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Direitos Humanos

na
América Latina
Ozanan Vicente Carrara
(Organizador)

Direitos Humanos
na
América Latina

Nova Petrópolis / São Leopoldo

2015
© Ozanan Vicente Carrara
© Editora Nova Harmonia LTDA – 2015
Caixa Postal, 60. Nova Petrópolis/RS
CEP 95150-000
www.editoranovaharmonia.com.br

Conselho Editorial
Alejandro Serrano Caldera – Nicarágua Elisabeth Steffens – Aachen, Alemanha
Amarildo Luiz Trevisan – UFSM Enrique Dussel – Mexico
Alejandro Rosillo Martinez – México Hector Samour – El Salvador
Álvaro Márquez-Fernández – Venezuela Johannes Schelkshorn – Uni. Viena
Antonio Carlos Wolkmer – UFSC Jorge Miranda de Almeida – UESB
Antonio Rufino Vieira – UFPB Lindomal dos Santos Ferreira – UFPA
Antonio Salamanca Serrano – Equador Luiz Carlos Bombassaro – UFRGS
Antonio Sidekum – UFF – Presidente Nadja Hermann – PUCRS
Antonio Vidal Nunes – UFES Ozanan Vicente Carrara – UFF
Avelino da Rosa Oliveira – UFPEL Raúl Fornet-Betancourt – Aachen,
Alemanha

Revisão do português: Lúcia Maria de Assis


Revisão do espanhol: Nivia Ivette Núñez de la Paz
Diagramação e capa: Rogério Sávio Link
Imagem da capa: Detalhe do Memorial da América Latina

Parte da publicação deste livro foi patrocinado pela FAPERJ

Impressão: Rotermund

D598 Direitos humanos na América Latina. / Org.


Ozanan Vicente Carrara. Nova Petrópolis: Nova
Harmonia / São Leopoldo: Karywa, 2015.

14x21 cm ; 222p.

ISBN:

1. Direitos humanos; 2. Ditadura; 3. Tortura; 4.


Ética; I. Título

CDD 100; 320


Sumário

7 ............................................................................ Apresentação
11 ..................... A articulação empresarial-militar na cidade de
Volta Redonda: violações aos direitos humanos da classe
trabalhadora
Alejandra M. Estevez
Raphael J. da C. Lima
33 ................ Cidadania, interculturalidade e direitos humanos
Aloisio Krohling
Dirce Nazaré de A. Ferreira

45 ................. Direitos humanos: um desafio para a Filosofia da


Libertação
Antonio Sidekum
Matheus S. Pedrosa

63 ...................... Direitos de cidadania e autodeterminação das


comunidades indígenas no Brasil e especialmente na
Reserva Indígena do Uaçá
Paulo da Veiga Moreira

89 ................ Derechos humanos de los pueblos indígenas y los


acuerdos de San Andrés
Alejandro Rosillo Martínez

119 ............. El desafío de los niños migrantes no-acompañados


(“Non Accompanied Migrant Children”) a los derechos
humanos
Mauricio Urrea Carrillo

131 ................... De los derechos humanos, la ciudadanía y una


nueva cultura política: desafíos para una radicalización de
la democracia
Pablo Salvat B.

147 ............................ Valores morales – corrupción y derechos


humanos en el Perú
Luis E. Solís Acosta

163 ...................... El trabajo de asistencia y acompañamiento a


víctimas de delitos de lesa humanidad en el marco de los
juicios: la experiencia argentina
Fabiana Rousseaux
171 ................................... Testemunho da Verdade e efeitos de
reparação psíquica
Vera Vital Brasil

191 ............. Direitos humanos e espaços concretos: paralelos e


reflexões acerca da experiência memorial em antigos
centros clandestinos no Brasil e no Chile
Priscila Cabral Almeida

211 ................... Memória social e esquecimentos, de centro de


tortura à “parque da cidade”
Ana Paula Poll

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Apresentação
Este livro que chega às mãos do leitor teve seu início no
Projeto de Pesquisa, aprovado e financiado pela Faperj, do de-
partamento multidisciplinar da UFF de Volta Redonda. Alguns
professores e alunos se propuseram investigar as violações de
direitos humanos no Sul Fluminense, durante a ditadura mili-
tar, em cooperação com a Comissão Municipal da Verdade de
Volta Redonda. Como parte da pesquisa, convidamos professo-
res e profissionais ligados aos direitos humanos em países como
México, Peru, Chile, Argentina e também do Brasil. O Seminá-
rio “Direitos Humanos na América Latina” ocorreu em outubro
de 2014, tendo também contado com a participação de mem-
bros da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro e de
uma profissional ligada ao grupo “Clínicas do Testemunho” e,
posteriormente, de alguns outros pesquisadores que quiseram
fazer parte da publicação, enviando seus artigos que ora com-
põem a presente publicação.
A situação dos Direitos Humanos no continente vem assis-
tindo um retrocesso, seja pela volta da tortura usada como ins-
trumento de combate ao terrorismo, em Guantánamo, seja pelo
aumento da violência em todos os nossos países. Só no Brasil, o
número de homicídios ultrapassa a casa dos cinquenta mil a
cada ano, estatísticas que aparecem também na situação mexi-
cana e em países da América Central. A pergunta que importu-
na nossa consciência é a mesma de sempre: por que retrocede-
mos quando julgamos ter saído de regimes autoritários para
regimes democráticos que deveriam fortalecer a proteção dos
direitos dos cidadãos e o respeito à sua dignidade? Constatamos
também a impunidade àqueles que praticaram e àqueles que
continuam a perpetrar tais violações contra os cidadãos, especi-
almente contra os mais pobres e contra minorias étnicas como
indígenas ou ainda contra jovens negros das periferias das gran-
des cidades brasileiras. Teria a incapacidade do estado de punir
os perpetradores, verificada em alguns países, contribuído para
que deixasse de surgir entre nós uma nova cultura da dignidade
humana e de direitos?
Nosso livro começa com uma descrição de violações prati-
cadas pelo exército brasileiro na repressão à greve dos traba-
lhadores da CSN, em 1988, em Volta Redonda, que resultou no
assassinato de três operários. Os professores Raphael Lima e
Alejandra Estevez mostram a ação conjunta entre a CSN, as For-
ças Armadas e órgãos do Estado brasileiro para a repressão ao
movimento dos operários e no suporte dado ao golpe militar de
1964. Enquanto estes articulavam apoio ao golpe, movimentos
populares e o movimento operário, com apoio da Igreja Católi-
ca, então liderada por dom Waldyr Calheiros de Novaes, se or-
ganizavam para resistir e defender as vítimas da repressão, sen-
do algumas delas de dentro do próprio exército como os quatro
soldados assassinados no quartel de Barra Mansa, ou militantes
políticos e religiosos ligados à JOC e aos operários. No caso da
repressão à greve de 1988, os autores mostram que a repressão
continuou mesmo após o fim do regime militar quando o apara-
to repressor deveria ter sido desmontado.
No capítulo seguinte, o professor Aloísio Krohling, eméri-
to da UFES, discute a relação imprescindível e o diálogo que
deve haver entre Direitos Humanos e as alteridades locais, uma
vez que a visão clássica os pensou como universalizantes, tor-
nando-os incapazes de responderem a situações particulares mais
concretas. O autor procura destacar a importância de adotar
uma perspectiva intercultural na abordagem dos Direitos Hu-
manos, buscando tratá-los a partir da hermenêutica dialogicial
e diatópica. Segue-o o professor Antônio Sidekum, emérito da
Unisnos, propondo uma reflexão sobre os Direitos Humanos a
partir da Filosofia latino-americana da Libertação, pensando a
temática a partir da situação do pobre, do excluído, do campo-
nês, dos indígenas e de todas as vítimas cuja dignidade foi nega-
da pelo processo colonizador e continua a sê-lo por um sistema
que nega a alteridade e a diferença. Para o autor, a justiça con-
siste num reconhecimento do outro em sua alteridade infinita
assim como paz, liberdade e amor devem ser pensados não como
realidades interiores do ser humano, mas como realidades éti-
cas fundamentais na construção de uma práxis libertadora que
emerge da próprio envolvimento do oprimido e do excluído em
seuprocesso de libertação.
Não poderíamos deixar de incluir em nossa reflexão a si-
tuação dos povos indígenas, as primeiras vítimas da violência do
colonizador que os destituiu não somente da terra, mas acima
de tudo de sua cultura, religiosidade e alteridade. O professor
Paulo da Veiga Moreira, promotor de Justiça no Amapá por 22
anos, fala da luta do povo indígena da Reserva de Uaçá, no Oia-
poque, pelo reconhecimento de sua dignidade. O autor mostra
como os direitos fundamentais à saúde, à justiça e à educação,
princípios básicos da cidadania, ainda são negados ao indígena
brasileiro. Também dentro da temática dos direitos indígenas,

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o professor Alejandro Rosillo Martínez fala dos “Acuerdos de
San Andrés” como a base dos direitos indígenas, no México, a
partir dos princípios do pluralismo, sustentabilidade, integrida-
de participação e livre determinação. Tal acordo deve funda-
mentar a base jurídica dos direitos humanos dos indígenas me-
xicanos bem como possibilitar uma hermenêutica capaz de se
contrapor ao discurso hegemônico internacional.
O prof. Mauricio Urrea Carrillo, do México, aborda os di-
reitos humanos a partir da perspectiva das crianças migrantes,
sobretudo da América Central, desacompanhadas de seus pais
que se aventuram na travessia dos três mil quilômetros de de-
serto que separam o território mexicano do território dos Esta-
dos Unidos, enfrentando todo um arranjo militar montado espe-
cialmente pelos dois países para fazer frente a milhares de cri-
anças de até seis anos de idade que buscam paz, segurança e
prosperidade no território norte-americano, por não terem en-
contrado em seus países de origem políticas de inclusão que
favorecessem sua permanência. Situações como essa demandam
de nossas ciências novos modelos epistemológicos e antropoló-
gicos capazes de construir uma nova racionalidade menos teóri-
ca e mais prática que desperte para a responsabilidade de uns
pelos outros, numa solidariedade global. O professor chileno,
Pablo Salvat, convida-nos a uma nova cultura dos direitos huma-
nos, como base material e ideal de um espaço comum recons-
truído, aprofundando e radicalizando para isso a democracia.
Logo em seguida, temos o relato do prof. Luís de Acosta a res-
peito da situação dos direitos humanos, no Peru, em que a cor-
rupção acaba por minar pela base a possibilidade de se cons-
truir uma nova sociedade e uma nova política bem como uma
nova consciência da dignidade humana.
A psicanalista argentina, Fabiana Rousseaux, contribui
com um relato da experiência, em seu país, em torno do acom-
panhamento psicanalítico às vítimas do terrorismo de estado a
partir da implantação das políticas reparatórias pelo Ministério
da Justiça da nação argentina. Vera Vital Brasil, no capítulo se-
guinte, descreve as experiências das Clínicas do Testemunho de
que ela participa como psicoterapeuta e que se constituem em
verdadeiros espaços de reconstrução da memória das vítimas
que resistem às políticas do esquecimento. A autora está assim
convencida de que “é fundamental que políticas públicas de
reparação com memória, verdade, justiça estejam ativas, cons-
truindo uma outra lógica que consolide uma perspectiva futura
do princípio do Nunca Mais”.
Concluindo nosso livro, a doutoranda Priscila Cabral brin-
da-nos com uma reflexão sobre a experiência memorial em anti-

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gos centros clandestinos, no Brasil e no Chile, a partir das polí-
ticas públicas chilenas de memória que surgem agora também
no Brasil, com o trabalho das Comissões da Verdade que bus-
cam identificar os espaços das violações. A autora ressalta a
importância das políticas públicas de memória, que preservem
os lugares onde ocorreram as violações para que “além de lugar
de celebração dos vivos, para ancorar e rememorar a memória
de seus entes queridos mortos pela ditadura, possam contribuir
para a construção de uma consciência cidadã e internalização
dos direitos humanos, que tenha ressonância mais abrangente
no imaginário social e nas dinâmicas de construção das identi-
dades”. Trazendo a temática das “Memórias e Esquecimentos”
para a realidade local, Ana Paula Poll contrapõe a memória das
vítimas de violações dos direitos humanos e a memória oficial
que a Lei de Anistia de 1979 quis fazer prevalecer, como se
tivesse havido uma “perfeita” reconciliação entre as vítimas e
seus algozes, a tal ponto que não seja mais necessário relem-
brar as dores do passado. A autora mostra como as Comissões
da Verdade, no Brasil, podem ter ajudado a reinscrever as me-
mórias ditas “subterrâneas” na história oficial do país de onde
elas tinham sido banidas, dando-lhes legalidade e legitimidade.
Analisando os mecanismos através dos quais as memórias soci-
ais e os esquecimentos são fixados na história, ela toma o caso
exemplar, em nossa realidade local, da transformação de um
Centro de Tortura em Parque da Cidade. Analisando os modos
como as memórias coletivas são construídas e também descons-
truídas, ela nos convida também a pensar em como elas podem
ser reconstruídas.
Nós, professores e alunos da UFF de Volta Redonda, en-
volvidos com a pesquisa das violações dos direitos humanos e
com a recuperação da memória de suas vítimas, esperamos ter,
com nosso modesto trabalho, contribuído para que a voz das
vítimas e a preservação de suas memórias apontem para novos
tempos e novas políticas que se construam, tendo como referên-
cia a pessoa humana e seus direitos fundamentais, de tal modo
que o tempo e a história não os condenem ao esquecimento nem
deixem passar como irrelevantes e insignificantes suas lutas,
seus sonhos e esperanças que são também os nossos.
Volta Redonda, 21 de abril de 2015.
Prof. Ozanan Carrara
Coordenador do Projeto de Pesquisa UFF/Faperj

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A articulação empresarial-militar na cidade de
Volta Redonda: violações aos direitos humanos da
classe trabalhadora
Alejandra M. Estevez*
Raphael J. da C. Lima**

Introdução
O objetivo deste artigo é apresentar a participação do Exér-
cito na morte de três operários dentro da Usina Presidente Var-
gas (UPV) a partir da recuperação da relação entre esta institui-
ção militar e a própria gestão da Companhia Siderúrgica Nacio-
nal (CSN). A análise compromete-se a realizar um histórico do
envolvimento entre empresa e Exército, cujas principais evidên-
cias seriam a atuação de militares de diversas patentes como
gestores na Companhia e, por fim, a desastrosa participação de
soldados comandados pelo general José Luiz Lopes na repressão
à greve de novembro de 1988, a qual, de certa forma, foi funda-
mental para imprimir ao movimento sindical da cidade de Volta
Redonda um protagonismo no contexto do sindicalismo brasi-
leiro da década de 1980.
Diferentemente de apresentar uma trajetória linear do Sin-
dicato dos Metalúrgicos, bem como de variadas e importantes
lideranças, a proposta é situar as mortes (e os ferimentos) dos
operários no contexto de intervenção do Exército no cotidiano
das empresas estatais brasileiras. Notadamente, assinalar-se-á
a presença contínua de tropas militares de duas unidades do
Exército: o Batalhão de Infantaria Blindada (BIB) de Barra Man-
sa e a Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), localizada
em Resende. A primeira foi extinta em 1973 e a segunda ainda
se encontra em plena atividade, e é considerada um centro de
referência na formação de cadetes e jovens oficiais do Exército.
Nesse sentido, o evento ocorrido em Volta Redonda foi de enor-
me simbolismo.
De outra parte, analisar-se-á o caráter de classe das ações
militares no controle, monitoramento e repressão da classe tra-
balhadora, do período anterior ao Golpe de 1964 até a instala-
ção e domínio do regime militar na região.
O Massacre de Volta Redonda
Volta Redonda, 07 de novembro de 1988, quarta feira,
Usina Presidente Vargas. Vinte e três mil trabalhadores da CSN,
diante da deliberação da assembleia geral do dia 04 de novem-
bro, decidem entrar em greve, exigindo a implantação do turno
de seis horas, a reposição de salários usurpados por planos eco-
nômicos e a reintegração dos demitidos por atuação sindical,
entre outras reivindicações (SANTANA, 2006).
Segundo consta do Relatório elaborado pela Gerência de
Segurança da Usina, há registro de que, às 8 horas, a referida
gerência fez “contato com a Polícia Militar, na pessoa do Capi-
tão Garcia, solicitando reforços para a Passagem Superior da
CSN”. Tal reforço chegaria, segundo informações do citado re-
latório, às 13 horas, quando a Polícia Militar da região se dirigiu
para a passagem superior. Sua presença, no entanto, não impe-
diu os grevistas de darem prosseguimento às suas mobilizações.
Como a gerência de segurança da CSN trancou o portão
que dá acesso à passagem superior da usina e colocou uma ca-
minhonete veraneio bloqueando o caminho, Marcelo Felício,
então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Volta Redon-
da, em cima do carro de som da entidade, orientou os trabalha-
dores a retirarem a caminhonete do caminho que bloqueava a
entrada para a usina. Após enfrentamento entre policiais e tra-
balhadores, estes lograram desobstruir a passagem e ingressar
na siderúrgica. Três mil operários ocuparam a CSN sob a orien-
tação de Juarez Antunes, presidente do sindicato eleito e licen-
ciado para assumir o cargo de deputado estadual.
Às 19 horas, cerca de 600 soldados do Exército e da PM
desceram a avenida Ipiranga (localizada em frente à CSN) ati-
rando bombas de gás lacrimogêneo, com o intuito de dispersar
a multidão que se aglomerava fora da usina, perto do Escritório
Central da empresa. Segundo relato da Agência Rio de Janeiro
do Serviço Nacional de Inteligência (SNI), o clima era de tensão
entre trabalhadores e agentes da repressão. Há denúncias de
agressões a jornalistas e à população local que se solidarizava
com os grevistas1.
No dia seguinte, houve novo registro de entrada das tro-
pas do 22° BIMtz para reprimir os grevistas. A direção da em-
presa solicitou então à Justiça a manutenção de posse e Juarez
Antunes, ex-presidente do Sindicato, foi impedido de entrar na
usina, por um Oficial do Exército, que apresentou um mandado
judicial, expedido pelo Juiz da 3ª Vara Civil da Comarca de Volta
Redonda2. A intervenção do Exército deu-se sob pretexto de pro-
teção do patrimônio da empresa e sob o comando do General

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José Luiz Lopes. Cerca de dois mil homens de vários destaca-
mentos do Rio de Janeiro dirigiram-se a Volta Redonda e prota-
gonizaram cenas de violências por toda a cidade3.
Como se tornaria habitual, a presença do 22° BIMtz e da
PM foi sentida de forma mais dramática no dia 09 de novembro,
quando as tropas do Exército e da Polícia Militar (PM) protago-
nizaram evento traumático no interior da aciaria da usina, dan-
do lugar a mais um caso de grave violação dos direitos humanos
ocorrido na região contra os trabalhadores. As forças repressi-
vas, visando conter a ação dos grevistas, deram início a uma
“operação pente fino”, na qual se registrou a participação de
dois mil homens do Exército e da PM em frente à rampa de
entrada da passagem superior, novamente atirando gás lacri-
mogêneo e protagonizando agressões de diversos tipos. A ação
dos agentes públicos da repressão seria responsável pela morte
de três operários, todos com menos de 30 anos: dois deles assas-
sinados por tiros de fuzil no peito e outro com o crânio esmaga-
do por pancadas. Além disso, houve registros de mais nove tra-
balhadores com ferimentos graves4.
A greve durou ainda mais 15 dias, porém na manhã do
dia seguinte à morte de Carlos Augusto Barroso, Walmir Freitas
Monteiro e Wiliam Fernandes Leite, teve termo a operação mili-
tar “pente fino”, após negociação entre o governo e a direção do
Sindicato. No entanto, no decorrer de todo o período de manu-
tenção da greve, observa-se a presença das forças do 22° BIMtz
e da PM em diferentes setores da usina. Diariamente eram con-
vocadas assembleias, às vezes mesmo mais de uma vez no mes-
mo dia, que chegavam a reunir doze mil pessoas. Vale registrar,
ainda, que o movimento no interior da fábrica beneficiou-se do
apoio extra-fabril, sobretudo da ação das associações de mora-
dores e das esposas que diariamente levavam refeições aos ma-
ridos, operários em greve na usina (SANTANA, 2006). O relato
de um sindicalista ilustra a natureza das ações repressivas pra-
ticadas pelo Exército dentro e fora da companhia:
E o exército atacou a cidade, então nós estávamos no
enfrentamento fora. Ali naquela vila. Os conflitos tive-
ram reflexos por toda a cidade. A memória da força bru-
ta utilizada pelos militares é muito vívida. [O exército...]
Nossa! Espancou brutalmente a população. Por exem-
plo, meu carro foi perfurado de bala, eles tentaram nos
acertar. Nós tivemos que sair correndo, tacando pedra
e correndo. Teve muito. Eles enfrentaram em duas fren-
tes. Lá dentro [da Usina], né, mas lá dentro, no primei-
ro momento, lá dentro basicamente não houve enfren-
tamento. Houve assim, os trabalhadores entravam na
aciaria eles não entravam lá. Aí o enfrentamento houve

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na rua, porque eles tentaram isolar a população pra
não dar apoio, certamente pensando que fosse desocu-
par fácil. Não conseguiram, porque a greve durou de-
zessete dias. (Retirado de SANTANA, 2006)
Apenas no dia 23 de novembro de 1988, em assembleia
que reuniu cerca de vinte mil pessoas, segundo o relatório da
gerência de segurança da usina, os trabalhadores aceitaram a
proposta da empresa, mas sob a condição de voltarem ao traba-
lho após a retirada das tropas do interior da usina. As três mor-
tes ofuscariam o saldo positivo conquistado com a greve: a CSN
concordou em conceder 85% de aumento salarial, reincorporar
os demitidos e adotar, em curto prazo, o turno de seis horas.
O abraço à usina, a 21 de novembro de 1988, resume
perfeitamente o que Graciolli (2007) entendeu por uma greve
com resultados econômicos e, fundamentalmente, políticos, na
qual a intervenção militar – por ele definida como uma manifes-
tação autocrática da Nova República – foi respondida à altura
por meio de uma manifestação cívica, heterogênea e democráti-
ca sob o nome de Frente Sindical-Popular de Volta Redonda,
reunindo 60 mil pessoas ao redor da CSN. Tratou-se, sem dúvi-
da, de uma demonstração do grau de sinergia existente entre
trabalhadores e moradores, em grande parte justificada por
relações familiares.
As violações cometidas contra os trabalhadores e a popu-
lação local até hoje não foram verdadeiramente elucidadas, uma
vez que a documentação referente a esta greve teria sido des-
truída, segundo resposta oficial do Comando do Exército Brasi-
leiro à Folha de São Paulo em matéria de 11 de agosto de 2012.
Desde então, alguns órgãos de informação têm publicado notí-
cias que acusam o então Presidente da República e Chefe das
Forças Armadas, José Sarney, de ter sido o autor da ordem de
invasão da usina naquele fatídico dia 09 de novembro de 1988.
Mesmo sob a vigência da Constituição promulgada no mês ante-
rior, a relação de colaboração entre a Companhia Siderúrgica e
as Forças Armadas expressava um longo histórico de autorita-
rismo e intervencionismo na CSN, como exposto a seguir.

Quando tudo começou... e então o Golpe


O Sindicato dos Metalúrgicos do Sul Fluminense foi fun-
dado sob o nome de Associação Profissional dos Metalúrgicos
de Barra Mansa, no município homônimo, nos idos de 1943, por
conta da relativa presença de operários na Siderúrgica Barra
Mansa, a qual compunha o parque siderúrgico do município,
juntamente com a Metalúrgica Barbará, inaugurada em 1937.
De acordo com Veiga e Fonseca (1990), com uma diretoria

14
composta por getulistas que participaram posteriormente da fun-
dação do Partido Social Democrático (PSD), a entidade teve seu
nome convertido para Sindicato dos Trabalhadores nas Indústri-
as Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Barra Man-
sa, em 1946, e teve a sua sede transferida para o então distrito de
Santo Antônio de Volta Redonda, em 1947, onde funcionou provi-
soriamente num barracão da CSN, no bairro Laranjal.
Como apontam os estudos de Monteiro (1995) e Pessanha
e Morel (1991), o Sindicato dos Metalúrgicos apresentou três
fases distintas queacompanharam as modificações no meio sin-
dical brasileiro. A primeira, no pré-1964, quando se defineco-
mo uma entidade colaborativa com o governo e conciliadora na
relação capital-trabalho, exercendoum papel decisivo no disci-
plinamento da força de trabalho que ingressou na Companhia.
De acordocom esses estudos, desde a eleição da primeira dire-
toria, em 1951, estabeleceu-se “uma relação quaseinstitucional
entre Sindicato e empresa com frequentes reuniões de concilia-
ção de interesses, com abreve substituição da opção pelo enten-
dimento por outra pelo conflito, entre os anos de 1984 e 1991”
(Monteiro, 1995, p.23).
A transferência da sede da entidade de Barra Mansa para
Volta Redonda ocorreu, possivelmente, em função da crescente
centralidade da produção da CSN, planejada pelo governo bra-
sileiro para sobrepujar em volume de produção todas as plantas
siderúrgicas privadas do país. Assim sendo, o que se enfatiza é o
alinhamento da entidade ao governo Vargas, sem a existência
de um histórico de contestação ao Estado. A tutela estatal para
com o sindicato teria fim apenas em 1955, quando os trabalha-
dores puderam, pela primeira vez, escolher seus dirigentes atra-
vés do voto, rendendo a vitória da chapa comunista. A presença
de membros do PCB na diretoria, no entanto, serviu como pre-
texto para o governo buscar intervir no Sindicato, tentativa frus-
trada devido ao apoio das bases. Após breve período em que os
trabalhistas lograram voltar à direção da entidade pelas vias
eleitorais, em 1963, os comunistas reconquistaram o controle
do sindicato mas, desta vez, não chegariam ao fim de seu man-
dato devido à intervenção militar ocorrida logo em abril de 1964.
De outra parte, a ligação entre CSN e Forças Armadas
pode ser comprovada por meio de diversos Inquéritos Policiais
Militares (IPM) movidos ao longo do regime militar. A relação
orgânica entre ambas estabeleceu-se desde a formulação e a
implementação do Plano Siderúrgico Nacional, ainda sob o Es-
tado Novo, e da formação de um complexo militar estatal nas
décadas de 1950 e 1960. Os militares exerciam, portanto, influ-
ência não apenas simbólica, como também sobre as gerências e

15
a vida política da usina. A pretexto da segurança e do desenvolvi-
mento nacional, essa articulação empresarial-militar cria, já em
1942, nos primórdios da Companhia Siderúrgica, uma “polícia
secreta”, comandada pelo Capitão Edgard Magalhães. A “gesta-
po” da CSN, como foi rapidamente apelidada pelos operários,
estaria presente em cada seção da usina, nas reuniões e assem-
bleias do sindicato, segundo relatos dos trabalhadores. Um exem-
plo dessa conexão com as Forças Armadas ocorreu quando, no
dia do Golpe de 1964, as principais lideranças que se destacavam
no cenário de Volta Redonda já estavam devidamente identifica-
das, facilitando o posterior trabalho de perseguição e prisão dos
trabalhadores. Inclusive, as informações reunidas pela “gestapo”
da siderúrgica teriam papel central no fornecimento de informa-
ções para os IPM movidos ao longo do regime militar (BEDÊ, 2004).
O posicionamento favorável ao Golpe Militar por parte da
direção da empresa pode ser ilustrado pelo papel ativo do Dire-
tor Industrial Mauro Mariano. Coordenado com o Comando Mi-
litar da região, os dois teriam estabelecido, com antecedência,
o Plano de Segurança da usina. Vale registrar que esta ação
ocorreu à revelia do então presidente da CSN, Almirante Lúcio
Meira, demonstrando uma clara cisão entre parte da diretoria e
a presidência pró-janguista. Tal plano consistia em uma estraté-
gia antigrevista, na qual era previsto um esquema de alerta de
todas as superintendências e chefias centrais da empresa em
caso de ameaça grevista, conforme exposto no ofício expedido
pelo diretor industrial para o Tenente-Coronel Luciano Salgado
Campos, responsável pela posterior instalação do IPM-CSN.
De acordo com o desenrolar dos acontecimentos e den-
tro das normas estabelecidas em Volta Redonda pelos
responsáveis por essa segurança da Usina Presidente
Vargas, as notícias que iam sendo recebidas em Volta
Redonda pelos responsáveis por essa segurança eram
checadas, confirmadas, examinadas e feita a correla-
ção necessária com as providências a serem tomadas.
Assim, em torno de 24 horas do dia 31 de março foram
alertados os superintendentes e assistentes da Direção
Industrial para que mantivessem em estado de alerta
seus subordinados – chefes do grupo e departamentos e,
estes, o restante da supervisão – para a possibilidade de
perturbação da ordem da Usina. Em torno de 4 horas da
manhã do dia 1° de abril, com a ordem de deflagração
do plano dado pelo Diretor Industrial, seguindo as ins-
truções previamente dadas em reuniões com supervisão
de cada área, toda a supervisão presente em Volta Re-
donda foi convocada a ocupar, até 6 horas da manhã,
os seus postos na Usina. Não houve comunicação à su-
pervisão do plano de que tenha faltado algum elemento
necessário a sua execução5.

16
Tal planejamento não apenas comprova que o Golpe de 1°
de abril de 1964 já vinha sendo arquitetado, como evidencia a
organização das empresas estatais estratégicas para a conten-
ção de uma eventual reação às forças golpistas, oferecendo cla-
ras instruções aos supervisores e chefes de departamentos em
caso de “perturbação da ordem”.
Quando Lima Neto, então presidente do sindicato, no dia
1° de abril, organizou um piquete na entrada Leste da usina –
por volta das 7 horas da manhã, exatamente no momento de
mudança de turno dos trabalhadores –, além de acionar a ca-
deia hierárquica da empresa, o diretor industrial ordenou que
sinais de rádio, TV e telefone fossem interrompidos. O objetivo
era impedir a entrada de conhecidas lideranças sindicais à usi-
na e assim evitar a comunicação do movimento grevista com os
trabalhadores. As tropas do 1° BIB e da AMAN invadiram a pas-
sarela por volta das 7h30min, dispersando os líderes grevistas,
que decidiram entrar na usina na tentativa de mobilizar seus
companheiros desde seu interior. Só então se deram conta que
os telefones internos haviam sido cortados e que a mobilização
teria que ser feita pessoalmente, percorrendo os departamen-
tos e seções. Às 10 horas da manhã, como era de se esperar,
João Alves dos Santos Lima Neto, presidente do Sindicato, foi
preso no interior da usina e levado ao 1° BIB (BEDÊ, 2010).
A notícia da prisão de Lima Neto espalhou-se rapidamente
dentro da usina, causando grande indignação dos operários e
resultando na maior adesão à paralisação após o almoço. De acor-
do com o IPM-CSN instalado dias depois, 99 operários de diferen-
tes departamentos, em sua maioria do Departamento de Recupe-
ração Material (DRM), encerraram o ponto após o almoço, entre
10h50min e 12h45min, alegando receio da corrida aos arma-
zéns, provocada em decorrência da situação de instabilidade em
que o país se encontrava. Além desses trabalhadores, outros 60
seriam punidos através de demissões e prisões no 1° BIB e na
AMAN. A repressão atingiu inclusive escalões mais altos da dire-
ção da empresa: um grupo de trabalhadores encerrou o ponto às
9h20min, provocando a demissão dos dois chefes responsáveis
da Fábrica de Estruturas Metálicas (FEM) (BEDÊ, 2010).
Concomitante à iniciativa de Lima Neto de mobilizar a
categoria no interior da usina, o trabalhista Othon Reis, ex-pre-
sidente do Sindicato dos Metalúrgicos derrotado na eleição sin-
dical de 1963, decidiu ocupar a Rádio Siderúrgica6 para infor-
mar à categoria a necessidade de resistência à ameaça de Golpe
contra o governo Goulart. Às 6 horas da manhã, tropas do 1°
BIB foram enviadas para a rádio, a pedido do diretor industrial
da CSN. Em demorada disputa com as forças repressivas, a rá-

17
dio ainda chegou a transmitir, em cadeia com a Rádio Nacional,
a segunda “Cadeia da Legalidade”7 até as 16h sob ordens, se-
gundo relatos, do próprio presidente da CSN, o general Lúcio
Meira. Às 16h20min, a Rádio foi posta totalmente sob controle
militar (BEDÊ, 2010).
Além da resistência na usina e na Rádio, reprimidas pela
presença das forças militares em articulação com a direção da
companhia, outro grupo de trabalhadores ainda se reuniria na
sede do Sindicato e na Avenida Amaral Peixoto, importante cen-
tro comercial de Volta Redonda. Na saída do turno de 17h15min,
os trabalhadores encheram um caminhão e dirigiram-se para o
Sindicato, onde as tropas militares já se encontravam concen-
tradas no entorno. Os trabalhadores haviam feito um cordão de
isolamento, mas a certa altura os soldados forçaram o cordão e
invadiram a sede. Alguns líderes conseguiram fugir, outros fo-
ram presos ali mesmo. Com a invasão da sede, a documentação
do sindicato desapareceu e este teve seu patrimônio depredado
pela ação do 1° BIB.
Nestas alturas, a gente não tinha notícias se o governo
tinha renunciado ou não e a gente ficou assim, vamos
dizer, numa briga com os militares, eles querendo en-
trar e a massa não deixando o pessoal tomar o Sindica-
to. Isto foi até por volta de 19 horas; inclusive eu e outro
companheiro demos sugestão para o pessoal fazer um
outro cordão de isolamento porque os caras estavam
pressionando cada vez mais, o Comandante da tropa
tentava passar, ele ia, tentava passar, o pessoal empur-
rava, ele voltava... Isto aí todos com a bandeira do Bra-
sil: “Queremos o Lima Neto”, “Enquanto não sair o Lima
Neto não vamos sair daqui”. (...) Eles só invadiram por
volta das 19h45min, (...) quando invadiram, foi um pâni-
co total, um massacre mesmo. Os caras chegaram com
baioneta, os tanques, aí tomaram o sindicato e prende-
ram todo mundo que estava lá em cima, tomaram a apa-
relhagem de som, abafou tudo, e quando foi 20h30min,
mais ou menos, já não podia circular mais de três pesso-
as pela Amaral Peixoto; isto aí ficou deserto, foi um caos
total (...) Aí tem o dia seguinte: o dia seguinte é que é o
mais triste, porque além da repressão militar, o interi-
or da Usina foi todo ocupado (...), quem chegava no inte-
rior da Usina via um verdadeiro quartel. (Militante sin-
dical ligado à JOC. Retirado de MOREL, 1989).
Após este episódio, sob a alegação do sindicato de haver
ficado “acéfalo”, obviamente em consequência da prisão arbi-
trária ou fuga forçada de suas lideranças, o novo governo desig-
nou uma junta interventora. Chama a atenção que este último
episódio não conste do posterior IPM instaurado para apurar os

18
acontecimentos do 1° de abril na CSN, sendo apenas registrado
através dos depoimentos orais daqueles que os vivenciaram.
O Golpe, já no seu primeiro dia, teve um impacto arrasa-
dor para a vida política e sindical da região. A diretoria do sindi-
cato e parte da diretoria da CSN foram afastadas. Jesus Soares
Pereira, político experiente que exerceu diferentes tipos de as-
sessoria desde o governo Vargas e ocupava o cargo de Diretor
de Venda da CSN, teve seus direitos políticos cassados pelo AI-1;
o Alm. Lucio Meira demitiu-se e retirou-se para a reserva; o Di-
retor-secretário Wandir de Carvalho e o Diretor de Serviços So-
ciais, Othon Reis, foram presos na AMAN. Volta Redonda foi
cercada pelo 1° BIB, o sindicato invadido e Lima Neto preso
dentro da usina. Ainda em abril, a CSN abriria um IPM para
apurar atividades subversivas realizadas no âmbito da empresa,
realizando dezenas de interrogatórios com indiciados e teste-
munhas.

As violações aos trabalhadores e a colaboração entre


CSN, Forças Armadas e poderes públicos estatais
O resultado da ação grevista foi a demissão, a prisão e, em
alguns poucos casos, a fuga das principais lideranças operárias
da região, fossem elas de orientação trabalhista ou comunista. A
prisão em massa foi a estratégia adotada pelo novo diretor indus-
trial da CSN em consonância com as forças militares lideradas
pelo Comandante Militar do Golpe na região. O saldo final da
repressão aos trabalhadores foi a prisão de 58 líderes envolvidos
direta ou indiretamente no movimento grevista de 1° de abril no
decorrer dos dois primeiros meses de vigência do regime militar,
conforme consta no IPM-CSN, de 16 de abril de 1964.
As datas das detenções demonstram como o alvo primordial
do Comando Militar na região foram os trabalhadores, sejam aque-
las lideranças que reconhecidamente atuaram na organização da
resistência ao Golpe, sejam aqueles funcionários que apenas sim-
patizavam com o governo Goulart e sustentavam o trabalho da di-
retoria do Sindicato. Nesse contexto, o interventor Orlando Alvisse
assumiu a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos, dando início
a uma nova fase da história política para a região.
Ainda como resultado do IPM-CSN, 77 trabalhadores fo-
ram demitidos, muitos dos quais foram presos e/ou atingidos pelo
AI-1. Outros onze funcionários da CSN foram punidos com apo-
sentadoria compulsória, também de acordo com o AI-1, confor-
me consta no Diário Oficial da União de 06 de outubro de 1964.
Nessa verdadeira “caça às bruxas”, três diretores, identi-
ficados logo abaixo, destacaram-se por atuarem ao lado das for-

19
ças repressivas, participando da delação de diretores alinhados
ao governo que sofria o Golpe e fornecendo, junto à “gestapo”
da CSN, listas de trabalhadores8 que participaram da ação gre-
vista, como se pode observar logo adiante (quadro 1).
A nova composição da diretoria da empresa, além da subs-
tituição da maioria de seus atores, extinguiu alguns cargos que,
desde os anos 1950, expressavam a influência do sindicato no
interior da usina, como é o caso do cargo de diretor secretário.
No caso da direção de serviços sociais, a CSN passava a designar
diretamente seu responsável, sem passar pelo crivo do sindicato
já sob intervenção9. Vejamos:
Quadro 1: Diretoria da CSN em 1964
Em 31 de março
Presidente .................................................................. Alm. Lúcio Martins Meira
Vice-Presidente ......................................................... Gal. Mário Gomes da Silva
Diretor Industrial ................................................. Eng° Mauro Mariano da Silva
Diretor de Matérias Primas .......................................................... Mauro Ramos
Diretor de Vendas ................................................................. Jesus Soares Pereira
Diretor de Compras ................................................... Joaquim Mendes de Souza
Diretor de Transportes ................................................... Moacir Araújo Pereira
Diretor Tesoureiro ............................................... Cmt. Benvindo Taques Horta
Diretor Secretário ............................................................... Wandyr de Carvalho
Diretor de Serviços Sociais ............................................. Othon Reis Fernandes
Em 25 de abril
Presidente .............................................................. Eng° Oswaldo Pinto da Veiga
Presidente .................................................... Eng° Antônio Carlos Gonçalves Penna
Diretor Industrial ................................................. Eng° Mauro Mariano da Silva
Diretor de Matérias Primas ............................................................ Mauro Ramos
Diretor Comercial ....................................... Eng° Arnaldo Claro São Thiago Filho
Diretor Tesoureiro ............................................... Cmt. Benvindo Taques Horta
Diretor de Pessoal e Serviços Sociais ........... João de Castro Moreira (até 26/04/1965)
Eng° Newton Coimbra de Bittencourt Cotrim
(FONTE: PEREIRA, 2007: 81)
Compondo este quadro, constata-se o estreitamento dos
canais de comunicação entre a direção da CSN e os militares,
conforme revela uma carta enviada por um dos diretores da com-
panhia ao alto comando do Exército. Nela, destaca-se a impor-
tância do 1° BIB no controle e na segurança de Volta Redonda,
que sai do âmbito da usina siderúrgica para estender-se por
toda a cidade. O documento expõe ainda que o novo presidente,
General Oswaldo Pinto da Veiga, antigo vice-presidente de ma-
térias-primas em 1962, teria pedido para que os oficiais de alta
patente se mudassem para Volta Redonda, de maneira a conhe-
cer mais profundamente os hábitos e o modo de vida da popula-
ção, contribuindo assim para o mais efetivo controle dos habi-
tantes. Esta correspondência traz ainda a revelação de que a
direção da companhia teria oferecido 16 casas a esses militares

20
na Vila Santa Cecília, bairro destinado a engenheiros e técnicos
da CSN, como atrativo para a sua transferência10. Seriam doados
pela empresa, ainda, 10 veículos utilitários Rural Willis “em re-
conhecimento pelos serviços prestados em defesa da democra-
cia e da Companhia Siderúrgica Nacional” (BEDÊ, 2004: 234).
Já em julho de 1964, veio o primeiro decreto que garantiu
a política de arrocho salarial implementada pelos governos mili-
tares dali por diante. De acordo com o Decreto n° 54.018, de 14
de julho de 1964, o Conselho Nacional de Política Salarial, cria-
do em 1963, passava a estabelecer normas sobre a política sala-
rial do governo. Este decreto caracterizava-se por um maior con-
trole do Estado na política salarial, condicionando qualquer re-
ajuste, revisão ou acordo salarial do serviço público federal à
prévia audiência do referido Conselho. Assim, além das viola-
ções aos direitos dos trabalhadores presos, cassados, aposenta-
dos compulsoriamente etc., uma das primeiras consequências à
repressão e intervenção dos sindicatos consistiu na deteriora-
ção salarial, evidenciando os interesses dos setores empresari-
ais e o caráter de classe da ditadura, que visava atingir não ape-
nas direitos políticos, como o direito de manifestação, de ex-
pressão, de ir e vir, mas também atingia também direitos bási-
cos, como o direito à subsistência, à saúde e à moradia.
A política de desenvolvimento econômico estabelecida pelo
regime militar modificou a estruturação das relações sociais no
interior da usina. Em 1964, a CSN passou a estabelecer nova po-
lítica de admissão dos trabalhadores, organizando concursos pú-
blicos através do Centro de Treinamento e Seleção, criado especi-
almente com esta finalidade. Havia uma maior demanda por mão
de obra qualificada, contribuindo para a segregação social no
interior da usina entre esta nova categoria e os trabalhadores de
chão de fábrica. O Plano de Cargos e Salários, criado pela empre-
sa em 1966, só reforça a distância entre os trabalhadores qualifi-
cados e os demais. Junto a isso, estabelece-se um método de ava-
liação meritocrático, o Sistema de Avaliação e Desempenho, re-
forçando o mérito individual como critério de promoção, em lu-
gar da antiguidade e experiência do trabalhador. Esta hierarqui-
zação do espaço fabril amplia o poder dos chefes de unidade,
contribuindo para o assédio moral nos locais de trabalho, além
de atingir a constituição dos laços identitários e de solidariedade
entre os trabalhadores (PEREIRA, 2007: 60).
Ainda no contexto da década de 1960, diversos líderes
sindicais atuantes foram vítimas de perseguição pela empresa.
Um caso que se tornou notório foi o de Genival Luís da Silva,
sindicalista que teve cassado o seu mandato como diretor do
Sindicato dos Metalúrgicos, por ocasião do AI-5 e, em seguida,

21
foi demitido da empresa, juntamente com os também dirigen-
tes sindicais Isnard Coutinho e Wilton Meira, conforme o Diário
Oficial de 08 de agosto de 1969. Um relatório acerca das ativi-
dades ligadas ao sindicato revela a participação direta da dire-
ção da CSN na identificação dos “metalúrgicos subversivos”. O
documento, assinado pelo comandante do 1° BIB, coronel Ar-
mênio Pereira, atesta que o general Alfredo Américo da Silva,
então presidente da CSN, ao lado do diretor de Pessoal e Servi-
ços Sociais, Dr. Jorge da Silva Mafra Filho, “solicitaram audiên-
cia ao Sr. Ministro do Trabalho, a quem entregaram cópia de
uma documentação, já enviada ao SNI, afirmando a periculosda-
de dos dirigentes sindicais”11.
(...) era cinco e meia da tarde quando o Congresso lá
promulgou e tal aí o Costa e Silva falou: Ai, o Ato 5. Aí
sete e meia da noite encostou um carro do Exército aqui
no sindicato, na porta do sindicato. Entrou no sindica-
to e o pessoal falou: O Exército, o Exército. E tal. Aí
começou a pular gente lá pela janela, lá pelos fundos do
sindicato lá pra Gustavo Lira e foi um corre corre medo-
nho e diretor de lá só tinha o Ilton, o Isnard. Não! É! O
Ilton, o Isnard e alguns companheiros lá. A direção da
suplência que a suplência acompanhava a gente direi-
tinho, os suplentes, nossos suplentes. Pessoal todo cada
um tinha uma função, né nas (...). Aí prenderam ali umas
10 ou 15 pessoas naquela noite no dia do Ato 5, dia 13 de
dezembro 1968. Aí foram lá em casa. Aí foram lá: Olha,
não vai lá pro sindicato não amanhã. Não vai pro sindi-
cato não. Te esconde que já prenderam alguma gente e
tão prendendo o pessoal na rua. Aí eles estavam em ca-
ravanas, estavam prendendo na casa aas pessoas, com-
panheiros que eram, que já tinham sido presos lá em
1964, né. Lá em 1964. Já tinham sido presos, já tinham
procurado, estavam respondendo processo ou não esta-
vam e tal. Saiu da companhia, foi, foi cortado da compa-
nhia, foi demitido e tal. Aí eles estavam buscando eles,
aqueles que tinha atividade no sindicato, algum lugar
político mermo. Até pessoa da direita foi preso também.
Conclusão, aí prendeu uma porção de gente e levaram
pra lá. (...) Aí, levaram lá pro BIB. Não ia pra delegacia
policial não. Encheram os carros e tal e levava pro BIB.
Aí, no dia seguinte, pessoal foi lá em casa e falou assim
ó: Você não vai, foge, sai fora e tal. Eu falei assim: Eu
não, eu não vou sair fora não. Eu vou pro sindicato.
Quando foi sete horas da manhã cheguei lá com a mi-
nha pastinha na mão e tal, aí o pessoal: Pô, cara, vai
embora, some daqui, sai daqui que eles vão. Teus cole-
gas já tão lá, todo mundo já tá preso lá e você. Eu digo
assim: Não, eu não vou sair daqui não. Deixa eles vir aí.
Aí quando foi dez horas, dez pouca, encostou um carro.
A Avenida Amaral Peixoto estava assim ó, todo mundo

22
desesperado, todo mundo dizendo: Mas por que que você
fez isso com o sindicato? Qual o problema do sindicato?
Não tinha nada, não se fazia nada no sindicato. Fazia
nada. O sindicato não funcionava porque não tinha con-
dição. Nós estávamos em plena Ditadura. Volta Redonda
é área de segurança nacional. (...) Aí eles fecharam o
sindicato. Fecharam o sindicato e mandaram o pessoal ir
pra casa. Mas não fui eu que mandei, foi o Exército. Ah,
meu camarada mas isso me custou caro à beça. Aí eu fui
na carroceria da pick-up, junto com dois sentinelas, jun-
to com os dois soldados armados de baioneta. Cheguei lá
já fui direto pro cubículo. Fui direto pro cubículo. Quan-
do cheguei lá, rapaz, tinha mais de 40 pessoas. Tinha um
velhinho de 78 anos, aqui do Pinto da Serra, preso por-
que era simpatizante do partido. Eu conhecia ele.12
De outra parte, a Igreja Católica da região, após a chega-
da do bispo Dom Waldyr Calheiros de Novaes, em 1966, passa
por uma série de transformações de caráter político e teológico.
O Concílio Vaticano II, recém-concluído em 1965, havia consoli-
dado a ideia de uma Igreja dos pobres e as experiências de mo-
vimentos ligados à Ação Católica deixavam já sua marca na or-
ganização coletiva das camadas populares. Dom Waldyr, orde-
nado bispo no dia 1° de maio de 1964, assumiria uma identida-
de marcadamente operária, lançando-se em defesa dos direitos
dos trabalhadores ao chegar a Volta Redonda.
Apesar dos embates entre Igreja e Estado militar terem se
dado desde os primeiros dias do bispado de Dom Waldyr, é tam-
bém no ano de 1969 que o bispo diocesano passa a se empenhar
na denúncia de torturas ocorridas no interior do 1° BIB, primei-
ramente contra o metalúrgico e sindicalista, Genival Luís da Sil-
va, e, posteriormente, contra o padre Natanael Campos e alguns
jovens militantes da JOC, como exposto mais adiante. Neste mo-
mento, as forças militares já haviam começado uma campanha
de difamação e perseguição ao bispo de Volta Redonda e alguns
de seus sacerdotes e leigos, conforme relatório enviado pelo co-
mandante do 1° BIB, Tasso Villar de Aquino, para o presidente da
Comissão Geral de Inquérito Policial Militar, datado de 1° de de-
zembro de 196913. Nos jornais e rádios locais circulavam notícias
que disseminavam a imagem de um bispo subversivo, alinhado
com os comunistas, legitimando assim a instauração de três IPM
movidos contra membros da diocese e uma série de atos persecu-
tórios ao longo de todo o período militar.
No ano de 1970, o Comando da Guarnição Federal de Bar-
ra Mansa e Volta Redonda inicia ações mais diretamente volta-
das para a perseguição e prisão de militantes da esquerda ar-
mada, animados pela desorganização de movimentos da guerri-
lha armada em nível nacional, marcados pela morte de Mari-

23
ghela, em 1969, e de Joaquim Câmara Ferreira, ambos dirigen-
tes da Ação Libertadora Nacional (ALN), neste mesmo ano. As-
sim, o 1° BIB assume papel de maior proeminência na ação re-
pressora da região, recebendo o aval das instâncias superiores
para a prisão de todos que, direta ou indiretamente, estivessem
envolvidos ou comprometidos com ações subversivas.
Nessa nova fase de perseguições, foram detidos, no dia
10 de novembro de 1970, os militantes Hélio Medeiros de Oli-
veira e João Cândido de Oliveira, junto a seu assistente eclesiás-
tico, padre Natanael de Moraes Campos, barbaramente tortura-
do por suas ações consideradas subversivas no âmbito da JOC.
Um novo IPM foi então instaurado para investigar as ações
de padre Natanael e de uma série de militantes da JOC. Este
incidente insere-se num contexto mais amplo de prisão de jocis-
tas na região, bem como encontra explicação numa ação or-
questrada de perseguição à JOC em nível nacional, cuja invasão
ao Ibrades foi o fato mais emblemático e mais amplamente re-
percutido na grande mídia. Foram detidos 30 militantes, entre
jocistas e ex-jocistas, na região Sul Fluminense14. Após um aci-
dente automobilístico com um veículo pertencente à paróquia
de Santa Cecília, o padre Natanael Campos e o militante João
Cândidoforam interrogados, o que teria permitido que as auto-
ridades militares confirmassem “todas as suspeitas que contra
eles pesavam, através de detalhadas confissões e informações
sobre a existência de farto material de propaganda subversiva
ocultado no barracão onde ambos residiam, na Vila Brasília”15.
Da parte da Igreja, segundo as autoridades militares, estavam
comprovadamente envolvidos os padres Natanael e Arnaldo Al-
berti Werlang.
Alguns anos depois, mais precisamente em 1973, Volta
Redonda foi declarada como Área de Segurança Nacional, atra-
vés do decreto-lei número 1.273 assinado pelo presidente Emí-
lio Garrastazu Médici (EGALON, 2002). As Áreas de Segurança
Nacional foram instituídas pelo governo federal em 1966, com
o Ato Institucional número 3 (AI-3), mas apenas passou-se a co-
gitar a cassação da autonomia de Volta Redonda quando se es-
tabeleceu o Primeiro Plano Nacional de Desenvolvimento (PND)
pela lei 5.727 de 04 de novembro de 1971, exigindo estabilida-
de política para a efetivação da última etapa de expansão da
CSN, o Plano D. Assim, em janeiro de 1973, muito provavelmen-
te em função da inflexão dos movimentos de contestação de tra-
balhadores assessorados por uma Igreja Católica cada vez mais
simpática às demandas populares, iniciou-se uma intervenção
na administração pública municipal, apenas encerrada em 1985.
Significava com isso que o Exército exerceria plena influência

24
na definição dos prefeitos municipais. Dom Waldyr Calheiros
relata:
Na época do regime militar, quem mandava na cidade
era o coronel comandante do BIB [Coronel Armênio Pe-
reira], destaque em todas as manifestações públicas. O
prefeito, nomeado pelo governo, não passava de figura
decorativa. O patrulhamento constante feito pelo Exér-
cito dava impressão de que todos nós estávamos prisio-
neiros, submissos e aplaudindo por onde passavam. Eram
ostensivamente arrogantes. As prisões sucessivas e arbi-
trárias de pessoas suspeitas foram irritando a popula-
ção e gerando conflitos no seio das famílias (Entrevista
de Dom Waldyr Calheiros em COSTA, 2001: 90).

A Oposição Sindical e as greves dos anos 1980


A inclusão de Volta Redonda no conjunto de localidades
consideradas como Áreas de Segurança Nacional e, naturalmen-
te, a intensificação da presença local dos militares não impedi-
ram, contudo, que os trabalhadores da CSN avançassem no seu
processo de organização via Sindicato dos Metalúrgicos. Nesse
sentido, a entidade vivenciou, entre o início da década de 1970 e
a primeira metade da década de 1980, uma plena reconfigura-
ção, abdicando de seu alinhamento ao governo e aglutinando em
seu corpo dirigente sindicalistas formados nos movimentos de
base da Igreja Católica, provenientes sobretudo das Comunida-
des Eclesiais de Base (CEB). Em outros termos, os militantes de
Volta Redonda participaram ativamente do movimento denomi-
nado “Novo Sindicalismo”, no qual a Central Única dos Trabalha-
dores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT) se constituíram.
Depois das intervenções sofridas pelo sindicato em 1964
e 1968, os trabalhadores aglutinaram-se em torno da figura de
Waldemar Lustoza Pinto, oriundo dos quadros da Igreja e apoia-
do pelo Departamento Trabalhista do Movimento Democrático
Brasileiro (MDB). Lustoza foi eleito para a diretoria em 1974
sem, contudo, avançar no atendimento dos interesses da base
dos metalúrgicos. A sua gestão apenas reforçava a continuidade
do alinhamento entre governo e sindicato, fato constatado pela
manutenção do Ministério do Trabalho enquanto provedor do
curso de formação sindical da entidade (MONTEIRO, 1995).
A passividade da diretoria do sindicato motivou a compo-
sição, no interior do Departamento Trabalhista do MDB, de uma
composição de militantes com experiência prévia de atuação na
Igreja, nascendo assim a Oposição Sindical, gestada em 1979
como alternativa à “direção pelega” do Sindicato. Essa mobiliza-
ção não impediu a permanência de Lustoza à frente da entidade
por três mandatos consecutivos (1974-77; 1977-80; 1980-83),

25
mas fortaleceu-se a partir dos seguintes fatos: forte repressão
aos trabalhadores pelo regime militar; e implementação de uma
política econômica de forte arrocho salarial, o que atingiu cru-
elmente a classe trabalhadora.
Em 1983, a Oposição Sindical, imbuída do espírito do Novo
Sindicalismo, conquista a direção do Sindicato com a vitória de
Juarez Antunes. No mesmo ano, é deflagrada na Siderúrgica
Barbará de Barra Mansa a primeira greve registrada na região
em reação às difíceis condições de trabalho no processo side-
rúrgico. E, em 1984, explode a primeira greve de ocupação da
CSN com a participação de 22 mil trabalhadores, além de um
grande número de mulheres e filhos dos operários que se con-
centravam do lado de fora da usina ao lado de outros setores
populares. Além de organizar as greves, o trabalho da Oposição
Sindical, segundo Mangabeira (1993), acabou sendo fundamental
para a conquista pelos trabalhadores do reconhecimento pela
gerência da empresa das “comissões de fábrica” eda implanta-
ção e democratização da Comissão Interna de Prevenção de Aci-
dentes (CIPA), em 1985. No ano seguinte, logo após a reeleição
da chapa de Juarez Antunes, uma nova greve eclodiu na CSN,
desta vez do lado de fora da empresa.
No dia 1º de outubro, época em que Paulo Brossard era
ministro da justiça e Hugo Castelo Branco respondia
pelo Ministério da Industria e Comércio, a greve foi fei-
ta do lado de fora, com a organização de piquetes, pre-
cisamente pela avaliação que os trabalhadores fizeram,
com relação a uma provável intervenção do Exército. A
avaliação mostrou-se correta. Pela primeira vez, o Exér-
cito invadiu a CSN, numa operação antiguerrilha. A
repressão levou os operários a retornarem ao trabalho
no dia seguinte. (GRACIOLLI, 1997: 80)
Esta greve foi marcada pela primeira invasão do Exército à
Usina Presidente Vargas e foi sucedida por outra, em dezembro
daquele ano, que novamente contou com a intervenção militar,
conforme um depoimento extraído de Veiga & Fonseca (1990).
Essa foi a segunda invasão do Exército, e de lá para cá,
virou rotina ele entrar dentro da usina com os seus tan-
ques urutus, cascavéis; com metralhadoras, fuzis e sol-
dado. Nesta segunda invasão o operário medrou, a dire-
ção do sindicato medrou. Ficamos com medo do Exército
dar porrada, mas o movimento não parou. (VEIGA &
FONSECA, 1990: 65).
O histórico de greves seria engrossado pela terceira, em
decorrência da campanha salarial de 1987. A greve durou cinco
dias e contou com a paralisação da produção da CSN e da FEM
(GRACIOLLI, 1997: 90). A greve de 1987 demarcou o aumento

26
da repressão política, sobretudo com a intervenção militar, e da
pressão sobre os trabalhadores, os quais passavam a ser exigi-
dos a atingir níveis cada vez mais elevados de produtividade, de
forma a contrabalançar a crise financeira atravessada pela com-
panhia. Busca de eficiência pelo incremento da produtividade e
inflação com arrocho salarial foram fatores que, somados às
precárias condições de trabalho e às péssimas condições de pre-
servação dos equipamentos (o que colocava em risco a saúde e a
integridade dos trabalhadores) potencializaram ainda mais as
chances de novas paralisações nos meses seguintes.
Graciolli (1997) é enfático ao caracterizar o processo gre-
vista no interior de uma usina siderúrgica do porte da CSN, uma
vez que qualquer paralisação no alto-forno (simplificadamente,
é onde o minério de ferro se converte em gusa, dando-se enca-
minhamento ao processo de produção de aço) por um único dia
provocaria o seu resfriamento, o que exigiria um investimento
milionário para a sua reforma, algo absolutamente impensável
para uma companhia em estado falimentar. Antes de qualquer
intervenção militar, respaldada pelo argumento de ameaça à
integridade de equipamentos que se constituíam em bens pú-
blicos, seria desejável que governo, direção da empresa e sindi-
cato negociassem, o que naturalmente não impediu nem a rea-
lização das greves nem a repressão por parte do Exército.
O ano de 1988 foi marcado por três paralisações na CSN.
A primeira, em janeiro de 1988, tratou-se de uma paralisação
de400 funcionários da Montreal, empreiteira que prestava ser-
viços à Companhia. Pouco depois, em maio, operários da CSN,
da FEM e de empreiteiras prestadoras de serviço, após a realiza-
ção de uma assembleia, concentraram-se no pátio da Superin-
tendênciade Oficinas Mecânicas (SOM) da usina, paralisando
100% da produção por cerca de 65 horas. O Exército novamen-
te interferiu e pôs fim à greve.
Em novembro do mesmo ano, ocorreu uma das mais em-
blemáticas greves do movimento sindical brasileiro, quando,
motivados pela defasagem salarial de 26,06%provocada pelas
perdas do Plano Bresser, os operários iniciaram um movimento
pautado em quatro eixos: reposição da perda salarial dos funci-
onários da CSN; aumento real de 17,68% sobre a Unidade Refe-
rencial de Preços; aimplantação do turno de seis horas; e a rea-
dmissão, conforme a nova Constituição, dos que haviamsido de-
mitidos desde 1984 em pequenas paralisações (Costa et al., 2001,
p.154). Com o aval da diretoria da empresa, o Exército invadiu a
usina e, em um confronto na aciaria, os operários Walmir Frei-
tasMonteiro, de 27 anos, Carlos Augusto Barroso, de 19 anos, e
William Fernandes Leite, de 22 anos, foram mortos, no dia 9 de

27
novembro de 1988, conforme iniciamos este artigo. A paralisa-
ção durou 23 dias, deixando um saldo de três mortos e quarenta
feridos, além de alcançar repercussão internacional. Por outro
lado, conforme salienta Graciolli (1997), os operários consegui-
ram a Unidade de Referência de Preços (URP) de julho/88
(17,68%), a implantação do turno de seis horas e a reintegração
de 117 operáriosdemitidos em outras paralisações.
Nessa conjuntura, ocorreram em 15 de novembro, ou seja,
em meio à greve, eleições para a Prefeitura de Volta Redonda,
com a vitória do líder sindical José Juarez Antunes, candidato
pelo Partido Democrata Trabalhista (PDT). Documentos produ-
zidos pela Assessoria de Segurança e Informação (ASI) da CSN,
dirigida pelo general Bismark, ajudam a ilustrar o grau de aler-
ta dos militares e da direção da empresa no que tange à mobili-
zação sindical, notadamente ao papel de liderança da carismáti-
ca figura de Antunes e do então presidente do Sindicato dos
Metalúrgicos de Volta Redonda (SMVR), Marcelo Felício.
Hoje, dia 07novembro de 1988, às 13 horas, José Juarez
Antunes dirigiu-se à entrada do Escritório Central (EC)
da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) com a fina-
lidade de convocar os empregados que ali trabalham
para a greve que havia sido iniciada no interior da Usi-
na Presidente Vargas (UPV). Durante o seu discurso,
Juarez informou que irá realizar um piquete, em dia e
horas não divulgados, com o objetivo de paralisar os
computadores e os telefones, serviços essenciais que fun-
cionam no interior do EC.
Como o carro de som encontrava-se na frente do EC, a
gerência de segurança da UPV trancou o portão que dá
acesso à passagem superior da usina e, como reforço,
colocou uma caminhonete veraneio, que faz parte da
frota de veículos da guarda patrimonial, barrando a
abertura do referido plantão. O carro de som do SMVR
encostou paralelo à cerca e Marcelo Felício, atualmen-
te presidente do SMVR, incitou os trabalhadores a reti-
rarem à força a caminhonete da rua e arrebentarem o
cadeado do portão.16
Juarez Antunes elegeu-se prefeito de Volta Redonda, com-
pletando uma trajetória que foi de líder sindical a chefe do exe-
cutivo municipal. Assumiu o governo em 01 de janeiro de 1989
e morreu, pouco depois, em acidente automobilístico a caminho
de Brasília.A despeito da tese de assassinato, defendida por pes-
soas como o influente bispo diocesano Dom Waldyr Calheiros,
que assegurava ter recebido pouco antes uma carta anônima
que alertava sobre a presença do seu nome e o de Juarez Antu-
nes em uma lista de pessoas “marcadas para morrer”, o laudo
de óbito oficial indicou morte por acidente.

