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Antes de iniciar esse livro a vida tinha dado muitas voltas e legado aos
olhos imagens de pinturas das mais peculiares. A descoberta de pinturas
sobre o desconhecido ou pouco sabido sobre o Brasil indígena, do século
XVII, passou pela minha retina, ainda quando menina, para se fixar na
memória. Fui atraída por descobertas envolvendo artistas e seus trabalhos
de desenhos, de gravuras e de pinturas sobre a conquista de territórios de
povos indígenas da América e comecei a visitar museus e a comprar livros
com ilustrações e pinturas sobre as culturas indígenas da América, ainda
muito jovem. As primeiras visitas aos museus ocorreram durante os anos de
1970. Fui, ainda menina, levada por minha mãe a museus em Lisboa,
Berlim, Paris, em Amsterdam e em Haia. Aos 13 anos visitei com minha
irmã Betina o British Museum, em Londres, antes de poder voltar a viver no
Brasil, em 1979. A cultura material reunida, mesmo que de maneira
eurocêntrica, nesses museus ficaram na gaveta da memória das visitas.
Algumas repetidas nos mesmos museus para rever obras que me
inquietavam.
Agradeço ainda aos meus filhos, Olga e João Gabriel, que durante esse
período de estudos alegraram a minha caminhada e ajudaram com sua
juventude a deixar a vida mais leve e rica em sonhos. A eles eu dedico todo
o meu trabalho.
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Engenho Massaipe, Zacharias Wagner c. 1634-1639. Museu de Leipzig, Alemanha.
Introdução
O livro Indígenas na pintura de Frans Post revela um cruzamento de
áreas da pesquisa histórica de rico aporte de textos e de objetos de arte
incluindo pinturas com paisagens sobre a implantação do sistema colonial
português e holandês na América. Trata-se de uma leitura preocupada em
partilhar conhecimentos sobre documentos históricos, arte e pinturas, do
século XVII, produzidos por diferentes autores e seus círculos de poder.
As pinturas de Frans Post em foco neste livro nos fala sobre uma visão
eurocentrista da época reproduzida pelo artista em que cabia um mundo
exótico composto por relações entre indígenas, afrodescendentes e europeus
apresentadas em sua grande maioria como harmônicas e controladas pelos
equipamentos de repressão e defesa construídos no litoral das capitanias.
Para Frans Post, assim, como para Albert Eckhout e menos para
Zacharias Wagner, seus contemporâneos, a arte servia como uma
ferramenta de sobrevivência. Françoise Vergès (2023:174), defende que a
arte europeia setecentista apresenta pinturas nas quais os povos
escravizados são apenas o meio responsável pela produção da riqueza, do
conforto e de todo resultado final dos produtos. Concordando com a autora,
pensamos que o artista Frans Post atendia ao pensamento colonizador
europeu, no qual, os escravizados aparecem resignados ao sistema
escravista sem sinais de sofrimento nem de revolta.
Mercado de escravizados no Recife, pintura de Zacharias Wagner (1614–1668) datada entre
1637 a 1644
I. O Contexto Histórico
Sucedendo São Tomé e Príncipe como principal centro exportador de
açúcar, a franja costeira do Nordeste do Brasil pode ser considerada a região
a iniciar uma revolução açucareira nas Américas. Com as capitanias de
Pernambuco, de Itamaracá e da Paraíba, durante os séculos XVI e XVII, o
Nordeste brasileiro foi a base para a economia da produção e exportação
açucareira. Sendo esta a principal responsável pelo desenvolvimento do
comércio escravista em grande escala. (Klein, 1986: 43).
1 Um relatório foi escrito por Nassau em parceria com um membro do Alto Conselho, em 1637, logo
após a sua chegada. Mello, Evaldo Cabral de. O Brasil Holandês. São Paulo, Pinguin & Companhia
das Letras, 2010, p. 17.
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Istmo de Olinda, pintura de Peeter Gillis, 1637 – 1650.
A comitiva de Nassau foi cuidadosamente composta por humanistas,
arquitetos, cartógrafos, astrônomos, pintores, biólogos, geógrafos, médicos
e membros do Alto Conselho da WIC. Nassau, também foi acompanhado
por seu irmão João Ernesto e seu primo Carlos de Nassau. Todos com suas
funções orquestradas pelo novo governador holandês em terras brasileiras.
Entre os artistas que chegaram a Pernambuco estavam o paisagista Frans
Post e o retratista Albert Eckhout, aportados no ano de 1637. 2
2 Sobre a pintura de Frans Post leia-se o trabalho de Ernst van den Boogaart, A Well-Governed
Colony, Frans Post’s Illuations in Gaspar Barleus’s History of Dutch Brasil. The Rijksmuseum
Bulletins, Amsterdam, 2011. p. 237 a 271.
