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Conselho Editorial Internacional

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Comitê Científico da área Ciências Sociais Aplicadas


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Professora Doutora Margareth Vetis Zaganelli (UFES – Direito)
Amanda Coutinho

Trabalhadores da cultura
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Comitê Editorial
Editora-Chefe: Sandra Heck
Editor Superintendente: Valdemir Paiva
Editor Coordenador: Everson Ciriaco
Diagramação e Projeto Gráfico: Brenner Silva
Arte da Capa: Paula Zettel
Revisão de Texto: A autora
DOI: 10.31012/978-65-5861-133-2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Bibliotecária: Maria Isabel Schiavon Kinasz, CRB9 / 626
Coutinho Amanda
C416t Trabalhadores da cultura / Amanda Patrycia Coutinho de Cerqueira – 1.ed.
- Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
recurso eletrônico]

ISBN 978-65-5861-133-2

1. Artistas – Mercado de trabalho. 2. Trabalho artístico. 3. Cultura –


Trabalhadores. I. Título.

CDD 331 (22.ed)


CDU 7.01

[1ª edição – Ano 2020]


www.aeditora.com.br
Para o(a)s trabalhadore(a)s da cultura.
PREFÁCIO

Pandemia, pandemônio e os trabalhados da cultura

Hoje vivemos no Brasil uma trágica conjunção entre


pandemia e pandemônio. A pandemia contaminou o mun-
do e o país. Sua virulenta propagação no Brasil foi poten-
cializada pela irresponsável atitude do governo federal no
seu enfrentamento. Quase duas centenas de milhares de
mortos atestam esta irresponsabilidade. Nós habitamos
uma nação federativa, com certa autonomia para políticas
públicas sanitárias de estados e de municípios, não fos-
se isso os números da irresponsabilidade certamente se-
riam ainda mais brutais. Conjugada à pandemia, vivemos
um pandemônio no país, pela conjunção de muitas crises:
econômica, política, ambiental, ética, cultural etc.
Pandemonium tem origem inglesa e literária. O poe-
ta John Milton, no poema épico “Paraíso perdido”, de 1667,
inventou a expressão para nomear o centro gestor do in-
ferno. Ele importou no termo as palavras gregas “pan”
(tudo, todos) e “daimon” (divindade menor, demônio).
Pandemonium era o palácio em que se reuniam os de-
mônios sob a presidência de Satã. No século XIX o senti-
do do termo mudou para “confusão selvagem”. Hoje, em
uso corrente, virou sinônimo de “bagunça, caos, desor-
dem”. Antonio Houaiss dicionariza que pandemônio pode
ser empregada como associação de pessoas para praticar
o mal. Nunca uma expressão pareceu tão apropriada ao
Brasil atual.
Viajar pela etimologia das palavras traduz sentidos
para uma das tarefas mais essenciais da atualidade bra-
sileira: decifrar o país. Entender ódio, desigualdade, auto-
ritarismo, privilégios, escravidão, discriminações, precon-
ceitos, violências, usos das corrupções, negações de direi-
tos, fragilidades das instituições, ataques e debilidades da
democracia, extrema-direita no poder etc. Compreender
como a tragédia, histórica e contemporânea, pode con-
viver, de modo paradoxal, com biodiversidade, natureza
exuberante, belas paisagens, diversidade cultural, criativi-
dade, alegria, festividades, cordialidade, tolerância e mui-
tas dimensões civilizatórias, que convivem o Brasil e suas
contradições.
O trabalho de Amanda Coutinho, Trabalhadores da
cultura, emerge neste Brasil difícil e sombrio. Ele busca
desvelar, nas palavras da autora, “a composição, a estru-
tura, a expansão, as tensões, assimetrias, lutas e formas
de reconhecimento político-profissional dos trabalhado-
res da cultura no Brasil, tendo como especificidade a lin-
guagem musical considerada independente”. Belo desafio
imaginar a cena musical independente no Brasil. Para de-
senvolver seu estudo, a autora, além de recorrer a uma
boa bibliografia de estudos em cultura e áreas afins, en-
trevistou 22 artistas das cidades de Recife e São Paulo,
que têm na música sua única ou principal atividade e que
desenvolvem seu trabalho de criação, produção, distribui-
ção e promoção de forma autônoma às gravadoras e distri-
buidoras, ou seja, buscam atuar sem intermediários. Cabe
ressaltar que os estudos dos trabalhadores da cultura são
recentes no Brasil e o conhecimento mais apurado dessa
realidade exige mais e mais trabalhos de pesquisa, como
o de Amanda Coutinho.
O texto transita por muitas das questões que afli-
gem a produção independente em geral e, em especial, a
música. O estudo trata: da conceituação de artistas in-
dependentes; dos aspectos relativos à classe, raça e gê-
nero dos entrevistados, buscando visibilizar os modos de
opressão a que eles estão submetidos; da peculiar inser-
ção da atividade artística no ambiente de trabalho, con-
formado pelo modo de produção capitalista e dos diver-
sos constrangimentos daí derivados; da organização do
trabalho e dos modelos de negócio; das formas que os
músicos encontram de encarar os desafios do trabalho
artístico e como eles se percebem nesse contexto e, por
fim, trata da temática do neoliberalismo, do mercado, do
estado e das políticas culturais. Este longo percurso pelos
temas principais dos capítulos demonstra a intenção de
uma análise bastante detalhada e multifacetada da situa-
ção da música independente no país.
As tensões em jogo na análise são inúmeras. Os artistas
e os músicos independentes lutam continuadamente em
meio e, muitas vezes, contra inúmeras dependências
anotadas pela autora: de outros independentes; dos orga-
nizadores de festivais independentes; da internet; da ve-
lha mídia; dos donos de pequenos e médios estúdios; de
editais públicos de incentivo à cultura; de sites de finan-
ciamento coletivo; de jornalistas e formadores de opinião;
de curadores e programadores de casas de shows etc.
A perversão dos modelos de financiamento à cul-
tura, com a predominância absoluta das leis de incen-
tivo fiscal, por meio do uso quase integral de recursos
públicos decididos por empresas e seus departamentos
de marketing, agrava a circunstância brasileira, para além
dos constantes ataques do governo federal à cultura. A
prevalência das leis de incentivo fiscal no financiamento
nacional da cultura, como efeito colateral, tem deprimido
o financiamento derivado dos mercados dependentes do
público pagante, inclusive os alternativos. Somado a isto,
o declínio do financiamento direto do estado, via fundo
nacional de cultura e outros instrumentos, tem criado um
clima de asfixia financeira à cultura e, em especial, à pro-
dução independente. A luta por um sistema de fomento
complexo, com diversos mecanismos complementares de
financiamento, em sintonia com a complexidade da pró-
pria cultura, se impõe na agenda nacional como reivindi-
cação vital para a cena cultural brasileira.
Muitos seriam os pontos a ressaltar no estudo sobre
os trabalhadores da cultura. Anoto apenas mais um. As ten-
sões persistentes dos antagonismos entre a lógica da indús-
tria cultural, prevalecente nos gigantescos conglomerados
capitalistas multinacionais de produção e difusão culturais,
que incessantemente buscam produzir enormes públicos e
mercados mundiais, e a famosa proliferação dos mercados
de nicho, apontada por Chris Anderson, em seu livro A cauda
longa. Longe de extinguirem os chamados mercados mas-
sivos, cada vez mais amplos, próprios da lógica de indústria
cultural e do capitalismo em sua fase glocal de mercado
mundial, o que temos hoje é a coexistência conflituosa e
desigual entre essas duas dinâmicas no mundo da cultura.
O dado novo, por conseguinte, é mais uma coexistência ten-
sa que se agrega ao campo da cultura. As potencialidades
abertas pelas tecnologias da informação e da comunicação,
acionadas pelas redes digitais, criam possibilidades de no-
vos nichos de mercado, mas elas não se tornam universais
como anota Amada Coutinho, pois ainda se restringem a
ambientes específicos da economia da cultura.
A ideia de independência da cultura e da música está
associada ao desenvolvimento dos processos de produção
e distribuição de bens culturais. Mas tais procedimentos
não são novidade, em sua plenitude. Eles aparecem em
roupagem contemporânea, marcados pelas contemporâ-
neas sociotecnologias digitais. Em seu instante de surgi-
mento, as tecnologias apresentaram características de-
mocratizantes, que encantaram muitos estudiosos. Mas
a inserção social capitalista delas vai borrando tais po-
tencialidades emancipadoras, criando tensões no interior
mesmo de suas dinâmicas. Essas tensões repercutem na
cultura e na música, inclusive em sua cena independente,
na conformação ou não de nichos de mercado, que de-
pendem de variados fatores para se constituírem.
A pandemia e o pandemônio atingiram fortemen-
te todo cenário cultural e musical. A reiterada afirmação
que a cultura foi a primeira a entrar na quarentena e deve
ser uma das últimas a sair confirma a gravidade de sua
situação. No contexto sombrio do Brasil atual, no âmbito
da cultura, a luta e conquista da Lei Aldir Blanc, em uma
interessante construção do campo da cultura com o par-
lamento nacional, por meio dos partidos e parlamentares
democráticos e de esquerda, aparece como um efetivo
dado novo e animador para o trabalho e a vida dos tra-
balhadores da cultura. Por óbvio, seu caráter emergencial
afirma suas limitações, mas as articulações e o ânimo de-
sencadeados no campo cultural e na cena política podem
servir de fagulha para incendiar novas esperanças para a
cultura e para o Brasil.

Antonio Albino Canelas Rubim


Pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura (CULT). Professor do Programa
Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade
(Pós-Cultura) da Universidade Federal da Bahia.
Ex-Secretário de Cultura do Estado da Bahia.
PREFÁCIO

II

Trabalhadores da cultura, de Amanda Coutinho de


Cerqueira, resultado de sua Tese de Doutorado em Ciências
Sociais da Unicamp, retoma um tema que é ainda é muito
caro ao pensamento social. Ele pode ser assim resumido:
como compreender o trabalho do/a artista, na complexa
teia social em que se insere no mundo contemporâneo,
seja, por um lado, como expressão de uma modalidade es-
pecial de trabalho, o artístico, que em si e por si dispõe de
capital cultural que o impulsiona para o topo da pirâmide
social dos assalariados, seja, por outro lado, como partícipe
efetivo de uma atividade cujo modo de ser se encontra cada
vez mais entranhada e conectada com o solo social dos
trabalhos, onde (quase) tudo se torna mercadoria.
Visibilizado como artista, quando consegue se desta-
car e alçar o cume, mas invisibilizado em seu labor enquanto
assalariado comum que tangencia a cada momento a condi-
ção de precariedade (ainda que muitas vezes obliterado pela
falácia de ser “empreendedor”), é neste universo que a auto-
ra apresenta sua pesquisa e oferece sua efetiva contribuição.
E, ao explorar este e tantos outros movimentos pre-
sentes no cotidiano do trabalho da cultura, o livro de Amanda
Coutinho de Cerqueira ajuda a desvendar tantas nuances
que, mais do que pendulares, se imbricam em uma teia
cheia de contradições que enlaçam o trabalho da cultura.

Ricardo Antunes
Sociológo do trabalho e Professor Titular de Sociologia no
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

1 ARTISTAS INDEPENDENTES: CONCEITOS EM DISCUSSÃO . . . . 22


1.1 Mercado e economia fonográfica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23
1.2 Configurações e especificidades. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
1.3 Narrativas acerca da independência . . . . . . . . . . . . . . . . . . .40

2 TRAJETÓRIA E FORMAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
2.1 Genialidade e ócio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
2.2 Relações familiares e profissões. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .60
2.3 À procura de trabalho e identidade profissional . . . . . . . . . . . . 74

3 RETRATOS DO MERCADO DE TRABALHO ARTÍSTICO . . . . . . . 78


3.1 Condições estruturais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79
3.2 Imaterialidade e mito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
3.3 Facetas da precarização . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

4 ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E MODELOS DE NEGÓCIOS . . 123


4.1 Distribuição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
4.2 Meios de comunicação tradicionais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
4.3 Consumo e recepção. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156

5 VIVER DE MÚSICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161


5.1 Indústria do show . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162
5.2 O músico empreendedor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 176
5.3 Migrações artísticas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 189

6 POLÍTICA CULTURAL NEOLIBERAL . . . . . . . . . . . . . . . . . 198


6.1 Escolha do Estado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 199
6.2 A era dos projetos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221
6.3 Independência e políticas públicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234

CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238


REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 245
SOBRE A AUTORA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 251
INTRODUÇÃO

Este trabalho busca descortinar a composição, a es-


trutura, a expansão, as tensões, assimetrias, lutas e for-
mas de reconhecimento político-profissional dos traba-
lhadores da cultura no Brasil, tendo como especificidade a
linguagem musical considerada independente. O trabalho
cultural, as atividades de criação artísticas e os processos
técnicos e tecnológicos a elas associados estão no centro
das  transformações do capitalismo nos últimos tempos,
cujas ambiguidades integram as novas cadeias globais de
serviços simbólicos especializados e as indústrias trans-
nacionais. Por trás da expansão dos mercados culturais
globais e nacionais, acompanhados da respectiva inten-
sificação do fluxo comercial dos bens e serviços simbóli-
co-culturais, está a criação de valor simbólico-econômico
propiciado pelo trabalho no campo das artes e da cultura.
A principal pergunta que orienta a discussão des-
se trabalho pode ser assim resumida: Quais as confi-
gurações e especificações que permitem desenhar as
genealogias trabalhadores da cultura, tendo em vista o
contexto econômico, político e social no qual é consti-
tuído o trabalho artístico hoje? Ao longo desta pesquisa,
essa indagação desdobra-se em outros questionamentos
especificamente no que ficou sendo considerado artista
independente hoje: O que distingue o trabalho artístico
de outros tipos de trabalho? O que significa a vivência da
independência nas atividades culturais, especialmente a
partir da reestruturação na indústria musical? Qual a in-
fluência da política neoliberal no trabalho artístico con-

13
TRABALHADORES DA CULTURA

siderado independente? Existem diferenças entre produ-


ções independentes e a indústria cultural? Em que me-
dida a indústria cultural cria a ilusão da independência?
Finalmente, o que poderia ser entendido como indepen-
dência para fins de políticas públicas aptas a viabilizar a
descentralização e diversificação da produção cultural?
Na tentativa de refletir sobre essas perguntas, esta
pesquisa entrevistou 22 artistas, cujo viés de seleção
considerou como independente aquele que tem a música
como única, senão principal, atividade; e desenvolve seu
trabalho de criação, produção, distribuição e promoção
de forma autônoma às gravadoras/distribuidoras, ou seja,
sem intermediários. O estudo partiu de campo qualitati-
vo nas cidades de Recife e São Paulo, em razão do pró-
prio trânsito da pesquisa, mas também pela dimensão da
prática musical conceituada como independente, que vem
sendo sustentada de forma diferente, de acordo com as
especificidades mercadológicas e políticas de cada cidade.
A abordagem qualitativa se mostrou adequada para cap-
tação de estruturas complexas, seus processos, contexto
e inter-relações, no sentido de entender o modo como a
experiência social é criada e adquire significado. A entre-
vista contou com uma organização livre em profundidade
e semiestruturada, no intuito de valorizar a chance do(a)s
entrevistado(a)s em dizer o que considera mais importan-
te sobre a sua realidade, enfatizando as singularidades de
um fenômeno e suas diferentes perspectivas.
Os processos inerentes à construção das entrevis-
tas e análise das diferentes histórias de vidas são esfor-
ços em pesquisar referências que, ao final, se traduzem
em importantes aspectos das estruturas sociais. Nessa
direção, as entrevistas percorrem variáveis, como: sen-
tidos do trabalho artístico; estruturas de remuneração;
relações familiares e de formação; locais de fala e mi-

14
TRABALHADORES DA CULTURA

grações artísticas; concepções acerca da independência;


fator contingência mercadológica; heterogeneidade/poli-
valência e empreendedorismo cultural; modelos de negó-
cios; políticas públicas e meios de comunicação; órgãos
de representação; relações de gênero, raça e sexualida-
de. Trata-se de uma tentativa de descortinar as condi-
ções de vivência na profissão: artista, tendo em vista as
diferentes realidades e contextos em que esses trabalhos
são desenvolvidos. Trata-se também de compreender as
dificuldades, frustrações e conquistas experienciadas no
cotidiano dos músicos, que informam as relações sociais
vividas e suas contradições. Em outros termos: diante das
tensões e dinâmicas decorrentes do novo papel social e
econômico dos artistas-empreendedores, quais os signifi-
cados de “viver de música”?
Em seu estudo sobre Mozart, o alemão Norbert Elias
(1995) elabora um modelo teórico para análise sociológica
do artista, o qual recupera as dimensões ontogênicas do
momento histórico para entender as pressões sociais que
agem sobre o indivíduo. O autor (ELIAS, 1995) demonstra
que o artista sempre esteve ligado a estruturas sociais
que lhe possibilitaram a realização do seu trabalho em
determinadas condições históricas e sistemas de intera-
ções, denominado de configurações. Ao elaborar indaga-
ções sociológicas para compreender a relação do artista
no contexto da Corte, Norbert Elias (1995, p. 62) analisa o
significado de ser socialmente reconhecido como artista
e ser, ao mesmo tempo, capaz de alimentar sua família.
Na sociedade contemporânea, na qual novas dimensões
se colocam e outras tantas são reiteradas, a investigação
de Elias parece ser ainda mais urgente, com significações
diversas a ser conhecidas. Nesse sentido, é um desafio
entender quais as configurações que imprimem as gene-
alogias do artista, em suas relações de dominação, explo-
ração e autonomia.

15
TRABALHADORES DA CULTURA

As particularidades da análise das configurações


dos músicos independentes relacionam-se às transfor-
mações promovidas pelas tecnologias da informação e da
comunicação, assim como são parte de um contexto mais
amplo que informam o movimento de legitimação, proe-
minência e conveniência da cultura e do entretenimento
dentro da cadeia produtiva recente, enquanto importante
esfera econômica e de linguagem simbólica, política e so-
cial. O crescimento das indústrias culturais, durante todo
o século XX, que possibilitou a expansão da arte na forma
de mercadoria, hoje impulsiona e intensifica o trabalho
artístico. Cada dia mais as pessoas se ocupam das ativi-
dades culturais. Nas duas bases de dados que permitem
uma referência ao trabalho artístico no Brasil (IBGE/PNAD
e MTE/RAIS), observa-se um crescimento do número de
profissões relacionadas ao campo cultura e do espetáculo
(dos quais os músicos representam o maior crescimento
em números absolutos) comparado com o mercado de
trabalho no país. A ênfase cronológica desta pesquisa se
dá a partir dos anos 1990. Nesse período, se intensifica a
Nova Produção Independente (NPI) na indústria da música
brasileira, ao mesmo tempo em que setor cultural do país
experimenta as acentuações das políticas neoliberais.
Inaugurada em meados do século XVII e consolidada
entre os anos 1960 e 1990, a concepção de cultura como
recurso (YÚDICE, 2006), tem atraído cada vez mais investi-
mentos para as indústrias culturais e colocado em pauta a
perspectiva do gerenciamento e racionalidade administrati-
va na área. Proliferam-se as diversas organizações agencia-
doras de cultura, chamando a atenção de teóricos, gover-
nos, empresariado, terceiro setor, regulamentações comer-
ciais, jurídicas e bancos de desenvolvimento. Na emergência
de conceitos como economia da cultura, economia criativa
e (re)teorizações contemporâneas do trabalho imaterial, a

16
TRABALHADORES DA CULTURA

cultura é inscrita na agenda do empreendedorismo. Para


entender em quê se traduz estes termos, a relação entre
trabalho e atividade artística é base teórica para o desen-
volvimento desta tese e leva em consideração sociólogos
que abordaram os temas analisados em diferentes pon-
tos de vistas (ANTUNES, 2009; BECKER, 2006; BENHAMOU,
2007; COLI, 2006; COULANGEON, 2004; MENGER, 2005;
PICHONERI, 2011; REQUIÃO, 2008; SEGNINI, 2012).
A principal hipótese analítica desta pesquisa confi-
gura o trabalho artístico enquanto laboratório de flexibili-
dade em uma economia política das incertezas (MENGER,
2005), cujas representações de independência eviden-
ciam as práticas de precariedade nesse tipo de atividade.
As conclusões das análises acerca do trabalho artístico
na França apontam para a ironia evidenciada por Menger
(2005, p. 109): as artes que, desde há dois séculos, têm
cultivado uma oposição radical em relação ao mercado,
aparece exatamente como precursora na experimentação
da flexibilidade, ou até da hiperflexibilidade em um mer-
cado de trabalho ultraindividualizado e inspirado na políti-
ca cultural neoliberal. A produção independente não ape-
nas estaria incluída nesse contexto econômico e político,
como seria a expressão paradigmática de uma inclusão
ainda mais subsidiária, cooperada, especializada e precá-
ria no mercado cultural.
Para elucidar os sentidos do trabalho artístico e os
significados da independência, as discussões desse traba-
lho são apresentadas em seis capítulos. O primeiro capí-
tulo denominado Artistas independentes: conceitos em dis-
cussão parte da pertinência analítica do sociometabolismo
do capital de István Mészáros (2011) para situar o processo
de reestruturação do capital e a emergência da cultura. O
objetivo é analisar as estruturas que atuam no campo ar-
tístico, as mediações recíprocas que constituem a indústria

17
TRABALHADORES DA CULTURA

da música no Brasil e a atuação dos músicos independen-


tes. Destaca-se a noção de cadeia produtiva da musica,
enquanto conjunto de atores e processos que conformam
o panorama de produção musical. Sua sistematização está
associada ao tripé produção – distribuição – consumo.
Autores que analisaram o desenvolvimento da indústria
fonográfica no Brasil (CAZES, 1998; DIAS, 2000; MARCHI,
2006; MORELLI, 2009; PINTO, 2011; VAZ, 1988; VICENTE,
1996) contribuem para a identificação de momentos rele-
vantes em sua história. Na compreensão das relações de
mercado e economia fonográfica é possível discutir as di-
ferentes configurações da independência hoje, tendo em
vista as narrativas dos músicos entrevistados.
O Capítulo 2 Trajetória e formação parte do concei-
to de interseccionalidade de Angela Davis (2016) para ex-
plorar classe, raça e gênero dos entrevistados, no intuito
de analisar como as diferentes opressões se combinam e
se entrecruzam informando os itinerários artísticos. Esse
caminho conceitual é acompanhado de variáveis como
idade, região e orientação sexual, indicativos da dinâmi-
ca complexa abordada pela socióloga francesa Danièle
Kergoat (2010) em seu conceito de consubstancialidade
nas relações sociais. A perspectiva biográfica e a valoriza-
ção da experiência é a vereda metodológica utilizada para
entender as dimensões das atividades artísticas, a criação
de suas acepções e suas consequências na vida dos en-
trevistados. Autores que se dedicaram a estudar a ideia do
artista no tempo (DURAND, 1989; WARNKE, 2001) contri-
buem para a análise da construção histórica que relacio-
nada a atividade artística à genialidade, cuja ênfase colo-
ca o trabalho artístico como exceção às outras práticas,
ofuscando e idealizando a sua compreensão. A questão
central que se coloca nesse capítulo é a dos mecanismos
que fazem aparecer ou celebrar “talentos” e os modelos
de organização de sociedade que daí derivam.

18
TRABALHADORES DA CULTURA

O terceiro capítulo chamado Retratos do mercado


de trabalho artístico é uma tentativa mais próxima de con-
tribuir para uma análise sociológica da arte e da cultura
na perspectiva da categoria trabalho. Trata-se de integrar
a atividade artística na esfera do trabalho e dos constran-
gimentos que são singulares e que a constituem, exaltan-
do suas peculiaridades. Para essa tarefa, o capítulo ana-
lisa as condições estruturais exploradas pelos estudiosos
das indústrias culturais (ADORNO, 2002; BENJAMIN, 1994),
as relações entre economia e cultura na contemporanei-
dade, o mercado de entretenimento global e suas desi-
gualdades regionais. Na “nova economia”, as análises do
modo de produção tem intensificado um instrumental
teórico que reserva lugar privilegiado ao trabalho imate-
rial. Esse capítulo problematiza a investigação do trabalho
imaterial realizada pelos chamados neomarxistas (NEGRI;
LAZZARATO, 2001; GORZ, 2009) para incluir pressuposto
da produtividade, segundo o arcabouço analítico marxia-
no. A finalidade da reflexão é demonstrar como a sociopo-
lítica da cultura tem sido composta de contradições para
o trabalho artístico, tendo em vista as facetas da precari-
zação presentes na inserção das subjetividades artísticas
no contexto mercadológico.
O capítulo 4 Organização do trabalho e modelos de
negócios analisa o desenvolvimento dos sistemas técnicos
que propiciam novas vias de acesso à música, ao mesmo
tempo em que influencia as práticas dos atores envolvi-
dos nessa cadeia. Por um lado, observa-se o esforço das
inúmeras estratégias das gravadoras e distribuidoras em
manter sua relevância enquanto intermediárias, historica-
mente oligopolizadas. Por outro lado, brechas se abrem
e se alargam para a atuação dos músicos independentes.
Os resultados dessas tensões estão presentes nos da-
dos da indústria da música hoje. Nesse contexto, emerge

19
TRABALHADORES DA CULTURA

em importância a discussão dos meios de comunicação


tradicionais – rádio e TV – na estruturação do mercado
musical, bem como a responsabilidade do poder público
no tema. Finalmente, o capítulo faz uma relação entre o
uso da internet e a recepção da música considerada in-
dependente. A partir da lógica da distinção de Bourdieu
(2008), são abordadas as capacidades de produzir práti-
cas e obras classificáveis, além da capacidade de diferen-
ciar e de apreciar essas práticas, constituindo o mundo
social representado, segundo um universo simbólico mui-
to específico.
O quinto capítulo Viver de música investiga as for-
mas que os músicos encontram de encarar os desafios do
trabalho artístico e como eles se percebem nessa conjun-
tura. Cuida-se de uma investida em avaliar as estruturas
de renda básica dos músicos tendo em vista a centrali-
dade da indústria do show hoje, as formas de contratos e
cachês, a dinâmica dos festivais independentes e suas re-
munerações. Nesse quadro, analisam-se o engendramen-
to do comportamento empreendedor, assim como sua
institucionalização. A autogestão e o empreendedorismo
de si mesmo guardam suas vinculações com as faces da
precarização, assim como são parte das contradições do
trabalho artístico. Esse capítulo também explora as migra-
ções artísticas e os aspectos mercadológicos, econômicos
e políticos presentes nas cidades de São Paulo e Recife,
para contextualizar as perspectivas que o viver de música
independente assumem em cada espaço específico.
Por último, o Capítulo 6 Política cultural neoliberal
recupera a trajetória histórica das políticas públicas se-
toriais como fator que atua sob as condições da ativida-
de artística. Trata-se de desenhar a construção do campo
cultural no Brasil no intuito de informar o percurso, a es-
colha e o lugar do Estado. Pesquisadores atentos às políti-

20
TRABALHADORES DA CULTURA

cas culturais (CALABRE, 2009; CHAUÍ, 2006; RUBIM, 2008;


WU, 2006) auxiliam a entender o ambiente de crescente
participação das empresas no financiamento do trabalho
artístico, cujo corporativismo preconiza o processo de he-
gemônico de privatização dessa gestão hoje. Acentuam-se
a centralidade dos interesses empresariais, o crescimento
do mercado de projetos, os gestores especializados em
editais, a burocracia cultural, o hiato na diversidade cul-
tural e as desigualdades regionais de recursos. A partir
dessas reflexões, o capítulo procura contribuir para a ela-
boração de uma definição conceitual do músico indepen-
dente, tendo em vista a ideia de critérios para prioridades
nas políticas públicas no que se refere aos incentivos, no
propósito de descentralizar a produção e a distribuição
dos recursos culturais.
De todas as profissões reconhecidas pela sociedade
contemporânea, aquelas ligadas às artes e à cultura são
as menos estudadas. Além de se constituíram um campo
econômico relativamente recente, trazem em torno de si
ambiguidades conceituais que não são tratados pela so-
ciologia e que fogem, de certo modo, ao quadro temáti-
co estudado pela sociologia do trabalho. Esta pesquisa se
propõe a apresentar um conjunto de reflexões na tentati-
va de contribuir para o debate teórico acerca do trabalho
artístico, em meios às discussões de regulamentações e
políticas públicas culturais, da comunicação e do traba-
lho, em suas articulações fundamentais.

21
1 ARTISTAS INDEPENDENTES:
CONCEITOS EM DISCUSSÃO

A primeira dificuldade metodológica desse trabalho


encontra-se na definição do músico independente. Sua
historicidade frequentemente ligada à reestruturação da
indústria fonográfica estadunidense não deve ser aplicada
por simples analogia à indústria brasileira sem que ocor-
ram generalizações analíticas. Mesmo assim, existe uma
conexão entre um processo universal que se particulariza
com contradições: a reestruturação do capital nas dife-
rentes esferas produtivas, entre elas a cultura. Por isso, o
campo analítico em que se situa a discussão do trabalho
artístico musical independente é parte do contexto mais
amplo que o filósofo húngaro István Mészáros (2011) cha-
mou de sociometabolismo do capital.
Mészáros (2011) parte do núcleo formado pelo tripé
Capital, Trabalho e Estado para analisar as bases materiais
sobre as quais se fundamentam as condições de produ-
ção e reprodução social no capitalismo contemporâneo.
Reconhecer a dimensão das estruturas sociais que atuam
no campo artístico é importante para compor as múltiplas
facetas do trabalho artístico independente, cujas tensões
se caracterizam pelo complexo inter-relacionado dessas
mediações recíprocas. Enquanto a indústria da música (da
qual faz parte a indústria fonográfica) emerge com des-
taque no mercado cultural, sua organização ao longo do
tempo anuncia, assim como ajuda a explicar, as diferentes
formulações do conceito de músico independente hoje.

22
TRABALHADORES DA CULTURA

1.1 Mercado e economia fonográfica

A música destaca-se na paisagem midiática contem-


porânea quanto à intensidade de sua mundialização. Seus
formatos e reprodutores praticamente eliminam frontei-
ras para a sua difusão. A ênfase da música na expansão
e consolidação da indústria do entretenimento é identifi-
cada na sua especificidade. Do conjunto das mercadorias
produzidas na indústria cultural, a música se distingue por
meio da grande interação que estabelece com todos os
meios de comunicação, sobretudo no seu engajamento
com a forma. A mercadoria musical, além de poder ser ou-
vida no reprodutor fonográfico de cada um a partir do ato
de compra ou escolha do formato, está presente no rádio,
na TV, no cinema, na publicidade, nos dispositivos móveis.
Ao mesmo tempo em que há uma crescente mun-
dialização da música no contexto das indústrias culturais,
destaca-se que a indústria fonográfica se caracteriza, his-
toricamente, como setor de grande concentração e renta-
bilidade de oligopólios. Isso pode ser explicado por meio
da produção dos meios técnicos, necessários à acumula-
ção, que fez surgir o mediador que é também o investi-
dor. A economia de modo mediado também é a que mais
sente o impacto das alterações tecnológicas em sua or-
ganização produtiva e distributiva. A contradição presen-
te no movimento geral da indústria fonográfica pode ser
assim resumida: a indústria busca a acumulação por meio
da tecnologia, essa tecnologia ao mesmo tempo em que
favorece a acumulação da indústria coloca em questão
a própria necessidade da indústria enquanto mediadora.
A relativização da importância da indústria, por sua vez,
aflora uma crise, até que a indústria, finalmente, provoca
uma reorganização.

23
TRABALHADORES DA CULTURA

Para compreender as ambiguidades presentes no


movimento geral de reorganização da indústria fonográfi-
ca que intensifica a atuação dos músicos independentes,
o pesquisador Luiz Carlos Prestes (2004, p. 34) ressalta a
pertinência da noção de cadeia produtiva da música, en-
quanto conjunto de atores, processos e ambientes que
conformam o panorama de produção musical. Sua siste-
matização está associada ao tripé produção, distribuição
e consumo, cuja estrutura organizacional informa os di-
versos atores dessa cadeia, assim como as formas pecu-
liares de subordinação do trabalho.
Essa história pode ser contada a partir do momen-
to em que o ouvinte pode levar para casa não apenas a
partitura que poderia ser executada por seu piano, mas
também a música executada1. Marcia Dias (2000, p. 43)
analisa a fase inicial da indústria fonográfica, mecânica e
elétrica, em que o trabalho dentro do estúdio se resumia
a reunir os músicos contratados pela gravadora na sala de
gravação, posicioná-los a distâncias variáveis do microfo-
ne em função do volume relativo que cada instrumento
deveria ter sobre o conjunto, abafá-los, se fosse o caso,
e depois gravar a música o número de vezes que fosse
necessário até a obtenção do registro considerado ideal.
A gravação se limitava a ser esse registro do desempenho
real do artista, uma vez que o produtor do fonograma ou
o engenheiro do som não modificavam qualitativamente
o produto. Diante dessa configuração, o economista José

1  O engenheiro de produção Davi Nakano (2010, p. 629) explica que até o final
do século XIX, o consumo de música só era possível em apresentações ao
vivo, já que não havia tecnologia de gravação de som comercialmente viável.
Naquele contexto, a produção e o consumo de música se organizavam ao
redor das editoras e publicadoras de partituras musicais. Com a invenção
do fonógrafo, durante as primeiras décadas do século XX, diversas empresas
começaram a produzir e comercializar equipamentos de reprodução,
popularizando marcas como a Gramophone e a Victrola.

24
TRABALHADORES DA CULTURA

Paulo Pinto (2011, p. 84) afirma que, nas duas primeiras


fases da indústria fonográfica, a subordinação do trabalho
dos músicos era apenas formal, típica da manufatura.
A partir dos anos 1970, a estrutura organizacional
da indústria da música se complexifica, permitindo uma
análise mais apurada das relações sociais de trabalho e de
produção no setor, enquanto ramo da indústria cultural.
A antropóloga Rita Morelli (2009) esclarece que a estru-
tura organizacional da indústria da música dessa época
apontava para a clara distinção entre atividades criativas e
artísticas, de um lado; e o trabalho voltado para a produ-
ção material, de outro. A visão dualista ou dicotômica do
processo de produção podia ser observada na organização
dos espaços, nucleados em dois ambientes. Nos estúdios,
terreno de atuação dos músicos, intérpretes, produtores
e técnicos de som produtores da denominada fita máster,
espécie de matriz do material sonoro dos futuros fonogra-
mas. E na fábrica, onde atuavam trabalhadores que trans-
formavam aquele material no produto final, o disco, em
condições de ser distribuído e comercializado.
No decorrer dos anos 1970 observa-se a progressi-
va especialização dessa organização produtiva na indústria
da música. Trata-se da verticalização e hierarquização dos
departamentos das gravadoras em diversos setores segun-
do padrão fordista de produção. Tal situação indicava uma
estrutura bem mais complexa de profissionais distribuídos
em diferentes áreas: artística (equipes de produção, com-
posta por orquestradores, regentes e produtores; técnica
(especialistas em áudio e eletrônica); comercial (marketing,
capa/embalagem, produção, distribuição e promoção dos
discos); e industrial (matrizes). Os enormes quadros de tra-
balhadores das gravadoras multinacionais que atuavam no
Brasil refletiam essa estrutura. José Paulo Pinto (2011, p.
42) relata que a Phonogram, por exemplo, que contava com

25
TRABALHADORES DA CULTURA

170 empregados e 150 artistas em 1968, passou a ter, em


1974, o contingente de 500 empregados para atender ape-
nas 28 artistas.
A consolidação da indústria fonográfica brasilei-
ra nos anos 1970, ao elevar a divisão do trabalho, trazia
consigo também complexidade maior em relação à remu-
neração dos trabalhadores, fazendo com que cada gru-
po se relacionasse de forma diferente com a gravadora.
José Paulo Pinto (2011, p. 77) afirma que a forma salarial
era geralmente restrita aos técnicos de estúdio e aos tra-
balhadores de reprodução de discos e fitas. Os músicos
(os de apoio, e não os intérpretes principais) usualmente
recebiam cachês por empreitadas (gravações) e, quando
não cediam todos os seus direitos às gravadoras, rece-
biam pequena parcela da quantia arrecada pelo Escritório
Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD), que remu-
nera os direitos conexos ao direito do autor. No caso dos
autores (ou compositores) normalmente havia participa-
ção percentual nas vendas dos discos. Já os intérpretes
cediam às empresas os direitos exclusivos sobre as suas
interpretações – por até 10 anos, em alguns casos – re-
cebendo em troca quantia fixa e/ou participação na venda
dos discos (que não chegava a 5% do preço do varejo).
Segundo Morelli (2009, p. 47), durante a década de
1970 no Brasil, a indústria do disco crescia a taxa média
de 15% ao ano, acompanhando o crescimento acelerado
do mercado de bens de consumo, em especial o mercado
de aparelhos de reprodução sonora. A partir de 1976, em-
presas estrangeiras vieram a se estabelecer no país, cujos
efêmeros sucessos internacionais deram lugar à conquista
da “franja” do mercado brasileiro de disco. Intensifica-se a
consolidação do mercado de discos no Brasil, cujo marco
mais citado é o lançamento da Som Livre pelo Sistema
Globo de Gravações Audiovisuais (SIGLA). A etiqueta das

26
TRABALHADORES DA CULTURA

trilhas de novelas desponta em 1977 como líder do mer-


cado brasileiro de discos.
Cresce cada vez mais a importância do trabalho do
produtor artístico, enquanto criador dos aspectos merca-
dológicos da produção fonográfica. Nesse contexto, ainda
que a atividade dos músicos fosse absolutamente neces-
sária ao desenvolvimento da indústria da música, o avan-
ço da racionalização econômica na indústria fonográfica
relativiza a autonomia e criatividade artística, subjugada
pelo papel do produtor. Nesse sentido, o trabalho dos mú-
sicos se torna cada vez mais produtivo porque se destina
ao mercado e aos seus constrangimentos. A pesquisadora
Luciana Requião (2008, p. 23) descreve que o olhar es-
tratégico do produtor era capaz de criar produtos com
elevados potenciais de venda, o qual era responsável pelo
surgimento comercial de uma grande diversidade de artis-
tas e segmentos musicais.
O mercado brasileiro de discos chega ao último
ano da década de 1970 em 6º lugar no ranking mundial.
Durante toda a década de 1970 é possível concluir que a
indústria fonográfica se estruturou de forma verticalizada,
complexa e hierarquizada, cujo papel central era atribuído
ao produtor artístico. No entanto, durante a década de
1980 a venda de suportes físicos diminuiu consideravel-
mente. José Paulo Pinto (2011, p. 104) destaca que, embora
a conjuntura macroeconômica não fosse a única explica-
ção para a crise do setor, a diminuição do ritmo de acu-
mulação do capital global que ocorreu durante a década
de 1970 afetou as principais indústrias fonográficas inter-
nacionais e nacionais. Aliadas a esse fato, surgem as fitas
cassetes e suas cópias domésticas, as quais embaraçam
a utilidade dos discos.
No mercado estadunidense consolida-se o proces-
so de reestruturação produtiva da indústria fonográfica,

27
TRABALHADORES DA CULTURA

cujo modelo aberto de acumulação pós-fordista flexibiliza


e desverticaliza a produção. Entre as estratégias encontra-
das pela indústria fonográfica para manter ou aumentar a
sua margem de lucro, destaca-se a aceleração do processo
de terceirização produtiva. O lema do it yourself fortalece
a formação de pequenas empresas fonográficas que pos-
suem meios próprios de produção, colocando em relevo as
relações entre o indivíduo empreendedor autônomo ver-
sus a América corporativa. A figura do músico independente
passa a ter maior visibilidade, ao mesmo tempo em que a
indústria se concentra nas tarefas de distribuição e promo-
ção. A reestruturação da cadeia econômica musical repre-
senta um novo contexto social, de forte influência tecnoló-
gica e elaborado a partir de um rearranjo de critérios.
No Brasil, embora não se possa falar propriamente
em uma reestruturação de um regime fordista para um
regime pós-fordista na indústria fonográfica, é possível
destacar as mudanças das relações sociais de trabalho e
de produção entre artistas e gravadoras de discos. O soci-
ólogo Eduardo Vicente (1996, p. 102) analisa o conjunto de
inserções tecnológicas no fazer musical a partir de 1980
que torna viável a terceirização da produção. O quadro de
pessoal da indústria fonográfica é substancialmente di-
minuído. Os profissionais da música passam a atuar, cada
vez mais, de forma autônoma. Sob sua responsabilidade
está a minimização dos riscos e custos assumidos pelas
grandes gravadoras, assim como o papel de descobrir ta-
lentos e renovar o setor.
Desestabiliza-se a clássica distinção de tarefas en-
tre as atividades artísticas e técnicas sobre a qual se as-
sentava a própria hierarquia da indústria fonográfica nos
anos 1970. Um conjunto de procedimentos tecnológicos
passa a ser introduzidos na produção e faz com que a
gravação faça parte do próprio processo de composição

28
TRABALHADORES DA CULTURA

musical. A partir da reorganização produtiva na cadeia da


economia musical nacional, o processo de criação passou
a ser influenciado pelas possibilidades de edição, resga-
te de obras, sampling, reapropriação, entre outros me-
canismos técnicos, com a ajuda de sintetizadores, drum
machines, sequencers, multi-timbrais, módulos de efeito,
gravadores digitais, dawes, softwares arranjadores etc.
O embaralhado das fronteiras, proporcionado pelos
equipamentos que permitem a integração de múltiplas
funções, sugere aos músicos a necessidade de formação
técnica e musical mais complexa, capaz de lhes permitir
a realização das diversas etapas do processo de produção
musical. O conhecimento necessário para a operação dos
novos meios tecnológicos passa, frequentemente, pela
aquisição do próprio equipamento. Diante disso, as possi-
bilidades de produção musical, para o artista, se tornam
cada vez mais ligadas à aquisição dos recursos tecnológi-
cos que possibilitam essa criação, de forma que o músico
é cada vez mais submetido à estrutura de produção/con-
sumo no fazer musical. Proliferam-se o surgimento dos
estúdios caseiros. Estavam reunidas as condições para a
consolidação de uma produção e, posteriormente, de uma
cena independente brasileira.
O compositor e arranjador brasileiro Henrique Cazes
(1998) historiciza a música independente nacional a partir
do registro de Chiquinha Gonzaga.

Entre tantos pioneirismos da vida da compo-


sitora, a produção fonográfica independente
foi um deles. Chiquinha (Gonzaga) e o marido
João Batista abriram uma fábrica de discos no
bairro do Engenho Novo (na cidade do Rio de
Janeiro). Mesmo tendo durado pouco (1920 a
1922), a gravadora serviu para lançar artistas
importantes. Mais tarde, Antônio Adolfo lide-

29
TRABALHADORES DA CULTURA

rou o movimento da produção independen-


te, mas teve o juízo de não abrir uma fábrica
(CAZES, 1998, p. 39).

Além de Chiquinha Gonzaga, citam-se como primei-


ras experiências independentes de gravadoras, ainda em
1929, as produções de Cornélio Pires e Carmen Miranda2.
No entanto, a cena independente tem como marco his-
tórico mais citado o lançamento do disco Feito em Casa,
em 1977 (selo musical Artezanal), por Antonio Adolfo, após
inúmeras recusas de gravadoras atuantes no país em con-
tratar o seu trabalho. No mesmo período, outros artistas
brasileiros já fomentavam o debate sobre a independência,
produzindo e gravando os seus discos às próprias custas.
É o caso do lançamento do LP Paêbiru de Zé Ramalho e
Lula Côrtes em 1972 – entre outros títulos produzidos de
modo autônomo nos estúdios da gravadora pernambuca-
na Rozenblit – assim, como a edição do disco de bolso
d´O Pasquim, o Tom de Jobim e o Tal de João Bosco, no
mesmo ano.
Experiências como as citadas acima estimularam
o lançamento de diversos trabalhos independentes. Esse
processo culmina na emergência, a partir de 1982, da Lira
Paulistana, a qual, embora não tenha significado uma no-
vidade no marco precursor da música considerada inde-
pendente no país, representou a passagem de experiên-
cias isoladas, para uma atitude coletiva. A criação musical
de Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção e outros artistas na
década de 1970 encontrara um local de convergência, um
ponto de encontro. Naquele contexto, Gil Nuno Vaz (1988,
p. 26) avalia que o critério principal de definição do inde-

2  Em 1929, Cornélio Pires tomou a iniciativa de produzir um disco de violeiros


da região de Piracicaba (interior de São Paulo). Em fins da década de 1970,
passou a ser considerado o pioneiro no mercado de música sertaneja além de
símbolo da produção independente.

30
TRABALHADORES DA CULTURA

pendente era a insubmissão mercadológica e estética às


exigências das grandes gravadoras. No entanto, a indepen-
dência se caracterizaria por uma relação econômica de
produção, única via de acesso ao mercado, portanto uma
contingência mercadológica? Ou a escolha de uma atitude
estética, um espaço de resistência cultural frente à orga-
nização da indústria?
Segundo Eduardo Vicente (1996, p. 132), o grupo Lira
Paulistana não foi propriamente (apenas) um movimento
musical, mas uma iniciativa empresarial que consistiu na
montagem de um núcleo de produção e difusão artística
formado por um teatro, uma gráfica e um selo fonográfico,
cujos músicos eram consequências mais diretas de uma
falta de opção mercantil, do que propriamente uma op-
ção política e/ou estética. Em primeiro lugar, porque não
existia uma ligação evidente entre a cena independente e
algum grupo político ou estético. Em segundo, porque os
nomes de mais destaque da cena independente, rapida-
mente aceitavam os convites feitos por grandes gravado-
ras, como aconteceu com a Boca Livre que assinou com a
EMI em 1981. Por grandes gravadoras, também chamadas
de majors, entende-se aquelas empresas internacionais
de produção, entre as quais destacam-se a Sony Music,
Polygram, EMI, WEA, BMG e MCA. Essas seis empresas de-
tinham 74% da distribuição mundial de música no início da
década de 1972 (VICENTE, 1997, p. 178).
Tendo em vista a diversidade das noções de inde-
pendência, Gil Nuno (1988, p. 23) sistematiza três graus de
autonomia do artista frente às gravadoras: o primeiro seria
o independente propriamente dito, situação em que o mú-
sico assume integralmente as responsabilidades e custos
de sua criação, gravação e distribuição (o autor cita como
exemplo o disco Feito em Casa, do Antonio Adolfo). O se-
gundo nível de dependência seria a associação cooperativa

31
TRABALHADORES DA CULTURA

com outros músicos independentes, possibilitando a con-


secução de estrutura e atividades em comum. Em um ter-
ceiro nível, o músico mantém uma relação comercial com o
produtor fonográfico, na base de negociação de condições.
Durante toda a década de 1980 cresce acentuada-
mente o número de lançamentos fonográficos considera-
dos independentes no terceiro nível descrito por Gil Nuno
(1988), os quais ganhavam notoriedade junto ao público
e à crítica especializada. Nos anos 1990 estabelece-se,
então, uma cena independente com força suficiente para
dar vazão a diversos segmentos do mercado. Os músicos
independentes – associados aos festivais e com o apoio
de veículos da mídia especializada, como a MTV Brasil –
revelam diversos nomes capazes de despontarem no ce-
nário nacional, os quais passam a assinar contratos com
as majors, consolidando as relações de terceirização e
complementariedade. É importante destacar que o su-
cesso estratégico da indústria fonográfica em terceirizar a
produção dependia fundamentalmente do domínio estrito
sobre as vias de distribuição, já que, caso isso não ocor-
resse, estava aberta a possibilidade para que os novos se-
los conquistassem sua autonomia e passassem a disputar
o controle direto do mercado.
Nesse contexto, o rearranjo da indústria fonográfi-
ca na década de 1990 terceiriza, flexibiliza e subcontrata
a produção às empresas de pequeno porte conceituadas
como independentes, as quais se tornam cada vez mais
dependentes da estrutura das grandes gravadoras para
distribuir, promover e divulgar os seus trabalhos. Várias
empresas de pequeno porte desenvolveram ou mesmo
foram criadas em função de diferentes níveis de coope-
ração e especialização com as grandes companhias fo-

32
TRABALHADORES DA CULTURA

nográficas3. Essa composição da reestruturação produtiva


levou Vicente (1996, p. 145) a concluir que a configuração
dos artistas e produtores independentes dos anos 1980 e
1990 não significava uma ameaça ao controle das grandes
gravadoras, no sentido de representatividade no mercado.
Na verdade, essa articulação é o que permitia o desen-
volvimento do modelo aberto de produção, por meio da
relação de interdependência das empresas autônomas e
especializadas que, ao final, jogavam sempre a favor das
grandes empresas, permanecendo altamente vulneráveis
às forças do mercado e às ofertas monopolistas.
No mesmo sentido, a economista francesa François
Benhamou (2007, p. 43) considera que, no setor da indús-
tria fonográfica, a oferta está estruturada sobre a forma
de “oligopólio com franjas”. Algumas empresas dominan-
tes, por vezes implantadas desde longas datas, coman-
dando as redes de distribuição, constituem o núcleo do
oligopólio. Em sua periferia, pequenas e médias empre-
sas, dependentes das maiores, sobretudo em matéria de
distribuição, divulgação e promoção, formam sua franja
necessária. Segundo a pesquisadora, as companhias mais
importantes tendem a deixar uma grande parte da inova-
ção sob a responsabilidade de sua franja. Atentas, porém,
às novidades de criação, procuram apropriar-se delas as-
sim que o mercado é criado. Desse modo, as pequenas
empresas desempenham o papel de viveiro de criação,
muitas vezes adotando estratégias de nicho, especializan-

3  Vicente (1996, p. 61) relata que, entre os profissionais que saíram da


Warner, muitos criaram suas próprias empresas fonográficas, como Pena
Schmidt (Tinitus), Conie Lopes (Natasha Records) e Nelson Motta (Lux). Além
deles, Mayrton Bahia, ex-Odeon e PolyGram, criou a Radical Records, Marcos
Mazzola, também saído da PolyGram, criou a MZA e Peter Klam, ex-diretor da
Warner e da PolyGram, criou a Caju Music. Entre os artistas que eram ou já
tinham sido contratados de grandes gravadoras e que criaram suas próprias
empresas citam-se Ivan Lins (Velas), Dado Villa-Lobos (RockIt!), Marina Lima
(Fullgás), Ronaldo Bastos (Dubas), Egberto Gismonti (Carmo), entre outros.

33
TRABALHADORES DA CULTURA

do-se em áreas pouco ocupadas, de maneira a atrair uma


clientela cativa e firmar sua reputação. Os obstáculos ao
desenvolvimento surgem depois, sobretudo na distribui-
ção, o que resulta num pequeno índice de sobrevivência
das empresas novas. As pequenas companhias precisa-
riam, portanto, das maiores para escoamento dos seus
produtos, o que explicaria o grau de concentração na par-
te final dessa cadeia comercial.
Diante desse desenho do setor musical, Vicente
(1996, p. 79) explica que existe também uma pequena fa-
tia do mercado incorporada aos circuitos autônomos de
produção e consumo musical, resultado da emergência de
diversas cenas locais de música, cuja viabilidade comercial
assegurara a sobrevivência de alguns músicos e empresas
independentes. Vicente (1996, p. 82) considera como cir-
cuitos autônomos aqueles que, sem a presença de grandes
gravadoras ou redes de mídia de alcance nacional, forne-
cem condições para as apresentações musicais, produção
e divulgação dos artistas que os integram. Esses pequenos
circuitos dispensam as grandes gravadoras, uma vez que
dentro deles toda a cadeia de produção musical já está em
funcionamento. Tal fatia do mercado frequentemente tem
uma localização geográfica definida ou relaciona-se a iden-
tidades étnicas, religiosas e urbanas.
Finalmente, se a tecnologia foi o trunfo da indústria
fonográfica na reestruturação da sua produção que im-
pulsionou os primeiros circuitos conceituados como inde-
pendentes no Brasil, a partir dos anos 2000 essa mesma
tecnologia trouxe a dificuldade de controle das grandes
gravadoras em continuar a sua estratégia de concentração
na distribuição. O desenvolvimento da técnica estimulou
a criação de tecnologias digitais, como o formato MP3 e
os softwares de trocas de arquivos via internet, os quais
trouxeram como consequência a crise de formatos físicos.

34
TRABALHADORES DA CULTURA

O processo de reorganização e reconfiguração da in-


dústria brasileira da música, impulsionada pela emergên-
cia das novas tecnologias de produção e reprodução digi-
tais, tem consolidado a produção independente no Brasil.
Os anos 2000 experimentam a proeminência de gravado-
ras com sistemas autônomos de realização em relação às
majors, cujo funcionamento tem assegurado êxitos comer-
ciais e crescente relevância no cenário cultural nacional.
O pesquisador Leonardo De Marchi (2006) estuda a Nova
Produção Independente (NPI) e explica que o uso do adje-
tivo “nova” faz remissão a experiência do período analisa-
do anteriormente nas décadas de 1970/80.
Segundo De Marchi (2006, p. 128) a NPI é resultado
do complexo processo de reorganização da indústria fo-
nográfica brasileira, frente às transformações nas formas
de produção, distribuição e consumo, promovidas pelo re-
gime técnico-econômico. Aproveitando-se das condições
do mercado musical no Brasil, surgem empresas que pas-
sam a assumir novas funções dentro da cadeia produtiva
contemporânea, cuja principal representante é a gravadora
Biscoito Fino. Segundo o autor (DE MARCHI, 2006, p. 129), a
principal característica diferenciadora da NPI em relação à
produção conceituada como independente nas décadas de
1970/80 tem sido a crescente profissionalização do setor,
assim como o respaldo no grande capital nacional.
Nesse contexto, o critério de independência que tem
prevalecido no Brasil tem sido aquele que faz oposição às
majors, ou seja, a definição da independência se dá a partir
da negação do capital estrangeiro. As novas gravadoras in-
dependentes, além de não trabalharem necessariamente
com músicos relegados do negócio fonográfico (a Biscoito
Fino, por exemplo, distribui artistas como Chico Buarque
e Maria Bethânia), conta com estrutura organizacional pa-
recida com a das majors. No caso da Biscoito Fino, além

35
TRABALHADORES DA CULTURA

da gravadora somar profissionais experientes da indústria


fonográfica, a empresa tem respaldo do capital especula-
tivo de grande grupo do sistema bancário nacional, o que
pode ser percebido na trajetória da gravadora4.
A partir da definição do independente que se encer-
ra no antagonismo às grandes gravadoras estrangeiras, é
possível concluir que o desenvolvimento e consolidação
da NPI brasileira vêm movimentando novas tensões e ar-
ticulações no que tem se entendido como independente.
Nesse contexto, fica evidente o quanto a noção de músi-
ca independente e seus derivados – cena independente,
artista independente, gravadora independente – devem
ser problematizados e especificados enquanto categoria
analítica para compreender a heterogeneidade das re-
lações do mercado e do trabalho artístico musical. Em
outros termos, a expansão de uma produção considera-
da independente no país impõe a necessidade de uma
identificação, distinção e definição entre os diferentes
agentes que ocupam esse campo.
Dados da International Federation of the Phonographic
Industry (IFPI) (2012, p. 3) retratam que no início da década
passada as independentes (critério de oposição às majors)
foram responsáveis por 25,3% dos lucros mundiais com
música, seguidas pela Universal (23,5%), EMI (13,4%), Sony
(13,2%), Warner (12,7%) e BMG (11,9%). Ou seja, esses cinco

4  Kati de Almeida Braga entrou para a história corporativa brasileira. A


empresária transformou o Banco Icatu (criado pelo pai Antônio Carlos de
Almeida Braga, o Braguinha, para administrar os rendimentos financeiros da
família), em Icatu Holding, por meio de várias atividades – da construção civil
a área de seguros, da publicidade a produção. No âmbito do entretenimento,
a empresária criou a Biscoito Fino, fechou contrato com a EMI em Portugal e a
Disc Music, na Espanha, para levar a música nacional à Europa. Também abriu
escritório na França e negocia com companhias locais a criação de um selo
brasileiro. O grupo também colabora com a Conspiração Filmes e Lumiére.
No início de 2012, comprou 25% de participação na DM9, holding publicitária
(ÉPOCA, 2002).