28
No dia 1º de maio de 1989, foi erguido, na hoje chamada
Praça Juarez Antunes, um memorial projetado por Oscar Nie-
meyer, em homenagem aos três operários mortos na greve de
1988. Horas depois da inauguração, a explosão de uma bomba
praticamente destruiu o monumento, atentado que foi atribuí-
do ao Exército. Niemeyer foi convocado para reconstruir o mo-
numento, mas propôs que, ao invés disso, o monumento fosse
mantido em tais condições. Constituiu-se assim em lugar de
memória (LE GOFF, 1994), tanto do autoritarismo de Estado
quanto dos trabalhadores brutalmente assassinados.

Considerações finais
Conforme procurou-se demonstrar, o tratamento recebi-
do pelos trabalhadores nas greves dos anos 1980 revela um las-
tro dos tempos ditatoriais, insinuando que a promulgação da
Constituição Cidadã parece não ter sido suficiente para evitar a
violação dos direitos da classe trabalhadora. Nesse sentido, a
repressão aos operários, seguida das mortes de William, Walmir
e Barroso, no interior da usina, foram acontecimentos emble-
máticos, ao mostrar que o aparato militar típico do período dita-
torial manteve-se ativo e atuante em plena democracia.
A permanência do autoritarismo do regime militar é mar-
cada pela estruturação de um sistema de controle, monitora-
mento e repressão que teve início ainda sob a ditadura varguis-
ta. A íntima relação estabelecida entre setores das Forças Ar-
madas e as diretorias da CSN datam, como vimos, do período
anterior ao Golpe de 1964 e se dão em decorrência de afinida-
des de interesses de classe. Contudo, a ditadura civil-militar
brasileira amplificou os mecanismos de violações dos direitos
humanos voltados contra os trabalhadores da companhia e ex-
tinguiu os dispositivos de organização do movimento sindical e
oposição ao governo.
Nos anos 1980, marcados pelas lutas em prol da anistia e
da redemocratização do país, assistiu-se a uma profunda articu-
lação entre movimentos sociais (moradia, posseiros, direitos
humanos etc.) e o movimento sindical da região, a ponto de sus-
citar a criação de um fórum permanente que congregava os
movimentos da cidade e reunia-se na Cúria Metropolitana. Mo-
vimento sindical e religioso, de um lado, empresários e milita-
res, de outro, polarizaram ao longo de mais de duas décadas o
debate político-ideológico no Sul Fluminense e disputaram co-
rações e mentes.
Dimensionar os elementos presentes desse passado auto-
ritário e refletir sobre a maneira pela qual a democracia con-
temporânea vem enquadrando seu passado ditatorial e, conse-

29
quentemente, projetando seu futuro democrático, são aspectos
do inconcluso processo de justiça de transição brasileira e de-
vem receber a devida atenção tanto do mundo acadêmico, quanto
do universo sindical e do Estado brasileiro.

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30
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Entrevista
Genival Luís da Silva – Ex-sindicalista – 19/02/2014.

Notas
*
Pós-doutoranda do Centro de Pesquisa e Documentação de História
do Brasil Contemporâneo da Fundação Getúlio Vargas (CPDOC/FGV).
**
Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS/UFF).
1
Relatório da Agência Rio de Janeiro (ARJ) do SNI sobre a greve na
Companhia Siderúrgica Nacional, de 07 de novembro de 1988. Arqui-
vo Nacional ARJ_ACE_16820_88.
2
Relatório da Gerência de Segurança da CSN. Arquivo Nacional. Fundo
da Polícia Militar.
3
Relatório da Agência Rio de Janeiro (ARJ) do SNI sobre a greve na
Companhia Siderúrgica Nacional, de 07 de novembro de 1988. Arqui-
vo Nacional ARJ_ACE_16820_88.
4
Relatório da Gerência de Segurança da CSN. Arquivo Nacional. Fun-
do da Polícia Militar.
5
Boletim de Serviço n° 71, da Companhia Siderúrgica Nacional, de
16/04/1964. Acervo pessoal de Genival Luís da Silva. O material en-
contra-se sob os cuidados de pesquisadores da Comissão Municipal da
Verdade, da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Fundação
Getúlio Vargas (FGV), que estão trabalhando na construção do Cen-
tro de Memória de Volta Redonda.
6
A Rádio Siderúrgica Nacional foi criada em 9 de abril de 1955, por
ocasião da celebração dos 14 anos da CSN, nasce subordinada ao
Departamento de Comunicação. A rádio cumpria, de um lado, um
papel na integração dos trabalhadores da usina em prol da dissemi-
nação de um projeto nacional-estatista, de base trabalhista, e, de
outro, funcionou como mecanismo de enriquecimento cultural (GON-
ÇALVES, 2012).
7
Com a intenção de uma vez mais protelar a chegada dos militares ao
poder, tal qual havia ocorrido em 1961 com a primeira Cadeia da Le-
galidade, a partir da Prefeitura de Porto Alegre (RS), planejou-se a
reedição da Cadeia da Legalidade, transmitindo pronunciamentos com
o objetivo de garantir a permanência de João Goulart no governo.

31
8
Com a intenção de uma vez mais protelar a chegada dos militares ao
poder, tal qual havia ocorrido em 1961 com a primeira Cadeia da Le-
galidade, a partir da Prefeitura de Porto Alegre (RS), planejou-se a
reedição da Cadeia da Legalidade, transmitindo pronunciamentos com
o objetivo de garantir a permanência de João Goulart no governo.
9
Vale destacar que a demissão em massa ou aposentadoria compulsó-
ria dos operários por razões políticas teve um impacto significativo
na vida pessoal desses trabalhadores e suas famílias, o que represen-
tou, quase sempre, uma situação de pauperização. A elaboração de
listas de trabalhadores considerados subversivos, as chamadas “lis-
tas negras” ou “listas sujas”, implicava o desemprego crônico e tinha
como consequência a necessidade de deslocamento para outras regi-
ões em busca de trabalho, bem como, em muitos casos, a desestrutura-
ção da vida familiar.
10
Os cargos de diretor secretário e diretor de serviços sociais foram
criados por pressão dos trabalhistas que assumiram o sindicato em
1955 e se transformaram em um canal direto de comunicação entre
sindicato e empresa.
11
Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ). Coleção
Companhia Siderúrgica Nacional. Caixa 1.
12
Relatório das atividades ligadas ao Sindicato dos Trabalhadores
nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de
Barra Mansa, Volta Redonda, Resende e Barra do Piraí, assinado
pelo Cel. Armênio Pereira, em 15 de maio de 1969, p. 103.
13
Depoimento de Genival Luís da Silva na Comissão Municipal da
Verdade de Volta Redonda, 19/02/2014.
14
Ofício n° 233-E/2, de 1°/12/1969. Relatório do IPM de atividades
subversivas da Diocese de Volta Redonda. Arquivo Nacional,
BR_DFANBSB_AAJ_IPM_0853_d.
15
Conforme relatório parcial da Comissão da Verdade de Volta Re-
donda, 2014.
16
Nota à imprensa falada e escrita, de 10.11.1970.
17
Arquivo Nacional, ARJ_ACE_16820_88.

32
Cidadania, interculturalidade e direitos humanos
Aloisio Krohling*
Dirce Nazaré de A. Ferreira**

Apresentação
Entendendo que os Direitos Humanos surgem da imbrica-
ção de várias fontes, dentre elas as filosóficas, teológicas e reli-
giosas, é importante destacar seu papel como um vetor da mais
alta relevância para a Ciência do Direito.
Bem verdade que, muito se tem pesquisado sobre os Di-
reitos Humanos e seu matiz jurídico e, certas vezes, interdisci-
plinar envolvendo outras ciências. Ocorre que, ao pesquisar so-
bre a referida temática, há uma certa lacuna quando se tenta
mergulhar nos direitos humanos enquanto fator intercultural.
Neste ensaio, procuramos ressaltar os direitos humanos
enquanto matéria inerente à pessoa, tendo, portanto, uma hete-
ronomia universal, mas também desejamos enfatizar que, junto
aos direitos mais elementares do cidadão, há certamente uma
esfera cultural que lhe é própria, formando sua identidade e
singularidade. Este fator é a cultura, esfera que mergulha a
pessoa em um conjunto de tradições e modus vivendi que lhes é
própria e que a pormenoriza, concedendo a ela peculiaridades
que a identificam. Logo, essa singularidade está em antagonis-
mo à ideia de universalidade, padronização e onipresença.
Isto porque, cultura é um conjunto de signos, tradições e
valores diferenciados de uma sociedade para outra que, por isso
mesmo, clama por respeito, reconhecimento e alteridade. De-
certo que a construção do conceito de direitos humanos perpas-
sa pela reverência com as culturas de outros lóci, e, para além
dessa relação obsequiosa, há que ser construída uma tessitura
que leve em consideração um diálogo entre essas
identidades.Trata-se, portanto, da perspectiva dos Direitos Hu-
manos, construídos pela teia da interculturalidade para, enfim,
evidenciar o conceito de cidadania enquanto substantivo ímpar.
Diante disso, este ensaio tem os seguintes objetivos:
1 – destacar a construção dos direitos humanos na visão
jusnaturalista;
2 – ressaltar os direitos humanos como construto inter-
cultural.
3 – discorrer sobre os direitos humanos como produto da
hermenêutica dialogicial e diatópica.
Dividimos o ensaio em três momentos: no primeiro, traze-
mos rápidas impressões sobre o jusnaturalismo para, em segui-
da, trabalhar a interculturalidade e, enfim, concluímos com os
direitos humanos como hermenêutica dialogicial e diatópica.

A Teoria Jurisnaturalista e a visão dos direitos


humanos como dados inatos
Desde o pensamento aristotélico se tem a percepção de
que há leis universais regendo heteronomamente a vida das pes-
soas, de maneira que determinados princípios, superiores às leis,
são verdades irrenunciáveis e intertemporais, portanto universal-
mente aplicados, quase se transformando em dogma jurídico.
É bom ressaltar, por exemplo, a construção a quadrilógi-
ca de São Tomás de Aquino, para o qual a Lei Eterna é a razão de
tudo, pois dirige os movimentos do universo; a Lei Natural pos-
sibilita ao homem distinguir o bem e o mal, sendo portanto,
invariável; a Lei Divina é aquela revelada por Deus nas sagradas
escrituras; e, por fim, a Lei Humana é ato de vontade do gover-
no temporal. Todavia, esta deveria observar a Lei Eterna e a
Divina.
É importante destacar que a ideia do Direito Natural ou
Jusnaturalismo povoou correntes jusfilosóficas do século XVI,
influenciando autores tais como Hugo Grotius, Spinoza, Puffen-
dorf, Rousseau, Locke e Kant. Isto porque, o direito natural de-
senvolveu com propriedade a ideia universalizante do Direito
que transcende as leis particulares de um determinado Estado
soberano. Aqui, há uma forte ideia de direito difuso, sendo, por-
tanto, um elemento imutável e, por conseguinte, inflexível, dis-
seminado nas sociedades com uma generalização imprecisa, que
a tudo abarca.
Eis que esse conceito também se aproxima da moral, não
sem antes ressaltar que a justiça é elemento primevo, concer-
nente com a noção de que o acesso aos Direitos Naturais se con-
cede por intermédio da razão, intuição e revelação. Daí a noção
de que seus primados são dados, no sentido de ofertar. Com
isso, expurga-se a ideia de positivação formal ou convenciona-
mento, como escrito no Direito Objetivo.
Ocorre que, sendo um sistema de valores constantes e
universais, essa ideia difusa de direitos acabou por eleger-se
como uma pauta racional, padronizada que, de certa forma, fur-

34
tava-se a observar o ser do direito no aspecto ontológico, suas
especificidades e características culturais identitárias.
No outro extremo, o jusracionalismo enquanto fruto da
razão, fez indelével separação entre Direito e Moral, assumindo
um papel técnico-instrumental de gestão da sociedade. A partir
das codificações racionais, observamos a imperatividade na ges-
tão social expressa em verbos injuntivos, tais como: permitir,
proibir, comandar. Decerto que essa transformação em logici-
dade concede à filosofia do direito uma regulação, estabelecen-
do sistematizações com previsibilidadeno sentido de alcançar a
razão e, portanto, primar pela civilidade da sociedade. Princi-
palmente para evitar convulsões em seu seio.
Não se pode olvidar também que a instrumentalização do
direito é tensionamento que vislumbra dominação e que, mui-
tas vezes pelo projeto racional mais ortodoxo, afastou inclusive,
da pauta racional, a justiça. A exemplo do princípio dura Lex,
sede lex, houve, decerto, uma desvinculaçãocom o conceito de
justo e em seu vácuo foram preenchidos o cientificismo e o esta-
tismo como formas de moldagem convertendo o direito em ins-
trumento de pacificação social racional. Krohling (2001, p.2),
sobre esse aspecto, destaca que,
De fato, muitas vezes o Ocidente usou a tese da tutela e
da proteção dos Direitos Humanos e do Direito Interna-
cional, como um monólogo potencialmente opressivo,
ignorando os outros povos e as grandes diferenças cul-
turais existente no atual Mapa Mundi. Este é o primeiro
extremo que impõe o “univeralismo” da visão ocidental,
como premissa, no debate sobre a proteção e tutela dos
direitos humanos.
Ocorre que consideramos essa dicotomia entre jusnatu-
ralismo e jusracionalismo como uma pauta menos inteligente,
pois preconiza uma clivagem entre dois importantes institutos
que, já de imediato, ressaltamos, não são excludentes. Daí que
lutamos por um novo paradigma que considere os Direitos Hu-
manos como categoria superlativa, consagrando que são valores
fundamentais à vida, dignidade e bem-estar. Mas também con-
sideramos que essa pauta é de tamanha amplitude que precisa
ser concomitantemente reconhecida e protegida pela ordem
jurídica de cada esfera estatal. Logo, para seu acolhimento e
arrimo, cremos que haverão de ser os Direitos Humanos tam-
bém positivados nas Cartas Constitucionais, observados os ele-
mentos culturais.
Entendendo a cultura como um sistema coletivo de senti-
dos, signos, valores e práticas sociais destacamos que esses pro-
cessos sócio-políticossão criados historicamente por grupos para

35
estruturar suas identidades coletivas, como referência vital do
seu dia a dia, nas relações entre si e com outros grupos.
E, por considerar cada direito estatal autônomo para re-
gular suas certezas, aqui haverá de ser concedido um olhar cul-
tural de alteridade, de forma que se crie uma pauta universal,
mas que seja observada também a tessitura cultural em que
cada um destes Estados está imerso. Trata-se, portanto, de vis-
lumbrar os Direitos Humanos como frutos interculturais.

Interculturalidade e direitos humanos


Diferente da esfera determinista preconizada pelo movi-
mento racional, a sociedade – e por conseguinte a ciência jurídi-
ca – são desafiadas por fenômenos diferenciados que demanda-
ram respostas heterogêneas àquelas escritas nos códigos. A pa-
lavra complexidade liga-se ao elemento de transformação inde-
finida, gerando novos contornos à ciência jurídica.
Moigne (1999, p. 50) nesse aspecto, ensina que acontece-
ram “alguns deslocamentos explícitos dos referencias episte-
mológicos” que davam suportes à ciência racional. Inicia-se, as-
sim, novo giro paradigmático na ciência, desafiando-a a pensar
novas perspectivas. Candau (2008, p.48) destaca que a recon-
ceitualização perpassa por algumas premissas, dentre elas:
(...) a superação do debate entre universalismo e relati-
vismo cultural (...) a sensibilidade para descobrir cada
em cada universo sociocultural, a ideia de dignidade
humana traduzida em direitos humanos, e por fim (...) a
ideia de que nenhuma cultura é monolítica.
Essa reconfiguração gera desafios à ciência jurídica, de
maneira que a metáfora anterior, codificada e piramidal repre-
sentada por uma figura entrecortada por camadas hierárquicas
escalonadas, parece ter sido substituída pela figura circular,
representando o interculturalismo e, por conseguinte, a expan-
são dos diálogos. Essa ideia remete ao movimento em rede, abran-
gendo tempo e espaços simultâneos, embora multilocalizados, e
apresenta problemas plurais, cujas colorações recebem matizes
diferenciados a partir do meio social onde emergem.
Candau (2008, p.49) ressalta a polissemia dos termos in-
tercultural e multicultural. Segundo a autora, eles trazem em
seu bojo adjetivações tais como “(...) liberal, celebratório, críti-
co, emancipador e revolucionário”. Portanto, continua a autora,
o multiculturalismo é aberto e interativo, acentuando a inter-
culturalidade como a construção de sociedades democráticas e
inclusivas, “(...) que articulem políticas de igualdade e diversi-
dade” (CANDAU, 2008, p.51).

36
A velocidade com que as redes de informações se deslo-
cam no universo gera problemas multifacetados que exigem
pensamento neural e inteligência múltipla para facear desafios.
Vive-se a era da complexidade, um tempo de incertezas que, na
verdade, abriga a ciência jurídica como produto de ações cogni-
tivas e requer intelecções complexas para lidar com desafiantes
conceitos abstratos que, às vezes, tem eclosão em várias partes
simultâneas do globo terrestre, exigindo respostas diferencia-
das. Desta forma, não é adequado à ciência jurídica responder a
essas demandas atuais complexas com as respostas simplistas
postas em códigos outrora escritos.
Portanto, ocorreu um deslocamento paradigmático nas
ciências jurídicas escrevendo a perplexidade na academia. Moig-
ne (1999, p.54) ressalta que “essa passagem (...) do analítico ao
geno-funcional (...)” é a revolução paradigmática que irá legiti-
mar os enunciados dos Direitos Humanos, tornando-os mais po-
rosos, mais culturais. Candau (2008, p. 51), em acordo com o
autor, ressalta que “(...) a consciência dos mecanismos de po-
der que permeiam as relações culturais é outra perspectiva des-
se deslocamento paradigmático”.
Merece especial menção a ideia de Candau (2008), para
quem as relações culturais são construídas na história, atravessa-
das por conexões de poder marcadas certas vezes pela hierarqui-
zação e discriminação. Daí o papel dos direitos humanos como
construtores de relações mais horizontalizadas de cidadaniae, prin-
cipalmente, como medianeiro no palco das tensões e conflitos da
sociedade, sendo que “(...) a perspectiva intercultural é complexa
e admite diferentes configurações em cada realidade sem, com
isso, reduzir um polo ao outro” (CANDAU, 2008, p. 51).
Assim, é possível afirmar que há um novo paradigma nos
direitos humanos, sendo exercitado pelo multiculturalismo crí-
tico, principalmente sobre os conceitos de Peter McLaren (1997),
para quem a interculturalidade representa uma agenda crítica
de resistência e afirmação que transforma a sociedade. Assim
representações como raça, gênero e classe são vislumbradas pelo
autor como produto de lutas sociais e construções históricas
conflitivas.
Desta forma, o modelo neural da rede de interações da
era complexa abraça os direitos humanos, fazendo deles um
conceito polissêmico, pronto a amalgamar-se a outras áreas.
Santos (2002, p. 2), sobre essa transformação, ressalta que “es-
tamos perante um fenômeno multifacetado com dimensões (...)
interligadas de modo complexo. Por esta razão, as explicações
monocausais e as interpretações monolíticas parecem pouco

37
adequadas a este fenômeno”. A luta pelos direitos humanos,
ensina Candau (2008, p.52), “(...) supõe o exercício ao diálogo
intercultural que, por sua vez, exige o exercício da hermenêuti-
ca diatópica”.
Partindo dessa afirmativa, a realidade mostra-se como uma
perspectiva aberta em relação dual com o meio ambiente social,
estabelecendo influências multilocalizadas, absorvendo impac-
tos e devolvendo-os sob forma de transformações em movimen-
tos constantes, daí a necessidade do campo jurídico envolver-se
com a riqueza da diversidade epistemológica das outras áreas.
Não é lícitoà ciência jurídica, portanto, negligenciar os im-
pactos da sociedade intercultural, posto que é imperativo abrir-se
a outras práticas e outras culturas em verdadeiras redes. Morin
(2000 p, 4) destaca que “(...) uma das ideias mais importantes que
parece ter surgido nos últimos 50 anos foi a da circularidade”.
Neste aspecto, a teoria complexa também rompe com os
teoremas lineares de causalidade, instituindo a visão de retroa-
tividade no círculo entre culturas uma vez que, enquanto ciclo
de eventos não verticalizados, os direitos humanos são porosos
ao meio ambiente e se auto implicam, embora, aparentemente,
se mostrem autônomos. Morin (2000, p.4) ensina que “esta au-
tonomia, provocada pela regulação (circularidade retroativa), é
ela própria produzida por uma circularidade mais intensa, cha-
mada circularidade autoprodutiva”. Candau (1997) destaca que
é necessário reinventar, tornar a ciência mais interculturalmente
dialógica, e como tal destaca que,
(...) o primeiro passo está relacionado à necessidade de
desconstrução, penetrar no universo de preconceitos di-
fusos, fluidos; (...) o segundo passo é fazer a articulação
entre igualdade e diferença no nível das políticas educa-
tivas, (...) o terceiro núcleo vincula-se ao resgate das iden-
tidades culturais e (...) por fim, promover a experiência
da interação com os outros (CANDAU, 2008, p. 53).
Assim, a visão intercultural contida na teoria da comple-
xidade reflete, principalmente, o atributo de promover o reco-
nhecimento do outro e o diálogo com os diferentes grupos soci-
oculturais. Portanto, a teoria da complexidade opõe-se à visão
atomicista de entendimento parcelado, defendida com tanta
veemência pelo paradigma racional que, de certo, isola ao invés
de congregar. Morin (2000, p.3) assevera que,
(...) não podemos, portanto, compreender o ser humano
apenas através dos elementos que o constituem. Se ob-
servarmos uma sociedade, verificaremos que nela há
interações entre os indivíduos. Mas essas interações for-
mam um conjunto e a sociedade, como tal, é possuidora
de uma língua e de uma cultura que transmite aos indi-

38
víduos; essas emergências sociais permitem o desenvol-
vimento destes.
Diante da visão do autor, pode-se perceber que a ideia dos
direitos humanos racionalizados está em contraposição ao en-
frentamento de práticas sociais complexas que, não raro, de-
mandam posturas críticas conhecedoras de outras culturas. Isto
ocorre, porque o olhar parcelado, fracionado, tanto quanto a
cultura isolada, abstraem do homem a capacidade de estabele-
cer conexões com o conjunto tornando seu entendimento foca-
do na parte.
A focagem na parcela conquanto possibilite conhecimen-
tos mais aprofundados, preconiza alienação à medida que o des-
conhecimento do todo pode impedir os sujeitos de elaborar co-
nexões generalistas de entendimento acerca dos fenômenos.
Uma educação para a negociação cultural, diz Candau (2008,
p.54), “(...) está orientada para a construção de uma sociedade
plural, humana, que articule políticas de identidade”.
Perceba o leitor que a ideia dos direitos humanos enquan-
to separação cultural em fragmentos também fraciona o saber
em espaços herméticos e que, no mais das vezes, ali se encer-
ram. Diz-se que o conhecimento insular fragmenta-se gerando
fronteiras calcificadas, operando-se outro fenômeno mais agu-
dizante – a tendência a auto replicação. Isso pode ocorrer por-
que as ilhas de saber, no geral, dialogam somente com seus
iguais. Então, na cultura isolada, perde-se a riqueza da diferen-
ciação e o tônus criativo tende a se esmaecer, permanecendo
somente a replicação ou reprodução de fazeres.

Direitos humanos como produtos de alteridade e


dialogicidade diatópicas
Entendendo que, relacionar-se com o Outro é compreen-
der sua vida, expressa de forma culturalmente, ressaltamos tam-
bém que, essa vida, é um fenômeno do mundo-vivido (lebenswelt)
e acontece no plano histórico. Portanto, só compreendemos quan-
do aceitamos a historicidade e alteridade como ela se encontra
na outra cultura ou nos outros sujeitos, sempre considerando
sua dignidade. Esta, segundo Walter Schweidler (2001, p. 11),
(...) é relacional e não uma propriedade. [Sendo] a dig-
nidade uma condição, um estado, e não um merecimen-
to, ela [a dignidade humana] é apenas percebida como
dever e não como um privilégio.A dignidade humana
pertence, portanto, ao projeto inacabado denos tornar-
mos verdadeiramente Humanos, de forma que a sua ta-
refa (Aufgabe) seja, ao mesmo tempo, uma demanda (For-
derung) e umarealização (Erfuellung).

39
Portanto, relacionar-se com o Outro é compreender sua
vida manifestada nos signos, valores e crenças construídos na
tessitura cultural. Essa perspectiva de alteridade, que implica
reconhecer e respeitar a dignidade da pessoa humana em todos
os aspectos e comtodos os outros povos, foi descrita por Rai-
mond Panikkar por um termo que ele denomina “Metodologia
cosmoteândrica”.
O autor propõe, com isso, uma ideia de repensar as repre-
sentações com o mundo, levando em consideração tanto o fator
cósmico (kósmos=cosmicidade), quanto o teológico-divino (The-
ós= transcendência), sendo que esses dois coeficientes conside-
ram também o ser humano (andrós= antropocentrismo). Res-
saltamos, portanto, que, na visão de Panikkar, esse tríduo está
interligado, tendo em sua base o Direitos das pessoas como um
suporte para amalgamar o diálogo intercultural.
Além disso, Raimon Panikkar (apud BALDI, 2004, pag.208-
209) julga importante, também, o uso da metodologia de pes-
quisa que ele chamará de “hermenêutica diatópica”. (dia= atra-
vés+ topos= lugar), que ele define como: “(...) Uma reflexão
temática sobre o fato de que os “loci”(topoi) de culturas histori-
camente não relacionadas tornam problemática a compreensão
de uma tradição com as ferramentas de outra e as tentativas
hermenêuticas de preencher essas lacunas”.
Isso porque, para ele, somente haverá diálogo intercultu-
ral se o primeiro interlocutor colocar com clarezao “topos” da
sua cultura para compreender os construtos da outra cultura.
Portanto, nesta interlocução, haveria troca dialética de cosmo-
visões culturais e experiências históricas diferentes.
Um exemplo de hermenêutica diatópica é aquela quepo-
de ter lugar entre o topos dos direitos humanos na cultura oci-
dental, o topos do dharma na cultura hindu e o topos da umma
na cultura islâmica. Segundo Panikkar, dharma”é o que susten-
ta, dá coesão e, portanto, força a uma dada coisa, à realidade e,
em última instância, à perspectica cosmoteândrica”.
Neste aspecto, julgamos que o vetor que dá conexão en-
tre esses elementos, tão diferenciados no paradigma moderno,
é a justiça, uma vez que ela concede coesão às relações huma-
nas, une-se à ética para formar o caráter das pessoas e é a
morada do ser. E ainda, o Direito é visto por nós como o princí-
pio do compromisso nas relações humanas. Portanto, direitos
humanos, na perspectiva diatópica, são interconectados com a
cultura, com os valores e a dinamicidade de cada locus onde é
exercido.

40
Considerações finais
A partir do que foi visto, podemos ressaltar que os Direi-
tos Humanos são interlocuções que se aproximam da intercul-
turalidade. Logo, a hermenêutica diatópica com eles muito bem
dialoga, pois pode ser compreendida como forma de elucidar o
mundo a partir de um leque diferente de culturas. Daí queela
vislumbra os direitos humanos apenas como mais uma janela –
dentre tantas outras – para se enxergar uma cultura. Para o
autor, é inevitavelmente um processo dialógico, ou seja, um di-
álogo entre topoi, já que Topos é o conjunto de valores e práticas
comuns de determinada cultura.
Dessa forma, não buscamos transliterar os direitos huma-
nos para outras linguagens culturais, nem devemos procurar
simples analogias; tentamos, ao invés disso, buscar o equivalen-
te homeomórfico, para com ele exercer o diálogo. Se, por exem-
plo, os direitos humanos forem considerados como base para
exercer e respeitar a dignidade humana, devemos investigar
como a outra cultura consegue atender a uma necessidade equi-
valente – o que só pode ser feito uma vez que tenham sido cons-
truídas bases comuns (uma linguagem mutuamente compreen-
sível) entre as duas culturas.
Assim, se a interculturalidadesignifica interface, troca,
intercâmbio, reciprocidade, criação de espaços de participação
coletiva entre culturas diferentes, essa ideia se amalgama aos
Direitos Humanos, pois eles são a síntese cultural do mundo.
Porém, não de uma maneira verticalizada imposta, mas cons-
truída, levando em consideração a ideia do outro, tratado com
alteridade.
Para concluir, Panikkar (1984) diz que o diálogo dialógico
começa com o pressuposto de que o outro também é uma fonte
original da compreensão humana, e que, em algum nível, de pes-
soas que entram em diálogo e têm uma capacidade de comuni-
car as suas únicas experiências e entendimentos uns aos outros.
Nos termos do autor, a alteridade radicaltem como problema
primevo a interculturaidade que, por sua vez, liga-se à Filosofia
da interculturalidade, a qual tem como tema central a problemá-
tica, o vetor polemológico, mas com respeito à cultura.
Daí que a interculturalidade implica que o pensar filosófi-
co seja concebido em suaessência, tendo seu princípio originan-
te enraizado na tradição. A Filosofia tem sempre um caráter
cultural muito novo e singular para manifestar-se, pois, ao co-
municar o nosso pensamento, já o fizemos no meio de uma cul-
tura singular, ou seja, pelo uso de um idioma.

41
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ralidade: as tensões entre igualdade e diferença. Revista de Edu-
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42
SCHWEIDLER W. Das Unantastbare. Beitraege zur Philosophie
der Menshenrechte. Munster, 2001.

Notas
*
Pós-doutor em Filosofia Política pela UFRJ e em Ciências Sociais pela
PUC-SP. Doutor em Filosofia pelo Instituto Santo Anselmo em Roma.
Professor permanente do Mestrado e Doutorado da Faculdade de Di-
reito de Vitória. Professor Emérito da UFES.
**
Doutoranda em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória. Profes-
sora da Universidade Federal do Espírito Santo.

43
Direitos humanos: um desafio para a Filosofia da
Libertação
Antonio Sidekum*
Matheus S. Pedrosa**

Introdução
O nascimento e o crescimento da filosofia da libertação
latino-americana acontecem concomitantemente ao período da
nova modernização instaurada pelo imperialismo capitalista a
partir da década de 1960, ou seja, na implantação das ditaduras
cívico militares na maior parte dos países da América Latina. No
entanto, deve-se também levar em consideração que as raízes
da filosofia dalibertação latino-americana já foram lançadas
durante muitos séculos, desde a aurora da Modernidade até a
era da globalização contemporânea, iniciando-se com os deba-
tes sobre a condição humana dos Povos de Abya-Yala ao serem
dominados e espoliados com a Conquista europeia. Temos assim
um transcurso de séculos de opressão, lutas de libertação, sofri-
mentos e mortes em nosso subcontinente. Condicionamentos que
falam da negação da humanidade dos povos indígenas, a des-
truição da identidade cultural, da escravidão de povos africanos
e de violências políticas.
Como ponto de partida, deve-se considerar que a Filosofia
da Libertação insere-se na corrente da teoria crítica interdisci-
plinar da América Latina que enfatiza, sobretudo, a práxis liber-
tadora do oprimido. A justiça é “filosofia primeira”. Por um lado,
a Filosofia da Libertação tem como opção a práxis político-ética
do pensar a serviço do pobre, do oprimido, do excluído, do ex-
plorado, tanto na sua dimensão pessoal quanto comunitária. Por
outro lado, como filosofia da história, vai questionar o pensa-
mento que é inerente ao sistema do totalitarismo opressor e
negador da alteridade do outro.
O excluído, o pobre, o oprimido, seja ele como indivíduo
ou como grupo social, étnico ou como povo, encontra-se na exte-
rioridade, da qual Marx, Levinas e a Filosofia da Libertação tra-
tam de caracterizar e introduzir uma práxis filosófica. A temáti-
ca aborda principalmente a experiência da vida na democracia
ética. Vários autores receberam da nossa parte uma especial
atenção, tais como Paulo Freire pela sua “pedagogia do oprimi-
do”, Hugo Assmann, Leonardo Boff, Gustavo Gutierrez, nas re-
flexões teológicas. E, na filosofia, encontramos reflexões críti-
cas na obra de Enrique Dussel, Horácio Cerutti Guldberg, Artu-
ro A. Roig e a tradição marxista. A filosofia assume um processo
de libertação e de identidade que se instaura no universo latino-
americano para delinear os Direitos Humanos. Trata-se de fazer
com que o ser humano tome consciência de que ele não nasceu
para ser oprimido e ser escravo de alguém poderoso, mas saber
que ele nasceu para ser homem livre e que possa gozar plena-
mente dos direitos fundamentais. Este é o princípio do huma-
nismo do outro homem. É o humanismo que quer tornar o ser
humano verdadeiramente humano e, por isso, rejeita qualquer
tipo de manipulação, principalmente a da consciência, pois esta
manipulação está em contradição com sua libertação. Face à
reflexão sobre os Direitos Humanos Fundamentais, instaura-se
jurídica e filosoficamente um novo humanismo que se funda na
intersubjetividade e liberdade, na responsabilidade histórica pelo
outro na vida da confiança solidária. Mas o contexto latino-ame-
ricano alcançará puramente este desiderato quando o mesmo
se mostrar comprometido com uma mudança libertadora em
todas as estruturas que oprimem, totalmente ou em parte, a
dignidade humana, tanto como indivíduo como povo.

Necessidade de Estudodos Direitos Humanos


Apesar do vasto material de estudo sobre direitos huma-
nos existente, não são demasiados os estudos sobre algo que se
pretenda tornar realidade universal, por isso é necessário o seu
estudo. Apenas quando se debruça sobre algo e se observa mi-
nuciosamente, aproxima a viabilidade de se viver na práxis o
que está sendo visto e estudado. É mister estudar e assegurar os
direitos inerentes à pessoa, principalmente num país em que os
tais foram por tanto tempo violados.
Ao longo da história da nação brasileira, os direitos ine-
rentes à pessoa humana foram sobremaneira violados das mais
diversas formas (DALARI, 2007, p. 29, 49). No início uma explo-
ração dos povos indígenas, depois a escravidão dos povos africa-
nos, seguida da precarização da mão de obra dos imigrantes.
Esse fétido passado histórico continua a se perpetuar nos dias
presentes, embora tenha suas máscaras.
Na medida em que o tempo passa, torna-se imperiosa a
necessidade de serem desfeitos tais males sociais e soluções
enérgicas de medidas de longo prazo precisam ser tomadas. É
apenas o conhecimento que traz às claras aquilo que está escon-
dido. As cobertas da exploração somente são descobertas e reti-
radas após o conhecimento das estruturas sociais. A maior solu-

46
ção para se desnudarem as máscaras da exploração é por meio
do conhecimento.
O exemplo norte americano da luta pelos direitos civis tor-
na isso ainda mais claro. Foi a partir do momento em que líderes
negros com boa formação conquistaram influência, que as lutas
por maior status sócio-politico começaram a ser vencidas.
A educação, como disse o mestre Paulo Freire (1996), “não
é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a
sua própria produção ou a sua construção”. Essa possibilidade
se dá por meio de estudos e aprofundamentos reiterados, tal
como o trabalho do agricultor que sempre está a cuidar da terra
que será lavrada a fim de mantê-la fértil.
Ao longo das eras históricas, quando o cuidado para man-
ter latente o direito fundamental não é feito de modo eficiente,
as memórias são deixadas de lado e o processo de humanização é
esquecido. Vide o exemplo do povo Hebreu, relatado no livro de
Juízes: após terem chegado na terra prometida esqueceram suas
memórias, seus costumes, que visavam respeitos humanos, e as-
sim passavam por períodos sazonais de tragédias profundas, com-
preendendo guerras e a dissenção generalizada de crimes.
Portanto, o estudo dos direitos humanos amplia as possi-
bilidades e perspectivas para assegurá-los, garante que lutas
para a quebra das cadeias de injustiça sejam vencidas e, assim,
afasta as tragédias sociais e políticas.
A experiência de consciência dos Direitos Humanos Fun-
damentais na América Latina na sua atualidade histórica rami-
fica-se na vida humana no âmbito de uma conscientização sem-
pre mais extensa. O espaço da liberdade humana é a vida no ser
comunitário, com isso o ser humano é livre na relação para com
o outro. Pela solidariedade originária, amplia-se o horizonte éti-
co do ser humano. A relação do homem alcança sua plenitude
na liberdade. E a liberdade consiste, a princípio, numa respon-
sabilidade de um para com o outro. Na práxis política, a solida-
riedade acontece na democracia.
A responsabilidade pelo outro não aguardou pelo livre
engajamento. Enquanto cidadão, a postura é sempre radical ao
se tratar dos Direitos Humanos que envolvem a consciência his-
tórica: a defesa dos Direitos Humanos na América Latina será o
dever da pessoa humana para alcançar a plenitude de sua res-
ponsabilidade na manutenção insolúvel e incurável nos limites
da identidade.
Nos processos pedagógicos, filosóficos e jurídicos, surge
o ensaio da solidariedade, que exige um serviço responsável,
manifesta-se na história pela concretização do bem. Esta é uma

47
renovação do sentido da democracia plena. Na filosofia da liber-
tação, parte-se do fato de que a solidariedade será refletida pri-
meiramente pela conscientização. A conscientização é o proces-
so, que conduz para a plenitude do ser humano. O ser humano
torna-se consciente de sua natureza, do seu mundo ambiente,
da dimensão de sua comunidade e da sua responsabilidade his-
tórica e política pelo outro. Tudo isso se realiza na história con-
creta do ser humano. O cidadão, no uso de seus Direitos Huma-
nos Fundamentais, toma plena consciência de que ele é tam-
bém responsável por todos. Este estádio jurídico e político da
cidadania plena requer sempre um processo pedagógico, ou seja,
tomar consciência da opressão para saber vivenciar plenamente
a libertação. Será necessária uma pedagogia da libertação: cons-
cientizar o oprimido de sua opressão e experimentar as vias da
libertação. Para tal será necessário um processo de pedagogia
da libertação.
Seguindo a pedagogia de Paulo Freire, a conscientização
propõe uma ação cultural que deve ser assumida pela filosofia
da libertação numa tarefa de vanguarda revolucionária e inter-
disciplinar e será naturalmente um pressuposto para que ela
não sobrecarregue a tentação de pequeno burguês num objeti-
vismo mecânico. A conscientização deverá ser um processo da
libertação radical, que plenamente atingirá toda a sociedade e
a cada ser humano individualmente. Por meio da conscientiza-
ção, desenvolve-se a práxis da liberdade, isto é, o oprimido faz a
experiência da solidariedade, a vida do face a face político e do
exercício da cidadania. Isso não diz respeito para que tenhamos
que viver limitados numa rígida situação totalitária, porém, tra-
ta-se de romper com a totalidade por meio do reconhecimento
da alteridade no processo de conscientização do exercício dos
Direitos Humanos na vivência da cidadania.
O povo oprimido luta com sua palavra. Esta experiência
ética e histórica se expressa concretamente nos movimentos
sociais históricos, que correspondem a uma situação específica.
Esses movimentos sociais do povo são conhecidos como a práxis
libertadora. Nesta práxis, a história alcança seu mais perfeito
sentido e sua interligação com a escatologia, o que acontece
com o advento do reino do bem, da justiça para todos e da soli-
dariedade. Isto também quer dizer que se deve assumir a cor-
responsabilidade como cidadãos, à qual devemos prestar o ser-
viço da justiça no horizonte da plenitude da consciência históri-
ca do agir ético. Assim, referindo-se aos filósofos da libertação
que apresentam os pontos de partida para a cidadania, deve-se
levar em consideração a presença de cada cidadão como o outro
na alteridade absoluta. Pois, se não houvesse outro, não se pode-

48
ria falar de liberdade e nem da escravidão. E se não existisse
nenhuma identidade da pessoa, que é uma identidade “indistin-
guível” no interior dessa, não haveria alteridade ética e subjeti-
vidade singular. E a pessoa como cidadã, assim, não poderia
retirar-se da presença e convívio com o outro.
Uma das grandes novidades da filosofia da libertação lati-
no-americana em relação aos Direitos Humanos Fundamentais
trata da revelação do outro como cidadão que implica numa
radical corresponsabilidade ética e metafísica da libertação. O
outro sempre implicará no exercício da democracia pelo requi-
sito da justiça, o que, nas palavras filosóficas como as de Levi-
nas e de Enrique Dussel, é o terceiro, que é diferente daquele
que é o próximo, mas ele também é o meu próximo e o próximo
do outro e não apenas sua semelhança na concepção da igualda-
de de direitos. A partir da filosofia da libertação, a práxis liber-
tadora será radical por ser uma interpelação ética que exige de
cada um de nós, como cidadãos, a resposta ao clamor do povo
por justiça. Será sempre um desafio para a realização plena da
Democracia. Requer-se uma postura crítica sobre a coesão soci-
al e sobre a democracia que inclui uma maior sensibilidade e
uma efetiva inclusão de temas sociais, políticos e culturais, o
que implica o retorno a um diálogo entre ospovos.
Uma pergunta legítima que deve ser feita é: por que
introduzir no debate latino-americano um conceito que
corre o risco de ser uma nova moda que, de certa forma,
se sobrepõe a outros conceitos normativos estabelecidos
(como cidadaniaplena, democracia com equidade) ou
outros que incluem indicadores relativamente similares
(como, por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Huma-
no)? Acreditamos que o valor do tema da cessão social
para a América Latina é abrir a possibilidade de apre-
sentar no centro do debate as dinâmicas sociais e cultu-
rais, depois de décadas de hegemonia de um pensamen-
to orientado por temas econômicos. (SORJ; MARTUCCE-
LLI, 208, p. 289).
A conscientização dos Direitos Humanos Fundamentais
tem como requisito uma pedagogia com o objetivo da libertação
da pessoa como cidadão. Este processo da libertação, no qual
ela é definida negativamente, é a negação da negação do outro,
isto é, a negação da compreensão no sistema imanente de sua
negação no horizonte da totalidade. Refletida positivamente, a
libertação significa a afirmação da alteridade do outro por meio
do amor, da solidariedade cidadã. Livre é o homem que vive no
influxo da experiência da consciência histórica e que age soli-
dário. Ser livre significa estar em relação ética com o outro na
novidade para entrar na relação humana definida pelo amor

49
àquilo que é humano. O conteúdo concreto da liberdade é o
estar aberto para o outro e servir mutuamente, isto é, viver na
solidariedade. Deveremos aceitar, a partir disso, que não existe
liberdade para um único ser humano, que fica na solidão.
A tradição ocidental desenvolveu, desde a Renascença, um
ideal da liberdade individual que consiste na autoafirmação do
isolado e autônomo indivíduo como sujeito. Esta é certamente a
liberdade dos “Conquistadores”, a liberdade do poder. Precisa-
mos ver como o fato de dominar ainda não significa liberdade,
mas, muito diferente, é ser preso através da paixão para dominar
e incapacidade para amar e, com isso, ser incapaz para o exercí-
cio da solidariedade, isto é, ser incapaz da plenitude humana.

Desafios do contexto mundial


É preciso mencionar os novos aspectos geopolíticos e geo-
econômicos da atualidade e do futuro. A filosofia da libertação
tem agora novos desafios face ao contexto da economia mundi-
al, principalmente nos processos atuais de globalização da eco-
nomia, da política e das comunicações,que não só se manifes-
tam em uniformização planetária e nem numa polarização mun-
dial, mas em desigualdades violentas mais visíveis e próximas.
Assim, segundo Therborn (2012, 50), “como em certas varia-
ções do que podemos chamar de “processos de criolização soci-
al” ou novas formas de combinação e recombinação de políti-
cas, de práticas sociais e de ideologias”, temos uma nova con-
textualização mundial da economia política e dos processos da
política mundial.
(...) o fim do eurocentrismo e do centralismo norte-ameri-
cano constitui um aspecto da mudança histórica por que
passam nossas sociedades. A guerra fria foi uma projeção
mundial dos conflitos da modernidade europeia. Em se-
guida a seu fim, podemos ver, pela primeira vez clara-
mente, novos padrões de políticas e de lutas ideológicas
no mundo que não procedem nem da Europa ocidental
nem da América do Norte. Vemos modelos de capitalismo
avançado na Ásia oriental, que têm muito pouco em co-
mum com as experiências e os modelos da Europa e dos
Estados Unidos. (...) Tambémestes modelos de capitalismo
avançado permaneceram imunes, pelo menos até agora,
ao neoliberalismo como ideologia. Os limites do neolibe-
ralismo derivam também do fim do eurocentrismo no his-
tória moderna (THERBORN, 2012, p. 49).
A relação cidadã e a liberdade tratam de superar o uni-
verso da totalidade que perpassou a filosofia da modernidade. A
América Latina experimenta, cada vezmais, uma sociedade fra-
turada pelas desigualdades sociais, pelas diferenças sociais en-

50
tre pobres e ricos, Énecessária uma nova leitura dessa situação
das desigualdades sociais. É preciso centrar a atenção nas aná-
lises do conflito distributivo, a financeirização da economia, em
outra política industrial, política econômica para o setor agríco-
la para o pequeno agricultor e que se crie uma política de distri-
buição de renda em todos os países.
Neste sentido, a filosofia da libertação poderá apontar a
via de como rejeitar o dogmatismo neoliberal e começar a pen-
sar em novas e criativas vias de superação dialeticamente da
saída da crise atual imposta pelo capitalismo. Para tal, os analis-
tas políticos sugerem que não seja resolvido só em nível econô-
mico. Porém, para SALAMA (2012, 53), é preciso buscar rela-
ções de força que se materializam em nível social, de forma
segundo a qual entendemos o Estado e, também, da capacidade
que tenhamos para lutar por uma sociedade solidária. O projeto
neoliberal possibilita uma crescente desigualdade social, des-
truição da economia do microprodutor rural, aumento do agro-
negócio sob a proteção de governos de partidos da “esquerda” e
as contradições que se criam possibilitando a corrupção, tráfico
de drogas e a violência tanto no campo como nas cidades. Por
isso, se aponta para uma solidariedade que só será possível pela
persistência da relação interpessoal. A relação interpessoal acon-
tece no bem e provém da ética do infinito. O bem, que é o exer-
cício da cidadania, desperta no ser humano o evocar infinito e
aponta para a responsabilidade comum da cidadania, na qual
acontece a relação interpessoal que se fundamenta na respon-
sabilidade ética. A liberdade do cidadão livre será definida e
preservada pelas políticas públicas, econômicas e sociais, en-
quanto somos responsáveis pela liberdade dos demais membros
da sociedade civil. Esta responsabilidade manifesta-se na práxis
libertadora e encontra seu ponto mais alto na solidariedade. Esta
relação interpessoal é, para a filosofia da libertação, a maior
grandeza humana. O cidadão se define na sua identidade, que
se encontra além de sua consciência egoísta e será libertado
por se encontrar no mais originário sentido da vida. Esta vida
originária é a solidariedade, na qual se trata do reconhecimento
dos Direitos Humanos Fundamentais do cidadão responsável.
É pela condição de ser um cidadão solidário que pode haver
no mundo piedade, compaixão, perdão e proximidade. Com isso,
trata-se da condição fundamental de toda solidariedade. Toda
acusação e perseguição, como todo o elogio, recompensa, puni-
ção interpessoais supõem a subjetividade do Eu como cidadão.
A acusação absoluta, anterior à liberdade, constitui a liberdade
que, aliada ao Bem, situa-se além e fora de toda essência da
política da libertação.

51
Esta situação de uma política de responsabilidade ética,
sustentada pela filosofia da libertação em sua abrangência pe-
dagógica no processo da conscientização, refere-se a uma reali-
dade que deverá desembocar na solidariedade autêntica entre
os cidadãos. Sentir-se como responsável pelo outro é a mais alta
experiência da relação interpessoal. Com isso, cresce sempre
mais a responsabilidade pelo outro na medida em que se assu-
me responsabilidade no exercício dos Direitos Humanos Funda-
mentais e o respeito pelo outro no reconhecimento ético. A rela-
ção interpessoal se desenrola na solidariedade originária e infi-
nita, isto é, na infinita ideia comum do bem, que consolida uma
irrupção na solidariedade do cidadão libertado na prática da
justiça. Na relação interpessoal, acontece a experiência da nova
e plena cidadania política. Na perspectiva da Filosofia da Liber-
tação, o cidadão alcança sua plenitude no reconhecimento dos
Direitos Humanos Fundamentais de todos. A existência do outro
é uma realidade concreta e definitiva. O ser humano é plena-
mente humano, porque ele está essencialmente com o outro no
mundo político, social e econômico.
Na Filosofia da Libertação, a relação interpessoal alcan-
ça sua concretização através do correspondente questionamen-
to ao sistema e às estruturas da opressão que negam a dignida-
de humana e reprimem com violência, pela instituição do Esta-
do, o direito aos movimentos sociais pela dignidade da vida de
cidadão e da solidariedade e que tentam destruir as utopias e
sonhos do povo. A relação interpessoal do homem abarca tam-
bém uma dimensão histórica que se manifesta numa infinita
responsabilidade pelo outro.
Ao refletir-se sobre a humanidade que entra neste acon-
tecer histórico da relação interpessoal e que acontece através
da ética política na qual se revela a vida da fraternidade huma-
na, a Filosofia da Libertação aponta para este novo humanismo.
Nele, abre-se uma completa perspectiva da história, na qual a
fidelidade interpessoal deverá ser vista com a fundamentação
da solidariedade.
A autêntica vida humana é vida política e ética com o ou-
tro. A vida humana realiza-se na história e a historicidade exige
do homem uma conscientização. A história do homem é, acima
de tudo, transcendência, na qual se desvela a verdade. Na cons-
cientização histórica, por vezes, é necessário criar-se a institui-
ção de Comissões da Verdade, as quais desvelam crimes de vio-
lação dos Direitos Humanos Fundamentais cometidos pelo Esta-
do contra os cidadãos por motivos políticos e econômicos, cuja
prática tem sido, quase na sua totalidade, dos países da Améri-
ca Latina, nas últimas décadas, através das ditaduras cívico mi-

52
litares. A Verdade transcende os fatos históricos na senda do
respeito dos Direitos Humanos Fundamentais. A Verdade histó-
rica recebe, pelas transcendência e conscientização, a sua di-
mensão histórica. A conscientização do homem realiza-se na sua
sempre atualidade. Viver com o outro significa exercer solidari-
edade, ética e responsabilidade política como verdadeiro servi-
ço da existência, isto é, a existência já é portadora de obriga-
ções, pois a vida humana é um dom, masa existência é um pro-
jeto histórico político. Quanto mais o ser humano for fiel ao ou-
tro e se comprometer na relação com ele, tanto mais crescem
nele a consciência histórica e tanto maior será seu horizonte
existencial.
Na proximidade, o sujeito está implicado de uma maneira
que não se reduz ao sentido meramente espacial, que toma a
proximidade física de corpos, desde que o terceiro esteja na
perturbação por exigir justiça. Quanto mais o ser humano for
solidário tanto mais ele se encontra em si. Sem esta relação in-
tersubjetiva Eu-Tu a existência humana não teria sentido. Nós
vivemos numa relação interpessoal. O ser humano como ser
humano não é um ente que está fechado em si mesmo, mas é
aberto e procura estabelecer cada vez mais relações profundas
e maiores com o outro. Estas relações são éticas. Com isso, com-
preender-se-á a condição originária do “ser-com-o-outro”. Esta
condição fundamental da existência do homem exige que a re-
lação interpessoal com o outro seja cada vez mais intensiva. A
presença e a proximidade do outro fala e interpela, assim, a
uma relação sem paralelo com um poder que se exerce, quer
seja no gozo pleno da vida livre, quer seja no domínio do conhe-
cimento. Trata-se de um confiar intersubjetivo. A essa confian-
ça corresponde o reconhecimento da subjetividade e são a res-
ponsabilidade e a ética que primam em ouvir o outro. Levinas,
como um dos inspiradores da ética da libertação, fala da ex-
pressão que não irradia como um esplendor que se espalha ape-
sar do desconhecimento do ser irradiante, o que é, talvez, a de-
finição da beleza e da grandeza da vida feliz. E ela se manifesta
assistindo na experiência que equivale a invocar eticamente o
interlocutor na interpelação e a expor-se à sua resposta e à sua
pergunta. Esta relação de confiança é amor, que corresponde à
responsabilidade humana. O confiar é um requisito fundamen-
tal do Dasein. O confiar manifesta-se no cotidiano da Pessoa e a
presença constante na relação da corresponsabilidade da cida-
dania fundamenta e preserva a relação entre as pessoas.
A relação ética e o frente a frente, segundo os filósofos da
libertação, dirimem também sobre a relação que se poderia
chamar de mística, tema especialmente querido da teologia da

53
libertação, e onde outros acontecimentos, que não o da apre-
sentação do ser original, vêm subverter ou sublimar a sincerida-
de pura da apresentação, aonde inebriantes equívocos vêm en-
riquecer a univocidade original da expressão, onde o discurso
se torna encantamento como a prece de invocação da justiça
que se torna serviço ético, onde os interlocutores dão por si a
desempenhar um papel num drama que começou fora deles. Aí
reside o caráter racional da relação ética e da linguagem da
democracia plena.
No totalitarismo, o pensamento objetiva e oprime o ho-
mem, que permanece novamente fechado em si mesmo. O con-
fiar é um ato que jamais abandonará o outro. Cabe, ainda, uma
reflexão filosófica sobre a fome e a miséria que ainda continu-
am grassando pela América Latina. Esse fato trágico precisa
fazer parte da instauração do processo de democracia plena,
pois, a fome de tantos excluídos da mesa dos bens básicos para
uma vida dignida só se mede objetivamente na circunstância da
violação dos Direitos Humanos Fundamentais, cometida pelo sis-
tema político neoliberal. É uma circunstância irrecusável. O so-
frimento histórico imposto ao excluído abre o discurso original
da ética da libertação, cuja primeira palavra é obrigação da cor-
responsabilidade na política, na economia e na preservação da
identidade cultural.
Sem o confiar, o ser humano conta na sociedade somente
como número; será delimitado apenas como função e será sem-
pre e apenas “isso”, tal como Martin Buber, na obra “Eu-
Tu”,descreve ao posicionar-se contra o frio coletivismo da mas-
sificação humana. Assim, o ser se afastou do universo das coisas
disponíveis. Vale tão somente a pura tecnologia e seu poder. A
fidelidade, ao contrário, transcende toda esta realidade do uni-
verso da existência humana. A confiança é o amor histórico que
cultuamos na relação interpessoal. O outro será definido sem-
pre como o homem universal. Assim poderemos afirmar que ele
implica a todos nós e a toda humanidade. Tão somente o amor
nos permite reconhecer o outro como sujeito. O que muito im-
porta para nós na fidelidade que seja o outro quem viva.
No acolhimento do outro como cidadão em seus Direitos
Fundamentais, acolhemos toda a humanidade à qual a nossa
liberdade se subordina; essa subordinação, no entanto, não é
uma ausência: empenha-se em toda a tarefa pessoal da minha
iniciativa de responsabilidade moral (sem a qual a verdade do
julgamento não pode produzir-se), na atenção a toda comunida-
de política enquanto unicidade e exigência político-econômica
e ética, isto é, naquilo em que o visível do político deixa invisível
no processo da democratização e que só se pode produzir na

54
unicidade da cidadania do ser humano na sua pátria e no mun-
do da sua identidade cultural.
A solidariedade como amor poderá ser concebida, na ana-
logia, como uma força política e utopia econômica. Com isso,
poder-se-ia defender de que o confiar no mundo do ser comuni-
tário nos torna responsáveis e possibilitará um sentido radical
da existência do homem.
Ser sujeito livre pelo agir pedagógico da libertação signi-
fica acolher a presença do outro em suas miséria e grandeza.
Neste sentido, a responsabilidade se tornará a base da comuni-
dade. A ética política da libertação consiste na novidade para
que a confiança seja possível comunitariamente, pois, a princí-
pio, a relação é uma categoria universal do ente com a possibili-
dade de se realizar nas mais diversas formas da vida social, eco-
nômica e política. O confiar intersubjetivo tem um caráter ori-
ginário. Desde o seu nascimento, o ser humano se encontra numa
relação inter-humana. A interioridade da relação político-comu-
nitária humana age através de necessidade ética. O ser comuni-
tário é visível e evoca o outro na vida da opressão para a liberta-
ção. Esta relação é interpessoal. A relação intersubjetiva brota
através da solidariedade que corresponde ao início da ética. Cria-
se a linguagem ética que nós assumimos e utilizamos como re-
curso do pleno exercício da democracia, não procede de uma
experiência moral especial, independente de princípios institu-
cionalizados por uma postura ideológica, mas do desejo de feli-
cidade acalentado pelo indivíduo e pelo povo.
A solidariedade entre os cidadãos nos processos da liber-
tação corresponde aqui ao amor por uma causa universal. Atra-
vés da presença da relação intersubjetiva acontece que o outro
seja aceito como outro e assim seja compreendido. Isto é a bon-
dade na responsabilidade política pelo comprimento do pressu-
post o de bondade e justiça.
O outro, como cidadão, se revela na mesma relação e se
agarra na distância e na separação. Isto quer dizer a maneira
como o homem é capaz de experimentar a fidelidade. Este con-
fiar acompanhará o ser humano por toda a sua vida. Segundo a
filosofia da libertação, trata-se do intersubjetivo, obtido através
da noção de fecundidade da fraternidade e abre um plano em
que, ao mesmo tempo, acontece a superação do egoísmo trági-
co dos cidadãos, voltando a si, e, no entanto, não se dissolve
puramente no coletivo da massificação ou do pensar e do agir
unidimensional.
O ato de confiar consiste no agir ético, pois a relação hu-
mana não se constrói sobre coordenadas meramente institucio-

55
nalizadas e sobre condições objetivantes que possam ameaçar a
relação existencial intersubjetiva. A experiência intersubjetiva
na democracia não poderá conhecer fronteiras e jamais deverá
ser dominada no arbítrio. Mas exige, acima de tudo, a ação par-
ticipativa intersubjetiva e a libertação dos resquícios da opres-
são. O confiar intersubjetivo é resposta ao outro como concida-
dão que fundamenta a vida da relação intersubjetiva. A inter-
subjetividade do confiar significa presença. Nesta abertura dia-
lógica do ser humano, a linguagem torna-se historicidade. Com
a experiência da presença do outro, o ser humano se interpõe
entre duas consciências que se reconhecem reciprocamente. O
ser humano, enquanto cidadão, constrói não apenas a relação,
mas a mantém viva através do confiar existencial.
Na vida democrática, o encontro das pessoas é sempre
um encontro de subjetividades, é interpessoal. No confiar inter-
subjetivo, não poderá existir coação, nenhuma espécie de opres-
são e nenhum rebaixamento do outro em sua dignidade huma-
na, posto que, com ele, acontece o reconhecimento da alterida-
de. Aqui se trata da presença do outro como absolutamente ou-
tro. Nós não nos encaramos como objetos, mas como pessoas,
seres conscientes e responsáveis socialmente. Os objetos amea-
çam a dimensão da intersubjetividade. O confiar preserva o pre-
sente da relação interpessoal. Em todos os âmbitos da vida, nós
experimentamos que o mais íntimo e mais essencial da vida é
estar em presença responsável pelo outro como concidadão.
O reconhecimento outro na responsabilidade política é
experiência de transcendência. O outro me conduz para o além
dos meus limites individuais. Este transcender constitui a pleni-
tude da vida humana. A humanidade não é uma aventura solitá-
ria. Ela é um resultado da comunidade. A humanidade é comu-
nidade, a única mediação possível para com o outro. O confiar
intersubjetivo realiza o ser humano na sua comunidade históri-
ca. Quem fala do confiar não poderá partir de um coletivo abs-
trato, mas deverá partir do ser humano concreto na história. A
vida do confiar intersubjetivo põe em caminho um novo concei-
to de sociedade. Trata-se da solidariedade ou o que poderia ser
expresso como uma utopia: trata-se da fraternidade. É funda-
mental na Filosofia da Libertação situar o ser humano na frater-
nidade: o fato de todos os homens serem irmãos não se acres-
centa ao homem como uma conquista moral, mas constitui a
sua própria subjetividade. O homem realizará sua vida na comu-
nidade. A realização da intersubjetividade não se dá fora do
mundo, mas põe em questão o mundo possuído. É afirmar um
mundo da intersubjetividade na plenitude da liberdade. Assim,
a comunidade consiste na convivência entre as pessoas, entre

56
quem predomina o princípio do respeito mútuo, do reconheci-
mento da dignidade humana, do exercício da justiça, do sacrifí-
cio e da solidariedade. Sacrificar-se para a justiça significa ser
pessoa com engajamento histórico. A justiça exige existir ao
mesmo tempo no ser atual. Assim, na democracia somos evoca-
dos de forma originária para a práxis da justiça. A solidariedade
é mais originária do que a comunitariedade do “genus huma-
nus”. Minha relação ao outro como absolutamente outro dará
um sentido profundo a todos. Aqui se fundamenta a dimensão
social da Filosofia da Libertação na vida social, econômica e
política. Toda as reações especificamente humanas enraízam-se
no mundo da autoconsciência. O confiar intersubjetivo signifi-
ca, acima de tudo, reconhecimento da dimensão ética do ser
humano na qual se realiza a verdade e a justiça.

