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Sumário ISBN 978-85-463-0494-3

VIDAS CRUZADAS
&
VIDROS QUEBRADOS

ADÍLIO JUNIOR DE SOUZA

Ideia – João Pessoa – 2019

Sumário ISBN 978-85-463-0494-3


Direitos e responsabilidades sobre textos e imagens são do respectivo autor.
Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada
desde que sejam levados em conta os direitos do autor.

Capa/Diagramação
Magno Nicolau

Revisão
Cícero Émerson do Nascimento Cardoso

Ilustração da capa
https://www.istockphoto.com/br/foto/amor-cora%C3%A7%C3%A3o-de-fundo-gm621373622-108500141 (Muenz)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD


____________________________________________________________________________
S729v Souza, Adílio Júnior de.
Vidas cruzadas & vidros quebrados. / Adílio Júnior de Souza. – João Pessoa:
Ideia, 2019.

75p.

ISBN 978-85-463-0494-3

1. Literatura brasileira - Contos. 2. Contos brasileiros I. Título.

CDU 81-34
__________________________________________________________________________
Ficha Catalográfica elaborada pela Bibliotecária Gilvanedja Mendes, CRB 15/810

EDITORA
www.ideiaeditora.com.br

Sumário ISBN 978-85-463-0494-3


Aos meus sinceros e verdadeiros
amigos, com muito carinho.

A. J. S.

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Sumário

PREFÁCIO DA 1ª EDIÇÃO - 6 -
PREFÁCIO DA VERSÃO EM EBOOK - 8 -

VIDAS CRUZADAS

SEM BALAS - 10 -
DE VOLTA AO PASSADO - 12 -
VERDADES - 14 -
MENTIRAS - 16 -
TORTURAS - 19 -
MALDITA APOSTA - 21 -
O PLANO DE ROUBO - 23 -
A FUGA - 25 -
A DESPEDIDA - 27 -
O ROUBO - 28 -
PRESOS NA CABANA - 30 -
SEM SAÍDA - 32 -

VIDROS QUEBRADOS

MEIA NOITE - 36 -
A CARTA - 39 -
NOSSO FILHO - 41 -
A MORTE EMINENTE - 43 -
PROPOSTA INFERNAL - 45 -
NO METRÔ - 48 -
A RUIVA - 51 -
O RECOMEÇO - 55 -
A CORDA - 59 -
O DEDO DE DEUS - 64 -
O ÚLTIMO BEIJO - 66 -
VIDROS QUEBRADOS - 69 -

POSFÁCIO - 72 -
SOBRE O AUTOR - 74 -

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Vidas Cruzadas & Vidros Quebrados |-6-

Prefácio da 1ª edição

Por muito tempo me perguntei o que poderia escrever aqui.


Talves não faça nenhum sentido imaginar como agradar a você que
nesse momento lê esse emaranhado de palavras. Não sei se é a arte
da loucura ou a paixão pela ficção. O que sei não faz o menor
sentido nem para mim e, provavelmente, não fará sentido para você
também. Passei noites imaginado o que escrever e ainda não sei ao
certo. O que sei é que as palavras fluem como águas cristalinas,
sem direção. É como se nenhuma dificuldade houvesse em retratar
em poucas linhas o quanto o texto me seduziu, mas seria preciso
dizer muito mais.
Isso mesmo, falo da obra Vidas Cruzadas & Vidros Quebrados,
escrita por Adílio Souza (URCA/UFPB), um professor que, em
poucas páginas, de forma simples e objetiva, conseguiu escrever
duas narrativas muito interessantes, as quais estão presentes neste
livro.
Vale mensionar que durante o primeiro contato com a obra,
quando ainda olhava com fixação para a capa, me questionei várias
vezes: Caminhos Cruzados? Vidros Quebrados? Como assim?
Preciso descobrir imediatamente do que trata esse livro! E foi com
essa inquietação que iniciei a leitura.
É, querido(a) leitor(a), uma grande aventura te espera. Cada
página desta obra é única e extraordinária, além de instigante, é
imprevisível. Talves você esteja pensando que é exagero meu.
Porém, nunca falei tão sério.
Durante a leitura da primeira narrativa intitulada Caminhos
Cruzados, prepare-se para viajar longe, em tempos remotos, com
herança de servidão. O enredo gira em torno, principalmente, de
dois personagens centrais: Demétrius e Adrian. Dois rapazes que,
coincidentimente, se encontram e descobrem uma amizade sincera.
O dois viverão fantasticas experiências juntos e Adrian descobrirá
o quanto pode ser bom viver perigosamente.
As narrativas são curtas, porém trazem um conteúdo forte,
com cenas de infidelidade, violência e crueldade que despertam um
misto de emoções e nos deixam fixados na leitura, uma vez que
apesar de forte, a leitura é bastante prazerosa. Existem também
momentos de descontração (que eu particularmente dei muitas
gargalhadas) e de romantismo, capaz de tornar ainda mais
emocionante a saga.

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Vidas Cruzadas & Vidros Quebrados |-7-

Adrenalina não vai faltar! A descrição de detalhes trazida pelo


autor nos faz esperimentar profundamente a trama e se indignar
com a perversidade humana e com a herança machista e
conservadora, que violenta o direito da mulher e a trata, muitas
vezes, como objeto sexual, alvo inclusive de torturas. Vale
mensionar que este livro apenas revela como as mulheres eram
tratadas, mas não se tem a pretensão de justificar as formas de
violências ou discultí-las enquanto questão social.
Na segunda parte, a narrativa Vidros Quebrados traz um
relato do personagem Márcio, mostrando como sua vida é embalada
por momentos de supense, tensão e, muitas vezes, dramáticos, que
envolvem principalmente sua esposa Melissa, mulher por quem fora
extremamente apaixonado.
O conteúdo é igualmente imprevisível! O que parece ser um
casal comum, ao longo dos capítulos, torna-se totalmente
incomum. O autor consegue ser dramático e, ao mesmo tempo,
enaltecer o sentimentalismo e o amor. Quando tudo parece
melhorar, Márcio vivência mais momentos de tristeza e aflição com
experiências fortes que envolvem a religiosidade com o dualismo
entre o sagrado e o profano, uma proposta infernal e a ações
demoníacas sobre sua vida e das pessoas que o cercam. As trevas
parecem reinar. A vida não fazia mais sentido e a partir disso um
desfecho surpreendente acontece.
O livro Vidas Cruzadas & Vidros Quebrados pode ser
considerado uma fantástica obra para quem aprecia contos de
ficção, cheios de ação, emoção e suspense. A obra retrata
sentimentos, tais como: amizade, companheirismo, amor, ternura
e compaixão, assim como infidelidade, raiva, desilusão, tristeza,
crueldade, revolta, frieza e ódio. Sentimentos esses que são difíceis
de serem explicados em palavras, mas capazes de serem
despertados com uma simples leitura.
Então, preparem-se para grandes emoções.
Desejo a todos uma excelente aventura! E que aventura!

Juazeiro do Norte, 10 de setembro de 2016


Maria Dálete Alves Lima
(Esposa e companheira)

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Prefácio da versão em ebook

A primeira edição do livro Vidas Cruzadas & Vidros Quebrados


foi publicada originalmente no final de novembro de 2016
(VirtualBooks Editora, 2016), em papel. Todos os exemplares
esgotaram-se rapidamente!
Passados esses quase três anos, o professor Adílio dicidiu
novamente trazer ao público uma versão em ebook, inteiramente
revista pelo professor Cícero Émerson do Nascimento Cardoso,
mestre e doutorando em Letras pela Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), autor de livros e artigos sobre literatura e áreas
afins.
Salvo alguns pormenores revisados, esta nova versão, agora
editada e publicada pela Ideia Editora, contém também um posfácio
no qual prof. Émerson Cardoso faz uma análise crítica da obra a
partir de seu olhar sagaz.
Desejo, assim, aos novos e antigos leitores(as) uma leitura
prazerosa!

Missão Velha, 11 de setembro de 2019


Maria Dálete Alves Lima
(Esposa e companheira)

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VIDAS CRUZADAS

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SEM BALAS

Não havia mais saída: só a morte. A certeza de que Demétrius


e Adrian sentiam naquele momento angustiante era algo
preocupante, mas ao mesmo tempo, um momento para refletirem
nas causas de tudo aquilo.
― Quantas balas você tem, Demétrius? ― indagou Adrian,
sentindo na boca o gosto amargo do sangue que escorria pela ferida
na testa ainda aberta.
― Cinco! ― respondeu asperamente. Notava-se pelo tom de voz
que não havia tantas balas assim, talvez no máximo três. Ele
voltou-se para o amigo e fez a mesma pergunta, com mais
sinceridade:
― Velho amigo, você tem ao menos duas balas aí?
― Eu? Tenho cinco também.
Adrian fez uma conta rápida e percebeu que oito balas não
eram suficientes para tantos homens que estavam no lado de fora
da cabana, na qual eles haviam entrado.
― Demétrius, eles são muitos! De onde estou posso ver dez e,
daí de onde você está, sei que deve ter uns dez também, pois esta
cabana tem lados iguais a um maldito retângulo! Não há como
escapar, vamos morrer aqui como animais indo em direção ao
abatedouro.
Cada palavra saía da boca de Adrian com esforço. Ele estava
já muito machucado por causa das quedas e dos espinhos que o
feriram no campo, momentos antes. Seus olhos verdes não eram
tão belos quanto antes, o sangue da ferida na testa teimava em cair
por cima deles indo até o lado direito da boca.
Demétrius, por outro lado, parecia não se importar muito com
a situação na qual estavam. Começou a ter certeza de que era justo
a sentença de morrer ali dentro, furado de balas, mas em nenhum
momento se questionava se a presença do amigo era necessária,
uma vez que foi ele quem roubou os diamantes da mulher do
fazendeiro da cidade.
A fama de mulherengo dele já havia se espalhado por toda a
região e não havia uma mulher, casada ou não, que ele já não
tivesse seduzido. Ele era arrogante, sabia lidar com muito dinheiro,
era um grande apostador e, principalmente, tinha dotes físicos
desejados intensamente por quaisquer mulheres.
De uma forma totalmente oposta, Adrian não gostava de fazer
galanteios a uma mulher desconhecida, não bebia e nem fumava;
era um bom homem, honesto e muito dedicado ao trabalho. Nunca

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fez ou tentou fazer mal a ninguém, no entanto, por algum motivo,


também estava ali, talvez pelo que havia feito dias antes. Estavam
cercados pelos homens do fazendeiro Cavalo do Cão, cujo nome
ressalta o terror e o medo.
Cavalo do Cão era um nome bem apropriado para um ser tão
inescrupuloso que ordenava aos seus empregados para tirarem o
leite das vacas ainda pela madrugada para que os bezerros não o
tomassem pela manhã. Na maioria das vezes, ordenava que
matassem os que estivessem mais velhos e misturassem aos gados
adultos, de forma que não se percebia se a carne era nova ou velha.
Então, este era o homem que horas antes havia convidado os
dois rapazes, que agora estavam encurralados, a passar uma noite
em suas terras. Os dois tolos mal sabiam que Cavalo do Cão já
havia descoberto o romance entre Demétrius e Alexandra, sua
esposa.
Balas e mais balas recomeçaram a cair sobre a cabana.
Parecia que o tiroteio só vinha de fora e os homens também
perceberam isso. Aproximaram-se e quatro deles caíram mortos
cada um com um tiro na testa. Em meio a uma gargalhada,
Demétrius gritou:
― Vocês acham mesmo que vamos morrer assim?
― Cala a boca, Demétrius, eles podem identificar a nossa
posição, tolo!
― Adrian, me passa a arma!
― Não, ficou maluco?! O que farei eu sem nada?
― Shihhh! Eu sei. Não se preocupe, mas me passa logo!
Adrian entregou a arma meio sem entender nada. Demétrius
a pegou e levantou-se, disse em seguida:
― Eu sei como sairemos daqui. Prepare-se!

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DE VOLTA AO PASSADO

Antes de vermos o que se passou após este momento,


voltemos ao passado e entendamos como os dois amigos se
conheceram.
Era uma tarde de domingo e o céu estava claro, sem nuvens,
ventava um pouco. No bar, próximo a uma ferrovia, um homem de
chapéu preto bebia de maneira compulsiva. Os goles eram cada vez
maiores, ele parecia querer acabar com uma mágoa do peito. Ele
usava uma roupa meio suja, sapatos marrons e um cinturão com
uma fivela feita de couro de cobra. Sua barba estava crescida, suas
mãos cheias de calos das cordas do arreio de cavalo.
Outro homem se aproximou dele e, batendo em suas costas
falou calmamente:
― Demétrius! Você já bebeu demais, vá embora que não vendo
mais nenhum copo enquanto você não me der o dinheiro que me
deves!
― Qual é? Só devo cem moedas! ― falou em meio aos goles.
― São cem, sim! Com os cinquenta de hoje: são cento e
cinquenta!
― Tá bom! Já vou!
Demétrius saiu do bar ainda cambaleando. Logo mais adiante
viu uma loira, usando um vestido vermelho curto, justo e muito
sexy. Ela estava tão perfumada que ele sentiu aquele cheiro mesmo
estando muito bêbado.
― A moça aceita companhia?
― Só se vier junto de beijos quentes!
― Nossa! Assim você vai me deixar mais louco do que já estou!
Vem comigo ao lugar onde moro que vou te mostrar como é grande
o meu coração. Qual é o teu nome?
― Amanda!
― Adorei o nome. Vamos?
Os dois entraram em um hotel sujo, muito escuro e com as
portas entreabertas. Não havia mais do que cinco luzes acesas. As
pessoas que ali estavam não falaram nada e nem mesmo olharam
para uma moça tão bela, que fazia um contraste entre sua beleza e
a sujeira daquele lugar fétido.
Ao entrarem no quarto, ela o olhou como se estivesse com nojo
e deitou-se na cama. Tirou o vestido, mas nem precisou tirar as
roupas de baixo, pois nada mais havia o que tirar.
Demétrius tirou suas vestes fétidas. Deitou-se perto daquela
linda donzela e a beijou, lambendo-a da boca ao pescoço. Ela

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parecia não gostar de estar ali, porém mesmo assim permaneceu,


retribuiu os beijos e finalmente transaram.
Ao nascer do dia, ele notou que ela havia sumido, sem deixar
rastros. A cama ainda exalava o perfume daquela linda flor que
deitara ali horas antes. Balbuciou:
― Que noite maravilhosa!
Levantou-se e foi banhar-se. Quando ele tomava café, ouviu
duas batidas na porta:
― Quem é?
― Adrian!
― E daí? Eu não conheço nenhum idiota com este nome.
― Eu sei que não, mas sei também que vai adorar me
conhecer.
Demétrius abriu a porta e viu um jovem de olhos verdes, bem
vestido. Trajava uma roupa clara e muito limpa. Era de estatura
média, forte, de sorriso simples e simpático.
― Quem é você e o que faz aqui tão cedo? Fale de uma vez!
― Eu me chamo Adrian e estou aqui para salvá-lo.
― Que estória é esta?
― Sabe a loira com quem você saiu ontem?
― Que loira? Não vi nenhuma loira!
― Não se faça de mal entendido, senhor...
― Demétrius... Idiota!
― Ontem, senhor Demétrius, no meio da noite eu estava
seguindo a esposa de meu patrão e segui vocês dois até esta
espelunca.
― Olha lá como fala de minha casa!
― Perdão, eu os segui até este lindo hotel. Então, passei a
noite lá fora, em meu carro, esperando o dia nascer. Quando notei
que ela já havia ido, decidi vir aqui te falar.
― E o que você ganha com tudo isso?
― Duas ótimas oportunidades: você vai ficar me devendo esta
e ela vai ter que fazer algo por mim, entendeu?
― Garoto, você acaba de ganhar um amigo, vamos ao bar
beber para comemorar!
― Eu não bebo!
― Tudo bem, eu bebo e você me segue.

