores ligados ao assim chamado Expressionismo Abstrato.
170
CONDIVI, 2007, p. 109.
171
Um dos aspectos mais recorrentes na evocação do binômio Michelangelo-Rafael no durante o século XIX é a inveja
que Bramante sentia de Michelangelo, vindo nesta esteira todas as artimanhas das quais o velho arquiteto se valera para
favorecer seu preferido Rafael para executar os afrescos da Capela Sistina. Delacroix, em sua biografia, narra este
período com especial atenção.
172
VASARI, 2011, p. 88. – “(...) Pier Soderini (...) disse a Michelangelo (...) que o nariz da figura parecia muito grande.
Michelangelo percebeu que o gonfaloniere estava sob o colosso e que seu ponto de vista não lhe permitia um correto
ângulo de visão, mas para o satisfazer subiu no andaime ao lado das costas da figura e, pegando rapidamente um cinzel
com a mão esquerda, juntamente com um pouco de pó de mármore que ali havia, começou a bater de leve com o cinzel,
enquanto deixava cair aos poucos o pó, sem entretanto tocar no nariz. Voltando-se então para o gonfaloniere que estava
em baixo disse: "Olhe agora"; "Assim, agrada-me mais", disse o gonfaloniere, "você deu-lhe vida". Rindo-se consigo
próprio, Michelangelo desceu, contente por ter satisfeito aquele senhor, mas compadecido dos que, posando de
entendidos, não sabem do que falam”.
173
WITTKOWER, Rudolf. Qu’est-ce la sculpture? Principes et procédures de l’Antiquité au XXe siècle (1977). Paris:
Macula, 1995, p. 123.
174
A representação de Sócrates, já por si mesma um problema particular, foi analisada por diversos pesquisadores, entre
os quais, mais recentemente, Paul Zanker em: La fatica del pensare; poeti e fillosofi nell’arte greca. In.: Musa pensosa:
l’immagine dell’intelletuali nell’antichità. Milano: Electa, 2006. Catálogo da exposição, Colosseo de 19 de febbraio a
20 agosto 2006, a cura di Angelo Bottini.

63
argumento de que o artista lhes havia rendido uma obra inacabada. Sobre a noção de non-finito e os
modos através dos quais Rodin se apropriou de tal problema impregnado na fortuna crítica de
Michelangelo, será refletida mais adiante, mas o que importa é que a obra seria reapresentada na
versão em mármore anos mais tarde, sendo finalmente aceita. Malgrado a obra tenha sido
apresentada algumas vezes como o retrato de um velho que lhe prestava serviços de limpeza em seu
ateliê, conhecido pelo nome de “Monsieur Bibi”, o artista se faria localizar desde então no tênue
limite de quando a forma anatômica encontra-se em vias de se tornar pura abstração. Pois ainda que
Rodin representasse o suspiro derradeiro de uma longeva tradição ocidental que inscrevia a
escultura no domínio do estudo do corpo humano, ele apontava uma nova direção, onde o sentido
trágico do homem como vítima do destino se exprime em uma intuição formal de energias que não
são mais exatamente de ordem anatômica175.
Isso porque com essa obra, Rodin flexibilizava o problema da mimese e selava o seu
compromisso com uma subjetividade que existia para além do próprio resultado formal da obra; ele
a localizava em um eterno devir, ao qual a obra poderia eventualmente se submeter. Conta-se que
Rodin havia se aproveitado de um acidente ocorrido com a tal cabeça que tombara ao chão
quebrando-lhe o nariz. A obra de arte como resultado de um acidente retirava dele o domínio
artesanal que se faz constituir no contato da mão com a plenitude da matéria, questão que atingiria
toda a obra do escultor176. A obra iria além: antecipava Mallarmé e já trazia consigo tacitamente a
certeza de que “todo pensamento jamais abolirá o acaso”.
No limite entre retrato, absoluta imaginação e produto sublime do acaso, a obra avocava
a longa tradição dos fragmentos cefálicos antigos177, mutilado de um corpo eternamente faltante e
largado à sorte do tempo, tal como a célebre, mas duvidosa, cabeça de Sócrates do Museu do
Louvre, fonte nutritiva para a imaginação desde Lamartine até Rodin. A face de Sócrates tornava-
se, para este escultor, uma tipologia genérica de semblante filosófico, na qual um acidente de
trabalho iria se justapor, para fazer culminar, com o nariz assimétrico de Michelangelo, na síntese
de um problema oscilante entre forma, experiência e conteúdo.
Embora, como já foi mencionado, retratar Michelangelo estivesse longe de representar
por si só um grave problema, a interseção entre a imagem do artista e a de Sócrates, como já havia
sido detectado por Lamartine, caminhava também pelo outro lado do mundo das aparências.

175
STEINBERG, Leo. Le rétour de Rodin. Paris: Macula, 1991, p. 10.
176
KRAUSS, Rosalind. Sincèrement vôtre: Rodin et la question de la reproduction. In. : L’originalité de l’avant-guarde
et autres mythes modernes (1985). Paris: Macula, 1993, pp. 151-176.
177
A versão marmórea da obra confirma essa afirmação, pois a apresenta um busto de peito nu sobre uma base
antiquizante.

64
Plutarco já havia descrito a possível natureza e os efetivos efeitos do demônio de Sócrates, aspecto
que suscitaria, no século XIX, um especial interesse científico e ativaria a ligação entre o mestre
florentino e o filósofo antigo pela válvula da melancolia, mais tarde perdida com Rodin.
Em 1838, ao fim dos trabalhos de decoração do Salon du Roi na Chambre des
Députés178, Adolphe Thiers delega a Delacroix a missão de decorar os penachos das cúpulas e os
dois semicírculos parietais que compunham o teto da biblioteca. Delacroix concebe, então, cinco
grupos de quatro hexágonos, cada um dos conjuntos girando em torno de um eixo temático
diferente (ANEXO II, 3). Hesitante entre a Filosofia e as Artes, Delacroix termina por escolher
decorar a quarta cúpula com temas ligados à primeira esfera de saber. Em um dos penachos, o
pintor francês sintetiza as narrativas a respeito da fulminação do velho filósofo não por uma visão,
mas pela aguda “percepção de uma voz ou inteligência de uma palavra que o atacava
misteriosamente”179.
Pouco antes de Delacroix se debruçar inteiramente sobre os estudos para uma das obras
mais longas de sua vida, que se estenderia por cerca de dez anos de concepção e execução, o
médico e filósofo Louis Fracisque Lélut publicaria em 1836, “Le Démon de Socrate”, obra que
alcançaria significativa repercussão. Lélut não assistiria a aurora da psicanálise e, justamente por
isso, seguiria acreditando no poder infalível da frenologia, a pseudociência mais sedutora do século
XIX, que, a partir de aspectos puramente formais, diagnosticava a disposição de um caráter em
função do formato do crânio. Orientado por essa premissa, Lélut discorre longamente sobre essa
possessão que acometia o corpo de Sócrates, estabelecendo a partir disso uma longa análise
psicológica de seu perfil.
Nada indica que Delacroix tenha se impactado com esta publicação, embora ambos
recuperem a figura do filósofo pelas mesmas vias, quais sejam, o limite entre o patetismo
melancólico, a experiência alucinatória e a possessão demoníaca180. Delacroix evoca nesta pintura
(Figura 10.1) o daemon como atributo de uma potência intelectiva universal pela qual a todo
homem é facultado edificar o dever de sua humanidade, ainda que em uma impulsiva manifestação

178
Os trabalhos da decoração do Salon des Rois encerram-se em dezembro de 1837 e em 30 de agosto de 1838
Delacroix é encarregado da decoração da biblioteca. Cf: http://www.assemblee-
nationale.fr/14/evenements/delacroix.asp - Consultado em 20.02.2015, às 10:20.
179
PLUTARQUE. Le démon de Socrate (séc. V a.e.c.). Paris : Klinckisieck 1970, p 154.
180
Daímon acumulou vários significados: deus ou divindade, destino ou disposição, ímpeto ou vigor, caráter ou índole,
afetação ou possessão.

65
ou de inspiração da consciência, ou de um agente sobrenatural ou mesmo de uma profunda e
irrefreável alucinação181.

Figura 10.1 Figura 10.2

Ocorre que, quando Delacroix decide-se pela Filosofia em detrimento das Artes como
tema central em torno do qual girariam os semicírculos da cúpula, ele descartava um estudo em
pastel onde era Michelangelo quem assumia aquela mesma pathosformel do sujeito melancólico
fulgurado por seu daemon (Figura 10.2). Uma vez tendo se desfeito do estudo, ele rapidamente
seria adquirido por Alfred Bruyas para compor sua coleção pessoal, na qual já se juntavam um alto
número de obras deste artista e de outros mais, entre os grandes nomes da arte contemporânea. De
Michelangelo, Delacroix elimina apenas um martelo à mão e um fragmento marmóreo aos pés, e
conserva toda a composição, unindo infalivelmente Sócrates ao mestre florentino. Pois o demoníaco
frenesi criativo182 diversas vezes manifestado ora pelo próprio Michelangelo, ora por algum de seus
admiradores, personificava-se, doravante, como a feminina voz atormentadora, responsável por
conduzi-lo da agonia ao êxtase.
Neste processo de eliminação operado por Delacroix, ele nos faz recordar dos
numerosos comentários a respeito da disposição melancólica não só de Sócrates e de Michelangelo,
mas da fisiologia dos gênios, em geral, no organismo dos quais circulam os fluidos ativadores desta
violenta oscilação entre a prostração e a catarse. Quis o destino que Delacroix não fosse um bom
fisionomista e, por isso, tenha livrado de Sócrates qualquer traço fisionômico que o garanta como

181
Cf. KEMP, Martin. The “Super-artist” as Genius: The Sixteenth-Century View. In.: Genius: The History of an Idea.
Edited by Penelope Murray. New York: Basil Blackwell Ltd, 1989, pp. 31-53.
182
WITTKOWER, 2014, p. 85. – Mais adiante (p. 117) o historiador afirmaria ainda: “O Renascimento aceitou a
conclusão de Ficino: só o temperamento melancólico era capaz do entusiasmo criativo descrito por Platão”.

66
tal. Se ele o fosse, é possível pensar que as consequências desta fusão chegassem a uma gravidade
ainda maior, ao nível de uma “poética da semelhança”, e ao entendimento do valor da cabeça como
elemento determinante da personalidade, nos entregando o sinal de uma possível adesão à
frenologia. Contudo, a obra parecia se constituir como uma válvula de escape do interesse do pintor
francês pelo tema da violência, que havia marcado suas obras de juventude, repetindo-se, desta vez,
em uma ordem mais subjetiva. Delacroix faz um comentário a esse primeiro golpe de criatividade,
perpetrado pelo mais interior e potente impulso espiritual, que se formaliza na obra de arte como o
gesto expressivo dispensado pelo artista na matéria.

Figura 11

O primeiro lampejo de criatividade de Delacroix para a representação do conjunto de


artistas para a não realizada cúpula dedicada às Artes revela um Michelangelo arquiteto que o pintor
francês colocaria em segundo plano em todos os momentos que ele reservaria a pensar sobre o
mestre florentino. Conforme observa Louis-Antoine Prat183, Michelangelo apresenta à mão um
projeto para a cúpula de São Pedro (Figura 11). Dessa maneira, Delacroix não só reconectaria
Michelangelo à arquitetura utilizando-a como elemento de ativação do seu valor de ingenium,
deixando explícita a manifestação do entusiasmo de uma brilhante ideia, como também retomava a
longa iconografia da arquitetura derivada da tipologia da musa Urania, que, sentada no globo
terrestre na conhecida postura melancólica, apresenta nas mãos uma prancha e um compasso.
Intuitivamente, o pintor francês também nos faria recordar de que no declínio da vida de
Michelangelo, o trabalho quase exclusivamente dedicado à arquitetura coincidiria com o estágio

183
PRAT, Louis-Antoine. Le dessin français au XIXe siècle. Paris : Louvre éditions, 2011, p. 253.

67
mais agudo de sua melancolia, com a intensificação de seu desejo de morte e com a expressividade
verbal de uma arte voltada unicamente para Deus e para a devoção cristã.
Malgrado tudo, diz-se que o ilustre colecionador havia adquirido o desenho acreditando
se tratar de uma Apothéose de Michel-Ange, título pelo qual o cartão seria nomeado no catálogo
organizado por Théophille Silvestre, que não se ocuparia dos comentários a essa obra184. A este
respeito, Louis Bazille, por sua parte, nada comenta, embora se possa reconhecer que a mudança de
título se deva em direta razão da inscrição que a pintura executada ostenta em sua base185. Por outro
lado, a metamorfose ininterrupta de Michelangelo em Sócrates (e vice-versa), desdobra-se
espontaneamente nos pares vigor-força/destreza-habilidade, habilitando Delacroix a tal
transformação. Contudo, a eficiência do devir que favorece o pintor francês culmina, em
consequência última, na tendência em fazer equivaler às forças patéticas da apoteose, do êxtase e do
gênio.
Em todos os casos, as metamorfoses de Michelangelo nos forçam à contemplação da
oposição dialética entre face (forma) e gênio (espírito), nos colocando, por outro lado, em função de
um espírito tutelar que nos orientará na experiência artística, de qual ordem ela for, da sua
concepção até a sua admiração. Isso porque o torpor melancólico com o qual quase invariavelmente
Michelangelo havia sido identificado, marcando indelével alguma instância de qualquer que fosse
sua representação, tornar-se-ia transe místico-filosófico que justificaria, em alguma medida, a sua
solidão furiosa como absoluta capacidade de se comunicar com Deus, mas não com os homens186.
Por outro lado, sua intimidade com Deus o faria vítima de sua criatividade demoníaca.

184
Informação que consta na ficha da obra disponibilizada em seu dossiê, no Musée Fabre, em Montpellier, ao qual
Bruyas legaria a sua coleção. Por outro lado, a relação entre “Sócrates e seu demônio” e “Michelangelo e seu gênio”,
impõe à leitura das obras um diálogo evidente ente os termos gênio e demônio, para além do sentido etimológico do
termo daemon.
185
Para além do título como problema que atinge diretamente a obra, a datação de 1853 seja vez ou outra utilizada,
parece corresponder a um grave equívoco, uma vez que os trabalhos de execução das pinturas começaram em 1838 e
encerraram-se em 1847 (e em janeiro de 1844 a pintura de Sócrates estava já possivelmente terminada), e é inverossímil
que o artista tenha feito um estudo de uma obra depois dela já pronta. – Cf. Dessins de la Collection Alfred Bruyas et
autres dessins du XIXéme et XXème siècles. Jean Claparède Org. Paris: Éditions Musées Nationaux, 1962. – No entanto,
se assim fosse, seria possível pensar que não o modelo de Michelangelo tenha servido para Sócrates, mas a pintura de
Sócrates tenha servido para um estudo para uma obra autônoma e monumental com o tema do “Génie de Michel-Ange”,
como sugere Fréderic Bazille no comentário ao cartão. In.: La Gallerie Bruyas. Musée Fabre: Montpellier, 1876, pp.
307-308. – Contudo, tal hipótese é enfraquecida devido tanto ao desenho do Louvre quanto ao formato hexagonal do
cartão, exatamente o mesmo sobre o qual Delacroix executou todos os outros pasteis preparativos para as obras da
biblioteca.
186
Op. Cit. ARGAN, 1999, p. 336.

68
PARTE II

A invenção da imagem do artista moderno

69
1. Maldição do artista, maldição artística

Alguma razão tem Paul Joannides ao afirmar que


“o culto dos Românticos por Michelangelo esperava sem dúvida o seu ponto culminante em
um episódio de grande importância histórica, a encomenda de uma cópia do Juízo Final –
quase no formato original – para a capela da École des Beaux-Arts executada por Sigalon
em Roma entre 1833 e 1835”187.

Ele declararia ainda, em seguida, que “nenhuma outra realização poderia melhor concretizar a
ascendência exercida por Michelangelo, mas ela não teve eco” 188. Assim, um dos mais importantes
estudiosos do artista preferia desconsiderar que parte substancial da crítica empenhada em
reformular a imagem de Michelangelo gravitou na órbita desta realização (Figura 12).

Figura 12

É preciso regredir: em 1833, Adolphe Thiers já havia traçado um importante percurso


como crítico de arte dos Salons. Ele também já havia anunciado o futuro promissor que aguardava o
jovem Eugène Delacroix, após a exposição de “La Barque de Dante”, também conhecida por
“Dante et Virgile aux enfers”, no Salon de 1822 (ANEXO II, 5). Dois anos depois, contudo, sua

187
Michel-Ange, Élèves et copistes. Dessins italiens du Musée du Louvre. Dirigé par Paul Joannides. Paris : Éditions de
la réunion des musées nationaux, 2003, p. 29. – Joannides se equivoca, como será apontado, no tocante ao período de
trabalho de Sigalon em Roma.
188
Idem. Seria preciso que Joannides ressaltasse o que a própria crítica contemporânea identificaria como um
alheamento da população em geral relação a tal evento, não da comunidade artística e, tampouco, de seus
desdobramentos, como será examinado.

70
crítica a Delacroix iria se reservar, porque outro jovem, Xavier Sigalon, se destacara sob seus
olhos189. Thiers insistiria, em 1824, no “tato raro”190 de Sigalon, do qual Delacroix estava “longe te
ter a mesma medida”, embora continuasse vendo nele, apesar de sua falta de maturidade, a
confirmação de um grande talento e “imenso futuro”191.
Após a Revolução de 1830, doravante na qualidade de Ministre de l’Interieur, ele
empreenderia o ambicioso projeto de um museu de cópias192, em cujo acervo Michelangelo
ocuparia um espaço de absoluto prestígio (ANEXO II, 6). A Delacroix ele atribui a decoração do
Salon du Roi no Palais du Congrès, como já foi mencionado na Parte I; 2-3 ao passo que a Xavier
Sigalon ele daria a oportunidade de garantir seu nome entre os maiores personagens de sua geração,
como já se dera a entender por sua crítica. Hoje, contudo, a escolha de Sigalon em detrimento de
Delacroix, que já demonstrara enorme identificação espiritual com Michelangelo, ou de Ingres e sua
experiência, que poderia encontrar aí a oportunidade de se redimir de sua abjeção congênita pelo
mestre florentino, ou mesmo de Horace Vernet, cujas pinceladas eloquentes eram prova suficiente
de sua capacidade, coloca-se como uma pergunta inquietante. Essa desconfiança, que só faltava a
Thiers, permaneceu na crítica francesa até o momento em que a tela chega a Paris. Não por acaso:
Sigalon manteve-se distante do circulo da chamada Escola de David da qual provinham nomes
absolutamente divergentes, mas que se tornariam as referências fixas da arte francesa daquele
tempo, como o Barão Gros e Ingres, por exemplo, então diretor da École Française de Rome, no
lugar que fora de Vernet, e com quem Sigalon iria conviver.
Depois do Salon de 1827, quando Sigalon receberia duras críticas ao seu sinistro
Locouste, ele volta para Nîmes, onde passaria parte significativa de sua vida. Ele retornava à
situação precária de sua juventude, salvando-lhe apenas a renda que adquiria com a venda de alguns
retratos. Interrompendo essa absoluta solidão, Thiers, que lhe confia a missão da cópia, pouco tinha
a oferecer. Não obstante a soma restrita que iria receber, Sigalon acreditava naquela oportunidade
menos como uma brilhante chance de reconhecimento de seu trabalho do que como forma de
garantir uma renda fixa por um período prolongado. Copiar Michelangelo parecia também cair-lhe
como uma missão irrecusável de se inclinar diante do divino artista, de modo que ele afirmava ser
“antes melhor morrer de fome copiando Michelangelo, que viver mesquinhamente em estilo

189
Sobre a relação entre Delacroix e Sigalon a partir da crítica de Thiers, cf. FRÈREBEAU, Mariel. Xavier Sigalon,
rival de Delacroix. GBA. Tome LXXXIX. Paris. 1977, pp. 17-26.
190
THIERS, Adolphe. Salon de mil huit cent vingt-quatre, ou collection d’articles insérés au constitutionnel sur
l’exposition de cette année. Paris. [s.d.], p. 13.
191
Idem, pp. 16.
192
Sobre o Musée des Copies de Adolphe Thiers, vide infra, Parte II; 4, p. 110.

71
ordinário”193. Em julho de 1834 ele parte para Roma na companhia de dois ajudantes, mas apenas
Numa Boucoiran seguiria até o fim194. Em 1835, após atenciosos estudos e longa observação do
afresco michelangiano, Sigalon começa, finalmente, a execução da pintura, trabalho que cobriria
quase todo a parede com andaimes, reduzindo aos visitantes a visão da obra do mestre florentino.
Depois de finalizada, a obra seria exposta nas Termas de Diocleciano para um público limitado e só
então seria enviada a Paris, onde a esperada glória de seu sucesso seria finalmente experimentada,
depois de uma trajetória tão árdua e intensa de trabalho195. Em julho de 1837 chega íntegra a imensa
tela de três partes para ocupar a parede de fundo da capela, e Sigalon, então em Paris, animado pela
ideia de retomar as cópias dos afrescos sistinos, regressa em seguida a Roma. No dia 18 de agosto
daquele ano, depois de ser contaminado pela violenta epidemia de cólera que arrasava a capital
italiana, a doença o faria vítima. Sigalon seria fulminado, sem qualquer chance de sobrevivência
enquanto executava o retrato de seu companheiro Boucoiran, que, a partir de então, ficaria
encarregado de completar aquilo que a crueldade do destino não deixou que seu mestre fizesse196.
A alta qualidade do trabalho do pintor francês seria uma contribuição marcante para os
franceses, e entre as obras de Michelangelo, que seriam conhecidas nesse país, sobretudo por meio
das cópias e moldagens encomendadas por Adolphe Thiers na década de 1830, a cópia do Juízo
Final era, sem dúvida, a peça mais impactante. A abertura para a exposição da obra seria anunciada
por diversos noticiários que manifestavam a surpresa que Sigalon provocara na população
parisiense197. Curiosamente, a mesma obra que garantira a Michelangelo toda a sorte de rechaço
asseguraria, pelos mesmos motivos, o seu ressurgimento. O artista italiano teria, segundo foi escrito,
se “lançado contra a parede com toda a fúria de sua execução”198, e a inauguração da cópia
lembraria a todos do mau gênio do mestre, de suas inimizades, do vigor ciclópico de suas esculturas
e da sua força impiedosa na realização de sua arte.
Assim não seria diferente com Delacroix, que reconhecia em Sigalon, finalmente, “um
homem de talento superior”199, mas compreendia que a experiência da observação da cópia seria
sempre limitada sem a observação do afresco monumental in situ, como se falasse de si mesmo. De
193
Apud. ALAUZEN, André M. La Peinture en Provence. Marseille: La Savoisienne, 1962, p. 137.
194
Sabe-se que, para além da atividade de colaborador da execução da cópia do afresco sistino, Boucoirain executou
paralelamente outras obras, como a pintura de São Sebastião, na Chiesa di San Luiggi dei Francesi, onde está sepultado
Sigalon.
195
FABRE, Marcel. Xavier Sigalon. Uzès : Imprimerie Malige, 1928, p. 27.
196
Idem, p. 28.
197
Le Jugement Dernier, de Michel-Ange. Copie exécutée par M. Sigalon. Revue des Artistes. Paris. XI année. 1er
volume. N20. 14 mai 1837, p. 315.
198
Salon de 1837. – Copie du Jugement Dernier, de Michel-Ange, par M. Sigalon. Revue Française. Paris. Tome
prémier. 15 juin 1837, p. 93.
199
Op. Cit. DELACROIX, 1837, p. 337.