A dimensão da ética da libertação


No cerne da Filosofia da Libertação fixa-se a ética. A ética
da libertação é uma práxis desde a subjetividade pessoal até a
abrangência da sociedade de exclusão sustentada pela globali-
zação da economia contemporânea. Essa ética é a base da Filo-
sofia da Libertação e possibilita a inteligibilidade do ser, que
provém do outro que se encontra além do ser que descobre o
mistério da subjetividade no transcender. A ética da libertação
fundamenta-se na transcendência e recorre a uma teoria crítica
dos Direitos Humanos Fundamentais. O outro, que invoca o eu
desde sua ipseidade é, na sua origem, a alteridade. A vocação
do ser humano na sua plenitude fundamenta-se na irrecusável
responsabilidade ética na vida comunitária.
A ética da libertação abarca uma incomensurável dimen-
são interdisciplinar para compreender o sentido novo da demo-
cracia que se instaura pela educação para a cidadania. A partir
dos filósofos da libertação, a ética da alteridade abre-se sobre o
projeto da totalidade mundana para o outro. O eu pessoal abre-
se em relação ao outro, formando-se um “nós” de convivência
ética. O nós histórico para o outro é o tudo para a Humanidade,
entendendo-se o Nós como absoluto outro, impulsionado para o
infinito, que exclui a mediação. Trata-se da abertura escatológi-
ca da história.
A ética é o ponto mais difícil de toda reflexão filosófica.
Ela é o começo da Sinngebung para a práxis libertadora. Por
isso, a filosofia é a sabedoria do amor a serviço do amor e o amor
pela sabedoria. A Filosofia da Libertação procura descrever o
caminho que vai além da Modernidade europeia e da dependên-
cia cultural na América Latina no sempre e constante realizar-
se da práxis libertadora. Este caminho inicia na base do povo,

57
ou seja, acima de tudo com a sabedoria popular como símbolo e
filosofia. Sob o conceito de sabedoria popular, com ele preten-
de-se entender o princípio do filosofar e também o conceito da
ética como práxis libertadora.
O pensar da práxis libertadora não é exclusivamente con-
templativo e não se restringe em sempre descobrir um mundo
que esteja à mão. Nossa consciência filosófica não se move no
patamar da fundamentação lógica e ontológica, mas na compi-
lação complexa de forças históricas que nos involucram e segui-
damente nos dilaceram. A intuição forma o ponto de partida do
saber. Aqui e agora nós vivemos conjuntamente com este povo e
experimentamos a riqueza cultural dos símbolos éticos e religi-
osos, enquanto somos abertos em relação à universalidade de
todo humano. Nós acreditamos que os grandes desafios consis-
tem em entender estes símbolos e entrar num diálogo do amor
sem que eles sejam reduzidos, desde o início, às nossas catego-
rias provisórias. Entrar em força da sabedoria do povo é a fonte
da verdade e da justiça. O nível da ética encontra-se no meio do
povo, na interioridade do “Nós” social, onde acontece sempre a
vida do ético. É nesse momento que se formula a exigência ética
e o dom da distinção. Na vida do “Nós” político emerge a experi-
ência originária da vida da democracia. Esta experiência ética,
jamais será um isolamento, separação de pessoas, mas consiste
num processo de conscientização. Dussel assume a dimensão
ética sempre do discurso na América Latina, na filosofia da li-
bertação que se torna real no povo e que se revela como um
povo oprimido. A ética da libertação cria um novo humanismo,
no qual são exigência a consciência e a capacidade de acolher.
Neste humanismo, aparece o outro não como o estrangeiro, mas
como ser-com-o-outro. Aqui é privilegiado o conceito de pessoa.
Tudo o que acontece à pessoa também repercutirá na sociedade
e tudo o que acontece na sociedade, refere-se ipso facto à pes-
soa. Por isso a responsabilidade da pessoa afeta também a co-
munidade, e esta responsabilidade social cresce nesta relação
que será dever e responsabilidade da pessoa.
Não se trata de uma contradição dialética, mas da justiça
e responsabilidade pelo outro. A práxis libertadora é ética e exi-
ge mudanças culturais e estruturais. Requer a libertação do
oprimido e também uma conversão, uma metanóia do oprimido.
O processo da libertação é também a condição da possibilidade,
conversão qualitativa do dominador. Esta conversão, através da
libertação, resulta essencialmente do perdão. O perdoar é esse
implodir do novum qualitativo, que rompe com a perpetuação
totalitária de violência e contra-violência e, com isso, libertará o
opressor e o oprimido. Nisso consistem as Comissões da Verda-

58
de que se instauram nos países da América Latina que sofreram
a violação dos Direitos Humanos Fundamentais durante os du-
ros anos das ditaduras nas últimas décadas. Para que os aconte-
cimentos não caiam no esquecimento, é preciso preservar a
memória como elemento constitutivo histórico da democracia.
Antes de tudo, isso leva para a conversão do criminoso e ao per-
dão que, através do torturado, é a mais externa posição dos limi-
tes da relação humana.
A ética da libertação torna-se plena através de sua práxis
da comunidade no domínio da liberdade, da responsabilidade e
do amor pela justiça. Esta comunidade é a garantia para a pleni-
tude dos Direitos Humanos. Isso explica que a justiça seja consi-
derada como a exigência originária da ética da libertação. Ela
refere-se à verdade e “poderemos procurar na ética a condição
da verdade”. O discurso da ética é a verdade. A verdade está no
ponto central da revelação do outro, que clama por justiça.

Considerações finais
Na reflexão da Filosofia da Libertação desdobra-se uma
nova perspectiva da imagem humana. Vimos que, neste texto,
sempre procuramos acentuar categorias e critérios para uma
nova postura filosófica do ser humano, bem como uma radical
plenitude da ética e da consciência histórica sobre os Direitos
Humanos Fundamentais na América Latina. Com isso, intro-
duz-se no mundo jurídico uma importante fase, cuja linha con-
dutora alcança principalmente a novidade da Filosofia Latino-
americana da Libertação. O cerne dessa filosofia significa es-
tar a serviço do amor pela verdade, isto é, anseia pelo outro em
si, pelo ser que deverá ser distinguido de uma mera reflexão
abstrata de si mesmo. Em face de injustiça em nível político,
econômico e cultural, ainda há uma grande multidão de latino-
americanos que se encontram excluídos. A experiência ética é,
na verdade, uma experiência política na democracia, isto é, ela
não se opõe a um processo dialético tampouco a um processo
da plenitude, mas acontecerá num processo de construção in-
terpessoal da democracia para a defesa dos Direitos Humanos
Fundamentais de todos. Na democracia, a relação para com o
outro se realiza como bondade denominada por Justiça e ver-
dade, a qual, na experiência política, se torna real pela solida-
riedade e responsabilidade. A busca de constantes categorias
para a vida dos Direitos Humanos Fundamentais exige uma
correspondente práxis libertadora. Nenhum cidadão poderá ser
negado nem excluído do sistema-mundo por encontrar-se no
jogo da política opressora que poderá expressar uma afirma-
ção ou negação. A verdade interpõe-se na relação social da qual

59
exige justiça. A justiça consiste no ato ético em reconhecer o
outro na sua infinita alteridade.
A solidariedade consiste em ouvir o clamor e a interpela-
ção ética do povo oprimido e, para tal, engajar-se eticamente na
responsabilidade cidadã. A tradição da filosofia da libertação
latino-americana enraíza-se profundamente na história do Êxo-
do e na Ressurreição do povo em sua consciência histórica e,
com isso, está inserida na tradição crítica. As perspectivas de
uma Filosofia da Libertação consistem em fazer-se sempre uma
análise crítica da realidade da América Latina na perspectiva
de uma ética da libertação.
O dever-ser de uma Filosofia latino-americana da Liberta-
ção consiste em retomar o compromisso de olhar com olhos da
hermenêutica a palavra e os gestos históricos do povo da Améri-
ca Latina. A Filosofia latino-americana da Libertação origina-se
como um pensar que emerge da história do sofrimento e que,
assim, possa servir como fundamento último. Compreender a
cidadania do outro será, por isso mesmo, uma nova direção para
pensá-lo. Esta filosofia introduz um novo horizonte na luz da
justiça. Ela aponta para a dignidade do ser humano, reclama
Direitos Humanos Fundamentais e postula os caminhos éticos
para a grandeza da vida, superando-se, acima de tudo, o impé-
rio do fetichismo do capitalismo neoliberal, além do genocídio e
de toda a opressão. Assim, a Filosofia latino-americana da Li-
bertação percorrerá a razão de ser de sua existência numa pers-
pectiva positiva.
Na Filosofia latino-americana da Libertação, as categori-
as existenciais da paz, justiça, amor, liberdade não serão consi-
derados como meras realidades interiores do ser humano, mas
são possuidoras de um novo status social, são realidades éticas
e, portanto, portadoras da novidade histórica da libertação. O
pensador seguidor da práxis libertadora é um filósofo que não
se atém apenas a um discurso teórico sobre o ser humano, ou
um solitário visitante das herméticas bibliotecas acadêmicas,
mas sua vocação reside no engajamento na libertação do povo.
Essa vocação não é de conforto para o sistema e carreirismo
acadêmico.
A práxis libertadora tem seu ponto de partida no oprimi-
do. O pobre, o oprimido e o excluído possuem uma profunda
consciência histórica e esta se traduz na interpelação ética.
Quando falamos da práxis libertadora, não trataremos de um
simples desejo, mas de uma realidade que irrompe como utopia
e novidade. A realidade é o presente do oprimido, que executa a
práxis libertadora. A libertação é uma reação da comunidade,

60
que se orienta na solidariedade; esta libertação atinge todas as
esferas da vida social. Assim emergem muitas relações sociais
da solidariedade na defesa e na corresponsabilidade do povo e a
instauração de novas formas de autoridade. Nesse novo e alter-
nativo espaço livre, surge, por meio das experiências sociais,
uma inovação que brota como a semente de uma nova socieda-
de. Por isso, temos necessidade de uma solidariedade histórica
que se defronte com uma luta comunitária contra a totalidade,
isto é, contra as variadas formas de opressão, tais como o impe-
rialismo, a guerra, a ditadura cívico-militar e econômica, a alie-
nação etc. Trata-se, portanto, de um programa revolucionário
de grande significação para toda a humanidade.

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SILVEIRA, Rosa Maria Godoy et al. Educação em Direitos Huma-
nos: Fundamentos teórico-metodológico. João Pessoa: Editora
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61
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Sociais e o Estado Democrático. São Paulo: Paz e Terra, 2012.

Notas
*
Dr. Phil. pela Universidade de Bremen – Alemanha.Pós-doutorado
em ética pela Universidade de Leipzig – Alemanha. Professor Emérito
da Unisinos. Pesquisador e professor visitante de filosofia na Univer-
sidade Federal Fluminense UFF/Volta Redonda RJ. Professor visitan-
te na Universidad Centroamericana de San Salvador- El Salvador.
Participante no Projeto de Pesquisa: Violação dos Direitos Humanos
na ditadura militar no Sul Fluminense – RJ. Participante do grupo de
Pesquisa Memória, Subjetividade e Subjetivação no Pensamento Con-
temporâneo, CNPq e no Programa de Pós-graduação em Memória:
Linguagem e Sociedade da Universidade Estadual do Sudoeste da
Bahia. Autor dos livros: Alteridade e Multiculturalismo. A Intersubje-
tividade em Martin Buber. Interpelação ética. Ética e Alteridade: a
subjetividade ferida. Ética do Discurso e a Filosofia da Libertação –
E-mail: antonio.sidekum@uol.com.br.
**
Integrante do Grupo de Pesquisa “Directus” da Universidade Fede-
ral Fluminense. Pesquisador do Núcleo de Estudos de Direito Contem-
porâneo – NEDC da Universidade Federal Fluminense. Graduando e
Pesquisador da UFF – PUVR – E-mail: matheus_pedroza@id.uff.br.

62
Direitos de cidadania e autodeterminação das
comunidades indígenas no Brasil e especialmente na
Reserva Indígena do Uaçá
Paulo da Veiga Moreira*

Introdução
A temática que ora é proposta constitui um sonho antigo
do autor que, nos idos de 1991 e 1992, esteve comprometido e
preocupado com a questão indígena no município e comarca de
Oiapoque, Estado do Amapá, quando lá exerceu o cargo de Pro-
motor de Justiça e verificou que, por muitos anos, para as co-
munidades indígenas daquele território, a este significativo seg-
mento da população brasileira, sempre foram negados e sone-
gados direitos humanos fundamentais imprescindíveis para o
fortalecimento da dignidade da pessoa humana.
No Brasil, as comunidades indígenas sempre foram soci-
al, política e culturalmente fragilizadas, exigindo um maior com-
promisso de toda a sociedade e de todos os governantes para
com os povos indígenas que foram e ainda são explorados, es-
cravizados e massacrados, restando apenas a luta de poucos
bravos índios que sobreviveram para agirem em defesa de seus
direitos, de suas tradições, de suas culturas e pela reconquista
de suas terras que lhes foram tiradas.
Os índios são cidadãos brasileiros que vivem fadados à
extinção em virtude da perda de suas raízes socioculturais e
das próprias condições econômicas de sobrevivência em termos
de direitos de cidadania, e que se confundem com outros seg-
mentos marginalizados da sociedade.
Como bem enfatizam Sparemberger e Santos:
Muitos povos indígenas foram exterminados ou reduzi-
dos a poucos bravos sobreviventes que perderam suas
terras, sendo assim acomodados em pequenas reservas
que não possibilitam sua sustentabilidade. E mesmo re-
duzidos, continuaram sendo explorados pelo branco, em
diversas situações: na retirada de árvores pelas madei-
reiras, no arrendamento de terras, na exploração da
mão-de-obra barata. A responsabilidade pela atual rea-
lidade indígena é do homem branco que, ao longo do
processo histórico e exploratório, praticamente dizimou
o índio enquanto grupo cultural (nosso grifo). (SPAREM-
BERGER; SANTOS, 2007, p. 112s)
Os povos indígenas sempre foram vítimas da violência em
todas as suas formas mais dolorosas de ocorrerem, desde a vio-
lência física e psicológica, até à violência estrutural e cultural.
A violência cultural, que age com toda sutileza, constitui uma
forma de agressão dolorosa intentada contra o índio ou grupo,
porque suprime a sua aptidão de observar, de ver, de perceber
o mundo, e, especialmente, de possibilidade educacional indis-
pensável a uma apreensão crítica e clara da realidade. Equivale
dizer que, impossibilitado de entender e sentir-se como huma-
no e como cidadão da forma como concebe a vida, lhe é negada
a sua própria existência.
Casos emblemáticos como os das Terras Indígenas da Ra-
posa Serra do Sol em Roraima, Guarani e Cinta Larga, no Ama-
zonas, e da Reserva do Uaçá, no Amapá, são exemplos clássicos
de violações dos direitos dos povos indígenas, o que levou estes
povos a peticionarem na Comissão Interamericana dos Direitos
Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), para
que o governo brasileiro demarcasse as terras e retirasse de lá
os posseiros e fazendeiros.
A Comissão Interamericana e a Comissão de Direitos Hu-
manos, no caso da Raposa Serra do Sol, por exemplo, em 2004,
adotaram medidas cautelares fazendo surgir pressões diplomá-
ticas internacionais para que houvesse a homologação das ter-
ras indígenas. Assim, em 2005, as terras foram homologadas.
O embate jurídico deu-se por longos anos, envolvendo inú-
meros interessados, entre eles, o Estado de Roraima, a União e
particulares, chegando ao Supremo Tribunal Federal, Corte Su-
prema do País.
No caso da Raposa Serra do Sol, mesmo depois de homolo-
gadas as terras, além da Organização dos Estados Americanos
(OEA) ter tomado as devidas providências, também o Comitê
para Eliminação da Discriminação Racial (CERD), recebeu re-
clamação dos povos indígenas sobre a situação da discrimina-
ção racial à identidade indígena, tendo em vista a violência em-
pregada contra os índios.
Em agosto de 2007, este Comitê recomendou ao governo
brasileiro a retirada dos ocupantes ilegais da área com o devido
pagamento das indenizações além da investigação dos crimes
praticados contra os índios.
Esses casos são exemplos de que existem sérios desafios
que devem ser enfrentados para a consolidação dos direitos
humanos fundamentais dos povos indígenas no Brasil.

64
Diante destas considerações iniciais, o que se objetiva, no
geral, com este trabalho é mostrar que as comunidades indíge-
nas do município de Oiapoque, Estado do Amapá, que integram
a Reserva Indígena do Uaçá, onde residem, são um segmento
ainda muito fragilizado na atual conjuntura econômica, social,
política e cultural do Estado do Amapá, aos quais é ainda nega-
do o acesso a direitos humanos fundamentais tais como o direi-
to à saúde, educação e acesso à justiça.
Especificamente na primeira parte, este artigo objetivará
identificar os grupos étnicos existentes na Reserva Indígena do
Uaçá, no município de Oiapoque, Estado do Amapá, e suas reais
condições materiais e culturais. Além disso, a questão da falta
de acesso a direitos humanos fundamentais, dando ênfase aos
direitos de cidadania das comunidades indígenas, será também
enfocado.
Na segunda parte,será identificada a legislação estadual
que diz respeito aos Juizados Especiais Itinerantes Terrestres e
Fluviais do Estado do Amapá, analisando se os poderes constitu-
ídos e o Ministério Público realizam ações nas comunidades in-
dígenas da Reserva do Uaçá, e bem assim, se a Administração
Pública dos poderes constituídos desenvolvem, na reserva, ativi-
dades afetas aos direitos de cidadania, levando-se em conta que
a cidadania brasileira exige cada vez mais uma preocupação e
um especial compromisso com os povos indígenas.
Na terceira parte, serão abordados todos os direitos e de-
veres dos povos indígenas da reserva, a tutela de seus direitos
sociais, levando-se em conta que ditas comunidades não podem
deixar de ser atendidas por parte dos órgãos governamentais ao
direito de acesso a uma ordem jurídica justa, sobretudo ao di-
reito humano fundamental de acesso à justiça.
Em considerações finais, procurar-se-á identificar as ne-
cessidades materiais das comunidades, com o apontamento de
algumas alternativas que possam resgatar a dignidade de povo
indígena, notadamente em relação à proteção de suas terras,
seu habitat, e o resgate de suas tradições e culturas.

Os grupos étnicos na Reserva e a realidade atual


O município de Oiapoque, no Estado do Amapá, sem qual-
quer exagero, pode-se dizer que, pelo seu nome, é conhecido
em todo o Brasil, e quiçá, no mundo, em face do velho jargão
“do Oiapoque ao Chuí”. Está situado em lugar distante, no meio
da beleza da floresta amazônica brasileira, do lado de lá do ma-
jestoso Rio Amazonas, onde consta no seu principal monumento
de visitação pública turística, às margens do Rio Oiapoque, que

65
“AQUI COMEÇA O BRASIL”, e faz fronteira com a Guiana Fran-
cesa, uma parte da França em território sul-americano.
Muitos brasileiros conhecem-no pelo nome, e é difícil en-
contrar quem não gostaria de conhecer este pedaço de chão
brasileiro, uma parte do território do novel Estado do Amapá,
que se separa da Guiana Francesa, departamento europeu, ape-
nas por um dos mais bonitos rios brasileiros, o rio Oiapoque.
O município, segundo dados estatísticos do Instituto Bra-
sileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que se situa a quinhen-
tos e cinquenta quilômetros de Macapá, capital do Estado, tem
hoje vinte mil habitantes e possui uma área territorial geográfi-
ca de 22.625 km2. Incrustada em sua parte oeste extremo norte
do Estado do Amapá, cortada pela estrada BR 156 numa exten-
são de oitenta quilômetros, encontra-se a Reserva Indígena do
Uaçá, com uma área total de 470.164 hectares de terras, área
devidamente demarcada e homologada, cujo processo transcor-
reu ao longo dos anos de 1991 até 1993, e que faz divisas com
as terras indígenas Juminã e Galibi e com o Parque Nacional do
Cabo Orange.
A título de dados históricos, considerando apenas o perío-
do após a promulgação da Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, o município de Oiapoque era parte integran-
te do extinto Território Federal do Amapá, e a cidade, de mes-
mo nome do município, era sede de uma das quatro comarcas
que integravam o Poder Judiciário do Distrito Federal e dos Ter-
ritórios. Com a criação do Estado do Amapá pela Constituição
da República e instalado em 1991, a cidade de Oiapoque conti-
nua agora a ser uma das sedes das onze comarcas que surgiram
com o Estado.
Os povos indígenas do Oiapoque, os quais vivem na Reser-
va Indígena do Uaçá, são constituídos de etnias Karipuna, Galibi
Marworno e Palikur, com aproximadamente 5.700 pessoas e se
dispersam ao longo da reserva em trinta e oito aldeias. A aldeia
mais próxima é a do Manga, que pertence aos Karipunas e se
localiza a 26 km da cidade de Oiapoque, onde se chega de carro
pela BR 156, destino Macapá, hoje já com asfalto, numa distân-
cia de 15 km e depois acessa-se o ramal até chegar à aldeia,
numa distância de 11 km.
Na aldeia do Manga, às margens do rio Uaçá, centrali-
zam-se as atividades e pontos de apoio às demais aldeias, so-
bretudo para as que se situam ao longo dos rios Urukauá e
Curipi, afluentes do rio Uaçá, em direção ao norte e ao Cabo
Orange, aonde se chega por meio de embarcações chamadas
de voadeiras1, ou de canoas2, que se destinam ao transporte de

66
pessoas e de mercadorias, principalmente a farinha, o peixe, a
caça e o açaí.
A reserva é formada por alagados e savana, típica paisa-
gem da região, e banhada pelos rios Uaçá com seus afluentes
Curipi e Urukauá, lagos e igarapés. A floresta é densa ede clima
tropical, formada por grandes árvores como as castanheiras e
as palmeiras. Mais ao norte, com região montanhosa, sobressa-
em-se as montanhas Cajari, Carupina e Tipoca que, para os índi-
os da região, são referências físico-cosmológicas.
Seguindo tradição indígena de garantia dos meios de so-
brevivência, todas as comunidades que habitam na reserva so-
brevivem do extrativismo da castanha, do açaí, da pupunha, e
outras frutas como base de alimentação, consumidos com peixe
ou caça, acrescidos sempre da tradicional farinha de mandioca e
do tucupi3. Na verdade, a farinha e o tucupi são feitos de mandi-
oca, tubérculo inconsumível de outra forma, e que no sul do Bra-
sil é denominada de “mandioca brava”. Aquela que pode ser con-
sumida sem restrição nem sempre é encontrada e, quando exis-
te, herdou o nome de “macaxeira”, levado pelo homem branco.
A farinha produzida nas chamadas casas de farinha4, onde
trabalham só as mulheres desde a ralação até a torrefação, des-
tina-se ao consumo e à comercialização na cidade de Oiapoque,
e, muitas vezes, é trocada por produtos industrializados desti-
nados ao consumo.
A caça,é a denominação dada a animais como a tartaru-
ga, o tracajá e a perema5, camaleão6, veado, catitú7, e até maca-
co e outros animais que os índios também consomem como ali-
mentos.
Considerando a proximidade com a Guiana Francesa, e
tendo em vista que, também no território vizinho, existem diver-
sas tribos indígenas que teriam a mesma origem, é comum o
uso do patoá8. Além disso, os índios comunicam-se em vários
idiomas, principalmente por meio de línguas indígenas mães, o
Galibi e o Palikur9.
Todas as etnias mantêm os mesmos costumes e tradições
culturais devido ao intenso intercâmbio entre os próprios índios
e entre índios e brancos, embora cada grupo mantenha sua iden-
tidade própria, seja no aspecto social, como nos aspectos políti-
cos e religiosos.
Tanto é verdade que, por ocasião da festa da Turé, reali-
zada entre setembro e novembro, durante o período de estia-
gem, quando se homenageiam os Karuãna10, é comum, nos dias
de muita dança e cantos, o consumo do caxiri11 pelos homens,
mulheres e jovens. Contudo, os índios Palikur, que se tornaram

67
evangélicos de igrejas pentecostais, e somente eles, não fazem
uso da bebida por questões religiosas.
A população indígena é constituída na maioria pelos índi-
os Karipunas com cerca de 1750 pessoas, vivendo quase todos
às margens dos rios Uaçá e seu afluente, o Curipi, com o maior
número de aldeias que podem ser de tamanhos variados, che-
gando algumas, como a do Manga, a apresentar uma população
de mais de trezentas pessoas.
Mas, visando verificar as condições materiais e culturais
em que vivem hoje os povos indígenas da reserva do Uaçá, muni-
cípio de Oiapoque, o autor deste trabalho, acompanhado do Pro-
fessor Aloíso Krohling12, no dia 21 de janeiro de 2009, esteve
visitando a Aldeia do Manga, no município de Oiapoque, no Es-
tado do Amapá, que se localiza em local de fácil acesso dentro
da Reserva Indígena do Uaçá.
Para chegar ao Oipoque, foram precisamente cinco dias
de viagem de Vila Velha, no Espírito Santo, até Belém, capital
do Estado do Pará, numa distância de 3.396 km. Essa viagem foi
feita de carro em três dias e meio. De Belém a Macapá, capital
do Amapá, a viagem foi feita de avião (este trecho só pode ser
feito de avião, navio ou barco de médio e grande porte). De Ma-
capá a Oiapoque, gastam-se dez horas de viagem, numa distân-
cia de 550 km, sendo 310 km de asfalto e 240 km de estrada de
terra. A chegada a Oiapoque deu-se no dia 20 de janeiro de
2009 à tarde e, no dia seguinte, chegamos à aldeia do Manga.
Por decisão da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, em
comum acordo com as lideranças indígenas, para se entrar nas
aldeias, é imperioso que se tenha autorização. Por isso, no dia
20 de janeiro de 2009, o autor que se fazia acompanhar do Pro-
fessor Aloísio Krohling, Antônio Brazão e pelo motorista Ernesto
da Corregedoria Gerald do Ministério Público do Amapá, foi re-
cebido gentilmente pelos Srs. Marivaldo Diogo Macial, adminis-
trador em exercício da FUNAI, que substituía Estela Maria dos
Santos Oliveira, administradora titular que se encontrava via-
jando, ambos de etnia Karipuna, e Mário dos Santos, também de
etnia Karipuna, motorista da FUNAI.
O Sr. Marivaldo Diogo Macial gentilmente se dispôs a nos
levar à aldeia, dispensando, portanto, o documento de autoriza-
ção.
Na aldeia do Manga, o cacique Luciano dos Santos, já sa-
bendo de nossa visita, uma vez que, pela manhã fora informado
via rádio por agentes da Fundação Nacional do Índio – FUNAI de
Oiapoque, aguardava-nos no Posto da FUNAI da aldeia. Com ele
estavam outros índios, inclusive seu irmão Manoel dos Santos,

68
membro do Conselho do Cacique, um órgão de administração
da aldeia que cuida de todos os assuntos de interesse da comu-
nidade e também serve de orientação para os jovens e crianças
e apoio a todas as pessoas que ali residem.
Para alcançar nosso objetivo da pesquisa, fizemos uma
reunião com o cacique Luciano dos Santos e com seu irmão
Manoel dos Santos e outros membros da comunidade; questio-
namos a respeito dos problemas que afetam os povos indígenas
da reserva e sobre a presença do Estado nas comunidades.
Para nossa surpresa, o cacique Luciano informou-nos que
estava há mais de vinte anos exercendo sua função na aldeia.
Embora lá houvesse um posto médico, nunca lhe fora destinado
um médico ou profissional de enfermagem que atendesse as
pessoas da aldeia do Manga e de outras da reserva.
Na verdade, há uma pessoa não índia, que mora na aldeia
há mais de quinze anos, que é prática em enfermagem13. Essa
pessoa ajuda os índios em seus tratamentos de saúde, especial-
mente no combate a alguns tipos de doenças hoje mais comuns
e levadas pelo homem branco, como a gripe. Ajuda também no
tratamento da malária, doença típica da região, transmitida pela
fêmea do carapanã14.
Ainda segundo o relato do cacique, há muito tempo vêm
aparecendo na aldeia, doenças nunca antes detectadas, como
diabetes, câncer de mama, câncer de colo do útero, hipertensão
e doenças sexualmente transmissíveis; entre as últimas, as mais
graves são gonorreia, cancro e AIDS.
Uma situação que os índios consideram gravíssima é o
alto índice de alcoolismo, especialmente entre os mais jovens, o
que nos chamou a atenção. Por isso, foi proposto, por nosso com-
panheiro Antônio Brazão, um encontro na aldeia com membros
de Alcoólicos Anônimos15, o que foi bem aceito pelas lideranças.
Nesse encontro, seria demonstrado que somente por meio de
ajuda mútua e com as experiências de cada um que aceita o
programa de recuperação proposto pela entidade é possível tra-
tar o alcoolismo, uma doença conforme explica a Organização
Mundial de Saúde – OMS.
Na oportunidade ficou acertado que seria feito contato
com o escritório central de Alcoólicos Anônimos em Macapá,
capital do estado, para o agendamento do encontro na aldeia.
O Cacique relatou, ainda, que nas aldeias da reserva nunca
houve dentista que pudesse dar assistência necessária aos mora-
dores índios, embora sempre as lideranças tenham solicitado tanto
às Secretarias de Saúde do Estado quanto do Município.

69
São muitas as reclamações dos moradores da reserva no
que diz respeito ao atendimento ao direito humano fundamen-
tal da saúde, inclusive fazendo sérias “queixas” contra a Funda-
ção Nacional de Saúde no Amapá – FUNASA. Informam que,
quando fazem alguma reivindicação, o agente coordenador da
fundação afirma que a responsabilidade não é só da FUNASA,
mas também da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, dos go-
vernos do estado e do município e também da sociedade.
Em relação à educação, nem todas as aldeias da reserva
têm escolas, a não ser as que se encontram mais em terras fir-
mes, sobretudo na aldeia do Manga, onde fica a Escola de 1º
grau Jorge Iaparra16.Vale lembrar que os professores do 1º grau
são exclusivamente de etnias indígenas e alguns já estão capaci-
tados para a docência de 2º grau com formação em Pedagogia e
Letras pela Universidade Federal do Amapá – UNIFAP. Na al-
deia, é também mantido, no prédio da escola, o ensino de 3º
grau modular, constituído pelo curso de Pedagogia, como ex-
tensão da referida universidade.
O que mais nos chamou a atenção é ter visto de perto a
preocupação que os índios têm com o seu habitat, sobretudo no
que diz respeito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.O
zelo com a floresta e com os rios é tanto que, na margem do rio
Uaçá, existe uma placa com a seguinte transcrição em língua
indígena Palikur: “KA MUAWAK KEH AKAK WARIK KE IGEN-
MAT AWETRIBRE” – “Não faça do rio sua lixeira”.
Na aldeia existe recolhimento diário de todo o lixo domés-
tico e também do lixo dos prédios públicos e coletivos, como da
casa de farinha, da maloca central e dos locais de festas.
Uma das mais importantes reivindicações dos indígenas
da área é a construção do aterro sanitário, promessa antiga fei-
ta pela administração pública há mais de quatro anos e que, até
os atuais, sequer saiu do papel. Segundo os índios, só há com-
promissos não cumpridos pelas gestões do Distrito Sanitário
Especial Indígena do Amapá (DSEI).
O que mais ameaça a vida e a tradição dos índios da re-
gião do Oiapoque, especialmente dos que residem na reserva do
Uaçá, é a finalização das obras da BR-156, única estrada fede-
ral, retomada a cerca de três anos com o Programa de Acelera-
ção do Crescimento (PAC) do Governo Federal, uma vez que as
medidas compensatórias prometidas pelos Governos do Estado
e da União não foram cumpridas, o que gerou a não concessão
de nova licença pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (IBAMA).

70
Esta ameaça ocorre porque a rodovia passa pela reserva e
muitos já foram os problemas gerados, tendo em vista que, às
margens da rodovia, situam-se cinco aldeias, dentre elas a Tukai
e Samauma que se encontram bem próximas, com sérios riscos
para as crianças, pois já ocorreram acidentes com vítimas fatais.
Por isso é que os índios lutam para que sejam cumpridas
as promessas feitas pelos governos a título de compensação pela
servidão na reserva, como a retirada das aldeias das margens da
rodovia, a construção de postos de saúde em todas elas, postos
de vigilância nas entradas dos ramais e outros compromissos
que não foram, até então, cumpridos, conforme informações do
cacique Luciano e outros membros da comunidade.
Observou-se que não são contra a construção da estrada.
Pelo contrário, até a aprovam, pois a realidade mostra que dela
precisam, tendo em vista a facilitação de diversos serviços como
o atendimento à saúde, a comercialização de seus produtos, so-
bretudo a farinha e o açaí, a necessidade de adquirirem produ-
tos industrializados.
O medo que paira é a ganância do homem branco que
poderá, com a abertura da estrada e seu asfaltamento, trazer
ainda mais danos ao meio ambiente, principalmente com a der-
rubada da floresta pelos madeireiros, a contaminação dos rios
pelos garimpeiros e a extinção dos animais pelos caçadores, e o
que é mais grave, a subtração de toda a riqueza constante da
biodiversidade e do patrimônio genético que pertence aos índi-
os. Deles já foram retirados todos os direitos de uso e comercia-
lização, por exemplo, da andiroba e da copaída17, que hoje ser-
vem à biopirataria18
Preocupam-se com uma situação que chama bastante a
atenção: o fato de manterem contato com o modo de vida da
sociedade dos não índios pode agravar ainda mais o apareci-
mento de doenças em seu meio, bem como acarretar mudanças
de costumes que agridam a sua cultura, a organização social e
as atividades produtivas.
Na verdade, observa-se que, com a chegada da estrada há
muito tempo, e agora com o asfaltamento, as mudanças que já
vinham ocorrendo de modo agressivo à cultura e à vida dos índi-
os da região da reserva do Uaçá, algumas vezes superadas por
eles, agora já não podem mais serem suportadas, porque os
impactos sentidos já são muito fortes, como informam os nossos
entrevistados.
Os exemplos de tudo isso são as facilidades que jovens
índios encontram para irem até à cidade, onde frequentam ba-
res e boates, bebem, fumam e, quando retornam à aldeia, pro-

71
curam reproduzir tudo que viram e vivenciaram na cidade, in-
clusive brigas, agressões violentas e até casos de homicídios.
Nas maiores aldeias, os jovens não estão mais preocupa-
dos com o aprendizado da caça, da pesca, do plantio da mandi-
oca, da batata doce, do cará, da cana de açúcar e nem mesmo
com a extração do açaí, da castanha e outros frutos, como afir-
mam os pais. Estão habituados ao comércio dos brancos e seus
hábitos, como o consumo do álcool e das drogas que encontram
nas zonas urbanas de Oiapoque e da vizinha cidade de Saint
Georges, na Guiana Francesa, do outro lado do rio Oiapoque,
cujo acesso se dá em quinze minutos pelo rio, fazendo a traves-
sia em voadeiras.
Observa-se que os jovens índios hoje ambicionam um fu-
turo completamente diferente do das gerações passadas. Sonham
em entrar no mercado de trabalho, e, para isso, preocupam-se
com o estudo; os pais também preocupam-se com a educação
dos filhos como forma de garantir um futuro melhor. Devido a
isso, reivindicam o ensino fundamental para as aldeias, a educa-
ção especial, a educação para jovens e adultos e até o ensino
superior, como o que existe na aldeia do Manga em regime
modular já mencionado anteriormente.
No tocante à presença do Poder Judiciário, do Ministério
Público e da Defensoria Pública do Estado do Amapá, segundo o
que foi informado pelo cacique Luciano dos Santos, em nenhum
momento ocorreu a realização de atividade itinerante na área,
mesmo existindo previsão legal no âmbito do Estado.
São os índios também jurisdicionados e estão sujeitos à
legislação do não índio. São cidadãos brasileiros, mas, infeliz-
mente, são cidadãos assim reconhecidos e lembrados por oca-
sião das eleições, quando, então, são chamados a cumprirem
um direito/dever de cidadania, como afirmam os próprios índi-
os da reserva. Em ano de eleição, lá estão os candidatos, a Justi-
ça Eleitoral, o Ministério Público Eleitoral. Depois das eleições,
se quiserem a prestação jurisdicional, exercendo o direito hu-
mano de acesso à justiça, precisam vir à sede da comarca na
cidade de Oiapoque.
Aliás, como bem assevera o Professor Daury César Fabriz:
Sempre em épocas próximas às eleições para o Executivo
e o Legislativo, o presidente do STE apresenta-se à po-
pulação em geral, através dos veículos de comunicação
de massa, para convocar todos ao exercício da cidada-
nia. Em outras palavras, o ministro-presidente do Tri-
bunal Superior Eleitoral convoca todos os cidadãos para
votarem no dia das eleições e assim exercer sua cidada-
nia; paradoxalmente quem não o fizer será punido.

72
A convocação ao exercício da cidadania às vésperas das
eleições é, no mínimo, caricata. Em primeiro lugar, por-
que o voto no Brasil é obrigatório e não facultativo; em
segundo lugar, porque, se há um apelo por parte de
determinada autoridade, é porque o exercício da cida-
dania serve apenas para dar legitimidade aos eleitos,
garantindo o processo eleitoral e o próprio sistema. (FA-
BRIZ, 2006, p. 20s)
É uma situação lamentável a dos índios no Brasil, conside-
rando que a Justiça Brasileira é muito cara. Em época de eleições
é uma cidadania comprada a custo altíssimo. Ou vota e, para isso,
gasta-se o que não pode, ou não vota,e pagará o preço salgado da
multa. Basta imaginar que um cidadão índio residente numa das
aldeias do Kumenê19 gasta cerca de 6 horas de voadeira da aldeia
do Manga, ou doze horas de canoa, e depois, precisa vir até à
cidade no caminhão da Associação dos Povos Indígenas do Oiapo-
que (APIO), ou num veículo da FUNAI ou, ainda, caminhar a pé
numa distância de vinte e cinco quilômetros.
Ao Poder Judiciário compete não estar afastado de seu
jurisdicionado, pois tem a atribuição de servi-lo, como afirma o
Eminente Desembargador Mello Castro do Tribunal de Justiça
do Amapá, asseverando que “o Poder Judiciário somente existe
para servir ao jurisdicionado. Sem acesso pleno ou que venha a
ser limitado pelo poder econômico elitista, perde a razão de ser”
(CASTRO, 2009).
Como as comunidades indígenas são formadas de cida-
dãos brasileiros, que são também jurisdicionados, a elas deve
ser garantido o acesso pleno e ilimitado a uma ordem jurídica
justa. É preciso, pois, deselitizar a justiça.

Um direito humano fundamental negado


Quando o autor deste trabalho tomou posse na Promoto-
ria de Justiça da Comarca de Oiapoque (Em 6 de novembro de
1991), ainda nos primeiros dias, tratou de conhecer um pouco
da história das comunidades indígenas do município, já que, a
partir daquele ano, fora instalada a comarca da jurisdição esta-
dual20 e criada a Promotoria de Justiça21.
Nos primeiros encontros com as lideranças indígenas e
com a Administração local da FUNAI, na época sob a responsa-
bilidade de Jairo Bezerra, já havia o desejo de concretizar a cri-
ação de uma associação que fosse órgão de representação das
comunidades e que efetivamente pudesse agir em defesa dos
interesses daquele povo.
A ideia se concretizou com a criação da Associação dos
Povos Indígenas do Oiapoque (APIO), que teve seu estatuto de

73
fundação aprovado em assembleia geral realizada no mês de
março de 1992, exatamente na Aldeia do Manga, com a presen-
ça do autor, do Juiz de Direito da Comarca Adão Joel Gomes de
Carvalho, do Administrador da FUNAI Jairo Bezerra, e de lide-
ranças das 17 aldeias que existiam na reserva.
Mesmo com todas as dificuldades e lutas enfrentadas por
bravos índios, a associação tem exercido, com dignidade, suas
obrigações, sendo motivo de orgulho para todos os índios asso-
ciados, conforme manifestou o cacique Luciano dos Santos e os
demais membros da comunidade.
Esta associação luta hoje com uma questão que é de suma
importância para a comunidade. Reivindica a presença da Admi-
nistração Pública na área, nas aldeias, contando sempre com apoio
dos caciques. Luta por um direito humano fundamental de aces-
so a uma ordem jurídica justa, inclusive o acesso à justiça.
Numa retrospectiva da história dos índios, voltando ao
Brasil colônia, o indígena sempre foi brutalmente escravizado,
explorado, massacrado, chegando algumas tribos a serem lite-
ralmente dizimadas. Cada vez mais acuados pela ganância do
homem branco, não tiveram outra alternativa senão se refugia-
rem nas florestas, nos lugares mais longínquos, onde, infeliz-
mente, o ganancioso homem branco também chegou. Quantas
histórias sobre os índiosse ouviam nas escolas e nas famílias,
nos séculos passados, numa referência estigmatizada e precon-
ceituosa de “terríveis índios”, “temíveis índios”, “antropófagos”,
“verdadeiras feras”? Quantas historinhas do tipo “minha avó foi
pega no laço” ainda se ouvem? Os índios até foram classifica-
dos, até meados do século XIX, numa subdivisão entre bravos,
domésticos e mansos durante o colonialismo.
São falsas as apreensões criadas objetivando atender às
pretensões do capitalismo burguês, surgido com o estado libe-
ral, para justificar o esbulho possessório cometido brutalmente
pelos grandes latifundiários, pelos exploradores da madeira, do
ouro, da borracha, da cana de açúcar, em nome de um cresci-
mento econômico à custa de muitas vidas dos índios que brava-
mente lutaram por suas terras. Era imperioso que houvesse uma
adaptação da economia capitalista industrial com os interesses
da aristocracia política rural, bem como ao sistema econômico
internacional, em vias de se globalizar. Havia um ajuste entre a
necessidade de transformação dos meios de produção e as rela-
ções sociais que predominavam naquela fase.
Era a imposição de um poder estatal e de uma classe do-
minante, a classe dos burgueses, detentora dos meios de produ-
ção e que pretendia manter-se na hegemonia, sob o respaldo do

74
direito positivo, um verdadeiro instrumento de dominação, cons-
tituindo a expressão da vontade estatal e, logicamente, da clas-
se dominante que buscava, no ordenamento jurídico, uma for-
ma de adequação de seus interesses aos do próprio Estado, no
sentido de manter seus privilégios e de se manter no poder.
Aliás, nesse aspecto, Wolkmer afirma que “essa nova clas-
se que chegou ao poder pretende, com utilização do direito po-
sitivo, adequar seus direitos ou interesses a uma nova ordem
estatal protetora de seus interesses” (WOLKMER, 1997, p. 41).
Essa nova ordem estatal traspassa toda a modernidade, desde o
nascedouro, e tende a produzir efeitos concretos no Estado So-
cial. Entretanto, devido a heranças do fascismo e do nazismo, a
igualdade propalada é limitada pelo próprio regime imposto pelo
Estado Liberal, ou seja, a realidade demonstra que as desigual-
dades ainda constituem um dos grandes males que assolam a
humanidade, e, nessas desigualdades sociais, um segmento es-
quecido sempre foi o dos indígenas do mundo inteiro.
É bom lembrar aqui que, no ano de 1854, quando o presi-
dente norte-americano pretendia trocar uma grande área de
terras indígenas para a criação de uma reserva, o cacique Seat-
tle escreve-lhe uma longa carta e, num de seus trechos, assim
se manifesta:
Sabemos que o homem branco não compreende nossos
costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo
significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que
vem à noite e extrai da terra aquilo que necessita. A
terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a
conquista, prossegue seu caminho. Deixa para trás os
túmulos de seus filhos e não se importa com a sepultura
de seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra
aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepul-
tura de seu pai e os direitos de seus filhos são esqueci-
dos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão o céu, como
coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas
como carneiros ou enfeites coloridos. Seu apetite devo-
rará a terra, deixando somente um deserto. (SIRVINKAS,
2003, p. 13)
E também um índio brasileiro chamado Marçal de Souza,
da tribo Guarani, quando da visita de Sua Santidade, o Papa João
Paulo II, ao Brasil em 1980, entregou-lhe uma carta em que,
num de seus trechos, dizia:
A nossa voz é embargada por aqueles que se dizem diri-
gentes desse grande país. Santo Padre, nós depositamos
uma grande esperança na sua visita em nosso país. Leve
o nosso clamor, a nossa voz por outros territórios que
não são nossos, mas que o povo, uma população mais

75
humana, lute por nós, porque o nosso povo, a nossa na-
ção indígena está desaparecendo no Brasil. Este é o país
que nos foi tomado. Dizem que o Brasil foi descoberto, o
Brasil não foi descoberto não, Santo Padre, o Brasil foi
invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Esta é a ver-
dadeira história. Nunca foi contada a verdadeira histó-
ria do nosso povo, Santo Padre. Eu deixo aqui o meu
apelo”. (SPAREMBERGER; SANTOS, 2007, p. 91)
Este apelo feito ao Papa João Paulo Segundo não foi por
ele esquecido, que respondeu aos índios brasileiros manifestan-
do sua confiança nos poderes políticos deste país, na esperança
de que a dignidade e a liberdade de cada índio, como pessoa
humana e como povo, seriam respeitadas. O triste da história é
que o sonho de Marçal nunca será por ele vivido, pois, em 1983,
foi barbaramente assassinado.
O respeito, portanto, aos direitos dos índios é uma questão
de justiça substancial, um misto de justiça comum e justiça soci-
al. O próprio acesso à justiça é o acesso a uma ordem jurídica
justa, o acesso a todos os direitos humanos fundamentais, inclusi-
ve o acesso à própria justiça por meio do processo como direito.
Com muita propriedade Kazuo Watanabe nos ensina que:
Não obtém justiça substancial quem não consegue se-
quer o exame de suas pretensões pelo Poder Judiciário e
também quem recebe soluções atrasadas ou mal formu-
ladas para suas pretensões, ou soluções que não lhe me-
lhorem efetivamente a vida em relação ao bem preten-
dido. Todas as garantias integrantes da tutela constitu-
cional do processo convergem a essa promessa-síntese
que é a garantia do acesso à justiça assim compreendi-
do. (DINAMARCO, 2009)
Portanto, a efetividade do direito humano fundamental
de acesso a uma ordem jurídica justa passa primeiro pelo crivo
do acesso à justiça, que constitui um dos princípios contidos na
Carta Magna da nação brasileira. Os princípios são normas que
ordenam e que podem ser cumpridos em distintos graus, de-
pendendo de possibilidades reais e jurídicas, como aliás assegu-
ra Alexy:
o ponto decisivo para distinção entre regras e princípi-
os é que estes são mandados de otimização, isto é, são
normas que ordenam algo que deve ser realizado na
maior medida possível, dentro das possibilidades jurídi-
cas e reais existentes. Que podem ser cumpridos em dife-
rentes graus e que a medida devida de seu cumprimento
depende não somente das possibilidades reais mas tam-
bém das jurídicas. (ALEXY, 2008, p. 86)
A constituição, norma fundamental de uma nação, repre-
senta o congraçamento de um interesse geral, e por isso mesmo

76
deve assegurar a todos, sem distinção, como forma de elevar o
princípio da dignidade humana ao patamar de onde nunca de-
veria ter saído, a igualdade no acesso ao direito humano funda-
mental de uma ordem jurídica justa mediante todas as reais e
jurídicas possibilidades.
O sistema constitucional brasileiro fundamenta-se em dois
princípios que formam toda a sua base, toda a sua estrutura.
São os princípios do Estado Democrático de Direito e o da digni-
dade humana, conforme preceitua o art. 1º, caput e seu inciso
III. São princípios que reconhecem a dignidade como elemento
fundamental. Aliás, como bem acentua Rizatto Nunes:
os princípios estruturantes são aqueles que represen-
tam o arcabouço político fundamental constitutivo do
Estado e sobre os quais assentam todo o ordenamento
jurídico. São, pois, princípios desse tipo o Princípio De-
mocrático e o do Estado de Direito. Daí, claro, pela jun-
ção necessária que se faz, só se pode falar em Estado de
Direito Democrático. (NUNES, 2002, p. 40)
Este sistema constitucional estruturado há que encontrar
solidificado em uma constituição que represente dignamente
uma nação inteira, onde a isonomia ou igualdade entre as pes-
soas não supere o mais fundamental dos princípios que é o da
dignidade humana. Não se pode admitir que uma constituição
não seja a vontade do povo esboçada em um sentimento que seja
democraticamente o sustento do respeito às diferenças.
A vida em comunidade, o coletivo são características do
povo indígena. A igualdade entre as pessoas existe havendo uma
vivência fraterna como ideal, uma valoração da dignidade do
ser humano. Este é o direito que existe. No dizer de Paulo Bona-
vides, ao citar Kant “o direito é o conjunto de condições median-
te as quais a vontade de cada um pode coexistir com a vontade
dos demais, segundo uma lei geral de liberdade”. (BONAVIDES,
2004, p. 78)
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988,
em relação às constituições anteriores, trouxe uma das mais
preciosas inovações, porque as anteriores pautavam-se na inte-
gração como forma de proteção do ser humano, de seus valores
e de sua cultura e a atual Carta Magna pugna pela interação
como forma de respeitar os valores e as diferenças.
A vista disso, afirmam Sparemberger e Santos que:
Percebe-se que a Constituição Federal de 1988 inovou mui-
to em relação às outras Cartas Constitucionais brasileiras, em
especial porque abandonou o paradigma da integração, para
dar lugar ao paradigma da interação, que respeita a cultura, os

77
valores e as diferenças indígenas. (SPAREMBERGER; SANTOS,
2007, p. 134)
A proteção e o respeito aos valores, às tradições e à cultu-
ra indígenas não acontece se não for respeitado e protegido o
seu habitat, as suas terras, o seu ambiente, que tradicional e
originalmente lhes pertencem.
A Constituição da República estabelece que as terras indí-
genas, como bem da União (art. 20, XI), destinam-se exclusiva-
mente à posse permanente dos indígenas que a ocupam (§ 2º do
art. 231) e estão fora do comércio sendo inalienáveis e indisponí-
veis (§4º do art. 231) nem os índios as podem vender. É um direi-
to originário (art. 231 CF). Estas terras são aquelas em que os
índios habitam em caráter permanente; utilizam para suas ativi-
dades produtivas; imprescindíveis à preservação dos recursos
ambientais necessários ao bem-estar; e necessárias à reprodução
física e cultural destes, observados usos, costumes e tradições.
As terras indígenas, por lei, como visto, são afetas a fins
específicos de proteção jurídica, social, antropológica, econô-
mica e cultural dos indígenas.
Sem adentrar em argumentos mais pretensiosos, verifica-
se que esta é uma forma de mascarar uma realidade que existe,
pois é impossível aceitar que a Carta Maior, ao mesmo tempo
em que quer dizer que as terras são indígenas, retira-lhes o
direito pleno de utilização, de uso e gozo de todos os direitos,
inclusive o direito sagrado de propriedade.
A Carta Política, com a outorga dominial atribuída à União,
criou, para esta, uma propriedade vinculada ou reservada, que
se destina a garantir aos índios o exercício dos direitos que lhes
foram reconhecidos constitucionalmente (CF, art. 231, §§ 2º, 3º
e 7º), visando, desse modo, a proporcionar às comunidades in-
dígenas bem-estar e condições necessárias à sua reprodução
física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. Isso
justificaa disputa pela posse permanente e pela riqueza das ter-
ras tradicionalmente ocupadas pelos índios, o que é o núcleo
fundamental da questão indígena no Brasil.
O exemplo dessa disputa pelas terras, de um lado, o lati-
fundiário fazendeiro e, de outro, o índio que busca garantir seu
espaço para sobrevivência, é a luta travada na área indígena
Raposa do Sol22, uma área demarcada e já homologada, mas,
com um processo que se arrasta por alguns anos no Supremo
Tribunal Federal. Por interesses escusos, sempre que designa-
do o julgamento para a retirada dos invasores, algum ministro,
inexplicavelmente, pede vista do processo, parecendo não o co-
nhecer.

78
Discorrendo sobre o direito humano fundamental de aces-
so a uma ordem jurídica justa, sobretudo no direito de acesso à
justiça, é necessário lembrar que a efetividade deste direito na
reserva indígena do Uaçá, no Oiapoque, não ocorre como já dito
alhures, exatamente porque o Poder Judiciário, o Ministério
Público e a Defensoria Pública não realizam atividades dentro
das aldeias, tais como audiências, principalmente nos casos de
família, adolescentes e crianças, consumidor, etc, o que consti-
tui previsão legal inclusive.
O Tribunal de Justiça do Estado do Amapá, pensando numa
atuação prática, um serviço mais eficaz para o jurisdicionado,
uma plena jurisdição, por meio da Resolução nº 09 de 1995,
instituiu o Juizado Itinerante, inicialmente para atender a co-
marcas de Macapá, a capital do Estado e Santana, as duas mai-
ores cidades, visando as demandas originadas precipuamente
da lei nº 9.099/1995, denominada Lei dos Juizados Especiais.
Contudo, no decorrer das atividades que eram desenvolvi-
das pelo Juizado Itinerante, observou-se que o serviço, na práti-
ca, atuava em jurisdição plena, não só nos processos de compe-
tência dos Juizados Especiais previstos na Lei º 9.099/1995, mas
também em outros procedimentos de competência da Justiça
Comum e, por outros motivos que justificaram a edição de nova
norma, foi editada a Resolução nº 23 de 29 de junho de 2005,
que instituiu a Justiça Itinerante Estadual de 1º e 2º graus, defi-
nida com atividade jurisdicional de competência geral.
Esta norma prevê quea atividade do Tribunal de Justiça
do Estado e de todos os Juízos de 1º Grau em jornadas periódi-
cas fora das respectivas sedes centrais, em vilas, distritos ou
municípios distantes das sedes das comarcas, realizar-se-á por
meio da Justiça Itinerante Terrestre, usando veículos próprios
ou alugados, e da Justiça Itinerante Fluvial, usando embarca-
ções próprias ou alugadas.
No caso da Justiça Itinerante de 1º Grau, a mesma deve
ser feita com um Juiz, um Promotor de Justiça e um Defensor
Público a serem solicitados às suas instituições, além dos servi-
dores de pessoal de apoio necessários.
Especificamente em relação à Comarca de Oiapoque, a
previsão dos serviços está contida no art. 2º, § 3º da Resolução
nº23/2005, que dispõe: “Nas comarcas de Vara Única, os servi-
dores serão conduzidos pelo Juiz titular, que os coordenará, seu
substituto legal, ou por Juízes de Direitos Substitutos designa-
dos”. O art. 3º da mesma resolução preceitua que “As jornadas
da “Justiça Itinerante Estadual” poderão também, a critério do
Tribunal, contar com a participação de órgãos e entidades não

79
jurisdicionais, desde que destinadas ao exercício de atividades
públicas ou sociais de relevo”.
O Estado tem assim, pelo próprio Poder Judiciário, instru-
mentos que possam garantir o acesso à justiça, como direito
fundamental institucionalizado na Constituição da República, e
que incentivam os cidadãos a criar canais de participação e re-
presentação popular na defesa dos direitos humanos fundamen-
tais (KROHLING, 2006. p. 104).
Portanto, existe previsão legal de que o acesso a uma or-
dem jurídica justa, incluído aí um direito humano que é funda-
mental, o acesso à justiça, não está sendo cumprido pelos pode-
res constituídos e pelo Ministério Público. Esta informação foi-
nos repassada pelas lideranças indígenas quando estivemos nas
aldeias, principalmente pelo cacique Luciano dos Santos e mem-
bros de seu conselho, e, ainda, pela administração da Fundação
Nacional do Índio – FUNAI de Oiapoque.
É importante deixar aqui registrado que o cacique Lucia-
no dos Santos informa que o Promotor de Justiça Alexandre
Medeiros, atual titular da Promotoria de Justiça da Comarca de
Oiapoque, já esteve na aldeia e com ele conversou sobre os pro-
blemas ali existentes. Por isso, é imperioso aqui prestar uma
justa informação. A visita foi confirmada pelo membro do Mi-
nistério Público do Estado, o que demonstra seu compromisso e
preocupação com o resgate dos direitos, valores e culturas indí-
genas, e com o social, já que “de todas as profissões jurídicas, o
Ministério Público teve uma orientação marcadamente social
com a nova Carta Magna” (FRANCISCHETO, 2006, p. 124).

Direitos e deveres do indígena


No dia 6 de junho de 2007, no Seminário realizado pelo
Ministério da Justiça, visando à preparação para o Encontro
Nacional de Direitos Humanos ocorrido em Brasília, promovido
pelo Ministério da Justiça, o sociólogo Boaventura de Souza San-
tos pronuncia-se dizendo:
É vergonhoso o tratamento que se tem dado aos direitos
dos povos indígenas tanto pela Funai quanto pelo Judi-
ciário aqui no Brasil, lembrando-me dos processos que
se arrastam, principalmente do processo dos índios Pa-
taxós Hã-Hã-Hã que se arrasta por longos vinte anos na
Justiça Brasileira, sem contar com os inúmeros assassi-
natos de índios pelo Brasil afora. (SANTOS, 2009)
Na oportunidade apontou ainda a incapacidade e parcialida-
de do Judiciário no tratamento de direitos coletivos dos indígenas,
sobretudo quando fez menção a um Judiciário que se baseia em
doutrina que só reconhece a terra como propriedade individual.

80
Este segmento significativo da sociedade brasileira mere-
ce tanto dos governos das três esferas estatais, por meio de seus
órgãos mais afetos e da sociedade, um maior respeito e reco-
nhecimento de seus direitos.
São titulares de direitos humanos fundamentais, porque
estes direitos, segundo Herkenhoff, são modernamente enten-
didos, “aqueles direitos fundamentais que o homem possui pelo
fato de ser homem, por sua natureza humana, pela dignidade
que a ela é inerente” (HERKENHOFF, 1994, p. 30). No mesmo
entendimento, Maria Victoria Benevides conceitua direitos hu-
manos como sendo:
direitos comuns a todos os seres humanos, sem distinção
de raça, sexo, classe social, religião, etnia, cidadania
política ou julgamento moral. São aqueles que decorrem
do reconhecimento da dignidade intrínseca a todo ser
humano. Independem do reconhecimento formal dos
poderes públicos – por isso são considerados naturais ou
acima e antes da lei -, embora devam ser garantidos por
esses mesmos poderes. (BENEVIDES, 1994. p. 37)
O conceito de direitos humanos, construído paulatinamen-
te de acordo com as lutas e as conquistas travadas pela humani-
dade, adquiriu tamanha amplitude que hoje possui várias deno-
minações: direitos fundamentais, direitos do homem, direitos
da pessoa humana, direitos individuais, direitos naturais, direi-
tos públicos subjetivos, liberdades públicas, liberdades funda-
mentais. (LEITE, 2001, p. 27)
Numa perspectiva mais constitucionalista, Alexandre de
Moraes prefere a expressão direitos humanos fundamentais,
consoante ao princípio da dignidade do ser humano e concei-
tua-os dizendo que:
o conjunto institucionalizado de direitos e garantias do
ser humano que tem por finalidade básica o respeito a
sua dignidade, por meio de sua proteção contra o arbí-
trio do poder estatal e o estabelecimento de condições
mínimas de vida e desenvolvimento da personalidade
humana, são direitos humanos fundamentais. (MORA-
ES, 2002, p. 39)
Este princípio da dignidade da pessoa humana constitui o
princípio edificado pela Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos de 1948, originário da ideia da necessidade de que o
mundo seja mais fraterno ou solidário. Todos os seres humanos
nascem livres e iguais, em dignidade e direitos, e são dotados
de razão e consciência, devendo agir uns para com os outros em
espírito e fraternidade, conforme consta do artigo 1º desta de-
claração. Todas as constituições, após a Segunda Guerra Mundi-
al, são promulgadas sob o fundamento da dignidade humana,

81
colocando, assim, o ser humano em primeiro plano como fez a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Como já mencionado, o desenvolvimento dos povos nati-
vos não se deu de acordo com suas próprias culturas, tradições
e métodos de organização, pelo simples fato do relacionamento
forçoso de culturas e da fusão de matrizes raciais e tradições
culturais distintas. Isso a história mostra, em primeira mão, com
os índios sendo explorados como mão de obra, verdadeiramente
escravizados, e, depois, os negros trazidos da África, outro seg-
mento a quem a sociedade deve muito.
A maior resistência dos indígenas era em face da consti-
tuição base e sólida da família, das tribos, onde as relações pes-
soais sempre foram muito fortes. Por isso, para serem conquis-
tados, foi preciso ignorar todas essas relações pessoais, destruir
a organização social e transformar os indivíduos em sujeitos de
direitos, capazes de vender a sua força de trabalho.
Seja colônia, império ou república, a sociedade convive com
um sistema que se baseia somente em interesses econômicos,
razão pela qual a história dos índios no Brasil é a história de um
povo colonizado, marcada pelo genocídio, pelo escravismo, pela
usurpação de suas terras, de seus produtos, enfim, de seus direi-
tos, tradições e culturas. Foi implantada aqui no Brasil, desde o
descobrimento, a cultura própria do eurocentrismo que se carac-
teriza pela subsunção e incorporação do outro à totalidade como
objeto, e surge, então, uma sociedade civil como nação soberana,
mas instaurada por uma estrutura herdada de Portugal, funda-
mentalmente semifeudal, patrimonialista e burocrática.
Hoje, no Brasil, os índios ainda estão sujeitos à lei nº 6001
de 1973, denominada “Estatuto do Índio”, que define o índio
como sendo “o indivíduo de origem e ascendência pré-colombi-
ana que se identifica e é identificado como pertencente a um
grupo étnico cujas características culturais o distinguem da
sociedade nacional”.
Também denominado silvícola pela legislação brasileira,
o índio é relativamente incapaz, porque o Código Civil remete a
disciplina ao Estatuto do Índio, colocando-o, e bem assim a sua
comunidade, sob o regime tutelar enquanto não integrado à
sociedade, admitindo, em certas hipóteses que são objetos de
inúmeras discussões, a sua emancipação.
Tem direito de votar e ser votado, exercendo esse direito
de cidadania, como já citado anteriormente, inclusive sendo o
voto uma obrigatoriedade. Para esse seu dever, há que ser alfa-
betizado em língua portuguesa, podendo, contudo, viver segun-
do seus usos, tradições e costumes. O estudo da língua portu-

82
guesa é obrigatório por ser a língua oficial do Brasil (não se tem
língua oficial em unidades da federação) admitindo-se, no en-
tanto, conviver com as línguas indígenas. Admite-se a língua
materna para todos fins, inclusive em processo, sem se tornar
oficial em um município, pois também não há língua oficial em
município.
O cidadão índio tem obrigatoriedade de identificar-se ci-
vilmente. A lei, entretanto, permite a identidade étnica. Para
isso, pode haver um registro na comunidade onde nasceu como
identificação étnica.
A comercialização de seus produtos, retirados da terra, é
feita em benefício e em nome da comunidade. Podem vender os
frutos da terra, mas a terra não pode ser vendida.
Esses cidadãos podem ter bens individuais, ter dinheiro,
mas não podem lucrar com bens da comunidade. Nada impede
a realização de negócios comerciais, como compra e venda.
É seu dever pagar impostos só em caso de venda de pro-
dutos para consumidores externos, fora do mundo indígena. Mas,
internamente, nas relações comerciais entre os povos indíge-
nas, mesmo de outras áreas no território brasileiro, não há inci-
dência de impostos.
Como realizam a comercialização de produtos artesanais,
e considerando que a lei nº 9.610 de 1968 que trata de direitos
autorais não os regula coletivamente, isso é feito por meio de
ato de entes que representem os índios, como as associações, o
Museu do Índio, o Museu de Arte Nacional, o Instituto do Patri-
mônio Histórico, que podem reconhecer determinada obra como
sendo um produto coletivo.
O direito à imagem, como de todo cidadão brasileiro, deve
ser respeitado, uma vez que a lei fala sobre a imagem da pessoa.
O índio sempre teve explorada a sua imagem, como se vê em
propagandas sobre o Brasil, especialmente em aeroportos do
mundo afora. Podem ceder suas imagens, desde que respeita-
das os usos, tradições e costumes das tribos e dos povos indíge-
nas em geral.
O que mais é polêmico entre os índios, antropólogos, ju-
ristas, instituições públicas, ambientalistas e organizações não
governamentais é a exploração da madeira, o que gera invasão
de estranhos, degradação ambiental e impacto cultural. Para
essa atividade, o regulamento é feito pelo Programa de Política
e Direito Socioambiental/ISA.
A exploração, prevista no art. 30 da Lei nº 4.771/65, só
pode ser feita pelas próprias comunidades indígenas e também

83
estão sujeitas aos licenciamentos, conforme Medida Provisória
1965/2000, que acrescentou o art. 30–A, que assim dispõe: “A
exploração dos Recursos Florestais em terras indígenas somen-
te poderá ser realizada pelas comunidades indígenas em regi-
me de manejo florestal sustentável, para atender a sua subsis-
tência, respeitados os artigos 2º e 3º deste código”.
Os recursos minerais, as riquezas naturais e as utilidades
existentes nas terras ocupadas, bem como o produto da explo-
ração econômica das riquezas e utilidades, pelo art. 24 do Esta-
tuto dos Índios, constituem direito, posse e percepção dos índi-
os. Contudo, sobre a exploração mineral, há o Projeto 2057/91,
proposto por Aloísio Mercadante e Fabio Feldman, mas até hoje
não votado. Tal projeto foi elaborado pelo Núcleo de Direitos
Indígenas (NDI) que propõe a criação do Estatuto das Socieda-
des Indígenas.
É garantida a proteção do patrimônio genético dos indí-
genas, conforme consta da Convenção de Diversidade Biológica
da ECO 9223, que propõe conservação da biodiversidade, seu uso
sustentável e repartição dos benefícios. Para os índios, estão
garantidos direitos especiais de acordo com os conhecimentos
originados dos usos, costumes e tradições.
Por fim, cumpre ainda dizer que a lei penal, de qualquer
forma, discrimina o indígena a partir do momento em que o
trata como cidadão de pouca ou quase nenhuma capacidade
mental, a exemplo do que dispõe o art. 26 do Código Penal.
Sempre que um índio comete um crime, fica sujeito à perícia
antropológica a ser examinada pelo Juiz, levando-se em conta
seus usos, costumes e tradições, sem admitir atentados contra a
dignidade humana, tais como a vida, a liberdade sexual etc.