36
TRABALHADORES DA CULTURA

conglomerados ficaram com mais de dois terços de todo o


faturamento do mercado da música. No Brasil, a avaliação
feita pela Associação Brasileira dos Músicos Independentes
(ABMI) nos últimos anos aponta que 90% da produção de
fonogramas está nas mãos de independentes às majors. No
entanto, a participação dessas empresas independentes
gira em torno de 12 a 25% no faturamento de todo o merca-
do fonográfico. Nesse caso, observa-se a alta concentração
de venda por parte das majors em torno de poucos nomes.
Ou seja, mesmo com o aumento do número de selos in-
dependentes, o mercado musical permanece concentrado
nas mãos das grandes gravadoras.
Diante da desproporcionalidade entre a produção e a
representatividade no mercado, a configuração do comér-
cio musical nacional se enquadra no conceito de “cauda
longa” criado em 2004 pelo físico e escritor estaduniden-
se Chris Anderson. O termo é baseado nas distribuições
de dados da curva de Pareto, cuja figura é caracterizada
pelo prolongamento horizontal muito comprido em rela-
ção ao prolongamento vertical. O consumo de produtos
costuma seguir um padrão semelhante ao da curva, com
poucos produtos sendo muito consumidos (os chamados
produtos hits) e muitos produtos sendo pouco consumi-
dos (os não-hits).
Finalmente, nesse contexto em que número reduzi-
do de corporações ainda assume o protagonismo merca-
dológico do ambiente cultural, este trabalho se volta para
a emergência de movimentos, redes e meios autônomos
de expressão, interação e mobilização capazes de qua-
lificar o campo independente no mercado brasileiro de
música, considerando a pluralidade de formas de estrutu-
ração de suas atividades.

37
TRABALHADORES DA CULTURA

1.2 Configurações e especificidades

Um estudo realizado pelo Grupo de Pesquisa em


Política Pública para o Acesso à Informação da Universidade
de São Paulo (GPOPAI, 2010) destaca as duas definições
básicas de independência que estariam em evidência no
campo musical brasileiro nos últimos anos. A primeira, e
tradicional, é caracterizada pela exclusão do capital es-
trangeiro das grandes gravadoras. A partir desse critério,
a tipologia independente pode ser utilizada para designar
tanto o músico que produziu seu CD em um estúdio casei-
ro, quanto a Biscoito Fino, por exemplo, que mesmo sem
contar com o capital estrangeiro tem respaldo no grande
capital privado nacional articulado internacionalmente. A
segunda caracterização do independente tem sido defi-
nida recentemente a partir da autonomia econômica em
relação ao Estado, ao adotar sistemas de financiamento
alternativo às leis de incentivo público.
Mas a terceira definição, e pressuposto conceitual
desta pesquisa, parte da autonomia econômica do pró-
prio artista, em todas as fases da cadeia musical (criação,
produção, distribuição e promoção/difusão), tendo ou não
financiamento público. A partir daí procura-se entender
como esses artistas criam, produzem, distribuem e pro-
movem seus trabalhos, quais suas formas de financia-
mento, de contratação, suas redes de relações no mer-
cado e no campo da música, assim como as dificuldades
dessa forma específica de atividade frente ao mercado
e às políticas públicas culturais. Quer dizer, uma análise
sociológica do músico enquanto trabalhador autônomo e
empresário de si mesmo, em conexão com as políticas
públicas setoriais.
No conceito que parte da autonomia econômica, en-
tretanto, percebeu-se que a definição do que faria parte ou

38
TRABALHADORES DA CULTURA

não de uma cena independente se apresenta como objeto


de permanentes disputas simbólicas e estéticas. Os fenô-
menos musicais autônomos, sobretudo massivos e popu-
lares (como o tecnobrega5, o arrocha, o funk e o passinho)
tendem, geralmente, a não ser vistos como parte da cena
independente, embora sejam produzidos fora da estrutura
das grandes gravadoras e de forma autônoma. Por outro
lado, gêneros denominados híbridos ou inclassificáveis têm
sido categorizados como independente pela mídia, espaços
de consagração e festivais especializados, aliando aspec-
tos estéticos que conferem uma aura cult à produção. Tais
configurações são indicativos que na conceituação inde-
pendente está em jogo um conjunto de posições e toma-
das de posições de agentes de um determinado universo
simbólico e profissional, negociando espaços privilegiados
de prestígio e poder (BOURDIEU, 1989, p. 23).
A genealogia do músico independente para fins des-
ta pesquisa conjugou três fatores: a) vive, senão exclusi-
vamente, preponderantemente da música; b) trabalha de

5  O tecnobrega foi analisado em 2006 por pesquisadores da Fundação


Getúlio Vargas (FGV). O estudo entrevistou 76 bandas, 273 aparelhagens e 259
vendedores ambulantes de CDs e DVDs em Belém do Pará. Segundo a pesquisa
(LEMOS, 2008, p. 21), o tecnobrega se expandiu de maneira independente
das grandes gravadoras e dos meios de comunicação tradicionais, por meio
da multiplicação de estúdios caseiros e a produção musical de baixo custo,
e se tornou um modelo de negócio que criou novas formas de produção e
distribuição. O processo de produção, circulação e promoção dessa cadeia
envolve uma estrutura complexa suficientemente articulada, composta por
casas de festas, shows e vendas nas ruas. Nesse contexto, a não ser por
valor simbólico e como forma de prestígio, pertencer à gravadora não é
relevante. Quando os músicos percebem que as vantagens de ter contrato
com gravadora podem ser obtidas ou substituídas pela ação de outros
agentes – bom estúdio caseiro onde se possa fazer a produção e a estrutura
de venda informal – o contrato com empresas da indústria fonográfica deixa
de ser a melhor opção. Diante disso, 88,37% das 76 bandas de tecnobrega
analisadas na amostra nunca tiveram contrato com gravadora ou selos. Ao
mesmo tempo, é importante destacar que, mesmo considerando a “eficiência
locacional” do tecnobrega, a maioria dos artistas não consegue viver “só” de
suas atividades com as bandas.

39
TRABALHADORES DA CULTURA

forma autônoma em relação às gravadoras e distribuido-


ras (com ou sem financiamento do Estado); e c) tem sido
categorizado como independente pela mídia e festivais
especializados. A partir desta genealogia foram realizadas
entrevistas com 22 artistas. São eles: Alessandra Leão,
Angelo Souza (Graxa), Anna Tréa, Caio Lima (Rua), Catarina
Lins de Aragão, Cleyton José da Silva (Guitinho, Grupo
Bongar), Fábio Trummer (Eddie), Felipe Cordeiro, Fernando
“Catatau”, Gilberto Amaral (Orquestra Contemporânea de
Olinda), Hugo Gila (Academia da Berlinda), Isaar França,
José Guilherme Lima (Missionário José), Juçara Marçal,
Luísa Maita, Marcelo Segreto (Filarmônica de Pasárgada),
Marcia Castro, Otávio (Tatá Aeroplano), Ricardo da Silva
(Rico Dalassam), Romulo Fróes, Tiago Andrade (Zé
Cafofinho) e Yuri Rabid (Academia da Berlinda).
No desenvolvimento das análises desta estudo op-
tamos por suprimir os nomes dos artistas nas transcri-
ções das entrevistas, em razão de privacidade no que toca
às informações pessoais de trajetória ou mesmo de crítica
política, além de permitir maior liberdade no que toca à
reflexão e relação entre os conceitos e ideias levantadas.
Embora a pesquisa tenha elaborado um conceito prévio
de músicos independente para fins metodológicos, são as
próprias narrativas dos artistas entrevistados que locali-
zam os vários sentidos da independência.

1.3 Narrativas acerca da independência

Tendo em vista a diversidade das concepções de


independência na história da música brasileira, um dos
primeiros tópicos lançados nas entrevistas e conversas
com os artistas selecionados em nossa amostra diz res-
peito à dificuldade no termo/categoria/conceito músicos

40
TRABALHADORES DA CULTURA

independentes para pesquisa. A pergunta foi provocativa


à reflexão e procurou identificar o que os músicos en-
tendem por essa expressão, sua configuração hoje, suas
singularidades e especificidades nacionais e regionais, se
se colocam nessa categoria, porquê e como. As variações
das respostas deixam em evidência muitas perspectivas
diferentes e expõem tensões entre os sentidos da inde-
pendência e/ou autonomia hoje.
Na fala dos artistas entrevistados, a caracterização
do independente se fundamentam desde a clássica opo-
sição à major, passando pela exclusão do financiamento
estatal, até o destaque para a liberdade artística e a aura
indie ou cult ligada, sobretudo, à exclusão dos meios tra-
dicionais de comunicação. No decorrer das narrativas ob-
servam-se, ainda, falas que sustentam noções de graus
de independência, a figura do “operário da música”, a con-
tingência da condição de independência e as ideias que
não saúdam a exclusão dos meios tradicionais de comu-
nicação, mas a reivindicam.

a) Oposição às majors

A primeira e principal referência de independência


nos artistas entrevistados é, de forma geral, o critério es-
tadunidense de oposição às majors (capital estrangeiro).
Algumas reflexões especificam melhor a ideia de indepen-
dência, enquanto outras se limitam a reconhecer a ampli-
tude do termo na crítica da nomenclatura. Nesse sentido,
uma das artistas entrevistadas entende que a indepen-
dência está ligada a queda das grandes gravadoras inter-
nacionais, mas destaca a incerteza conceitual do termo.
Ela usa a nomenclatura “alternativa” para caracterizar o
que está fora do “quadrado das gravadoras” e enxerga o
enorme guarda-chuva que essa caracterização pode abar-
car (Artista 1, 25/2/2016).

41
TRABALHADORES DA CULTURA

Nesse sentido de oposição às majors, um dos artis-


tas de nossa amostra (Artista 2, 2/9/2015) avança um pou-
co mais no debate da nomenclatura e destaca que a ter-
minologia independente tem muito a ver com outro mo-
mento histórico, ligado à reestruturação da indústria fo-
nográfica estadunidense. Hoje em dia, segundo o músico,
as condições que determinaram esse momento histórico,
no sentido de “o que é um artista independente”, existem
de forma diferente. Para ele a relação de independência
estava mediada pelos grandes meios de distribuição das
majors e o independente não tinha acesso a sistemas de
distribuição e meios de comunicação. Hoje, embora ain-
da haja muitos gargalos, a distribuição é uma realidade
mais palpável para os músicos. Sua reflexão, portanto,
se pauta na possibilidade de autonomia econômica tam-
bém na distribuição, não apenas na produção musical. Da
mesma forma, segundo outro artista entrevistado (Artista
3,15/6/2016), sua música é independente porque todo o
processo de produção, distribuição e promoção é feita por
ele mesmo, sem qualquer intermediação ou interferência.
Para uma parte relevante dos entrevistados, portan-
to, a independência está pautada na ausência de relação
com uma grande empresa. Nesse contexto de conversas
em campo, uma das artistas (Artista 4, 12/2/2016) se per-
gunta quem seria o “grande investidor” hoje, afirmando
que as relações mercadológicas estão um pouco confusas,
tanto para os músicos, quanto para os próprios investido-
res. Embora a artista não aprofunde essa fala, é importan-
te observar que sua reflexão tem estreita relação com a
discussão da NPI, caracterizada por movimentar tensões
no próprio mercado brasileiro. A artista afirma que hoje
existe a possiblidade de “fazer as coisas acontecerem”
em termos de distribuição e comunicação e se considera
“totalmente independente” por isso (Artista 4, 12/2/2016).

42
TRABALHADORES DA CULTURA

A dificuldade de organização conceitual do inde-


pendente e a crítica da necessidade dessa organização é
levantada por outro entrevistado (Artista 5, 30/4/2015). O
músico destaca que uma das dificuldades dessa “geração
independente”, da qual ele se inclui, é a sua variação, in-
clusive em termos estético. O músico entente que gran-
de parte da dificuldade acadêmica e jornalística com a
“nova geração” de independentes é devida à persistência
do pensamento de “organizar”. O artista afirma que hoje
não temos mais a figura da indústria, a figura da gravado-
ra, do diretor artístico, uma vez que os papéis estão todos
misturados. Ele sustenta que o que caracteriza o músi-
co independente está relacionado, fundamentalmente, ao
“tocar a sua própria carreira”, de forma que a intersecção
que une todos os independentes é “a intimidade com o
estúdio”, necessidade criada pela ausência da gravadora
(Artista 5, 30/4/2015).

Na medida em que não existe mais aquela


situação em que uma indústria ou gravadora
chegava e dizia ‘fechei o estúdio três meses...’,
o artista teve que começar a gravar em casa,
gravar no computador, lidar com toda parte
tecnológica, administrativa e de marketing.
Esta forma com que eles tocam as suas car-
reiras seria o que caracteriza o músico inde-
pendente hoje. Então, se algo une essas pes-
soas é que elas gravam os seus próprios dis-
cos, elas lançam os seus próprios discos, elas
divulgam seus próprios discos [...] Então, eu
acho que músico independente é isso (Artista
5, 30/4/2015).

O artista traz, então, a figura do “operário da músi-


ca” para assinalar a principal característica do indepen-
dente hoje: “ter que lidar com tudo”, desde a gravação

43
TRABALHADORES DA CULTURA

até a promoção do trabalho nos dispositivos móveis, por


exemplo. “A gente é um bando de operário, a gente acorda
cedo, a gente ensaia, toca, grava, toma café, pega ônibus,
metrô, divulga no Instagram...” (Artista 5, 30/4/2015). Ele
narra que já foi chamado de decano da música indepen-
dente, uma vez que lançou o seu primeiro disco sem gra-
vadoras há cerca de 10 anos. Nessa época ainda existia a
possibilidade de ter um contrato com uma gravadora e ele
foi atrás disso, mas quando percebeu que não ia conse-
guir, pensou: “Tá bom, mas como eu vou continuar fazen-
do música?” Explica que, em última instância, a definição
de um artista é aquele que precisa fazer arte. “Pra mim é
isso, sabe? Artista é quem precisa fazer arte. Se você pre-
cisa fazer arte, você tem que achar suas armas” (Artista 5,
30/4/2015).
A partir da fala acima descrita esta pesquisa foi es-
timulada a pensar sobre a contingência versus a escolha da
condição de estar independente e a consequente atitude
empreendedora do artista, destacada mais a frente neste
estudo. No mesmo sentido de precisar fazer música nas
condições dadas, um outro músico entrevistado (Artista
6, 30/4/2015) conta que veio de uma estrutura em que
não havia uma noção muito definida sobre “viver às pró-
prias custas”. Ele destaca que começou a trabalhar efeti-
vamente com música no final dos anos 1990, momento em
que houve uma transformação na indústria: “quando as
gravadoras ruíram foi quando eu comecei a fazer música.
Foi quando eu comecei a gravar mesmo um dos discos”
(Artista 6, 30/4/2015).
Diante desse contexto, o músico (Artista 6,
30/4/2015) destaca que já começou a fazer seus primeiros
discos com “a estrutura nova”, ou seja, sem a interme-
diação das gravadoras, “sem saber o que estava fazendo,
mas fazendo...”, se conectando com alguns selos, lendo,

44
TRABALHADORES DA CULTURA

conversando e buscando “alternativas às gravadoras”. O


artista afirma que as pessoas que estavam nos peque-
nos selos, assim como ele, também não sabiam muito
o que fazer, na medida em que faltavam informações de
mercado. Então, por exemplo, ele lançava um disco, “era
legal pra caramba”, e quando ia lançar o próximo disco era
como se fosse começar do zero. “Porque não existia um
pensamento estruturado de como ser independente... A
gente não sabia como fazer” (Artista 6, 30/4/2015).
Com o passar do tempo, contudo, o músico (Artista
6, 30/4/2015) afirma que foi aprendendo a entrar no estú-
dio, gravar e adquirir experiência em, por exemplo, capita-
lizar o disco, fazer um lançamento, saber quem vai com-
prar esse disco, quem vai se conectar com sua música,
como estabelecer um contato com esse público que vai
acompanhar os outros lançamentos. A partir da definição
de tais pontos, o artista diz ser possível estruturar seu
trabalho, mas ele destaca que ainda falta informação de
mercado. Ao falar um pouco mais sobre sua autonomia
na independência e sua forma de trabalhar, o músico se
mostra bastante entusiasta do “tomar conta” de sua pró-
pria carreira, tanto do ponto de vista da realização do seu
próprio trabalho e da identificação da sua música, quanto
das relações que são travadas com o público e com os
parceiros profissionais.

Eu prefiro trabalhar assim, porque daí eu pen-


so no disco, penso toda a estrutura com as
pessoas que estão comigo. Porque eu não tra-
balho sozinho, eu sempre trabalho em grupo...
E cada vez mais com músicos fantásticos.
Essa coisa que a gente tá vivendo agora é ma-
ravilhosa. Isso é lindo, é lindo... E o lance de
trabalhar sozinho é por isso. Porque se você
contrata um selo, o cara do selo tem uns inte-
resses... Que são financeiros... Ele tem um in-

45
TRABALHADORES DA CULTURA

teresse que não bate com o que eu penso. Eu


sou muito mais simples nesse ponto. Então, é
uma perda de energia eu ficar querendo lançar
um disco por alguma gravadora [...] Geralmente
fica uma relação viciada, em que um quer ir
por um lado, e o outro, por outro... Então, acho
que hoje é fundamental você realmente tomar
conta disso (Artista 6, 30/4/2015).

A intimidade entre a autonomia/autogestão do in-


dependente e o mercado é destacada por outro entrevis-
tado (Artista 7, 14/4/2015) que entende que o termo inde-
pendente surgiu na música porque havia uma dependên-
cia das grandes gravadoras, mas que, hoje em dia, depois
de 15 anos de música independente, a principal luta dos
artistas ultrapassa a questão de produzir de forma autô-
noma e se finca nos mecanismos de estar no mercado.
Segundo o músico: “Todo mundo batalha para entrar no
mercado porque pra você conseguir viver do seu traba-
lho, você precisa estar no mercado pra fazer ele circular.
Mesmo que seja outro tipo de inserção”. Fica evidente em
sua fala que música independente não é um termo oposto
ao mercado, mas o pressupõe. Nessa esteira, o músico
reivindica mecanismos de visibilidade por meio, por exem-
plo, da inserção do seu trabalho nos meios tradicionais de
comunicação – rádio e TV (Artista 7, 14/4/2015).

b) Financiamento não estatal

Além do critério de oposição às majors, alguns entre-


vistados empregam o termo independente para se referir
à ausência de financiamento público. Nesse sentido, um
dos artista (Artista 8, 10/9/2015) afirma que o critério de
definição do artista independente sempre foi a ausência
de grandes gravadoras, mas que hoje as coisas estão um
pouco nubladas em termos dessa definição porque gravar

46
TRABALHADORES DA CULTURA

um disco em casa é uma realidade palpável para grande


parte dos músicos. Mais à frente, quando narra o lança-
mento de um disco independente, o músico afirma que ti-
rou dinheiro do seu bolso, sem qualquer apoio do Estado,
sugerindo que a independência está relacionada, também,
à ausência de financiamento público (Artista 8, 10/9/2015).
No mesmo sentido de conceituação, para outro mú-
sico entrevistado (Artista 9, 29/2/2016) existe um grande
problema em definir a independência hoje. Após destacar
a ideia de oposição às majors, o artista afirma que “exis-
tem festivais que se dizem independentes, mas, você vai
ver lá que tá com a logo do BNDES, tá com a logo do
Funcultura”, apontando para a exigência de autonomia do
financiamento estatal. Finalmente, ao mesmo tempo em
que exige essa condição para definir uma independên-
cia, o músico reconhece a importância do financiamento
público enquanto paradigma de sustentabilidade do seu
próprio trabalho (Artista 9, 29/2/2016).

c) Liberdade artística

Para outros artistas entrevistados a grande carac-


terística que distingue o músico independente hoje é a
“liberdade artística”. Nesse sentido, um dos entrevistado
afirma que o independente tem a liberdade de fazer, “de
lançar coisas quando quiser, gravar um determinado tipo
de música da forma que quiser” (Artista 10, 26/2/2016). No
mesmo sentido, outra artista (Artista 11, 7/5/2015) destaca
que o músico independente se caracteriza pela possibili-
dade de nortear e pautar o seu trabalho com “certa liber-
dade”, sem quem ninguém determine que música fazer ou
com quem tocar, por exemplo. A artista acha esse tipo de
“liberdade” essencial quando se trata de expressão, não
sendo lógico que outra pessoa, que não ela própria, de-

47
TRABALHADORES DA CULTURA

termine a forma e o caminho de exercer isso (Artista 11,


7/5/2015).
A mesma artista (Artista 11, 7/5/2015) enfatiza tam-
bém que pensar em independência é sinônimo de pen-
sar em trabalhar de forma polivalente e multifacetada, ao
explicar que a estruturação dessa atividade hoje envolve
desde fazer o CD, até a capa, o lançamento, os shows etc.
Nesse contexto há a afirmação que, por acerto e erro, ela
tem descoberto o seu próprio caminho. E que, mesmo que
haja tropeços, tem total controle de sua expressão artís-
tica e isso “é o mais legal”, o que demonstra a satisfação
com a situação de autonomia e controle do resultado final
do seu trabalho (Artista 11, 7/5/2015).
No decorrer da pesquisa de campo, percebemos
que a narrativa da liberdade é um lugar constante nas
falas patilhadas pelos artistas. A propósito desta ênfase,
uma das entrevistadas (Artista 12, 13/4/2015) destaca que
o mais importante na vida de um músico é “ele escolher
o que quer fazer e ter a possibilidade de fazer”. No entan-
to, a artista afirma que isso é um tanto complexo, não se
resumindo apenas a uma questão de gravadora, mas de
vários consensos. Em sua fala, ela concebe a possiblidade
de existência de um relacionamento independente com
grandes gravadoras, como a Universal, por exemplo, desde
que “você não abra mão de coisas que são importantes
pra você” (Artista 12, 13/4/2015).

d) Aura cult

Em alguns músicos entrevistados restou manifesto


o aspecto cult da produção independente, seja para cri-
ticá-lo, seja para afirmá-lo enquanto expressão de dis-
tinção. No primeiro exemplo, um dos artistas (Artista 10,
26/2/2016) faz um paralelo com músicos que tocam em

48
TRABALHADORES DA CULTURA

shoppings e barzinhos, por exemplo. O músico sustenta


que muitos deles também são independentes, no sentido
de autonomia econômica, mas que não são assim cate-
gorizados pela mídia e nichos de consagração especiali-
zados. Assim, “dificilmente o brega recifense é tido como
independente”, o que seria uma incongruência com a defi-
nição do termo (Artista 10, 26/2/2016).
A fala de outro músico (Artista 13, 14/4/2015), por sua
vez, traz uma certa oposição entre independentes, mer-
cado e mídias tradicionais. O artista aponta que o termo
independente “está muito datado” e que há dois anos co-
nheceu o termo midstream, “que seria exatamente isso
que a gente chama, a grosso modo, de mercado indepen-
dente, música independente, mercado médio da música
e os anos (19)90, lá trás, chamou de alternativa” (Artista
13, 14/4/2015). O músico explica, então, que o midstream
abarcariam esses artistas que não estão nas rádios co-
merciais e/ou não tocam na grande mídia nacional, que é
o caso dele, mas que, conseguem manter a sua carreira
e fazer show pelo Brasil inteiro, graças, principalmente, à
descentralização da informação por meio da internet, que
favorece a aproximação dos diferentes públicos. Aliado ao
“poder da internet”, o músico destaca também a “depen-
dência” de muita gente, colegas e parceiros de profissão,
cujas relações possibilitam a sustentabilidade do seu tra-
balho (Artista 13, 14/4/2015).

e) Graus de independência

Finalmente, alguns músicos desenvolvem, ainda, um


raciocínio sobre estratificações de independência. Em en-
trevista, uma das artistas (Artista 14, 5/5/2015) afirma que
a primeira independência que surgiu foi o da gravadora,
mas que hoje, com as mídias sociais, o termo se expande

49
TRABALHADORES DA CULTURA

para outros paradigmas de medição. Assim, atualmente, a


noção de independência partiria da ausência de mediação
comercial entre o artista e o público: “É o próprio artista
que se comunica e que estabelece uma relação comer-
cial diretamente com o seu público, seja fazendo disco,
seja distribuindo disco”. A partir daí, a artista explica que
existem vários níveis de independência. O grau máximo de
independência seria aquele artista que sequer tem uma
assessoria de comunicação e faz tudo sozinho por rede
social, por exemplo. O grau médio de independência seria
aquela artista que não tem gravadora, banca o seu próprio
disco, mas tem uma assessoria. E o artista independente
no grau mínimo seria aquele artista que gravou o seu dis-
co sozinho, mas tem uma distribuidora e uma assessoria
(Artista 14, 5/5/2015). Tais definições compõem as escalas
da independência, cuja régua seria os níveis de mediações
existentes na comunicação do artista com seu público.

f) Escolha e/ou contingência

No decorrer das entrevistas, percebeu-se também


que a condição de não estar dependente de algum con-
trato com gravadoras, sobretudo de distribuição, pode ser
entendida enquanto escolha do músico (já teve proposta,
mas recusou; já teve e não quer ter de novo; ou nunca
teve e não quer ter), mas também enquanto contingência
de mercado. Nesse último caso, o artista almeja contrato,
mas ainda não foi convidado. Esse tópico, no entanto, foi
alvo de muitas tensões entre as falas, as quais, muitas
vezes, revelaram contradições fundamentais.
Um dos artistas (Artista 5, 30/4/2015) deixa evidente
que não é independente porque quis a princípio, mas por
contingência mercadológica, ou seja, porque não conse-
guiu fechar um contrato com gravadora. O músico afirma

50
TRABALHADORES DA CULTURA

que essa coisa do “ah, eu sou independente porque eu


quero”, um pouco de “marra”. Ele explica que o músico
é independente hoje, sobretudo, porque é assim que o
mercado está constituído e porque ele pode ser assim,
tendo em vista o acesso aos meios tecnológicos. O músico
destaca que essa condição de estar desvinculado de uma
gravadora, inclusive, fez muita falta, sobretudo no começo
da sua carreira, em que ficou 10 anos sem viver de mú-
sica, mesmo fazendo discos, saindo na capa do jornal e
ganhando prêmios todo ano: “Todo disco que eu lancei es-
tava na lista dos melhores do ano, mas eu não conseguia
viver da minha música...” (Artista 5, 30/4/2015).
Hoje, o músico entrevistado acima (Artista 5,
30/4/2015) enfatiza que nem pensa mais em gravadoras/
distribuidoras, ao mesmo tempo em que afirma que acei-
taria uma conversa com uma delas. Ele narra também que
pensou muito em gravadoras no começo da sua carreira
porque ainda era uma via de acesso para viver de músi-
ca, mas que hoje tem todo um caminho que ele mesmo
ajudou a construir, que faz com que o independente nem
sequer lembre da gravadora, porque está preocupado, na
verdade, em viabilizar a sua vida fora desse circuito que
nunca lhe acolheu. Em suas palavras:

Porque não existe mais o contrato lá. Eu vou


fazer o quê numa gravadora? Eles não me que-
rem e eu também... Ah, eu acho que mais do
que tudo eles não me querem! Eu acho, sabe?
Nunca ninguém me ligou e falou ‘Aqui é da gra-
vadora tal... Quer fazer uma reunião?’ Eu acho
que eu faria... Queria ir lá ver, mas eles nem
sabem que eu existo, então por que eu vou
ficar pensando neles? Eu tenho que pensar:
como eu vou conseguir fazer o que eu que-
ro, a música que eu quero, por mais estranha
que ela seja, e pagar o aluguel ainda assim?

51
TRABALHADORES DA CULTURA

Eu acho que esse é um resumo da minha vida.


Não é uma escolha ser independente. Eu acho
que é uma contingência. A grande novidade e
a grande felicidade é que, 15 anos depois de
que quando eu comecei, é possível fazer o
seu disco do jeito que você quiser, tocar pra
quem você quiser... Você não vai ficar milioná-
rio, você não vai comprar um avião, você não
vai ser ouvido tanto... Mas você vai fazer o que
você quer. (Artista 5, 30/4/2015).

No mesmo sentido de independência enquanto con-


tingência, outro artista (Artista 7, 14/4/2015) explica que, do
ponto de vista histórico, essa “autonomia” das gravadoras
não foi uma escolha dos músicos. As coisas foram “cami-
nhando para tal contexto”, de forma que “naturalmente”
foi possível ser independente. Hoje, o que acontece, se-
gundo o músico, é um movimento inverso do que aconte-
cia: primeiro certa projeção do artista, depois o trabalho
da distribuidora, se houver, e quando for interessante para
elas. “Porque você pode gravar na sua casa. Você coloca
na internet, o seu vídeo faz sucesso e aí vem o produtor
atrás de você. Ah, quero vender o seu show”. Ele também
destaca que as condições contratuais das distribuidoras
hoje, de forma geral, não tem sido interessante para os
músicos. O artista conta que tem amigos que possuem
contrato com gravadoras e o que acontece, com frequên-
cia, é que essas empresas não aceitam deixar um disco
pra download gratuito, por exemplo (Artista 7, 14/4/2015).
No mesmo sentido, outro músico afirma que está aberto
para o diálogo com as gravadoras e que algumas delas já
lhe procuraram com propostas, mas que até agora o con-
trato que ele acha válido não chegou (Artista 3, 15/6/2016).
Outros músicos são mais enfáticos na preferência
de trabalhar de forma independente. Nessa perspectiva,

52
TRABALHADORES DA CULTURA

uma das entrevistadas (Artista 15, 2/9/2014) reconhece a


vantagem da distribuidora fazer o disco chegar aonde sozi-
nha ela não consegue, mas conta que já teve contrato com
gravadora e não viu a gravadora fazer nada que ela própria
não tenha conseguido fazer durante esses anos. Ela expli-
ca também que os contratos com as gravadoras hoje não
recai apenas sobre o discou ou fonograma. “Você já deve
ter ouvido falar que eles ganham sobre tudo... Qualquer
coisa que eu fizer na minha vida a gravadora tá ganhan-
do” (Artista 15, 2/9/2014). A artista também toca em um
importante aspecto dos constrangimentos das gravadoras
e distribuidoras em relação à criação artística com o se-
guinte depoimento:

Eu tenho uma colega que ficou um ano com o


disco pronto e a gravadora segurou: ‘não, não
está no momento adequado’. Tá, mas em um
ano você vive de quê? Você faz o quê? Além
disso, daqui a um ano sua cabeça, sua obra já
é diferente, já não é a mesma coisa.... Às vezes
não faz mais nem sentido aquele arranjo ou
aquela letra... Não faz mais sentido às vezes
porque você mudou... (Artista 15, 2/9/2014).

Por outro lado, um dos músicos entrevistados


(Artista 16, 12/11/2014) afirma que queria sim uma distri-
buidora porque reconhece sua limitação na circulação da
produção, sobretudo física. Ele percebe a demanda do
disco enquanto obra de arte: “é a capa, as fotos, essas
coisas...”. E por isso entende que, mesmo com o mercado
de discos oscilando, é importante estar nas lojas físicas
(Artista 16, 12/11/2014). Alguns artistas, portanto, acredi-
tam na possibilidade de relações positivas com selos e
plataformas de músicas. Embora esteja no momento sem
contrato com distribuidora, uma das artistas (Artista 12,
13/4/2015) conta sua experiência com o selo Oi Música.

53
TRABALHADORES DA CULTURA

Ela afirma que a Oi investiu muito no seu trabalho e con-


seguiu estruturar uma assessoria de imprensa e distribui-
ção “muito interessante” (Artista 12, 13/4/2015). No mesmo
sentido, outra artista resume: “Eu queria até deixar de ser
independente... Alguém que quiser que eu dependa, tô aí
dependendo...” (Artista 1, 25/2/2016).
Uma vez definidas as características que uniriam os
músicos entrevistados por essa pesquisa (viver de música,
autonomia econômica e consagração em mídias e festivais
especializados), observou-se uma grande variação nos as-
pectos distintivos do que seria um músico independente
hoje. Independente de capital internacional? Independente
de gravadoras e distribuidoras? Independente de finan-
ciamento público? Independente da mídia tradicional?
Independente da estética massiva? O ponto de intersec-
ção, porém, se fundamenta, de forma geral, na autonomia
econômica e na autogestão da carreira que desemboca
no empresariamento de si mesmo, no discurso de “liber-
dade artística” e no perfil polivalente dos artistas. Nesse
contexto, a ênfase na contingência de “continuar produ-
zindo música” é o caráter que informa importantes aspec-
tos da produção musical considerada independente hoje.
Finalmente, a saudação ou não da condição independen-
te, sua adequação, assim como o grau de profundidade
dos raciocínios conceituais sobre o termo, anunciam ou-
tros aspectos dos artistas entrevistados, relacionados à
trajetória e à formação de cada um.

54
2 TRAJETÓRIA E FORMAÇÃO

Ao longo da pesquisa com os músicos considera-


dos independentes por essa pesquisa observou-se uma
variação mais ou menos homogênea em termos de clas-
se, raça e gênero. No entanto, heterogeneidades e dissi-
dências também fazem parte de boa parcela da amostra,
de forma que a relação desses dados revela importantes
aspectos do trabalho artístico. Depois de tentar entender
a historicidade conceitual do artista independente, esse
capítulo preocupa-se com o enfoque da interseccionali-
dade, no intuito de analisar como as diferentes condições
e opressões se combinam e se entrecruzam para informar
as diferentes trajetórias dos artistas entrevistados. Sobre
o conceito de interseccionalidade, destacamos a clássica
e substancial citação da Angela Davis (2016, p. 12):

É preciso compreender que classe informa a


raça. Mas raça, também, informa classe. E gê-
nero informa a classe. Raça é a maneira como a
classe é vivida. Da mesma forma que gênero é
a maneira como a raça é vivida. A gente precisa
refletir bastante para perceber as intersecções
entre raça, classe e gênero, de forma a perce-
ber que entre essa categorias existem relações
que são mútuas e outras que são cruzadas.

Além de classe, raça e gênero, observamos tam-


bém outras variáveis, como idade, região, orientação se-
xual e formação, para compreender as diferentes trajetó-
rias. Esse caminho conceitual é abordado pela socióloga
Danièle Kergoat (2010) em seu conceito de consubstan-
cialidade das relações sociais. Diante da dinâmica dessas
complexidades, perguntamos aos músicos sobre o impac-
to, ou não, na escolha em ser artista, tendo em vista as

55
TRABALHADORES DA CULTURA

noções de ócio ligadas às profissões artísticas em geral.


Procuramos entender e relacionar as características es-
truturais globais da situação histórica datada e vivida às
lutas individuais no campo das artes, os seus pontos de
vistas e as formas como os artistas foram construindo as
suas agências.
Segundo a cientista social e musicóloga Juliana Coli
(2006, p. 43) a atividade artística contém múltiplas dimen-
sões, na medida em que é ao mesmo tempo expressão ar-
tística, realização de um trabalho e exercício de uma pro-
fissão. Embora essas dimensões existam, as articulações
analíticas integram, frequentemente, a atividade artística
apenas a termos como criatividade, empreendedorismo,
inovação, liberdade, talento, vocação, dom e genialidade.
A ênfase em tais noções atua na criação de significados
que colocam o trabalho artístico como exceção às ou-
tras práticas, ofuscando e idealizando a sua compreensão
multidimensional.

2.1 Genialidade e ócio

A ideia do artista, e especialmente do músico, e seu


modo de existência não se dá de forma homogênea em
todas as formas históricas. Coli (2006) pesquisa especial-
mente o trabalho musical em suas origens pré-capitalis-
tas e analisa essa atividade a partir de um ponto de vista
moral e social. Segundo a autora (COLI, 2006, p. 51), do
ponto de vista moral, a profissão do artista era vista como
uma forma de degradação: o músico era visto como um
saltimbanco. Essa dimensão da degradação faz recordar
a metáfora da Cigarra e a formiga, na qual o papel da for-
miga está relacionado diretamente a um tipo de trabalho
manual e o da cigarra, a uma espécie de diversão. Do pon-
to de vista social, o músico estava ligado a uma imagem

56
TRABALHADORES DA CULTURA

pouco recomendada, próxima a do vagabundo. O conceito


de trabalho na história do pensamento ocidental apresen-
ta-se fundamentalmente centrado em dois aspectos: fa-
diga e necessidade. O caráter denotativo da arte apontaria
para uma moral adversa, que levaria ao ócio. Em outros
termos, o não-trabalho no âmbito da arte incluiria dentro
de si o conteúdo do ócio.
Considerações sobre o artista na Antiguidade
Clássica e na Idade Média apontam para a sua oposição
ao artesão, junto com a perspectiva de inspiração ou in-
tuição divina. Subjacente à apresentação das formas pe-
las quais a arte e os artistas foram acolhidos nas cortes
do Ocidente europeu, o historiador da arte Martin Warnke
(2001) explica o valor especial atribuído às obras de arte
e à ideia de capacidade superior dos criadores. O autor
(WARNKE, 2001, p. 45) elucida que, após a metade do sé-
culo XIII, as relações, sobretudo entre artistas plásticos
e as cortes, assumem formas definidas e específicas. Na
medida em que os reis da Europa ocidental vão consoli-
dando sua soberania, emerge a necessidade de suas re-
presentações pictórias. A participação das artes na mani-
festação da aura do príncipe e a proximidade privilegiada
do artista com relação ao soberano produziu e consolidou
a impressão de uma extraordinária forma de atividade su-
perior, nutrida por bênçãos especiais e dotada de uma
competência universal.
Segundo Warnke (2001, p. 24) os dados históricos
fornecem algumas características básicas do posto do ar-
tista na corte. O pintor, por exemplo, estava situado no cír-
culo de serviços do bem-estar do soberano: seu ocupante
recebia um título, um pagamento fixo, presentes especiais
e podia exercer autoridade sobre os outros empregados.
Nesse mesmo contexto, Coli (2006, p. 103) elucida que o
mercenarismo, para o músico, representava uma atividade

57
TRABALHADORES DA CULTURA

doméstica e restrita à satisfação da corte. A pesquisadora


afirma que o contrato de trabalho de Bach, por exemplo,
era idêntico ao de um doméstico da corte, cujo ofício ca-
racterizava-se por uma forma de servidão. Esse caráter,
contudo, não se realizou sem a resistência dos artistas em
executar exatamente o que lhe era solicitado pela corte
(COLI, 2006, p. 112).
O Renascimento imprime uma boa aceleração à figu-
ra profissional dos artistas que encontram alguns espaços
mais amplos e reconhecidos, desvinculados das exigências
eclesiásticas. Intensifica-se uma transição entre o mece-
nas individual para o mercenário empresarial no trabalho
artístico. Os contornos da racionalidade burguesa sugerem
a autonomia do artista em relação às estruturas tradicio-
nais, preparando o terreno para o nascimento ideológico do
gênio, a título de justificativa do papel do artista nessa nova
sociedade que possibilita certa mobilidade social.
O cientista social José Carlos Durand (1989) explica
que no Brasil as artes não eram vistam com bons olhos
pelos clãs oligárquicos, cujo ensino durante o Império era
endereçado principalmente aos filhos de artesãos, dos
pequenos comerciantes e ex-escravizados. O fato da mú-
sica ter sido executada nesse período por negros em uma
sociedade escravocrata também informa o sentido de uma
ideologia da banalização social das atividades artísticas na
sociedade brasileira. Não raro encontra-se no país uma
ideologia da atividade artística como sinônimo de negação
do trabalho e de um prazer depreciativo no limite da des-
valorização da atividade humana.
A emergência da modernidade soma várias influên-
cias ligadas ao romantismo, ao pensamento cartesiano ra-
cional e ao iluminismo, enquanto movimento pela busca
do sujeito autônomo, prevalecendo sobre dogmas e cren-
ças. É nesse período que a noção de individualização do

58
TRABALHADORES DA CULTURA

artista e a figura do gênio criador se tornam efetivas. Tais


noções partem da premissa de que a inspiração não é tida
como algo que vem do ente exterior, mas sim de dentro
do próprio artista, que passa a ser valorizado por suas ca-
pacidades criativas subjetivas. Com o sujeito econômico
burguês surge também o sujeito artista, desdobrado no
gênio. Juliana Coli (2006) explica esse movimento no âm-
bito da música nas seguintes palavras:

A ética depreciativa e adversa da atividade


musical contribui, inicialmente, para a afirma-
ção da ideia do ócio e transforma-se, poste-
riormente, em uma refinada ideologia capita-
lista legitimada pela ‘indústria do tempo livre’,
segundo a qual toda a atividade lúdica parece
neutralizar o complexo processo de valoriza-
ção do capital. O significado moral da depre-
ciação do músico transforma-se em um valor
ideológico de inversão da realidade do capital,
ao mesmo tempo em que a evolução históri-
co-social serve como base econômica dessa
ideologia (COLI, 2006, p. 53).

O resultado analítico dessa construção histórica que


relaciona a atividade artística, grosso modo, à genialida-
de, ao lazer, ao prazer e ao ócio, reforça a ideia do artista
com capacidades naturais. Nesse sentido, a arte é inspi-
ração pura. Diferente do ofício, ela é irracional, somente
suscetível de revelação e não de compreensão. Interior,
gratuita, mágica, iluminada, a arte se abre a alguns privile-
giados que comungam através dos séculos um mundo de
valores. Sua via de acesso é a intuição e o inconsciente. A
dificuldade de se entender os artistas como trabalhado-
res deriva, desde então, da ideologia romântica da criação
como algo fora do mundo e, sobretudo, fora do mercado,
das relações políticas e econômicas.

59
TRABALHADORES DA CULTURA

Assim, as análises tendem a privilegiar a obra do


artista enquanto criação estética, em prejuízo do proces-
so de trabalho que a elaborou. Nesse sentido, o sociólogo
Pierre-Michel Menger (2005, p. 15) explica que:

É com a celebração dos valores da inspiração,


do dom, do gênio, da intuição, da criatividade
que triunfou, na era romântica, o individualismo
artístico, entendido simultaneamente como o
princípio e o resultado da concorrência entre os
artistas na sua procura sistemática de originali-
dade estética, e como o produto da concepção,
então muito difundida, segundo a qual o artista
é o indivíduo por excelência, a pessoa realizada
na essência da sua humanidade.

Na ótica que acentua o artista enquanto trabalha-


dor, Menger (2005) realiza uma análise sociológica da arte
na perspectiva da categoria trabalho. A questão que se co-
loca é a dos mecanismos que fazem aparecer ou celebrar
talentos. Colocar a questão dos talentos sobre os quais as
atividades artísticas se manifestam é igualmente interro-
gar-se sobre as condições necessárias à revelação destes
talentos e os modelos de organização da sociedade que
daí derivam. Analisar tais processos da profissionalização
artística é descobrir como o artista é, ao mesmo tempo,
trabalhador e mestre da desmultiplicação de si, hábil a
inventar soluções para gerir os riscos aos quais se expõe
(MENGER, 2005, p. 23).

2.2 Relações familiares e profissões

A partir da definição de independente desse traba-


lho, e tendo em vista os músicos entrevistados, o primeiro
reconhecimento desse capítulo refere-se ao perfil socioe-

60
TRABALHADORES DA CULTURA

conômico da amostra. Dos 22 artistas, 15 são homens (dos


quais três se declaram pretos) e sete são mulheres (das
quais quatro se declaram pretas e três são mães). Na oca-
sião das entrevistas os artistas, em sua maioria, contavam
menos de 40 anos, estavam predominantemente em São
Paulo e tinham ensino superior (completo ou incompleto),
quase sempre relacionada à área musical ou artística em
geral. Em termos de estratificação de classe, a maioria da
amostra se declara privilegiada em termos econômicos e/
ou inseridas em famílias de históricos artísticos. Algumas
trajetórias individuais, de forma especial, informam im-
portantes cruzamentos de todos esses dados, inclusive
no que toca às suas exceções.
Na trajetória de músicos brancos cuja família se in-
sere em ambiente artístico, são destacados os incentivos
no que toca às profissões artísticas. Assim foi com um
dos entrevistados (Artista 8, 10/9/2015), cuja mãe sem-
pre teve uma relação muito forte com a música e insistia
que ele, de alguma forma, tocasse um instrumento. Após
um ano tentando tocar guitarra sem muito êxito, o artis-
ta abandonou temporariamente a música para se dedicar
ao skate, tendo participado de vários campeonatos pelo
Brasil. Embora a sua mãe tenha lhe direcionado desde
muito cedo para a música, ele só mergulhou nesse univer-
so quando sentiu que estava no seu tempo de fazer isso
(Artista 8, 10/9/2015).
A trajetória do artista branco de família artística re-
pete algumas variáveis quanto ao incentivo à atividade e
profissão ao longo das entrevistas. Foi assim também com
o artista que conviveu com a música de forma intensa du-
rante toda a sua infância (Artista 13). Seu pai, com quem
mora em um apartamento hoje (aonde recebeu essa en-
trevista no dia 14/4/2015), é músico profissional e produtor,
foi proprietário de diversos estúdios na Amazônia e gravou

61
TRABALHADORES DA CULTURA

centenas de discos (a conta chega à aproximadamente


1000 durante sua carreira). Toda sua família paterna é en-
volvida com atividades musicais. Portanto, o mais natural
para o artista era “todo mundo ser músico”. Ele brinca que
foi estranho quando disse que ia ser professor. A sua vida,
portanto, foi sempre pautada pela música e pela possi-
bilidade de “viver de música”, com o apoio de sua família
paterna. Mesmo com toda a influência e suporte musical
de sua família, o músico terminou o ensino superior em
Filosofia (Artista 13, 14/4/2015).
Por outro lado, na trajetória de mais um entrevista-
do por essa pesquisa (Artista 9, 29/2/2016), desta vez um
homem preto cuja família também se insere em ambiente
artístico, o músico destaca que embora a música, para
ele, seja um elemento muito orgânico na sua vida, viven-
ciada de forma umbilical cujo primeiro contato efetuou-se
por meio da sua comunidade, via religião, seus familiares
não tinha a exata compreensão de que música poderia ser
uma profissão, de forma que a atividade musical sempre
foi relacionada à vadiagem, diversão e passatempo. O ar-
tista relata que, em sua comunidade, os seus pais passa-
ram por experiências de criarem grupos musicais que não
“deram certo”. Por isso, quando o músico criou o grupo
com integrantes da própria família, uma outra parte da fa-
mília alimentou a ideia de que ia ser mais uma experiência
negativa (Artista 9, 29/2/2016).
A dificuldade de entendimento sobre o ofício da arte
ficou evidente quando o músico (Artista 9, 29/2/2016) ter-
minou o ensino médio, com 17 anos, e escutou da sua mãe
o famoso, segundo ele, “‘e agora’ da periferia... E agora,
você vai trabalhar, porque você vai ser uma renda a mais
pra família...”. E, então, sua mãe conseguiu um emprego
no Banco do Brasil. Mas o músico recusou o ofício. Ele
tinha acabado de passar na prova do Conservatório para

62
TRABALHADORES DA CULTURA

violão clássico e começou a, todo dia, sair a pé “com o


violão nas coisas e a marmita na bolsa” de sua comunida-
de, em Olinda, até o Conservatório em Recife, cerca de 15
a 17 quilômetros. No entanto, permaneceu no máximo um
ano dentro do Conservatório Pernambucano. Ele explicou
que não se adaptou ao formato educacional, ao que eles
tocavam e valorizavam. Por isso saiu do Conservatório e
resolveu se refazer na música, viver da música como ele
compreendia, como ele já tinha sido educado e forma-
do por sua comunidade. Na ocasião da entrevista, a in-
serção do artista na Universidade era como estudante de
Ciências Sociais na Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE) (Artista 9, 29/2/2016).
Em outro contexto, o artista paulista, preto e gay
(Artista 3, 15/6/2016), sem trajetória artística na família,
formado em cinema, afirma que em sua casa o desejo de
viver de música nunca foi um fator de desarmonia, segun-
do ele, provavelmente pelo fato de sempre trabalhar e “se
virar sozinho” com o dinheiro, já tendo trabalhado como
cabeleireiro e como freeelancer. Ao longo da entrevista, a
narrativa do sucesso via empreendedorismo, do empode-
ramento via consumo, enquanto exaltação da passagem
dos estratos de classes, ficam bastante evidente na fala
do músico. Trata-se do “ser patrão” que é, inclusive, ex-
presso em suas próprias letras e que se afasta da figura
do “operário da música”, no sentido de reivindicar uma
identidade muito específica (Artista 3, 15/6/2016).
A propósito da análise destas entrevistas, ressalta-
mos o caminho conceitual abordado por Danièle Kergoat
(2010) acerca pertinência analítica e metodológica do con-
ceito de consubstancialidade, tendo como premissa a de-
finição da própria noção de relação social: uma relação
antagônica e conflituosa entre grupos sociais. A autora
compreende as relações sociais como um nó que só pode

63
TRABALHADORES DA CULTURA

ser desatado analiticamente. A proposta teórica apresen-


tada por Kergoat (2010, p. 14) é compreender as relações
sociais como estruturantes da nossa sociedade; relações
estas que compartilham da mesma substância e são co-
extensivas, isto é, “ao se desenvolverem, as relações so-
ciais de classe, gênero e raça se reproduzem e se copro-
duzem mutuamente”.
A observância das práticas sociais revela que, em
circunstâncias específicas, o gênero “cria” a classe; ou a
“raça” redefine a noção de gênero, e assim por diante.
A tese central dessa proposta teórica (KERGOAT, 2010) é
compreender o intercruzamento dinâmico e complexo que
as relações sociais propiciam. Esses são os componentes
de uma totalidade que definem espaços, posições, traje-
tórias e práticas sociais de homens e mulheres também
no mercado de trabalho artístico.
Diante disso, destacamos a interseccionalidade en-
tre as diferentes dimensões sociais por meio da percurso
de outra entrevistada (Artista 12, 14/4/2015), branca, pau-
lista e de família ligada à área musical, cuja narrativa en-
fatizou a “herança” das apatidões musiciais, assim como
a ideia de “vocação”. De fato, a ênfase nas ideias de vo-
cação e talento fazem parte da celebração dos valores
de “inspiração”, do dom e da genialidade descrita no co-
meço desse capítulo. Essa percepção profissional do ar-
tista fundamenta uma visão bastante idealizada, fetiche
que impede o próprio artista de considerar a sua atividade
(também) como trabalho. Em outros termos, as distorções
de consciência são parte da ilusão da condição “genial”
ou “especial” do músico, representação mais acabada da
reprodução social da consciência de classe burguesa, no
caso específico, do gênio criador, na formação continuada
do sujeito artista (Artista 12, 14/4/2015).

64
TRABALHADORES DA CULTURA

Por último, quanto à especificidade em ser mulher


e artista, ela (Artista 12, 14/4/2015) afirma que “a mulher
tem um lado que realmente é mais interessante em algum
nível. Eu não sei exatamente qual, mas a mulher tem uma
complexidade”. Em outro momento: “A relação da música
com o feminino eu acho que é interessante porque tem a
ver com a coisa emocional, que é uma coisa ultra femini-
no” (Artista 12, 14/4/2015). Contradizendo e harmonizando
elementos da realidade social efetiva, ao mesmo tempo
em que afirma a essencialização do feminino, a artista
reconhece as regras que permeiam o seu trabalho, por
isso conclui que “a questão da mulher no mundo social
hoje ainda é muito complicada, no sentido que é difícil a
adaptação da mulher no mundo, tendo em vista todos os
preconceitos relacionados ao corpo e à idade” (Artista 12,
13/4/2015).
Em outro contexto, a trajetória de mais uma entre-
vistada (Artista 15, 2/9/2014), branca, mas cuja família não
está ligada à arte, há a afirmação de aceitação e apoio de
sua profissão por parte dos seus pais, até o momento em
que ela se tornou mãe. Nesse momento, seus pais lhe
perguntaram quando ela iria, de fato, começar a traba-
lhar. Nesta época ela namorava um músico que estava em
uma fase de bastante reconhecimento no meio artístico,
voltava de uma turnê pelos Estados Unidos da América. A
artista conta que foi um susto quando ela voltou da turnê
e seus pais falaram “E aí você já tem um filho é uma outra
realidade, não dá mais pra ficar brincando de musica”. “E
aí veio realmente uma confusão na minha cabeça. Como
assim? Eu não to brincando”, afirma (Artista 15, 2/9/2014).
Os pais da artista (Artista 15, 2/9/2014), que possuem
uma condição financeira estável, preocupados com o fu-
turo do casal, neste quesito, lhe impuseram uma ativida-
de administrativa num dos negócios da família: gerenciar

65
TRABALHADORES DA CULTURA

uma clinica médica dentro de um shopping em Recife e,


assim, conforme conta, sua carreira ficou comprometida.
Esta passagem de sua trajetória aponta para uma reflexão
sobre as especificidades da relação de gênero e o trabalho
artístico. Durante o período em que trabalhou na clínica,
ela começou a fazer terapias e se perguntar o que estava
fazendo ali. A entrevistada conta que foi um momento de
intenso sofrimento porque, embora continuasse cantan-
do, a música tinha sido colocada, contra a sua vontade, em
último plano em sua vida. Ela não tinha um horário flexível
na clínica e só conseguia ensaiar uma vez por semana. Já
o seu marido nunca concordou que ela fosse trabalhar na
clínica e nunca deixou de fazer música. Observa-se, então,
as ambiguidades que a relação arte, trabalho e gênero co-
locaram para a trajetória de uma artista e mãe.
Somente depois de três anos gerenciando a clínica,
muita terapia e angústia, ela (Artista 15, 2/9/2014) final-
mente conseguiu se desligar do trabalho imposto pelos
seus pais. A artista retomou as suas atividades na música
em 2003, mas como ela disse, “na angústia do desempre-
gado” (Artista 15, 2/9/2014). Por meio de contatos que já
havia conquistado no meio musical, a solução encontrada
foi trabalhar com produção. Participou de importantes pro-
jetos como, por exemplo, o Dossiê Samba de Roda, consi-
derado patrimônio nacional pela Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Em 2006 realizou seu primeiro trabalho solo, contempla-
do pelo Programa Petrobrás Cultural/2007. Desde então, já
lançou outros oito trabalhos solos.
Na ocasião da entrevista para esta pesquisa a artista
(Artista 15, 2/9/2014) morava em Recife e cursava ensino
superior em produção fonográfica. Seu marido começou
o curso de Música, mas não concluiu, repetindo as críti-
cas já feitas por outros artistas quanto ao caráter erudito

66
TRABALHADORES DA CULTURA

do ensino superior em Música. Autodidatas, o casal está


sempre lendo e fazendo cursos de pequena duração na
área musical e de produção fonográfica. O caráter autodi-
data da formação musical também é manifesto em muitos
artistas da nossa amostra, cujas narrativas apontam para
o estudo por “conta própria” na área musical (Artista 17,
6/9/2014) com auxílio da internet (Artista 18, 13/8/2014).
No caso da artista (Artista 14, 5/5/2015) preta, de
família não ligada ao campo artístico, mas de estabilidade
financeira considerável, sua declaração “vou fazer música”
veio acompanhada do “mas como assim fazer música? Faz
música paralelo, vai fazer outra coisa...”. Para a artista, pro-
var que realmente ia se dedicar a música de forma prin-
cipal, viver da música e ter essa atividade como profissão
foi um processo múltiplo. Os questionamentos familiares
iniciais acerca da escolha de sua profissão foram sanados
via uma postura e formação empreendedora da artista que
chegou a cursar três cursos superiores. O primeiro, e úni-
co concluído, foi Marketing que ela destaca como “super
importante” dentro da cadeia na qual ela está incluída de
“músicos empreendedores” (Artista 14, 5/5/2015).
Depois que concluiu Marketing, a artista (Artista 14,
5/5/2015) chegou a começar a cursar Música na Universidade
Federal da Bahia (UFBA), frequentando as aulas durante
dois anos e meio. Um mal entendido burocrático acumu-
lou-se com insatisfações e críticas quando à predominân-
cia do aspecto erudito do ensino e a cantora deixou o cur-
so. Depois disso, cursou Direito por influência do seu pai.
Cursar Direito, nesse momento, representou para ela a pos-
sibilidade de uma garantia financeira, ao mesmo tempo em
que cogitava deixar a música em segundo plano ou correr
em paralelo. Cursou Direito durante um ano e foi suficien-
te para entender que não era o seu caminho (Artista 14,
5/5/2015).