3 Usamos a ideia de região dada por Milton Santos :“ as regiões são um espaço de convivência ,
meros locais funcionais do todo, pois, dos lugares não há outra forma para a existência do todo
social que não seja a forma regional. A energia que preside essa realização é a das divisões do
trabalho sucessivamente instaladas, impondo sucessivas mudanças na forma e no conteúdo das
regiões” (Santos, 1996:96-98).
4 Na Itália, Leonardo da Vinci desenha uma paisagem sobre o rio Arno datada de 1473. Tido como
seu primeiro desenho com paisagem, o rio Arno representa o tema central da imagem envolvendo
povoação e campos. Neste trabalho e nos desenhos sobre o plano de transposição do rio Arno
produzidos também por Leonardo da Vinci, entre 1503-1504, desaparecem os temas religiosos
encomendados a pintores e artistas do seu tempo e surgem novos interesses técnicos para dominar.
Retrato de Frans Post pintado por Frans Hals entre 650 e 1660. Worcester Art Museum,
Massachusetts.
II. Frans Post
Frans Post (1612-1680) era um desconhecido pintor na Holanda, antes da
sua vinda ao Brasil, em 1637. Um primeiro esboço biográfico sobre ele foi
escrito por Arnold Houbraken5, quase 50 anos após sua morte6. Nenhum
catálogo de arte o cita o período em que viveu na Holanda, antes da sua
vinda ao Brasil. Seu nome e seu ofício como artista e algumas gravuras
sobre o Brasil ficaram gravadas no livro de Barleus (1980). Um livro com
publicação sobre os feitos do Conde Maurício de Nassau no Brasil
holandês, durante o seu governo com início no ano de 1637 e fim no ano de
1643. Com base nessas gravuras usadas no livro de Barleus, são atribuídos
a Frans Post os desenhos publicados, após o final do governo de Nassau, no
mapa Brasilia Qua Parte Paret Belgis (1647).
Nascido em 1612, na cidade de Haarlem, na Holanda, seus pais foram
Jan Janszoon Post, um pintor de vidros, e Francyntie Peters. Ao que tudo
indica seu irmão, o arquiteto e pintor Pieter Post (1608-1669), deve ter sido
seu apoiador e possível mestre. Frans e Pieter Post integraram a comitiva de
Maurício de Nassau ao Brasil em 1637. Pieter trabalhou como arquiteto e
colaborador de obras com Jacob van Campen - o construtor da Mauritshuis,
o palácio de Maurício de Nassau, em Haia. Sobre Frans Post e sua obra,
temos conhecimento apenas de parte dos trabalhos realizados após a sua
vinda ao Brasil, em 1637. Sua chegada à capitania de Pernambuco se deve
certamente ao seu conhecimento sobre desenhos e pinturas de paisagens,
ofício que passou a desenvolver sob encomenda do governador-geral do
Brasil holandês Maurício de Nassau. 7
A obra de Frans Post estudada por Pedro e Bia Corrêa do Lago está
dividida em quatro fases, a primeira de 1637-1644, a segunda de 1645-
1660, a terceira de 1661-1669 e a quarta fase de 1670-1680.8
Certamente, deve ter existido uma fase anterior à da pintura de Frans Post
sobre o Brasil holandês. Na biografia de Frans Post escrita por Joaquim de
Souza Leão ele o descreve através do quadro de Hals como: “um quarentão
de espessa face bonachona e cabeleira hirsuta, o olhar penetrante e bem
humorado, sob o negro feltro de copa afunilada. Pelo esmero no trajar – a
mão enluvada denotando trato social e boas maneiras – diríamos um bom
burguês endinheirado. Mas as sobrancelhas arqueadas, os olhos bem
separados, de quem sabe ver, explicam o artista delicado e minucioso que
na obra revelou-se. Se é pouco o que se sabe do seu curriculum vitae, resta-
nos, por sorte, a imagem física e psicológica do homem, captada pelo
mágico retratista da Holanda social.” 9 Muitos autores dedicaram estudos
sobre a obra de Frans Post, além dos autores já citados. Erik Larsen e José
Teixeira Leite são mais alguns deles.10
6 Horn, Hendrik J. The Golden Age Revisited: Arnold Houbraken’s Great Theatre of
Netherlandish Painters and Paintresses, 2 vols. Doornspijk: Dovaco Publishers, 2000.
7 Para saber mais sobre a vida e obra de Frans Post leia-se de Lago, Pedro e Bia Corrêa
do. Frans Post (1612-1680) Obra Completa. Rio de Janeiro, Capivara, 2009.
8 Op. citada.
9 Souza-Leao, Filho. Joaquim. Frans Post. São Paulo: Civilização Brasileira, 1948.
“Description des tableaux que le Prince Maurice de Nassau a offerts au Roi Louis XIV”, p.
94-98.
10 Larsen, Erik. Frans Post, interprète du Brésil. Amsterdam & Rio de Janeiro: Colibris
Editora, 1962. E Leite, José Roberto Teixeira. A pintura no Brasil Holandês (1967), citado
por Roberto Pontual, in Dicionário das artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1969.