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VERDADES

Os dois recém-amigos saíram do bar e prosseguiram em uma


conversa alegre. Eles foram a um lugar que até então não era algo
comum para Adrian: uma casa de massagem.
Este era um ambiente perfumado, com as janelas abertas,
salões claros, com sofás e camas arrumadas. Havia uma porta
iluminada em frente ao centro da entrada principal.
Ao entrar, Adrian falou:
― Que lugar é este?
― Um lugar ótimo para relaxar e esquecer dos problemas...
Vamos escolher uma...
― Escolher o quê?
― Garoto, você precisa sair mais: uma mulher! Idiota!
― Como assim?
― Você é uma besta mesmo!
Dito isto, Demétrius tocou uma campainha e de repente
saíram seis mulheres lindas, todas vestidas com roupas sensuais.
Adrian não conseguia esconder o espanto, eram todas lindas. Ele
olhou fixamente para aqueles corpos esculturais e disse:
― Posso escolher uma?
― Você não tem imaginação, não? Eu pego três e você as
outras três: meio a meio.
― É sério mesmo?!
― Claro!
Tudo isso era novidade para Adrian. Uma casa de massagem,
cheia de mulheres lindas, prontas para realizarem quaisquer
desejos. Parecia um sonho do qual ele não queria ser despertado.
Eles foram levados para um dos quartos. Todos os quartos
eram confortáveis e aquele, em especial, tinha pouca luz. Tinha
duas camas enormes e redondas. Deitaram-se. As moças tiraram
primeiramente as roupas deles e, em seguida, despiram-se.
Iniciaram uma massagem muito sensual em seus corpos. Adrian
não se continha de alegria e prazer, porém estava nervoso por
dentro. Então, falou baixinho aos ouvidos de uma moça ruiva:
― Preciso te falar uma coisa!
― Fala, meu benzinho! ― disse a linda ruiva que com ele
estava.
― Eu nunca fiz amor com uma mulher...
― Você deve estar zombando de mim, não é? Você ainda é
virgem? Com quantos anos?

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― É verdade, tenho vinte e cinco ― falou Adrian, fazendo um


sinal para que Demétrius não risse dele diante das moças.
Demétrius percebendo que o que ele dissera era realmente
verdade, chamou uma das moças e falou algumas coisas em seu
ouvido, apontando para o amigo. Ela sorriu e veio em sua direção,
dizendo:
― Venha, eu vou te fazer outro tipo de massagem em meu
quarto.
Ele a acompanhou, mostrando um sorriso de regozijo que saía
do canto da boca.
A moça se mostrava experiente e realizou todos os desejos
ocultos dele. Foi a primeira vez em que fez amor com uma mulher.
Não havia feito isso antes, não porque nunca havia tentado, mas
por causa de sua timidez exagerada.
Uma hora depois, ele saiu do quarto e ficou parado diante do
amigo. Demétrius o indagou:
― Foi bom?
― Maravilhoso!
― Sempre que venho aqui só faço com ela!
― Com ela? Você já ficou com ela? Diz! ― o amigo apenas
sorriu e fez um sinal de positivo. Os dois saíram dali e foram a um
barzinho um pouco mais adiante.

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MENTIRAS

Alguns dias se passaram e a amizade entre Demétrius e


Adrian se tornava cada vez mais forte. Eles agora andavam juntos,
buscando diversão. Em meio a esta nova vida, Adrian começava a
se comportar diferente, ora bebendo, ora se deitando com mulheres
desconhecidas.
Em uma noite dessas, ao retornar a sua residência, Adrian fez
algo que, provavelmente, o faria se arrepender dias depois. Ele
entrou no quarto de seu patrão e encontrou Amanda. Contou-lhe
que sabia que ela havia ido ao hotel juntamente com Demétrius e,
portanto, tinham passado a noite fazendo amor.
Ela o olhou e, com arrogância nos olhos, perguntou:
― Você vai me entregar?
― Depende de você!
― De mim? O que quer em troca?
― Huuum... O que você me daria?
― Não sei.
― Pense melhor...
― Já entendi... Passe aqui novamente em meia hora, meu
marido só volta amanhã.
Ouvindo isto, Adrian sorriu e retirou-se do quarto do patrão e
foi direto banhar-se. Ele estava muito feliz, pois sabia que tinha a
chance de ficar com a mulher mais atraente que já conhecera. No
entanto, em nenhum momento ele se questionou se o que estava
prestes a fazer era certo ou não. O fato é que esperou ansioso e até
mesmo contou os minutos. Voltou ao quarto e sentia que havia um
perfume delicioso no ar, os lençóis foram trocados e tudo mais tinha
sido preparado.
Amanda usava uma camisola transparente, branca, cheia de
desenhos de flores. Havia prendido os cachos dourados de seus
cabelos, pôs um batom vermelho e, por baixo da camisola, via-se
uma cinta-liga de cor vermelha, bastante apertada.
Vendo aquilo, Adrian soltou um sorriso de satisfação. Ela o
olhou fixamente e disse, deitando-se na cama:
― Vem logo, que eu estou derretendo de desejo! Vamos fazer
de tudo um pouco. Quero sentir prazer, muito prazer!
― Eu sonhava com este momento!
Os dois uniram-se em momentos de loucuras. Ambos estavam
insaciáveis.
Aquela noite deveria ter sido perfeita, não fosse o que
aconteceu em seguida. Adrian estava tão completamente exausto

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que nem havia percebido que o carro do esposo de Amanda tinha


regressado.
Agenor, esposo de Amanda, era um homem de meia idade,
saudável, trabalhador, adorava levar a esposa para passear nos
finais de semana e, até aquele dia, não se ouvia falar mal dele em
nenhum lugar das redondezas. É certo que as pessoas que ali
moravam também nunca souberam exatamente de onde ele veio,
sabiam apenas que ele sempre foi fazendeiro.
Ele havia estado fora como sempre e, por mais que escondesse
bem, sabia que a mulher deitava-se com outros homens. Muitos
não entendiam porque ele nunca fazia nada. Ele chegou a confessar
a um amigo:
― Ela vai mudar, eu creio nisso! Eu amo aquela pequena
mesmo assim!
Um homem assim, aparentemente, não merecia ser traído,
mas era isto que estava acontecendo. Agenor entrou caminhando
devagar e, ao aproximar-se do quarto, viu aquela cena grotesca: sua
esposa deitada por cima daquele homenzinho que ele havia acolhido
em sua casa.
Encheu-se de ódio e gritou:
― Canalha maldito!
O casal tentou vestir-se, mas, antes disso, Agenor pegou
Amanda pelos cabelos e a jogou no chão, com a outra mão deu um
soco muito forte no rosto de Adrian, que desmaiou em seguida.
― Hoje, vocês dois saberão quem realmente eu sou.
Agenor os amarrou e os levou para o final da casa. Lá havia
um quarto que sempre esteve trancando. Era um lugar muito
escuro, porém dava para ver algumas cadeiras, correntes, arames,
pregos derramados no chão e muitos sacos. Havia também muita
sujeira acumulada perto da parede.
Algumas horas depois, Adrian acordou e viu Amanda
pendurada de cabeça para baixo, completamente nua.
― Solte ela, por favor! Ela não te fez nada!
― Nada? E me trair não é nada? ― e então deu um soco no
rosto de Adrian que o sangue espirrou.
― Vocês dois pensaram que podiam me fazer de tolo,
transando pelas minhas costas.
― Me solta, seu desgraçado!
― Eu vou soltar, sim, mas antes eu vou te fazer sofrer um
pouquinho... ― ele aproximou-se da moça e, com uma faca muito
afiada, arrancou-lhe um dos seios. Ela gritava desesperada e, ao
lado, Adrian mordia os lábios e suplicava que a soltasse.
― Calado! Eu vou mostrar a esta vadia como é que eu fazia
com os escravos da fazenda de meu pai. Ah! Eu nunca te contei?

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Eu era o feitor na fazenda de meu avô e depois na de meu pai. Só


parei de matar depois que te conheci, cadela! ― em seguida, cortou
o outro seio e o levou para Adrian.
Adrian chorava muito. Amanda gritava, sem conseguir
articular uma palavra. Foi então que Agenor enfiou os pedaços dos
seios dela na boca de Adrian que não resistiu e vomitou bastante,
enjoado de tanto sangue.
O feitor voltou para junto da mulher e mais uma vez pegou a
faca e cortou por inteiro a genitália dela, deixando-a completamente
apavorada e desesperada de dor. Vendo aquilo, Adrian implorou
para que o feitor o matasse e deixasse-a ir.
― Ir aonde? Esta vaca vai morrer logo! Agora é sua vez! ―
Adrian desmaiou outra vez.

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TORTURAS

Ao recobrar os sentidos, Adrian sabia que não havia como


escapar daquela cadeira. Fechou os olhos novamente e ficou
pensando na sua infância. Pensou em todos os momentos bons que
havia passado naquele tempo. Lembrou-se da primeira vez que deu
um beijo, da escola e da igreja.
― Quantas coisas boas! ― pensou.
Depois desta viagem, voltou e sentiu um cheiro forte vindo de
seu corpo, um cheiro forte de gasolina.
― Que é isto?
― Um pouquinho de gasolina para queimar uma praga!
―Não faça isso, por favor, não me mate!
― Que é que eu posso fazer? Você pegou minha mulher, mas
não se preocupe, vamos brincar um pouco, ou melhor, eu vou
brincar um pouco...
Ele saiu e trouxe um martelo. Adrian tentou em vão sair da
cadeira. Gritou uma, duas, três vezes e nada. Ninguém aparecia.
Agenor abaixou-se e bateu com força em um dos dedos dele. A dor
foi intensa. Bateu no segundo, no terceiro e assim fez até o décimo
dedo do pé de Adrian.
Os gritos eram fortes, mas a casa em que estavam era distante
de todas as outras e de nada adiantaria gritar.
Ouviu-se uma voz muito baixa que dizia:
― Perdão, meu amor! ― era Amanda que ainda estava
respirando, muito forçosamente.
Ao ouvir isto, Agenor enfurecido pegou um machado e correu
na direção dela, partindo-a quase ao meio. Havia tanto sangue e
carnes abertas que se viam a suas vísceras espalhadas pelo chão.
O pior estava guardado para Adrian que, ao ter visto tal cena,
chorava amargamente, ao mesmo tempo em que vomitava e
urinava-se.
― Socorro! ― ele gritou.
― Não adianta gritar, você vai morrer! Fique aí que eu vou
pegar um brinquedinho para você! ― e, ao passar por ele, cortou
um dos seus dedos.
Aquela tortura parecia não ter fim, mas, de repente, como se
fosse por um milagre, Adrian ouviu uma voz e exclamou consigo:
― Demétrius!
De fato, era mesmo Demétrius que o procurava. Poucos
sabiam de suas habilidades, entretanto Demétrius sabia manejar

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muito bem facas de todos os tipos e, naquele momento, este


conhecimento seria vital.
― Onde você está? Oh, meu garoto!
― Aqui ― gritou Adrian, meio sem forças.
Demétrius entrou por trás da casa e viu apenas uma luz por
entre uma das brechas da porta. Ao entrar, começou a caminhar
pisando nas poças de sangue, porém não notou o que de fato era
aquilo. Continuou andando e viu o seu amigo amarrado em uma
cadeira velha, com uma das mãos escorrendo sangue. Viu muito
sangue em cima dele. Não ficou parado pensando no que havia
acontecido, nem mesmo fez qualquer pergunta, correu e soltou o
amigo.
Demétrius não reparou no corpo aberto à frente dele, talvez
por causa da escuridão. Tomou o amigo pelos braços e quando já
estava na porta ouviu algo:
― Quem é você?
― Ninguém! ― respondeu Demétrius.
― Nem pensem que sairão daqui! ― Demétrius pôs o amigo no
chão e correu em direção ao feitor. A luta entre os dois não foi rápida
e nem limpa, ambos saíram feridos, mas Demétrius empurrou
Agenor que caiu por cima de um dos sacos. Ao notar que havia uma
faca próxima aos seus pés, ele tentou cortar Demétrius, porém este
a tomou e desferiu três facadas no peito do agressor.
Vendo-o caído, Agenor balbuciou:
― Nem eu nem vocês dois a teremos novamente!
― Quem? De quem você está falando? Demétrius o sacudiu
interrogando-o. No entanto, ele já estava morto.
― Diga-me, de quem ele falava?
― Veja você mesmo! ― e apontou para o corpo aberto de
Amanda.
Demétrius aproximou dos pedaços e reparou nos cabelos
loiros ensanguentados.
― Amanda!

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 21 -

MALDITA APOSTA

Alguns dias depois, Adrian acordou ainda dolorido das


pancadas que recebera na face. Olhou e viu a mão direita enfaixada,
viu que um dos dedos não mais estava nela, então entendeu que
tudo o que passou foi verdade e não um sonho como ele tinha
desejado.
― E aí, meu garoto? Dormiu bem?
― Não!
― Nem eu.
― Onde estamos?
― Na casa de minha irmã mais nova.
― E onde fica isso?
― Nós estamos na Fazenda Matas Virgens.
― Por que este nome?
― Por causa das muitas mulheres que vivem aqui...
Precisamos esquecer o que passou.
Era impossível esquecer aquelas torturas e ambos sabiam
disso. E muito mais difícil era esquecer-se de Amanda. A imagem
daquela jovem sendo torturada iria permanecer para sempre nas
lembranças de Adrian.
― Eu nunca mais irei me apaixonar por outra mulher! ― disse
Demétrius, levantando-se da cadeira.
― Não acredito nisso! ― falou Adrian com desdém.
― Quer apostar nisso?
― O que você quiser!
― Aposto que se eu me apaixonar por outra mulher ainda
nesta vida, prometo trocar a minha vida pela sua ou até mesmo
levar uma bala no peito por você. O que me diz?
Adrian hesitou um pouco. Pensou e nada falou. Fechou um
dos punhos e bateu em cima da mesa em sinal afirmativo.
― E caso você não se apaixonar novamente, eu farei o mesmo
por ti! ― retrucou.
A sentença de um daqueles homens havia sido ali firmada.
Nenhum deles sabia, todavia a vida lhes proporcionaria ainda
outras aventuras que, por certo, incluiriam mulheres.
Neste momento, uma moça de pele rosada, de aparência
angelical e meiga, entrou e disse suavemente:
― Bom dia, mano! ― e olhando atentamente para o rosto de
Adrian, falou:
― Bom dia, rapaz! Como se sente?
Adrian, gaguejando retrucou:

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 22 -

― Bem... Obrigado por tudo!


