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MILAGRE NOS ANDES

NANDO PARRADO COM VINSE RAUSE

A verdadeira história contada pelo homem que


salvou a vida dos 15 sobreviventes
Tradução Inês Castro
Nota da badana da capa:
Em 1972, o avião que transportava uma equipe de
râguebi do Uruguai, os seus familiares e amigos,
para um jogo no Chile, despenhou-se nos Andes.
Vinte e nove pessoas, das quarenta e cinco que iam
no avião, sobreviveram à queda, mas, no final,
apenas dezasseis sobreviveram. Mais de trinta anos
depois, Nando Parrado, um dos sobreviventes,
revela como lutou pela vida durante setenta e dois
longos dias. Preso num glaciar árido a 3650 metros
de altitude, sem provisões ou meios para pedir
ajuda, lutando para suportar temperaturas gélidas,
avalanches mortíferas, e, por fim, a notícia
devastadora de que as buscas tinham terminado,
Nando decide, então, que ou voltava para casa ou
morreria a tentá-lo. Este livro revela aspectos
inexplorados da história, sobretudo os emocionais e
afectivos. O autor consegue levar-nos para dentro
da fuselagem nos dias cruéis que se seguiram ao
acidente e narra, pormenorizadamente, situações
nunca antes reveladas sobre a luta interna, as
emoções violentas e as piores privações que aquele
grupo de jovens teve de suportar para sobreviver.
Milagre nos Andes é a história arrebatadora de uma
verdadeira aventura e uma reflexão sobre a vida à
beira da morte e sobre o poder do amor.
Nota da badana da contracapa:
NANDO PARRADO tornou-se conhecido como um
dos jovens heróis do desastre de 1972, nos Andes.
Actualmente, é proprietário de várias empresas
sedeadas no Uruguai, seu país de origem, incluindo
uma cadeia de lojas de ferragens, empresas de
publicidade e de marketing e uma produtora de
televisão, para a qual produz e apresenta
programas sobre viagens, moda, temas da
actualidade e desportos motorizados. Ex-piloto de
competição, ainda gosta de pilotar carros, motos e
barcos de corrida. Vive em Montevideu, no
Uruguai, com a esposa e as filhas.
VINCE RAUSE é escritor e colabora em várias
revistas. Alguns contos foram publicados no The
New York Times Magazine, Los Angeles Times
Magazine, Reader's Digest e Sports lllustrated, entre
outras publicações. A sua obra mais recente, Why
God Won't Go Away: Brain Science and the Biology
of Belief, foi escrita em parceria com o investigador
Andrew Newberg. Vive em Pittsburgh com a
mulher e a filha.
Nota da contracapa:
"NÃO FOI A INTELIGÊNCIA OU A CORAGEM
QUE NOS SALVOU. FOI TÃO-SOMENTE O
AMOR, O AMOR PELAS NOSSAS FAMÍLIAS,
PELAS VIDAS QUE DESEJÁVAMOS TÃO
DESESPERADAMENTE VIVER."
"Nando Parrado não apenas sobreviveu, como
demonstrou uma força e uma determinação que
salvaram a sua vida e a dos seus 15 amigos. Agora
ele relata a sua experiência penosa - cativante,
esclarecedora, modesta e tocante. Um testemunho
impressionante do que o amor pode alcançar." Piers
Paul Read, autor de Os Sobreviventes.
"Milagre nos Andes é o relato surpreendente de
uma provação inimaginável. Escrevendo com uma
assombrosa honestidade, transmitindo toda a gama
de sensações e emoções, Nando Parrado dá-nos
conta da perseverança, coragem e criatividade
necessárias para sobreviver nos Andes por 72 dias,
após ter sido dado como milagre dos Andes morto.
Se começar a ler este livro, não vai conseguir largá-
lo." Jon Krakauer, autor de Into Thin Air
"A experiência assustadora de Nando Parrado -
contada de modo envolvente,honesto e reflexivo -
está entre as histórias de sobrevivência mais
dramáticasdos últimosdois séculos."Peter Stark,
autor de Last Breath: The Limits of Adventure

PRÓLOGO
Nas primeiras horas não havia nada, nem medo
nem tristeza, nenhuma sensação da passagem do
tempo, nem sequer um vislumbre de pensamento
ou de memória, apenas um silêncio negro e perfeito.
Depois apareceu a luz, uma fina mancha cinzenta
de luz do dia, e ergui-me das trevas na sua direcção,
como um mergulhador nadando lentamente para a
superfície. A consciência inundou-me o cérebro
como uma hemorragia lenta e acordei, com grande
dificuldade, para um mundo de lusco-fusco a meio
caminho entre o sonho e o despertar. Ouvi vozes e
senti movimento à minha volta, mas os meus
pensamentos estavam obscurecidos e a minha visão
enevoada. Só conseguia ver silhuetas escuras e
poças de luz e sombra. Enquanto olhava, confuso,
para essas formas vagas, vi que algumas das
sombras se moviam e por fim percebi que uma
delas se debruçava sobre mim.
- Nando, podes ouvír-me? Ouves-me? Estás bem?
A sombra aproximou-se ainda mais e ao fitá-la,
emudecido, convergiu num rosto humano. Vi uma
massa emaranhada de cabelo escuro e um par de
profundos olhos castanhos. Havia afabilidade neles
- era alguém que me conhecia -, mas por trás da
afabilidade havia mais alguma coisa, uma
turbulência, uma dureza, uma sensação de
desespero contido.
- Vamos lá, Nando, acorda!
Por que é que tenho tanto frio? Por que é que a
cabeça me dói tanto? Tentei desesperadamente
pronunciar estes pensamentos, mas os meus lábios
não conseguiam formar as palavras e o esforço
depressa esgotou as minhas forças. Fechei os olhos e
deixei-me resvalar de novo para as sombras. Mas
logo ouvi outras vozes e quando abri os olhos, mais
rostos pairavam sobre mim.
- Está acordado? Consegue ouvir-te? Diz alguma
coisa, Nando! Não desistas, Nando. Estamos aqui
contigo. Acorda!
Tentei de novo falar, mas só consegui proferir um
sussurro rouco. Depois alguém se inclinou junto a
mim e falou muito lentamente ao meu ouvido.
- Nando, el avión se estrelló! Caímos en las
montañas. Despenhámo-nos, disse ele. O avião caiu.
Caímos nas montanhas. Compreendes, Nando? Não
compreendia. Percebi, pelo tom de calma urgência
das palavras, que era uma notícia de grande
importância. Mas não conseguia alcançar o seu
significado ou apreender o facto de que tinha
alguma coisa a ver comigo. A realidade parecia
distante e amortecida, como se eu estivesse preso
num sonho e não conseguisse forçar-me a despertar.
Flutuei neste estado de confusão durante horas, mas
por fim os meus sentidos começaram a clarear e fui
capaz de perscrutar o que me rodeava. Desde os
meus primeiros momentos turvos de consciência,
tinha ficado intrigado com uma fileira de suaves
luzes circulares por cima da minha cabeça. Agora
reconhecia que estas luzes eram as pequenas janelas
redondas de um avião. Percebi que estava deitado
no chão da cabina de passageiros de um avião
comercial, mas quando olhei em frente para a
cabina do piloto, vi que nada neste avião parecia
certo. A fuselagem tinha rolado para um dos lados,
de forma que as minhas costas e a cabeça estavam
apoiadas contra a parede inferior do lado direito do
avião, enquanto as minhas pernas se estendiam pelo
corredor central inclinado para cima. A maioria dos
assentos do avião desaparecera. Tubos e fios
baloiçavam do tecto danificado e pontas rasgadas
do material de isolamento pendiam como remendos
sujos de buracos nas paredes amassadas. O chão à
minha volta estava espargido de pedaços de
plástico rachado, fragmentos de metal retorcido e
outros escombros soltos. Era de dia. O ar estava
gelado e, mesmo no meu estado de torpor, a
ferocidade daquele frio deixou-me atónito. Vivera
toda a minha vida no Uruguai, um país quente,
onde mesmo os Invernos são suaves. A minha única
experiência efectiva do Inverno fora quando, aos
dezasseis anos, morei em Saginaw, no Michigan,
como estudante num programa de intercâmbio
estudantil. Não levara quaisquer roupas quentes
para Saginaw e recordo-me da minha primeira
experiência com uma verdadeira rajada invernosa
da zona central dos Estados Unidos, como o vento
cortou através do meu fino casaco primaveril e
como os meus pés se transformaram em gelo dentro
dos mocassins leves. Mas nunca imaginara nada
parecido com as penetrantes rajadas abaixo de zero
que sopravam através da fuselagem. Era um frio
selvagem, que esmagava os ossos, que queimava a
minha pele como ácido. Sentia dor em todas as
células do meu corpo e, enquanto tremia
espasmodicamente nas garras daquele frio, cada
instante parecia durar uma eternidade. Deitado no
chão do avião cheio de correntes de ar, não havia
hipótese de me aquecer. Mas o frio não era a minha
única preocupação. Havia também uma dor
latejante na minha cabeça, um martelar tão brutal e
feroz que parecia que um animal selvagem tinha
sido encerrado dentro do meu crânio e estava
desesperadamente a raspar com as patas para
escapar. Com cuidado, estendi a mão para tocar no
cimo da cabeça. Coágulos de sangue seco
emplastravam o meu cabelo e três cortes
ensanguentados formavam um triângulo denteado
de cerca de dez centímetros acima da minha orelha
direita. Senti arestas ásperas de osso quebrado por
baixo do sangue coagulado e, quando pressionei
levemente, tive uma sensação esponjosa de algo a
ceder. O meu estômago contraiu-se quando percebi
o que isso significava - estava a pressionar pedaços
quebrados do meu crânio contra a superfície do
meu cérebro. O coração bateu-me contra o peito. A
respiração saiu-me aos arranques. Mesmo quando
estava prestes a entrar em pânico, vi aqueles olhos
castanhos por cima de mim e reconheci por fim o
rosto do meu amigo Roberto Canessa.
- O que aconteceu? - perguntei-lhe. Onde estamos?
Roberto franziu o sobrolho enquanto se inclinava
para examinar os ferimentos na minha cabeça. Fora
sempre um indivíduo sério, determinado e forte e,
quando lhe fitei os olhos, vi toda a tenacidade e
confiança em si próprio por que era conhecido. Mas
havia qualquer coisa nova no seu rosto, algo
indistinto e perturbante que nunca vira antes. Era o
olhar atormentado de um homem que lutava por
acreditar em alguma coisa inacreditável, de alguém
a vacilar perante uma surpresa avassaladora.
- Estiveste inconsciente durante três dias - disse,
sem nenhuma emoção na voz. Já tínhamos desistido
de ti. Estas palavras não faziam qualquer sentido.
- O que é que me aconteceu? - perguntei. Por que é
que está tanto frio?
- Compreendes o que digo, Nando? - contrapôs
Roberto. Despenhámo-nos nas montanhas. O avião
caiu. Estamos aqui perdidos.
Abanei fracamente a cabeça em confusão, ou
negação, mas não podia negar durante muito tempo
o que acontecia à minha volta. Ouvi gemidos fracos
e gritos súbitos de dor e comecei a entender que
eram os sons de outras pessoas a sofrer. Vi os
feridos deitados em camas e redes improvisadas
por toda a fuselagem e outros vultos inclinados
para os ajudarem, falando baixinho uns com os
outros enquanto iam e vinham pela cabina com
serena determinação. Reparei, pela primeira vez,
que a parte da frente da minha camisa estava
coberta por uma crosta húmida castanha. Estava
peganhenta e grumosa quando lhe toquei com a
ponta de um dedo e percebi que esta triste
imundície era o meu próprio sangue seco.
- Compreendes, Nando? - perguntou Roberto de
novo. Lembras-te, estávamos no avião... íamos para
o Chile... Fechei os olhos e assenti com a cabeça.
Tinha saído das sombras, a minha confusão já não
me conseguia escudar da verdade. Compreendi
tudo e, enquanto Roberto limpava delicadamente a
crosta de sangue do meu rosto, comecei a recordar.

1 ANTES
Era sexta-feira, dia 13 de Outubro. Brincámos com o
facto de sobrevoarmos os Andes numa data tão
agoirenta, mas os jovens dizem piadas deste género
com tanta facilidade. O nosso voo tinha saído um
dia antes de Montevideu, a minha cidade natal, com
destino a Santiago do Chile. Era um voo fretado
num bimotor Fairchild com propulsão a jacto e
transportava a minha equipe de râguebi - o clube de
râguebi Old Christians - para um jogo amistoso
contra uma grande equipe chilena. Havia quarenta
e cinco pessoas a bordo, incluindo quatro membros
da tripulação - piloto, co-piloto, mecânico e
comissário de bordo. A maioria dos passageiros era
formada pelos meus colegas de equipe, mas
também nos acompanhavam amigos, familiares e
outros apoiantes da equipe, incluindo a minha mãe
Eugenia e a minha irmã mais nova, Susy, que
estavam sentadas do outro lado do corredor, uma
fila à minha frente. O nosso plano original era
voarmos sem qualquer escala até Santiago, uma
viagem de cerca de três horas e meia. Porém, após
apenas algumas horas de voo, as notícias de mau
tempo nas montanhas à nossa frente forçaram o
piloto do Fairchild, Julio Ferradas, a aterrar na velha
cidade colonial espanhola de Mendoza, que fica a
leste das colinas no sopé dos Andes.