72
fato, essa seria sua a única maneira de ver a pintura uma vez que, como já foi mencionado
anteriormente, ele jamais conheceria a Itália e morreria amargurado por isso. Nada, contudo, o
impediria de sentir, através da cópia, os movimentos corporais dos sujeitos condenados à eterna
tensão muscular; “o selvagem vigor dos gestos e estas contorções potentes que dão lugar à tão belos
desenvolvimentos do corpo humano”200. Nada o limitaria observar que Michelangelo era pintor das
formas, dos contrastes, das sombras, das luzes sobre os corpos carnudos e ágeis. Nada desviaria seu
olhar do sentido de invenção de Michelangelo diante da observação dos antigos, que o permitiria
colocá-lo lateralmente a Rubens, cuja arte Delacroix pretendia senão superar, ao menos igualar. Ele
também não hesitaria em sentenciar que o Juízo Final é um verdadeiro espetáculo da carne,
extravagante, sobrenatural em sua verdade cruel e dramática. Absolutamente nada, porém, o
impediria de concluir que estaria em Michelangelo o corte histórico ao qual toda pretensão de
realização de uma pintura moderna deveria recorrer inescapavelmente. “Michelangelo é o pai da
arte moderna”201, diria o pintor, comovido com o trabalho pictural de seu mestre espiritual.
É preciso lembrar que Delacroix já havia demonstrado, até então, o seu profundo
interesse pela violência pulsante dos corpos. Ao que parece, para ele, nada diferia uma luta de
cavalos ou leões dos corpos amaldiçoados em queda livre para o inferno depois da condenação
divina. Não estava no agudo sentido de um Michelangelo que faz de sua arte um mecanismo de
reflexão teológica o alvo de seu interesse, mas sim na potência sanguinolenta que o ligava a Dante,
a Shakespeare e a Homero, ao mesmo tempo e sem qualquer obstáculo.
A inauguração da cópia incidiria também fortemente na própria história da centenária
capela onde, em fins do século XVIII, Alexandre Lenoir havia organizado o Musée des
Monnuments Français a partir da reunião dos destroços de edifícios públicos saqueados da
Revolução Francesa, em cuja fonte Thiers bebeu diretamente. Lenoir, pois, não passaria isento de
um episódio de tamanha relevância e também ele, tal como Delacroix, acabaria utilizando a cópia
como pretexto para se render ao “gênio vasto, elevado, sublime” de Michelangelo. Lenoir, no alto
de sua experiência, em grau avançado do cansaço das vésperas de sua morte, retoma a censura ao
afresco por Aretino, mas confessa, por outro lado, que o próprio Thiers o fizera reconhecer que
aquele grande talento precisava estar inspirado, elevado de si mesmo, quase em um estado de
transe, de possessão, para que, neste impulso, pudesse alcançar a sua criação mental202.

200
Idem, p. 340.
201
Vide supra, Introdução, p. 23.
202
LENOIR, Alexandre. Le Jugemet Universel de Michel-Ange, par M. Xavier Sigalon. Journal de l’Institut
Historique. Paris. 36me livraison. Juillet 1837.

73
A única voz dissonante desse acorde soado pela cópia do afresco sistino vinha de
Théophile Gautier que, embora renunciasse repetir as conhecidas qualidades técnicas da obra de
Michelangelo, ele discordava categoricamente do mau gênio do artista203. O afresco do Juízo Final
lhe evocava, a partir daquela cópia, tão somente a importância formal que o mestre florentino dava
aos corpos, a solidez e a consistência das massas; ele não via em Michelangelo nada mais que a
mais pura e absoluta autonomia da forma, resultado das livres decisões do artista, em grande
medida, um decalque direto de sua convicção de que a arte vive para ela mesma. É possível que
depois de ver em Roma o afresco204, todas essas certezas tenham se desmontado, mas, naquele
momento, Michelangelo era muito mais do que um artista cristão: era um construtor monumental de
um mundo governado pela força humana inteiramente concentrada na tensão do torso antigo.
A cópia do afresco michelangiano conduziria os intelectuais franceses à conclusão
unívoca a respeito do temperamento de Michelangelo e de sua íntima ligação com os dois polos da
moral humana. A ideia de que o artista comportaria, na potência do ato demiúrgico, a mesma
capacidade de destruição era, doravante, inequívoca. A fulminação de Sigalon pouco seria
comentada e sua morte, para Poujolat, por exemplo, não passaria de um imenso fracasso 205. Não
haveria quem recordasse, contudo, que Reynolds, pouco tempo depois de pronunciar seu último
discurso louvando a glória de seu mestre ideal, expiraria em pouco tempo. Michelangelo, já há
muito tempo um artista maldito na França, estava se convertendo, pouco a pouco, na própria
maldição artística.
É preciso lembrar que depois da censura de Michelangelo por Rolland Fréart de
Chambray206, seria difícil desconectá-lo do maldito anjo expulso do paraíso da pintura conforme o
intelectual profanaria. Parecia estar justamente em seu veneno, em sua maldição e em sua
melancolia aquilo que despertava o interesse de outros artistas. A chancela divina de Ariosto se
revertia e ao “Arcangelo Michele” (de onde deriva seu nome) que abate o dragão maligno sobrava
apenas o lugar terrificado da vítima.

***

203
GAUTIER, Théophile. Copie du Jugement Dernier (La Charte de 1830, 17 mai 1837) ; Statues de Michel-Ange (La
Charte de 1830, 22 mai 1837). In. : Fusains et eaux-fortes. Paris : G. Charpentier Éditeur. 1880, pp. 123-143
204
Théophile Gautier realiza sua primeira viagem à Itália em 1850, na companhia de Eugène Piot.
205
M. POUJOLAT. Toscane et Rome. Correspondences d’Italie. Paris : Dezobry, Magdeleine et Cie.1840, p. 353.
206
Para isso, vide supra, Parte I; 1, p. 41.

74
Em 1833, Jean-Jacques Feuchère enviaria ao Salão daquele
ano um pequeno bronze patinado que ele nomearia Satan (Figura 13).
Ele colocava diante do público aquele ser de face bestial e asas de
morcego, que repousa imóvel na clássica postura do pensador,
sustentando a cabeça com o apoio de uma das mãos207. A longa
iconografia da melancolia à qual Feuchère recorria não era por acaso.
Ele recordava que o equivalente da palavra Lúcifer em hebraico é
“helel” (hêlêl; heylel), derivativo do verbo lamentar. Reclinado em
profundo silêncio o demônio está humanamente angustiado e,
protegido pela cúpula de suas asas, lamenta a perda de sua luz e a sua
expulsão do Paraíso. Não seria preciso grande esforço para dar-se

Figura 13 conta, porém, que Feuchère tornava sua obra uma sensível alegoria da
imagem do artista, que ambiguamente lamenta fracassado por ousar destemidamente subverter as
leis de deus no desafio da criação e reflete obstinadamente sobre sua libertação das divinas
orientações.
Dez anos depois, em 1843, era o próprio Feuchère quem dava ao mundo uma obra
fracassada. Depois de esculpir em bronze a imagem de Michelangelo reclinado sobre si mesmo
abjurando de seu trabalho (Figura 14.1), o escultor a teria recusada pelo júri do Salon. Restaria à
obra ser reaproveitada, anos depois, como mero ornamento de um relógio à moda Napoleão III, para
que hoje ela não constasse entre as peças desaparecidas de seu autor (Figura 14.2). Nenhuma
diferença parecia haver entre a imagem da lamentação do anjo demoníaco e a prostração do artista
que renuncia ao seu labor, salvo o fato de que esta segunda obra, aparentemente muito mais dócil,
panfletava mais explicitamente em favor de um artista pouco desejável 208, enquanto a primeira
reduzia-se falsamente à mera continuidade de uma longeva tradição iconográfica.
Seria preciso ainda esperar décadas para que Baudelaire, pelas palavras de Poe,
anunciasse intuitivamente um justo diagnóstico: “(...) ele era o gênio que presidia os contratempos
na humanidade, e (...) sua função era de levar estes acidentes bizarros que impressionam

207
Mélancolie, génie et folie en Occident (2005). Direction de Jean Claire. Paris : Gallimard, 2014, p. 462.
208
No Salon de 1835, por exemplo, Feuchère iria expor “Benevenuto Cellini” ao mesmo tempo em que se expunham
outras representações escultóricas de imagens de artistas. Tempos mais tarde, no mencionado Salon de 1843, embora o
“Michel-Ange” tivesse sido recusado, a “Amazone doptant un cheval” seria uma de suas obras aceitas e que conquistaria
comentários elogiosos.

75
continuamente os céticos”209. Somente em 1865, já absolutamente arruinado, Baudelaire publicaria
“L’Ange du Bizarre” na coletânea de contos traduzidos de seu velho conhecido Poe. Mas em 1837,
quando da inauguração da cópia do Juízo Final, Baudelaire tinha apenas dezesseis anos e ainda
construía seu perfil intelectual. Talvez ele sequer tivesse sabido de tal evento. Baudelaire, que vivia
sob a exclusiva atenção materna depois da perda do pai, seria posteriormente obrigado a partilhá-la
com seu padrasto, o General Aupick. Baudelaire, segundo a expressão formulada por Peter Gay,
nunca conseguiria superar sua expulsão do Paraíso210.

Figura 14.1 Figura 14.2

Só assim, como um expurgado do mundo das delícias, que o maior nome da


modernidade francesa iria aderir à ala republicana na Revolução de 1848 e, depois do golpe que
levou Napoleão III a autodeclarar-se imperador, seria reconhecido como uma ameaça à ordem
pública, acusado de blasfêmia e obscenidade pelo governo, em 1857, pela publicação da ontológica
“Les Fleurs du Mal”. O que fazia deste livro um marco fundamental da modernidade, ainda
segundo Gay, não era tanto sua abordagem explícita, mas sim a habilidade de Baudelaire em fundir
a clareza formal e o tema licencioso, os sonetos mais obedientes às regras formais e as mais
grosseiras metáforas211. Ao fim e ao cabo, sua operação era não de acariciar a bela superfície, mas

209
POE, Edgar Allan. L’Ange du Bizarre. In. : Histoires grotesques et sérieuses, traduites par Charles Baudelaire.
Paris : Michel Lévy, 1865, p. 20
210
GAY, Peter. Modernismo: o fascínio da heresia: de Baudelaire a Beckett e mais um pouco (2008). São Paulo:
Companhia das Letras, 2009, p. 50.
211
Idem, p. 56

76
utilizá-la como máscara cruel e impiedosa para uma a ferida purulenta da moral humana212.
Baudelaire e Michelangelo estavam aí, pois, reconectados.
Como bem notou Jean Starobinski213, o escritor francês conhecia muito bem a longa
tradição médico-filosófica da melancolia que a definia como “veneno negro” e assinalava o seu
efeito corrosivo no corpo desequilibrado214. A imagem angustiante do céu baixo e carregado, que
pesa como tampa sobre as costas dos humanos condenados215, não evocam diretamente as
corpulentas figuras das áreas triangulares no teto da Capela Sistina executadas por Michelangelo,
mas recorrem à mesma noção da qual o mestre florentino se valera. A perda de esperança em um
mundo de condenados, imagem baudelairiana por excelência, parecia ter como essência o espírito
amargurado do qual Michelangelo estivera embebido do início ao fim de sua vida. A melancolia,
para o artista toscano, era a loucura – “pazzia” que garantia a sua sobrevivência.
A única vez que Baudelaire esteve efetivamente fora da França foi ao fim de sua vida, já
arruinado, afundado em dívidas, quando decidiu exilar-se voluntariamente em Bruxelas. Ele
também não conheceu a Itália e seu repertório visual no tocante a arte italiana era limitado. Não
obstante, não é estranho que, quando Baudelaire aponta Michelangelo como um dos “Faróis”, seja
dele próprio ou de seu tempo, ele o evoque não através dos Escravos que ele também, certamente
contemplou impacientemente no Louvre, mas através do Juízo Final, cuja cópia de Sigalon ele viu:
Michelangelo, lugar vago onde se vê Hércules
Misturarem-se a Cristos, e se levantarem direto
Fantasmas potentes que nos crepúsculos
Rasgam seu sudário esticando seus dedos216

T. S. Eliot, grande tributário de Baudelaire, perceberia brilhantemente que a moral da


poesia não se determina por seu tema, mas pelo modo como o tema é tratado217. Sua conclusão a
respeito da poesia de Baudelaire parecia traduzir com perfeição o modo através do qual o escritor
francês observa Michelangelo e o projeta no elenco formado por Rubens, Leonardo, Rembrandt,
212
A operação realizada por Baudelaire era semelhante ao que Offenbach, contemporaneamente, executaria em
“Orphée aux Enfers” (1858), ao humanizar (e dessacralizar) os deuses olímpicos levando, de um lado, a uma cômica
reflexão da moral, de outro, ao limite do ridículo. Nesse movimento de desmoralizar o herói homérico inseria-se
também Daumier, com quem Baudelaire manteve uma importante ligação.
213
STAROBINSKI, Jean. A melancolia diante do espelho: Três leituras de Baudelaire (1989). São Paulo: Editora 34,
2014.
214
Segundo o autor, “os médicos falavam de „acrimônia ácida’, de excremento” etc. As noções clássicas a esse respeito
encontram-se no tratado enciclopédico “The Anatomy of Melancoly” (Oxford, 1621), de Robert Burton. Cf.: Idem, p.
31.
215
É essa a imagem à qual Baudelaire recorre nos primeiros versos do poema LXXVIII-Spleen: “Quando o céu baixo e
carregado pesa como uma tampa//Sobre o espírito gemebundo sujeito a longo tédio (...)” (TN)
216
VI-Les Phares – In. : BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres Complètes (I). Le Fleurs du Mal (1857). Paris : Michel Lévy
Frères, Éditeurs, 1868, p. 95. (TN)
217
ELIOT, T. S. Baudelaire (1930). In.: Ensaios Escolhidos. Lisboa: Edições Cotovia, 1992, p 56.

77
Puget, Watteau, Goya e Delacroix uma essência homogeneamente maligna, obscura e sublime. O
Cristo-Juiz que brilha como sol em sua autoridade, é Hércules e, por sua força, esse ser duplo
ordena a ressurreição dos mortos. Estes, fantasmagóricos, rasgam os tecidos que os envolviam
como múmias, para apresentarem-se ao julgamento? Ou esses tecidos são rasgados depois da
terrível condenação por Cristo? (Figura 15). A genialidade de Baudelaire está em sua interpretação
de Michelangelo como propulsor da dissolução do locus canônico da moral: o bom é quem julga ou
quem é julgado? O mau está em quem condena ou no condenado a arder nas chamas do inferno?

Figura 15

Baudelaire reconhece em Michelangelo a agudeza de um berro extasiante e dissimulado


de um diabolismo estetizado. Eliot, por razões pessoais, insistiria em reverter a ligação do escritor
francês com o satânico e o diabólico por perceber o teor singularmente religioso através do qual
Baudelaire enxerga o mundo218. O sentido de diabólico no poeta francês deve ser reconectado ao
seu sentido original, isto é, contrário à ideia de simbólico, designando aquilo que desune, que separa
e que dispersa219. Exatamente por isso Eliot não perceberia que haveria aí um paradoxo com a
própria ideia de “re-ligião”, isto é, de “re-ligação”, de onde nasce uma importante chave de
entendimento da complexa estrutura de pensamento de Baudelaire, que, como observou Calasso, foi
um impávido defensor do direito de se contradizer220. A ideia de contradição é central no
pensamento baudelairiano221 e, mais do que significar a essência pulsante da vida porque oriunda do

218
Idem, p. 55.
219
Marcelo Jacques de Moraes entende a ideia de diabólico em Baudelaire de forma complementar a apresentada aqui:
“diabólica (...) por apresentar o mundo em sua radical e familiar estranheza, sem qualquer limpidez simbólica”. In.:
MORAES, Marcelo Jacques de. Baudelaire e a astúcia do diabo. Disponível em:
http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/num6/ass01/pag01.html#_ftn14 Consultado em 13/04/2014, às 21:46 hrs.
220
CALASSO, Roberto. A Folie Baudelaire (2008). São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 56.
221
Sobre isso, vide supra, Introdução, nota 31.

78
direito de escolher, ela é a própria consistência de sua obra. Basta que recordemos da contradição
entre a perfeição e polidez da forma que não denuncia o conteúdo dilacerante da obra, exatamente
aquilo que leva Baudelaire a Michelangelo e o elege como um de seus faróis.
A relação fundada na intimidade da relação formal-conceitual entre os contrastes
encontrava-se também no ciclo inicial das Fleurs, onde “Les Phares” se encontra222. “Spleen et
Idéal”, caracteriza-se por um ritmo mais lento e contemplativo do inapreensível, resultado da
interação infinita entre as suas forças geradoras: Spleen – o movimento da cidade, ativado pela
inominável multidão – e Idéal – produtor da lembrança espontânea, do desejo absurdo e da
experiência impossibilitada223. Trata-se do resultado do contato nervoso entre as duas faces opostas
de uma mesma moeda: a melancolia. De um lado, originada pelo tudo, pelo excesso, pela alienação,
por todos os nomes, e de outro, pelo tédio, pelo cansaço, pela tristeza, pela miséria, pela ausência de
nomes.
1845 seria o primeiro Salon de Baudelaire. Em 1846, seu segundo Salon, portanto, seu
pensamento já se encontrava inteiramente definido224. No ensaio deste ano, Baudelaire deixa
escapar que Michelangelo « é de certo ponto de vista, o inventor do ideal entre os modernos », não
por resolver o seus problemas artísticos pelas soluções cromáticas, mas por elevar o seu desenho ao
grau da imaginação, a categoria mais importante no juízo estético baudelairiano 225. A partir desta
sentença, depreende-se que o Idéal estaria também intimamente relacionado com a ideia de
imaginação que, para Baudelaire, consiste na capacidade da obra de ser infinitamente interpretável,
como em uma espécie de tendência à circunferência sempre lacunar, que se completa
constantemente sob os olhos do observador226. A associação entre o conceito de Idéal, indefinível
por natureza, e Michelangelo seria ainda renovada:

Pois não serão jamais belezas de vinhetas,


Produtos avariados, de um tempo bandido nasceu.
E pés com borzeguins, dedos com castanhetas,
Que irão satisfazer um coração como o meu.

Eu deixo a Gavarni, o poeta dos coléricos,


Seu sonoro tropel de belezas de hospital,
Pois não posso encontrar entre estas rosas pálidas

222
É preciso fazer uma digressão ao argumento de Löwy e Sayre, para os quais as constantes contradições do
romantismo caracterizam sua natureza de coincidentia oppositorum. Cf. Op. Cit. LÖWY e SAYRE, 2015, p 19.
223
GATTI, Luciano Ferreira. O Ideal de Baudelaire por Walter Benjamin. Trans/Form/Ação. São Paulo. 31 (1). 2008,
p. 127.
224
Op. Cit. VENTURI, 1969, p. 241
225
Op. Cit. BAUDELAIRE, 1868 (II). Salon de 1846, p. 142.
226
Idem. Salon de 1859, p. 325.

79
Uma flor que se assemelhe ao meu vermelho ideal.

O que é preciso a este coração profundo como abismo,


Sois vós, Lady Machbeth, alma onde o crime pulsa,
Sonho de Ésquilo aberto em furiosas manhãs;

Ou bem tu, grande Noite, mulher michelangiana,


Que torce pacificamente em uma estanha pose,
Tuas graças aos moldes da boca dos Titãs227.

Como é bem sabido, Baudelaire estabeleceria um forte diálogo com longas tradições
literárias e filosóficas. Malgrado o Idéal de Baudelaire se revele agora na inspiração do horror, o
que o leva novamente a Michelangelo é o interesse não pelo ethos na pureza dos gestos, mas pelo
pathos decrépito da existência. Baudelaire haveria de concordar com Goethe quando afirmou: “Por
clássico, eu indico a saúde, e por romântico, a doença”228. Talvez o escritor francês ainda
acrescentasse que em sua concepção de sujeito romântico estaria o indivíduo que se encanta e se
apaixona pela mais sedutora superfície que alberga toda a fonte do medo e do desespero. O que é
preciso ao coração abismado? Lady Machbeth, que desnuda o peito e invoca os espíritos malignos
para que possuam seu corpo e lhe motivem a cometer o assassinato do rei? – Como consequência, o
tormento, a loucura, a demência – Ou a natureza misteriosa da Noite, de Michelangelo (Figura 16),
em cuja superfície brilhante resplandece sua “quase-vida” estranha na sua convulsão petrificada, e
bela em sua doença marmórea? O duplo Lady Machbeth-Noite forma na poesia uma espécie de
encarnação dialética da própria Fleur Du Mal, e materifica toda a maldade essencial encapsulada na
forma regular e plácida do mórbido mistério feminino.

Figura 16

227
XIX – L’Idéal – Op. Cit. BAUDELAIRE, 1868 (I), p. 112. (TN)
228
Apud. PRAZ, Mario. A carne a morte e o diabo na literatura romântica (1930). Campinas: Editora Unicamp, 1996,
p. 30.

80
Claro está que o interesse de Baudelaire pelo desequilíbrio das funções orgânicas era
outro dos elementos fundamentais que lhe faria recorrer a Michelangelo e a admirar Delacroix,
sobre cujas obras, especialmente as “Femmes d’Alger”, ele afirmaria na crítica ao Salon de 1846:
“Quase todas são doentes e resplandecem de certa beleza interior (...) É não somente a dor que ele
sabe expressar mas, sobretudo, - prodigioso mistério de sua pintura – a dor moral!”229. O deleite
descritivo de Baudelaire em descrever a “Madaleine au Désert”, de Delacroix, no Salon de 1845
seria sistematizado muito tempo depois quando, finalmente ele mesmo tomaria consciência dos
limites do seu próprio conceito de belo:
“Eu encontrei a definição do Belo, de meu Belo.
É algo de ardente e de triste, algo de pouco vago (...). Eu vou, se quisermos, aplicar minhas
ideias a um objeto sensível, ao objeto, por exemplo, mais interessante na sociedade, a um
rosto de mulher. Uma cabeça sedutora e bela, uma cabeça de mulher, eu quero dizer, é uma
cabeça que faz sonhar de uma só vez – mas de uma maneira confusa, - de volúpia e de
tristeza; que comporta uma ideia de melancolia, de lassidão, até mesmo de saciedade – seja
uma ideia contrária, isto é, um ardor, um desejo de viver, associados a um azedume
refluente, como vindo de uma privação ou de desesperança. O mistério, o arrependimento
são também características do Belo.
(...) Eu não afirmo que a Alegria não possa se associar à Beleza, mas eu digo que a Alegria
é um dos ornamentos mais vulgares, enquanto a Melancolia é por assim dizer, sua ilustre
companheira, ao ponto que eu não concebo mais (...) um tipo de Beleza em que não exista
Infelicidade”230.

Delacroix, por razões obscuras, nunca revelou a Baudelaire a insatisfação com a sua
crítica e esse “(...) não sei quê de doente, a falta de saúde, a melancolia obstinada, a lividez da febre,
a luminescência anormal e bizarra da doença”231 que o crítico havia identificado em suas figuras
femininas, alimentavam, no pintor, uma enorme desconfiança do sentido de tais elogios. De modo
geral, o que Delacroix estranhamente não compreendia era como a cólera e a náusea poderiam
funcionar como elogios, enquanto, para Baudelaire, a arte, assim como a vida, estavam livres para
gozar de qualquer ordem de qualidade. O escritor francês acompanhou o processo que transformou
o culto a autonomia da arte em louvor à miséria do artista, no qual Michelangelo estava circunscrito
em toda a sua inteireza, não como mais um elemento maldito, mas como o profeta da condenação
artística.