― Esta é Elisabeth, minha irmã! ― exclamou Demétrius.
Adrian não se continha de admiração da beleza de Elisabeth.
Uma jovem educada, gentil, bem diferente do rude irmão. Ela tinha
vinte anos, mas a aparência era de quinze. Tinha uns olhos
castanhos, cabelos pretos e longos. Não se via o seu corpo, pois o
vestido solto e bem costurado não permitia. Era uma mulher de
família, com dotes de princesa.
Percebendo o encanto que a irmã causara no amigo, falou
sarcasticamente:
― Parece-me que já ganhei a nossa aposta!
― Como assim?
― Não pense que não vejo que a minha irmã te agradou!
― Quê? Qual? Só estava sendo educado.
De nada valia a defesa. Por mais que o coração dele estivesse
dolorido pelos acontecimentos passados, algo dentro do peito ainda
batia forte, ele não estava morto, apenas adormecido. E, neste
mesmo coração, uma sensação muito boa surgia ao ter visto aquela
beleza, ao mesmo tempo em que a sua mente lhe dizia:
― Maldita aposta! Logo agora que a vi!
Não é preciso descrever o quanto lamentou a aposta ― é certo
que pensou em voltar atrás.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 23 -

O PLANO DE ROUBO

Deitada na cama ainda nua, suada e exausta após o sexo,


Alexandra respirou um pouco e perguntou a Demétrius:
― Você me ama?
― Sim!
― Faria de tudo por mim?
― Claro que sim! ― ele saiu do banheiro e foi deitar-se
novamente ao lado da amante. Abraçaram-se e ficaram assim por
algum tempo.
Esta mulher, de nome Alexandra, que agora estava nos braços
dele, era, como se viu antes, a esposa de Cavalo do Cão. E este
romance que acontecia às escondidas, do qual Adrian não tinha o
conhecimento, tornou-se frequente.
Alexandra era uma mulher de cerca de trinta e oito anos, de
uma beleza inquestionável, mesmo após dois filhos. Tinha os
cabelos curtos, ruivos e sempre perfumados.
Tinha desejos exóticos e práticas sexuais questionáveis:
adorava participar de cultos a divindades greco-romanas,
especialmente ao deus Baco ou Dionísio, como também era
conhecido. Era devota do sexo sadomasoquista e seus prazeres não
ficavam apenas nisso, sentia prazer na dor e violência. A prova disso
era ter casado com o violento Cavalo do Cão.
Este romance estava fadado ao fracasso, pois as intenções de
Demétrius nunca tinham sido outras, senão roubar-lhe os bens, na
forma de joias e diamantes.
A amante nem imaginava aquelas maldosas intenções e fez
uma proposta ao homem realizador de suas fantasias amorosas:
― Vou convencer meu marido a empregar você.
― Eu aceito, porém com uma condição...
― Aceito qualquer uma, fale!
― Eu vou se meu amigo também puder ir!
― Tudo bem, eu vou falar com ele ainda hoje! ― dizendo isto,
saltou nos braços de Demétrius, que a recebeu aos beijos e carícias.
Saindo dali, ele foi até seu amigo e contou-lhe a meia verdade,
isto é, contou apenas à parte que envolvia o emprego e a futura
morada deles. Adrian soltou um grito de alegria:
― Que bom! Você nos arrumou um emprego?!
― Isto mesmo!
― Isso é uma boa notícia! ― e correu e abraçou o amigo, que
nem mesmo assim comoveu-se.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 24 -

O plano já estava arquitetado: dar prazer a Alexandra,


enganá-la e depois roubá-la. Fazia parte do plano, também,
enganar Cavalo do Cão, mentir para Adrian e despedir-se de
Elisabeth. Além disso, planejava roubar as joias e diamantes e, por
fim, fugir. Parecia um plano perfeito, no entanto havia algumas
incertezas: como seria a fuga? Para onde ir? Como ir?

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 25 -

A FUGA

O plano para ficar rico à custa de um roubo estava quase


pronto, faltando apenas definir a fuga.
Talvez esta parte fosse a mais difícil, pois Demétrius sabia que
teria que levar junto consigo o amigo, porém sem revelar a ele seus
planos.
Tomou o seu cavalo e saiu em direção à ferrovia. Lá chegando,
fez uma varredura em todos os vagões, buscando evidentemente um
que estivesse completamente vazio.
― Este serve.
Era um vagão pequeno, porém confortável. Havia dois bancos
de madeira nele, duas janelas reforçadas com ferro maciço e grades
de aço. Um armário encaixado na parede e no chão havia um tapete
vermelho. Tinha também uma cama que ficava dentro de uma das
laterais à direita. Foi até o guichê e indagou à vendedora:
― Quanto custa um ticket só de ida ao Sul do país?
― 200 moedas! ― respondeu a moça, sem olhar para o
dinheiro.
― Tudo isso?
― Sim, senhor! ― disse secamente.
Havia esquecido que estava sem dinheiro. Aquela quantia era
um pouco alta, no entanto ele sabia que valeria a pena. Todavia,
teria que ser duas vezes aquele valor. Por um minuto pensou
apenas em si, cogitou em deixar Adrian. Não podia fazer isso, eram
como irmãos. Sentiu-se triste por ter tido tal pensamento. Os dois
iriam fugir. Juntos. Estava decidido a levar seu amigo, fosse aonde
fosse.
Voltou à casa da irmã e foi recebido por uma corja de homens
vestidos de preto. Para ser exato, eram vinte e dois, todos montados
em cavalos preparados para longas viagens. Estavam armados até
os dentes. Ele os olhou fixamente e estes fizeram o mesmo.
― Você é Demétrius? ― perguntou um deles.
― Sim! ― respondeu abaixando os olhos.
― Sabe quem somos?
― Não.
― Somos os legionários de Cavalo do Cão! ― ao ouvir este
último nome, Demétrius estremeceu e pensou até em fugir dali, no
entanto viu que já estava cercado.
― Viemos buscá-lo! Cavalo do Cão quer conhecer você e seu
amigo. Ele quer contratar os seus serviços. O coração de Demétrius

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 26 -

estava acelerado, mas sentiu-se aliviado ao saber que não estavam


ali para executá-lo.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 27 -

A DESPEDIDA

Cavalo do Cão recebeu os dois rapazes. Não parecia um


homem mal, pelo contrário, mostrou-se um bom e adorável senhor
de quarenta anos, cuja barba meio grisalha lhe pareceu de um tio
ou avô.
O nome de sua origem nunca foi revelado, pois segundo ele:
― Um nome só serve se parecer com o dono e o meu verdadeiro
não se parece comigo em nada!
Ao vê-lo, Demétrius acreditou que ele era inofensivo e que
provavelmente nem se importaria com a perda de alguns diamantes
ou joias de sua esposa. Era nisso em que ele se agarrava para
cometer o futuro delito.
― Parece um bom homem ― pensou Demétrius.
― Sintam-se em casa! ― falou mansamente, Cavalo do Cão.
― Obrigado! ― falaram ao mesmo tempo os dois bons amigos.
― O serviço de vocês será cuidar de nossos cavalos, de dia e
de noite, em qualquer ocasião. Combinado?
― Sim, senhor! ― responderam juntos.
Os dois rapazes estavam tranquilos ao saírem dali. Eles se
mudaram para a fazenda de Cavalo do Cão no dia seguinte. Antes
de partir, Adrian aproximou-se de Elisabeth e falou-lhe ao ouvido:
― Vou voltar para levar você comigo! Vamos ficar juntos: só
você e eu, meu amor! ― e a beijou na face.
― Eu estarei te esperando... Custe o tempo que custar, eu
serei só tua, meu bem! ― e então o abraçou e o beijou na testa.
Sentindo que aquele momento parecia o fim de tudo, Adrian a
tomou novamente e deu-lhe muitos beijos na boca. Ficaram assim
por um longo tempo, abraçados. Ela despediu-se dele em lágrimas.
― Volta logo, amor! ― disse ela em meio aos prantos.
― Voltarei! ― falou enquanto montava no cavalo.
― Vamos, garoto! O chefe não vai gostar se nos atrasarmos no
primeiro dia.
No caminho até a fazenda, ambos estavam calados. Demétrius
quebrou o silêncio:
― Nós dois quebramos nossa aposta.
― Verdade!
― Lembre-se de uma coisa, se machucar minha irmã eu te
mato e dou teus testículos aos cachorros!

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 28 -

O ROUBO

O trabalho na fazenda não era uma tarefa árdua. Os dois


amigos podiam, ao final do dia, banhar-se no rio próximo da
floresta. Tudo parecia bem, todavia à medida de os dias passavam,
Adrian ficava cada vez mais triste. Ele caminhava e vez ou outra
chorava pelos cantos, relembrando sua amada. Demétrius, por
outro lado, encontrava-se com mais frequência com a amante.
O romance entre ele e Alexandra acontecia embaixo dos olhos
de Cavalo do Cão. Isto não poderia acabar bem, ele sabia disso, mas
prosseguia.
― Preciso fugir daqui o quanto antes! ― pensou consigo.
Demétrius procurou Adrian para lhe fazer uma proposta
nestes termos:
― Eu vou fazer uma viagem e quero que você e minha irmã
venham comigo. O que me diz?
― Seria ótimo! Quando seria isto, no próximo ano?
― Não.
― Quando então?
― Em dez dias.
― Ficou doido, temos muito trabalho por aqui e acredito que
Cavalo do Cão não vai permitir sairmos tão cedo.
― Quem disse que diremos a ele?
― Como não, ele é nosso chefe agora!
― Nada disso, vamos sumir sem dizer nada a ninguém!
― Demétrius, o que fez desta vez? Eu te conheço um pouco e
sei que, quando você apronta alguma, pensa logo em fugir. Com
quem saiu desta vez?
― Que mania de achar que tem uma mulher na jogada... ―
gritou secamente.
― Como não? Vai! Diz quem é ela.
Demétrius pensou melhor e percebeu que não conseguiria
mentir por muito tempo, então resolveu contar a metade da
verdade.
― Está bem. É a Alexandra.
― Alexandra... Ah, que Alexandra? Só se... Não! Não me diz
que você e a mulher do chefe, já? Homem, que é que você tem nas
pernas, cola? Prego? Ou fogo?
― Nem sei. Só sei que ela está em cima de mim e preciso dar
um tempo nisso antes que alguém descubra.
― Desta vez você foi longe, sabia?
― Cala a boca e vamos pensar em como faremos isto.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 29 -

Adrian pôs as mãos em cima dos olhos e fez uma expressão


de quem não sabia nem por onde começar. Demétrius ficou
pensando por algum tempo, então teve uma ideia.
― Vamos sair pela madrugada, antes do café das cinco?
― Tudo bem ― Adrian falou tristemente ―, mas nem pense em
me deixar aqui sozinho ― continuou.
Demétrius o olhou e por um minuto refletiu na possibilidade
de dizer o que realmente iria fazer, porém sabia que se o dissesse,
ele não conseguiria guardar o segredo e poderia pôr tudo por água
abaixo.
Os dias se passavam e Adrian ficava cada vez mais
preocupado com o que poderia acontecer. Nada acontecia e isto
atormentava seus pensamentos.
Dia após dia, Demétrius se dirigia ao quarto de Alexandra,
fazia amor com ela e ao final a roubava. Joias e mais joias, até que
no nono dia ele encontrou um diamante cor-de-rosa no meio das
roupas dela. Ficou encantado com a beleza daquele diamante.
― Isto deve valer uma grana preta! ― sorriu consigo mesmo.
E saiu dali e foi até o lado de fora, já era noite. Continuou andando
em direção a Adrian. Ele estava sentado perto de uma fogueira.
― Que faz aí? ― perguntou o amigo que se aproximava.
― Eu estava aqui pensando em uma coisa.
― Em que, seu sacripanta?
― Quero casar com tua irmã e não tenho dinheiro suficiente
para isso.
― Deixa de ser tolo, ela te ama. E, por mais que você seja um
pobretão, ela te quer mesmo assim.
― Pode ser. Mas o que faremos depois? Para onde eu vou levar
ela? Não tenho quase nada para vestir e muito menos para comer!
Amigo, me diz uma coisa...
― Fala!
― Quando você tiver muito dinheiro, você me empresta para
eu comprar um anel de ouro para Elisabeth?
― Claro que sim. Agora vai dormir que iremos sair bem cedo.
Já preparou tudo?
― Sim. Ainda acho uma ideia de louco fazermos isso!
― Fecha a matraca e vai se deitar, moleque!

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 30 -

PRESOS NA CABANA

No meio da noite, ouviram-se algumas vozes sussurrando e,


no meio desta algazarra, Demétrius acordou e percebeu que era dele
que falavam.
― Vamos acabar com a raça destes dois idiotas ainda esta
noite! ― falava um deles.
― Não, o chefe disse que ele mesmo se encarregaria de meter
uma bala na cabeça de cada um... ― retrucou um segundo.
Demétrius levantou-se atônito e dirigiu-se até Adrian que
ainda roncava como um porco.
― Acorda, sua besta! Eles vão nos matar!
― Quem vai matar quem? De que é que você está falando?
― Nós. Eles vão nos matar. Acho que descobriram o roubo...
― Qual roubo?
― O que eu fiz... Desculpa não ter falado antes.
― Que porcaria! Como você pôde fazer isto comigo? O que foi
que você roubou?
― Muitas joias e um diamante deste tamanho ― ele falou isto
mostrando o diamante na mão direita.
― Deus! De onde foi que você roubou isso?
― No quarto de Alexandra!
― E eu pensei que você gostava dela... Esquece!
― Vamos fugir por trás da casa...
Os dois saíram se arrastando por baixo dos tijolos de um
buraco na parede do estábulo, passaram pela cerca e fugiram por
entre a mata cautelosamente para não serem vistos.
O dia já estava nascendo quando eles alcançaram as margens
do rio. Lá chegando, Adrian hesitou em mergulhar. Ele estava com
muito medo.
― Você não vem?
― Não.
― Ficou maluco?
― É a você que eles querem, e não a mim!
― Você acredita mesmo que eles não vão te matar depois de te
interrogarem sobre mim? Vamos, sua besta! Tira esta roupa e vem
logo!
― Não temos armas para lutar. Vamos apanhar até morrer e
não poderei ver Elisabeth novamente e a culpa de tudo isto é tua,
que além de cafajeste é um mau caráter e, ainda por cima, um
maldito ladrão.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 31 -

― Não, nada disso! Quem disse tal coisa? Eu precisava de


dinheiro, assim como você! Depois falamos sobre isto, tudo bem?
Tenho dois revólveres cheios até a tampa e, se eles tentarem alguma
coisa, vão levar bala nos peitos. Agora pula aqui!
Não muito distante, os legionários do Cavalo do Cão já haviam
percebido a ausência deles e estavam em seu encalço. Eram muitos
homens, armados de facas, facões e muitas armas, rifles, pistolas,
revólveres e espingardas.
Eles os seguiram de longe até o momento em que eles
mergulharam e, posteriormente, atravessaram o rio. Algum tempo
depois, o fazendeiro chegou e juntou-se com o bando.
― Vamos caçá-los!

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 32 -

SEM SAÍDA

Os legionários, juntamente com Cavalo do Cão, perseguiram


os dois fujões até o outro lado do rio. Nem precisaram andar muito,
bastou atravessar uma velha ponte que se achava a alguns metros.
Os dois amigos, no entanto, continuaram fugindo.
Durante todo o trajeto, Cavalo do Cão permaneceu calado. Por
algum tempo ele ficou imóvel, ali em cima de seu cavalo, só
observando de longe os dois inimigos nadando desesperadamente.
Quebrou o silêncio:
― Estes dois não valem nada! Nem mesmo duas balas de uma
arma vagabunda! Eu quero os dois encurralados, mas não o matem!
Eu quero ter o prazer de enfiar duas balas em cada um. Uma bala
na testa e outra no rabo deles.
Cada uma destas palavras saiu da boca deste homem com um
pouco de saliva. O bafo quente expelido exalava um fedor horrível.
O mau hálito era insuportável e quem ali estivesse teria que fazer
um doloroso sacrifício para não vomitar.
Na outra margem, Demétrius gritava:
― Anda logo, sua besta! ― e movia os braços freneticamente.
― Calma, eu nunca nadei tanto! ― falou Adrian.
Os dois saíram dali correndo. Avistaram logo em seguida uma
velha cabana. Era uma cabana pequena, de proporções
retangulares, mas muito bem construída. Quase toda ela era de
madeira firme. Ao entrarem nela, viram que estava completamente
empoeirada. Móveis velhos e rústicos. Livros rasgados pelo chão,
quadro antigos nas paredes e muitas caixas de madeiras
espalhadas em um dos cantos.
― O que faremos agora? ― interrogou Adrian.
― Vamos matá-los e depois fugiremos!
― Para onde?
― Para qualquer lugar! ― finalizou Demétrius.
Não tiveram tempo de conversar mais, pois Cavalo do Cão e
os legionários se aproximaram da cabana e gritaram aos berros:
― Estão presos!
Esta era uma verdade que nenhum dos dois queria aceitar.
Mas não havia saída, exceto a morte de ambos, ali presos e sem
direito à defesa. Seria uma carnificina. Então, agora voltemos ao
início de nossa narrativa, quando deixamos os dois em meio a uma
decisão:
― Iremos morrer assim! ― exclamou Adrian.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 33 -