Considerações finais
A pesquisa feita na reserva indígena do Uaçá, município
de Oiapoque, Estado do Amapá, objetivou mostrar a realidade
dos indígenas quanto à efetividade dos direitos de cidadania, de
modo especial do acesso a uma ordem jurídica justa, com ênfa-
se quanto ao acesso à Justiça.
Constatou-se que os direitos humanos fundamentais aos
índios que integram a comunidade não são efetivados, dentre
eles podem se citar o direito à saúde e ao acesso à justiça por
meio dos serviços que o Estado possui.
Vivem da agricultura, sobressaindo o plantio da mandio-
ca, do extrativismo do açaí, da castanha, pupunha e outros fru-
tos, da caça e da pesca, de onde tiram o sustento de toda a
comunidade. O que chama a atenção é que tudo o que comerci-

84
alizam reverte-se em benefício para a própria comunidade, hoje
um exemplo de vivência democrática participativa. Valem-se
sempre da Associação dos Povos Indígenas do Oiapoque (APIO)
que os representa no comércio dos produtos.
Organizam-se democraticamente dentro da reserva; tra-
ta-se de uma democracia construída com a ideia central de vi-
vência fraterna. O cacique e os membros de seu conselho nada
recebem pelo trabalho que prestam; não há conflitos internos
sobre qualquer questão, inclsive propriedade. As normas inter-
nas baseiam-se no respeito. Assim é a vida política dos índios, o
que os distancia da realidade do homem branco. Hoje, nas soci-
edades contemporâneas onde as diferenças aumentam, são di-
ferentes excluídos no complexo hegemônico que buscam, por
meio dos movimentos sociais, afirmarem-se como sujeitos a se-
rem reconhecidos.
No dizer de Mutzenberg:
No complexo jogo hegemônico das sociedades contempo-
râneas, onde há um aumento de diferenças com exclu-
são de elementos discursivos efetivada por uma cadeia
de equivalência hegemônica, a composição de outras
vontades coletivas poderia ser pensada como criação de
uma cadeia de equivalência entre as diferenças. (MUT-
ZENBERG, 2008, p. 141)
A vida em sociedade indígena é um exemplo a ser segui-
do, pois, ainda que discriminados, mantêm-se unidos em defesa
de seus direitos. Contudo, a cidadania fundada no reconheci-
mento de que os diferentes também são iguais, respeitadas as
culturas de cada povo indígena deste país, deverá chegar a um
estágio em que os direitos serão respeitados e a dignidade deste
povo será elevada ao mais alto cume da valorização e existência
do ser humano.
Como diz o poeta Thiago de Melo, morador de Barreiri-
nhas, no Amazonas, um amazônida que conhece bem a floresta
e os irmãos indígenas:. “Minha preocupação não é só em rela-
ção à floresta, mas também em relação à existência do ser hu-
mano”.

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86
Notas
*
Promotor de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado do
Amapá. Professor de Direito Penal da Universidade Federal do Ama-
pá – UNIFAP. Professor da Universidade de Vila Velha – UVV. Mestre
em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de
Vitória – FDV. Especialista em Avaliação e Aprendizagem pela Uni-
versidade de Brasília – UNB. Especialista em Direito Penal Econômi-
co pela Universidade de Salerno, Itália. Coautor do livro “Justiça e
Libertação – a dialética dos direitos fundamentais”, CRV Editora.
1
Espécie de embarcação que possui motor de popa em geral com 25
kva.
2
Espécie de embarcação que, por alguns, é chamada de “casquinho”,
feita de madeira e movida a remo.
3
É suco da mandioca que se rala para fazer a farinha. Não se pode
tomar de imediato, pois é venenoso. Fica alguns dias cozinhando até
ser usado com pimenta, e também usado em pratos da culinária ama-
paense e paraense como o “pato no tucupi”, usando-se também com
caças.
4
Um tipo de fogão a lenha no qual há uma espécie de tabuleiro ou
uma grande frigideira onde a farinha é torrada.
5
Espécies de tartaruga de pequeno porte.
6
Espécie de lagarto.
7
Também chamado e conhecido no sul como porco do mato.
8
Um dialeto indígena originado da mistura de línguas indígenas
Galibi e Palikur com o português e o francês. É falado pelos índios do
lado do Brasil e do lado francês, na Guiana Francesa.
9
Línguas indígenas faladas na reserva do Uaçá.
10
Espíritos que somente são vistos pelos pajés e que prestam o bem ao
povo. Sempre aparecem ao pajé em forma humana e dotados de gran-
de beleza.
11
Uma espécie de cachaça de mandioca com alto grau de teor alcoó-
lico.
12
Professor de Filosofia do Direito do Curso de Mestrado da Faculda-
de de Direito de Vitória (FDV) que, juntamente com a Professora Gil-
silene Passon, coordena o Núcleo Temático “Ética, Sociedade e Direi-
tos Humanos”, grupo de pesquisa registrado no CNPq, vinculado ao
curso de graduação e pós-graduação strictu sensu em direito da Fa-
culdade de Direito de Vitória-FDV.
13
Designação utilizada pelos índios a uma pessoa sem formação pro-
fissional, mas que exerce a função de enfermeiro.
14
Um tipo de pernilongo encontrado na região norte, sobretudo nos
estados do Amapá e do Pará. O transmissor da malária é somente a
fêmea (anofelina).
15
Grupos formados por homens e mulheres que compartilham entre si
as experiências para tratamento do alcoolismo, considerado doença
incurável, progressiva e hereditária. A Organização Mundial de Saú-

87
de considera o alcoolismo uma doença. Esses grupos foram fundados
em Akron, USA em 1935.
16
Um dos mais respeitados caciques da Aldeia Manga, já falecido.
17
Produtos naturais extraídos de uma espécie de palmeira, utilizados
em cicatrizações de feridas, cura de lesões internas e externas, e
outros males do corpo.
18
O termo “biopirataria foi lançado em 1993 pela ONG RAFI (hoje
ETC-Group) para alertar sobre o fato que recursos biológicos e conhe-
cimento indígena estavam sendo apanhados e patenteados por em-
presas multinacionais e instituições cientificas e que as comunidades
que, durante séculos, usam estes recursos e geraram estes conheci-
mentos não estão participando nos lucros”. De modo geral, biopirata-
ria significa a apropriação de conhecimento e de recursos genéticos
de comunidades de agricultores e comunidades indígenas por indiví-
duos ou por instituições que procuram o controle exclusivo do mono-
pólio sobre estes recursos e conhecimentos.
19
Região distante da aldeia do Manga, após o delta do rio Oiapoque.
20
Criada pelo Decreto 069/1991, Titulo II, art. 4º, VII do Estado do
Amapá.
21
Criada pelo Decreto 076 de 24 de maio de1991 – Lei Orgânica do
Ministério Público do Estado do Amapá. Foi revogado pela Lei Com-
plementar nº 09 de 28 de dezembro de 1994.
22
Uma área de 1.744.000 hectares onde vivem mais de quinze mil
índios de diferentes etnias no Estado de Roraima. Esta área já foi
demarcada e homologada em 2001, sendo hoje de disputa com fazen-
deiros que cultivam arroz.
23
Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desen-
volvimento Sustentável que ocorreu no Rio de Janeiro em 1992 e foi
denominada assim, reafirmou os princípios da Declaração de Estocol-
mo de 1972.

88
Derechos humanos de los pueblos indígenas y los
acuerdos de San Andrés
Alejandro Rosillo Martínez*

Introducción
Como consecuencia del alzamiento del Ejército Zapatista
de Liberación Nacional (EZLN) en enero de 1994, el gobierno
mexicano promulgó la Ley para el Diálogo, la Conciliación y la
Paz Digna en Chiapas, el 11 de marzo de 1995. Con fundamen-
to en esta ley, se desarrollaron las mesas de diálogo de San
Andrés Sacamch’en entre el EZLN y el Gobierno Federal, las
cuales fueron interrumpidas. Sin embargo, la primera mesa,
sobre Derechos y Cultura Indígena, fue concluida y produjo
varios documentos suscritos el 16 de febrero de 1996. Estos
documentos, en su conjunto, se suelen conocer como “Los
Acuerdos de San Andrés”. El objetivo de estas páginas es re-
flexionar sobre este documento que es una fuente de derecho
para la defensa de los derechos humanos de los pueblos indíge-
nas. Previamente, se explicará cuál es la estructura de los Acuer-
dos.
En primer lugar, un informe por medio del cual las par-
tes comunican conjuntamente que han concluido las negocia-
ciones en materia de derecho y cultura indígena, y señalan el
acuerdo a que han llegado sobre diversos documentos y accio-
nes que llevaron a cabo. El segundo documento se denomina
Acuerdo y en él se manifiesta la aceptación de tres documentos
por las partes: un Pronunciamiento, unas Propuestas y unos
Compromisos. Veamos los aspectos más importantes de estos
documentos.
El primer documento es el Pronunciamiento conjunto que
el Gobierno Federal y el EZLN enviarán a las instancias de de-
bate y decisión nacional. Su primera parte se denomina “Con-
texto de la nueva relación”; en la misma se reconoce “a los pue-
blos indígenas como nuevos sujetos de derecho”, basándose en
su origen histórico, en sus demandas, en la naturaleza pluricul-
tural de la nación mexicana y en lo establecido por el Convenio
169 de la Organización Internacional del Trabajo (OIT). La se-
gunda parte de este documento se titula “Compromisos del
Gobierno Federal con los Pueblos Indígenas”, y comienza di-
ciendo que “Las responsabilidades que el Gobierno federal asu-
me como compromisos que el Estado Mexicano debe cumplir
con los pueblos indígenas en su nueva relación son…”, y a conti-
nuación enuncia y establece el claro contenido de esas obliga-
ciones gubernamentales. Son en número de ocho y están consti-
tuidas del tenor siguiente: 1. Reconocer a los pueblos indígenas
en la Constitución General; 2. Ampliar participación y repre-
sentación políticas; 3. Garantizar acceso pleno a la justicia; 4.
Promover las manifestaciones culturales de los pueblos indíge-
nas; 5. Asegurar educación y capacitación; 6. Garantizar la sa-
tisfacción de necesidades básicas; 7. Impulsar la producción y
el empleo; y 8. Proteger a los indígenas migrantes. La tercera
parte trata de los “Principios de la nueva Relación”, en donde el
Gobierno Federal hace el compromiso de asumir y acatar los
Principios que deben normar la acción del Estado en su nueva
relación con los pueblos indígenas. Estos Principios son: Plura-
lismo, sustentabilidad, integridad, participación y libre deter-
minación. La cuarta parte se refiere al “nuevo marco jurídico”,
que se hace necesario por el establecimiento de la nueva rela-
ción entre los pueblos indígenas y el Estado que debe implicar a
la Federación (ámbito nacional) y a las entidades federativas;
por lo que el Gobierno Federal se compromete a diversas accio-
nes. Por último, el documento de Compromisos termina con una
Conclusión, en la que se establecen las bases para el funciona-
miento de una nueva relación entre el estado mexicano y los
pueblos indígenas.
El documento titulado Propuestas conjuntas que el Go-
bierno Federal y el EZLN se comprometen a enviar a las instan-
cias de debate y decisión nacional, correspondientes al Punto
1.4 de las reglas de procedimiento, recoge del Pronunciamiento
sobre todo los Compromisos del Gobierno Federal y se estable-
cen como Propuestas conjuntas de las partes. Aquí encontra-
mos la gran parte sustantiva de los Acuerdos de San Andrés.

Derechos humanos y pluralismo jurídico


Si comprendemos derechos humanos como la construc-
ción de instrumentos jurídicos para la satisfacción de necesida-
des, que provienen de procesos donde la lucha social es un ele-
mento indispensable, y no sólo como categorías jurídicas gene-
radas por la racionalidad de las instituciones políticas –naciona-
les o internacionales– e inspiradas en ciertas categorías supues-
tamente abstractas y universales del “ser humano”, entonces a
los “Acuerdos de San Andrés” (Acuerdos) se les puede dar una
lectura como fuente de derechos humanos. Una postura desde

90
el pluralismo jurídico permite analizar los procesos sociales y
las normatividades realmente aplicables, comprendiendo que
la emergencia de nuevos sujetos y movimientos sociales pueden
ser generadores de “derecho” y “derechos”.
El pluralismo jurídico es un tema abordado actualmente
por diversas disciplinas jurídicas y no-jurídicas. Éste significa, a
grandes rasgos, la existencia tanto en un mismo territorio como
en un mismo tiempo de diversos sistemas jurídicos. Ha adquiri-
do gran importancia porque significa una ruptura con el mode-
lo clásico de Estado moderno y del monismo jurídico defendido,
principalmente, por las corrientes iuspositivistas. Una ruptura
que no parte de meras reflexiones abstractas, sino que surge de
la lucha de grupos humanos que toman conciencia de sus dere-
chos y reivindican un sistema jurídico diferente y, en ocasiones,
opuesto al orden jurídico estatal y dominante.
Un elemento destacado del pluralismo jurídico es el rela-
tivo a la generación del derecho. Mientras el monismo jurídico
sostiene que sólo el Estado crea normas jurídicas, para las pos-
turas pluralistas existen otras maneras de creación del dere-
cho. Para las corrientes positivistas más conservadoras, toda
normatividad ajena a la voluntad sancionadora del Estado se le
debe considerar como “costumbre”; pero, por su parte, el plu-
ralismo jurídico ve en algunas de estas “costumbres” auténticas
conductas que expresan una normatividad jurídica y toda una
concepción de la juridicidad: “Las clases subalternas van elabo-
rando, por medio de la costumbre, su propio derecho. Sin em-
bargo, el Estado en su afán de afirmarse lucha en contra de esa
costumbre jurídica que se va gestando en el propio pueblo, y el
jurista al servicio de la clase dominante califica esa costumbre
como conductas “jurídicamente indiferentes’” (DE LA TORRE
RANGEL, 1997, p. 95).
Se puede dar, entonces, una lucha entre la juridicidad
oficial y la juridicidad popular. Esta última estará basada en la
experiencia del pueblo de sus derechos, y de una concepción de
justicia que va mucho más allá de la juridicidad vigente. Es en-
tonces cuando el derecho generado desde el pueblo puede cons-
tituirse en un derecho insurgente que, por un lado, formule una
crítica al derecho establecido, vigente e institucional y, además,
exprese la exigencia de una reformulación y de una nueva com-
prensión del derecho.
En este sentido, el objetivo de este artículo no es entrar a
la controversia de si los Acuerdos son compatibles o no con los
“derechos humanos”; en otras palabras, si desde el juicio de
Occidente los pueblos indígenas involucrados reclaman lo co-

91
rrecto y lo compatible con la perspectiva mundial al respecto.
Más bien, se pretende comprender a los Acuerdos como una
fuente de derechos humanos, y desde ellos ver su estado de
reconocimiento en el marco jurídico nacional y mostrar los ins-
trumentos internacionales que son compatibles para hacer un
uso estratégico de los mismos.
Es importante señalar que partimos de una concepción
compleja de derechos humanos, comprendiendo todas las di-
mensiones de la realidad que confluyen en éstos. Por eso, consi-
deramos pertinente citar dos definiciones desde esta perspecti-
va. En primer lugar, Joaquín Herrera da en un primer momento
una definición abreviada: los derechos humanos “supondrían la
institución o puesta en marcha de procesos de lucha por la dig-
nidad” (HERRERA FLORES, 2005, p. 246). En seguida, los defi-
ne desde un plano político como “los resultados de los procesos
de lucha antagonista que se han dado contra la expansión mate-
rial y la generalización ideológica del sistema de relaciones im-
puesto por los procesos de acumulación del capital” (HERRERA
FLORES, 2005, p. 246). Por último, lo hace en un sentido social,
como “el resultado de luchas sociales y colectivas que tienden a
la construcción de espacios sociales, económicos, políticos y ju-
rídicos que permitan el empoderamiento de todos y todas para
poder luchar plural y diferenciadamente por una vida digna de
ser vivida” (HERRERA FLORES, 2005, p. 247). Por su parte,
Antonio Salamanca los define como “la formulación jurídica de
la obligación que tiene la comunidad de satisfacer las necesida-
des materiales del pueblo para producir y reproducir su vida”
(SALAMANCA, 2006, p. 26).
A partir de esta concepción compleja de derechos huma-
nos es cómo consideramos que los Acuerdos, más allá de ser
compatibles o no con los derechos, son un instrumento que ex-
presa los procesos de lucha por satisfacer las necesidades mate-
riales para la vida. Cabe señalar que por razones de espacio
haremos mención sólo a una parte de los derechos contenidos
en los Acuerdos.

Derecho a la igualdad
Los Acuerdos proponen la construcción de una nueva re-
lación entre los pueblos indígenas, la sociedad y el Estado, que
requiere una nueva política que conlleve a una profunda refor-
ma del Estado, la cual debe contener como características: a)
La participación de los pueblos indígenas en la toma de decisio-
nes que afecten sus vidas, y que reafirme su condición de mexi-
canos en pleno uso de derechos; b) el concurso de la sociedad
para desterrar mentalidades y comportamientos discriminato-

92
rios; y c) el desarrollo de una cultura de pluralidad y tolerancia.
Estas características, con las que empieza el Documento 1 de
los Acuerdos, son fundamentales para comprender el sentido
de la lucha actual de los pueblos indígenas. A diferencia de otras
épocas, donde la tenencia de la tierra era la base de la demanda
indígena, ahora se exige en lo fundamental que el Estado y la
sociedad los reconozca como indígenas, “reconocimiento” que
se concretiza en diversas facetas. Esto es el fundamento del de-
recho a la igualdad que exigen los pueblos indígenas.
En la construcción de la nueva relación un concepto clave
es la tolerancia y la erradicación de la discriminación. Los pue-
blos indígenas han sufrido diversas formas de discriminación,
sobre todo fundamentadas en una comprensión “evolucionista”
de la historia: los pueblos europeos son la punta de lanza del
desarrollo de la humanidad, y las demás culturas son expresión
de etapas anteriores, atrasadas, que deben enfilar sus esfuerzos
para llegar a integrarse a la “civilización”.
La tolerancia es un concepto generado dentro de la tradi-
ción liberal de Occidente, cuyos orígenes se encuentran en los
conflictos religiosos de los inicios de la modernidad europea. A
través del discurso de la “tolerancia” se buscó terminar con las
luchas entre las diferentes confesiones cristianas, aunque se
excluía a otras religiones y, por lo tanto, no fue un concepto que
concibiera la pluralidad cultural. Más bien, fue un discurso fun-
cional a los intereses de la burguesía que necesitaba de estabi-
lidad y orden para el desarrollo del naciente capitalismo. Con el
tiempo, este discurso ha ido modificándose y, con el surgimien-
to del concepto “multiculturalismo”, las filosofías políticas de
los países centrales lo han recuperado como una virtud pública
necesaria para el desarrollo de la democracia y buscando que el
Estado sea capaz de gestionar la “convivencia” entre las diferen-
tes culturas. No obstante, este uso de la “tolerancia” fácilmente
se vuelve abstracto, y se utiliza de manera descontextualizada,
pasando por alto la historia de cada región y las relaciones so-
ciales impuestas por la actual etapa del capitalismo. De ahí que
la idea de “tolerancia” tenga, primariamente, un sentido nega-
tivo. Tolerar significaría soportar y permitir un sistema de creen-
cias que no es compatible con el nuestro; en este sentido, quien
“tolera” restringe sus creencias. Pero, por otro lado, la toleran-
cia tiene una faceta positiva; ésta no se basa en la restricción
que se autoimpone el tolerante, sino en el esfuerzo de recono-
cer las diferencias, aceptar y comprender al otro.
Los Acuerdos comprenden la tolerancia en su faceta posi-
tiva, pero no la reducen sólo al ámbito de las creencias e ideolo-
gías, sino a todos los ámbitos de la vida. No se trata de un con-

93
cepto de “tolerancia” en abstracto, sino desde unas circunstan-
cias históricas concretas. Este llamado supone que quienes de-
ben comprometerse a ser tolerantes es porque han tenido histó-
ricamente la capacidad y el poder de impedir que los otros ten-
gan acceso a los bienes para la satisfacción de sus necesidades
y el cumplimiento de sus derechos. De ahí que “tolerancia” no
significa tan sólo una virtud individual de soportar o de com-
prender al “otro”, sino un fundamento para edificar una socie-
dad plural que supere las estructuras opresoras y excluyentes.
La tolerancia no es, entonces, la “llave mágica” para eliminar
todo tipo de conflictos sociales, sino tan sólo un primer paso en
el acceso de los pueblos indígenas al espacio público, donde
ellos sean los responsables en la toma de las decisiones que in-
fluyen en su vida.
En estrecha relación con la tolerancia, encontramos la de-
manda de erradicar las prácticas discriminatorias. Se trata de un
problema político, social y económico que tiene importantes re-
percusiones en el ámbito jurídico, pues ha obligado a superar las
posiciones liberales de la “igualdad formal” ante la ley. El princi-
pio jurídico de “igualdad” significa básicamente que los órganos
encargados de aplicar el derecho no deben hacer ninguna dife-
rencia que el derecho a aplicar no establezca. Este principio ha
llegado a desplegarse en dos dimensiones (Pérez Portilla, 2005,
pp. 47-108): a) Igualdad en la aplicación de la ley: Las autorida-
des encargadas de aplicarla deben hacerlo sin excepciones y sin
consideraciones personales; se trata de una obligación que afec-
ta a los poderes ejecutivos y judiciales. b) Igualdad en el conteni-
do de la ley: Significa que el Poder Legislativo debe respetar la
igualdad a través del contenido de la norma, y sólo podrá estable-
cer diferencias que sean razonables para alcanzar la igualdad en
los hechos. Ambas dimensiones tienen relación con la discrimi-
nación. En términos generales podríamos decir que la discrimi-
nación es un acto violatorio de la igualdad; pero no se trata de
cualquier trato desigual, sino de aquel que se basa en un criterio
no razonable, prejuicioso y estigmatizador.
La primera faceta del principio de igualdad busca que
todas las personas, estando en situación semejante, tengan los
mismos derechos y se les aplique de la misma forma la ley. Este
trato igualitario ante la ley es una demanda de los pueblos in-
dígenas, pues durante años se les han negado los derechos que
como mexicanos tienen. Pero se trata de una “igualdad formal”
que conduce a negar la identidad de los indígenas como tales,
al grado de “decretar la desaparición del indio por ley”. Ade-
más, la igualdad formal no se identifica con la “igualdad sustan-
cial”, es decir, con la igualdad real y material. Para eso es nece-

94
sario que el derecho trate, con justicia, igual a los iguales y
desigual a los desiguales, y es cuando es permisible que el legis-
lador establezca diferencias normativas a favor de quienes, en
los hechos, se encuentran en situaciones de desigualdad. Por
otro lado, la segunda faceta del principio de igualdad tiene es-
trecha relación con las demandas de los Acuerdos, pues se exi-
ge la creación de un nuevo marco jurídico que supere la mera
igualdad formal y que, a través de reconocer los derechos indí-
genas específicos, se logre la igualdad real, entendida ésta como
un acceso a los bienes para la satisfacción de las necesidades
que posibilite el desarrollo de los pueblos indígenas desde su
propia identidad y voluntad.
Uno de los compromisos de los Acuerdos respecto al con-
tenido de la reforma constitucional consiste en establecer la
cláusula de no discriminación por “origen racial o étnico, len-
gua, sexo, creencia o condición social”. Esta exigencia, como
otras realizadas en los Acuerdos, rebasa el tema de los derechos
indígenas propiamente dichos y tiene que ver con la construc-
ción en general de una sociedad más justa. Es una muestra de
cómo los movimientos indígenas confluyen con demandas de
otros sectores marginados de la sociedad. La división que la
doctrina ha realizado sobre este concepto consiste en: a) Discri-
minación directa: Se trata de aquellos actos que rompen con la
igualdad de trato, sobre la base de diferenciaciones no razona-
bles, prejuiciosas o estigmatizadoras del grupo o sector afecta-
do. A través de ella se violenta de manera formal los mandatos
legales de no-discriminar, pues se basa en alguna de las dife-
renciaciones prohibidas legalmente. b) Discriminación indirec-
ta: Se da cuando las disposiciones que formalmente no son dis-
criminatorias –normalmente basadas en la igualdad formal– tie-
nen como efectos el rompimiento de la igualdad sustancial o la
promoción y el mantenimiento de las condiciones reales de des-
igualdad. El reconocimiento de los derechos indígenas, muy al
contrario de tratarse de fueros infractores del principio de igual-
dad, busca superar la discriminación tanto en su faceta directa
como en la indirecta. Podemos señalar que los derechos de la
libre determinación buscan superar la indiscriminación indi-
recta que han sufrido los pueblos indígenas al aplicárseles un
derecho y una organización política ajenos a su voluntad y su
identidad, y que desconoce la situación histórica y real de opre-
sión. Pero la lucha indígena también ha ido encaminada a lu-
char contra la discriminación directa, exigiendo la constitucio-
nalización de la no-discriminación.
Un elemento fundamental para establecer la cláusula de
no-discriminación son los criterios que se consideran irraciona-

95
les, odiosos y prejuiciosos, y que suelen estar fundados en la
idea de que las características propias de un colectivo o un sec-
tor social lo hacen inferior y, por lo tanto, merecedor de un
trato desigual. Un segundo elemento consiste en valorar las con-
secuencias que acarrea dicha diferenciación, es decir, en el re-
sultado de la acción de diferenciar.
La reforma constitucional de agosto de 2001 incluyó la
prohibición de no-discriminación en el párrafo tercero del artí-
culo 1°. Es una disposición que no sólo protege a los indígenas
sino a todas las personas que se encuentran en alguna de las
situaciones consideradas como prohibidas para hacer diferen-
cias. Entre sus limitaciones está que no se considera el tema de
la “lengua” como lo establecen los Acuerdos. Sin embargo, exis-
ten diversos instrumentos internacionales al respecto, que pue-
den ampliar y mejorar los alcances de esta disposición constitu-
cional. Algunos de estos son: el artículo 2° de la Declaración
Universal de los Derechos Humanos (1948); el artículo 2.2 del
Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Cultu-
rales (1966); los artículos 2.1 y 26 del Pacto Internacional de
Derechos Civiles y Políticos (1966); el artículo 1.1 de la Conven-
ción Americana sobre Derechos Humanos (1969); el artículo 1.1
de la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas
las formas de Discriminación racial (1965); el artículo 2° de la
Convención de los Derechos del Niño (1989). Por otro lado, en
el ámbito federal mexicano, se encuentra vigente la Ley Federal
para Prevenir y Eliminar la Discriminación (LFPED) que en su
artículo 1°, fracción III define la discriminación; a diferencia
del precepto constitucional, la ley amplía el catálogo de crite-
rios prohibidos, y en relación a los pueblos indígenas, destaca el
punto de la “lengua”, cuya enumeración estaba contemplada en
los Acuerdos y además se reafirma el criterio del origen étnico.
El artículo 5 de la LFPED establece que el Estado puede
actuar de manera diferente con una persona frente a otra sin
que se considere un acto de discriminación: “No se considera-
rán discriminatorias las acciones afirmativas que tengan por
efecto promover la igualdad real de oportunidades de las perso-
nas o grupos. Tampoco será juzgada como discriminatoria la
distinción basada en criterios razonables, proporcionales y ob-
jetivos cuya finalidad no sea el menoscabo de derechos”.
Como hemos señalado, la discriminación indirecta es una
violación a la igualdad real y no a la igualdad formal. Esto con-
lleva a que el mandato del Estado de erradicar la discrimina-
ción, lo obliga a la expedición de normas y a la planeación de
políticas que posibiliten conseguir la igualdad real. En este sen-
tido los artículos 15 bis a novenos de la LFPED, contempla diver-

96
sas obligaciones del Estado con los pueblos indígenas de esta-
blecer medidas positivas y compensatorias a favor de la igual-
dad de oportunidades. Sin negar los beneficios que puede traer
el cumplimiento de las obligaciones mencionadas en dicho artí-
culo, ninguna de ellas considera a los derechos de libre deter-
minación como medios para fomentar la igualdad real, con lo
cual, se corre el riesgo de seguir interpretando la relación Esta-
do-pueblos indígenas desde la visión indigenista y paternalista.
Es importante caer en la cuenta que la LFPED tiene una
visión liberal de los medios para superar la discriminación. Los
Acuerdos no hacen referencia a este tipo de igualdad, pues en
realidad es una política liberal que considera como parámetro
de justicia el establecimiento de ciertos apoyos a las sectores
más marginados para que así tengan “igualdad de oportunida-
des” en el mercado, a través de “medidas de nivelación”, pero
sin cambiar las estructuras sociales que mantienen las desigual-
dades. Así, los sectores oprimidos continúan, a la larga, siendo
marginados. Aunque se considere que se hace justicia promo-
viendo “un arranque parejo”, y ahí quedan satisfechas las obli-
gaciones de un “Estado Social de Derecho”, las estructuras capi-
talistas de la sociedad hacen nula dicha igualdad. En efecto,
aunque no de forma explícita, lo que encontramos en los Acuer-
dos es más bien la lucha por una “igualdad de condiciones rea-
les”, es decir, por la construcción de nuevas estructuras socia-
les, económicas y políticas que hagan efectiva la igualdad, no
sólo “en el arranque”, sino en la auténtica satisfacción de nece-
sidades que posibiliten, a los pueblos indígenas, la producción y
reproducción de su vida, comprendiendo “la vida” en toda su
integralidad y en todas sus dimensiones.

Participación política
Los Acuerdos consideran que la base de la nueva relación
con el Estado debe ser la participación indígena y la consulta a
los pueblos indígenas. Estas dos exigencias se hacen presentes
a través de todo el texto, ya sea como “principios” o concreta-
mente como “derechos”. Podemos enumerar estas demandas
de la siguiente manera: a) Transferencia de fondos públicos para
ser administrados por las propias comunidades indígenas; b)
consulta de las legislaturas de los estados para la remunipaliza-
ción para crear municipios más coherentes con la distribución
de los pueblos indígenas; c) asegurar la participación y repre-
sentación política local y nacional de los pueblos indígenas en el
ámbito legislativo y los niveles de gobierno, respetando sus di-
versas características socioculturales; d) incorporar nuevos cri-
terios en la delimitación de los distritos electorales que corres-

97
pondan a las comunidades y pueblos indígenas; e) permitir la
participación en los procesos electorales sin el necesario involu-
cramiento de los partidos políticos; f) reconocer el derecho de
los pueblos indígenas a presentar iniciativas de ley a los pode-
res legislativos; g) establecer que los agentes municipales o fi-
guras afines sean electos o, en su caso, nombrados por los pue-
blos y comunidades correspondientes; h) crear mecanismos de
consulta para la elaboración de políticas públicas y de desarro-
llo que afecten a los pueblos indígenas; y i) participar de mane-
ra activa en los proyectos de desarrollo, para superar visiones
paternalistas e indigenistas, y caminar hacia un autodesarrollo
o etnodesarrollo.
Los derechos de los pueblos indígenas de participación y
consulta están reconocidos en los principales instrumentos in-
ternacionales: los artículos 5 y 6 del Convenio 169 de la OIT, y
los artículos 18 y 19 de la Declaración de los Derechos de los
Pueblos Indígenas. En el ámbito nacional, la fracción IX del apar-
tado A del artículo 2° constitucional establece que se debe “con-
sultar a los pueblos indígenas en la elaboración del Plan Nacio-
nal de Desarrollo y de los estatales y municipales y, en su caso,
incorporar las recomendaciones y propuestas que realicen”. El
primer párrafo del apartado B del mismo artículo obliga a la
federación, a las entidades federativas y a los municipios a con-
sultar a los pueblos indígenas en la elaboración de sus planes
respectivos y en su caso, incorporar las recomendaciones y pro-
puestas que realicen. Además, cabe señalar, que la consulta está
prevista en el artículo 26 constitucional como parte del sistema
nacional de planeación democrática.
En cuanto a la representación política, cada entidad fede-
rativa debe contemplar los usos y costumbres de los pueblos
indígenas para el nombramiento de sus autoridades. No obstan-
te, no se ha realizado una reforma constitucional al artículo 115
que establezca con claridad las atribuciones de los representan-
tes indígenas en los Ayuntamientos.

Reconocimiento constitucional como sujetos de derecho


El primer compromiso del Estado en los Acuerdos es re-
conocer en la Constitución a los pueblos indígenas y su derecho
a la libre determinación. Este derecho debe expresarse en un
marco constitucional de autonomía, a través del cual los pue-
blos puedan organizarse política, social, económica y cultural-
mente a su manera. Además, en este punto, se establece qué se
entiende por pueblos indígenas, en los siguientes términos: “…
los pueblos indígenas (…) son los que “descienden de poblacio-
nes que habitaban en el país en la época de la conquista o la

98
colonización y del establecimiento de las actuales fronteras es-
tatales, y que, cualquiera que sea su situación jurídica, conser-
van sus propias instituciones sociales, económicas, culturales y
políticas, o parte de ellas. La conciencia de su identidad indíge-
na deberá considerarse un criterio fundamental para determi-
nar los grupos a los que se aplican las disposiciones” sobre pue-
blos indígenas”. Esta definición contiene un elemento objetivo-
histórico y un elemento de identidad-subjetivo, los cuales dan la
pauta para determinar a qué personas y pueblos les es aplicada
la normatividad para pueblos indígenas. Estos elementos están
inspirados en el Convenio 169 de la Organización Internacional
del Trabajo (OIT), que establece prácticamente lo mismo en
cuanto a la definición de los pueblos indígenas (Convenio 169
OIT, artículo 1.b). También señala que “[…] la conciencia de su
identidad indígena o tribal deberá considerarse un criterio fun-
damental para determinar los grupos a los que se aplican las
disposiciones del presente Convenio” (Artículo 1.2).
Ambos elementos son importantes para los pueblos indí-
genas pues han significado fundamentos para su emergencia
como sujetos de su propio desarrollo: a) Nombrarse con su gen-
tilicio (“somos indígenas zapotecos”, “mixtecos”, “pames”, etc.)
ha sido una forma de afirmar su pertenencia a una comunidad,
a un pueblo, desde la cual han asociado la lucha sociopolítica
con el rescate de su cultura. b) Asumir un pasado y un proceso
histórico comunes ha sido fundamento, como vimos, para de-
fender su derecho propio y sus derechos colectivos y resistir al
individualismo impuesto por el derecho moderno. c) Tanto la
identidad como el asumir una historia en común han posibilita-
do luchar por la posesión y conservación de sus territorios y
recursos, al considerar a la tierra como parte de su identidad y
como herencia de sus antepasados. Es decir, la definición de
“pueblos indígenas” que toma en cuenta ambos elementos no es
sólo un concepto jurídico – adecuado o no para determinar el
ámbito de aplicación de la ley – sino que también es reflejo de lo
que estos elementos han significado para los movimientos indí-
genas del mundo.
En cuanto a la “identidad”, el concepto tiene diferentes
sentidos que guardan relación entre sí. En primer lugar, quiere
decir “singularizar”, es decir, señalar las notas que permiten
reconocer a un pueblo de los demás. En segundo lugar, la iden-
tidad se refiere a una necesidad tanto para el individuo como
para los colectivos; ante su ausencia o su transformación se ge-
nera una “crisis de identidad”. En este sentido, Villoro señala
que por identidad de un pueblo se puede entender “lo que un
sujeto se representa cuando se reconoce o reconoce a otra per-

99
sona como miembro de ese pueblo. Se trata, pues, de una repre-
sentación intersubjetiva, compartida por una mayoría de los
miembros de un pueblo, que constituiría un “sí mismo” colecti-
vo” (Villoro, 1998, p. 65). No se trata de una cuestión abstracta
sino material, pues tiene que ver con la vida real de las perso-
nas, en su participación en creencias, actitudes, formas de pro-
ducción, etc., con el grupo al que pertenecen. La identidad tam-
poco significa descubrir una cuestión oculta, sino algo que se va
construyendo históricamente cuando los pueblos tienen la li-
bertad de hacerse a sí mismos, y de generar respuestas para
resolver sus problemas, satisfacer sus necesidades y reproducir
su vida. De ahí la estrecha unión que existe entre la identidad
de los pueblos indígenas con la libre determinación.
Por otro lado, el reconocimiento de los pueblos indígenas
debe fundarse en la libre determinación y en un marco consti-
tucional de autonomía. Es importante comprender que ambas
demandas en los Acuerdos no intentan establecer segregacio-
nes, aislamientos culturales, perpetuación de cacicazgos, reser-
vaciones, etc., sino crear un medio para el cumplimiento real de
sus derechos sociales, económicos, culturales y políticos. Ante
los fracasos de las políticas indigenistas y del etnopopulismo, se
lucha desde la libre determinación y la autonomía para lograr
el cumplimiento de dichos derechos.
El segundo compromiso del gobierno federal en los Acuer-
dos, respecto al nuevo marco jurídico, consiste en el reconoci-
miento de las comunidades como entidades de derecho público.
El concepto de “entidad” tal vez no fue la mejor elección, pero
su sentido es claro: reconocer como sujeto de derecho público a
las comunidades. De esa manera, se busca que las comunidades
indígenas sean reconocidas como otro piso de gobierno, y no
limitar la participación política indígena a los Ayuntamientos o
a los demás organismos clásicos del Estado. Esa sería una de las
finalidades de otorgarles el carácter de sujeto de derecho públi-
co a las comunidades indígenas. Al reconocer a las comunida-
des como entidades de derecho público, el gobierno también se
comprometió a: a) Reconocer el derecho de las comunidades en
asociarse libremente con población mayoritariamente indígena
o de la asociación en varios municipios con el fin de coordinar
sus acciones; b) que las autoridades competentes transfieran
los recursos a los pueblos y comunidades indígenas, para que
ellos mismos administren los fondos públicos que se les asig-
nen; c) fortalecer la participación indígena en el gobierno, ges-
tión y administración en los diferentes ámbitos y niveles; d) que
las Legislaturas de los Estados determinen que facultades y fun-
ciones se transfieran a los pueblos y comunidades indígenas.

100
No obstante, la reforma constitucional de 2001, en el últi-
mo párrafo del apartado A, señala que las constituciones y la
legislación de las entidades federativas establecerán las normas
para el reconocimiento de las comunidades indígenas como en-
tidades de interés público, ante lo cual debe establecerse la di-
ferencia entre una entidad de derecho público y una entidad de
interés público, que resulta bastante. El interés público “es el
conjunto de pretensiones relacionadas con las necesidades co-
lectivas de los miembros de una comunidad y protegidas me-
diante la intervención directa y permanente del Estado” (Corne-
jo Certuche, 2002, p. 632). Éste es protegido por el Estado no
sólo mediante disposiciones legislativas, sino también a través
de medidas administrativas y de políticas públicas. Por su par-
te, las personas colectivas de derecho público son “la existencia
de un grupo social con finalidades unitarias, permanentes, vo-
luntad común, que forman una personalidad jurídica distinta a
la de sus integrantes, poseen una denominación o nombre; con
domicilio y un ámbito geográfico de actuación; patrimonio pro-
pio y régimen jurídico específico” (ACOSTA, 2000, pp. 113-114).
Es decir, por un lado sólo se es un objeto receptor de la acción
del Estado, y por otra parte, se es un sujeto de derecho; el artí-
culo 2° al señalar a las comunidades indígenas como entidades
de “interés público” implica que serán protegidas por el Estado,
pero no se les reconoce personalidad jurídica, lo cual significa
que no son sujetos de derecho. Se trata de nueva cuenta de una
visión paternalista e indigenista, donde el Estado concibe a las
comunidades indígenas como meras receptoras de políticas
públicas pero no como sujetos de decisión y participación, y
mucho menos como entidades que forman parte de la estructu-
ra de gobierno.
Ahora bien, aunque formalmente la Constitución mexica-
na reconoce a los pueblos indígenas, la posibilidad de que se
manejen en la realidad como “sujetos de derecho” es complica-
do, debido a la ausencia de criterios y lineamientos más concre-
tos. El problema más grave al respecto es que la propia Consti-
tución da la naturaleza jurídica de “entidades de interés públi-
co” y no de “entidades de derecho público”, como lo exigen los
Acuerdos de San Andrés. El detalle no es menor, pues significa
limitar la capacidad de ejercer derechos y cumplir obligaciones
debido a la ausencia de personalidad jurídica.
La personalidad jurídica se puede establecer a través de
diferentes modos. Tratándose de una persona física, se tiene de
manera plena cuando se alcanza la mayoría de edad. En cuanto
a las personas colectivas, el derecho reconoce personalidad ju-
rídica al realizar un acto constitutivo por el cual se cumplen

101
diversas formalidades, como en el caso de una sociedad anóni-
ma, una asociación civil, o una sociedad cooperativa. Por últi-
mo, las personas morales de derecho público se reconocen por
la emisión de una ley o de un acto administrativo como entida-
des de derecho público. En función de lo anterior, los pueblos
indígenas deben ser reconocidos como sujetos de derecho a tra-
vés de considerarlos entidades de derecho público, donde el
propio marco jurídico reconozca su existencia. En la Constitu-
ción mexicana se establece que serán las constituciones y las
leyes locales las que establezcan “las normas para el reconoci-
miento de las comunidades indígenas como entidades de inte-
rés público”. Por lo tanto, la definición de “pueblo indígena” del
artículo 2° constitucional no es suficiente para su existencia
legal, sino que es necesario que el legislador local conforme
“entidades de derecho público” que gocen de personalidad y
capacidad jurídicas de goce y ejercicio1.

Derecho a la libre autodeterminación


La libre determinación significa que los pueblos pueden
elegir libremente su régimen político, económico y cultural para
resolver las cuestiones relacionadas con su producción de vida.
Es el derecho de los pueblos a decidir su propio destino, siendo
sujetos de derecho y de su propia historia. Se puede ejercer de
diferentes maneras, ya sea como Estado independiente, como
Estado asociado, como Provincia autónoma, o bajo un régimen
de autonomía como región, municipio o comunidad. Es decir, la
libre determinación se concretiza en un conjunto de derechos
de autonomía o de autodeterminación.
El principio de la libre determinación implica que el Esta-
do reconocerá un ámbito de autonomía a los pueblos indígenas
sin menoscabo a la soberanía nacional. Esto significa que los
pueblos indígenas optan por el camino de la autonomía para
ejercer su libre determinación y no por el camino de la creación
de un nuevo Estado. En el ámbito internacional, el derecho de
autodeterminación de los pueblos es reconocido por la Carta de
las Naciones Unidas, en el Pacto Internacional de Derechos Civi-
les y Políticos (PIDCP), y en el Pacto Internacional de Derechos
Económicos, Sociales y Culturales (PIDESC).
En función de diversos acontecimientos históricos, el de-
recho a la libre determinación ha sido interpretado unívocamente
como un derecho a la secesión, es decir, a la separación de un
pueblo del Estado al que pertenecen para constituir un nuevo
Estado soberano e independiente. Esta interpretación provoca
que muchos Estados, entre ellos el mexicano, tengan temor y
prejuicios respecto a las luchas indígenas por el derecho de

102
autodeterminación. Sin embargo, este derecho tiene otra dimen-
sión, mucho más importante para los pueblos indígenas que el
derecho de secesión: el derecho de autonomía o de autogobier-
no. En efecto, los Acuerdos plantean un ejercicio de la libre
determinación a través de diversos derechos de autonomía, y
que compromete al Estado a respetar las identidades, las cultu-
ras y las formas de organización social de los pueblos indígenas,
y sus capacidades para determinar su propio desarrollo; y no
intervenir unilateralmente en los asuntos y decisiones de los
pueblos indígenas, en las organizaciones y formas de represen-
tación de los pueblos indígenas, ni en las estrategias de los pue-
blos indígenas de aprovechamiento de los recursos naturales.
En este principio de los Acuerdos hay dos elementos que
es importante destacar. Por un lado, el Estado sigue viendo con
temor la autonomía de los pueblos indígenas al señalar que se
obliga a no intervenir unilateralmente “en tanto se respeten el
interés nacional y público”. Una fórmula tan general y abstrac-
ta puede servir de excusa para imponer a los pueblos indígenas
políticas en contra de sus intereses y sin que medie consulta y
colaboración alguna. Por otro lado, la autonomía no significa
separación del Estado mexicano, ni negación de los indígenas
como ciudadanos mexicanos; al contrario, el Estado se obliga
con los pueblos indígenas a hacer efectivos sus derechos huma-
nos, pero mediando la modalidad de la autonomía.
En los Acuerdos, la libre determinación se concretiza en
la autonomía, que implica, básicamente, el reconocimiento de
autoridades propias, es decir, autogobiernos comunales dentro
del marco del Estado nacional. La autonomía presupone la exis-
tencia de una entidad menor en el interior de una entidad ma-
yor, que es única y soberana. Implica una distribución de com-
petencias entre los distintos niveles de organización del gobier-
no. En este caso, los pueblos y comunidades indígenas se deben
comprender como sujetos de derecho, como entidades de dere-
cho público, y formando parte del Estado mexicano. Por eso, el
debate que deben desarrollar las legislaturas locales consiste
en las facultades y funciones de las autonomías, y de las carac-
terísticas de la relación entre la “entidad superior” y las “enti-
dades menores”.
La autonomía busca definir las formas en que los pueblos
indígenas pueden participar en el Estado nacional. Un marco
de autonomía debe establecer los mecanismos de participación
de los gobiernos indígenas en el Estado y su relación con los
diferentes niveles de gobierno. En este sentido, los Acuerdos
proponen al Congreso de la Unión y las Legislaturas de los Esta-
dos reconocer y establecer las características de la libre deter-

103
minación y los niveles y modalidades de autonomía, para lo cual
se deben tomar en cuenta el territorio, los ámbitos de aplica-
ción, las competencias, el autodesarrollo, y la participación en
los órganos de representación nacional y estatal.
El artículo 2° constitucional señala, en el párrafo quinto,
que el derecho a la libre determinación “se ejercerá en un mar-
co constitucional de autonomía que asegure la unidad nacio-
nal”. Salta a la vista el prejuicio del legislador al contraponer el
ejercicio de la autonomía con la unidad nacional, ya que, insisti-
mos, no son conceptos contradictorios; al contrario, la autono-
mía indígena asegura la unidad nacional al tratarse de un mo-
delo de inclusión de los pueblos indígenas al pacto federal. La
expresión utilizada en la propuesta de la COCOPA es mucho
más afortunada y refleja mejor el sentido de la autonomía indí-
gena como una forma de gobierno dentro del pacto federal: “Los
pueblos indígenas tienen derecho a la libre determinación y,
como expresión de ésta, a la autonomía como parte del Estado
mexicano”. El mismo párrafo del artículo 2° continua señalando
que el reconocimiento de los pueblos y comunidades indígenas
“se hará en las constituciones y leyes de las entidades federati-
vas, las que deberán tomar en cuenta, además de los principios
generales establecidos en los párrafos anteriores de este artícu-
lo, criterios etnolingüísticos y de asentamiento físico”.
El último párrafo del apartado A del artículo 2° constitu-
cional establece que “[…] las constituciones y leyes de las enti-
dades federativas establecerán las características de libre de-
terminación y autonomía que mejor expresen las situaciones y
aspiraciones de los pueblos indígenas en cada entidad”. Se en-
tiende que debieron ser consultados los pueblos y comunidades
por cada legislatura local para establecer el marco de libre de-
terminación y las modalidades de la autonomía en la Constitu-
ción del Estado y en sus leyes. De lo contrario, si se hizo como
un acto unilateral del Poder Legislativo, sin consultar a los pue-
blos indígenas, las reformas realizadas se deben considerar an-
ticonstitucionales por violentar los derechos de los pueblos indí-
genas.
La Declaración de las Naciones Unidas sobre los dere-
chos de los pueblos indígenas (DDPI), aborda el derecho a la
libre determinación principalmente en sus artículos 3, 4 y 5. El
contenido de estos artículos coincide totalmente con los Acuer-
dos, aunque en éstos el desarrollo de los derechos está, por su-
puesto, en función de la realidad mexicana; por eso, realizan
una enumeración de los derechos básicos que componen la au-
tonomía indígena. A continuación los presentaremos en el or-
den en que aparecen en el Documento 2, haciendo un breve

104
comentario y relacionándolos con algunos instrumentos legales
nacionales e internacionales.
a) Derecho a las formas propias de organización: El dere-
cho a desarrollar las formas propias de organización social, cul-
tural, política y económica se puede considerar como el funda-
mento de la libre determinación, junto con el autogobierno. Es
una demanda que los Acuerdos expresan constantemente y de
diversas maneras.
b) Derecho a los sistemas normativos propios: Éste es uno
de los derechos de la libre determinación más controvertidos,
pues significa romper con el paradigma del “monismo jurídico”
y dar pie a un paradigma de “pluralismo jurídico”. Es la lucha
de los pueblos indígenas por el reconocimiento a los pueblos
indígenas y por el “derecho a decir el Derecho”. Los sistemas
normativos de las comunidades indígenas están constituidos por
un conjunto de normas, instituciones y procedimientos que sir-
ven para su integración y organización social. Se da a través de
la costumbre, integrada por normas consuetudinarias, usos y
tradiciones. En este sentido, se puede identificar un sistema
normativo como el conjunto de normas jurídicas orales y con-
suetudinarias que los pueblos y comunidades indígenas asumen
como válidas y obligatorias, y utilizan para regular su vida pú-
blica y resolver los conflictos.
En el ámbito nacional, la fracción I del apartado A del
artículo 2° constitucional contiene disposiciones relacionadas.
En el ámbito internacional, los artículos 8 y 9 del Convenio 169
de la OIT contiene diversas disposiciones al respecto, y la DDPI
lo hace en sus artículos 33, 34 y 35. Tanto la Constitución mexi-
cana como los instrumentos internacionales establecen los de-
rechos humanos como limitante expresa de la aplicación de los
sistemas jurídicos internos de los pueblos indígenas. Esta limi-
tación puede comprenderse en textos de carácter internacio-
nal, pero en la Constitución es una condición que está de más,
pues se entiende que cualquier persona, incluyendo a una per-
sona indígena, puede acudir a la vía del amparo para que sea
restituido en el goce de sus derechos fundamentales. Esta limi-
tación más que una garantía para la persona indígena puede
ser una norma que fomente prejuicios ante la normativa interna
indígena, considerándola a priori como violadora de derechos
fundamentales.
c) Derecho a acceder a la jurisdicción del Estado: Este
derecho, en términos estrictos, no debería considerarse como
un derecho de libre determinación, sino como un derecho cons-
titutivo de la nueva relación entre los pueblos indígenas y el

105
Estado. De inicio, es un derecho que pertenece a toda persona,
de tener la facultad de plantear ante la jurisdicción del Estado
un conflicto para que este lo resuelva, y para no tener que “ha-
cer justicia por propia mano”. Más adelante lo comentaremos.
d) Derecho al acceso colectivo al uso y disfrute de los re-
cursos naturales: Los Acuerdos demandan el reconocimiento del
derecho al acceso “de manera colectiva al uso y disfrute de los
recursos naturales, salvo aquellos cuyo dominio directo corres-
ponda a la Nación”. Este es un derecho que tiene amplio con-
senso en el ámbito internacional, pero que no se reflejó en las
reformas en materia indígena del 2001, en especial porque no
modificó el artículo 27.
En el ámbito internacional consideran este derecho el ar-
tículo 15 del Convenio 169 de la OIT, y el artículo 25 de la DDPI,
que establece el derecho de los pueblos indígenas a mantener y
fortalecer su relación con la tierra, aguas y otros recursos. El
artículo 32 de la DDPI establece el derecho de los pueblos indí-
genas al uso de sus tierras y recursos para determinar su propio
desarrollo; la obligación del Estado de consultarlos para los pro-
gramas de desarrollo y uso de recursos naturales; la obligación
del Estado a la reparación justa y equitativa; y la obligación de
tomar medidas para mitigar las consecuencias negativas al há-
bitat indígena.
Con la reforma constitucional de agosto de 2001, se aña-
dió la fracción VI del artículo 2°, el cual establece un supuesto
derecho al uso y disfrute preferente de los recursos naturales.
Esta fracción en realidad no otorga a los pueblos indígenas nin-
gún derecho que no pudieran haber ejercido antes de la refor-
ma. Al contrario, ahora se establecen condiciones que están de
más, pues hacen referencia a reglas que deben cumplir todos los
mexicanos, y que realmente no cumplen las demandas de los
pueblos indígenas al no haber sido modificado el artículo 27 cons-
titucional respecto a la propiedad y tenencia de la tierra. Por otro
lado, la supuesta “preferencia” al uso y disfrute de los recursos
es un mero recurso retórico, como ya hemos señalado al hablar
de la legislación concesiones. Esta preferencia no es lo que exi-
gen los pueblos indígenas, pues lo que demandan es la constitu-
cionalización de su derecho al territorio y a los recursos natura-
les ahí existentes, en los términos del Convenio 169 de la OIT.
e) Derecho a promover su identidad y patrimonio cultu-
ral: Los Acuerdos consideran el derecho a “promover el desa-
rrollo de los diversos componentes de su identidad y patrimonio
cultural”. El término “patrimonio cultural” incluye un gran acervo
de tradiciones, conocimientos y expresiones culturales. La pro-

106
tección, preservación y promoción de distintos patrimonios cul-
turales es la base de la “diversidad cultural”. El artículo 2° de la
Constitución mexicana, en la fracción IV del apartado A, se es-
tablece que los pueblos indígenas tienen el derecho a “preser-
var y enriquecer sus lenguas, conocimientos y todos los elemen-
tos que constituyan su cultura e identidad”. La disposición es
muy general y reducida, si la comparamos con la enumeración
de elementos que realizan los instrumentos internacionales.
Estos son el artículo 5 del Convenio 169 de la OIT, y los artículos
11, 12, 13 y 31 de la DDPI.
El derecho sobre la preservación del patrimonio cultural
incluye, según el artículo 31.1 de la DDPI, la protección de la
propiedad intelectual de los pueblos indígenas. La preocupa-
ción por este derecho ha crecido en los últimos años (Toledo,
2006, pp. 509-536). Se trata de un tema complejo que rebasa
las intenciones de este trabajo; tan sólo señalamos que son de-
rechos que no están reconocidos en el artículo 2° constitucio-
nal, y ni la Ley Federal de Derechos de Autor ni la Ley de la
Propiedad Industrial contienen alguna normatividad especial
para la protección del patrimonio indígena. Si bien es cierto
que las figuras jurídicas actuales contenidas en dichas leyes
pueden ser utilizadas a favor de proteger los derechos de los
pueblos indígenas, es necesaria una regulación que responda
mejor a las características propias de protección al patrimonio
cultural.
Una exigencia de los Acuerdos sobre la conservación del
patrimonio cultural radica en una nueva regulación de los sitios
arqueológicos con el fin de: a) Reglamentar el acceso gratuito a
los indígenas; b) Dar a los indígenas la debida capacitación para
poder administrar; c) Otorgar utilidades turísticas a los pueblos
indígenas; d) Posibilitar su uso como centros ceremoniales; e)
Proteger los sitios cuando estén amenazados por megaproyec-
tos turísticos o saqueo hormiga. Otra reivindicación de los Acuer-
dos se relaciona con los saberes indígenas, entre los que desta-
ca la medicina tradicional. Se exige al Estado la creación de
espacios para su práctica sin que ello supla la obligación de los
tres niveles de gobierno de ofrecer la atención adecuada a tra-
vés del sistema de salud. Al respecto, la Ley General de Salud
señala como uno de los objetivos del sistema nacional de salud
“promover el conocimiento y desarrollo de la medicina tradicio-
nal indígena y su práctica en condiciones adecuadas” (artículo
6° fracción VI bis.). Además, el artículo 93 establece que la Se-
cretaría de Educación Pública, en coordinación con la Secreta-
ría de Salud, promoverá el establecimiento de un sistema de
enseñanza continua en materia de salud, y “reconocerá, respe-

107
tará y promoverá el desarrollo de la medicina tradicional indí-
gena. Los programas de prestación de la salud, de atención pri-
maria que se desarrollan en comunidades indígenas, deberán
adaptarse a su estructura social y administrativa, así como su
concepción de la salud y de la relación del paciente con el médi-
co, respetando siempre sus derechos humanos”.
f) Derecho a interactuar con los niveles de gobierno: Los
Acuerdos apuntan el derecho de los pueblos indígenas a “inte-
ractuar en los diferentes niveles de representación política, de
gobierno y de administración de justicia”. Se trata de un dere-
cho de la nueva relación entre el Estado y los pueblos indígenas,
y debe realizarse en diversas facetas, en todas aquellas donde
las comunidades indígenas participen activamente y sean con-
sultadas en el diseño de políticas públicas. Al respecto, destaca
el artículo 6 del Convenio 169 de la OIT.
g) Derecho a la coordinación con otros pueblos y comuni-
dades: En diversas partes de los Acuerdos se reivindica el dere-
cho de los pueblos y comunidades indígenas y de los municipios
con población indígena de establecer acuerdos para coordinar
las acciones con la finalidad de optimizar recursos, impulsar pro-
yectos de desarrollo regionales, intercambiar conocimientos, y
en general promover y defender sus intereses. Este derecho es
reconocido por instrumentos internacionales, no sólo para ser
ejercido entre pueblos indígenas dentro de las fronteras de una
nación, sino también entre pueblos ubicados en distintos países.
Si tomamos en cuenta que tanto las fronteras internacio-
nales, como las divisiones políticas de los países se realizaron
históricamente sin tomar en cuenta la distribución geográfica
de los pueblos indígenas que habitaban en esos territorios, el
derecho de asociación y coordinación entre comunidades y pue-
blos cobra gran importancia para la conservación del patrimo-
nio cultural y para el autodesarrollo. Las asociaciones y coordi-
naciones que los pueblos y comunidades puedan realizar entre
sí, tendrán mayor coherencia para establecer proyectos de de-
sarrollo integral que si se ubicaran dentro de las divisiones polí-
ticas tradicionales. En cuanto a las relaciones internacionales
entre pueblos indígenas, el artículo 32 del Convenio 169 de la
OIT y el artículo 36 de la DDPI.
h) Derecho a designar a sus autoridades y representan-
tes: Los Acuerdos de San Andrés establecen, como parte del
derecho de autogobierno, el derecho a “designar libremente a
sus representantes, tanto comunitarios como en los órganos de
gobierno municipal, y a sus autoridades como pueblos indíge-
nas, de conformidad con las instituciones y tradiciones propias

108
de cada pueblo”. Se trata de establecer dos supuestos diferen-
tes: por un lado, el derecho de elegir a sus representantes tanto
de la comunidad como en los órganos de gobierno municipal; y,
por otro, elegir según sus instituciones y tradiciones a las auto-
ridades como pueblos indígenas. Además, los Acuerdos exigen
que el Estado garantice la organización de los procesos de elec-
ción o de nombramiento de las autoridades del ámbito interno
de los pueblos o comunidades indígenas, y que se reconozcan
las figuras del sistema de cargos y otras formas de organiza-
ción, métodos de designación y la toma de decisiones en asam-
blea o consulta popular.
i) Derecho a promover sus culturas y lenguas: El último
derecho que enumera esta sección de los Acuerdos se refiere,
de nuevo, a la promoción de algunos elementos del patrimonio
cultural, en los siguientes términos: “promover y desarrollar sus
lenguas y culturas, así como sus costumbres y tradiciones tanto
políticas como sociales, económicas, religiosas y culturales”.
El derecho a la propia lengua está contemplado en el artí-
culo 28 del Convenio 169 de la OIT. Por otro lado, es el derecho
cultural que mayor reglamentación a nivel nacional ha recibido
por parte del Estado mexicano, ya que existe la Ley General de
Derechos Lingüísticos de los Pueblos Indígenas (LGDLPI). Hay
también otras disposiciones al respecto, como el artículo 54, 67
y 113 de la Ley General de Salud y el artículo 39 bis de la Ley
sobre el Escudo, la Bandera, y el Himno Nacional.