***

229
Op. Cit. BAUDELAIRE, 1868. Salon de 1846, p. 115-116.
230
BAUDELAIRE, Charles. Journaux intimes – Fusées, Mon coeur mis à nu. Paris : Les Éditions G. Crès et Cie, 1920,
p. 18-20. (TN)
231
CRÉPET, Eugène. Charles Baudelaire. Paris: Librairie Léon Vanier Éditeur, 1906, p. 353. (TN)

81
Ao contrário do que declarou Johannides, a cópia do Juízo Final por Sigalon, como foi
refletido, se propagou em longas ondas e incidiria agudamente no processo de reformulação pelo
qual a imagem de Michelangelo passava. Restaria ainda ao historiador inglês admitir outro aspecto
ativado por esta ocasião. Tal evento reforçaria a ligação entre o mestre florentino e Dante, cuja
“Divina Comédia” iria revigorar o teor dramático de sua obra como nenhuma outra obra literária o
faria232. “Divina Comédia”, vale dizer, quase sinônima de “Inferno”, a primeira e mais longa parte
da epopeia no mundo dos mortos. Reconheceria Erich Auerbach o fenômeno global que se tornara a
descoberta de Dante no século XIX, e ele afirmaria também que, na França, de Chateaubriand a
Sainte-Beuve, Dante seria louvado em geral como poeta romântico do sublime, do grotesco do
pavoroso233.
“O horror sem esperança tem seu lugar
tradicional na literatura”234, diria o filólogo alemão, desta
vez nos comentários a respeito de “Les Fleurs du Mal”,
embora essa frase pudesse ser aplicada com justeza àquilo
que, em um primeiro momento, Delacroix identifica
como conteúdo dantesco em Michelangelo, e seria,
posteriormente, reafirmado de maneira enfática por Jean-
Baptiste Carpeaux em seu “Ugolin” (Figura 17). Talvez
nenhuma outra obra do século XIX encarne o princípio
anatômico michelangiano, que concentra no torso toda a
potência da fúria e da energia contida. Carpeaux, ao
contrário de Delacroix, entenderia Michelangelo como
artista do horror, do desespero e da angústia irremediável.
Carpeaux entenderia que a melancolia manifestada pelo
mestre florentino não estava somente no langor
Figura 17
melancólico, pois atingia, sim, as articulações travadas e

232
Embora CONDIVI, 2007, p. 88 reconheça que de Dante, Michelangelo “sempre foi estudioso”, é VASARI, 2012, p.
125 quem lembra-nos que o artista era “familiaríssimo” do escritor toscano, e à imitação de seu Inferno, elaborou o
programa decorativo do mural sistino, evocando, para dar ainda mais credibilidade à afirmação, os versos 109-111 do
Canto III, do Inferno. Como complementa MARQUES, 2012, p. 563, nota 527, “juntamente com o motivo de Minos, o
de Caronte é a segunda citação explícita de Dante no “Inferno” michelangiano, referida por Vasari”.
233
AUERBACH, Erich. A descoberta de Dante no romantismo. In.: Ensaios de Literatura Ocidental. São Paulo: Duas
Cidades; Editora 34. 2007, p. 84.
234
Idem. As Flores do Mal e o Sublime (s/d), p. 301.

82
as extremidades enervadas.
Em 1854, o escultor receberia o premio de viagem ao estrangeiro235, tornando-se, como
ditava o protocolo, um pensionário da Villa Medici, em Roma. Nesta qualidade, ao longo de todo o
período do séjour italiano, ele deveria enviar à França algumas obras que, supostamente, dariam
conta de demonstrar os avanços de seus estudos e do seu amadurecimento artístico, proporcionados
pelo contato direto com o conjunto de obras mais representativo da antiguidade e com os grandes
mestres, sobretudo dos séculos XV, XVI e XVII. Carpeaux, que já conhecia muito bem
Michelangelo pelas obras copiadas da École, vai para a Itália com seus objetivos mapeados. Ele
estuda em detalhes a Capela Sistina, onde ele permanecia longos períodos. O Juízo Final ele
conhecia em seus pormenores, especialmente os seres infernais. Cada uma daquelas figuras
mereceu dele atenção especial.
Cada vez mais claro estava que o estudante aprofundava verticalmente o seu interesse
pela carnosità, fosse da escultura, fosse da pintura, atividade à qual dedicou também parte
fundamental de seu trabalho. Ainda jovem, seu interesse por Géricault apontaria para o seu destino.
Diferente do que aquele artista significara para Delacroix, sobre quem ele exerce grande influência
no tocante ao uso das cores e das pinceladas mais gestuais, Géricault era, para Carpeaux, o mestre
insuperável do grotesco, do macabro, do horrível, do mórbido e do patológico. O Ugolino, não por
acaso, passaria a ser, desde sua criação, obra central na produção de Carpeaux, por nela convergir
todos os princípios fundamentais de seu pensamento artístico mais maduro, da fúria e da tensão, até
a necrofilia e o desejo.
Tudo parecia estar conduzido, então, por seu interesse pelo matérico, pelo palpável, ou,
em uma expressão, pela dimensão de vivacità que na matéria bruta se podia expressar. Quando de
sua viagem para Florença, ele realizaria um estudo da Fontana dell’Oceano, de Giambologna, nos
Jardins de Boboli, para compreender a capacidade de articulação dos músculos tensionados
ganharem uma monumentalidade colossal (Figura 18). Evidentemente, ele havia observado com
absoluta atenção o pensieroso da Capela Medici (Figura 19), que revela em Michelangelo, uma
extraordinária capacidade de abstração das linhas do corpo. Em Roma, a expressividade plástica
que Bernini faz residir nos detalhes – nos olhos lacrimejantes, nas mãos encrespadas, nos lábios
trêmulos, na fisionomia, de modo geral – especialmente nas obras do conjunto Borghesiano,

235
Carpeaux recebe o prêmio em 1854, mas, devido aos trabalhos de execução do baixo-relevo da “Soumission d’Abd-
El-Kader”, encomendado pela casa do Imperador, é autorizado a postergar sua viagem. Apenas em 1856 ele seria
admitido na Villa Medici, retornando no meio do séjour a Paris por motivos de saúde. No retorno a Roma, na primavera
de 1859, o artista inicia o processo de concepção do envio obrigatório final, o Ugolino, cujo modelo ele acaba no fim de
1861. – Cf. Jean-Baptiste Carpeaux. Dossier de l’Art. Nº 220. Juillet-août, 2014, pp. 34-37.

83
próximo a Villa Medici, ele também admiraria longamente. Mas era apenas Michelangelo que
reunia monumentalidade, expressão, potência e vigor plástico, e apresentava, ademais, o mundo
como uma grande tragédia, como uma condenação infinita.

Figura 18 Figura 19

O complexo processo de gestação do Ugolino, que será oportunamente analisado, faria


Carpeaux descobrir um universo regido pela figura contraída do melancólico e nele submergir,
compreendendo-o como imago mundus. Ele abandonava, por exemplo, o gênero cristalizado por
Hamlet, que se inclina perturbado e hesitante diante de um mundo sem deus; abandonava também a
pausa silenciosa do filósofo que se rende à força violenta da inspiração. Ugolino della Gherardesca,
tirano de Pisa durante o século XIII, universalizado como personagem do penúltimo canto do
Inferno, na Divina Comédia236, foi condenado por seu rival, Ruggiero Ubaldini, a viver até o fim de
seus dias confinado em uma torre junto de seus descendentes – dois filhos e dois netos. Antes de
morrer de fome, Ugolino se alimenta de sua própria estirpe, analogamente ao hábito de Saturno, que
devora impiedosamente toda sua prole e paralisa-se meditativo, controlando o ritmo cruel e
irrecuperável do tempo. Nesta obra, Carpeaux recupera a potência da fúria michelangiana e cria
uma paradoxal inquietude paralisante que se move ao redor da obra, livrando-a de um ponto de
vista único. Por esse e outros motivos, o grupo escultórico desagradaria a cúpula acadêmica,
236
Este canto, de número XXIII, do Inferno, traz consigo diversas coincidências. As mais imediatas são, evidentemente,
a mítica idade com a qual Cristo morreu e a alusão à trindade santa. Em segundo lugar, o número parece fazer
referência direta à forma da obra, dividida em três momentos – Inferno, Purgatório e Paraíso – e inteiramente formulada
em terza rima, genial invenção do escritor toscano, em que o primeiro e o terceiro versos rimam entre si, enquanto o
segundo verso rima com o primeiro e terceiro verso da estrofe seguinte. Além do mais, com exceção do Inferno, que
conta com trinta e quatro cantos, sendo o primeiro deles válido como Introdução, os demais cantos também possuem o
referido número. Trinta e três anos era também a idade de Carpeaux durante o período em que executa o seu Ugolino.

84
intransigente em seus princípios imutáveis. Por outro lado, o Ugolino ocuparia um lugar
providencial no amplo processo de resistência ao sistema acadêmico, no qual Michelangelo seria
constantemente recuperado não somente como um repertório formas anatômicas, mas também
como gênio furioso e profeta maldito.
Delacroix, quando evoca Michelangelo em “La Barque de Dante”, ele o faz não por
meio de uma compreensão global da obra, que atravessa da forma exterior ao seu conteúdo mais
intrínseco. O pintor retoma os cantos iniciais da epopeia, precisamente o momento em que Dante e
Virgílio são conduzidos por Flégias sobre as águas do rio Estige (Stix). Michelangelo ali aparece
como fornecedor das formas dos corpos belamente castigados, carregados violentamente contra o
movimento da embarcação (Figura 20). Carpeaux, por sua parte, malgrado grande admirador de
Delacroix vai muito além. Ele, tão bom conhecedor da obra dantesca quanto o pintor, seleciona um
episódio do Canto XXXIII do Inferno, já ao fim da narrativa do primeiro reino da viagem da morte,
localizado no nono e último círculo do Inferno, o mais próximo do centro da Terra, lá onde reside
Lúcifer, cuja queda do céu perfurou a cratera em camadas circulares pelas quais Dante fora
conduzido. O corpo ressequido e trêmulo do velho tirano figura a “re-união” de Michelangelo com
Lúcifer, ambos seres híbridos entre deus e homem, expulsos do Paraíso onde impera a ordem
cósmica e a mais pura clareza dos sentidos. Mais do que recordar da admiração que Michelangelo
tinha pela Divina Comédia, estava aí demonstrado que o artista florentino poderia ser parte
fundamental de sua constituição e fator chave de seu entendimento.

Figura 20
Carpeaux, nesse sentido, em nada se diferia de seus contemporâneos, em vários
aspectos. Em primeiro lugar ele confirmava a existência de um interesse pelo Michelangelo do
Juízo Final, tal como Baudelaire havia expressamente revelado. Em segundo lugar, também
Carpeaux se ancorava no valor do clássico para subvertê-lo de dentro para fora. Estava também
garantida a sobrevivência do movimento de recorrer à melancolia michelangiana como forma de
acesso à substância inominável que reside no dejeto, de um lado, e no realístico, de outro, e que
conecta o homem não à beleza ideal, mas a suprema verdade da dificuldade imposta pela existência.

85
2. Formular a imagem de si

O célebre episódio do “Cupido dormiente”, de Michelangelo, contado por seus três


biógrafos contemporâneos, seria “emblemático tanto nos estudos sobre o paragone entre o antigo e
o moderno quanto na história da imitação e da fraude”237 e constaria como um dos elementos
fundamentais na construção do que convém chamar de “mitologia michelangiana”. Sobre este
evento, dizem os biógrafos sem nuances altamente contrastantes, que o artista, capciosamente,
enterrara uma estátua marmórea de cupido realizada por suas mãos para fazê-la passar por obra
antiga. A contrafação, algum tempo depois revelada, seria responsável por levar o jovem artista
para Roma pela primeira vez. Além disso, mais do que substituir o binômio “antigo-moderno” por
“antigo-Michelangelo”, já que, segundo Vasari, o artista supera os antigos e os modernos, o aspecto
que salta deste episódio é a capacidade extraordinária do artista de simular, de “fazer parecer” aos
olhos.
Mehdi Korchane reconheceria que, séculos mais tarde, uma série de episódios na estadia
romana de Carpeaux corroboraria para fazê-lo identificar-se com Michelangelo. Em retorno à
França no meio do pensionado, ele seria interpelado na aduana a respeito do transporte do “Pêcher
à la coquille” (Figura 21), como relata em carta de 9 de setembro de 1859:
“Minha estatueta do Napolitano acaba de chegar; ontem eu estava na aduana onde ela foi
desembalada, lá foram chamados especialistas para apreciar seu valor e me fazer pagar uma
permissão de entrada segundo a estimativa. Todo mundo estava agrupado em volta quando
as pranchas caíram. Não houve senão uma declaração, é um antigo, uma obra do século
XV, diziam os escultores romanos, de onde isto pode vir? Eu mal podia me manter perto de
minha estátua quando eu vi que alguém queria tocá-la, e eu a defendi. Então disseram-se
que para entrar uma estátua antiga era preciso pagar um valor bastante considerável e
sobretudo reunir um conselho considerável de especialistas. Foi o momento que eu me
declarei o autor; estas pobres pessoas não puderam acreditar nisso, ele quer nos enganar,
diziam eles”238.
Tal acontecimento ancorava-se na concepção segundo a qual o realce do virtuosismo do
artista pertence à mesma categoria das narrativas sobre a habilidade para imitar o trabalho de outros
e assim adotar qualquer estilo de sua escolha239. Nesse caso, Carpeaux recebia dupla honra: de ter
sua obra confundida com uma antiga e desse valor de antiguidade estar calcado no renascimento
italiano. Mas precisava ainda que o destino o fizesse ter seu caminho cruzado por uma marquesa,

237
BERBARA, Maria. “Chi lo tene antiquo e chi moderno”: Baco e Cupido Adormecido de Michelangelo. In.: A
Fábrica do Antigo. Luiz Marques (Org.). Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2008, p. 90.
238
Apud. KORCHANE, Mehdi. Michel-Ange Carpeaux : histoire d’un culte personel. In.: Op. Cit. Michel-Ange au
siècle de Carpeaux, 2013, p. 41. (TN)
239
Op. Cit. KRIS & KURZ, 1988, p. 88.

86
joveníssima viúva da família Colonna, para que se
fixasse a sua certeza de que ele era o próprio
Michelangelo redivivo. Quando o escultor termina o
“Ugolin”, era inquestionável que acabava de nascer a
única obra até aqueles tempos capaz de acessar a
potência terrificadora da terribilità e de atualizar a
concepção michelangiana segundo a qual o torso
masculino concentra toda a energia contida no corpo.
Entendendo isso, a marquesa Castiglione-Colonna
compreenderia, em 1861, isto é, desde a primeira
exposição pública da obra, que “desde Michelangelo”
– ela diz, segundo Carpeaux – “eu não vi nada
Figura 21 semelhante; parece-me que seu gênio esteja fixado em
você” 240
, acendendo no jovem escultor uma alegria dupla: a do encantamento pela jovem e a de que
a sua identificação como o mais fiel e autêntico herdeiro de Michelangelo era ele próprio.
Tanto quanto um imenso interesse pela expressão realística das paixões e da vivacità da
carne, Carpeaux parecia ser especialmente atraído pelo elemento torso, no qual, para Michelangelo,
condensava a forma fundamental do nu masculino e, portanto, do universo. Parecia estar na
articulação do torso o movimento elementar onde Carpeaux iria identificar a razão plástica da
anatomia humana e do qual iria extrair o substrato para as suas criações romanas. Durante o
pensionato, o jovem artista iria descobrir e amadurecer o interesse pela matéria viva cristalizada em
escultura, que se manifestava não somente na capacidade da matéria exprimir a força dos dedos
enterrados na maciez da carne. Ele entenderia que se manifestava também na possibilidade da
mesma matéria sintetizar toda a angústia e irracionalidade existencial do homem que exerce, por
este motivo, a sua condição humana.
“A escola do mundo”241 foi a metáfora encontrada por Benvenuto Cellini para se referir
ao momento em que o cartão da Batalha de Anghiari, de Leonardo, e da Batalha de Cascina, de
Michelangelo, estiveram ambos conservados concomitantemente, artifício utilizado para sobrepor a
excelência do cartão michelangiano à realização da Capela Sistina. Mas para Carpeaux, a Capela
lhe serviu suficientemente como “a escola do mundo” porque apenas nela ele reconheceu o mundo.

240
Apud KORCHANE, 2013, p. 41
241
Apud. MARQUES, 2011, p. 319, n.172.

87
O mundo, para o artista francês, condensava-se no torso. Além disso, da arte do mestre florentino,
Carpeaux extrairia o seu horizonte estético e descobriria nela a fonte de seus métodos242:
“Desde minha chegada, eu não cesso de ver as obras-primas dos homens que ilustraram seu
país. Não se pode fazer ideia de Michelangelo, ele esmaga tudo, ele é terrível de aspecto,
fulminante de caráter e incomparável como ciência, Seu Juízo Final nunca foi reproduzido
nem pela gravura nem pela pintura. Seu teto da Capela Sistina decora a mesma sala, de
modo que não se pode fazer uma ideia do conjunto desta decoração.
Minha opinião é de que é preciso, para possuir as qualidades de um verdadeiro artista, fazer
estudos de anatomia aplicada à arte”243.

Michelangelo, como parâmetro artístico, é, nesta qualidade, insuperável. O objetivo de


Carpeaux é, portanto, tentar alcançá-lo, para que, deste modo, se opere um reencontro consigo
próprio. Esse movimento de voltar-se a si mesmo, marcado pela figura do pensieroso, seria um
lugar artístico para o qual Carpeaux voltar-se-ia completamente (ANEXO II, 7). Todas essas
figuras que sustentam o peso da cabeça com a mão e tencionam o tronco iriam despertar fortemente
a atenção de Carpeaux desde muito cedo em sua estadia em Roma.
O jovem “Pêcheur à la coquille” é um prelúdio da gravidade e do significado que o
elemento torso alcançaria na obra de Carpeaux. Depois de uma viagem a Nápoles, mas certamente
muito impactado pela escultura de Rude244, um de seus professores na École des Beaux-Arts,
Carpeaux concebe uma obra que se distancia definitivamente dos modelos clássicos, para se
aproximar do modelo puramente humano. Ele resgata não a escultura clássica para atualizar uma
arqueologia marmórea, mas o que lhe interessa é o contato ingênuo do menino rude que aproxima a
concha do ouvido e abre largo sorriso de surpresa e encantamento. Aquela mesma postura de coluna
arqueada não muito mais tarde ecoaria no seu “Ugolin”, que rói os dedos furiosamente, e curva o
corpo ressequido concentrando no torso toda a sua agonia.
O caminho percorrido e culminado no Ugolino é ocupado por um estudo exaustivo da
figura do homo melancholicus. Na Capela Sistina, Carpeaux interessa-se, não por acaso, pelas
imagens dos sujeitos mortificados pela própria existência ou pelo castigo divino. Dentre as diversas
cópias que ele executa, é destacável a atenção dedicada às figuras do Profeta Jeremias (Figura
22.1) e do danado dito “Desesperado” (Figuras 22.2; 22.3), que ele estuda com profunda atenção.

242
Na recente lista bibliográfica consultada por Carpeaux na Académie de France à Rome, constam que em 1 de abril
de 1859, o pensionista solicitou pela primeira vez o empréstimo das “Vite” de Vasari (ed. L. Leclanché, 1839-1842), o
que evidencia o seu estudo vertical da literatura artística do Renascimento. – Cf. Michel-Ange au siècle de Carpeaux,
2012, p. 185.
243
Carpeaux a um destinatário desconhecido, Roma, janeiro de 1856. In.: Idem, p. 184.
244
Trata-se de « Jeune pêcheur napolitan jouant avec la tortue », exibida no Salon de 1833.

88
Seus interesses pareciam todos convergirem de modo a resolver como arte os problemas espirituais
que insuflavam ele próprio e a sua tristeza crescente:
“Eu estou triste e tenho a alma cheia de melancolia vendo-me sozinho no mundo [...] a
misantropia tornou-se o fundo de meu caráter. Eu rompi com todos os meus antigos
conhecimentos, tanto pelas circunstâncias quanto por partido, e eu posso assegurar-vos que
a vida tornou-se penosa para mim. [...] Acrescente a isso a confusão que se operou em meu
espírito desde que vi as obras-primas do Renascimento e que eu comparei a arte francesa
com a arte italiana. Vi que eu tinha tudo para aprender e que os sucessos da École não são
senão pequenas pretensões. Enfim, eu não sei em qual via caminhar”245.

Figura 12.1 Figura 22.2 Figura 22.3

Pela figura de Minos, Carpeaux também nutriria um interesse particular. Em um dos


esboços que realiza da personagem que determina, segundo a Divina Comédia, o circulo para o qual
o condenado ao Inferno será destinado em função do numero de voltas de sua cauda enrolada no
corpo, o artista realiza a sua primeira, última e fracassada tentativa poética (ANEXO I, 5),
incorporada a um rascunho de carta endereçada a sua mãe. No poema, Carpeaux mimetizaria
ingenuamente o potencial retórico e o lirismo religioso do velho Michelangelo que vê a escrita
como artifício para expurgar o pecado e como mecanismo de reflexão do angustiante problema do
existir. A breve tentativa poética de Carpeaux demonstraria o seu anseio pela universalidade do
artista a que ele, talvez, acreditasse ser capaz, haja vista a sua reconhecida qualidade como pintor e
como idealizador de monumentos públicos.

245
KORCHANE, 2011, p. 40, apud FROMENTIN, E. D. Jean-Baptiste Carpeaux. Essai biographique. La vie, l’oeuvre
du statuaire valenciennois d’après sa correspondence. Jean-Claude Poinsignon (Éd.). Valentiana, revue d’histoire des
Pays du Hainaut français, nº 19, juin 1997.

89
A propósito, o trabalho pictórico de Carpeaux é fundamental para o exame da medida
de sua identificação com Michelangelo. Em Géricault, por exemplo, ele admira o violento
movimento dos cavalos e os volumes na musculatura nervosa do animal, mas ele se encanta
especialmente pela apreensão da morbidez sem precedentes no pintor francês. Carpeaux copia a
montanha de mortos e agoniados de “Le Radeau de la Méduse” (1819) e também estuda aquelas
cabeças-alimentos de vermes que repousam no plano como natureza-morta. Delacroix, por outro
lado, por ter realizado uma pintura não do geral e do ideal, mas do particular, isto é, do feio, do
repulsivo, da doença, da morte, parece-lhe ser também fonte de um pessoal estudo da cor vibrante e
febril reformulada a partir dos ensinamentos de Rubens, que ele também estudou246. Ambos,
Géricault e Delacroix, correspondiam a mais viva e imediata herança michelangiana da primeira
metade do século XIX e Carpeaux, não por acaso, os utilizaria como mecanismo de acesso ao
resultado da presença já processada de seu admirado mestre.
É importante recordar que Jean-Baptiste
Carpeaux possuiu também um dos maiores volumes de
autorretratos entre os artistas franceses de seu tempo247. O
seu interesse pela tortura infringida à carne humana o levaria
a documentar a ruína em que se convertia seu próprio corpo,
arrasado pelas dores que lhe provocavam o câncer na bexiga,
razão pela qual morreria. O mais impactante desses
autorretratos, consensualmente entendido como o último, o
apresenta de cabelos desgrenhados e olhos enegrecidos, e a
boca aberta profere os urros de dores atrozes. A obra
executada em extraordinários golpes de tons castanhos

Figura 22 resultando em uma “quase-monocromia”, a um só tempo,


antecipa as angústias expressionistas e nos recorda que a doença do artista (de modo geral) era, no
século XIX, um problema artístico, e não unicamente médico248.