Demétrius sacou as duas armas e passou uma delas para o


amigo.
― Iremos morrer, sim, mas não sem lutar! ― gritou enquanto
se posicionava.
A primeira bala de Demétrius foi parar no peito de um dos
homens de Cavalo do Cão. A partir daí, começou uma chuva de bala
que mais parecia uma queima de fogos de artifícios. Balas e mais
balas atravessavam a cabana, derrubando tudo que ali se
encontrava.
Por algum tempo, os dois encurralados resistiram
bravamente, porém era evidente que aquela quantidade de balas
era insuficiente para darem de conta de tantos homens. Vendo
então que era uma situação impossível, Demétrius, após receber a
arma de Adrian, disse:
― Não há como sairmos daqui vivos, pelos menos não nós
dois! Nós faremos o seguinte: eu sairei antes e irei matar a todos
que eu encontrar pela frente, enquanto isso você vai para trás e foge
na direção oposta. Pule pela janela e vá embora. Irei distraí-los. Não
olhe para trás.
― Que loucura é esta? ― indagou Adrian meio atônito.
― Não é nenhuma loucura. Apenas decidi pôr um fim em meus
erros. Agora, vá! Não temos tempo a perder!
― Não vou deixá-lo fazer isso!
― Sua besta! Vá antes que eu mude de ideia. Prometa que vai
cuidar bem de Elisabeth!
― Prometo! ― Adrian respondeu gaguejando.
Demétrius fez conforme havia planejado: abriu a porta e saiu
atirando e cada um dos tiros acertava ou o peito ou a testa dos
legionários, mas alguns deles conseguiram acertá-lo, deixando-o
meio desiquilibrado. No entanto, antes de cair, deu o último tiro que
atingiu somente a perna de Cavalo do Cão.
― Onde está o seu amigo? ― perguntou o fazendeiro.
― Que amigo?
― Adrian.
― Ele nunca foi meu amigo. E o deixei lá depois do rio mesmo.
Ele estava fugindo comigo porque menti para ele.
― Mentiu?
― Sim. Eu disse a ele que você queria matá-lo por causa de
um cavalo que ele deixou ir embora...
― Onde estão os diamantes?
― Caíram no rio...
― Você vai morrer, miserável!
― Ah... Grande novidade! ― e tossiu, derramando um pouco
de sangue pela boca ― Mas antes saiba de uma coisa: já se

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 34 -

perguntou por que é que tua mulher procurava outros homens? Teu
pinto é pequeno! ― e caiu na gargalhada, misturada com tosse.
Cavalo do Cão atirou em sua cabeça. Sentiu-se
profundamente irado. Um ódio encheu o seu coração. Não se sabe
o motivo ao certo, mas ele não quis ir atrás de Adrian. Subiu em
seu cavalo e foi embora com os legionários sobreviventes, deixando
os corpos dos outros para trás.
Enquanto isso, bem distante dali, Adrian já se aproximava da
Fazenda Matas Virgens e, lá chegando, percebeu que Elisabeth
estava sentada ao lado de uma árvore. Aproximou-se calmamente e
pôde ouvir estas palavras:
― Meu Deus, que eles voltem em segurança!
― Aqui estou! ― exclamou Adrian esbaforido.
Elisabeth virou-se e então o viu. Ele estava muito machucado.
Abraçaram-se e ficaram assim por algum tempo. Beijaram-se. Foi
aí que Adrian sentiu que havia algo em um de seus bolsos. Meteu a
mão direita e tirou-o: era o diamante de cor-de-rosa que pertencera
a Alexandra.

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VIDROS QUEBRADOS

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MEIA NOITE
(01/09/2010)

Ao abrir meus olhos, ainda meio sonolento, reparei que o


despertador mostrava exatamente meia noite. Vi que minha esposa
não estava ao meu lado, mas imaginei que ela havia trabalhado
demais naquela noite e, então, preferiu ficar em um hotel na cidade.
Levantei-me e fui ao banheiro. Algo me incomodava, pois
fiquei me perguntando como ela havia se esquecido tão facilmente
de que eu não gostava de dormir sozinho. Não suporto solidão,
especialmente quando é noite de lua cheia.
Decidi sair do Duplex e ir ao barzinho que ficava próximo dali
para comprar cigarros ou tomar goles de uma bebida quente.
Desci as escadas, vagarosamente, como se desejasse vê-la no
próximo degrau. Nada. Quase desisti. Lembrei-me de que não havia
fechado a porta, então retornei ao quarto. Desci outra vez, porém
desci rápido. Não queria encontrar ninguém ali a não ser ela.
Olhei o relógio e fiquei triste. Mesmo tendo demorado tanto
neste sobe e desce, não havia passado nem mesmo um minuto.
Continuei a caminhada. Ao atravessar a rua, reparei que nela não
havia movimento. Nada. E eu acreditava que em uma capital as
pessoas não dormiam!
Ao me aproximar do barzinho, comecei a ter uma faísca de
raiva. Tudo estava fechado. Fiquei meio sem ação. Saí caminhando
sem direção. Percebi que os outros bares também não estavam
abertos. Decidi continuar.
Por algum tempo esqueci que havia prometido a mim mesmo
que iria parar de beber, porém pensei em encher a cara com uns
drinques em uma boate.
Também fechada! Fui a um ponto de ônibus e pensei em ir à
praia. Esperei, esperei muito mesmo e o ônibus não passou.
Continuei andando e por mais que eu andasse não havia ninguém
na rua. Achei isso estranho, então tentei ligar para minha esposa.
O celular estava sem área.
Fiquei preocupado e comecei a ir em direção ao bairro que eu
morava antes, acreditando que talvez pudesse encontrar um amigo.
Ninguém. Bati na porta da casa de três amigos e nada. Tentei
relaxar, todavia estava triste por ter ficado sozinho em casa.
Prossegui em minha caminhada. Olhei mais uma vez para o relógio,
ainda era meia noite. Notei que isso não fazia o menor sentido, o
tempo não passava, então joguei o relógio fora.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 37 -

Após algumas horas perambulando, vi que o dia já estava


nascendo. A luz do sol veio até mim e me deu certa tranquilidade.
Pensei em tomar um banho de mar.
A água estava muito fria e, por isto, preferi apenas andar um
pouco mais. Não via ninguém em nenhuma das partes da praia.
Tudo isto era estranho. Falei comigo mesmo:
― Mas onde estão as pessoas? ― falei em voz alta.
Irritado, comecei a pensar em retornar ao Duplex
caminhando, porém não aguentava andar como antes. Meus pés já
estavam cansados e doloridos. Respirei fundo e fui ao ponto de
ônibus. Nada. Nem ao menos um. Andei mais.
Ao ver que eu havia percorrido todo o trajeto de volta ao
Duplex, notei que as ruas permaneciam vazias.
Tudo estava fechado. Olhei em um relógio velho em frente a
uma loja e ele mostrava meia noite. Tudo está com defeito? Que é
isso? Minha cabeça estava quase explodindo.
Comecei a imaginar muitas coisas: será que todos foram
raptados por ETs? Ou foram levados por uma nave espacial? Será
que a terra se abriu e todos caíram na cratera? Será que há uma
guerra e as pessoas tiveram que fugir rapidamente? Foram
arrebatados? Ou deve ser uma “pegadinha” criada por uma
emissora de TV? Nada disso, todos sumiram.
Tentei me acalmar e então me lembrei de uma canção do Raul
Seixas: “O dia em que a terra parou”. Teria sido isso? Não era uma
canção, mas uma Profecia. Talvez o Apocalipse de João?
Ao entrar em meu quarto vi que tudo estava do mesmo jeito.
Eu estava com muito sono. Deitei-me na cama ainda desforrada.
Não demorou para eu pegar no sono. De repente, abri meus olhos
e vi que tudo estava sombrio. Dei um grito:
― Socorro!
Ao meu lado, uma luz pequena se ascendeu lentamente e,
depois, ficou maior. Tremi na cama ao ver isso. Ouvi uma voz suave
que me perguntou:
― Que tem?
― Medo! Onde estão as pessoas do mundo? ― perguntei sem
olhar para a luz.
― Nos seus devidos lugares! ― respondeu-me a voz
suavemente.
― E que lugar é este? ― continuei.
― Você saberá quando perguntar a elas! ― disse-me
secamente.
― Não, por favor, não me leve! ― supliquei.
― Que raio de conversa é esta! Outra vez? Sou eu, Melissa.
Ficou com medo do escuro? A luz acabou depois da chuva. Você

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 38 -

teve outro pesadelo. Agora, vá dormir que ainda é meia noite.


Lembre-se de que amanhã é dia primeiro e você precisa acordar
cedo. Boa noite! Tenta não fazer mais barulho!

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A CARTA
(05/09/2010)

Alguns dias depois de noites mal dormidas, estava eu na


redação do jornal onde trabalho, quando Williams James mostrou-
me a notícia que ele havia escolhido para a manchete:

Havia na cidade uma moça chamada


Sara. Uma moça mimada que sempre
tinha tudo o que queria e mandava em
todos de sua casa. Ela era a
personificação da meiguice para os de
fora, mas desagradabilíssima para os de
casa. Então, em uma manhã de segunda-
feira, ela chegou da escola, entrou no
quarto, fechou a porta e apagou a luz. As
pessoas da casa estranharam esta
atitude, pois sempre que ela chegava da
escola dava ordens para prepararem seu
lanche. Neste dia, ela entrou calada e
triste. Entretanto concordaram que era
apenas uma coisa da idade. “Estes
jovens de hoje andam com os nervos à
flor da pele”, pensou sua mãe. Durante
três dias, a porta do quarto de Sara
permaneceu fechada. Depois de muita
insistência, seu pai, o senhor Cláudio,
chegou ao auge da preocupação com a
filha e resolveu pedir para que ela
abrisse a porta – desta vez, de forma
desesperadora. Seus esforços foram em
vão, a porta não se abriu. Ele, em uma
ação agressiva, arrombou a porta e, ao
olhar para o teto do quarto da moça,
tomou um terrível susto: ela estava
pendurada em uma corda. Sara tinha se
suicidado. Ela ainda usava as mesmas
roupas que tinha regressado da escola
três dias antes.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 40 -

Ao ler isto, não posso negar que aquilo me doeu. Não falei
nada. Pedi permissão e saí da sala sem fazer comentários. Meu
chefe estranhou aquela atitude, pois sabia que eu estava
acostumado a ler e até mesmo a relatar fatos bem mais duros que
aquele.
Tentei almoçar – a comida me parecia úmida demais. Nem
aceitei o café. Saí dali meio enjoado e sem a menor vontade de
retornar ao trabalho naquele dia. Tudo ficou sombrio e desprezível.
Não senti interesse em nada mais pelo restante da tarde. Fui para
casa.
Melissa estava sentada como de costume na sacada do
Duplex. Ela usava um vestidinho vermelho, com detalhes pretos.
Suas curvas suaves e sua aparência física ainda eram a mesma de
outrora. Dez anos casados e nada de filhos. Isto me fez lembrar
daquela moça. Sara – este era o nome de uma jovem que teve sua
vida interrompida, ceifada!
Eu sentia que precisava esquecer essa história. Olhei para os
olhos de minha esposa, que sempre me fizeram feliz. Por muitos
momentos eles foram reconfortantes – ainda são.
Melissa me conhecia bem, deve ter percebido meu olhar
introspectivo. Ela, no entanto, não me perguntou nada. Olhou para
mim insinuante e apontou para o quarto. Eu a segui resignado. Ao
aproximar-se da cama, ela começou a tirar o vestido e tocou-me
com excitação. Eu deixei a tristeza de lado e a envolvi em um abraço
caloroso. Ela tirou o restante da roupa e, antes de deitar, também
tirou a minha. Passamos horas e horas nos amando.
Adormeci. Despertei algum tempo depois e vi que a minha
amada chorava e soluçava. Não entendi o que se passava com ela.
Foi aí que notei que ela segurava um papel em suas mãos. Pensei
que fosse a manchete do jornal ou qualquer outra coisa. Tentei
acalmá-la, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Ela não
parava de lamentar. Pedi o papel e li o que havia sido escrito e tomei
o maior susto ao ler essas palavras:

Melissa você é como uma mãe para mim e por isso eu


preciso te escrever essa carta amanhã quando eu
voltar para casa eu me matar pois não aguento mais
viver assim o meu pai minha madrasta minha tia
meus irmãos e irmãs não ligam para mim e acho até
que eles nem irão notar minha ausência por um dia
inteiro eu te amo professora não chore ore por mim

Sara (02/09/2010)

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 41 -

NOSSO FILHO
(10/09/2010)

― Não estou grávida! Desista, pois isto não vai acontecer. Sou
uma figueira seca! Você pode me deixar, se quiser... Não vou te
julgar por isso.
Estas foram algumas das últimas palavras de Melissa após
uma longa conversa comigo sobre nosso filho. Antes de nos
casarmos, nós havíamos falado sobre isto: eu queria filhos e ela
também. No entanto, os anos passaram e nada. Dez anos! Era algo
que nós dois falávamos um ao outro.
Tentamos todos os métodos naturais e científicos, mas o
resultado era o mesmo: negativo. Isto atrapalhava a nossa relação
a ponto de cogitarmos divórcio. Um de nós recuava e desistia dessa
loucura, afinal nós nos amávamos. Neste dia, no entanto, ela me
pareceu bem diferente, se mostrou decidida e saiu em busca de
uma advogada para dar entrada nos papéis do divórcio. Fiquei sem
chão.
Ao final da tarde, retornei ao Duplex e vi que ela já estava com
uma montanha de documentos, que só precisavam de minha
assinatura. Eu não tinha interesse em fazer isso, eu a amava muito.
Foi então que tive uma ideia e comecei o assunto:
― Tenho uma proposta para você...
― Fale.
― Você me ama?
― Eternamente.
― Quer uma saída?
― Sim.
― Vamos transar!
― Quê?
― Vamos fazer isto de forma diferente.
― Como assim?
― Dez dias, dez posições!
― Que ideia é essa?
― Quantos anos nós estamos casados?
― Dez anos!
― Então, eu só quero dez chances de mostrar o quanto te amo!
― Só isso? Mas eu nunca duvidei de teu amor. Não precisa.
― Mas eu quero assim mesmo, aceita?
― Tudo bem, mas com uma condição...
― Combinado!
― Não quer nem saber que condição?

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 42 -

― Confio em você! ― finalizei a conversa já tirando os sapatos.


Fizemos amor ali mesmo na sacada à luz do luar. Repetimos
isso durante os dez dias combinados. Minha esposa nem imaginava
o que eu tinha em mente. Logo pela manhã saí cedo. Na hora do
almoço, fui ao hospital fazer uma consulta com um urologista. Algo
em minha mente começou a me dizer que talvez o problema fosse
eu e não ela. Esta poderia ser a última chance de recuperar a
mulher de minha vida.
Fiz os exames e cheguei a uma triste constatação: negativo.
Eu não tinha nada. Saí do consultório e fui à praia. Chorei
amargamente.
― Que farei? Não posso perdê-la!
Ideias e mais ideias iam surgindo em minha cabeça, mas
todas elas tinham um ponto fraco e nada iria resolver. Pensei até
em adotar uma criança.
Vaguei por algum tempo pela praia. Eu não sabia o que fazer
e nem a quem recorrer. Voltei para casa e tentei descansar, porém
a com o passar dos dias mais a minha angustia aumentava.
Dias depois, no décimo dia, ao retornar do trabalho vi um
bilhete em cima da mesa, li o texto e lamentei muito. Dizia apenas:

O combinado era que eu te daria dez dias de muito


amor e depois iria embora ao décimo dia pela manhã.
Adeus, meu amor. Eu estarei em teus sonhos. Nunca te
esquecerei.

Melissa (20/09/2010)

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 43 -

A MORTE EMINENTE
(20/09/2010)

A partida de Melissa desmoronou minha vida completamente.