Derecho al desarrollo sustentable


El Estado se obliga bajo el principio de sustentabilidad a
colaborar con los pueblos indígenas en la perduración de la na-
turaleza y la cultura en los territorios que ocupan. Los Acuerdos
refieren la definición de territorio establecida en el Convenio
169 de la OIT, en el artículo 13.2: “La utilización del término
“tierras” en los artículos 15 y 16 deberá incluir el concepto de
territorios, lo que cubre la totalidad del hábitat de las regiones
que los pueblos interesados ocupan o utilizan de alguna otra
manera”.
De entre las demandas sobre el desarrollo establecidas en
los Acuerdos, podemos destacar las siguientes: Que el Estado
impulse mecanismos para garantizar a los pueblos indígenas
las condiciones para ocuparse de su alimentación, salud y vi-
vienda, a un nivel de bienestar adecuado; dar prioridad al desa-
rrollo y bienestar de la población infantil indígena, y a la inter-
vención de la mujer indígena en los proyectos de desarrollo;
aprovechar las potencialidades de los sistemas de producción

109
de los indígenas; reconocer el derecho de los pueblos indígenas
al uso sostenible y a los beneficios del aprovechamiento de los
recursos naturales de sus territorios; fomentar el desarrollo de
la base económica de los pueblos indígenas, garantizando su
participación en el diseño de estrategias; y el respeto a las tie-
rras y territorios en los proyectos de desarrollo.
El derecho al desarrollo de los pueblos indígenas ha sido
tratado de manera amplia en los instrumentos internacionales:
Los artículos 2, 7 y 6 del Convenio 169 de la OIT, y los artículos
17, 20, 21, 22, 23 y 39 de la DDPI.

El derecho a la tierra
Tanto el Convenio 169 de la OIT como la DDPI contienen
diversas disposiciones sobre las tierras indígenas. En cuanto a
los Acuerdos, fue el Convenio 169 el instrumento internacional
en el cual se apoyaron las reivindicaciones al respecto, ya que la
DDPI fue aprobada en 2007, fecha posterior a la firma de los
Acuerdos.
El Convenio 169 de la OIT contiene una parte dedicada
íntegramente a la tierra y territorio indígenas, que contiene los
siguientes puntos: El respeto al valor cultural y espiritual que la
tierra tiene para los pueblos indígenas; el reconocimiento del
derecho de propiedad y de posesión, y el establecimiento de las
garantías jurisdiccionales adecuadas; derecho a no aceptar el
traslado de las tierras que ocupan, a menos que medie su libre
consentimiento; respeto a las modalidades de transmisión de
los derechos sobre la tierra; protección contra la intrusión no
autorizada a las tierras indígenas; obligación del Estado de que
los programas agrarios nacionales garanticen a los pueblos in-
dígenas condiciones equivalentes a las que disfruten otros sec-
tores de la población. Por su parte, la DDPI es limitada en cuan-
to a los derechos sobre la tierra: Establece la prohibición del
desplazamiento a la fuerza; la protección a la propiedad de sus
tierras; el reconocimiento de las formas de tenencia de la tie-
rra; y el derecho a la indemnización, restitución y reparación:
El artículo 28 establece, en su primer párrafo, que los pueblos
indígenas “tienen derecho a la reparación, por medios que pue-
den incluir la restitución o, cuando ello no sea posible, una in-
demnización justa, imparcial y equitativa, por las tierras, los
territorios y los recursos que tradicionalmente hayan poseído u
ocupado o utilizado de otra forma y que hayan sido confiscados,
tomados, ocupados, utilizados o dañados sin su consentimiento
libre, previo e informado”. En un segundo párrafo señala que
“salvo que los pueblos interesados hayan convenido libremente
en otra cosa, la indemnización consistirá en tierras, territorios y

110
recursos de igual calidad, extensión y condición jurídica o en
una indemnización monetaria u otra reparación adecuada”.
En cuanto al marco jurídico mexicano, en especial el agra-
rio, podemos decir que poco responde a las exigencias de los
pueblos indígenas y lejos está de ser un instrumento efectivo
para resolver los diversos problemas del sistema agrario de las
comunidades. Son necesarias diversas reformas, y por eso, la
exigencia al respecto hecha por la delegación del EZLN, a tra-
vés de los Acuerdos, es actual. Entre otros cambios, es necesa-
rio un reconocimiento jurídico de la propiedad agraria indíge-
na, con las características propias como pueblo y comunidad
indígenas; que se reconozcan los sistemas normativos internos
para la resolución de controversias en materia agraria; y que
existan mecanismos jurídicos que faciliten la regularización de
la tierra de los pueblos indígenas.

Derechos de las mujeres


La delegación del EZLN consideró insuficientes los puntos
acordados en los Acuerdos respecto al tema de la situación, dere-
chos y cultura de la mujer indígena. Postura que está referida al
documento “Acciones y medidas para Chiapas. Compromisos y
propuestas conjuntas de los gobiernos del Estado y Federal y el
EZLN”, en el apartado titulado “Situación, derechos y cultura de
la mujer indígena”. Este apartado incluye diversos compromisos
de promover cambios legislativos que contemplen los derechos
de la mujer indígena y que asuman los compromisos internacio-
nales del Estado mexicano sobre el tema. En este sentido, el do-
cumento “Punto y seguido”, emitido por el EZLN en febrero de
1996, después de la firma de los Acuerdos, señala:
Por la triple opresión que padecen las mujeres indíge-
nas (por ser pobres, por ser indígenas, por ser mujeres)
exigen la construcción de una nueva sociedad nacional
con otro modelo económico, político, social y cultural
que incluya a todas y todos los mexicanos.
En los recursos públicos que les corresponden a los pue-
blos indígenas, deberá haber una asignación especial
para las mujeres, administrado y manejado por ellas.
Esto les dará la capacidad económica para que por sí
mismas emprendan sus proyectos productivos, garanti-
cen el agua potable y comida suficiente para todos, pro-
tejan la salud y mejoren la vivienda.
En todas las reformas de la Constitución que se hagan
deberá incluirse explícitamente a las mujeres eliminan-
do el sesgo discriminatorio en contra de ellas.
Exigimos que, de acuerdo a los convenios internaciona-
les, ratificados en la Conferencia Mundial de la Mujer

111
en Beijing, las violaciones perpetradas en zona de con-
flicto sean consideradas crímenes de guerra y como ta-
les, sean castigadas.
Las mujeres exigen también una redistribución del gas-
to público transfiriendo lo que ahora son erogaciones
militares hacia programas de salud y educación.
Las mujeres deberán tener participación plena en to-
dos los ámbitos de la autonomía, sin que ninguna condi-
ción interna o externa las limite.
Más allá de las posturas individualistas que consideran a
los derechos colectivos como instrumentos de opresión al “indi-
viduo” y, en el caso de los pueblos indígenas, como medios para
mantener la opresión de las mujeres, las mujeres indígenas se
suman a la lucha de los derechos colectivos de sus pueblos, de
los cuales forman parte, y desde su cumplimiento exigen su
empoderamiento. En este sentido, las siguientes palabras de las
asesoras invitadas del EZLN, analizan la opresión de la mujer
como parte de las opresiones de sus pueblos:
La violencia ha sido el contexto de la vida cotidiana de
las mujeres indígenas, la primera forma de violencia es
el hambre y la desnutrición, heredadas de generación
en generación, durante 503 años, la inasistencia de
atención a la salud reproductiva, que respete la digni-
dad y las costumbres de nosotras las mujeres, el despojo
de nuestras tierras y de los recursos naturales que per-
tenecen a nuestros territorios como el agua, la electri-
cidad, las minas, los bosques, el petróleo y la margina-
ción de que somos objetos por parte de los programas de
capacitación y de educación, la imposición de leyes, cos-
tumbres y lenguas que no son las nuestras. Esta situa-
ción tiene sus orígenes en la larga historia de colonia-
lismo y dependencia que hoy en día se reproduce en la
política neoliberal, en el sistema de partido de Estado,
que arrastra una deuda externa que no nos correspon-
de, en ese Tratado de Libre Comercio negociado a nues-
tras espaldas, en el saqueo y venta de nuestra riqueza
por un pequeño grupo que decide por todas y todos, y
también en una sociedad dividida de clases, donde do-
mina una ideología patriarcal y sexista que crea rela-
ciones desiguales entre los hombres y las mujeres. Se
nos ha excluido de todo a las mujeres, cuando somos
nosotras la base de nuestra cultura y dadoras de vida.
(ASESORAS, 1995, p. 21)
Aunque es cierto que existen prácticas patriarcales den-
tro de las comunidades, que han sido denunciadas por las pro-
pias mujeres indígenas, sus derechos no son contradictorios del
sentido comunitario de los pueblos indígenas. No hay que con-
fundir la vida en comunidad con las estructuras opresoras, como

112
suelen hacerlo posturas “individualistas-liberales”; la abstrac-
ción que estas corrientes de pensamiento realizan es interesada
e ideologizada, pues de unas cuantas prácticas injustas llegan a
la conclusión de que todo sentido comunitario es opresor del
individuo. El que existan ciertas prácticas injustas no significa
que toda la estructura comunitaria sea opresiva. Y así lo ven las
propias mujeres indígenas; por ejemplo, en el mismo documen-
to citado arriba, señalan: “Queremos que se respeten y reconoz-
can nuestro usos y costumbres, siempre y cuando no violen la
dignidad de la mujer” (Asesoras, 1995, p. 22). Es decir, los usos
y costumbres indígenas, en sí mismos, no son opresores a la
mujer, sino sólo algunos. La lucha de la mujer indígena no sig-
nifica negar el valor comunitario de la vida indígena. Al contra-
rio, la lucha de los pueblos indígenas muestra que es desde la
propia construcción de la comunidad donde se pueden cumplir
cabalmente los derechos de las mujeres.
Teresa Sierra considera que la discusión de los derechos
de la mujer ha dinamizado la lucha indígena y ha enriquecido el
debate sobre los derechos indígenas para encontrar nuevas vías
que superen las visiones anquilosadas de las culturas indígenas.
Respecto a las mujeres indígenas señala: “(...) lo importante es
destacar que son las propias mujeres indígenas las que están
verbalizando aspectos de sus culturas que desean transformar,
lo que constituye una situación radicalmente opuesta a simple-
mente reproducir modelos de interpretación impuestos desde
fuera. Las mujeres indígenas organizadas tienen claro qué es lo
que rechazan de sus costumbres y qué es lo que quieren cam-
biar, pero también coinciden en que desean luchar por sus de-
rechos y la autonomía de sus pueblos y comunidades; y es en
este proceso que se han ido apropiando de un discurso de géne-
ro” (SIERRA, 2004, p. 321s).
Existen diversas reivindicaciones sobre derechos de las
mujeres indígenas a través de los Acuerdos; entre ellas pode-
mos mencionar: Compromiso del Estado para apoyar la activi-
dad y capacitación de las mujeres indígenas, y otorgarles prio-
ridad en las decisiones sobre sus proyectos de desarrollo econó-
mico, político, social y cultural; realizar reformas constitucio-
nales para que a las mujeres indígenas se les garantice el parti-
cipar en plano de igualdad con el varón en todos los niveles de
gobierno y en el desarrollo de los pueblos indígenas; otorgar a
la mujer indígena intervención prioritaria en los proyectos eco-
nómicos, educativos y de salud que le sean específicos; garanti-
zar los derechos laborales de las trabajadoras indígenas, sobre
todo aquellas en condiciones vulnerables como las trabajadoras
eventuales y domésticas; modificar la penalización que impone

113
la legislación para delitos sexuales, de hostigamiento a la mujer
y de violencia intrafamiliar; y garantizar el derecho a la salud, a
la educación, a la cultura, a la alimentación, a una vivienda dig-
na y a los servicios básicos.

Derechos de acceso a la justicia


En relación con la materia jurisdiccional, los Acuerdos
contienen dos tipos de exigencias: Por un lado, como un dere-
cho de la libre determinación, la aplicación de los sistemas nor-
mativos propios para la regulación y la solución de conflicto al
interior de las comunidades; este aspecto ya lo hemos comenta-
do. Por otro lado, está la exigencia de garantizar el acceso pleno
al sistema de justicia del Estado.
En cuanto a las garantías jurisdiccionales, los Acuerdos
exigen algunas referidas al plano nacional (Documentos 1 y 2) y
otras relacionadas al Estado de Chiapas (Documentos 3.1 y 3.2);
no obstante, aquí mencionaremos las referidas a los dos ámbi-
tos, por tratarse de disposiciones que pueden ser o han sido
tomadas en cuenta por las legislaturas locales de las entidades
federativas: Que en todos los juicios y procedimientos en que
sean parte de manera individual o colectiva, se deberán tomar
en cuenta las costumbre y la cultura de los pueblos indígenas;
que los indígenas sean asistidos por intérpretes y por defenso-
res que tengan conocimiento de su lengua y su cultura; que los
indígenas cumplan las sentencias en los centro de readaptación
más cercanos a sus comunidades; que se inserten normas y prác-
ticas jurídicas de las comunidades indígenas como fuente de
derecho aplicable a los procedimientos y a las resoluciones de
las controversias; que en la imposición de penas a los indígenas
se tomen en cuenta sus características económicas, sociales y,
sobre todo, culturales; que se dé preferencia a tipos de sanción
distintos del encarcelamiento; que se le dé trato de igualdad en
cuanto a los derechos reconocidos a todos los ciudadanos del
país; que en materia procesal y procesal penal, se realicen peri-
tajes antropológicos con la finalidad de tomar en cuenta los usos
y costumbres o cualquier elemento cultural que pueda influir
en la sentencia, dando prioridad en el nombramiento de peri-
tos; que los agentes del Ministerio Público para las comunida-
des y municipios donde se asientan pueblos indígenas sean nom-
brados por una terna propuesta por los ciudadanos de esas enti-
dades, pudiendo ser removidos cuando se prueben comporta-
mientos contrarios a Derecho; creación de la “Defensoría de
Oficio Indígena” con abogados y traductores que presten un
servicio de asesoría y representación legal a los indígenas que
lo requieran; traducción a las lenguas indígenas de las leyes,

114
códigos y reglamentos, así como de los convenios y tratados in-
ternacionales vigentes; reestructuración del sistema de procu-
ración e impartición de justicia, donde a los ministerios públi-
cos y a los jueces de primera instancias ubicados en distritos
con fuerte presencia indígena, se les capacite en el conocimien-
to de la cultura indígena y en los sistemas y prácticas utilizadas
por las comunidades en la solución de conflictos.
Muchas de estas demandas las encontramos en el Conve-
nio 169 de la OIT, en sus artículos 9, 10 y 12. También en el
artículo 40 de la DDPI.

Derechos de los migrantes


La delegación del EZLN consideró indispensable que se
legisle para proteger los derechos de los migrantes, tanto indíge-
nas como no indígenas, dentro y fuera del país. Esta exigencia se
encuentra en relación con el documento “Pronunciamiento Con-
junto que el Gobierno Federal y el EZLN enviarán a las Instancias
de Debate y Decisión Nacional”, en el punto ocho titulado “Prote-
ger a los indígenas migrantes”. En este punto, se establece como
compromiso del gobierno federal la protección de los indígenas
migrantes, pero a través de impulsar “políticas sociales específi-
cas” y no hace referencia a cambios legislativos.
En este sentido, el artículo 2° de la Constitución mexica-
na no establece derechos para los migrantes indígenas, sino sólo
señala la obligación del Estado de realizar políticas sociales.
Además, en todo el texto constitucional, sólo en esta fracción se
hace referencia expresa al migrante: “Para abatir las carencias
y rezagos que afectan a los pueblos y comunidades indígenas,
dichas autoridades, tienen la obligación de: VIII. Establecer po-
líticas sociales para proteger a los migrantes de los pueblos in-
dígenas, tanto en el territorio nacional como en el extranjero,
mediante acciones para garantizar los derechos laborales de los
jornaleros agrícolas; mejorar las condiciones de salud de las
mujeres; apoyar con programas especiales de educación y nu-
trición a niños y jóvenes de familias migrantes; velar por el res-
peto de sus derechos humanos y promover la difusión de sus
culturas”. En cambio, aún con limitantes, la propuesta de la
COCOPA proponía que el artículo 2° estableciera que el Estado
“impulsará también programas específicos de protección de los
derechos de los indígenas migrantes, tanto en el territorio na-
cional como en el extranjero”. La diferencia principal radica en
que la fracción VIII no refiere la existencia de “derechos de los
indígenas migrantes” sino sólo de sus derechos humanos; es
decir, no se habla de derechos específicos para los indígenas
migrantes, mientras que la propuesta de COCOPA sí lo hace.

115
Además, como señala López Bárcenas, el artículo 2° constitu-
cional “los migrantes se reducen a jornaleros agrícolas dejando
fuera a un gran número de indígenas que migran hacia las ciu-
dades” (LÓPEZ, 2002, p. 77).

A manera de conclusión
Los Acuerdos de San Andrés han de comprenderse como
una instancia crítica del marco jurídico nacional para evaluar el
cumplimiento de los derechos humanos de los indígenas. Se tra-
ta, entonces, de asumir como fuente de derecho tanto este com-
promiso del gobierno federal como el “derecho a decir el Dere-
cho” de los pueblos indígenas. Es una postura generada desde
el pluralismo jurídico que pone su énfasis en el respeto de la
dignidad de la persona humana por encima de las “razones de
Estado”.
Se trata de ver en los derechos humanos una herramienta
de los pueblos para sus luchas de liberación. En este sentido, el
Derecho Internacional de derechos humanos ha dejado de ser
exclusivo de la diplomacia y los organismos internacionales e
interestatales; los pueblos y la sociedad civil organizada se en-
cuentran en procesos de lucha para su reapropiación, fomen-
tando un discurso de derechos humanos como expresión jurídi-
ca de reivindicación y reclamo por el acceso a los bienes mate-
riales para la satisfacción de las necesidades que posibilitan la
producción y reproducción de la vida de personas y comunida-
des. Es importante tener en cuenta este uso “desde abajo” del
derecho internacional de derechos humanos, pues de lo contra-
rio, dichos procesos de lucha son desaparecidos por la narrativa
oficial del derecho internacional. En este sentido, es importante
construir una hermenéutica capaz de dar cuenta de este uso,
mostrando su creatividad y diferenciándolo del discurso hege-
mónico. Para lo cual se proponen ciertas categorías provenien-
tes del pensamiento crítico de derechos humanos y verificándo-
las con algunas experiencias de uso del derecho internacional
de derechos humanos.
Es así como, a través de este artículo se han mostrado
algunos elementos en que la lucha de los pueblos indígenas en
México, expresada a través de los Acuerdos de San Andrés, sirve
como momento crítico para la reapropiación del discurso de
derechos humanos.

Referencias bibliográficas
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trativo. Porrúa: México, 2000.

116
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Notas
*
Profesor-investigador de la Facultad de Derecho de la Universidad
Autónoma de San Luis Potosí. Correo-e: alejandro.rosillo@uaslp.mx
1
Oaxaca, Querétaro, San Luis Potosí y Durango han reconocido la
personalidad jurídica de derecho público de pueblos y comunidades
indígenas a través de la naturaleza de entidades o sujetos de derecho
público. Esto es posible porque, a pesar de que la Constitución mexi-
cana señala que las comunidades serán reconocidas como “entidades

117
de interés público”, el acto de las legislaturas locales no restringen
derechos sino, al contrario, los amplían. Esto ha sido avalado por los
criterios de la Suprema Corte de Justicia de la Nación (SCJN).

118
El desafío de los niños migrantes no-acompañados
(“Non Accompanied Migrant Children”) a los
derechos humanos
Mauricio Urrea Carrillo

Introducción
A lo largo de los más de 3000 km de longitud de la fronte-
ra de México con los Estados Unidos un punto en específico se
está poniendo al rojo vivo. Es el lugar conocido como Rincon
Village, al sur del estado norteamericano de Texas que, al otro
lado de la valla fronteriza, colinda con la región comprendida
entre las ciudades mexicanas de Reynosa y Matamoros. Una vasta
movilización de agentes de la Patrulla Fronteriza (3,234), agen-
tes del estado de Texas y también de la Guardia Nacional se
preparan para entrar en la batalla; el enemigo a combatir: mi-
les de niños de seis años de edad (Eric Benson, 2014, 28s).
En lo que va de este año más de cincuenta y siete mil “ni-
ños no-acompañados”1, i. e., solitarios, han cruzado la frontera
norte de México con la intención de internarse a los Estados Uni-
dos en busca de seguridad, paz y prosperidad. El hecho ofrece la
posibilidad de entender y, eventualmente, atender un grave pro-
blema social que saca a la luz el diagnóstico de una situación de
fondo existente en nuestras sociedades; situación que está plan-
teando un desafío a la política o instrumentación de la doctrina
de los derechos humanos en términos de superar el abismo exis-
tente entre recuentos teóricos sobre la sociedad y estados de
emergencia específicos, en una palabra, zanjar la distinción en-
tre “universal y específico, teoría y práctica, global y local” (Te-
rry Eagleton, 1999). Y así, aunque el hecho es muy puntual, brin-
da la posibilidad de asomarse al grupo de causas profundas que
yacen debajo de nuestros más graves problemas sociales. Para
estos efectos, procederé describiendo 1) los hechos para, acto
seguido, realizar un 2) juicio al respecto, y así vislumbrar 3) las
posibilidades de acción, inmediatas y remotas.

Los hechos
El flujo masivo de “menores no acompañados”, designado
también el “éxodo centroamericano” no obedece simplemente,
como se ha dicho, a las reformas políticas de George W. Bush
que introdujeron la posibilidad de que los menores centroame-
ricanos detenidos en la frontera accedieran a una audiencia le-
gal antes de su deportación inmediata, ni tampoco a la debili-
dad que el gobierno de Barack Obama ha mostrado en el cuida-
do de la cerca fronteriza. La verdadera razón es estructural:
política, económica y social; en una palabra, la ausencia de una
verdadera inclusión social en los países de origen. La realidad
es que las sociedades de las naciones involucradas en este fenó-
meno (El Salvador, Honduras y Guatemala) manifiestan una
amarga falta de oportunidades de vida que termina en crimen y
violencia (Christopher Sabatini, 2014).
Como es de esperar, las razones de fondo se deben al au-
mento o disminución de lo que se ha denominado “Índice de
inclusión social” (Rebeca Bintrim, 2014) que encierra: econo-
mía nacional, movilidad social, derechos civiles, políticas públi-
cas, condiciones sociales. A la vez, el racismo y el machismo
hacen que el origen étnico y el género sean también factores de
peso. Consecuentemente, las naciones involucradas en el “éxo-
do centroamericano” se ubican hasta el final en la tabla de insu-
mos per cápita; en el acceso de los nacionales a un trabajo esta-
ble y a educación secundaria; en la inversión económica en pro-
gramas sociales; y en el respeto a los derechos políticos y civi-
les. Por lo tanto, el índice de violencia es altísimo; a la vez, la
opción de ingresar al crimen organizado es cotidiana en regio-
nes por las que fluye la necesidad de drogas requeridas por los
Estados Unidos.
El problema es local e histórico, y tiene que ver con las
consecuencias de “la colonización, el racismo, la existencia de
Estados débiles y la violencia… Y su erradicación implica la ela-
boración de una tarea compleja de construir capacidades para
el Estado y de atinar en la inversión pública y privada a favor de
poblaciones marginadas históricamente” (Sabatini, August 1,
2014). Es justamente esta situación regional, estructural e his-
tórica la causante de una crisis social en la frontera norte de
México.
El origen histórico inmediato de este problema se remonta
a las guerrillas centroamericanas sostenidas entre gobiernos apo-
yados por los Estados Unidos y grupos insurgentes marxistas;
bajo la sombra asesina de los escuadrones de la muerte, millones
de habitantes huyeron durante estos años en busca de seguridad
y mejoría económica, situación que disgregó a las familias y re-
blandeció las estructuras sociales básicas (Franklin Foer, 2014,
27). Hoy por hoy, un nuevo fantasma, terrible porque es real y
asesino, está espantando a miles y miles de personas.

120
Pues bien, entre mayo y julio de 2014, las instalaciones de
la Patrulla Fronteriza (Customs Border Patrol) de los Estados
Unidos en Nogales, AZ recibieron a un grupo de 1200 a 1300
“niños migrantes no-acompañados”, en su mayoría varones. Pro-
cedentes de una migración masiva que ingresó a los Estados Uni-
dos por el sur de Texas, miles y miles de estos niños fueron ubica-
dos en albergues gubernamentales que les suministraban lo esen-
cial, como ropa, comida, cobijo, baños y regaderas2. El proceso
de un niño, niña o joven migrante no acompañado hacia el fin de
su peregrinar, es decir, hasta el momento de toparse con las au-
toridades migratorias tiene cuatro etapas distinguidas como “apre-
hensión”, “detención”, “deportación” y “recepción”.
Una vez captados por la Patrulla Fronteriza, estos niños y
jóvenes son canalizados a un albergue de la Secretaría de Salud
en donde se les hace una evaluación para determinar cuál será
la situación más adecuada para el joven o niño. Naturalmente, y
debido a que su situación migratoria los pone contra la ley civil
en los Estados Unidos, la pregunta que se origina es en torno a
la forma de brindarles atención legal para que sean representa-
dos en las cortes migratorias. Suele pretextarse que esta última
necesidad no es una obligación de los Estados Unidos. Por lo
tanto, los niños y jóvenes esperan por meses una decisión en
torno a sus vidas.
Aunque al ser interrogados por los oficiales de la Patrulla
Fronteriza estos niños/jóvenes migrantes no dicen la verdad por
temor, la causa específica de su migración es la hegemonía de
las pandillas en las ciudades de los países de origen y la conse-
cuente violencia, que parece no tener fin. En Honduras y El Sal-
vador, por ejemplo, las pandillas mandan y controlan todo, de
ahí que muchos de estos jóvenes migrantes están huyendo para
ponerse a salvo. La demanda de cocaína en Estados Unidos ha
hecho que las costas de Honduras y sus selvas solitarias se vuel-
van puntos idóneos en el tráfico global de drogas: un 40% del
total de la cocaína demandada por los Estados Unidos pasa por
suelo hondureño. Las pandillas han brotado y florecido en estas
condiciones favorables; además, en las últimas dos décadas, los
Estados Unidos han deportado de regreso a sus patrias de ori-
gen a miles de individuos miembros de las pandillas de Los An-
geles, CA sin acaso alguna medida favorable para su recepción
en los países de origen. (El gobierno del presidente Obama ha
deportado un promedio de 59 salvadoreños diarios, mientras
que de El Salvador huyen un promedio diario de 200 a 300 indi-
viduos) (The Horrors of Home, 2014, 31-33). Finalmente, la coa-
lición entre México y los Estados Unidos en la lucha contra el
tráfico de drogas ha hecho que las organizaciones criminales

121
mexicanas se internen en Centroamérica en busca de libertad
de acción y oportunidades de negocio (Franklin Foer, 2014, 27).
Hace dos años, el Departamento de Estado de los Estados
Unidos determinó que hay unos 85 mil miembros de pandillas
en Guatemala, Honduras y El Salvador. La violencia es el ingre-
diente determinante en estos lugares. Sólo en san Pedro Sula
(Honduras) el índice de asesinatos se eleva a 173 por cada
100,000 habitantes, haciéndola la ciudad más violenta del mun-
do. Con departamentos de policía superados numéricamente –y
en ocasiones completamente corruptos-, y con estructuras e ideas
aún muy raquíticas sobre lo que es la ley y el orden público,
estas regiones se han vuelto nuevos escenarios de hegemonías
sociales con nuevos poderes. La niñez ha sido la víctima inme-
diata de esta decadencia social, pues estos escenarios se les han
tornado una trampa sin salida. Y como las pandillas reclutan
miembros en las escuelas, la asistencia de alumnos ha disminui-
do considerablemente. Las jovencitas de nueve años son viola-
das por los sicarios e introducidas en sus nuevos esquemas de
poder. Las únicas dos alternativas son huir o morir. Aunque para
muchos resta una más: en lugar de levantarse como sus padres
a las 4am a cubrir un largo jornal de trabajo que apenas deja
para comer, es más rentable unirse a una pandilla mediante el
requisito inicial del asesinato (Óscar Martínez 2014, 33).
En El Salvador, por ejemplo, cada mes “se ve un encabeza-
do periodístico anunciando a un nuevo grupo que abandona sus
hogares. Las familias están amenazadas por todo tipo de cau-
sas: porque sus hijos no quisieron unirse a una pandilla, porque
un miembro de la familia recibió un reporte policiaco, porque
no quieren que un miembro de la familia viole a su hija. O sim-
plemente porque visitaron a su abuelo en territorio de pandillas
enemigas” (Óscar Martínez 2014, 33). La función de la policía
es simplemente vigilar que no se les dañe en la huida.
El resultado definitivo de esta presión social es: “una vez
que los niños son requeridos por las pandillas, no pueden apelar
a ninguna autoridad en busca de refugios plausibles, porque las
autoridades mismas están involucradas en su tormento. Muchos
de los niños que cruzan el Río Grande no buscan evadir la Patru-
lla Fronteriza, antes bien buscan desesperadamente su protec-
ción” (Franklin Foer 2014, 28).

El juicio
El veredicto inmediato que esta situación internacional
sugiere es que estamos en el seno de una crisis (Raúl Fornet-
Betancourt, 2013, 11-23; Mauricio Urrea Carrillo, 2014, 170ss)

122
causada por una desintegración social que reclama la construc-
ción de nuevas instituciones y la elaboración de nuevas estrate-
gias a corto, mediano y largo plazo. La decadencia de las actua-
les sociedades de la región se deja ver en estos fenómenos pun-
tuales, como el de los niños migrantes no acompañados, pero es
indicador de una situación compleja que se halla más a la base.
Como pretexto para lograr destacar algunas de las causas
de esta compleja situación de decadencia y lo endeble de las so-
luciones a menudo ofrecidas, me gustaría plantear y analizar el
“programa de los transhumanistas”, tan populares en nuestros
días por causa de su presunta cientificidad. En términos genera-
les, el programa transhumanista, introducido por Ray Kurzweil
(2005; 2010; 2012) y Nick Bostrom (2011; 2014) entre otros,
aspira a rediseñar la humanidad para mejorarla, y se halla estre-
chamente ligado “al auge de las así llamadas “tecnologías con-
vergentes’: nanotecnología, biotecnología, tecnología de la infor-
mación (y algunas veces robótica), y ciencias cognitivas. Son lla-
madas tecnologías convergentes porque cada una refuerza el
potencial que tienen las otras para incrementar ampliamente
nuestra capacidad de manipular la naturaleza, incluyendo nues-
tra propia naturaleza” (Charles T. Rubin, 2014, 3).
El punto central de los transhumanistas es sostener que
por la ciencia y la tecnología podremos superar los límites de la
especie humana por causa de una insatisfacción respecto de las
miserias de la actual condición humana (Charles T. Rubin (2014),
5). Y aunque los transhumanistas insisten en la pregunta “¿qué
tipo de futuro tratamos de crear?” (Charles T. Rubin (2014), 7),
sin duda los antiguos reclamos de Horkheimer y Adorno en Dia-
léctica de la Ilustración (1947) se vuelven a poner en pié: al
parecer “la humanidad se hunde en un nuevo género de barba-
rie”. Por tanto, no se ve cómo un mero “rediseño” de lo humano,
por parte de la ciencia y la técnica, pudiera mejorar situaciones
concretas, como la encrucijada social que padecen las socieda-
des centroamericanas.
Por tanto, para responder cabalmente a la pregunta “¿a
dónde va el futuro?”, mejor preguntémonos “¿a dónde dirigi-
mos el presente?”, y si en nuestras sociedades tecnocráticas (Jür-
gen Habermas, 2013, 82ss) no cabe plenamente el otro, que en
este caso es migrante y menesteroso, lo que tenemos son socie-
dades ruines que terminarán matando lo mejor en nosotros. Por
todo ello, lo que se impone es revisar radicalmente nuestra epis-
temología y sustituirla por una nueva epistemología que, diga-
mos, “mire más cabalmente el mundo” y que a su vez origine
una nueva antropología, más unitaria y profunda para, así, ela-
borar una mejor ética, más realizativa de las cualidades y aspi-

123
raciones del individuo para, finalmente, posibilitar una práctica
religiosa realmente liberadora de las maldades de las personas.
Así pues, el criterio enjuiciador del proyecto transhuma-
nista, en el caso de que se entienda como pretensión de superar
los límites y miserias de nuestra humana condición, es servir al
hombre (Mauricio Urrea Carrillo, 2013, 112ss). Si las tecnolo-
gías convergentes no sirven al hombre y a los demás seres de su
medio ambiente, se tornan inhumanas y hasta destructivas. Por
lo tanto, y como bien lo asienta Ch. Rubin, es menester plan-
tearse la pregunta general: “¿en qué consiste una vida buena y
cómo contribuyen en ello la ciencia y la tecnología” (Charles T.
Rubin, 2014, 180); ahí realmente estriba el sentido de averi-
guar el significado de la palabra “progreso” y qué se entiende
por el proyecto de construir y arribar a un mundo mejor.
Ahora bien, las publicaciones periódicas hablan del decli-
ve económico y de la decadencia moral de los Estados Unidos3,
curiosamente, la tierra de destino de millones de migrantes en
el mundo. Otro tanto puede decirse de sociedades de primero y
segundo mundo. Y sin embargo, todo ello es producto de una
ideología reductivista en torno al mundo y a las expectativas de
vida que la gente va desarrollando. Como estrellas fulgurantes
de esta nueva constelación humana destellan para las mayorías
el placer y el confort, el poder y la fama, el dinero y los bienes
materiales.
Esta mentalidad, que es producto de una teoría del cono-
cimiento específica, ha diseñado una idea de hombre muy parti-
cular: el hombre como un animal que se amotina en sociedades
en las que simplemente gana el que es más poderoso, el más
astuto; esta idea de hombre, producto de una teoría del conoci-
miento reductivista moldea también una ética secular en la que
valen sólo ciertos principios efectivos para una vida que cubra
estos modelos, que satisfaga estas expectativas. Finalmente, la
religión –que en muchos casos es sólo religiosidad- no ofrece ya
una visión unitaria del mundo, del hombre y de la moral, y para
muchos, poco a poco va alejándose más de esa posible lingüisti-
ficación (Jürgen Habermas, 2012, 7ss), en términos de princi-
pios morales, de sus mejores contenidos sagrados.
Como conclusión de este complejo sistema de factores
sociales actuales, puede afirmarse que “los modelos preponde-
rantes para el ser humano en la Modernidad han privilegiado lo
teorético-racional, lo técnico-científico y lo material-intramun-
dano. Las consecuencias de dichas reducciones no han tardado
en sentirse y ha sonado la hora de cambiar, y promocionar enfá-
ticamente, un modelo antropológico que permita superar estos
escollos” (Mauricio Urrea Carrillo, 2014, 69).

124
Es de esperarse que en sociedades constituidas por miem-
bros que encarnan esta mentalidad los problemas de “los otros”
sean, justamente, de los otros. Las relaciones interpersonales
están marcadas por un fuerte individualismo según el cual se va
hacia el encuentro con los demás en franca actitud de conve-
niencia. Esperar que un individuo de este tipo pueda ser gene-
roso con su tiempo, con su ingenio y con sus bienes es a menudo
mucho pedir. De ahí que no sea extraño en absoluto que para
vastas mayorías estos niños tocando a las puertas de la gran
nación americana no sean vistos sino como amenaza nacional.
El problema se agrava si se piensa que las soluciones simplistas,
como la mera naturalización o la simple repatriación, en reali-
dad no traen sino mayores problemas. No obstante, como bien
han señalado los analistas, Estados Unidos comparte gran parte
de la responsabilidad en la confección de la caldera ardiente en
la que se ha convertido el “triángulo del norte” (Guatemala,
Honduras y El Salvador).

Las posibilidades
Hace apenas cuatro años, se pensaba que estos niños mi-
graban “por razones de empleo o de reunificación familiar” (Ca-
tholic Relief Services, 2010, 4). Ahora sabemos que su situación
es compleja y terrible: sus vidas han caído bajo una tremenda
presión social que está victimizando a naciones enteras. Creer
que el simple reforzar militarmente la valla fronteriza de los
Estados Unidos o el difundir en los países de origen campañas
publicitarias sobre los riesgos de la migración, es tanto como
recurrir a un analgésico cuando se tiene una enfermedad mor-
tal. Igualmente, implementar en el sur de México una vigilancia
estatal que impida que crucen no suprime en absoluto las cau-
sas hondas que están generando el éxodo centroamericano, an-
tes bien, lanzan a los menores a cruzarse a pié por regiones
inhóspitas y a quedar a merced del crimen organizado.
Naturalmente, las soluciones deben jerarquizarse y van
desde lo administrativo hasta lo moral. Por ejemplo, exigir que
se respete el protocolo y que al ser trasladados a un albergue
se les asesore y se les dé la posibilidad de arreglar su status
migratorio es un inicio prometedor. Se sabe que la deporta-
ción misma pone en peligro sus vidas, y que cinco jóvenes de-
portados fueron asesinados durante el proceso. Decir simple-
mente que este servicio no es responsabilidad de los Estados
Unidos es olvidar que han sido los vicios de las sociedades de
este país las que en un sentido muy específico han generado el
desbalance social y la consecuente desintegración familiar en
los países de origen4.

125
Sumado a esto, debe subrayarse que el problema plantea
un desafío cuya solución es factible. En ello, los países de origen
tienen aquí un importante papel: deben difundir programas edu-
cativos anti-violencia (como ya se ha hecho en El Salvador), deben
también trabajar en crear una infraestructura adecuada que per-
mita evaluar el status del niño migrante, de modo que pueda
determinarse si puede considerarse un refugiado y entonces ac-
ceder a los derechos de los que goza una persona que huye de la
guerra, la violencia, el ostracismo o la discriminación.
Al presente hay menos menores migrando, pero no se sabe
aún por qué. Como es de suponerse, ello no obedece al hecho de
que la situación originante haya cambiado. Sin duda, la pobreza
extrema, la violencia de las pandillas y el crimen organizado, y la
desintegración familiar no han sido erradicadas ni siquiera en
una medida medianamente aceptable. Lo cierto es que el surgi-
miento de nuevos poderes sociales es patente, y que su ejercicio
está victimizando a las mayorías, especialmente a los más jóve-
nes. Soluciones como un mejor desarrollo económico y la difu-
sión de programas anti-violencia van en el camino correcto.
Un poco más a largo plazo, deben atajarse tres problemas
concretos que están a la base y que entre ellos mismos se super-
ponen: el descontrol en la adquisición y confiscación de las ar-
mas de fuego, las adicciones y la desintegración familiar. Dado
que la gran mayoría de los crímenes en Centroamérica son con
armas de fuego, la mirada de algunos analistas se ha detenido
en este asunto, descubriendo que casi el 40% de ellas proviene
de los Estados Unidos, y que no existen prácticamente los con-
troles necesarios para adquirirlas, exportarlas o confiscarlas
(una vez que con ellas ya se ha cometido un crimen) (Alec Mac-
gillis, 2014, 30s). Igualmente, la adicción a las drogas ha gene-
rado la necesidad de que el crimen se organice y se proteja, de
ahí la relación entre demanda de drogas y demanda de armas
de fuego. Finalmente, la raíz más amarga de este caos social es
la desintegración familiar y la consecuente insatisfacción de los
individuos que la padecen. A la par con reformas legales sobre
las armas y programas de prevención contra las adicciones, de-
bería implementarse un serio programa nacional de rescate de
las familias: tanto en los lugares de origen como en los de re-
cepción. No obstante el valor de estas medidas, también debe
aspirarse a una solución más radical.
Es claro que la fuerza de cohesión de las sociedades de
origen se ha debilitado; también lo es que la simple superiori-
dad económica de las sociedades receptoras no es garantía de
una solidaridad social hacia los extranjeros migrantes. La mi-
gración y la eventual integración del migrante a la sociedad

126
receptora es en cierto sentido inevitable; migraciones siempre
ha habido en la historia, y casi siempre hacia lugares de paz y
prosperidad. De forma que ante el dilema planteado por una
simple integración a las sociedades receptoras o una repatria-
ción a las sociedades de origen, también puede volverse la mira-
da hacia una posible saneación del cuerpo social: el emisor y el
receptor. En dicha saneación ingresan gobiernos, instituciones,
organizaciones, iglesias, familias e individuos.
Dicha saneación podría implementarse en términos de
nuevos modelos para lo humano, nuevas ideas sobre el objetivo
de la vida humana y sobre la sociedad misma, según los cuales
la vida no sea sólo aspiración a la acumulación y acaparamiento
de los bienes materiales y al consecuente disfrute individual, y
que la sociedad no se miré sólo como contingencia de indivi-
duos que coincidieron en un espacio geográfico, sino como co-
munidad de prójimos. La virtud de la convivencialidad, su fun-
damentación y su difusión en todas las líneas educativas, es hoy
por hoy una de las tareas claves en la saneación social.
Así, aunque de entrada lo que sobresale es el repudio al
migrante, por causa del natural temor a lo extraño, el concepto
clave que puede guiar todo el proceso de saneación y la previa
fundamentación de la convivencialidad es el de dignidad huma-
na. Antes que imitar a Caín que respondió indiferente a la soli-
citud divina con aquel ancestral “¿Acaso soy guardián de mi
hermano?” (Gén 4, 9), todo ser humano está obligado a recono-
cer en los semejantes la misma dignidad que para sí mismo se
arroga. Cuando más allá de las diferencias externas se logra
trabar contacto personal con el prójimo, cuando a fin de cuen-
tas se alcanza el encuentro con las personas, puede arribarse a
la conclusión: “el migrante, como cualquier otro menesteroso,
es mi propia responsabilidad”.
Así pues, y en un sentido más profundo, desenmascarar
las coordenadas básicas de una epistemología reductivista im-
plica abrir el camino para una nueva teoría del conocimiento en
la que el mundo de los seres humanos no se circunscriba exclu-
sivamente dentro de las coordenadas del poder, del placer y del
dinero, sino que se abra a otros espacios de realización vital;
implica combatir a toda costa el estilo de vida humano que se
está diseñando y propagando en nuestras sociedades, pues los
individuos se están volviendo egoístas y agresivos, tienen en la
mente muy firmemente grabado que hay que “tomar” para “te-
ner”, que hay que ser violento, que hay que tener arrojo para
lograr salir adelante en la sociedad; se piensa: “si no tienes el
arrojo suficiente otros van a tomar lo que es tuyo; si te dejas, si
eres débil, otros se servirán de sus recursos para quitarte lo que

127
te corresponde”. Por el camino del individualismo y el egoísmo
sólo se llega a una sociedad cada vez más pequeña, más despo-
blada, en la que poco a poco se van imponiendo los más fuertes,
los mejores armados, los más hábiles.
Entre las muchas esperanzas que cabe atesorar en orden a
sanear estas sociedades enfermas del presente puede señalarse
el creciente número de pensadores y activistas5 que se están ocu-
pando en diseñar nuevos y mejores modelos epistemológicos y
antropológicos, que generarán correspondientes códigos mora-
les defensores y promotores de lo humano, y prácticas religiosas
impregnadas de esperanza, generosidad y libertad. Debemos lu-
char sin cuartel a favor de la consecución de mejores sociedades,
de forma que cada vez seamos más los que declaremos con con-
vicción: “Yo soy guardián mundial de mi hermano”, como reza el
título de la hermosa obra de Antonio Salamanca (2003).

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situación actual de nuestra sociedad”, en: Idem, Repensando la
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Notas
1
El Comité de las Naciones Unidas de los Derechos del Niño (1 de
septiembre de 2005) define esta designación de la siguiente manera:
“Se entiende por “niño” todo ser humano menor de 18 años de edad”,
y “se entiende por niños no acompañados (llamados también menores
no acompañados)… los menores que están separados de ambos padres
y otros parientes y no están al cuidado de un adulto al que, por ley o
costumbre, incumbe esa responsabilidad”; citado en: Catholic Relief
Services (2010, 3).
2
Agradezco al Rev. Sean Carroll, S. J. de “Kino Border Initiative” la
información testimonial brindada sobre esta situación.
3
Cfr. por ejemplo, Foreign Affairs, “See America: Land of Decay and
Dysfunction, september/october, 2014; Foreign Policy, “America is in
Decline Retrenching in Crisis Humbled Renewable”, july/august, 2014;
The Futurist, “Inequality as a Predictor of Civil War”, September/
October, 2014, 9-10; Yes! Powerful Ideas, Practical Actions, “The End
of Poverty. We’ve Got the Money, Do We Have The Will?”, fall, 2014,
13ss.
4
Este es, justamente, el punto del artículo de Franklin Foer (2014,
26-28).
5
Dr. Fil/U. C. de Lovaina / Director Magíster Etica social y Desarrollo
humano / Observatorio Decide / Profesor Departamento Ciencia Polí-
tica y RRII (psalvat@uahurtado.cl).
6
Cfr. Por ejemplo, Juan Carlos Scannone (2005), Raimon Panikkar
(2009), Bruno Latour (2013), Carlos Díaz (2010), Raúl Fornet-Betan-
court (2013).

130
De los derechos humanos, la ciudadanía y una nueva
cultura política: desafíos para una radicalización de
la democracia
Pablo Salvat B.
Oi torbellinos de peces devorando las carnes rosa de
sorprendentes carnadas. Oi millones de peces que son
tumbas con pedazos de cielo adentro, con cientos de
palabras que no alcanzaron a decirse, con cientos de
flores de carne roja y pedazos de cielo en los ojos. Oi
cientos de amores que quedaron fijos en un dia soleado/
llovieron carnadas desde el cielo (…). (R. Zurita/ IN RI)

Prenotandos: en torno a una reposición de los DDHH en


el escenario de lo público
1: Es sólo en estos últimos cien años que la humanidad – o
un sector de ella ha creado las condiciones para su autodestruc-
ción, sea de manera directa – conflagraciones nucleares o simi-
lares; o de manera indirecta, mediante una alteración irreversi-
ble de las condiciones medioambientales requeridas para que la
vida humana y la vida en general siga siendo posible. Con el
humano, la naturaleza se ha sobrepasado a sí misma, con lo cual
ha tomado un enorme riesgo: el riesgo de la catástrofe expresa-
do ya en los diversos holocaustos que hemos vivido, en el norte
poderoso, pero también entre nosotros, al sur del mundo, hay
ahora una catástrofe total1.
Somos testigos de la cristalización actual de fenómenos
turbulentos en el espacio económico-financiero, medioambien-
tal y alimentario, de una magnitud que quizá no estamos en
condiciones de dimensionar, sea porque caminamos sobre su
estela; sea porque no tenemos aun a la mano suficientes ele-
mentos como para vociferar situaciones terminales o apocalípti-
cas. Sin embargo, Auschwitz y los holocaustos ya estuvieron aquí
y dejaron tarea. Así como Adorno consideraba que la tarea del
pensar se dividía en un antes y después de Auschwitz, quizá la
tarea nuestra va por el mismo camino ante la magnitud de los
acontecimientos y las marcas que dejan. Y ello aunque sea ape-
lando a lo que Jonas llamo la heurística del temor. Porque ese
temor no es mera heurística, se va volviendo realidad, tanto en
el dominio de lo humano como alimentario o medioambiental.
Podría el ejercicio de reflexión ético-política y social basados
por ejemplo en la antinomia y/o complementariedad de justicia
y/o reconocimiento, ayudar a impedir la repetición de esos fe-
nómenos; comprenderlos, anticiparse, prevenir sobre lo que está
sucediendo bajo nuestros pies?. Para nosotros de esto se trata:
poner por delante de las escuelas filosóficas o paradigmas en
juego la necesidad de repensar nuestro mundo y presente en
óptica comprensivo/transformadora; lo sabemos, una posición
así no va de suyo ni es compartible per se.
Y claro, aunque se aceptase lo que hemos expresado más
arriba, de nuevo resonarían las palabras (dentro y fuera de no-
sotros): y ahora quien podrá salvarnos?. Una vez que hemos he-
cho desertar de la vida en común, de los distintos subsistemas,
alguna religiosidad otra que no sea aquella proveniente del
manido autointerés, de la creencia en la tecnología o en el pro-
greso infinito ¿Una vez que hemos disecado en buena medida la
unidad de la razón en su diversidad de voces, para dejarla con-
vertida en razón de cálculo o en forma trascendental?. Se re-
flexiona y se escribe bajo el signo del incierto destino que nos
depara la globalización modernizante de talante neoliberalista.
Quizá, y lo digo así, porque no soy gurú o experto en algún tarot
social, hoy más que nunca la demanda de parámetros o enmar-
ques desde el punto de vista ético, social, político o económico,
están a la orden del día. La tarea de construcción, elaboración y
difusión de enmarques o marcos conceptuales la hemos aban-
donado ha tiempo ya. Y por distintos motivos. Algunos compren-
sibles viendo la evolución de las cosas, pero al mismo tiempo,
otros no tan comprensibles y que más bien denotan un cambio
de enfoque: no nos interesa transformar la realidad, sino gestio-
narla mejor tal como está. Con ello olvidados que las posiciones
progresistas o de izquierdas, o críticas, siempre han tenido un
doble impulso: por un lado un esfuerzo permanente de crítica
certera de la realidad social, y por otro, un esfuerzo por alentar
cambios importantes y decisivos en ella. El problema es que hoy
esos cambios se hacen desde los marcos conceptuales impues-
tos por el neoliberalismo o alguna versión suya, pero no desde el
horizonte normativo transformador al que se debe una posición
ética emancipatoria. Por eso términos singularmente caros a
esta tradicion de transformación suenan extraños en el marco
de sus oponentes, cuando no vacíos. De qué hablamos cuando
hablamos de justica, solidaridad, dignidad, socialismo, demo-
cracia o derechos humanos?.
De lo que se trata también para nosotros es de una ade-
cuada comprensión de la sociedad capitalista en medio de la
cual vivimos. Justamente, el debate que se ha dado entre redis-
tribución y/o reconocimiento lleva a cuestiones que no podría-

132
mos dejar de lado si queremos conectar reflexión, teoría social
y análisis político. Tenemos que entender el capitalismo real-
mente existente como un sistema social que distingue un sub-
sistema económico (no regulado directamente por patrones ins-
titucionalizados de valor sociocultural), de los otros subsiste-
mas sociales que si lo estarían, o, más bien, hemos de entender
el sistema capitalista como consecuencia de una manera de va-
lorar culturalmente determinada ligada desde siempre a for-
mas asimétricas de reconocimiento y de justicia social, y por
tanto, ligado siempre a formas distintas de violaciones a los de-
rechos humanos?
2: Las discusiones actuales sobre derechos humanos, in-
justicia o justicia –local, nacional o global-, se enmarcan en el
nuevo contexto que puede leerse como expresión y resultante –
paradojal en muchos sentidos-, de una dialéctica modernidad/
modernización (en lo económico, político y cultural), en clave
globalizadora y sus efectos. Este proceso de globalización mo-
dernizante tiene como eje impulsor una singular alianza y/o blo-
que de economía capitalista y revolución tecnológica. Una alianza
que ha estado a la base de su opacidad e ineluctabilidad y que
marca también uno de los rasgos de este proceso hasta hoy: la
aparente imposibilidad para sus actores de jugar otro rol del
que juegan, no solo de aquellos que –la mayoría en verdad-, es-
tamos ligados a una función y un rol en la división social/mer-
cantil del trabajo, para poder vivir, sino también en aquellos
que ejercen las posiciones directivas e influyentes en esta nueva
fase de un capitalismo re-liberalizado. La globalización finan-
ciero-mercantil, así como mediático-tecnológica se vuelve una
suerte de proyecto sin utopía ni sujeto visibilizable que se incor-
pora Estados y países redefiniendo espacios, territorios, relacio-
nes sociales y formas del desarrollo –objetivo-subjetivo-, en una
progresión de infinitud. El problema es que progreso infinito y
crecimiento ilimitado puestos como algo factible y vector de
este proceso terminan reproduciendo – a nivel global-, condicio-
nes de desigualdad –por ende, de injusticia-, y de liquidación de
los dos principales factores de toda posibilidad de vida y rique-
za: el ser humano y la naturaleza¡ Estas situaciones estarían a la
base de lo que algunos han llamado nueva fase o nuevo espíritu
del capitalismo, ahora generalizado. Pero esta nueva fase o espí-
ritu lleva hacia otros parajes. Hacia unos en los cuales lo que
hay es la instalación progresiva de un capitalismo nihilista (como
bien lo ha señalado F. Hinkelammert) de tipo diferente al que
dominó la escena hasta entrado los setenta. La novedad aquí es
el abandono de la pretensión de representar algún interés ge-
neral, o algún potencial de la razón; ahora asume su destruc-

133
ción creadora: convierte medios en fines y predica que no hay
otra alternativa. Es la transvaloración de todos los valores, para
dejar solo el calculo medio-fin, costo-beneficio, maximización;
renunciando a su contenido utopizante y entrando en una místi-
ca de aceleración creciente.
El neo-liberalismo no habla de realidad. Será reemplaza-
da por la institución mercado y por el intento de convertir al
sujeto en billetera calculante. Si hubiera competencia perfecta
todos los problemas encontrarían solución. La ampliación de la
influencia y acción del capitalismo, de los mercados y las rela-
ciones monetarias, no deja de provocar severos cambios en las
sociedades. Quizá el más señero sea la pretendida autonomiza-
ción de la esfera económico-tecnológica en su relación con la
sociedad y la política. Algo de lo cual estamos viendo las conse-
cuencias hoy día. Lo que puede llevarnos a repensar las estrate-
gias reflexivas y prácticas para que una realidad cultural, eco-
nómica, social y política sea efectiva. Dicho de otro modo, en
medio de su banalización actual y de su inviabilidad, nos queda
reponer una crítica radical tanto de la economia de emercado
como de la democracia electoral mercadista que tenemos. En
ambas realidades y experiencias no es posible la vigencia radi-
cal de los derechos humanos.
3: Si miramos a nuestra América, a pesar de su heteroge-
neidad, subsiste un rasgo transversal y permanente de nuestras
relaciones sociales: podemos afirmar que la desigualdad es un
rasgo distintivo de nuestras estructuras institucionales, socia-
les, culturales y políticas desde su origen mismo, provocando
que las mayorías de nuestras poblaciones hayan debido vivir,
bajo esa desigualdad, en condiciones críticamente deficitarias
en lo que concierne a su acceso no sólo a los recursos materiales
y los medios de subsistencia, sino también en lo referido a capa-
cidades, libertades y estima social 2. Por tanto el punto de parti-
da nuestro en la reflexión no puede ser ni democracias constitu-
cionales consolidadas ni tampoco, modelos o tipos ideales a-con-
flictivos, o a-históricos, menos aún, situaciones de equidad rela-
tiva que no tenemos.
Dicho de otra forma, lo que se manifiesta históricamente
es la incapacidad de los distintos proyectos históricos en nues-
tra América para contrarrestar el dato central de nuestra convi-
vencia: la (s) injusticia (s). Y es una injusticia por decirlo así
bifronte. Refiere, tanto a la distribución de recursos, derechos,
bienes sociales fundamentales (salud, alimento, educación, vi-
vienda, medio ambiente), es decir, condiciones de posibilidad
de vida, de vida humana, como al espacio de consideración, res-
peto y aprecio de cada uno (autonomía) y de su faceta grupal-

134
colectiva, en cuanto a su forma de ver y vivir en el mundo, a su
dinámica de construcción de pertinencia identitaria. Por cierto,
vemos los asuntos identitarios no de modo esencialista en cual-
quiera de sus versiones (más conservadora o más progresista).
No nos interesan tanto los temas de identidad per se, sino en
tanto y cuanto ellos, dinámicos y evolutivos, es decir, en perma-
nente elaboración y reelaboración –más aun ahora bajo el im-
pacto de nuevas tecnologías del yo-, forman parte del subsiste-
ma cultural. Y, la cultura, a su vez, nos interesa porque es tam-
bién un medio de expresión de injusticia.
4: En particular, y en esto coincido con algunos autores
actuales, en cuanto a que ciertas creencias, prácticas, valores y
normas, convertidos en patrones de conductas más o menos ins-
titucionalizados en el tiempo, se hacen correa de transmisión de
actitudes de menosprecio, subordinación, segregación, exclusión,
sea por motivos económicos, políticos, de raza, o sociales 3. Mar-
can el signo de la intersubjetividad social entre nosotros y de su
administración colectiva. Abriendo así – de paso – una interroga-
ción sobre la necesidad de no solo reflexionar/promover refor-
mas no reformistas en el campo de la política y la economía, sino
también, en el terreno de lo ético-cultural, como ingrediente fun-
damental para el logro de una sociedad justa e igualitaria. No
podemos decir nada conclusivo por ahora al respecto. Pero sí que
la historia social del país, tanto la del pasado cercano, como la
del pasado anterior, parece manifestar distintos signos de nega-
ción del otro, de su dignidad, palabra y derechos, sea en el ámbi-
to material o simbólico. Puede leerse el proceso histórico de nues-
tra propia búsqueda de modernidad, como atravesado transver-
salmente por un rasgo reiterado, pero pocas veces adecuadamente
realzado: la presencia de una larga y no terminada disputa por el
reconocimiento. Con esto queremos decir que el proceso de mo-
dernización que vivimos, esto es, el permanente esfuerzo del país
y sus elites dirigentes por ser modernos (y hacernos modernos,
en suma), desde que nos constituimos en nación independiente,
refleja en su interior una permanente conflictualidad – mas o
menos procesada; o mas o menos violenta – en la conformación
de y el acceso a la dirección y los frutos de las estructuras técni-
co-productivas, político-sociales y culturales. Destaca en nuestra
historia una gramática.
5: Es bajo este enmarque que expongo a continuación un
conjunto de notas – cada una de las cuales factible de desarro-
llar y profundizar en sí misma – en torno al eventual significado
de una cultura de los derechos humanos para Chile y por exten-
sión, para el conjunto de nuestra América. Una cultura de los
DDHH que sea la base material e ideal de un espacio común

135
reconstruido, desde la base hasta el Estado. Su justificación tie-
ne que ver con que seguir hablando hoy de derechos humanos
sin aludir al contexto de globalismo modernizante y capitalista,
resulta algo ingenuo, cuando no, algo interesado. Como dice
Julie Wark: “Los derechos humanos no existen en una burbuja
de `soft power´para ser distribuidos a cuentagotas cuando la
opción de engañar o cooptar a la gente resulta ser un apaño
mejor que machacarla” (Manifiesto de Derechos Humanos, Julie
Wark, ediciones Barataria, 2011,p.21). Me inquietan los temas
relacionados con la pregunta por el tipo de convivencia y ciuda-
danía – desde un punto de vista del ethos, normativo y crítico –
entendida como cultura material de vida, que requerimos para
el Chile de hoy y de mañana. O, dicho de otro modo, por el
impacto que la violación a derechos humanos en el pasado pue-
de tener para reconstruir una cultura política pública afín al
desarrollo de una democracia radical, que no puede sino ser
deliberativo-republicanista. Con lo cual quiero evitar al menos
dos posiciones polares: una, la que dice que esa mancha históri-
ca de violación a derechos humanos cancela toda posibilidad de
desarrollo democrático hasta que no se haga total verdad, justi-
cia y reparación; la otra, que dice que esa situación fue algo
episódico, casual. La pregunta ética, normativa y valórica, no es
fácil de tratar, a pesar de lo que indican las apariencias. Porque
no siempre es clara, ni en su formulación ni en su respuesta;
porque, también, y es sabido, no son dominios que se dejen cuan-
tificar muy fácilmente.
¿Por qué nos ha interesado el campo de los derechos hu-
manos, de la ética y de la ciudadanía en general? No ha sido en
primer lugar por influencia de libros o tertulias; sino, a partir
de la experiencia, personal y social de los años pasados, en par-
ticular los años del autoritarismo, los años en los cuales muchos
chilenos vivieron en peligro, y otros, lisa y llanamente perdieron
la vida o quedaron marcados por el sufrimiento y el maltrato.
Otros muchos, los más, quedamos atrapados entre la falta de
libertad y el temor al caos, al desorden (social, político, ontoló-
gico), a que todo lo que se decía fuera cierto. Sufrimiento y falta
de libertades, maltrato provocado por otros chilenos que eran
iguales a todos nosotros y que, uno suponía no podrían llegar a
tratar de esa manera a sus propios semejantes. Como ven la
motivación inicial provino de la sensibilidad, de la empatía para
con la alegría y el dolor del otro, muchas veces, desconocido. La
empatía, la compasión para con ese dolor o pérdida es un motor
muy importante, crucial, pero insuficiente. Ese motor de incon-
formidad me indujo a preguntar, indagar, cómo ha sido posible
lo sucedido, por qué se puede llegar a provocar tal daño, a insta-

136
larse entre nosotros una cultura muda, sin palabras, en que el
que se cruzaba conmigo podía ser un sospechoso, un enemigo.
Como se deja ver, hablar de los lazos de convivencia, de lazo
social, y cómo impactan éstos en decisiones y opciones, en si-
tuaciones históricas, tiene también un espesor propio. Es lo no
visible directamente, pero se respira en el territorio de la inte-
racción, cuando uno intenta entenderse mutuamente en torno a
qué significan las cosas en este mundo, qué significan los actos
y palabras de los demás, quien soy yo mismo para mí, para los
otros. De ahí entonces estábamos a un paso del tránsito hacia
cuestiones de naturaleza por decirlo así, más filosóficas. Cuan-
do digo “filosóficas” no digo necesariamente más enrevesadas o
por “las nubes” – como a veces se ve el filosofar entre nosotros –
sino más complejas, mas de fondo; y claro, no son fáciles de
tratar, porque allí se ubican también los cimientos de la rela-
ción social, de la personalidad colectiva, de nuestra propia sub-
jetividad. Qué hay, de lo que hay en nosotros que viene del otro,
que impulsó a actuar de una u de otra manera? Cómo podría-
mos modificar esas orientaciones y conductas prácticas? Qué
puede al respecto la recreación de una cultura y educación, y
en este caso, una educación en y para los derechos humanos?
6: Cuando uno pasa del sentimiento y la intuición moral,
de la empatía a la pregunta por lo que allí trasluce se instala un
proceso reflexivo que nunca es solitario. Participan en él todas
las voces interesadas en el debate, presentes o ausentes, directas
o indirectas, y en medio de ellas va uno cercando la inquietud,
cercando algunos núcleos, aunque no siempre se llegue al fondo
último. Sé que yo soy, al mismo tiempo, producto y creador de
esa cultura cívica, y de su herencia. Entonces, leyendo algunos
pensadores alemanes, se aclaró una inquietud: qué hacer, cómo
hacer para que – decían ellos – Auschwitz no se repita? Y, diría-
mos nosotros, cómo hacer, qué hacer, para que Villa Grimaldi,
Tres y Cuatro Alamos, Londres 38, entre otros, no se repitan?
De allí entonces la inclinación a examinar las relaciones
entre el ethos, las conductas prácticas, los valores y las creen-
cias, la ética y la política, es decir, el modo de habitar y vivir en
la ciudad, en la Polis, sus ámbitos normativos, esto es, aquellos
relacionados con los criterios de validez que legitiman, en un
sentido u otro, nuestras acciones. Y resuena la voz del poeta:
“fueron arrojados/llueven/asombrosas cosechas de hombres caen
para alimento de los peces en el mar/Viviana oye llover tierras
santas/oye a su hijo caer como una nube sobre la cruz despejada
del pacifico”. Sí, tenemos que aprender de esa herencia de do-
lor y esperanza, entonces hay que trabajar por una nueva gra-
mática ciudadana, por una reorganización articulada de la sen-