67
TRABALHADORES DA CULTURA

Nesse momento, a artista (Artista 14, 5/5/2015) per-


cebeu com mais veemência que “tinha que fazer música”,
seguir esse caminho e saber lidar com as questões de
mercado, sua principal aflição e também de sua família.
Ela explica que fazer “arte em si” é sempre “a delícia da
coisa” quando se descobre que quer ser artista. Mas as
questões comerciais são muito mais complicadas porque
dizem respeito a sua sustentação no mundo: “A poder ir e
vir, a poder investir na própria carreira, a poder fazer a coi-
sa girar, a poder fazer com que sua vida pessoal também
possa existir a partir do seu trabalho”. Desde então, ela
afirma ter enfrentado tais questões comerciais com muita
coragem, mas oscilando com momentos de dúvidas, que
não são relacionadas à sua escolha profissional, mas sim
sobre qual caminho seguir para “ser feliz no aspecto fi-
nanceiro da sua carreira” (Artista 11, 5/5/2015).
Para a musicista (Artista 11, 5/5/2015), algumas de
suas condições são muito importantes na construção do
seu trabalho. Notadamente o fato de ser mulher, pre-
ta, nordestina e homossexual. Embora a artista entenda
que a mulher tenha avançado um pouco no ambiente de
trabalho, e tendo conquistado um espaço para o gênero
feminino na música, existem cruzamentos que explicam
outras questões, o que desemboca no fato de estar sem-
pre tendo que “provar tudo o tempo todo”. Esta dimen-
são do trabalho, aliás, foi levantada em outras entrevis-
tas. Nesse sentido, uma das artistas de nossa amostra
(Artista 4, 12/2/2016) afirma que o mundo, de uma forma
geral, é muito hostil com as mulheres e essa situação se
repete nas artes, com suas características especiais. Em
seus termos:

Então, você precisa falar em termos técnicos,


você precisa esfregar na cara das pessoas que

68
TRABALHADORES DA CULTURA

você sabe, você precisa bater de frente mes-


mo, responder, ser grossa. É complicado... E,
na verdade, o nosso grande objetivo é o mes-
mo e é nesse ponto que precisamos chegar,
direta ou indiretamente, seja através da porra-
da, seja através do diálogo. Estamos aqui pela
música, não é isso? Vamos trabalhar? Vamos!
Às vezes, a gente tem que discutir antes de
começar a trabalhar. Ai meu Deus, sério? Tem
muita coisa que é indireta, né? Existe uma se-
paração ali e tal. É complicado! Um meio bas-
tante complicado pra nós! Eu não vou provar
nada pra você, sabe? Eu vou tocar! E isso já é
uma prova. A minha dedicação e a minha en-
trega total é a maior prova que posso te dar. Se
isso não te prova, então, sinto muito, sabe? E
por mais duro que isso possa parecer, é muito
leve pra mim. A vida não é, mas essa questão é
tão certo... Eu vim aqui tocar e vou tocar! E eu
acho que, na verdade, quando a gente fala de
paixão, a gente quebra paredes. É dessa ma-
neira que eu consegui quebrar várias paredes
e estabelecer comunicação com várias pesso-
as. Tem muita coisa que eu não escuto porque
a gente toca de fone e tudo mais. Eu costumo
ser bem rigorosa. Não dá pra dar mole e deixo
muito claro quando a pessoa está passando
dos limites (Artista 4, 12/2/2016).

Em outra trajetória, a cantora preta e mãe, afirma


que o que mais a influenciou na música foi o fato de sua
família ser muito musical. A artista (Artista 1, 25/2/2016),
então, sempre teve interesse e vivência no campo artís-
tico. Mas apesar de estar inserida em uma “família musi-
cal talentosa”, com um caso de “sucesso profissional”, ela
conta que existiu uma cobrança doméstica e pessoal re-
lacionada à sua escolha profissional. A artista atribui essa
cobrança ao fato de sua família ter uma estrutura muito
específica: suburbana, periférica e preta. Ela conta que

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TRABALHADORES DA CULTURA

seu pai afirmava com frequência “esse negócio de artista


é coisa de rico, num te mete nisso não; termina teu curso,
que isso num vai dar certo!”. Com essa lembrança e lágri-
mas nos olhos, a artista canta o seguinte trecho da música
de Paulinho da Viola:

Posso cantar?

‘Eu tinha catorze anos de idade, quando meu


pai perguntou se eu queria estudar Filosofia,
Medicina ou Engenharia. Tinha eu que ser dou-
tor. Mas, para sua indignação, eu queria um
violão pra me tornar sambista. Sambista não
tem valor nessa terra de doutor. Ah, doutor. O
meu pai tinha razão!’.

Eu choro quando eu escuto que ‘o meu pai


tinha razão’. E, assim, com a idade, as cobran-
ças são maiores, de todo mundo, na socieda-
de, de você mesmo, né? É por aí... (Artista 1,
25/2/2016).

A artista (Artista 1, 25/2/2016) explica que fez facul-


dade de Rádio e TV na UFPE. As primeiras pessoas que
fizeram faculdades em sua família foi ela e os irmãos, em
seguida seus primos e as gerações que estão chegando
agora. Em música, sua única formação foi algumas aulas
de canto, já depois do primeiro disco solo lançado (Artista
1, 25/2/2016). Em relação a ser mulher, preta e nordestina,
a artista destaca e problematizar o estereótipo regional
que pesa sob a sua produção musical. Em suas palavras:

O que eu percebo, pelo estereótipo, assim,


eu posso cantar, cantar eu posso. Agora não
posso cantar tudo. Eu tenho que cantar... eu
tenho que cantar só, assim, regional, enten-
desse? (risos) Porque, por exemplo, eu fiz uma
música, eu publiquei e as pessoas falaram que

70
TRABALHADORES DA CULTURA

lembravam as conquistas, não sei o quê – com


todo respeito e tal. Mas, assim, a música não
lembra isso, mas as pessoas tentam buscar
isso. Esse estereótipo é muito forte. Ah, eu
gosto disso, mas gosto de outra coisa. Gosto
de música clássica e gosto de ciranda. Então,
eu senti muito e ainda sinto quando eu quero
fazer uma coisa que tá fora do ‘regional’ por-
que uma coisa é o meu sotaque recifense, en-
tendeu? Então, se você quer chamar isso de
regional, tudo bem. É o meu sotaque recifen-
se, mas, assim, é da região de Recife. E aí, você
chegar e ver os caras do hip hop cantando em
São Paulo - ah, isso não é regional? Mas o so-
taque deles é da região dali. Musicalmente, eu
percebo o preconceito forte que se tem com
a música tradicional... E o meu canto, ele não
é um canto estudado pelas vias, né? E aí, eu
senti um pouco desse preconceito de você ter
que tá no seu lugar ali, né? De não poder sair.
(Artista 1, 25/2/2016).

Em pesquisa sobre a indústria na música no


Nordeste, Felipe Trotta (2010, p. 19) destaca que nas asso-
ciações entre músicas e espaços geográficos é necessário
ter em mente os processos de silenciamentos e disputas
culturais que forjam uma identidade regional ou nacional
a partir de uma suposta prática única. Eleger uma música
para o Nordeste, “tradicional” por exemplo, significa esco-
lher elementos (e aceitá-los) enquanto representantes da
imensa área ocupada pelos nove estados da região. Nesse
sentido, vários “nordestes” ficam de fora dessa represen-
tação, o que gera discursos de não-identificação com este
imaginário. Em outras palavras, enquanto tentativa de sín-
tese, essa identidade é resultado de um discurso bem su-
cedido promovido por alguns sujeitos, mas descontinua-
mente contestados e desautorizados por outros, em um
conflito contínuo.

71
TRABALHADORES DA CULTURA

Finalmente, na trajetória da artista (Artista 11,


7/5/2015), preta, professora de canto e teatro nascida em
Duque de Caxias/RJ, sem família ligada ao campo artísti-
co, observou-se a recorrência de alguns temas, sobretu-
do no que toca às relações familiares, formação acadê-
mica, busca da estabilidade financeira e a difícil decisão
de “ser artista”. A cantora e compositora vem de uma
família que, nos seus termos, sempre teve “dificuldades
financeiras”, as quais, no seu caso, impulsionaram a sua
trajetória pela procura da estabilidade econômica por
meio de várias formações.
As profissões mais regulares pautaram boa parte
da vida da musicista. Ela conta que foi para São Paulo
para ser técnica em computação. Quando chegou em São
Paulo para estudar fez um semestre de Matemática na
Universidade de São Paulo (USP), mas desistiu do curso.
Ela lembra os primeiros cálculos na faculdade: “era um ne-
gócio muito angustiante...”. Ela foi, então, fazer Jornalismo
na mesma Universidade. No segundo ano de Jornalismo,
um dos professores era diretor de redação da Folha de São
Paulo e a convidou, junto com outros colegas do curso, a
participar da reunião de pauta do Jornal. Quando chegou
na Folha e viu como funcionava, falou “Nossa, também
não é isso. Ou seja, na verdade faltou um belo de um tes-
te vocacional”, ri (Artista 11, 7/5/2015). Entrou para o curso
de Letras também na mesma Universidade e concluiu os
dois cursos. A artista também fez Mestrado em Literatura
Brasileira na USP.
Em paralelo às todas essas formações, o gosto pela
literatura e pela música sempre estiveram presente na
vida dela (Artista 11, 7/5/2015), visto com permissão por
sua família e por ela mesma, desde que delimitado como
hobby. A musicista, então, sempre conviveu com a busca
de “ter aquela coisa estável e a música correr em paralelo”.

72
TRABALHADORES DA CULTURA

Quando entrou na USP fez parte do coral da Universidade,


o qual depois se tornou um coral independente. E lá estava
ela fazendo concertos às próprias custas, sem o aparato
da Universidade, mas “assim, ah, um hobby aí, umas horas
de folga”, explica. Ela ia, então, articulando as suas ativi-
dades com a ideia de “conciliar tudo” (Artista 11, 7/5/2015).
A partir dos relatos desta artista (Artista 11, 7/5/2015)
acerca do contexto e das demandas de sua família, fica
evidente o quanto sua formação universitária correspon-
deria à esperança de uma estabilidade econômica, assim
como a dificuldade de tomar a decisão de ser artista pro-
fissional, no sentido de viver de música.

Era aquela esperança de ‘nossa, a filha boa


de matemática... Ela vai arrasar agora, vai ser
engenheira’ (risos). E era um pouco isso. Eu
respondia um pouco a essa expectativa dos
meus pais, né? E aí até eu dar conta que ‘Putz,
desculpa aí gente, mas não dá’ foi um proces-
so, assim... bem complicado né? E é claro que
isso é uma coisa com a qual eu convivo ainda
hoje (Artista 11, 7/5/2015).

Quando perguntada sobre alguma especificidade


em ser mulher, preta e sem a rede familiar artística na
sua profissão, a musicista (Artista 11, 7/5/2015). informa
que enquanto cantora preta, e mais: “enquanto cantora
que canta as coisas que tem a ver com a herança afri-
cana”, sabe que tem uma responsabilidade imensa com
esse tipo de discussão. Ela enfatiza que tem muito cui-
dado de colocar sua condição e sua militância da ma-
neira que mais lhe toque e faça sentido para ela mesma.
Ela se sente pertencente a uma cultura negra e popular
e entende a arte como parte da vida das pessoas e uma
forma de se encontrar. Em suas palavras:

73
TRABALHADORES DA CULTURA

Então, eu acho que o mais importante é que


eu faça de uma maneira que tenha muito sen-
tido pra mim, de uma maneira muito verda-
deira. Não é uma coisa que ‘ah, eu vou cantar
porque eu achei bonito’. Aquilo tem que fazer
um baita sentido pra mim. Eu fiz parte de um
grupo que pesquisava principalmente a cultura
popular. E foi a partir do trabalho desse grupo
que eu comecei a frequentar terreiros de can-
domblé, brincadeiras de roda em Pernambuco,
Paraíba... E ver a força que essa arte tem para
essas pessoas me fez entender muito do meu
fazer artístico. E me posicionar como brasilei-
ra... Porque até então... Eu te falei né? Eu fiz
coro da USP... Tem todo um jeito de lidar com
a cultura de uma forma mais erudita. Ah, essa
própria separação... Mas aí quando eu entrei
no universo da cultura popular foi um divisor
de águas do ponto de vista estético e pesso-
al de entender que a arte tem que fazer um
outro sentido pra você, não simplesmente de
você ficar sozinho no seu nicho criando algu-
ma coisa distante da realidade. A arte pra es-
sas pessoas faz parte da vida. É a maneira de
se encontrar, de celebrar, de chorar... Então,
isso mudou completamente o meu jeito de
entender o fazer artístico. E aí eu tento res-
ponder sempre a essa sensação... Eu tô inteira
nessa história? Se eu não tô inteira não é pra
fazer, eu não tô dentro... E aí tá inteira é isso
que eu sou: sou negra, sou mulher. Essa é a
minha posição no mundo (Artista 11, 7/5/2015).

2.3 À procura de trabalho e identidade profissional

Nas diferentes trajetórias alcançadas nesta pesqui-


sa, uma condição apareceu compartilhada por grande par-
te dos músicos: a procura de trabalho no campo artístico

74
TRABALHADORES DA CULTURA

e dificuldade de identidade profissional. No último caso,


seja pela resistência em se assumir artista enquanto prin-
cipal profissão, seja pelo alto grau de fragmentação do
trabalho, de modo que a identidade profissional fica di-
luída frente às inúmeras atividades exercidas. Esses fato-
res, por sua vez, variam de acordo com a classe, a raça, a
família (artística ou não), a região e o gênero dos artistas,
assim como o cruzamento de todos esses fatores.
O fato da amostra desta pesquisa ser parte da “nova
cena independente brasileira”, cuja maioria dos nomes
conta com histórico de influência artística familiar e/ou
estrutura financeira favorável suscitam algumas questões.
Para esses nomes, em geral de homens brancos, a dificul-
dade em se assumir artista aparece, comumente, pincela-
da em suas narrativas. Na amostra da pesquisa, foram os
artistas pretos que mais destacaram em suas narrativas
a dificuldade em se assumir artista, ao mesmo tempo em
são os que mais contam com formação superior (dos sete
artistas, apenas um não tem ou não está fazendo curso
superior). Mas essa observação varia quando considerado,
sobretudo, a condição familiar do artista, seja financeira e/
ou artística.
Quanto mais dificuldade financeira, e ainda mais se
o músico não vem de família artística, mais adversidades
para assumir o risco da profissão artística. Uma das entre-
vista é especialmente emblemática acerca da intersecção
entre raça, classe e gênero. Nessa situação, a artista afir-
ma que não conta com suporte familiar na área artística
e/ou uma situação familiar que pudesse sustentar a sua
escolha em “ser artista”. No dia da entrevista a musicista
afirma que tinha, há pouco mais de um mês, pedido de-
missão da faculdade em que dava aula. Porque segundo
a artista, toda a sua trajetória é permeada por “essa coisa
de tá com o pé em duas canoas”. E pela primeira vez, em

75
TRABALHADORES DA CULTURA

Abril de 2015, com 52 anos, ela assumiu para si mesma e


para sua família que iria “viver com as coisas da música”.
Em suas palavras: “Agora eu sou uma pessoa totalmen-
te independente, digamos assim. Vivendo só de música”
(Artista 11, 7/5/2015).
No decorrer da entrevista, ela (Artista 11, 7/5/2015)
deixou evidente algumas incompatibilidades que sua vida
como artista lhe impôs. Ela relata que, até bem pouco
tempo, era professora de faculdade, dava aula de canto
no curso de teatro. E por mais que essa atividade estives-
se envolvida com música, tinha “um complicador”, já que
existia um programa a ser seguido, a “rigidez dos horários,
além da preparação... Não é você estar lá só no horário
da aula, né?” (Artista 11, 7/5/2015). Tal configuração foi fi-
cando cada vez mais inviável de administrar com sua vida
enquanto artista. As viagens e os shows que acabavam
tarde da noite complicaram o compromisso de estar na
aula no dia seguinte bem cedo. Mesmo tentando manter
suas atividades com a música e com a faculdade (ela tinha
um coordenador bastante compreensível que lhe permitia
certa flexibilidade quanto às reposições de aula), chegou a
um ponto em que ficou insustentável a conciliação.
A artista (Artista 11, 7/5/2015) revela, então, que co-
meçou a se sentir mal com a ideia de que não estava
fazendo o seu trabalho de forma satisfatória. Nesse mo-
mento, calhou dela ganhar o prêmio Governador do Estado
de São Paulo, um recurso que, até então, ela não pensava
em ter. A cantora explica que “não é uma coisa que ‘agora
vou comprar uma piscina e beber champanhe’. Bem longe
disso. Mas era uma grana para você ter uma reserva con-
seguir segurar por um tempo” (Artista 11, 7/5/2015). Nesse
instante, ela entendeu que era a hora propícia de pedir
demissão “e arriscar” uma situação em que ela até então
não estava acostumada, que é conviver com uma sazona-
lidade. Em suas palavras:

76
TRABALHADORES DA CULTURA

Eu realmente tô num momento... Eu realmen-


te pedi demissão agora, em Abril... Então, ain-
da não sei o que é isso. Eu ainda não sei o que
é viver sem ter um salário que, por menor que
seja, está ali todo dia x do mês. Então, agora eu
vou ter que entender como é isso de você ter
que lidar com a sazonalidade [...] Realmente
agora eu vou aprender a lidar com essa nova
realidade. Mas eu resolvi arriscar porque jus-
tamente do ponto de vista do trabalho com
shows, com gravação, tá rolando bastante... E
aí a minha perspectiva é que isso aumente,
né? Vou trabalhar pra isso. Acho que até a coi-
sa de pedir demissão é pra ter disponibilida-
de pra que os shows e as gravações aumen-
tem cada vez mais. É bem esse momento aí...
(Artista 11, 7/5/2015).

Diante da análise das trajetórias pesquisadas obser-


va-se que os mecanismos que fazem aparecer ou celebrar
“talentos” estão ligados a condições familiares financeiras
e/ou artísticas, assim como raça, gênero, idade, região e
formação. Cada uma dessas condições e suas articulações
informam diferentes dimensões das atividades artísticas.
Como o sociólogo Howard Becker (2006) demonstrou com
simplicidade desconcertante, arte é uma atividade reco-
nhecida, transmitida, apreendida, organizada, celebrada, e,
como toda atividade, obedece a regras, a constrangimentos,
insere-se numa divisão do trabalho, em carreiras profissio-
nais, trajetórias financeiras, políticas de financiamento etc.
A partir dessa premissa, esta pesquisa tratou de
analisar o que é possível apontar como específico e o que
distingue o trabalho artístico das outras formas de traba-
lho. Por trás da criação da ideologia do gênio criador, em
um mercado aparentemente harmônico e ligado a valores
nobres de inventividade e individualidade, escondem-se
aspectos reais de uma carreira. Em outros termos, o ar-
tista é (também) um trabalhador.

77
3 RETRATOS DO MERCADO DE
TRABALHO ARTÍSTICO

O quadro analítico para a elaboração do retrato so-


ciológico do artista é permeado por desafios teóricos e
metodológicos. Qualquer que sejam as especificidades
das práticas artísticas, elas não constituem uma exceção
ao mundo trabalho, mas representam e reconfiguram sua
exterioridade. Embora o trabalho artístico esteja constan-
temente relacionado a uma atividade distante de sua con-
cretude e autonomizado das demais esferas da realidade
social, sua realização prática e objetiva coloca o artista
inserido no mundo do trabalho e de todas as relações que
dele se desdobram. Percebe-se a insuficiência de cons-
truções simbólicas como vocação e dom para dar respos-
ta aos sentidos e organizações das profissões artísticas.
Trata-se da emergência das ciências sociais em analisar
o que vem a ser o trabalho artístico e em quê ele se di-
ferencia das outras formas de atividade. Nesse contexto,
problematiza-se a investigação do trabalho imaterial re-
alizada pelos teóricos do neomarxistas – Antonio Negri,
Maurizio Lazzarato e André Gorz – para incluir pressupos-
to da produtividade, segundo o arcabouço analítico mar-
xiano do trabalho.
Nessa perspectiva, a socióloga do trabalho artístico
no Brasil, Liliana Segnini (2012), considera a arte como um
trabalho e o artista como um trabalhador, e, dessa forma,
integra a atividade artística na esfera do trabalho e dos
constrangimentos que são singulares e que a constituem.
O trabalho artístico se inscreve também (mas não só) na
lógica de mercado e esta vinculação expressa as configu-
rações do próprio momento histórico.

78
TRABALHADORES DA CULTURA

O ofício do artista requer um longo processo


de formação profissional, que não termina ja-
mais. Todo ensaio, todo espetáculo significa,
ao mesmo tempo, trabalho (muito trabalho!)
e aprendizagem. Esta óbvia constatação só
foi por mim realizada, socióloga do trabalho
há mais de trinta anos, recentemente, há dez
anos. Participar da elaboração da CBO 2002 –
Classificação Brasileira de Ocupações, coorde-
nando os comitês compostos por trabalhadores
e ocupados em Artes e Espetáculos, represen-
tou um momento de descoberta e superação
de equivocada percepção de que o artista é um
‘ser iluminado’ que necessita de pouco trabalho
para criar e interpretar (SEGNINI, 2012, p. 49).

Contrariando as compreensões que encerram as ex-


plicações do trabalho artístico em significantes como ge-
nialidade, observa-se que o trabalho para o músico é tido
(também) como processo consciente e racional, ao fim do
qual resulta uma obra como realidade dominada e não –
de modo algum – um estado de pura inspiração. Ao longo
da entrevista, na inserção das subjetividades no contexto
mercadológico, identificou-se que muitas vezes os artis-
tas se sentem “diferenciados” dos outros trabalhadores,
mesmo afirmando condições de precariedade. Falas de au-
tolouvor e de valorização se misturam ao reconhecimen-
to das consequências de processos estruturais. Algumas
narrativas aparecem permeadas pelos discursos de poder
das instituições e da oficialidade, enquanto produto de um
contexto contraditório.

3.1 Condições estruturais

A indústria cultural como conceito surge por meio da


análise de dois fenômenos: o efeito social do surgimento

79
TRABALHADORES DA CULTURA

dos veículos de comunicação de massa, segundo Adorno


e Horkheimer (2002); e os processos mecânicos e a ca-
pacidade de reprodução de produtos culturais, segundo
Benjamin (1994). A dinâmica que indica o avanço da técni-
ca industrial sobre os bens culturais é uma das premissas
essenciais das pesquisas desenvolvidas pelos filósofos de
Frankfurt na década de 1950, a fim de registrar a situação
das artes na sociedade capitalista. A partir da noção de in-
dústria cultural intensificam-se as discussões em torno da
cultura enquanto campo teórico econômico. A emergência
da lógica da produção comercial no âmbito cultural faz com
que os produtos sejam assumidos como mercadorias des-
de o momento da produção e faz parte das mediações que
informam a configuração do trabalho artístico.
O sentido da prática total da formação econômica
e o seu emprego no tempo expressam o momento his-
tórico subjacente à superprodução capitalista, com base
na necessidade estrutural do capitalismo em escoar seus
produtos. Nesse sentido, o escritor francês Guy Debord
(1997) teoriza sobre o fetichismo da mercadoria em sua
categoria quantitativa de sobrevivência aumentada, en-
quanto principal pressuposto do espetáculo. Segundo o
autor (DEBORD, 1997, p. 22), a produção econômica alarga
a sua forma de funcionamento extensiva e intensivamente
até mesmo nos lugares menos industrializados, por meio
de mercadorias-vedetes, entre as quais a cultura assu-
me o posto de destaque. O crescimento das atividades
culturais possibilita então que o seu mercado assuma o
impulso central do desenvolvimento da economia do es-
petáculo, de forma equivalente ao automóvel no século XX
e às ferrovias na segunda metade do século XIX.
A abordagem analítica do trabalho artístico permite
estabelecer relações entre as formas desse tipo de ativi-
dade e a reestruturação do capital no tempo, no sentido
de que o próprio modo de produção de bens e valores no

80
TRABALHADORES DA CULTURA

capitalismo contemporâneo, sua dinâmica de distribuição


e consumo aponta para o movimento de proeminência da
cultura e de suas atividades. A partir do estudo sobre a
acumulação pós-fordista na década de 1970, o geógrafo
britânico David Harvey (2002) explica o uso do termo so-
ciedade pós-industrial para indicar as mudanças na forma
de acumulação do capital. O deslocamento do modelo de
produção e acumulação centrado na rigidez fordista para
o regime fundamentado na maior flexibilidade e comple-
xificação dos processos produtivos assegura a ampliação
das modalidades de trabalho, produtos, serviços e merca-
dos, orientados sob a perspectiva global. Segundo Harvey
(2002, p. 138), as principais características dessa dinâmica
estão basicamente relacionadas ao crescimento de bens
simbólicos e do setor de serviços, acompanhadas do uso
intensivo da tecnologia e da informação, tendo como ve-
tores as noções de inovação e criatividade.
No mesmo sentido de observação quanto à proe-
minência do cultural enquanto reserva disponível para a
produção e a reprodução do capital, o pesquisador George
Yúdice (2006) explica a conveniência da cultura enquanto
recurso. Nos termos do autor (YÚDICE, 2006, p. 62), o pa-
pel da cultura expandiu-se para as esferas econômicas e
políticas, ao mesmo tempo em que absorveu e eliminou
distinções até então prevalecentes nas definições da alta
cultura, da antropologia e da cultura de massa. A projeção
econômica do setor na sociedade contemporânea atribuiu
à cultura um protagonismo maior do que em qualquer
outro momento da história da modernidade, situação em
que se misturam a economização da cultura e/ou cultu-
ralização da economia. Todos estes fatores têm, primeiro,
operado uma transformação naquilo que se entende por
cultura. E, segundo, impresso uma racionalidade econô-
mica, gerencial e administrativa no setor.

81
TRABALHADORES DA CULTURA

A partir das constatações da dimensão econômica


da área cultural, o que tem se convencionado chamar de
cultura junto à UNESCO e diversas nacionalidades está
relacionado às indústrias geradoras de propriedade inte-
lectual (PI). Sua institucionalização junto ao mercado e
à política global tem demandado investimento teórico,
pesquisas e debates no sentido do estabelecimento de
uma genealogia que dê conta da transformação da cultura
em recurso. Surgem conceitos como Economia da cultura,
criativa e do entretenimento. O uso da economia aplicada
e de sua metodologia passa a ser instrumental, empres-
tando os seus alicerces de planejamento e eficácia para
reforçar consecução dos objetivos traçados em termos de
relações de oferta, demanda e consumo cultural. O setor,
tradicionalmente visto como tomador de recursos, mos-
tra agora altos níveis de rentabilidade. A cultura é então
encarada na perspectiva do bom negócio, noção que gera
e atrai cada vez mais investimentos para as indústrias do
entretenimento e chama a atenção do empresariado, ins-
tituições governamentais e bancos internacionais.
Não se trata de analisar nesta pesquisa as catego-
rias de Economia da cultura, criativa e do entretenimen-
to, mas destacar o que tais noções assinalam a respeito
do período contemporâneo e suas consequências para
o trabalho artístico, especialmente no âmbito musical.
Salienta-se a relação entre cultura e economia não ape-
nas como mercadoria, mas enquanto modo de cognição
e organização social associada à retórica de “nova econo-
mia” que se baseia no trabalho cultural e criativo, forte-
mente amparado pelas novas tecnologias da informação
e da comunicação (TICs). Na verdade, a agenda sociopolí-
tica da cultura que inclui a “geração de trabalho e renda”
de uma “classe criativa” conectada a termos como ino-
vação e autonomia é composta de ambiguidades para o

82
TRABALHADORES DA CULTURA

trabalho artístico e faz parte do esforço de compreensão


de como a economia cultural tem funcionado também
enquanto economia política.
A institucionalização da cultura e sua expansão como
fator de desenvolvimento junto às organizações multilate-
rais do porte das agências que compõem o Sistema das
Nações Unidas, assim como a ênfase em sua noção en-
quanto recurso, tem demandado a busca por indicadores
do setor. Registra-se a crescente participação da cultura
na economia mundial e no Produto Interno Bruto (PIB) de
diversos países. De acordo com os dados mundiais, a cul-
tura em sua forma mercadoria estaria expandindo o se-
tor do entretenimento como um dos setores mais lucra-
tivos desse século. O relatório mais recente desenvolvido
pela Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de
uma parceria entre a United Nations Conference on Trade
and Development (UNCTAD) e o Plano das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), com o apoio do Fundo
Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM), in-
titulado “Relatório da Economia Criativa”, destaca a im-
portância da área na economia global, responsável por 10%
do PIB mundial e cuja taxa de crescimento médio anual é
de 14% (UNCTAD, 2010).
No relatório da UNCTAD (2010), poucas vezes a pa-
lavra trabalho apresentou-se de forma relacionada ao ar-
tista ou produtor da cadeia econômica quantificada. Na
maioria das vezes em que a palavra trabalho apareceu foi
vinculada a atividade do próprio relatório e das institui-
ções que o promoveram. O documento faz menções espa-
ças a um “artista criativo”, enquanto “extremidade origina-
dora da cadeia de valor”. Em outra situação o documento
chega a defender a existência de uma “legislação nacional
abrangente” para o artista (sem explicar em quê isso con-
siste), assim como o aumento dos padrões de proteção da

83
TRABALHADORES DA CULTURA

PI enquanto paradigma remuneratório para o “empreen-


dedorismo criativo” (UNCTAD, 2010, p. 86).
Sobre o discurso que procura assegurar a remunera-
ção dos artistas por meio da PI, em sua variante específica
do direito autoral e os que lhe são conexos, concluiu-se
em estudo próprio (CERQUEIRA, 2013) que esses meca-
nismos não fazem parte dos rendimentos dos músicos a
ponto de serem tidos como paradigmas remuneratórios.
Na verdade, o direito autoral, tal como construído, regu-
lamentado e fiscalizado tem servido de extração de lucro
para o capital, consubstanciado na figura dos conglome-
rados do entretenimento. Destaca-se que a consciência,
nesse terreno, sempre foi mais editorial do que propria-
mente autoral. Em outros termos, a razão tutelar do di-
reito do autor não é proteger a criação intelectual, mas
sim, desde o início, proteger os investimentos, ou seja, o
mediador, de forma que há um antagonismo entre os tra-
balhadores/criadores no campo das artes e a apropriação
privada dos mediadores por meio do direito autoral.
Na América Latina também crescem os esforços de
institucionalização da cultura, o número de publicações
que a relaciona com a economia, assim como as iniciati-
vas quantitativas, inclusive com o respaldo de organismos
internacionais6. Da mesma forma, evidencia-se a existên-
cia do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) Cultural que
se configura como rede regional e institucional que traba-
lha para fortalecer os sistemas de informações culturais.
A Argentina assumiu a responsabilidade pela centraliza-
ção e processamento das informações culturais de cada
país. Em 2009, o Observatório de Indústrias Criativas de

6  Entre os acordos internacionais no âmbito da cultura na América Latina


destaca-se o Convênio Andrés Bello, assim como as articulações com a
Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI) e o Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID).

84
TRABALHADORES DA CULTURA

Buenos Aires concluiu que no ano de 2008, o setor cor-


respondeu a 9% do PIB da cidade e 9,5% dos empregos
gerados (UNCTAD, 2010, p. 84). O Sistema de Informação
Cultural do MERCOSUL também serviu de base para a pu-
blicação Nosotros e los Otros: el comercio exterior de bie-
nes culturales en América Del Sur, o qual demonstra um
déficit no saldo do comércio de bens culturais dos países
da América do Sul no contexto do comércio global.
A propósito do desequilíbrio na distribuição da eco-
nomia global da cultura, o antropólogo argentino Néstor
García Canclini (2008, p. 63) relata que os Estados Unidos
da América (EUA) ficam com 55% dos lucros mundiais
gerados pelos bens culturais e comunicacionais; a União
Europeia (UE), com 25%; o Japão e o restante da Ásia,
com 15%, e os países latino-americanos, com 5%. Para
o autor (CANCLINI, 2008, p. 72) a possibilidade de exis-
tência de equilíbrio nas cifras encontra sua inviabilidade
práticas frente às regulamentações da cultura no âmbito
dos organismos comerciais internacionais, caracterizadas
pelo corporativismo, evidenciando a hierarquia do sistema
mundial e as assimetrias entre as sociedades centrais e
periféricas, as quais concorrem igualmente no mercado
global, formando então uma criatividade estandardizada.
Embora o discurso da indústria do entretenimento
incorpore as noções de criatividade no livre mercado glo-
bal, é preciso destacar a divisão deste trabalho do ponto
de vista internacional. Para Yúdice (2006, p. 109) o uso da
força de trabalho latino-americana em sua relação com
o resto do mundo se caracteriza pelo predomínio de em-
presas auxiliares com contratos temporários, submetidas
ao processo de produção controlado de fora. Essa confi-
guração contribuiria para ampliação na base de produção
e criação para grandes indústrias do entretenimento. De
forma análoga à clássica divisão internacional do trabalho,

85
TRABALHADORES DA CULTURA

na produção cultural há uma distinção entre os países que


concentram o acesso tecnológico aos recursos mais avan-
çados e os países com baixa capacidade de participação
nos mercados do entretenimento.
O grande destaque para análise das atividades ar-
tísticas está na pesquisa realizada em 2014 pelo Projeto
Trama: Rede de trabalhadores da cultura e o Observatório
de Políticas Culturais, com o apoio do Conselho de Cultura
chileno, intitulada “O cenário do trabalhador cultural no
Chile”. Segundo o estudo (TRAMA, 2014), a indústria cria-
tiva é uma palavra sugestiva, mas que pouco acrescenta
sobre a situação dos artistas chilenos. Ao mesmo tempo
em que há uma produção cultural crescente no Chile des-
taca-se a precariedade das condições laborais neste tipo
de atividade. 65,7% dos trabalhadores da cultura não con-
tam com qualquer espécie de contrato de trabalho para a
realização das suas atividades. Embora 61,7% dos traba-
lhadores da cultura chilenos tenham título universitário,
esta qualificação não se traduz em suas remunerações,
as quais são incertas e fragmentadas, em um contexto
em que 56,6% dos artistas são tidos como independentes
(TRAMA, 2014, p. 2).
No Brasil, após algumas tentativas de quantifi-
car o setor cultural7, em 2002 a UNESCO, o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Instituto Brasileiro

7  O primeiro estudo no sentido de organizar e sistematizar informações para


a construção de indicadores do setor cultural brasileiro foi realizado ainda
na década de 1988. Por iniciativa do Ministério da Educação e Cultura (MEC),
o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) produziu um inquérito
especial sobre cultura no Brasil, também conhecido como Censo Cultural. O
resultado, contudo, não chegou a ser divulgado por mudanças institucionais
ocorridas à época. Em 1995-1996, o Ministério da Cultura (MinC) contatou o
IBGE sobre a possibilidade de realização de um novo censo cultural, mas a
ideia não teve prosseguimento. Em 1998, a Fundação João Pinheiro realizou
pesquisa, encomendada pelo MinC, cujos resultados indicam que foram
gastos R$ 6,5 bilhões no setor, representando 1% do PIB daquele ano.

86
TRABALHADORES DA CULTURA

de Geografia e Estatística (IBGE) uniram-se em torno da


necessidade de produzir e desenvolver uma base de in-
formações relacionadas ao setor. Essa proposta se con-
cretizou com o acordo de cooperação técnica assinado
em 2004 entre o IBGE e a Secretaria de Políticas Culturais
do Ministério da Cultura (MinC). A terceira e última atuali-
zação da pesquisa, com dados referentes aos anos 2007-
2010, indica que a participação da cultura8 nas atividades
econômicas do país representa 4,5% do PIB, com cresci-
mento médio anual de 6,13%, o que é superior ao aumento
médio do PIB nacional (cerca de 4,3%) (IBGE, 2013, p. 25).
A pesquisa do IBGE em parceira com o MinC (2003,
p. 45.) também aponta que em 2010 quase 8% do total de
empresas no país estava voltada para a produção cultural,
responsáveis por cerca de 4% dos postos de trabalho. A
região Sudeste apresenta a maior participação de traba-
lhadores em atividades culturais na população ocupada. A
próxima missão do MinC no sentido de mensurar os dados
sobre a cultura brasileira era implementar a Conta Satélite
da Cultura, cujos resultados poderiam apontar mais re-
ferências sobre o setor. Os esforços que vinham sendo
realizados quando aos indicadores culturais, contudo, so-
freram forte desmonte com a extinção do MinC em 2016
e, posteriormente, em 2019.

8  Segundo o IBGE (2013, p. 4), a concepção de cultura adotada nessa


pesquisa está relacionada com as atividades econômicas geradoras de bens e
serviços. O setor cultural foi definido de acordo com a referência da UNESCO
sobre as atividades culturais. O ponto de partida do estudo concentrou-
se no levantamento das atividades culturais existentes na Classificação
Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). Optou-se por excluir do âmbito da
atividade cultural as atividades econômicas estritamente ligadas ao turismo,
esporte, meio-ambiente e religião, que compreendem atividades culturais
em alguns países. Consideram-se como atividades econômicas diretamente
relacionadas à cultura as atividades características que são típicas da cultura,
tradicionalmente ligadas às artes. Foram incluídas as atividades de edição
de livros, rádio, televisão, teatro, música, bibliotecas, arquivos, museus e
patrimônio histórico.

87
TRABALHADORES DA CULTURA

Outros muitos estudos são realizados no âmbito


da Economia da cultura, criativa e do entretenimento no
Brasil. O relatório da Federação das Indústrias do Estado
do Rio da Janeiro (FIRJAN) lançou em 2008 um estudo
pioneiro no País: “A Cadeia da Indústria Criativa no Brasil”.
O conceito que norteava as indústrias criativas e que ser-
via como base para a taxonomia das atividades econô-
micas inclui setores como publicidade e arquitetura. O
último estudo atualizado em 2014 estima que a indústria
criativa brasileira avançou 69,8% em termos reais, acima
do avanço de 36,4% do PIB brasileiro nos mesmos dez
anos. Segundo a FIRJAN, a indústria criativa cresceu 90%
em 10 anos (FIRJAN, 2014, p. 23). Curiosamente, a pesqui-
sa da FIRJAN informa ainda:

Os trabalhadores criativos apresentam salá-


rios superiores à média da economia como um
todo, quase três vezes superior ao patamar
nacional. De maneira geral, as profissões cria-
tivas demandam elevado grau de formação,
contribuindo para geração de produtos de alto
valor agregado. Além disso, a meritocracia é
um fator muito valorizado entre a classe cria-
tiva, pois estas privilegiam o trabalho movido
a desafios e estímulos (grifos nossos) (FIRJAN,
2014, p. 32).

Recentemente, o Observatório do Itaú Cultural lan-


çou a primeira plataforma digital do país inteiramente
dedicada à análise de dados da cultura e da economia
criativa. O projeto, desenvolvido em conjunto com o pes-
quisador Leandro Valiati, do Departamento de Economia
e Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, vai fornecer aos visitantes um arsenal de
dados sobre estes setores, em três grandes eixos: empre-
go/empresas, financiamento público e importação e ex-

88
TRABALHADORES DA CULTURA

portação de produtos e serviços. O painel agrega dados


de diferentes fontes oficiais de informação como PNAD
Contínua, RAIS (Ministério da Economia), Pesquisa Anual
de Serviços (PAS – IBGE), Pesquisa Industrial Anual (PIA –
IBGE), Pesquisa Anual de Comércio (PAC – IBGE) e SICONFI
(Sistema de Informações Contábeis e Fiscais do Setor
Público Brasileiro), entre outros repositórios de indicado-
res. No total, o projeto processou aproximadamente 10,4
milhões de dados. Este conjunto gerou 879, 9 mil dados
sobre os setores criativos para consulta dos usuários.
Diante do que foi exposto até aqui, destaca-se a
proeminência, legitimação e conveniência da cultura no
capitalismo contemporâneo enquanto importante recurso
disponível, em diferentes níveis econômicos, de linguagem
simbólica, política e social. Crescem as atividades cultu-
rais e o número de pessoas que trabalham nesse setor no
Brasil e no mundo. Esses dados fazem parte do contexto
em que o trabalho artístico é desenvolvido e contribuem
para a compreensão das suas configurações hoje. A propó-
sito da noção de modernidade de Marshall Berman (1986,
p. 34), o autor destaca que o capitalismo não pode se
desenvolver sem modificar fenomenologicamente, e não
ontologicamente, suas relações de produção. Nesse sen-
tido, a reestruturação produtiva inclui uma visão de “novo
homem” criativo. Esse arquétipo moderno do homem re-
cém-criado expõe uma das dimensões da modernidade
que possibilita a ênfase nas atividades, produtos e servi-
ços culturais, criativos e tecnológicos, no contexto de uma
“nova economia”, hipoteticamente centrada no imaterial.

3.2 Imaterialidade e mito

A questão do trabalho de criação ganha mais per-


tinência ao se considerar a valorização dos meios de co-

89
TRABALHADORES DA CULTURA

nhecimento e de criatividade nas economias capitalistas


modernas, cujo motor de expansão é a inovação incre-
mental. As teorizações sobre a produção contemporânea
estão ancoradas, sobretudo, na relevância de bens sim-
bólicos, o que significa, fundamentalmente, a importân-
cia das dimensões ditas imateriais de acumulação, nas
quais se incluem as atividades relacionadas à arte e à
cultura. O economista político Ladislau Dowbor (2000,
p. 23) toma como ponto de partida o fato de que hoje,
quando se paga um produto, 75% do seu valor corres-
pondem ao design e às estratégias de marketing. Essa
seria a novidade evidenciada pelo escritor estadunidense
Jeremy Rifkin (2005, p. 28) sobre a concepção do que dá
valor aos produtos, ou seja, do que os tornam vendáveis
com o máximo de lucro.
Esse mundo considerado imaterial seria o resultado
de uma especialização da atividade humana que encar-
regaria alguns de desenvolver os conhecimentos e inven-
tar as obras capazes de satisfazer a necessidade de novi-
dade e diversão? Ou informaria um novo paradigma sobre
a criatividade no mundo consubstanciado na expressão
“capitalismo cognitivo”? A análise desse modo de produ-
ção tem intensificado um instrumental teórico que re-
serva lugar privilegiado ao trabalho imaterial. Apesar das
grandes diferenças entre os autores que trabalham com
a ideia da centralidade do trabalho imaterial, todos pare-
cem ter em comum, três proposições básicas. Primeiro,
a noção da imaterialidade desse tipo de trabalho especí-
fico. Depois, a ideia da imensurabilidade desse trabalho,
no sentido de irredutibilidade. Por último, a concepção
de que o trabalho imaterial guardaria um potencial revo-
lucionário imanente, uma vez que ele escaparia à lógica
do capital e estaria fortemente ancorado nas tecnologias
de informação e de comunicação.

90
TRABALHADORES DA CULTURA

A principal corrente que desenvolve a teoria contem-


porânea da centralidade do trabalho imaterial é chamada
neomarxista. Seus mais influentes representantes são os
filósofos Antonio Negri, Maurizio Lazzarato e André Gorz.
Tendo por base teórica o Grundrisse (MARX, 2011) e por
substrato empírico a Terceira Itália9, os neomarxistas par-
tem da premissa da divisão dos três setores da economia
(agricultura, indústria e serviços) para afirmar que a rees-
truturação produtiva teria dado ensejo à prevalência do tipo
específico de trabalho que tem como resultado um serviço
e/ou informação, incompatível com a ortodoxia marxista do
operário taylorista-fordista, na medida em que não produ-
ziria mercadorias tangíveis (GORZ, 2009, p. 16).
Gorz (2009, p. 23) assim define o conceito de ima-
terialidade: “o trabalho do saber vivo não produz nada
materialmente palpável [...] A coisa é perfeitamente evi-
dente nos ofícios artísticos”. Negri e Lazzarato (2001, p.
25), por sua vez, caracterizam o trabalho imaterial como
“aquela atividade criativa ligada à subjetividade”. Do pon-
to de vista de seu conteúdo, afirmam os autores, “o tra-
balho imaterial é o trabalho que produz o conteúdo in-
formacional e cultural da mercadoria”. Para os teóricos,
essa atividade seria autônoma e inovadora, consoante o
entendimento de que socializaria os saberes, contem-
plaria as subjetividades, incentivaria os níveis de coope-
ração e converteria os meios e processos tecnológicos
em proveito da emergente “comunidade comunicacional,
organizativa e relacional” (NEGRI; LAZZARATO, 2001, p.

9  O termo Terceira Itália é empregado para ressaltar especificidades


frente a duas realidades que, classicamente, eram opostas para afirmar o
dualismo econômico e societal italiano. De um lado, o triângulo industrial
tradicional, ao norte. De outro, o Mezzogiorno, região marcadamente agrícola
e subdesenvolvida que compreende o centro-sul e as ilhas. A principal
característica da Terceira Itália está na consagração de pequenas empresas
industriais com processos de trabalho flexíveis e alta capacidade de inovação.

91
TRABALHADORES DA CULTURA

42). De acordo com o contexto teórico do imaterial, o


trabalho artístico seria o principal reino da criatividade e
do tempo livre, área da emancipação e da subjetividade.
A concepção de trabalho imaterial toma corpo a
partir da ideia de sua imensurabilidade em unidades abs-
tratas simples que tem como medida o tempo necessário
para produção. Gorz (2009, p. 29) pontua que o traba-
lho imaterial recorreria a “capacidades heterogêneas”, ou
seja, “sem medida comum”; entre as quais, o julgamen-
to, a intuição, o senso estético e o nível de formação e
de informação. A rigor, essa irredutibilidade do imaterial
acarretaria a crise na teoria do valor de Marx pela dificul-
dade de padronizar e estandardizar a dimensão qualitativa
dessa produção. Quer dizer, a incerteza quanto ao tempo
socialmente necessário à produção imaterial colocaria em
crise as noções clássicas de sobretrabalho e sobrevalor.
Em última análise, por não ser redutível à medida tra-
dicional, sua avaliação pelo capital restaria problemáti-
ca. Finalmente, para os autores neomarxistas, o trabalho
imaterial não se prestaria à apropriação privada e escapa-
ria à lógica do capital.
Essa imensurabilidade do trabalho imaterial, por
sua vez, indicaria, para os neomarxistas, um potencial
revolucionário imanente. Por meio dessa modalidade de
trabalho, a relação do indivíduo com a produção se dá
“em termos de independência com relação ao tempo de
trabalho imposto pelo capital [...] e em termos de autono-
mia com relação à exploração” (LAZZARATO; NEGRI, 2001,
p. 30). Em outro momento, Lazzarato (2001) afirma uma
“radical autonomia” do trabalho imaterial. Na ótica do au-
tor, a crise do valor trabalho daí decorrente é também a
crise do capitalismo (LAZZARATO, 2001, p. 73). Esses auto-
res (GORZ, 2009; NEGRI; LAZZARATO, 2001) acreditam que
graças ao próprio desenvolvimento das forças produtivas

92
TRABALHADORES DA CULTURA

capitalistas, pela primeira vez na história, uma sociedade


livre de produtores pode aparecer com o processo lógi-
co da evolução técnico-econômica. De acordo com essa
perspectiva existiria hoje, pelo menos como tendência,
a possibilidade de existência de atividades desatadas da
produção de mais-valia no interior da sociedade capitalis-
ta, na medida em que o trabalho produtor de mais-valia
seria apenas o trabalho físico-material.
As principais características do imaterial são resu-
midas pelo sociólogo Jean Lojkine (2002, p. 34) em sua
obra Revolução informacional, quando enfatiza que a su-
peração da sociedade mercantil já estaria inscrita no ca-
ráter imaterial da informação, o que a impediria de ser
portadora da forma mercadoria. Nesses termos, a revolu-
ção informacional seria, portanto, o “anúncio e a poten-
cialidade de uma nova civilização, pós-mercantil”. Logo, a
tendência analítica dos neomarxistas apontaria para ideia
de centralidade da imaterialidade, irredutível à mensura-
bilidade e com potencial revolucionário imanente, a partir
de processos de subjetivação. A rigor, segundo a tese da
centralidade do imaterial, as classes sociais se dissolve-
riam no “conjunto das subjetividades produtivas e criati-
vas” da sociedade global.
Em última análise, a teoria da centralidade do ima-
terial (e como tal, da informação e da comunicação) guar-
da relação com as proposições teóricas habermasianas,
acentuadas na atividade comunicativa. Por meio da Teoria
do agir comunicativo, Habermas (2010, p. 78) sublinha que
a linguagem veicula a distinção do homem, sua humani-
zação e integração. O autor (HABERMAS, 2010, p. 93) parte
da concepção dual da sociedade, propondo o seu enten-
dimento como sistema e mundo da vida. O sistema seria
o espaço da economia de mercado planificada, orientada
pelo lucro, calcada na contabilidade, na administração e

93
TRABALHADORES DA CULTURA

na divisão do trabalho e, por isso, portadora da razão ins-


trumental. O mundo da vida, por sua vez, seria o espaço
da racionalidade dos indivíduos mediado pela linguagem e
pela intersubjetividade comunicativa, onde aconteceria o
agir comunicativo que traria em si o momento do entendi-
mento livre de dominação e da integração social.
Não interessa aqui empreender uma análise e uma
crítica sistemática ao pensamento habermasiano, mas sim-
plesmente refletir, primeiro, sobre a semelhança de suas
premissas e a discussão do trabalho imaterial que coloca a
centralidade das tecnologias e da comunicação. E, segundo,
evocar o desafio de, a partir da teoria habermasiana, pen-
sar as relações entre a ação comunicativa e as relações de
poder econômico e político. Em outros termos, Habermas,
assim como os teóricos do imaterial, traz a perspectiva de
que o consenso seria o motor da história por meios dos
processos de comunicação e informação, mas não proble-
matizaria a mediação sistema-mundo da vida.
Por não polemizar as relações de poder na ação
comunicativa, o cientista social Sérgio Lessa (2011, p. 42)
afirma que Habermas partiria de perspectiva excessiva-
mente uniformizante e acabaria preso à concepção clás-
sico-iluminista sobre as possibilidades emancipatória das
instituições sociais, de forma que “suas concepções de
fundo são puramente idealista”. Para Lessa:

Se nos perguntarmos qual o fundamento da


possibilidade de consensos em uma huma-
nidade não apenas dividida em classes, mas
também em países imperialistas e outros mi-
seráveis, a resposta habermasiana é muito
frágil: em última instância pelo fato de termos
por pano de fundo da relação comunicativa um
‘mundo da vida’, definido como ‘espaço trans-
cendental no qual falante e ouvinte se saem
ao encontro’ (LESSA, 2011, p. 77).

94
TRABALHADORES DA CULTURA

Na verdade, a ênfase nas análises dos processos co-


municativos, tecnológicos e informacionais como proces-
sos sociais abstratos acarreta o isolamento dessas ques-
tões da história do desenvolvimento das forças produtivas
e das relações sociais. Nesse sentido, os interessados em
dar uma explicação estritamente técnica esquecem de di-
zer que o terreno no qual a técnica conquista seu poder
sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais
fortes exercem sobre essa sociedade, de forma que a ra-
cionalidade técnica seria a racionalidade da própria domi-
nação. Diante disso, essa dinâmica pode ser examinada a
partir de duas posições extremas. Uma que faz das tec-
nologias o instrumento neutro da sociedade. E outra que
a entende como força que aumentam a produtividade do
capital e não apenas a do trabalho.
Os contrapontos argumentativos aos princípios teó-
ricos e políticos dos neomarxistas não são poucos. O de-
bate acerca da centralidade do trabalho geralmente pade-
ce de fragilidade teórica. Porque nem sempre os autores
falam sobre a mesma dimensão do trabalho. Na verdade,
Marx teria explicado a diferença entre trabalho abstrato10
e trabalho concreto, ao relacionar a categoria universal à
sua particularização histórica. A dimensão concreta levaria
em consideração o caráter ontológico do trabalho, isto é,
o trabalho como momento fundante de realização do ser
social, condição para existência do homem e ponto de par-
tida para a constituição do ser social, intercâmbio metabó-

10  Se o trabalho assume a forma necessariamente assalariada, abstrata,


fetichizada e estranhada, essa dimensão histórico-concreta não pode ser
tomada a-historicamente. A historicidade do trabalho informa a sua dúplice
e contraditória dimensão: o trabalho propriamente livre (trabalho concreto)
e trabalho-labor (trabalho abstrato). Apesar da existência dessa distinção,
o trabalho-labor foi erigido à categoria de trabalho-dever. Sua construção
ideológica se deu desde a concepção como castigo na estrutura greco-romana,
passando pela construção da Idade Média, até a glorificação e consolidação
no sistema capitalista.

95
TRABALHADORES DA CULTURA

lico homem-natureza, sua dimensão qualitativa. O trabalho


abstrato, por sua vez, seria a subversão capitalista da cate-
goria trabalho11, que tem por finalidade imediata a produção
de mais-valia, o que informa que a superação dessa condi-
ção só seria possível em outro sistema econômico.
A desconsideração dessa dupla dimensão presente
no trabalho, que lhe dá complexidade, vem fazendo com
que muitos autores entendam as modificações organiza-
tivas e produtivas, sobretudo tecnológicas, do trabalho
abstrato como expressão da crise e da perda da centrali-
dade do trabalho concreto, ou seja, enquanto perspecti-
va ontológica. Em outros termos, pode-se perceber, com
modificações, como a superestimação do poder da técni-
ca no desenvolvimento histórico comparece com força no
debate contemporâneo do trabalho imaterial e artístico.
As teorias se apoiam, implícita ou explicitamente, na tese
de que o desenvolvimento tecnológico seria o momento
determinante no desenvolvimento das forças produtivas
e, portanto, das relações de produção. Tem-se por pre-
missa a tese segundo a qual a introdução de novas tec-
nologias alteraria o fundamento das relações sociais. Ou
seja, é atribuído significado ontológico às alterações téc-
nicas centradas no imaterial. Lessa (2011, p. 257) entende,
ao contrário, que a técnica está inserida nas condições de
objetividade da história, no sentido de que “o momento
predominante não se localiza na técnica, mas nas rela-
ções sociais que a determinam”.

11  A concepção marxista concebe o homem como ser distinto por ter
capacidade de trabalho, entendido como prática humana criativa, por ser capaz
de interagir com a natureza a ponto de modificá-la e produzir as condições de
sua existência material e intelectual. Em Marx, o trabalho não é algo negativo
para o homem. Pelo contrário, o trabalho é o que torna o homem efetivamente
humano, traz a consciência de si e o diferencia dos outros animais. Constitui
o salto ontológico das formas pré-humanas para o ser social. É o que está,
portanto, no centro da humanização do homem. O capitalismo, contudo,
perverte a noção de trabalho, uma vez que o instrumentaliza para a aquisição
do capital, transformando o trabalho concreto em trabalho abstrato.