246
A relação entre Michelangelo e Rubens aparece em: DELACROIX, Eugène. Dictionnaire des beaux-arts. Paris:
Hermann, 1996, pp. 131-132.
247
Cf. DELAPIERRE, Emmanuelle. Les autoportraits de Jean-Baptiste Carpeaux (Valenciennes, 1827-Courbevoie,
1875). In.: BONNET, Alain. L’artiste en représentation: Images des artistes dans l’art du XIXème siècle. Lyon : Fage,
2013. Catálogo de exposição, p. 61.
248
Sobre isso, vide supra, Parte II, 1, p. 81. – Susan Sontag analisa brilhantemente os efeitos da doença como elemento
artístico no século XIX. Para isso, cf. SONTAG, Susan. A doença como metáfora (1978). In.: A doença como metáfora
e AIDS e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

90
Ao longo de todo o processo de concepção do “Ugolin”, Carpeaux tornou-se um
obcecado pela representação da angústia, gênero no qual se incluía a melancolia, como já foi
analisado, mas também a tipologia do “endormi” ocupa este centro de interesse, não isoladamente,
mas como derivação do próprio estado melancólico. Em “Le Convalescent”249 (ANEXO II, 8),
executado em 1860, por Carolus Duran, convergiria o interesse pela representação do estado
límbico entre a melancolia e a convalescência, fortalecendo o caráter intrínseco, em ambos os
estados, de instabilidade da saúde física e mental. No movimento de corrupção do “belo ideal” e da
introdução do irrepresentável na arte sem recorrer ao artifício da alegoria, Duran retomava, a seu
modo, os princípios fulcrais da pintura romântica. Estava em “Le Convalescent”, ademais, a
genuína imagem do artista insatisfeito, derrotado para si próprio, que experimenta um inominável
sabor amargo que o destino lhe proporcionou. Sua convalescência é devido à contaminação pelo
mal artístico, ou a arte lhe representa um feixe de salvação do mundo envenenado? De todo modo,
“Le Convalescent” e os estudos dos “endormi”, de Carpeaux, aproximavam-se não somente pela
data de execução, mas também pela representação de um estado de suspensão da realidade sensível,
como numa espécie de transe poético do corpo que se curva ao peso insuportável da morte.
Baudelaire afirmaria, certa vez, que o artista era “a parte melancólica e ardente do
século”250. Tanto quanto reconhecer a extraordinária capacidade cromática de Delacroix, que
deixaria para a geração de pintores imediatamente posterior lições magistrais, Baudelaire referia-se
também ao calor equatorial que dominava o atelier do artista251. Esse calor doentio e mortificador,
ativador de forte languidez e de onde se origina uma sulfurosa falta de entusiasmo, conectava certa
ideia então construída de Michelangelo a Delacroix e Carpeaux a um só tempo. Ambos, em suas
respectivas inflexões ao universo artístico e espiritual do mestre florentino, haviam, contudo,
chegado a resultados absolutamente diferentes, senão opostos. Carpeaux entendia-se como o
próprio Michelangelo atualizado e, embora seu interesse pelo artista cumprisse uma trajetória de
dissolução e afastamento formal, ele continuaria recorrendo a seu mestre divino, como quem invoca
um santo de devoção: “Michel-Ange inspire-moi!”252, diria o artista. Delacroix, por sua parte,
demonstra diversas vezes que do ponto de vista das escolhas estéticas, Michelangelo afasta-se
249
A obra como hoje se conhece é fragmento de “La Visite au Convalescent”, executada em 1860 e apresentada ao
concurso Wicar, rendendo-lhe uma temporada na Itália. Destruída pouco tempo depois de executada, em 1861 Duran
apresentaria ao Salon “L’Homme Endormi”, uma variante deste fragmento, encontrada hoje no Musée de Lille.
250
BAUDELAIRE, 1868 (II). Exposition Universelle (1855), p. 244.
251
Op. Cit. BAUDELAIRE, 1869, p. 32.
252
Apud. GAËTAN, Isabelle. “Il y a là-dedans l’expression de mês pensées les plus intimes”: Les carnets de croquis de
Jean-Baptiste Carpeaux. In. : Jean-Baptiste Carpeaux (1827-1875). Un sculpteur pour l’Empire. Sous la direction de
Édouard Padet et James David Draper. Paris: Gallimard, 2014. Catálogo de exposição, p. 281. – Segundo consta no
artigo, a frase é datada de 1865.

91
progressivamente de sua arte para ser assimilado, nesta mesma medida, ao seu horizonte de conduta
moral. Isto ele sintetizaria em 1849, quando decidira executar “Michel-Ange dans son atelier”
(Figura 24), terminada, ao que tudo indica, no ano seguinte.

Figura 23

Em 1849, quando é feita a primeira menção à realização da obra em seu Journal,


Delacroix é breve, e nada se refere sobre suas orientações para a nova composição 253. Entre
setembro daquele ano e maio do ano seguinte, sucedem-se mais duas notas254, apagadas pela
esperança inútil de que algum comentário mais elaborado nos revele detalhes de sua concepção. Os
dois únicos desenhos preparatórios para a obra que se conhece conservam-se no Fitzwilliam
Museum, da Universidade de Cambridge. Em um deles, aparentemente a composição inicial
(Figura 24.1), a inscrição “Le penseroso” nos indica a ideia central de Delacroix, que jamais seria
abandonada: ele fazia apelo direto ao estado contemplativo de Lourenço de Médici, da Sacristia
Nova (Figura 19), que repousa a cabeça sobre uma das mãos, revelando mais uma vez a
extraordinária capacidade michelangiana de abstração do corpo humano.

253
Op. Cit. DELACROIX, 1893, p. 384 – Primeira menção em 16 de setembro de 1849.
254
Idem, p. 444; 446 – 18 e 23 de maio de 1850, respectivamente.

92
Figura 24.1 Figura 24.2

As figuras do fundo deste que consideremos o primeiro esboço para a pintura, entre as
quais se reconhece o “Escravo Rebelde” do Louvre, ratificam aquilo que Delacroix complementa
rascunhado acima: “os mármores gigantescos – a figura de Michelangelo relativamente
pequena”255. Delacroix figura, ambiguamente, o momento em que o mestre florentino é atacado
furiosamente por um golpe de inspiração, ao mesmo tempo em que apreende o mergulho em sua
vida interior, preenchida por sonhos de pedra. Já no segundo desenho (Figura 24.2), mais
adiantado, o “Escravo Rebelde” ainda permanece lá, mas o velho mestre florentino já abandonou
seu cinzel, tal como na obra final, e sua atitude de paralisia melancólica já se consolidara.
Charles de Tolnay atribui o ato de lançar o cinzel ao chão, enfatizado por Delacroix, na
mesma passagem literária de Sainte-Beuve, de 1830256, no qual o poeta recorda da quimérica
cegueira de Michelangelo257. Sua hipótese não é de todo inverossímil, mas é preciso recordar que
para Stendhal, de quem Delacroix foi atento leitor, como já foi mencionado, Michelangelo, durante
o conturbado retorno a Florença, havia ficado cerca de nove anos “sans rien faire”, segundo suas
próprias palavras258. Assim sendo, esta pintura passaria a corresponder, doravante, a uma resposta

255
Disponível em:
http://webapps.fitzmuseum.cam.ac.uk/explorer/index.php?qu=michelangelo%20delacroix&oid=6308 – Consultado em
14.05.2015, às 18:40h.
256
Op. Cit. TOLNAY, 1962, p. 48.
257
Cf. supra, Parte I, 1, pp. 32-40.
258
STENDHAL. Histoire de la peinture en Italie. Autour de Michel-Ange (1817). Paris : Le Seuil, 1994, pp. 230-233. –
Sobre isso, o mais próximo do dito por Vasari seria “(...) retornara a Florença, onde perdia tempo em afazeres diversos

93
de Delacroix a seu tão admirado escritor. Nestes anos de suposto abandono absoluto às atividades
mecanicae, Michelangelo, para o pintor francês, teria se voltado exclusivamente às atividades do
intelecto259. Nada, portanto, nesta pathosformel do melancólico resgatada em Michelangelo por
Delacroix, iria se diferir da situação reflexiva e perturbada de “Tasso na prisão dos loucos”
(ANEXO II, 9). Basta pensar que a loucura patológica de Torquato Tasso é aproximável, groso
modo, à maneira como Michelangelo manifestou diversas vezes entender a sua própria melancolia
(pazzia), cuja demonstração mais célebre esteja talvez na carta de maio de 1525, na qual ele diz:
“(...) abandonei um pouco a minha melancolia – ou, melhor dito, a minha loucura” 260.
Se o tema da renúncia do artista a todo tipo de expressão alcançaria seu ápice na Carta
de Lord Chandos (1902), de Hofmansthal, o depoimento pictórico de Delacroix constitui,
incontestavelmente, em seu prelúdio. Por razões como estas evocadas, Théophile Silvestre abre a
análise da obra no primeiro catálogo da Gallerie Bruyas261, cujo primeiro conjunto de doações ao
Musée Fabre no qual a obra em questão se incluía, acabara de ser feita, com o soneto de Auguste
Barbier:
Que tua aparência é triste e sua face emagrecida,
Sublime Michelangelo, ó velho entalhador de pedra!
Nenhuma lágrima nunca banhou tua pálpebra:
Como Dante, diremos que tu nunca riste.

Infelizmente! De um leite fortíssimo a musa te alimentou,


A arte foi teu único amor e tomou tua vida inteira;
Sessenta anos tu correste uma tripla carreira
Sem repousar teu coração sobre um coração enternecido

Pobre Buonarroti! Tua única alegria no mundo


Foi imprimir no mármore uma grandeza profunda,
E potente como Deus, de assustar como ele:

Também, quando chegar a tua última estação,


Velho leão cansado, sob sua branca juba
Tu morreste longamente pleno de glória e de tédio262

(...)”. In: VASARI, 2011, p. 111. – Condivi, por outro lado, mais lido por Stendhal, vai além, no tocante ao possível
estado inacabado do relevo da Batalha dos Centauros: “Não dizia isso para vangloriar-se, mas por verdadeiramente se
lamentar de ter sido assim desafortunado, que por culpa de outrem, algumas ocasiões esteve até dez ou doze anos sem
fazer nada, como mais adiante se verá”. Posteriormente, referindo-se então ao fatídico retorno de Michelangelo a
Florença, diz ainda Condivi: “(...) esteve muito tempo desocupado, sentindo-se desgraçado ao ter desperdiçado tanto
tempo em todas estas coisas”, evocando o fracasso do projeto da fachada de San Lorenzo. In: CONDIVI, 2007, pp.
49/76. (TN)
259
É preciso lembrar, como já foi mencionado na Parte I, 1 e 2, que Delacroix era grande admirador das Rime de
Michelangelo.
260
Cf. BUONARROTI, Michelangelo. Cartas Escolhidas. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009, p. 63.
261
SILVESTRE, Théophile. Michel-Ange dans son atelier. In. : Op. Cit. La Galerie Bruyas, 1876, pp. 296-306.
262
BARBIER, Auguste. Michel-Ange (1831). In. : Iambes et poèmes. Paris : Paul Masgana, 1840, pp. 123-124. (TN)

94
A composição de Barbier seria elaborada provavelmente nos anos de 1830. É
importante notar que, nesta poesia, de vinte anos antes, portanto contemporânea do jovem Delacroix
que se compreendia como vítima inescapável do mesmo destino sofrido a que esteve submetido
Michelangelo, convergia uma série de elementos retomados pelo Delacroix mais maduro, e cuja
relação com o artista italiano já havia sido retrabalhada. O pintor francês parece delegar ao mestre
florentino um corpo como reservatório de lembranças, como um quarto aquecido no qual os
pensamentos se mantêm a salvo da realidade. Isso, contudo, não caracteriza essencialmente o
existencialismo avant la lettre a que Delacroix relega sua ideia pessoal sobre Michelangelo, mas
sim, adensa um discurso a respeito da concepção que a arte romântica constrói do mundo. Mas é
isto, em grande medida, que o leva a realizar, metaforicamente através de Michelangelo, um
movimento incompletável da consciência para fora de si. Michelangelo, diferente do que foi para
Carpeaux, é, para Delacroix, um “outro” no qual se espelhar, para a compreensão de seu próprio
estado no mundo.
É por esta razão que, equivocadamente, Théophile Silvestre compreende que Delacroix
realiza, nesta obra, um autorretrato espiritual, construindo uma chave interpretativa a que diversos
historiadores da arte posteriormente retomariam263, como fácil subterfúgio. Era espiritual, no
sentido de que nada na face do mestre recordaria qualquer traço no rosto austero do pintor francês.
Da década de 1820 até a década 1850, período, portanto, em que a obra se inclui, seria vastamente
difundido o gênero de retratos de artistas e de autorretratos que instaurava uma nova manifestação
de meditação sobre a morte264. Não por acaso, portanto, que Théophile Silvestre chegaria nesta
conclusão, como sujeito capaz de um olhar distanciado de seu próprio tempo. Não por acaso
também, embora forçoso, algumas tentativas de interpretação da obra identificariam ainda o retorno
do anti-herói Sardanapalo (ANEXO II, 10), que, ao alto da composição, se rende prostrado à
loucura e ao desespero que invade seu reino em chamas, segundo a obra de Byron.

263
Diz Silvestre: “Você a reconhece aqui, esta „melancolia filosófica’ de Delacroix, pintada por ele mesmo em
Michelangelo”. In.: Op. cit. La Galerie Bruyas, 1876, p. 301. – Para além de Tolnay, entre os que repetem a fórmula de
Silvestre destacam-se: GOTLIEB, Marc. Creation and death in the romantic studio. In.: Inventions of the studio,
Renaissance to Romanticism. Edited by Michel Cole and Mary Pardo. North Carolina: University North Carolina Press,
2005, pp. 147-183; Op. Cit. Mélancolie, genie et folie en Occident, 2014, p. 359.
264
Op. cit. MARQUES, 2008, p. 210.

95
A única voz dissonante do argumento de Silvestre
viria de Lee Johnson, um dos mais importantes estudiosos de
Delacroix, que detectava na imagem a derivação de um modelo
constituído por Robert Fleury265 (Figura 25). Todavia, tanto
quanto se desprender do argumento de Silvestre, é preciso estar
consciente de que não cabe a Fleury a criação ex-nihilo do
gênero alçado também por Delacroix, do qual Johnson faz
tábula rasa. Ainda que sua hipótese não seja completamente
descartável, Johnson não reconhece que ambos os artistas
inclinam-se à longa tradição iconográfica que identifica em

Figura 25 Michelangelo uma profunda expressão da melancolia, traço


constante de sua representação visual ou literária no século XIX na França, a partir da qual se
operou uma profunda cristalização da imagem do artista.
Em “Michel-Ange dans son atelier”, Delacroix realiza também um elogio à invenção
histórica, resultado, em grande medida, da capacidade de abstração do passado que só a sua
distância da Itália pôde lhe oferecer. Delacroix parece ter incorporado a certeza de que fazer arte e
fazer história ligam-se pela possibilidade de imaginação. No mesmo espaço, o artista reúne duas
obras que em tempo algum estiveram juntas: o Moisés, realizado em Roma, provavelmente entre
1508 e 1512 para o Sepulcro de Julio II, e a Madona Medici, executada em Florença, entre 1524 e
1533, para a Sacristia Nova. Ambas as obras conectam-se, contudo, de modo relativamente
coerente: o Sepulcro ocupou quarenta dos quase noventa anos de Michelangelo, que não pôde vê-lo
realizado conforme seus projetos, constantemente alterados. A Madona, por sua parte, é figura
inacabada e mal ajustada dentro do bloco marmóreo que a comprime. As fragilidades da erudição
de Delacroix o permitiriam construir um discurso regular em torno de sua ideia sobre Michelangelo,
que versava unicamente sobre o desejo agoniado de dar forma à ideia e sobre o sentimento de
fracasso do artista para consigo mesmo.
Na parte superior direita do que consideramos o segundo estudo de Delacroix para a
realização da pequena pintura, observa-se um estudo atento de um suporte sobre o qual repousam
grossos livros, e no qual, na obra finalizada, Michelangelo apoia seu braço. Este é um elemento de
convergência: não apenas do gesto melancólico elaborado pelo corpo lânguido do velho artista, mas

265
The paintings of Eugène Delacroix: A critical catalogue, 1832-1863. Volume III. Text Lee Johnson. Oxford:
Clarendon Press, 1986, pp. 126-128.

96
também da postura intelectual do mestre, afirmada consistentemente por Delacroix, retoricamente,
através do elemento livro e de sua manifesta melancolia. Tal suporte, contudo, parece ser um torno
de oleiro inutilizado pelo escultor, evocando uma atividade à qual Michelangelo jamais se dedicou.
Tudo indica que, em benefício do reconhecimento do espaço no qual se encontra Michelangelo
como um ateliê de escultor, Delacroix lança mão de uma iconografia já bem estabelecida, nem que
para isso seja preciso sacrificar mais uma vez a integridade da história.
À construção do discurso da insatisfação e à declaração da potência poética da solidão,
acrescenta-se a experiência da cor. Tudo na pequena obra é composto por massas cromáticas
vibrantes, todos os limites se dissolvem e tudo se excita em agonia paralisante, naquele vazio
acalorado e preenchido por grandes volumes de pedra, no meio dos quais Michelangelo se ajeita.
Tudo nesta obra nos faz recordar de Delacroix ligado à figura do mestre Frenhoffer, personagem de
Balzac em “Le Chef-d’Oeuvre Inconnu”, de 1831, que teria levado pintor e escritor, por esse
motivo, a, supostamente, cortarem definitivamente relações, segundo um mito apócrifo que os
circunda.
Na novela, o jovem e ainda desconhecido Nicolas Poussin, em visita ao ateliê de
François Porbus, cruza com Frenhoffer, mestre deste segundo. Neste encontro, o talento para o
desenho de Poussin e as deficiências da pintura de Porbus, com quem o mancebo deseja estudar, são
sentenciados pelo velho Frenhoffer, alquimista da magia das tintas, detentor dos segredos milenares
da manipulação dos pincéis sobre a superfície da tela, um mago, enfim, que conhece profundamente
as propriedades dos elementos de sua poção. Diante de uma das obras que Porbus julgava
terminada, o velho mestre dispensa sobre a tela violentos “Paf! Paf! Paf!” e, em um instante,
finaliza magicamente a figura que não mais é obra, mas a própria “pintura encarnada”, para repetir a
fórmula de Didi-Huberman266. E Balzac, não por acaso, recorre a diversas fórmulas, desde gestuais
até retóricas, para compor a personagem Frenhoffer. O primeiro dentre os mais significativos gestos
executados pelo velho, é assim descrito: “O ancião sentou-se em um banquinho, segurou a cabeça
entre as mãos e permaneceu em silêncio”267. Aqui, o mestre acabara de iniciar sua eloquente lição
de pintura, que se desdobraria em seguida: “A missão da arte não é copiar a natureza, mas sim
expressá-la! Não és um vil copista, mas um poeta!”268, e, mais adiante: “Toda figura é um mundo,
um retrato cujo modelo apareceu em uma visão sublime, tingido de luz, designado por uma voz

266
DIDI-HUBERMAN, Georges. A pintura encarnada, seguido de A Obra-Prima Desconhecida, de Balzac (1985). São
Paulo: Escuta, 2012.
267
BALZAC, Honoré de. A obra-prima desconhecida. In.: idem, p. 155.
268
Idem, p. 156.

97
interior, despido por um dedo celeste que mostrou, no passado de toda uma vida, as fontes da
expressão”269.
Balzac, pelas palavras de Frenhoffer, reativa o antigo debate sobre as relações entre
natureza-modelo-imitação ao mesmo tempo em que constrói um discurso sobre a pintura e sobre o
trabalho do pintor, como metáfora para o trabalho do artista. Frenhoffer, como melancólico que é,
crê inabalavelmente que o trabalho artístico é lírico, e se funda em um fenômeno originado entre
matéria e expressão. É nesse sentido que ele não difere de Delacroix, mas tampouco se afasta de
Carpeaux, que acreditam na potência subjetiva e contemplativa da obra de arte, e acreditam,
sobretudo, na arte como resultado supremo da mais sincera e total manifestação de sua expressão.
Embora, contudo, seu modus operandi esteja bastante distinto daquele de Michelangelo, uma vez
que o mestre florentino detém um método sistemático de explorar a matéria, ambos aproximam-se
também de maneira eficaz pelo modo violento e impulsivo de atacar a matéria bruta que se tornará
obra em um futuro breve.
Mas talvez esteja nesta célebre novela de Balzac a síntese da noção que se constrói em
torno de Michelangelo, como um artista que subverte radicalmente os princípios do classicismo e
funda uma nova concepção artística, não mais apoiada nos princípios da imitação, mas na força
plena da expressão, como mencionado anteriormente. O fim de Frenhoffer, contudo, aponta para o
fim ideal, mas não realizado, de Michelangelo: Poussin concede ao velho sua bela noiva para que
lhe sirva de modelo para uma nova obra. Depois de todo o mistério que precede a revelação da
pintura, Poussin e Porbus deparam-se com um conjunto desordenado de manchas, “uma muralha de
pintura”, uma superfície de formas irreconhecíveis, da qual se destaca apenas um pé hipnotizador,
de tamanha carnalidade. Inconformado, Frenhoffer dá às chamas o seu ateliê, e assim expira,
desejoso de que lhe preservem sua senil imagem de expertise, ou, no máximo, que lhe guardem seu
último ato heroico em benefício do resguardo da nobreza da arte. Coincidentemente, conta-nos
Vasari a respeito de Michelangelo, que “pouco antes de morrer, queimou grande número de
desenhos, esboços e cartões de sua mão, a fim de que ninguém visse seus longos esforços e os
modos de provar seu engenho, para aparecer tão somente perfeito”270.
A ressurreição de Michelangelo por Delacroix, pela via Frenhoffer é, sob muitos
aspectos, falha. Sobrepõe-se, todavia, o fato de que Delacroix morreu velho, certo de seu mais
absoluto fracasso. Carpeaux, por sua parte, berrando de dor, precisou ser levado para Nice para que
não morresse como um qualquer. O que os une, em instância última, é que a poética do fracasso, no
269
Ibid, p. 157.
270
VASARI, 2011, p. 168.

98
século XIX, mais do que acidente do destino, é um locus onde todo artista que se quer grande,
deseja estar.