Aterrámos em Mendoza à hora do almoço com a
esperança de partirmos de novo dentro de poucas
horas. Mas o boletim meteorológico não era
animador e em breve se tornou claro que teríamos
de passar a noite na cidade. Nenhum de nós gostou
da ideia de perder um dia de viagem, mas Mendoza
era um sítio encantador e assim decidimos tirar o
maior partido da nossa estada no local. Alguns dos
rapazes sentaram-se nos cafés nos passeios das ruas
largas e bordejadas de árvores de Mendoza ou
foram visitar os bairros históricos da cidade. Eu
passei a tarde com alguns amigos assistindo a uma
corrida de automóveis numa pista fora da cidade. A
noite, fomos ao cinema, enquanto alguns dos outros
foram dançar com umas raparigas argentinas que
tinham conhecido. A minha mãe e a Susy passaram
o tempo a explorar as lojas fantásticas de Mendoza,
comprando presentes para os amigos no Chile e
lembranças para a família. A minha mãe ficou
especialmente satisfeita por descobrir um par de
sapatinhos encarnados para bebé numa pequena
loja, pois achou que seria uma prenda perfeita para
o novo bebé da minha irmã Graciela. A maioria de
nós dormiu até tarde na manhã seguinte e quando
acordámos estávamos ansiosos para nos irmos
embora, mas não havia ainda notícias sobre a nossa
partida; por isso, separámo-nos para vermos um
pouco mais de Mendoza. Por fim, fomos avisados
para nos reunirmos no aeroporto às treze em ponto,
mas quando lá chegámos descobrimos que Ferradas
e o seu co-piloto, Dante Lagurara, não tinham ainda
decidido se partiríamos ou não. Reagimos a esta
notícia com frustração e raiva, mas nenhum de nós
entendia a decisão difícil que os pilotos tinham de
tomar. O boletim meteorológico dessa manhã
avisava que havia alguma turbulência na nossa rota
de voo, mas depois de falar com o piloto de um
avião de carga que acabara de chegar de Santiago,
Ferradas estava confiante que o Fair-child poderia
enfrentar com segurança o mau tempo. O problema
mais grave era a hora do dia. Já estávamos no início
da tarde.
Quando os passageiros acabassem de embarcar e
tudo estivesse acertado com os funcionários do
aeroporto, já passaria muito das duas. A tarde, o ar
quente sobe das colinas argentinas e encontra-se
com o ar gelado acima da linha da neve gerando
uma instabilidade traiçoeira na atmosfera sobre as
montanhas. Os nossos pilotos sabiam que essa era a
altura mais perigosa para sobrevoar os Andes. Não
havia forma de prever onde essas correntes em
redemoinho poderiam atacar e, se nos atingissem, o
nosso avião seria atirado de um lado para o outro
como um brinquedo. Por outro lado, não podíamos
ficar parados em Mendoza. O nosso avião era um
Fairchild F-227 que tínhamos alugado à Força Aérea
uruguaia. As leis da Argentina proibiam que um
avião militar estrangeiro permanecesse em solo
argentino por mais de vinte e quatro horas. Como o
nosso tempo estava quase a esgotar-se, Ferradas e
Lagurara tinham de tomar uma decisão rápida:
deveriam partir para Santiago e enfrentar os céus
vespertinos ou regressar a Montevideu com o
Fairchild e acabar assim com as nossas férias?
Enquanto os pilotos ponderavam as suas opções, a
nossa impaciência cresceu. Já tínhamos perdido um
dia da nossa viagem ao Chile e estávamos
frustrados com a possibilidade de perdermos mais
dias. Éramos jovens corajosos, destemidos e cheios
de si, e irritava-nos o facto de as nossas férias
estarem a ir por água abaixo por causa do que
considerávamos um receio infundado dos nossos
pilotos. Não escondemos esses sentimentos.
Assobiámos e zombámos dos pilotos quando os
vimos no aeroporto. Provocámo-los e pusemos em
causa a sua competência.
- Contratámo-los para nos levarem ao Chile -
alguém gritou - e é isso que queremos que façam!
Não é possível saber se o nosso comportamento
influenciou a decisão deles -sem dúvida que
pareceu desestabilizá-los - mas, por fim, após uma
última discussão com Lagurara, Ferradas olhou
para o grupo que esperava impaciente por uma
resposta e anunciou que o voo para Santiago iria
prosseguir. Acolhemos esta notícia com um ruidoso
aplauso. O Fairchild partiu finalmente do aeroporto
de Mendoza dezoito minutos depois das duas, hora
local. Subimos, o avião inclinou-se fazendo uma
curva abrupta para a esquerda e em breve
estávamos a voar para sul, com os Andes argentinos
a elevarem-se no nosso lado direito, no horizonte a
ocidente. Pelas janelas do lado direito da fuselagem
contemplei as montanhas, que se erguiam
retumbantes do planalto seco abaixo de nós como
uma miragem negra, tão sombrias e majestosas, tão
assombrosamente vastas e enormes, que só o facto
de olhar para elas fez o meu coração bater mais
depressa. Enraizadas em leitos de rocha maciça com
bases colossais que se estendiam por vários
quilómetros, os seus cumes negros erguiam-se das
planícies, cada pico impelindo o seguinte, de forma
que pareciam formar uma colossal muralha
fortificada. Eu não era um jovem com tendências
poéticas, mas parecia existir um aviso na grande
autoridade com que estas montanhas se mantinham
ali firmes e era impossível não pensar nelas como
seres vivos, dotadas de mente e coração e de uma
consciência antiga e cismática. Não surpreende que
os Antigos considerassem estas montanhas como
lugares sagrados, como a entrada para o paraíso e a
morada dos deuses. O Uruguai é um país de baixa
altitude e, como a maior parte dos meus amigos no
avião, o meu conhecimento sobre os Andes, ou
sobre qualquer outro tipo de montanha, limitava-se
ao que lera nos livros. Na escola aprendêramos que
a cordilheira dos Andes é o sistema montanhoso
mais extenso do mundo, atravessando a América do
Sul desde a Venezuela, no norte, até à ponta
meridional do continente, na Tierra del Fuego. Eu
também sabia que os Andes são a segunda
cordilheira mais elevada do planeta; em termos de
altura média, só os Himalaias são mais altos.
Ouvira pessoas referir-se aos Andes como uma das
maiores maravilhas geológicas da Terra e a visão
que tive do avião fez-me entender de forma visceral
o que isso significava. Para norte, sul e ocidente, as
montanhas estendiam-se até onde a vista alcançava
e, apesar de se encontrarem a muitos quilómetros
de distância, a sua altura e massa faziam com que
parecessem intransponíveis. De facto, pelo que nos
dizia respeito, eram-no realmente. O nosso destino,
Santiago, fica quase directamente a oeste de
Mendoza, mas a região dos Andes que separa as
duas cidades é uma das secções mais elevadas de
toda a cordilheira e alberga algumas das montanhas
mais altas do mundo. Aí algures, por exemplo,
encontra-se Aconcágua, a montanha mais alta do
hemisfério ocidental e uma das sete mais altas do
planeta. Com um cume de 6959 metros, é apenas
1890 metros mais baixa do que o Everest e as suas
vizinhas são gigantes, incluindo o monte
Mercedario de 6705 metros e o monte Tupongato
que se ergue a 6569 metros. Rodeando estes
autênticos monstros encontram-se outros grandes
picos com alturas entre 4800 e 6000 metros, que
ninguém nesses lugares remotos se deu ao trabalho
de baptizar. Com estes cumes tão elevados
erguendo-se no nosso caminho, o Fairchild, com a
sua altitude máxima de cruzeiro de 6858 metros,
não podia de forma alguma estabelecer uma rota
directa leste-oeste para Santiago. Os pilotos tinham
assim traçado um percurso que nos levaria cerca de
150 quilómetros para sul de Mendoza até ao
desfiladeiro El Planchón, um estreito corredor
através das montanhas com picos suficientemente
baixos para o avião passar. Voaríamos para sul, ao
longo das colinas a leste no sopé dos Andes, com as
montanhas sempre à nossa direita, até chegarmos
ao desfiladeiro. Então curvaríamos para oeste e
atravessaríamos as montanhas. Depois de passar as
montanhas, do lado chileno, viraríamos para a
direita e voaríamos para norte, para Santiago. O voo
deveria levar cerca de uma hora e meia. Estaríamos
em Santiago antes do escurecer.
Na primeira parte da viagem, o céu estava ameno e
chegámos perto do desfiladeiro El Planchón em
menos de uma hora. É claro que eu não sabia o
nome do desfiladeiro, nem nenhum dos detalhes do
voo. Mas não pude deixar de reparar que depois de
voarmos durante quilómetros com as montanhas
sempre distantes a ocidente, tínhamos virado para
oeste e estávamos agora a voar directamente para o
coração da cordilheira. Eu estava sentado à janela
no lado esquerdo do avião e, enquanto observava, a
milagre dos Andes paisagem plana e
incaracterística lá em baixo pareceu saltar da terra,
formando, primeiro, colinas escarpadas e depois
elevando-se e arqueando-se nas extraordinárias
convoluções de verdadeiras montanhas. Cumes em
forma de barbatanas de tubarão erguiam-se como
velas pretas a pairar no ar. Picos ameaçadores
espetavam-se como lanças gigantescas ou lâminas
partidas de machados de guerra. Estreitos vales
glaciares cortavam as encostas íngremes, formando
fiadas de corredores profundos, sinuosos e cobertos
de neve que se amontoavam e se dobravam uns
sobre os outros, criando um labirinto selvagem e
interminável de gelo e pedra. No hemisfério sul, o
Inverno já dera lugar ao começo da Primavera, mas
nos Andes as temperaturas ainda desciam de forma
rotineira aos dois graus abaixo de zero e o ar era tão
seco como num deserto. Eu sabia que as avalanches,
tempestades de neve e ventos muito fortes eram
vulgares nestas montanhas e que o Inverno anterior
fora um dos mais rigorosos registados até à data,
com quedas de neve de várias centenas de metros
nalgumas zonas. Não vi cor nenhuma nas
montanhas, apenas manchas mudas de preto e
cinza. Não havia suavidade, nem vida, apenas
rocha e neve e gelo e, quando olhei para baixo para
toda aquela imensidão escarpada, tive de rir da
arrogância dos que alguma vez acreditaram que os
seres humanos conquistaram a Terra. Continuando
a olhar pela janela, notei que se estavam a formar
pequenos tufos de nevoeiro e depois senti uma mão
no meu ombro.
- Troca de lugar comigo, Nando. Quero ver as
montanhas. Era o meu amigo Panchito, que estava
sentado na coxia ao meu lado. Assenti com a cabeça
e levantei-me. Quando me pus de pé para trocar de
lugar, alguém gritou:
- Pensa rápido, Nando! E virei-me mesmo a tempo
de apanhar uma bola de râguebi que alguém atirara
do fundo da cabina dos passageiros. Passei a bola
para a frente e afundei-me no meu lugar. À nossa
volta todos riam e conversavam, as pessoas iam de
lugar em lugar pelo corredor para falar com os
colegas. Alguns deles, incluindo o meu amigo mais
milagre dos Andes antigo, Guido Magri, estavam
na parte traseira do avião a jogar às cartas com
alguns dos membros da tripulação, incluindo o
comissário de bordo, mas quando a bola começou a
ressaltar pela cabina, o comissário avançou e tentou
que as coisas se acalmassem.
- Guardem a bola - gritou. Sosseguem e, por favor,
voltem para os vossos lugares! Mas éramos jovens
jogadores de râguebi a viajar com os nossos amigos
e não queríamos sossegar. A nossa equipe, o Old
Christians de Montevideu, era uma das melhores
equipes de râguebi do Uruguai e levávamos muito
a sério os nossos jogos normais. Porém, no Chile,
jogaríamos apenas uma partida amistosa, por isso
esta viagem era na realidade uma viagem de férias
para nós e no avião a sensação era de que as férias já
tinham começado. Era óptimo viajar com os amigos,
especialmente com estes amigos. Tínhamos passado
por tanta coisa juntos -todos os anos de formação e
treino, as derrotas dilacerantes, as vitórias difíceis.
Crescêramos como colegas de equipe, valendo-nos
da força uns dos outros, aprendendo a confiar uns
nos outros nos momentos de grande pressão. Mas o
jogo de râguebi não forjara só a nossa amizade,
formara também o nosso carácter e unira-nos como
irmãos.
A maior parte dos jogadores do Old Christians
conhecia-se há mais de dez anos, desde o tempo em
que jogávamos na escola, sob a orientação dos
Irmãos cristãos irlandeses no Colégio Stella Maris.
Os Irmãos tinham chegado ao Uruguai, vindos da
Irlanda, no início da década de 1950, a convite de
um grupo de pais católicos que queria que
fundassem uma escola particular católica em
Montevideu. Cinco Irmãos irlandeses aceitaram o
convite e, em 1955, criaram o Colégio Stella Maris,
uma escola particular para rapazes entre os nove e
os dezasseis anos de idade, situada na região de
Carrasco, onde a maioria dos estudantes morava.
Para os Irmãos, o principal objectivo de uma
educação católica era formar o carácter e não o
intelecto, e os seus métodos de ensino frisavam a
disciplina, a devoção, o altruísmo e o respeito. Para
promover estes valores fora da sala de aula, os
Irmãos desencorajaram a nossa natural paixão sul-
americana pelo futebol - um jogo que, na opinião
deles, fomentava o egoísmo - e dirigiram-nos para o
râguebi, um jogo mais duro, mais grosseiro. Há
muito tempo que o râguebi é uma paixão irlandesa,
mas era quase desconhecido no nosso país. Ao
princípio o jogo pareceu-nos estranho - tão brutal e
doloroso de se jogar, tantos empurrões e encontrões
e tão pouco do franco garbo do futebol. Porém, os
Irmãos acreditavam piamente que as qualidades
necessárias para dominar este desporto eram as
mesmas características essenciais para se viver uma
boa vida católica - humildade, tenacidade,
autodisciplina e devoção ao próximo - e estavam
determinados a fazer-nos praticar aquele desporto e
a jogá-lo bem. Não demorámos a aprender que
quando os Irmãos se empenhavam num propósito
qualquer, não havia quase nada que os dissuadisse.