96
TRABALHADORES DA CULTURA

Lessa (2011, p. 72) contesta os autores centrados


no imaterial esclarecendo que Marx tinha uma concep-
ção inteiramente distinta: as ideias não seriam ‘imateriais’,
mas partes movidas e moventes de uma nova materiali-
dade, na qual as ideias exercem força material decisiva.
As ideias são parte da porção subjetiva de uma nova ma-
téria consubstanciada fundamentalmente pelo trabalho. A
oposição da qual se trata é entre a subjetividade e a ob-
jetividade do mundo material dos homens, e não entre a
matéria e o imaterial. O mesmo autor (LESSA, 2011, p. 45)
explica, então, que a ideia do imaterial enquanto subjetivi-
dade como alternativa dentro do próprio capitalismo seria
“uma mistura ingênua, do ponto de vista metodológico, de
um empirismo banal com um idealismo mal resolvido”.
Nesse sentido, a questão decisiva é: como, de qual
modo, por quais mediações pode-se constituir a rede de
relações do tipo “novo” no interior do capitalismo? E em
que esfera? Na subjetividade (superação do produtivis-
mo, recusa da ética da acumulação) ou na objetividade
(processo cotidiano centrado na superação da proprie-
dade privada dos meios de produção)? Segundo Lessa
(2011, p. 49), o movimento de “elevação da humanidade”
em novos patamares de desenvolvimento pós-mercantil
que requerem a persuasão de todos os usuários – e não
de classe – e que tem como categoria fundante o “amor
pelo tempo por se construir” seria uma impossibilidade
histórica dentro do capitalismo.
Há diferenças substanciais entre os autores que
levam a cabo a originalidade do debate do trabalho ima-
terial enquanto teoria específica em sua defesa de cen-
tralidade e os postulados marxianos. Marx fornece uma
noção de trabalho imaterial quando menciona duas pos-
sibilidades da produção imaterial, ou duas formas de
existência do resultado da produção imaterial. A primeira

97
TRABALHADORES DA CULTURA

delas é o resultado do trabalho existir separadamente do


produtor direto, podendo circular como qualquer mer-
cadoria no intervalo entre a produção e o consumo, tais
como livros, quadros, e toda produção artística que te-
nha a possibilidade de existência separada da atividade
de seu criador (Marx, 2004, p. 119). Em tais casos, mesmo
que o resultado do trabalho seja imaterial, é necessário
sua incorporação aos elementos materiais gerados por
outros trabalhadores.
Questões referentes ao trabalho imaterial já surgem
na teoria marxiana quando se analisa atentamente os ele-
mentos mais simples do processo de trabalho. A relação
entre a necessidade, a criação de objetos para satisfa-
zer essas necessidades e o ato dessa satisfação já inclui,
implicitamente, temas transversais ao imaterial. É impor-
tante mencionar que tais relações não são temas exclu-
sivos à obra O Capital. Desde Os Manuscritos Econômico-
Filosóficos e A Ideologia Alemã, Marx e Engels analisaram
este ato fundante da existência humana: “o primeiro ato
histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam
a satisfação destas necessidades.” (MARX; ENGELS, 1991,
p. 39). O que seria a produção intelectual, artística e re-
ligiosa, senão a satisfação de necessidades por meio da
produção imaterial? Mesmo antes da complexificação do
trabalho, as dimensões imateriais já existiam dentro do
próprio processo de trabalho material.
Diante disso, críticas à centralidade do trabalho ima-
terial começar a ser realizadas a partir da própria noção
de imaterialidade. O problema mais frequente levantado
é que o trabalho imaterial continuaria incontornavelmen-
te material. Quer dizer, mesmo o trabalho mais imaterial
ou a mercadoria mais simbólica, ainda assim guardam o
seu lastro empírico. Nesse sentido, o sociólogo Ricardo
Antunes (2009, p. 128) explica que “mesmo no trabalho

98
TRABALHADORES DA CULTURA

dotado de maior significado imaterial, o exercício da ativi-


dade subjetiva está constrangido em última instância pela
lógica da forma/mercadoria e sua realização”. Ou seja, o
trabalho assume a forma ativa de subjetividade, desde que
seu objetivo precípuo seja colocá-lo a serviço do capital
e suas necessidades de acumulação. Trabalho imaterial e
material, na imbricação crescente entre ambos, está, por-
tanto, subordinados à lógica de produção de mercadorias
de capital e da acumulação de mais-valia. Por isso, dife-
rentemente do que apregoam os apologistas da mudança,
não se desenvolveu uma sociedade de criação e da cogni-
ção libertada das amarras do produtivismo, ao contrário,
vem ocorrendo um processo de intensificação da explora-
ção em todas as esferas do trabalho humano.
Especificando a discussão no âmbito da produção
musical, Juliana Coli (2006, p. 240) explica que na carac-
terização do trabalho musical, em relação a outros tipos
de trabalho, é produzido um produto imaterial abstrato, o
som. Porém ao converter-se em matéria concreta assume
características mercantis. A autora (COLI, 2006, p. 242)
identifica no trabalho artístico a incidência do processo
geral de subsunção formal do trabalho ao capital. Na aná-
lise do trabalho imaterial, enfatiza-se, portanto, a impor-
tância de se entender a tendência da conversão da impro-
dutividade em produtividade em sua objetividade social. A
produtividade, por sua vez, se caracteriza por ser social-
mente determinada. Nesse sentido, independente de ser
trocado por renda ou capital, ou seja, independente do
nível de relação, direta ou indireta, de produção de mais-
-valia no trabalho imaterial, o mais importante é identi-
ficar as condições objetivas que configuram a tendência
real de sujeição da atividade artística na ordem do capital.
Para a elucidação do presente momento da pro-
dução capitalista, a discussão do trabalho imaterial ne-

99
TRABALHADORES DA CULTURA

cessitaria, portanto, ser incluída na teoria do trabalho


produtivo. Em sua Dissertação de Mestrado, o sociólogo
Vinícius Santos (2012, p. 34) analisa a pertinência da dis-
cussão do trabalho imaterial marxiana (e não neomar-
xiana), a partir de três ordens que enfatizam a produti-
vidade do trabalho. A primeira, a ordem da utilidade. A
segunda, do processo de trabalho na ordem do capital,
ou seja, a subsunção real e formal do trabalho. E, final-
mente, a ordem da exploração da capacidade de trabalho
socialmente combinada. Sua análise destaca a possibi-
lidade do trabalho circular como produtor de mais-valia
no ciclo de valorização do capital. Do ponto de vista do
processo de trabalho, é produtivo aquele trabalho que se
converte em produto, em mercadoria. O capital engendra
uma força produtiva social. Por sua vez, dada as relações
especificamente capitalistas, a força de trabalho social-
mente combinada gera mais-valia.
Dessa forma, embora o artista seja dono da sua voz,
por exemplo, ainda assim, não domina inteiramente as
condições objetivas do seu trabalho, visto que “não basta
ter um controle dos meios de trabalho em sentido estri-
to, é necessário ter o domínio dos meios de trabalho em
sentido amplo, além do objeto sobre o qual se trabalha”
(COLI, 2006, p. 235). Trata-se, pois, de uma espécie de
trabalho que suporta relações sociais contraditórias: en-
quanto possuidor dos meios de produção, o músico po-
derá até ser considerado capitalista, mas, segundo Coli
(2006, p. 235) “um capitalista precário, mais próximo das
condições do trabalhador assalariado de si mesmo ou as-
salariado indireto do capital”. Porque, mesmo como pro-
dutor independente ou autônomo, o trabalhador da arte
é cercado pelas condições de mercado que o colocam
frequentemente na condição de um trabalhador informal,
sujeito a maior exploração, já que muitas vezes o valor da

100
TRABALHADORES DA CULTURA

compra da sua força de trabalho é camuflado pelo “salário


por peça”12.
Por fim, quanto à ideia de imensurabilidade do tra-
balho imaterial, de acordo com o pesquisador Henrique
Amorim (2009, p. 27), Marx realiza a relação de propor-
cionalidade entre horas necessárias à produção e quanti-
dades de mercadorias produzidas. Não obstante, na pro-
blemática teórica de Marx sobre valor-trabalho, não há a
tentativa de determinação do valor como algo essencial-
mente calculável, matematicamente mensurável, aritme-
ticamente previsível. Em Marx, o valor de uma mercadoria
não é o valor incorporado nela individualmente, mas sim o
trabalho social necessário a sua produção. Sob este pres-
suposto, uma mercadoria pode ter seu valor alterado após
sua produção. Marx promove uma diferenciação essen-
cial entre valor de uso (enquanto conteúdo da relação de
determinada produção social) e valor de troca (enquanto
manifestação do valor na esfera da troca). Além do aspec-
to quantitativo que se manifesta nas trocas sob a forma
fenomênica do valor de troca, o valor possui um aspecto
qualitativo. A pergunta que deve ser feita em relação à
teoria do valor nesse contexto é: como o trabalho imate-
rial entra no processo de produção do valor que valoriza
o capital?
As objeções mencionadas à teoria-valor de Marx pe-
los neomarxistas são fruto de uma interpretação quanti-
tativista do valor. A incongruência amplamente percebida

12  A medida do valor é o tempo de trabalho socialmente necessário. A


quantidade materialmente determinada do salário por peça, na verdade, não
serve para medir o valor. Na forma mais comum de assalariamento capitalista,
o salário por tempo, o trabalho é medido por sua duração. Ao contrário, no
salário por peça, o trabalho é medido “pelo quantum de produtos em que o
trabalho se condensa durante determinado período de tempo. [...] O salário por
peça é, portanto, apenas uma forma modificada do salário por tempo” (MARX,
2013, p. 38).

101
TRABALHADORES DA CULTURA

(inclusive pelos marxistas) entre trabalho imaterial e teo-


ria quantitativista do valor, levando em conta o aumento
crescente das atividades imateriais na produção, pode le-
var o assunto a dois caminhos. Nas palavras de Dal Rosso:

O primeiro consiste em supor que a etapa da


teoria do valor está sendo superada pela divi-
são social do trabalho e que é necessário de-
senvolver novas categorias para analisar a luta
de classes. Outro consiste em alargar as tra-
dicionais noções da teoria do valor no senti-
do de incorporar a produção de valor também
em diversas atividades imateriais (DAL ROSSO,
2008, p. 34-35).

Embora as teorizações neomarxistas sobre traba-


lho imaterial informem importantes dimensões da re-
estruturação produtiva e mutabilidades do capitalismo
contemporâneo, pouco acrescenta na análise das condi-
ções de trabalho das atividades artísticas. Primeiro, por-
que a noção de imaterialidade pode estar impressa na
exterioridade dos seus produtos e serviços, mas nada
esclarecem sobre as particularidades da lógica material
de sua realização enquanto mercadoria e sua produtivi-
dade. Segundo, porque a ideia de imensurabilidade desse
tipo de trabalho também nada diz sobre as formas de
remuneração e apropriação desse tipo de trabalho (afinal
o preço é realizado todos os dias e existe trabalho huma-
no não-pago não mensurado nos anos de formação, en-
saios etc.). Terceiro, porque a tecnologia comunicativa e
informacional altera modos de atividades, mas não pode
ser tida como processos sociais abstratos e centrais na
análise do trabalho, uma vez que, por si só, não elucidam
e nem determinam a especificidade do trabalho artístico.
Por isso, a ênfase desta pesquisa recai sobre o esfor-
ço teórico em aprofundar os sentidos do trabalho artístico,

102
TRABALHADORES DA CULTURA

para além das teorias neomarxistas que focam na centrali-


dade do imaterial, mas, sim, a partir do arcabouço analítico
marxiano do trabalho. No âmbito da reestruturação produ-
tiva tal esforço se traduz na tentativa de compreender as
novas estratégias de racionalização do capital que não se
explicam (somente) por seu resultado imaterial, mas por
sua produtividade, reflexo das condições objetivas e ma-
teriais de sua realização. O processo de investigação do
trabalho artístico requer a compreensão da realidade desse
campo, em suas dinâmicas, contradições, estratégias de
envolvimento e dificuldades de identidade e organização.
Trata-se de localizar particularidades e ambiguidades na
valorização, exploração, intensificação e hibridação des-
se tipo de atividade, no contexto do capitalismo contem-
porâneo. Como as ideias de liberdade e autonomia estão
conectadas aos modos hegemônicos de precarização das
sociedades capitalistas ocidentais? Em que medida a sub-
jetivação dessas ideias contribui para a reprodução das re-
lações políticas e econômicas neoliberais?
A propósito desses questionamentos, a editora es-
tadunidense Sarah Grey (2015) narra um interessante fato
para levantar “os mitos da ‘classe freelancer’”. Em uma
situação em que foi convidada por telefone para partici-
par de um “movimento popular” para auxiliar freelancers
(www.itsmybusiness.com) convocado por meio da empre-
sa de direitos Duane Morris, Sarah (2015, p. 1) evidencia
como os freelancers são construídos ideologicamente
como parte da pequena burguesia, ainda que, efetivamen-
te, possam ser a sua parte mais baixa, uma espécie de
“precari-burguesia”. Sarah destaca que a ideia de freelan-
cer (e os artistas estão contemplados nessa designação)
como uma nova classe empreendedora é um dos mitos
centrais do trabalho precário na atualidade, assim como a
“classe criativa”.

103
TRABALHADORES DA CULTURA

Nesse contexto, destaca-se a fala de uma das nos-


sas entrevistadas, para quem a música é diversão apenas
para quem não trabalha com música. “Obviamente, que a
gente se diverte também. Mas para que essa diversão da
gente aconteça, a gente precisa trabalhar muito antes”
(Artista 4, 12/2/2016). Da mesma forma, uma outra narrati-
va sublinha as múltiplas dimensões da sua atividade, en-
quanto diversão e trabalho, “muita disciplina e responsa-
bilidade” (Artista 1, 25/2/2016). Em outra fala, destaca-se
uma questão muito prática da atividade artística: “preciso
pagar as contas no final do mês, mas nem sempre os con-
tratantes lembram disso” (Artista 11, 7/5/2015).

3.3 Facetas da precarização

Conforme sintetizado no pensamento de Menger


(2005, p. 4), nas representações atuais o artista é apre-
sentado como uma encarnação possível do trabalhador do
futuro, a figura do profissional inventivo, móvel, rebelde pe-
rante as hierarquias e intrinsecamente motivado. Como se
o artista exprimisse no presente, com todas as suas ambi-
valências, um ideal possível de trabalho desamarrado dos
constrangimentos econômicos, políticos e sociais. Na tra-
dição de análise que insiste no caráter extra econômico da
atividade artística e que a designa como forma idealmen-
te desejável de trabalho, Menger (2005, p. 49) explica que
Marx concebeu o trabalho artístico enquanto arquétipo do
trabalho livre, modelo de atividade não alienada por meio
da qual o sujeito se realiza na plenitude da sua liberdade,
exprimindo as forças que fazem a essência da humanidade.
Segundo Pierre-Michel Menger (2005, p. 23), a cria-
ção artística ocupa uma posição excepcional nos pri-
meiros escritos de Marx, em particular nos Manuscritos

104
TRABALHADORES DA CULTURA

Econômico-Filosóficos de 1884. Nessa obra, foi elaborada


não uma estética específica, mas uma estética geral que
fez da atividade artística o instrumento de medida de toda
a crítica do trabalho assalariado. Na verdade, Marx não ti-
nha como prever a proeminência das indústrias culturais
e, consequentemente, teorizar sobre a subsunção formal
do trabalho artístico ao capital, embora tenha partido da
premissa da arte enquanto realidade objetiva acerca do
homem concreto que (também) trabalha no marco de
determinadas relações históricas, políticas e sociais. Por
isso, é pertinente se perguntar hoje: como reconhecer a
autonomia de um sistema de inovação ao qual o mercado
se acomodou tão bem que fez dele o seu motor de desen-
volvimento atual?
Atualmente as estatísticas revelam o rápido cres-
cimento do setor das artes e dos espetáculos, tanto do
ponto de vista da oferta, quanto da procura. Emerge em
importância não tanto medir a dimensão quantitativa des-
se setor, senão para perguntar se, diante desse contex-
to, as artes ainda constitui uma esfera diferente na qual
nenhum dos princípios de funcionamento seria compará-
vel aos do mundo da produção. Ou se, pelo contrário, o
desenvolvimento das atividades de criação obedece aos
constrangimentos econômicos e políticos do mundo do
trabalho, embora com ajustamentos. Na síntese dos re-
sultados da pesquisa sobre mercado de trabalho artístico
realizada na França, Menger (2005, p. 18) demonstra que
o trabalho artístico é feito de incertezas, em um mercado
de trabalho caracterizado por dois eixos: hiperflexibilida-
de e precariedade.
A partir da noção de dupla face da incerteza nas ati-
vidades de criação, Menger (2005, p. 8) procura evidenciar
não apenas o lado encantador de realização de si mesmo,

105
TRABALHADORES DA CULTURA

como também o lado da concorrência, das diferenças de


sucesso, bem como das desigualdades que produzem es-
sas diferenças. Sua pesquisa (Menger 2005, p. 170) permi-
te elaborar o seguinte quadro estatístico do grupo profis-
sional formado pelos artistas franceses: no seio da popu-
lação ativa, os artistas são mais jovens, mais qualificados
formalmente, mais concentrados nas metrópoles, conhe-
cem taxas mais elevadas de trabalho independente, as-
sim como de desemprego e de subemprego involuntário,
e são frequentemente pluriativos. Os seus ganhos são em
média inferiores aos ativos da sua categoria de pertença.
E os seus rendimentos são mais variáveis de um período
a outro da sua carreira. As desigualdades interindividuais
são particularmente elevadas.
No mesmo sentido de observação, ao analisar as
configurações do trabalho artístico, Françoise Benhamou
(2007, p. 23) observa que a administração dos riscos, pró-
pria da atividade artística, faz com que este tipo de traba-
lho reúna três características essenciais: descontinuidade,
perspectivas incertas e variações de remuneração. A autora
(BENHAMOU, 2007, p. 37) afirma que o mundo do trabalho
cultural significa alto grau de envolvimento do trabalhador
e de consumo de energia pessoal. Polivalência, versati-
lidade e flexibilidade, critérios apresentados usualmente
como positivos pelo paradigma pós-fordista, significam
mais intensidade, acúmulo de atividades, subjugação do
processo criativo e informalidade. O trabalho cultural é,
então, complementado pela atuação profissional variada,
requisito fundamental para driblar os horários fragmenta-
dos e remuneração nem sempre à altura do desejável, em
um ambiente que não conta com proteção estatal.
Para explicar a organização do trabalho artístico,
Menger (2005, p. 64) elucida que, na história das artes, é

106
TRABALHADORES DA CULTURA

possível perceber a multiplicação das atividades artísticas


num número crescente de especialidades profissionais
complementares e também concorrentes. É o processo
de divisão horizontal (funcional) do trabalho por áreas de
especialização e de jurisdição. Becker (2006), por sua vez,
sublinha que a atividade artística mobiliza múltiplas ca-
tegorias de profissionais ao longo de uma cadeia de coo-
peração sem a qual as obras não seriam nem produzidas,
nem distribuídas, nem comentadas, nem avaliadas, nem
conservadas. As artes e as indústrias do espetáculo, como
todos os setores produtores e consumidores de inova-
ções, suscitam constantemente novos métiers, novas iden-
tidades profissionais e, correlativamente, a redefinição de
fronteiras entre as especialidades existentes.
Essa divisão do trabalho justapõe categorias pro-
fissionais que protegem as relações de interdependência,
passando da cooperação à concorrência e ao conflito, mas
não os situa numa hierarquia direta e organizada. Abre-se
então o grande debate: a diferenciação e a individualiza-
ção são as assinaturas de um processo de autonomiza-
ção da esfera artística, ou, pelo contrário, sinais de sua
decomposição pelas forças dissolventes dos mercados
capitalistas? Como dar conta do projeto de fazer carreira
em atividades atraentes, mas incertas e arriscadas? Nesse
contexto, a liberdade de organizar o trabalho não será, ao
fim e ao cabo, a condição por excelência da realização
artística? A propósito, destaca-se a narrativa de um dos
entrevistados por essa pesquisa:

Geralmente eu faço o meu horário. É mais hu-


mano, eu acho. Porque se você quer come-
çar a trabalhar de meio dia, você começa meio
dia, você não tem que começar as 8h, só que
provavelmente você vai fazer o seu trabalho
até 11h da noite. Então eu acho mais humano

107
TRABALHADORES DA CULTURA

você trabalhar assim, eu acho mais legal essa


profissão. A gente trabalha porque gosta e tra-
balha respeitando a nossa vontade individual.
Não é muito opressivo, né? Que nem um tra-
balho que você tem que pegar as 8h e sair as
18h e se você faltar você é demitido (Artista 7,
14/4/2015).

O capitalismo contemporâneo trata de situar o tra-


balho artístico na dependência de uma gama de saberes
que não se resumem às exigências práticas, mas também
coloca a formação no centro do empreendimento de ra-
cionalização. No entanto, a própria condição de formação
também passa a ser decomposta em vários segmentos
mensuráveis: diplomas, experiências de mobilidade, for-
mação contínua, investimentos pessoais, validação for-
malizada dos saberes adquiridos pela experiência. Trata-
se da aquisição de competências comportamentais, de
saberes e de savoir-faire em situação de aprendizagem per-
manente. É por meio da polivalência das competências
que Menger (2005, p. 34) explica o continuum de formação
do trabalho artístico hoje. Assim, a noção de competência
apresenta, também ela, mudanças, que vai conquistando
outras instâncias de consagração, além das tradicional-
mente exigidas.
Nesse contexto, o modo com que ao artista tenta
gerir a incerteza, característica típica das suas atividades,
é multiplicando e diversificando as formas de realização
do seu ofício. No resumo do Menger:

Ora quais são as formas de emprego através


das quais o artista oferece o seu trabalho? O
auto-emprego, o freelancing, e as diversas for-
mas atípicas de trabalho – trabalho intermi-
tente, trabalho a tempo parcial, multi-assala-
riado – constituem as formas dominantes de

108
TRABALHADORES DA CULTURA

organização do trabalho nas artes, e têm como


efeito introduzir nas situações individuais de
actividade a descontinuidade, as alternâncias
de períodos de trabalho, de desemprego, de
procura de actividade, de gestão de redes de
inter-conhecimento e de sociabilidade forne-
cedoras de informações e de compromissos,
e de multi-actividades na e/ou fora da esfera
artística (MENGER, 2005, p. 18).

Finalmente, a tendência para a substituição do em-


prego pelo projeto é uma das características da nova con-
figuração do trabalho artístico. Segundo Menger (2005, p.
86) é possível retirar dessa tendência uma ilusória con-
clusão sobre a crescente independência nas atividades
artísticas: funcionando como uma pequena empresa, en-
volvido diretamente na realização do seu projeto, o artis-
ta ficará em condições de melhor realizar e proteger os
seus interesses. Operando individualmente, em freelancer
e/ou em rede, associações e parcerias, os artistas entram,
então, na corrida dos “precários de luxo”. Nesse sentido,
as ambiguidades presentes nessa configuração de ativi-
dade, enquanto representação ainda maior de autono-
mia e liberdade, acentuam as práticas de flexibilidade. A
produção independente não apenas estaria incluída em
uma lógica mercadológica e neoliberal de política cultural,
como é a expressão paradigmática de uma inclusão ainda
mais subsidiária, cooperada, especializada e precarizada
no mercado cultural.
Diante das análises sobre trabalho artístico é pos-
sível identificar, tanto as seduções da independência no
mercado de trabalho não tradicional (valorização da au-
tonomia, da responsabilidade, da criatividade), quanto as
ameaças da efemeridade dessa atividade (banalização
remuneratória e respectivos riscos), em um ambiente de

109
TRABALHADORES DA CULTURA

grande fragmentação do trabalho e de variabilidade das


competências exigidas. Por um lado, a atividade artística
assenta-se no alto grau de envolvimento dos meios pes-
soais (esforço, energia, conhecimento) e coletivos (equi-
pamentos, financiamentos, trocas entre pares). Por outro
lado, os meios de criatividade não podem ser mobiliza-
dos a não ser por meio de uma intensidade de esforço e
motivação. Nesse contexto, é preciso destacar, ainda, um
conjunto de gratificações não monetárias – gratificações
psicológicas e sociais, fraca rotinização de tarefas, etc.
– que promete compensar provisória ou duradouramente
ganhos insuficientes em dinheiro.
No Brasil, não há lei trabalhista que regulamente
o trabalho artístico e nem proteção social e previden-
ciária especial. A Lei nº 6.533/1978 que dispõe sobre a
regulamentação das profissões de Artista e de Técnico
em Espetáculos de Diversões, define o artista enquanto
o profissional “que cria, interpreta ou executa obra de
caráter cultural de qualquer natureza, para efeito de exi-
bição ou divulgação pública, através de meios de comu-
nicação de massa ou em locais onde se realizam espe-
táculos de diversão pública” (BRASIL, Lei nº 6.533, 1978),
e prevê a obrigatoriedade de sua inscrição no Ministério
do Trabalho, assim como registro na Delegacia Regional
do Trabalho. Embora a legislação não trate o artista en-
quanto trabalhador, consigna importantes normas para
o contrato de trabalho, além de prever, genericamente,
que se aplicam aos Artistas e Técnicos em Espetáculos
de Diversões as normas da legislação do trabalho.
No âmbito da música, a Lei nº 3.857/1960 cria a
Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) – órgão que em tese
defende, fiscaliza e representa “o exercício profissional
de músicos de todos os gêneros e especialidades” - e é
a única regulamentação existente para categoria artística

110
TRABALHADORES DA CULTURA

musical. A legislação prevê importantes regras, como a


limitação da jornada de trabalho (que não deverá exceder
5 horas) e o tempo que deve ser computado para fins de
remuneração dos músicos, o qual deve incorporar a du-
ração dos ensaios (BRASIL, Lei nº 3.857, 1960). A Portaria
nº 3.347/1986, por sua vez, estabelece regras à contrata-
ção de músicos, instituindo a Nota Contratual como ins-
trumento para negócios eventuais ou de curta duração.
Finalmente, alguns sindicatos (entre eles, o Sindicato dos
Músicos do Rio de Janeiro) têm elaborado tabelas de valo-
res como referências para o pagamento de artistas.
A composição geral das ocupações que consti-
tuem o mercado de trabalho artístico é descrita na ru-
brica “Profissionais dos espetáculos e das artes” pela
Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Na identifica-
ção do Ministério do Trabalho e Emprego no Brasil (MTE),
por sua vez, os artistas se inscrevem no Grande Grupo
dos “Profissionais das ciências e das artes”, subdividido
no Subgrupo de “Comunicadores, artistas e religiosos” e
“Profissionais dos espetáculos e das artes”. Neste último
Subgrupo registram-se outras ocupações, entre as quais
os “Produtores de espetáculos”; os “Músicos composito-
res, arranjadores, regentes e musicólogos”; e os “Músicos
intérpretes” (MTE/CBO, 2002).
Liliana Segnini (2009, p. 20) analisa as especifici-
dades dos Profissionais dos espetáculos e das artes no
Brasil, a partir da permanente expansão desse grupo, o
qual apresenta crescimento superior em relação aos ocu-
pados no mercado de trabalho total no país. Segundo a
autora (SEGNINI, 2009, p. 21), enquanto a população ocu-
pada cresceu 16% entre 1992 e 2001, o grupo de ocupações
dos Profissionais dos espetáculos e das artes registrou
um aumento de 67% no mesmo período. Esses dados são
confirmados quando considerado o período mais recente

111
TRABALHADORES DA CULTURA

entre 2003 e 2011, no qual a população ocupada apresen-


tou crescimento de 17% enquanto os inscritos no grupo
referido registraram crescimento de 22% (SEGNINI, 2012,
p. 45). No universo das ocupações artísticas, os músicos
representam o maior crescimento observado no período
de 1992 a 2001: 231%. Esses dados informam que os músi-
cos constituem 51% dos profissionais agrupados na rubri-
ca dos Profissionais dos espetáculos e das artes (SEGNINI,
2009, p. 21).
Diante da evidência de que cada vez mais as pes-
soas se ocupam do trabalho artístico, cumpre interrogar
sobre os aspectos qualitativos desse mercado de traba-
lho, representados nas condições de realização desse tipo
de atividade. Nesse sentido, Segnini (2012, p. 148) destaca
que, enquanto o trabalho com registro em carteira, con-
siderado formal, compreendia 46% (42.923.215) do total
dos trabalhadores ocupados no país (93.493.067) em 2011,
no grupo “profissionais dos espetáculos e das artes”, essa
percentagem é drasticamente reduzida para 8% (57.845)
(IBGE/PNAD, 2013). Os números reiteram, de forma ain-
da mais intensa, a situação ocupacional dos músicos:
somente 4% (5.661) têm acesso a esse tipo de contrato;
além disso, 24% (30.841) se declaram “sem carteira”, e 70%
(88.887), “por conta própria”.
Nos dados trazidos até aqui é possível concluir, por
um lado, o acelerado crescimento do número de artistas
comparado com o mercado de trabalho no país e, por ou-
tro, o reduzido índice de trabalho formal nessa esfera de
ocupação. A informalidade e a incerteza que caracterizam
o setor, por sua vez, são traduzidas na predominância da
flexibilidade, a qual se converte em uma dinâmica de pre-
carização das mais diversas formas de trabalho. Nas duas
bases de dados que permitem uma referência ao trabalho
artístico no Brasil (IBGE/PNAD e MTE/RAIS) os trabalha-

112
TRABALHADORES DA CULTURA

dores das artes e dos espetáculos representam um gru-


po cujas condições de trabalho são predominantemente
informais, autônomas e flexíveis, composto majoritaria-
mente por homens (com exceção da dança), brancos, com
faixa etária entre 25 e 39 anos, elevado índice de esco-
laridade quando comparados com os ocupados no país,
remunerações baixas e instáveis, além de uma reduzida
participação em instituições sindicais (84% não partici-
pam) e previdenciárias (78% não contribuem) (SEGNINI,
2014, p. 89).
Analisando a condição do artista enquanto traba-
lhador é possível ler muitas das tendências do novo espí-
rito do capitalismo. Em pesquisa com 39 músicos finalis-
tas do Programa Rumos Itaú Cultural 2007/2009, Liliana
Segnini (2009, p. 32) reitera os dados produzidos pelas
estatísticas nacionais no setor do trabalho artístico. A
autora (SEGNINI, 2009, p. 8) destaca a predominância dos
músicos premiados na região Sudeste do país (sobretudo
São Paulo e Rio de Janeiro), o que pode ser explicado na
ênfase dessa região no número de profissionais da mú-
sica, de vagas no ensino superior em instituições públi-
cas, de editais e de verbas captadas por meio das leis de
incentivo. Salários estáveis e direitos vinculados ao tra-
balho, por sua vez, foram condições vividas por apenas
quatro entre os 39 músicos entrevistados pela pesqui-
sadora. Todos os entrevistados por Segnini (2009, p. 33)
reconhecem o campo de trabalho como flexível, compe-
titivo, difícil, mas apaixonante.
Nesse contexto de heterogeneidade do trabalho ar-
tístico, Juliana Coli (2006, p. 159) esclarece que o diploma
representado pela educação formal, embora importante
na lógica da racionalização do capitalismo contemporâneo,
não é elemento decisivo para que o músico atue no mer-
cado de trabalho, assim como não garante o seu sucesso

113
TRABALHADORES DA CULTURA

profissional. Com isso, as credenciais de legitimidade do


quadro sociológico do artista são substituídas pela lógica
do status, das relações no campo artístico, do prestígio e
da autoimagem. O alto grau de fragmentação do trabalho
artístico em diversas atividades leva, por sua vez, a uma
não identidade profissional ou de fragmento de classe no
âmbito dos trabalhadores dos espetáculos e das artes.
No mercado de trabalho musical tanto no Brasil
como no exterior, a docência no ensino superior públi-
co e o trabalho em orquestras constituem as principais
possibilidades de trabalho formal para o artista da mú-
sica. Philippe Coulangeon (2004, p. 3), sociólogo e pes-
quisador na área do trabalho artístico musical na França,
reafirma essa questão ao analisar as figuras típicas da
profissão de músico: os permanentes e os intermitentes
de espetáculo.

Hoje, o conjunto das profissões relacionadas


ao espetáculo vivo e ao audiovisual está sub-
metido ao reino das formas atípicas de em-
prego salarial. Todavia, o emprego permanen-
te, globalmente residual no conjunto dessas
profissões, atinge em torno de 5% dos músi-
cos intérpretes, quando se consideram apenas
os músicos de orquestra, e até 13% quando
se incluem músicos titulares de um emprego
estável no ensino. Essa porcentagem minori-
tária, mas não sem importância, de perma-
nentes distingue particularmente comedian-
tes, outra grande categoria de artistas intér-
pretes, para a qual essa categoria de emprego
desapareceu praticamente, com exceção da
Comédie Française. Desse modo, a distinção
de duas figuras profissionais perpassa a pro-
fissão de músico intérprete, a de permanen-
te de orquestra e a de freelancer intermitente
(COULANGEON, 2004, p. 5).

114
TRABALHADORES DA CULTURA

Desde o início dos anos 1990, o Brasil vive uma re-


dução sistemática dos postos formais de trabalho para o
artista da música. O ideário neoliberal na gestão cultural
vem realizando, por meio da reestruturação produtiva, a
redução do papel do Estado e o fortalecimento das parce-
rias público-privadas no âmbito das orquestras, cuja lógi-
ca tem operado na supressão de diversos direitos vincula-
dos aos contratos de trabalho dos músicos. A pesquisa de
Juliana Coli (2006) sobre o trabalho dos músicos no Theatro
Municipal de São Paulo constitui um exemplo significativo
desse contexto. A autora (COLI, 2006, p. 45) elucida que os
músicos da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo
(OSESP) são contratados na condição de prestadores de
serviços temporários, situação extremamente instável de
trabalho e que faz com que 80% dos contratos de trabalho
dos músicos sejam renovados (ou não) a cada seis meses,
dentro de um período de 11 meses por ano (durante o mês
de janeiro os músicos não recebem salários).
No mesmo âmbito de observação do trabalho ar-
tístico formal, a pesquisadora Dilma Pichoneri (2011) ana-
lisa o processo de reestruturação da Orquestra Sinfônica
Municipal (OSM) do Estado de São Paulo, a qual durante
muito tempo representou a conquista direitos sociais rela-
cionados ao trabalho dos músicos. Pichoneri (2011, p. 156)
destaca que, para o conjunto de músicos-trabalhadores
da Orquestra, as mudanças recentes resultantes da rees-
truturação têm significado diminuição dos postos formais
de trabalho, aumento das formas precárias e flexíveis de
emprego e diminuição dos direitos vinculados ao exercí-
cio do trabalho. As implicações desses processos para os
sujeitos neles envolvidos cruzam os seguintes caminhos:
trabalhadores flexíveis, processos de individualização que
resultam em diminuição de direitos, crescente instabili-
dade, insegurança e medo em relação ao futuro.

115
TRABALHADORES DA CULTURA

Fora dos circuitos historicamente formais de tra-


balho, o cenário contextual do trabalho artístico é ainda
mais precário e, por excelência, flexível, seja em termos
do conteúdo do trabalho, seja em termos de locais, horá-
rios e contratos. Menger (2005, p. 34) caracteriza, então, o
campo de atividade artística, como “laboratório de flexibi-
lidade”, o qual se desdobra no alto grau de heterogeneida-
de. Nesse sentido, Segnini (2012, p. 59) elucida que, entre
as várias formas que os músicos encontram para “dar um
jeito” e continuar na profissão, é possível destacar a do-
cência particular, o trabalho cooperado e associado, a re-
alização de outros tipos de trabalho não diretamente re-
lacionados à música, além do “tornar-se produtores” por
meio do domínio das regras das leis de incentivo à cultura.
Na lógica da produção por projetos, Menger (2005,
p. 45) destaca, ainda, a demanda constante na reorga-
nização dos fatores de produção, de forma a mapear e
recrutar o profissional de maneira rápida, por meio de
redes de conhecimento, pelas quais são identificados os
melhores artistas para cada espetáculo, para responder
a cada edital, de acordo com diferentes possibilidades
de remuneração. Observa-se, pois, a diferenciação hori-
zontal de competências na multiplicidade de elos con-
tratuais temporários com profissionais autônomos cons-
tituindo equipes que se juntam ou se separam de acordo
com as circunstâncias. O autor (MENGER, 2005, p. 45)
aponta, então, a existência de um “exército artístico de
reserva altamente qualificado”, enquanto pré-condição
para a manutenção dessa forma de organização.
Finalmente, Segnini (2009, p. 51) esclarece que no
mercado de trabalho dos espetáculos e da arte, a parti-
cipação dos homens é superior à das mulheres tanto no
interior do próprio grupo – 69,8% – como na comparação
com os ocupados no mercado de trabalho no Brasil –

116
TRABALHADORES DA CULTURA

58%. No âmbito da música, em 1992, entre 50.839 músi-


cos, somente 5% eram mulheres. Em 2006, 14 anos de-
pois, as musicistas representaram 18% dos ocupados que
se declaram músicos. Portanto, na composição do gru-
po ocupacional observado, é possível perceber a intensa
participação dos homens, apesar do recente crescimento
do número de mulheres. Segundo Segnini (2014, p. 83),
a implicação dessa forma social de divisão do trabalho
entre homens e mulheres é percebida por meio de dois
princípios organizadores: o de separação e o de hierar-
quia. Além das mulheres participarem menos do merca-
do de trabalho artístico, é possível assinalar que existem
atividades consideradas masculinas (instrumentistas)
e femininas (interpretação e canto), e que as primeiras
valem mais que as segundas, em termos econômicos e
também simbólico.
Indo ainda mais fundo das relações sociais do tra-
balho artístico, Segnini (2014, p. 84) analisa as consubs-
tancialidades de classe, gênero e raça, tendo em vista es-
pecificamente o grupo dos profissionais da música. Sua
pesquisa informam diferenças quando se considera o lu-
gar que ocupam as trajetórias de homens e mulheres nas
formas de vivenciar o campo artístico, seja no trabalho
com vínculos duradouros e formais (orquestras/corpos
estáveis e docência), seja no trabalho intermitente (traba-
lho artístico de curta duração, financiado por meio de pro-
jetos, editais, cachês e outras formas). Em suma, a análise
de Segnini (2014, p. 84) permite afirmar que o mundo da
música é um espaço de homens brancos e, o dos solistas
nas orquestras, por exemplo, de homens brancos que per-
tencem a uma elite econômica e social.
No intuito conhecer a processualidade das relações
de trabalho musical em um contexto ainda mais tenden-
te a precarização, a pesquisadora Luciana Requião (2008)

117
TRABALHADORES DA CULTURA

realizou estudo de campo com 80 músicos nas casas


de show do bairro da Lapa, na cidade do Rio de Janeiro.
Segundo a pesquisa (REQUIÃO, 2008, p. 29), os contra-
tos informais ou “de boca” são os mais recorrentes nesse
meio. Somente eventualmente os músicos são pagos por
nota contratual, que seria a configuração legal de contra-
tação estabelecida. A forma de pagamento predominante
encontrada foi o couvert artístico, segundo o argumento
da “parceria” entre dono da casa do show e o músico. A
porcentagem paga aos artistas é variável de acordo com
critérios do contratante (40 a 70% do preço cobrado ao
público a título de couvert). Embora possa ser caracteri-
zado vínculo trabalhista na maioria dos casos estudados
por Requião, a totalidade dos músicos entrevistados tra-
balha sem vínculo empregatício formalizado, e não há fis-
calização nesse tipo de atividade. No entanto, e de forma
geral, a informalidade dessas relações não é vista como
fator negativo, uma vez que o pagamento de impostos ou
contribuições que ocorre quando as relações são forma-
lizadas baixaria ainda mais a remuneração dos músicos.
A precarização das condições de trabalho do mú-
sico passa, além da informalidade e da flexibilidade, pelo
trabalho não pago. A pesquisa de Requião (2008, p. 34)
elucida que não são contabilizadas as horas de ensaio
e as horas em que os músicos ficam disponíveis para o
empregador, para fins de cálculo da remuneração pelo
trabalho realizado. Na verdade, o modo de produção ca-
pitalista, que tem como característica a absorção de tra-
balho não pago, se utiliza do processo histórico que feti-
chiza o trabalho artístico de forma a delimitar o trabalho
musical apenas ao momento da apresentação. No caso
das apresentações ao vivo ainda é preciso considerar a
passagem de som, momento em que o músico fica à dis-
posição do técnico que irá operar os equipamentos do

118
TRABALHADORES DA CULTURA

show. Todo esse processo de trabalho não é computado


para fins de composição salarial, o que significa horas de
trabalho não remuneradas.
Ao contrário do que acontece com a música clás-
sica e instrumental, da totalidade dos entrevistados pela
pesquisa de Requião (2008, p. 23), apenas 30% realizaram
algum curso superior, o que está diretamente relaciona-
do à renda familiar desses trabalhadores. Classes sociais
mais elevadas têm mais tempo dedicado à formação e
planejam possuir algum meio de produção como escola
de música, estúdio de gravação e equipamentos eletrô-
nicos. Os músicos de fragmentos de classes sociais mais
baixas têm trajetória de formação profissional mais irre-
gular, uma vez que o investimento financeiro para forma-
ção profissional na área da música é considerado alto em
relação à compra de instrumentos, acessórios, material
didático e transporte.
Finalmente, o estudo de Luciana Requião (2008, p.
77) também confirma a intensificação, flexibilização e he-
terogeneidade do trabalho no campo da música. A autora
observou que a rotina de trabalho dos músicos pesqui-
sados ultrapassa 40 horas semanais, levando em conta
as horas de estudo, ensaio e a apresentação de show. A
totalidade dos músicos entrevistados por Requião exerce
mais de uma função em suas atividades profissionais na
área da música. Entre essas atividades estão as de ins-
trumentista, cantor, professor de música, copista, técnico
de som, regente, arranjador e compositor. Cerca de 1/4
dos músicos entrevistados exerce também atividade pro-
fissional em outras áreas não diretamente relacionadas à
música, como locutor, professor e vendedor de produtos
de diversas naturezas.
Por fim, evidencia-se cada vez mais nas grandes ci-
dades brasileiras a presença de artistas na rua. Em pes-

119
TRABALHADORES DA CULTURA

quisa produzida por Celso Henrique Gomes (1998) sobre


músicos na rua em Porto Alegre, elucida-se as configu-
rações de um espaço ainda mais flexível, instável e pre-
cário de trabalho em que a remuneração é garantida por
meio de doações espontâneas. Em São Paulo, um estu-
do realizado por meio do Instituto de Pesquisa, Estudos
Capacitação em Turismo (IPETURIS), fez um levantamen-
to de artistas que realizam suas atividades nas ruas das
regiões da Paulista, Centro e Rua Teodoro Sampaio/Praça
Bento Calixto. Nessa pesquisa (SÃO PAULO TURISMO,
2014), foram aplicados questionários para uma amostra
de 104 artistas e 20 grupos de artistas de/na rua. Os re-
sultados confirmaram de forma ainda mais acentuada os
dados trazidos até aqui.
A pesquisa da IPETURIS destaca que a maioria dos
artistas que atuam na rua são do gênero masculino (88%),
realizam outras ocupações (62% são autônomo), estão na
faixa de 21 a 31 anos (36%) e realizam atividades na rua de
há pelo menos um ano (35%), com motivação principal de
fonte de renda. A maior parte conta com grau de escola-
ridade até o ensino fundamental (40%) e do total dos ar-
tistas que atuam nas ruas, a maioria (61%) está realizando
atividades musicais (SÃO PAULO TURISMO, 2014)13.
Diante dos estudos que procuram entender os para-
doxos da atividade artística enquanto realização de um tra-
balho e exercício de uma profissão é possível perceber que,
menos do que qualquer outro campo de atividade, o campo
de invenção criadora não é uma exceção às leis do mundo

13  Em São Paulo a Lei Municipal nº 15.776/2013 e o Decreto nº 55.140/2014


regulamentam a atuação dos artistas de/na rua e especifica algumas regras,
como limitações espaciais, autorizações prévias para estruturas de palco,
níveis de ruído, necessidade de cadastro municipal dos artistas de/na rua e
duração das apresentações (as quais não devem ultrapassar 4 horas). Por fim,
o mapeamento dos artistas na de/rua em São Paulo é realizado por meio da
plataforma online <http://www.artistasnarua.com.br/>.

120
TRABALHADORES DA CULTURA

político-econômico, nem aos jogos estratégicos dos ato-


res sociais. Na verdade, as análises sobre trabalho artístico
representam e reconfiguram com mais intensidade muitas
das ambiguidades presentes no mundo do trabalho con-
temporâneo. Em um contexto de proeminência das ativida-
des culturais e da lógica neoliberal (o mercado determina
não só o preço como as formas de contrato, de pagamen-
to e as condições de trabalho artístico) as especificida-
des desse tipo de atividade, frequentemente relacionadas
a termos como criatividade e autonomia, se traduzem em
protótipos de flexibilidade, polivalência, insegurança, hete-
rogeneidade, individualização e precariedade.
Esse “laboratório de flexibilidade” (MENGER, 2005,
p. 12) em uma economia política das incertezas faz com
que a esfera das ocupações artísticas desenvolva as mais
variadas formas flexíveis de trabalho e hibridações de ati-
vidades no capitalismo atual. Esses destaques apontam
para a ironia evidenciada por Menger:

Não só as actividades de criação artística dei-


xaram de ser a face oposta do trabalho, como
elas são cada vez mais assumidas como a
expressão mais avançada dos novos modos
de produção e das novas relações engendra-
das pelas mutações recentes do capitalismo.
Longe das representações românticas, con-
testatórias ou subversivas do artista, seria
agora necessário olhar para o criador como
uma figura exemplar do novo trabalhador, fi-
gura através da qual se lêem transformações
tão decisivas como a fragmentação salarial, a
crescente influência dos profissionais autó-
nomos, a amplitude e as condições das desi-
gualdades contemporâneas, a medida e a ava-
liação das competências ou ainda a individu-
alização das relações de emprego (MENGER,
2005, p. 22).

121
TRABALHADORES DA CULTURA

O paradigma da “classe criativa” e empreendedora


constitui um modelo hegemônico em que noções como
sujeito criativo, autonomia e independência se reconceitu-
alizam sob a lógica do livre mercado, em um cenário cons-
truído por paródias em que a liberdade do indivíduo opera
novos modelos de dominação e exploração. O significado
dessas configurações e suas contradições nesta pesqui-
sa podem ser observadas por meio da seguinte pergunta
feita aos artistas entrevistados: Como viver de música?
A partir das narrativas emergidas foi possível estabelecer
muitos paralelos com as facetas da precarização obser-
vadas nos estudos descritos pelo(a)s pesquisadore(a)s do
Brasil e do mundo.

122
4 ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO E
MODELOS DE NEGÓCIOS

No universo da indústria do entretenimento, a músi-


ca emerge enquanto expressão da mundialização, capita-
lização e inovação tecnológica, colocando em evidência a
organização do trabalho, em um mercado historicamente
concentrado. Desde a criação das tecnologias de gravação
e reprodução sonora, a história da economia da música é
fortemente influenciada pela evolução dos sistemas téc-
nicos, os quais, ao mesmo tempo em que criam novas
vias de acesso à música, influenciam as práticas dos ato-
res envolvidos nessa cadeia. Enquanto economia de modo
mediado pela tecnologia, a indústria da música passa por
constantes reestruturações. Se a tecnologia foi o trunfo
da indústria fonográfica na reestruturação da sua produ-
ção que impulsionou os primeiros circuitos conceituados
como independentes no Brasil, a partir dos anos 2000
essa mesma tecnologia trouxe dificuldades para as gran-
des gravadoras em continuar a sua estratégia de atuação
de concentração, desta vez na distribuição.
O desenvolvimento da técnica estimulou a criação
de tecnologias digitais, como o formato MP3 e os softwa-
res de trocas de arquivos via internet, os quais trouxe-
ram como consequência a crise de formatos físicos. Pela
primeira vez na história da música o avanço e o desen-
volvimento tecnológico não emergem dentro dos limites
diretos da indústria fonográfica. As primeiras respostas
da indústria giram em torno da repressão, da intermedia-
ção e da concentração, cujo modelo de negócio é baseado
no acesso. Para os artistas independentes, ampliam-se
as possibilidades de distribuição e promoção via internet,

123
TRABALHADORES DA CULTURA

contudo, reitera-se a importância dos meios tradicionais


de comunicação (rádio e TV), além de reconfigurar a rela-
ção entre produtor e consumidor. Nesse contexto, o mer-
cado ainda permanece concentrado em poucas empresas,
mas novas brechas se abrem e se alargam para a atuação
dos músicos considerados independentes.

4.1 Distribuição

Por meio das formas de compartilhamento de mú-


sicas virtuais e das cópias não autorizadas, o mercado
fonográfico mundial e brasileiro experimenta novas for-
mas de consumo e distribuição de músicas nos primeiros
anos da década de 2000, cujo primeiro impacto é a crise
do mercado de discos físicos associado às grandes grava-
doras. A expansão das reproduções não autorizadas tem
preocupado a grande indústria, sobretudo, porque poten-
cializa a flexibilidade não apenas da produção, mas da
distribuição, historicamente oligopolizada. Frente à disse-
minação da partilha de músicas à revelia da intermediação
das majors, a primeira solução da indústria vem na forma
do combate e perseguição legal, civil e criminal. Primeiro
contra os provedores de serviços de compartilhamento de
arquivos peer to peer (P2P) e software; depois contra os
usuários que compartilham arquivos – aplicando medidas
técnicas de proteção14 e realizando campanhas educacio-
nais do tipo “piratas são criminosos”.
Além da repressão às cópias não autorizadas, a
concentração sob a forma de conglomerados do entrete-

14  Entre as ações de combate às cópias não autorizadas destaca-se o


Digital Rights Management (DRM). O DRM é também conhecido como trava
tecnológica e pode ser instalado em hardwares ou mesmo na mídia física
e se utiliza de um código que criptografa os dados da mídia impedindo a
realização de cópias.

124
TRABALHADORES DA CULTURA

nimento tem sido mais uma resposta das majors enquan-


to estratégia de atuação no mercado cultural e da comu-
nicação. As grandes empresas têm procurado se agrupar,
de forma a viabilizar o crossmedia ou marketing 360 graus,
caracterizado pela distribuição de serviços e produtos em
diferentes mídias existentes no mundo digital e offline. Ou
seja, a concentração crossmedia possibilita que a mesma
campanha, empresa ou produto utilize simultaneamente
diferentes tipos de meios de comunicação: imprensa, TV,
rádio e internet, por exemplo. Essa possibilidade é maxi-
mizada nas situações de propriedade cruzada dos conglo-
merados da cultura e da comunicação, quando o mesmo
grupo controla diferentes mídias.
Essa configuração explica a dificuldade financeira de
empresas que se especializam apenas no setor fonográfico
e o sucesso mercadológico das propriedades cruzadas, na
medida em que a associação de empresas diferenciadas,
mas afins, multiplica a capacidade de ação no mercado do
entretenimento. Entre os exemplos históricos mais sig-
nificativos desse tipo de fusão cita-se a Sony/Columbia/
Matsuchita/MCA e a Phillips/A&M Records. O doutor em
comunicação e cultura Dênis de Moraes (2010) explica que
não é possível entender a indústria cultural hoje sem en-
tender o conglomerado, enquanto forma organizacional
dominante nas indústrias do infoentretenimento:

Em poucos setores o nível de concentração


foi tão espantoso quanto na mídia. Em cur-
to prazo, o mercado da mídia global passou a
ser dominado por sete multinacionais: Disney,
Warner, Sony, News Corporation, Viacom,
Vivendi e Bertelsmann. Nenhuma dessas em-
presas existia em sua forma atual de empresa
de mídia há apenas 15 anos. Hoje, quase to-
das elas figuram entre as trezentas maiores
empresas não financeiras do mundo. Das sete,

125
TRABALHADORES DA CULTURA

apenas três são verdadeiramente empresas


norte-americanas, embora todas elas tenham
nos Estados Unidos operações fundamentais.
Em conjunto, essas sete empresas possuem
os principais estúdios de cinema dos Estados
Unidos; todas as redes de televisão norte-a-
mericana, exceto uma; e as poucas empresas
que controlam 80 a 85% do mercado global de
música (MORAES, 2010, p. 221).