99
3. A poética do fracasso

Michelangelo atravessaria os últimos dias de sua existência absolutamente certo de seu


fracasso. Na carta enviada a Vasari em julho de 1557, depois de um erro de construção na fábrica de
São Pedro, o velho artista sentenciaria a expressão de sua mais profunda amargura do fim de seus
dias: “se fosse possível morrer de vergonha e dor, eu não estaria vivo”271. Sartre acentuaria o
desgosto michelangiano com seu trabalho afirmando que o artista “pegou o cinzel por necessidade e
nunca se conformou: [...] considerava a pintura e a escultura do alto de sua vergonha (...)”272. Sob
este aspecto, Sartre identificava em Michelangelo a ascendência da máxima de Malreaux, seu
contemporâneo, para quem a “arte é um anti-destino”273. O principal fator que conectaria
Michelangelo a um fracasso plasmado em toda a sua vida seria aquilo que Vasari nomearia non-
finito, que o mestre florentino legaria a um futuro em constante atualização, no sentido que a sua
completude lança simultaneamente um problema histórico e estético, que impõe ao contemplador a
espera por um fim que nunca se cumpre. Non-finito por excelência, a tumba papal seria anunciada já
por Condivi como epítome de seu fracasso, como “la tragedia della sepoltura”, conforme suas
próprias palavras274. Non-finito, entenderia ainda Argan275, não no sentido de que se trata de uma
obra incompleta, faltante, mas, ao contrário, que, como todas as suas outras obras que abrem um
feixe para o nascimento deste gênero, aguardam incessantemente por sua completude; aproxima-se
muito mais do desempenho de um trabalho infinito do que de um trabalho inconcluso.
Vasari também nos afirma, a partir das palavras de Condivi276, que Michelangelo, por
tão grande o juízo, jamais se contentava com o que quer que fizesse277. O mestre florentino, já tão

271
BUONARROTI, 2009, p. 145. – VASARI, 2011, p. 148 refere-se ao constante memento mori expresso por
Michelangelo na década de 1550, que, somado a esta carta, nos permite recriar o espirito do artista neste período. Vasari
parafraseia as palavras de Michelangelo na carta a ele enviada em 22 de junho de 1555: “[...] sei que reconheceis em
minha escrita que estou pela 24ª hora e não nasce em mim pensamento que não tenha dentro esculpida a morte [...]”. –
Charles de Tolnay nos recorda que, durante muito tempo, foi referido aos últimos três decênios da vida de
Michelangelo, isto é, de 1534, ano em que se estabelece em Roma, até 1564, ano de sua morte, como um período de
decadência do artista. Contudo, é preciso lembrar, ainda segundo Tolnay, que se trata muito mais de um período de
profunda mudança em orientações figurativas (pintura e escultura) em sua arquitetura, poesia e concepção teológica,
esta já manifestada no Juízo Final. Para isso cf. Op. cit. TOLNAY, 1992, p. 47.
272
Op. Cit. SARTRE, 2005, p. 48.
273
Essa se tornou uma das mais célebres frases de “La Monaie de l’Absolut”, terceiro ensaio da série “Psychologie de
l’art”, publicada por Malraux entre 1947 e 1949. O ensaio seria posteriormente republicado em “Les voix du silence”,
em 1951.
274
Cf. Parte I, 1, p. 33.
275
ARGAN, G. C. O túmulo do papa Julio II. In.: Op. cit. ARGAN, 1999, pp. 296-297.
276
Assim diz Condivi: “Tem a imaginação tal e tão perfeita, que as coisas propostas na ideia transformavam-se na mão,
por não poder exprimir tão grandes e poderosos (terribili) conceitos, e frequentemente abandonou suas obras, por

100
longamente associado à melancolia e lembrado pelos furores de seu gênio, sintetizaria
eficientemente a imagem do fracasso ligado à incompreensão social de seu trabalho e a insatisfação
pessoal do artista para com seus próprios desejos. Assim, ao menos, seria o modo através do qual,
três séculos depois, Michelangelo exerceria a função modelar de um severo descompasso entre a
formulação social da imagem do artista e o entendimento do artista sobre si mesmo. Isto seria bem
notado por Marcos Siscar278, no campo literário, a respeito do agravamento da certeza de Camões
sobre a “surdez” crítica manifestada após a conclusão de sua obra mais célebre, “Os Lusíadas”,
explicitado em Baudelaire, três séculos depois, que convenceu implacavelmente todas as gerações
sucessivas de sua miséria e de sua decadência.
Não por acaso, Baudelaire residiria no horizonte de Verlaine, em 1884, quando
organizou “Les Poètes Maudits”, entendendo-o intuitivamente como o mais legítimo predecessor da
galeria composta pelo adolescente revolucionário Arthur Rimbaud, além de Corbière e Mallarmé,
que anunciaria impiedosamente a “Crise de Vers”, em 1897. Tratava-se, contudo, de uma enérgica
manifestação de transgressão, herdada e complexificada da geração imediatamente anterior,
marcada pelo fenômeno em que se converteria o “Salon des Réfusés”, ocorrido em 1863, como bem
deixaria marcado “L’Oeuvre”, de Émile Zola, escrito em 1886.
Zola, por sua parte, sabia previamente (e muito bem) que Édouard Manet era um tipo
que lutava sozinho contra a multidão279, e melhor ainda compreenderia o sistema artístico em que se
encontrava quando da eclosão do impressionismo, após a exposição no ateliê de Nadar, em 1874.
Talvez por isso fosse ele o responsável por historicizar o fracasso artístico em sua supracitada
“L’Oeuvre”, que retoma, sob alguns aspectos, “Le Chef-d’Oeuvre Inconnu”, de Balzac,
especialmente na construção da personalidade peculiar e na composição das características
excêntricas de Frenhoffer, no qual Claude está espelhado. Soma-se a isso a presença da relação
amorosa com a modelo e, por fim, o destino trágico dos pintores. Em ambas as obras, o fracasso é
resultado de uma total incompreensão do público diante da obra que, como ser vivo, deseja o artista,
orienta a sua feitura e controla os seus próprios processos, conduzindo o pintor ao caminho de sua
autonomia. Nesta trama, é o pintor quem termina por se ver atado à sedução da obra de arte.

considerá-las inferiores”. In: CONDIVI, 2007, p. 108. (TN) – Condivi retoma aqui o princípio intelectual
michelangiano reforçado pelo artista no célebre poema “Non ha l’ottimo artista alcun concetto” e, posteriormente, na
carta de 1542, enviada a um destinatário anônimo, referindo-se aos trabalhos para a fatídica realização da Tumba de
Júlio II: “Vossa senhoria manda dizer-me que pinte e não me preocupe com nada. Respondo que se pinta com o cérebro
e não com as mãos (...)”. In: MICHELANGELO, 2009, p. 96.
277
VASARI, 2011, p. 147.
278
SISCAR, Marcos. “Responda Cadáver”: o discurso da crise na poesia moderna. Alea. Vol. 9. Número 2. Julho-
Dezembro 2007, p. 176.
279
ZOLA, Émile. O Sr. Manet (1866). In.: A Batalha do Impressionismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 37.

101
O princípio da carreira de pintor traçada por Claude é marcada pelo Salão dos
Recusados e mesmo tendo sua obra exposta entre os artistas igualmente não aceitos no Salão oficial,
sua obra se torna objeto de unânime estranhamento. Tempos depois, decidido superar a terrível
situação em que se encontrava, obstina-se à realização de uma grande obra. O preparo de sua
desejada obra-prima o assegura que sua infeliz escolha pela arte mais parece uma condenação.
Claude é levado por sua obra a um extremo estado de perturbação e alienação. Assim, desolado e
perdido, ele conclui fatalmente que aquilo que sua obra lhe deseja, não poderia jamais ser
compreendido pela sociedade. De maneira quase caricatural, Zola comenta sua presença em um
mundo que tentou converter a imagem do artista em mártir, a quem o mundo lhe deve a salvação e a
graça.
“L’Oeuvre” seria também responsável pelo rompimento definitivo da amizade de
infância entre Zola e Cézanne, pintor que outrora chegara a reconhecer: “Frenhoffer c’est moi”280.
Merleau-Ponty, em seu célebre ensaio de 1945, afirma que “Zola (...) foi o primeiro a reconhecer-
lhe o gênio, e o primeiro a falar dele como um „gênio abortado’”281. Ele comenta ainda, em seguida,
que “Cézanne inquietava os amigos por suas cóleras e depressões” 282. Cézanne, que havia estudado
os Escravos michelangianos do Louvre com muita atenção, hesitava diante do processo de
subversão dos princípios do classicismo de dentro para fora que ele promovia. Grosso modo, ele
ocupava a outra face da moeda figurada por Courbet, quando da criação do “Pavillon du Réalisme”,
em 1855. Após sucessivas recusas nas exposições oficiais, Courbet exibe à margem da “Exposition
Universelle” um conjunto de obras entre as quais o conhecido “L’Atelier du Peintre”. Courbet,
voluntariamente, se coloca em condição de marginal, entendendo-se como sujeito “que não deve
mais nada nem ao mundo, nem a ninguém – a não ser a si próprio”283. Courbet, como nota também
Jorge Coli, não conheceu o isolamento e o sacrifício284 que a sua geração rapidamente tornaria
característica ontológica do artista herói, a quem a sociedade deve tudo. Em outras palavras, a
militância, a extravagância e os insucessos de Courbet jamais o fizeram fabricar para si mesmo a
certeza de sua incompreensão.

280
BRIX, Michel. “Frenhofer et les chef’s-d’oeuvres qui restent inconnus”. In.: Écrire la peinture entre XVIIIe et XIXe
siècles. Études réunies et presentées par Pascale Auraix-Jonchièr. – Clermont-Ferrand : Presses Universitée Blaise
Pascal, 2003, p. 244.
281
MERLEAU-PONTY, Maurice. A dúvida de Cézanne (1945). In.: O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify, 2013,
p. 126.
282
Idem
283
COLI, Jorge. O novo artista. In. : O corpo da liberdade. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 140.
284
Idem, p. 154.

102
***
No ano do fatídico Salão dos Recusados, em 1863, morria Eugène Delacroix, já
como artista pertencente a um passado aparentemente distante. Como elemento pretérito em seu
próprio tempo, já desidentificado com o que a arte concomitante à segunda metade de sua vida
solicitava e com os anseios do que a pintura, especialmente, já demandava, a morte de Delacroix
significou o sepultamento da pintura romântica, a última pá de terra sobre a cova da arte idealista. O
fim de Delacroix pode ser livremente comparado ao modo através do qual Luiz Marques interpreta
a arte de Michelangelo, como paradoxo em si mesmo, por apreender o tempo condensando-o em
um torso nu, sem se limitar à própria condensação que emerge de sua obra. Tanto por isso, a arte de
Michelangelo também desidentifica-se com seu tempo, pois o artista identifica-se com um passado
do século XVI que o próprio século XVI já não mais reconhece como seu. Ademais, Michelangelo
também não foi capaz de “dar ao século de Trento a arte pela qual este ansiava” 285. Talvez esteja
justamente na inadequação do sujeito com seu universo um fator fundamental de afirmação de sua
obra em seu tempo.
Assim pode ser compreendido o
outro fenômeno em que se converteu o Salon
de 1831, posteriormente conhecido também
como o Salão que presenciou o nascimento da
escultura romântica. Como notou Théophile
Gautier, “David (d’Angers), Auguste Préault,
Antonin Moine, Maindron, Triqueti,
mademoiselle Fauveau, Barye, representaram,
em escultura, o novo movimento de

Figura 26
originalidade e de liberdade”286. Gautier
atinha-se a estes artistas por reconhecer neles a
recusa aos modelos clássicos, a manifestação de abstração da beleza ideal antiga, em favor de uma
arte de vertente expressiva, que se compreende como possibilidade de significação do absurdo do
mundo e da condição humana. Isso, contudo, teve consequências: Barye talvez tenha sido o de
maior sucesso; realiza diversas edições em bronze para as suas esculturas, recebe encomendas
públicas e resiste ao esquecimento coletivo. Préault, “chef de fille” da tendência que se chamou de

285
Op. Cit. MARQUES, 2011, p. 16.
286
GAUTIER, Théophile. Histoire du Romantisme. Paris: G. Charpentier et Cie., 1874, pp. 245-246. (TN)

103
“a escola do feio”287, teve todas as suas obras do Salon de 1834 recusadas, salvo “La Tuerie”
(Figura 26), onde se manifesta o seu interesse sincero pela violência, pela morte e pela
agressividade, mas também pela contorção do corpo, pela tensão muscular e pela consistência da
forma. O tema de Préault nesta obra é a dor humana, é o luto, o massacre, mas ele próprio, diferente
de Moine, seu outro colega de geração, não experimentou essas desventuras do destino com a
mesma intensidade e amargura. Moine, por sua vez, conforme conta Victor Hugo, tenta vender
alguns pastéis, mas não aguenta encarar a dificuldade que sua existência lhe impõe e suicida-se com
um tiro contra a cabeça. Assim narra Hugo o terrível momento em que sua esposa se depara com o
corpo inerte e parcialmente destruído do marido:
“Então ela retorna, entra no quarto e se ajoelha perto de seu marido. O tiro de pistola havia
levado quase toda a cabeça. O sangue escorria pelo azulejo, havia cérebro sobre as paredes
e sobre os móveis.
Foi assim que morreu, marcado pela fatalidade (...), Antonin Moine, nome que a partir de
então ativará duas lembranças, uma morte horrível e um talento encantador” 288.

Hugo relata o desfecho de Moine recorrendo à mesma fórmula literária da qual Balzac e
Zola se serviram, favorecido pelo fato de que o artista realmente encerrou sua vida com um
suicídio. Champion289 demonstra, contudo, que o escultor não se manteve constantemente alheio à
produção artística de seu tempo e nos dá oportunidade de pensar que outros fatores indesvendáveis
podem ter interferido para levar Moine ao suicídio. Por um lado é certo que a geração de 1830, da
qual Moine fez parte, como já mencionado, afirmou imperativamente a existência de uma arte
plasticamente potente e expressiva, que renunciou aos códigos formais acadêmicos para favorecer
unicamente uma linguagem autônoma para a obra, mas experimentou, por consequência, uma maior
resistência de inserção no circuito artístico. Por outro lado, é certo também que foi esta mesma
geração a responsável por tornar lugar comum a ideia de que toda arte de vertente expressiva deverá
enfrentar dura resistência do público que, em sua bêtisse, não compreenderá nem artista nem obra,
fatores somados que o levarão necessariamente à certeza de seu fracasso moral.
Carpeaux é herdeiro desta geração de escultores. Ele se sente um fracassado até o fim da
vida. O projeto do “Ugolin”, de fato, contribuiria sobremaneira para que ele pensasse assim. Seus
inúmeros estudos para as constantes alterações das quais sofreria a obra dariam prova da
insatisfação pela qual passara o escultor no momento da concepção da escultura que, contudo,

287
LAMAISTRE, Isabelle Leroy-Jay. La Révolution Romantique. In. : Les Grands Expositions. Beaux-Arts, hors-serie.
Chefs d’oeuvre de la sculpture du XIXe. Paris. 1986. S/p.
288
HUGO, Victor. Le suicide d’Antonin Moine (avril 1849). In. : Choses Vues. Paris :Calmann Lévy, 1900, p. 229.
(TN)
289
CHAMPION, Jean-Loup. Antonin Moine (1796-1849), sculpteur romantique. Bulletin de la Societé d’Histoire de
l’Art français. Paris. 1998, pp. 251-274.

104
depois de finalizada, seria exposta no Salão oficial de 1863, após a encomenda de uma versão em
bronze pelo próprio Estado. O “Ugolin”, portanto, parece não passar de um desejável desgosto
ideal. Alguns anos mais tarde, no entanto, Carpeaux aprende o que é ter uma obra não aceita por
uma sociedade moralista e conservadora e choca a população parisiense pelo mesmo motivo que
levara Manet a ter o “Le Déjuner sur l’Herbe” recusado em 1863. Ele reativa o problema da nudez
feminina, desta vez com a obra “La Danse” (1868), para a fachada principal da Opéra de Paris.
Depois de descoberta, a obra amanheceria manchada de tinta e enfrentaria longo processo para que
não fosse retirada do lugar onde até hoje é conservada.
Delacroix, por sua parte, pertence a essa geração: é amigo de Préault, com quem trocou
diversas cartas, e com Barye, conta-se, visitava o Jardin des Plantes para estudar os animais
empalhados. Ele acredita inabalavelmente que a arte é, por excelência, elemento de seu martírio,
catalizador vital da angústia e meio necessário para esta expressão (que ele acredita às vezes ser a
sua). Malgrado sua identificação espiritual com Michelangelo seja ponto pacífico desde seus
escritos de juventude até ao menos o princípio da década de 1850, como já foi diversas vezes
analisado até aqui, e embora ainda Michelangelo também tenha manifestado suas angústias diante
da algumas de suas obras e situações familiares, Delacroix jamais identificaria nisto uma
característica em comum com o mestre, corroborando a hipótese acima lançada de que não há no
pintor francês qualquer busca exaustiva de ligação formal com o mestre florentino290. É preciso
estar atento, contudo, que, justamente na década de 1850, Delacroix comentará explicitamente o
efeito do inacabado, em Michelangelo, não exatamente como elemento ativador de seu fracasso,
mas como válvula de desvio e ampliação da visualidade clássica, o que também não configura a
exaltação de uma qualidade positiva. Delacroix interessa-se cada vez menos pelo clássico
domesticado e, ainda que sua concepção acerca do inacabado michelangiano tangencie a ideia de
fracasso, alusivo ao que “não foi alcançado”, ela efetivamente não o atravessa, uma vez que o
resultado encontrado irrompe uma outra linguagem plástica.
Em 1853, passeando pela floresta de Champrosay, Delacroix, epifanicamente, ao se
deparar com um imenso carvalho, anuncia em seu Journal (ANEXO I, 2), como se deu conta em
um golpe de inspiração e arrebatamento, da constituição fundamental da obra de Michelangelo, na
qual partes absolutamente acabadas convivem e contrastam-se com outras partes inexploradas,
revelando o aspecto bruto da pedra por vezes ainda intocada. É como se o pintor, por alguns
instantes, compreendesse o núcleo pulsante de expressividade artística existente, conforme ele

290
Cf. Parte I, 2, pp. 47-50.

105
assimila, na obra de Michelangelo que, três séculos mais tarde, não poderia ser compreendido pela
sociedade de seu tempo, diante das obras de seus contemporâneos. Isso porque, para o pintor,
expressão é sinônimo de autonomia da obra em requerer do artista a sua subjetividade e a sua
“individualidade”. Delacroix nos revela nesta nota de seu Journal que mais lhe interessam os
artistas inclinados à desproporção, pois só assim, na assimetria, no desequilíbrio, na instabilidade, é
possível reconhecer a beleza da perfeição, e não na monotonia da regularidade. O artista percorria o
caminho do clássico, portanto, de dentro para fora e, só assim, com “audácia”, “imaginação
ardente”, “fogo e entusiasmo da inspiração”, segundo seu vocabulário particular, era possível
inventar uma linguagem formal, ou era possível, vale repetir, tornar-se “pai da arte moderna”291.
Assim, oscilante entre o resultado da concepção de uma obra sob um estado de êxtase,
furor ou revolta, ou como produto de uma determinada concepção formal, cujo objetivo é subverter
a ordem do clássico, Michelangelo corresponderia, doravante, ao criador simbólico de uma arte de
vertente expressiva, ainda que o resultado efetivo de sua obra, em momento algum, requeresse tal
assimilação. O non-finito, em suma, era aquilo que poderia potencialmente corresponder ao aspecto
vacilante na sublime perfeição Michelangiana. Não foi assim, contudo, que quis compreender sua
crítica, em longo prazo.

291
Cf. Introdução, p. 23.

106
4. Um novo Michelangelo

Membros de uma importante geração de artistas franceses expirariam em 1875. O


mundo, no entanto, não lamentaria tanto pela morte de Barye (em 25 de junho) que, durante a sua
vida, havia alterado completamente o movimento expressivo da escultura animal, a potente
anatomia da inércia, a tensão volumétrica da forma plástica do bronze. Tampouco lamentaria
expressamente a morte de Corot (em 22 de fevereiro), que sem uma cortante ousadia pictural, havia,
a seu modo, reinterpretado a pintura do Cinquecento italiano; havia também saboreado a fatura
densa dos tons terrosos de paisagens amenas e úmidas. Jean-Baptiste Carpeaux, no entanto, teria no
momento de sua morte (em 12 de outubro) a confirmação da prefiguração de seu destino, sinalizado
desde sua chegada em Roma e sintetizado quando da execução de seu “Ugolin”. Mas a morte de
Carpeaux naquele ano confirmava a conexão mágica entre ele e Michelangelo, e, mais do que isso,
lhe faria identificar-se como o próprio Michelangelo moderno, em um fenômeno de encarnação do
mestre florentino que finalmente encontrava seu tempo292.
Isso porque 1875 marcava também o período de comemorações que recordariam o
quarto centenário do nascimento de Michelangelo. Tal coincidência não passaria discretamente
diante dos olhos da crítica de arte, sobretudo daquela empenhada na atualização da biografia como
gênero histórico-artístico por excelência, pois era essa mesma frente crítica que desejava encontrar
o novo Michelangelo:
“Pouco tempo antes da morte de Carpeaux, o governo depositou sobre o leito do doente a
roseta de oficial da Legião de Honra; ele não se emocionou mais porque seus pensamentos
estavam já no infinito; sua carreira já estava terminada, ele não lamentava a vida que se
tornava tão amarga para este mártir. Michelangelo, que inflamara o ardor deste jovem
homem, fica para o velho de cinquenta anos o último culto no gênio do qual se impregnava
novamente em sua alma de artista. Festejava-se precisamente em Florença o centenário
deste ilustre entre os maiores. De seu leito doloroso, o pensamento de Carpeaux se enlevava
em direção à Itália com os entusiasmos da primeira juventude. Conta-se que no dia do
centenário, Carpeaux se fez levar no parque do príncipe Stirbey, onde o moribundo lançou
um punhado de flores sobre uma estátua representando Michelangelo menino. Não é isto
realmente belo e tocante?”293

292
Na imagem celebrativa da morte de Carpeaux publicada em Le Monde Illustré (ANEXO II, 11.1), uma figura que
representa uma escultura ao lado direito parece ser o “Michelangelo jovem esculpindo a cabeça do fauno”, realizado por
Cesare Zocchi em data desconhecida, atualmente localizado na Casa Buonarroti (ANEXO II, 11.2).
293
WOLFF, Albert. La capitale des arts. Paris: Victor-Havard, 1886 (2ª ed.), p. 331-332.

107
Se Michelangelo encarna a primeira figura canônica da história como artista
melancólico, que necessita da solidão, mas também do artista que resiste em se tornar cortesão,
movimento ao qual a maior parte dos seus contemporâneos se submete, resistente, antes de tudo, a
qualquer tentativa de aprisionamento institucional, seria ele a exercer certo papel de paternidade de
toda essa geração romântica que queria sua ascendência, e que duraria ainda até o século XX.
Ocorre que, se Cristo é feito à imagem e semelhança moderna de seu pai, cuja face é desconhecida,
o caráter divino do mestre florentino faz dele um potencial pai gerador de filhos igualmente à sua
imagem e semelhança. Carpeaux é um artista martirizado, que sofre da dor de um condenado
artístico como Cristo sofreu pela humanidade. O artista francês, no entanto, embora resistido (ou
rechaçado) do círculo do Segundo Império, ao qual ele contraditoriamente serviu, encontrava-se, ao
fim de sua vida, em um estado tal de debilidade física e financeira que é obrigado render-se ao
convite do Príncipe Stirbey, seu maior colecionador, que legaria posteriormente à França toda a sua
volumosa coleção, para expirar em seus aposentos294. Isso porque seria indigno que um artista da
estirpe de Carpeaux morresse como um desconhecido miserável, como o seu futuro chegou a lhe
apontar.
Porém, nessa infatigável busca pelo Michelangelo moderno, o artista mais regularmente
associado ao mestre italiano seria Rodin, não obstante se distanciasse dele qualquer tentativa de
assimilação de um perfil psicológico que os conectasse diretamente, mas sim, antes de tudo, devido
às suas escolhas formais. O único aspecto no qual os dois se aproximariam espiritualmente seria no
que diz respeito aos sucessivos fracassos do jovem artista, que parecia sofrer, por sua parte, muito
mais das consequências desdobradas de um engessamento dos corpos de júri dos Salons europeus
contra qualquer desalinhamento dos padrões ideais daquele academismo pasteurizado, do que,
propriamente, de uma condenação de seu “anti-destino” artístico. Rodin seria, sem duvida, o maior
artista francês da virada do século XIX para o XX, ao menos do ponto de vista de seu
reconhecimento critico.
Em Bruxelas, onde residia, Rodin tomaria conhecimento da Florença festejante em
memória de Michelangelo, que, a um só tempo, também buscava nele um artifício de equilíbrio
nacional para uma frágil Itália recém-unificada295. O eco que soava até o jovem escultor devia-se
possivelmente a mobilização de alguns franceses para transmitir aos seus concidadãos o que se
passava em terras italianas. Em 1875 a Gazette des Beaux-Arts, por exemplo, publicaria uma tímida

294
Op. cit. GAËTAN, 2014, p. 276.
295
Lembremos que entre 1815 e 1870 a Itália passa por um complexo processo de unificação.

108
seleção de poemas de amor compostos por Michelangelo à sua admirada Vittoria Colonna296, mas
no ano seguinte o público seria agraciado com um imenso dossiê no qual o mestre toscano era
apresentado ao público através de suas diversas faces, analisadas por algumas personalidades que
estiveram envolvidas nas comemorações do ano anterior, entre os quais o próprio Charles Blanc,
editor-chefe da publicação, e o arquiteto Charles Garnier297.
Rodin seguiria para Florença no início de 1876, e, evidentemente, não participara dos
três dias ritualísticos, conforme narrado por Roger Ballu298 e por Jules Salles299, cuja abertura
contaria com um cortejo culminado na Piazzale Michelangelo300. Mesmo assim, Rodin estava
decidido a interromper os trabalhos de “L’Âge de l’Airain”301 (ANEXO II, 12), que, malgrado
tivesse ganhado um fôlego refrescado quando de sua volta à Bélgica, ela não o livraria de um novo
insucesso, desta vez uma polêmica em torno do nu masculino e o seu limite de realismo e
verossimilhança, aspecto que, indiretamente, reforçaria sua união ideal ao mestre florentino.
Apesar de toda a sua curta experiência como escultor ligado às artes decorativas e à sua
incompreensão institucional, nada o fazia se diferir de toda a geração anterior, que compreendia o
confronto com a arte italiana em seu solo pátrio como componente essencial de formação artística.
Por outro lado, ele se diferia radicalmente do grupo dos assim chamados Neo-florentinos302, que se
acreditavam utopicamente fiéis herdeiros da escultura do Quattrocento e, por isso, não desistiam da
leviana certeza de que suas pesquisas artísticas conformavam-se com o purismo formal da linha
elementar que, em verdade, se tornava artifício codificado de uma configuração plástica infértil.

