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certo domínio de experiências possíveis e o modo como mas produz o sujeito infantil, ao mesmo tempo em que
um sujeito deve fazer a experiência de si próprio neste estabelece o adulto dito normal – isto é, racional e moral
campo. Afirmar que essas práticas fazem de um sujeito o – como a meta do seu processo de assujeitamento (Co-
seu objeto é apontar para além de uma relação epistêmica, razza, 2000).
que constrói um saber sobre este sujeito. Trata-se de anali- Um dispositivo também pode ser conceitualizado como
sar uma operação de assujeitamento que, ao mesmo tempo uma configuração específica de domínios do saber e de
em que enuncia a verdade de um sujeito, o liga, coerciti- modalidades de exercício do poder, a qual possui uma fun-
vamente, a uma determinada identidade.2 ção estratégica, em relação a problemas considerados cru-
Nesse sentido, Foucault pesquisou a constituição dos ciais em um momento histórico (Foucault, 1995c). Em
sujeitos modernos, a partir de três modos de objetivação: seus movimentos estratégicos, um dispositivo intervém
• Em práticas epistêmicas, que objetivam um sujeito como de forma racional3 sobre o campo de forças em que se
um duplo empírico/transcendental – o homem –, insere, com o intuito de desenvolvê-las em determinada
erigido, no raiar da Modernidade, como sujeito da razão direção, de barrar-lhes certos caminhos, de utilizá-las em
transcendental, pela filosofia kantiana, e como sujeito proveito de seus fins. Entretanto, o fato de essas forças
que vive, fala e trabalha, pelas ciências empíricas (Bio- serem móveis, instáveis, heterogêneas e da sua confron-
logia, Filologia e Economia Política). tação ser inevitavelmente tensa – pelos efeitos de resis-
tência que suscita –, desequilibrada e de realizar-se em
• Em práticas divisoras, mediante as quais os sujeitos
espaço aberto (Foucault, 1997a) torna incerta a estabili-
são individualizados e distribuídos em torno de um dade de um dispositivo, produz a necessidade de rearranjos
eixo de normalização, em um processo de objetivação e de rearticulações constantes em sua configuração e gera
de um sujeito como louco ou racional, doente ou sau- fissuras nos estados de dominação que tal dispositivo en-
dável, delinqüente ou honesto, sexualmente normal ou gendra.
perverso.
• E em práticas de si, por meio das quais um sujeito O dispositivo de sexualidade e a constituição
toma a si próprio como objeto de saber e de poder, de de sujeitos desejantes
modo a construir a sua experiência de si como um su- Em A vontade de saber, Foucault analisa a constitui-
jeito de desejo. ção do sujeito do desejo nos marcos do moderno disposi-
tivo de sexualidade. Novos domínios do saber aparecem:
Saber e poder a Psiquiatria, a Criminologia, a Pedagogia, a Demografia,
A um determinado agrupamento de práticas, que cons- etc. Uma nova tecnologia política, orientada para a gestão
tituem um sujeito em uma trama de saberes e em um da vida e, simultaneamente, individualizante (disciplina
feixe de forças que lhes são imanentes, Foucault (1995c, dos corpos) e totalizadora (regulação das populações)
p. 244) denomina dispositivo, definindo-o como: consolida-se: o bio-poder. Na intersecção entre esses cam-
[...] um conjunto decididamente heterogêneo que en- pos do saber e essas formas de exercício do poder, o dis-
globa discursos, instituições, organizações arquite- positivo de sexualidade constrói o sexo como objeto da
tônicas, decisões regulamentares, leis, medidas admi- nascente scientia sexualis e promove um rigoroso esqua-
nistrativas, enunciados científicos, proposições filo- drinhamento das práticas sexuais. De acordo com Fou-
sóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o cault, em um mesmo movimento esse dispositivo disci-
não dito são os elementos do dispositivo. O disposi- plina os corpos e regula as populações, estabelece um
tivo é a rede que se pode estabelecer entre estes ele- regime de prazeres e ocupa-se da preservação da espécie.
mentos.