No mesmo sentido, David Harvey (2002, p. 152) des-


taca que o que ocorreu com a indústria do entretenimento
foi expressão de uma reorganização do sistema financeiro
global na emergência de poderes ampliados de coordena-
ção financeira, por meio do movimento dual. De um lado,
a formação de conglomerados da comunicação. De outro,
a proliferação de descentralização das suas atividades.
Segundo o autor, as fusões e incorporações no setor são
partes integrantes dessa lógica. No caso da indústria da
música, observa-se um processo de concentração e oli-
gopolização acentuada ao longo do tempo. Os dados da
Federação Internacional da Indústria Fonográfica demons-
tram que na década de 1970 seis empresas eram respon-
sáveis por 74% do mercado musical. Em 2010 a mesma
porcentagem foi distribuída entre cinco empresas apenas
(IFPI, 2012).
Essa disposição cruzada das indústrias do entre-
tenimento informa a ênfase da atividade das empresas
fonográficas a partir dos anos 2000: sua capacidade de
distribuir, divulgar e promover a comercialização das
músicas. Enquanto o ato de gravar o disco é pratica-
do por terceirizadas, a própria denominação “gravadora”
para designar os representantes da indústria da músi-
ca demonstrar-se equivocada, uma vez que o papel das
empresas na atualidade é proporcionar recursos de in-

126
TRABALHADORES DA CULTURA

vestimentos na difusão; utilizar experiência em marketing


para o gerenciamento estratégico dos produtos; fornecer
canais de distribuição; e prestar assessoria jurídica, mor-
mente contratual e comercial aos músicos.
Em paralelo à emergência de novas práticas dis-
tributivas que dificultam o monopólio da indústria, os
conglomerados também têm investido em novos mode-
los de negócio, em que a empresa passa da condição de
produtoras de mercadorias para a condição de prestado-
ra de serviços, baseadas no acesso. Se até a década de
1990 a indústria da música limitava-se às atividades de
produção e comercialização de fonogramas físicos, o for-
mato tradicional de venda direta de mercadorias é subs-
tituído cada vez mais pela comercialização do direito de
uso. Nesse sentido, Jeremy Rifkin (2005, p. 42) refere-se
ao momento econômico contemporâneo como a “era do
acesso”, ao explicar que as novas tecnologias apontam
para a mudança do paradigma em que se compravam
produtos, para a situação de compra dos “direitos de en-
trada”. Nessa dinâmica, as atividades se tornam pagas
ou substituídas por relações contratuais, sob a forma de
associações, assinaturas, taxas de admissão e tarifas.
O economista Ladislau Dowbor (2000, p. 15) rati-
fica o entendimento de Rifkin e chama atenção para o
universo dos serviços de intermediação, que formam o
“capitalismo de pedágio” hoje. Nesse contexto, a cobran-
ça do direito de trânsito do produto na esfera econômica
assume um importante papel. O autor (DOWBOR, 2000,
p. 19) exemplifica que na prática não se compra mais
o telefone ou a compra é simbólica, mas paga-se todo
mês pelo direito de usá-lo. Não se paga a consulta mé-
dica, mas o plano para ter direito ao acesso aos serviços
de saúde. A impressora custa bagatela, o importante é a
compra regular do toner exclusivo. O que se tem, então,

127
TRABALHADORES DA CULTURA

é a corrida pelo aumento da renda, segundo o modelo


do pay-per-life, sem a qual ocorre a privação de serviços
essenciais, entre eles a participação na cultura.
Na indústria da música, o movimento de desmate-
rialização dos suportes físicos aponta para novas formas
de rentabilidade, sobretudo por meio da exploração do di-
gital. O processo aberto que terceiriza a produção tenta
agora assegurar o monopólio da distribuição e, sobretudo,
da divulgação e promoção, por meio do controle do aces-
so. Diversos são os exemplos que explicitam a forma con-
temporânea de remunerar o capital no setor musical, le-
vando em consideração que a valorização dessa economia
tem sido facilitada pelas configurações do conglomerado.
Os novos modelos de investimentos nessa área envolvem,
desde a venda de músicas nas plataformas e o merchan-
dising, até a venda de música embarcada, por meio do co-
mércio interempresas, assim como a sincronização de fo-
nogramas em filmes, propagandas e vídeo games. Citam-se
também a importância dos streamings e licenciamentos,
além da crescente participação das empresas da música
nos rendimentos de shows e execuções públicas.
Segundo dados da IFPI (2012, p. 22), entre 2004 e
2010, houve retração de 31% no faturamento da indústria
da música mundial. Foi quando, em 2003, a venda de fo-
nogramas pelo meio digital iniciou seu processo de entra-
da nos circuitos ampliados do capital. Os dados disponí-
veis sobre a receita de música digital são fornecidos pelas
gravadoras às suas associações representativas. No caso
brasileiro, quem coleta os dados e produz os relatórios
sobre a indústria da música é a Associação Brasileira de
Produtores de Discos (ABPD)15. Os dados divulgados pela

15  Esses relatórios nacionais são a base para a geração de dados agregados
em escala mundial e sua publicação pela IFPI. Entretanto, enquanto a ABPD
reúne atualmente 10 gravadoras associadas, existem mais de 160 gravadoras

128
TRABALHADORES DA CULTURA

ABPD apontam que o faturamento das principais empre-


sas do setor fonográfico brasileiro caiu de R$1,1 bilhão, em
1997, para R$ 360 milhões, em 2009. Nos últimos anos,
tem se esboçado uma interrupção deste movimento de
queda, observando-se taxas bastante modestas de cres-
cimento. Esse aumento é apoiado, sobretudo, pela am-
pliação do mercado de música digital. Segundo levanta-
mento da ABPD (2011, p. 9), as receitas relacionadas ao
mercado digital representaram 16% do mercado total de
música em 2012. O mesmo relatório aponta também que,
de modo geral, houve crescimento em todos os formatos
de negócios digitais16.
Os esforços de modernização da indústria da mú-
sica são no sentido de manter a sua relevância enquanto
intermediárias. Entre as novas formas de rentabilização
na indústria fonográfica, José Paulo Pinto (2011, p. 62) evi-
dencia a prática de venda de música embarcada, quando
uma empresa fecha contrato com gravadora ou distribui-
dora para vender seus produtos junto com músicas. Por
exemplo: a Danone, a Deel e a Coca-Cola já lançaram pro-
dutos que agregavam códigos para realização de downlo-

atuantes no país, de forma que as empresas vinculadas à ABPD não representam


nem 10% das gravadoras que atuam no mercado brasileiro. Mesmo assim,
as gravadoras agregadas à ABPD representam 75% das receitas totais da
indústria musical nacional. Por isso, os números levantados pela ABPD não
deixam de ser relevantes. As filiadas à ABPD são as grandes gravadoras que
exercem controle sobre os meios de distribuição e promoções e apresentam
vendas expressivas. São elas: EMI Music, MK Music, Munic Brothers, Paulinas,
Record Produções e Gravações LTDA, Som Livre, Sony Music Entertainment,
The Walt Disney Records, Universal Music e Warner Music. Ou seja, a visão
geral do mercado da música que elas fornecem é útil, uma vez que permite
identificar as tendências gerais do mercado.
16  Entre as novas formas de rentabilidade, o lançamento da loja iTunes pela
empresa Apple tem sido o marco mais citado quando à venda “a la carte” de
arquivos de músicas digitais, vídeos de shows, entre outros serviços. Além da
iTunes, outras empresas vêm crescendo no setor, a exemplo da Amazon, uma
das maiores varejistas online do mundo, que em 2007 lançou seu serviço de
downloads de MP3 DRM-free, ou seja, sem travas tecnológicas.

129
TRABALHADORES DA CULTURA

ads de músicas. Entre os diversos modos de se realizar a


venda da música embarcada, o que mais chamou atenção
desta pesquisa foi o lançamento de CD da banda NX Zero,
contratada pela Universal, que ajudou a vender mais de
um milhão de celulares da empresa Motorola, os quais
continham o álbum da banda, algumas faixas de vídeo,
cenas de bastidores e papéis de parede. A gravadora Sony
Music Entertainment e a Sony-Ericson, empresas do mes-
mo conglomerado, chegaram a acordo similar com a ban-
da brasileira Jota Quest, tendo vendido 900 mil celulares
em 2013.
Outra fonte de receitas obtida pelas gravadoras se
relaciona à sincronização de músicas em filmes, propa-
gandas e vídeo games. A sucursal da Universal Music no
Reino Unido (IFPI, 2012, p. 22) relata que as rentabiliza-
ções advindas da sincronização em games já ultrapassam
as de filmes e estão atrás somente da sincronização em
propaganda. O setor de jogos como um todo está se tor-
nando uma fonte cada vez mais significativa de demanda
por música. Só em 2008, a indústria de jogos eletrônicos
teve receitas globais em torno de US$ 48,3 bilhões. Títulos
como Guitar Hero e Rock Band possibilitam ao jogador fa-
zer downloads de músicas na internet por meio do con-
trole do jogo. A empresa Microsoft relatou vendas de 3,8
milhões por mês em músicas no Xbox Live em 2012 (IFPI,
2012, p. 45).
Por sua vez, a reprodução de música na internet por
meio do streaming é o modelo de acesso por excelência
da indústria da música. Entre os serviços oferecidos nesse
campo destaca-se o Spotify e o Deezer. Os programas per-
mitem escutar músicas gratuitamente pela internet, bem
como contratar planos pagos que possibilitam o acesso
às músicas em viagens internacionais, maior qualidade de
som, entre outros benefícios. Depois de instalar o aplicati-

130
TRABALHADORES DA CULTURA

vo e se inscrever no serviço, é possível navegar pelas sele-


ções de músicas pré-definidas ou buscar um estilo ou ar-
tista em particular. É possível também criar playlists com
músicas preferidas e compartilhá-las entre dispositivos.
Além dos serviços mais específicos que têm como base
o acesso, outros fluxos de receitas estão sendo obtidos
pelas gravadoras de forma indireta, por meio do licencia-
mento de músicas que são veiculadas em redes sociais
ou em sites de streamings de vídeos – como o Youtube.
A remuneração, nesses casos, pode se dá tanto por taxas
de licenciamento como por participação percentual nas
receitas desses sites, relacionadas à publicidade.
Além disso, as “gravadoras”, que hoje são também
donas da imagem do artista, procuram vender cada vez
mais produtos com base na marca dos seus artistas, a
exemplo de bonés, camisetas, vinho, uísque etc. O AC/
DC, banda de rock australiana, lançou em 2011 a coleção
de vinhos com o nome de suas canções mais famosas.
No mesmo ano o Motley Crue, banda estadunidense de
rock, teve seu nome colocado em uma série limitada de
garrafas de uísque da marca estadunidense Jack Daniel’s.
Desta forma, a indústria vem se concentrando no proces-
so de persuasão do consumidor a identificar-se com seus
artistas por meio da prática do merchandising.
Quanto aos shows ao vivo, atualmente os contratos
preveem, entre outras coisas, a taxação em média de 10%
da bilheteria de seus artistas, cujo preço dos ingressos
tem crescido a cada dia17. O ápice dessa nova forma de

17  Na última década, o preço de shows no Brasil subiu muito acima da inflação
e do dólar. Segundo Miranda (2010), em menos de dez anos, a diferença de
preços entre dois festivais de grande porte - o Rock in Rio e o  SWU, por
exemplo, subiu 1.729%. Segundo dados do IBGE, a inflação acumulada de
janeiro de 2001 até junho de 2010 é de 84,78%. Os produtores culpam a
meia-entrada pela alta dos preços. A Lei nº 12.933/2013 que dispõe sobre o
benefício do pagamento de meia-entrada para estudantes, idosos, pessoas

131
TRABALHADORES DA CULTURA

subsunção são os chamados contratos de 360 graus, em


que a indústria tem muito mais controle sobre a receita
geral advinda da exploração da carreira dos artistas. No
intuito de se afirmar cada vez mais como intermediária,
a empresa participa de todas as atividades produtivas do
músico contratado, inclusive e principalmente, os shows,
em um contexto em que o artista é incluído na retórica da
colaboração e da parceria com a gravadora.
Ao mesmo tempo em que experimenta novos mo-
delos de negócios e formas de rentabilização no intui-
to de manter seus monopólios, a indústria fonográfica
reduz, pouco a pouco, o seu poder de barganha quanto
aos independentes. O independente, enquanto emblema
de reestruturação da indústria fonográfica, hoje mais do
que nunca, realiza não apenas os processos de produção,
mas de distribuição dos seus trabalhos de forma autôno-
ma às grandes gravadoras intermediárias, embora ainda
não represente a maior fatia de consumo das músicas
atuais. Seus mecanismos de organização e modelos de
negócios vão de encontro às estratégias das grandes in-
dústrias/empresas fonográficas tradicionais.
Para a maioria dos músicos independentes entre-
vistados nesta pesquisa, a música gravada em suporte
físico (CD, DVD, vinil) não representa uma porcentagem
significativa de suas remunerações, embora a componha.
O suporte físico, nesse contexto, tem o caráter de car-
tão de visita das bandas e gerador de “ciclos de shows”,
além de compor o reconhecimento coletivo do artista.
A propósito, destaca-se as contribuições de Paulo Del
Picchia (2013) que investigou o porquê de no mesmo pe-
ríodo em que as vendas de discos físicos diminuem, um

com deficiências e jovens de 15 a 29 anos comprovadamente carentes em


espetáculos artístico-culturais e esportivos limitou a concessão do benefício
em 40% do total dos ingressos disponíveis para cada evento. 

132
TRABALHADORES DA CULTURA

grupo de compositores urbanos passa a produzir e lançar


discos físicos de forma autônoma, contínua e intensa.
Acompanhando processos criativos e produtivos de três
compositores paulistas – Kiko Dinucci, Rodrigo Campos
e Tatá Aeroplano, Picchia demonstrou que o disco é uma
engrenagem fundamental desse maquinário social de
construção de artistas. Nesse sentido, os artistas cau-
sam e são causados pelos discos; eles fazem os discos
e os discos os fazem na medida em que circulam e são
reconhecidos coletivamente.
Esse reconhecimento coletivo é essencial para um
indivíduo passar para a categoria de artista, de forma que
não adianta o comunicante da obra dizer “eu sou um artis-
ta”, ele tem que ser reconhecido enquanto tal. Obviamente
que não é só o disco que age, mas sem o disco fica mais
difícil agir nessa rede de artistas novos e que movimenta a
cena musical independente. “Os artistas gravam os discos
porque os discos gravam os artistas. Por que os discos
gravam os artistas?” (DEL PICCHIA, 2013). Segundo o au-
tor, porque eles são agentes causais fundamentais que ao
trocarem propriedades com outros agentes (jornalistas,
internet, familiares, ouvintes, músicos etc.) tornam pos-
sível que compositores como Tatá, Rodrigo e Kiko perpe-
tuem sua arte, amplifiquem seu público e divulguem seus
nomes. E eles (os discos) são pessoas-artístico-musicais,
são processos criativos, são toda rede de associações te-
cida dentro dos estúdios, são cartões de visita, são vitrine,
são um conjunto de canções que individualiza a obra de
um compositor, são a pessoa desse compositor se distri-
buindo e se multiplicando através do ciberespaço, e são,
ainda, em alguma fase de sua trajetória social, mercado-
rias (PICCHIA, 2013, p. 182).
Quantos aos formatos digitais, nos casos pesqui-
sados por esse trabalho, ao contrário do que acontece

133
TRABALHADORES DA CULTURA

no exterior, notadamente nos mercados estadunidenses


e britânicos, os artistas considerados independentes não
conseguem auferir rendimentos diretamente da inter-
net. Todos os entrevistados afirmam utilizar a internet
para distribuição gratuita das suas músicas e promoção
das suas produções, mas nenhum citou a internet como
meio direto de rendimentos financeiros, uma vez que não
vendem música na rede. Portanto, o sonho de sucesso na
internet não tem se materializado em retorno financeiro
direto para a maioria dos músicos independentes, embo-
ra a rede impulsione a realização de shows e a venda de
CDs e/ou produtos dos artistas.
Os 22 entrevistados por esta pesquisa declaram ter
perfis em redes sociais como Facebook, Twitter, Instagram,
Spotify e Deezer. Os artistas independentes se utilizam do
barateamento das tecnologias não só quanto à produção,
mas também para a atividade de distribuição e promoção,
naquilo que pode ser alcançado por esses meios e levando
em consideração o contexto social e econômico das rea-
lidades locais. O Facebook se tornou tão importante para
o mundo musical e artístico no início da década passada
que existe uma configuração especial no site chamada “pá-
gina de artista”. O músico pode criar sua página, em que
normalmente disponibiliza seus discos, fotos, agenda de
shows etc. Entre os artistas entrevistados, em 2017, a ban-
da Mombojó (Missionário José), Marcia Castro, Metá Metá
(Juçara Marçal) e Cidadão Instigado (Fernando Catatau) fo-
ram as páginas que mais somaram curtidas no Facebook
(66.957, 58.669, 29.307 e 21.793, respectivamente).
No contexto em que os músicos afirmam “colocar
tudo de graça na internet” observam-se dois perfis de ar-
tistas entrevistados. O primeiro que saúda a disponibiliza-
ção gratuita de suas músicas como etapa necessária para
o reconhecimento e a realização de shows. E o segundo

134
TRABALHADORES DA CULTURA

que se preocupa com a dinâmica da gratuidade dos seus


trabalhos nas redes à longo prazo. Para um dos entre-
vistados (Artista 5, 30/4/2015) não há um sentimento de
“estar dando a música de graça”, mas sim de expor o seu
trabalho. Por isso, o artista afirma que sua música está em
todas as plataformas: no disco físico, no vinil, no iTunes,
no site dele para baixar de graça, no Youtube, de forma
que o consumidor escolhe como acessá-lo. “O que eu sei
é o seguinte: a minha música tem que estar disponível”,
enfatiza. Porque só assim ele se tornará conhecido e as
pessoas irão para os seus shows. Chegando no show “tem
lá a banquinha, o CD, o vinil, a camisa, e as pessoas com-
pram. É assim que funciona” (Artista 5, 30/4/2015).
Da mesma forma, outro músico entrevistado (Artista
6, 30/4/2015) afirma que, disponibilizando todo o seu tra-
balho gratuitamente na internet, garante um resultado fi-
nanceiro satisfatório por outros meios. Porque cada disco
que ele lança na internet impulsiona a venda desse pró-
prio disco físico. “São pessoas que vão curtindo o som e
que fazem questão de ter o álbum físico”, explica. Todo o
seu trabalho na internet está conectado com redes sociais
em que ele publica promoções e informações, de forma
que essa lógica tem funcionado em relação ao conjunto
de sua sustentabilidade até então (Artista 6, 30/4/2015). A
maior parte dos artistas pesquisados, portanto, conside-
ra decisiva a disponibilização do seu trabalho gratuito na
internet quando se trata de promoção e distribuição dos
seus trabalhos. Nesse sentido, destaca-se:

A gente logo que gravou, o primeiro passo foi


disponibilizar na internet, de graça. [...] E aí
é isso. Eu tenho absoluta certeza, eu assim
como todo mundo, que o lance da gente ter
se expandido tem a ver com esse jeito de li-
dar com a coisa. Que gravadora pensa nisso?

135
TRABALHADORES DA CULTURA

Eu acho que o legal quando você disponibiliza


é que tem gente que nos conhece em todo
o Brasil... Por que? Porque o cara vai lá, ouve
alguma coisa e tem a possibilidade de baixar
o disco inteiro e saber qual que é a do disco
inteiro. Não é aquela coisa de ouvir um pedaci-
nho... Ele baixa e se ele curte o som, pronto. Tá
cooptado (risos). É um pouco isso que a gente
faz com a música. A pessoa tem a possibilida-
de de ouvir o trabalho inteiro. E aí se ela curte
ela vai atrás e expande. Essa pessoa é a pes-
soa que vai expandir porque ela curtiu. Direto
na nossa página a gente anuncia lá show num
sei aonde, e direto lá tem uma sequência de
comentários ‘Olha fulana, vai assistir a esse
show que é muito legal’... As pessoas acabam
fazendo esse trabalho da distribuidora, que a
distribuidora não faz. É muito mais legal ir so-
zinho e achar o nosso caminho. Pra gente tem
funcionado. E muito... (Artista 11, 7/5/2015).

No segundo perfil de entrevistados que se preocu-


pa com a dinâmica da gratuidade nas redes à longo pra-
zo encontra-se a narrativa de uma das artistas Artista 14,
5/5/2015), para quem a remuneração da distribuição digital
é algo muito importante que o mercado independente ain-
da não se atentou. Segundo a cantora, essa falta de aten-
ção acontece porque sua geração começou a divulgar o
seu trabalho no momento de mudança de paradigma das
gravadoras, ou seja, sua geração já nasceu na prática do
download gratuito: “Então, a gente naturalizou o fato das
coisas estarem de graça na rede”, de forma que acaba pen-
sando muito pouco sobre os mecanismos de arrecadação
na internet. A cantora declara que é preciso entender o que
acontece com a distribuição digital, ou seja, “quem faz com
que o seu trabalho chegue, quem é que ganha com isso,
quem deixa de ganhar (Artista 14, 5/5/2015).

136
TRABALHADORES DA CULTURA

A artista acima (Artista 14, 5/5/2015) comenta sua


experiência de distribuição na Sony e afirma que a grava-
dora hoje sai do papel de distribuição física porque exis-
tem poucas lojas, mas ganha um filão imenso de mercado
com distribuição digital porque os meios digitais acabam
repassando para a gravadora, que não repassa para o ar-
tista de forma “justa”. Além disso, existem as platafor-
mas digitais que ganham rendimentos sem repassar para
o artista: “O Youtube que não paga a ninguém...”(Artista
14, 5/5/2015). A entrevistada enfatiza a importância desse
assunto, uma vez que “muita gente ganha dinheiro, menos
o artista. Tem gente ganhando dinheiro à custa do nosso
trabalho, entendeu?” (Artista 14, 5/5/2015).

O download de graça eu acho legal, eu acho


bom, desde que não exista ninguém ganhan-
do a partir disso, né? Por exemplo, se eu que-
ro liberar o meu disco de graça, ok. Eu vou
lá na minha plataforma e libero. Mas eu não
acho justo o que algumas plataformas estão
fazendo que é pagando uns royalties que têm
muitos zeros e zeros e zeros até chegar no
um, entendeu? E eles estão ganhando mui-
to com assinatura, eles estão ganhando mui-
to com publicidade. Então, eu não acho justo
que o Youtube não pague a gente de um modo
digno. Na verdade, que esteja sem pagar há 3
anos. E o nosso conteúdo esteja lá de graça
e eles ganhando... Então, a crítica que eu te-
nho é essa: Poxa...! A gente dá de graça, mas
pra fazer é caro ainda, entende? A gente nem
encontrou ainda o ponto de equilíbrio nesse
lugar... (Artista 14, 5/5/2015)

No mesmo sentido, ao avaliar a disponibilidade gra-


tuita de músicas na internet e o lucro das grandes varejis-
tas online o músico Bruno Consetino destaca as seguintes
observações em entrevista à Revista Outros Críticos:

137
TRABALHADORES DA CULTURA

A música quanto está de graça na internet,


cumpre o seu papel essencial, que é ser uma
doação do artista para o mundo; e esse cír-
culo se retroalimenta, já que artistas também
têm à sua disposição toda essa música. Mas
ela não existe só nesse mundo ideal, é tam-
bém um produto de mercado e vale dinheiro
e se os artistas não estão ganhando, alguém
está. E se seguirmos o dinheiro, chagaremos
nas grandes corporações da internet: Google,
Apple, Amazon etc., super atravessadores do
capitalismo informatizado, que estão lucrando
um monte às nossas custas e ainda por cima
legitimam sua condição de sanguessugas com
o respeitável valor de democratização cultu-
ral. Não sejamos ingênuos. Eles desenvolvem
uma plataforma online de venda que, por si-
nal, é uma ótima solução técnica para a venda
do registro sonoro hoje, mas que custa uma
ninharia se comparada à dispendiosa estru-
tura da falida indústria fonográfica; dominam
o mercado global, não estabelecem nenhu-
ma relação com o objeto concreto, vendendo
desde batedeiras a livros, e querem nos en-
fiar contratos abusivos goela abaixo - o Itunes
cobra mais de 50% de comissão sem colocar
um puto do lucro no início da cadeira produti-
va. Então, parece que tudo é lindo, mas não é
(OUTROS CRÍTICOS, 2014, p. 40).

Com a forte retomada do controle das majors sobre o


mercado, que representam esses acordos com os serviços
de streaming (serviço de música online) em oposição ao P2P
(que permite o download da obra e relação direta entre
artistas e usuários), o que ocorre agora é que os valores
dos objetos musicais continuam baixos, mas os atraves-
sadores não medem esforços para se manter enquanto
intermediário por meio de acordos judiciais e extrajudi-
ciais, se colocando entre usuários e artistas. Na atuali-

138
TRABALHADORES DA CULTURA

dade, são pagos centavos aos artistas mais executados e


nada aos demais. Ainda que exista cada vez mais dinhei-
ro circulando no setor musical, comprova-se a ampliação
dos problemas econômicos e de renda nesse campo.
Nas entrevistas desta pesquisa evidencia-se a pre-
ocupação de uma das artistas (Artista 14, 5/5/2015) que
reflete que hoje é jovem e tem força de trabalho para
concentrar sua remuneração nos shows, mas que vai en-
velhecer. Portanto, se sua geração não ajustar essas re-
lações, que são de trabalho, vai chegar um momento em
que ela não poderá fazer shows e as coisas ficarão bas-
tante complicadas. “Daqui a pouco a gente vai tá cansado
pra tá batalhando show, né? E a gente faz discos, a gente
faz músicas, e não é remunerado por isso em quase ne-
nhuma esfera, entende?” (Artista 14, 5/5/2015).
Quanto à propriedade da gravação, todos os artis-
tas afirmaram ser hoje donos dos seus próprios fonogra-
mas, uma vez que não têm contrato com nenhuma gra-
vadora/distribuidora. No entanto, um dos entrevistados
lembra que firmou um contrato de distribuição com a
Som Livre em um dos seus trabalhos. Nesse contexto, é
interessante o depoimento do músico porque enfatiza as
diferenças entre ser dono do próprio fonograma e cedê-
-los a uma distribuidora.

Com a Som Livre a gente fez um contrato de


distribuição que a gente achou interessante
porque era um contrato que a gente conseguiu
fazer um acordo. E era só o fonograma, né? O
fonograma fica com eles 5 anos, eles ficam
donos das músicas 5 anos. Mas quando a gen-
te fechou com a Som Livre a gente não podia
liberar em nosso site. Só que isso hoje não
existe. Não existe esse controle mais... Nesse
segundo (CD) a gente já fez uma coisa bem
legal. A gente fez o ‘pague com twitter’. A gen-

139
TRABALHADORES DA CULTURA

te licenciava, você fazia o download... Só que


pra fazer o download você tinha que twittar ou
compartilhar ele no facebook. Então isso foi
bem legal... A gente em 5 dias teve 5 mil down-
loads. Eu nem sei quanto tá agora, nunca mais
vi... Então a gente tem que tá muito antenado
em tudo (Artista 16, 12/11/2014).

No universo das propriedades dos fonogramas, as


práticas de licenciamento que partem de “todos os direi-
tos reservados”, apesar de não ser mais a única possível,
ainda são as mais utilizadas. Poucos artistas declararam
registrar suas obras em Creative Commons (CC). Elaborada
em 2001 por um grupo de pesquisadores coordenados pelo
advogado estadunidense Lawrence Lessig, a CC faz parte
das licenças criativas ou copyleft (em trocadilho com co-
pyright) e cria uma opção do meio-termo legal entre “to-
dos os direitos reservados” e o domínio público, uma vez
que proporciona os instrumentos concretos para que os
criadores possam regular os usos de suas obras. Por meio
das licenças CC os autores estabelecem as disposições
sob as quais querem compartilhar suas obras, deixando
que outros as usem, copiem, distribuam e modifiquem,
mantendo seu direito moral ao reconhecimento como
criadores e proibindo, por exemplo, o uso comercial.
Quanto à participação do direito autoral na renda
dos artistas considerados independentes por esta pes-
quisa, considerando o total dos 22 músicos entrevista-
dos, apenas dois afirmaram receber até 10% de sua re-
muneração com direitos autorais, embora a maioria esteja
registrada em órgão de arrecadação de direitos autorais,
como o ECAD e a União Brasileira de Compositores (UBC).
Quanto à propaganda – diferente do que ocorre com a
execução pública, quando os direitos são recolhidos e dis-
tribuídos via ECAD –, o pagamento para o uso de música

140
TRABALHADORES DA CULTURA

ocorre por meio de contratos específicos. Esses contratos


estabelecem valores fixos pela música ou trecho que será
utilizado em período determinado de tempo, levando em
consideração a duração da propaganda, o veículo de exi-
bição e alcance geográfico. Apenas um entrevistado aufe-
riu rendimento de propagandas, realizando jingles para o
banco Bradesco.
Da mesma maneira que acontece com a propa-
ganda, o pagamento de trilha sonora é estabelecido por
meio de contrato que regula o valor fixo de uso da música.
Sobre a sincronização de músicas em programas de TV,
um dos artistas entrevistados (Artista 6, 30/4/2015) de-
clara que recentemente a GNT (das Organizações Globo)
pediu uma música sua para entrar num programa de TV:
“Ah, quero que sua música seja o tema de um dos nossos
programas”. O músico ficou bastante entusiasmado e per-
guntou as condições contratuais. A resposta foi mais ou
menos assim: “Eu quero que você ceda as músicas de gra-
ça” e mandaram um contrato especificando essa gratui-
dade. O artista conta que tentou, minimamente, acordar
outras condições, mas a Globo não se abriu para o diálogo
(Artista 6, 30/4/2015).

O contrato é terrível. O contrato você dá a mú-


sica pra Globo poder usar essa música não só
no programa, mas também em outras coisas...
Assim, absurdo, sabe? Aí eu falei ‘Não! Esse
contrato é impossível, cara’. Reescrevi o con-
trato e mandei... ‘Ah, mas com esse contrato a
GloboSat não aceita’. ‘Ah, beleza, eu não tenho
interesse’... O jeito que eles trabalham com os
artistas autônomos é terrível! [...] Então é mui-
to complicada a relação com a TV... Você levar
um fonograma pra lá... Eles querem a proprie-
dade daquilo! E aí, cara, nem ferrando que eu

141
TRABALHADORES DA CULTURA

vou fazer isso, entendeu? Então você acaba se


limitando um pouco por causa dos contratos...
Antigamente a galera assinava dando risada...
[...] Desse ponto de vista a gente vive uma
época terrível. Porque as corporações elas
estão aí... A gente vai se relacionar com elas,
mas tem que ser minimamente justo (Artista
6, 30/4/2015).

Essa configuração de gratuidade para uso comercial


por parte das coorporações da comunicação e do entrete-
nimento se repete na fala dos entrevistados por esta pes-
quisa, assim como as mais diversas colaborações com ou-
tros campos considerados independentes. Nesse sentido,
uma das artistas (Artista 11, 7/5/2015) afirma que realizou
algumas participações de trilhas em filmes, mas sempre
na forma de “colaboração”, cujo sistema acontece mais ou
menos assim: “‘Olha, é um filme independente, a gente tá
querendo tua música...’. E aí a gente disponibiliza pra esse
filme. Mas não é uma fonte de renda” (Artista 11, 7/5/2015).
É possível inferir que a economia das trocas tem grande
peso no meio independente, o que vem sendo sempre ra-
tificado nesta pesquisa das mais diferentes formas, sendo
as dinâmicas de colaborações as mais frequentes.
Finalmente, além da comercialização das músicas
em formatos físicos variados, outros produtos ligados à
marca/imagem do artista tomam fôlego nesse novo cená-
rio considerado independente, como camisetas, canecas
e pôsteres, por exemplo. Embora a maioria dos músicos
entrevistados sequer produza esses tipos de produtos,
destaca-se nas falas entrevistadas a tendência e o de-
sejo de promover os trabalhos também por esses meios.
A banda Mombojó, Eddie e Filarmônica de Pasárgada já
produzem esses tipos de produtos. Mas o grande des-
taque no campo do merchandising de artistas vai para o

142
TRABALHADORES DA CULTURA

Laboratório Fantasma, do Emicida e seu irmão Evandro


Fióti. Além de discos, a loja virtual vende vestimentas e
acessórios. No ano de 2016, o LAB inseriu a sua marca na
São Paulo Fashion Week (SPFW), injetando diversidade e
representatividade no evento, em um desfile histórico.

4.2 Meios de comunicação tradicionais

Embora a internet seja frequentemente citada pe-


los músicos independentes enquanto importante meio de
produção, distribuição e promoção dos seus trabalhos,
engendrando novas sociabilidades e alterando a correla-
ção de forças no processo de comunicação, grande parte
da amostra desta pesquisa enfatizou os limites da rede
virtual, no que toca ao seu alcance para maior número de
pessoas. Isso porque, ainda que amplamente utilizada, a
internet não consegue superar as estratégias de promoção
e divulgação que os meios tradicionais (rádio e TV) detêm.
Segundo a Pesquisa Brasileira da Mídia 2015 (BRASIL,
2014, p. 3), mesmo considerando o crescimento da inter-
net no país, o rádio e a televisão são os únicos meios
de comunicação efetivamente universalizados, presentes
em 97% e 86% dos domicílios no Brasil, respectivamen-
te. A internet, por sua vez, ainda tem alcance limitado.
Apenas 25% dos domicílios brasileiros têm computador,
dos quais 18% possuem acesso à internet. Dos domicílios
com acesso à internet 58% possuem banda larga, sen-
do que 66% desses possuem velocidade de até 1mbps. O
uso dos meios de comunicação segue o padrão de consu-
mo determinado pela renda, escolaridade e faixa etária: o
uso diário e mais intenso da internet é maior entre os jo-
vens, com renda familiar superior a cinco salários mínimos
(BRASIL, 2014, p. 3).

143
TRABALHADORES DA CULTURA

Além dos limites da universalização da internet, um


dos entrevistados levanta um importante aspecto, rela-
cionado à concentração também nesse meio, que faz com
que existam poderes desiguais e acessos diferentes para
os artistas nas redes.

Ao contrário do que se pensava, com a inter-


net a concentração de todo o mercado musi-
cal aumentou mais nas mãos de poucos ar-
tistas do que se distribuiu em vários artistas.
Então, mesmo com a internet tem essa coisa:
‘ah, se a gente é artista independente, a gente
vai ficar na internet... E os artistas de grava-
doras eles vão pra TV, pros rádios, pros meios
mais tradicionais’. Eu acho que todos os meios
precisam ser acessíveis... E na internet as coi-
sas não são assim tão fáceis como parecem.
Porque eu posso colocar a minha música no
Youtube. Mas se o Roberto Carlos colocar uma
música no Youtube ele já tem todo um sistema,
sites que são parceiros dele, que ganham di-
nheiro com isso... é muita grana. Então, é mui-
ta concentração nesse meio também (Artista
7, 14/4/2015).

A propósito desta fala, o Spotify divulgou uma lista


dos artistas mais escutados em sua plataforma. Por aqui,
quem lidera a lista é Marília Mendonça, seguida de Zé Neto
& Cristiano, Anitta e Gusttavo Lima. Já no mundo, o artista
número um é Post Malone e as posições seguintes ficam
com Billie Eilish, Ariana Grande, Ed Sheeran e Bad Bunny. A
plataforma de streaming também divulgou os artistas mais
ouvidos da década (2010 - 2019). No topo da lista nacional
está Jorge & Mateus. Já no ranking global, o canadense
Drake é o primeiro colocado, com mais de 28 bilhões de
streamings (SPOTFY, 2019). Todos os artistas da lista têm
contratos com gravadoras, sendo que no Brasil a lista é

144
TRABALHADORES DA CULTURA

majoritariamente contratada pela Som Livre (Globo), com


ampla promoção nos meios tradicionais de comunicação.
Ao mesmo tempo em que apontam para contradi-
ções da internet, os resultados desta pesquisa confirmam
o difícil acesso aos meios tradicionais da mídia pelos ar-
tistas independentes e ratificam um aspecto fundamental
do arranjo que estrutura, ainda hoje, a indústria da música
no Brasil: a importância dos meios de comunicação tradi-
cionais para a promoção de artistas em âmbito nacional.
Dos 22 entrevistados, apenas seis afirmaram conseguir
utilizar, em algum momento, a rádio e/ou televisão como
meio de distribuição e promoção dos seus trabalhos.
Desse número, três deles já estiveram em grandes grava-
doras. A Orquestra Contemporânea de Olinda, por exem-
plo, que firmou um contrato de distribuição com a Som
Livre em seu primeiro CD, apareceu nos programas globais
Fantástico e Encontro com Fátima Bernardes. Nesses ca-
sos de exposição em mídias tradicionais os entrevistados
declaram a diferença da recepção, ou seja, do “feedback
do público” no que toca à visibilidade que vem a partir da
instância tradicional de legitimação do trabalho artístico.
Contudo, de uma forma geral, prevalece a fala de um
dos entrevistados (Artista 17, 6/9/2014), no sentido de que
“os programas de rádio e TV são muito raros, vez ou outra
transitamos nesses meios, mas não podemos contar com
eles como estratégia de trabalho”. Nesse contexto, se a in-
dependência, em algumas situações, possa ser uma esco-
lha, a forma com que usa os meios de comunicação é uma
contingência para os artistas entrevistados. Porque dos 22
artistas, todos enfatizam a falta dos meios tradicionais de
comunicação na projeção dos seus trabalhos, sobretudo
considerando as dimensões territoriais do nosso país. Um
dos entrevistados (Artista 6, 30/4/2015) deixa manifesto
que o rádio continua sendo cada vez mais importante, da

145
TRABALHADORES DA CULTURA

mesma forma que a TV. O que existe, contudo, é que os


meios tradicionais estão cada dia mais distante. Embora
as coisas “fluam” sem o rádio e a TV, ele não dispensa
a sua contribuição, assim como exalta a importância de
alguns programas de nichos que ainda resistem nesses
meios tradicionais (Artista 6, 30/4/2015).

É muito distante, sabe? A gente tem pouquís-


simos lugares onde a gente possa apresentar
o nosso som [...] Ir pra um programa de TV de
grande exposição... Putz, ótimo, né? Imagina...
Agora que eu tô um pouco estruturado... Ir num
programa... Ia vender disco pra caramba! Ia ser
genial. Mas não acontece. Têm coisas que cres-
cem com a gente, a Roberta Martinelli, com o
Programa Cultura Livre, Patricia Palumbo... São
coisas que tem mais a ver com a gente. Agora
as coisas de grande visibilidade, Globo e tal...
isso tem se tornado cada vez mais distante,
infelizmente (Artista 6, 30/4/2015).

Outra entrevistada (Artista 15, 2/9/2014) também


enfatiza a dificuldade de acesso aos meios tradicionais
de comunicação, sobretudo nos grandes conglomerados,
como a Globo, ao mesmo tempo em que explicita e con-
dena as práticas de favorecimento no rádio, como o jabá.
Ela também destaca a dificuldade de acesso às grandes
lojas para distribuir o seu trabalho. Todos esses fatores
impactam não só no seu trabalho, mas na diversidade cul-
tural do país, de uma forma geral, afirma a artista (Artista
15, 2/9/2014).

Alguns meios parecem que vão ser sempre di-


fíceis, né? Algumas coisas em TV, por exem-
plo... Essas coisas ainda realmente são bem
inacessíveis porque eu mesma não vou pagar
R$ 50.000 pra tocar no Faustão, né (risos)?!

146
TRABALHADORES DA CULTURA

Isso realmente faz quem tem uma estrutu-


ra enorme atrás. As rádios, a maioria, ainda é
movida pelo jabá. Há um tempo eu vi um estu-
do que a programação média de uma rádio va-
riava cerca de 40 músicas por mês. Era alguma
coisa nesse sentido... Mas minha gente! Como
40 músicas por mês? Claro que eles devem
colocar uma ou outra coisa ali perdida, mas é
muito pouco... Eu posso estar enganada nes-
ses dados, mas de todo modo é uma discre-
pância enorme. Porque as rádios e as TVs to-
cam o que as grandes gravadoras produzem. E
às vezes essas grandes gravadoras não produ-
zem nem 1/10 do que é produzido no mercado
nacional! [...]. A distribuição a gente faz muito
pela internet também. Mas aí também exis-
te uma limitação. Também não é uma distri-
buição ampla que cubra nacionalmente. Tem
aquelas lojas, que são lojas onde as pessoas
naturalmente procuram a música que a gente
produz. Mas são pouquíssimas as que sobre-
vivem. Tem capital hoje no Brasil que não tem
loja de disco, não tem uma Passa Disco, por
exemplo18! Tem Lojas Americanas, tem super-
mercado... Mas nas Americanas, por exemplo,
o meu disco não entra. Só entra com grandes
distribuidoras.... Não entra assim direto não.
Você não chega na Americanas e diz ‘ó quero
vender meu disco’! (Artista 15, 2/9/2014).

De forma semelhante, outra artista entrevistada


(Artista 4, 12/2/2016) também destaca a importância do
rádio e da TV enquanto potência na circulação de um tra-
balho musical: “em todo lugar do mundo vai existir uma
antena de rádio”; assim como repudia a prática do jabá.
Na televisão ela cita o poder das novelas na dissemina-

18  A Passa Disco foi inaugurada em 2003 e permanece atuante no mercado


de venda de discos em Recife, especializada em música pernambucana.
Atualmente a loja também tem funcionado como selo e como espaço cultural.

147
TRABALHADORES DA CULTURA

ção de uma música. Para a artista, quanto mais pessoas a


ouvirem, melhor. Ela lamenta os entraves ao acesso a es-
ses meios de comunicação, sobretudo porque gostaria de
ser mais ouvida, bem como explicita as relações de poder
nesses meios.

Saber que sua música está sendo ouvida e está


sendo querida pelas pessoas. Que existe o de-
sejo pela sua música... Imagine que maravilha
isso! Enfim, às vezes eu penso que qualquer
música é suscetível do sucesso, que as coisas
são uma questão de como se mostra aquela
música [...] Depende do acesso que você te-
nha a esses veículos, né? Eu gostaria muito
que minha música fosse vista por mais pes-
soas, por muitas pessoas. Mas, assim, rádio,
o mercado independente já dá como perdido.
Porque existe o jabá violentamente. Algo que
eu não sei se um dia vai acabar porque é muito
dinheiro que gira em torno disso, são muitos
interesses, de gente muito grande. Então, eu
acho que pra minha geração, tocar na rádio é
um privilégio de poucos no mercado indepen-
dente. Às vezes acontece, assim, quando é um
programador que gosta muito da sua música,
quando você tem uma relação de amizade
com alguém próximo de uma rádio e tal e co-
loca [...] Mas você tá na programação de modo
constante é realmente muito difícil (Artista 4,
12/2/2016).

Em relação ao jabá, importa destacar, ainda, o de-


poimento de um dos entrevistados (Artista 3, 15/6/2016)
que destoa dos outros artistas, na medida em que enten-
de que, embora o jabá seja uma prática perversa, pode
ser realizada como forma de “investimento”. “Essa grana
volta se você escolher a música certa pra investir. É o ca-
pitalismo... É uma grana que você pegou daqui e botou ali.

148
TRABALHADORES DA CULTURA

É um jogo” (Artista 3, 15/6/2016). Para o músico, a prática


do jabá faz parte de uma visão empreendedora, a qual
informa que é necessário saber onde colocar dinheiro na
construção do seu objetivo. Por isso, “se pintar uma grana
legal e eu tiver uma música que eu ache que ela vai pegar,
eu pego essa grana daqui e ponho lá, entendeu? Esse di-
nheiro volta” (Artista 3, 15/6/2016).
Os artistas entrevistados, de uma forma unânime,
ratificam a falta do rádio na distribuição dos seus traba-
lhos e expõem o desmantelamento do pouco que existia
nesse meio. Um dos artistas (Artista 5, 30/4/2015) explica
que estão limando com os poucos programas ao vivo e
que isso faz muita falta na sua atividade. Por considerar
a cena independente a qual está incluído uma geração de
nicho, ele afirma que toca em programas de amigos, de
uma forma bastante específica. “Mas nunca liguei o rádio
e tava tocando a minha música. Só quando eu sabia que ia
passar na Patricia Palumbo naquela hora, e aí eu sintoni-
zada” (Artista 5, 30/4/2015).
Em relação a esses espaços de nichos, além do pro-
grama comandado por Roberta Martinelli (o Cultura Livre),
o Metrópolis e a Rádio online Vozes, liderada por Patricia
Palumbo, também foram citados enquanto importantes
espaços de resistência e diversidade musical. Em Recife,
os artistas chamaram atenção para a importância de pro-
gramas locais nos espaços tradicionais, como os extintos
Programa do Roger e o Sopa Diário. Hoje Recife conta ape-
nas com a rádio pública Frei Caneca (101.5 FM), criada há
56 anos, mas no ar desde 30 de junho de 2016, fruto de
intensa luta entre os segmentos locais.
Além dos poucos espaços nas mídias tradicionais,
seja grande ou de nicho, um dos entrevistados (Artista 9,
29/2/2016) ainda levanta uma importante questão, rela-
cionada à música vinda de comunidade negra e de can-

149
TRABALHADORES DA CULTURA

domblé, da qual faz parte. Trata-se das ambiguidades en-


tre querer estar exposto e não ser estereotipado ou ridi-
cularizado nesse processo, quase sempre perverso, uma
vez observado o papel da mídia nos discursos de ódio e
intolerância hoje.

Aqui (em Recife), primeiro, os espaços são


pouquíssimos. E um grupo engajado como o
nosso, ele vive um grande dilema. Ano passa-
do a gente fez uma reportagem, que, ao mes-
mo tempo foi importante pra gente, pra uma
emissora de TV, pra Globo, com a qual a gente
tem muito questionamento. Ao mesmo tempo,
a gente fica dizendo: caramba, quando a gente
fez, a gente vê o tamanho da repercussão. E
eu não olho pela repercussão apenas para a
banda, mas eu olho pra repercussão que foi
da música do terreiro; você colocar um espa-
ço num dia de sábado, de uma hora... a gente
defendendo a bandeira do candomblé, no mo-
mento que a gente vive. Então, isso pra gente
foi importante, numa comunidade tradicional,
negra. Mas a gente sente a dificuldade que é
imensa de reconhecimento dos grupos e que
essas emissoras de TV tratem de uma forma
digna, coerente, respeitosa a nossa música.
Porque, ao mesmo tempo que a gente vê um
espaço desse, depois a gente vai ver em ou-
tro instante uma chacota muito grande, uma
desclassificação gigante dessas emissoras. E
com toda essa intolerância, esses discursos
de ódio... É triste ver que os meios de comu-
nicação poderiam ser um grande parceiro da
diversidade na sociedade, mas, de forma geral,
não são (Artista, 9, 29/2/2016).

Finalmente, alguns músicos abordam a questão da


atuação do poder público no tema. Nesse sentido, um
dos entrevistados (Artista 13, 14/4/2015) afirma que “se-

150
TRABALHADORES DA CULTURA

ria muito diferente se rádio e TV cumprissem “os seus


deveres de concessão publica, e aí vai para aquela dis-
cussão da democratização da mídia...”. O músico desta-
ca que frequentemente escuta “não se faz mais música
brasileira como antigamente”. Mas se os meios tradicio-
nais de comunicação tivessem um comportamento mais
honesto em relação à produção atual a realidade cultural
do país seria completamente diferente, em termos de di-
versidade (Artista 13, 14/4/2015). O depoimento de outro
músico entrevistado, inclusive, levanta a defesa de cotas
nas programações:

Devia ter uma lei, dizendo: ‘É o seguinte, você


tem que tocar num sei quantas músicas por
dia, dessas músicas você tem que tocar uma
variedade x e você tem que tocar pelo menos
5 músicas de artistas novos’. A mesma coisa
vale pra TV (Artista 5, 30/4/2015).

Na mesma direção, outra entrevistada (Artista 1,


25/2/2016) defende a importância das TVs e rádios públi-
cas, afirmando que “tem que ter programação com músi-
ca de artista independente que de outra forma não estaria
ali”. Ela exalta o papel dos meios tradicionais de comuni-
cação públicos, exemplifica a recepção dos ouvintes mes-
mo quando apareceu em um programa local “pequeno” e
afirma a necessidade de distribuição/promoção da música
na rádio e na TV para o fechamento do ciclo de fomento
cultural do poder público.

A televisão pública, a rádio pública, elas têm


esse papel, sabe? Porque, uma coisa era a vida
no Recife com o programa Sopa Diário, que era
uma horinha, na hora do almoço, concorrendo
só com programa policial, que dá uma audiên-
cia danada. E mesmo assim fazia uma diferen-

151
TRABALHADORES DA CULTURA

ça incrível... das pessoas passarem na rua e fa-


larem: ‘ah, eu te vi no Sopa Diário’. E foi muito
engraçado que quando eu apareci... apareceu
um clipe meu segundos no NETV... aí as pes-
soas: ‘você voltou!’ Como eu voltei? Eu tô aqui!
‘Você voltou, te vi de novo na televisão! Eu te
via no Sopa Diário, te vi no NETV! Que mas-
sa, você voltou!’ Então, é o poder da televisão.
Então, imagina se uma Globo Nordeste bota
quinze minutos da programação diária... Isso é
uma coisa gigante, sabe? E isso fomenta pú-
blico que sai pra pagar. Mas é isso que eu digo:
a Prefeitura, ela poderia, enquanto Prefeitura,
e o Governo do Estado, enquanto Governo do
Estado... eles têm horário de publicidade, mas
eles deveriam ter horário de música, sabe?
Isso tá dentro. Se não dá pra tá dentro de uma
Secretaria de Comunicação, que seja na de
Cultura mesmo, porque isso faz parte de um
fomento cultural (Artista 1, 25/2/2016).

Finalmente, um dos entrevistados (Artista


7, 14/4/2015) levanta a importância da Lei da Mídia
Democrática e enfatiza:

As concessões estão concentradas, né? Não


pode...! Isso não é democracia. Não é um meio
de comunicação democrático se poucas pes-
soas têm um controle de todos os meios, in-
clusive da internet. A TV é um meio de comu-
nicação pública. A gente tem direito de divul-
gar o nosso trabalho na TV, eu acho impor-
tante isso. Porque a TV, queira ou não, ela é
muito mais assistida do que o nosso canal no
Youtube. Então pra gente seria importantíssi-
mo ir num programa grande de TV. Eu acho im-
portante músico independente no geral tentar
se inserir nos meios de comunicação, no rádio.
O que seria legal seria ter uma rádio e uma
TV mais justos. Um rádio que você não tives-

152
TRABALHADORES DA CULTURA

se que pagar pra participar de um programa...


(Artista 7, 14/4/2015).

A partir das entrevistas realizadas e dos dados cole-


tados sobre o emprego dos meios de comunicação hoje, é
possível concluir que embora a internet seja o meio mais
utilizado pelos músicos para distribuição e promoção de
suas atividades, não há uma dispensabilidade dos meios
tradicionais – rádio e TV – na dinâmica dos seus trabalhos.
Além dos limites da internet em relação à remuneração
do músico e alcance de público, há uma enorme lacuna no
gargalo da distribuição provocada pela ausência do rádio
e da TV no país, fortemente monopolizada por uma indús-
tria não mais fonográfica, mas da música, a qual não está
propriamente em crise, mas que reconfigura o tempo todo
o seu poder de articulação no sentido de manter e for-
talecer os seus oligopólios. Em paralelo a esse poder de
adaptação da indústria que renova os seus mecanismos
de concentração, emergem e resistem espaços de mobili-
zação alternativos e/ou independentes que sugerem todo
um campo de atuação do poder público na divulgação da
cultura, que extrapole os circuitos da internet.
No Brasil, a Constituição Federal (CF) de 1988 cons-
titui um marco de referência na legislação da radiodifusão
no país. Como resultado de anos de luta de setores da
academia e da sociedade civil organizada, nela foram ins-
critas normas e princípios no sentido de alterar substan-
tivamente a estrutura concentrada da radiodifusão brasi-
leira no rumo de sua democratização. A realidade, todavia,
revela que quase nada se avançou no que se refere às
condições de funcionamento e estruturação do merca-
do de radiodifusão. A inoperância do Congresso Nacional
na regulamentação das normas e princípios referentes à
comunicação social consagradas na CF/88 já foi, inclusi-

153
TRABALHADORES DA CULTURA

ve, objeto de Ações Diretas de Inconstitucionalidade por


Omissão no Supremo Tribunal Federal (STF), mas não há
uma prioridade quanto à pauta.

Vale registrar, em particular, a não regulamen-


tação de dois dispositivos constitucionais: (a)
o parágrafo 5º do artigo 220 e (b) o “Princípio
da complementaridade” inserido no caput do
artigo 223. No artigo 220 é garantida a livre
manifestação do pensamento, da criação, da
expressão e da informação mas, dentre outras
condições, destaca em seu parágrafo 5º: “Os
meios de comunicação social não podem, di-
reta ou indiretamente, ser objeto de monopó-
lio ou oligopólio”. A não regulamentação deste
parágrafo e a consequente ausência de qual-
quer restrição à propriedade cruzada tem per-
mitido a histórica concentração do controle da
comunicação social nas mãos de uns poucos
oligopólios empresariais. O caput do artigo 223,
por sua vez, determina que as outorgas e re-
novações de concessões para o serviço públi-
co de radiodifusão devem observar “o princípio
da complementaridade dos sistemas privado,
público e estatal”. A não regulamentação do
princípio da complementaridade, combinada
com a não regulamentação do parágrafo 5º do
artigo 220, tem permitido a manutenção do
flagrante desequilíbrio entre os sistemas de
comunicação social, com a predominância do
sistema privado.

Ao longo dos anos, aqueles que defendem a demo-


cratização da comunicação têm sustentado sua posição
em torno da necessidade da universalização da liberdade
de expressão, do direito à comunicação no sentido de ter
voz, isto é, de ouvir e ser ouvido, de acesso igualitário e
participação no debate público, de formação de uma opi-
nião pública democrática. Esses argumentos expressam

154
TRABALHADORES DA CULTURA

uma visão republicana de democracia apoiada na sobera-


nia e na participação populares.
Nesse sentido, desde 2012, a campanha “Para
Expressar a Liberdade – Uma nova lei para um novo tem-
po”, uma iniciativa do Fórum Nacional pela Democratização
da Comunicação (FNDC), tem movimentado centenas de
entidades do movimento social brasileiro. A campanha
tem como principal objetivo mobilizar o Brasil no intuito
de conseguir um novo marco regulatório da comunicação,
por meio do apoio ao Projeto de Lei de Iniciativa Popular da
Comunicação Social Eletrônica, conhecido como Projeto de
Lei da Mídia Democrática, que regulamenta os arts. 5, 21,
220, 221, 222 e 223 da CF. A proposta precisa da adesão de
1% do eleitorado nacional para ser protocolada na Câmara
dos Deputados e poder seguir o trâmite até virar lei, o que
abrange cerca de 1,3 milhão de adesões. No seu conteúdo,
um dos pontos da proposta é promover e fomentar a cul-
tura nacional em sua diversidade e pluralidade, mediante o
fim dos oligopólios e monopólios de mídia, a transparência
nas concessões de canais de rádio e televisão e o fortaleci-
mento da comunicação pública e comunitária.
A Lei nº 12.965/14, por sua vez, foi um dos últimos
atos de Dilma Rousseff como presidenta da República.
Sancionado em 23 de abril de 2016, o Marco Civil da
Internet, como também é conhecido, estabelece princí-
pios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet
no Brasil. Entre os principais pontos da Lei está a neutra-
lidade, cujo conteúdo informa que a rede deve ser igual
para todos, sem diferença quanto ao tipo de uso, o que
significa que os provedores de acesso devem tratar to-
dos os dados que circulam na internet da mesma forma,
sem distinção por conteúdo, origem, destino ou serviço.
Com a neutralidade, um provedor, por exemplo, não pode
beneficiar o fluxo de tráfego de um site ou um serviço

155
TRABALHADORES DA CULTURA

em detrimento do outro. Assim, a Lei garante a escolha


do usuário sobre o conteúdo que deseja acessar e a livre
concorrência na rede.
Inegavelmente uma conquista democrática e co-
letiva, o Marco Civil da internet, via decreto, prevê que
a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), a
Secretaria Nacional do Consumidor e o Sistema Brasileiro
de Defesa da Concorrência atuarão, de acordo com sua
competência e natureza do tema tratado, na regulação, na
fiscalização e na apuração de infrações praticadas pelos
provedores de serviços de internet (arts. 17 a 19). A apura-
ção das infrações ao Marco Civil da Internet e ao decreto
atenderá aos procedimentos internos de cada um dos ór-
gãos fiscalizatórios e poderá ser iniciada de ofício ou me-
diante requerimento de qualquer interessado (art. 21). As
estruturas classistas e concentradoras de poder na socie-
dade, contudo, não são resolvidas (apenas) por legislação,
senão por um esforço do próprio Estado e suas frestas de
resistência via entidades representativas e movimentos da
sociedade civil.

4.3 Consumo e recepção

O desenvolvimento das tecnologias da informação


ao longo do tempo, além de reconfigurar o binômio entre
arte e técnica, reajusta a comunicação entre artista e pú-
blico. A internet e as redes sociais possibilitam hoje uma
interação mais direta entre o músico e seu público, con-
forme informa um dos entrevistados (Artista 7, 14/4/2015).
Nesse contexto, as falas dos entrevistados abordam tanto
o artista que vai atrás do seu público, quanto o público
que “vai atrás do seu artista”. Segundo os músicos, os
artistas que têm a internet como principal meio de comu-

156
TRABALHADORES DA CULTURA

nicação acabam encontrando um jogo de interação e fee-


dback do público muito “sincero e gratificante” (Artista 13,
14/4/2015). Esse entrevistado (Artista 13, 14/4/2015) explica
que “na época das gravadoras o artista era um cara genial,
aquele maluco que vivia fazendo loucura no camarim, no
palco”. Hoje, o músico responde pela sua obra, pelo que
faz, pelo que posta, pelo que sai no jornal. Nos termos
dele, “a conversa é direta!”.

O cara que vai ouvir o teu trabalho ele vai estar


em contato com a obra daquele artista mes-
mo. Ele pensou a capa, ele pensou a comuni-
cação, sabe? Antigamente era tudo montado,
a roupa do cara era montada, a capa do disco,
o papo... Hoje é tudo muito franco. Acho que
essa franqueza é característica de nossa épo-
ca. [...] Antigamente o artista era mistificado...
Não que o cara não fosse bom, mas o cara
tinha 15 produtores!!! Tinha milhões de reais
investidos... (Artista 13, 14/4/2015).

Nas páginas dos artistas entrevistados encontram-


-se muitos exemplos dessa interação direta, como pedi-
do de informações de horários, preços e locais de shows,
avaliação de videoclipes e/ou músicas e demandas de
apresentações. Nesse sentido, a internet funciona tanto
como instrumento de alcance de um público determina-
do, quanto da intensidade das relações. Essa condição foi
ressaltada por um dos músicos (Artista 19, 4/3/2016) que
afirmou que a internet age de forma muito mais intensi-
va do que expansiva. O músico conta que a resposta do
público é muito importante para a banda, até mesmo do
ponto de vista da produção. Em uma experiência de troca,
sua banda pediu para os ouvintes que tirassem fotos de
situações despertadas a partir da audição do disco. “Isso
gerou tantas fotos e interações que produzimos um livro.