E nestes últimos dez anos eu não havia ficado tão longe de seus
braços. Logo pela manhã, não sentia desejo de ir trabalhar, então
preferi ficar em casa. Williams James me ligou furioso e gritou
histericamente comigo. Disse-me que eu só tinha trinta minutos
para aparecer na redação do jornal, caso contrário seria demitido e
não teria direito a nada. O que aconteceu? Não fui e pronto.
Por telefone ouvi um grito:
― Você está fora!
Não sei o motivo, mas não senti nada ao escutar isto. Na
verdade, fiquei meio satisfeito, uma vez que eu ganhava muito mal
e nunca mudei de cargo, apesar de trabalhar na redação do jornal
há 12 anos.
Desempregado e sem mulher: poderia acontecer algo pior? Foi
exatamente o que aconteceu. No outro dia, precisei ir ao banco para
retirar o meu salário do mês, na verdade o meu único dinheiro, pois
o meu saldo bancário estava no vermelho com as despesas de
medicamentos para tratamento de minha companheira.
Ao entrar no banco notei que havia muitas pessoas sentadas,
outras em pé na fila e outra parte ao lado tentando formar mais
uma fila. Vi que meu dia iria ser muito cansativo. Pouco tempo
depois ouvi uma voz dura e imperativa:
― Levantem as mãos, isto é um assalto!
― Isto só podia ser uma brincadeira! ― falei comigo mesmo.
Eu já estava esgotado com os problemas e ainda teria que
suportar ficar sem nenhum real em meu bolso. Três ladrões, sem
vendas, estavam roubando o banco e eu ali estático. Não sei de onde
veio tal ideia, mas peguei o meu celular para fazer uma ligação
secreta e, em seguida, falei em alto tom:
― Caros colegas, o que vocês pensam que estão fazendo?
― Quem é você? ― perguntou-me o de aparência mais jovem.
― Eu? Um simples jornalista. ― respondi sem piscar os olhos.
― Qual é o teu nome, cadáver? ― perguntou-me o mais forte
engatilhando a arma.
― Márcio do Jornal Ponto X.
― Tudo bem “Márcio”, qual é o teu pedido final?
― Saiam daqui agora!
― Tá maluco, meu! Que é isso?

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 44 -

― Durante o tempo que vocês estavam contando as notas eu


comuniquei ao Batalhão de Polícia da cidade que estava havendo
um assalto aqui neste banco. O delegado me disse que em cinco
minutos eles estarão aqui para pegá-los. Rendam-se e nenhum será
morto, prometo.
Ao dizer isto, o mais forte baixou a arma e me fez um pedido:
― Por favor, não deixe que eles nos matem. Nós podemos ser
presos, não iremos reagir, pois nossas armas nem são de verdade.
Fala isso para eles!
― Tudo bem. Liberem todas as pessoas!
Uma hora depois, os assaltantes se renderam e a polícia os
levou para a prisão central. Alguns minutos depois, o meu ex-chefe
me ligou. Falava alegremente e me pediu para voltar ao meu antigo
emprego.
― Voltar? ― interroguei-o tentando mostrar surpresa.
― Sim, por favor, volte! Eu farei o que me pedir!
― Quero o cargo de editor mais um acréscimo no salário.
― Fechado!
Falou-me isto com firmeza. Aceitei, mas fiquei imaginando o
que teria acontecido se os assaltantes soubessem que o meu celular
estava descarregado e que eu nem sabia quem era o delegado de
polícia.
― Que risco? Foi loucura! E se armas fossem de verdade?

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PROPOSTA INFERNAL
(21/09/2010)

Eu tinha um novo emprego, entretanto não me sentia bem,


tornei-me muito infeliz, pois a ausência de minha esposa fazia-me
estremecer de dor e angústia, especialmente à noite. Cada dia sem
ela era como se o ar ficasse escasso, dificultando minha respiração
a ponto de sentir que as batidas de meu coração iriam parar.
Eu estava muito cansado, precisava ir para casa. Ao final do
expediente, por volta das nove da noite, saí pelas vielas da cidade.
Todos os passos que eu dava custavam-me um tremendo esforço
físico e mental. Meu corpo estava ali, mas meu coração flutuava nas
lembranças dos momentos felizes que vivi com Melissa.
Andei por mais alguns metros e vi um senhor de chapéu preto
ao lado de uma casa velha. Ele tinha uma aparência bizarra. Um
terno preto, com uma capa vermelha semelhante à de um mágico.
Usava uma bengala meio torta, curvada para baixo, como se fosse
uma machadinha. Eu tentava, mas não conseguia assimilar aquela
fisionomia. Foi então que me surpreendi com essa frase:
― Quer entrar e fumar um charuto, senhor Márcio?
― Charuto? E de onde é que você me conhece? ― interroguei-
o meio espantado.
― Eu o conheço desde a sua gestação. E você também sabe
quem sou eu. Já sonhou comigo muitas vezes, por isso estou aqui.
Ao falar essas palavras, ele sorriu. Um sorriso assustador que
me fez sentir um frio que vinha daquela casa velha e abandonada.
― Vai entrar ou não? Podemos conversar um pouco? ― ele
disse isso abrindo a porta da casa e ascendendo uma lamparina
antiga.
Não sei o motivo pelo qual fiz isso, mas algo me fez entrar após
ele. Eu não sabia nem o nome e nem de onde ele vinha, porém senti
um grande desejo de descobrir tudo o que havia ali dentro, bem
como o que ele tinha para me dizer.
A casa por dentro parecia ter mais de cem anos, talvez mais.
Móveis velhos e maltratados. Teias de aranha em todo lugar. Muita
poeira pelo chão. As paredes eram amareladas e havia ali, também,
uma biblioteca com livros empoeirados e repletos de mofo. Gatos
pretos andavam pelos sofás e cadeiras no corredor estreito. Havia
lixo espalhado pelo assoalho.
Vi também quadros esquisitos, com imagens de funerais, fotos
de mulheres sem a genitália, velhos amarrados, homens

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 46 -

acorrentados a árvores em chamas e crianças comendo os seios das


mães.
Havia um quadro com pessoas cortando os dedos com uma
serra de pontas afiadas e, ao olhar fixamente para ele, tive uma
ligeira impressão de que as pessoas nele pintadas estavam me
observando.
Continuei seguindo o homem estranho sem comentar nada.
Ele se mostrava empolgado com minha presença, ora sorrindo, ora
falando palavras ininteligíveis. Paramos em uma sala escura, só se
podiam ver duas cadeiras feitas de madeira, mas cobertas por peles
de animais.
― Fale-me de uma vez! Quem é você e o que quer de mim? ―
iniciei a conversa ainda em pé.
― Uma troca! ― respondeu-me enquanto ascendia uma lareira
enorme que estava perto de sacos pretos amarrados com cordas
brancas.
― Tenho muitos nomes! ― E neste momento abriu um livro
antigo de capa dura ― Neste livro que vocês chamam de “Bíblia
Sagrada” há uma lista enorme de meus nomes.
Ao dizer isso, fiquei atônito. Procurei forças para falar, porém
o pavor tomou conta de meu corpo. Fiquei por algum tempo imóvel,
com a respiração presa. Não ousava pronunciar palavra.
Ele quebrou o silêncio:
― Quer sua mulher de volta? Quer que ela tenha um filho seu?
Posso te dar tudo isso e muito mais!
Refleti sobre cada palavra e continuei calado. Ele continuou:
― Você poderá tê-la quando desejar, basta fazer o que eu
pedir.
Dizendo isso, ele tomou um pedaço de madeira em chama e
acendeu um charuto que parecia um chifre de cervo. Dele saía odor
de enxofre e fumaça azul.
Respirei fundo e, então, falei:
― O que tenho que fazer? O que deseja em troca?
― Sua alma! ― falou sorrindo.
― Jesus Cristo!
Ao ouvir o nome de Cristo, o demônio mudou sua face e gritou:
― Cale-se! Não repita isto! Se o fizer, será morto neste fogo!
Com receio de que algo me acontecesse, tentei mostrar que
havia usado apenas uma frase qualquer. Ele repetiu a proposta
mais uma vez e finalizou dizendo:
― Temos um acordo?
― Nunca! ― ao pronunciar esta palavra, eu o fitei.
― O que me diz?

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 47 -

― Nunca me terás, sirvo unicamente a Jesus Cristo. Pode me


levar, mate-me como preferir, mas saiba que o meu Deus não
permitirá que o mal me aconteça!
O demônio, enfurecido, fez uma sentença:
― Tu não terás paz! Perderás tudo! Tua mulher irá morrer, teu
filho também! Quanto a ti, nunca mais viverá um dia feliz! A tua
alma será minha e, para prová-lo, tome isto! ― Ele lançou brasas
em meus pés, queimando-os por dentro. Fiquei de joelhos e comecei
a orar.
― Deus, livra-me deste iníquo! Tira-me das mãos deste
opressor!
Não vi mais nada. Tudo ficou escuro. Senti dores por todo o
corpo, meu pescoço estava duro e caí em um sono profundo. Abri
os olhos e não acreditei naquilo que estava acontecendo comigo. O
relógio marcava dez horas da noite e eu ainda estava no jornal.
― Meu Deus, outro pesadelo! Quando isso vai parar?
Perdi a hora e adormeci por cima da mesa do computador. No
entanto, algo começou a me incomodar, meus pés estavam doendo
muito. E isso me fez sentir uma forte sensação estranha. Peguei em
um dos sapatos e fui tirando-o e, ao mesmo tempo, olhava para
cima, como quem está orando a Deus.
Retirei a meia e então vi uma enorme queimadura preta. Meu
Jesus Cristo! Gritei.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 48 -

NO METRÔ
(21/09/2010)

Ajeitei os sapados, fechei a camisa e abanei a cabeça um


pouco, em sinal de desânimo. Desci as escadas. Tranquei a porta
principal do Jornal e fui em direção ao ponto de ônibus. Vi uma
senhora idosa, que fumava um cachimbo pequeno, sentada ao lado
de uma moça muito bela. A senhora usava um vestido velho, meio
sujo. Tinha uns cabelos grisalhos. Do outro lado, a moça parecia
estar à procura de alguém, pois a todo o momento olhava para os
dois lados da rua. Ela se mostrava impaciente com a demora do
transporte, assim como eu.
Aproximei-me da senhora e perguntei sobre qual seria o
próximo ônibus. Ela me respondeu, entre uma tragada e outra, que
talvez não houvesse mais nenhum naquela hora.
A moça indagou:
― Como assim?
― Já passou das onze da noite. É provável que não tenha mais
ônibus, só o metrô que passa logo depois do último ônibus. Eu, na
minha idade, não posso ir correndo. Mas quanto a vocês dois... Ah!
Deviam ir logo.
A velha falou tudo isso cuspindo a cada palavra. Fiquei meio
enjoado. A moça estava preocupada com a velha:
― E a senhora, para onde vai?
― Não se preocupe! A minha filha vem me buscar, eu sei. Ela
já me disse que vinha, mas eu não queria esperar. Olha ela ali.
A velha entrou no carro da filha e nem perguntou se um de
nós dois morava perto dela. A moça concordou comigo com um
olhar, mesmo eu tendo ficado calado:
― Velha! Nem quis saber para onde vamos!
― Hum! Hum! Verdade! ― balancei a cabeça, em sinal
afirmativo.
― Ah, perdão... Sou Aline, meu nome é Aline e o teu?
― Márcio.
― Vamos correr? ― Olhei para ela e vi um sorriso bem
determinado. Decidi que tentaria. Fomos em direção ao metrô e
vimos um trem, que já estava quase de partida.
Entramos e fomos sentar próximo das janelas do final do
trem. Durante a viagem, Aline conversava olhando-me nos olhos e
abria seu coração. Falava-me da separação de seus pais, da
violência que sofreu no orfanato, das brigas na escola e outros
assuntos.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 49 -

― Quantos anos você tem? ― sussurrei.


― Vinte anos! ― respondeu-me com um sorriso meio sensual.
― Sério? ― continuei ― o que está fazendo tão tarde e longe de
casa? Você mora onde?
― Não tenho onde dormi. Fui despedida e não tenho para onde
ir. Minha família não é daqui e não conheço quase ninguém. Tenho
um tio, mas ele mora em outra cidade.
― Quer ir para o meu Duplex? É na próxima parada ― fiz esta
proposta acreditando que ela iria recusar ou dizer que não tinha
coragem de sair com um estranho. Então ouvi o inesperado:
― Vou sim! Mas você tem que me prometer que vai dormir
comigo! ― então deu um sorriso encantador.
― Você está falando sério? ― falei enquanto a olhava nos
olhos.
Fiquei impressionado com tamanha ousadia. Ela, ao
contrário, parecia realmente interessada. Eu era um homem de
trinta anos e ela, parecia muito mais jovem do que eu e, de fato,
era. Confesso que senti vontade de tê-la, mas meu coração
pertencia a Melissa. Entretanto eu estava só e ela era uma mulher
muito sexy. Pude perceber isso quando ela soltou os cabelos e abriu
dois botões da blusa vermelha que usava.
Quando o trem parou, ela disse em meio a um grande sorriso:
― Vamos!
― Sim! ― falei tão baixo que quase não fui ouvido. Eu
realmente estava sem jeito para aquilo. Nunca havia traído minha
esposa. Caminhamos algumas quadras até o Duplex.
Entramos pelo portão principal e fomos direto ao Duplex. Ela
olhou atentamente para cada parte do apartamento, especialmente
para os móveis que estavam na sala. Pediu-me para tomar um
banho e trocar de roupa. Enquanto ela banhava-se, eu fui à sacada
e olhei para a cidade iluminada. Recordei dos bons momentos que
tive com minha adorada mulher.
Uma ideia me fazia passar mal, mas falei comigo ― É só sexo,
nada mais!
Ouvi a voz dela que estava ao meu lado, chamando pelo meu
nome. Ela usava um roupão preto de minha esposa que tinha um
laço vermelho. Veio em minha direção, tirando o laço
vagarosamente e deixando o copo torneado aparecer aos poucos.
Tinha a aparência de uma atriz de cinema. Muito sexy. Curvas
perfeitas. Qualquer homem daria tudo para estar em meu lugar
nesta hora. Porém, eu disse em tom bem suave:
― Aline! Perdoe-me a sinceridade. Você é uma bela mulher,
mas eu ainda amo minha esposa e não tenho forças para traí-la.
Então te peço, por favor, que esqueça o que houve aqui e se desejar,
pode ir dormir no segundo quarto.

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 50 -

― Espero que tua mulher saiba reconhecer o grande homem


que tem. Nunca nenhum homem fez por mim tal demonstração de
amor. Eu sinto inveja dela. Tudo bem. Vou deitar, mas antes
podemos beber algo? ― ela falava tudo isso com a voz meio presa
na garganta.
Sentamos no sofá da sala e bebemos algumas taças de vinho.
E no meio de quarta ou quinta eu apaguei completamente.
Durante a madrugada ouvi algumas vozes dentro do Duplex
que diziam:
― Vamos matá-lo?
― Não é necessário. Já pegamos tudo. E quanto a você, Aline,
o teu saldo conosco foi quitado. Lembre-se de nunca mais morar
em uma de nossas casas, pois se não pagar é isto que acontece. Só
que na próxima vez não iremos querer dinheiro, entendeu?
― Sim. Por favor, não o mate. Ele não sabe de nada. Vocês já
roubaram tudo. Nos deixe em paz agora!
― Tudo bem. Ah! Esta TV de plasma eu adorei, vou levá-la
também.
Eu ouvi tudo aquilo calado e imóvel. Tentei me mexer, mas
minhas pernas não se moviam, minha cabeça doía muito.
― Devo ter sido drogado por ela ― foi o que pensei, antes de
adormecer profundamente outra vez.
No outro dia, quando acordei, vi que minha casa estava
bagunçada. Levaram quase tudo. Eu só conseguia pensar em uma
coisa:
― Aline! Onde você está? Que te fiz para pagar por isso? ―
gritei em vão, pois ela havia sumido. Olhei para uma das portas e
vi um bilhete escrito com tinta azul:

Márcio, eu acredito que você deve estar me odiando,


mas acredite em mim! Não fiz isso por mal. Aqueles
homens iriam me matar se eu não tivesse arranjado o
dinheiro. Eu vi que você é um homem de bom coração e
que provavelmente teria o dinheiro em casa. Eu pensei
em te pedir, porém desisti quando você me falou do
amor pela sua mulher. Eu não queria que te fizessem
mal. Vou embora. Um dia te pagarei, não sei como.
Tudo o que te falei era verdade. Só menti numa coisa:
não tenho vinte anos, só tenho dezoito. E mais uma
coisa, eu nunca me deitei com homem algum, pensei em
fazer isso contigo porque realmente gostei de você! Até
um dia!
Aline.
(22/09/2010)

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 51 -

A RUIVA
(22/09/2010)

― Trinta e um anos! ― pensei comigo. Na verdade, eu não


tinha nada para comemorar naquele dia. Meus pensamentos eram
meios sombrios e melancólicos:
― Perdi minha esposa, fui assaltado e quase fui morto em
casa. Que mais pode acontecer? Que vida é esta? Deus meu, livra-
me destas dores!
― Você está atrasado ― gritou o meu chefe quando cheguei ao
trabalho às nove e meia da manhã.
― Só porque hoje é seu aniversário, acha que pode fazer o que
bem entender! Cuidado: já te botei pra fora uma vez, não queira que
eu faça isso outra vez! ― continuou falando por mais de quinze
minutos, mas confesso, só ouvi uma coisa: “[...] seu aniversário
[...]”, todo o resto que foi dito antes e depois não entrou em minha
cabeça.
As horas passavam rapidamente. Quando percebi já era hora
do almoço. Saí do Jornal caminhando lentamente. Não senti
vontade de comer nada, então fui à praia tomar um banho de mar.
Estava resolvido a não voltar ao trabalho e tão pouco estava
preocupado em ser demitido, já havia passado por aquilo antes.
Ao chegar à praia notei que havia pouquíssimas pessoas. Uma
mulher me chamou muito a atenção: uma ruiva. Uma mulher de
estatura média, corpo firme, usando uma roupa colada, sutil, mas
muito sensual. Fiquei a admirando por algum tempo. Foi então, que
ela olhou para mim e deu um sorriso meigo. Vendo isso, caminhei
até ela e perguntei como se chamava:
― Rebeca! ― falou, me mostrando uma cadeira.
― Eu sou Márcio e é um prazer conhecê-la!
― Prazer? Não senti isso ainda hoje. E olha que estou muito
afim!
― Que é isso, moça? ― indaguei, mas ela ficou apenas me
olhando.
Conversamos por algum tempo. Fiquei muito surpreso
quando ela começou a falar que estava interessada em uma
aventura sexual. Ela foi direta e disse tudo o que pretendia:
― Sério mesmo! Que bom que você apareceu! Tá afim de uma
tarde bem quente? Não fique envergonhado, eu sou assim mesmo,
quando quero um homem, eu não sou tímida. Quero você e pronto.
Topa?