Assim pusemos de lado as nossas bolas de futebol e
travámos conhecimento com a bola grande e
pontuda utilizada no râguebi. Em longos e duros
treinos nos campos atrás da escola, os Irmãos
começaram do zero, exercitando-nos em todas as
duras complexidades do jogo - reagrupamentos e
formações espontâneas, formações ordenadas e
alinhamentos, como pontapear, passar e placar.
Aprendemos que os jogadores de râguebi não
usavam protecções ou capacetes, mas que se
esperava que mesmo assim jogassem de forma
agressiva e com grande coragem física. Mas o
râguebi era mais do que um jogo de força bruta;
exigia uma estratégia sólida, pensamento rápido e
agilidade. Acima de tudo, o jogo exigia que os
colegas de equipe desenvolvessem um sentimento
de confiança inabalável. Explicaram-nos que,
quando um dos nossos colegas de equipe cai ou é
atirado ao chão, "torna-se relva". Era uma forma de
dizer que um jogador caído pode ser pisado e
esmagado pela equipe adversária como se fizesse
parte do relvado. Uma das primeiras coisas que nos
ensinaram foi como procedermos quando um
colega de equipe se torna relva: "Têm de se
transformar no protector dele. Têm de se sacrificar
para o escudar. Ele tem de saber que pode contar
convosco." Para os Irmãos, o râguebi era mais do
que um jogo, era um desporto elevado ao nível de
uma disciplina moral. No seu âmago estava a
convicção férrea de que nenhum outro desporto
ensinava de forma tão dedicada a importância de
lutar, de sofrer e de se sacrificar na prossecução de
um objectivo comum. Defendiam este ponto com
tanta paixão que não tínhamos outra escolha senão
acreditar neles e, quando começámos a entender
melhor o jogo, percebemos que eles tinham razão.
Em termos simples, o objectivo do râguebi é
adquirir o controlo da bola - em geral através de
uma combinação de astúcia, velocidade e força
bruta - e depois, passando-a habilmente de um
colega a correr para outro, levar a bola para lá da
"linha de ensaio" para marcar pontos. O râguebi
pode ser um jogo de velocidade e agilidade
impressionantes, de passes milimétricos e manobras
evasivas brilhantes. Mas para mim, a essência do
jogo só pode ser encontrada na mêlée brutal e
controlada conhecida como formação ordenada, a
disposição mais característica do râguebi. Numa
formação ordenada, cada equipe forma um
amontoado compacto, com três linhas, com os
jogadores agachados ombro a ombro com os braços
encaixados uns nos outros, formando uma densa
cunha humana. As duas formações ordenadas
chocam e a primeira linha de uma das formações
ordenadas cola os ombros com a primeira linha da
formação adversária formando um círculo fechado.
Ao sinal do árbitro, a bola é atirada para dentro
deste círculo e a formação ordenada de cada equipe
tenta empurrar a outra para longe da bola para que
um dos seus jogadores da primeira linha possa
pontapeá-la para trás através das pernas dos seus
colegas de equipe para a retaguarda da formação
ordenada, onde o médio de formação está à espera
para a arrancar e passar para um dos jogadores que
estão atrás e que dará início ao ataque. O jogo
dentro da formação ordenada é feroz -joelhos batem
em têmporas, cotovelos chocam contra maxilares, as
canelas sangram constantemente por milagre dos
Andes causa dos pontapés das chuteiras. É um
trabalho duro, difícil, mas tudo muda logo que o
médio de formação consegue libertar a bola e o
ataque começa. O primeiro passe poderá ser para
trás para o ágil médio de abertura, que se esquivará
aos defesas, ganhando tempo até que os jogadores
atrás dele descubram campo aberto. Quando está
prestes a ser arrastado para o chão, o médio de
abertura atira a bola para o primeiro centro, que
evita o golpe de um dos placadores mas sofre uma
rasteira do seguinte e quando tropeça para a frente
passa a bola para o ponta atrás dele. Agora a bola é
atirada rapidamente de um jogador para outro -asa
para ponta para centro e de volta ao ponta, todos
eles abrindo caminho com golpes, fintas, mergulhos
e encontrões, antes dos placadores os arrastarem
para o chão. Os jogadores que levam a bola serão
atacados pelo caminho, haverá formações
espontâneas quando a bola cair, cada centímetro
será uma batalha, mas então um dos nossos homens
descobrirá um determinado ângulo, uma pequena
janela de luz e, com uma última explosão de
esforço, passará a correr pelos derradeiros
defensores e mergulhará pela linha de ensaio para
marcar os pontos. Assim, todo aquele penoso
trabalho da formação ordenada se transformou
numa dança maravilhosa. E nenhum homem pode
dizer que o mérito é só seu. O ensaio foi marcado
centímetro a centímetro, graças a uma acumulação
de esforços individuais e não importa quem por fim
levou a bola para lá da linha de ensaio, a glória
pertence-nos a todos. O meu papel na formação
ordenada era alinhar por trás dos jogadores
agachados da primeira linha, a minha cabeça
enfiada entre as suas ancas, os meus ombros
impelindo-lhes as coxas e os meus braços esticados
por cima dos traseiros deles. Quando o jogo
começava, eu lançava-me para a frente com toda a
força e tentava empurrar a formação ordenada.
Recordo-me tão bem da sensação: ao princípio o
peso da formação adversária parece imenso e
impossível de se mover. Mesmo assim, fazemos
finca-pé no relvado, aguentamos o impasse,
recusamos desistir. Recordo-me, em momentos de
esforço extremo, de me arremessar para a frente até
as pernas ficarem completamente retesadas, com o
corpo baixo, direito e paralelo ao chão, empurrando
desesperado o que parecia ser um muro de pedra
sólido. Por vezes, o impasse parecia durar
interminavelmente, mas se mantivéssemos as
nossas posições e todos fizéssemos o nosso trabalho,
a resistência abrandaria e, milagrosamente, o
objecto inamovível começaria lentamente a mexer-
se. Isto é que é extraordinário: no próprio momento
da vitória não podemos isolar o nosso esforço
individual do esforço de toda a formação. Não
conseguimos saber onde acaba a nossa força e
começam os esforços dos outros. Num certo
sentido, deixamos de existir como seres humanos
individuais. Durante um breve momento
esquecemo-nos de nós próprios. Tornamo-nos parte
de algo maior e mais poderoso do que poderíamos
ser. O nosso esforço e a nossa determinação
desvanecem-se na determinação colectiva da equipe
e se esta determinação estiver unida e focada, a
equipe lança-se para a frente e a formação ordenada
começa magicamente a mover-se. Para mim, esta é a
essência do râguebi. Nenhum outro desporto nos
oferece uma sensação tão intensa de abnegação e
propósito colectivo. Acredito que seja por isso que
os jogadores de râguebi em todo o mundo sintam
uma tal paixão pelo jogo e um tal sentimento de
fraternidade. Claro que, sendo tão jovem, eu não
sabia exprimir tudo isto em palavras, mas sabia, tal
como os meus colegas de equipe, que havia
qualquer coisa especial naquele jogo e, sob a
orientação dos Irmãos, desenvolvemos um enorme
amor pelo desporto que forjava as nossas amizades
e as nossas vidas. Durante oito anos jogámos com
grande entusiasmo pelos Irmãos - uma liga de
rapazes com nomes latinos a jogar um jogo com
profundas raízes inglesas sob o céu soalheiro do
Uruguai e usando com orgulho o trevo verde
irlandês nos nossos uniformes. De facto, o jogo
passou de tal forma a fazer parte das nossas vidas
que, quando nos formámos no Stella Maris com
dezasseis anos, muitos de nós não conseguiram
aguentar a ideia de que não jogaríamos mais. A
nossa salvação chegou com o clube Old Christians,
uma equipe de râguebi particular formada em 1965
por antigos alunos do programa de râguebi do
Stella Maris, para dar oportunidade aos jogadores
do Stella Maris de continuarem a jogar depois de
terminarem a escola. Quando os Irmãos chegaram
ao Uruguai, poucas pessoas tinham visto um jogo
de râguebi, mas, no final da década de 1960, o jogo
já estava a ganhar popularidade e havia muitas
equipes boas para jogar com o Old Christians. Em
1965, entrámos para a Liga Nacional de Râguebi e,
em breve, já nos tínhamos posicionado como uma
das melhores equipes do país, vencendo o
campeonato nacional em 1968 e 1970. Encorajados
por este sucesso, começámos a marcar jogos na
Argentina e rapidamente descobrimos que
podíamos defrontar as melhores equipes que aquele
país tinha. Em 1971, fomos até ao Chile, onde nos
saímos bem em jogos contra adversários fortes,
incluindo a equipe nacional chilena. A viagem foi
um sucesso tão grande que se decidiu que
voltaríamos neste ano, em 1972. Eu andava há
meses ansioso por aquela viagem e, olhando em
volta da cabina de passageiros, não havia dúvida de
que os meus colegas sentiam o mesmo. Tínhamos
passado por tanta coisa juntos. Eu sabia que as
amizades que fizera naquela equipe de râguebi
durariam toda a vida e estava muito contente por
ter tantos amigos no avião comigo. Lá estava Coco
Nicholich, o nosso avançado da segunda linha, e
um dos jogadores maiores e mais fortes da equipe.
Enrique Platero, sério e perseverante, era um pilar -
um dos tipos corpulentos que ajudavam a ancorar a
primeira linha na formação ordenada. Roy Harley
era um ponta avançado, que utilizava a sua
velocidade para se desviar dos placadores e deixá-
los a agarrar o ar. Roberto Canessa era ponta e um
dos jogadores mais fortes e duros da equipe. Arturo
Nogueira era o nosso médio de abertura, muito
bom nos passes longos e o que dava os melhores
pontapés da equipe. Olhando para António
Vizintin, com as suas costas largas e pescoço grosso,
era fácil perceber que era um dos avançados da
primeira linha que aguentava a maior parte do peso
na formação ordenada. Gustavo Zerbino -cuja
coragem e determinação eu sempre admirei -era um
jogador versátil que preenchia muitas posições. E
Marcelo Perez del Castillo, outro ponta avançado,
era muito rápido, muito valente, carregava
maravilhosamente a bola e era um placador feroz.
Marcelo era também o capitão da nossa equipe, um
líder a quem confiaríamos as nossas vidas. Fora
ideia de Marcelo voltar ao Chile e trabalhou
bastante para tornar tudo aquilo possível; alugara o
avião, contratara os pilotos, organizara os jogos no
Chile e conseguira que todos se entusiasmassem
com a viagem. Havia outros - Alexis Hounie,
Gastón Costemalle, Daniel Shaw -, todos excelentes
jogadores e todos meus amigos. Mas o meu amigo
mais antigo era Guido Magri. Tínhamo-nos
conhecido no meu primeiro dia no Colégio Stella
Maris - eu tinha oito anos e Guido era um ano mais
velho - e desde aí tínhamos ficado inseparáveis. Eu
e Guido crescemos juntos, a jogar futebol e
partilhando uma paixão por motos, carros e
corridas de automóveis. Quando tinha quinze anos,
ambos tínhamos motocicletas que tínhamos
modificado de forma idiota -retirando o silencioso,
os picas e os guarda-lamas -e guiávamo-las até Las
Delicias, uma famosa loja de gelados no nosso
bairro, onde nos babávamos pelas miúdas do
Colégio Sagrado Corazón, na esperança de
impressioná-las com as nossas motorizadas com o
motor acelerado. Guido era um amigo em quem se
podia confiar, com um bom sentido de humor e riso
fácil. Era também um notável médio de formação,
rápido e esperto como uma raposa, com boas mãos
e muita coragem. Sob a orientação dos Irmãos,
ambos aprendemos a amar o jogo de râguebi com
consumidora paixão. A medida que as temporadas
passavam, íamos trabalhando bastante para
melhorar as nossas capacidades e, quando
completei quinze anos, já tínhamos conquistado as
nossas posições nos XV Primeiros do Stella Maris, a
formação principal da equipe. Depois de acabarmos
a escola, ambos entrámos para o Old Christians e
passámos várias temporadas felizes aproveitando a
vida social de qualidade dos jovens jogadores de
râguebi. Essa turbulência terminou bruscamente
para Guido em 1969, quando conheceu e se
apaixonou pela bela filha de um diplomata chileno.