157
TRABALHADORES DA CULTURA

Era outra forma de atingir não só quem tava sabendo da-


quela rede, daquele circuito, mas aqui fora também. Os
livros se esgotaram rapidamente” (Artista 19, 4/3/2016).
No universo do consumo/recepção da música con-
siderada independente hoje é importante destacar o
caráter cult, também chamado de indie e hipster, que
ronda esse tipo de produção. O termo indie (abreviação
de independente) entrou em uso no início da década de
1980, quando músicos e produtores passaram a agir de
forma autônoma às grandes gravadoras, principalmente
no Reino Unido e nos Estados Unidos. Hoje o termo se
aplica à indústria cultural de forma geral e faz referência
a um estilo que busca a popularidade restrita. Já o termo
hipster é frequentemente utilizado para se referir a um
grupo de pessoas pertencentes a um contexto social da
classe média urbana. A cultura  hipster  é marcada pela
música considerada indie, na medida em que arrogam
pouca popularidade e muita originalidade. Mas qual o fa-
tor ilusório presente no ambiente da circulação dessas
mercadorias? Seria o trabalhador da arte ou da cultura
considerada independente um trabalhador da estética?
Embora os termos indie e hipster signifiquem muito
mais a cristalização de um estereótipo massificado e me-
diado para entender, categorizar e “marketizar” um tipo de
consumidor, importa ressaltar que a ideia do independen-
te é fortemente relacionada a essas tags. Um dos músicos
reforça essa premissa ao afirma que o independente não
interage com o público do sertanejo, com o tecnobrega ou
com o funk carioca, por exemplo (Artista 2, 2/9/2015). Em
outro contexto, destaca-se a seguinte narrativa: “A gente
fala muito para as pessoas de classe média com alguma
escolaridade que vive em um determinado nicho dentro da
realidade do Brasil. É um pedaço do mercado que acredita
que não lida com o mercado” (Artista 19, 2/9/2015). Com

158
TRABALHADORES DA CULTURA

mesmo raciocínio, outra artista faz menção “a música que


o povo consome” para fazer distinção da sua (Artista 12,
13/4/2015). É preciso frisar, contudo, que a pretensa supe-
rioridade da música considerada independente não é uma
regra observada nas entrevistas, mas passa por alguns en-
trevistados, em sua minoria.
Nesse contexto da lógica da diferenciação percebem-
-se os gostos como marcadores de distinção, associados ao
nível de instrução e origem social, constituindo modos de
práticas sociais. Trata-se dos gostos enquanto disposição
adquirida para diferenciar, estabelecer ou marcar diferen-
ças por uma operação de distinção. É assim que a arte e o
consumo artístico estão predispostos a desempenhar uma
função social de legitimação das diferenças sociais. Nesse
sentido, Bourdieu (2008, p. 99) se pergunta sobre os usos
sociais aos quais se presta cada tipo de arte, ao trazer, por
exemplo, benefícios simbólicos e distinção para um grupo
seletivo de pessoas, estruturando um estilo de vida carac-
terístico. O autor recorre ao princípio unificador ou gerador
das práticas, o habitus de classe, como forma de explicar
um conjunto de agentes situados em condições homogê-
neas de existência, “impondo condicionamentos homogê-
neos e produzindo sistemas de disposições homogêneas,
próprias a engendrar práticas semelhantes” (BOURDIEU,
2008, p. 97).
O habitus enquanto capacidade de produzir práticas
e obras classificáveis, além da capacidade de diferenciar e
de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), cons-
titui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos
estilos de vida. No público considerado cult, indie e/ou
hipster é preciso destacar o poder propriamente de cons-
tituir, instituir e impor, uma categoria particular de sinais.
É o que Bourdieu (2008, p. 100) chama de capital cultural
e que está frequentemente ligado ao capital econômico,

159
TRABALHADORES DA CULTURA

impelindo um grupo de pessoas para a maximização dos


rendimentos distintivos e ao consumo ascético. Nesse
contexto, destaca-se a presença e o efeito de homologias
(BOURDIEU, 2008, p. 102), que são os interesses específi-
cos de distinção, os quais podem ser totalmente desinte-
ressantes para outros públicos.

As diferentes frações de classe dominante


distinguem-se precisamente no aspecto em
que participam da classe considerada em seu
conjunto, ou seja, pela espécie de capital que
se encontra na origem de seu privilégio e por
suas maneiras diferentes de diferir do comum
e de afirmar sua distinção que lhe são corre-
latas (BOURDIEU, 2008, p. 240).

Nesse sentido, as tags cults, indies e/ou hipster,


além de cumprir um papel de distinção, são acessíveis,
sobretudo, a uma parcela de consumidores que executam
a função de descobridores desse tipo de arte de vanguar-
da. Ao mesmo tempo em que consome, o público cult
também cumpre o papel de instância de consagração. São
esses fatores combinados que explicam porquê os fenô-
menos musicais autônomos massivos e populares (o tec-
nobrega paraense, o arrocha na Bahia ou o funk carioca,
por exemplo) não sejam categorizados como parte de uma
cena independente pelas mídias e festivais especializados.
O que está em jogo na lógica da diferenciação estética do
independente presente em poucas narrativas dos artis-
tas entrevistados, portanto, é um conjunto de posições e
tomadas de posições pelos agentes de um determinado
universo simbólico que busca a distinção, relacionados,
sobretudo, a uma fração de classe dominante e privilegia-
da, em razão de um capital cultural específico, que tam-
bém é econômico.

160
5 VIVER DE MÚSICA

No contexto das atividades culturais, o empreen-


dedorismo é reconhecido como a forma mais apropriada
de encarar os desafios do “trabalho criativo” hoje. A par-
tir das configurações do mercado e da economia cultural
contemporânea, multiplicam-se os artigos, encontros, fei-
ras, rodadas de negócios e manuais com dicas “valiosas”
para quem pretende viver de arte e cultura, que vão desde
a importância do network até o estudo do planejamento
e da realização da carreira. Para entender “como viver de
música” e seus significados no mundo do trabalho, este
capítulo aborda o engendramento de comportamentos e
práticas ditas empreendedoras, presentes nos discursos
dos músicos entrevistados, e suas relações com as face-
tas da precarização analisadas no Capítulo III.
Dos 22 artistas que compõem a amostra desta pes-
quisa todos afirmam “viver de música”, pois seus rendi-
mentos vêm exclusivamente ou prioritariamente da mú-
sica, ao mesmo tempo em que confirmam o caráter fle-
xível, contínuo, informal e pulverizado de suas atividades.
O empreendedorismo cultural é reafirmado nas narrativas
em suas ambiguidades fundamentais, tanto no aspecto
positivo da autonomia e liberdade artística, quanto no as-
pecto negativo das consequências da intermitência, po-
livalência e intensidade do trabalho. As análises desses
discursos ajudam a compor as condições de trabalho do
músico independente ou autônomo que geralmente pres-
ta seus serviços a mais de uma banda, gravando, ensaian-
do e tocando com outros artistas. Suas principais fontes
de renda vêm dos shows, mas eles também compõem
suas receitas por meio da produção de trilhas sonoras,
jingles, festas e atividades de docência (exemplos mais ci-

161
TRABALHADORES DA CULTURA

tados). O objetivo deste capítulo é analisar as condições


concretas do trabalho artístico independente traduzidas
no “viver de música”.

5.1 Indústria do show

A substituição parcial de um modelo de negócio cen-


trado na indústria fonográfica para o show redefine o foco
da cadeia produtiva da música, como bem afirma um dos
entrevistados: “a gente tinha uma ilusão de que quando
a gente lançasse o disco que ia resolver nossa vida e não
resolveu. Então, a gente apura mesmo é durante o show”
(Artista 9, 19/2/2016). Nessa direção, quando indagados so-
bre a estrutura de renda básica que lhes possibilita viver de
música, segundo a importância das atividades exercidas, os
22 músicos entrevistados foram unânimes em destacar as
apresentações ao vivo como sendo a maior fonte de remu-
neração: “a sobrevivência e a vivência musical migrou pro
show, em torno dos shows” (Artista 13, 14/4/2015).
Na indústria do show, os músicos destacam a neces-
sidade de, pelo menos inicialmente, tocar de graça para
“formar público”, uma vez que “se você não tiver público,
você não tem nada” (Artista 7, 14/4/2015). Nesse sentido:

Se você tiver público você já consegue certa


entrada no mercado, mesmo sendo peque-
na, mas você consegue. Porque, por exemplo,
imagina uma banda que está começando ago-
ra. Se ela tiver um público de 50 pessoas ela
consegue tocar num barzinho e o cara vai dei-
xar ela tocar ou tocar no Mundo Pensante, na
Serralheria. Vai tocar num bar que não paga
cachê, mas tem bilheteria... O dono do bar vai
deixar você tocar porque ele sabe que você vai
trazer público (Artista 7, 14/4/2015).

162
TRABALHADORES DA CULTURA

Quando se trata de comentar a forma de contrato e


recebimento da remuneração nos shows, a totalidade dos
músicos salienta o caráter flexível, e muitas vezes infor-
mal, da forma de pagamento, condicionado ao “depende
de onde vou tocar”. Na iniciativa privada, as formas de
pagamentos citadas pelos artistas variam, desde “pagar
para tocar”, ou não receber “nada”, passando pelo rece-
bimento de galinhas, “ajuda de custo” e escambos varia-
dos, até chegar na participação de bilheteria e no cachê,
cujos valores e condições são flexíveis. A frequência dos
shows durante o ano também é variável: “tem períodos
que são mais complicados e períodos que são mais tran-
quilos” (Artista 14, 5/5/2015). Sobre o recebimento dos
seus shows e a necessidade de respeito e valorização do
seu trabalho, a fala seguinte é emblemática:

Já recebi galinha! É bom até falar isso, sabe?


É bom porque também eu não sou advogado,
eu não sou médico, eu sou músico... Faço mú-
sica. Então quer dizer: é bom que me paguem
pelo meu trabalho. Porque se não, não vai ter
espetáculo. Só fiz música na minha vida toda.
A única coisa que eu fiz na vida mesmo foi mú-
sica. Então eu quero que respeitem isso, sabe
como é? (Artista 18, 13/8/2014).

Uma outra forma de remuneração citada pelos ar-


tistas é o escambo de “serviços criativos”, as quais os
músicos se submetem pois precisam trabalhar, conforme
destacam em suas narrativas (Artista 20, 21/7/2014). Para
um dos entrevistados, desde o início da sua carreira, o es-
cambo é praticado de forma constante: “chamava alguém
pra gravar e depois eu prestava serviço pra essa pessoa.
Fazia foto de divulgação e aí a gente tocava na exposição
pra poder ter as fotos de divulgação”. Segundo o músico,
o escambo é algo que permeia o seu trabalho até hoje e

163
TRABALHADORES DA CULTURA

faz parte do ciclo de informalidade e flexibilidade ao qual


está incluído (Artista 20, 21/7/2014).
As remunerações de bilheteria e cachês também
assumem valores negociáveis, “dependendo do contexto”.
Um dos entrevistados (Artista 13, 14/4/2015) afirma que,
às vezes, toca com direito a participação na bilheteria, ou
seja, recebe uma porcentagem do valor arrecadado com
os ingressos pagantes, enquanto o restante fica com a
casa de show que promove o espetáculo. Outras vezes,
consegue tocar com “cachê cheio”, cujo valor varia, de-
pendendo do local e do contratante. Da mesma forma, o
músico já “perdeu dinheiro” para “fazer público”. Ele afir-
ma que essa alternância de sua remuneração é “típica” do
mercado em que está inserido: “se você não entender isso
e não se movimentar você não paga suas contas” (Artista
13, 14/4/2015).
A bilheteria é a principal fonte de renda dos artistas
que tocam nas pequenas casas de shows em São Paulo.
Essa opção, de acordo com os músicos, informa a difícil
condição financeira das próprias casas de shows, como su-
blinha um dos entrevistados (Artista 7, 14/4/2015) ao referir-
-se ao Centro Cultural Rio Verde, Espaço Cultural Puxadinho
da Praça, Mundo Pensante, Casa do Mancha e Serralheria19.

Eles pagam bilheteria porque na verdade eles


são que nem a gente. Dá pra fazer um estudo
desses com as casas de shows... Eles também
são que nem a gente. Tem uma coisa de ajuda
mútua, assim... Eles também estão na batalha,
sabe? Eles também precisam chamar ami-

19  Em 2014, pequenas casas de palco permanente de São Paulo, que priorizam
criações autorais em música, decidiram reunir-se para trocar experiências.
As casas: Central das Artes, Rio Verde, Casa do Núcleo, Casa do Mancha,
Puxadinho, Serralheria, Zé Presidente, Mundo Pensante, Epicentro Cultural,
Jongo Reverendo, JazzB e Jazz nos Fundos, uniram-se num coletivo batizado
de P10 - Casas de Música Autoral SP, para discutir estratégias mercadológicas.

164
TRABALHADORES DA CULTURA

gos pra ir na casa, também precisam divulgar


pra caramba porque as casas estão sempre
que nem a gente, meio na luta pra continuar
(Artista 7, 14/4/2015).

No mesmo sentido, a narrativa de um dos músicos


paulistanos (Artista 5, 30/4/2015) destaca que as peque-
nas casas de show em São Paulo “é um negócio que nin-
guém fala e que no final das contas é o PF (prato feito) dos
músicos”. Ratifica-se a ideia de que nas pequenas casas
de show as pessoas são como os músicos independentes,
no sentido de que são “uns caras que não ganham grana,
os caras que gostam de música, aí troca ideia com você,
dá um jeito, você vai e faz o negócio acontecer só pelo
puro prazer de fazer essa música de invenção” (Artista 5,
30/4/2015).

Olhe, artista é assim hoje em dia: você vai de


busão ou a passagem de avião mais em conta,
fica na casa dos brothers, rachamos a bilheteria
e vão 120 pessoas, por exemplo, absolutamen-
te concentradas na minha música, num lu-
gar pequeno, ficam te ouvindo fazer a música
mais esquisita do mundo, e aí é uma alegria...
(Artista 5, 30/4/2015).

Na dinâmica dessas pequenas casas de apresenta-


ção, os músicos explicam que precisam se esforçar para
levar o público. E que isso, inclusive, faz parte do tra-
balho contínuo de divulgação de sua música. Tocar no
Puxadinho da Praça, exemplifica um entrevistado (Artista
6, 30/4/2015), “não dá grana. No máximo uns 1000 reais, se
encher a casa...”. Mas que o importante, nesse caso, não
é o dinheiro direto. O importante é “você fazer os shows
em lugares diferentes, ter um público que vai... E aí não é
uma questão financeira, é uma questão de circular”. Hoje,

165
TRABALHADORES DA CULTURA

o músico afirma que consegue entender essa lógica e que,


independente de ganhar dinheiro direta ou indiretamente,
se prepara “como se fosse um show no SESC” (Artista 6,
30/4/2015).
O exemplo do SESC em São Paulo é citado várias ve-
zes pelos artistas entrevistados enquanto principal chan-
ce de ganhar um “cachê cheio”. Um dos músicos afirma
que é no SESC, quando recebe um cachê “interessante”,
que pode pagar toda a equipe (Artista 6, 30/4/2015). Outro
artista reitera que a remuneração em forma de dinheiro só
acontece quando tem um festival bancado por edital ou
um show no SESC. “De novo, o velho SESC. Mas o SESC é
onde se paga cachês” (Artista 5, 30/4/2015).

Os caras das pequenas casas eles abrem o


jogo ‘Moçada, a gente não tem grana. A gente
ama vocês, a gente pode fazer assim e assim.
Vocês topam ficar na casa do fulano? A casa
é massa, tem um rango massa...’ Aí você vai,
fica na casa do cara, conhece o cara, o cara te
leva pra tomar uma, é massa demais... E vai no
show, o show tá cheio, as pessoas te amam e
tá massa. E você não perdeu dinheiro, ou seja,
tá ótimo! Ai quanto mais gente souber, quanto
mais mercado tiver, quando mais dinheiro ti-
ver, quanto mais apoio do governo tiver, a coi-
sa vai melhorando... (Artista 5, 30/4/2015).

Nesse contexto, outra entrevistada (Artista 11,


7/5/2015) também destaca a importância da rede de rela-
ções na circulação do seu trabalho no Brasil e no mundo,
por meio da ideia de “parceria” com produtores e casas
de shows. Deixa claro que existem vários tipos de con-
versação nos cachês e condições de trabalho. Que não
pode esperar que a prefeitura crie um espaço de apresen-
tação, por exemplo, porque precisa “fazer a coisa rolar”.

166
TRABALHADORES DA CULTURA

Para tanto, entra em diversas parcerias em uma rede de


independência, sempre com a ideia de realização do seu
trabalho, mais do que, propriamente, uma boa remunera-
ção financeira.

Então, a gente brinca que uma hora vai ter um


roteiro, um mapa de pessoas maluquinhas em
várias cidades (risos). [...] São produtores que
têm essa mentalidade: ‘Bom, mudou o qua-
dro. Como é que a gente vai fazer pra coisa
rolar?’. Porque, caso contrário, você fica ali es-
perando que a prefeitura crie um teatro... O
Metá Metá é um coletivo, mas que lida com
o Rodrigo Campos, tem o Marcelo Cabral, o
Romulo (Fróes)... Um ajuda no disco do outro,
grava sem cachê, toca sem cachê... É isso...
Um grupo de pessoas que tem essa mentali-
dade de fazer a coisa rolar de alguma maneira,
né? Não ficar esperando sentado que o edital
role pra você gravar o seu disco [...] Não! Vai
atrás, né? E esse povo das casas, tem várias
reuniões, eles conversam direto... Esse povo
que tá achando maneira de viabilizar a histó-
ria... E estão sempre no vermelho, estão sem-
pre correndo atrás. Não é um negócio fácil,
sabe? Quem resiste é quem tem a mentalida-
de de ‘Bom, vamos na parceria’, e vai levando...
(Artista 11, 7/5/2015).

Na cidade do Recife o circuito das casas noturnas


e espaços de shows voltados a públicos interessados nas
propostas de músicos independentes, tal qual aqui con-
ceituado, é bem menor que em São Paulo. Nesse contexto,
os artistas que estão em Recife explicam que é bem mais
difícil “fazer bilheteria” na cidade. “Tentar fazer bilhete-
ria aqui é complicado. Você sair de casa e ter toda uma
logística de organizar tudo e você voltar pra casa sem di-

167
TRABALHADORES DA CULTURA

nheiro... É uma realidade de Recife” (Artista 1, 25/2/2016).


Com a ausência de um circuito consolidado de peque-
nos espaços de apresentação, a cidade conta com o apoio
do governo do Estado, sobretudo no ciclo de festas (com
destaque para o Carnaval e o São João).
Mas, em relação aos shows contratados pelo poder
público, muitas são as críticas dos artistas entrevistados.
Desde os critérios de seleção dos artistas, passando pelas
condições de contratações, até a demora nos pagamentos
dos cachês e desvios de verbas. Em Recife, por exemplo,
um dos músicos (Artista 9, 29/2/2016) narra que o gru-
po do qual faz parte conseguiu um patamar artístico que
elevou o seu cachê. E que, por isso, a banda muitas vezes
não consegue entrar nas grades dos grandes festivais pro-
duzidos pelo Governo.

Como é que vai se pagar, por exemplo, quinze,


vinte mil reais a um grupo de coco? É inad-
missível. O Tribunal de Contas do Estado não
admite isso, mas admite Sandy e Júnior che-
gar aqui e ganhar 300 mil; Caetano Veloso e
tal. Isso é super normal. Pra eles, isso é nor-
mal. Então, eu enquanto negro, enquanto ar-
tista que faz a música da comunidade negra,
a gente sente isso na pele mesmo. A propa-
ganda de atração pro turista... Se fosse aqui-
lo ali, o carnaval realmente era a coisa mais
linda, mas não é nada daquilo que se propa-
ga. Não é o caboclo de lança. O caboclo de
lança tá lá à míngua, dentro do busão, ferrado
pra ganhar um pão com manteiga. Mas você
vai ver os nossos gestores dando entrevistas
com camisas estampadas com belos cabo-
clos de lança, com o homem da meia noite,
sorrindo, dizendo que a cultura popular ta aí
e dando entrevista dentro de camarote, né?
(Artista 9, 29/2/2016).

168
TRABALHADORES DA CULTURA

Em texto intitulado Realidade do maracatu rural


para além do marketing cultural, Lula Marcondes (2015)
relata a experiências de um grupo de Maracatu Rural de
Pernambuco em polos de carnaval. Apesar de ser um re-
lato sobre vivências recentes e específicas de apenas um
grupo, elas têm um caráter mais amplo e se reproduzem
de forma sistemática na relação do Estado com outras
agremiações de Maracatu Rural. O texto expõe a maneira
humilhante e abusiva com que alguns governos munici-
pais tratam os brinquedos de maracatu durante o ano e,
principalmente, no carnaval. Uma realidade bem diferente
da que é proposta nos planos de marketing e publicida-
de para venda do Maracatu Rural como produto cultural
pelo mundo afora. “Um maracatu com mais de 80 com-
ponentes, que viaja quilômetros com um elenco formado
de brincantes das mais variadas idades entre crianças e
idosos, chega a receber entre R$ 200,00 e R$ 300,00 por
apresentação” (MARCONDES, 2015, p. 2).
Ao analisar os dois principais eventos culturais com
patrocínio do Estado em São Paulo e em Recife – Virada
Cultural e Carnaval, respectivamente - observam-se as
disparidades de cachês entre artistas considerados in-
dependentes e artistas de grandes gravadoras. No Portal
da Transparência da Prefeitura de São Paulo, constata-se
que os cachês da Virada Cultural 2016 para os músicos
independentes giraram em torno de R$ 20.000,00 (vinte
mil reais), ao passo que existiu cachês na casa dos R$
148.000,00 (cento e quarenta e oito mil reais). As bandas
Cidadão Instigado e Academia da Berlinda (que foram en-
trevistadas por esta pesquisa) receberam, cada uma, R$
21.000,00 (vinte e um mil reais) e R$ 22.000,00 (vinte e dois
mil reais), respectivamente. A banda Aláfia, que poderia
estar na amostra desta pesquisa, recebeu R$ 10.000,00. Os
cantores Ney Matogrosso e Alcione receberam, cada um,

169
TRABALHADORES DA CULTURA

148.000,00 e 90.000,00, respectivamente (PREFEITURA DE


SÃO PAULO, 2016).

Em Recife, além das disparidades dos cachês,


as críticas giram da demora do recebimento
do valor acordado. Em 2015, nas vésperas do
Carnaval, os artistas recifenses ainda não ti-
nham recebido os cachês do São João de 2014.
No Carnaval de 2016, por sua vez, os artistas
não tinham recebido os cachês da folia de 2015.
O atraso no pagamento fez com que vários ar-
tistas pernambucanos, como Nação Zumbi,
China, Alessandra Leão e Fábio Trummer de-
clarassem publicamente que não iam tocar no
Carnaval de 2013, em boicote e protesto à falta
de respeito da Secretaria de Cultura local. Em
entrevista a esta pesquisa, uma das artistas
comenta como a dinâmica dos atrasos de pa-
gamentos atinge a produção e distribuição do
trabalho musical independente.

A questão da política de pagamento mesmo...


É muito burocrática e muito descompromis-
sada. Porque você investe pra tocar. Você paga
van, você paga equipe técnica, você paga hos-
pedagem, você paga alimentação... Se você
tem capital de giro você entra num esquema
desse. Ou então você bota num cartão de cré-
dito e você não sabe quando vai receber. A
(Academia da) Berlinda tocou no Festival de
Inverno de Garanhuns esse ano no palco prin-
cipal da Guadalajara. O povo lá dançando, se
requebrando... Lotou! E você vê aquele cama-
rote dos políticos... Um derrame de dinheiro,
de bebida, de tudo, sabe? E o artista não rece-
be até hoje... São seis meses de atraso já!!! É
complicado, né? (Artista 21, 13/8/2014).

Finalmente, o desvio de verbas com eventos musicais


tem sido uma questão preocupante nos fóruns de discus-

170
TRABALHADORES DA CULTURA

são do tema. No ano de 2009, em uma sessão que durou


quase três horas, a Primeira Câmera do Tribunal de Contas
do Estado de Pernambuco julgou irregular uma auditoria
especial realizada na Fundação do Patrimônio Histórico e
Artístico de Pernambuco (Fundarpe), cujo objeto foi anali-
sar possíveis irregularidades na contratação de artistas em
eventos musicais. A ação resultou em uma devolução de R$
2.187.280,00 aos cofres públicos estaduais.
Ainda nos meandros das contratações com o poder
público, um dos músicos (Artista 7, 14/4/215) disponibili-
zou contrato com o Estado de São Paulo para a elucidação
das condições de realização e remuneração dos shows no
caso de “Parceria para a realização de eventos culturais”.
Nessa situação, o Estado cede ao “parceiro”, ou seja, a
banda, a permissão para usar a estrutura de uma praça,
disponibilizando um técnico de som e equipamentos de
som. A banda, por sua vez, arca com toda a organização e
produção do show (o qual deve ser aberto ao público, sem
cobrança de ingresso), controla a entrada e saída das pes-
soas, tem responsabilização civil, penal e/ou trabalhista
ao longo da produção e execução da apresentação, e nada
recebe a título de remuneração.
Na esteira da centralidade dos shows enquanto
uma das principais consequências assumidas pela re-
estruturação produtiva no campo musical, bem como
das configurações atribuídas pela independência nesse
contexto não mais mediado pela estrutura das grandes
gravadoras, destaca-se a importância dos festivais inde-
pendentes, assim como do conjunto de mídias e encon-
tros especializados na promoção e circulação de artistas
independentes. Uma das mais citadas e importante ini-
ciativas nesse sentido foi a criação, em 2005, do Circuito
Fora do Eixo (FdE) e da Associação Brasileira de Festivais
Independentes (ABRAFIN).

171
TRABALHADORES DA CULTURA

No início da década passada, a ABRAFIN (2010) já


contava com 44 festivais em diversas regiões brasilei-
ras. Segundo dados dessa própria Associação, no mesmo
ano, esses festivais chegaram a atingir público em torno
de 300 mil pessoas, com shows de pelo menos 600 ban-
das nacionais e internacionais. A partir do final de 2011, a
ABRAFIN passou por um processo de críticas, sobretudo
à sua associação (considerada excessiva) ao FdE, e sofreu
uma desfiliação de 13 importantes festivais, consolidando
uma divisão no campo dos festivais independentes brasi-
leiros. Em julho de 2012, a ABRAFIN foi renomeada como
Rede Brasil de Festivais (RBF). Os festivais desfiliados à
RBF/ABRAFIN, por sua vez, criaram em novembro de 2012
a entidade Festivais Brasileiros Associados (FBA)20, a qual
passaria a atuar de forma autônoma ao FdE.
O Circuito FdE surgiu a partir do encontro e arti-
culação entre o coletivo cultural Cubo Mágico (Cuiabá-
MT), do qual faziam parte Pablo Capilé e Lenissa Lenza,
e produtores de coletivos de Uberlândia-MG, Rio Branco-
AC e Londrina- PR. Paradigma de rede e de fluxo, o FdE
se estabeleceu, inicialmente, a partir da proposta de co-
nectar nacionalmente cenas musicais independentes lo-
cais, por meio de uma gestão organizacional “colabora-
tiva, horizontal, autônoma e livre” entre coletivos, tendo
como suportes facilitadores as novas tecnologias digitais.
A meta mais ampla seria colaborar com a construção de
uma “nova geografia musical” e um “novo mapa cultural
no país”, de modo a fortalecer circuitos sustentáveis de
produção e circulação fora do eixo Rio-São Paulo (FORA
DO EIXO, 2015).

20  Fazem parte do FBA: Abril Pro Rock (PE), Goiânia Noise Festival (GO),
Porão do Rock (DF), Mada (RN), Festival Demo Sul (PR), Rec Beat (PE), Festival
Casarão (RO), Primeiro Campeonato Mineiro de Surf (MG), Tendencies Rock
Festival (TO), Festival El Mapa de Todos (RS), Psycho Carnival (PR), Festival
53HC (MG), Festival Udirock (MG), Araribóia Rock (RJ), PMW Rock Festival (TO),
TOME - Tocantins Música Expressa (TO) e Flaming Nigths (MG).

172
TRABALHADORES DA CULTURA

Interessa aqui os mecanismos do coletivo em ter-


mos de remuneração dos shows que contratam, uma vez
que multiplicam-se as críticas dos artistas em relação ao
não pagamento de cachês por parte do FdE, ou o seu paga-
mento na forma de CuboCard (a moeda inventada por Pablo
Capilé). Nesse sentido, foram reunidas denúncias de Daniel
Peixoto (ex-Montage), Diogo Soares (Los Porongas) e Bruno
Kayapy (Macaco Bong), além do posicionamento crítico
em redes sociais de diversos artistas, como Tulipa Ruiz,
Guizado, Jesus Sanches, Regis Damasceno, Rafael Castro,
Catarina Dee Jah, Maurício Fleury, Negro Leo, Karina Buhr,
Thiago França, entre outros.
Em seu sítio na internet, China – cantor e compositor
pernambucano – escreveu o texto intitulado “Fora do Eixo
e Longe de Mim” (2012) para esclarecer o funcionamento
do FdE. Segundo o músico, embora os números indiquem a
quantidade de eventos – a maioria subsidiado por dinheiro
público – muitas bandas reclamam da ausência do paga-
mento, além da falta de estrutura para realizarem seus tra-
balhos. Abaixo a transcrição do seu depoimento.

Eu vivo da música e pre­ ciso rece­


ber os ca-
chês dos shows para con­ se­
guir sobre­
vi­
ver. Ainda não estão acei­ tando ‘cubo
card’ na pada­ ria e em nenhuma con-
ta que eu tenho que pagar no fim do  mês.
Aí eu per­gunto: se tem dinheiro público na pa-
rada é por­que rolou um edi­tal, certo? Se ro-
lou um edi­tal, tinha lá o nome das ban­das que
toca­ram, certo? Se tinha o nome das ban­das,
devia ter o valor cobrado pelas apre­sen­ta­ções,
certo? E se tinha isso tudo, cadê o dinheiro
para pagar as ban­das?  Não, meus caros, não
são todos que rece­bem pelos shows. Apenas
alguns. Talvez os que apóiam as ações do cole­
tivo FdE. Uma banda (que não cita­rei o nome)
disse que fez uma turnê pelo FdE. Quase trin-

173
TRABALHADORES DA CULTURA

ta shows. Desses quase trinta, ape­nas três ou


quatro tive­ram cachê (que foram pagos pelos
SESCs onde eles se apre­sen­ta­ram). Os outros
vinte e tan­tos foram em luga­res que não ti-
nham a menor estru­ tura para se apre­sen­
tar.
Som de pés­sima qua­li­dade e equipe inex­pe­ri­
ente. Sem falar no público de menos de vinte e
cinco pes­soas… numa quinta-feira, e no inte­
rior sei lá de onde. E os músi­cos ainda tinham
que ficar pela casa dos ami­gos. Só quem cres-
ce no FdE é o pró­prio nome do cole­tivo, que
usa o talento e o suor das ban­das para garan­tir
a pró­xima verba para as suas atividades. Esse
papo de que estão aju­dando a cena inde­pen­
dente é con­ versa mole. Alguns mem­ bros do
FdE estão fazendo nome em cima dessa cena.
[...] Concluindo… Não sou con­tra o FdE! A ideia
é linda mesmo. Sensacional! Imagina uma rede
de fes­ti­vais pelo país inteiro… onde as ban­das
vão cir­cu­lar e mos­trar o seu tra­ba­lho? Chega
a emo­ci­o­nar. O modus ope­randi é que é estra­
nho, esqui­sito mesmo. [...]

Mais estra­ nho ainda era o fato deles pega­


rem grana pública para ban­ car os fes­ ti­
vais
e não paga­ rem aos artis­tas que não ‘esta­
vam’ com eles, claro. E não estou falando
de calote. O papo era reto; não temos ca-
chê para te pagar. Se qui­ ser tocar é assim.
Já me con­vi­da­ram para tocar em alguns fes­
ti­vais orga­ni­za­dos pela ABRAFIN. Nunca topei.
Mas o papo era: China, te damos ali­men­ta­ção,
hotel e pas­ sa­
gens aéreas para a sua banda.
Para a equipe não rola, pois temos ótimos pro­
fis­si­o­nais aqui (que nunca tra­ba­lha­ram comigo,
vale lem­brar). E eu per­gun­tava: Mas e o cachê?
E a res­posta era: Cara, você vai ter a chance
de tocar para um grande público e ainda pode
pas­sar o fim de semana aqui para conhe­cer a
cidade. Não temos como te pagar um cachê.
Minha res­posta era (aprendi com um amigo):

174
TRABALHADORES DA CULTURA

Se vocês me derem hotel e ali­men­ta­ção o ano


todo, eu toco de graça no fes­ti­val.   Se fosse
assim, eu não me pre­o­cu­pa­ria com as con­tas,
né? Tava tudo certo. E se eu qui­ sesse fazer
turismo, eu não iria tra­ba­lhando, iria de férias
(CHINA, 2012).

Nesta pesquisa, as críticas são ratificadas por al-


guns músicos, que destacam uma dimensão bastante
elementar na discussão: “não pode tentar desmerecer o
nosso trabalho, entendeu? A gente toca em qualquer lu-
gar, desde que paguem o cachê”. E continua: “É o meu
trabalho e eu sei o valor que ele tem. Não estou pedindo
nada além do que o normal. Então é isso. É simples. Em
relação à essa galera de festivais, a gente só quer receber”
(Artista 8, 10/9/2015). Outro entrevistado, por sua vez, afir-
ma que fez seus primeiros shows via FdE e que nunca teve
problemas com eles: “os caras me ajudaram a circular por
alguns lugares que eu não iria naquele momento. Cheguei,
mostrei minha cara, minha música e tudo certo” (Artista
3, 15/6/2016).
Em nota que rebate as críticas pelas quais passou
o FdE, Pablo Capilé afirma que o circuito atua como al-
ternativa à deficiência estrutural nos sistemas de distri-
buição da cultura brasileira, que não permite a circulação
e a fruição dos processos e produtos de forma igualitá-
ria. Nesse sentido, se o exemplo do FdE é emblemático
enquanto alegoria do funcionamento do capitalismo em
relação à imagem, tecnologia, sociabilidade, empreende-
dorismo cultural e apropriação de rendimentos, indicam
também a necessidade de articulações decisivas entre
trabalho, regulamentação da comunicação e política pú-
blicas culturais, enquanto eixo constitutivo desses pro-
cessos formadores das experiências contemporâneas. 

175
TRABALHADORES DA CULTURA

5.2 O músico empreendedor

O sociólogo Antônio Canelas Rubim (2008), utilizan-


do-se da tipologia trazida por Antonio Gramsci, explica
que um sistema cultural engloba três intelectuais: os que
criam, isto é, os artistas e cientistas; os que difundem tal
produção, como os profissionais de comunicação; e o ter-
ceiro que são os organizadores da cultura, como os gesto-
res, produtores e mediadores. O campo da cultura englo-
baria, portanto, três segmentos básicos: criação, difusão
e organização. Na atualidade, contudo, a consagração do
empreendedorismo cultural está relacionada aos proces-
sos de terceirização e reestruturação da indústria cultu-
ral descritos no Capítulo 1. Hoje os segmentos básicos se
confundem enquanto ocupação de espaços de atuação no
mercado cultural e, principalmente, em relação aos sabe-
res desenvolvidos em cada profissão, coexistindo no mer-
cado de trabalho.
A moderna concepção de empreendedorismo surgiu
com os economistas, sendo Schumpeter (1934) um dos
pioneiros na formulação teórica desse conceito. Para este
economista, o empreendedor é um agente de inovação e
fator dinâmico na expansão da economia. Nessa perspec-
tiva, o empreendedor é um agente capaz de realizar com
eficiência novas combinações de recursos. Ele não é ne-
cessariamente o proprietário do capital, mas um agente
capaz de mobilizá-lo. Da mesma forma, ele não é neces-
sariamente alguém que conheça as novas combinações,
mas consegue usá-las eficientemente no processo produ-
tivo. Finalmente, empreendedores são aqueles profissio-
nais capacitados a criar, organizar, gerenciar e desenvolver
seus empreendimentos de modo sustentável, em lugar da
excessiva dependência do Estado.
Na década de 1990, os professores da Universidade
de Warwick, na Inglaterra, se utilizaram do conceito de

176
TRABALHADORES DA CULTURA

empreendedorismo cultural em seus estudos sobre as in-


dústrias criativas. O que diferenciaria um artista de um
empreendedor cultural é que o primeiro estaria focado
apenas na criação e produção cultural, enquanto o segun-
do expande suas atividades ao longo da cadeia produtiva
da indústria criativa, preocupando-se com a distribuição
e venda do produto ou serviço cultural. No mesmo sen-
tido, em um artigo escrito para o Encontro de Estudos
Multidisciplinares em Cultura (Enecult), a professora Tânia
Limeira, da Faculdade de Administração da FGV-SP, defi-
niu o empreendedor cultural como um mobilizador de re-
cursos criativos e econômico-financeiros, bem como um
articulador de redes sociais, visando à criação, organiza-
ção, gestão e sustentação de empreendimentos culturais
(LIMEIRA, 2008, p. 11).
A partir do reconhecimento da dimensão econômi-
ca da área cultural e do fortalecimento das noções de
Economia da cultura, criativa e do Entretenimento, inten-
sifica-se o processo de institucionalização do empreen-
dedor cultural. No Brasil, concorre para isso a criação da
Lei Complementar nº 128/2008 que instituiu a figura do
Microempreendedor Individual (MEI), o qual se registra
pela internet e recolhe os impostos em valores fixos men-
sais. A Lei Complementar nº 133/2009 (simples da cultura),
por sua vez, reduziu a carga tributária das microempresas
e das empresas de pequeno porte, além de ampliar ativi-
dades culturais beneficiadas.
É intensificada a estruturação de cursos acadêmi-
cos em algumas regiões do país para formação de pro-
dutores e gestores culturais, iniciada ainda na década de
199021. Com o objetivo de compreender o panorama das

21  O primeiro curso de formação em gestão e produção cultural foi criado em


1995 pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Em 1996, a UFBA promoveu
o bacharelado de graduação em Comunicação Social com especialização em

177
TRABALHADORES DA CULTURA

ofertas de cursos de gestão e produção cultural no país, o


Observatório Itaú Cultural apresentou um relatório22, cujos
resultados informam que, de 1995 a 2016, 90 instituições
criaram um total de 131 cursos (45% de produção, 19%
de gestão, 15% produção em linguagem específica, 10%
pesquisa em produção, cultura e linguagens culturais, 6%
em economia criativa/mercado, e 5% em política cultu-
ral). Os estados de São Paulo e Rio de Janeiro tiveram, de
1995 a 2016, o maior número de cursos iniciados, sendo,
respectivamente, 33 e 32. Assim, São Paulo é responsável
por 25,2%, e Rio de Janeiro por 24,4%, do total de cursos
oferecidos no Brasil. Juntos, os dois estados concentram
49,6% dos cursos ofertados desde 1995 (OBSERVATÓRIO
ITAÚ CULTURAL, 2016, p. 10).
Em 2000, o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE) lança o Programa Empreendedor
Cultural, um conjunto de iniciativas que visam a capaci-
tação, o desenvolvimento e a expansão dos negócios na
área da cultura. Esse programa visa formar uma Rede de
Agentes Culturais, que são pessoas ligadas à cultura, como
artistas, produtores, educadores, para que estes possam
se relacionar e se apoiar mutuamente. Multiplicam-se

Produção em Comunicação e Cultura. Com mais de 20 anos, os dois cursos


mais antigos ainda estão em atividade no país.
22  O relatório procurou mapear cursos no território nacional que, em sua
nomenclatura, apresentassem a combinação entre os seguintes constructos
associados: Gestão e cultura, como, por exemplo, gestão cultural, gestão
de patrimônio cultural, gestão de bens culturais, entre outros; Produção e
cultura, como, por exemplo, produção cultural, produção de eventos culturais,
produção da cultura. Segundo seus graus acadêmicos, foram pesquisados
cursos superiores de bacharelado, licenciatura e de tecnologia, cursos de
extensão vinculados à Instituições de Ensino Superior, cursos sequenciais nas
modalidades complementação de estudos (individual) e formação específica
(coletivo), cursos de pós-graduação lato sensu de aperfeiçoamento e de
especialização/Marketing Business Administration (MBA) e, por fim, cursos de
pós-graduação stricto sensu (com linhas de pesquisa orientadas aos assuntos
gestão, produção e cultura) de mestrado profissional, mestrado e doutorado
acadêmicos (OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL, 2016, p. 10).

178
TRABALHADORES DA CULTURA

também os manuais e encontros voltados para o em-


preendedorismo cultural, como o Guia do Empreendedor
Criativo, publicado pelo SEBRAE.
Na área da música, o livro Música LTDA: o negócio da
música para empreendedores, de Leonardo Salazar (2015,
p. 155), lista os comportamentos empreendedores: redes
de contados, disposição para correr riscos calculados, per-
sistência, independência e autoconfiança. Em São Paulo a
ExpoMusic e a Semana Internacional da Música (SIM) são
os eventos mais citados na área do empreendedorismo
musical. Sites como musicaemercado.org e musicoempre-
endedor.com ajudam o artista a “tocar o próprio negócio”.
Para grande parte dos artistas entrevistados por
esta pesquisa “o caminho é ser empreendedor”. Para al-
guns, inclusive, o MEI atribui respeito ao trabalho do mú-
sico, com consequente elevação da autoestima do artista
(Artista 1, 25/2/2016). Esse empreendedorismo, contudo,
muitas vezes aparece na forma de empreendedorismo
precário e/ou forçado, como resposta à única forma de
viver de música. Esse aspecto empreendedor do trabalho
dos músicos ora é visto de forma positiva, ora é visto de
forma negativa pelos artistas entrevistados. Tencionam-se
noções de liberdade e autonomia com incerteza e inten-
sificação do trabalho.
Como o empreendedor cultural é tido como aquele
que realiza e acumula os seguimentos básicos de cria-
ção, difusão e organização, a multiplicidade de funções é
a primeira característica observada nas falas dos músicos
entrevistados. Em meio à corrida de editais e patrocínios,
o artista é chamado a comportar-se como empresário da
sua própria carreira, um portfólio worker, a custo de uma
gestão de racionalidade dos seus capitais pessoais (tem-
po, esforço, competências, reputação). Tais fatores confi-
guram o artista quase-firma e desenham a face do músi-

179
TRABALHADORES DA CULTURA

co, sobretudo aquele tido como independente, enquanto


empreendedor cultural. O “tornar-se produtor do seu pró-
prio trabalho” tem se constituído uma relevante tendência
no mercado artístico contemporâneo. Cresce a importân-
cia do profissional da produção no mercado da indústria
cultural, aptos a mobilizar recursos de incentivo à cultura.
Liliana Segnini (2009, p. 43) destaca que, de acordo com
o IBGE/PNAD, o grupo ocupacional Produtores de espetá-
culo registrou um crescimento de 92% de 2002 a 2006 (de
25.937 para 49.745 profissionais atuando na área).
Para os músicos, o empreendedorismo significa não
apenas gravar suas músicas, procurar fazer muitos shows e
estar ativo no circuito considerado independente. Na nova
cadeia da música, o artista é o responsável por pensar como
um empresário, no sentido de articular as possibilidades
de sua carreira artística diante da demanda colocada pelos
mercados em desenvolvimento. “Tocar o negócio” signifi-
ca, portanto, habilidades de relacionamento, comunicação
e organização. Contato com contratantes, envio de material
para imprensa, alimentação de redes sociais, administra-
ção do caixa, planejamento do desenvolvimento da carreira
e avaliação dos resultados alcançados são exemplos das
novas frentes de atuação dos músicos empreendedores,
que assume a execução, a comercialização e o gerencia-
mento da sua própria carreira.
Para viver de música, um dos entrevistados (Artista
6, 30/4/2015) explica que realiza várias atividades: é Dj,
tem uma banda e ministra oficinas ligadas à música.
Quando teve a dimensão de que a vida de músico “é essa”,
o artista afirma que conseguiu multiplicar e integrar vá-
rias atividades ao mesmo tempo, sem que isso represente
uma espécie de sofrimento criativo, senão uma oportuni-
dade de remuneração e até de felicidade. No decorrer da
entrevista, o músico destaca vários aspectos da produção

180
TRABALHADORES DA CULTURA

e gestão cultural: “sou tão organizado que tenho tudo em


planilhas, posso te mostrar depois”. O músico alia o em-
presariamento de si mesmo a uma postura entusiasta do
seu trabalho.

Hoje mesmo preciso mandar (um CD) pra


Manaus, que o rapaz comprou ontem, já com-
prou pelo sistema PagSeguro, já caiu direto na
minha conta, tem gente que deposita... Fica
fácil quando você pega o ritmo de tudo isso
aí. Mas tem que tá realmente disposto a fazer
esse trabalho. Que é responder pras pessoas,
mandar o disco, autografar, ir nos correios...
Ocupa um tempo, mas é um tempo que... Basta
acordar cedo, né? (risos). E dá pra fazer tudo!
Isso não tira a minha capacidade criativa, pelo
contrario, eu tô cada vez mais pilhado nes-
se ponto, eu faço tudo, nada me impossibilita,
nada. Porque tem aquele pensamento ‘Ah, se
eu for cuidar disso tudo, onde vai ficar meu
tempo pra criatividade?’ Pô, é balela. Porque
você vai fazendo, vai fazendo, vai ficando tão
no automático que você vai ficando mui-
to mais intuitivo até na hora de criar. Porque
você fica ágil! Você tem que fazer muita coisa
e você tira tudo de letra. Você vai evoluindo...
É muito massa... Às vezes vou ao cinema, ou
tô curtindo a noite e tal... Aí dou uma atuali-
zada na minha conta... E ‘Ah, um novo pedido’.
É uma relação legal e saudável, né? (Artista 6,
30/4/2015).

Sobre a autogestão no empresariamento de si mes-


mo, outra narrativa (Artista 7, 14/4/2015) destaca pontos
negativos e também positivos. Nos pontos negativos, o
músico enfatiza que acaba fazendo trabalho que não quer
fazer. Hoje, ele é responsável por ligar para os SESCs para
vender shows, e fazer “toda a burocracia de falar com os
contratantes”, pela divulgação na internet e uma “infini-

181
TRABALHADORES DA CULTURA

dade de coisas” que ocupam um tempo considerável do


seu dia em que ele preferia estar compondo e/ou tocan-
do. Do ponto de vista positivo, o músico reconhece que,
trabalhando da forma autogestionada, ou seja, indepen-
dente de gravadoras, sendo responsável pelo processo de
produção (e não só artística), ele acaba fazendo as coisas
“mais do seu jeito”, de forma que o resultado final é mais
“sincero” (Artista 7, 14/4/2015).
No mesmo sentido da polivalência de atividades,
uma das entrevistadas ressalta a junção da produção ar-
tística e executiva do seu trabalho. A cantora diz que é
efetivamente a produtora da sua própria carreira, em to-
dos os sentidos, e empresária de si mesma. A artista dis-
corre que os papéis artísticos e de produção executiva
estão um pouco confusos dentro da cadeia de trabalho:
“o artista é empresário, é produtor, é o agente de show,
é tudo. Obviamente que só de falar já cansa. Então fazer
cansa muito mais” (Artista 14, 5/5/2015).
Por um lado, a entrevistada (Artista 14, 5/5/2015)
avalia como “puxado” o desenvolvimento de todas essas
atividades e entende que o “momento do ócio” é muito
importante para sua “recarga criativa”. Esse ócio se carac-
terizaria não apenas pela visão de não fazer nada, mas de
ouvir um disco, de ir ao cinema, de se inteirar um pouco
com o que está acontecendo no mundo. Ela lamenta não
ter mais tempo para esse tipo de ócio. Por outro lado, nas
suas reflexões acerca das consequências da heterogenei-
dade de funções, explica que, se para muitos artistas pode
ser difícil fazer uma planilha, por exemplo, para ela é muito
fácil e tranquilo fazer. Ela se importa com o planejamento
e gosta de participar dele. A sua mídia social, por exemplo,
é ela mesma quem alimenta. A cantora afirma entrar em
pânico só de pensar em outra pessoa falando por ela de um
jeito que não seja o seu (Artista 14, 5/5/2015).

182
TRABALHADORES DA CULTURA

Como o empreendedor não é um ator que age de


maneira isolada (ele é, antes de tudo, um articulador com
capacidade de unir e conectar diferentes atores e re-
cursos dispersos no mercado e na sociedade, agregando
valor à atividade produtiva), outro aspecto fundamental
relacionado à atuação do artista empreendedor se refe-
re à importância de se estabelecer contatos, parcerias e
amizades, processo que acaba sendo determinante para
viabilização dos trabalhos musicais. A disponibilidade e
o empenho que o artista tem em “fazer amigos” (Artista
7, 14/4/2015) é algo necessário e derivado do novo papel
do artista enquanto divulgador e articulador do seu tra-
balho no mercado. Mercado este que, não dispondo do
aporto das grandes gravadoras, solicita cada vez mais a
interconexão e colaboração entre agentes como forma
de viabilizar-se.
Do ponto de vista artístico, um dos entrevistados
(Artista 2, 30/4/2015) explica que realiza vários trabalhos
em uma espécie de “bando”. Ele entende que na época da
grande indústria fonográfica o músico ficava muito ensi-
mesmado e hoje acha interessante a “contaminação” com
outras pessoas e projetos coletivos.

Nesse exato momento eu estou produzindo


um disco com um monte de gente pra Elza
Soares [...] e o Passo Torto tá dividindo um dis-
co [...] e a gente tá fazendo o disco do Rodrigo
Campos. São três trabalhos de lugares mui-
to diferentes. Quando eu lançar meu próximo
disco certamente todas essas coisas vão me
afetar (Artista 2, 30/4/2015).

O músico acima (Artista 2, 30/4/2015) destaca que


está fazendo todos esses trabalhos de uma vez só porque,
para além do prazer estético, ele precisa sobreviver, “por-

183
TRABALHADORES DA CULTURA

que é preciso ganhar dinheiro em várias coisas pra poder


dar certo”. A multiatividade no campo musical é explici-
tada quando ele destaca que se dependesse apenas do
dinheiro do seu disco, ele não viveria de música: “e essa é
a parte menos glamurosa da história”. Para o músico, por-
tanto, as parcerias funcionam de forma primordial nesse
mercado independente. Ele também afirma que, “por ser
metido a falar”, é chamado para palestras e debates. Tanto
que já fez um programa de televisão no Canal Brasil so-
bre a cena musical independente de São Paulo, além de
escrever artigos para jornais e participar de curadorias de
festivais (Artista 2, 30/4/2015).
A ideia de empreendedorismo ou o “lado business”
(Artista 12, 13/4/201) da música é exaltada em vários mo-
mentos nas narrativas dos músicos entrevistados por
esta pesquisa. Nesse sentido, um dos artistas (Artista 13,
14/4/2015) afirma que não se pode “ser artista como an-
tigamente”. “Que é aquele artista romântico, né? Que só
faz música... Hoje a gente inclusive faz música...”. Nesse
contexto, o músico ressalta que, muitas vezes, é “chato”
emitir nota fiscal, por exemplo, ficar preocupado com lo-
gística, ligar para as casas de shows para “articular as coi-
sas”. No entanto, essas funções “administrativas” são cada
vez mais importantes. A intensificação do trabalho do mú-
sico nas esferas de produção e gerenciamento estratégico
de suas carreiras, fica evidente em várias passagens das
falas dos artistas entrevistados. Abaixo os destaques para
alguns trechos.

Penso no meu trabalho 24 horas e às vezes


acho pouco e sonho com ele! Trabalho como
compositor, autor, arranjador, músico de
apoio, músico de estúdio, de montar bandas
paralelas, empreender no trabalho autoral, al-
guns de técnico de gravação, direção musical,

184
TRABALHADORES DA CULTURA

trilhas sonoras para cinema, teatro, dança etc.


Faz parte deste mercado de trabalho... Temos
que nos ocupar todos os dias e estar sempre
produzindo (Artista 17, 6/9/2014).

Não tem como você viver só de uma banda,


embora como a gente é uma banda de certa
forma jovem, mas que conquistou muita coi-
sa bacana, então todo mundo prioriza, mas
todo mundo tem outros trabalhos [...] A gente
entende que é muito importante essa auto-
produção, também. A gente é uma das ban-
das que se autoproduz, inclusive em eventos.
A gente faz nossas festas [...] Então a gente
sempre tá correndo atrás de projetos, de fa-
zer esses eventos... Nós somos 15 pessoas.
Imagina 15 passagens de ida e volta... E eu sou
um defensor de que o músico, o artista em
geral na verdade, ele hoje em dia tem que ter...
Ele é um empreendedor, né? Ele é um micro-
empreendedor. [...] Então eu sou um cara que
acredito muito nisso. Acho que você tem que
compor, tem que tocar, tem que entender de
produção, tem que conversar com os patroci-
nadores. Não é a produção que vai fazer isso
como antigamente. Antigamente, na época das
gravadoras, o artista ficava em casa... Ficava
compondo... Hoje em dia não é só isso. Tem
que fazer isso e tem que tá muito antenado
com o que tá acontecendo e tá buscando e tá
produzindo junto... É sua vida, né? Não pos-
so pegar minha vida e botar na mão de uma
pessoa e querer que ela resolva... O músico
tem que ser empreendedor senão complica e
a coisa não anda (Artista 16, 12/11/2014).

Eu também tenho esse trabalho não só com


minha banda, mas como produtoras de festas.
Bem, agora, por exemplo, eu tenho desenvolvi-
do um intercâmbio cultural-musical com uma
cena da Argentina que eu tomei conhecimento

185
TRABALHADORES DA CULTURA

há dois anos. [...] Então eu tento me desmem-


brar de várias maneiras. Eu sou uma empre-
endedora também, né? Uma coisa alimenta a
outra. [...] Carnaval mesmo eu não tenho con-
firmação se vou tocar oficialmente nos editais,
então eu já estou me mobilizando pra vender
uma bebida que eu inventei... É uma maneira
que eu vi de sustentar a família pós-carnaval
porque com os editais a grana você não sabe
quando vai receber. E também vou discotecar,
talvez no rec beat (Artista 21, 13/8/2014).

Eu vivo exclusivamente de música, mas rola


uma polivalência aí na parada, né? Na verda-
de, quanto mais independente, mais coisas
você precisa fazer. Eu trabalho como músico
que acompanha. Eu acompanho outros artis-
tas. Produzo algumas coisas: trilhas ou outros
artistas. Esse ano vou produzir dois artistas.
Trilha pra dança, pra filme, pra teatro. Então é
isso, assim, tem uma polivalência. Eu acho que
você precisa ser muito inteligente, sagaz. Esse
cenário, ele não permite que você fique passi-
vo, sabe? Você tem realmente que agilizar as
coisas. Enfim, comigo tá tudo bem. Eu acho
que tem momentos que cansa, obviamente,
que eu preferia sei lá, só tocar mesmo. Mas
feliz ou infelizmente necessita dessa disposi-
ção de você se unir às pessoas pra que coisas
aconteçam. Eu acho que é isso. Eu produzo
a mim mesma. Eu tenho parceiros, mas sou
a maior investidora em mim; tanto de tem-
po, tanto de dinheiro mesmo, tanto de fazer o
corre mesmo, de fazer essas parcerias. A mi-
nha rotina? Eu tenho um objetivo nessa rotina
e nem sempre eu alcanço ele, né? O meu ob-
jetivo, obviamente, seria dedicar a maior parte
do meu tempo pra tocar mesmo, pra criar coi-
sas e tal, mas geralmente dedico quatro ho-
ras, mais ou menos, pra trabalhar essa parte

186
TRABALHADORES DA CULTURA

burocrática. Acho que no mínimo quatro ho-


ras por dia; às vezes, um dia inteiro. Depende.
Depende do dia e das necessidades. [...] O res-
to do tempo eu tento estudar, ler, viver, res-
pirar, estar nos lugares. A gente precisa viver
a arte de outras pessoas também, sabe? Ir a
shows, ir a teatros, ir a exposições... (Artista 4,
12/2/2016).