Erigindo o desejo como o mais recôndito segredo dos
De acordo com tal enfoque, pode-se afirmar que o sujeitos modernos – o seu mais precioso e perigoso dote,
dispositivo educacional moderno consiste em um con- lugar da sua verdade e chave da sua liberdade –, o dispo-
junto heterogêneo de práticas disciplinares (Foucault, 1987), sitivo de sexualidade amplia o espectro das práticas sexuais
tais como: discursos sobre a importância de educar a in- reconhecidas e relança, de uma forma muito mais sofis-
fância, instituições educacionais diversas, prédios e regu- ticada, a identificação de um sujeito à verdade do seu
lamentos escolares, leis de ensino, portarias ministeriais, sexo. No cerne desse processo, uma técnica – a confissão:
enunciados com pretensão de cientificidade – pedagógi- “por confissão entendo todos estes procedimentos pelos
cos, psicológicos, sociológicos, etc –, filosofias educacio- quais se incita o sujeito a produzir sobre sua sexualidade
nais, proposições moralizadoras da infância, etc. Ao longo um discurso de verdade que é capaz de ter efeitos sobre o
das suas séries – que constituem uma temporalidade linear próprio sujeito” (Foucault, 1995c, p. 264). Foucault su-
e evolutiva, cujos momentos integram-se um no outro e gere que a injunção a que um sujeito produza uma verdade
se dirigem para um ponto ideal –, esse dispositivo disci- a respeito de si próprio, fixando-se uma identidade a partir
plinar não prolonga a infância, como propõe Ariès (1981), das formas que reconhece em seu desejo, remonta à orga-
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Weinmann, A.O. “Dispositivo: um solo para a subjetivação”
nização da doutrina e da pastoral cristã da carne. O dis- Foucault (2004d) afirma que sempre desconfiou do
positivo de sexualidade extrai da tecnologia da carne a tema da libertação, por entender que ele pressupõe a exis-
técnica da confissão, reinserindo-a em uma nova rede de tência de uma experiência humana primordial, anterior e
relações. indiferente aos processos históricos, a qual se encontra alie-
Porém, após a publicação do primeiro volume da His- nada ou aprisionada por mecanismos repressivos. Para tal
tória da sexualidade, Foucault desloca o foco da análise. concepção, a libertação consiste no movimento de arran-
Importa-lhe, agora, pesquisar as modalidades de relação car os poderosos tentáculos de poder, que mantêm cons-
consigo, mediante as quais os sujeitos modernos constroem trangida a livre expressão da natureza humana. Em con-
a experiência de si próprios como sujeitos de uma sexua- trapartida, o interesse de Foucault se localiza nas práticas
lidade. Para descrever esse modo de subjetivação, Fou- de liberdade intrínsecas às relações de poder.
cault re-orienta o seu projeto genealógico, no sentido de De acordo com Foucault (1995b, p. 244), as relações
investigar as práticas de si, por meio das quais o homem entre poder e liberdade são de incitação recíproca: “no
ocidental, ao longo de muitos séculos, foi levado a se reco- centro da relação de poder, ‘provocando-a’ incessantemente,
nhecer como sujeito de desejo. Foucault (2001, p. 10) atri- encontra-se a recalcitrância do querer e a intransigência
bui a alteração dos balizamentos cronológicos dessa genea- da liberdade”. Nessa perspectiva, a liberdade é pré-con-
logia – que o remeteu a estudar a lenta formação, desde a dição da existência de relações de poder e seu suporte
Antigüidade, de uma hermenêutica do desejo – ao fato permanente, pois, sem a possibilidade de resistência, o que
de que “a experiência da sexualidade pode muito bem se existe é a coerção absoluta e a impossibilidade de qual-
distinguir, como figura histórica singular, da experiência quer transformação. É porque o exercício do poder im-
cristã da ‘carne’: mas elas parecem ambas dominadas pelo plica resistência, que as relações de poder constituem con-
princípio do ‘homem do desejo’”. figurações estratégicas móveis, instáveis e reversíveis. En-
Essa modificação no plano de pesquisa resulta de uma tretanto, Foucault (2004d, p. 266) reconhece a existência
inflexão importante na problematização foucaultiana do de “[...] estados de dominação, nos quais as relações de
poder, em vez de serem móveis e permitirem aos dife-
sujeito. Em entrevista com Foucault, François Ewald assi-
rentes parceiros uma estratégia que os modifique, se encon-
nala essa ruptura:
tram bloqueadas e cristalizadas”. Nessas circunstâncias,
As obras precedentes deram do senhor uma imagem em que as práticas de liberdade apresentam-se fortemente
de pensador do aprisionamento, dos sujeitos subme- restringidas, fazem-se necessários vigorosos movimentos
tidos, coagidos e disciplinados. Uso dos prazeres e de libertação, que as tornem novamente potentes.