Ela era agora sua noiva e ele sentia-se satisfeito por
se comportar como deve ser por causa dela. Depois
do noivado de Guido, passei a vê-lo com menos
frequência e comecei a passar mais tempo com o
meu outro grande amigo, Panchito Abal. Panchito
era um ano mais novo do que eu e, embora se
tivesse formado no Stella Maris e fosse um antigo
membro dos XV Primeiros da escola, só nos
tínhamos conhecido há alguns anos, quando
Panchito entrara para o Old Christians. Ficámos
instantaneamente amigos e, nos anos que se
seguiram, tornámo-nos tão chegados como irmãos,
usufruindo de uma forte camaradagem e de uma
profunda simpatia mútua, embora para muitos
possamos ter parecido um par inverosímil. Panchito
era o nosso ponta, uma posição que exige uma
combinação de velocidade, força, inteligência,
agilidade e reflexos extremamente rápidos. Se existe
uma posição mais sedutora numa equipe de
râguebi, é a posição de ponta e Panchito era perfeito
para esse papel. Com pernas longas e ombros
largos, veloz como um raio e com a agilidade de
uma chita, jogava com tanta graça natural que até as
suas jogadas mais brilhantes pareciam não lhe
custar nada. Mas tudo parecia ser assim para
Panchito, em especial a sua outra grande paixão -
andar atrás de raparigas bonitas. Claro que não
atrapalhava o facto de ele ter o aspecto belo e loiro
de uma estrela de cinema, ou o facto de ser rico, um
óptimo atleta e abençoado com o tipo de carisma
natural que a maioria de nós apenas sonha ter. Eu
acreditava, nessa altura, que não existia nenhuma
mulher que pudesse resistir a Panchito se ele se
interessasse por ela. Não tinha a menor dificuldade
em encontrar raparigas; parecia que elas vinham ter
com ele e ele conquistava-as com tanta facilidade
que por vezes parecia magia. Uma vez, por
exemplo, no intervalo de um jogo disse-me: -
Arranjei umas raparigas para sairmos depois do
jogo. Aquelas duas ali na primeira fila. Eu olhei
para onde as raparigas estavam sentadas. Nunca
víramos aquelas raparigas antes.
- Mas como é que conseguiste? - perguntei-lhe. Não
saíste do campo!
Panchito encolheu os ombros, mas lembrei-me de
que no início do jogo ele fora atrás de uma bola para
lá da linha de campo, perto de onde as raparigas
estavam sentadas. Só teve tempo de sorrir para elas
e dizer algumas palavras, mas para Panchito era o
suficiente. No meu caso era diferente. Como
Panchito, eu também nutria uma grande paixão
pelo râguebi, mas o jogo nunca era fácil para mim.
Quando era criança, partira ambas as pernas ao cair
de uma varanda e a fractura tinha-me deixado com
o andar um pouco arqueado que me privava da
ligeireza necessária para jogar nas posições mais
sedutoras do râguebi. Mas era alto, resistente e
rápido, por isso puseram-me a avançado na
segunda linha. Nós, avançados, éramos bons
soldados de infantaria, sempre a arremessar os
ombros para a frente em formações espontâneas e
reagrupamentos, a trovejar nas formações
ordenadas e a saltar bem alto para agarrar a bola
nos alinhamentos. Os avançados são em geral os
jogadores mais volumosos e fortes na equipe e,
embora eu fosse um dos mais altos, era magro para
a minha altura. Quando os corpos volumosos
começavam a voar, era apenas com muito trabalho
e determinação que eu conseguia aguentar firme.
Para mim, conhecer raparigas também exigia muito
esforço, mas nunca deixei de tentar. Estava tão
obcecado com miúdas bonitas quanto Panchito,
mas, embora sonhando ser um conquistador natural
como ele, sabia que não tinha a classe que ele tinha.
Um pouco tímido, com pernas compridas e
desajeitado, óculos de aros grossos e um aspecto
normal, tinha de encarar o facto de a maioria das
raparigas não me achar extraordinário. Não que
fosse impopular - tinha a minha quota-parte de
encontros -, mas mentiria se dissesse que as
raparigas faziam fila pelo Nando. Tinha de me
esforçar para despertar o interesse de uma rapariga,
mas mesmo quando o conseguia, as coisas não
corriam sempre conforme o planeado. Uma vez, por
exemplo, consegui, depois de meses a tentar, um
encontro com uma miúda de quem realmente
gostava. Levei-a a Las Delicias e ela esperou no
carro enquanto fui comprar uns gelados.
milagre dos Andes Quando voltava para o carro
com um cone em cada mão, tropecei nalguma coisa
no passeio e perdi o equilíbrio. Oscilando e
ziguezagueando loucamente em direcção ao carro
estacionado, lutei para manter o equilíbrio e salvar
os cones, mas não tive a menor hipótese. Muitas
vezes pensei qual teria sido o aspecto da cena para a
miúda dentro do carro: o rapaz com quem tinha um
encontro marcado cambaleando na direcção dela e
descrevendo um enorme círculo na rua, inclinado,
os olhos esbugalhados e a boca escancarada. Vacila
em direcção ao carro, depois parece mergulhar para
cima dela, o rosto esmagando-se contra a janela do
condutor, a cabeça batendo com força no vidro.
Desaparece da vista dela estatelando-se no chão e só
restam duas bolas de gelado a escorrer
esborrachadas na janela. Era uma coisa que não
teria acontecido a Panchito, nem que vivesse cinco
vidas. Era um dos dotados e toda a gente o invejava
por causa da graça e facilidade com que deslizava
pela vida. Mas eu conhecia-o bem e compreendia
que a vida não era tão fácil como parecia para
Panchito. Por baixo de todo aquele encanto e
confiança existia um coração melancólico. Podia
tornar-se irritadiço e distante. Mergulhava muitas
vezes em longas crises de mau humor e silêncios
rabugentos. E havia nele uma inquietação diabólica
que por vezes me perturbava. Estava sempre a
provocar-me com perguntas temerárias: Até onde é
que irias, Nando? Copiarias num teste? Assaltarias
um banco? Roubarias um carro? Eu ria-me sempre
que ele falava daquela maneira, mas não podia
ignorar o laivo oculto de fúria e tristeza que aquelas
perguntas revelavam. Não o julgava por causa
daquilo, porque sabia ser tudo consequência de um
coração partido. Os pais de Panchito tinham-se
divorciado quando ele tinha catorze anos. Foi um
desastre que o feriu de uma forma que ele não
conseguia superar e o deixara cheio de
ressentimentos. Tinha dois irmãos e um meio-irmão
do casamento anterior do pai, mas mesmo assim
havia alguma coisa que lhe faltava. Penso que sentia
uma grande ânsia pelo amor e conforto de uma
família que fosse feliz e completa. De qualquer
maneira, não levei muito tempo a perceber que,
apesar de todos os talentos naturais com que fora
abençoado, todas as coisas pelas quais eu o
invejava, ele me invejava mais pela única coisa que
eu tinha com que ele só podia sonhar - as minhas
irmãs, a minha avó, a minha mãe e o meu pai, todos
juntos num lar unido e feliz. Mas, para mim,
Panchito era mais um irmão do que um amigo e a
minha família sentia o mesmo por ele. Desde que se
conheceram, o meu pai e a minha mãe acolheram
Panchito como um filho e não lhe deram outra
hipótese senão considerar a nossa casa como dele
também. Panchito aceitou calorosamente este
convite e em breve era uma parte natural do nosso
mundo. Passava fins-de-semana connosco, viajava
connosco, participava das nossas férias e
comemorações familiares. Partilhava, comigo e com
o meu pai, uma paixão por carros e por conduzir e
adorava ir connosco às corridas de automóveis.
Para Susy era um segundo irmão mais velho. A
minha mãe sentia um afecto especial por ele.
Recordo-me de que ele se içava para cima do balcão
da cozinha enquanto ela cozinhava e os dois
conversavam horas a fio. Ela metia-se muitas vezes
com ele por causa da obsessão pelas raparigas.
- Só pensas nisso - dizia.
- Quando é que cresces?
- Quando eu crescer é que vou andar atrás delas! -
respondia Panchito.
- Só tenho dezoito anos, Senhora Parrado! Estou só
a começar. Eu sentia muita força e profundidade em
Panchito, na sua lealdade como meu amigo, na
forma ferozmente protectora como ele cuidava de
Susy, no respeito calmo que demonstrava pelos
meus pais, mesmo no afecto com que tratava os
empregados na casa do pai dele, que o amavam
como a um filho. Mais do que tudo, no entanto, via
nele um homem que não queria mais nada da vida
para além das alegrias de uma família feliz.
Conhecia-lhe o coração. Conseguia prever-lhe o
futuro. Encontraria a mulher que o amansaria.
Tornar-se-ia um bom marido e um pai extremoso.
Eu também casaria. As nossas famílias seriam uma
só; os nossos filhos cresceriam juntos. É claro que
nunca falávamos destas coisas - éramos rapazes
muito novos -, mas penso que ele sabia que eu
entendia estas coisas a seu respeito e penso que esse
conhecimento fortaleceu os elos da nossa amizade.
Porém, éramos jovens e o futuro não era mais do
que um rumor distante. Ambição e
responsabilidade podiam esperar. Tal como
Panchito, eu vivia para o momento presente.
Haveria tempo, mais tarde, para a seriedade. Eu era
jovem, agora era altura de me divertir e a diversão
era sem dúvida o foco da minha vida. Não que fosse
preguiçoso ou egoísta. Considerava-me um bom
filho, um trabalhador diligente, um amigo de
confiança e uma pessoa honesta e correcta.
Simplesmente não tinha pressa de crescer. A vida
para mim era algo que estava a acontecer hoje. Eu
não tinha princípios fortes, metas ou ambições
precisas. Naquela época, se me tivessem
perguntado o objectivo da vida, eu talvez tivesse
rido e respondido: "Divertir-me." Não me ocorria
nessa altura que só me podia dar ao luxo de ter esta
atitude despreocupada por causa dos sacrifícios do
meu pai que, desde muito jovem, levara a vida a
sério, planeando com cuidado os seus objectivos e,
devido a anos de disciplina e auto-suficiência, me
dera a vida de privilégios, segurança e lazer que eu
aceitava de forma tão natural. O meu pai, Seler
Parrado, nasceu em Estación Gonzales, um
poeirento posto avançado no rico interior agrícola
do Uruguai, onde grandes ranchos de gado, ou
estancias, produziam a famosa carne de vaca de
grande qualidade pela qual o Uruguai é conhecido.
O pai dele era um pobre vendedor ambulante que
viajava numa carroça puxada por cavalo de estancia
em estancia, vendendo selas, freios, botas e outros
artigos da vida rural aos próprios donos dos
ranchos, ou directamente aos gaúchos que lhes
cuidavam das manadas. Era uma vida difícil, cheia
de provações e incertezas e muito pouco conforto.
(Sempre que eu reclamava sobre a minha vida, o
meu pai recordava-me de que, quando era rapaz, a
sua casa de banho era um barracão de lata a quinze
metros da casa e que nunca vira um rolo de papel
higiénico até aos onze anos quando a família se
mudou para Montevideu.)
A vida no campo não concedia muito tempo para
descanso ou lazer. Todos os dias o meu pai ia e
voltava a pé da escola pelas estradas de terra batida
e depois ainda tinha de realizar a sua parte na
batalha diária da família pela sobrevivência. Aos
seis anos já trabalhava longas horas na pequena
propriedade da família - a cuidar das galinhas e dos
patos, a carregar água do poço, a apanhar lenha e
ajudando a tratar da horta da mãe. Aos oito anos
tornou-se ajudante do pai, passando muito tempo
na carroça do vendedor ambulante enquanto faziam
a viagem de um rancho para outro. A sua infância
não foi despreocupada, mas mostrou-lhe o valor do
trabalho duro e ensinou-lhe que nada lhe seria
oferecido, que a sua vida seria apenas o que ele dela
fizesse. Quando o meu pai fez onze anos, a família
mudou-se para Montevideu, onde o pai dele abriu
uma loja que vendia os mesmos produtos que
vendera aos rancheiros e agricultores no campo.
Seler tornou-se mecânico de automóveis - sentia
paixão por carros e motores desde tenra idade -,
mas quando tinha vinte e poucos anos o meu avô
decidiu reformar-se e o meu pai assumiu a gerência
da loja. O meu avô abrira a loja num bom sítio,
perto da principal estação ferroviária de
Montevideu. Naquela época, os caminhos-de-ferro
eram a principal forma de viajar do campo para a
cidade e quando os rancheiros e gaúchos vinham à
cidade comprar provisões, desciam dos comboios e
passavam directamente pela porta dele. Mas,
quando Seler assumiu o controlo do negócio, as
coisas tinham mudado. Os autocarros tinham
substituído os comboios como forma mais popular
de transporte e o terminal dos autocarros não era
nada perto da loja. Para piorar as coisas, a era das
máquinas tinha chegado às zonas rurais do
Uruguai. Camiões e tractores reduziam
rapidamente a dependência dos agricultores dos
cavalos e mulas, o que significou uma descida
dramática na procura das selas e freios que o meu
pai vendia. As vendas reduziram muito. O negócio
parecia condenado à falência. Então Seler fez uma
experiência - limpou os artigos de carácter rural de
metade do espaço da loja e dedicou esse espaço a
ferragens básicas - porcas e parafusos, pregos e
roscas, arame e dobradiças. O negócio começou
imediatamente a prosperar. Em poucos meses
retirara todos os artigos rurais e enchera as
prateleiras com ferragens. Ainda vivia no limiar da
pobreza e a dormir no chão de um quarto por cima
da loja, mas, quando as vendas continuaram a
aumentar, soube que tinha encontrado o seu futuro.
Em 1945, esse futuro ficou mais rico quando Seler
casou com a minha mãe, Eugenia. Ela era tão
ambiciosa e independente quanto ele e, desde o
começo, os dois formavam mais do que um casal;
eram uma equipe forte que partilhava uma visão
brilhante do futuro. Tal como o meu pai, Eugenia
tivera uma juventude difícil. Em 1939, quando tinha
dezasseis anos, emigrara da Ucrânia com os pais e
avó, para escapar à devastação da Segunda Guerra
Mundial. Os pais, apicultores na Ucrânia, fixaram-
se na zona rural do Uruguai e conseguiram viver
modestamente criando abelhas e vendendo mel. Era
uma vida de trabalho duro e oportunidades
limitadas, por isso, aos vinte anos, Eugenia mudou-
se para Montevideu, como o meu pai, à procura de
um futuro melhor. Tinha ura emprego de escritório
num grande laboratório médico no centro quando
casou com o meu pai e ao princípio só ajudava na
loja de ferragens no seu tempo livre. Nos primeiros
tempos do casamento tiveram algumas
dificuldades. O dinheiro era tão à justa que não se
podiam dar ao luxo de comprar mobília e
começaram a vida juntos num apartamento vazio.