Em relação às cooperativas de música e empreen-


dedorismo, uma das entrevistadas (Artista 11, 7/5/2015)
menciona que o seu primeiro disco teve uma ajuda da
cooperativa de música para a gravação do CD. Ela destaca
que a ideia inicial da cooperativa de música era uma união
artística que visava ajudar a pensar e resolver a “parte bu-
rocrática”. Entretanto, o que era para servir na ajuda dos
problemas acabou se tornando mais um deles. A artista,
então, se distanciou das cooperativas porque não se sen-
tia mais parte delas. A cooperativa, na verdade, “acabou
virando o lugar onde você consegue a nota fiscal. Eu não
acompanho mais. Burocratizou. Então realmente não faz
mais sentido. A coisa perdeu um pouco a característica
inicial” (Artista 11, 7/5/2015).
Quando perguntados sobre expectativas financei-
ras e realidades de remuneração no empreendedorismo
cultural independente, alguns artistas destacam a falta
de remuneração mais justa e/ou estável dos seus traba-
lhos. Nesse sentido, um dos músicos (Artista 7, 14/4/2015)
afirma: “na música independente o negócio fica do nosso
jeito, mas a gente vive pobre”. Outros artistas exaltam a
maneira “modesta” que vivem as suas vidas, destacando
outros tipos de remunerações, que não monetárias.

A grana que entra é pro meu trabalho musi-


cal... Vivo de uma maneira simples, gasto pou-
co dinheiro, ando pra caramba a pé pela cida-

187
TRABALHADORES DA CULTURA

de, não gasto nem com ônibus, quase... Então,


eu sou um cara econômico nesse ponto. E aí
eu consigo com isso, com esse jeito simples
de viver... Toda essa grana que entra eu coloco
já numa conta que eu chamo de conta-disco,
e tenho sempre o recurso pra poder trabalhar
com isso. [...] Então, eu consegui entrar nes-
se lance cuidando de tudo mesmo. E trabalho
sozinho com tudo isso. . Dá trabalho, mas é
prazeroso, né? Se a galera tivesse mais atenta
a essa autogestão, as pessoas estariam muito
mais livres pra fazer os seus trabalhos (Artista
6, 30/4/2014).

Da mesma forma, outro entrevistado (Artista 5,


30/4/2015) afirma que é na junção dos “vários pequenos
dinheiros” que consegue fazer com o seu trabalho resulte
em uma quantia necessária para viver. O artista retrata a
demanda do lado de fora: “escrevem artigos em jornais,
acusando a minha geração de falta de ambição”. O músico
acha que se o plano não é ficar rico, mas “viver legal, fazer
trabalho legal, conviver com gente legal, com esse monte
de pequenas coisas, é possível” viver de música indepen-
dente. Ele termina a sua fala sobre remuneração enfati-
zando que hoje o músico precisa se despir muito do “ego
do artista” para conseguir viver de música sem se frustrar
(Artista 5, 30/4/2015).
Finalmente, é preciso destacar que a produção de si
mesmo, frequentemente, vem em forma de informalidade
que marca profundamente a atividade musical enquanto
profissão. Dos 22 artistas entrevistados, apenas seis es-
tão instituídos como MEI, segundo a legislação vigente.
A resposta à reestruturação produtiva por meio dos pro-
cessos de terceirização, flexibilização e subcontratação
nem sempre se deu nos moldes formais. Nesse contexto,
o surgimento de pequenas e médias produções musicais

188
TRABALHADORES DA CULTURA

– entre as quais se inclui, com cada vez mais destaque, a


autoprodução – não assume, na maior parte dos casos, o
arranjo de empresa formalmente constituída23.
A apelação para as noções de autonomia, flexibili-
dade e liberdade no capitalismo atual se aloja de forma
central nas indústrias cultural e/ou criativas, as quais as-
sistem um avanço do capital sobre o trabalho de forma
sofisticada e sem precedentes. O caráter laboral dessas
atividades se dilui simbolicamente atrás de noções de
rede colaborativa e horizontal. Nesse contexto, a consti-
tuição do trabalhador da cultura como empreendedor faz
parte da invizibilização do conflito entre capital e traba-
lho. Em um contexto de retirada do Estado, um empreen-
dedorismo precário levaria ao seguinte resultado hoje: os
músicos independentes trabalham muito mais e não têm
estabilidade financeira.

5.3 Migrações artísticas

Esta pesquisa esteve localizada em São Paulo e


Recife, em razão do meu próprio trânsito, mas também
pela dimensão da prática musical conceituada como in-
dependente, a qual vem sendo sustentada de forma dife-
rente, de acordo com as especificidades mercadológicas
e políticas de cada cidade. Dos 22 músicos entrevista-
dos, 12 mantém residência em São Paulo e 10 em Recife.
Dos 12 artistas que estão em São Paulo, apenas cinco

23  Por outro lado, destaca-se também o fenômeno da pejotização enquanto


nova forma de precarização do artista-trabalhador formalizado como pessoa
jurídica. A denominação pejotização tem sido utilizada pela jurisprudência
para se referir à contratação de serviços pessoais, exercidos por pessoas
físicas, de modo subordinado, não eventual e oneroso, realizada por meio
de pessoa jurídica constituída especialmente para esse fim, na tentativa
de disfarçar eventuais relações de emprego que evidentemente seriam
existentes, fomentando a ilegalidade e burlando direitos.

189
TRABALHADORES DA CULTURA

são originalmente paulistanos (os outros artistas radica-


dos na cidade são do Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco,
Bahia e Pará). Todos os artistas foram perguntados da
importância/preferência da cidade em que se encontram
para a visibilidade artística e possibilidade de trabalho na
área musical. A predominância dos artistas em São Paulo
indica muitas questões mercadológicas ligadas ao músi-
co empreendedor.
Para os artistas que nasceram em São Paulo e cons-
truíram sua vida nessa cidade, as trajetórias profissionais
acabaram se desenvolvendo nessa metrópole de forma
“espontânea”. Para uma das artistas (Artista 12, 13/4/2015),
a cidade é fundamental do ponto de vista profissional, ba-
sicamente, por dois motivos: um estético, ligado à urbani-
dade, e outro mercadológico, que consegue “caminhar, ser
independente, colocar sua visão de música e ao mesmo
tempo participar do mundo, não ficar num lugar tão opri-
mido”. Todas essas questões comporiam, para a entrevis-
tada, uma “geração moderna” e inovadora paulistana, da
qual ela estaria incluída.

São Paulo é quase uma ponte entre o Brasil e


o mundo, entre o Brasil e o próprio Brasil, né?
[...] Ela expressa o que as grandes cidades do
mundo expressam e o poder está nessas cida-
des e a busca e a vida e o foco estão nessas
cidades, eu acho. E aí eu acho que São Paulo
acaba trazendo esse vigor, essa energia, essa
modernidade (grifo nosso) que acaba sendo
muito interessante pra arte, apesar dela ser
tão hostil, sabe? Então é um paradoxo e hoje
eu acho São Paulo muito interessante, ape-
sar de sempre ter achado ela muito difícil.
Muito complexa a minha resposta? (Artista 12,
13/4/2015).

190
TRABALHADORES DA CULTURA

Em tempo, José Carlos Durand (1989) teoriza so-


bre a riqueza, o cosmopolitanismo e o acesso às van-
guardas artísticas em São Paulo. O autor destaca que ao
segmento enriquecido com a expansão do café no oeste
de São Paulo - a nova burguesia cafeicultora do início da
República - foi possível desenvolver o hábito de estadias
dilatadas na Europa. Nesse contexto, o que pôde chamar
de primeira geração modernista está relacionada a vários
casos de filhos e filhas de famílias brasileiras “de posse”
que puderam desfrutar de permanências demoradas e/
ou frequentes em capitais europeis, mormente em Paris,
como aconteceu com a trajetória de Tarsila do Amaral.
A importância dos fatores privilegiados da biografia de
Tarsila é ressaltada em casos diametralmente opostos
de “pintores caipiras”, considerados “artesãos” ou “artis-
tas proletários” (grifo nosso), tal como a crítica se referia
aos pintores que padeciam das instâncias de difusão e de
consagração necessárias a um campo da pintura minima-
mente estruturado sob a égide do modernismo (DURAND,
1989, p. 99).
No mesmo sentido, o jornalista Marcos Augusto
Gonçalves lançou em 2012 um livro que conta a histó-
ria da chamada Semana de 1922 – marco do movimento
modernista brasileiro que influencia até hoje a arte pro-
duzida no Brasil. No livro 1922 - A semana que não ter-
minou, Gonçalves, que atualmente é editor do caderno
Ilustríssima do jornal Folha de São Paulo, conta a história
do movimento protagonizado por escritores como Mário
de Andrade, pintoras como Tarsila do Amaral e esculto-
res como Victor Brecheret. Ele explica também como a
Semana de Arte Moderna de 1922, realizada no Theatro
Municipal de São Paulo, em fevereiro daquele ano, ajudou
na elaboração intelectual, histórica e ideológica para em-
basar um projeto paulista de liderança nacional que es-

191
TRABALHADORES DA CULTURA

taria inscrito, quase que como uma vocação natural, nas


condições supostamente excepcionais da formação da
vanguarda artística no país (GONÇALVES, 2012).
A discussão sobre os paradigmas da modernidade,
aliás, se amplia com os estudos acerca da descolonização
da arte, com Walter Mignolo (2014). A fala do crítico argen-
tino se erige como uma espécie de possível resposta a
problemática suscitada pelo título do seu livro, visto que
o mesmo é composto por dois elementos: arte e estética
que, logo em seguida, são situados em um lugar simbóli-
co, a encruzilhada. Valendo-se da metáfora fornecida pelo
jogo semântico da palavra encruzilhada, sua obra prob-
lematiza a arte europeia enquanto protótipo da moderni-
dade ao apontar como tais categorias são frutos de dis-
cursos hegemônicos.
De toda sorte, a vinculação histórica da vanguarda
artística à cidade de São Paulo desemboca no aspecto
mercadológico privilegiado destacado por muitos artistas.
Os entrevistados enfatizam que, em termos de visibilidade
artística e possibilidade de trabalho na área musical, São
Paulo é o local mais interessante de estar, do ponto de vis-
ta do mercado (Artista 7, 14/4/2015), com exceção dos “ca-
sos especiais” em que há uma autossuficiência mercadoló-
gica, como acontece com o axé na Bahia, em que “a coisa
gira a partir de lá”, ou seja, não é preciso migrar (Artista 14,
5/5/2015).
Nesse contexto, os músicos são unânimes em des-
tacar a estrutura de casas de shows na cidade de São
Paulo, sobretudo dos SESCs, e sua consequente possibli-
dade de pagamento de cachês para que os seus trabalhos
sejam remunerados e possam existir.

São Paulo, mesmo que tenha pouco, ainda é


lugar que tem mais mercado musical. Então,

192
TRABALHADORES DA CULTURA

assim, no Rio, por exemplo, não tem SESC.


Acho que o único lugar que paga cachê no Rio
é Oi Futuro, Banco do Brasil talvez. Mas, as-
sim, pro músico independente é ruim isso, né?
Aqui em São Paulo ainda tem SESC, tem cer-
tos lugares onde dá pra você conseguir cachê,
dinheiro, né? E fazer o trabalho andar... (Artista
7, 14/4/2015).

Do ponto de vista do mercado da música,


São Paulo, dentro do Brasil, é onde tem mais
movimentação nesse sentido. Mesmo no Rio
de Janeiro, que já foi a capital da música, as
pessoas têm dificuldades atualmente de se
movimentar mercadologicamente e ter sus-
tentabilidade econômica. São Paulo não é um
paraíso, não é que você ganhe fortunas... Não,
não é nada disso. Mas você consegue se mo-
ver, sabe? Você tem que tá em vários lugares
pra dar conta das coisas que você precisa pa-
gar no fim do mês. De um ponto de vista muito
prático. Muito prático... Não é só ‘Ah, uma via-
gem estética’. É uma questão prática mesmo,
sabe? (Artista 11, 7/5/2015).

Os artistas entrevistados também enfatizaram o fa-


tor “efervescência” da cidade, no sentido de que acon-
tece muita coisa ao mesmo tempo em São Paulo e que,
graças a essa dinâmica e a esse ritmo, é possível, como
afirma uma artista, “conhecer muita gente interessante
e agilizar muitas atividades” (Artista 4, 12/2/2016). Nessa
perspectiva, outro entrevistado exalta que na capital tem
gente do Brasil inteiro fazendo arte e que é um ambien-
te propício para trocas musicais e de mercado, de modo
que sua vida em São Paulo é também uma estratégia de
trabalho. (Artista 6, 30/4/2015). Da mesma forma, reforça
outro artista: “o grande lance de São Paulo não é nem o
que a cidade lhe oferece, são as pessoas que vêm pra cá.

193
TRABALHADORES DA CULTURA

E aí os encontros são as coisas mais importantes” (Artista


8, 10/9/2015). Consequentemente, a cidade acaba sendo
uma “formadora de opinião”. Para estes artistas, portan-
to, estar em São Paulo é estratégico “para ser minima-
mente ouvido”, uma vez que os jornalistas, os rádios e as
TVs estão predominantemente nessa metrópole (Artista 8,
10/9/2015).
Para os artistas não sudestinos que estão em São
Paulo, enfatiza-se nas entrevistas, além da pertinên-
cia mercadológica da cidade, o “trabalho redobrado de
contextualização de sua música” (Artista 13, 14/4/2015).
Um dos entrevistados aponta que o caminho, para ele, é
“sempre 10 vezes mais longo”, por conta das “distâncias
de integração”. Embora sua escolha em estar nessa cidade
faça parte dos seus planos de visibilidade artística e pos-
sibilidade de trabalho, torna-se necessário “deixar claro
o tempo todo, que tipo de referencia você tem em mente
pra poder comunicar com o sudeste, que é um jogo de re-
ferências culturais mais distantes” (Artista 13, 14/4/2015).
Para os artistas que estabelecem residência em
Recife, alguns deles chegam a passar de cinco a seis me-
ses corridos em São Paulo (Artista 1, 25/2/2016) na busca
de contatos, parcerias e apresentações. Uma das artis-
tas (Artista 1, 25/2/2016) afirma que o que mais gosta em
Recife é a “riqueza subjetiva e matéria prima de criação”.
Por outro lado, ela afirma as dificuldades de “caminhar
de música”. Mesmo tendo muitas pessoas amigas em jor-
nais e rádios, formação na área e três discos na praça, a
musicista conta que não consegue circular no entorno do
Estado de Pernambuco, e aponta o caráter provinciano
que faz com que o nordestino tenha que, duas vezes no
ano, arrumar as malas e fazer uma turnê RJ – SP, ao in-
vés de fazer um show em Caruaru, João Pessoa, Campina
Grande, Natal, Salvador, Fortaleza. Para a cantora essas

194
TRABALHADORES DA CULTURA

dificuldades muitas vezes a desanima, mas outras vezes a


impulsiona a trabalhar esses gargalos (Artista 1, 25/2/2016).
Por esse ângulo, outro entrevistado (Artista 10,
26/2/2016) afirma que Recife é cheia de música, com uma
população musical, no sentido de produzir muita música
o tempo todo. Com isso, a cidade acaba oferecendo mui-
to produto musical, mas não absorve essa quantidade:
“a oferta é muito grande e a demanda tende a ficar bem
baixa” (Artista 10, 26/2/2016). Essa não absorção de de-
manda está ligada a falta de espaços de apresentação, o
que dificulta viver de música sem que seja possível fazer
bilheteria. Por isso, o artista afirma que é “um tiro no es-
curo” se dedicar a música em Recife, restando o ciclo de
festas financiadas pelo Estado ou aprovar um edital no
Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura),
o que tem se tornado mais difícil a cada ano. Desse modo,
o músico entende que o fluxo migratório de artistas do
nordeste para o sudeste, especialmente São Paulo, ainda
é uma realidade (Artista 10, 26/2/2016).
Por último, um dos músicos entrevistados (Artista 19,
4/3/2016) narra que passou muito tempo reclamando da
cidade do Recife, frustrado com a dinâmica, “porque nin-
guém chamava a gente pra tocar”. Entretanto, ele passou a
entender que é preciso inventar os lugares. Nesse sentido,
“a cidade, na verdade, ela não existe ainda. A cidade está
sempre por vir. É uma potência. A cidade tem muito a ofe-
recer”. O músico, então, afirma que começou a pensar no
que poderia fazer, no que ele poderia inventar para multi-
plicar ou potencializar a sua experiência na cidade. Nesse
sentido, o artista defende que os músicos precisam, por
exemplo, fazer shows na Rua da Aurora em uma “suficiên-
cia intensiva”, radicalizando a questão do “pague o quanto

195
TRABALHADORES DA CULTURA

puder”24, organizar concursos, festivais etc., no intuito de


sair um pouco dos esquemas que já estão consolidados
na indústria cultural (Artista 19, 4/3/2016).
Diante das narrativas dos artistas entrevistados, mui-
tos fatores podem ser citados para informar as especifici-
dades regionais e suas contextualizações para o trabalho
musical independente. Essas especificidades, por sua vez,
não indicam uma oposição, mas muitas vezes uma relação
de complementariedade, sobretudo quando observados os
trânsitos artísticos migratórios. Enquanto Recife está ca-
racterizada pela dependência aos investimentos munici-
pais e estaduais diretos, São Paulo se destaca pela predo-
minância dos investimentos federais na forma de mecena-
to e pelo domínio de pesquisas sobre produção, gestão e
empreendedorismo cultural. Além disso, em São Paulo, as
especificidades da cena paulistana contribuem para a rela-
tiva proeminência deste polo musical no cenário nacional.
Destaca-se uma maior consistência do mercado musical
independente, em comparação com outras capitais brasi-
leiras, no que se refere ao tipo de mercado voltado para as
produções mais segmentadas e de nichos.
Isso pode ser explicado por diversos fatores que con-
tribuem para a geração de renda do artista independente.
24  Em Recife, o Grupo de teatro Magiluth criou um festival para convidar
artistas e público ao diálogo entre as artes, o Pague Quanto Puder. Os atores
colocam em debate a disposição financeira do público em relação a uma
obra artística. Como sugere o nome do evento, o grupo decidiu deixar as
pessoas livres para escolherem o preço de seus ingressos. Em entrevista à
Revista Cardamomo, Erivaldo Oliveira, um dos integrantes do Magiluth, afirma
que fez a seguinte pergunta ao público: “Quanto você acha que deve sair do
seu orçamento mensal para a sua construção intelectual, cultural?”. O grupo
destaca que já teve pessoa pagando R$0,30, assim como teve pessoa pagando
R$ 50,00. Contudo, fazendo uma média, o grupo acaba tendo uma bilheteria
como se fizesse uma apresentação normal com ingressos com preços pré-
combinados. A diferença é que essa proposta do preço livre atrai mais gente.
“A média de preço das três edições foi R$5, R$7 e R$10. Ou seja, a gente está
conseguindo valorizar o preço do ingresso”, além de formar público, afirma
Mário (MACAU, 2016, p. 1).

196
TRABALHADORES DA CULTURA

Na fala dos artistas entrevistados é possível apontar as se-


guintes condições: a) significativo circuito de casas notur-
nas e espaços de shows voltados a públicos segmentados
interessados nas propostas de músicos independentes; b)
um conjunto importante de equipamentos e instituições
culturais, entre os quais destaca-se o SESC; c) canais tra-
dicionais de mídias sediados na cidade, com espaços e
programas voltados à cobertura especializada desta cena,
como jornais, revistas e programas de rádio e TV25; e d)
concentração em uma região territorial específica da cida-
de de bares, casas noturnas, estúdios, gravadoras, lojas de
instrumentos, residência de artistas, jornalistas e produto-
res culturais.
Todos esses fatores concorrem para a afirmação de
oportunidades especialmente privilegiadas em São Paulo
no que se refere ao desenvolvimento, sustentabilida-
de e repercussão de trabalhos musicais independentes.
Reunindo uma variada gama de elementos decorrentes
de sua condição enquanto pólo econômico e da pecu-
liaridade de seus equipamentos e recursos voltados à
cultura, a cidade tem reunido um proeminente campo de
empreendedores culturais. Essas oportunidades também
são responsáveis pela migração de um conjunto signifi-
cativo de músicos de outros estados brasileiros para o
solo paulistano, o que contribui para a cena estética e
cultural diversificada.

25  Canais televisivos e radiofônicos voltados para públicos sedimentados,


como os programas “Cultura Livre” (Rádio e TV Cultura), “Metrópolis” (TV
Cultura), “Trama Radiola” (TV Cultura), “Ensaio” (TV Cultura), “Radiola Livre”
(Rádio UOL) e “Vozes do Brasil” (Rádio Eldorado), tem dado especial cobertura
a cena musical independente, sobretudo paulistana.

197
6 POLÍTICA CULTURAL NEOLIBERAL

Para avaliação do trabalho artístico enquanto parte


integrante do contexto sociológico contemporâneo tam-
bém é importante recuperar o ambiente das políticas
culturais como fator que influencia as condições desse
tipo de ofício. A preocupação central é resgatar a traje-
tória histórica das políticas setoriais para entender a sua
atuação na produção, distribuição e consumo das ativi-
dades culturais, frente a realidade de crescente partici-
pação das empresas no financiamento do trabalho artís-
tico hoje. Trata-se de mapear a tentativa da construção
da institucionalidade da área cultural no Brasil, junto com
seu aparato legal e discursivo que reflete um projeto de
implementação de ações governamentais, informando o
percurso e o lugar do Estado no campo da cultura.
A preocupação pelas condições de trabalho dos ar-
tistas ocupa um lugar ainda coadjuvante e pouco estrutu-
rado no interior das políticas culturais. No decorrer das en-
trevistas, os depoimentos evidenciam os equívocos que
ocorrem quando os poderes públicos deixam as decisões
sobre o que se incentiva em termos culturais nas mãos
de setores de marketings das empresas. Dessa forma, os
projetos ficam incomodamente dependentes do capital de
relações sociais de cada agente criador ou de cada insti-
tuição específica. Finalmente, um dos grandes problemas
quanto à captação de recursos relaciona-se ao fato de
produtores culturais de grande e pequeno porte disputa-
rem os mesmos recursos, promovendo uma concorrência
desequilibrada e sem qualquer critério.

198
TRABALHADORES DA CULTURA

6.1 Escolha do Estado


Segundo Antonio Rubim (2008, p. 32), a história das
políticas culturais no Brasil está marcada por tristes tra-
dições que podem ser condensadas nas seguintes ex-
pressões: autoritarismo, caráter tardio, descontinuidades
e fragilidade institucional. Essa herança é analisa pela
historiadora social Lia Calabre (2009). A autora parte dos
anos 1930, período no qual o país passou por significa-
tivas mudanças políticas, econômicas, administrativas,
com processo de urbanização industrial crescente, para
entender as ações que tomaram formas de políticas cul-
turais. Experiências federais e municipais desenharam as
primeiras tentativas institucionais brasileiras no campo
da cultura.
Na instância federal, no primeiro governo de Getúlio
Vargas (1930-1945), a administração pública perseguia a
construção de um novo modelo de gestão que buscava
romper com a tradição da república oligárquica. No con-
texto de esboço de uma racionalidade legal-administra-
tiva de organização institucional do Estado foi criado o
Ministério da Educação e Saúde (MES), conduzida pelo
Ministro Gustavo Capanema, e cuja legislação do Conselho
Nacional da Educação fazia referência à cultura pela pri-
meira vez no país. Lia Calabre (2009, p. 22) observa que o
conceito legislativo de cultura na segunda metade da dé-
cada de 1930, era abrangente e de caráter nacionalista. As
atribuições do Conselho abarcaram as áreas clássicas das
artes, os meios de comunicação, a produção intelectual, a
educação cívica e a física, inclusive as atividades de lazer,
além da proposição de pesquisas setoriais.
O presidente Vargas contava com a simpatia da clas-
se teatral desde os tempos em que foi deputado, quando
apresentou um projeto que reconhecia a existência da

199
TRABALHADORES DA CULTURA

profissão de artista teatral. Durante a sua gestão diver-


sas iniciativas foram propostas no âmbito cultural, como
por exemplo, a criação do Conselho Nacional de Cultura
(CNC). Foram criados também o Serviço de Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), o Museu Nacional
de Belas Artes, o Museu Histórico Nacional, o Instituto
Nacional do Livro, o Instituto Nacional do Cinema
Educativo, o Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), entre outros serviços e instituições.
O governo de Getúlio Vargas também foi marcado
por ambiguidades. Segundo Antonio Rubim (2008, p. 34),
essa foi a primeira vez que o Estado nacional realizava um
conjunto de intervenções na área da cultura, articulando,
ao mesmo tempo, uma atuação de caráter afirmativo es-
truturada por meio de formulações legislativas, institucio-
nais e organizacionais; e práticas tendentes a repressão e
censura. Nesse mesmo período, ocorreu a primeira expe-
riência de gestão de política pública municipal. Trata-se
da criação do Departamento de Cultura e Recreação do
Estado de São Paulo, em 1935, capitaneada e chefiada por
Mário de Andrade, e ligada a alguns dos ideais presentes
no Movimento Modernista Brasileiro.
O ciclo que sucedeu o presidente Vargas não apre-
sentou um programa cultural consistente. As décadas
de 1940 e 1960 foram marcadas por uma fraca presença
do Estado no campo da cultura. A maior parte das ações
se restringia a regulamentar e dar continuidade às ins-
tituições que foram criadas ao longo do governo Vargas.
Surgiram experiências não estatais relevantes como, por
exemplo, os Centros Populares de Culturas (CPCs), da
União Nacional dos Estudantes (UNE). O crescimento ur-
bano-industrial gerava novas expectativas sobre a pos-
sibilidade de desenvolvimento do mercado de consumo
para as produções artístico-culturais. Crescia a indústria

200
TRABALHADORES DA CULTURA

cultural no Brasil, marcada por um processo significativo


de investimento privado. Ainda em 1946, foi criado, junto
ao Ministério das Relações Exteriores (MRE), o Instituto
Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC).
Lia Calabre (2009, p. 43) analisa que entre as dé-
cadas de 1960 e 1970, as questões relacionadas à cultura
ganharam maior importância dentro da área de planeja-
mento público e passaram a ser incluídas nas noções de
desenvolvimento. Na década de 1960, antes do golpe de
1964, o Governo Federal implementou algumas ações vi-
sando estruturar uma política para o setor. Em 1961 foi
criado o Conselho Nacional de Cultura (CNC), diretamen-
te subordinado à Presidência da República, ocupado por
Jânio Quadros. A visão de cultura presente na legislação
do Conselho estava limitada à área artístico-cultural, não
contemplando, por exemplo, questões de educação, la-
zer e esporte, presente na visão varguista. Em 1971, o país
contava com conselhos de cultura instalados e em pleno
funcionamento em 22 estados. Durante este período des-
taca-se, ainda, a criação da Empresa Brasileira de Filmes
S.A. (Embrafilme), em 1969.
Nos anos de 1970 a estrutura administrativa do MEC
é reformulada e o Conselho da Cultura passa a cumprir
uma instância consultiva e normativa. Durante a gestão
de Jarbas Passarinho (1969-1973) é implementado o Plano
de Ação Cultural (PAC), importante projeto de financia-
mento de eventos, além do Departamento de Assuntos
Culturais (DAC) e da Secretaria de Cultura no âmbito do
MEC. Observa-se um processo de fortalecimento da área
da cultura dentro do Ministério da Educação. Nesse perí-
odo foram criados também o primeiro Plano Nacional de
Cultura (PNC), em 1975, o Instituto de Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN) e a Fundação Nacional das
Artes (FUNARTE). O Brasil começa a se abrir para novas

201
TRABALHADORES DA CULTURA

dinâmicas internacionais por meio de encontros promovi-


dos pela UNESCO. Pela primeira vez no país é aprovada a
regulamentação das profissões de “Artistas e Técnicos de
Espetáculos”, por meio da Lei nº 6.533/1978. O reconheci-
mento dessas profissões são definidas via licença outor-
gada pelo Ministério do Trabalho ou por meio dos sindica-
tos da categoria artística, criados desde a década de 1930.
No fim dos anos 1970 é colocada a questão das dis-
torções na criação, distribuição, acesso e consumo de
bens culturais. Nesse período foi criada a Política Nacional
de Cultura. Por meio do Decreto nº 91.144/1985 o governo
de José Sarney cria o Ministério da Cultura (MinC), as-
sumido no ano seguinte por Celso Furtado. Nessa época
também foi aprovada a Lei nº 7.505/1986, conhecida como
Lei Sarney, que concedia benefícios fiscais na área do im-
posto de renda para operações de caráter cultural ou ar-
tístico. Segundo Lia Calabre (2009, p. 33) embora tenha
havido um esforço do Ministro Celso Furtado, reconhecido
por buscar a estruturação institucional do MinC, o período
de gestão do presidente Sarney foi de grande instabilidade
política dentro do Ministério. O resultado de tal conjuntura
foi a descontinuidade de projetos e pesquisas no setor.
O início da década de 1990 sofreu um grande des-
monte na área cultural do que tinha sido construído até
então. O presidente Fernando Collor de Mello promul-
gou as Leis nº 8.028 e nº 8.029. A primeira transformava
o Ministério da Cultura em Secretaria e a segunda extin-
guia uma série de entidades da administração pública, na
qual a área da cultura foi duramente atingida. Foram dis-
solvidas, por exemplo: a FUNARTE, a Fundação Nacional
de Artes Cênicas (FUNDACEN), a Fundação do Cinema
Brasileiro (FCB), a Fundação Nacional Pró-Memória e a
Embrafilme. Em substituição a Lei Sarney foi promulgada
a Lei Federal nº 8.313/1991, vigente até o presente mo-

202
TRABALHADORES DA CULTURA

mento. A Lei Rouanet, como ficou conhecida, instituiu o


Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), cuja fina-
lidade é a captação de recursos financeiros para os diver-
sos setores culturais. Finalmente, em 1992, a situação que
transformou o MinC em Secretaria da Cultura foi revertida.
A promulgação da Lei Rouanet configura-se, desde
então, como a principal regulação de financiamento à cul-
tura no país. Por meio de seus mecanismos, subsidia-se a
cultura diretamente via Fundo Nacional de Cultura (FNC),
indiretamente por meio do mecenato e ainda via Fundos
de Investimento Cultura e Artístico (FICART). Entre as mo-
dalidades de financiamento o mecenato destaca-se como
principal meio incentivador. Neste caso, o subsídio se con-
cretiza por benefícios fiscais ao imposto de renda devido,
tanto no caso de pessoa física quanto jurídica. Segundo
a Lei Rouanet, pessoas físicas ou jurídicas podem patro-
cinar um projeto cultural (com permissão de promoção e
publicidade do incentivador), caso em que se permite a
dedução de até 100% do valor do patrocínio, sempre res-
peitados os limites do imposto devido ao incentivador.
Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso é
possível observar a evidência do paradigma gerencial em-
presarial aplicado à administração pública. Nesse período,
o incentivo indireto por meio do mecenato presente na Lei
Rouanet se torna o grande instrumento de política pública
cultural. Essa situação proporcionou o surgimento de uma
série de iniciativas privadas na área da cultura, ao mesmo
tempo em que retirou o Estado do cenário decisório e da
condução política do processo. Esse movimento de retra-
ção do Estado e avanço da lógica de mercado expressa
mais que uma configuração econômica, mas também uma
escolha política pelo conceito neoliberal na gestão cultural.
No mesmo período do governo Fernando Henrique
Cardoso em que se observa o destaque para a gestão neo-

203
TRABALHADORES DA CULTURA

liberal surgem novas configurações no campo social e po-


lítico brasileiro. As lutas sociais e o processo de organiza-
ção popular fizeram com que em 1989 a nordestina Luiza
Erundina fosse eleita prefeita do município de São Paulo,
pelo PT, que, por sua vez, convidou a filósofa e historia-
dora Marilena Chauí para assumir a pasta da Secretaria de
Cultura. Chauí pautou sua gestão pela recusa do modelo
liberal e instituiu o conceito de cidadania cultural. Para a
pesquisadora (CHAUÍ, 2006, p. 23), a cultura precisa ser
entendida pelas políticas públicas como direito dos cida-
dãos, sem confundi-lo com as figuras do consumidor e do
contribuinte, enquanto o Estado deve assumir a postura
de assegurador público de direitos, prestador sociopolíti-
co de serviços e estimulador-patrocinador das iniciativas
da sociedade.
No contexto internacional, a cultura passa a fazer
parte de forma mais enfática do rol de reivindicações
dos organismos transnacionais. A expansão dos merca-
dos culturais coloca em pauta discussões em torno do
tema. Apropriando-se desse debate e reivindicando a
cultura como uma das áreas de sua competência especí-
fica, a UNESCO passa a encabeçar discussões e realizar
inúmeras convenções, com o objetivo de regulamentar e
formular recomendações para o reconhecimento e va-
lorização da diversidade cultural. Diversos documentos
jurídicos internacionais sobre Direitos humanos fazem
menção aos Direitos culturais, enquanto outros foram e
estão sendo elaborados no sentido de vincular cultura ao
desenvolvimento social e econômico26.

26  A Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) em seu artigo 27


expressa que toda pessoa tem direito a tomar parte livremente da vida
cultural da comunidade, gozar dos progressos artísticos e científicos que
dela resultem, enquanto o Estado deve tomar parte para alcançar esses
objetivos. O Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
(1966) prevê que o ideal do ser humano livre não pode ser realizado a menos

204
TRABALHADORES DA CULTURA

A relativa retomada do papel ativo do Estado bra-


sileiro nas políticas públicas culturais se dá nos gover-
nos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os anos
de 2003 a 2010 há um esforço no sentido de estabelecer
um diálogo e compartilhar com a sociedade brasileira a
revisão, formulação, estruturação e execução das políti-
cas setoriais. Nesse período, foram realizadas importan-
tes iniciativas de sustentação e operacionalização, como o
Sistema Nacional de Cultura (SNC), o Conselho Nacional de
Política Cultural (CNPC) e o Programa de Desenvolvimento
Econômico da Cultura (PRODEC). Além disso, o slogan
Cultura para todos procurou materializar a descentraliza-
ção e diversidade cultural com o Programa Cultura Viva,
que institui os Pontos de Cultura, e o Mais Cultura. Na
gestão de Gilberto Gil estimulou-se um processo de dis-
cussão e reorganização do orçamento com objetivo de
melhorar distribuição dos recursos destinados à cultura.
Pela primeira vez foi proposta uma revisão pública para
corrigir as limitações da Lei Rouanet.
No período dos governos do presidente Lula e es-
pecificamente no âmbito musical, vale citar a formulação

que se criem as condições que permitam a cada um gozar de seus direitos


culturais. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969) considera
a estreita relação que existe entre a vigência dos direitos econômicos,
sociais e culturais e a dos direitos civis e políticos, porquanto as diferentes
categorias de direito constituam o todo indissolúvel que encontra sua base
no reconhecimento da dignidade da pessoa humana, pelo qual exigem tutela
e promoção permanente. A Declaração do Direito ao Desenvolvimento (1986)
reconhece que o desenvolvimento é processo econômico, social, cultural e
político abrangente, que visa ao constante incremento do bem-estar de toda
a população e de todos os indivíduos com base em sua participação ativa,
livre e significativa no desenvolvimento e na distribuição justa dos benefícios
daí resultantes. A Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural (2002)
afirma o princípio da diversidade cultural enquanto fator de desenvolvimento,
entendido não apenas em termos de crescimento econômico, mas também
como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual
satisfatória. Em 2005, a Convenção sobre Proteção e Promoção da Diversidade
das Expressões Culturais destacou o papel transversal da cultura na economia
e no desenvolvimento social, propondo a não submissão dos produtos e
serviços culturais às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC).

205
TRABALHADORES DA CULTURA

do Projeto Pró-Música - o Programa de Apoio à Exportação


de Música – e a implementação da Câmara Setorial de
Música, criada pelo MinC em 2005 e gerida pela FUNARTE.
Nesse último caso, na busca de diálogo com o segmento
artístico e a sociedade foram realizados diversos fóruns e
reuniões temáticas com agentes ligados à cadeia da mú-
sica para levantar os principais problemas do setor. Os
destaques das reuniões foram para pautas cujas mesas
foram denominadas Trabalho; Formação; Direito autoral;
e Financiamento, produção, difusão. Nessa oportunidade,
foi detectada, entre outras coisas, a necessidade de re-
gulamentação do trabalho do músico, bem como descen-
tralização dos recursos públicos e dos meios de difusão
(MINC, 2010).
Para aprofundar a tentativa de combate ao ciclo de
descomprometimento do Estado com a cultura, o Governo
Dilma Rousseff apresentou o planejamento a longo prazo
do Plano Nacional de Cultura (PNC), formulado com a par-
ticipação de consultas nacionais e regionais por meio de
fóruns e conferências realizados pelo país. Cita-se também
o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais
(SNIIC) e o Plano de Economia Criativa, assim como a apro-
vação e regulamentação do Vale-Cultura para trabalhadores.
Tendo em vista esse contexto político, Lia Calabre (2006,
p. 23) afirma que o MinC, buscou construir as bases para
a consolidação das políticas públicas no Brasil. Houve um
esforço continuado de fortalecimento das instituições cul-
turais e de estabelecimento das diretrizes, amparadas na
valorização de uma democracia cultural e na utilização
desta como instrumento de inclusão social.
Considerando a crescente institucionalização do
planejamento político da cultura cumpre observar a re-
presentação do artista no atual PNC. Instituído pela Lei
nº 12.343/2010, com validade para 10 anos, a elaboração

206
TRABALHADORES DA CULTURA

do PNC insere-se no contexto das tentativas de avanços


políticos e institucionais realizadas a partir do primeiro
mandato do governo Lula, que aponta para o papel de
um Estado ampliado no setor. O antropólogo social José
Márcio Barros (2014) se dedicou a estudar o tratamento
dado ao artista no documento, que contem 12 princípios,
16 objetivos, 14 diretrizes, 36 estratégias, 275 ações ob-
jetivos e 53 metas. Para Barros (2014) o PNC apresenta
apenas duas ações que recaem na dimensão do artista
como trabalhador.

[A ação 4.2.4, que propõe] estimular a adesão


de artistas, autores, técnicos, produtores e
demais trabalhadores da cultura a programas
que ofereçam planos de previdência pública e
complementar específicos para esse segmen-
to. [E a ação 4.4.1 onde se propõe] desenvolver
e gerir programas integrados de formação e
capacitação para artistas, autores, técnicos,
gestores, produtores e demais agentes cultu-
rais, estimulando a profissionalização, o em-
preendedorismo, o uso das tecnologias de in-
formação e comunicação e o fortalecimento
da economia da cultura (BARROS, 2014, p. 50).

No âmbito das metas do Plano, José Márcio Barros


(2014, p. 48) contabiliza sete medidas que em suas gene-
ralidades estão indiretamente relacionadas ao universo do
trabalho e ao artista enquanto trabalhador, como por exem-
plo “o apoio e difusão de atividades culturais”; “educação
em arte”; “certificação de profissionais de caráter cultural”;
e os direitos autorais. Quando se trata de uma visão mais
direta para o trabalho artístico apenas duas metas podem
ser citadas. A primeira ainda está em estágio de formula-
ção normativa e diz respeito ao Programa de Certificação
Profissional e Formação Inicial Continuada (CERTIFIC), cuja

207
TRABALHADORES DA CULTURA

operacionalidade visa promover a produtividade e inclusão


social e profissional dos artistas. A segunda meta, por sua
vez, leva em consideração as demandas de reconhecimen-
to e regulação atreladas às leis trabalhistas.
Em entrevista a Barros (2014), José de Oliveira Júnior,
diretor de apoio ao trabalhador associado do Sindicato
dos Artistas e Técnicos em Espetáculo de Minas Gerais,
comenta a ausência significativa no que tange à constru-
ção de proposições efetivas e cuidadosas, que visem ao
incentivo e à proteção das carreiras artísticas.

Analisando quantas vezes e em qual contexto


a palavra “artista” aparece citada no texto do
Plano Nacional de Cultura apenas dez vezes
num total de 13.942 palavras do documento.
O mesmo acontece com a palavra ‘criador’,
que curiosamente também aparece citada dez
vezes. [...] Fala-se muito da cultura, dos ins-
trumentos, dos produtos da atividade artísti-
ca, dos equipamentos culturais, dos gestores
e até de recurso só não se fala ‘do artista’.
Sintomático, não acha? (OLIVEIRA JÚNIOR em
entrevista a BARROS, 2014, p. 12).

Diante das análises realizadas até aqui, é possível


concluir, primeiro, a ausência do tratamento do artista en-
quanto trabalhador; segundo, a ausência de instrumentos
efetivos capazes de salvaguardar essa categoria. Nesse sen-
tido, Chauí (2006) suscita a emergência das relações deci-
sivas entre cultura e trabalho27.

27  A propósito desse entendimento, a seleção de discursos do Ministro


da Cultura cubano organizado pelo Sindicato Nacional de Trabalhadores da
Cultura (HART, 1978, p. 177) destaca a estreita relação do Ministério da Cultura
com o Sindicato de Trabalhadores da Cultura do país, que conta com o dia do
trabalhador da cultura (correspondente ao nascimento de Raúl Gómez García)
e diversas escolas de formação descentralizadas. Segundo Armando Hart
(1978, p. 187) toda a gestão é estruturada no sentido de organizar, facilitar,
estimular e proteger a atividade dos artistas, enquanto trabalhadores. O

208
TRABALHADORES DA CULTURA

O que seria uma relação nova com a cultu-


ra, na qual a considerássemos um processo
de criação? Seria entendê-la como trabalho.
Tratá-la como trabalho da inteligência, da sen-
sibilidade, da reflexão, da experiência e do de-
bate, e como o trabalho no interior do tempo,
é pensá-la como instituição social, portanto
determinada pelas condições materiais de sua
realização (CHAUÍ, 2006, p. 136).

Com a perda do cargo da presidenta da república,


após sofrer processo de impedimento em 2016, Dilma
Rousseff é substituída pelo seu vice, Michel Temer (PSDB).
Como uma de suas primeiras medidas, Temer extinguiu o
MinC, que se transformou em Secretaria subordinada ao
MEC, comandado por Mendonça Filho (DEM), político com
inexpressiva atuação no campo cultural. À sombra do ar-
gumento do corte de gastos, a decisão de extinção do
MinC gerou uma enorme insatisfação da classe artística.
Vários prédios ligados ao Ministério e entidades vincula-
das foram ocupados em todo o Brasil. Emergiram protes-
tos, abaixo-assinado e manifestações nacionais e interna-
cionais. Temer decidiu, então, um mês mais tarde, recriar
o MinC, nomeando Marcelo Calero como Ministro.
O novo ministro da Cultura, 33 anos, diplomata e ad-
vogado, era então secretário municipal de cultura do Rio
de Janeiro do governo de Eduardo Paes (PMDB), quando foi
convidado por Temer para o Ministério. Calero chegou a se
candidatar a deputado federal em 2010 no Rio de Janeiro
pelo PSDB, endossando a campanha de José Serra à
Presidência, tendo conseguido 2.252 votos. Após cerca de
seis meses, Marcelo Calero pediu demissão do MinC, acu-
sando o então ministro da Secretaria de Governo, Geddel

Ministério da Cultura de Cuba desde 1976 procura aperfeiçoar normas do


sistema contratual na esfera laboral artística.

209
TRABALHADORES DA CULTURA

Vieira Lima, de tê-lo pressionado a liberar a construção de


um prédio em Salvador em uma área tombada pelo Iphan,
aonde Geddel havia comprado um apartamento. Geddel
caiu seis dias depois. Para o lugar de Calero, foi anunciado
o presidente nacional do PPS, o deputado federal Roberto
Freire. O pernambucano Freire nunca assumiu cargos (nem
mesmo de segundo escalão) nas gestões que seu próprio
partido apoiou, como as dos governos paulistas.
O MinC seguiu o seu curso de sucessivas instabili-
dades governamentais passando pela gestão interina de
João Batista de Andrade, diretor e produtor de cinema e
televisão, roteirista e escritor brasileiro, e após dois meses
sem titular na pasta, o jornalista, gestor público e cine-
asta Sérgio Sá Leitão anunciou um “choque de gestão em
busca da eficiência” no Minc. Isso significou a modifica-
ção dos modelos de gestão dos equipamentos culturais
sob responsabilidade do governo federal, o que exigiria
ceder a administração desses espaços culturais a organi-
zações sociais e à iniciativa privada. À este propósito, em
Dezembro de 2017, Sérgio Sá Leitão anunciou a Instrução
Normativa (IN) da Lei Rouanet. A segunda e mais signi-
ficativa IN no governo Temer possui um texto enxuto e
objetivo – o número de artigos da nova IN foi reduzido
de 136 para 73, e tem a narrativa da desburocratização e
da flexibilização a fim de atrair empresas patrocinadoras.
As atualizações, entre outras medidas, sobem o teto do
valor incentivado pelos proponentes, aumentando a atra-
tividade para os patrocínios, assim como sobe também
a permissão para o valor dos ingressos cobrados pelos
eventos patrocinados, para R$ 250,00 (cinco vezes o valor
do Vale-Cultura).

210
TRABALHADORES DA CULTURA

Sob a gestão de Sergio Sá Leitão, o MinC tam-


bém passou por uma reestruturação organizacional com
o objetivo de ampliar a eficiência e eficácia da institui-
ção, demitindo alguns secretários e realizando a fusão
de algumas secretarias, como a Secretaria da Cidadania
e da Diversidade Cultural que uniu-se a Secretaria de
Articulação e Desenvolvimento Institucional. Já a Secretaria
da Economia da Cultura passou a ser chamada Economia
Criativa, sob o comando de Douglas Capela, ex-executivo
do Banco do Brasil.
Nas eleições presidenciais de 2018, a cultura apa-
receu, de uma forma geral, tímida e generalista, quando
não foi absolutamente ausente do programa de gover-
no. A própria visão de cultura também mudou. Ora com
ênfase na economia criativa, ora com destaque para o
seu papel social, de identidade e construção de cida-
dania. Das candidaturas disponíveis, Haddad (PT), Ciro
Gomes (PDT), Guillerme Boulos (Psol) e Marina Silva (Rede
Sustentabilidade) dedicaram seções exclusivas ao tema.
Já Geraldo Alckmin (PSDB), Álvaro Dias (Podemos) e João
Amoêdo (Novo) enumeraram poucas diretrizes sem deta-
lhar seu desenvolvimento. Finalmente, Jair Bolsonaro (ex-
-PSL, hoje sem partido), Cabo Daciolo (Patriota), Henrique
Meirelles (MDB) e Vera Lúcia (PSTU) sequer citam a palavra
cultura enquanto política em seus planos.
Ao ser eleito presidente,  Jair Bolsonaro, em 1º de
janeiro de 2019, extingue novamente e oficinalmente o
MinC por meio da Medida Provisória (MP) nº 870. As atri-
buições do MinC foram, então, incorporadas ao recém-
-criado  Ministério da Cidadania, que absorveu também
a estrutura do  Ministério do Esporte  e do  Ministério
do Desenvolvimento Social. Em novembro de 2019,
a Secretaria Especial da Cultura (SEC) foi transferida para
a pasta de  Turismo (Decreto nº 10.359/2020),  indicando

211
TRABALHADORES DA CULTURA

uma visão bastante reduzida de cultura enquanto “atração


turística”. Do ponto de vista da chefia da SEC, há, desde
então, uma sucessão de crises e vacâncias.
O primeiro gestor da SEC, Henrique Pires, deixou a
pasta em agosto de 2019 reclamando de censura em pro-
gramas. Ricardo Braga, seu sucessor, foi exonerado apenas
dois meses depois de assumir a função. Roberto Alvim as-
sumiu em novembro de 2019 em meio a diversas polêmi-
cas com o próprio setor e acabou sendo exonerado em ja-
neiro de 2020, após ter publicado discurso com evidentes
referências nazistas. Regina Duarte é empossada apenas
em março de 2020. Sua gestão de menos de três meses
também foi marcada por polêmicas, em especial, ao mini-
mizar mortes da ditadura e não se posicionar oficialmente
sobre falecimentos de grandes artistas nacionais. O ator
Mario Farias é, então, o mais recente titular da gestão da
SEC e se mostra disponível para a “guerra cultural”, cuja
“moralização do debate público no âmbito da cultura” em-
preende um “combate ao domínio de valores de esquerda,
com o argumento de salvar a nação” (NEXO, 2020).
As polêmicas envolvendo declarações não fica-
ram restritas ao âmbito da Secretaria, o que pode ser
indicado nos inúmeros discursos questionáveis do pre-
sidente da FUNARTE, Dante Mantovani, além das decla-
rações de Sérgio Camargo na presidência da Fundação
Palmares. De uma forma geral, a gestão de Bolsonaro
tem sido marcada pelo sistemático desmonte das políti-
cas culturais construídas nas gestões anteriores, desde
a redemocratização. Ainda no primeiro ano do mandato,
Jair Bolsonaro colocou em prática a revisão das políticas
de patrocínio de empresas estatais à cultura. Nesse con-
texto, os montantes de incentivo de entidades como a
Caixa, Banco do Brasil e Correios caiu significativamente.
Anunciou-se que os aportes da Petrobras, historicamen-

212
TRABALHADORES DA CULTURA

te uma das maiores apoiadoras, seriam redirecionados


para as áreas da educação e tecnologia. Por consequên-
cia, alguns projetos culturais que contavam com esses
apoios acabaram sendo suspensos ou reduzidos. 
Finalmente, o governo também tem sido alvo de crí-
ticas pelos ataques realizados a obras que desagradaram
a ala bolsonarista. Acusada de praticar censura, a ges-
tão Bolsonaro esteve diretamente relacionada ao cance-
lamento de editais e projetos com temática LGBTQI+, por
exemplo. A atual gestão do governo Bolsonaro tem, por-
tanto, significado conjunto de retrocessos, cujo “apagão”
pode ser demonstrado por números relavantes. Segundo
o levantamento da Folha de São Paulo (2020), a SEC per-
deu cerca de 600 cargos desde que Bolsonaro assumiu
a Presidência.  Nesse contexto, e parafraseando Eduardo
Viveiro de Castro (2018), põe-se em prática um projeto
de devastação por meio da criação de desertos, o deser-
to da cultura, o deserto do tempo, o deserto da história,
da memória e do real. Uma perda incalculável que não se
justifica, mas se explica diante de uma escolha política
neoliberal. Diante dos recentes desmontes e do imenso
deserto político materializado simbolicamente na quei-
ma da cultura (Museu Nacional), parece que há uma larga
agenda para ser retomada e, sobretudo, aprofundada no
campo cultural.
Em julho de 2020, o Bloco da Cultura, movimento
político em defesa do setor, lançou o programa Capital da
Cultura com dez tópicos para reconstruir a infraestrutura
pública da produção cultural nacional. À frente do movi-
mento estão Alê Youssef, ex-secretário de Cultura de SP,
e Carlota Mingolla, além de Lais Bodanzky, Pedro Granato,
Xis, entre outros. O programa está estruturado nos se-
guintes eixos: calendário integrado, reconhecimento, ges-
tão, formação, incentivo, fomento, difusão, memória, per-

213
TRABALHADORES DA CULTURA

tencimento e novo modernismo (“reconhecer e convocar


as expressões artísticas que emergem das periferias, re-
vigorando a percepção sobre a produção cultural e forta-
lecendo o multiculturalismo”, diz o texto). A ideia é que
o programa seja usado como subsídio para os planos de
governo de candidaturas eleitorais em 2020. 
Enquanto as tentativas de fortalecimento institu-
cional do Estado encontram interrupções, limites e difi-
culdades de realização prática, a supremacia da escolha
política neoliberal nas políticas públicas culturais prevale-
ce, colocando em ênfase o mecenato. Para Marilena Chauí
(2006) na privatização da gestão da cultura é como se o
governo sacrificasse uma massa de dinheiro público ca-
paz de ser empregada diretamente por suas instituições
culturais para agir indiretamente, deixando às empresas a
decisão do que financiar. Em outras palavras, seria como
sacrificar receita pública convertendo-a em reforço do or-
çamento publicitário das empresas.
Para explicar o mecanismo de funcionamento do
mecenato, Juliana Coli (2006, p. 266) elucida que as leis
de incentivos fiscais acabam por privilegiar duplamente
o capital privado: primeiro, pela própria concessão dos
benefícios que a empresa obtém com a isenção dos im-
postos e, segundo, porque converte em retorno produtivo,
como valor agregado, o que antigamente poderia ser con-
siderado um investimento improdutivo, pelas novas estra-
tégias de marca das empresas com o marketing cultural.
Na lógica do mecenato o envolvimento do setor cor-
porativo nas questões culturais é otimizado tanto para es-
tratégias de rentabilidade financeira, quanto para marke-
ting de responsabilidade sociocultural. Entre as atuais es-
tratégias das empresas, o marketing cultural representa
uma forma de interação com os consumidores, cuja razão
de ser econômica não se limita à venda do produto, mas

214
TRABALHADORES DA CULTURA

à própria produção de subjetividade, enquanto forma de


adesão ideológica. Nessa direção, o patrocínio corporati-
vo tem também como objetivo o ganho simbólico, ou de
imagem, que a associação a um evento de prestígio pode
oferecer às corporações e suas marcas28.
Na verdade, a pesquisadora Clarissa Diniz (2011, p.
33) explica que o “capitalismo ético” aponta para a ideia
do “cada um deve fazer o seu papel” e parte do princípio
de que se estaria vivendo uma crise conjuntural (e não
estrutural) econômica e social. A partir da premissa que
considera o Estado incapaz para lidar com as dimensões
dessa crise, se aposta na iniciativa privada. O que ocor-
re com a questão sociocultural, enquanto território mais
intensamente habitado pelo empresariado, é a superação
da dimensão “problema social” para tornar-se, claramen-
te, um campo de disputa de estratégia comercial entre
as empresas. Nesse sentido, a pesquisadora (DINIZ, 2011,
p. 33) explica que a Lei Rouanet permite que a empresa
patrocinadora abata mais do imposto devido do que seu
próprio investimento em cultura. O exemplo que segue
destrincha esse mecanismo.

Com base também nas suas ações de ‘contri-


buição social e cultural’, a marca do Itaú S.A
consolidou-se em 2011 como a mais valiosa
do Brasil, num total de R$ 24,3 bilhões, en-
quanto, no ano de 2010 investiu de recursos
próprios R$ 59.266.000,00 (59 milhões) em
cultura, o equivalente a 0,11% de sua receita
líquida naquele ano. Não é diretamente, senão

28  A propósito, sabe-se que há ramos de negócios para os quais é mais


aguda a necessidade de reparar a imagem ou de reforçá-la positivamente
por meio do marketing cultural: é o caso das bebidas alcoólicas, tabaco e
petroquímica, em sua ameaça à saúde humana e ao meio ambiente; ou o caso
dos bancos que trabalham uma mercadoria comum (dinheiro) e só podem se
demarcar na mente do público em termos da associação de seu nome com
cultura, esporte e beneficência, por exemplo.