296
Op. Cit. RAYSSAC. 1875, pp. 5-18.
297
GBA. Tome XIII. 1876.
298
BALLU, Roger. Le quatrième centenaire de Michel-Ange. L’Art: revue hebdomadaire illustrée. 1875. Tome III.
Première année, pp. 73-84.
299
SALLES, Jules. Les fêtes de Florence à l’occasion du IVe centenaire de Michel-Ange. Nîmes: Typographie Clavel-
Ballivet, 1876.
300
No dia 12 de setembro de 1875, um domingo, iniciavam-se os festejos em memória de Michelangelo. Ambos os
escritores mencionados narram a peregrinação ao fim deste primeiro dia até a Piazzale, onde se construiu, a partir do
projeto do arquiteto Giuseppe Poggi, um monumento com a cópia em bronze do célebre David e das alegorias da
Capela Médici, e frases emblemáticas fixadas em sua base. O rito de encerramento aos pés do monumento contou com
discursos de diversas personalidades de academias de arte europeias e também do Brasil, representado, possivelmente,
por Pedro Américo, que expunha neste momento a Batalha do Avaí ainda inacabada.
301
FERGONZI, Flavio. La scoperta di Michelangelo: qualche ipotesi sulla settimana fiorentina di Rodin e sulla sue
conseguenze. In: Op. Cit. Michelangelo nell’Ottocento, 1996, p. 115
302
Para Le Normand-Romain, compuha este grupo Paul Dubois, Antonin Mercié, Alexandre Falguière, Eugène
Delaplanche, René de Saint-Marceaux e a eles se uniria ainda o belga Charles Van der Stappen. – Cf. LE NORMAND-
ROMAIN, Antoinette. Rodin et Michel-Ange: “Le fragmentaire, l’hybride et l’inachavé ». In. : Rodin et l’Italie. Sous la
direction de Antoinette Le Normand-Romain. Academie de France à Rome : Edizzioni de Luca, 5 avril 2001 – 9 juillet
2001 – Catálogo de Exposição.

109
Rodin procurava na Itália a fonte de ampliação de seu atlas mnemônico, não somente
através da estatuária clássica303, mas especialmente por Donatello, que ele já conhecia por algumas
obras do Louvre, e Michelangelo, seu mestre, representado na França não somente pelos dois
Escravos do mesmo museu, mas também pelas moldagens e cópias da capela da École des Beaux-
Arts, que ele atentamente estudou. É preciso lembrar que a “Porte de l’Enfer”304 (ANEXO II, 13),
obra em torno da qual todo o trabalho de Rodin vai se movimentar após sua encomenda, em agosto
de 1880, seria, em grande medida, resultado de sua admiração pela “Porta del Paradiso”, que ele
não precisou aguardar a tão sonhada viagem para conhecer. Rodin havia sido formado pela
observação atenta da poesia do fragmento que a Revolução Francesa doravante obrigaria os artistas
a aprender admirar. Ele e tantos outros artistas desde antes de sua geração, beneficiavam-se pelo
efeito do intento do ministro Thiers para a abertura do Musée des Copies, em 1834, renovado
décadas mais tarde por Charles Blanc, que via neste museu o atendimento de uma necessidade
eminente305. No mesmo instante em que observava a moldagem da obra de Ghiberti, as moldagens
das obras de Michelangelo que coabitavam a rotunda exerciam sobre ele um profundo impacto. E
exatamente por essa razão, é absolutamente incerto datar o significativo volume de desenhos de
estudo que Rodin teria executado das obras florentinas de Michelangelo, embora o artista reconheça
que o efeito da cópia lhe tivesse sido potencialmente incomparável ao original306. Não existe por
isso qualquer possibilidade de insinuação de anulação ou resistência de Rodin à contemplação e a
experiência estética diante da própria obra, pois não se trata ainda do problema da reprodutibilidade
técnica refletido no célebre ensaio de Walter Benjamin, retomado por Rosalind Krauss307 para
analisar o fenômeno das obras de Rodin post-mortem. Isto, por outro lado, pode ser uma chave de
compreensão, em consequência última, da origem de tal concepção em Rodin, e não do resultado a
que esse problema levou.
A viagem que duraria cerca de dois meses, renderia alguns desenhos, e apenas uma
carta de que se tem notícia, endereçada a sua companheira Rose Buret (ANEXO I, 6)308. Nela é
explícita a total despretensão de Rodin ao universo literário e dela também se exime qualquer
expectativa de revelação de alguma concepção artística prematura. Por outro lado, esta carta
303
Os mármores antigos Rodin já conhecia muito bem de suas visitas frequentes ao Louvre. Ainda assim, antes de seu
retorno à Bélgica, Rodin vai a Nápoles para estudá-los.
304
A obra seria finalizada em 1917, sem que o artista, morto neste mesmo ano, visse o resultado de seu trabalho.
305
BOIME, Albert. Le musée des copies. GBA. Tome LXIV. 1964, pp. 238-247.
306
Cabe aqui antecipar o que o escultor escreve na carta: “Tudo o que eu vi de fotografias e de gessos, não dão
nenhuma ideia da sacristia de St Lourenço”.
307
Op. Cit. KRAUSS, 1993, pp. 151 – 176. – Krauss, no entanto, já entende que existe um sensível descompasso entre a
noção iluminada por Benjamin e o uso da reprodutibilidade por Rodin enquanto técnica de escultura.
308
Segundo a Correspondence de Rodin reunida em 1985, a única carta datada de 1876 é, inclusive, esta.

110
inaugura uma mudança sensível, mas absolutamente fundamental, no tocante ao que Michelangelo
havia se tornado para a arte francesa do século XIX. Quando o jovem artista, ao fim da missiva,
afirma acreditar que o “grande mago” lhe deixara um pouco de seus segredos, é aí onde se localiza
a dupla face do entendimento de Michelangelo que, juntas, sinalizariam o futuro do significado que
o mestre incorporaria para a arte moderna.
Se de um lado permanece vívida a imagem de Michelangelo como sacerdote místico
que detém o segredo alquímico capaz de dar vida à forma inanimada, Rodin faz conviver com esta
concepção a ideia segundo a qual a obra do mestre florentino corresponde a uma fábrica
interminável de “estruturas e esquemas” formais articulados. Embora Rodin mostre-se
desconcertado ao procurar nos “alunos de Michelangelo” as interpretações que, de certo modo, o
livrariam do trabalho de acessá-lo diretamente, mas nada encontrar, é essa busca inalcançada que o
força a reinventar em sua imaginação as “estruturas e os esquemas” que o permitirão entendê-lo.
Pois lhe importa não mais o estudo da obra em si mesma, mas o que a sua imaginação lhe fornece a
partir de uma longa e minuciosa observação. A tarefa não recai sobre suas mãos a exercitar no papel
tudo aquilo que observa in sito tal como as moldagens em Paris já lhe ofereciam suficientemente. O
que lhe importava era o resultado do que a conjunção do seu olhar com a sua imaginação iria lhe
oferecer como recurso para a pura abstração da obra que o levaria a compreendê-la em sua forma
essencial.
Esta carta é, portanto, inusitada à medida que ela não anuncia o pensador de arte que
Rodin viria a se tornar mais tarde. Talvez, por essa imprevisibilidade, seja mais eficaz entender tal
documento a partir de um movimento contrário ao que a sua leitura nos suscita, isto é, a partir
daquilo que ela não representa. Isso porque, em primeiro lugar, Rodin sequer faz menção a um non-
finito revelador, de onde emerge uma nova concepção de massa plástica, como desejaria toda a
crítica de arte que identifica em algumas de suas obras a descendência direta do mestre florentino.
No tocante a esse aspecto, ainda que evidentemente presente neste artista, ele sequer havia sido o
seu preconizador. Basta lembrarmo-nos da epifania de Delacroix na floresta de Chaprosay diante de
um carvalho colossal, conforme mencionado no capítulo anterior.
Em segundo lugar, é preciso superar a noção engendrada na mencionada nota de
Delacroix, mas cristalizada pelas obras mais maduras de Rodin, já indefectivelmente como
Michelangelo reencarnado. Trata-se da equivocada convicção de que o non-finito corresponde a um
estado inerente à obra, subentendendo que em alguma medida fez parte do que poderia se chamar a
essa altura do século de um “projeto michelangiano”, a eleição de um estado de suficiência da obra

111
de arte. Como bem compreendeu Wittkower, “à oposição de Michelangelo, cujas obras inacabadas
não eram efetivamente terminadas, Rodin criou figuras fragmentares que são a obra finita. Um
controle também afastado do ato criador exigia do artista uma forma nova e, para tudo dizer,
moderna de introspecção”309.
É ainda válido ratificar que, quando Rodin refere-se a Michelangelo como “ce grand
magicien”, ele não o transforma em um filósofo místico conforme a orientação de Balzac na criação
do velho Frenhoffer, e talvez esteja justamente neste descompasso o maior abismo entre os artistas.
Pois toda a angústia que emerge do contato potente do homem com o mármore, aspecto este que
marcaria a imagem de Michelangelo desde seus vivants até hoje (em grande medida operado pelo
próprio artista), é o fator que se impõe como marcado afastamento entre ambos. Rodin, que jamais
pegou em um cinzel e nunca teve habitando em sua mente figuras colossais, entenderia a obra de
Michelangelo como um repertório de formas anatômicas, atualizando todo o elogio à questão da
varietà, ao qual lhe foi associado desde o célebre cartão da Batalha de Cascina, culminando no
afresco do Juízo Final. Ambas as obras, contudo, não provocariam em Rodin uma impressão
equiparável ao que a Capela Médici lhe despertaria.
A isso se soma o entendimento matérico-formal que Rodin desenvolve tardiamente a
respeito de seu mestre eleito, conforme ele explicita na entrevista concedida a Paul Gsell. Ao
estabelecer um limite instransponível entre Fídias e Michelangelo evocando, analogamente, o
equilíbrio antigo e a violência presente no segundo, conservando assim uma das noções basilares a
respeito deste artista desenvolvida ao longo do século XIX, completa Rodin: “a arte de
Michelangelo criou estátuas de uma aparição, de um bloco. Ele mesmo dizia que apenas eram boas
as obras que poderiam fazê-las rolar do alto de uma montanha sem nada quebrar; e, em sua opinião,
todo o que se foi destruído em tal queda era supérfluo”310. Embora a suposta afirmação de
Michelangelo mencionada por Rodin mais pareça compor a longa galeria de mitos apócrifos sobre o
mestre, ela demonstra com clareza e sintetismo o modo como o escultor francês afastava de
Michelangelo a sua assimilação como artista melancólico, para dar protagonismo ao que ele
entendia como razão formal de sua obra311.

309
WITTKOWER, Rudolf. Qu’est-ce la sculpture? Principes et procédures de l’Antiquité au XXe siècle (1977). Paris:
Macula, 1995, p. 280.
310
RODIN, Auguste. L’Art. Entretiens réunis par Paul Gsell (1911). Paris: Bernard Grasset, 2012, p. 128.
311
Rodin reforçava a opinião escassa no século XIX de que Michelangelo não foi de modo algum um artista
melancólico. Defendendo a hipótese de que Michelangelo é o último dos góticos, assim completa Rodin: “Para dizer a
verdade, Michelangelo não é, como por vezes se sustentou, um solitário na arte. Ele é o resultado de todo o pensamento
gótico. Diz-se geralmente que o Renascimento foi a ressureição do racionalismo pagão e sua vitória sobre o misticismo

112
Bem observara Wittkower que Adolf von Hildebrand, contemporâneo de Auguste
Rodin e seu grande admirador, além de grande representante do formalismo germânico, contribuiria
sobremaneira para o processo pelo qual Michelangelo passaria na segunda metade do século XIX,
ainda que reconheça o historiador as sensíveis, mas fundamentais, nuances nos modos como cada
um deles compreenderia o teor formal da obra do mestre florentino. Tempos mais tarde, a propósito
da afirmação de Henry Moore na entrevista para o catálogo da exposição de Rodin no Arts Council
(1966-1967), quando declarou que “Rodin foi o único artista desde Michelangelo que realmente
compreendeu Michelangelo”, afirma Wittkower: “É estranho que Moore, um escultor nato, pudesse
se enganar a este ponto. Segui-lo-emos, contudo, quando ele diz que Michelangelo foi sem
nenhuma dúvida o escultor que mais teria influenciado Rodin”312. É preciso superar a ingênua
noção de influência de um artista sobre o outro, tanto quanto é preciso desconfiar do ponto pacífico
que tende a fazer tábula rasa da referência michelangiana para Rodin. Não é o caso de enfrentar a
história da escultura entre Michelangelo e Rodin flertando com o pessimismo historiográfico
moderno, que fez liberar de Malraux, a afirmação de que “a partir da morte de Michelangelo até a
arte moderna, a escultura, sem exceder Rodin, torna-se um diálogo com o passado”313. Em parte ele
tem suas razões, pois nada é capaz de abalar, por exemplo, a fonte formal que o pensieroso da
Capela Médici (Figura 19) exerceu sobre o escultor francês na concepção de “Le Penseur”
(ANEXO II, 14), em 1902-1903. Mas nada também subverte a certeza de que o non-finito foi fator
exponencial para promover um questionamento generalizado sobre o lugar categórico da escultura
como arte da imitação, problema que impulsionou os desdobramentos da história da escultura até,
pelo menos, Brancusi. Mas a relação de Rodin com a Itália, de um lado, e com a escultura, de outro,
seria sintomática para estabelecer definitivamente o lugar de Michelangelo como artista do passado,
mas também artista de um futuro sempre inalcançável.

da idade média. Isto é parcialmente justo. (...). Este é manifestamente o herdeiro das imagens do século treze e
quatorze”. In.: Idem, p. 130. (TN)
312
Op. Cit. WITTKOWER, 1995, pp. 269-270.
313
MALRAUX, André. Introduction ao Premiere Musée Imaginaire de la Sculpture Mondiale (1952). In : Écris sur
l’art. Vol I. Paris : Gallimard. 2004, p. 965.

113
Duas considerações finais

1.
MICHELANGELO. (28.1.1857)
Michelangelo. Podemos dizer que se seu estilo contribuiu para corromper o gosto, a
frequentação de Michelangelo exaltou e elevou sucessivamente por sobre elas mesmas
todas as gerações de pintores que vieram depois dele314.

Quando Eugène Delacroix escreve as palavras acima, seu objetivo é utilizá-las como
verbete de seu Dictionnaire des Beaux-Arts, começado naquele início de 1857, mas cujo fim sua
morte não o permitiria alcançá-lo. Movido pelo escasso entusiasmo que lhe provocara a eleição para
a Académie Française315, após sete anos consecutivos – e incansáveis – de tentativa fracassada,
crescia no cansado e doentio corpo daquele homem a certeza sobre a hostilidade da crítica ao seu
trabalho, mas também aumentava significativamente suas pretensões como pintor-intelectual316.
Diminuía a força e a energia que ele, de hábito, dispensava sobre o trabalho quando, em 1856 o
início dos trabalhos de decoração da Chapelle des Saints-Anges, na Igreja de Saint-Sulpice, o
reanima poderosamente. “(...) Há quatro meses que saio de manhãzinha e corro para esse trabalho
encantador, como para junto da amante mais querida (...)”317 – diria o pintor em seu conhecido
relato a respeito do preparo de tais pinturas em 1 de janeiro de 1861, que reativou na crítica mais
recente uma curiosa indagação a respeito de sua sexualidade ou de sua frigidez318. Isto pouco
importa. É preciso saber, antes de tudo, que a encomenda para tal empreendimento seria
concretizada em abril de 1849. Daí até o efetivo início dos trabalhos, o artista realizaria uma série
de grandes feitos que selariam a sua reputação como um dos três vértices do cenário artístico
francês, completado por Ingres e Courbet319. É também preciso recordar que em setembro daquele
mesmo ano Delacroix faz a primeira menção à realização de seu “Michel-Ange dans son atelier”320,

314
Op. cit. DELACROIX, 1996, p. 131. (TN)
315
Delacroix seria eleito para o Institut em 10 de janeiro de 1857.
316
O projeto do Dictionnaire deve ser analisado como uma manobra do artista de inclinar-se ao ensino artístico teórico
e ao seu interesse enciclopédico do qual nunca esteve distante, para driblar seu constante incômodo em relação ao
sistema de ensino acadêmico, contra o qual se voltou durante toda a sua vida, e cuja reforma seria realizada justamente
em 1863, ano de sua morte.
317
Op. cit. DELACROIX, 1893, p. 425. (TN) – Delacroix, inclusive, mudar-se-ia de endereço para ficar mais ainda
perto da igreja e ter um ateliê mais apropriado para tal trabalho. Trata-se do endereço onde hoje está o Musée Eugène
Delacroix, casa-ateliê onde o artista reside a partir de 1857.
318
Op. cit. CALASSO, 2012, pp. 150-151.
319
Entre eles consta a participação na Exposition Universelle (1855) e a realização da decoração do Salon de la Paix, no
Hôtel de Ville (1851-1854) e a Gallerie d’Apollon, no Louvre (1850-1851).
320
Cf. Parte II, 2, notas 253-254.

114
dado que se impõe como evidência de que o mestre florentino havia voltado a habitar seus
pensamentos.

Figura 27

É unânime o julgamento da capela como a última grande obra de Delacroix, assim como
é consenso considerar, por diversos motivos, “A Luta entre Jacó e o Anjo” (Figura 27) como a
principal pintura das três então realizadas321. Entre esses motivos consta a frequente opinião de que
sobre tal obra repousaria um grave teor testamental. Nela Delacroix teria elencado os elementos
norteadores de sua vida artística e de seu horizonte estético; teria realizado as mais silenciosas
declarações, e cristalizado suas mais saudosas recordações.
Diria Baudelaire que Delacroix concebe Jacó como um guerreiro322. Retomando a cara
temática da “violência pulsante dos corpos”323, o homem resiste bravamente à divina força do anjo
adversário. Porque Jacó, cheio de humanidade, desejoso da benção divina, trapaceia seu pai.
Obrigado a distanciar-se de seus familiares, Jacó vaga solitário pelo mundo quando decide implorar
o perdão divino ao prostrar-se em oração. Renunciando ao mundo e ao seu eu para prender-se tão
321
Toda a estrutura iconográfica da Capela é estabelecida sobre o embate entre o humano e o divino.
322
Op. Cit. BAUDELAIRE, 1869, p. 47. – Originalmente publicado em Revue fantaisie, 15 de setembro de 1861. Para
o texto completo, vide ANEXO I, 4.
323
Conforme a mesma expressão utilizada na Parte II; 1, p. 73.

115
somente a deus, o homem é posto em confronto com aquele que, posteriormente revelado, seria a
própria presença divina, a quem ele implora a benção que outrora tentou conquistar ilicitamente. No
século que assiste ao desenvolvimento acelerado da psiquiatria, não seria forçoso compreender tal
episódio bíblico como metáfora para a luta dramática e existencial do homem com a sua própria
consciência na escolha de seu destino. Isso porque ao opor deus aos homens, Delacroix opõe no
mesmo instante a natureza e a história. Como analisa Leyla Perrone-Moisés:
“o texto da Bíblia nos diz que a vitória foi do Anjo. Mas no painel de Delacroix a luta
prossegue sempre, sem que tenhamos que escolher o vencedor, seduzidos que somos tanto
pela beleza calma, anacrônica e um tanto adocicada do Anjo, como pelo ímpeto que anima
o corpo musculoso e obstinado de Jacó” .
324

Em primeiro plano, Delacroix nos impõe a natureza-morta como requisito prioritário


para a contemplação da obra: eis aí um índice da capacidade artística de realizar montagens,
invenções e de comentar o nada em si mesmo. Pela paisagem monumental escoam nômades
orientalizantes, ou vão-se, talvez, os princípios normativos da arte, em artifício semelhante ao que
fez Courbet, em 1854325. É também nesta paisagem onde firmam presença maciça e robusta,
completa e plena, os três carvalhos que, solenes em suas respectivas imperfeições, imediatamente
nos ativam a lembrança da epifânica conclusão de Delacroix anotada em seu Journal, em 1853
(ANEXO I, 3), quando ele brilhantemente declara ter enfim compreendido o cerne constitutivo da
arte de Michelangelo326. Assim, afirmando a pintura pela pintura, proclamando a inexistência das
regras artísticas canônicas e explicitando o caráter irrevogavelmente imperfeito de sua obra,
Delacroix, que em algum momento acreditou ter-se comprometido em atualizar os mais rigorosos
princípios do classicismo, anunciava o fim de sua arte e o fim de sua vida em um gesto moderno de
afirmação da autonomia da arte como ele jamais seria reconhecido.
Estava lá presente o sujeito que lhe conduziu a corromper sua obstinada busca pelo
classicismo que Rafael, em dado momento, já não era mais capaz de lhe oferecer 327. Assim é
possível compreender o verbete que ele dedica a Michelangelo em seu Dictionnaire, como síntese
do que o mestre significou não somente para Delacroix, em particular, mas para o século XIX, em

324
PERRONE-MOISÉS, Leyla. A luta com o anjo. Baudelaire e Delacroix. In.: Artepensamento. Adauto Novaes
(Org.). São Paulo : Companhia das Letras, 1994, p. 237.
325
Trata-se de “Bonjour Monsieur Courbet”, que se encontra na Coleção Bruyas, a mesma a que pertence o “Michel-
Ange dans son atelier”, de Delacroix.
326
Para isso, cf. Parte II, Capítulo 3, p. 105-106.
327
Curiosamente, a tradução de “Della Rovere”, sobrenome da família que adotara Julio II, ao português é,”De
Carvalho”. Em “A criação do Sol, da Lua e das Plantas”, por exemplo, o índice iconográfico deste último elemento é,
não por acaso, os frutos do carvalho, que reaparecem em alguns Ignudi e outros detalhes vegetais ao longo de toda a
extensão da capela.

116
geral. É em Michelangelo onde a arte se torna um excremento fertilizante; é em sua decadência
onde nasce a fagulha de modernidade e, desse modo, estaria reestabelecida a conexão entre a
concepção que Delacroix forjou de seu mestre espiritual em 1837328 e sua visão cansada de duas
décadas mais tarde.
Voltando ao painel, diversas
possibilidades de leitura podem ainda ser
propostas entre as quais, como afirma
novamente Perrone-Moysés, “o
enfrentamento do homem com o
sobrenatural, a vitória do espírito sobre a
matéria, da fé sobre a descrença (...)”329,
embora, como também destaca a
estudiosa, nada impeça uma interpretação
biográfica da obra. Destarte, é possível

Figura 28 pensar que Delacroix teria dado corpo às


suas hesitações entre a razão do desenho clássico e a expressão da cor exuberante, transformando
esta longeva polarização no recente debate entre o ideal e o “real”, reativado pela abertura do Salon
du Rėalisme (1855), por Courbet, polêmica da qual Daumier tirou arguto proveito na conhecida
charge (Figura 28). O fluxo do confronto entre o real grosseiro e esfarrapado e a fantasiosa
dignidade do ideal de perfeição acabaria por escoar no desenvolvimento de uma farta produção de
obras pela geração posterior que explorou até onde pôde a temática dos lutteurs.
Outra possibilidade de interpretação nunca sugerida é a de que Delacroix teria
finalmente compreendido a razão pela qual Fréart de Chambray nomearia Michelangelo como
“Mauvais Ange de la peinture”. Assim sendo, aquele ser inicialmente incógnito não se trataria de
um envio divino, mas do próprio anjo maldito expulso das terras puras. Analogamente,
Michelangelo, o grande corrupto do clássico, réu da mais cruel sentença artística, trava um combate
infinito com o humano que, nesta condição, é sujeito vulnerável a sua sedução ou a sua recusa,
condição esta a que esteve submetido Delacroix até o fim da vida que lhe apontava. E não há nisto
nenhum espanto se retornamos ao princípio biográfico referido por Perrone-Moisés. Basta

328
Op. cit. Cf. Introdução, p. 13.
329
Op. Cit. PERRONE-MOISÉS, 1994, p. 237.

117
lembrarmo-nos dos versos que Baudelaire escreveria sobre Delacroix também em “VI – Les
Phares” 330:
331
Delacroix, lago de sangue assombrado por anjos malignos ,
332
Sombreado por uma madeira de abeto sempre verde,
Onde, sob um céu aflito, estranhas fanfarras
Passam, como um suspiro sufocado de Weber;

No ano em que Delacroix finalizava os trabalhos na capela, em 1861, Chateaubriand, de


quem Delacroix era assíduo leitor, exilado na Inglaterra, publica uma tradução em prosa do clássico
“Lost Paradise”333, longo poema de Milton, cujos versos hendecassílabos o genial escritor, já cego,
declamava para quem o visitasse. Narra-nos o poeta a epopeia da criação de Adão e Eva, e a
resistência às tentações de Satan, expulso, por fim, do Jardim do Éden. Se Delacroix, grande amante
da obra de Milton, assim tivesse reinterpretado a história em sua pintura, ele garantiria de maneira
eficiente o mito do artista amaldiçoado que, como nos lembra Kris, compôs um topos da mitologia
artística334, como demonstrado na Parte II, Capitulo 1, sempre muito próximo do modo através do
qual Michelangelo teria sido ressignificado no século XIX, na França. Livrando-nos de qualquer
possibilidade de “Juízo Final” condenatório pela escolha do mal, a resposta também ecoa de
Baudelaire, em “XXII – L’Hymne à la beauté”335:
Que tu venhas do céu ou do inferno, o que importa,
Oh Beleza! monstro enorme, assombroso, ingênuo!
Se teu olho, teu sorriso, teu pé me abrem a porta
De um Infinito que eu amo e nunca conheci?