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― Quer saber? Quero sim, vamos ao meu Duplex agora.


― Ótimo! ― esta última palavra saiu da boca dela com um
toque de saliência.
Quando ela entrou no apartamento ficou meio impressionada
com o tamanho. Apesar de ter sido roubado, um dia antes, eu havia
comprado outros móveis, bem como uma TV nova, aparelho de som
e muitas outras coisas que já estavam lá desde a tarde, mas que eu
não tinha estado em casa e por isso tudo estava nas caixas.
― Que bagunça é essa? Quanta coisa nova? Você tem muita
grana?
― Claro que não! São só umas coisinhas que comprei, mas
isso é uma longa estória. Vamos ao que interessa! Ouvindo isso,
Rebeca tomou minhas mãos e disse-me baixinho para ter calma.
Ela precisava tomar um banho e que iria demorar um pouco.
Quase uma hora depois ela saiu do banheiro com uma roupa
preta, de couro, usando uma cinta-liga, uma calcinha fina, cheia de
lacinhos pequenos e com um sutiã transparente.
Eu vi tudo aquilo e fiquei imaginado o que ela iria querer fazer
primeiro. Aquela mulher era demais e por um segundo não consegui
pensar em mais nada. Senti um cheiro forte, que me deixou meio
embriagado. Ela olhou-me e para a minha surpresa, mostrou-me
uma algema, duas cordas finas e um chicote.
― Qual é? Você é algum tipo de masoquista? Eu nunca fiz isso
― não pude concluir a frase, pois ela tampou minha boca com uma
fita. Agarrou-me com força e amarrou-me com uma das cordas. Eu
fui imobilizado completamente. Ela usou a segunda corda para
amarrar as minhas pernas e em seguida deitou-me na cama, de
forma que fiquei deitado com as mãos presas na cama pela algema
de aço.
Logo depois, ela trouxe umas velas pretas e as ascendeu ao
lado da cama. Confesso que isso já estava ficando meio assombroso.
Estávamos ali e nada de beijo e nem sexo. Só uma cena bizarra. E,
ao olhar para ela, vi algo muito estranho, não vi mais aquele sorriso
engraçadinho de antes, mas um sorriso macabro e assustador.
Seus olhos mudaram de cor ficando amarelos. O cabelo ruivo
tornou-se vermelho e suas unhas começaram a crescer e ficar
pontiagudas.
Ela iniciou um ritual que acreditei ser de bruxaria, todavia ela
pronunciava palavras que eu não conseguia compreender:
― Domine! Pater! Ubi es? Servam tuam sum, hodie et semper,
pater!1

1 N. A.: Ó senhor! Ó pai! Onde tu estás? Eu sou tua escrava, hoje e sempre, ó pai!”.

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Ela gritava e continuava falando em uma língua estranha,


talvez em latim.
Eu estava ali impotente, amarrado e sem forças, então
comecei a orar a Deus em voz baixa, quando de repente ela olhou
para mim e disse:
― Você bem sabe o motivo de eu estar aqui. Ele, o meu pai, o
demônio, me enviou para levar a tua alma até ele. Deves morrer!
Agora! ― ela tomou uma adaga pequena que trazia junto de si e
olhou para mim e quando ia cravar em meu coração, vi uma sombra
atrás dela.
A pessoa a derrubou com uma pancada forte na cabeça,
deixando-a inconsciente. Não acreditei no que estava vendo,
Melissa havia retornado. Tentei gritar, mas a fita impedia minha voz
de sair.
― Calado! Não tente falar nada. Eu não posso sair alguns dias
e você já saiu com uma vadia destas. Depois conversamos. Preciso
dar uma surra nesta piranha.
Melissa não disse mais nada e pegou no braço de Rebeca e a
levou para a sacada. Eu continuei amarrado, mas podia ouvir as
pancadas duras que minha esposa dava na moça. Tapas e mais
tapas.
― Que surra! ― sorri sozinho.
Após uns vinte minutos, Melissa veio e ficou me olhando com
uma cara de desaprovação. Desamarrou-me e começou a falar com
voz imperativa:
― Escute aqui, Márcio, eu sou sua esposa e não aceito que
você seja de outra mulher. Eu te amo e foi por isso que voltei. Antes
de vir aqui hoje, estive na praia e vi vocês dois. Então eu os segui.
Eu entendo, já faz algum tempo que fui embora e acredito que você
suportou muito bem e é compreensível que sentisse vontade de sair
com uma mulher. Eu te conheço e sei do que gosta. Mas da próxima
vez eu corto o seu passarinho, ouviu? Vou chamar a polícia para
prender esta prostituta ― finalizou as palavras com um beijo amável
na minha testa.
Não pude me controlar ouvindo tudo aquilo. Comecei a
abraçá-la e pedir-lhe perdão por ter sido tão tolo para cair na
conversa daquela mulher. Melissa não quis mais tocar no assunto
e nem quis saber o motivo da casa estar tão bagunçada, pelo menos
naquele momento.
Depois, a polícia veio e nos interrogou sobre o que havia
acontecido. Minha esposa explicou para eles que aquela mulher se
tratava de uma prostituta perturbada, que tentou fazer umas coisas
bem loucas comigo, incluindo sexo masoquista com cortes na pele
e tudo mais. Eles sorriam enquanto a ouviam, olhavam-me com ar

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de zombaria. Fiquei imaginando que eles a levariam e,


provavelmente, iriam soltá-la em seguida. Eu não falei quase nada,
apenas fiquei sentado, balançando a cabeça e confirmando tudo o
que minha esposa dizia. Por fim quando eles já haviam saído, ela
olhou para mim, com um olhar sério.
― Sabe que horas são? ― e sentou-se ao meu lado.
― Quase sete, eu acho. Por quê? ― disse.
― Ainda dá tempo. Ponha suas roupas!
― Como assim, vamos a algum lugar?
― Sim! Eu te mostrarei nossa futura casa. E mais, hoje é teu
aniversário, ainda é cedo. Temos muito tempo para nós dois!
Pensou que tudo acabaria assim? Vamos logo que estou pegando
fogo, apesar da raiva que estou dessa puta!
― Este será o meu melhor aniversário de todos os tempos,
enfim! ― sorri animado.

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O RECOMEÇO
(23/09/2010)

Em nossa nova casa, Melissa e eu começamos uma vida nova


e estávamos indo bem. Deixamos o passado de lado e recomeçamos
a vida juntos. Amávamo-nos muito e confiávamos um no outro,
independentemente da situação.
A casa que ela comprou com o dinheiro que havia recebido de
seu antigo emprego, era um verdadeiro lar, um lugar amplo,
aconchegante e lindo.
Em uma primeira olhada, vi que as paredes da casa eram
antigas, porém bem conservadas, tinha uma escada longa que ia
dar em um primeiro andar, com dois belos quartos, um de casal e
outro também confortável. Ao me mostrar este segundo, Melissa
olhou-me por algum tempo, calada. Depois me abraçou fortemente
e então falou carinhosamente:
― Este aqui será para o teu filho! ― e então, abraçou-me
intensamente.
Quase chorei de alegria ao ver que ela ainda acreditava que
poderia engravidar, mesmo sabendo que não seria uma tarefa fácil,
uma vez que já havíamos tentado tantas vezes.
Eu a segurei nos braços e a deitei no chão, ali mesmo.
Arranquei o seu vestido e a beijei desde o pescoço até a barriga. Por
baixo do vestido só tinha uma calcinha pequena e vermelha.
Ela a puxou lentamente e então pude ver claramente, sob a
luz do sol que entrava por uma das janelas, que seu corpo estava
bem diferente daquele que eu conhecia. Suas curvas se ampliaram
e se tornaram mais rígidas. Os seus seios estavam mais macios e
um pouco maiores. Os beijos dela eram ardentes e excitantes.
Tentei usar proteção, mas ela impediu e me disse que eu não usaria
mais, seria tudo ao natural. Ela estava realmente disposta a
engravidar.
Transamos uma, duas, três vezes. Ela olhava com a boca
entreaberta e segurava-me forte. Demonstrou um imenso desejo de
fazer sexo de todas as posições. Senti um orgasmo profundo e
emocionante enquanto ela acariciava-me com os lábios. Eu a via se
contorcer de prazer, gemendo carinhosamente e suspirando
delicadamente.
Adormecemos ali, sobre o chão frio da casa.
Horas depois, levantei e a levei para a cama. Enrolei-a com
um lençol perfumado que estava por cima de uma cadeira. Fui até
a sala e liguei para o meu chefe e disse-lhe que não iria voltar ao

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emprego, ele, porém pediu-me desculpas e disse que estava tudo


bem, implorou para eu voltar, pois sabia da minha dedicação.
― Não! Adeus! ― encerrei a conversa, desligando o telefone.
Melissa acordou. Estava inquieta, porém contente. Enquanto
estava retirando as roupas das caixas e fazendo o almoço, eu
arrumava os móveis na sala, cozinha, banheiro e quarto. Vi que na
casa havia outro aposento, na parte de cima, mas este estava
lacrado com uma corrente. Achei interessante e fiquei curioso em
saber o que tinha ali dentro.
Eu a questionei sobre aquele quarto e ela disse-me:
― São coisas velhas. O corretor que vendeu a casa disse que
o antigo dono guardou as coisas da mulher dele, logo depois que
ela morreu.
― Vou abri-lo e ver o que tem nele. Mas me diz uma coisa, de
que foi que ela morreu?
― Ele não me disse. Contou-me apenas que ela morreu no
hospital há alguns anos, daí o dono ficou sozinho aqui, portanto foi
por isso que vendeu o imóvel.
Ela continuou falando algo mais, no entanto eu já não estava
mais ouvindo nada. Abri o quarto, entrei e vi inúmeras roupas em
uma cama velha. Havia um quadro na parede, cheio de poeira e nele
tinha uma imagem de uma mulher muito bela, usando um vestido
longo. A mulher deveria ser a esposa do tal homem.
Ao olhar fixamente para o rosto dela notei uma incrível
semelhança com Melissa. Esfreguei os olhos com uma das mãos,
tentando ter certeza de que não estava vendo uma ilusão. Na
verdade, era mesmo o rosto de Melissa, só que mais velha. Minha
esposa tinha vinte e cinco anos e a mulher do quadro parecia ter
uns quarenta, mas a semelhança era inacreditável!
Logo atrás de mim, Melissa gritou:
― Nossa, que horror, ela tem um rosto parecido com o meu!
Como pode ser? ― olhei para Melissa e ela estava branca de pavor.
Toquei em suas mãos e elas estavam geladas e um pouco trêmulas.
Levei-a para o nosso quarto e dei-lhe um pouco de água.
― Calma! Melissa! Tem que haver uma explicação lógica e
racional para tudo isso. Você tem parentes por aqui?
― Não! ― ela falou quase sussurrando.
Pensei em sair e tentar encontrar respostas, mas por onde eu
iria começar, foi então que tive uma ideia:
― Vou procurar nos jornais!
Usei a minha antiga identificação e entrei no Jornal Ponto X a
fim de encontrar alguma informação que esclarecesse o fato.
Vasculhei todos os documentos antigos, analisei todos os que já

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tinham sido digitalizados, porém eu não sabia o que procurar,


minha busca se tornava cada vez mais difícil.
Resolvi então mudar a frase de busca que utilizei e coloquei
“mulher morta pelo esposo”. Não demorou muito e apareceu a
seguinte notícia:

A população da cidade está aterrorizada com a


crescente violência urbana. Nos últimos dias a esposa
do agricultor, identificado como Jonas Monteiro, foi
encontrada morta no hospital central, vítima de um
brutal assassinato cometido pelo médico que afirmara
que a mulher, de nome não informado, estava possuída
pelo demônio. O médico afirmara que precisava impedir
que a criança nascesse, pois ele acreditava que a
criança era filha do mal, isto é, do próprio diabo. A
polícia acredita que, na verdade, esse crime foi
encomendado pelo agricultor que se encontra
desaparecido. O médico também não foi encontrado
para prestar depoimento. O caso permanece em aberto
e as autoridades se recusam a dar mais detalhes sobre
a morte.

Jornal Ponto X (13/10/1985)

Tal notícia me deixou muito preocupado. Imprimi duas vias e


levei para Melissa. Quando ela leu a notícia ficou muito
impressionada e começou a chorar. Fiquei tentando juntar os fatos,
o que fazia ali a foto de uma mulher morta, mas que tinha uma
semelhança impressionante com minha esposa. E mais, havia um
período de tempo considerável entre o caso e nossa mudança para
aquela casa.
― O que nós faremos, meu amor?
― Calma! Nós não iremos sair daqui. Precisamos pensar um
pouco. E não há nada demais nisso, ela já morreu e nós estamos
vivos. Vou tirar tudo daquele quarto, principalmente aquele quadro.
Não chores mais!
Terminei aquela conversa com um beijo, tentando mostrar
que eu estava ali para protegê-la. Fui ao aposento inquietante. Tirei
tudo e queimei roupa por roupa. Não deixei nada, nem mesmo os
objetos maiores como cama, guarda-roupa e armários velhos. O
aposento ficou vazio.

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Ao anoitecer, notei que Melissa quase não conseguia comer.