137
sibilidad, la experiencia y la reflexión; por nuevas maneras de
estructurar la acción comunicativa y su relación con el mundo
como objeto, con el mundo como mundo social, consigo misma.
A esa búsqueda he llamado, también, avanzar en la necesidad
de construir, de allegar materiales entre todos, en torno a un
nuevo imaginario normativo para la convivencia y, por tanto, de
la ciudadanía y de los valores que podría desarrollar, o dicho en
otros términos, por una necesidad de pensar a la democracia
también – no digo únicamente – como un proyecto con identi-
dad ética, como un camino para hacerla salir de sus problemas
actuales. Y cuando digo imaginario normativo me estoy refiriendo
a la necesidad de instaurar, de instituir nuevas significaciones
que hagan de articuladores en el espacio simbólico para orien-
taciones compartibles en la acción social e institucional. Y cuando
uno que colabora para hacer salir a la democracia realmente
existente de sus atolladeros, le agrega para salir nosotros mis-
mos de esos atolladeros, lo hace porque nosotros somos los acto-
res-sujetos, pasivos o activos, de las formas de vida y conviven-
cia en común. Por cierto que el efecto institucional es muy im-
portante, y las instituciones sociales lo son de manera primor-
dial. No estoy hablando de lo uno o lo otro, porque es una disyun-
tiva falsa. Requerimos que esa nueva gramática, que ese nuevo
imaginario normativo que podamos recrear entre todos, se en-
carne también en y por las instituciones, sino nos servirá de
bastante poco. O dicho de otro modo, que sea un desafío para
las distintas instituciones que hacen de mediadoras de la acción
social asumir nuevas perspectivas.
Sabemos que lo que hoy sucede con la democracia real que
tenemos y con la convivencia sociopolítica no camina muy bien
en la evaluación ciudadana. Que distintos fenómenos acechan su
expansión y reafirmación en el tiempo: la inexistencia de proyec-
tos más globales y motivantes; enfoques tecnócratas de la cosa
pública; privatización de lo público, publicitación de lo privado;
la acción pública como espacio para el reality show, etc. Uds
conocen y viven también como yo los efectos del modo cultural
de nuestra ciudadanía y orden social. Los signos del desencanto
y de la banalización comparten también las dificultades que tie-
ne la política real para habérselas – es decir, comprender y orien-
tar – los actuales cambios en curso ligados a procesos de moder-
nización globalizante (económicos, tecnológicos, mediáticos) y a
su subordinación a las lógicas del dinero o del poder (por el po-
der). Mutaciones que afectan nuestras vidas y que enfrentamos
muchas veces con un gran signo de interrogación. Esas son en-
tonces las inquietudes, las intuiciones que guían la pregunta éti-
ca en medio de la convivencia; la pregunta en torno al rol que una

138
cultura y ética desde los derechos humanos puede jugar, justa-
mente, en función de esa necesidad de generar entre todos la
bases para esa nueva gramática. Una necesidad mas acuciante
cuando percibimos bajo nuestros pies cómo la velocidad de los
procesos de modernización nos deja sin un suelo común compar-
tible, existencial, valórico, normativo. Cómo el modelo de moder-
nización, bajo la égida del mercado y la racionalidad estratégico-
gestionaria, tiende a subsumir, a “tragarse” o subyugar las ex-
presiones del dolor, del sufrimiento, de la falta de trabajo y de
sentido, del vacío ético; poniéndolas como no respondibles, no
calculables, no pertinentes. Racionalización de la vida social, que
no conecta con su contracara, la pregunta por las finalidades,
por su legitimidad y criterios.
Constatamos al mismo tiempo frente a este cuadro, que las
respuestas que vienen rodeadas del aura de las tradiciones se
muestran insuficientes; tienen una autoridad a veces bien vista,
pero otras, percibida como impuestas desde arriba o desde lejos.
Estos son nuestros tiempos: pluralismo, incertidumbre que llegó
para quedarse. Peor aún si esa incertidumbre extiende su manto
hasta la propia humanidad de todo humano. Acaso aquel distinto
a mí es un otro igual a mí? Debe poseer mi poder, saber o tener?
Por qué? Habitamos entonces un tiempo que vuelve sobre mu-
chas cuestiones básicas, de base, pero que no pueden hacerse o
revisarse como si aquí no hubiera pasado nada en los últimos
treinta años; aquí y en otros lugares. A nivel de la práctica social,
educativa y reflexiva. Estas dudas, este tiempo de preguntas, no
esta sólo entre nosotros. Representan hoy dudas globales.
7: Por cierto, hay que consignarlo, muy a menudo ha exis-
tido una preocupación disciplinar de la filosofía política y moral
por el rol de la educación en general en cuanto a su impacto
societal, político y moral. Es posible rastrearlo ya en la filosofía
griega y en el presente. Desde un Platón y el rol educador-gober-
nante del dirigente político, hasta los debates actuales en la filo-
sofía práctica entre liberales, comunitaristas, éticos del discur-
so, filósofos de la liberación, postmodernos, entre otros, en torno
a cómo afrontar los eventuales destinos del ciudadano moderno,
pasando por la impronta de una modernidad que relevó siempre
fuertemente el rol de la educación en la generación de mentes y
personas “ilustradas” (y ya sabemos donde fue a parar muchas
veces una Ilustración necesitada de su propia contrailustración).
Dejo este debate en un paréntesis por el momento.
8: Las relaciones entre educación, sociedad y cultura po-
lítica no resultan hoy autoevidentes ni van de suyo. Son muy
importantes, pero no están a la mano; los destinos del proceso
modernizador en que nos encontramos inmersos, las dificulta-

139
des para su gobierno y dirección conscientes, las crisis y reade-
cuaciones que ha provocado llevan justamente a poner en cues-
tión el espacio del lazo social y el sentido y significado de la
propia política y el ejercicio de la ciudadanía por tanto. O, dicho
de otro modo, cuando se pregunta por el espacio de la cultura
política en la educación se habla también de su dificultad, de su
cualidad de tarea incumplida, pendiente y, al mismo tiempo, de
su necesidad para el presente y futuro. Cuando hablamos de
que lo está en cuestión es el mismo lazo social tenemos que
asumir la reflexión de un Castoriadis por ejemplo cuando dice
“lo que hoy está en crisis es precisamente la sociedad como tal
para el hombre contemporáneo (…) quiere el hombre contem-
poráneo la sociedad en que vive? Quiere otra? Quiere alguna
sociedad? La respuesta se lee en los actos y en la ausencia de los
mismos. El hombre contemporáneo se comporta como si la vida
en sociedad fuera una odiosa obligación que solo una desgracia-
da fatalidad le impide evitar”. Por qué hemos llegado a este
punto? No hay respuestas categóricas. En buena medida el de-
bate sobre el destino de la modernidad, las modernizaciones,
sobre el lugar de lo político en ella, sobre quien es el ciudadano
hoy, cruza la discusión de la filosofía ética y política actual, y
por supuesto, sale a la calle, de la mano de la llamada “opinión
pública”. Cuando se habla sobre neoliberalismo, liberalismos, o
que hay necesidad de fortalecer la sociedad y las virtudes repu-
blicanas, más o menos individuo, cuál es el rol de las normas y
valores, y sus formas de relacionamiento, se tiene en cuenta un
esfuerzo de diagnóstico sobre esta situación.
Por eso, quizá quepa decir que una primera contribución
que podría hacer la tarea educativa, y claro los profesores, es
ayudar a la reconstrucción/recreación del vinculo societario,
puesto como condición de posibilidad para un desarrollo con
justicia y una profundización de la democracia basada en una
cultura sostenida en los derechos humanos. Tarea no menor en
nuestro país, porque el ethos cultural heredado muestra una
serie de falencias: una fuerte tendencia al ninguneo; debilidad
de una ética de la co-responsabilidad, así como también reinci-
dentes prácticas autoritarias a distintos niveles (familia, cole-
gios, partidos, empresas, etc. ), prácticas de impunidad, mani-
pulación, exclusión en las relaciones interpersonales o inter-ins-
titucionales. En definitiva, heredamos problemas de integración
social que, según sea el devenir de los equilibrios generales,
pueden tornarse complejos y difíciles de asumir. Y es sabido
que si hay un ámbito complejo y lento para su reforma es justa-
mente el de las prácticas sociales, el de las conductas prácticas,
en especial, cuando se lo intenta de manera participativa y abier-

140
ta. Un segundo aspecto relacionado con este tema, nos anima a
impulsar dentro y fuera de las aulas, un debate público sobre
cuáles podrían ser los fundamentos de nuestra sociabilidad y
ciudadanía a futuro, y en ello la educación como acción y siste-
ma tiene y tendrá siempre un rol ejemplar. Cuando nos aden-
tramos en la sociabilidad y las formas de convivencia, nos aden-
tramos en la temática del ethos de socialización al que podría
contribuir la educación como ingrediente clave del proceso de
aprendizaje y socialización.
Tercero, hablar de sociabilidad nos pone en ruta de otra
cuestión central, que no tiene que ver, de manera directa, con
la gestión de los medios o recursos educativos. Cuando habla-
mos de una educación que asuma el reto de forjar en una cultu-
ra de respeto a los derechos humanos, en medio de un contexto
de crisis del lazo social y de la necesidad de una nueva sociabi-
lidad y ciudadanía, estamos planteando que hay una íntima soli-
daridad – como lo recuerda de nuevo Castoriadis – entre el régi-
men social – o la sociedad que tenemos, y el tipo antropológico
que se requiere para hacerlo funcionar. Preguntémonos, tene-
mos que preguntarnos, cuál es el modelo antropológico que se
promueve en el presente en nuestro sistema educativo. Acaso
no se vive en él una cierta esquizofrenia entre los valores pre-
dicados – en distintos púlpitos – y la realidad de la lógica de los
subsistemas? De esto no conversamos muchas veces (qué tipo
de humano se requiere? para qué finalidades? fijadas por quie-
nes?). Hay una relación estrecha, entonces, entre educación y
antropología política por decirlo así, es decir, entre educación y
el tipo de humano y ciudadano que se desea formar, el tipo de
humano que se desea obtener, por ponerlo de algún modo; lo
que depende a su vez, del tipo de sociedad en que se quiera
vivir, del programa de sociedad al que se aspire y de los acuer-
dos normativos en su base social. Me temo que esto hoy no está
muy claro y no se discute demasiado, se da por supuesto o se
considera poco práctico.
9: En el cuadro general de este diagnóstico es que pensa-
mos que los derechos humanos y su promoción real, permanen-
te, interdisciplinaria, a través del sistema educativo general,
desde la básica hasta la universidad, en servicios públicos y Es-
tado, aparecen como mediación de mínimos normativos, o, de
otro modo, como fundamento principal para una cultura y ética
cívica edificada sobre nuevas bases y que pueda hacer frente a
los fenómenos mencionados más arriba. Pero, porqué podrían
los derechos humanos ser un aporte en el sentido indicado? Entre
otras razones, debido a la propia herencia hecha consciencia
moral respecto a la experiencia del siglo XX que no acaba de

141
terminar. Las guerras y las distintas expresiones de sometimiento
y humillación han puesto sobre la mesa la necesidad de ponerle
coto a esas situaciones y han facilitado el acuerdo en torno a un
catálogo de derechos y deberes a considerar, promover y respe-
tar en distintos lugares del mundo. El trabajo en torno a la De-
claración Universal de los DDHH (1948) fue reflejo de un impor-
tante esfuerzo y enseñanza. Desde el dolor y la herencia de su-
frimiento, se mostró allí que era factible que desde distintas
posiciones filosóficas, religiosas, políticas, se generasen acuer-
dos de ese tipo. Lo segundo, es que vivimos en una sociedad
moderna, en una sociedad pluralista y, por tanto, el vínculo nor-
mativo articulador no puede provenir de una sola visión religio-
sa, política o filosófica. En cambio, alrededor de los derechos
humanos pueden coincidir distintos pensamientos y opciones.
A partir de ellos pueden darse otras coincidencias mayores, pero
reflejan al menos unos mínimos. Los máximos éticos a los que
adherimos como personas pueden encontrar en estos mínimos
espacios para su realización. Y esto no deja de ser importante
en la tarea educativa, formadora.
10: Si leemos a los derechos humanos desde una mirada
ética o crítico-normativa entonces pueden comportarse como
un indispensable antídoto en la erradicación paulatina y nunca
acabada de distintas prácticas sociales de intolerancia, exclu-
sión, discriminación que cometemos a diario, por motivos de
raza, color de piel, forma de pensar, situación económica o ads-
cripciones en la escala clasista.
Estar de acuerdo con estos temas es algo que en principio
no nos cuesta mucho admitir. Pero no lo es en función del esta-
do actual de la cultura cívico-política actual. Si creemos que
una mirada de esta naturaleza no está tan descarriada, se nos
impone a todos, un esfuerzo de reapropiación y resignificación
de los derechos humanos que pueda: a) superar una considera-
ción meramente instrumentalista o utilitaria, o quedarse en una
visión ligada al pasado de violación y negación; b) superar la
visión que apuesta a que la obtención de verdad y algo de justi-
cia, implica que el tema de los DDHH pase al olvido, como una
referencia que pertenece a la historia entendida como pasado;
c) por ello, la incidencia que puedan tener los derechos huma-
nos en la educación en general, y la propia educación para los
derechos humanos, dependerá en buena medida de la lectura e
interpretación que se haga de ellos, de cada uno de los actores,
en particular, de los docentes. Vamos a limitar su alcance a su
expresión meramente jurídica; vamos a centrarnos en los dere-
chos humanos puramente individuales o vamos a considerarlos
en su indivisibilidad, esto es, en la validez de sus distintas di-

142
mensiones reclamables desde y para la personas, desde los de-
rechos cívico-políticos hasta los así llamados derechos de solida-
ridad, pasando por los derechos sociales.
Abordar estas tareas requiere un trabajo mancomunado,
una recuperación de la capacidad deliberativa y argumentativa
en igualdad de condiciones en la comunidad educativa nacio-
nal, dentro y fuera de ella.
11: Desde el punto de vista de la creación de una gramá-
tica ciudadana elaborada y vivida desde los derechos humanos,
la educación en sus distintos niveles tiene, lo sabemos, una im-
portancia difícil de exagerar. Por de pronto, una educación pues-
ta en el sentido mas general de promover una cultura cívica
desde los derechos humanos, necesita forjar y auspiciar hábitos
morales o competencias ciudadanas que permitan formas de
interacción comunicativa en las que, junto con fomentarse com-
petencias instrumentales y técnicas, se fomenten lógicas de in-
teracción basadas en el reconocimiento, la justicia, la responsa-
bilidad por nuestros actos. En particular, parece importante
poder crear una pedagogía, desde la niñez, por medio de la cual
aprendamos a ponernos en el lugar del otro, una en que se desa-
rrollen hábitos de empatía y de sensibilidad para ver en todo
otro – en medio del conflicto y la diferencia – un álguien igual a
mí. Una pedagogía que no fomente la frialdad; los rasgos de
indiferencia ante el dolor o las dificultades del otro.
Para trabajar las dimensiones mencionadas, la opción éti-
co-valórica que trasunta y emerge desde los derechos humanos
puede jugar un rol muy importante. Más aún cuando desde la
conciencia de una solidaridad empática, los derechos humanos
se configuran también como “deberes morales de comunica-
ción con el otro”, sean los otros co-habitantes del mundo social,
o de la misma naturaleza.
Un aporte en este sentido supondría, de parte de la es-
cuela, procesos de formación de aptitudes, capacidades, prácti-
cas que apunten en el sentido de una democracia deliberativa,
es decir, que hagan de los educandos sujetos-ciudadanos pri-
mero que nada, autónomos (la única potencia, dice T. Adorno,
capaz de hacer frente a sucesos terribles, reside en el ejercicio
mancomunado de la fuerza de la reflexión, de la autodetermina-
ción, de no entrar en el juego del otro), es decir, de estar capa-
citados para vérselas con la diversidad de puntos de vistas, visio-
nes de mundo, formas de vida, conflictos, aceptar estas situa-
ciones como un dato benéfico, que no tiene resolución por me-
dio de la violencia, la fuerza o la ocultación como manera de
tratarlos. Desde ese punto de vista, las escuelas no pueden ser

143
neutras, ellas tendrían que ser en general, todas, escuelas para
la democracia (por cierto, no en un sentido demagógico!). En
este punto me apoyo en una citación de Dewey – que leí en
algún lugar – y que no deja de resultar iluminadora y cuestio-
nante para todos nosotros. Dewey sostiene que la moralidad de
la educación como sistema no está tanto en los aprendizajes o
capacitaciones que se reciben per se, sino también en su habi-
litación para, a partir de la experiencia común, aportar a la
incidencia de cada educando en la vida social. Nos dice que
“bajo ciertas condiciones la escuela misma se convierte en una
forma de vida social, una comunidad en miniatura y en estre-
cha relación con otros modos de experiencia asociada más allá
de los muros de la escuela. Toda educación, agrega, que desa-
rrolle el poder de participar eficazmente en la vida social es
moral”. De inmediato, surgen algunas dudas: el tipo de educa-
ción que tenemos y sus proyectos cumple con esta afirmación?
Contribuye a una autorreflexión crítica de los educandos, al
desarrollo de una personalidad no fría como rasgo antropológi-
co? Que relación tiene esa personalidad fría con el modelo de
sociedad basado en la persecución del propio interés, del éxi-
to, el poder o el dinero?
12: Todas estas tareas, que en apariencia tienen una acep-
tación más o menos sencilla, no son nada fáciles de llevar a cabo,
y demandaran, de parte de todos aquellos motivados por ellas,
un gran esfuerzo de convencimiento y creatividad. Con todo,
aparecen como muy necesarias. Nada está asegurado respecto
al futuro de las generaciones venideras. Lo sucedido podría vol-
ver a repetirse. Por ello podemos aprender también de trage-
dias ocurridas en otros lugares del planeta. En ese sentido Z.
Bauman afirmaba – y lo compartimos – que “aunque el dominio
nazi terminó hace ya mucho, su venenoso legado aún pervive;
entre otros motivos, sostenía, por nuestra continua incapacidad
para descubrir el engaño de la trampa asesina (…) por nuestro
deseo de seguir jugando el juego de la historia con los dados
cargados con una razón que minimiza los clamores de la mora-
lidad por irrelevantes o locos; (…), por nuestro consentimiento
ante la autoridad del cálculo rentable como argumento contra
los mandamientos éticos”. Esa experiencia nos enseña, sigue
este intelectual, “que un sistema en el que la racionalidad y la
ética apuntan en direcciones opuestas, la humanidad es la prin-
cipal derrotada”. Acaso no podríamos aprender nosotros tam-
bién de esa y otras historias, además de la nuestra?

144
Notas
1
Según científicos americanos, hemos llegado a una situación – con
la contaminación y el cambio climático-, en la cual la actual emisión
de CO2 tendrá que reducirse de 385 ppm (partes por millón), al me-
nos, unos 350 ppm. Todo ello si deseamos preservar un planeta y una
vida sobre la tierra como la que hemos conocido hasta ahora. Lo cual,
como puede preverse, no es algo evidente ni fácil de hacer.
2
Y claro está, no lo decimos sólo nosotros, hay una ingente literatura
al respecto. Pero es de notar que organismos financieros, como el
Banco Mundial, nada sospechosos de izquierdismo, consignan esta
cuestión en sus análisis. Véase su Informe sobre la Desigualdad en
A.Latina y el Caribe de 2003.
3
Por ejemplo, el trabajo realizado por Nancy Fraser, o A.Honneth,
entre otros.

145
Valores morales – corrupción y derechos humanos en
el Perú
Luis E. Solís Acosta
Inicio está disertación planteando en primer momento que
no es nuestro objetivo repetir los informe estadísticos de la si-
tuación actual sobre los graves problemas en relación a valores
y valoraciones morales, la corrupción y los derechos humanos
en el Perú, pues sería más de lo mismo, a lo que estamos acos-
tumbrados, tener las frías cifras estadísticas, los porcentajes,
pero la realidad dinámica, los problemas cotidianos que afectan
al poblador de nuestro país, realmente no aparecen, las cuales
nos hablan de un notorio crecimiento económico pero ¿el Perú
realmente ha crecido o algunos integrantes de nuestra socie-
dad han crecido? ¿Cambio el Perú? ¿Se invierte en producción,
en desarrollar industrial? O ¿todavía sólo nos sostenemos como
exportadores de materias primas (país primario exportador)?
¿Se invierte en educación como motor para salir de la depen-
dencia y el subdesarrollo? ¿Se invierte en salud, para tener hom-
bres sanos para un país sano? Y otras interrogantes que son
obvias en un país como el nuestro.
Ante todo recordemos que, entre sus diversos significados,
las palabras “corromper” y “corrupción” poseen una connotación
significativa moral. Así, la primera significa tanto echar a per-
der, depravar, como sobornar o cohechar al juez o a cualquiera
persona, con dádivas o de otra manera. Corrupción designa, de
un lado, la acción y efecto de corromper o corromperse y, de otro
lado, el vicio o abuso introducido en las cosas no materiales (Dic-
cionario de la Real Academia de la lengua española).
Cuando empleamos corrientemente el término “corrup-
ción”, pensamos entonces en el conjunto de acciones, compor-
tamientos voluntarios que crean un funcionamiento irregular
de las diversas instancias del Estado. Situación que implica, en
particular, la alteración o la modificación (cualitativa o cuanti-
tativa) de las vías por las cuales el poder político se manifiesta
normalmente.
El Estado es incapaz para responder a las exigencias de la
sociedad, sus respuestas no corresponden a las expectativas de
los grupos sociales o de los individuos, o no respetan el procedi-
miento debido. Muchas veces, aún cuando este procedimiento
es respetado y la respuesta es la adecuada, la intervención del
Estado genera, a causa de la corrupción, resultados diferentes
de los que deberían producirse regularmente.
Los medios a través de los cuales la corrupción es provoca-
da son irrelevantes: pagos ilegales, chantaje, extorsión, conni-
vencia, exacción, coima. etc. Es igualmente indiferente el hecho
que aquellos que participan en la corrupción se encuentren den-
tro o fuera de la administración del Estado. Lo que es decisivo
para caracterizar la corrupción es la valoración que permite con-
siderar que la actuación o la intervención del Estado no es con-
forme, ni en el fondo ni en la forma, a las normas establecidas
previamente y de acuerdo a las vías regulares, ni en lo ético y
más.
En la medida en que existe de manera generalizada en to-
dos los niveles del aparato administrativo del Estado, la corrup-
ción produce necesariamente la descomposición del Estado, si-
tuación caracterizada por el desorden y la desorganización.
Podríamos enumerar un sinfín de problemas no resueltos
y sin interés para los que dirigen el destino de nuestro país.
Debemos de partir por comprender que el Perú es un país
diverso, bueno, muy diverso. Somos un país: multicultural y plu-
rilingüe, un país conformado por muchas naciones (en la costa:
blancos, negros, mestizos; en la sierra: quechuas y aimaras; en
selva más de 60 naciones: Asháninka, Witoto, Culina, Chamicu-
ro, Matsiguenga, Awajun, Piro, Bora, Huambisa, etc. cada na-
ción con su lengua, cultura, tradición, creencias, usos, costum-
bres, etc., pero ellos jamás fueron tomados en cuenta por nues-
tros gobernantes, ellos son el Perú que no aparece, sólo se les
toma en cuenta en épocas electorales, luego siguen siendo invi-
sibles, inexistentes.
Lo señalado nos remite y recuerda que no existe la nación
peruana, como decía nuestro amauta José Carlos Mariátegui,
está en proceso de constitución, lo cual es fundamental para
poder consolidarnos como país.
Somos un país altamente fragmentado en todos los aspec-
tos aunque algunas “modernas teorías” señalan que la fragmen-
tación es la esencia del desarrollo y el cambio (los postmoder-
nos y sus variantes), pero el Perú es un país fragmentado en
todos los aspectos, y dicha fragmentación se sigue acentuando,
y ello es una de las causas de pertenecer al grupo de los países
pobres y dependientes; de los que hoy se dice “están mal” y
mañana están peor.
Podemos dar una mirada a cada uno de los diversos as-
pectos que permiten entender la grave crisis de valores mora-

148
les, de crisis política que se vive en nuestro país: claro está que
ésta es una mirada que trata de ser lo más objetiva posible y que
tiene como objetivo comunicar los graves problemas por los cuales
pasamos y que cada día empeoran más.
Para no ir muy lejos, en nuestro país acabamos de pasar
por elecciones regionales y municipales, donde nuestro país es
una caricatura de lo que es la política y bueno, mejor dicho,
politiquería (el negocio de la política), por ejemplo la alcaldía
de Lima la gana un candidato acusado de fraude, de robo, de
negociado; pero los medios de comunicación (que hoy están
concentrados en una sola mano el 80%: la del Grupo el comer-
cio, familia Miró Quesada) usaron todos los medios para que la
población en Lima aceptara como normal y correcto que un can-
didato puede ser ladrón pero que haga obra (una encuesta de la
empresa Ipsos Apoyo arrojó que más del 50% votaría por el can-
didato que no importa que robe, pero que haga obras), una últi-
ma encuesta de la misma empresa por solicitud del diario el
Comercio arrojó como resultado que el 92% de la población se-
ñala que el problema fundamental a enfrentar es la corrupción
que raro, en cuanto antes de las elecciones regionales y munici-
pales sus diversas encuestas daban como máximo un 49% a 52%.
No hay nada que hacer, somos el país de las maravillas.
El Perú está viviendo una bonanza económica sin prece-
dentes en su historia contemporánea, con tasas de crecimiento
promedio anual superiores al 6% durante más de una década
(bueno, hoy la crisis ya llegó y nos golpea, se señala que el cre-
cimiento para este año será máximo del 4%). En este contexto,
los problemas que más preocupan a la ciudadanía son la persis-
tente desigualdad y pobreza, la corrupción y la exclusión de las
mayorías (por el color de la piel, el nivel económico, la opción
sexual, por el sexo, por la forma como vistes, como hablas, etc.),
en la vida cotidiana, en lo diario.

Una mirada a las definiciones sobre corrupción y su


correlación con la realidad peruana actual
Vivimos en una cultura de la corrupción y en una socie-
dad enferma, en considerable medida, caracterizadas por hábi-
tos, mentalidad y renuencia a las leyes válidas y creativas. Exis-
te una anomia que no es por no diferenciar el bien y el mal,
pues estos están suficientemente diferenciados, sino que algu-
nos eligen el mal porque da mejores dividendos. De ahí que el
pueblo los vea con sentimientos ambivalentes: por un lado re-
chaza, critica y no está de acuerdo con el delito, pero por otro
envidia lo logrado por éstos al querer tener lo que ellos han
conseguido y viéndose en su pobreza no solamente externa sino

149
interna, se identifican con éstos e incluso están listos a formar
parte de esta mafia o ser cómplices de ella. Desarrollan propa-
ganda subliminal o descarada que los lleva a aceptar lo que su-
cede como normal, así es; todo ello en componenda con todos
los poderes del estado y su cómplice la iglesia católica y sus
representantes.
La corrupción envuelve a una considerable mayoría, vícti-
ma de la incultura, ignorancia y desdén así como a elementos
de las clases dominantes que prefieren mantener al pueblo li-
mitado y excluido. El estilo de vida estaría inclinado por méto-
dos ilícitos considerados naturales. Se llega a medir el ingenio
para burlar la ley, la falsificación es expresión de la descompo-
sición en el comportamiento. Hay una parte de la sociedad que
no le interesa que los actos de corrupción continúen a condi-
ción de que los dictadores les confieran favores y privilegios.
La corrupción es un problema social, político, jurídico y
económico, tanto por sus causas como por sus consecuencias.
Las estrategias para combatirla deberán ser consideradas como
responsabilidad del Estado desde una mirada global del proble-
ma, dejando claro la falacia que se vende que considera que la
pobreza sea causa de la corrupción, por el contrario es una de
las consecuencias. Ser pobre no es sinónimo de ser corrupto;
además los más corruptos del país son los más acomodados y
pudientes. Todo ello ha quedado demostrado por ejemplo en un
primer momento a través de los “valdivideos”; pero ahí no que-
da la cosa, tenemos un presidente condenado a 25 años de pri-
sión, otros 2 presidentes enjuiciados, investigados; congresis-
tas, presidentes regionales, alcaldes presos, condenados e in-
vestigados, un sistema judicial totalmente corrupto, etc., de ahí
que ya se puede hablar de un sistema corrupto, con un estado
corrupto por varios motivos, es corrupto, apoya la corrupción,
corrompe, no la combate, y lo peor se colude con ella.
En esta era de la globalización, de la aldea global (para
algunos, pues países como el nuestro son globalizados pero no
se les permite globalizar), entendida ésta como un fenómeno de
integración de los mercados, de los Estados-nación y de las tec-
nologías, el concepto ha evolucionado. Tanto el concepto de co-
rrupción y los conceptos de la mayoría de los problemas socia-
les se han ido modificando de manera similar, y se encuentran
condicionados culturalmente.
Es increíble que hoy podemos decir que también se ha
globalizado la corrupción, Dado que la corrupción, en sus cau-
sas, efectos, formas y esencia – por las cuales se dan común-
mente en el sector público – también se configuran en el sector

150
privado, como lo señala la Convención de las Naciones Unidas
Contra la Corrupción, en las actividades económicas, financie-
ras y comerciales.
Además se ha globalizado en cuanto el mundo está con-
trolado por poderes corruptos que avalan, respalda, alimentan
la corrupción y la violación de los derechos humanos, sino vea-
mos por ejemplo el accionar de los EEUU, de Israel en el mundo,
por ejemplo en, Irak, Afganistán, Palestina, y que no decir his-
tóricamente en América Latina y el caribe.
En nuestro país la corrupción y autoritarismo llegan a
niveles de irracionalidad: Tenemos que muchos agentes eco-
nómicos, tanto públicos como privados, en sus actos afectan
negativamente a la sociedad. Valga un ejemplo de “concerta-
ción”: Un grupo de empresas se pone de acuerdo para elevar
los precios de un producto o servicio; la obligación del trabaja-
dor de depositar su pensión en una AFP (Administradoras de
Fondo de Pensiones), obligar a que todos se aseguren y lo ha-
gan en una empresa privada, que tu CTS (compensación por
tiempo de servicio) se deposite en un banco privado, etc. No te
consultan sólo lo imponen, si reclamas, lo que es justo, eres
incitador, subversivo.
El Perú, lo señalan los estudiosos del tema, está a puertas
de convertiste en un narco estado, sociedad bajo el control de la
delincuencia en todas sus formas.

Causas generales de la corrupción


Determinar las causas de este fenómeno es realmente una
tarea que escaparía a una modesta exposición como la presen-
te, sin embargo, diversos investigadores han planteado algunos
factores que condicionan la aparición y desarrollo de la corrup-
ción:
• La ausencia de valores y valoraciones positivas en la sociedad
(principalmente esta última), lo que explica la interesada poca
claridad para determinar lo correcto de lo incorrecto en el
ejercicio de la función pública. El problema no es de valores
sino de valoraciones, de apreciación.
• La distribución política del poder en la administración públi-
ca de forma intolerablemente concentrada, discrecional y sin
ejercicio transparente del mismo. La coyuntura de una socie-
dad pobre que encara un periodo de crecimiento que obliga a
la modernización (lo cual no se toma en cuenta), por lo que
debe mantenerse mucha atención y no relajar los sistemas de
control sobre el gasto público.

151
• Factores sociales y políticos de raigambre histórica (esencial-
mente desde el Virreinato) en el Perú que han determinado
que los funcionarios públicos perciban al Estado como un bo-
tín a conquistar y aprovechable, prescindiendo de las normas
y reglas establecidas, ello es presencia de formas pre moder-
nas (feudales) en nuestro país.
• Finalmente, se nos presenta un aspecto singular propio del
desarrollo político de nuestro país. Me refiero al sistema polí-
tico autoritario heredado del fujimorismo (como desarrollo
del ya existente) que engendró un acentuado nivel de corrup-
ción política sin precedentes en el país, que hoy es copiado
por los gobernantes de turno. Esa concentración del poder
determinó que la corrupción avanzara a niveles que ninguno
de nosotros imaginó. A eso se debe la importancia, la necesi-
dad imperiosa de un sistema de administración de justicia
independiente (en el verdadero sentido de la palabra) en el
contexto de un Estado democrático.
Pues bien, esta generalidad y extensión de la corrupción,
así como las nuevas características que viene adquiriendo en
este último tiempo, llevan consigo efectos sumamente graves
en la vida política, económica y social de un país
1. En el ámbito político, la corrupción influye en la inestabili-
dad política de los Estados. Los cambios de régimen, en ma-
yor o en menor medida, son explicables desde la constatación
de factores de corrupción precedente. Y es que este fenóme-
no socava brutalmente la confianza de la ciudadanía en el fun-
cionamiento regular de las instituciones políticas. Esta des-
confianza detiene precisamente el desarrollo de estas institu-
ciones y encuba situaciones que pueden determinar un explo-
sivo ambiente de insatisfacción social. Como señala la profe-
sora Ackerman (1997), “la corrupción sistemática socava la
legitimidad de los gobiernos, especialmente la de los demo-
cráticos, los que incluso pueden verse amenazados por golpes
de Estado dirigidos por líderes totalitarios”. Paradójicamente
afirma esta autora que en los países no democráticos, esto es,
autoritarios o dictatoriales, la corrupción siempre opera con-
tra las reglas de un poder abierto y justo.
Como puede apreciarse, esta frase de Ackerman es cierta-
mente aplicable a la realidad política peruana, si no, recorde-
mos el corrupto e inflacionario gobierno aprista (85-90) que
precedió al nefasto y oscuro régimen autoritario que gobernó
el Perú durante la década de los años 90.

152
Finalmente, la corrupción también reproduce y consolida la
desigualdad social, consolida el clientelaje político y perpe-
túa la ineficacia de la burocracia y, por lo tanto, impide con-
tar con una administración pública eficiente al servicio de la
satisfacción de los derechos de la mayoría de peruanos.
2. Económicamente, los especialistas señalan a la corrupción
como un factor que alimenta y apoya la ineficiencia y desper-
dicio en el aprovechamiento de los recursos y en la implemen-
tación de las políticas públicas, como afirmaría Luis Pásara.
En efecto, cuando el soborno se convierte en práctica corrien-
te, los contratos gubernamentales, las concesiones, las licita-
ciones, las privatizaciones no son adjudicadas a los postores
más eficientes y profesionales, sino a los que tienen mejores
contactos y carecen de escrúpulos. Ello, evidentemente, per-
judica los intereses del Estado y por ende los intereses de
todos los ciudadanos.
Igualmente, la corrupción conlleva a que la redistribución de
la riqueza se reasigne a favor de aquellos que detentan algu-
na forma de poder monopólico, esto es, de sectores con ma-
yor capacidad adquisitiva, en perjuicio de las capas menos
favorecidas y a las que generalmente van destinados los fon-
dos públicos.
Así mismo, estudios económicos demuestran y nos indican
que existe una “correlación negativa entre crecimiento y al-
tos niveles de corrupción” (Rose Ackerman), lo que significa
que a mayores niveles de corrupción menores serán los índi-
ces de crecimiento económico de un país, caso claro es lo que
acontece en nuestro país.
Demos una mirada a las definiciones de corrupción y su
correlación con nuestra realidad.
En lo Social: La corrupción como un acto contra la ética,
contra las valoraciones morales positivas, constituye un vicio,
un abuso y una mala costumbre en el manejo de un bien común.
Consolida las desigualdades sociales, reproduciendo el poder
social de las clases dominantes.
En nuestro país tenemos que los espacios públicos son
para los pobres, las mayorías; mientras que los espacios priva-
dos (son privados, exclusivos) son para los dueños de la riqueza
y el poder (el estado se encargó de ello); la justicia es para el
que tiene dinero (“dime cuánto dinero tienes y te diré que tan
inocente eres”); la educación es elitista y estratificada “dime
cuánto dinero tienes y diré como te educas” (la peor de América
Latina), los servicios de salud están en proceso de privatización,

153
pero se la están entregando a sus grupos de amigos o con quie-
nes pueden hacer un buen negocio.
Los medios de comunicación, cerca del 85%, están con-
centrados en una sola mano (El Grupo el Comercio) la única voz
crítica, objetiva es el diario UNO, escasamente el diario la Repu-
blica, o Hildebrand en sus trece (semanario). Estamos inundado
de diarios “Chichas” diarios que venden violencia, pornografía,
y diversión de la más irracional, es penoso constatar que son los
más comprados en nuestro país. Medios de comunicación que
venden y propalan como normal la despolitización de la vida
social, de ahí que se caracteriza, por la poca o nula información
acerca de la realidad social y sus problemas, soslayan todo lo
que pueda motivar a que las mayorías se indignen por lo que
está sucediendo. No se informa y se vende un manifiesto desin-
terés en los asuntos sociales y políticos del país.
Es penoso decir que hoy las grandes mayorías han perdi-
do la capacidad de indignación ante aquello que los daña, los
perjudica, los insulta, los deshumaniza, todo ello ya era parte de
nuestro vivir cotidiano, pero se hizo obvio y comenzó a consoli-
darse en el gobierno de convicto Alberto Fujimori.
El hábito de beneficiar a elites o sectores de poder en
nuestro país, las leyes benefician a los dueños de la riqueza por
ejemplo ahí tenemos las nuevas leyes de flexibilización de la
economía (presentado por la cámara de comercio y la Confede-
ración Nacional de Instituciones Empresariales Privadas – Con-
fiep) que con el pretexto de incentivar la producción plantea la
eliminación, reducción de los costos laborales, de los derechos
laborales (reducir las vacaciones a una semana, pagar el míni-
mo que le parezca al empresario, que las gratificaciones que-
den como recuerdo, que los despidos sean gratis, etc.)
Crisis de valores y valoraciones como reflejo de la crisis
estructural por la que pasa el país. Hoy nuevamente como en la
década de los 90 nos quieren vender la idea de que la grave
crisis expresada en la corrupción, narcotráfico, aumento de la
delincuencia, es un problema moral, de origen moral (igual que
en la época del fujimorismo, pero que a su vez fue una directiva
neoliberal); cuando sabemos que ello es reflejo de la crisis polí-
tica y por qué no económica que vive nuestro país.
Los medios de comunicación sean dedicado a vender la
idea de tolerancia a la corrupción, que en realidad significa to-
lerancia a la delincuencia de saco y corbata, a los funcionarios
públicos que delinquen, pero “hacen obra, trabajan” (“robó, pero
hizo obras”), se les protege para que no sean sancionados.

154
Otro caso es la Policía Nacional, si preguntamos a la po-
blación ¿Usted siente que la policía lo protege? La gran mayoría
del pueblo dirá que No, esto se debe a que la policía no atiende
las quejas de la población, no hacen nada por cuidar la tranqui-
lidad pública. Si alguien quiere denunciar por una agresión, la
policía no recibe la denuncia, le dice que vaya a la Prefectura a
pedir garantías, el gobernador le da una citación para que le
entregue al agresor para conciliar, ¿usted conciliaría con su
agresor? Pienso, que de ninguna manera. En el caso que usted
pase por esa “vía crucis” y el agresor concurra a la prefectura,
se hace un acta en la cual ponen al agresor en el mismo nivel
que el agredido, eso no sirve para nada, lo engañaron, lo tontea-
ron una vez más. A partir de las 6 de la tarde no encuentra un
policía en la ciudad ni en las zonas de peligro ¿Dónde están?
¿Qué hacen? Lo más común, hacer batidas en las avenidas “pro
bolsillo” o metidos en un patrullero cerca de algún negocio don-
de puedan sacar un beneficio. La policía es otro de los organis-
mos más corrupto del estado. Ante la ineficiencia policial, es
necesaria la reorganización total. La oficialidad está compro-
metida con la política y la corrupción.
En el caso de los gobiernos regionales y municipales, los
principales actos corruptos tienen que ver con los procesos de
adquisiciones en todos los ámbitos, en los que se favorece a
empresas cercanas a los encargados de llevar adelante los pro-
cesos o a los propias autoridades cuando las empresas les pagan
coimas para ganar las licitaciones (el famoso 20%). La otra fuente
de corrupción tiene que ver con las contrataciones y ubicación
en puestos de trabajo a amigos, familiares y militantes del par-
tido (clientelismo y nepotismo). Tenemos profesionales en insti-
tuciones del estado con 20 años de servicio, llega alguien reco-
mendado y gana el doble, sin tener ni la acreditación ni expe-
riencia necesaria.
En otros sectores sociales hay enormes posibilidades de
corrupción. En salud, los que parecen ser los principales actos
corruptos tienen que ver con el ocultamiento de negligencias
en actos médicos: el espíritu de cuerpo (que también está pre-
sente en todos los demás sectores); pero también se ha detecta-
do tráfico de productos como medicinas destinadas a la salud
pública en mercados informales.
En educación hay graves problemas que tienen que ver
con la extensión del sector y con lo reducido de la capacidad de
control institucional. De esta forma, los directores se convierten
en los “dueños” de sus colegios y tienen amplios márgenes de
acción con ciertos grados de impunidad, dependiendo del inte-
rés de los padres de familia y profesores. Pero los propios maes-

155
tros también mantienen sus pequeños actos corruptos, trafican-
do con notas a fin de año o estafando a los alumnos y padres con
clases de recuperación forzadas y pagadas. También está el dra-
mático problema de los abusos sexuales contra alumnas y alum-
nos. Destaquemos que la anuencia de los padres de familia es
fundamental para que estos actos se sigan reproduciendo.
En lo que toca a los medios de comunicación son los acto-
res más quejados por la sociedad en general. La irresponsabili-
dad con la que actúa la gran mayoría de medios (radiales, escri-
tos y televisivos en especial), ejerciendo una prensa amarilla,
programas chicha, Talk Shows, programas basura; no se queda
sólo en una mala calidad de información sino en información
deformada, manipulada, que se incrementa cuando ese estilo
morboso de hacer prensa es usado para chantajear autoridades
o como caballo político de batalla. Por supuesto, hay que tener
presente el enorme temor de las autoridades a enfrentar a los
medios es lamentable. Hoy por ejemplo el 85% de prensa nacio-
nal, la cual está en manos del grupo el Comercio, le está hacien-
do propaganda gratuita a la Sra. Keiko Fujimori, hija del dicta-
dor, asesino y el más grande corrupto de la historia del Perú,
Alberto Fujimori Fujimori, a fin de que pueda ganar las eleccio-
nes presidenciales del 2016. Realmente le hacen propaganda a
los más grandes avaladores de la corrupción en el Perú: Alan
García y Keiko Fujimori.
En cuanto a las empresas, los principales problemas –
además de la participación corrupta en procesos de adquisicio-
nes del Estado – tienen que ver con la informalidad; pues de allí
se desprenden problemas como la evasión tributaria y como las
coimas pagadas a autoridades para mantener esa situación. Pero
también es de destacar la relación tensa entre sociedad rural,
empresas mineras y gobierno; porque la entrega de licencias a
las mineras sin respetar los informes de impacto ambiental y
social, es leída por la sociedad como un “arreglo” corrupto en-
tre empresa y funcionarios públicos.
En la Política: Es concebida como una amenaza para la
estabilidad y la seguridad, pues socava las instituciones y los
valores de la democracia, la ética y la justicia. Se pone en la
mira los procesos de elecciones y el financiamiento de los parti-
dos políticos, quienes al aceptar contribuciones de ciertos gru-
pos de poder interesados, están delimitando su actuar (de lle-
gar al poder), para beneficiar luego a grupos que responden a
esos intereses políticos y/o económicos. Perpetúa la ineficiencia
en el aparato administrativo; el Estado pierde credibilidad y le-
gitimidad, y lo aleja de las clases populares.

156
Los gobernantes y funcionarios ya no les interesa la legi-
timidad y el reconocimiento popular, solo les interesa lucrar,
enriquecerse.
La corrupción es descarada, políticos que llegan al poder
siendo delincuentes, siendo investigados, algunos sentenciados:
a nivel del más alto cargo público (presidente de la república)
presidente sentenciado a 25 años de prisión por corrupción,
asesinato, robo, peculado (Alberto Fujimori); Alan García, ex
presidente que luego de su primer gobierno fue enjuiciado y
sentenciado, pero que huye a Francia donde se esconde hasta
que su caso prescribe, luego retorna al país y vende un discurso
novedoso, es elegido y para variar luego traiciona todo lo ofreci-
do, luego es investigado por corrupción conjuntamente con sus
ministros, acusado de liberar más de 4,000 narcotraficantes
sentenciados; pero el poder judicial corrupto lo exime de ser
investigado, no de la culpa (hoy el congreso tiene en sus manos
acusarlo constitucionalmente), otro ex presidente enjuiciado,
Alejandro Toledo, acusado por “lavado de activos” y “asociación
ilícita”el famoso caso Ecoteva.
Presidentes regionales acusados y encontrados culpables,
presos, en investigación y sentenciados por robo, peculado, “la-
vado de activos” y “asociación ilícita”: Gerardo Viñas Dioses de
la región Tumbes (prófugo), Kléver Meléndez Gamarra de la
región Pasco, César Álvarez Aguilar de la región Áncash, Martín
Vizcarra Cornejo de la región Moquegua, Wilfredo Oscorima
Núñez de la región Ayacucho, etc.
Financiamiento del narcotráfico a los partidos políticos,
narcotraficantes, delincuentes, personas con procesos judicia-
les compitiendo en las diversas elecciones que se dan en nues-
tro país (corroborado con oficio remitido por el ministro del
Interior Daniel Urresti, el 11 de agosto del 2014, en el cual se-
ñala 124 candidatos investigados por narcotráfico. el JNE a tra-
vés de su presidente, Francisco Távara, informó que han detec-
tado que 345 candidatos tienen condena vigente y están postu-
lando.
Además Información escasa o de difícil acceso, segmen-
tada, o poco entendible sobre la gestión pública.
Beneficio a las elites políticas desde el poder, financia-
miento por parte de los grupos de poder a partidos políticos y
sus campañas en procesos electorales, por intereses alternos.
Escaso incentivo a la participación y obstaculización o blo-
que de iniciativas ciudadanas.
Escasa o nula rendición de cuentas sobre actos de los go-
bernantes, así como de la ejecución de los presupuestos

157
Todo ello atenta contra la llamada “democracia represen-
tativa”, Menoscaba la legitimidad del Estado. Afecta el normal
funcionamiento administrativo de la institución, Genera la pér-
dida de confianza en los gobernantes, etc.
Por último, los partidos políticos son una de las principa-
les fuentes de presión para que los funcionarios públicos colo-
quen a un militante en un puesto de trabajo o para que un pro-
ceso de adquisición le favorezca a un determinado participante,
allegado o miembro de un partido. El carné partidario, el ami-
guismo, el compadrazgo, el tarjetazo se ha vuelto un símbolo
del clientelismo político, en otras palabras, de la corrupción.
Hay que apuntar que la presión puede venir desde miembros
del partido fuera del aparato público, o de militantes ubicados
en otras jerarquías públicas, como un ministro, un regidor, un
gerente, un congresista, etc.
Jurídica: la corrupción es considerada un acto ilegal, pues
transgrede las normas prestablecidas. No sólo afecta a la socie-
dad, la corrupción puede conseguir la dación de nueva normati-
vidad favorable a ella, es decir, para que se den leyes o resolu-
ciones que beneficien a sus “promotores”. El poder judicial en
nuestro país está corrompido desde sus bases, el 90% son co-
rruptos, la población señala que el poder del estado más co-
rrupto es el judicial. Ahí tenemos:
El poder judicial expresa injusticia, generan desconfianza
e intranquilidad en todos los niveles de la sociedad. Más aun cuan-
do los jueces liberan a diario a delincuentes con delitos compro-
bados como el caso de los violadores, asaltantes capturados infra-
ganti, o asesinos del volante. El apoyo en la sociedad de estas
instituciones no pasa del 6%, la corrupción avanza y se comprue-
ba, los fiscales y jueces siguen haciendo de las suyas. No hay
quien los sancione en forma ejemplar. Ante ese vacío legal, la
corrupción engorda y la impunidad se enseñorea. Terminar con
la corrupción en los poderes del estado exige un cambio de la
constitución y del sistema legal vigente, pero ello, sólo es posible
con una reestructuración de la sociedad peruana, la corrupción
está entronizada en todos los niveles e instancias del poder.
El Poder Público y Judicial, prácticamente para el pueblo
no funciona. Se dice “la justicia tarda pero llega”, aquí en Perú
tarda y nunca llega. Al respecto en el poder Judicial, en los juz-
gados hay más de tres millones de expedientes que esperan, en
las cárceles hay hacinados más de la mitad de los internos sin
haber sido juzgados.
Mientras eso sucede con la gente sin recursos, hay otros,
de las diversas mafias y grupos de poder, que jamás pisan cár-

158
cel, uno de ellos es Alan García Pérez, principal actor en las
matanzas de los penales, recepción de coima en el tren eléctri-
co, chuponeo de BTR, cobro de más de $10,000 dólares por año
a presos por narcotráfico por liberarlos. Todo esto con pruebas
y testigos, pero el autor principal está libre y todavía impone
condiciones, quiere conocer las preguntas con anticipación, ar-
guye debido proceso. Pero el APRA infiltró estos poderes (al
peor estilo fujimorista), tiene jueces y fiscales para entorpecer
la investigación y prescriban los delitos, como fue los 1,300
millones en arreglos de colegios, los 218 millones en el estadio
nacional. Solo Alan García Pérez y sus socios tienen ese privile-
gio de manejar jueces y fiscales. En el Poder Judicial reina la
impunidad para los delincuentes de cuello y corbata. Alberto
Fujimori asesino y ladrón comprobado vive en un palacete, re-
cusa a juezas honorables, ¿Por qué permite la ley eso? O ¿es que
el sistema protege a su creador? Pero la corrupción no se redu-
ce a la infiltración, a la manipulación. Los fiscales no avanzan,
demoran, cambian, alteran las investigaciones.
Nos hace falta un ordenamiento jurídico e institucional
adecuado a la realidad nacional. Grado de dependencia, impar-
cialidad y real autonomía del Poder Judicial. Necesitamos una
real reglamentación para la participación, vigilancia ciudadana
y la rendición de cuentas. Necesitamos una clara delimitación
entre lo público y lo privado. Se requiere imponer sanciones
ejemplares a personajes corruptos.
Podemos concluir de manera parcial que:
1. La corrupción ha sido facilitada por el predominio de regíme-
nes autoritarios y por una frágil institucionalidad. Este con-
texto sirve para crear espacios en los que los funcionarios
pueden maniobrar discrecionalmente. Bajo ese dominio más
bien personal, prima siempre el manejo oculto y los negocia-
dos sin control.
2. Para el fortalecimiento de la democracia, el estado de dere-
cho, la estabilidad y el desarrollo del país es necesario comba-
tir toda forma de corrupción en el ejercicio de la función pú-
blica, así como los actos de corrupción específicamente vin-
culados con tal ejercicio.
3. Los actos de corrupción inciden en el desarrollo económico y
social del país, distorsionan el gasto público, desalientan la
inversión extranjera, inciden negativamente sobre las activi-
dades del Sector Público y afectan la conciencia moral de la
Nación.
4. Es necesario establecer los mecanismos de prevención, de-
tección y erradicación de toda forma de corrupción y generar

159
mecanismos de colaboración y cooperación entre las diferen-
tes instancias del Estado;
5. Es necesario entender la corrupción como un problema inte-
gral, como un fenómeno relacionado al mal funcionamiento
del Estado y a la falta de sistemas de control y vigilancia efec-
tivos. Ese debiera ser el debate en materia de reforma del
Estado. Una tarea que deberá asumir el próximo gobierno.

Acerca de los derechos humanos en el Perú


Es un asunto que debe verse con mucho cuidado en cuan-
to no hay muchos avances en ese sentido, el estado no promueve
la defensa de los derechos humanos en el país, en lo que respec-
ta a: lo laboral, la educación, la salud, el respeto a la diversidad,
el aborto, etc.
Nos dice la Coordinadora Nacional de Derechos Humanos
en su informe anual del 2012 – 2013, Perú encabeza las cifras
de la conflictividad social a nivel latinoamericano, no respeto a
los derechos laborales, no respeto a la diversidad, no protección
a los niños y ancianos, no protección a los adolescentes en ries-
go, no inversión en educación ni salud.
De acuerdo con una investigación realizada en el 2012
por el PNUD23, sólo en octubre de 2013, la Defensoría del Pue-
blo da cuenta de la existencia de 220 conflictos sociales y 90
acciones colectivas de protesta. Respecto al origen de los con-
flictos, la Defensoría señala que casi el 70% tiene carácter so-
cioambiental. De estos, el 76% está vinculado al ejercicio de
competencias a nivel del Gobierno Central. En el 2014 hubo un
aumento de dichas cifras 270 conflictos sociales y más de 100
acciones colectivas de protesta. Ello nos permite afirmar que
existe una estrecha relación entre la conflictividad social y la
inexistencia, a nivel de gobierno nacional, de cauces institucio-
nales adecuados para el ejercicio de la ciudadanía en el Perú.
Sin embargo, la respuesta del Gobierno Central frente a
la conflictividad social ha eludido abordar decididamente las
causas estructurales y de fondo del fenómeno; se ha centrado
en medidas paliativas. El resultado de este tratamiento enfoca-
do en atender los síntomas y no la enfermedad es, evidentemen-
te, el fracaso.
En este sentido, la conflictividad social total en el país se
ha mantenido en niveles superiores a los que existían cuando
Ollanta Humala asumió el poder en julio de 2011. Y, en particu-
lar, se ha incrementado de manera sostenida la referida a te-
mas socioambientales.

160
La otra cara de la llamada “gestión del diálogo” en el abor-
daje de la conflictividad social es la política de “mano dura”. El
gobierno de Ollanta Humala ha continuado desarrollando las
estrategias represivas desplegadas por los gobiernos anteriores
en relación con la protesta social. Nuevamente el abordaje gu-
bernamental consiste en enfrentar los síntomas en lugar de la
enfermedad. A este nivel, sin embargo, ya no se trata solo de
una intervención relativamente amable, pero ineficiente del Es-
tado, sino de una política estatal de alto impacto en materia de
derechos humanos.
Durante el gobierno de Ollanta Humala Tasso se han su-
cedido los casos de uso abusivo de la fuerza en situaciones de
protesta social. El uso de armas letales, inclusive armas de gue-
rra, constituye una práctica habitual. También se han recogido
numerosas denuncias sobre el uso de la fuerza de manera indis-
criminada, injustificada, y desproporcionada.
Durante la gestión del actual gobierno 29 civiles han per-
dido la vida como resultado de la intervención de las fuerzas del
orden en situaciones de protesta social. El 86% falleció por heri-
das infringidas con armas de fuego, el 10% de los fallecidos
fueron menores de edad.
Los abusos policiales tienen un perfil marcadamente dis-
criminatorio, ya que todas las personas fallecidas residían fuera
de la capital del país, en zonas rurales, o zonas urbanas pobres.
Además, más de la mitad de los muertos fueron personas indí-
genas o personas que protestaban para reivindicar los derechos
indígenas, lo que constituye un impacto marcadamente despro-
porcionado sobre este grupo poblacional, que representa el 16%
de la población nacional según el INEI.

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PROÉTICA. Primera Conferencia Nacional Anticorrupción Proé-
tica. Lima, 2001.

162
El trabajo de asistencia y acompañamiento a
víctimas de delitos de lesa humanidad en el marco
de los juicios: la experiencia argentina
Fabiana Rousseaux*
Desde el año 2005 un grupo de profesionales de la salud
mental iniciamos una tarea novedosa en el ámbito de la Secreta-
ria de Derechos Humanos de la Nación, que depende del Minis-
terio de Justicia y Derechos Humanos de Argentina.
Creamos allí un dispositivo de asistencia y acompañamien-
to a víctimas del terrorismo de Estado, lo cual ya de por sí, im-
plica un espacio inaugural, debido a que todo lo vinculado con
la asistencia y con contención psicológica a víctimas, ha sido
asumido desde el sector salud en la mayoría de los programas
existentes.
Esta decisión tiene una razón de ser, y es que al posicio-
narnos desde una perspectiva reparatoria, y al tomar ese eje
transversalmente en la tarea que iniciábamos, notamos que la
mayoría de los equipos que dependían del sector salud, estaban
desvinculados en su discurso y en sus prácticas no sólo de esta
perspectiva reparatoria en sus intervenciones sino que además
sostenían que el problema de asistencia a víctimas de delitos de
lesa humanidad no era parte de la tarea que podían asumir,
porque no estaban formados ni académica ni clínicamente para
trabajar sobre esos casos.
Nosotros consideramos muy importante que en un ámbi-
to como el del Ministerio de Justicia y en particular desde la
Secretaría de Derechos Humanos de la Nación,- en un momento
político de un país en donde se reanudaron a partir del 2003 los
juicios por delitos de lesa humanidad-, hubiera una respuesta
estatal a la altura de ese acontecimiento mundial e histórico.
Por cierto, ese cambio de paradigma “se pueden juzgar a
los responsables de delitos de lesa humanidad” produjo un pro-
fundo cambio en el terreno ético de la sociedad, y era muy ne-
cesario que los profesionales nos comprometiéramos con esta
mirada cruzada por los derechos humanos además de la clínica,
ya que, hasta el momento en el que iniciamos esta tarea, los
sobrevivientes y sus familiares se acercaban a los servicios pú-
blicos de salud para pedir atención por las secuelas de lo que
habían vivido en los centros clandestinos de detención y se en-
contraban con respuestas devastadoras a nivel de la subjetivi-
dad con profesionales que sostenían que “de eso era mejor no
hablar, que ya había transcurrido mucho tiempo, que era mejor
olvidar”.
Lo primero que surgió entonces es pensar ¿qué sujeto
suponían quienes respondían de este modo? ¿Cómo era posible
apelar al olvido? ¿De qué estaba hecha esa memoria traumáti-
ca? Y ¿cómo suponer que era realizable dejar de lado esas mar-
cas en la vida de un sujeto, siendo que además esos crímenes
continuaban impunes hasta ese momento y el largo derrotero
de los sobrevivientes para declarar en juicios en el exterior y
ante diversas instancias internacionales había dejado una pro-
funda marca ante la situación de tener que volver a testimoniar
una y otra vez, sin contención de ningún orden, excepto la que
podía prodigar a familia, o los compañeros de militancia, u or-
ganizaciones de derechos humanos que habían sostenido las
investigaciones y el acompañamiento durante los largos años de
impunidad que se habían vivido en el país.
Frente a este panorama apelamos y convocamos a quie-
nes habían trabajado esas temáticas en la Argentina y otros paí-
ses de la región. Muchos de ellos pertenecientes a ex equipos
psicoasistenciales de los organismos de derechos humanos, es
decir organizaciones no gubernamentales que surgieron duran-
te la década del ’70 mientras se desencadenaban los hechos
más atroces que vivieron los países del cono sur.
Este punto implica un primer dilema: que el Estado asuma
las consecuencias de lo que generó el terrorismo de Estado. Cuál
es la mirada, la lectura posible desde dónde pensar y articular
políticas reparatorias que asuman esa particular paradoja?
Poder acompañar ese proceso, asumiendo las responsabi-
lidades del Estado en el campo de la salud por parte de profesio-
nales que encarnamos una política desde el propio Estado, nos
para de entrada frente al problema de posicionarse en un lugar
ético frente a las víctimas del terror estatal.
Por lo tanto, el primer interrogante fue: cómo establecer
una lógica de trabajo asistencial (no asistencialista) en el marco
de un Ministerio de Justicia? lo cual es de por sí muy novedoso.
Por otro lado, la reapertura de los juicios en el 2006 per-
mitió reconocer la imposibilidad de llevar adelante juicios por
delitos de lesa humanidad solamente desde el discurso jurídico.
En un principio, aquello que tenía que ver con juzgar a genoci-
das citando como testigos a los sobrevivientes, que son la prue-
ba fundamental de ese genocidio, requirió establecer distintas

164
pautas en la administración de justicia, a nivel técnico, en tanto
no era posible aplicar a este tipo de procesos los mismos crite-
rios que si estuviéramos juzgando cualquier otro tipo de delito.
El problema que encontramos es que se trataba del Estado juz-
gando a los crímenes cometidos por sí mismo y, en segundo
lugar, la prueba fundamental de esos crímenes eran los testigos
sobrevivientes de la aplicación de esa política del terror.
Testigos que por otra parte, ya habían dado testimonio en
reiteradas oportunidades, aún antes de estos juicios, ya sea en
el exterior o en organismos de Derechos Humanos que funcio-
naban en la Argentina y otros países de la región durante la
década de los ’70 y “80. Muchas de estas pruebas fueron incen-
diadas, allanadas, inundadas mientras estaban a resguardo de
distintos organismos de Derechos Humanos. Recordemos la per-
secusión política que sufrieron a mayoría de ellos. Por esta ra-
zón, esos testimonios fueron destruidos en una gran magnitud,
lo cual exigió un proceso de varias reconstrucciones a lo largo
de los años.
Quienes – con el advenimiento de la democracia, 1983 –
volvieron a la Argentina, prestaron testimonio en llamada “la
causa 13” o “juicio a las juntas” y, por primera vez, lo hicieron
frente a un tribunal.
Posteriormente, se abrieron juicios en el exterior, y vuel-
ve a iniciarse para las víctimas, una ronda de declaraciones.
Esto se produjo mayormente en Francia, Italia, Alemania y en
Suecia. Estos juicios en el exterior tuvieron su fundamento en la
legalización de la impunidad a partir de las leyes de “obedien-
cia debida”, “punto final” y los decretos de indultos. Estos últi-
mos fueron otorgados bajo el período neoliberal del ex presi-
dente Carlos Menem, donde paradójicamente surgen las prime-
ras leyes de reparación económica bajo esta perspectiva, poco
dignificante para los sobrevivientes.
Por último, a finales de 1999 y comienzos del 2000, se
llevaron adelante los “juicios por la verdad” que se desarrollaron
mayormente entre las ciudades de Mar del Plata y La Plata. Si
bien no tenían consecuencias penales para los acusados, permi-
tían la reconstrucción de la verdad histórica. En ese contexto
también dieron testimonio los sobrevivientes y familiares. Por
consiguiente, ya para 2006 – momento de la reapertura de los
juicios – estos testigos habían ofrecido su declaración en dema-
siadas oportunidades, y se había provocado un efecto muy com-
plejo de revertir: descreían de la justicia. No hallaban fundamen-
tos para confiar en que la Justicia les aseguraría que su testimo-
nio fuera a ser de utilidad para juzgar a los responsables.