Mas aquelas palavras pelas quais Baudelaire, em suas Flores malignas, havia se referido
a Delacroix convertiam-se, posteriormente, na seguinte conclusão:
“Tudo, em sua obra é apenas desolação, massacres, incêndios; tudo carrega testemunho
contra a eterna e incorrigível barbárie do homem. As cidades incendiadas e esfumaçadas, as
vítimas degoladas, as mulheres violadas, as próprias crianças lançadas sob os pés dos
cavalos ou sob o punhal das mães delirantes; toda esta obra, digo, assemelha-se a um hino
terrível composto em honra da fatalidade e da irremediável dor” .
336

Conta-se que Baudelaire, certa vez, teria afirmado a respeito de Delacroix, que ele era
“o último dos Renascentistas e primeiro dos modernos”. Rimbaud, levando à consequência última

330
Op. Cit. BAUDELAIRE, 1868 (I), p. 96. (TN)
331
« Mauvais anges », conforme o original. Grifo nosso.
332
Vale deixar claro que abeto é uma árvore conífera, semelhante a um pinheiro, mas que não precisa de sol para o seu
crescimento.
333
Chateubriand teria começado a tradução em 1836.
334
Op. cit. KRIS, 1968, p. 66.
335
Op. Cit. BAUDELAIRE, 1868 (I), p. 117. (TN)
336
Op. Cit. BAUDELAIRE, 1869, p. 30. (TN)

118
os princípios baudelairianos, proclama: “É preciso ser absolutamente moderno”337. Entre a sentença
de Baudelaire e a célebre frase de Rimbaud transitam os princípios de negação do passado
(radicalizado pelas vanguardas artísticas do século XX), e, por consequência imediata, da
celebração do hic et nunc, e a compreensão segundo a qual liga-se ao moderno a qualidade fugaz do
presente. Mas é também preciso reconhecer que aquilo que os move a realizar tal anúncio é a
espantosa consciência de seu tempo, e, mais ainda, a convicção de que testemunham um novo
capítulo – depois do que se convencionava naquele momento a chamar de Renascimento italiano –
fundamental para o reajuste do espaço da subjetividade do sujeito, no qual estava circunscrito um
complexo processo de redefinição social do artista. Ou, de maneira mais sintética, ambos
percebiam que cabe ao sujeito, agora mais do que nunca, as decisões do rumo de seu destino.

2. Após a morte de Michelangelo, em 1564, Vasari, em carta endereçada a Cosimo I


neste mesmo ano, revela ao duque que nunca antes vira tantas personalidades reunidas338.
Definitivamente, quando Michelangelo morre, seria impossível distância maior do artesão anônimo
que servia às guildas medievais, artistas tais como Rafael que, muito antes, seria sepultado no
Pantheon em Roma339.
Michelangelo, como visto, para muitos significou, ao contrário do que sentenciou Vasari,
a origem da corrupção da nobreza clássica por oferecê-la tão inteiramente às inconstâncias dos mais
distintos sentimentos e caráteres. É preciso recordar, entretanto, que a própria concepção histórica
pessimista do biógrafo aretino, segundo a qual o mestre florentino corresponde ao pináculo
insuperável do progresso artístico iniciado por Cimabue e Giotto, faria constituir, em curto prazo, o
cerne da certeza de que após Michelangelo a arte havia encontrado definitivamente seu fim, ou no
máximo restaria a ela tão somente a decadência e a degeneração. Não obstante a ideia de que a arte
obedece a um movimento análogo ao da vida, derivado diretamente do mítico modelo das três
idades do homem, e recuperado especialmente por Winckelmann, séculos mais tarde, esta noção foi
diversas vezes questionada e hoje parece mais ter sido relegada a sintoma de certa corrente de
pensamento já historicizado. Michelangelo, ao que tudo indica, jamais coincidiu com o fim da arte
para os intelectuais e artistas franceses do século XIX, mas significou, invariavelmente, artista

337
RIMBAUD. Arthur. Uma temporada no inferno. 1873. Diversas edições disponíveis em rede.
338
O duque Cosimo I seria o responsável pelo financiamento das espetaculares exéquias a Michelangelo, projetadas não
apenas por Vasari, como também por Bronzino, Cellini e Ammanati.
339
Op. cit. BERBARA, 2010. Pp. 33-34.

119
inclinado à vertente expressiva em duas instâncias. Em primeiro lugar, como expressão humana,
como sujeito enclausurado em sua própria existência, que experimenta a mais amarga angústia do
viver, que é, em si mesmo, a antecipação da crise do Eu e do sujeito potencializada no século XIX.
E em segundo lugar, como expressão artística, como capacidade de destravar a autoridade do
clássico, não o negando, como optaram os Pré-Rafaelitas ingleses, ou os Nazarenos italianos340, mas
valendo-se unicamente dele e de seu elemento primordial: o corpo humano.
Isso posto, se os artistas do Renascimento precisavam lutar em favor de sua distinção de
um trabalhador manual como um sapateiro, por exemplo, o artista do século XIX, não muito
diferente, precisou estar seguro de que dispunha de uma nobreza intelectual e de um life-style tais
que sua arte jamais poderia submeter-se ao consumo alienado do mercado, pois tratava-se da
fabricação de um produto único e precioso. O que ambos preservam em comum é, além da
elaboração de um produto aurático, a ávida afirmação da autenticidade do sujeito e do caráter
romântico da individualidade. Entre um momento e outro, a posição especial do artista se reafirma
através de suas excentricidades que compõem, grosso modo, o que se convencionou chamar de
mitologia artística. Afirma-nos Michael Wilson, no catálogo da exposição “Rebels and Martyrs:
The Image of the Artist in the Nineteenth Century”, ocorrida na National Gallery, em 2006, que
“este mito do artista, que ganhou tal imensa difusão durante o período Romântico, provou ser
duradouro. Encontrou poderosa expressão nas vidas e no trabalho de alguns dos mais
celebrados pintores do século XIX – Courbet, Van Gogh e Gauguin, por exemplo, e depois
Munch e os expressionistas alemães. O estilo de vida dos pintores da Escola de Nova York
nos anos de 1940 e 1950 foi conscientemente boêmio, rebelde e arriscado, e sua arte heróica
e revolucionaria. O mito ainda coloriu a visão popular do artista como um outsider, distante
das preocupações das pessoas comuns, vivendo uma vida desafiando as convenções” .
341

Em 1948, o artigo publicado na revista Life dedicado a Jackson Pollock, garantiria ao


futuro breve do artista o reconhecimento como maior pintor norte-americano de seu tempo
(ANEXO II, 15). Em 1949, o afresco da abóbada sistina, executado por Michelangelo, estamparia a
capa da mesma revista (ANEXO II, 16). Pouco mais de uma década depois, em 1962, quando na
Europa ainda abalada pela crise pós-guerra Paola Barocchi publicava a extraordinária reedição das

340
Não se trata aqui de uma oposição categórica, mas, ao contrario, de tomada de posições frente à mecanização e a
maquinização do mundo, horror que, conforme analisaram Löwy e Sayre, configuram características frequentemente
manifestadas pelos românticos do século XIX. De um lado, este horror se manifesta no interesse à organicidade da
natureza e a apreciação de suas pequenas imperfeições artesanais, de outro lado, que nos interessa mais de perto, o
horror ao mecânico é sinônimo de hostilidade ao artificial e interesse, por consequência, ao subjetivo e ao expressivo.
Para isso, cf. Op. cit. LÖWY & SAYRE, 2015, pp. 61-67.
341
Rebels and Martyrs. The Image of the Artist in the Nineteenth Century. Londres: The national Gallery, 2006.
Catálogo de exposição, p. 7.

120
Vite di Michelangelo342, de Vasari, cotejando suas duas edições, ela promovia uma importante
viragem nos estudos a respeito do mestre florentino. No ano anterior, nos Estados Unidos remexido
pela cultura pop, Irving Stone publicava “The Agony and the Ecstasy”, romanceando a vida de
Michelangelo e sua relação com Júlio II. O best-seller, em 1965, ganharia as telas do cinema.
Nunca, até então, Michelangelo havia incorporado semelhante physique du rôle, de robusta
virilidade, como eram conhecidos os “expressionistas abstratos” (Figuras 29; 30). Por outro lado,
sua obra, mais uma vez, sobrepunha-se a sua vida: um daqueles corpos talhados em músculos, que
levou a crítica afirmar que o artista esculpia mesmo quando pintava, era agora o seu.
Restabeleciam-se aí, ademais, diálogos incessantes: o artista que possui um contato corporal intenso
com a matéria, o interesse pelas dimensões monumentais, a rebeldia institucional, a vida entregue à
totalidade demandada pela obra, que é suporte para a transposição de toda a angústia da existência,
o artista rebelde, furioso e melancólico343. Assim, distante de modos, tempos e lugares,
Michelangelo estaria de alguma maneira, conservado como modelo de artista moderno, tal como a
França, ao longo do século XIX, nos ensinou como deveríamos compreendê-lo.

Figura 29 Figura 30

342
BAROCCHI, Paola. La Vita di Michelangelo nelle redazioni del 1550 e del 1568. Milano: Ricciardi, 1962. 5
volumes.
343
Para além destas relações transversais, Bambach demonstra que embora nunca tendo visto pessoalmente grande
número de obras de Michelangelo, o pintor norte-americano nutria especial interesse pelo mestre florentino. Quando
jovem, Pollock realizou alguns estudos anatômicos claramente inspirados em Michelangelo. Para isso cf. BAMBACH,
Carmen C. Pollock, “scolpire come Michelangelo”. In.: Jackson Pollock. La figura della furia. Ed. by Sergio Risaliti,
Florence, Palazzo Vecchio, 2014. Catálogo de exposição, pp. 92-95; BAMBACH, Carmen. Pollock’s Michelangelo.
In.: Apollo, vol. 178. May 2014, pp. 56-66.

121
Anexo I – Textos

* Foram excluídas todas as notas explicativas existentes na edição da qual foi extraído o texto de modo a privilegiar
unicamente o texto original.

Eugène Delacroix

1. Carta datada de 1830, endereçada a Charles Rivet, um dos mais frequentes destinatários do epistolário de Delacroix,
no qual ele demonstra seu entusiasmo na redação da biografia de Michelangelo, e revela seus interesses pela sua Itália
para sempre desconhecida.

A M. Charles Rivet.
(Publié par Burty, I, p. 124)
Paris, 16 mai 1830.

Heureux ami, qui voyez tous les jours peut-être avec indifférence toutes les belles
choses auxquelles je rêve depuis quinze ans, que vous êtes cruel de ne pas plus souvent
écrire quelque chose de tout cela ! Que votre lettre s’est fait attendere... Si cela ne vous
touche que médiocrement, qu’importe ? écrivez toujours ce que vous sentez. Si vous ne
peignez pas, écrivez. J'ai assez des impressions de toute la bande voyageuse et
écrivante qui me gâte l'Italie depuis que je m'occupe d'elle.Vous avez des impressions
toutes fraîches et dégagées de préjugés.
Croiriez-vous que j’allais vous écrire lorsque j’ai reçu votre lettre ? Oui, moi,
mettre la main à la plume, pour vos dire, quoi ? Que j’avais envie que vous m’écriviez,
mais vous le saviez bien. Moi, si peu écrivassiez que j’ai la cruauté de faire languir M.
Véron et le public, quoiqu’il m’a paru que le public ne peut plus attendre et qu’il
s’impatiente. Heureux momme ! j’écris sur Michel-Ange et vous le contemplez. Je
mentirai à ce même public entreprennent de l’occuper d’eux-mêmes bien plus que du
sujet qu’ils traitent. Est-ce que la plus simple description faite dans le jour de la plus
mauvaise humeur, mise en face des chefs-d’oeuvre eux-mêmes, ne serait pas pour les
gens doués de sensibilité à cent mille pieds au-dessus de tout mon pathos à froid ? Vous
frisez Rome en passant ; à peine allez-vouz écorcher Naples ; vous courez, vous volez.
Faites pour moi, pour votre compagnon de rêveries et d’ambitions folles, ce qu’on fait
entre amis au lycée : Soyons faisants ; gardez-moi un peu de ce que vous mangerez au
bon dîner que vous faites tandis que je mange mon pain à la fumée ! Tubleu ! si vous ne
revenez, suivant vos projets, qu’au mois d’octobre, vous avez encore plusieurs mois.
Mettez-moi donc quelquefois le soir en vous couchant, si les belles ne vous mettent pas
sur les dents, quelaues lignes de bonne ou de mauvaise humeur, sur ces merveilles que
vous parcourez trop vite. Pauvre garçon, qui courrez le plus beau pays de la terre en
compagnie d’Horace Vernet, qui vous fume au nez et qui vous assassine de ses froides
vanteries ! J’irai, moi, j’irai tout seul, comme un ours, comme un tigre s’il le faut.

122
J’aurai des griffes aux ennuyeux. Je m’ennuierai tout seul. Mais des bonnes occasions
comme celle dont vous me parlez, point. Je vivrai avec tous ces illustres morts.
Je patrie, traître, que sans ce bout de lettre vous ne m’écriviez pas. Vous attendiez
que vous réponde. Que puis-je vous apprendre ? Je mène l avie la plus monotone, vous
le savez. Votre lettre a été le plus grand événement du mois qui vient de s’écouler.
Pendant que Michel-Ange et raphaël poursuivent silencieusement leur carrière de vraie
gloire, lá-bas où vous êtes, ici c’est comme à l’ordinaire. D. E. triomphe dans son petit
cercle. A. est le plus grand peintre de l’époque, pour deux ou trois ans. B. est mieux que
Raphaël. H. fait oublier le Dante, qui se passe bien de vivre dans la réunion de ceux qui
admirent H. Que je voudrais m’admirer un peu moi-même au milieu de tout cela ! Mais,
le croiriez-vous ? je doute plus que jamais de mon infaillibilité, et pourtant je ne suis
pas découragé. Je viens de passer un ou deux mois pleins de tristesse et de noires idées.
A présent, c’est passé : je renais avec la verdure et je suis en train au travail. M.
Gérard, avec qui l’autre jour je parlais de tous ces côtés sombres de l avie, me dit que
ce qu’il y avait encore de préférable, c’était l’Enfer et l’atelier. Je trouve cela très-
juste...
Je vous embrasse bien vraiment et bien sincèrement.
Votre ami

Fonte: Correspondence générale d’Eugène Delacroix. Publié par André Joubin. Tome I. 1804-1837. Paris: Librairie
Plon, 1935. Pp. 225-258.*

2. A célebre missiva de Delacroix endereçada a seu irmão deve-se ao curto trecho, que evidentemente também nos

interessa imediatamente, no qual o pintor escreve de maneira tocante a respeito da execução de “A Liberdade Guiando o
Povo”, sua mais célebre pintura. É também nesta carta que se pode ter contato com uma personalidade mais afável do
pintor em seu meio familiar, marcado desde cedo pela ausência de sua mãe.

A Monsieur le general Delacroix,


rue du Faubourg-Saint-Étienne,
à Tours (Indre-et-Loire).
[Paris] 12 octobre 1830.

J’attendais toujours pour t’écrire comme une vraie bête que j’eusse quelque chose de
favorable à t’annoncer au sujet de tes demandes, bon et cher frère. Ta bonne lettre
m’avait fait un bien gran plaisir. Pour le spleen il s’en va, grâce a travail. J’ai
entrepris un sujet moderne, Une barricade... et si je n’ai pas vaincu pour la patrie, au
moins peindrai-je pour elle. Cela m’a remis en belle humeur. Mais voici autre chose.
Ton ami Leboullaye ne me donnait que des paroles en l’air. Impossible de pénétrer
jusqu’au général Genty St-Alphonse. Enfin voilà que ma belle s’est mis en tête de faire
réussir l’affaire et comme tu sais une femme passe partout. Elle a été ce matin chez
Leboullaye qui lui a dit que l’affaire marcherait. Mais voici la marche qu’il faut suivre.
Il y a un Mr Santa Croce qui occupe maintenant la place. Mais il paraît qu’il branle
dans le manche et pourra sauter. La chose dépend entièrement, ainsi que de te faire

123
porter pour la place, du Gal Corbineau ancien aide de camp de l’empereur qui
commande la division de Lille. Comme je crois que c’est un de tes anciens camarades,
Leboullaye ne doute pas qu’il ne fasse aussitôt ce qu’il faudra pour ton affaire. Écris-
lui donc sitôt la présente reçue et expose-lui de quoi il s’agit. Me Dalton de son côté
verra le Gén. Genty St-Alphonse auquel Leboullaye émoustillé pas l’influence du
cotillon s’est chargé de la présenter lui-même, et tu juges qu’elle appuiera chaudement
auprès de lui. J’espère que de la sorte ce sera en beau chemin.
Écris-moi un petit mot par la même occasion pour me parler de toi, de ta santé,
de ta femme que j’embrasse bien ici, entends-tu. Te voilà chargé de la comission.
Qu’il serait doux de revoir encore Monsieur le gouverneur. Mais cette fois avec
toute la jubilation de la prospérité, tout prêt à aller gouverner en vrai père ses chers
administrés. A la manière dont vont les choses en Belgique, il n’y aurait rien
d’impossible à ce qu’il y ait à en découdre par là. Appuie ferme auprès du Corbineau.
Adieu donc, je t’embrasse comme je t’aime, c’est-à-dire plus fort que je n’ai de
force. Nos amis te regrettent bien. Le rocher petit et grand et la joie qui y régnait sont
dans nos souvenirs. Quand pourrons-nous retrouver de pareils moments.
Adieu, adieu.
Ton frére,
Eug. Delacroix.

Fonte: DELACROIX, Eugène. Lettres intimes. Paris: Gallimard, 1954. Pp. 190-192*.

3. Nota do Journal datada de 1853, na qual Delacroix relata como compreendeu a partir da ideia de non-finito, a obra

de Michelangelo como um todo.

Lundi 9 mai. [1853]— J'ai été le lendemain, vers dix ou onze heures, me promener vers
les coupes nouvelles qu'on a faites le long des murs des propriétés de Quantinet et de
Minoret, etc. Matinée délicieuse. Arrivé au chêne d'Antain que je ne reconnaissais pas,
tant il m'a paru petit ; fait de nouvelles réflexions, que j'ai consignées sur mon calepin,
analogues à celles que j'ai écrites ici, sur l'effet que produisent les choses inachevées :
esquisses, ébauches, etc. Je trouve la même impression dans la disproportion. Les
artistes parfaits étonnent moins à cause de la perfection même ; ils n'ont aucun
disparate qui fasse sentir combien le tout est parfait et proportionné. En m' approchant,
au contraire, de cet arbre magnifique, et placé sous ses immenses rameaux,
n'apercevant que des parties sans leur rapport avec 1 ensemble, j'ai été frappé de cette
grandeur... J'ai été conduit à inférer qu'une partie de l'effet que produisent les statues
de Michel-Ange est dû à certaines disproportions ou parties inachevées qui augmentent
l'importance des parties complètes. Il me semble, si on peut juger de ses peintures par
des gravures, qu'elles ne présentent pas ce défaut au même degré. Je me suis dit souvent
qu'il était, quoi qu'il pût croire lui-même, plus peintre que sculpteur. Il ne procède pas,
dans sa sculpture, comme les anciens, c'est-à-dire par les masses ; il semble toujours
qu'il a tracé un contour idéal qu'il s'est appliqué à remplir, comme le fait un peintre. On
dirait que sa figure ou son groupe ne se présente à lui que sous une face: c'est le

124
peintre. De là, quand il faut changer d aspect comme l'exige la sculpture, des membres
tordus, des plans manquant de justesse, enfin tout ce qu'on ne voit pas dans l'Antique.
— Les soirs, je me promène avec Jenny; je dîne de bonne heure et suis bien forcé de me
coucher de même: cela fait la nuit trop longue. Plus je dors, moins je veux me lever le
matiu... Toujours triste dans ce moment-là... Il faut le travail pour secouer cette
mauvaise disposition, qui est purement physique.

Sans date (Extrait d'un album de dessins) – Je suis à Champrosay depuis samedi. — Je
fais ce matin une promenade dans la forêt, en attendant que ma chambre soit en état
pour me remettre au fameux Poussin. — En apercevant de loin le chêne d'Antain que je
ne reconnaissais pas d'abord, taut je le trouve ordinaire, mon esprit s'est reporté sur
une note de mon cahier d tous les jours que j'ai écrite, il y a quinze jours environ, sur 1
effet de l'ébauche par rapport à l'ouvrage fini. J'y dis que l'ébauche d'un tableau, d'un
monument, qu'une ruine, enfin que tout ouvrage d'imagination auquel il manque des
parties, doit agir davantage sur l'âme, à raison de ce que celle-ci y ajoute, tout en
recueillant l'impression de cet objet. J'ajoute que les ouvrages parfaits, comme ceux
d'un Racine et d'un Mozart, ne font pas, au premier abord, autant d'effet que ceux des
génies incorrects ou négligés, dont les parties saillantes le sont d'autant plus qu'il y en a
d'autres à côté qui sont effacées ou complètement mauvaises. En présence de ce bel
arbre si bien proportionné, je trouve une nouvelle confirmation de ces idées. A la
distance nécessaire pour en embrasser toutes les parties, il paraît d'une grandeur
ordinaire; si je me place au-dessous de ses branches, l'impression change
complètement: n'apercevant que le tronc auquel je touche presque et la naissance de
ses grosses branches, qui s'étendent sur ma tête comme d'immenses bras de ce géant de
la forêt, je suis étonné de la grandeur de ses détails ; en un mot, je le trouve grand, et
même effrayant de grandeur. La disproportion serait-elle une condition pour
l'admiration? Si, d'une part, Mozart, Cimarosa, Racine étonnent moins, à cause de
l'admirable proportion de leurs ouvrages, Shakespeare, Michel-Ange, Beethoven ne
devront-ils pas une partie de leur effet à une cause opposée? Je le crois pour mon
compte. L'antique ne surprend jamais, ne montre jamais le côté gigantesque et outré ;
on se trouve comme de plain-pied avec ces admirables créations; la réflexion seule les
grandit et les place à leur incomparable élévation. Michel-Ange étonne et porte dans
l'âme un sentiment de trouble qui est une manière d'admiration, mais on ne tarde pas à
s'apercevoir de disparates choquants, qui sont le fruit d'un travail trop hâté, soit à
cause de la fougue avec laquelle l'artiste a entrepris son ouvrage, soit à cause de la
fatigue qui a dû le saisir à la fin d'un travail impossible à compléter; cette dernière
cause est évidente. Quand les historiens ne nous diraient pas qu'il se dégoûtait presque
toujours en finissant, par l'impossibilité de rendre ses sublimes idées, on voit
clairement, à des parties laissées à l'état débauche, à des pieds enfoncés dans le socle et
où la matière manque, que le vice de l'ouvrage vient plutôt de la manière de concevoir
et d'exécuter que de l'exigence extraordinaire d'un génie fait pour atteindre plus haut, et
qui s'arrête sans se contenter. Il est plus que probable que sa conception était vague, et
qu'il comptait trop sur l'inspiration du moment pour les développements de sa pensée, et
s'il s'est souvent arrêté avec découragement, c'est qu'effectivement il ne pouvait faire
davantage.