Ela deixou o jantar de lado e foi para o quarto. Vê-la daquele jeito
me deixou muito triste. Tentei conversar com ela, porém nem
mesmo abriu a porta. Preferi deixá-la descansar um pouco. Fui até
o jardim para tentar pensar em uma solução para tudo aquilo.
Reparei que o jardim era espaçoso, cheio de árvores velhas,
algumas só tinham os galhos, outras mostravam flores secas e
havia uma muito alta, verdinha e com frutos pequenos e vermelhos.
Sentei embaixo desta última e fiquei contemplando a lua. Até
então eu não havia reparado que era noite de lua cheia. Ao ver isto
eu imaginei coisas horríveis. Muita coisa me passava pela mente.
Em uma delas, imaginei que a minha esposa era arrancada
de meus braços e levada para dentro do quadro ― tolice, isto é pura
alucinação! ― balbuciei.
Continuei ali sentado e refleti que naquele momento tanto eu
quanto Melissa estávamos preocupados com um simples quadro.
Levantei-me e entrei. Na cozinha, sentei-me em uma cadeira de
madeira e, de repente, ouvi uma voz aterrorizante atrás de mim,
dizendo:
― Lembras-te de mim? Falei-te que tu não terias paz. Estou
aqui para mostrar-te que perderás tudo. Tua mulher irá morrer.
Teu filho nunca nascerá. E quanto a ti, repito, jamais terá felicidade
alguma. Vim buscar a tua alma!
― Por Deus, Jesus Cristo! Afaste-se de mim, diabo maldito! ―
antes que eu pudesse concluir minhas palavras, vi Melissa, que
parecia está dominada por uma força maligna, se jogar escada
abaixo. Tentei segurá-la ao final da escada, mas não tive forças para
me mover. Eu estava congelado de medo.
― Amor?! ― gritei em prantos.
Ela olhou para mim e tentou pronunciar algo, porém não
compreendi. Ajoelhei-me chorando e abraçando-a. Tentei reanimá-
la. Vi que o diabo saiu por baixo da porta como uma fumaça escura.
Gritei por socorro. Um dos vizinhos veio e chamou uma
ambulância. Ao levá-la ao hospital, o médico que a atendeu disse-
me:
― Sua esposa está muito machucada, mas vai se recuperar
em breve, no entanto...
― Fale de uma vez, por favor! ― supliquei.
― O filho que ela esperava não sobreviveu a esta terrível
queda! Lamento! ― baixei a cabeça e lamentei muito. Talvez fosse
isso que ela queria me dizer enquanto eu a segurava. Por isso ela
havia voltado.

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A CORDA
(24/09/2010)

Eu passei todo o dia no hospital central, aguardando notícias


sobre minha esposa. No entanto, a cada momento, dois fatos
estavam em meus pensamentos: no primeiro, eu relembrava que
Melissa havia se jogado da escada, todavia, no segundo, eu sabia
que tudo aquilo não foi dela mesma, pois lembrei-me da presença
do diabo que estava ali ao meu lado. Ele estava possuindo-a e por
isso ela tentou morrer. E o pior disso tudo é que ela estava gerando
nosso filho, que eu tanto desejava, porém agora, essa criança estava
morta e ela em coma induzido.
― Como enfrentar o próprio demônio, com quais armas? Não
sei o que fazer, meu Deus! ― falei em tom desanimado.
Eu não tinha respostas para esta e outras perguntas que eu
fazia a mim mesmo. Resolvi, então, ir para casa descansar um
pouco. Ao anoitecer sentei-me perto da porta de nosso quarto e
comecei a relembrar dos bons momentos que vivemos durantes
estes últimos anos. Notei que o perfume dela ainda estava em
minhas mãos suadas. Este mesmo perfume teimava em não sair
por mais que eu as lavasse. O cheiro suave e doce dela pairava sobre
o nosso quarto. Olhei para nossas fotos e tentei visualizar os
momentos nos quais foram tiradas.
Passei alguns segundos tentando imaginar o corpo dela perto
do meu, mas logo abri os olhos e vi apenas um vazio. Fechei os
olhos mais uma vez para revê-la, porém senti uma dor muito
intensa em meu coração. Ela não estava ali e a culpa era minha. A
causa de nosso desentendimento foi a minha teimosia. Comecei a
lamentar muito, pois quase a perdi.
Levantei-me do chão e deitei-me na cama. Confesso que
chorei um pouco, mas respirei fundo e tomei um pedaço de papel e
rabisquei um pedido formal de perdão.
― Isso não vai funcionar! Sou culpado e pronto, não adianta
tentar nada!
No entanto pensei em algo que talvez resolvesse tudo:
― Quem sabe a minha partida para bem longe?
Isto me pareceu uma saída de tolo. É isto mesmo, um tolo,
pois foi exatamente assim que eu havia agido antes. Como eu
poderia deixa a mulher da minha vida, especialmente na situação
na qual ela se encontrava? Talvez fosse preciso, mas eu a amava
demais. Tínhamos que resolver tudo.

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― Que faremos, então? ― falei olhando para cima, como se


buscasse os olhos de Deus.
Morrer provavelmente não seria a solução. Confesso que o
suicídio me passou pela cabeça, mas ao pensar nas dores, desistir
rapidamente. Não sou tão forte assim. Acredito que passei tanto
tempo pensando em uma solução que adormeci por cima dos
rabiscos que escrevi.
Acordei e, mais uma vez, a vontade de ir embora passou em
minha mente como um flash de uma câmera. Uma agonia tomou
conta de mim, então olhei para a mesa e vi uma corda grossa,
enrolada em um dos cantos.
Nem posso imaginar como ou o que me fez fazer aquilo, mas
em poucos minutos eu havia tomado a corda e jogado para o alto,
tentando fazer um laço na madeira da casa. Puxei-a e fiz um laço,
arrastei uma cadeira, subi em cima dela e fiquei na posição ereta e,
por final, pus o laço em meu pescoço.
― Devo morrer, pois desta forma o diabo terá minha alma e
deixará a Melissa em paz!
Decidido a tirar minha vida, segurei firme, respirei fundo e
quando já estava olhando para o chão vi uma figura ali no quarto
me olhando fixamente. Fiquei imóvel sem acreditar naquilo. Tal
figura aproximou-se de mim e falou imperativamente:
― Que pensa que estás fazendo?
― Não vês que desejo a morte? Perdi meu filho e minha mulher
está à beira da morte também. Não acredito no que o médico me
disse, eu sei que ela não vai escapar!
― Não Márcio, não faça isso! Eu sei a causa de tudo! ― ao dizer
isto a mulher se aproximou mais ainda de mim e tomou-me pelas
mãos e retirou a corda de meu pescoço.
― Eu não confio muito em você, Aline! Não esqueci o que fez.
Você deixou aqueles homens me roubarem. Mas tudo bem, devemos
esquecer isto. Eu agradeço por ter voltado, só não entendi isso, o
que sabe sobre o que está acontecendo? ― indaguei-a, já descendo
da cadeira.
― Não vou falar muito, mas sim mostrá-lo. Leia isto:

Recentes descobertas podem alterar o rumo das


investigações sobre o assassinado da mulher do
agricultor Jonas Monteiro, uma vez que a criança
nasceu e foi retirada da mãe ainda no berçário.
Enquanto o crime estava sendo praticado pelo médico
que a atendera, a recém-nascida era levada por uma
das enfermeiras, de nome Wanda. O agricultor e o

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médico foram encontrados. O médico que cometeu o


crime horrendo foi violentamente esquartejado em um
matagal pelo esposo da falecida. Diante destes novos
fatos, a polícia resolveu concluir as investigações: o
agricultor Jonas Monteiro será condenado por ter
encomendado o assassinato da esposa e por ter
matado o médico. A criança será adotada pela
enfermeira que a salvou, pois ela demonstrou muito
afeto e está decidida a adotá-la.

Jornal Ponto X (08/12/1985)

― Não entendo. O que isto tem a ver com minha vida?


― Eu explico. Meu tio é ex-policial e foi ele quem prendeu o
agricultor Jonas Monteiro há muito tempo. Meu tio é cristão e muito
religioso, acredita no sobrenatural, para ele, tudo isso era verdade:
ele sabe também sobre a estória da criança filha do diabo.
― Ainda não entendi! ― retruquei.
― Eu estive na casa de meu tio esses dias, me escondendo
daqueles homens que ainda querem mais dinheiro. Mas isso depois
conversaremos. Daí, hoje pela manhã, o meu tio leu um jornal e leu
uma notícia que o perturbou muito. Leu sobre o incidente com sua
esposa. Então, ele se lembrou do nome da criança ao ler o jornal:
Melissa! E na mesma hora, quando olhou para a foto dela notou a
semelhança com a mulher do caso que ele investigou. Disse-me
assim:
― É ela! É ela! Como pode?! ― gritou ele apavorado.
Eu a interrompi, segurando-a pelos braços.
― Você está dizendo que Melissa é a tal criança. Não, não é. O
nome da mãe dela era Sandra.
― Eu sei. Wanda teve de mudar de nome porque além de sair
do emprego, durante muito tempo foi perseguida pela imprensa e
até mesmo pela polícia. E meu tio sugeriu a ela que mudasse de
nome. Ela foi embora um ano depois.
― Meu Deus! Isto é loucura!
― Na verdade não. Você está nessa situação sim, mas há uma
saída ― finalizou sentando-se na cadeira que eu ia usar para fazer
a maior besteira de minha vida.
― Fale-me, pelo amor de Deus!
― Você deve deixá-la e ir embora!
― Não consigo fazer isso!
― Tem que ir embora ou eu terei que matá-la! ― ela olhou para
mim com as pálpebras meio cerradas.
― Matá-la? Por que faria isso?

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― Não vou deixar o homem a quem amo perder sua alma.


Tais palavras me surpreenderam muito. Não imaginei que
aquela garota de apenas dezoito anos era tão decidida assim. No
entanto eu ainda amava Melissa e não podia permitir que ela fosse
morta.
― Aline, eu vou tomar um banho, preciso pensar um pouco,
fique aí mesmo. Eu volto já.
― Tudo bem!
Liguei o chuveiro e enquanto a água fria batia em meu rosto,
comecei a juntar os fatos: Melissa tinha vinte e cinco anos. A mulher
que estava pintada naquele quadro, que estava no terceiro aposento
da casa, já estava morta há exatamente vinte e cinco anos. Ainda
tinha um fato muito importante: o rosto daquela mulher do quadro
era igual ao da minha esposa. Melissa foi dominada pelo diabo e
tentou o suicídio e está no hospital.
― É verdade! O que farei agora, meu Deus?
Passei algum tempo refletindo sobre tudo aquilo. Saí do
banheiro e fui até o quarto. Aline estava deitada, dormindo
suavemente. Eu a enrolei com um lençol branco e me deitei ao seu
lado. Fiquei imóvel e calado. Não conseguia dormir, mas caí no sono
na madrugada. Completamente exausto.
Horas depois, acordei e vi que o sol já estava nascendo. Eu
estava tão cansado que nem notei a ausência de Aline. Levantei-me
e fui até o banheiro, fiz a barba e tomei um banho quente. Retornei
ao quarto para chamar Aline e foi neste momento que percebi o
quanto a minha dor havia me tirado a razão.
― Para onde foi aquela menina?
O telefone tocou. Senti algo muito estranho e por um minuto
hesitei em atender, temendo ser uma má notícia. Foi exatamente o
que ouvi: Melissa havia pulado pela janela do quarto do hospital
central, jogando-se nos fios de alta tesão.
Não contive o choro. Saí correndo em direção ao hospital e
ainda pude ver o corpo dela pendurado nos fios de energia da rede
que ficava abaixo do andar em que ela havia estado hospitalizada.
Minha surpresa foi grande ao ver que Aline já estava lá.
Aproximei-me dela bruscamente, contudo quase não tirava os olhos
daquela imagem triste.
― O que faz aqui? ― perguntei.
― Eu vim vista-la!
― Visitá-la ou matá-la?
― Na verdade eu pensei mesmo em matá-la, mas eu sei o
quanto você a amava.
― Ainda amo! ― gritei.
― Não por muito tempo! Ela agora não mais existe!

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Calei-me ao ver que os bombeiros haviam chegado. Eles a


retiraram e então vi que ela estava quase carbonizada.
Aquilo foi muito doloroso para mim, mas Aline, ao meu lado,
parecia estar feliz. Confesso que cheguei a imaginar que ela havia
feito tudo aquilo.
Uma enfermeira me procurou alguns minutos depois e disse-
me que tinha algo muito importante para me dar.
― O que é?
― Um bilhete de sua esposa. Ela se recuperou do coma na
madrugada. Não tivemos nem tempo de chamá-lo aqui. Íamos fazer
isso agora pela manhã, mas infelizmente isso aconteceu. Antes, ela
me entregou um papel e me disse para enviá-lo ao senhor, ao meio
dia. Eu não sabia do que se tratava, só agora. Lamento!
― Tudo bem, obrigado! ― peguei o papel e saí caminhando
desolado. Aquele pedaço de folha ainda tinha um perfume de
Melissa.

Meu amor, não fique triste e nem lamente pelo que farei
em seguida. Não posso viver com esta dor. Sinto muito.
Eu não suporto saber que a causa de todo o nosso
sofrimento é por causa de minha mãe. Fui feliz ao teu
lado cada segundo. Adeus! Mesmo na morte, te amarei
sempre!

Melissa (25/09/2010)

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V i d a s C r u z a d a s & V i d r o s Q u e b r a d o s | - 64 -

O DEDO DE DEUS
(25/09/2010)

[...].

São nas horas de mais aflição que o ser humano se pega


pensando em Deus, comigo não foi diferente. A minha vida estava,
posso dizer sem medo de pecar, completamente perdida e sem
rumo. Pensei mais uma vez em tirá-la por meio do suicídio, mas
como sempre, recuei covardemente.
― Vamos sair daqui! ― disse-me Aline com uma voz áspera,
mas ao mesmo tempo, imperativa.
Saímos dali caminhando meio desanimados. Ao entramos no
táxi, reparei que Aline vestia uma roupa de seda pura, com linhas
fortes, com cores suaves e brilhantes. Mostrava um decote curto e,
mesmo em um dia triste como aquele, eu não pude deixar de
contemplar aqueles seios firmes daquela bela jovem. Ela, por outro
lado, reparando que eu não conseguia tirar os olhos dela, parecia
divertir-se com tal cena.
Aline continuava me olhando com um ar de quem realmente
se sente bem ao ser observada, mexia os lindos cabelos e ajustava
a blusa de forma a permitir cada vez mais o colo aparecer. Naquele
momento não pensei em mais nada. Fiquei a observando em cada
gesto até que, de repente, ela fitou os olhos em mim e disse:
― Chegamos!
― Onde?
― No meu novo apartamento. Vem, vamos subir! ― dizendo
isso, ela desceu do carro e me esperou ao lado do portão da entrada.
Subi as escadas uma a uma sem olhar para cima ou para
baixo, não sei quanto tempo levamos para ir até o quinto andar,
nem mesmo me dei conta de onde estávamos.
Era um lugar bonito, com uma mobília bastante modesta.
Havia alguns livros jogados no chão, calcinhas deixadas em cima
das cadeiras, roupas espalhadas por cima da cama e um sofá com
algumas malas pretas.
Então, Aline quebrou o silêncio:
― Você aceita um café?
― Sim, por favor.
― Com leite ou torradas?
― Só o café mesmo, preciso ir embora. Tenho que ir ao
necrotério... Hospital central... É... Nem sei onde devo ir, para falar
a verdade.

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― Não se preocupe, eu vou contigo. Você deve estar cansado,


precisa relaxar um pouco.
― Estou exausto mesmo. Mas você não... ― não tive tempo de
completar a frase, pois Aline me agarrou e me beijou ardentemente.
― Você sabe que te amo e que jamais permitiria que te façam
algum mal. Quase enlouqueci quando imaginei o que aquela mulher
poderia ter feito! Eu não vou te deixar, nunca! ― ela olhou-me com
uma ternura muito profunda naqueles olhos pequenos e abraçou-
me fortemente.
Não consegui dizer coisa alguma. A minha vida tinha ficado
muito estranha desde os primeiros dias daquele mês. Parecia que
Deus havia me abandonado ou simplesmente tinha deixado de me
ouvir.
Afastei-me dela vagarosamente e fui em direção à sacada.
Olhei para o céu e então percebi que o sol já estava muito alto e
provavelmente já era um pouco tarde do dia.
Eu precisava resolver as questões referentes ao velório. No
entanto, a minha mente só pensava no que Melissa havia feito: tirou
a própria vida para me proteger.
Neste momento, senti as mãos quentes de Aline tocando-me
pelas costas e beijando-me repetidamente.
― Deixa-me te fazer esquecer-se deste momento triste,
permita-me te dá prazer ao menos por algum tempo.
― Eu adoraria, mas... Não posso, ainda não. Eu acredito que
você não quer tomar o lugar de Melissa, no entanto você também
não merece um homem como eu. Há uma maldição em mim. Todos
aqueles que estão ao meu lado acabam, de uma forma ou de outra,
se machucando por minha causa.
― Você não tem o direito de me dizer o que posso ou não fazer!
Eu te quero e não me importa o que me aconteça, eu te amo e não
vou te deixar por nada neste mundo, nem mesmo a morte vai me
impedir de te ter! Se houver alguma maldição em você, então eu
serei o dedo de Deus para acabar com esta maldição ou com
qualquer outra que caia sobre ti. Deus está comigo e é por isso que
estou aqui!
Ao final de tudo isto, Aline tirou as roupas e então pude ver a
incrível mulher que se escondia por baixo daquelas vestes.
Não será preciso descrever ou narrar o que houve entre nós,
mas se interessa a alguém saber da verdade: sim, nós fizemos amor
ali.