13 Análises sobre a pintura de Frans Post podem ser encontradas em Belluzzo, Ana Maria
Gonçalves. O Brasil dos viajantes. São Paulo, Metalivros, 1999 e em Herkenhoff, Paulo, org. O
Brasil e os holandeses. 1630-1654. Rio de Janeiro, GMT Ed., 1999.
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Vista da Ilha de Itamaracá. Post, 1637. Pintura feita a partir do porto Pernambuco Velho
Coleção Mauritshuis, Haia.
Acreditamos que outras obras devem compor essa relação ainda sob
pesquisa.
Post foi um pintor que manteve um bom trabalho na sua segunda fase de
pinturas realizadas entre os seus 33 e 48 anos de idade. Nesse período,
foram identificados 40 quadros que nunca repetem a mesma composição
naturalista de telas com caráter informativo.
O mapa Brasilia qua parte paret Belgis, com ilustrações de Frans Post
convida o olhar para conhecer paisagens do litoral e do sertão dos territórios
nordeste do Brasil incluindo espaços afro-indígenas, como o quilombo de
Palmares registrado como Tapera de Angola, inseridos a serem
conquistados. 21
20 https://bndigital.bn.br/artigos/perfecte-caerte-der-gelegentheyt-van-olinda-de-pharnambuco-
maurits-stadt-ende-treciffo/
21 Sobre a presença de espaços afro-indígenas no mapa de Marcgraf leia em Barbosa, Bartira Ferraz,
Ruiz-Peinado Alonso, José Luis, Piqueras, Ricardo e Allen, Scott Joseph. Afroindigenous Spaces on
the Map Brasilia qua parte paret Belgis. Barcelona, Vanguard Gràfic, Editora Universitária UFPE e
Universidade de Barcelona, 2013.
Cena de grupo de nativos tapuya, habitantes dos sertões de Pernambuco ou do nordeste do
Brasil criada por Frans Post ilustra o mapa Brasilia qua parte paret Belgis editado na Holanda,
em 1647, por Jean Bleau publicado por Barbosa, B. F.,Ruiz-Peinado, J. L., Piqueras, R., Allen,
J. S. in Afroindigenous Spaces on the Map Brasilia Qua Parte Paret Belgis: Barcelona,
Vanguard Gràfic, 2013.
Ilustrações preparadas por Frans Post para composições das vinhetas com
paisagens, como a referida acima, foram adaptadas para a obra de Barleus.22
Tudo indica que em Barleus elas foram publicadas para melhor ilustrar a
paisagem onde ocorreram as passagens históricas recolhidas e escritas para
o livro História dos feitos recentes praticados durante oito anos no Brasil
sobre fatos relacionados ao governo de Maurício de Nassau.23
Observando estas vinhetas na obra de Barleus verificamos que seus
recortes provocaram rupturas na unidade pensada para representar cenas
como as de áreas de engenhos de açúcar e de mandioca ou da vida indígena
e de africanos ou afro-descendentes no campo. Como exemplo observamos
a prancha Praefecturae Parambucae Pars borealts. Una cum Praefecturae
de Itamaracá, 24 onde nela um engenho real aparece no plano de frente em
pleno dia de trabalho sendo movido pela força da água e muitos
escravizados que cuidam do serviço dos fornos, da colocação da cana de
açúcar na moenda, do abastecimento e transporte da cana com apoio do
carro de boi, da retirada do bagaço e do cuidado com a mesa para secagem
dos pães de açúcar.
Nessa ilustração também aparecem escravizados ao fundo em algum
momento de “lazer” reunidos perto de uma construção que pode ser uma
das primeiras representações da senzala. 25
22 Barleus, Gaspar. História dos feitos recentes praticados durante oito anos no Brasil, 2ª ed., Recife,
Ed. da Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1980.
Barleus, Gaspar. História dos feitos recentes praticados durante oito anos
no Brasil, 2ª ed., Recife, Ed. da Fundação de Cultura Cidade do Recife,
1980.
Bea Brommer, Bea & Henk den Heijer (editores). Atals Maior Grote
Atlas van de West-Indische Companie. De Oude WIC, 1621 – 1674, Vol. I,
Leiden, 2011.
Belluzzo, Ana Maria Gonçalves. O Brasil dos viajantes. São Paulo,
Metalivros, 1999. Herkenhoff, Paulo, (org). O Brasil e os holandeses. 1630-
1654. Rio de Janeiro, GMT Ed., 1999.
Loughman, John & Montias, John Michael. Public and Private Spaces:
Works of Art in Seventeenth-Century Dutch Houses. Zwolle: Waanders,
2000.
Mello, Evaldo Cabral de. O Brasil Holandês. São Paulo, Pinguin &
Companhia das Letras, 2010.