Cuidado de si nos oferecem a imagem completamente
diferente de sujeitos livres. Parece haver ali uma im- A partir dessas análises, é possível afirmar que é em
portante modificação em seu próprio pensamento um processo agonístico que a subjetivação se produz. É
(Foucault, 2004b, p. 248). porque há forças no sentido do seu assujeitamento que a
subjetividade resiste e toma a si própria como objeto de
Em outra entrevista, Foucault (2004c, p. 253) escla- elaboração. Entretanto, nesse movimento não se funda a
rece o comentário de François Ewald: si mesma, nem descobre a verdade inalienável do seu ser,
Tentei destacar três grandes tipos de problemas: o contrapondo-se às identidades impostas pelos dispositivos
da verdade, o do poder e o da conduta individual. em que se insere. Nessas práticas de liberdade, é ainda em
Esses três grandes domínios da experiência só podem relação a critérios de verdade historicamente estabelecidos
ser entendidos uns em relação aos outros, e não po- que o sujeito constitui-se:
dem ser compreendidos uns sem os outros. O que me
incomodou nos livros precedentes foi o fato de eu [...] se agora me interesso de fato pela maneira com
ter considerado as duas primeiras experiências sem a qual o sujeito se constitui de uma maneira ativa,
levar em conta a terceira. através das práticas de si, essas práticas não são,
entretanto, alguma coisa que o próprio indivíduo
Liberdade e governo invente. São esquemas que ele encontra em sua cul-
Pesquisar as formas de subjetivação em sua histori- tura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por
sua cultura, sua sociedade e seu grupo social (Fou-
cidade, analisando-as como um domínio diferenciado do
cault, 2004d, p. 276).
saber e do poder, embora a eles associado, acarreta algu-
mas dificuldades teóricas. Como pensar o sujeito engen- Essa conceitualização implica pensar um dispositivo
drando-se a si próprio sem retornar à noção de subjetivi- a partir das suas técnicas de governabilidade. Foucault
dade livre, soberana, auto-fundante? Como compatibilizar (2004d, p. 286) conceitua governabilidade como o “con-
essa idéia com o ponto de vista de que ser sujeito é estar junto das práticas pelas quais é possível constituir, defi-
assujeitado a um dispositivo? Em suma, qual o estatuto da nir, organizar, instrumentalizar as estratégias que os indi-
liberdade nessa teorização? víduos, em sua liberdade, podem ter uns em relação aos
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outros”. Nesse sentido, governar é dirigir condutas – pró- junto de mutações em curso nas sociedades européias:
prias e/ou de outros –, em jogos estratégicos de poder e fundamentalmente, a organização das instituições disci-
liberdade. Foucault (2004b) sugere que a constituição da plinares. Entretanto, se em Vigiar e punir é sobre o go-
experiência de si – a subjetivação – se dá no ponto de arti- verno dos outros que recai a ênfase da investigação – a
culação entre as técnicas de governo dos outros e as téc- constituição da subjetividade delinqüente é analisada em
nicas de governo de si, podendo a análise privilegiar um termos de assujeitamento –, em O uso dos prazeres e O
ou outro desses conjuntos estratégicos. Em dispositivos cuidado de si o enfoque privilegiado é o das técnicas de si.