165
En el marco del primer juicio (2006) que se reabre en la
ciudad de La Plata, y ya habiéndose armado una estructura ju-
dicial con tribunales ordinarios dispuestos para el inicio de los
juicios contra el terrorismo de Estado, desaparece Julio López.
Un testigo importante en ese juicio. Podemos imaginarnos el
impacto simbólico que esa desaparición provocó en todo el uni-
verso de testigos.
Esta nueva desaparición, generó un quiebre importante a
nivel social, ya que dentro del discurso sobre las consecuencias
que había traído aparejadas la “desaparición forzada” de 30.000
personas en el país, se instala este nuevo impacto sobre una
memoria social ya traumatizada, y la forma en que los testigos
revivieron los hechos a partir de este episodio. Es decir que la
desaparición de hecho de un testigo puso en jaque – en ese
momento – la posibilidad de continuidad de los juicios. Pensa-
mos que los testigos no iban a poder asumir sus declaraciones
con el peso del terror que implicaba una “desaparición” efecti-
va en el marco de la reapertura de los juicios.
La primera respuesta que el Estado dio frente a este he-
cho fue acudir al discurso protectorio (Dirección de Protección
a Testigos e Imputados) para que quienes declararan tuvieran
garantizada la protección (se trataba de la denominada causa
Etchecolatz).
Pero allí se planteó un nuevo problema, vinculado a la
significación de “lo protectorio”. Qué era en ese contexto y en
esa población sentirse “protegido”? Siendo que muchas de las
víctimas habían sido detenidas por las fuerzas de seguridad que
hoy formaban parte de esos equipos que eventualmente los pro-
tegerían. De modo que hubo que reestructurar toda la lógica de
trabajo ministerial desde lo protectorio, hasta lo judicial, pasan-
do por la contención para abordar estos particulares procesos
judiciales en la Argentina, donde se juzgan crímenes de lesa
humanidad, sin tribunales ordinarios, lo cual significa una si-
tuación jurídica inédita.
Al plantearnos entonces la necesidad de extremar las
medidas de protección, nos fuimos dando un amplio debate en-
tre los diversos ministerios que interveníamos en esta política
de abordaje a las víctimas, hasta concluír que la gran medida
protectoria que corría el eje de las fuerzas de seguridad, era
que los testigos se sintieran acompañados por el Estado.
Con lo cual planteamos la necesidad de crear el dispositi-
vo de “acompañamiento” como una medida protectoria en sí
misma. Los que venimos del campo de la salud mental sabemos
que la palabra “acompañamiento” se liga instantáneamente a

166
un acompañamiento terapéutico, es decir, acompañar a alguien
que no está en condiciones de hacerlo por sí solo y que, de algu-
na manera, el profesional tiene que suplir lo que el otro no pue-
de. El otro está en déficit. Pero esto no era lo que nosotros que-
ríamos plantear en estos casos, porque justamente, el gran ries-
go que asumíamos, era convertir el proceso de producción de
testimonio en un proceso terapéutico o en un ámbito donde el
testigo podía sentirse, un “paciente” o un sujeto en déficit, res-
pecto de sus capacidades psicológicas, emocionales, intelectua-
les, etc.
Los testigos-sobrevivientes que afrontan estos juicios, de
lesa humanidad no son “pacientes” es decir no están afectados
por psicopatologías, son sujetos que han visto afectado su pro-
yecto de vida, como bien lo señala el Protocolo de Estambul1, a
partir de sufrir violaciones sistemáticas por parte del Estado,
contra ellos. Los efectos que arrojan estas violaciones de Dere-
chos Humanos, son totalmente diversos a los efectos que arro-
jan las psicopatologías o nosologías psiquiátricas en pacientes
con cuadros de ese orden.
El testimonio es una prueba central en estos juicios, y a la
vez muchos de los testigos (víctimas) requerían de un trabajo
previo para poder asumirlo, y llevar a cabo esa declaración sin
que en ella se ponga en juego toda su “existencia”, ni se anuden
allí riesgosos síntomas que comprometieran al propio cuerpo
del sujeto declarante. Así vimos a muchos testigos desarrollar
enfermedades graves, algunas de ellas autoinmunes, con un alto
grado de compromiso y riesgo, luego de declarar. Y entendimos
que lo que se ponía en marcha en esas declaraciones debía ser
cuidado extremadamente para no producir un efecto revictimi-
zante. Poner a hablar a la verdad, esta verdad traumática pro-
ducto de violaciones de derechos humanos, no era sin riesgos.
Comenzó así un debate profundo sobre la verdad jurídica
y la verdad subjetiva de estos testigos y produjimos un viraje
conceptual acerca del disloque entre riesgo de vida (discurso
de la protección), y riesgo subjetivo (discurso del acompaña-
miento).
Además, debíamos partir del punto ético de aceptar los
hechos como verdaderos ya que los sobrevivientes habían tran-
sitado muchos años antes por el llamado “Juicio a las Juntas”
(Técnicamente se la denominó “Causa 13”) (año 1985) y pro-
ducto de ese juicio, se habían demostrado los hechos vinculados
a la existencia del terrorismo de Estado en la Argentina.
En ese contexto, construimos una nueva lógica de traba-
jo, referida al deber del Estado de comprometerse a “acompa-

167
ñar y estar presente”. Acompañar el proceso de los juicios, no
sólo a los testigos, sino al proceso judicial en si mismo. Es de
notar que Argentina se constituyó en el primer Estado que que-
rella contra el propio Estado; a través de la Secretaria de Dere-
chos Humanos de la Nación, presentada como querellante en
estas causas.
Cuál es el efecto, el impacto que tiene sobre el propio tes-
tigo volver a contar lo sucedido en el marco de un juicio oral que
va a tener consecuencias penales? Este interrogante nos guió en
la construcción de la tarea de “acompañamiento en juicio”.
El posible y notable efecto reparador que se desprende
de una declaración en condiciones acordes a la magnitud de esa
instancia, hace que muchos testigos, tengan la sensación ali-
viante de haber sido escuchados por el Estado; y cuando llega la
etapa de la sentencia y se ven reflejadas las sanciones para quie-
nes cometieron los peores crímenes contra ellos, se produce
una sensación intensa que muchos sujetos refieren como “repa-
radora”, y donde a pesar de haber soportado un proceso muy
doloroso, sentirse escuchados por el Estado revierte ese efecto
de modo retroactivo. Es decir que se resignifica ese tránsito
doloroso en reparación frente a la escucha y acompañamiento
estatal, a través de sus representantes.
Todos estos dilemas, tocan directamente a la lógica judi-
cial y nos envía a la pregunta sobre ¿Qué es lo que estamos
juzgando? ¿Para qué? ¿A qué le vamos a dar mayor peso, tenien-
do en cuenta que estamos juzgando delitos de lesa humanidad y
no cualquier otro delito y que lo que están encarnando los jui-
cios, es el poder omnímodo del Estado, en su estado de excep-
ción, y que juzgarlo significa que todos los poderes del Estado
deben coordinar esas políticas.
En ese sentido y para finalizar, desde el Poder Ejecutivo
iniciamos un trabajo de interlocución con el Poder Judicial, in-
tentando plasmar todas estas recomendaciones que desde el
Programa de Acompañamiento a Víctimas-Testigo, veníamos
desarrollando con los operadores judiciales, y acordamos en la
necesidad de producir un “Protocolo de Intervención para el
Tratamiento de Víctimas-Testigos en el marco de Procesos Judi-
ciales”.
El punto teórico central de ese Protocolo fue invertir el
concepto penal de testigo-victima por el de víctima-testigo. Re-
virtiendo esta categoría, resaltábamos la condición de víctimas
sobre la de testigos, que objetivamente deben transmitir una
verdad a los jueces; y podíamos hacer valer las dilemáticas si-
tuaciones por las que atraviesa una víctima de delitos de lesa

168
humanidad, sobre otras víctimas de otro tipo de delitos. Es de-
cir, que las víctimas del terrorismo de Estado conforman un
universo específico de trabajo que requiere de una perspectiva
teórica interdisciplinaria y no puede abordarse sólo desde el
derecho penal.
La otra cuestión que produjo un viraje en la producción
de este Protocolo, fue la de incluir la lógica de reparación que
estos testimonios deben provocar. En ese aspecto apelamos al
reconocimiento de la declaración como derecho, y no sólo como
obligación. Derecho histórico que asiste a quienes han sufrido
los mayores avasallamientos que un Estado puede provocar con-
tra sus ciudadanos. El deber de declarar que asiste a todo testi-
go, se convierte en estos juicios en deber social de “escuchar” lo
que ha sucedido. Como plantea Enzo Traverso2, Auschwitz no
existió mientras salía humo de las cámaras de gas, sino 50 años
después cuando la sociedad estuvo dispuesta a escuchar lo que
allí había sucedido.

Notas
*
Psicoanalista – Buenos Aires / Argentina.
1
Protocolo de Estambul, Manual para la Investigación y documenta-
ción eficaces de la tortura y otros tratos o penas crueles, inhumanos
o degradantes. Oficina del Alto Comisionado de Naciones Unidas.
2
“Trauma, remoción, anamnesis: la memoria del Holocausto”, en
Políticas de la memoria, tensiones en la palabra y la imagen, de
Sandra Lorenzano y Ralph Buchenhorst, 2007.

169
Testemunho da Verdade e efeitos de reparação
psíquica
Vera Vital Brasil*
O testemunho, como exercício de narrar e elaborar trau-
mas sociais, na prática política( ...) é uma tentativa de
se escovar a história a contrapelo, abrindo espaço para
aquilo que normalmente permanece esquecido, recalca-
do e legado a um segundo ( ou último) plano. (SELIG-
MANN-SILVA, 2013)
Como terapeuta de pessoas afetadas pela violência de Es-
tado, com muitos anos de convívio com o que se entende por
“Clínica e Direitos Humanos”, não posso deixar de considerar a
importância dos “50 anos do Golpe Civil Militar”, momento em
que debates, filmes, seminários nacionais e internacionais, ma-
nifestações variadas se contrapõem ao silêncio e negação que
marcaram por tantos anos a política de esquecimento implanta-
da no país. Nesta onda de recuperação histórica destes aconte-
cimentos reacendem-se as lembranças do passado, valoriza-se a
construção da verdade e da memória de tempos sombrios.
Tempos sobre os quais a sociedade em seu conjunto pou-
co teve acesso ao que ocorreu durante o regime totalitário, ain-
da que agrupações de familiares, movimentos de Direitos Hu-
manos tenham levantado suas bandeiras denunciando os desa-
parecimentos e torturas a presos políticos, que jornalistas te-
nham se empenhado em furar o bloqueio da censura, logrando
divulgar algumas destas informações e arbitrariedades. Uma
dimensão histórica da vida político social, soterrada pelo silen-
ciamento e pelo esquecimento, dominada pela versão oficial por
décadas, excluiu de seu registro a força da violência e do terror
de Estado que se abateram sobre a vida social durante o longo
período de vinte e um anos da ditadura no Brasil.
Os eventos dos 50 anos do Golpe trazem à tona o modo como
se deu a tomada do poder pela força das armas e como o regime se
impôs através do controle dos meios de comunicação, das artes,
da educação, de uma normativa jurídica feita através de decretos,
das intervenções nas instituições. Engendrando uma intensa cam-
panha contra uma suposta “ameaça comunista”, os golpistas fize-
ram acreditar que as duras medidas tomadas em seus muitos de-
cretos eram justas e necessárias para o funcionamento do país.
Mais recentemente, e muito lentamente, ganha corpo em
nosso país uma outra versão política sobre os acontecimentos
que marcaram o período ditatorial: demissões, perseguições,
prisões, torturas, execuções sumárias, desaparecimentos, foram
medidas que constituíram, além das já citadas, o método re-
pressivo, utilizado de forma generalizada e sistematizada nos
anos sessenta e setenta na América Latina; uma estratégia ins-
taurada para promover a destruição das forças de oposição e
resistência aos regimes militares, com a intencionalidade de
disciplinar a sociedade para implantar um modelo econômico
social e político. Essas medidas repressivas produziram uma afe-
tação direta nos opositores, seus familiares, em seus grupos de
pertencimentos institucionais e no conjunto da sociedade. Os
danos do terror de Estado não se circunscreveram exclusiva-
mente no corpo dos afetados diretos e de seus familiares; mas
se irradiaram para o conjunto da sociedade e se propagaram
através do tempo. As atividades dos “50 anos do golpe” têm o
valor de dar visibilidade a um período em que a repressão esta-
tal se institucionalizou, deixando profundas marcas na socieda-
de que permanecem ativas nos dias atuais.
O que se delineia no quadro dos 50 anos do Golpe é a
insurgência de um questionamento acerca de uma determina-
da perspectiva histórica que predominou como verdade, um
questionamento e investigação que, até então, haviam ganhado
alguma presença, circunscrita aos meios acadêmicos, e que nos
últimos anos, por iniciativas de outros setores sociais, vêm ex-
pandir este campo histórico construindo uma outra verdade so-
bre os acontecimentos e sobre as forças políticas em confronto.
Conhecer o passado no presente, “escovar a história a con-
trapelo implica enfrentar esta lógica de auto-legitimação do
poder” (SELIGMANN-SILVA, 2013, p. 48). Uma estratégia de
auto-legitimação do poder que se afirmou por muito tempo nas
políticas de negação,1 no convencimento e na ilusão de que o
progresso da sociedade deveria estar voltado para o futuro, es-
vaziando o necessário exame crítico sobre o passado. Uma es-
tratégia marcada pelo silenciamento e esquecimento, solidamen-
te instituída, que contribuiu para a manutenção do legado auto-
ritário, ainda que algumas medidas no campo da Justiça Transi-
cional2, em especial de construção de Memória Verdade e Justi-
ça, de reparação estejam em curso, dentre elas a Comissão Na-
cional da Verdade.
Em contraponto a esta forma de gestão que invisibilizou a
opressão do regime civil militar, os 50 anos do Golpe com suas
atividades variadas nas universidades, nas praças e nas ruas,
concomitantes às da Comissão Nacional da Verdade, têm mobi-

172
lizado setores e segmentos, jogando mais luz sobre o terror de
Estado e sua relação com o que perdura nos dias atuais sob a
forma de arbitrariedade, inadequação, imperfeição de um regi-
me conhecido por Estado de Direito.
Limitado por lei em seu funcionamento a um período de
dois anos, o mandato da Comissão Nacional da Verdade mos-
trou-se insuficiente para investigar, neste curto tempo, a exten-
são das violações no território nacional cometidas pelo Estado
ditatorial, ainda que seu trabalho de investigação tenha contri-
buído para a formalização e ampliação do reconhecimento esta-
tal dos crimes cometidos. Sua implantação, uma demanda anti-
ga de movimentos de Direitos Humanos, fez crescer o movimen-
to pela Verdade Memória e Justiça com a criação de centenas de
Coletivos e Comitês, espalhados pelo território nacional e cons-
tituídos por ex-presos políticos e por jovens sensibilizados pela
temática, e de Comissões da Verdade Estaduais, Municipais e
setoriais que se propõem a ampliar o campo de investigação.
Em sua missão de iluminar o passado, investigando o pa-
drão de violência estrutural do regime totalitário, ao reunir e
examinar documentos – até então inaccessíveis e alguns deles
ainda sob total controle, ocultados pelas Forças Armadas, prin-
cipalmente os que poderiam esclarecer crimes de desapareci-
mento – a Comissão Nacional da Verdade marcou presença na-
cional e contribuiu para o debate sobre os acontecimentos e a
luta pela memória e verdade. Missão tardia, o curto tempo de
gestão deixou importante lacuna em seu trabalho de elucidação
dos crimes de lesa humanidade, como o de ocultação de cadá-
ver, caso dos desaparecidos, dificultado pelo silêncio sinistro e
perverso das Forças Armadas. Entretanto, em seu relatório fi-
nal, lançado no dia 10 de dezembro de 2014, dia Internacional
dos Direitos Humanos, a Comissão apontou publicamente os
envolvidos direta e diretamente em crimes de lesa humanidade,
agentes estatais que, ao serem chamados a depor, pouco ou nada
aportaram para o esclarecimento das investigações3.
O trabalho de investigação não se pautou exclusivamente
nos depoimentos limitados e pontuais de agentes públicos, nos
registros documentais que a Comissão Nacional da Verdade pode
acessar: teve uma contribuição importante dos que viveram as
atrocidades da época, vozes que haviam sido silenciadas e nega-
das alçaram-se ao lugar de testemunho de seu tempo. Testemu-
nho que diz respeito ao tema que nos convoca mais especifica-
mente neste artigo: o da Clínica do Testemunho.

173
Reconhecimento do passado
A verdadeira imagem do passado passa por nós de forma
fugidia. O passado só pode ser apreendido como imagem
irrecuperável e subitamente iluminada no momento de
seu reconhecimento. (BENJAMIN, 2013, p. 11)
O Estado brasileiro somente em 1995, com a lei 9140,
que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos4,
reconheceu pela primeira vez a sua responsabilidade nas mor-
tes e nos desaparecimentos de opositores políticos. Esta Comis-
são contou com uma inestimável e fundamental participação de
familiares, que forneceram informações colhidas durante a lon-
ga peregrinação em busca de parentes. Este material sistemati-
zado veio a constituir o livro Direito à Verdade e à Memória 5,
lançado em 2007.
Alguns dispositivos de reconhecimento do passado foram
sendo lentamente criados no país. As Caravanas da Anistia, des-
de 2008, vêm convocando a palavra de sobreviventes e familia-
res em espaços públicos e em vários estados brasileiros durante
a apreciação de requerimentos de perseguidos/opositores polí-
ticos junto à Comissão de Anistia.
Da mesma forma, as vozes que se ouviram no âmbito das
Comissões da Verdade contribuíram para a quebra do silêncio a
que foram submetidas tantas vidas. Destravou-se a língua de
milhares de pessoas que não tinham, até poucos anos, suportes
de escuta para narrar o que lhes aconteceu.
Outro dispositivo estatal de reconhecimento dos danos do
terror de Estado, criado no âmbito da Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça, o Projeto Clínicas do Testemunho, tem
potencializado o ato de testemunhar, numa perspectiva de re-
paração simbólica dos atingidos diretos e seus familiares.
A Equipe Clínico-Política do Rio de Janeiro, da qual faço
parte, desenvolveu, por cerca de vinte anos junto a um movi-
mento de Direitos Humanos, um trabalho pioneiro de atenção
clínica psicológica a perseguidos políticos e seus familiares com
recursos de agências internacionais6. A partir de 2010, como
grupo autônomo, independente de qualquer entidade ou insti-
tuição – e por entender que somente o Estado tem a responsabi-
lidade de reparar os danos cometidos por seus agentes -, bus-
cou sensibilizar setores do Estado brasileiro para uma proposta
de reparação psicológica.
A Comissão de Anistia7 mobilizando equipes clínicas em
vários estados brasileiros através de edital público, inaugurou,
em 2013, um projeto piloto de dois anos de atenção psicológica
aos anistiados, anistiandos e familiares.

174
O Projeto piloto “Clínicas do Testemunho” da Comissão
de Anistia, Ministério da Justiça, de atenção clínica a afetados8
possui, antes de tudo, uma dimensão especial por ser pioneiro
nesta tarefa de reparação psicológica, que cabe exclusivamente
ao Estado, por ter sido o autor dos crimes de lesa humanidade.
A especificidade desta clínica é, portanto, de reparar simbolica-
mente os danos da violência, praticada por agentes estatais que
subverteram sua função de proteção de direitos. Um suporte
clínico que visa dar sentido a uma experiência dolorosa que fi-
cou silenciada e apontar para um trabalho ético político de re-
constituição de laços sociais, de vínculos que foram rompidos
pela ação totalitária.

Proveniência: o testemunho e a verdade


Os que têm memória são capazes de viver no frágil tem-
po presente. Os que não a têm não vivem em parte algu-
ma. (GUZMAN, 2010)
Patrício de Guzmán, cineasta chileno, afirma, em sua obra,
que a memória é obstinada, que as marcas da ditadura de Pino-
chet, apesar de ocultas, escondidas e ignoradas, continuam vi-
vas para quem queira e saiba buscá-las.
O que porta o testemunho senão a memória da verdade
experimentada em seu corpo? Marcas de um passado que insis-
te em não passar se não houver uma acolhida, uma interlocu-
ção, um reconhecimento?
Na conexão entre a memória do passado e a potência do
testemunho (LOSICER, 2014, p. 60-65) vale buscar a proveniên-
cia da figura do testemunho e seu valor na recuperação dos
acontecimentos, banidos pelas forças de legitimação do poder
autoritário.
Logo após a Segunda Grande Guerra, foram as testemu-
nhas que colocaram a face do nazismo exposta ao mundo; horro-
rizaram nações inteiras, exibiram a extrema crueldade humana,
mostraram o que os homens são capazes de fazer com outros
homens. Uma experiência de terror inimaginável que atingiu toda
a humanidade. Os sobreviventes que não saíram mudos dos cam-
pos narraram sobre o horror que lhes causou enorme impacto e
nos que puderam tomar conhecimento das atrocidades.
Com registros documentais limitados – devido ao esforço
nazista de eliminar os vestígios da barbárie praticada pelo geno-
cídio e trabalho escravo, que levaram à incineração de documen-
tos e corpos – a figura do testemunho adquire relevância inicial-
mente na cena jurídica do Tribunal de Nuremberg9, onde crimes
do nazismo foram julgados. Numa época em que o valor docu-

175
mental predominava nos julgamentos, a figura do testemunho
afirmou-se com a força da narrativa de horrores, ganhou presen-
ça na literatura sobre os campos de concentração e, mais tarde,
nos registros testemunhais de sobreviventes de regimes totalitá-
rios da América Latina (SELIGMANN-SILVA, 2008, p. 65-82).
É na literatura testemunhal de vários sobreviventes dos
campos de concentração que se evidencia o valor do testemu-
nho sobre as situações limite experimentadas, revelando o com-
promisso ético adotado por ex-prisioneiros em relatar a verdade
dos horrores, movidos pela força que lhes restava e que os man-
tinha vivos. Um projeto de vida para além de si: sobreviver para
contar o que a maldade humana havia sido capaz de engendrar.
Se no caso dos sobreviventes do Holocausto alguns saíram
mudos pelo impacto do terror, outros puderam narrar o ocorri-
do após a soltura dos campos, como forma de liberação do mal,
como tentativa de reintegrar-se à humanidade (SELLIGMAN-SIL-
VA, Narrar o Trauma ). Outros ainda lograram relatar o que
viveram, depois de passados muitos anos do ocorrido (SEMPRUN,
1995; ANTELME, 2013).
Muitos, ao voltarem dos campos, banhados no efeito de-
vastador produzido pelo terror, temeram dizer que lá estiveram
pelo receio de não serem mais aceitos nas comunidades em que
viviam (LANZMAN, 1985). Passar pelos campos de concentra-
ção deixou inevitavelmente marcas indeléveis em suas vidas,
marcas com as quais os sobreviventes lidaram com os recursos
psíquicos de que dispunham.
Mais recentemente, na América Latina, sob o impacto do
terror de Estado, fez-se visível o esforço de testemunhas sobre-
viventes dos campos e das masmorras, para manter suas vidas
com o objetivo de contar o que lhes passou. A literatura, a filmo-
grafia, a dramaturgia, as artes plásticas revelam a experiência
do terror e da força da sobrevivência.
Miguel Lawner, “o arquiteto da memória”, prisioneiro de
um campo de concentração em Chacabuco, no deserto de Ata-
cama, Chile, cartografou a dinâmica da velha prisão, registran-
do cuidadosamente os lugares, suas dimensões, sua disposição
no espaço que permitia o movimento dos corpos no local. Para
que seus desenhos não fossem descobertos por seus algozes,
destruiu os registros, mas manteve-os vivos na memória. Em seu
exílio, reconstruiu a arquitetura do campo, denunciando a bar-
bárie do regime Pinochet (GUZMAN, 2010). Os poucos sobrevi-
ventes da Escola de Mecânica da Armada10. em Buenos Aires,
prisioneiros utilizados pelos repressores como mão de obra es-
crava, puderam “remontar” o espaço, sua dinâmica macabra,

176
indicar locais onde foram torturados, onde as vítimas eram con-
finadas para serem trasladadas em vôos da morte, salas onde as
mulheres prisioneiras pariram seus filhos, bebês sequestrados
por seus repressores, antes de serem assassinadas. Os sobrevi-
ventes deste centro clandestino de extermínio construíram uma
cartografia do funcionamento repressivo e, desde a década pas-
sada, têm denunciado os responsáveis nos julgamentos.
No Brasil, no Rio de Janeiro, Inês Etienne Romeu, a única
sobrevivente da Casa da Morte de Petrópolis, apesar de ter sido
levada encapuzada para este centro clandestino de tortura e
extermínio, conseguiu localizá-lo, apontar o nome das pessoas
que viu ou que ouviu terem passado por lá, denunciando os tor-
turadores que atuavam neste centro à Ordem dos Advogados do
Brasil, OAB do Rio de Janeiro, poucos anos depois de lograr sair
do cativeiro.
No universo de documentários cinematográficos sobre o
tema há que registrar o pioneirismo do “Que bom te ver Viva”
de Lucia Murat, ex-presa política, lançado em 1989, expressão
do testemunho feminino de um tempo de barbárie, em que oito
mulheres, militantes sobreviventes da tortura, expõem as suas
dores, as ameaças sofridas sob tortura, falam de suas dificulda-
des e luta para continuar vivendo num mundo hostil ao que ha-
viam vivido. Enfrentando a incompreensão social diante de ex-
periência tão dura, destacam a repercussão dos efeitos da tor-
tura na maternidade, na relação com parceiros. A ameaça do
torturador sobre suas vidas, por vezes, projetada nas relações
amorosas e na maternidade.
As possibilidades de recuperação deste tempo de horro-
res dependem do tempo de cada sujeito, de seus recursos psí-
quicos, dos suportes sociais e políticos no que se refere às possi-
bilidades de escuta para esta memória. Suportes de escuta de
diversas modalidades.
No Brasil, muito tardiamente, têm sido institucionaliza-
dos alguns dispositivos estatais em número insuficiente, dado o
grau de violações cometidas pelo Estado e sua amplitude. As
Comissões da Verdade, as Caravanas da Anistia, o Projeto Clíni-
cas do Testemunho de reparação psicológica, algumas publica-
ções testemunhais e documentários subsidiados pelo Estado
conferem o esforço que alguns órgãos estatais têm dado à me-
mória do período. Entretanto, um outro quadro expõe a limita-
da importância dada à memória destes tempos sombrios: até os
dias de hoje apenas um Centro de Memória, o Memorial da Re-
sistência, situado na cidade de São Paulo, está em funcionamen-
to, em que pese a luta para a criação de Museus e Memoriais em

177
outros estados, inclusive no Rio de Janeiro, uma das cidades onde
se deram inúmeras violações nos períodos ditatoriais.
Para que se viva no presente, como diz Guzmán, é neces-
sário conhecer o passado e, para isso, são necessários suportes
de memória que possam difundir o que ocorreu, que mobilizem
através da cultura e da arte, de pesquisas o conhecimento do
que foi o período autoritário e seus efeitos, visando a descons-
trução das formas repressivas e marcas do autoritarismo im-
plantadas no regime totalitário.
Da mesma forma, são necessários suportes que permitam
uma escuta qualificada das testemunhas, dispositivos clínicos
que reconheçam a verdade de que o sujeito é portador quando
submetido à violência do terror estatal; escuta que contribua
para recuperar a dignidade que lhe foi cassada e que seja faci-
litadora para a elaboração psíquica do trauma vivido.
O ato de romper a barreira do silêncio, contar o que acon-
teceu e expor a dor e o sofrimento para os que possam escutar,
de conectar-se afetivamente com os que acolhem a palavra e
reconheçam o que lhe foi infligido, poderá dar à experiência,
até então vivida de forma privatizada, um outro destino, um ou-
tro sentido. Nestas condições de acolhimento e escuta, o sujeito
poderá reorganizar seu campo afetivo, até então aprisionado no
passado traumático. Concomitante ao sentido que se engendra
com o ato de testemunhar, produz-se um outro que se refere ao
social, que não é de um indivíduo e sim de outros indivíduos, de
muitos, de um coletivo. Quebra-se, desta maneira, o isolamento
de uma parte da vida, até então submetida ao sofrimento, que
se renova ganhando uma outra dimensão na construção de uma
memória coletiva. No texto único de cada narrativa testemunhal
desponta o sujeito singular e se produz a diferença em que a
repetição dos contextos, os olhares e experiências dos que estão
escutando, imprime à narrativa do testemunho a dimensão da
memória coletiva, reconstruindo os laços que se haviam rompi-
do. Assim se dá a interseção entre a experiência singular e a
coletiva (VITAL BRASIL, 2014, p. 47-55).

Proveniência: a verdade e seu valor ético político


Sobre a relação entre o testemunho e o que o escuta, ou
melhor, sobre a potência coletiva do testemunho da verdade,
vale recuperar um termo, utilizado na Grécia Antiga e resgata-
do por Foucault (2011, p. 3-21) em suas últimas aulas no Colé-
gio de França, ao traçar a proveniência de práticas que ao longo
dos tempos vieram a se configurar como profissões. Trata-se do
conceito de “parresia” que diz respeito ao dizer verdadeiro, fa-

178
lar com liberdade, da coragem em dizer a verdade. Vamos en-
contrar este conceito na pré-história de várias práticas sociais
nas quais falar a verdade sobre si mesmo sustenta-se na relação
com o outro. Práticas que foram se delineando ao longo dos tem-
pos, configurando lugares sociais, institucionalizando-se e que
têm como referência o compromisso com a verdade de si e para
com seu interlocutor. Algumas destas práticas estão presentes
nos dias atuais e podemos identificá-las entre o penitente e o
confessor, entre o paciente e o terapeuta e/ou profissional de
saúde, entre o aluno e seu professor, dentre outras.
Foucault aponta que a noção de parresia esteve enraizada
nas origens da prática política e na problematização da demo-
cracia; derivada da ética, os modos de falar a verdade se entre-
laçam com as técnicas de governabilidade que marcaram al-
guns períodos históricos. É uma noção que toma como base a
relação com os outros indivíduos na sua constituição como sujei-
tos morais. Uma noção fundamentalmente política que está no
centro de vários jogos de poder em curso no mundo.
Na cultura antiga, o falar a verdade de si era assim uma
atividade que envolvia necessariamente o outro, cujo estatuto
podia ser variável: uma pessoa, uma comunidade, uma autorida-
de. Além da dimensão moral, o dizer a verdade continha uma
função pedagógica e de cuidado com a saúde. Revelou-se como
uma espécie de prática médica que tomava a vida em todos os
seus aspectos, quer no cuidado com a saúde, numa orientação
alimentar, num tratamento da alma no registro das paixões. Aqui,
o dizer a verdade refere-se a uma atitude, um modo de ser e de
fazer algo. É uma virtude.
Através dos tempos, a noção de parresia adquiriu várias
conotações, inclusive um valor pejorativo, tal qual encontrare-
mos em alguns filósofos e na literatura cristã, no sentido de
dizer qualquer coisa que pudesse ser útil para a causa que de-
fende, ou que possa fazer valer o interesse de quem fala. Este
modo de usar a condição de parresiasta aproxima-se do charla-
tão, incapaz de ajustar suas palavras ao dizer verdadeiro. Uma
prática muito difundida e presente na instituição política do
mundo contemporâneo.
De forma breve, podemos dizer que habitaram na cultura
grega dois sentidos relacionados à noção de parresia, do dizer
verdadeiro. Um sentido político e, posteriormente, um moral e
ético. O político dizia respeito à organização democrática da po-
lis. Falar a verdade na Grécia Antiga era um direito político do
cidadão e estava associado à formação da cidadania. Uma vez
garantida a palavra verdadeira, sustentava-se a liberdade de ex-
pressão e, no curso deste processo, construía-se a democracia.

179
O ato de falar a verdade também implicava a coragem de
colocar em risco a relação com o outro, aquele que justamente
tornava possível o discurso. Este risco apresentava-se nas rela-
ções de amizade que poderiam afirmar-se ou promover distan-
ciamento, de acordo com o que se suportava da verdade, bem
como nas relações com as autoridades, como um direito relativo
à democracia. Tratava-se, portanto, da coragem e da força de
enfrentamento do narrar o acontecimento vivido, experimenta-
do, de falar de si, da verdade de si. Posteriormente, outras acep-
ções da palavra parresia não mais se referiram tão somente a
um direito democrático, mas sim a uma ética com a qual as
autoridades deveriam reger seu carát
O povo, o príncipe, o indivíduo devem reconhecer que
quem corre o risco de dizer-lhes a verdade tem que ser
escutado. O jogo da parresia se estabelece a partir deste
tipo de pacto. A parresia é a coragem da verdade de
quem fala e assume o risco, mas também é a coragem do
interlocutor que aceita receber a verdade ofensiva. (FOU-
CAULT, 2011)
Passados séculos da Grécia Antiga, a noção que marcou a
existência de uma sociedade que foi considerada o “berço” da
democracia afirmou-se em algumas relações profissionais e tam-
bém permanece como um valor a ser construído, desejado por
aqueles sabedores de sua importância ética.
Para o momento em que vivemos após os brutais aconteci-
mentos aqui apontados em que a verdade, negada e ocultada à
sociedade por tantos anos, pode ser dita e reconhecida em al-
guns dispositivos estatais, recupera-se a dimensão histórica da
noção do falar a verdade como um valor indispensável na ética e
na construção democrática.

O testemunho da verdade: um corpo que carrega a


marca da dor, da maldade, da injustiça

O sobrevivente
É meio difícil a gente falar do que está dentro de cada
um e que de uma certa maneira também faz parte de
um todo. Ontem eu estava pensando e refletindo sobre o
que eu iria transmitir aqui, e tive um pesadelo. Não
dormi mais. Um pesadelo horrível que tem a ver também
com o meu hábeas data. Fui acompanhado pelo apare-
lho da repressão ainda na ditadura e, em 1985, no final
da ditadura um fantasma me seguia e que me segue até
hoje. Eu não sei se de hoje para amanhã eu vou dormir
tranquilamente por essas marcas que vou expor aqui.11

180
Em que medida a narrativa sobre o acontecimento de hor-
ror pode produzir efeitos de reparação psíquica? O que é possí-
vel narrar sobre o que se experimentou sob o domínio do algoz
em situações limites?
As palavras introdutórias acima referidas no testemunho
público de um líder estudantil dos anos 60, preso, torturado e
banido do país, revelam a tensão entre o recordar/narrar a vio-
lência sofrida e seus efeitos sobre o corpo.
Testemunhar sobre o que aconteceu na prisão sob tortura
poderá levar a intensificação da angústia, derivar numa deses-
tabilização psíquica pelos efeitos traumáticos que as situações
limite são capazes de desencadear. Recordar os horrores de ter
estado sob o domínio do algoz, ameaçado de morte, destituído
de dignidade, de liberdade é reviver, re-experimentar o que
passou. É entrar em contato com o horror. Um passado que pas-
sou, mas que está ainda presente na memória corporal, pulsan-
do e produzindo efeitos dolorosos.
Após relatar publicamente pedaços de sua história de lu-
tas, prisão e as diversas torturas sofridas, um sobrevivente, ao
testemunhar numa Conversa Pública, diz que o Estado, tendo se
omitido por tanto tempo, deixou a cargo dos afetados a respon-
sabilidade sobre este sofrimento. “Carreguei muita culpa e por
muito tempo. Para me defender dela, utilizei o sentimento de
ódio. Ódio contra tudo e todos. Esta foi a pior forma. Só me dei
conta disso depois de anos de terapia. Falar na terapia foi muito
importante. Hoje posso viver melhor.”
O testemunho acima é claro quanto ao valor dado à pala-
vra e aos afetos. Mas não é incomum entre os que passaram pelo
terror da tortura evitar o acesso às lembranças, silenciar e guar-
dar de forma privada as lembranças. A dor da lembrança é ine-
vitável. Narrar aos familiares mais próximos a experiência dila-
cerante da tortura é uma prática rara entre os que viveram situ-
ações de tortura. O temor da contaminação pela angústia ali-
menta a ideia de proteção dos mais próximos. Dificilmente pais
relatam aos filhos o que passaram na situação de prisão e tortu-
ra. O silêncio que perdura entre as gerações produz dificulda-
des nas relações quando seus efeitos não são elaborados.
Estudos clínicos de equipes latino-americanas têm demons-
trado as implicações psíquicas decorrentes das dificuldades em
comunicar aos familiares, bem como a transmissibilidade dos
danos nas gerações subsequentes (LAGOS; VITAL BRASIL, 2009).
Tampouco o distanciamento de décadas do acontecimen-
to traumático será suficiente para evitar a crise de angústia que
poderá advir ao se narrar os horrores das situações limite.

181
Temos afirmado que a tortura visa não só fazer falar para
obter informações urgentes, de caráter imediato, quebrar a re-
sistência, dominar, anular a individualidade, destruir projetos,
subjugar. A tortura visa também fazer calar (SIRONI, 2011).
Calar não somente pela lembrança do estado de terror a que foi
submetido e/ou medo do ataque de angústia que poderá advir.
Quer pelo receio de não conseguir comunicar o que experimen-
taram, quer pelo temor de não ser entendido, a tortura faz ca-
lar. Assim, prevalece o modo privatizado que a experiência trau-
mática adquire, comprometendo as relações, produzindo rup-
turas nos vínculos familiares, sociais e com o Estado, autor da
violência. Assim prevalece a dor sobre a palavra: “resta a dor
como testemunho, efeito da comoção, da perda da trama da
linguagem, perda dos enunciados que fazem referência e sus-
tentam a existência.” (VANNUCHI, 2014, p 103-112) É a condi-
ção da suspensão da vida.A palavra brutal do torturador e seu
mandato perverso atravessam o sujeito que se vê dominado e
sobre-vive à experiência da tortura. Fragmentado no seu passa-
do mais longínquo, o antes, e o depois, a vida atual é arrastada
como um fardo pesado em que a culpabilização predomina e
mina as forças, o ânimo do sujeito.
O isolamento da experiência dolorosa no universo psíqui-
co do sujeito e o próprio isolamento como ser social, seu desam-
paro, desânimo constituem um modo particular de estar no
mundo que Ângela Santa Cruz (2014, p 41-50), em seu trabalho
clínico, ilustra, criando uma imagem simbólica do estado psí-
quico de quem foi submetido à tortura. Imagem de uma espécie
de “bolha” específica que caracterizaria certo aprisionamento
ao poder soberano, que retira potência e mantém o estado de
desamparo. Um corpo objeto, portador do mal que lhe impuse-
ram, que vaga sem destino. Que vive a crueldade, marca da vio-
lência e se vê dominado pela servidão.
Reativar a palavra através do testemunho, ainda que
balbuciante e impreciso diante de quem o escuta, é abrir a
possibilidade de que conexões sejam efetivadas, que o isola-
mento a que está aprisionado nesta “bolha” existencial se rom-
pa e que redes de relações possam vir a se constituir. Uma
reconstituição psíquica processa-se na quebra deste aprisiona-
mento e o sujeito “devolve aos protagonistas da crueldade, da
violência e da barbárie a autoria inquestionável de seus atos”
(PERRONE; GALLO de MORAES, p. 40). Devolve o acontecimento
no caso da testemunha diante de uma instância estatal que
reconheça e acolha a verdade sobre a barbárie, abrindo cami-
nho para o processo de reparação psíquica e para a reconsti-
tuição de laços sociais.

182
Depois de tudo que passei nas prisões fiquei sem forças e
sem interesse pelas coisas que fazia. Pensei em mudar
de cidade e tentar recomeçar meus estudos, mas não
tinha ânimo. Havia rompido com tudo e todos. Até que
um dia, bem mais tarde, consegui ter mais fôlego dando
aulas. A relação com os alunos reativou a minha vida.

O familiar
São cruzes sem nomes, sem corpos, sem datas. (GONZA-
GUINHA em Legião de Esquecidos).
Um estado de angústia faz parte da vida e do corpo de
familiares de desaparecidos que não puderam fazer o luto de
uma perda em que se experimenta a concomitância de algo que
é e não é ao mesmo tempo. Carregam permanentemente a dúvi-
da sobre a vida e a morte de seus familiares. Vivem uma ausên-
cia que não se pode definir, experimentam em seu próprio cor-
po uma instabilidade permanente.
O estado de indefinição social da existência dos desapare-
cidos, dos que foram retirados subitamente da convivência sem
deixar rastros, é geralmente vivido como um trauma. A não com-
provação da morte mantém a esperança de que estejam vivos,
de que um dia apareçam. Esta situação remete os familiares a
uma busca incessante em torno de possíveis sinais de vida, pe-
daços de corpos que possam definitivamente confirmar alguma
dessas condições.
São muito variados os efeitos do desaparecimento sobre a
vida de familiares, de como convivem com a dor desta singular
situação. O embaraço dos que sabem da importância de proces-
sar o luto, uma vez que tenham tido acesso a algumas informa-
ções sobre o assassinato de seus entes, ainda que sem provas
documentais ou materiais, leva-os à ideia angustiada – e repudi-
ada -, de que estariam apressando a morte, “matando” os que se
encontram desaparecidos, sendo eles próprios autores de uma
morte não comprovada. Situações complexas na tentativa de ali-
viar esta dor, de liberar-se desta inquietação que não passa, de
enfim processar o luto.
A imagem de mulheres chilenas, companheiras, esposas,
irmãs que peregrinam no deserto de Atacama buscando peque-
nos pedaços de ossos que possam comprovar algum indício da
existência de corpos de seus familiares queridos, é paradigmá-
tica desta situação de busca. Com a presença/ausência em suas
vidas, elas tentam iluminar o que está obscuro, caminhando nas
areias do deserto mais seco do planeta, buscando algum sinal
que possa comprovar a morte e processar o luto (GUZMAN).

183
A figura do desaparecido político, do sequestrado e nun-
ca mais visto, revela não só a sordidez, a perversidade de que
foram capazes os responsáveis pela repressão. A intenção na
política de desaparecimento é de exterminar fisicamente os ti-
dos como inconvenientes ao regime, eliminar os ideais e proje-
tos de vida dos que se opõem à ordem totalitária. De aterrorizar
a sociedade.
Se o torturador busca inocular no torturado sobrevivente
seu mandato de terror, nas famílias de mortos e desaparecidos
o objetivo não é diferente. O que quer o torturador senão o do-
mínio absoluto sobre a vida e a morte através da crueldade?
Nos diversos modos de lidar com esta complexa situação
de presença/ausência em que, muitas vezes, a lembrança do de-
saparecido congela-se no tempo da existência do familiar, a ex-
periência tem apontado caminhos que podem levar a um modo
especial de elaboração desta ausência: a luta. Através da luta
pela verdade, pelo aparecimento em vida, como têm clamado mães
e familiares de desaparecidos em nossos países latino-america-
nos, há indicações de caminhos mais potentes para se viver a
tragédia da ausência-presença. O investimento dos familiares na
luta pela verdade mantém os desaparecidos vivos na memória da
vida social. Para não sucumbir à tragédia do desaparecimento de
seus filhos, para manterem-se vivas, as mães de desaparecidos
mantiveram viva a luta de seus filhos, subvertendo a forma mais
convencional diante da morte (QUINALHA, 2013).
Esses familiares, forçados pela situação imposta, con-
verteram a luta que era travada por seus entes em deles
próprios, assumiram a contestação aberta ao regime
militar e transformaram o que seria luto pessoal em re-
sistência coletiva. (QUINALHA 2013).
Esta é a força, a potencia de falar com coragem a verdade.

Considerações finais
A tortura se firma como um constrangimento público
para se falar dela, tornando, como instrumento de sua
instituição, a vítima em seu próprio algoz. Publicamen-
te o torturado é interpelado como aquele que esconde os
motivos que o levaram a ser colocado naquela posição.
Resta um contínuo: “o que será que ela fez para mere-
cer?” Mais ou menos como a antiga indagação acerca
da responsabilização da alma por alguém ter nascido
mulher. (KIRALY, 2010)
O que pode o testemunho? O que de fato hoje haveria de
mudanças desta cena apontada por Kiraly em seu comentário
crítico sobre o documentário de Lucia Murad, em que oito mu-

184
lheres, logo após o período ditatorial, testemunham corajosa-
mente sobre a experiência de tortura? Sob o olhar acusatório de
sua condição de militantes resistentes ao regime opressivo, e
em sua condição feminina, o que pode o testemunho? Em 2010,
Kiraly, ao analisar os possíveis efeitos do testemunho público,
destaca o olhar acusatório sobre os sobreviventes, olhar que ain-
da predomina nas produções subjetivas, mesmo com as iniciati-
vas de reparação que têm sido tomadas.
Vivemos num tempo em que muitos ingenuamente repe-
tem e alimentam a ideia de que “o melhor para a sociedade é
dirigir o olhar para o futuro”, restos de uma produção subjetiva
para fazer do silêncio sobre o passado uma norma. Num tempo
em que o torturado é interpelado como aquele que “algo fez
para merecer”, máxima vigente em algumas mentes que “não
vivem em parte alguma”, que não conhecem as vilanias do pas-
sado, tampouco deste presente. Hoje, esta atribuição tem sido
estendida aos pobres, sobre quem a máquina estatal dirige os
seus tentáculos mortíferos.
O que pode o testemunho na construção coletiva de “es-
covar a história a contrapelo”? De produzir novas subjetividades
que afirmem o valor da ética da verdade?
Antes de tudo, o testemunho aqui referido é o daquele
que viveu em seu próprio corpo o acontecimento da violência.
Daquele que experimentou em si o acontecimento. De acordo
com Bartolomé Ruiz, “a especificidade de sua vivência torna seu
testemunho uma verdade aquém do testemunho objetivo e além
da neutralidade abstrata da verdade judicial”. E que sua experi-
ência subjetiva, singular, expõe uma verdade que vai além do
processo. O testemunho da dor sofrida revela uma verdade des-
conhecida, a do sofrimento humano com as variações subjetivas
que os sujeitos são capazes de produzir. Ele coloca em cena uma
zona obscura, desconhecida da verdade. Na narrativa testemu-
nhal a verdade oculta da violência explode, ainda que de forma
fragmentada ou mesmo imprecisa. E, ao trazer à luz esta verda-
de, o testemunho instaura um novo acontecimento político.
Assim, é fundamental que políticas públicas de repara-
ção com memória, verdade e justiça estejam ativas, construindo
outra lógica que consolide uma perspectiva futura do princípio
do Nunca Mais.
O tempo para abrir as comportas deste grande manancial
da memória depende dos sobreviventes, dos familiares, mas,
sobremaneira, dos suportes que estejam disponíveis.
Quebrar o silêncio pelo testemunho da verdade é redire-
cionar esta força mortífera, inoculada pelo algoz no corpo de

185
sua vítima, para um outro campo, o da justiça, pois o corpo da
testemunha carrega a inscrição da violência sofrida. Ao teste-
munhar, no tempo presente, reconstrói o passado tendo a opor-
tunidade de, ao reordenar o excesso de excitações de seu corpo
afetivo marcado pela situação traumática, dar um novo sentido
à experiência dolorosa. Percorrer as trilhas subjetivas para al-
cançar a proveniência desta dor, reconhecer suas bifurcações
de efeitos na atualidade da vida é condição para destinar um
novo sentido à experiência. O ato de testemunhar, desta manei-
ra, é terapêutico. É, ademais, a mutação de um acontecimento
traumático em uma narrativa testemunhal singular de um acon-
tecimento que libera afetos, ganha um contexto, adquire um
novo sentido para o sujeito e demarca uma nova potencialidade
política. E é, ao mesmo tempo, construção da memória das in-
justiças e um canal de busca da justiça.
A narrativa memorial em sua potência de construções
múltiplas promove mudanças. É nesta dimensão de mutação que
é possível desnaturalizar aquilo que foi vivido como “natureza
de si”, da dor que esteve privatizada ou alojada numa “bolha”.
De reinventar os laços sociais que foram quebrados, rompidos
pelo terror de Estado.
A quebra do silêncio é uma estratégia clínica e, ao tratar-
se de testemunhos de crimes de lesa humanidade, ganha uma
dimensão que se projeta no tempo. Resgatar esta dura experi-
ência através do testemunho da verdade é confrontar-se com a
dimensão do tempo e recriá-la para um futuro. O encontro do
testemunho com aquele que escuta retira o peso da solidão de
portar esta dor e quebra o isolamento a que foi confinada a
experiência traumática. Devolve-a ao social, de onde ela pro-
vém, recompondo seu campo afetivo e sua voz.
Mais do que uma terapia no sentido restrito do termo, a
Clínica do Testemunho tem sua análise focalizada sobre o aconte-
cimento e seu contexto, sobre a memória do passado e suas reper-
cussões na vida presente. Sobre a reconstrução de uma relação
rompida pela cena e na cena de tortura, quer em seu próprio cor-
po, quer no de seus familiares. A intervenção clínica no âmbito do
testemunho da verdade tem, portanto, como foco facilitar a cons-
trução de sentido do que se viveu sob a marca do silêncio, como
trauma, e a reconstrução de laços familiares, de amizade com com-
panheiros de luta, com o Estado, laços marcados até então pela
desconfiança e suspeição. Laços que foram afetados, rompidos pela
ação brutal de agentes de Estado. E, no sentido amplo, construir
nos modos de vida em sociedade a ética da verdade para o fortale-
cimento da democracia. pois, a memória emite luzes do passado
que iluminam o presente e constroem o futuro.

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Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br>.

Notas
*
Psicóloga clínico institucional, membro da Equipe Clínico Política,
Instituto Projetos Terapêuticos do Rio de Janeiro, coordenadora do
Projeto Clínicas do Testemunho do RJ, membro da Comissão de Direi-
tos Humanos do Conselho Federal de Psicologia, membro do Coleti-
voRJ Memória Verdade e Justiça.
1
Negação presente até os dias atuais pelas Forças Armadas do Brasil
que não se manifestaram no reconhecimento e no pedido de descul-
pas à nação sobre a sua responsabilidade como instituição na gestão
do golpe e durante o período autoritário. Ademais, não disponibiliza-
ram até hoje os arquivos que poderiam esclarecer as mortes e os desa-
parecimentos.
2
Justiça de Transição: entende-se pela implantação de medidas jurí-
dicas, políticas, sociais que possam fazer frente ao impacto produzido
nas sociedades marcadas pelos regimes totalitários e/ou guerras. A
este respeito ver GOMEZ (2014, p. 71-80).
3
Foram apontados 377 agentes públicos sendo mandantes 5 generais
presidentes do Brasil no período autoritário. Acesso ao Relatório final
da CNV: <http://www.cnv.gov.br>.
4
A lei 9140/95 que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desapa-
recidos firmou a responsabilidade do Estado pelas mortes e desapare-
cimentos de opositores políticos ao regime ditatorial, garantiu a re-
paração econômica aos familiares, mas a investigação sobre as cir-
cunstâncias das mortes e desaparecimentos não pode ser devidamen-
te esclarecida, como indica o mandato desta Comissão Especial, devi-
do ao impedimento de acesso aos documentos oficiais, ainda mantidos
pelas Forças Armadas.
5
Direito à Verdade e à Memória: Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos. Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2007.

189
6
Trata-se do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro que teve
apoio de agências internacionais multilaterais de cooperação, como o
Fundo das Nações Unidas para as Vítimas da Tortura, a Comissão
Européia e de algumas agencias bilaterais, para as atividades de
atenção clínica médico-psicológica e jurídica.
7
Em edital lançado em 2012, concorreram várias equipes clínicas.
Foram selecionadas as propostas de quatro projetos: dois em São Pau-
lo, um em Porto Alegre e um no Rio de Janeiro. Integrada a esta rede
das Clínicas do Testemunho está uma equipe de Recife, mantida com
subsídios do estado de Pernambuco.
8
Além da atenção psíquica aos perseguidos, sobreviventes e familia-
res, acompanhar testemunhos junto às Comissões, o projeto Clínicas
do Testemunho visa capacitar profissionais da área de saúde para
esta tarefa e tem como meta a elaboração de subsídios para a criação
de uma política pública de abrangência nacional para a atenção aos
afetados pela violência do Estado no passado e no presente.
9
Tribunal de Nuremberg ou Tribunal Militar Internacional, criado
pelos americanos, soviéticos, franceses e ingleses, cujos países vitori-
osos na Segunda Grande Guerra, criaram uma Corte, em agosto de
1945, para julgar os crimes de lesa humanidade cometidos pelos na-
zistas.
10
Escola de Mecânica da Armada, ESMA, centro de tortura e exter-
mínio da Marinha, na época o maior campo de concentração argen-
tino, local onde cerca de cinco mil pessoas sofreram torturas e desa-
parecimento forçado.
11
Depoimento de Elinor Brito dado à Comissão da Verdade do Rio, em
8 de maio de 2014, em evento público na ALERJ: “Testemunho da
Verdade: Tortura e repressão ontem e hoje” em comemoração de um
ano dos trabalhos da CEV-Rio.

190
Direitos humanos e espaços concretos: paralelos e
reflexões acerca da experiência memorial em
antigos centros clandestinos no Brasil e no Chile
Priscila Cabral Almeida*
“están en algún sitio / nube o tumba
están en algún sítio / estoy seguro
allá en el sur del alma”
(Mario Benedetti)
Em junho de 2014, estive em Santiago do Chile para fazer
uma pesquisa de campo sobre os memoriais da ditadura militar
chilena (1973-1990). Meu objetivo era compreender como es-
tes espaços haviam sido reivindicados por atores sociais, de for-
ma a criar uma demanda por políticas públicas de memória le-
gitimadas pelo Estado chileno, no contexto de seu processo de
transição democrática. Conhecer a trajetória, formulação e ma-
nutenção destes espaços foi uma tentativa de elucidar questões
e traçar paralelos com a demanda atual por preservação e ocu-
pação de espaços concretos1 da ditadura civil-militar brasileira
(1964-1985), onde só recentemente pesquisadores têm iniciado
uma reflexão mais sistemática acerca de suas possibilidades e
limitações2.
No Brasil, desde o golpe civil-militar até os dias atuais, os
espaços onde ocorreram prisões, torturas, assassinatos e desa-
parecimentos de opositores ao regime foram identificados por
sobreviventes por meio de variadas e fragmentadas iniciativas:
processos civis levados a cabo por familiares de mortos e desa-
parecidos políticos, ainda durante o regime; denúncias, come-
morações e homenagens de militantes e organizações de direi-
tos humanos, que se avolumaram a partir da Lei da Anistia de
1979. No âmbito cultural, exposições e uma diversificada filmo-
grafia também repercutiram para dar visibilidade às práticas
associadas a estes locais3.
Apesar de incorporado recentemente no discurso dos di-
reitos humanos, ainda não podemos falar em uma política pú-
blica consolidada de preservação destes locais no Brasil, mas
sim de um esforço estatal para identificá-los. Com a publicação
do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), em
dezembro de 2014, reitera-se este esforço de identificação de
espaços utilizados pelo regime militar como tônica de um dis-
curso pautado no esclarecimento sobre o paradeiro de desapa-
recidos políticos e de reafirmação da postura do Estado de su-
perar a inacessibilidade a estes locais, muitos deles ainda utili-
zados e vigiados pelas instituições militares.
Os processos de desapropriação e tombamento de edifí-
cios para a construção de memoriais proporcionam a materia-
lidade da memória, “unindo memórias soltas em referentes con-
cretos” e, acima de tudo, reverberando a incorporação dos re-
latos do passado em espaços antes identificados por uma me-
mória oficial opressora (LÓPEZ: 2011). No Chile, ao conhecer
a experiência de conversão do antigo centro clandestino Villa
Grimaldi em um espaço memorial para a promoção da paz, foi
possível compreender como a construção de um arquivo oral
das vítimas da ditadura que passaram pelo local foi fundamen-
tal para ancorar suas memórias e dar publicidade às suas ex-
periências dolorosas.
O projeto levado a cabo em Villa Grimaldi, a partir da
importância dada aos testemunhos de suas vítimas, parece-me
iluminador para refletir sobre a atual disputa em torno da ocu-
pação da Casa da Morte de Petrópolis. A propriedade particu-
lar, e acima de qualquer suspeita, localizada na serra de Itaipa-
va, no Rio de Janeiro, foi um dos poucos centros clandestinos
utilizado pelos militares fora de suas instalações oficiais e iden-
tificados até hoje. A denúncia sobre a existência do espaço foi
feita em 1979, através da entrega do testemunho de Inês Etien-
ne Romeu4, sua única sobrevivente, à Ordem dos Advogados do
Brasil (OAB-RJ).
Neste artigo não pretendo esgotar as particularidades do
processo transicional brasileiro e chileno. O que proponho é ini-
ciar um movimento reflexivo, a partir de um ensaio etnográfico,
sobre estes dois espaços concretos: a Casa da Morte de Petrópo-
lis e Villa Grimaldi. Ambos foram geridos pelo alto comando do
exército nos anos de repressão, funcionando em instalações par-
ticulares e afastados dos grandes centros – Rio de Janeiro e San-
tiago, respectivamente. Reivindicados em conjunturas e tempo-
ralidades distintas, nos dois casos a disputa pela memória e de-
sapropriação do espaço ganhou repercussão com os testemu-
nhos daqueles que passaram por seus porões.
Fazer o percurso de Villa Grimaldi permite-nos levantar
questões sobre a trajetória de legitimação da Casa da Morte, os
desafios na construção de um memorial às vítimas da ditadura
civil-militar e os potenciais pedagógicos para a promoção dos
direitos humanos. Além de nos indagar de que maneira é possí-

192
vel dar ressonância a este espaço na atual fase de nossa justiça
de transição, quando a figura da vítima e do testemunho carre-
gam ambiguidades e não estão inscritas na memória oficial.
Na primeira parte do texto, convido os leitores a fazer um
percurso etnográfico por Villa Grimaldi, a partir de sua inscri-
ção na trajetória de lutas e construção de uma política de me-
mória no Chile.

Villa Grimaldi – um ensaio etnográfico


Um dos locais que elegi para compor meu itinerário em
Santiago foi o Parque por la Paz Villa Grimaldi. Uma antiga es-
tância rural do início do século XX, localizada no sopé da Cordi-
lheira dos Andes, que, após o golpe de 1973, foi expropriada e
transformada no centro secreto de sequestro, tortura e desapa-
recimento Cuartel Terranova5 pela Direción de Inteligencia Na-
cional (DINA6). Durante o período de 1973 a 1978, estima-se
que em torno de 4.500 prisioneiros políticos passaram por suas
instalações, dentre os quais 211 figuram como desaparecidos e,
pelo menos, outros 18 foram executados7. Com mais de 200 es-
paços convertidos e/ou construídos para abrigar memoriais no
Chile, a trajetória de Villa Grimaldi chamou-me atenção pelo
seu pioneirismo e pela potência de seu projeto museográfico.
O processo de disputa pela preservação e conservação deste
espaço concreto teve início no final dos anos 80. Com o enfra-
quecimento do regime ditatorial chileno, o então diretor da in-
teligência militar vendeu o terreno para uma empresa de facha-
da, com intuito de demolir a antiga estrutura e erguer um novo
e lucrativo empreendimento imobiliário. Atentos à manobra do
militar para levar a cabo o apagamento e a destruição do local,
associações de vítimas e de direitos humanos mobilizaram os
moradores do entorno da comuna de Peñalolén para se opor à
transformação do local e exigir que o bem fosse preservado (CO-
LLINS; HITE: 2013, p.172). Acatado pelo prefeito, o bem foi de-
sapropriado e tombado como patrimônio histórico. Restando ape-
nas ruínas; em 1993, o Ministerio de Vivienda lança um edital
para levantar propostas para a recuperação da memória do lo-
cal, mesmo ano em que ativistas conseguem a aprovação do es-
paço como monumento nacional. Em 1997, a entrega da remo-
delação pelo projeto vencedor transforma o ex-centro clandesti-
no em um “parque para a paz”.
A partir dos relatos de ex-prisioneiros foi formulado uma
interessante solução para a ressignificação do local. Dos azule-
jos remanescentes da demolição, familiares de mortos e desa-
parecidos e vítimas que passaram por Villa Grimaldi construí-

193
ram mosaicos em forma de rios e de raízes para simbolizar a
vida (ver Fotografia 1 e 2). Restando apenas as ruínas das anti-
gas instalações utilizadas pelo exército, foram traçados, com
tijolos remanescentes da demolição, o contorno de onde fica-
vam as celas, as salas de interrogatório, as salas de tortura, os
espaços de confinamento e os locais de execução dos prisionei-
ros (ver Fotografia3). O percurso feito com o auxílio do audio-
guia remonta toda a dinâmica do lugar à época da ditadura.
Logo de início, somos avisados pelo narrador que a maioria dos
prisioneiros políticos eram levados até o local de olhos vendados
e apenas conseguiam enxergar o chão; por isso todo o trajeto de
Villa Grimaldi fora realizado a partir da perspectiva das vítimas:
no solo foram mapeados e gravados cada espaço do centro de
tortura e extermínio. Onde havia as celas, uma árvore tipica-
mente chilena foi plantada em cada uma delas, simbolizando a
resistência e a vida. No portão em que os caminhões do exército
entravam carregados de prisioneiros, foi inaugurado o memori-
al que, após a entrada de todos os seus visitantes, foi encerrado
para sempre, simbolizando que ali nunca mais aconteceriam as
violações perpetradas no passado.
Fotografia 1 – Mosaico de Villa Grimaldi em formato de rio e raízes

Fonte: produção do próprio autor.