Mas, por fim, o trabalho duro compensou e a loja de
ferragens começou a dar lucro. Quando a minha
irmã mais velha, Graciela, nasceu, em 1947, a minha
mãe pôde largar o emprego no laboratório e
trabalhar a tempo inteiro com o meu pai. Eu nasci
em 1949. Seguiu-se Susy três anos depois. Nessa
altura, Eugenia tornara-se uma força importante no
negócio da família e o seu trabalho duro e jeito para
o negócio tinham ajudado a obtermos um nível de
vida muito bom. Porém, apesar da importância do
trabalho dela, o centro da vida da minha mãe
sempre foi o lar e a família. Um dia, quando eu
tinha doze anos, ela anunciou que descobrira a casa
perfeita para nós em Carrasco, um dos melhores
bairros residenciais de Montevideu. Nunca
esquecerei o ar de felicidade nos olhos dela quando
descrevia a casa: era uma casa moderna, de dois
andares, perto da praia, disse, com grandes janelas e
quartos espaçosos e luminosos, amplos relvados e
um alpendre fresco. A casa tinha uma bela vista de
mar e isto, mais do que tudo, fazia com que a minha
mãe gostasse dela. Ainda me recordo do prazer na
voz dela quando nos disse: "Podemos ver o Sol a
pôr-se na água!" Os seus olhos azuis brilhavam com
lágrimas. Começara com tão pouco e agora
encontrara a casa dos seus sonhos, um lugar que
seria o seu lar para toda a vida. Em Montevideu,
morar em Carrasco é uma marca de prestígio e
nesta casa nova vimo-nos a viver entre a nata da
sociedade uruguaia. Os nossos vizinhos eram os
industriais, profissionais, artistas e políticos mais
proeminentes da nação. Era um local de status e
poder, muito distante do mundo humilde em que a
minha mãe nascera e ela deve ter-se sentido
imensamente satisfeita por conquistar aí um lugar
para nós. Mas tinha os pés bem assentes no chão
para se deixar impressionar exageradamente com a
vizinhança ou consigo mesma por estar a morar
naquele bairro. Por mais bem sucedidos que nos
tivéssemos tornado, a minha mãe não iria
abandonar os valores com os quais fora criada, ou
esquecer alguma vez quem era. Uma das primeiras
coisas que a minha mãe fez na casa foi ajudar a
própria mãe, Lina, que vivia connosco desde que
éramos pequenos, a escavar um largo pedaço do
relvado verde e luxuriante, por trás da casa, para
arranjar espaço para uma enorme horta. (Lina
também criava um pequeno bando de patos e
galinhas no quintal e os vizinhos devem ter ficado
espantados quando perceberam que aquela senhora
idosa de olhos azuis e cabelos brancos, que se vestia
com a simplicidade de uma camponesa europeia e
carregava as suas ferramentas de jardinagem num
cinto de couro atado à cintura, estava a organizar
uma pequena quinta num dos bairros mais
afectados e arranjados da cidade.) Sob os amorosos
cuidados de Lina, o jardim em breve produzia
abundantes colheitas de feijões, ervilhas, verduras,
pimentos, abóboras, milho, tomates -muito mais do
que conseguíamos comer, mas a minha mãe não
deixava que nada se estragasse. Passava horas na
cozinha com Lina, fazendo conservas do excedente
e guardando tudo na despensa, para que
usufruíssemos dos frutos do jardim o ano inteiro. A
minha mãe odiava o desperdício e o fingimento,
valorizava a frugalidade e nunca perdeu a sua fé no
trabalho árduo. O negócio do meu pai exigia muito
dela e trabalhava longas horas e com afinco para
que tivesse êxito, mas desempenhava também um
papel muito activo nas nossas vidas, sempre
presente para nos mandar para a escola ou para nos
receber em casa, nunca faltando aos meus jogos de
futebol e râguebi, ou às peças e recitais das minhas
irmãs na escola. Era uma mulher que possuía uma
energia enorme e serena, sempre disposta a
encorajar ea dispensar sábios conselhos, com
profundas reservas de expediente e bom senso que
lhe granjeavam o respeito de todos os que a
conheciam e mais do que uma vez provou ser uma
mulher digna da confiança dessas pessoas. Certa
vez, por exemplo, numa excursão do Rotary Club, a
minha mãe escoltou quinze crianças de Carrasco
numa visita de fim-de-semana a Buenos Aires.
Horas depois de terem chegado, eclodiu na cidade
um golpe militar, com o intuito de derrubar o
governo argentino. O caos reinava nas ruas e o
telefone da nossa casa não parava de tocar com
chamadas dos pais preocupados querendo saber se
os seus filhos estavam em segurança. Ouvi
repetidas vezes o meu pai tranquilizá-los, com
absoluta confiança na voz, dizendo: "Eles estão com
a Xenia, certamente que estão bem." E realmente
estavam, graças aos esforços da minha mãe. Era
quase meia-noite. Buenos Aires já não oferecia
segurança e a minha mãe sabia que o último ferry
para Montevideu partiria dentro de minutos, por
isso telefonou para a companhia dos barcos e
persuadiu os ansiosos pilotos a atrasarem a partida
até que ela chegasse com as crianças.
Depois juntou todos os miúdos e as suas bagagens e
conduziu-os pelas ruas agitadas de Buenos Aires
até à escura frente marítima onde o ferry estava
atracado. Todos embarcaram em segurança e o ferry
saiu logo depois das 3 da manhã, três horas depois
da hora marcada. Ela era uma verdadeira torre de
força, mas a sua força baseava-se sempre no carinho
e no amor e, por causa do seu amor e protecção,
cresci a acreditar que o mundo era um local seguro,
familiar. Quando cheguei ao liceu, os meus pais
eram donos de três grandes e prósperas lojas de
ferragens no Uruguai. O meu pai importava
também mercadorias de todo o mundo e revendia -
as para lojas de ferragens mais pequenas em toda a
América do Sul. O miúdo do campo pobre de
Estación Gonzales subira muito na vida e penso que
isso lhe dava um grande sentimento de satisfação,
mas nunca duvidei de que fizera aquilo tudo por
nós. Oferecera-nos uma vida de conforto e
privilégio como o seu próprio pai nunca poderia ter
imaginado, suprira as nossas necessidades e
protegera-nos da melhor forma que pudera e,
embora não fosse um homem que expressasse as
suas emoções, sempre demonstrou o seu amor por
nós de forma subtil, serenamente, e de maneiras
que tinham a ver com o homem que era. Quando eu
era pequeno, levava-me para a loja de ferragens,
passeava-me pelas prateleiras e, pacientemente,
partilhava comigo os segredos de toda aquela
mercadoria reluzente em que se baseava a
prosperidade da nossa família: Isto é uma cavilha,
Nando. Usa-se para pregar coisas numa parede oca.
Isto é uma ilhó -reforça um buraco numa lona para
que possas passar uma corda por ele para amarrá-
la. Isto é um perno. Isto é uma bucha. Isto é uma
porca. É aqui que guardamos as anilhas - anilhas
fendidas, anilhas de pressão, anilhas de aro e
anilhas chatas de todos os tamanhos. Temos
parafusos revestidos, parafusosde cabeça Philips,
parafusos de ferro, parafusos para madeira,
parafusosauto-roscantes... há pregos vulgares,
pregos para gesso, pregos para telhados, pregos
roscados, pregos para caixas, pregos para alvenaria,
pregos de cabeça dupla, mais tipos de pregos do
que possas imaginar... Eram momentos preciosos
para mim. Adorava a suave seriedade com que ele
partilhava estes conhecimentos, e saber que ele me
considerava suficientemente crescido para me
confiar os seus conhecimentos fazia com que me
sentisse próximo dele. Com efeito ele não estava só
a brincar, estava a ensinar-me as coisas de que eu
precisaria para o ajudar na loja. Mas mesmo sendo
miúdo, pressenti que me estava a ensinar uma lição
mais profunda: que a vida é ordenada, que a vida
faz sentido. Vês, Nando, para cada trabalho existe o
parafuso ou a porca certa, a dobradiça ou a
ferramenta apropriada. Quer tivesse essa intenção
quer não, estava a ensinar-me a grande lição que os
seus anos de luta lhe tinham ensinado: Não deixes a
cabeça perder-se nas nuvens. Presta atenção aos
detalhes, à realidade prática das coisas. Não se
constrói uma vida com base em sonhos e desejos.
Uma vida boa não cai do céu. Constrói-se a vida a
partir do chão, com trabalho árduo e ideias claras.
As coisas fazem sentido. Existem regras e realidades
que não vão mudar para se adaptarem às tuas
necessidades. O teu trabalho é entender essas
regras. Se o conseguires e se trabalhares com afinco
e de forma inteligente, tudo vai correr bem. Esta era
a sabedoria que moldara a vida do meu pai e
transmitiu-ma de tantas formas. Os carros eram
especialmente importantes para ele e transmitiu-me
essa paixão. Fez questão que eu percebesse o que
estava por baixo do capo de um carro, como cada
um dos sistemas funcionava e qual era a rotina de
manutenção necessária. Ensinou-me a sangrar os
travões, a mudar o óleo e a manter o motor afinado.
Sendo um grande fã de desportos automóveis e um
ávido piloto de corridas amador, passou horas a
ensinar-me a guiar bem -com coragem, sim, mas
com suavidade e segurança, e sempre com
equilíbrio e controlo. Com Seler aprendi a fazer
dupla embraiagem quando mudava de velocidade,
para poupar o desgaste da caixa de mudanças.
Ensinou-me a ouvir e compreender o som do motor,
para que pudesse acelerar e mudar de velocidade
mesmo na altura certa - para entrar em harmonia
com o carro e conseguir dele o melhor desempenho.
Mostrou-me como encontrar a linha precisa a seguir
numa curva e a forma correcta de virar em alta
velocidade: deve-se travar a fundo mesmo antes de
entrar na curva, depois reduzir a mudança e
acelerar suavemente durante a curva. Os entusiastas
de automóveis chamam a esta técnica "alternância
de calcanhar e ponta" por causa do trabalho de pés
que envolve - enquanto o pé esquerdo acciona a
embraiagem, o pé direito faz girar o calcanhar para
a frente e para trás entre o pedal do travão e o
acelerador. É um tipo de condução que exige
habilidade e concentração, mas o meu pai insistiu
que eu o aprendesse porque era a forma correcta de
guiar. Mantinha o carro equilibrado e a responder
aos comandos e, mais importante, dava ao condutor
o controlo necessário para resistir às forças físicas
do peso e velocidade que, se ignoradas, podiam
atirar o carro para fora da estrada ou fazê-lo
derrapar e ter um acidente. Se não conduzires desta
forma, disse-me o meu pai, o teu carro vai
simplesmente flutuar pelas curvas. Estarás a guiar
às cegas, abandonando o controlo às forças que
actuam contra ti e confiando que a estrada à tua
frente não te reserve nenhuma surpresa. O respeito
que tinha pelo meu pai era infinito, tal como a
gratidão pela vida que ele nos proporcionava. Eu
queria desesperadamente ser como ele, mas quando
cheguei ao liceu tive de enfrentar o facto de que
éramos homens muito diferentes. Eu não tinha a
sua clareza de visão ou a sua pragmática
tenacidade. Encarávamos o mundo de formas
completamente diferentes. Para o meu pai, a vida
era algo que se criava a partir de trabalho árduo e
planeamento cuidadoso e pura força de vontade.
Para mim, o futuro era como uma história que se
desenrola lentamente, com enredos e subenredos
que dão voltas e voltas, de forma que nunca
conseguimos ver muito adiante na estrada.
A vida era algo a ser descoberto, algo que chegaria
na altura própria. Eu não era preguiçoso ou
comodista, mas era um pouco sonhador. A maioria
dos meus amigos sabia como seria o seu futuro -
trabalhariam nos negócios da família ou nas
mesmas profissões que os pais tinham escolhido. De
um modo geral, esperava-se que eu fizesse o
mesmo. Mas eu não me imaginava a vender
ferragens toda a minha vida. Queria viajar. Queria
aventura, excitação e criatividade. Acima de tudo,
sonhava tornar-me um piloto de corridas como o
meu ídolo Jackie Stewart, três vezes campeão do
mundo e talvez o maior piloto de todos os tempos.
Tal como Jackie, eu sabia que pilotar não era só
potência e pura velocidade, tinha a ver com
equilíbrio e ritmo, havia poesia na harmonia entre
um piloto e o seu carro. Eu entendia que um grande
piloto não é apenas um temerário, é um virtuoso
com a coragem e o talento para levar o carro até ao
limite das suas capacidades, desafiando o perigo e
acotovelando as leis da física ao correr no fio da
navalha entre o controlo e o desastre. É esta a magia
da corrida. Este era o tipo de piloto que eu sonhava
ser. Quando fitava o cartaz de Jackie Stewart que
estava pendurado no meu quarto, ficava
convencido de que ele compreenderia isto. Até
sonhava que ele me consideraria uma alma gémea.
Mas estes sonhos pareciam inacessíveis e assim,
quando por fim chegou a altura de escolher uma
faculdade, decidi matricular-me em agronomia,
pois era para onde iam os meus amigos mais
chegados. Quando o meu pai soube da novidade,
encolheu os ombros e sorriu.
- Nando - disse -, as famílias dos teus amigos têm
quintas e ranchos. Nós temos lojas de ferragens.