nos quais as práticas de liberdade são mais estritas, o go- Nessas obras, Foucault descreve as circunstâncias his-
verno dos outros tende a ser o elemento forte da investi- tóricas5 em que gregos e latinos da Antigüidade clássica e
gação. Por outro lado, naqueles em que as correlações de tardia elegem os prazeres como alvo de uma intensa pro-
força são mais instáveis, é o governo de si o foco mais im- blematização moral, da qual decorre a constituição de si
portante da pesquisa. Entretanto, Foucault (1999a) afirma próprio como sujeito ético – o governo de si – não por
ter encontrado dificuldades para investigar as técnicas de força de um constrangimento, mas como uma prática de
governo de si, pelo fato de tais práticas ainda não terem liberdade. Em uma e em outra investigação, analisar “[...]
sido isoladas e construídas como objeto de análise e por ser as problematizações através das quais o ser se dá como
difícil distingui-las em nossas experiências espontâneas. podendo e devendo ser pensado, e as práticas a partir das
Foucault (1997b, p. 109) denomina técnicas de si “[...] quais essas problematizações se formam” (Foucault, 2001,
os procedimentos, que, sem dúvida, existem em toda ci- p. 15) é condição para a compreensão da organização das
vilização, pressupostos ou prescritos aos indivíduos para técnicas de governabilidade pesquisadas.
fixar sua identidade, mantê-la ou transformá-la em função
de determinados fins, e isso graças a relações de domínio Ética e subjetivação
de si sobre si ou de conhecimento de si por si”. Dito de Tomar como fio condutor da análise das formas de
outra forma, essas técnicas consistem em conjuntos de prá- subjetivação as problematizações, por meio das quais um
ticas, por meio das quais um sujeito toma a si próprio sujeito oferece ao pensamento a experiência que faz de si
como objeto de saber e de poder, visando aceder a certas próprio e do mundo em que vive, e as práticas de si, me-
modalidades de relação consigo, que lhe parecem mais diante as quais essa subjetividade elabora a si própria, em
aperfeiçoadas. É nesse sentido que Foucault (1999a, p. um exercício de liberdade e em uma relação com a ver-
445) as define como técnicas dade, implica inserir-se em um domínio que Foucault de-
nomina ética.6 Por esse motivo, as pesquisas genealógicas
[...] que permitem aos indivíduos efetuar, sozinhos dos modos de subjetivação elegem a ética como a sua via
ou com a ajuda de outros, algumas operações sobre privilegiada de investigação (Foucault, 1995d).
o seu corpo e a sua alma, os seus pensamentos, as
suas condutas e o seu modo de ser, assim como se
Foucault conceitua ética, situando-a em relação ao cam-
transformar, a fim de alcançar um certo estado de po mais geral da moral. Nessa perspectiva, postula que este
felicidade, de força, de sabedoria, de perfeição, ou último conceito possui três sentidos principais: aquele que
de imortalidade. designa um código moral determinado, o que se refere à
moralidade efetiva dos comportamentos e outro que diz
No entanto, a condição histórica da organização dessas respeito ao que é específico à ética. Por código moral, Fou-
técnicas de governo de si e dos outros é que a experiência cault (2001, p. 26) entende “[...] um conjunto de valores
que um sujeito faz de si próprio e do mundo em que vive e regras de ação propostas aos indivíduos e aos grupos
tenha se tornado problemática. Tal problematização pres- por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como
supõe que um domínio de práticas constitutivas dessa expe- podem ser a família, as instituições educativas, as Igre-
riência tenha se tornado incerto, tenha perdido a sua fami- jas, etc”. Esse conjunto de prescrições pode se apresentar
liaridade, tenha suscitado dificuldades (Foucault, 2004e). como uma doutrina coerente, unificada e explícita, ou ser
São as fraturas de um dispositivo, decorrentes do processo assistemático, disperso e transmitido de uma forma difusa.
de reacomodação nas correlações de forças que lhe são Por sua vez, a moralidade dos comportamentos refere-se
imanentes, que incitam o pensamento4 e induzem à forma- às condutas efetivamente adotadas pelos sujeitos, frente às
ção de técnicas de governabilidade em um determinado normas que lhes são propostas. Ela aponta para a varia-
campo da experiência. ção existente entre o código e as condutas, permitindo in-
Nesse sentido, Foucault, em Vigiar e punir, não es- ferir o nível de submissão e obediência, ou de resistência
creve uma história da instituição penitenciária, mas faz a e transgressão em relação às prescrições morais.