A parte mais desconcertante do trajeto é o monumento
final, chamado de Monumento Rieles (ver Fotografia 4). Seu for-
mato é de um cubo feito com chapas de aço, porém disposto no
solo a partir de seu vértice, como forma de questionar o prag-
matismo levado a cabo naquele antigo centro. No monumento,
há uma porta preta, grande e pesada. Quando visitamos o seu

194
interior, apenas algumas luzes indiretas são acesas perto de uma
vitrine, onde estão dispostos os rieles, que são barras de ferro.
Esses instrumentos eram utilizados para amarrar os corpos das
vítimas, que eram encaminhados ao aeródromo do outro lado da
rua, enfileirados em helicópteros e jogados no mar do Pacífico.
A descoberta da prática realizada pelos militares foi desvenda-
da quando o corpo de uma jovem militante se desprendeu de
seu riel e foi descoberto na praia de Valparaíso. A seguir, vários
rieles foram encontrados por barcos de pescadores e, posterior-
mente, expostos em Villa Grimaldi, para figurar neste impac-
tante monumento. Ao vermos as barras de ferro, um som ensur-
decedor das ondas do Pacífico completa toda a experiência sen-
sível e sensorial.
Fotografia 2 – Mural indicando instalações do ex-centro clandestino

Fonte: produção do próprio autor.


Saí do local bastante abalada e logo tomei um ônibus para
retornar ao meu albergue. Sentada no banco do ônibus, de cos-
tas para o motorista, indaguei-me se aquela experiência tão de-
vastadora tinha valido a pena. Naquele mesmo momento, olhei
para a paisagem que se distanciava e avistei a Cordilheira dos
Andes. Na minha ida, em momento algum tinha percebido a sua
presença. De uma forma bastante metafórica, pensei que tinha
sido doloroso demais passar por aquele espaço, mas que, ao fi-
nal da experiência, tendo a representação materializada da ex-
periência dolorosa de suas vítimas, era possível enxergar com
mais clareza o que estava ao meu redor. O papel do memorial
chileno havia surtido efeito em mim.

195
Fotografia 3 – Tijolos indicando espaço das celas e árvores
plantadas simbolizando a vida

Fonte: produção do próprio autor.


Fotografia 4 – Monumento Rieles

Fonte: produção do próprio autor.


Não há dúvida que a elaboração da museografia de Villa
Grimaldi, aliada a uma ressignificação poética do espaço, apro-
xima o espectador da dor dos outros. Entretanto, o que potenci-
aliza essa experiência é uma narrativa bem alicerçada na figura
da vítima e do desaparecido político, a partir de uma compreen-
são consciente das prerrogativas dos direitos humanos. A expe-
riência da transição chilena, neste sentido, mesmo com “percal-

196
ços, injunções e conflitos” que caracterizaram seu processo, foi
efetiva no sentido de incorporar em sua agenda política um pro-
cesso efetivo de justiça de transição logo após o regime ditatori-
al (SARTI: 2014, p.78-9).
Brito (2004) afirma que, de todas as transições ocorridas
no Cone Sul, o caso chileno foi o mais limitado posto que os
militares conservaram maior poder e legitimidade, mantendo a
autonomia do exército e o conhecido fator Pinochet. Apesar das
reformas institucionais e da procura por justiça não terem sido
bem sucedidas,
Os sucessos, que apesar de tudo, se alcançaram foram
fruto da unidade da oposição, conseguida através da
formação de sucessivas alianças, desde meados dos anos
80, e que culminou com a criação da Concertação de
Partidos para a Democracia (CPPD8). (BRITO: 2004, p.170)
Em 1990, mesmo ano em que a CPPD foi criada, o presi-
dente Patricio Aylwin criou a Comissão Nacional para a Verda-
de e Reconciliação (CNVR) para esclarecer as violações aos di-
reitos humanos que resultaram em mortes e desaparecimentos
entre 1973 e 1990. O relatório final teve enorme êxito de ven-
das, a partir de sua publicação como livro e suplemento de um
jornal nacional. Apesar da direita e dos militares não pedirem
perdão por seus crimes, a narrativa do relatório foi adotada como
verdade oficial, culminando na aprovação de uma Lei de Repa-
rações, em 1992, beneficiando mais de 7.000 pessoas. Brito
acrescenta que, no mesmo ano, também foi criada “a Corpora-
ção Nacional para Reparação e Reconciliação (CNRR), que esta-
belecia legalmente o “direito inalienável” dos familiares de en-
contrar os desaparecidos” (BRITO: 2004, p.167).
Limitada aos desaparecidos políticos durante o regime de
Pinochet, apenas em 2004, a partir da publicação do informe da
Comissão sobre Prisão Política e Tortura, foi possível identificar
oficialmente 40.018 vítimas que sofreram privação de liberda-
de e tortura por razões políticas. Foi a partir do mesmo informe
que foram identificados 1.156 recintos destinados à detenção e
tortura, em sua maioria, localizados em instalações militares,
onde também foi revelada a existência de diversos centros clan-
destinos que funcionavam deliberadamente em sítios e imóveis
adquiridos, e mesmo apropriados a força, para fins repressivos
(LÓPEZ: 2011, p.133). Ao identificar esses espaços, o governo
chileno reiterou uma via para a reivindicação política de famili-
ares de desaparecidos e ex-prisioneiros políticos por políticas
de memória voltadas para a preservação, ocupação e manuten-
ção desses locais. Com mais de 200 memoriais em funciona-
mento no país, hoje o Chile possui, dentro do Programa de Di-

197
reitos Humanos do Ministério do Interior, um departamento
destinado a “obras simbólicas”. Entretanto, uma análise crítica
do funcionamento deste organismo evidencia problemas na ges-
tão de recursos para manter os espaços. Segundo Collins e Hite,
A pesar de ser el principal organismo estatal dedicado
a este assunto, su pantilla es mínima y su capacidade
presupuestaria no alcanza a cobrir la demanda. En
2012, las modestas ambiciones de la oficina se vieron
reducidas a un puñado de subvenciones monetárias des-
tinadas a finalización de obras e o a arreglos de daños
ocasionados por el terremoto en las ya existentes. Según
señalo el organismo, aparte de essas labores, el finan-
ciamento de obras nuevas y el mantenimiento de las
existentes debiera correr a cargo de las autoridades lo-
cales. (COLLINS; HITE: 2013, p.167-8)
Ainda segundo os autores, ao convidar o conjunto da po-
pulação chilena a adentrar no passado recente através de mo-
numentos e espaços comemorativos, os resultados produzidos
no Chile são inapreensíveis e problemáticos. Além da alternân-
cia do poder entre a direita e a esquerda, muitas vezes, torna-
rem contraproducentes as políticas públicas em torno dos me-
moriais, o próprio fato de alguns centros clandestinos não faze-
rem parte do cotidiano cidadão ou político cria uma geografia
periférica da comemoração, transformando, em alguns casos,
estes espaços concretos em grandes mausoléus de pouca resso-
nância cultural, pedagógica e política (COLLINS; HITE: 2013,
p.166). Para os autores, no caso chileno, o único museu de im-
pacto é o Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos, um
edifício idealizado e projetado durante o primeiro mandato da
presidente Michelle Bachelet (2006-2010). Localizado em fren-
te à estação de metrô Quinta Normal, no coração de Santiago, o
museu recuperou diversos acervos particulares, assim como
documentos impressos e audiovisuais, compondo uma narrativa
focada nas vítimas de graves violações aos direitos humanos pra-
ticadas pelo Estado chileno durante a ditadura de Pinochet. Fi-
gurando como museu mais visitado no país, hoje difunde a me-
mória chilena através do lugar de fala das vítimas, além de fo-
mentar iniciativas e uma reflexão sistemática acerca dos pro-
cessos memoriais no Chile.
Neste sentido, apesar do potencial museográfico de Villa
Grimaldi, este espaço concreto ainda é marginal para o imagi-
nário político chileno, quando comparado ao Museo de la Me-
moria y de los Derechos Humanos. Apesar de seu pioneirismo,
sua iniciativa ainda é mais reconhecida por visitantes estrangei-
ros e por organismos internacionais. No Chile, o seu circuito
isolado – e pouco comentado na mídia – acaba por ser mais reco-

198
nhecido pelo seu círculo imediato de participantes: familiares
de mortos e desaparecidos e sobreviventes (COLLINS; HITE:
2013). Villa Grimaldi ainda se mantém com recursos inseguros,
provenientes de projetos financiados pelo Estado e iniciativas
privadas. Esses projetos abarcam a coleta de testemunhos para
seu arquivo oral, assim como atividades educativas e lúdicas em
seu interior que, com o decorrer do tempo, vem se adaptando e
aperfeiçoando para manter ativo o memorial.
Tendo em mente a experiência levada a cabo em Villa
Grimaldi no contexto da transição democrática chilena, convi-
do-os, a seguir, a conhecer a trajetória de identificação e dispu-
ta pela memória do ex-centro clandestino brasileiro, conhecido
como a Casa da Morte de Petrópolis.

Casa da Morte de Petrópolis – trajetória de um


testemunho
A Casa da Morte de Petrópolis foi uma casa alugada pelos
militares no município de Petrópolis, por cujo nome ficou co-
nhecido um dos poucos centros clandestinos de que se tem co-
nhecimento até hoje. Em 1979, com a entrega do testumenho
de Inês Etienne Romeu à Ordem dos Advogados (OAB-RJ), foi
denunciada a utilização desse local pelos militares, durante os
anos 70 (ver Fotografia 5), como centro de tortura e extermínio.
Fotografia 5 – Fachada da Casa da Morte de Petrópolis

Fonte: Jornal A Verdade10


Redigido em 1971, enquanto ainda estava em recuperação
na Casa de Saúde Santa Maria, o testemunho de Inês Etienne
denunciava os maus tratos sofridos, as características físicas e

199
comportamentais de seus algozes e a vinculação do espaço com a
alta hierarquia do Centro de Informações do Exército (CIE9).
A repercussão do testemunho foi veiculada por diversos
órgãos de imprensa em fevereiro de 1981, quando a vítima e
uma caravana organizada pela OAB-RJ foram ao local e tiveram
um encontro com o proprietário da casa, Mario Lodders, que,
durante toda a sabatina feita pelos advogados, negou ter conhe-
cimento do que se passava na casa, mas que apenas a havia
emprestado a um amigo. Naquele mesmo ano, Inês Etienne Ro-
meu denunciou publicamente o médico-assistente de torturas,
Amílcar Lobo, atuante na Casa da Morte. Em 1986, o médico
lançou seu livro de memórias e concedeu entrevistas a jornais
impressos, afirmando sua atuação na casa e a ligação direta do
espaço aos oficiais do CIE. Em acontecimentos mais recentes,
podemos destacar o vídeo-depoimento prestado por Ubirajara
Ribeiro de Souza ao procurador da Justiça Militar Otávio Bravo
(2011), o livro de memórias do ex-agente da polícia civil Cláudio
Guerra (2012) e os depoimentos oficiais de Marival Chaves (2013)
e do ex-tenente-coronel Paulo Malhães (2014), prestados à Co-
missão Nacional da Verdade, que confirmam a existência do
centro de extermínio, ou “casa de conveniência”, alcunha utili-
zada pelos militares.
A força que ganha o testemunho de sua única sobreviven-
te faz com que a Casa da Morte de Petrópolis seja o foco de uma
campanha iniciada em 2010 pelo Conselho de Defesa dos Direi-
tos Humanos de Petrópolis, com o apoio de grupos de movimen-
tos civis, para a desapropriação do imóvel e sua posterior ocupa-
ção por um memorial pela Liberdade, Verdade e Justiça. A desa-
propriação do imóvel, em 2012, pela Prefeitura de Petrópolis
foi uma primeira conquista em direção à legitimação e ressigni-
ficação do espaço. No âmbito estatal, a incorporação da Casa da
Morte como caso especial de investigação sobre o paradeiro de
desaparecidos políticos e identificação das estruturas utilizadas
pela repressão para prisão, tortura e extermínio dão um peso
inconteste em relação à preservação histórica do local como
medida de reparação simbólica.
Durante todo seu período na Casa da Morte, Inês imprimiu
em sua memória todos os detalhes que seus sentidos foram capa-
zes de absorver: o som dos latidos de um furioso cão dinamarqu-
ês de codinome Kill, conversas trocadas ao telefone com um ho-
mem de nome Mário, os quatro últimos números de um telefone
mencionados por um de seus algozes, a inscrição espacial de cada
cômodo da casa, as iniciais do CIE bordadas nas roupas de cama,
assim como a marca do trauma das sevícias sofridas e da tortura
psicológica de cada um de seus carcereiros, posteriormente des-

200
critos com detalhes minuciosos em seu testemunho. Através de
diálogos com seus torturadores, Inês escutou histórias de nove
prisioneiros que tinham passado pela casa e que saíram desta
sem vida. O objetivo da chamada “casa de conveniência” era pren-
der as principais lideranças de esquerda, executando-as ou trans-
formando-as em informantes infiltrados do Exército. Esta última
possibilidade foi a que permitiu que Inês saísse do cárcere com
vida. Em seu testemunho, Inês afirma ter assinado documentos
em branco e gravado uma fita de vídeo em que afirmava ser cola-
boradora da repressão – algo que nunca se subjugou a fazer após
sua soltura – como forma de ser liberada do cativeiro e iniciar
uma articulação para legalizar sua prisão.
Entregue à sua família em fins de agosto de 1971, Inês foi
transferida para a Clínica Pinel, em Minas Gerais, para receber
tratamento psicológico e cuidar das feridas físicas sofridas pela
tortura. A legalização de sua prisão foi realizada em 1973, quando
foi transferida para o Sistema Penitenciário do Estado do Rio de
Janeiro, resultado do julgamento de inquéritos policiais milita-
res (IPM) relativos à sua atuação em ações da luta armada. Foi
exatamente durante sua recuperação na clínica mineira que Inês
redigiu seu testemunho. Sendo constantemente vigiada e visita-
da na clínica pela polícia política – que a ameaçava de morte ou
de prejudicar a vida de seus familiares por saber demais –, Inês
enviou seu testemunho para sua rede familiar e de amizade,
assim como uma cópia e uma carta-testemunho para seu então
advogado, Augusto Sussekind de Moraes Rego11.
O testemunho de Inês é escrito em tom de denúncia. Nele,
tudo que ouviu, viu e sentiu na pele foram pormenorizados. A
preocupação era de denunciar todos aqueles que atuavam den-
tro da Casa da Morte, assim como delatar de que forma a estrutu-
ra da casa estava vinculada à inteligência do exército e, acima de
tudo, revelar o que poderia ter sido o destino final de alguns
presos políticos até hoje desaparecidos. Mas o testemunho só ir-
romperia o espaço público em 1979, uma semana após a liberta-
ção de Inês da prisão por conta da promulgação da Lei da Anistia.
Redigido ainda durante o período mais violento do regime mili-
tar, o relatório não tinha o objetivo de vir a público. O testemu-
nho, enquanto uma memória subterrânea12 (POLLAK, 1989), parte
integrante de uma cultura minoritária e dominada que se opu-
nha ao discurso de uma memória oficial, no caso a memória naci-
onal legitimada pelos militares, foi trabalhado em silêncio e cui-
dadosamente preservado por pessoas de sua confiança para aguar-
dar o momento político favorável para sua irrupção.
Em pleno regime militar, Inês sabia que não era possível
denunciar seus carcereiros, mas via em seu depoimento uma

201
forma de esclarecimento caso viesse a falecer pelas mãos da
polícia política. No trecho que extraímos de sua carta-testemu-
nho notamos como a narrativa de uma única sobrevivente ganha
uma dimensão coletiva, por seu imperativo moral e um dever de
memória (TODOROV, 1995) para com todas as vítimas, familia-
res e a sociedade brasileira pela busca da verdade.
Querem que eu morra “naturalmente”, sem que sejam
responsabilizados pela morte que me impingirem.
(...) Encaminhei a diversas pessoas um longo e circuns-
tanciado depoimento sobre os dias de meu cativeiro,
narrando fatos ocorridos na casa onde fiquei presa (tor-
turas e mortes de diversas pessoas) e casos que me con-
taram e onde identifico alguns de meus carcereiros.
Se eu morrer, essas pessoas divulgarão o documento no
País (se a censura deixar) e no exterior, para que um
dia se esclareçam fatos obscuros e se registre na histó-
ria do Brasil os nomes e as patentes dos torturadores
que se escondem sob a proteção do Governo.
Se eu morrer, peço-lhe que requeira nova autópsia, pois
podem falsear a “causa mortis” e a data de meu faleci-
mento.
Se eu morrer, quero que todas as circunstâncias de mi-
nha morte sejam esclarecidas, ainda que demande tem-
po, trabalho e sacrifício, menos em minha memória,
mais em nome da honra do País em que nasci, muito
pela decência de minha Pátria e de meus compatriotas.
Quero manifestar, ainda, a minha vontade de ser sepul-
tada em Belo Horizonte e que seja assegurada à minha
família o direito de me proporcionar o recebimento dos
sacramentos religiosos.13
O testemunho de Inês Etienne Romeu, assim como tantas
outras memórias subterrâneas, foram fundamentais durante o
período da transição para criar laços de coesão social entre as
vítimas e familiares atingidos pelo estado castrense. Porém, não
podemos afirmar que o trabalho de enquadramento da memó-
ria das vítimas do período esteja impressa no imaginário nacio-
nal, constituindo uma nova narrativa oficial. Este trabalho, que
prescinde de credibilidade, aceitação e organização, vem sendo
lentamente construído a partir de vitórias e retrocessos na cons-
trução de políticas públicas de memória, pautadas no discurso
transnacional dos direitos humanos.
Em 2010, a partir de um abaixo assinado online instaurado
pelo Conselho de Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis, ini-
ciou-se o movimento pela desapropriação da antiga Casa da Morte
e a criação do “Centro de Memória, Verdade e Justiça” de Petrópo-
lis. A campanha, apoiada pelo Grupo Tortura Nunca Mais e pelo

202
Comitê Petrópolis em Luta, contou com a organização de atos pú-
blicos em frente ao local, como forma de criar adesão da socieda-
de civil, dar visibilidade à reivindicação na mídia e pressionar a
Prefeitura de Petrópolis pela desapropriação (ver Fotografia 6). A
primeira vitória veio com a confirmação da desapropriação do imó-
vel no do decreto assinado por Paulo Mustrangi, prefeito de Petró-
polis, em 20 de agosto de 2012. Com o decreto, o Conselho de
Defesa dos Direitos Humanos de Petrópolis e a Ordem dos Advoga-
dos do Brasil iniciaram uma articulação com a Comissão Estadual
da Verdade do Rio de Janeiro e a Comissão Nacional da Verdade
para que adotassem providências junto ao Executivo federal para
destinar recursos para a criação do memorial.
Fotografia 6 – Coletivos em campanha pela desapropriação da
Casa da Morte de Petrópolis (s/d)

Fonte: Divulgação Comitê Petrópolis em Luta


O ofício encaminhado à CNV, em dezembro de 2012, é
acatado pela então presidente Rosa Cardoso, que entende ser a
Casa da Morte de Petrópolis de utilidade pública para as investi-
gações da comissão, assim como um espaço importante na busca
pelo direito à memória e à verdade sobre os desaparecimentos
forçados do período da ditadura. Neste ponto em que a Casa da
Morte encontra-se em pleno processo de legitimação, parece-nos
relevante compreender duas dinâmicas que compõem a sua re-
presentação enquanto lugar de memória da ditadura: um espaço
concreto que se inscreve enquanto documento e monumento. Estes
conceitos, cunhados por Le Goff (1990), a partir da noção de
alargamento das fontes para a disciplina histórica, revelam que
se, por um lado, a edificação perpetua a recordação por sua re-

203
presentação monumental, também se torna objeto do conheci-
mento histórico e documento para compor a narrativa da justiça
de transição brasileira, inicialmente a partir da CNV.
Enquanto documento, a casa permite a articulação de di-
versas linhas investigativas sobre o paradeiro de mortos e desa-
parecidos e das estruturas criadas pela CIE para perseguir e
exterminar opositores de esquerda. O cruzamento de fontes –
atestados de óbito da região, testemunhos de agentes da re-
pressão, plantas baixas, registros patrimoniais – permite o alar-
gamento deste novo documento e a análise da condição de sua
produção, para lançar novas perspectivas de seu uso enquanto
instrumento de poder dos militares. Como monumento, a Casa
da Morte de Petrópolis é resultado do esforço de grupos organi-
zados para “impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente –
determinada imagem de si próprias” (LE GOFF: 1990, p.548).
Portanto, é no campo das representações que o testemunho de
Inês Etienne Romeu, a partir de toda a trajetória de ressignifi-
cação durante o processo transicional brasileiro, pode ter o seu
enquadramento mais bem acabado. Na incessante busca de fa-
miliares de desaparecidos políticos e pelo enfoque dado pela
Comissão Nacional da Verdade à Casa da Morte como ponto de
partida para esclarecimento das mortes de ex-militantes de es-
querda que ali tiveram seu destino final, a patrimonialização do
espaço possui um simbolismo “monumental” para rememorar
os mortos que compuseram a resistência contra a ditadura civil-
militar brasileira.

Considerações finais
O ponto de contato entre a trajetória de Villa Grimaldi e a
Casa da Morte de Petrópolis situa-se em duas questões de fun-
do: primeiro, seu funcionamento clandestino pelo aparato mili-
tar durante o período ditatorial; segundo, pela possibilidade de
ressignificação e ocupação do espaço a partir de testemunhos
de sobreviventes.
No caso chileno, apesar das diversas fraturas políticas que
circundam seu processo de transição, o papel que ganhou um
bem desenhado Programa de Direitos Humanos logo após o fi-
nal da ditadura foi fundamental para iniciar processos de repa-
ração e criar demandas sociais por políticas de memória. A ampla
divulgação de seus informes – cuja prioridade foi dar visibilida-
de aos testemunhos de familiares de mortos e desparecidos, ex-
prisioneiros políticos e opositores torturados – permitiu a ofici-
alização de uma narrativa a partir da figura da vítima da ditadu-
ra chilena, alicerçada em sua experiência subjetiva e, principal-

204
mente, no seu reconhecimento a partir de uma noção de direi-
tos (SARTI: 2014, p.82).
Esta narrativa oficial construída no Chile, hoje, vê-se bem
materializada a partir da experiência de sucesso do Museo de la
Memoria y de los Derechos Humanos (2010). Em seus muros,
encontram-se todos os parágrafos da carta de direitos do ho-
mem, e no seu interior, as memórias são contadas a partir do
olhar da vítima. Sem a mesma ressonância, projetos de espaços
concretos como Villa Grimaldi não deixam de enfrentar desafi-
os no presente. Um deles é a própria “fragmentação e atomiza-
ção das organizações de base que reivindicam a memória coleti-
va” (COLLINS; HITE: 2013). Entretanto, o constante esforço de
mudanças na concepção de Villa Grimaldi e uma constante vigi-
lância comemorativa, assim como sua divulgação na comunida-
de científica e de organizações de direitos humanos no plano
internacional permitem que esta expressiva experiência esteja
ancorada neste espaço concreto desde 1997.
No Brasil, as iniciativas em busca da memória e da verda-
de partem de diferentes atores, posicionados em lugares de
enunciação distintos e muitas vezes conflituosos, resultando na
construção de diferentes versões sobre a ditadura e sobre o que
deve ser a nossa justiça de transição. Marcado por longas tem-
poralidades para rever o seu passado, somente a partir dos anos
90, teve início um plano mais abrangente de reparação econô-
mica de familiares de mortos e desaparecidos e de ex-persegui-
dos políticos. O alto grau de continuidade política também gera
entraves no que tange à busca pela verdade e pela inscrição de
uma nova versão oficial do passado, como a recusa dos coman-
dos militares de abrirem publicamente seus arquivos do perío-
do e a reiteração da interpretação bilateral da Lei da Anistia14,
impedindo avanços na luta por justiça.
O desafio da transição no país está justamente em inter-
nalizar os direitos humanos no seio da sociedade, através de
processos de conscientização que garantam a recuperação das
memórias vinculadas aos crimes cometidos durante a ditadura
(LÓPEZ: 2011). Nesta verdadeira batalha pela memória, o pro-
cesso de transformação de espaços concretos em memoriais pode
ganhar força enquanto política de memória adotada pelo Esta-
do, a partir das recentes recomendações publicadas no relató-
rio final da Comissão Nacional da Verdade (2014). No entanto,
algumas questões apresentam-se como obstáculos daqui em di-
ante: a falta de uma política pública bem estruturada para pre-
servar e manter estes espaços e a ausência de um enquadra-
mento da figura da vítima.

205
Koselleck (1997), em seus estudos sobre os monumentos
públicos aos mortos pela segunda guerra mundial, sinalizou a
importância de compreender as identificações que esses monu-
mentos comemorativos pretendem instaurar. Enquanto monu-
mento, a Casa da Morte é o resultado de tensões, que demonstra
um esforço coletivo dos vivos de dar sentido às mortes das víti-
mas que passaram por esse espaço concreto. Como monumento
em homenagem aos desaparecidos políticos, reverbera a luta de
sujeitos que, em vida, elegem os mortos que são dignos de suas
homenagens. Pelo conteúdo simbólico de exemplaridade de sua
morte, mas principalmente pelas marcas dolorosas que a ausên-
cia dessas pessoas causou para estes indivíduos/famílias, a Casa
da Morte carrega este peso simbólico de um espaço da morte
que, ressignificado no presente, se traduz na narrativa da resis-
tência e luta pelo retorno da democracia – visto que a figura da
vítima ainda não é consensual e bem desenhada.
Os desafios que se colocam à manutenção da Casa da Mor-
te de Petrópolis enquanto espaço concreto da ditadura reside na
própria ressonância que terá no imaginário social após a implan-
tação do memorial. Além de preocupações estratégicas em rela-
ção à narrativa museográfica e às ações pedagógicas que serão
realizadas, a casa, localizada na Rua Arthur Barbosa, no bairro
de Caxambu, por estar afastada da região central de Petrópolis,
em uma rua sem saída e pela ausência de marcadores que façam
sua distinção, ainda permanece como moradia comum do muni-
cípio de Petrópolis. O atual esforço em mapear os espaços con-
cretos utilizados pelo aparato militar, portanto, necessita funda-
mentalmente de uma política pública estruturada e organizada,
que permita que esses locais sejam materialmente mantidos por
iniciativas privadas ou estatais, e que os inscrevam na narrativa
patrimonial de caráter nacional e no mapa das cidades, na chave
de exemplaridade15 cunhada por Todorov (1995).
En el campo de las mediaciones simbólico-discursivas,
basadas muchas veces en relatos míticos, fundantes y
recorrentes sobre la Nación, el patrimonio cumple un
rol estratégico: presenta las pruebas materiales que ser-
virán de referente a través del tiempo, de la idea de
Nación que convoca a los ciudadanos. (LÓPEZ, 2011: p.134)
Inscritos na noção de “bem comum”, a Casa da Morte de
Petrópolis e demais lugares de memória da ditadura civil-militar
brasileira podem ser um locus fundamental para a construção de
um novo entendimento sobre o passado recente, se trilhado e con-
quistado um espaço institucionalizado para suas reivindicações e
desenvolvimento. Dessa maneira, para além de lugar de celebra-
ção dos vivos, para ancorar e rememorar a memória de seus entes
queridos mortos pela ditadura, podem contribuir para a constru-

206
ção de uma consciência cidadã e internalização dos direitos huma-
nos, que tenham ressonância mais abrangente no imaginário soci-
al e nas dinâmicas de construção das identidades.

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TODOROV, Tzevtan. Les abus de mémoire. Paris, Arléa, 1995.

Notas
*
Historiadora, Mestre em Memória Social pelo PPGMS-UNIRIO e Dou-
toranda em História Política e Bens Culturais pelo PPHPBC-FGV.
1
No Brasil, o conceito “lugares de memória” cunhado por Pierre
Nora (1993) vem sendo utilizado recorrentemente para designar os
espaços de memorialização da ditadura civil-militar. Neste texto, op-
tei por utilizar a ideia de “espaço concreto” apenas para diferenciar
os locais onde a repressão atuou concretamente (in loco), em oposi-
ção aos espaços memoriais construídos a posteriori.
2
Para compreender o crescimento da demanda por lugares de memó-
ria da resistência no Brasil, consultar SOARES; QUINALHA (2011).
Para ilustrar a iniciativa de construção de monumentos e memoriais
no Brasil a partir da abertura política, consultar LISSOVSKY; AGUI-
AR (2014). Sobre o Memorial da Resistência em São Paulo, primeiro e
único memorial desenvolvido em antigas instalações da polícia políti-
ca (DEOPS-SP), consultar ALMEIDA (2014), ANTONINI (2012) e NE-
VES (2011). Sobre o projeto do futuro Memorial da Anistia, desenvol-
vido pela Comissão da Anistia e financiado pelo governo federal, via
Ministério da Justiça, consultar PISTORI; SILVA FILHO (2009).
3
A historiadora Andrea Forti (2014) mostra como a exposição Pequenas
Insurreições – Memórias, realizada em 1984, na sede da Associação
Brasileira de Imprensa de São Paulo (ABI-SP), foi realizada com o intui-

208
to de comemorar os cinco anos da Anistia de agosto de 1979 e de inaugu-
rar a campanha pelo tombamento do arco de pedra que restou do antigo
Presídio Tiradentes, espaço de encarceramento de diversos prisioneiros
políticos. Com pesquisa voltada para a análise da filmografia sobre o
período ditatorial nos últimos 30 anos, a socióloga Carolina Gomes Leme
(2013) destaca o filme Lamarca (1996), no qual o diretor Sérgio Rezende
teve o cuidado de identificar, por meios de legendas e referencias ver-
bais, as instituições onde os frades dominicanos foram torturados (Mi-
nistério da Marinha, Dops e DOI-CODI) e presos (Presídio Tiradentes).
Em Zuzu Angel (2006), também dirigido por Sérgio Rezende, Leme aponta
que o filme deixa claro que a estrutura da repressão era um sistema
organizado e que abarcava as mais altas patentes das Forças Armadas,
destacando a Base Aérea do Galeão como local de tortura e morte do
militante de esquerda Stuart Angel Jones.
4
Inês Etienne Romeu nasceu em Pouso Alegre, Minas Gerais, em 1942.
Em Belo Horizonte concluiu seus estudos em História e trabalhou como
bancária no Banco de Minas Gerais, onde já participava do movi-
mento sindical e estudantil. Integrou a luta armada durante a dita-
dura civil-militar brasileira (1964-1985) como militante e dirigente
das organizações de esquerda Vanguarda Armada Revolucionária
Palmares (VAR-Palmares) e Organização Revolucionária Marxista
Política Operária (Polop).
5
De acordo com o website oficial de Villa Grimaldi, outros centros
secretos funcionaram nos mesmos moldes do Cuartel Terranonova.
Considerando apenas aqueles localizados em Santiago, destacam-se
Londres 38 (“Cuartel Yucatán”), José Domingo Cañas (“Cuartel Olla-
güe”), Irán 3037 (“Venda Sexy” ou “la Discoteque”). Para mais infor-
mações acessar <villagrimaldi.cl/historia>.
6
"A Direção de Inteligência Nacional foi criada em 1974, mediante o
Decreto-Lei N° 521, ditado em 14 de junho. (...) A DINA era um serviço
de segurança autônomo dedicado exclusivamente à repressão dos par-
tidos políticos de esquerda e das organizações sociais. Estava integra-
da por pessoas de ramos distintos das Forças Armadas, Carabineros e
Investigações, ao que se agregaram na qualidade de agentes pessoais
provenientes de grupos ultradireitistas”. Para mais informações aces-
sar <villagrimaldi.cl/dina> ou consultar o Informe de la Comisión
Verdad y Reconciliación (1990).
7
Para mais informações acessar <villagrimaldi.cl/victimas>.
8
Em 1990, esta coligação de partidos de oposição que integrava soci-
alistas e democratas cristãos ganhou as eleições no Chile. O presiden-
te eleito foi Patricio Aylwin, que instaurou imediatamente uma multi-
partidária Comissão para a Verdade e Reconciliação (CNVR). (BRITO:
2004, p.166)
9
“O Centro de Informações do Exército (CIE) foi criado em 2 de maio
de 1967, pelo Decreto n. 60.664, no governo do presidente Costa e
Silva, subordinado diretamente ao gabinete do ministro do Exército.
Ao CIE cabia orientar, coordenar e supervisionar todas as atividades
de segurança interna e contrainformações, concorrendo com a 2a
seção do Estado-Maior, também encarregada dessas atividades”. De

209
acordo com o relatório da Comissão Nacional da Verdade, o CIE tam-
bém se especializou em infiltrar militares nas organizações estudan-
tis e sindicais, comandou algumas das principais operações de re-
pressão política e manteve centros clandestinos de tortura e execu-
ção de presos políticos, como a Casa da Morte de Petrópolis. O relató-
rio acrescenta que “nesse centro, o CIE atuava em coordenação com
os DOI-CODI (Destacamentos de Operações e Informações – Centro de
Operações de Defesa Interna), retirando presos de suas dependênci-
as, alguns de outros estados, e levando para Petrópolis”. (COMISSÃO
NACIONAL DA VERDADE: 2014, p.157-158)
10
Disponível em: <http://averdade.org.br>. Acesso em abril de 2014.
11
Depoimento de Inês Etienne Romeu à OAB em 5 de setembro de
1979. <http://www.epsjv.fiocruz.br.> Data de Acesso: 5/jun/2014.
12
No trecho a seguir, Pollak explicita o que caracteriza as memórias
subterrâneas: “O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao
esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe
ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuida-
dosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de ami-
zades, esperando a hora da verdade e da redistribuição de cartas
políticas e ideológicas.” (POLLAK, 1989: p.5).
13
Depoimento de Inês Etienne Romeu à OAB em 5 de setembro de
1979. <http://www.epsjv.fiocruz.br.> Data de Acesso: 5/jun/2014. Gri-
fo meu.
14
No plano simbólico, a Lei da Anistia promoveu o que a pesquisadora
Luciana Heymann (2006) caracteriza como uma predominância do
léxico da conciliação e da cordialidade que, com os anos, promoveu
um “excesso de esquecimento” sobre o período, esvaziando o debate
público em relação ao passivo da ditadura. O lugar político da memó-
ria no Brasil, portanto, perpassa pela luta constante de “resgatar” e
“ressignificar” a memória do período, mais por iniciativas e combates
individuais do que por imperativos morais.
15
O conceito de “memória exemplar” foi cunhado por Todorov (1995)
a partir da oposição com o conceito de “memória literal”. Analisando
o possível perigo dos usos da memória, em um período, em que existe
um excesso da mesma, criam-se essas duas categorias para destacar a
importância de elaborar critérios para seus usos políticos. “El uso
literal, que convierte en insuperable el viejo acontecimento, desem-
boca a fin de cuentas en el sometimiento del presente al pasado. El
uso ejemplar, por el contrario, permite utilizar el pasado con vistas
al presente, aprovechar las lecciones de las injusticias sufridas para
luchar contra las que se producen hoy día, y separarse del yo para ir
hacia el otro” (TODOROV, 1995: p.32).

210
Memória social e esquecimentos, de centro de
tortura à “parque da cidade”
Ana Paula Poll
On n’est pas encore habitué à parler de la mémoire
d’un groupe, même par métaphore. Il sempble qu’une
telle faculté ne puisse exister et durer que dans la mesu-
re où elle est liée à un corps ou à un cerveau individuel.
(Maurice Halbwachs)
A Lei n°12.528 instituiu a Comissão Nacional da Verdade
e foi sancionada em 16 de maio de 2012, passados 24 anos da
promulgação da Constituição Cidadã, início da retomada da de-
mocracia no Brasil. Nos dois anos de trabalhos subsequentes, a
Comissão Nacional da Verdade, as comissões estaduais e muni-
cipais somaram esforços para investigar graves casos de viola-
ção de direitos humanos ocorridos entre 1946 e 1988 no país.
As comissões iniciaram suas atividades objetivando, tanto tem-
po depois, esclarecer casos de morte e desaparecimentos, bem
como o envolvimento de agentes do Estado em atentados terro-
ristas e em graves violações de direitos humanos. Além disso,
pretendiam identificar as redes de financiamento, estrutura e
funcionalidade da repressão política, identificar centros clan-
destinos e oficiais de repressão, tortura e outras violações.
A simples existência dessas Comissões, somadas aos seus
objetivos e às ações conduzidas para alcançá-los, têm fomenta-
do a existência de uma verdadeira “batalha da memória”. Essa
disputa, iniciada há algumas décadas através das associações
de parentes e vítimas das violações, ganhou o foro privilegiado,
outorgado pelo Estado, e notoriedade através da mídia.
Essa batalha envolve as memórias dos atores sociais dire-
tamente e indiretamente afetados pelas violações de direitos
humanos, ocorridas durante a ditadura militar, e a “memória
oficial”. Essa última encontrou na Lei da Anistia (1979) e na sua
interpretação pelo Supremo Tribunal Federal, um símbolo im-
portante para fixar na história uma espécie de perdão às viola-
ções e aos violadores, a despeito de tratados e acordos interna-
cionais dos quais o Brasil é signatário.
Utilizando como fonte o depoimento dos que foram víti-
mas da repressão política, as Comissões da Verdade prioriza-
ram os marginalizados, também chamados de “subversivos”. E
assim, ressaltaram a importância do que Pollak (1989) chamou
de memórias subterrâneas. Essas, como também são parte cons-
titutiva da vida social, opõem-se à “memória oficial”. No caso
brasileiro, como em outros analisados por Pollak, a emergência
das memórias subterrâneas tem produzido o confronto com a
memória nacional. A oposição em relação à memória nacional,
de caráter coletivo e, sobretudo organizado, produz um desses
raros momentos em que temos a oportunidade de alterá-la.
Ao oferecer um espaço para a emergência das memórias
subterrâneas, as Comissões da Verdade forneceram a oportuni-
dade para reescrevermos a história nacional. As memórias sub-
terrâneas, que por razões variadas foram silenciadas, ganha-
ram um canal de legalidade e legitimidade a partir do qual tra-
vam uma verdadeira disputa: a verdade sobre os fatos ocorridos
durante o regime de exceção no Brasil.
Esses conflitos acerca da memória social e seus desdobra-
mentos têm grande relevância para os atores envolvidos e, tam-
bém, para o mundo acadêmico que, desde Simmel (1983), ob-
serva atentamente os conflitos sociais e seu papel na constitui-
ção da vida em sociedade.
Deste modo, esse trabalho propõe refletirmos sobre os
mecanismos através dos quais as memórias sociais e os esqueci-
mentos são fixados na história. E o faz a partir da análise de um
caso específico: a transmutação de um centro de tortura em
parque da cidade.

Sobre a memória coletiva


Em seu diálogo com a sociologia durkheimiana, Maurice
Halbawachs (1997 [1950]) destaca a força da memória coletiva
ressaltando não só sua estabilidade, mas também sua duração. A
partir dessa perspectiva a memória coletiva é, praticamente, uma
instituição social. E sua “materialidade” é definidora de padrões
de sociabilidade para um determinado grupo de indivíduos, refor-
çando o sentimento de pertença ao grupo e, simultaneamente,
definindo os indivíduos e as práticas alheios a ele, os outsiders.
É deste modo que Halbawach (1997 [1950]) destaca o
caráter positivo da memória coletiva; ela funcionaria como uma
espécie de amálgama, fomentando a coesão social. E sob essa
chave analítica, o fomento ocorre através de uma adesão afetiva
ao grupo, pois promovida pela memória comum, memória com-
partilhada pelos indivíduos. Observa-se que, sob essa perspecti-
va, a ação coercitiva é secundarizada.
Como evidencia Pollak (1989), Halbwachs (1997 [1950])
é herdeiro da tradição europeia do século XIX. Nela, assim como

212
na obra de Halbwachs, “a nação é a forma mais acabada de um
grupo. E a memória nacional é a forma mais completa de me-
mória coletiva” (POLLAK, 1989, p. 3). Mas, a despeito de uma
análise que priorizou a estabilidade e a continuidade contidas
na memória coletiva, Halbwachs (1997 [1950]) não deixou de
pontuar o caráter seletivo da memória, pois, para o autor, o pro-
cesso de construção da memória coletiva exige a sua concilia-
ção com as memórias individuais. Para Pollak (1989), Halbawa-
chs (1997 [1950]) já assinalava o caráter problemático contido
no processo de construção da memória coletiva. Disputas ou,
minimamente, negociações seriam necessárias para a concilia-
ção entre as memórias individuais nesse processo de coesão so-
cial que conduz à memória coletiva.
No entanto, é preciso admitir, as disputas e os conflitos só
ganharam alguma atenção nos círculos acadêmicos após as pu-
blicações de Simmel (1983), no início do século XX, sobre a
“Sociologia do Conflito”. Com o autor, as disputas e os conflitos
foram interpretados como partes constitutivas da vida em soci-
edade, assim como a cooperação. Contudo, as “memórias em
disputa” só tiveram projeção no universo acadêmico em função
de análises sociais que passaram, após a segunda metade do
século XX, a privilegiar cenários de conflitos em detrimento da,
até então, frequente preocupação com a estabilidade e conti-
nuidade das instituições sociais. Os estudos de história oral (Po-
llak, 1987) foram muito expressivos para fazer emergir narrati-
vas não consensuais acerca da história, sobretudo, fazer emer-
gir as narrativas que não figuravam na memória nacional.
Esse trabalho é sobre memórias e esquecimentos. Trata-
remos a memória coletiva sobre a “perspectiva do conflito”, se-
guindo o caminho deixado por Pollak (1989). Deste modo, en-
tendemos que há negociações em seu processo de elaboração.
Assim, novos fatos e situações podem rearranjar o jogo político
e redefinir as forças em disputa. O que possibilita a reelabora-
ção da memória coletiva e, também, reescrever a história.
Para evidenciar o processo de negociação entre a memó-
ria coletiva e as memórias subterrâneas, numa flagrante situa-
ção de rearranjo das cartas políticas, vamos explorar duas situ-
ações de observação distintas. A primeira, uma visita guiada a
um antigo centro de tortura, o 1º Batalhão de Infantaria Blinda-
da (BIB) do Exército do Brasil, situado em Barra Mansa/RJ. A
visita foi conduzida por ex-detentos (e parentes) que foram ar-
bitrariamente presos e sofreram torturas nas dependências do
antigo batalhão. A segunda, os depoimentos públicos concedi-
dos à Comissão da Verdade de Volta Redonda por aqueles que
foram torturados no antigo BIB, e em outros espaços onde a

213
repressão política no Brasil violou os direitos humanos, além de
fonte documental, notadamente, publicações da imprensa naci-
onal datadas em 1973.
Contudo, é preciso primeiramente familiarizar o leitor
acerca da história de criação do antigo Batalhão (BIB), em Bar-
ra Mansa. Familiarizá-los com a relação entre esta instituição
militar e os depoentes na Comissão da Verdade de Volta Redon-
da, em geral, ex – trabalhadores da CSN e seus parentes. Indiví-
duos ligados à resistência ao golpe militar de 1964.

O Batalhão de Infantaria Blindada de Barra Mansa e a CSN


A década de 1940 foi um marco para a mudança dos ru-
mos econômicos do Vale do Paraíba no sul fluminense, notada-
mente para Volta Redonda, até então, distrito de Barra Mansa.
A região nacionalmente conhecida pela produção de café, nos
séculos XVIII e XIX, e pela produção leiteira na década de 1930,
se converteria rapidamente na maior produtora de coque, fer-
ro-gusa e aço do país. Uma produção estratégica para o projeto
desenvolvimentista daquele período. A criação da CSN (Compa-
nhia Siderúrgica Nacional) foi um projeto ousado que fez surgir
uma cidade nas margens do Rio Paraíba, num distrito rural de
Barra Mansa, precisamente na fazenda Santa Cecília.
Em meio à construção da siderúrgica, a cidade de Volta
Redonda foi erguida e trabalhadores chegaram de várias locali-
dades para ocupar postos de trabalho. Os arigós, como ficaram
conhecidos, vieram dos estados de Minas Gerais, São Paulo e de
outras regiões do antigo estado da Guanabara.
A fundação da CSN, num enclave eminente rural como
aquele, era o símbolo da proposta de desenvolvimento construí-
da nas décadas que marcaram a reforma burocrática do Estado.
O Brasil deveria abandonar sua “vocação rural” e ingressar numa
nova era, a da industrialização. O local escolhido era perfeito
para marcar essa transição.
A proposta de modernização do Brasil deveria começar
pela substituição de um modelo econômico carcomido pelas re-
lações patriarcais dos grandes latifúndios, por outro “bem dife-
rente”. Ao invés da grande propriedade rural e suas relações
pessoalizadas que transbordavam para esfera pública, reforçan-
do, a cada nova década, uma enorme confusão entre o público e
o privado (BUARQUE DE HOLANDA, 1936), o Brasil apostava na
sua modernização. A industrialização, a vida urbana, a reforma
burocrática do Estado simbolizavam um anseio, pelo menos de
alguns setores da classe dirigente do país, de romper com o
passado. Contudo, essa ruptura seria, quando muito, parcial.

214
Na verdade, como ruptura não passou de uma mera pretensão. O
que observamos foi a manutenção do controle acerca dos movi-
mentos sociais, o autoritarismo e a falta de protagonismo da po-
pulação nesse processo de modernização (CARVALHO, 2012).
Chamada de modernização autoritária, ela marcou de for-
ma indelével as relações de trabalho na indústria nascente. A
implantação da CSN é só um capítulo dessa longa história. As
relações de trabalho construídas no processo de implantação da
siderúrgica de Volta Redonda (e ao longo de sua trajetória) são
apenas um dos muitos exemplos de como se deu a transposição
das relações de trabalho do campo para a indústria durante o
êxodo rural que caracterizou a década de 1950 e as duas déca-
das subsequentes. O Brasil objetivava alcançar os símbolos da
modernidade norte-americana e europeia, contudo, encontrá-
vamos aqui um terreno social e político muito diverso daquele
onde a racionalização dos valores morais, do Estado, da empre-
sa privada e do restante da vida cotidiana se deu (WEBER, 1982).
Era também muito distante de locais onde a luta continuada
pela consolidação e ampliação de direitos civis, direitos políti-
cos e sociais já estava plantada. No Brasil, em 1940, nos raros
lugares em que esses direitos existiam, eles eram incipientes e
frágeis, e as décadas subsequentes só revelaram que a moderni-
zação em curso teria que conviver com a supressão dos, já es-
cassos, direitos políticos e civis, inclusive com a supressão de
direitos humanos.
O breve preâmbulo à história do Brasil e de sua relação
com o Vale do Paraíba Sul Fluminense, notadamente os municí-
pios de Barra Mansa e Volta Redonda, tem apenas a pretensão
de familiarizar o leitor com o cenário de grande relevância para
esse trabalho, pois a construção da CSN e de tudo que ela repre-
sentava, em termos de “modernização”, aconteceu concomitan-
temente à implantação do 1° Batalhão de Infantaria Blindada
do exército do Brasil a exatos 9,4km da siderúrgica. A intrinca-
da relação entre a CSN e o 1° BIB de Barra Mansa está contida
na gênese e implantação simultânea das duas instituições. O
controle da produção de coque, de ferro-gusa e aço, estratégica
para o Brasil, mas, sobretudo o controle dos trabalhadores, dos
movimentos sociais e sindicais, oriundos da experiência da in-
dustrialização e da recém consolidada legislação trabalhista,
orientou a relação entre a siderúrgica e o batalhão.
Essa relação estreitou-se e o controle intensificou-se a par-
tir de abril de 1964, quando a diretoria da estatal solicitou a
ampliação do efetivo do batalhão e também a fixação de residên-
cia para sargentos e oficiais nas imediações da usina. Nesse perí-
odo, e nos anos subsequentes, prisões arbitrárias no 1° BIB e

215
sessões de tortura realizadas naquele local, além de perseguições
políticas que resultavam em demissões sumárias, eram expedien-
tes comuns. Mesmo com a implantação da ASI, assessoria de segu-
rança e informação, em 1977, diretamente ligada à presidência
da CSN, o 1° BIB manteve-se durante todo o período militar peça
chave no controle e repressão dos trabalhadores da usina.
No entanto, a proposta desse trabalho não é compreender
os detalhes dessa relação, mas levantar algumas perspectivas a
partir das quais se pode entender como o local que sediou esse
antigo centro de repressão e tortura, o batalhão, foi transforma-
do em “Parque da Cidade”. Não há, hoje, qualquer registro que
indique a ocorrência da supressão de direitos civis, políticos e
humanos naquele local. A administração pública municipal, por
meio de seus canais de comunicação, não fez ou faz qualquer
menção ao antigo Batalhão de Infantaria Blindada e às mortes e
torturas ocorridas em suas dependências.

Batalhão de Infantaria Blindad a de Barra Mansa –


prisões arbitrárias, torturas e mortes
O histórico é longo e os detalhes estão sendo recupera-
dos, sobretudo, através dos depoimentos das vítimas e de seus
parentes. E não pretendemos aqui descortinar os detalhes da
relação entre a CSN e o antigo batalhão na condução das arbi-
trariedades. Esse é um dos trabalhos conduzidos pela Comissão
Municipal da Verdade de Volta Redonda. É preciso destacar, no
entanto, que a experiência do Golpe em Volta Redonda e a resis-
tência dos trabalhadores na usina e em seus arredores (BEDÊ,
2010) demonstravam a existência de um sistema de informação
e controle que unia as duas instituições públicas. Demonstra-
vam, sobretudo, a eficiência desse sistema, pois, imediatamen-
te após ter sido anunciada a deposição de João Goulart e inicia-
da a movimentação dos trabalhadores da CSN em prol da resis-
tência ao golpe (pretendiam paralisar as atividades na usina), o
sistema de informação e controle já havia mapeado os atores
políticos que organizavam a resistência entre os trabalhadores
(BEDÊ, 2010). As prisões ocorridas no BIB, em abril de 1964,
evidenciaram a eficiência na produção de informações e no con-
trole sobre os trabalhadores.
Entretanto não foi nesta ocasião que o antigo Batalhão de
Infantaria Blindada ganhou as páginas dos principais veículos
de comunicação impressos do país, entre eles a revista “Veja”, o
jornal “O Estado de São Paulo” e o “Jornal do Brasil”.
Paradoxalmente, o eficiente sistema de informação que
destacamos acima teria tido dificuldades para reunir evidênci-

216
as acerca de um suposto tráfico de drogas em suas dependênci-
as, no início da década de 1970. Os supostos suspeitos foram,
então, torturados e mortos. Contudo, as famílias jamais reco-
nheceram a ligação dos jovens soldados com o tráfico e reafir-
mam que os jovens foram mortos por se recusarem a compactu-
ar com as sessões de tortura, morte e descarte de corpos, ações
perpetradas nas dependências do batalhão. A partir de 1968,
sobretudo após a promulgação do Ato Institucional n° 5, o AI-5,
tornaram-se frequentes as sessões de tortura no BIB e estreitou-
se sua ligação com outros órgãos de repressão do Estado, como
destacado nos depoimentos concedidos à Comissão da Verdade
de Volta Redonda.
Em 1973, o batalhão de Barra Mansa ganhava as páginas
dos principais veículos de comunicação impressa do país, nota-
damente pelo seu protagonismo nas sessões de tortura que con-
duziram à morte quatro jovens soldados. A imprensa noticiou,
em janeiro de 1973, a condenação de oficiais do antigo BIB. Em
plena ditadura militar (entre 1971 e 1973), durante os “anos de
chumbo”, a corporação e vários oficiais envolveram-se em de-
núncias de tortura e morte que culminaram com a instauração
de um Inquérito Policial Militar; a investigação e o julgamento
ocorreram sob sigilo. Foi em 1973, que o Conselho Especial de
Justiça da 2ª Auditoria do Exército iniciou o julgamento no qual
foram indiciados o tenente-coronel Gladstone Pernassetti Tei-
xeira, o capitão Dálgio Miranda Niebus, o 2° tenente R/2 Paulo
Reinaud Miranda da Silva, os 3° sargentos Ivã Etel de Oliveira,
Rubens Martins de Sousa e Sidnei Guedes, os cabos Celso Go-
mes de Freitas Filho e José Augusto Cruz e os policiais Nélson
Ribeiro de Moura e Iranides Ferreira. Todos os acusados foram
condenados após longo julgamento. A repercussão sobre as con-
denações foi tão grande que o 1° Batalhão de Infantaria Blinda-
da foi desativado no mesmo ano e, em suas dependências, insta-
lou-se o 22° Batalhão de Infantaria Motorizada.
Como nossa reflexão é sobre memórias e esquecimentos,
cabe ressaltar que as motivações alegadas pelos oficiais para a
execução dos atos brutais de tortura que conduziriam à morte
quatro soldados, todos com apenas 19 anos de idade: Geomar
Ribeiro da Silva, Roberto Vicente da Silva, Wanderlei de Oliveira
e Juarez Monção Viroti, ganharam um espaço privilegiado nos
meios de comunicação e fixaram-se como memória oficial. As-
sim, os vários episódios de violação dos direitos humanos ocorri-
dos nas dependências do BIB, antes e após a década de 1970, a
despeito das experiências das vítimas, encontraram na memó-
ria oficial a segurança que serviria para amalgamar a vida soci-
al e para reforçar a máxima: Brasil ame-o ou deixe-o.

217
A ligação das torturas e mortes ocorridas no BIB com o
suposto envolvimento dos quatro soldados no tráfico de drogas,
nas dependências do batalhão, havia se tornado pública e sedi-
mentou-se na memória coletiva, num processo de enquadramento
das memórias (Pollak, 1989) conduzido pelo Estado e por outras
forças da sociedade civil.
O parágrafo publicado na revista Veja, em 31 de janeiro
de 1973, sob o título “Oficiais Punidos” torna evidente a força
da dominação exercida, através da imprensa, para garantir a
hegemonia de um discurso que se fixaria na memória coletiva,
na memória nacional. As vozes das vítimas e de seus parentes
seguiram silenciadas.
Desde as primeiras notícias, há um ano, sabia-se de acon-
tecimentos muito graves no quartel do Batalhão de Infan-
taria Blindada, em Barra mansa, RJ. E uma nota do servi-
ço de relações públicas do Exército, divulgada em meio à
boataria que falava em chacina e massacre, serviria ape-
nas para confirmar o que se propalava. Através dela, con-
firmava-se que, investigando tráfico de tóxico entre seus
subordinados, alguns oficiais “agiram de maneira conde-
nável e deformada, provocando a morte de soldados”, a
nota informava: “Foi determinado o máximo de rigor na
sua apuração”. (Revista Veja, 31 de janeiro de 1973)
Sob o título “Justiça exemplar”, o Jornal do Brasil também
se manifestou acerca do caso.
O envolvimento de praças, no tráfico e no uso de entor-
pecentes, no 1° Batalhão de Infantaria Blindada, em
Barra mansa, determinou a apuração dos fatos no âm-
bito militar. O Grupo encarregado da missão excedeu os
limites e praticou violências que, uma vez chegadas ao
conhecimento dos comandos superiores, determinaram
a apuração rigorosa das responsabilidades. O episódio
encerrou-se agora com a condenação dos que transpuse-
ram os limites, numa punição de caráter exemplar pela
Justiça militar, não deixando dúvida de que, quando fa-
tos dessa natureza chegam ao conhecimento superior,
são apurados e os culpados não se livram da punição.
(Jornal do Brasil, 24 de Janeiro de 1973)
O episódio do assassinato dos soldados no batalhão, sua re-
percussão, mas, sobretudo o controle sobre o que poderia ser dito
sobre o caso tiveram papel relevante na construção da memória
coletiva acerca do batalhão de Barra Mansa e do que ocorria em
suas dependências. O episódio e as fronteiras entre o dizível e o
indizível deixaram evidente a disputa pela memória coletiva. As-
sim como também era evidente a conjuntura política e a força do
Estado atuando no controle da vida social em conhecida associa-
ção com um segmento bastante expressivo da sociedade civil.

218
Por meio desse processo de enquadramento das memóri-
as (POLLAK, 1989) encontramos uma chave interpretativa para
compreender como um espaço que abrigou um antigo centro
de informação, controle sobre os trabalhadores da CSN, tortura
e morte foi transformado em “Parque da Cidade” sem causar
nenhum tipo de estranheza ao entorno, à população local.

Enquadramento das memórias


Não se tratava apenas do controle do Estado sobre os mei-
os de comunicação, o processo de enquadramento das memóri-
as e a fixação de uma memória oficial, sobre o batalhão de Bar-
ra Mansa e a conduta dos oficiais especificamente, mas tam-
bém sobre o período militar contou com a força de outras di-
mensões da vida social.
O cenário econômico da década de 1970 é um excelente
exemplo. A despeito do forte endividamento contraído pelo Es-
tado durante esta década, responsável pela elevação de juros a
níveis estratosféricos na década seguinte, esse período ficou
conhecido como a década do “milagre econômico brasileiro”.
Essa era uma força que inegavelmente atuava sobre as memóri-
as dissidentes, conduzindo-as ao silêncio, a uma existência sub-
terrânea.
A vitória na “Copa do Mundo” de futebol, o tricampeona-
to, para a “pátria de chuteiras”, não poderia haver evidência
mais contundente de que tudo “ia muito bem”. Como retratou a
imprensa, os maus oficiais eram punidos, a justiça era exem-
plar. Admitia-se a existência de conduta violenta, chamadas de
“abusos” ou “excessos” pelo exército ou órgãos do Estado. Mas,
assim que tais condutas fossem identificadas pelos “comandos
superiores” seriam “exemplarmente punidas”, como destaca a
imprensa da época.
A crescente industrialização, a migração do campo para
cidade e, com ela, a relativa melhoria das condições de trabalho
compunham o cenário em que, em nome do Estado, da pátria,
eram conduzidas graves violações de direitos humanos, além de
perseguições políticas e demissões sumárias, “politicamente
justificadas”.
Com o golpe militar e na década subsequente, sobretudo
aqueles que estavam diretamente envolvidos com ações políti-
cas e sindicais utilizavam os discursos reticentes e mesmo o si-
lêncio de forma estratégica.
Em “Memórias do Esquecimento”, Flávio Tavares, vítima
de tortura durante o regime militar descreve a angústia e os
conflitos pessoais durante os anos em que viveu no exílio, ten-

219
tando superar através do esquecimento os horrores da prisão. O
silêncio e os “esquecimentos”, para aqueles que dominados vi-
veram a experiência das violações perpetradas pelo Estado no
Brasil, são elaborados, entre outras razões individuais, pela au-
sência da escuta. Pela ausência de indivíduos ou instituições
com quem pudessem compartilhar não apenas sua história, mas
também o sentido de sua história, sua perspectiva ou seu ponto
de vista sobre ela. O silêncio e os “esquecimentos” evitam, as-
sim, os mal-entendidos e, sobretudo, evitam a possibilidade de
ser mais uma vez punido pelo que se diz.
É exatamente através da observação das fronteiras que
separam o que se pode dizer do que não pode ser dito que con-
seguimos identificar as memórias subterrâneas e, também, a
memória nacional, assim como o conflito latente entre elas. Deve-
se destacar que a memória nacional é, antes de tudo, uma me-
mória coletiva organizada. Nela está contida a história que o
Estado ou grupo majoritário pretendem impor e manter.
Alguns depoimentos dados à Comissão da Verdade de Volta
Redonda (2014) evidenciam esse silêncio estratégico.
Eu só pude dar essa entrevista há um ano atrás porque
ela tinha falecido [mãe da depoente]; foi um pouco de-
pois. Eu tinha pena do sofrimento dela, eu não fazia
nada que ela não queria. Nunca mais pude fazer nada.
Minha vontade era continuar na luta. Você acha que
eu não queria ter continuado? Nunca, nunca; eu sem-
pre me achei covarde, eu não podia ter parado ali. Mas
aí eu ia fazer infeliz uma pessoa que já tava tão infeliz.
Eu não tinha mais esse direito. Fiquei uma pessoa anô-
nima, não quis mais estudar. Eu já fazia cursinho pré-
vestibular, aí não quis fazer mais nada, porque eu achava
que nada que eu fizesse ia valer a pena, sabe? Nada.
O trecho acima transcrito também revela a possibilidade
de se distinguirem, no cenário político e social, conjunturas fa-
voráveis à emergência dessas memórias subterrâneas, silencia-
das, esquecidas. Além das particularidades que marcaram a
história das famílias em episódios de violência física e psicológi-
ca, era preciso superar, também, o momento do silêncio e dos
“esquecimentos”. Era preciso ter escuta, era preciso que hou-
vesse aqueles dispostos a ouvir. Dispostos a compreender o sen-
tido daquelas experiências pela perspectiva daqueles que não
tornaram suas memórias hegemônicas.
A gente sabe que você é um guardião da memória não só
sua como da sua classe de companheiros. Tem uma me-
mória de classe não é memória sua individual e essa
memória de classe que nós precisamos dela...

220
Era preciso haver espaços e discursos como o acima trans-
crito para ver emergir as memórias subterrâneas, as memórias
daqueles que foram silenciados pela história. Espaços como os
propiciados pelas Comissões da Verdade fazem emergir os dis-
cursos subterrâneos e podem propiciar a reelaboração da me-
mória coletiva.

Considerações finais
As Comissões da Verdade oportunizaram a emergência
das vozes silenciadas por vários anos. Elas também permitiram
análises como essa, acerca do processo de enquadramento das
memórias. Compreender em profundidade os detalhes do tra-
balho de enquadramento que nos conduziu ao silêncio e ao es-
quecimento acerca das práticas de tortura e morte ocorridas
nas dependências do BIB de Barra Mansa levaria mais tempo e
uma análise mais cuidadosa do trabalho que as Comissões da
Verdade estão realizando.
De qualquer forma, essa reflexão nos oferece a possibilida-
de de compreender como as memórias coletivas são construídas,
desconstruídas e como podem também serem reconstruídas.
Ao trabalharmos com a história oral, com a análise das
trajetórias de vida, com as memórias individuais (as subterrâne-
as) podemos observar os limites do enquadramento. Podemos
observar como a existência de novas conjunturas, especialmen-
te políticas, podem abrir espaços para que as contradições en-
tre a memória oficial do passado e as lembranças pessoais das
vítimas e de seus parentes possam emergir.

Referências bibliográficas
BEDÊ, Edgard D. A. T. Formação da Classe Operária em Volta
Redonda. Volta Redonda, 2010.
CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil, o longo caminho.
15ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.
HALBWACHS, Maurice. La Mémoire Collective. Paris: Éditions
Albin Michel, 1997.
POLLAK, Michael. Pour un Inventaire. In: Cahiers d’Histoire du
Temps Présent. Paris, n° 4, 1987, p. 17
_____. Memória, Esquecimento, Silêncio. In: Estudos Históricos.
Rio de Janeiro, vol. 2, n° 3, 1989, p. 3-15.
SIMMEL, G. A natureza Sociológica do Conflito. In: Moraes Fi-
lho, Evaristo (org.) Simmel. São Paulo: Editora Ática, 1983.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5ª edição. Rio de Janeiro:
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