Não foi difícil para ele fazer-me mudar de ideias.
No fim de contas, fiz o que fazia sentido: entrei
numa faculdade de gestão sem pensar muito
seriamente no que significaria para mim ou onde
essa decisão me poderia levar. Formar-me-ia ou
talvez não. Dirigiria as lojas de ferragens ou talvez
não o fizesse. A minha vida apresentar-se-me-ia
quando chegasse a altura. Entretanto, passei o
Verão sendo Nando: joguei râguebi, andei atrás de
miúdas com Panchito, conduzi o meu pequeno
Renault pelas praias de Punta del Este, fui a festas e
apanhei sol; vivia para o momento, deixando-me
levar pela maré, esperando que o meu futuro se me
revelasse, sempre contente por deixar que os outros
liderassem o caminho. Não pude deixar de pensar
no meu pai enquanto o Fair-child sobrevoava os
Andes. Largara-nos no aeroporto em Montevideu
quando a nossa viagem começara.
-Divirtam-se - dissera. Venho buscar-vos na
segunda-feira.
Beijou a minha mãe e a minha irmã, deu-me um
abraço caloroso e depois virou-se para voltar para o
escritório, para o mundo ordenado e previsível em
que prosperava. Enquanto nos divertíamos no
Chile, ele faria o que sempre fazia: resolver
problemas, tomar conta das coisas, trabalhar
bastante, prover às necessidades. Por amor à sua
família, programara na sua cabeça um futuro no
qual estaríamos todos seguros, felizes e sempre
juntos. Fizera bem os seus planos e estivera atento
aos detalhes. Os Parrado seriam sempre pessoas
afortunadas. Acreditava nisto com tanta firmeza e a
nossa confiança nele era tão forte, como é que
alguma vez poderíamos duvidar dele?
- Apertem os cintos de segurança, por favor - disse
o comissário de bordo. Vamos ter um pouco de
turbulência. Estávamos a atravessar o desfiladeiro
El Planchón. Panchito ainda estava à janela, mas
estávamos a voar através de um nevoeiro espesso e
não se conseguia ver muita coisa. Eu estava a
pensar nas raparigas que Panchito e eu tínhamos
conhecido na nossa última viagem ao Chile.
Tínhamos ido com elas para a estância de praia de
Viña del Mar e ficámos até tão tarde que quase
faltámos ao jogo de râguebi na manhã seguinte. Elas
tinham concordado em vir ter conosco este ano e
tinham-se oferecido para nos ir buscar ao aeroporto,
mas a nossa escala em Mendoza baralhara as horas
e eu esperava ainda conseguir encontrá-las. Estava
prestes a falar disto a Panchito quando o avião de
súbito descaiu para o lado. Depois sentimos quatro
solavancos bruscos quando a barriga do avião
saltou violentamente por cima de bolsas de ar.
Alguns dos rapazes gritaram e aplaudiram, como se
estivessem numa das atracções de um parque de
diversões. Inclinei-me para a frente e sorri
tranquilizadoramente para Susy e para a minha
mãe. A minha mãe parecia preocupada. Pusera de
lado o livro que estava a ler e segurava na mão da
minha irmã. Quis dizer-lhes para não se
preocuparem, mas, antes que conseguisse falar, a
parte de baixo pareceu soltar-se da fuselagem e o
meu estômago tombou pesadamente enquanto o
avião caía o que deviam ser várias centenas de
metros. O avião baloiçava e resvalava agora na
turbulência. Enquanto os pilotos lutavam para
estabilizar o Fairchild, senti o cotovelo de Panchito
nas minhas costelas.
- Olha para isto, Nando - disse ele. Deveríamos
estar tão perto das montanhas? Inclinei-me para
olhar pela pequena janela. Estávamos a voar por
entre nuvens espessas, mas nos intervalos consegui
ver uma muralha maciça de rocha e neve a passar
por nós. O Fairchild balançava com brusquidão e a
ponta oscilante da asa não estava a mais de oito
metros das encostas negras da montanha. Durante
mais ou menos um segundo olhei para aquilo sem
acreditar, depois os motores do avião guincharam
enquanto os pilotos tentavam desesperadamente
ganhar altitude. A fuselagem começou a vibrar com
tanta violência que receei que se desfizesse em
pedaços. A minha mãe e a minha irmã viraram-se
para olhar para mim por cima dos seus assentos. Os
nossos olhos encontraram-se por momentos e então
um poderoso tremor abanou o avião. Houve um
horrível gemido de metal a esmagar-se. De repente,
vi céu aberto por cima da minha cabeça. Um ar
gelado bateu-me no rosto e reparei, com uma
estranha calma, que as nuvens serpenteavam pelo
corredor. Não houve tempo para entender o que se
estava a passar, ou para rezar ou sentir medo. Tudo
aconteceu num ápice. Fui arrancado do meu assento
com uma força incrível e precipitado para a
escuridão e o silêncio.

2 TUDO DE MAIS PRECIOSO


- Toma, Nando, tens sede? Era o meu colega de
equipe, Gustavo Zerbino, agachado a meu lado,
pressionando-me uma bola de neve nos lábios. A
neve estava fria e queimou-me a garganta quando
engoli, mas o meu corpo estava tão ressequido que
a sorvi aos pedaços e pedi mais. Tinham-se passado
várias horas desde que despertara do coma. A
minha cabeça estava mais clara agora, e repleta de
perguntas. Quando acabei de engolir a neve, fiz
sinal a Gustavo para se chegar mais a mim.
- Onde está a minha mãe? - perguntei. Onde está
Susy? Elas estão bem? O rosto de Gustavo não traiu
a menor emoção.
- Descansa um bocado - disse. Ainda estás muito
fraco.
Afastou-se, e durante algum tempo os outros
mantiveram-se à distância. Supliquei-lhes repetidas
vezes que me dessem notícias dos meus entes
queridos, mas a minha voz era apenas um sussurro
e era fácil para eles fingirem que não ouviam. Fiquei
ali a tremer no chão frio da fuselagem, enquanto os
outros se atarefavam à minha volta, tentando ouvir
o som da voz da minha irmã e espreitando para ver
se conseguia ver o rosto da minha mãe. Queria
desesperadamente ver o sorriso caloroso da minha
mãe, os seus profundos olhos azuis, ser apertado
nos seus braços e que me dissesse que tudo estava
bem. Eugenia era o centro emocional da nossa
família. A sua sagacidade, força e coragem tinham
constituído os alicerces das nossas vidas e eu
precisava tanto dela agora que a sensação da sua
falta era como uma dor física pior do que o frio ou o
latejar da minha cabeça. Quando Gustavo voltou
com outra bola de neve, agarrei-lhe a manga.
- Onde é que elas estão, Gustavo? - insisti. Por
favor. Gustavo olhou-me nos olhos e deve ter visto
que eu estava preparado para uma resposta.
- Nando, tens de ser forte - disse. A tua mãe morreu.
Quando analiso retrospectivamente este momento,
não consigo explicar porque é que esta notícia não
me destruiu. Eu nunca precisara tanto do carinho
da minha mãe, e agora estavam a dizer-me que
nunca mais receberia esse carinho. Durante um
breve instante, a dor e o pânico explodiram no meu
coração de forma tão violenta que receei
enlouquecer, mas depois formou-se um
pensamento na minha cabeça, numa voz tão lúcida
e tão despegada de tudo o que eu estava a sentir
que poderia ter sido alguém a sussurrar ao meu
ouvido. A voz disse:
- Não chores. As lágrimas desperdiçam sal. Vais
precisar de sal para sobreviver. Fiquei assombrado
com a serenidade deste pensamento e chocado com
o sangue-frio da voz que o proferira. Não chorar
pela minha mãe? Não chorar pela maior perda da
minha vida? Estou encalhado nos Andes, estou
prestes a congelar, o meu crânio está em pedaços!
Não devo chorar? A voz falou outra vez.
- Não chores. Há mais - disse Gustavo. Panchito
morreu. Guido também. E muitos outros.
Abanei debilmente a cabeça não acreditando no que
ouvia. Como é que isto podia estar a acontecer? Os
soluços formaram-se na minha garganta, mas antes
que pudesse render-me ao sofrimento e ao choque,
a voz voltou a falar e mais alto. Todos eles se foram.
Fazem todos parte do teu passado. Não desperdices
energia com coisas que não podes controlar. Olha
em frente. Pensa com clareza. Vais sobreviver.
Gustavo ainda estava ajoelhado por cima de mim e
eu senti vontade de agarrá-lo, abaná-lo, obrigá-lo a
dizer que era tudo mentira. Depois lembrei-me da
minha irmã, e sem nenhum esforço próprio, fiz o
que a voz queria; deixei a minha dor pela minha
mãe e pelos meus amigos deslizar para o passado,
enquanto a minha mente se enchia com uma
turbulenta vaga de medo pela segurança da minha
irmã. Entorpecido, fitei Gustavo durante um
momento, enquanto reunia coragem para a
pergunta que tinha de fazer.
- Gustavo, onde está a Susy?
- Está ali - disse, apontando para a parte traseira do
avião -, mas está muito ferida. De repente, tudo
mudou para mim. O meu próprio sofrimento
desvaneceu-se e fui assaltado por um desejo
urgente de chegar à minha irmã. Lutei para me pôr
de pé, tentei andar, mas a dor na minha cabeça fez-
me desfalecer e afundei-me de novo, brutalmente,
no chão da fuselagem. Descansei durante uns
momentos, depois rolei sobre a barriga e arrastei-
me sobre os cotovelos em direcção à minha irmã. O
chão à minha volta estava juncado com o tipo de
detritos que chamavam a atenção para a violenta
interrupção da vida normal - copos de plástico
partidos, revistas abertas, cartas de jogar e livros
espalhados. Assentos desmantelados do avião
estavam empilhados numa massa confusa perto da
divisória do habitáculo e, enquanto rastejava, pude
ver, de ambos os lados do corredor, os suportes de
metal partidos que tinham fixado esses assentos ao
chão. Por um instante, imaginei a força terrível que
seria necessária para arrancar os assentos de
âncoras tão sólidas. Aproximava-me lentamente de
Susy, mas estava muito fraco e o meu progresso era
moroso. Em breve, a minha força desapareceu.
Deixei a minha cabeça afundar-se no chão para
descansar, mas então senti braços a erguerem-me e
a carregarem-me para a frente. Houve alguém que
me ajudou a chegar à parte de trás do avião e aí,
deitada de costas, estava a Susy. A primeira vista,
não parecia estar ferida com gravidade. Havia
vestígios de sangue na sobrancelha, mas alguém
obviamente lhe limpara o rosto. Tinha vestido o
casaco novo que comprara só para esta viagem -um
belo casaco de couro de antílope - e a gola de pele
macia do casaco roçava-lhe na face com a brisa
gelada. Os meus amigos ajudaram-me a deitar-me
ao lado dela. Pus-lhe os braços à volta e sussurrei-
lhe ao ouvido: -Estou aqui, Susy. É o Nando. Ela
virou-se e olhou para mim com os seus doces olhos
cor de caramelo, mas o olhar estava desfocado e eu
não tive a certeza se ela me reconheceu. Rolou nos
meus braços, como se para se chegar mais para
mim, mas depois gemeu debilmente e afastou-se.
Doía-lhe ficar naquela posição, por isso deixei que
encontrasse uma posição menos dolorosa e depois
abracei-a de novo, envolvendo-a com os meus
braços e as minhas pernas para a proteger, da
melhor maneira possível, do frio. Fiquei assim com
ela, durante horas. A maior parte do tempo, ela
estava sossegada. Por vezes soluçava ou gemia
suavemente. De vez em quando, chamava pela
nossa mãe.
- Mamã, por favor - chorava -, tenho tanto frio, por
favor, Mamã, vamos para casa. Estas palavras
trespassavam-me o coração como flechas. Susy era o
bebé da minha mãe e as duas tinham partilhado
sempre uma ternura especial. Eram tão semelhantes
em temperamento, tão meigas e pacientes e
calorosas, tão à vontade na companhia uma da
outra, que não me recordo de nenhuma zanga entre
elas. Costumavam passar horas juntas, a cozinhar, a
passear ou simplesmente a conversar. Recordo-me
delas tantas vezes sentadas no sofá, as cabeças
coladas, a sussurrar, a assentir, rindo de algum
segredo compartilhado. Penso que a minha irmã
contava tudo à minha mãe. Confiava na opinião da
minha mãe e procurava aconselhar-se com ela nas
coisas que tinham importância para ela -amizades,
estudos, roupas, ambições, valores e, sempre, como
lidar com os homens. Susy tinha as feições
ucranianas fortes e suaves da minha mãe e adorava
ouvir falar sobre as origens da nossa família na
Europa do Leste. Recordo-me de que todos os dias,
quando tomávamos o nosso café con leche depois
da escola, persuadia a nossa avó Lina a contar
histórias sobre a pequena aldeia rústica onde
nascera: como era fria e como nevava no Inverno e
como todos os aldeões tinham de dividir as coisas e
trabalhar juntos para sobreviver. Compreendia os
sacrifícios que Lina tivera de fazer para chegar onde
estava e penso que essas histórias a faziam sentir-se
mais próxima do passado da nossa família. Susy
partilhava o amor da minha mãe pela união da
família, mas não era menina de ficar em casa. Tinha
muitos amigos, adorava música, dançar e festas, e
por mais que gostasse da nossa vida familiar em
Montevideu, sonhava sempre conhecer outros
lugares. Aos dezasseis anos passou um ano a viver
com uma família da Florida como estudante de um
programa de intercâmbio, uma experiência que a
ensinou a amar os Estados Unidos. "Lá tudo é
possível", dizia-me. "Pode-se sonhar com qualquer
coisa e fazer com que se torne realidade!" O sonho
dela era ir estudar numa universidade dos Estados
Unidos e muitas vezes dava a entender que era
capaz de acabar por ficar lá ainda mais tempo.