genealogia de uma ruptura na racionalidade punitiva – no Por ética, Foucault (2001, p. 27) compreende “[...] a
caso, a problematização da prática do suplício e o estabe- maneira pela qual é necessário ‘conduzir-se’ – isto é, a ma-
lecimento de uma nova forma de governo dos que infrin- neira pela qual se deve constituir a si mesmo como sujeito
gem a lei: a privação da liberdade –, enfocando um con- moral, agindo em referência aos elementos prescritivos
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que constituem o código”. A ética, enquanto elaboração de si, mediante as quais esses sujeitos esforçam-se por ela-
de si próprio como sujeito moral, é analisada por Foucault borarem-se de uma forma que lhes pareça mais aceitável.8
em quatro aspectos:
Cartografar um dispositivo
• Ontologia: consiste na determinação da substância ética,
Portanto, investigar a sexualidade como experiência,
na eleição da parte de si sobre a qual incide a prática
isto é, nos três eixos que a constituem – os domínios de
moral.
saber que a ela se referem, os sistemas de poder que regu-
• Deontologia: refere-se ao modo como o sujeito vincula- lam a sua prática e as formas de subjetivação, mediante as
se ao dever de pôr a regra moral em prática. quais nos elaboramos como sujeitos desejantes (Foucault,
• Ascética: concerne às formas de realizar o trabalho éti- 2001) –, implica pensar a constituição de um sujeito de
co, operado sobre si próprio visando à transformação um modo diferente. Se, nas pesquisas foucaultianas ante-
de si em sujeito moral. riores, um sujeito aparece como resultado de uma opera-
• Teleologia: é o alvo, a finalidade da ação ética; o su- ção de assujeitamento a um dispositivo, nessa nova pers-
jeito moral em sua forma acabada.7 pectiva a subjetivação é concebida como um processo do
A partir dessas formulações, depreende-se que a con- qual um sujeito participa ativamente. Por meio do con-
duta moral oscila entre dois pólos indissociáveis, porém ceito de experiência, Foucault coloca os processos de sub-
relativamente autônomos: o do código e o da ética. Nesse jetivação no mesmo nível dos que concernem ao saber e
sentido, em algumas moralidades – no sentido amplo da ao poder, em um tipo de entrelaçamento diverso daquele
palavra – a ênfase incide sobre a codificação da conduta, em que a subjetividade aparece apenas como uma deri-
implicando formas de subjetivação quase jurídicas, dota- vada das relações de saber/poder.
das de estreita margem de liberdade. Em contrapartida, há Essa nova conceitualização requer que se pense um dis-
moralidades que se orientam para a ética e privilegiam as positivo como um conjunto heterogêneo de práticas de
modalidades de relação consigo, isto é, os procedimen- saber, de poder e de subjetivação. Em O que é um disposi-
tos por meio dos quais um sujeito visa conhecer-se e trans- tivo?, Deleuze constrói essa articulação. Deleuze postula
formar-se. Nessas circunstâncias, as práticas de liberdade que um dispositivo é um conjunto multilinear, composto
são muito mais disseminadas e os modos de subjetivação, de linhas de distintas naturezas, as quais percorrem esse
mais diversificados. Entretanto, tanto em uma moral orga- dispositivo em todos os sentidos, delineando processos
nizada como código, quanto naquelas voltadas para a ética, diversos, os quais se encontram em permanente desequi-
as práticas de si consistem no fulcro do processo de cons- líbrio. Essas linhas são vetores ou tensores, que podem
tituição das subjetividades: endurecer, sedimentando um dispositivo (linhas de estra-
tificação), mas que também podem quebrar, produzindo
Não acredito que haja moral sem um certo número variações de direção, ou bifurcar, engendrando deriva-
de práticas de si. É possível que essas práticas de si
ções, isto é, podem configurar-se como linhas de atuali-
estejam associadas a estruturas de código numero-
sas, sistemáticas e coercitivas. É até possível que elas
zação, por meio das quais se operam as transformações de
quase se apaguem em benefício desse conjunto de um dispositivo. Deleuze assinala que Foucault cartografa
regras que então aparecem como o essencial de uma um dispositivo a partir de três grandes feixes de linhas.