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O ÚLTIMO BEIJO
(28/09/2010)

Não havia mais nada que eu pudesse fazer, Melissa estava


morta. E eu? Um homem de meia idade envolvido com uma jovem
apaixonada e destemida.
Todavia eu tinha uma última coisa a fazer: enterrar a minha
querida e preciosa esposa. Decidi então sair do quarto, fechei a
porta e fui ao banheiro. Após o banho, vesti a mesma camisa de
outrora e saí rapidamente para Aline não me ver sair.
Passei em casa para pegar alguns documentos de Melissa,
porém nem mesmo olhei para o que havia pelo meio da sala. Fui
direto ao quarto, vesti um terno escuro, pus uma gravata cinza,
fechei a porta e fui embora sem olhar para trás.
Entrei em um táxi e pedi ao motorista para que me levasse ao
hospital central. Lá chegando, reparei que algumas pessoas me
olhavam por baixo, ora pelos cantos dos olhos, notei que muitas
conversavam e sorriam pelos cantos da boca.
― Será que todos acham que estou feliz com tudo isso ou será
que sabem que estou com outra mulher! ― minha cabeça já estava
ficando cheia destas ideias, mas que também faziam sentido, uma
vez que a segunda opção era verdade.
Logo em seguida encontrei a enfermeira e o médico que a
atendera. Eles me contaram como Melissa estava durante o tempo
que ficou em observação.
No meio da conversa senti um frio descer pelo meu pescoço e
de repente ouvi um sussurro perto de meu ouvido direito, que me
disse:
― O que tu fazes aqui? Pensas que estás livre de mim. Tua dor
apenas começou! ― neste momento eu não consegui mais ouvir
nenhuma palavra, nem da enfermeira nem do médico, só aquela voz
dentro da minha cabeça. Fiquei assim por algum tempo.
A enfermeira, percebendo que eu estava completamente
distante, puxou o médico pelo braço e saiu de perto de mim. Eu
demorei muito a perceber que eles não estavam mais ali, mas ao
ver que eu estava só, saí andando até o portão principal.
Aquela voz não me era estranha. Andei um pouco mais e fui
ao necrotério saber alguma notícia sobre o corpo. Os agentes
funerários já estavam lá aprontando o caixão, o próprio hospital fez
a solicitação.
Eles preparam tudo, colocaram-na em um caixão médio, com
cores fortes e escuras. Podiam-se ver nele uns desenhos de flores,

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com uma tampa com imagens de anjos. O caixão era feito de uma
madeira meio envelhecida, conservada e sem cheiro.
Melissa já estava posta em uma posição que ofuscava os
efeitos das queimaduras, ocultando o corpo em meio a uma
infinidade de flores. Pouco se podia ver do rosto, desfigurado e
queimado
― Nossa! São jasmins, gardênias e margaridas! ― estas flores
eram suas preferidas, lembrei.
O rosto dela não exibia mais nenhuma linha daquela beleza
de antes, não vi os belos olhos que haviam me envolvido em uma
paixão arrebatadora. Os cabelos estavam enfumaçados, sem brilho
e sem perfume. Só havia tristeza naquela que foi a minha amada.
Solicitei que fechassem o caixão, pois eu não aguentava mais
ver tudo aquilo. Não houve velório. Decidi que seria melhor enterrá-
la naquela mesma tarde. Não tínhamos parentes perto. O enterro
foi marcado para as dezenove horas e seria feito no cemitério local.
Saí do necrotério e voltei ao apartamento de Aline. Quando
entrei fui recebido aos beijos por ela.
― Onde você foi? Eu estava preocupada!
― Fui ao necrotério.
― E então?
― O enterro será hoje, no início da noite.
― Início? E que horas você pensa que é? Falta meia hora para
o pôr-do-sol.
― Nossa!
― Vamos tomar um banho, eu irei contigo! ― não tive tempo
para dizer qualquer palavra, pois ela segurou-me e levou-me ao
banheiro.
Tomamos banho. Nos vestimos. Em seguida fomos ao
cemitério. Não senti forças para ir junto ao carro em que o caixão
estava. Então, o esperamos em frente à entrada daquele lugar tão
fúnebre que arrepiava cada centímetro de meu peito. Aquele era um
lugar sem vida e vazio.
Ao entrarmos, lembrei que não havia comunicado aos meus
amigos e parentes. Esqueci-me também de ligar para os parentes
dela. Foi neste momento que lembrei que ela não tinha nenhum
parente ou familiar que eu conhecesse. Só havia a estória da mãe
dela, que inclusive já havia falecido há tempos.
Ao nos aproximarmos do local destinado a Melissa senti uma
enorme tristeza no peito. Quando ela foi colocada no buraco e quase
não pude mais ver o caixão, gritei:
― Melissa! Deixa-me beijá-la pela última vez! ― entrei no
buraco e fiquei a arrancar a areia com minhas mãos, chorando e
praguejando.

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Aline olhava-me não com um olhar de desaprovação, ao


contrário, ela também demonstrava uma tristeza nos olhos e, se me
lembro bem, acredito que a vi derramar uma lágrima.

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VIDROS QUEBRADOS
(30/09/2010)

Dois dias após o enterro, saímos ao anoitecer caminhando


pela estrada iluminada da cidade. Aline não largava o meu braço e
parecia não se importar ao ver que eu ainda amava Melissa.
― Não se preocupe, meu amado! Sei que a dor que tem
passado é muito grande! ― as palavras saiam daqueles lindos lábios
trêmulos ao pronunciá-las.
― Dor! É isso! Agora sei a quem pertence àquela voz!
― Que voz? ― perguntou-me Aline.
― A voz que eu ouvi no hospital; era daquele desgraçado, o
demônio!
― Demônio?
― Sim, foi ele quem levou Melissa! ― fechei os olhos e lembrei-
me da vez em que o vi, aquela figura grotesca, com aquele chapéu
preto, usando um terno preto e de capa.
Ele estava de volta e parecia disposto a me levar junto dele,
Deus sabe para onde! Porém refleti sobre algo que antes ainda não
tinha pensado: Aline disse ser o dedo de Deus, mas o que isto
significava? Talvez ela tivesse falado isto só para me ter ou me fazer
acreditar em sua bondade. O fato é que o demônio estava atrás de
mim e eu não sabia o que fazer.
Então, eu abracei Aline e a levei ao seu apartamento
novamente. Entramos e nos banhamos. Eu estava cansado, mas vi
o quanto ela se mostrou forte, acompanhando-me durante todos
aqueles momentos.
Deitei-me no lado direito da cama, tirei a toalha e então a olhei
fixamente:
― O que quer fazer agora, minha flor? ― ela sorriu
timidamente, provavelmente admirada de eu tê-la chamado assim.
Eu continue fitando-a e disse-lhe:
― Deite-se comigo aqui. ― ela sorriu novamente e tirou
vagarosamente a roupa. Vi seu belo corpo jovem, firme e de curvas
arredondadas. Ela tinha uns seios lindos, umas pernas longas e
torneadas, seu cabelo era muito cheiroso, a sua pele macia e muito
sedosa.
Senti aqueles beijos como brasas queimando o meu coração.
A boca dela era macia, carnuda e vez ou outra, ela mordia-me
carinhosamente. Ela tocava-me na face e beija-me como se cada
beijo fosse o último. Isto me fez imaginar o quanto eu podia ser feliz
ao lado dela.

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Notei que ela não se parecia em nada com Melissa e que talvez
por este motivo eu pudesse amá-la, pois eu não me sentiria bem
vivendo com alguém semelhante à minha amada, pois por ser tão
diferente, Aline teria condições de apagar a tristeza que eu
carregava no peito. Depois, adormecemos.
No meio da noite um vento começou a soprar indo e vindo de
fora do apartamento. Fazia um barulho igual a de um assobio. E
isto ficava cada vez mais alto e mais barulhento. Nós
continuávamos dormindo, porém Aline levantou-se e foi à cozinha,
talvez beber um pouco de água.
Ela saiu caminhando meio sonolenta, acendeu a luz e viu que
havia alguém de costas, sentado, virado para a janela do quarto,
ficou paralisada. Não conseguia se mover ou falar, tomada de tanto
pavor, vendo aquela imagem ali imóvel. Tentou gritar, mas a voz
não saiu. Segurou um pequeno copo e o jogou no chão, fazendo um
barulho de vidros estilhaçados. Eu confesso: não ouvi nada. Ela
pegou outros dois e repetiu o ato. Nada. Eu permanecia quieto. Eu
estava mergulhando nas profundezas de um sono pesado.
A figura então falou para ela:
― Não adianta fazer nada disso. Ele não ouvirá!
― Como assim? Quem é você? ― falou ela, meio trêmula, sem
compreender o que se passava ali, correu até o quarto e tentou me
acordar. O ser maligno continuou falando, em alta voz:
― Eu vim buscá-lo.
― Quem é você? Vai levá-lo para onde?
― Para habitar comigo no inferno.
― Não! Não! Não!
― Ele irá sim. Eu já levei a esposa dele, junto com o filho.
― Não faça isso, eu te imploro!
― Não há saída! Ele é meu!
― Pelo nome do Deus vivo: Nosso Senhor Jesus! Deixe-o! Farei
o que desejar!
― Não toque no nome deste teu deus! Caso ouse proferir
alguma palavra dele, eu a matarei aqui e agora!
― Eu não me importo, por amor deste homem que aqui dorme,
lutarei até a morte! Afaste-se de mim satanás, maldito! Em nome
de Jesus, condeno-te a retornar aos infernos que é o lugar de onde
jamais deveria ter saído!
― Tu vais morrer, compreendes?
― Quem você pensa que é, maldito? Pensa mesmo que poderá
me tocar, sendo eu filha de Deus, batizada nas águas sagradas e
bendita pelo Espírito Santo! Mal sabe o que posso fazer naquele que
me fortalece! Deus enviou-me para salvar esta alma e você não
poderá tocá-la!

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No meio destas últimas palavras, o meu coração encheu-se de


uma imensa alegria repentina. Abri os meus olhos e os vi, um ao
lado do outro. Aline estava com as mãos postas sobre o peito e
aquele ser horrendo estava com duas bolas de fogo nas mãos.
― Aline! ― balbuciei meio sem forças de falar.
― Como conseguiu acordar? Tu estás sob os meus poderes! ―
berrou o demônio.
Aline olhou-me com um sorriso alegre e disse-me:
― Meu amor! Lembre-se que o maior mandamento de Jesus
foi esse: “não há amor maior do que dar a vida pelo teu irmão”. E
eu o amo! ― finalizou isto pulando por cima da cadeira indo até o
demônio e agarrando-se com ele, jogou-se pela janela de vidro,
quebrando em pedaços.
― Aline!!! ― gritei desesperado, vendo-a cair e morrer.

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POSFÁCIO

As narrativas presentes no livro Vidas cruzadas & Vidros


quebrados, de Adílio Souza, apresentadas nesta versão em ebook,
trazem alterações no plano da linguagem que muito melhoraram a
construção dessas obras.
Adrian, Demétrius, Alexandra, Elisabeth e Cavalo do Cão,
dentre outras personagens, são as figuras carismáticas que o autor
insere na primeira narrativa: Vidas cruzadas. Nela, o leitor
encontrará cenários fabulosos, repletos de movimento, peripécias
diversas que tornarão a leitura instigante, intenso romantismo e
certo tom erótico, além de muita ação e até suspense, por que não
dizer? O enredo, embora simples, centra-se, em muitos momentos,
na tentativa do autor em construir um universo que muito lembra
o universo do Western, sobretudo se pensarmos os diálogos e a
caracterização de suas personagens.
Vidas cruzadas não se trata de uma narrativa que explora a
densidade psicológica das personagens, no entanto não podemos
considerar essas personagens por um viés da superficialidade. Elas
têm suas nuanças, ao longo da trama, e desdobram-se em
acontecimentos que delineiam seus perfis psicológicos de algum
modo. Dentre os temas explorados, podemos destacar: a amizade,
as relações afetivo-amorosas, a luta do bem contra o mal, dentre
outros.
Em Vidros quebrados, por sua vez, o autor traz personagens
como Márcio, o narrador, Melissa e Aline. Neste sentido, consegue
maior aprofundamento ao realizar análise psicológica dessas
personagens que são, no mínimo, complexas, controversas e
vítimas das circunstâncias impetradas pela existência.
Esse livro é mais lírico, introspectivo, denso e bem delineado.
Consegue, por meio de seu foco narrativo autodiegético, conduzir
com maior acuidade o leitor pelos caminhos tortuosos aos quais
acorrem, no irremediável de suas vidas conflituosas, suas
personagens angustiadas. É uma narrativa que brinca com diversos
gêneros, desde o universo da narrativa policial até o romance
epistolar. Se o leitor sente algum estranhamento ao deparar-se com
nomes norte-americanos ao longo da narrativa, isso não implica no
resultado da narrativa, que tem várias sequências bem criativas.
Enfim, o autor Adílio Souza traz em si a necessidade de narrar
– e isto é muito bom! Nada melhor do que percebermos, por parte
dele, em suas construções narrativas, uma feliz preocupação em
retomar seu texto para redirecionar efeitos da enredística e

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trabalhar aspectos mais pontuais no que diz respeito à linguagem


e à construção das personagens, como é o caso dessa nova edição
que nos chega com alterações significativas em seu enredo, mas
não em sua essência. Que este livro seja bem-sucedido em sua
tentativa de criar um universo ficcional de simplicidade e anseios
criativos! Que seja lido e vivido!

14 de setembro de 2019

Prof. Msc. Cícero Émerson do Nascimento Cardoso


Universidade Regional do Cariri
(URCA) / Campus de Missão Velha/CE

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SOBRE O AUTOR

Doutorando e mestre em Linguística pelo Programa de Pós-


Graduação em Linguística da UFPB (PROLING/UFPB), especialista
em Língua portuguesa e Literatura brasileira e africana de língua
portuguesa e graduado em Letras pela Universidade Regional do
Cariri (URCA). Professor temporário de língua latina e história da
língua portuguesa no Curso de Letras da Unidade Descentralizada
de Missão Velha - CE (UDMV/URCA). Foi membro do Grupo de
Pesquisa Teorias Linguísticas de Base (TLB), registrado no CNPq
(UFPB/2014-2016). Participa do Núcleo de Pesquisa em Língua
Espanhola e Literaturas de Língua Espanhola, registrado no CNPq
(UFPE/2019-vigente). Coordenou o Projeto Estudos Clássicos
(URCA/2016-2018). Desenvolve pesquisas em linguística, filologia
e língua latina. Publicou, entre outras obras, “Manual básico de
Pronúncias do Latim” (Ideia, 2019), “Eros” (Ideia, 2018), “Tela de
sangue e outras estórias” (CRV, 2018) e organizou as coletâneas
“Poemates Rosarum” (Virtualbooks, 2019), “Linguística &
literatura: inter-relações - Vol. I” e “Vol. II” (Ideia, 2019), “Vidas em
Versos” (Ideia, 2018) e “Letras em Versos” (Ideia, 2017), com a
colaboração de pesquisadores da URCA, UFPB, UFRN, UERN,
UECE, UEVA, entre outras instituições. É autor/coautor de artigos
e capítulos em periódicos e em livros na área da linguística e
literatura.

E-mail: adilio.souza@urca.br

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