"Quem sabe?", dizia. "Posso conhecer lá o meu
marido e tornar-me americana de vez!" Quando
Susy e eu éramos pequenos, adorávamos brincar
juntos. A medida que fomos crescendo, tornei-me
seu confidente. Partilhava os seus segredos comigo,
contava-me as suas esperanças e preocupações.
Recordo-me de que estava sempre preocupada com
o peso - tinha a ideia de que era demasiado gorda,
embora não o fosse. Tinha ombros largos e ancas
grandes, mas era alta e o seu corpo era bem
ajustado e proporcional. Tinha a constituição sólida
de uma ginasta ou nadadora. Mas a sua verdadeira
beleza eram os olhos profundos, límpidos, cor de
caramelo, a pele fina e a doçura e força que
irradiavam do seu rosto forte e bondoso. Era jovem
e ainda não tivera um namorado a sério e eu sabia
que ela se preocupava com o facto de os rapazes
poderem não a considerar atraente. Mas eu só via
beleza quando olhava para ela. Como é que a podia
convencer que era um tesouro? A minha irmãzinha
Susy fora preciosa para mim desde que nascera, e a
primeira vez que a apertei nos meus braços soube
que seria sempre meu dever protegê-la. Deitado
com ela no chão da fuselagem, recordei-me de um
dia na praia quando éramos ambos pequenos. Susy
ainda não tinha três anos; eu tinha cinco ou seis. Ela
estava a brincar na areia com o sol a bater-lhe nos
olhos. Eu não estava a nadar ou a jogar. Estava
sempre a vigiá-la, para que não fugisse para a
rebentação onde a maré podia apanhá-la, ou se
perdesse nas dunas onde algum estranho a podia
levar. Nunca a perdi de vista. Encarava qualquer
pessoa que se aproximasse dela. Mesmo criança,
percebia que a praia estava cheia de perigos e que
tinha de estar vigilante para mantê-la em segurança.
Esta sensação de ser o seu protector aumentou
quando crescemos. Fazia questão de conhecer os
seus amigos e os sítios onde costumava ir, e quando
tive idade suficiente para guiar, tornei-me o
motorista habitual de Susy e do seu grupo. Levava-
os a festas e bailes e ia buscá-los quando acabavam.
Era satisfatório, sabendo que comigo estavam em
segurança. Recordo-me de os levar ao grande
cinema no nosso bairro -um local onde todos os
nossos amigos se encontravam aos fins-de-semana.
Ela sentava-se com os amigos dela e eu com os
meus, mas eu mantinha um olho nela no escuro,
sempre a verificar se ela estava bem, certificando-
me de que sabia que eu estava suficientemente
perto se precisasse de mim. Outras raparigas
poderiam ter detestado um irmão assim, mas julgo
que Susy gostava que eu me preocupasse o
suficiente para a proteger e, por fim, aquilo acabou
por nos aproximar. Agora, apertando-a nos braços,
senti um terrível baque de impotência. Vê-la sofrer
causava-me uma angústia indescritível, mas não
havia nada que pudesse fazer. Toda a minha vida
teria feito qualquer coisa para manter Susy em
segurança e poupá-la da dor. Mesmo agora, na
carcaça destruída daquele avião, teria de bom grado
dado a minha vida para acabar com o sofrimento
dela e mandá-la para casa para junto do meu pai. O
meu pai! No meio de todo aquele caos e confusão,
não tivera tempo de pensar no que ele devia estar a
passar. Teria ouvido as notícias três dias antes e
durante todo aquele tempo teria vivido a acreditar
que nos perdera. Conhecia-o bem, conhecia o seu
profundo sentido prático e sabia que não se daria ao
luxo de ter falsas esperanças. Sobreviver a um
despenhamento de avião nos Andes? Nesta época
do ano? Impossível. Agora via-o claramente, o meu
forte e afectuoso pai a revolver-se na cama,
atordoado com aquela perda inimaginável. Depois
de toda a sua preocupação connosco, todo o seu
trabalho e planeamento, toda a sua confiança na
ordem do mundo e na certeza da nossa felicidade,
como é que poderia aguentar a brutal verdade: Não
conseguia proteger-nos. Não conseguia proteger-
nos. O meu coração partiu-se por ele e essa mágoa
foi mais dolorosa do que a sede, o frio, o medo
opressivo e a dor avassaladora na minha cabeça.
Imaginei-o a sofrer por mim. A sofrer por mim! Não
podia suportar a ideia de que pensasse que eu
morrera. Senti uma ânsia urgente, quase violenta,
de estar com ele, confortá-lo, dizer-lhe que estava a
cuidar da minha irmã, mostrar-lhe que não nos
tinha perdido a todos.
- Estou vivo - sussurrei para ele. Estou vivo.
Como eu precisava tanto da força do meu pai, da
sua sabedoria. Certamente que, se estivesse ali,
saberia como levar-nos para casa. Mas à medida
que a tarde se escoava e ficava mais frio e mais
escuro, mergulhei em puro desespero. Sentia-me
tão longe do meu pai como uma alma no paraíso.
Parecia que tínhamos caído por uma brecha no céu
numa espécie de inferno gelado, do qual nenhum
regresso ao mundo normal era sequer possível.
Como outros rapazes, conhecia mitos e lendas em
que heróis tinham caído num perverso mundo
subterrâneo, ou tinham sido atraídos para florestas
encantadas das quais não havia forma de escapar.
Na sua luta para voltar para casa, tiveram de passar
por muitas provações - lutar contra dragões e
demónios, esgrimir artimanhas com feiticeiros,
navegar por mares traiçoeiros. Mas mesmo esses
grandes heróis tinham precisado de ajuda mágica
para vencer -a orientação de um mago, um tapete
voador, um amuleto secreto, uma espada mágica.
Nós éramos um grupo de rapazes inexperientes que
nunca tinha realmente sofrido na vida. Poucos de
nós tínhamos visto neve. Nenhum de nós pusera os
pés numa montanha antes. Onde é que
encontraríamos o nosso herói? Que magia nos
levaria para casa? Enterrei o rosto no cabelo de Susy
para me impedir de soluçar. Então, como se tivesse
vontade própria, uma velha recordação começou a
faiscar na minha cabeça, uma história que o meu pai
me contara inúmeras vezes. Quando era jovem, o
meu pai era um dos melhores remadores de
competição do Uruguai e, num certo Verão, foi à
Argentina participar numa corrida na secção do rio
Uruguai conhecida como Delta del Tigre. Seler era
um remador poderoso e rapidamente se afastou da
maior parte dos outros, mas um corredor argentino
manteve-se a par com ele. Remaram, lado a lado,
todo o percurso da corrida, os dois a esforçarem-se,
com toda a sua força, para ganharem uma
vantagem mínima sobre o outro, mas quando a
linha de chegada se aproximou, ainda não era
possível definir o vencedor.
Os pulmões do meu pai ardiam e as pernas eram
atacadas por cãibras. Tudo o que queria era
inclinar-se para a frente, encher os pulmões de ar e
acabar com aquele sofrimento. Haverá outras
corridas, disse para si, aliviando a força sobre os
remos. Mas então lançou um olhar ao seu
concorrente no barco de corrida ao lado e viu pura
agonia no rosto do homem. "Percebi que ele estava
a sofrer tanto quanto eu", contava o meu pai. "Por
isso decidi que não iria desistir, no final de contas.
Decidi que iria sofrer um pouco mais." Com
determinação renovada, Seler enterrou os remos na
água e remou com toda a força que conseguiu
reunir. O coração troava no peito, o estômago
pulsava e parecia que os músculos estavam a ser
arrancados dos ossos. Mas forçou-se a lutar e
quando os corredores atingiram a meta, a proa do
barco de corrida do meu pai chegou primeiro, por
uns centímetros. Eu tinha cinco anos quando o meu
pai me contou esta história pela primeira vez e
fiquei fascinado com aquela imagem do meu pai -à
beira de se render, encontrando depois, de alguma
maneira, a força de vontade para resistir. Quando
criança, pedia-lhe muitas vezes para me contar a
história. Nunca me cansei de a ouvir e nunca perdi
aquela imagem heróica do meu pai. Muitos anos
depois, quando o via no escritório da loja de
ferragens, estafado, a trabalhar até tarde, debruçado
sobre a secretária e examinando através dos óculos
espessos pilhas de facturas e notas de encomenda,
ainda via aquele jovem heróico no rio na Argentina,
sofrendo, batalhando, mas recusando desistir, um
homem que sabia onde ficava a linha de chegada e
que faria tudo o que fosse preciso para alcançá-la.
Enroscado no avião com Susy, pensei no meu pai a
lutar naquele rio argentino.
Tentei encontrar a mesma força em mim, mas tudo
o que sentia era impotência e medo. Ouvi a voz do
meu pai, o seu velho conselho: Sê forte, Nando, sê
esperto.Constrói a tua própria sorte. Cuida das
pessoas que amas.
Mas as palavras inspiraram em mim apenas uma
sensação negra de perda. Susy gemeu suavemente e
moveu-se nos meus braços.
- Não te preocupes - sussurrei-lhe -, eles vão
descobrir-nos. Vão levar-nos para casa.Não sei se
acreditava nestas palavras ou não. O meu único
pensamento agoraera como confortar a minha irmã.
O Sol estava a pôr-se e, à medida que a luz na
fuselagem diminuía, o ar gelado tornou-se ainda
mais cortante. Os outros, que já tinham sobrevivido
a duas longas noites nas montanhas, procuraram os
seus locais de pernoitae prepararam-se para o
sofrimento que os esperava. Em breve a escuridão
no avião era absoluta, e o frio desceu sobre nós
como a boca de um torno. A ferocidade do frio
roubava-me o fôlego. Parecia haver uma
perversidade nele, uma vontade predatória, mas
não havia forma de repelir o seu ataque senão
comprimir-me mais contra a minha irmã. O próprio
tempo parecia ter-se congelado em forma sólida.
Fiquei deitado no chão frio da fuselagem, fustigado
pela aragem gelada que soprava por todos os
buracos e brechas, a tremer incontrolavelmente
durante o que pareceram horas, certo de que a
aurora não devia estar longe. Depois alguém com
um mostrador de relógio luminoso anunciava as
horas e eu percebia que só tinham passado alguns
minutos. Sofri toda aquela longa noite, inspiração
gelada atrás de inspiração gelada, de uma batida
trémula de coração para outra, e cada instante era
um inferno distinto. Quando julgava que já não ia
aguentar mais, puxava Susy para mais perto de
mim e o pensamento de que estava a confortá-la
impedia-me de enlouquecer. Na escuridão, não
conseguia ver o rosto de Susy; só ouvia a sua
respiração penosa. Deitado ao lado dela, a doçura
do meu amor por ela, pelos meus amigos perdidos e
pela minha família, pela noção subitamente frágil
da minha própria vida e futuro encheu omeu
coração com uma dor tão profunda que exauriu
todas as minhas forças e, por um momento, pensei
que ia desfalecer.
Mas acalmei-me e cheguei-me para mais perto de
Susy, envolvendo-a nos meus braços tão
delicadamente quanto possível, atento aos seus
ferimentos e lutando contra a ânsia de a apertar
com toda a minha força. Comprimi a minha face
contra a dela para poder sentir a sua respiração
morna no meu rosto, e segurei-a assim a noite
inteira, com delicadeza, mas muito colada a mim,
nunca a largando, abraçando-a como se estivesse a
abraçar todo o amor e paz e alegria que já conhecera
e conheceria; como se ao segurá-la com força
pudesse evitar que tudo o que tinha de mais
precioso se escapasse.

3 UMA PROMESSA
Dormi muito pouco nessa primeira noite depois do
coma e, acordado na escuridão gelada, parecia que
a aurora nunca mais chegava. Mas, por fim, uma
luz ténue iluminou lentamente as janelas da
fuselagem e os outros começaram a mexer-se. O
meu coração afundou-se quando os vi - os cabelos,
sobrancelhas e lábios cintilavam com gelo grosso e
prateado e moviam-se com dificuldade e lentidão,
como velhos. Quando comecei a erguer-me, percebi
que as minhas roupas tinham gelado no corpo e que
havia gelo acumulado nas minhas sobrancelhas e
pestanas. Forcei-me a levantar. A dor dentro da
minha cabeça ainda latejava, mas a hemorragia
parara, por isso cambaleei para fora da fuselagem
para olhar pela primeira vez para o estranho
mundo branco em que caíramos. O sol da manhã
iluminava as encostas cobertas de neve com um
brilho branco e duro e tive de semicerrar os olhos
para examinar a paisagem que rodeava o local onde
o avião se despenhara. A fuselagem amolgada do
Fairchild viera embater num glaciar atulhado de
neve que descia pela encosta leste de uma
montanha maciça, incrustada de gelo. O avião jazia
com o nariz amassado a apontar ligeiramente para
baixo. O glaciar mergulhava pela montanha abaixo,
depois corria por um vale largo que serpenteava
durante quilómetros através da cordilheira até que
desaparecia num labirinto de cristas cobertas de
neve que marchavam em direcção ao horizonte a
oriente. Só para leste conseguíamos enxergar a
grande distância. Para norte, sul e oeste, a vista era
bloqueada por um muro de montanhas muito altas.
Sabíamos que estávamos a grande altitude nos
Andes, mas as encostas cheias de neve acima de nós
erguiam-se ainda mais alto, de forma que eu tinha
de inclinar a cabeça para trás para ver os cumes.