moral. Mas também é possível que constituam o foco Esses feixes não são homogêneos, nem possuem contor-
mais importante e mais ativo da moral e que seja em nos definidos, mas consistem em sistemas de variáveis,
torno delas que se desenvolva a reflexão. As práticas que se desdobram umas das outras: o saber, o poder e a
de si assumem assim a forma de uma arte de si, rela- subjetivação.
tivamente independente de uma legislação moral
Deleuze observa que as linhas do saber comportam
(Foucault, 2004b, p. 244).
curvas de visibilidade e de enunciação. E isso por que um
Uma outra decorrência dessas distinções conceituais dispositivo é uma máquina de fazer ver e de fazer falar.
é que se faz necessário especificar em que nível opera uma As linhas de visibilidade instauram feixes de luz, que for-
história da moral: se no nível do código, da moralidade, mam figuras variáveis: “cada dispositivo tem o seu regime
ou da ética. Uma história dos códigos ocupa-se dos siste- de luz, uma maneira como cai a luz, se esbate e se propa-
mas de regras e valores de uma determinada sociedade e ga, distribuindo o visível e o invisível, fazendo com que
das instituições encarregadas de torná-los efetivos. Uma nasça ou desapareça o objeto que sem ela não existe” (De-
história das moralidades estuda as ações dos grupos e indi- leuze, 1996, p. 84). Portanto, um dispositivo pode ser
víduos, avaliando em que medida as suas condutas apro- concebido como uma máquina ótica construída em con-
ximam-se ou afastam-se das normas prescritas. Uma his- dições históricas específicas, a qual estabelece áreas de
tória (genealógica) da ética debruça-se sobre as formas visibilidade e de invisibilidade e engendra, simultanea-
singulares, por meio das quais os sujeitos problematizam mente, um sujeito que vê e um objeto a ser visto. Porém,
a experiência que têm de si próprios, e sobre as práticas um dispositivo consiste, também, em uma máquina enun-
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ciativa singular, a qual determina o regime de dispersão nentemente desestabilizada e subvertida pelos feixes de
dos enunciados em um conjunto de práticas discursivas, forças sobre os quais se exerce esse poder, pelos efeitos
indicando as diversas posições do sujeito e do objeto no de resistência que este exercício induz. Estas resistências
discurso, as modalidades de enunciação, as definições con- – elas próprias, poder –, por mais minúsculas, medíocres
ceituais, as escolhas estratégicas, etc (Foucault, 2000). e infames que sejam, são o que torna possível transpor as
Um dispositivo também comporta linhas de força que, linhas diagramatizadas do poder – ainda que por um breve
invisíveis e indizíveis, articulam o ver e o dizer, definindo instante – e fazer fulgurar o novo: “o ponto mais intenso
as condições de possibilidade do saber. São linhas que tan- das vidas, aquele em que se concentra sua energia, é bem
genciam as curvas de visibilidade e de enunciação, indo ali onde elas se chocam com o poder, se debatem com
de um ponto a outro dessas curvas, em um vaivém inces- ele, tentam utilizar suas forças ou escapar de suas armadi-
sante, cruzando-as, trespassando-as, dobrando-as umas lhas” (Foucault, 2003, p. 208).