Fonte: DELACROIX, Eugène. Journal. Tomo II. 1850-1854: Paris: Librarie Plon,1893. Pp. 185-189.*

125
Charles Baudelaire

4. Este ensaio foi originalmente publicado na Revue fantaisie em 15 de setembro de 1861, quando da descoberta dos
trabalhos de Delacroix nos murais da Chapelle des Saints-Anges, na Igreja de Saint-Sulpice. Esta crítica reverte a
impressão que Delacroix teria no fim de sua vida, isto é, a de que a crítica era austera ao seu trabalho, mas, por outro
lado, reafirma o lugar que o pintor havia conquistado no panteão artístico de Baudelaire, confirmado pelo seu célebre
ensaio póstumo.

PEINTURES MURALES
D’EUGÈNE DELACROIX
A SAINT-SULPICE

Le sujet de la peinture qui couvre la face gauche de la chapelle décorée par M.


Delacroix est contenu dans ces versets de la Genèse :
« Après avoir fait passer tout ce qui était à lui,
« Il demeura seul en ce lieu-là. Et il parut en même temps un homme qui lutta
contre lui jusqu’au matin.
« Cet homme, voyant qu’il ne pouvait le surmonter, lui toucha le nerf de la cuisse,
qui se sécha aussitôt ;
« Et il lui dit : Laissez-moi aller ; car l’aurore commence déjà à paraître. Jacob
lui répondit : Je ne vous laisserai point aller que vous ne m’ayez béni.
« Cet homme lui demanda : Comment vous appelez-vous ? Il lui répondit : je
m’appelle Jacob.
« Et le même ajouta : On ne vous nommera plus à l’avenir Jacob, mais Israël :
car, si vous avez été fort contre Dieu, combien le serez-vous davantage contre les
hommes ?
« Jacob lui fit ensuite cette demande : Dites-moi, je vous prie, comment vous vous
appelez ? Il lui répondit : Pourquoi me demandez-vous mon nom ? Et il le bénit en ce
même lieu.
« Jacob donna le nom de Phanuel à ce lieu-là, en disant : J’ai vu Dieu face à face
et mon âme a été sauvée.
« Aussitôt qu’il eut passé ce lieu qu’il venait de nommer Phanuel, il vit le soleil qui
se levait ; mais il se trouva boiteux d’une jambe.
« C’est pour cette raison que, jusqu’aujourd’hui, les enfants d’Israël ne mangent
point du nerf des bêtes, se souvenant de celui qui fut touché en la cuisse de Jacob et qui
demeura sans mouvement. »
De cette bizarre légende, que beaucoup de gens interprètent catégoriquement, et
que ceux de la Kabbale et de la nouvelle Jérusalem traduisent sans doute dans des sens
différents, Delacroix, s’attachant au sens matériel, comme il devait faire, a tiré tout le
parti qu’un peintre de son tempérament en pouvait tirer. La scène est au gué de Jacob ;
les lueurs riantes et dorées du matin traversent la plus riche et la plus robuste
végétation qui se puisse imaginer, une végétation qu’on pourrait appeler patriarcale. À
gauche, un ruisseau limpide s’échappe en cascades ; à droite, dans le fond, s’éloignent
les derniers rangs de la caravane qui conduit vers Ésaü les riches présents de Jacob :
« deux cents chèvres, vingt boucs, deux cents brebis et vingt béliers, trente femelles de

126
chameaux avec leurs petits, quarante vaches, vingt taureaux, vingt ânesses et vingt
ânons. » Au premier plan, gisent, sur le terrain, les vêtements et les armes dont Jacob
s’est débarrassé pour lutter corps à corps avec l’homme mystérieux envoyé par le
Seigneur. L’homme naturel et l’homme surnaturel luttent chacun selon sa nature, Jacob
incliné en avant comme un bélier et bandant toute sa musculature, l’ange se prêtant
complaisamment au combat, calme, doux, comme un être qui peut vaincre sans effort
des muscles et ne permettant pas à la colère d’altérer la forme divine de ses membres.
Le plafond est occupé par une peinture de forme circulaire représentant Lucifer
terrassé sous les pieds de l’archange Michel. C’est là un de ces sujets légendaires
qu’on trouve répercutés dans plusieurs religions et qui occupent une place même dans
la mémoire des enfants, bien qu’il soit difficile d’en suivre les traces positives dans les
saintes Écritures. Je ne me souviens, pour le présent, que d’un verset d’Isaïe, qui
toutefois n’attribue pas clairement au nom de Lucifer le sens légendaire ; d’un verset de
saint Jude, où il est simplement question d’une contestation que l’archange Michel eut
avec le Diable touchant le corps de Moïse, et enfin de l’unique et célèbre verset 7 du
chapitre XII de l’Apocalypse. Quoi qu’il en soit, la légende est indestructiblement
établie ; elle a fourni à Milton l’une de ses plus épiques descriptions ; elle s’étale dans
tous les musées, célébrée par les plus illustres pinceaux. Ici, elle se présente avec une
magnificence des plus dramatiques ; mais la lumière frisante, dégorgée par la fenêtre
qui occupe la partie haute du mur extérieur, impose au spectateur un effort pénible
pour en jouir convenablement.
Le mur de droite présente la célèbre histoire d’Héliodore chassé du Temple par les
Anges, alors qu’il vint pour forcer la trésorerie. Tout le peuple était en prières ; les
femmes se lamentaient ; chacun croyait que tout était perdu et que le trésor sacré allait
être violé par le ministre de Séleucus.
« L’esprit de Dieu tout-puissant se fit voir alors par des marques bien sensibles, en
sorte que tous ceux qui avaient osé obéir à Héliodore, étant renversés par une vertu
divine, furent tout d’un coup frappés d’une frayeur qui les mit tout hors d’eux-mêmes.
« Car ils virent paraître un cheval, sur lequel était monté un homme terrible,
habillé magnifiquement, et qui, fondant avec impétuosité sur Héliodore, le frappa en lui
donnant plusieurs coups de pied de devant ; et celui qui était monté dessus semblait
avoir des armes d’or.
« Deux autres jeunes hommes parurent en même temps, pleins de force et de
beauté, brillants de gloire et richement vêtus, qui, se tenant aux deux côtés d’Héliodore,
le fouettaient chacun de son côté et le frappaient sans relâche. »
Dans un temple magnifique, d’architecture polychrome, sur les premières marches
de l’escalier conduisant à la trésorerie, Héliodore est renversé sous un cheval qui
le maintient de son sabot divin pour le livrer plus commodément aux verges des deux
Anges ; ceux-ci le fouettent avec vigueur, mais aussi avec l’opiniâtre tranquillité qui
convient à des êtres investis d’une puissance céleste. Le cavalier, qui est vraiment d’une
beauté angélique, garde dans son attitude toute la solennité et tout le calme des Cieux.
Du haut de la rampe, à un étage supérieur, plusieurs personnages contemplent avec
horreur et ravissement le travail des divins bourreaux.

Fonte: BAUDELAIRE, Charles. Oeuvres complètes de Charles Baudelaire. L’Art Romantique (II). Paris: Michel Lévy
Frères, 1869. Pp. 45-49.

127
Jean-Baptiste Carpeaux

5. Trata-se da transcrição do rascunho de carta no dorso do desenho RF4212 (Orsay-Louvre), que apresenta um estudo
de figura do Juízo Final, realizado, com grande probabilidade, durante o séjour romano de Carpeaux. Seguinte ao
rascunho de carta apresenta-se o que mais nos interessa aqui: o esboço de poema no qual o artista mimetiza o estilo
lírico de Michelangelo, realizando aqui, um duplo modelar a partir da obra de seu grande mestre, não a partir do
binômio pintura-escultura, atualizando o célebre paragone quinhentista, ou, como ainda mais conhecido, escultura-
poesia, mas sim, pintura-poesia.

Je suis redevenu Religieux


Grâce à vous, ó mon Dieu,
Car j’étais si malheureux
Que je vivais fort peu.
Rejuis-toi, mon âme,
Tu reprends une nouvelle flamme,
Tes ardeurs iront jusqu’au ciel.

A vous, ma chère et bonne Mère,


Ainsi qu’à mon Père, vous fixez mon regard
Rêveur. Et... um ciel brumeux
Je considérais les acreaux poudreux
De la chapelle de l’église Saint-Médard
Enforcés dans les masures de la rue Mouffetard.
C’étais un dimanche de février,
Je voyais entrer le riche et l’ouvrier.
Les portes d’entrée, en s’ouvrant alternativement,
Me laissaient etendre l’orgue attentivement.
Un frisson me saisit sans effort ;
Ma vue se troubla...

Fonte: GUIFFREY, J. & MARCEL, P. Inventaire général des dessins du Musée du Louvre et du Musée de Versailles :
École française, vol 3. Paris. 1909. Pp. 31.

128
Imagem do manuscrito de número de inventário RF4212, do desenho pertencente ao acervo do Musée D’Orsay,
conservado na reserva técnica do Musée du Louvre.

129
Auguste Rodin

6. Este é o único documento de que se tem notícia, escrito por Rodin durante sua viagem a Itália. Trata-se da carta que
o jovem artista envia a sua companheira Rose Beuret, então em Bruxelas, cidade onde viviam juntos à época,
notificando-a de sua viagem até Florença, destino mais aguardado, onde admira a obra de Michelangelo.

À Rose Beuret
Bruxelles

[Rome, début mars (?) 1876]

M [...]

il faut que je te confie que j’ai un saucisson de Pontarlier qui commence à me gêner, je
pensais qu’il était impossible de manger en Italie et je l’avais comme ressource
suprême je mange bien et bois pas mal à ta santé ! (je viens de me verser un verre) j’ai
une bouteille qui ressemble assez à ces Mari Jeanne, je me la suis fais mettre dans ma
chambre ; comme cela je me donne force pour le dur métier que je fais. Car je te dirai
que je ne mange pas toujours regulierement, que je traite mon ventre que lorsque il n’y
a plus rien a voir il est comme ma montre, j’oublie quelque fois q’elle ne va plus. ou
bien elle est en difference de deux heures avec les horloges de la ville, et je ne
comprends pas que les musées n’ouvrent pas à l’heure.
Je crois que j’ai entreine la Belgique avec moi, car j’ai trouve de la neige en
route et ici de la pluie ; j’espère pourtant que lorsque je serai parti, il fera beau comme
d’habitude d’après ce que disent les gens du pays.
Je rencontre tout partout des touristes presque tous français quelques anglais. je
voyage comme chez moi jusqu’a présent mangeant dormant au prix que je veux, et puis
je deviens comme tout voyager un peu hardi on s’en trouve bien. Les hommes ma chère
rosette sont de beaus garcons bruns moustache noir. Veux-tu que je dise quelque chose
des Beaux Arts (A ce propos soigne bien ma figure mais qu’elle n soit pas trop muillé
j’aime mieux qu’elle soit un peu ferme. prend y bien garde et n’y laisse pas toucher seul
le petit balourdeau Paul) D’abord le voyage.
Je te dirai donc que Dinant est pittoresque Reims sa cathédralle d’une beauté que
je n’ai pas encore rencontrée en italie, ton pays est tres beau a Pontarlier patrie de mon
saucisson il y avait 2 pieds de neige et les alpes à Lausanne admirables charmantes
jusqu’a Genève belle ville. le chemin de fer entre en Savoie pays pauvre ou les fameux
chalets sont autour de Paris. là il n’y a que les montagnes qui deviennent horribles
jusqu’a St Jean de Maurienne dans ces epouvantables murailles l’espece humaine s’y
cretinise Cependent le chemin de fer change d’employés on passe a la douane et dans
cette vallee desolée on trouve encore un buffet le train repart il d’une maniére hesitante
a droite a gauche enfin il prend son parti et gravi lentement une pente assez raide je
suis à la portiere comme toujours je m’appercois alors pourquoi mon chemin de fer a
peur c’est que nous sommes sur une altitude de 1200 mètres. Nouvelle hésitation
signaux, repart, arret puis entrée dans le tunnel qui pareil a un trou de taupe transperce
le Cenis. nous en sortons cependant mais pour en traverser une centaine d’autres plus

130
petits par exemple... J’arrête j’écoute un beau trio de voix les arts en italie se sont
réfugiés dans la musique.
je reprends, le versant vers l’Italie et on ne plus beau, c’est plus humain et aussi
grandiose que la savoie. Turin de la pluie, toute les places ont de la sculpture
contemporaine très laid y compris le Marochetti [...] remettant son sabre Gênes j’y
mange des artichauts petits pois, etc. très jolies femmes rosette, Puget plus près de
Michel-Ange pour le détail mais moins Puget que d’habitude. le chemin de fer va me
porter a Pise plus de cent tunnels, tous petits, c’est la même chose que dans les alpes,
ce sont des contre forts de montagnes sur le bord de la mer. Pise. Je parlerai une autre
fois des objets d’art de Pise à florence beau temps, le paradis terrestre avec des
montagnes vertes viollettes bleues. Florence temps brumeux et un petit peu de pluie
depuis six jours. Tout ce que j’ai vu de photographies de plâtre, ne donne aucune idée
de la sacristie de St Laurent il faut voir ces tombeaux de profils, de trois quarts. j’ai
passé cinq jours a florence ce n’est qu’aujourd’hui que j’ai vu la sacristie eh bien
pendant cinq jours j’ai été froid. Voila trois impressions durables que j’ai recu Reims
les Murailles des alpes et la Sacristie devant on analyse pas la prémière fois que l’on
voi Te dire que je fais depuis la première heure que je suis à florence, une etude de
Michel Ange ne t’etonnera pas, et je crois que ce grand magicien me laisse un peu de
ses secrets. Cependant aucun de ses eleves, ni de ses maîtres, ne font comme lui Ce que
je ne comprends pas, car je cherche dans ses éleves directs, mais ce n’est que dans lui,
lui seul, où est le secret. j’ai fait des croquis le soir chez moi, non pas d’après ses
oeuvres mais d’après tous les echafaudages les systèmes que je fabrique dans mon
imagination pour le comprendre, eh bien je réussi selon moi à leur donner l’allure ce
quelque chose sans nom que lui seul sait donner je pars donc pour Rome naples je
repasse a florence un jour Venise et suis à Paris dans quinze jours j’y resterai 2 jours
fais la petite papelot pour Auguste pour ce temps là il doit être fait maintenant déjà
ainsi donc je te recomande ma figure et souhaite le bonjour à Joseph et à sa
Dame ainsi qu’à nos voisins.
Auguste Rodin

C’est dommage que Joseph n’est pas venu on vit à bon marché 5f. par jour tout compris
excepté les musées ne dépense pas plus que je t’ai donné à moins de circonstance
impossible à deviner
Ne mouille pas trop la figure regarde bien je suis a Rome depuis deux jours ecris de
suite en recevant Via Victoria hotel de Leone.

Fonte: Correspondence de Rodin – Vol I – 1860-1899 (13). Textes classes et annotés par Alain Bouire et Hélène Pinet.
Paris: Éditions du Musée Rodin, 1985. Pp. 33-34.*

131
Disponível em: http://www.musee-rodin.fr/fr/collections/archives/lettre-dauguste-rodin-rose-beuret – Consultado em:
01/09/2015

132
II. Imagens

Figura 0 – Gravura a partir de pintura de Robert Fleury exposta no Salon de 1841, segundo o catálogo.

133
Figura 1 – Torso de Belvedere. Museu Pio Clementino. Vaticano, Roma.

Figura 2 – Autor desconhecido. Retrato de Michelangelo e Giulio Romano. Segunda metade do séc. XVI. Harvard
Museum, Massachusets.

134
Figura 3 – MICHELANGELO Buonarroti. Juízo Final. 1537. Capela Sistina, Vaticano, Roma.

135
Figura 4 – Plano da decoração do teto da Biblioteca do Palais du Congrès.

136
Figura 5 – DELACROIX, Eugène. “A Barca de Dante” ou “Dante e Virgílio no Inferno”. 1822. Óleo sobre tela. Museu
do Louvre, Paris.

137
- As fotografias apresentadas a seguir correspondem à rotunda lateral à Capela de Louanges na qual estão concentradas
as moldagens em gesso das obras de Michelangelo. Todas estas imagens foram fotografadas pelo autor.

Figura 6.1

138
Figura 6.2

Figura 6.3

139
- Todas as imagens a seguir ( de sub-numeração 7) compõem o álbum “Dessins de J.-B. Carpeaux offerts à l’École des
Beaux Arts par le Prince Georges Stirbey – 1881”. Tais imagens não são acompanhadas pela indicação de dimensões,
técnica, data ou proveniência anterior. Por isso, as imagens selecionadas foram apresentadas respeitando a ordem em
que aparecem no álbum. Todas estas imagens foram fotografadas pelo autor, após autorização concedida pela Mme.
Brugerolles, conservadora de Desenhos da ENSBA, Paris.

Figura 7.1

140
Figura 7.2

Figura 7.3 Figura 7.4

141
Figura 7.4

142
Figura 8 – DURAN, Carolus. O Convalescente. Circa 1860. Óleo sobre tela. Musée d’Orsay, Paris.

Figura 9 – DELACROIX, Eugène. Tasso no asilo dos loucos. 1839. Óleo sobre tela. Oskar Reinhart Foundation,
Winterthur.

143
Figura 10 – DELACROIX, Eugène. A morte de Sardanapalo. 1827. Óleo sobre tela. Museu do Louvre, Paris.

Figura 10* - Detalhes

144
Figura 11.2 – ZOCCHI, Cesare. Michelangelo menino esculpindo a cabeça do fauno. Séc. XIX. Mármore. Casa
Buonarroti, Florença

Figura 11.1 – A morte de Carpeaux. Le monde Illustré, 23 octubre 1875. Bibliothèque nationale de France, Paris.

145
Figura 12 – RODIN, Auguste. A idade do bronze. 1876. Bronze. Musée Rodin, Paris.

Figura 13 – RODIN, Auguste. Porta do Inferno. 1917. Bronze. Musée Rodin, Paris.

146
Figura 14 – RODIN, Auguste. O Pensador. 1902-1903. Bronze. Musée Rodin, Paris.

Figura 15 – Revista Life. 1948. “Ele é o maior pintor vivo dos Estados Unidos?

147
Figura 16 – Revista Life. 1949.

148
Bibliografia

Abreviaturas adotadas:

GBA – Gazette des Beaux-Arts


RA – Revue des Arts
RP – Revue de Paris
RDM – Revue de Deux-Mondes
TAB – The Art Bulletin

Todo o conteúdo bibliográfico que segue abaixo não possui qualquer pretensão totalizante e
atualizadora no que se refere à produção intelectual relativa aos estudos sobre Michelangelo,
tampouco pretende listar toda a produção escrita oitocentista sobre o artista. Ela reflete tão somente
os títulos utilizados ao longo da pesquisa.

As edições utilizadas das biografias de Michelangelo foram:

1553 – A. CONDIVI. Vida de Miguel Ángel Buonarroti. Traducción e notas de David García
López. Madrid: Ediciones Akal S. A., 2007.
1568 – G. VASARI. Vida de Michelangelo Buonarroti.Tradução, introdução e comentários de Luiz
Marques. Campinas: Editora da Unicamp, 2012.

I – EDIÇÕES DAS VIDAS DE MICHELANGELO (ATÉ O SÉCULO XVIII)

1553 - A. CONDIVI, Vita di Michelagnolo Buonarroti raccolta per Ascanio Condivi de la Ripa
Transone. In Roma appresso Antonio Blado Stampatore Camerale nel M.D. LIII. Vide 1746, 1823,
1887 e trad. ingl, 1976. Ed. G. Nencioni, com Introdução de M. Hirst e ensaioz de C. Elam e G.
Nencioni, Florença: S.P.E.S., 1998.

1568 – Delle Vite de’ più eccellenti pittori scultori et architetti, scritte da M. Giorgio Vasari... di
nuovo dal Medesimo riviste et ampliate, con I Ritratti loro, et con l’aggiunta delle Vite de’ Vivi et
de’Morti, dall’anno 1550, infino al 1567.Con tavole copiosissime De’ nomi, Dell’opere, E de’
luoghi ou’elle sono. In Fiorenza appresso i Giunti. (Sobre esta edição Giuntina baseiam-se todas as
demais).

1746 - A. CONDIVI, Vita di Michelagnolo Buonarroti pittore scultore architetto e gentiluomo


fiorentino pubblicata mentre viveva dal suo scolare Ascanio Condivi. cf. 1553, 2ª ed. aos cuidados
de A. F. Gori, Florença.

1759-1760 – Vite de'più eccellenti pittori, scultori e architetti, scritte da Giorgio Vasari... corrette da
molti errori e illustrate con note di Giovanni Gaetano Bottari, Roma: N. e M. Pagliarini, 3 volumes.

149
II – FONTES (SÉCULOS XV AO XIX)

1546 – B. VARCHI, Lezione di B.V. sopra il sottoscritto sonetto di Michelagnolo Buonarroti, fatta
da lui publicamente nella Accademia Fiorentina la seconda domenica della quaresima l'anno
M.D.XLVI. Florença: Giunti, 1590. Ed. C. Guasti, Le Rime di Michelangelo Buonarroti, cf. 1863 e
ed. P. Barocchi, Trattati d’Arte del Cinquecento. Bari, 1960, cf. 1549.

1549 – B. VARCHI, Due lezioni di M. Benedetto Varchi, nella prima delle quali si dichiara un
sonetto di M. Michelangelo Buonarroti; nella seconda si disputa quale sia piú nobile arte, la
scultura o la pittura, con una lettera d'esso Michelangelo e piú altre eccellentiss. pittori e scultori
sopra la quistione sopradetta. Florença: Torrentino. ed. P. Barocchi, Trattati d'arte del Cinquecento
vol. 1, Bari: Laterza, 1960, 337 e seg.; P. Barocchi, Scritti d'arte del Cinquecento, Milão-Nápoles:
Riccardo Ricciardi e Turim: Einaudi, 1971, vol. I, 133-151.

1623 - M. BUONARROTI, il Giovane (ed.). Rime di Michelagnolo Buonarroti, Raccolte da


Michelagnolo suo nipote. Florença: Giunti. Para as demais edições fundamentais, vide 1863
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em : Fusains et eaux-forts. – Paris : G. Charpentier. 1880.
- Le Jugement Dernier, de Michel-Ange. Copie exécutée par M. Sigalon. Revue des Artistes. Paris.
XI année. 1er volume. N20. 14 mai 1837.
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1870 – H. DELABORDE. Ingres, sa vie, ses travaux, sa doctrine ; d'après les notes manuscrites et
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1874 – T. GAUTIER. Histoire du Romantisme. Paris: G. Charpentier et Cie.

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1886 – A. WOLFF. La capitale des arts. Paris: Victor-Havard.

1890 – L. COURAJOD. Eugène Piot et les objets légués au Musée du Louvre. GBA. Tome 3.

1893 – E. DELACROIX. Journal. Texte établi par Paul Flat et René Piot: Paris. 3 vols.

1894 – G. PERROT. Monuments et mémoires de la Fundation Eugène Piot, Tome 1, fasc. 1.

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1920 - BAUDELAIRE, Charles. Journaux intimes – Fusées, Mon coeur mis à nu. Paris : Les
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- J.-P. SARTRE. O sequestrado de Veneza. São Paulo: Cosac Naify.
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- A. MARTIN-FURGIER. La vie d’artiste au XIXe siècle. Paris. Librairie Arthème Fayard, 2012.
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- L. MARQUES (org.), A Fábrica do Antigo. Ensaios de arte e literatura entre Roma e o mundo
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2013 – J. BURCKHARDT. O retrato na pintura italiana do Renascimento. Organização, tradução e


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2014 - Jean-Baptiste Carpeaux. Dossier de l’Art. Nº 220. Juillet-août.


- Jean-Baptiste Carpeaux (1827-1875). Un sculpteur pour l’Empire. Sous la direction de Édouard
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