215
TRABALHADORES DA CULTURA

através, de tributação, como por meio da Lei


Rouanet, que o Itaú S.A investe significativa-
mente na ‘questão social’ havendo, em 2010,
investido R$ 10.299.997.000,00 (10 bilhões)
para todas as áreas das contribuições sociais,
o equivalente a 19,10% de sua receita líquida.
Considerando os 0,11% de investimento direto
em cultura da corporação naquele ano, per-
gunto-me o quanto, por sua vez, não deve ter
colaborado a cultura (e, portanto, a arte) para
construir, através dos 19,10% de investimento
via tributação, para o atual valor bilionário da
marca, 18% superior ao de 2010. Restringindo-
me a ficar em um dos braços das atividades
culturais e sociais do conglomerado, somen-
te no Itaú Cultural foram investidos, através
da Lei Rouanet, R$ 26,978 milhões (segundo
informações cedidas pela instituição, outros
R$ 17,836 milhões foram investidos direta-
mente pelo Itaú Unibanco), havendo sido re-
alizadas, em 2010, 456 atividades, recebidos
quase 300.000 visitantes, distribuídos 25.673
produtos culturais e assinados contratos com
111 TVs (DINIZ, 2011, p. 38).

A pesquisadora taiwanesa Chin-Tao Wu (2006) ana-


lisa o processo que fez da arte um grande negócio para
as corporações. A autora (WU, 2006, p. 23) explica a ten-
dência de privatização da cultura, a partir da intervenção
corporativa nas artes na década de 1980 na Grã-Bretanha
e nos Estados Unidos, década em que, mais do que em
qualquer outra, se assistiu à utilização do poder corpora-
tivo na participação ativa da arena cultural. A entrada das
companhias na arena cultural só se tornou possível graças
à substancial acumulação de capital econômico, além do
forte aparato de governabilidade. Depois da chegada de
Ronald Reagan e Margaret Thatcher ao poder, em 1981 e
1979, respectivamente, os dois conduziram seus manda-

216
TRABALHADORES DA CULTURA

tos sob a dupla bandeira da redução dos gastos públicos


e da expansão do setor privado, o que se estendeu à vida
cultural dos dois países. Os cortes orçamentários vieram
juntos com incentivos fiscais e influência política sufi-
cientes para atrair dinheiro privado para área.
As estratégias de ações do thatcherismo e do re-
aganismo estabeleceram os paradigmas de gestão ne-
oliberal na cultura, por meio do duplo movimento que
endossa a iniciativa privada e retrai o investimento dire-
to do poder público. Proliferam-se os centros culturais
mantidos por entidades financeiras. Para quem traba-
lha no setor, não há, inicialmente, um mal nessa lógica.
Segundo Ana Carla Reis (2007, p. 67), o envolvimento das
empresas requer um comprometimento muitas vezes
mais complexo do que a posição de ser contra, na me-
dida em que existe, para a autora (REIS, 2007, p. 34), a
possibilidade de diferentes formas de participação priva-
da (filantropa, oportunista, comercial, desenvolvedora). O
problema acontece, contudo, quando a sinergia Estado /
Mercado caminha na arriscada e quase sempre iminente
direção de descomprometimento do Estado.
Enquanto o Estado prescinde de sua atuação direta
para descentralizar e democratizar os projetos culturais,
o mecenato, pela lógica do mercado, centraliza os recur-
sos nos principais centros do país, áreas de interesse do
marketing cultural das empresas, cuja visibilidade e retor-
no comercial é mais provável. Segundo dados do extinto
MinC (2012, p. 2), em 2010, 78% da captação dos recursos
aprovados pelo Ministério dirigiram-se a projetos da re-
gião sudeste. Além disso, a Lei Rouanet promove investi-
mentos bastante criticados, como ocorreu no Rock in Rio
2011, cuja produção o MinC autorizou a destinação de R$

217
TRABALHADORES DA CULTURA

12,3 milhões (RIZZO, 2011, p. 1)29. Nesse sentido, quando


o Estado se retrai naquilo que é em favor de interesses
públicos, avançam interesses de mercado, que são corpo-
rativistas e, portanto, de benefício restrito.
Do ponto de vista jurídico, embora as regulamenta-
ções brasileiras apontem para a valorização do discurso
da cultura (a atual Constituição Federal anuncia a impor-
tância da cultura, definindo o papel do Estado em sua
gestão, de forma a garantir a todos o pleno exercício dos
direitos culturais, além de apoiar e incentivar a valorização
e a difusão das manifestações culturais), ao procurar es-
timular o setor cultural majoritariamente por meio de leis
de incentivo fiscal ao patrocínio privado, transfere-se de
forma principal para as empresas uma obrigação genui-
namente estatal. Nesse contexto, Marilena Chauí (2006,
p. 52) conclui que a política pública cultural no Brasil, na-
quilo que implica deliberação, escolhas e prioridades, é
propriedade das empresas e suas gerências de marketing.
Símbolo do Estado mínimo, a Lei Rouanet vinha
sendo repensada pelo extinto MinC. Em uma série de en-
contros denominado Diálogos culturais, em 2008, o en-
tão Ministro Juca Ferreira apresentou à sociedade civil as
justificativas para reformulação legislativa, apontando as
29  A jornalista Alana Rizzo (2011, p. 1) relata que o Rock in Rio é alvo de
diligências desde 2011. A equipe técnica da pasta encontrou irregularidades
no projeto inicial, apresentado pela empresa Dream Factory Comunicação
e Eventos Ltda. No entanto, a captação de R$ 4,5 milhões foi autorizada.
Os produtores conseguiram apoio de quatro companhias privadas, além da
Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, um dos maiores contribuintes,
com R$ 1,2 milhão. Na Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), o
parecer ressalta outra irregularidade: a de que os projetos não apresentavam
informações suficientes sobre a proposta. A CNIC apontava que grande
parte do orçamento estava destinada à estrutura do evento, incluindo
lojas, bares, restaurantes e entretenimento, e não às atividades culturais.
Os conselheiros também alertaram que a proposta não apresentava todos
os custos do Rock in Rio e incluía despesas proibidas como passagens de
primeira classe e refeições para pessoas que não estavam diretamente
ligadas à produção do evento.

218
TRABALHADORES DA CULTURA

distorções do modelo de financiamento atual, assim como


propostas de mudanças. O relatório do Minc (2015) concluiu
que o modelo atual exclui a viabilidade dos projetos sem
retorno de marketing, não fortalecem a sustentabilidade do
mercado cultural, inibe a percepção de que os recursos são
públicos e não promove a democratização do acesso aos
bens culturais.
O Projeto de Lei nº 6.722/2010 (ProCultura) pretendia
ser o novo marco regulatório que substituiria a Lei Rouanet.
Discutido em várias conferências pelo país, o ProCultura
fortalece o incentivo Estatal direto via Fundo Nacional de
Cultura. O Projeto, que também prevê a regionalização dos
recursos, foi aprovado na Câmara dos Deputados com al-
terações ao texto originalmente apresentado, mas aguar-
da votação no Senado Federal desde então. Em entrevistas
(GRUMAN, 2015, p. 2) Juca Ferreira, grande entusiasta do
ProCultura, se defende do argumento de dirigismo cultural
no setor, afirmando que não é contrário à renúncia fiscal,
mas à sua predominância enquanto forma de incentivo. O ex-
-ministro entende que a lógica deve ser invertida e o Estado
deve ser o principal incentivador das atividades artísticas
no país. Atualmente, é muito provável que o ProCultura não
seja impulsionado no Senado, tendo em vista os indicativos
políticos mais recentes.
Por fim, um dos maiores entraves do MinC na efe-
tividade de suas demandas sempre foi o seu baixo or-
çamento. A propósito da viabilização da atuação direta do
Estado na cultura, salienta-se também que desde 2003
tramita no Congresso Nacional a Proposta de Emenda
Constitucional 150. A PEC 150 prevê o repasse anual de 2%
do orçamento federal, 1,5% do orçamento dos estados e
do Distrito Federal e 1% do orçamento dos municípios para
a cultura.  É importante destacar também que tramita no
Congresso Nacional a Lei nº 4.281/2012 que institui o Bolsa-

219
TRABALHADORES DA CULTURA

artista. Trata-se de financiamento de formação e aperfeiço-


amento para artistas amadores e profissionais pelo período
de um ano. Contudo, e da mesma forma que acontece com
o ProCultura, é provável que tais Projetos não sejam impul-
sionados haja vista a atual gestão cultural do país.
No atual contexto político, a PEC 241, que congela o
orçamento do governo federal por vinte anos, deve impac-
tar diretamente na área cultural, com significativa redução
de investimentos. O que nem todo mundo se deu conta
ainda é que na área cultural, a PEC será ainda mais devas-
tadora. Isso porque, diferentemente da saúde e educação,
que possuem pisos orçamentários obrigatórios  previstos
na Constituição, a cultura não tem essa garantia e, com
isso, pode perder até 90% dos seus recursos em apenas
cinco anos. A projeção foi apresentada pelo ex-secretário-
-executivo do MinC, João Brant (2016, p. 1).
Em nota técnica, Brant (2016), que foi secretário-
-executivo do ministério na gestão Dilma Rousseff até
abril de 2016, explica que com a queda de quase 90% do
orçamento voltado para as ações culturais, na prática, to-
das as ações do MinC serão paralisadas. Isso inclui edi-
tais de pontos de cultura, ações voltadas à cultura ne-
gra, obras de patrimônio cultural e exposições de museus,
financiamentos não-retornáveis do Fundo Setorial do
Audiovisual, além de ações de digitalização da Biblioteca
Nacional, bolsas da Fundação Casa de Rui Barbosa e todas
as ações financiadas pelo FNC. Com isso, a tendência é o
fechamento de unidades inteiras vinculadas ao ministério
ou até mesmo a transferência da gestão para a iniciativa
privada (BRANT, 2016, p. 1). 

220
TRABALHADORES DA CULTURA

6.2 A era dos projetos

Enquanto o Estado realiza a sua escolha política pelo


conceito neoliberal na gestão cultural, na predominância
dos incentivos fiscais via Lei Rouanet, os editais se carac-
terizam pela tecnocracia e complexidade. Acentua-se o
crescimento do mercado de projetos e gestores especiali-
zados em editais. Há casos emblemáticos de espetáculos
e artistas famosos que recebem montantes milionários
para desenvolver suas produções30. Ao mesmo tempo em
que o mercado de editais corrobora para o privilégio de
nomes que já possuem condições econômicas, projeção
artística e inserção no meio burocrático cultural, por outro
lado, há uma série de restrições e condições que chegam
a inviabilizar pequenos projetos.
Dos 22 artistas que compõem a amostra desta
pesquisa, 11 deles recebem ou já receberam algum tipo
de subvenção pública federal, estadual ou municipal, di-
reta ou indireta – seja para a gravação de CDs, seja para
a realização de shows. Desses artistas que conseguiram
captar recursos via editais públicos quase todos eles es-
crevem os próprios projetos, destacam a importância e
imprescindibilidade desse tipo de recurso para a viabili-
dade dos seus trabalhos, assim como criticam e defen-
dem a ampliação desse tipo de mecanismo.
Uma das artistas entrevistadas (Artista 15, 2/9/2014)
contou, até o momento da entrevista, com subsídios pú-
blicos em três CDs, sendo um estadual, um municipal e
um federal. A artista, que cursou produção fonográfica,

30  Em 2006 o grupo canadense Cirque du Soleil obteve autorização para


captar R$ 9,4 milhões em sua apresentação no Brasil, cujos ingressos chegaram
até R$ 370. Em outro exemplo, a peça da Broadway Fa­­mília Addams recebeu
autorização para captar R$ 13 mi­­lhões via renúncia fiscal – o faturamento da
peça chegou a R$ 9 milhões. Cinco ve­­zes mais do que a região norte re­­cebeu
em 2011 a título de financiamento cultural (GARCIA, 2015, p. 12).

221
TRABALHADORES DA CULTURA

afirma que tem procurado caminhos para não depender


tanto do poder público, mas reconhece a dificuldade dis-
so, sobretudo em um contexto em que não se consegue
“fazer bilheteria”, como é o caso de Recife. De forma se-
melhante, outra artista (Artista 14, 5/5/2015) relata que
já teve vários projetos financiados por verbas públicas, a
partir dos programas de incentivo federais e estaduais.
Em todos os casos, ela quem escreveu pessoalmente os
projetos. Para a cantora, só ela mesma, como artista, pode
dar conta do que artisticamente vai acontecer.

Como é que alguém pode falar de um trabalho


meu? A não ser que viesse um jornalista, fizes-
se uma entrevista comigo pra desenvolver um
texto, coisa que não existe, não existe dinheiro
pra isso... Pelo menos na minha produção não
tem. Então eu acabo mesmo escrevendo minha
ideia artística. E acho gostoso também. Porque
a partir do momento que eu escrevo, eu pen-
so sobre o que eu quero fazer. E na medida
em que eu penso eu vou também aprimorando
um pouco aquele trabalho. É um processo de
construção pra mim, não só burocrático (Artista
14, 5/5/2015).

Quanto às críticas dos mecanismos de editais pú-


blicos, uma entrevistada (Artista 15, 2/9/2014) comenta
as limitações da lógica do edital que paga a produção,
mas não se preocupa com a ponta final da cadeia, quer
dizer, a circulação: “Que investimento de dinheiro públi-
co é esse que você grava e o disco fica em casa parado?
Porque a pessoa não tem a estrutura pra fazer girar aqui-
lo depois” (Artista 15, 2/9/2014). Nesse sentido, um dos
músicos entrevistados defende que os mecanismos de
financiamento estatal precisam ser rediscutidos e repen-
sados de forma “mais duradoura e eficiente” (Artista 2,

222
TRABALHADORES DA CULTURA

2/9/2015). O maior problema e injustiça da Lei Rouanet,


para ele, é o fato do artista ser responsável por captar o
dinheiro junto às marcas.

Entre a minha banda e a Maria Bethânia qual-


quer marca que tenha o mínimo de visão marke-
ting cultural vai apostar na Maria Bethânia.
Então, você ter o mesmo edital nessas duas
situações é injusto. São níveis que precisam
ser especificados... (Artista 2, 2/9/2015).

Pensando nesses critérios de seleção mais espe-


cíficos para os editais públicos, outro artista (Artista 19,
4/3/2016) aponta que algumas bandas necessitam de um
aporte financeiro para que possa existir com alguma con-
dição de sustentabilidade, tendo em vista as dificuldades
mercadológicas, enquanto outras não. No mesmo sentido,
um entrevistado (Artista 7, 14/4/2015) afirma que o ideal
seria que sua banda estivesse suficientemente inserida no
mercado para que não fosse preciso recorrer aos incentivos
públicos, no entanto, isso ainda não é uma realidade para
ele. Por tudo isso, o artista (Artista 7, 14/4/2015) infere que
bandas “desse tipo” deveriam ter prioridades de financia-
mento. Observam-se, nessas falas, dois pontos bastante
importantes. Primeiro, a necessidade de distinção ou crité-
rios de independência. Segundo, a de que o financiamento
público não deve anular a independência/autonomia, mas
a viabilizar.
Dos músicos que afirmaram nunca ter recebi-
do qualquer tipo de incentivo público a maioria deles
entende que o tipo de música que faz não é interes-
sante para as empresas bancarem via mecenato, o que
influencia diretamente nas tentativas malsucedidas de

223
TRABALHADORES DA CULTURA

financiamento estatal indireto. Um dos artistas (Artista


5, 30/4/2015) afirma que talvez os editais não sejam, de
fato, feitos para ele. “Talvez os patrocinadores tenham
outro tipo de coisa na cabeça”. O artista entende, então,
que o Estado “teria que dá conta mesmo de uma música
de invenção porque a música do entretenimento já está
tudo certo. Os caras tem avião, os caras tem agronegócio
bancando eles, tá tudo bem” (Artista 5, 30/4/2015). Os
músicos também criticam as recentes ideias de que eles
“são bancados” pela Lei Rouanet, uma vez que grande
parte deles sequer tem acesso a esse tipo de financia-
mento durante as suas carreiras.
Quando se trata de financiamento estatal direto, a
frequência de subsídio ainda é menor, embora com dife-
renças regionais. Enquanto São Paulo conta com maiores
recursos da Lei Rouanet, com maior quantidade de espaços
culturais de bancos e empresas privadas, além de um mer-
cado independente mais estruturado, em Recife o índice de
investimento público municipal é mais elevado, chegando
ao recomendado pela UNESCO de 2%. De acordo com a
pesquisa do IBGE (PREFEITURA DO RECIFE, 2008), tendo
como ano base 2005, o orçamento da cultura da Prefeitura
do Recife, correspondeu a 3,3% do orçamento geral do mu-
nicípio, ficando em primeiro lugar das capitais brasileiras
em investimento público municipal, resultado que se re-
petiu em outros anos31. O avanço recifense na matéria de

31  O cenário é positivo no que concerne à proliferação das atividades


artísticas. Segundo o Plano Municipal de Cultura da cidade (PREFEITURA DO
RECIFE, 2008), mais de 82% dos municípios pernambucanos realizaram algum
festival ou mostra artístico-cultural. Sendo que em 71 municípios, esses
festivais foram de música. Entre os principais eventos musicais realizados
anualmente no Recife, destacam-se: o Carnaval Multicultural do Recife e de
Olinda, o Porto Musical, a Feira Música Brasil, o Abril pro Rock, o São João
Multicultural, a Mostra Internacional de Música em Olinda (MIMO), o Coquetel
Molotov, o Festival PE Nação Cultural, o Acordes para o Museu e o Festival
Rec Beat. Segundo levantamento feito por Fabio Cabral (proprietário da loja e

224
TRABALHADORES DA CULTURA

investimento público cultural pode ser notado na iniciativa


de 2009 quando a cidade foi uma das primeiras do país a
formular o Plano Municipal de Cultura (2009-2019)32.
Entretanto, nos últimos anos da gestão do PSB no
Estado, os investimentos diretos diminuíram e os equi-
pamentos públicos destinados à cultura foram sistema-
ticamente sucateados. Em uma região majoritariamente
composta por uma população de baixo poder aquisitivo,
a oferta de bens culturais – especialmente da música –
depende de modo mais estreito de eventos apoiados e
custeados pelos governos estaduais e municipais, ain-
da mais no atual momento em que mínguam os recur-
sos federais setoriais. Os grandes eventos, contudo, são
os que costumam movimentar a maior parte das verbas
públicas. Esse sistema de financiamento está baseado
numa espécie de troca simbólica bastante evidente entre
a classe política e os setores artísticos.
Nos últimos anos, a afirmativa de que o merca-
do da música no nordeste é fortemente dependente do
financiamento público tem sido bastante relativizada.
Isso porque o principal fundo governamental de financia-
mento cultural, o Funcultura (cujos recursos são oriun-
dos parcialmente dos cofres estaduais e da estatal de
energia elétrica do estado, a Celpe) tem encolhido seus
incentivos. O investimento do Estado na disponibilização

selo Passa Disco, especializada em música pernambucana), no ano de 2014,


os músicos que moram no Estado de Pernambuco lançaram 215 títulos (entre
CDs, DVDs, LPs e álbuns virtuais) (OUTROS CRÍTICOS, 2015, p. 1).
32  Enquanto projeto estratégico de gestão, os princípios básicos que orientaram
suas ações atentaram para a pluralidade, a participação e a valorização da
cultura local. Segundo o Plano (PREFETURA DO RECIFE, 2008, p. 28), uma
das diretrizes para que Recife despontasse como “capital multicultural” foi
a valorização da diversidade e o fortalecimento da democracia cultural, por
meio do fortalecimento dos artistas e grupos locais. No processo de incentivo
à cultura, a gestão de trabalho, renda e direitos dos trabalhadores-artistas foi
uma das diretrizes gerais do Plano Municipal da Cultura do Recife.

225
TRABALHADORES DA CULTURA

de música gratuita para a população é prerrogativa cons-


titucional de sua atuação na área cultural e dificilmente
pode ser criticado. Essa atuação precisa sim se direcio-
nar à promoção da diversidade de ofertas, apoiando se-
tores alijados da produção e circulação mercantil. Mas o
que tem ocorrido, na prática, são muitos casos de trocas
eleitoreiras, burocratização do processo e falta de crité-
rios, o que faz com que poucos artistas cheguem a cap-
tar recursos por essa via. Nesse sentido, a fala de uma
entrevistada é emblemática:

Olha, se você foge um pouco dessa lingua-


gem que eu chamo até de bumba-meu-ovo,
você não tem acesso. Eu tentei oito editais do
Funcultura até agora e não consegui me en-
quadrar em nenhum. O poder público aqui ex-
plora a cultura popular de maneira muito fol-
clórica e eu acho muito ruim porque ao mesmo
tempo em que nós somos o cartão postal, nós
somos negligenciados. Porque a cultura popu-
lar ela é a forma principal de identificação de
um povo. Mas a burguesia a trata como folclo-
re. Meu trabalho tem mais respaldo fora... Aqui
eu passo muito tempo sem tocar. [...] É com-
plicado... Às vezes eu entro até em crise de
identidade, sabe? Porque você demanda tanta
energia pra fazer um projeto... O ano passado
mesmo eu cheguei a pontuar 8,4, uma nota
ótima, mas aí... Não há uma coerência, um cri-
tério, uma idoneidade... (Artista 21, 13/8/2014).

Sobre os gargalos do financiamento público direto


em Pernambuco, uma das artistas entrevistada (Artista 1,
25/2/2016) questiona também os problemas que podem
vir da dependência do poder público, na medida em que
a política cultural estadual não pensa em promover ações
do mercado musical no sentido dele se auto sustentar, in-

226
TRABALHADORES DA CULTURA

tegrando demandas de financiamento com fortalecimen-


to dos meios de comunicação, por exemplo. A musicista
considera importante e necessário a função do Estado de
oferecer subsídios para o mercado da cultura, mas isso
deve ser melhor articulado em termos de fomento à longo
prazo. Em suas palavras:

Não adianta você me dar dinheiro assim sem


pensar em como eu vou fomentar o mercado ao
final. Já que o Estado é o cara que tem a posse
da grana, ele tem que pensar nisso também. A
gente precisa de jornalistas e do meio de comu-
nicação a favor de uma cultura. E que cultura é
essa que o Estado tá pensando? Então, eu me
preocupo com isso. Por exemplo: eu fui pra um
maracatu rural em Goiana (interior do Estado)
fazer uma participação no show de Maciel Salu.
No outro dia eu escutei umas meninas lá falan-
do assim ‘eu adorei o show, mas não lembro
direito do nome do cara’. E se hoje tu perguntar
pra elas, aí é que elas não vão lembrar mesmo.
Então, por que não ter rádios que toquem mais
essa pessoa? Tá tudo interligado. Então, tem
que pensar interligado, porque evento é evento
e passa... Então, ah, se eu quero que o governo
me dê 60 mil reais pra uma turnê? Quero, claro
que eu quero! Mas, assim, eu quero mais do
que isso. Se ele só tiver 60 mil reais pra me dar,
tudo bem, mas eu preferia que ele tivesse 30
mil e que tivesse um desdobramento melhor
desse disco ou desse show, sabe? Isso significa
uma preocupação com os meios de comunica-
ção... (Artista 1, 25/2/2016).

À revelia do Estado, por outro lado, cinco artistas in-


dependentes citaram o recebimento de apoio direto pri-
vado em alguma das etapas de produção e/ou circulação
dos seus trabalhos. Esses apoios são desde contratos para
a divulgação de marcas em shows, até o estabelecimento
de parcerias diversas com fornecedores de produtos ― de

227
TRABALHADORES DA CULTURA

instrumentos musicais, a roupas e tênis. Finalmente, ob-


serva-se a possibilidade de financiamento colaborativo ou
crowdfunding. Trata-se da cooperação na arrecadação de
recursos, tanto financeiros quanto estruturais, e ocorre ge-
ralmente por meio da internet. Dos artistas entrevistados
apenas dois afirmaram conseguir recursos por esse meio33.
De acordo com as entrevistas realizadas nesta pes-
quisa é possível concluir que a proposição neoliberal que
coloca a cultura como um bom negócio trouxe significati-
va redução de políticas públicas voltadas ao setor e apre-
sentou como modelo para o desenvolvimento da cultura
a participação de empresas34 por meio da lógica de patro-
cínio com contrapartidas fiscais. Nesse contexto, a dis-
cussão sobre políticas públicas diretas e direito à cultura
resta prejudicada. A própria inserção dos artistas em dis-
cussões sobre políticas de incentivo e suas crenças nos
órgãos de representações são de baixa intensidade.

33  Qualquer pessoa que tenha uma ideia de projeto pode cadastrá-la em
um site de financiamento coletivo, estipular uma quantia de dinheiro exigida
para viabilizá-la e um prazo para a verba ser arrecada. Embora na Europa e
nos Estados Unidos esse tipo de atividade venha se tornando comum, no
Brasil o financiamento colaborativo ainda se desenvolve de forma tímida
e está extremamente longe de se constituir uma realidade palpável para
a maioria dos artistas independentes. No site mais conhecido no Brasil
especializado em crowdfunding para música, o embolacha.com.br, até 2016,
15 projetos tinham sido realizados com sucesso, enquanto outros 5 estavam
em andamento. Já no site catarse.com, destacado por trabalhar com diversas
linguagens de financiamento colaborativo, até 2016 havia 184 projetos em
andamento, dos quais 27 eram de músicas (setor que só perde para o cinema
e vídeo com 38 projetos).
34  Quando se trata de constatar a atuação corporativa no trabalho artístico,
destaca-se sua influência em todas as fases da cadeia econômica, desde
os editais de financiamento que atuam sobre a produção e disseminação
das atividades, até o patrocínio de festivais e os prêmios empresariais. São
indicativos do avanço dessa lógica os principais festivais de música hoje,
como, por exemplo, Music Festival Red bull, Natura Musical, Jack Daniel´s
Festival, Oi Música, Tim Festival e Vivo Music Festival. Já nos prêmios de
destaque empresarial da música citam-se o Prêmio da Música Brasileira,
patrocinado pela Vale do Rio Doce; o Prêmio Shell de Música; e o Prêmio
Multishow de Música Brasileira, este último vinculado às Organizações Globo.

228
TRABALHADORES DA CULTURA

Quando perguntados sobre a integração em algum


movimento ou fórum de discussão que debata a política
cultural municipal, estadual ou federal acentuam-se, de
forma geral, as críticas dos músicos quanto às políticas
de incentivo, ao mesmo tempo em que se observa uma
dispersão política nesse tipo de demanda. Isso porque a
maior parte dos entrevistados afirma que procura se man-
ter longe de conflitos nesse sentido, até para que não haja
represálias de não concessão de incentivos. Uma das falas,
inclusive, é bastante emblemática nesse sentido (Artista
20, 21/7/2014): “eu já quebrei muito a cara e procuro não
levantar bandeira. Tenho muito medo de levantar essas
bandeiras porque corre o risco de ser mal interpretado”.
Por outro lado, a declaração de uma das artistas
(Artista 15, 2/9/2014) merece destaque por problematizar
o tipo de reflexão proposta pela maioria dos coletivos que
pensam a cultura no Estado de Pernambuco. A cantora e
compositora afirma que já se envolveu em comissões se-
toriais, já fundou uma cooperativa, mas que desencantou
desses processos políticos. “Porque fica um pensamento
de ‘a cooperativa é só pra passar nota’... É um pensamento
muito micro... Um pensamento do seu umbigo”. Ela reflete
que o fato de um grupo de músicos conseguir trabalhar no
carnaval, por exemplo, não quer dizer que o cenário seja
bom. “Afinal o que fica depois do carnaval? Isso estruturou
o mercado? As orquestras de frevo e os blocos têm ativi-
dades o resto do ano?” (Artista 15, 2/9/2014).

E também que disparidade é essa? Precisa que


eu tenha direito a um camarim minimamente
decente e o maracatu receba de lanche meio
pão com queijo? Porque essa é a realidade!
Precisa ser assim? Aí eu não vejo essa refle-
xão nos coletivos cults da cidade! Eu não vejo
essa reflexão entre a gente! Eu não vejo esse

229
TRABALHADORES DA CULTURA

incômodo na verdade. De você vê o outro nes-


sas condições e achar que tá tudo bem porque
você tá fazendo dois, três shows no carnaval
esse ano... E você depois pode tocar fora daqui
durante o ano, ir pra São Paulo, pro Rio... você
se mantém e pronto. [...] Então, hoje eu não
acredito mais nesse coletivo, nessa cena como
um bloco ou como um grupo que tenha uma
decisão... (Artista 15, 2/9/2014).

Outro artista (Artista 5, 30/4/2015), por sua vez,


mesmo achando que é preciso repensar as instituições e
a própria noção de independência nas políticas públicas
culturais, afirma ter “uma certa preguiça” de participar de
movimentos e encontros políticos a que é constantemen-
te chamado.

Eu tenho um pouco de preguiça porque eu


acho que demanda uma coisa muito grande
de você, você tem que tá ligado, você tem que
virar um cara político mesmo, virar sua vida
pra isso, e articulação e num sei quê... E eu
quero fazer meus discos, sabe? Eu quero é
gravar meus discos. Dou todo apoio, acompa-
nho, quando precisa muito eu vou lá e tô junto,
mas o acompanhamento mesmo... tem gente
muito mais capacitada do que eu fazendo, tá
sendo feito. E eu acho muito importante, tem
muita gente legal tentando repensar o meio da
música de novo. Da minha parte o que eu faço
pra contribuir com isso é continuar lançando
discos (Artista 5, 30/4/2015).

A oposição entre arte e política resta evidente nas


falas de alguns músicos entrevistados. Nesse sentido,
uma das artistas (Artista 1, 25/2/2016), por exemplo, acre-
dita que a política cultural precisa melhorar mas, ao mes-
mo tempo, afirma que não vai tomar à frente do Sindicato,

230
TRABALHADORES DA CULTURA

assim como não cobra que nenhum músico tome à frente,


porque “eu escolhi cantar, entendeu?”. A cantora e com-
positora complementa: “Tem gente que faz: ‘ah, os músi-
cos são desorganizados’. Mas isso demanda uma outra ló-
gica. Eu acho importante... Mas, poxa, assim, de levantar a
bandeira, eu não tenho esse feeling” (Artista 1, 25/2/2016)35.
Em contrapartida, outros artistas entrevistados
afirmam fazer questão de se inserir nos debates acerca
da política cultural. Nesse sentido, uma das entrevistadas
(Artista 4, 12/2/2016) faz parte de um coletivo de músicos
em São Paulo, o qual discute maneiras de ocupar a cidade
de forma cultural e criando um diálogo com o poder pú-
blico. Em Recife, dois músicos afirmaram participar de um
fórum de música. Um dos artistas (Artista 16, 12/11/2014)
reflete no sentido de afirmar que a sua geração precisa se
engajar nas discussões acerca da política cultural, em sin-
dicatos, estipular cachês, condições de trabalho, cobrar
transparência, eficiência e atualizações na arrecadação e
distribuição de direitos autorais.

35  A título ilustrativo de inserção política organizada dos artistas, cita-se o


O CENA-STE, o sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos, do Audiovisual
e dos Músicos, em Portugal. Foi fundado em 15 de Maio de 2017 e resulta da
fusão do CENA (Sindicato dos Músicos, dos Profissionais do Espetáculo e do
Audiovisual) e do STE (Sindicato dos Trabalhadores de Espetáculos). A fusão
resultou de um longo percurso e uniu o projeto político de duas anteriores
direções das associações sindicais, com enormes semelhanças, sobretudo no
objetivo comum da defesa dos interesses dos trabalhadores que representam.
Pretendeu-se com a fusão, evitar a duplicação de recursos e libertar mais verbas
para a ação sindical. Estes dois sindicatos representaram os trabalhadores de um
universo bastante volátil, cujos vínculos laborais permanecem presentemente
marcados pela precariedade. Dando continuidade às importantes iniciativas
desenvolvidas pelas duas associações na criação de pontes de diálogo entre os
profissionais do setor, empregadores e Estado, o CENA-STE pretende responder
às questões laborais, de cidadania, valorização profissional e direitos sociais
dos trabalhadores artísticos, técnico-artísticos e de mediação dos sectores do
audiovisual, do cinema, do circo, da dança, da música e do teatro, cuja atividade
envolve a realização, exibição, preparação, produção e divulgação de espetáculos
ou outros eventos performativos e/ou de conteúdos audiovisuais e multimédia
(art.º 1.º dos estatutos) (CENA-STE, 2017).

231
TRABALHADORES DA CULTURA

Quando se trata de avaliar os órgãos de representa-


ção, embora a totalidade dos entrevistados esteja inscrita
na OMB, todos eles criticam o modo de funcionamento da
instituição. Os músicos entendem que a OMB foi criada
com a finalidade de exercer a seleção, disciplina, a defe-
sa e a fiscalização do exercício de suas profissões, mas
apenas exerce a última finalidade. A função de defesa da
classe musical, talvez a mais importante, não é praticada.
Nesse sentido, destaca-se o seguinte depoimento: “Como
é que a OMB me resguarda? Eu trabalho pela sociedade.
Me dedico tanto à sociedade e me sinto, sempre, tão in-
segura. Trabalho muito! Mas tenho a consciência de que
se eu quebrar o pé, se alguma coisa acontecer, eu tô frita
por um tempo, né?” (Artista 4, 12/2/2016).
Os trechos de narrativas ressaltados abaixo rei-
teram os questionamentos acerca das funções da OMB,
sobretudo de proteção e salvaguarda da categoria, assim
como a obrigatoriedade dos registros na Ordem para o
exercício profissional. Observam-se, especialmente nos
últimos anos, inúmeros processos contra essa instituição.
Em vários Tribunais a obrigatoriedade da inscrição na OMB
para realização da atividade musical vem sendo questio-
nada e dispensada36. Dos 22 artistas entrevistados, oito

36  No site <<http://p2.forumforfree.com/196>> que promove a discussão


sobre a utilidade e a necessidade da OMB foram publicadas ementas de
julgamento sobre a não obrigatoriedade de registro profissional para o exercício
da função de músico. Em 2019, o plenário virtual do Supremo Tribunal Federal
(STF), por unanimidade, julgou procedente ação constitucional ajuizada há
mais de 10 anos, pela Procuradoria-Geral da República, contra dispositivos
da Lei 3.857/60, que regulamentou a profissão de músico. A Corte confirmou
o entendimento de que é incompatível com a Carta de 1988 a exigência de
inscrição na OMB, assim como pagamento de anuidade para o exercício da
profissão. Na ADPF 183, a então chefe do Ministério Público da União, Deborah
Duprat, sustentou que a lei de criação da OMB – além de prever requisitos
para o exercício profissional – instituiu o poder de polícia sobre a atividade
artística, flagrantemente incompatível  com a liberdade de expressão e a
liberdade profissional.

232
TRABALHADORES DA CULTURA

deles possuem liminar para não ser preciso usar a OMB na


prática profissional.

Pra mim a OMB não tem função nenhuma. Um


órgão como a OMB teria uma importância gran-
de se tivesse uma aposentadoria, se tivesse
desconto nos equipamentos, nos instrumen-
tos, plano de saúde... Você só tem ônus, você
não tem bônus nenhum (Artista 20, 21/7/2014).

A OMB... Nossa, como é difícil de avaliar aquilo


dali, viu? A OMB é um negócio que não preci-
sava. Não precisava, não... A OMB no funda-
mento dela, talvez na constituição dela, nas
regras que tão ali, no regimento... Talvez fun-
cionasse bem melhor. Pra quê existe OMB?
Por que OMB? Alguém me dê uma justificativa
concreta... Por que eu pago a OMB todo ano?
Que retorno é esse? E hoje, na verdade, o úni-
co lugar que eu vejo pedir a OMB é o SESC-SP.
Mais nenhum no Brasil... Até agora ninguém
me pede OMB, nunca me pediu em canto ne-
nhum. Então eu acho que é um caminho que
vai chegar... Um momento que a gente vai con-
seguir se organizar e todo mundo tem liminar...
(Artista 15, 2/9/2014).

Em relação aos órgãos de representação de direitos


autorais e os que lhe são conexos, as entrevistas reiteraram
as conclusões realizadas em estudo próprio (CERQUEIRA,
2013) que concluiu que tais mecanismos não fazem par-
te dos rendimentos dos músicos a ponto de serem tidos
como paradigmas remuneratórios. De forma consensual,
as críticas ao ECAD e a UBC tocam principalmente na falta
de transparência na distribuição dos recursos: “O ECAD
dá pouca satisfação sobre quanto é arrecado e como são
distribuídos os recursos”, resume um dos entrevistados

233
TRABALHADORES DA CULTURA

(Artista 13, 14/4/2015). O que se perde no caminho dessa


arrecadação e distribuição é a grande questão levantada
pelos artistas que não defendem a extinção dos órgãos,
mas a revisão de seus mecanismos de funcionamento.
Nesse sentido, um músico (Artista 5, 30/4/2015) entende
que é preciso ter instituições, mas que também é preciso
repensar essas instituições37.

6.3 Independência e políticas públicas

Em um contexto no qual o Estado se isenta pro-


gressivamente do seu papel de garantidor de direitos, o
mercado é oferecido como uma instância substituta para
a cidadania. Tornar-se empreendedor cultural passa a sig-
nificar a integração individual ao mercado. Essa integração
é realizada de forma bastante desigual, principalmente
se for levada em conta as especificidades dos interesses
empresariais. Esses mecanismos de financiamento, por
sua vez, frequentemente são colocados de forma insus-
peita, sob a justificativa de uma gestão pública eficaz. A
ausência do debate sobre as causas de desigualdades nas
políticas culturais, contudo, remete a uma ampla agenda
cultural e política.
Nesse contexto, para que as políticas públicas cul-
turais possam se contrapor à hegemonia neoliberal e

37  Do ponto de vista histórico da organização de classe no âmbito da arte e


da cultura, cita-se o Coalition Trabalhadores Arte (AWC), uma aliança aberta
de artistas, cineastas, escritores, críticos e trabalhadores do museu que
se formaram em  Nova York  em janeiro de 1969. Seu principal objetivo era
pressionar museus da cidade - nomeadamente o Museu de Arte Moderna - na
implementação de reformas econômicas e políticas. A ausência de mulheres
artistas e artistas pretos era o assunto principal da disputa, o que levou
à formação de  Mulheres Artistas em Revolution  (WAR) em 1969. A coalizão
pressionou com sucesso o MoMA e outros museus para implementação de
um dia livre admissão, além de incluir a pauta de uma política de exposição
mais aberta e menos exclusiva.

234
TRABALHADORES DA CULTURA

seus efeitos de aprofundamento das desigualdades, de


consolidação do mercado e do interesse privado, torna-
-se essencial uma reflexão acerca da partilha efetiva dos
recursos e dos poderes, de forma a propiciar a participa-
ção política dos grupos tradicionalmente considerados
objeto do desenvolvimento que devem tornar-se sujeito
desse processo. Nessa dinâmica, embora as novas tec-
nologias engendrarem novas sociabilidades, alterando a
correlação de forças no processo de comunicação, tão
importante quanto considerar a complexidade da era di-
gital é sustentar a existência de políticas públicas capa-
zes de evitar monopólios.
Quando se analisa o mercado de música no Brasil,
são observados diferentes arranjos sobre os quais pode
ser identificado o emblema do artista independente na
economia contemporânea, sendo as mais comuns aquela
que exclui o capital internacional e a que define a inde-
pendência a partir da autonomia econômica em relação
ao Estado, ao adotar sistemas de financiamento alternati-
vo às leis de incentivo público. Desses arranjos, contudo,
qual pode ser tido como critério de política pública, no
sentido de descentralizar a produção e a distribuição dos
recursos culturais? O primeiro critério faz sentido em uma
econômica estadunidense, tendo pouca relação com as
distinções do mercado nacional. O segundo critério, por
sua vez, e conforme enfatizado por muitos dos entrevis-
tados, seria o ideal para um produto com grande apelo
comercial, mas que não configura a realidade dos músicos
independentes. Nesse sentido, segundo um dos entrevis-
tados (Artista 22, 13/7/2014) “O independente vai significar
ser sempre aquele à margem do dinheiro público? Mas
que conveniente para as políticas públicas”.
Excluindo o capital internacional, cumpre realizar
as especificações do mercado nacional. Evidentemente,

235
TRABALHADORES DA CULTURA

é possível identificar grandes gravadoras nacionais, assim


como pequenos e médios produtores que atuam de forma
terceirizada, estabelecendo parcerias com gravadoras na-
cionais de grande porte e majors. E, finalmente, produtores
autônomos, que realizam todos os processos de produ-
ção, distribuição e promoção. O pressuposto conceitual
desta pesquisa parte dessa última definição por entender
que apenas com prioridades de recursos para esse tipo
novo de independência é possível realizar a descentraliza-
ção dos recursos culturais, a partir de critérios definidos.
Ao estabelecer uma tipologia tão detalhada para
os independentes não se busca nublar o complexo uni-
verso das economias musicais contemporâneas e seus di-
versos arranjos, engessando uma realidade que é fluida.
Mas, sim, apostar em uma redefinição de fronteiras e na
criação de uma tipologia útil às políticas públicas. Porque
se o independente não depende mais de um atravessador,
ele continua dependendo de várias estruturas, sobretudo
econômicas e políticas que se sobrepõem no atual mo-
delo de indústrias culturais, rearranjando as hierarquias.
Nessa direção, é preciso revalorizar o Estado como supor-
te de políticas públicas culturais democráticas. As frentes
do Estado na gestão nacional da cultural passam, então,
pela atribuição de responsabilidades típicas, das quais se
inclui o incentivo direito e de forma principal aos artistas
que realizam todos os processos de trabalho de forma in-
dependente ou, em outros termos, autônoma.
Para tanto, contudo, é preciso imprimir a (re)exis-
tência organizada no sentido de tensionar as demandas
dos trabalhadores da cultura e da arte no país e isso pas-
sa, obviamente, pela noção de identidade de classe, ou,
como afirma Mateus Aleluia (2020), a identidade do “ope-
rário da sensibilidade”. A questão não é disputar as formas
ideológicas, correntes de opinião, temáticas ou conceitos

236
TRABALHADORES DA CULTURA

de sucesso hoje, como o empreendedor cultural. A ques-


tão real é apresentar não só novas respostas, como novas
formas de pensar os problemas. O ponto frágil hoje da
ideologia dominante é o foco quase exclusivo na história
do século XX a partir da realidade europeia e estaduni-
dense e seus conceitos de arte, de cultura e de política
cultural, reservados a uma parcela da sociedade detentora
do capital econômico e simbólico.
Por isso que autores comprometidos com a recons-
trução das lutas coletivas, como Domenico Losurdo, Jean
Salem e Michael Parenti ou líderes de revoluções anticolo-
niais, como Amilcar Cabral, Frantz Fanon e Thomas Sankara,
tinham tanta preocupação com a disputa da história. Nesse
sentido, “a história é, digamos, a base da contra-hegemonia.
Sem uma contra-história é impossível pensar seriamente
numa contra-hegemonia (ou outra hegemonia)” (MANOEL,
2020). Emergem termos como marxismo anticolonial para
destacar a necessidade de um processo de destruição cria-
tiva de marcos referenciais da ideologia dominante a partir
de uma análise a contrapelo da história, colocando a ques-
tão colonial no centro do balanço da modernidade burguesa.
Nesse contexto, a forma de articulação dos traba-
lhadores da cultura no Brasil parece precisar discutir e
enfrentar a noção de identidade de classe, consideran-
do as especificidades da história no país e considerando
também a tarefa de demandar do e no Estado formas de
incentivo e proteção efetivas no que toca à pluralidade de
expressões e formas que a “profissão: artista” assumem
hoje, inclusive tendo como horizonte articulações com
coletivos de artistas de outros países outrora colonizados,
que comunicam importantes dimensões desta luta em um
contexto, cada vez mais profundo e naturalizado, de ofen-
siva neoliberal que coloniza, sufoca e limita as produções
artísticas na contemporaneidade.

237
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho de pesquisa tentou abrir uma fresta na


tessitura do tecido social e político para entender a catego-
ria dos trabalhadores da cultura sem cair nas idealizações e
abstrações. Evidenciamos como a “classe criativa” (e todas
as suas derivações) tem sido um mito central do trabalho
precário na atualidade. Nesse contexto, a constituição do
trabalhador da cultura como empreendedor faz parte da
invizibilização do conflito entre capital e trabalho, cujo ca-
ráter laboral se dilui simbolicamente, constituindo o artista
independente um precário por excelência, no contexto de
um capitalismo contemporâneo de proeminência de con-
sumo de bens culturais e artísticos.
A ideia de independência na música é fortemen-
te ligada ao desenvolvimento dos processos produtivos
e distributivos e as tecnologias da informação e da co-
municação. Esses processos não são uma novidade. A
historicidade da indústria fonográfica brasileira aponta
os marcos do caminho que nas últimas décadas trouxe
à tona o perfil de músico-mediador entre arte e técni-
ca. São fortalecidas e diversificadas as cenas autônomas
dos mais variados estilos musicais, sem que todas elas
sejam consideradas independentes pela mídia e festivais
especializados, sendo a definição da cena independen-
te relacionada a critérios (também) estéticos. Em outros
termos, na conceituação dos independentes estão em
jogo agentes de um universo simbólico muito determina-
do, tanto produtor quanto receptor.
Da mesma forma, as possibilidades abertas pelo de-
senvolvimento das tecnologias da informação e da comu-
nicação ainda se restringem a um universo muito especí-
fico da produção e recepção cultural. Nesse contexto, um

238
TRABALHADORES DA CULTURA

número reduzido de corporações ainda assume o protago-


nismo mercadológico do ambiente cultural, notadamente
sob a forma dos conglomerados do entretenimento, mes-
mo com inúmeros trabalhadores da cultura estruturando
suas atividades de forma autônoma a essas corporações.
O fato da atividade cultural, cada vez mais presente no
mundo contemporâneo, não ser entendida e nem tensio-
nada como trabalho corrobora para a configuração do tra-
balho artístico como laboratório de flexibilidade em uma
economia política das incertezas, cujas representações de
independência evidenciam as práticas de precariedade.
As pesquisas teóricas, mas sobretudo de campo,
que informaram este trabalho demonstram que os ar-
tistas independentes dependem de muitas coisas, entre
elas, dependem dos outros independentes. Dependem,
por exemplo, dos organizadores de festivais independen-
tes, dependem da internet, dependem dos meios tradi-
cionais de comunicação, dependem dos donos de peque-
nos e médios estúdios, dependem de editais públicos de
incentivo à cultura, dependem de sites de financiamento
coletivo, dependem de jornalistas e formadores de opi-
nião, dependem de curadores e programadores de casas
de shows, dependem, inclusive e em última instância, de
um conceito. Todos esses fatores são indicativos da ne-
cessidade de buscar e revalorizar o Estado como suporte
das políticas públicas culturais.
A escolha da atuação neoliberal na gestão cultural
aqui no Brasil com a predominância dos incentivos fiscais
via mecenato desenham a privatização, a concentração e
a tecnocracia dos recursos. Há três forças sociais protago-
nistas nesse processo que pode ser definidas com base no
trabalho da pesquisadora taiwanesa Chin Tao Wu (2006): a
sociedade política, representante do Estado, como parte
do poder político; uma parcela da sociedade civil de ori-

239
TRABALHADORES DA CULTURA

gem burguesa responsável pela gestão dos equipamentos


públicos, que constitui o poder simbólico; e as empresas
e grandes corporações que financiam as ações culturais
públicas por meio do mecanismo de renúncia fiscal e/ou
patrocínio, representantes do poder corporativo.
Nessa cadeia de relações, o Estado opera uma sig-
nificativa redução de gastos diretos, apresenta resulta-
dos quantitativos baseados no princípio da competição,
ao mesmo tempo em que se apressa em buscar prestígio
social diante do cidadão-cliente. Para as empresas, há a
possibilidade de agir como instituições ideologicamente
eficientes, cujo status e autoridade foram cedidos pelos
espaços públicos por eles administrados. Após anos de
consolidação de privatização da cultura, em um contexto
no qual o Estado se isenta progressivamente do seu papel
de garantidor de direitos, o mercado é oferecido como
uma instância substituta para a cidadania.
Tornar-se empreendedor cultural passa a signifi-
car a integração individual ao mercado. Essa integração,
contudo, é realizada de forma bastante desigual, princi-
palmente se for levada em conta as especificidades dos
interesses empresariais. Os inúmeros depoimentos desta
pesquisa evidenciam os prejuízos para a democratização
da cultura que ocorrem quando o Estado deixa decisões
de políticas públicas nas mãos de setores do marketing
das empresas. Acentua-se o crescimento do mercado de
editais e gestores especializados, cujos projetos ficam de-
pendentes do capital de relações sociais de cada agente
criador ou de cada instituição específica.
As frentes do Estado na gestão nacional da cultura
passam, então, pela atribuição de suas responsabilidades
típicas. No que toca ao trabalho artístico, algumas frentes
se tornam mais urgentes, as quais se inclui o fomento à
pesquisa no campo do trabalho cultural; a manutenção,

240
TRABALHADORES DA CULTURA

fortalecimento e profissionalização dos quadros e recur-


sos destinados à cultura; o fim dos oligopólios e monopó-
lios de mídia tradicionais; e o incentivo direto e de forma
principal aos artistas que realizam todos os processos de
trabalho de forma autônoma. Esta pesquisa aposta, em
última instância, na criação de uma tipologia de indepen-
dência/autonomia útil às políticas públicas. Com a prio-
ridade de recursos para esse tipo novo de independência
é possível realizar a descentralização dos recursos e pro-
mover a diversidade cultural, a partir de critérios nitida-
mente definidos, em que os direitos culturais são integra-
dos, necessariamente, aos direitos econômicos.
A propósito, é sempre relevante enfatizar que existe
ou deveria existir uma diferença elementar entre o Estado
e a iniciativa privada, sendo fundante da ação estatal não
o lucro, mas a redução e liminação das desigualdades no
acesso e fruição à cultura. No limite desta diferença, há de
se relembrar a discussão do papel do Estado no universo
da produção e distribuição cultural. Não compete à esfera
pública produzir cultura ou mesmo fazer algum juízo de va-
lor sobre movimentos artísticos e estéticos. Isso o mercado
já faz. Cabe ao Estado promover a diversidade e a plura-
lidade cultural. Essa promoção da pluralidade muitas ve-
zes precisa vir por meio de incentivos que promovam uma
igualdade material entre as diversas expressões artísticas.
Nesse contexto, é preciso destacar as narrativas que
emergem com muita força, sobretudo no âmbito político,
acerca da “crise” econômica do Estado. Ao contrário da
perspectiva do capitalismo organizado, a substância das
crises no regime capitalista (crise especulativa, crise ban-
cária, crise financeira) vem de fundamentos estruturais
e sistêmicos. É como se o capitalismo vivesse uma per-
manente crise estrutural, uma vez que, por não ter limi-
tes para a sua expansão, acaba por converter-se em uma

241
TRABALHADORES DA CULTURA

processualidade profundamente destrutiva (MÉSZÁROS,


2009). As contradições fundamentais, no entanto, são tra-
tadas como disfunções passageiras. E é assim que, de
tempos em tempos, para a sua autoreprodução, o capita-
lismo é chamado a reestruturar-se para redefinir e asse-
gurar seus padrões de acumulação e rentabilidade.
Quando a crise se torna duradoura, transforma-se
na causa que explica todo o resto, como os cortes nas po-
líticas culturais. Daí a sua específica periculosidade: nu-
blar as verdadeiras causas da crise, que é sempre propor-
cionar os obscenos patamares de acumulação. Em outros
termos, esconder que o problema não são as despesas
do Estado, mas sim as receitas. Na atualidade, a Covid-19
impõe um agravamento dessa crise que desemboca no
capitalismo do desastre, expressão utilizada por Naomi
Klein (2008) para explicar as situações de caos e instabi-
lidades que se tornam terrenos propícios para a ascensão
da doutrina de choque, desenvolvida por Milton Friedman
na Escola de Chicago, que significa fundamentalmente
executar a lógica neoliberal e as políticas de austeridade.
O que está em jogo na retórica da crise, portan-
to, é a disputa por uma concepção de Estado diante de
uma crise estrutural do capitalismo. Nesses diferentes
momentos históricos de reestruturações do capitalismo,
em que as contradições são postas à mesa, a agenda da
cultura é constantemente ainda mais reduzida, por meio
de extinção de ministérios e compressão de recursos. Na
cultura, inclusive, a crise vem de antes, sendo que nos
últimos dois anos essa política pública setorial, conforme
se afirmou neste trabalho, se converteu em um grande
deserto por parte do poder executivo federal.
Na emergência da pandemia e suas consequências
sociais e econômicas para os trabalhadores da cultura,
é imprescindível entender que a Covid-19 escancara as

242
TRABALHADORES DA CULTURA

contradições já existentes apontadas por este trabalho de


pesquisa – o que para os trabalhadores da cultura significa
um acirramento de condições já bastante precarizadas de
trabalho. Nesse contexto, é sempre saudável lembrar que
o coronavírus é, em todos os sentidos, um evento antro-
poceno, e quem produz as condições nas quais o vírus se
manifesta é o ser social. Em nossa configuração de Estado
neoliberal, austero, negacionista, patriarcal, eugenistas e
fascistas isso toma proporções de uma grande necrópole.
Ao Estado coveiro, miliciano e suicidário, para utili-
zar um texto muito pertinente do Vladimir Safatle (2020),
é conveniente se livrar ou minimizar a arte, a cultura e
qualquer outro campo que tem a potência de disputar
narrativas, de produzir memória e identidade na socieda-
de. Mas o interessante é que exatamente nesse período
a busca e o consumo por experiências artístico-culturais
tem aumentado bastante por meio das diferentes formas
e plataformas de virtualização. Segundo o Youtube, as
buscas por conteúdo ao vivo cresceram 4.900% no Brasil
após a quarentena. Nesse momento, tornam-se ainda
mais urgentes as pautas de monetarização nesses meios,
fortemente concentrados e capitalizados. A forma de re-
munerar na internet vai ser sempre assegurada ao inter-
mediário, ou seja, ao conglomerado da mídia e do entre-
tenimento? A internet se apresenta como plataforma de
trabalho efetivamente universalizante em um país em que
uma a cada quatro pessoas não tem acesso à essa rede
(IBGE, 2018)? Como fica, por exemplo, a renda do artista
e de todos os trabalhadores da cultura hoje se não há a
possibilidade da bilheteria – principal fonte de renda des-
se tipo de trabalho?
É preciso sempre reivindicar a ideia de que a cultura
não está na ordem do supérfluo, conforme afirmou a pes-
quisadora e gestora cultural Cláudia Leitão (2020). Além

243
TRABALHADORES DA CULTURA

de ter uma forte dimensão econômica, a cultura disputa


formas de ver, viver e sentir a vida. Por isso, em todo esse
debate dos trabalhadores e trabalhadoras da cultura, a
oposição entre arte e política / arte e trabalho são extre-
mamente prejudiciais para compreensão das atividades
artísticas e sua inscrição social. Ser artista é (também) ser
trabalhador e (também) ser um sujeito político, no sentido
de requisitar uma identidade que reivindique o fortale-
cimento de condições econômicas e de políticas públi-
cas que ensejem a sustentabilidade e diversidade na arte.
Senão embora a imagem do artista possa se aproximar
da imagem do herói, a modernidade heroica vai, cada vez
mais, se revelar como tragédia em que o papel do artista
está disponível.

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Sobre a autora

Amanda Coutinho
Doutora em Ciências Sociais na Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP) e mestra em Ciências Jurídicas na Universidade Federal da
Paraíba (UFPB). É professora em graduações e pós-graduações na área
do Direito, da Cultura, da Comunicação e da Administração Pública.
Também atua como parecerista de projetos culturais em instituições
públicas e privadas. Atualmente é pesquisadora no Pós-Doutorado
do Programa Multidisciplinar em Cultura e Sociedade na Universidade
Federal da Bahia (UFBA).

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