sobre as outras, tecendo a urdidura do saber. É a dimensão É nesse choque com as linhas de força hegemônicas
do poder, que Foucault analisa em termos de tecnologias que a subjetivação produz-se como uma prega, como uma
específicas – poder pastoral, poder soberano, poder dis- dobradura dos regimes de saber e poder que nos atraves-
ciplinar, bio-poder, etc –, por meio da investigação das sam: “é como se as relações do lado de fora se dobrassem,
condições históricas de sua organização. se curvassem para formar um forro e deixar surgir uma
Por fim, um dispositivo possui linhas de subjetivação. relação consigo, constituir um lado de dentro que se es-
Deleuze sugere que Foucault puxou mais esse fio ao per- cava e desenvolve segundo uma dimensão própria” (De-
ceber que a dimensão do poder estava encerrando o mapa leuze, 2005, p. 107). Nesse movimento de invaginação de
dos dispositivos em linhas de força intransponíveis, que uma experiência histórica singular, a relação consigo ela-
impõem contornos definitivos. A subjetivação consiste, pre- bora-se de forma coextensiva à relação com os outros, sem
cisamente, na resistência à ação de tais forças, no ato de que se constitua em uma interioridade. Trata-se da outra
recurvá-las, de voltá-las sobre si próprias, constituindo face de uma pura exterioridade, que é a superfície ima-
uma dimensão que escapa tanto aos saberes, quanto aos nente onde as forças em jogo têm a possibilidade de afe-
poderes estabelecidos (embora possa, a todo o momento, tarem-se não apenas umas às outras, mas, também, a si
ser por eles recapturada): o si próprio. Nessa perspectiva, próprias. Deleuze (id, p. 108) expressa esse jogo de forças,
a subjetivação aparece como uma linha de fuga, que trans- do qual emerge o si próprio, da seguinte forma:
põe o limiar de um dispositivo, que lhe abre uma fissura:
O que pertence ao lado de fora é a força, porque em
“podemos perguntar se as linhas de subjetivação não são sua essência ela é relação com outras forças: em si
o extremo limite de um dispositivo, e se não esboçam elas mesma, ela é inseparável do poder de afetar outras
a passagem de um dispositivo a um outro: neste sentido, forças (espontaneidade) e de ser afetada por outras
elas predispõem as ‘linhas de fraturas’” (Deleuze, 1996, (receptividade). Mas, o que decorre, então, é uma
p. 86). relação da força consigo, um poder de se afetar a si
Em Foucault, Deleuze desenvolve essas suas análises mesmo, um afeto de si por si.
a respeito da subjetivação. Deleuze atribui o silêncio de De acordo com essa conceitualização, o que a dobra da
Foucault, após a publicação de A vontade de saber, ao fato subjetivação instaura é uma modalidade de relação con-
de sua teorização encontrar-se enredada nas relações de sigo, irredutível aos saberes e poderes dos quais deriva,
poder. O próprio Foucault (2003, p. 208) teria expressado visto que se erige insurgindo-se contra as formas de sub-
essa inquietação: jetividade que nos são propostas e impostas pelos disposi-
Alguém me dirá: isto é bem próprio de você, sempre tivos em que nos inserimos. Entretanto, esse novo domínio
a mesma incapacidade de ultrapassar a linha, de – o si próprio – é continuamente penetrado, recuperado e
passar para o outro lado, de escutar e fazer ouvir a reintegrado em novos saberes e poderes, que o recodificam
linguagem que vem de outro lugar ou de baixo; sem- e rediagramatizam, de modo a assujeitar (ao outro: sub-
pre a mesma escolha, do lado do poder, do que ele missão; a si próprio: identidade) a subjetivação. Deleuze
diz ou do que ele faz dizer.
aponta que é próprio à subjetivação resistir à sujeição e que
No entanto, Deleuze assinala que a analítica foucaul- ela não deixa de relançar a relação consigo redobrando-
tiana do poder, tal como essa é realizada em A vontade se, desdobrando-se, metamorfoseando-se. Nesse sentido,
de saber, aponta para uma “[...] multiplicidade de corre- cartografar um dispositivo consiste em instalar-se sobre
lações de força imanentes ao domínio onde se exercem e as suas linhas e delinear os processos mediante os quais
constitutivas de sua organização” (Foucault, 1997a, p. 88). se define o que somos (linhas de estratificação) e estamos
Embora estas correlações de forças possam constituir es- deixando de ser e o que somos em devir (linhas de atuali-
tados de dominação relativamente estáveis – dos quais é zação), isto é, aquilo em que estamos nos tornando (De-
possível traçar o diagrama –, a sua configuração é perma- leuze, 1996).
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Weinmann, A.O. “Dispositivo: um solo para a subjetivação”
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