Mesmo lá no cimo, as montanhas irrompiam do
manto de neve com os seus picos negros em forma
de pirâmides toscas, tendas colossais ou molares
partidos, enormes. As cristas formavam um
semicírculo denteado que cercava o local do
despenhamento como as paredes de um
monstruoso anfiteatro, com os destroços do
Fairchild no centro do palco. Examinando o nosso
novo mundo, fiquei tão desconcertado com a
estranheza de sonho do lugar que, ao princípio, tive
de lutar para me convencer de que era real. As
montanhas eram enormes, tão puras e silenciosas e
tão profundamente distantes de qualquer coisa que
tivesse experimentado que, muito simplesmente, eu
não conseguia orientar-me. Tinha vivido toda a
minha vida em Montevideu, uma cidade de um
milhão e meio de pessoas e nunca considerara
sequer o facto de as cidades serem coisas fabricadas,
construídas com escalas e estruturas de referência
que tinham sido concebidas para satisfazerem os
usos e sensibilidade dos seres humanos. Mas os
Andes tinham brotado da crosta terrestre milhões
de anos antes de os seres humanos aparecerem no
planeta. Nada naquele lugar acolhia a vida humana,
ou sequer reconhecia a sua existência. O frio
atormentava-nos. O ar rarefeito consumia os nossos
pulmões. O sol não filtrado cegava-nos e queimava
os nossos lábios e pele, e a neve era tão funda que
assim que o sol da manhã derretia a crosta de gelo
que se formava à sua superfície todas as noites, não
podíamos aventurar-nos para muito longe do avião
sem nos enterrarmos até às ancas. E em todos os
infindáveis quilómetros de encostas e vales gelados
que nos aprisionavam, não havia nada que uma
criatura viva pudesse usar como comida - nem um
pássaro, nem um insecto, nem um único pedaço de
relva. As nossas hipóteses de sobrevivência teriam
sido melhores se estivéssemos à deriva no mar alto,
ou perdidos no Saara. Pelo menos algum tipo de
vida sobrevive nesses lugares. Durante os meses
frios nos altos Andes, não há vida nenhuma.
Estávamos absurdamente deslocados ali, como um
cavalo-marinho no deserto, ou uma flor na Lua. Um
pavor começou a formar-se na minha cabeça, um
pensamento indefinido que não conseguia ainda
verbalizar: A vida aqui é uma anomalia e as
montanhas tolerarão essa anomalia apenas por
algum tempo. Desde as minhas primeiríssimas
horas na montanha, senti, no mais profundo do
meu ser, quão imediato era o perigo que nos
rodeava. Não houve um único momento em que
não sentisse o carácter real e de proximidade da
morte, um único momento em que não estivesse
preso de um medo primitivo. No entanto, ali do
lado de fora do Fairchild, não consegui deixar de
me sentir arrebatado pela intimidante grandeza do
que nos rodeava. Havia uma beleza incrível ali - na
enormidade e poder das montanhas, nos campos de
neve varridos pelo vento que brilhavam com uma
brancura tão perfeita e na espantosa beleza do céu
andino. Quando olhei para cima, o céu estava agora
sem nuvens, e crepitava com uma tonalidade
iridescente de azul frio, escuro. A sua beleza
misteriosa deixou-me abalado, mas, como tudo o
resto ali, a vastidão e o vazio daquele céu infinito
fez-me sentir pequeno e perdido e
inacreditavelmente longe de casa. Naquele mundo
primevo, com a sua escala esmagadora, a sua beleza
sem vida e o seu estranho silêncio, senti-me
estranhamente fora da realidade no sentido mais
fundamental, e isso apavorou-me mais do que tudo,
pois sabia no íntimo que a nossa sobrevivência ali
dependeria da capacidade para reagirmos a
desafios e catástrofes que agora nem sequer
conseguíamos imaginar. Estávamos a jogar contra
um adversário desconhecido e rancoroso. As
hipóteses em jogo eram terríveis - jogar bem ou
morrer -, mas nem sequer sabíamos as regras
básicas. Sabia que para salvar a minha vida teria de
compreender essas regras, mas o mundo branco e
frio à minha volta não me oferecia nenhuma pista.
Nesses primeiros dias da nossa provação, poderia
ter-me sentido mais ligado à minha nova realidade
se me lembrasse melhor do despenhamento. Como
desmaiara nas primeiras fases do acidente, não me
recordava de nada até recuperar os sentidos três
dias depois. Porém, a maioria dos outros
sobreviventes estivera consciente durante toda a
sequência do desastre e, à medida que me contavam
os detalhes da queda e dos dias de desespero que se
seguiram, percebi que era um milagre que qualquer
de nós estivesse vivo. Lembrava-me de
sobrevoarmos o desfiladeiro El Planchón, onde
voáramos por entre nuvens tão espessas que a
visibilidade era quase zero e os pilotos foram
obrigados a fazer uso dos instrumentos de bordo.
Uma forte turbulência atirava o avião de um lado
para o outro e a dada altura atingimos uma bolsa de
ar que forçou o avião a cair várias centenas de
metros. Esta rápida descida levou-nos para baixo da
linha das nuvens e foi provavelmente nesse
momento que os pilotos viram pela primeira vez a
crista negra erguendo-se mesmo à sua frente.
Aceleraram imediatamente os motores do Fairchild
num esforço desesperado para subir. Este esforço
conseguiu erguer o nariz do avião alguns graus -
evitando uma colisão frontal com a crista, que, a
uma velocidade cruzeiro de 370 quilómetros por
hora, teria reduzido o Fairchild a pedaços -, mas era
demasiado tarde para fazer o avião sobrevoar
completamente a montanha. A barriga do Fairchild
bateu na crista aproximadamente na zona em que
as asas se ligam ao corpo central e o estrago foi
catastrófico. Em primeiro lugar as asas soltaram-se.
A asa direita caiu em espiral no desfiladeiro. A
esquerda bateu contra o avião, e o propulsor cortou
pelo casco do Fairchild adentro, antes de mergulhar
também nas montanhas. Uma fracção de segundo
depois, a fuselagem fracturou-se ao longo de uma
linha directamente por cima da minha cabeça e a
secção da cauda soltou-se. Todas as pessoas
sentadas atrás de mim se perderam - o navegador, o
comissário de bordo e os três rapazes que estavam a
jogar às cartas. Um desses rapazes era Guido. Nesse
mesmo instante, senti que estava a ser erguido do
meu assento e projectado para a frente com uma
força indescritível, como se algum gigante me
tivesse agarrado como uma bola de basebol e
atirado com toda a sua força. Lembro-me de bater
em alguma coisa, provavelmente a divisória entre a
cabina dos passageiros e o habitáculo. Senti a
parede ceder, depois perdi a consciência e, para
mim, o acidente terminou. Porém, os outros ainda
enfrentaram uma aterrorizadora corrida enquanto a
fuselagem, extirpada das suas asas, motores e
cauda, seguia em frente como um míssil não
guiado. Fomos então abençoados com o primeiro de
muitos milagres. O avião não oscilou nem entrou
em espiral. Ao contrário, quaisquer que sejam os
princípios de aerodinâmica que governam estas
coisas, eles mantiveram os restos do Fairchild a voar
a direito tempo suficiente para atravessar ainda
outra crista negra. Mas o avião perdia velocidade e,
por fim, o nariz inclinou-se e começou a cair. Então
o segundo milagre salvou-nos, pois o ângulo de
descida do Fairchild correspondia quase
exactamente à encosta íngreme da montanha em
que estávamos a cair. Se este ângulo tivesse sido
apenas uns graus mais íngreme ou fundo, o avião
teria rolado pela montanha e ter-se-ia feito em
pedaços. Ao contrário, porém, aterrou de barriga e
começou a resvalar pela encosta coberta de neve
como um tobogã. Os passageiros gritavam e
rezavam em voz alta enquanto a fuselagem
deslizava pela encosta abaixo a uma velocidade de
320 quilómetros por hora para uma distância de
mais de 360 metros, encontrando um afortunado
caminho entre os pedregulhos e saliências rochosas
que juncavam a montanha antes de bater num
enorme banco de neve e parar de forma súbita e
violenta. A força da colisão foi imensa. O nariz do
Fairchild estava enrugado como um copo de papel.
Na cabina dos passageiros, assentos foram
arrancados do chão da fuselagem e atirados para a
frente com as pessoas sentadas neles, precipitando-
se contra a divisória do habitáculo. Vários
passageiros foram esmagados instantaneamente
quando as fileiras dos assentos se fecharam sobre
eles como as dobras de um acordeão, para depois se
abateram numa pilha desordenada que encheu a
parte da frente da fuselagem quase até ao tecto.
Coche Inciarte, um dos apoiantes da equipe,
contou-me como se agarrara às costas do banco à
sua frente enquanto o avião se deslocava pela
montanha abaixo, esperando morrer a qualquer
segundo. Depois do impacto, disse, a fuselagem
rolou um pouco para a esquerda e então assentou
pesadamente na neve. Durante alguns momentos
houve apenas um silêncio aturdido, mas logo o
sossego foi quebrado por gemidos ténues e depois
gritos de dor mais fortes. Coche viu-se deitado no
emaranhado de assentos, sem ferimentos e atónito
por estar vivo. Havia sangue por todo o lado e os
braços e pernas de corpos imóveis espreitavam
debaixo da desordem dos assentos comprimidos
uns contra os outros. Confuso, a sua atenção foi
atraída para a gravata que, reparou, tinha sido feita
em fiapos pela força do vento que se gerara durante
o louco deslizar do Fairchild pela montanha abaixo.
Alvaro Mangino recordava-se de ter sido
empurrado para baixo do assento à sua frente no
impacto final. Preso no chão, ouviu gemer e gritar à
sua volta e recordava-se em especial de ter ficado
desconcertado com a aparição de Roy Harley, que
parecia ter ficado azul. Mais tarde compreendeu
que Roy tinha ficado ensopado no combustível do
avião. Gustavo Zerbino estava sentado ao lado de
Alvaro. Explicou que no primeiro impacto, quando
o avião atingiu a crista da montanha, viu o assento
onde Carlos Valeta estava sentado ser arrancado do
chão e desaparecer no céu. Enquanto a fuselagem
resvalava pela encosta abaixo, Gustavo levantou-se
e agarrou-se ao compartimento das bagagens por
cima da sua cabeça. Fechou os olhos e rezou. "Jesus,
Jesus, eu quero viver!", gritou. Tinha a certeza de
que estava prestes a morrer. Milagrosamente, ainda
estava de pé quando o avião se esmagou contra o
banco de neve e parou bruscamente. Então é
verdade, pensou, ainda se pensa depois de morrer.
Aí abriu os olhos. Quando viu os destroços à sua
frente, instintivamente deu um passo para atrás e
de imediato se afundou na neve até à cintura.
Olhando para cima, viu a linha denteada da
fractura onde a secção da cauda se despegara da
fuselagem e percebeu que tudo e todos atrás dele
tinham desaparecido. O chão da fuselagem estava
agora ao nível do seu peito e quando se içou de
novo para o avião, foi forçado a passar por cima do
corpo imóvel de uma mulher de meia-idade. O
rosto estava ferido e coberto de sangue, mas
reconheceu-a como sendo a minha mãe. Gustavo,
um estudante de medicina do primeiro ano,
inclinou-se e tomou-lhe o pulso, mas ela já estava
morta. Gustavo avançou pela fuselagem em
direcção à pilha de assentos. Espreitou por baixo de
um dos assentos e encontrou Roberto Canessa.
Canessa, também um estudante de medicina, não
estava ferido e, dentro de pouco tempo, Roberto e
Gustavo começaram a puxar mais assentos da pilha
e a cuidar, o melhor que podiam, dos passageiros
feridos que libertavam. No mesmo momento,
Marcelo Perez saía do meio dos destroços. Marcelo
ferira um dos lados do corpo na queda e o rosto
estava contundido, mas os ferimentos eram leves, e
como nosso capitão de longa data, assumiu
imediatamente o controlo da situação. A primeira
coisa que fez foi organizar os rapazes que não
estavam feridos e pô-los a trabalhar para libertar os
passageiros que tinham ficado presos debaixo do
monte de assentos. Foi um trabalho custoso. A força
da colisão amontoara os bancos num emaranhado
complicado, com todos os assentos enganchados
uns nos outros formando conglomerados pesados
de mais para serem deslocados. Muitos dos
sobreviventes eram atletas, numa excelente
condição física, mas, mesmo assim, enquanto
lutavam para puxar e separar os assentos, ficaram
sem fôlego no ar rarefeito da montanha. A medida
que os passageiros eram puxados, um a um, dos
assentos desfeitos, Roberto Canessa e Gustavo
Zerbino avaliavam o seu estado e faziam o possível
para tratar dos seus ferimentos, alguns dos quais
eram terríveis. As duas pernas de Arturo Nogueira
estavam partidas em vários sítios. Alvaro tinha uma
perna partida e Pancho Delgado também. Um tubo
de aço de 15 centímetros tinha empalado o
estômago de Enrique Platero como se fosse a ponta
de uma lança e quando Gustavo Zerbino puxou o
tubo da barriga do amigo, vários centímetros dos
intestinos de Enrique vieram atrás. A ferida da
perna direita de Rafael Echavarren era ainda mais
horrível. O músculo da barriga da perna tinha sido
arrancado do osso e torcido para a frente, de forma
que pendia como uma massa escorregadia da
extensão da canela. Quando Gustavo o encontrou, o
osso de Rafael estava completamente exposto.
Gustavo, engolindo o seu choque, agarrou no
músculo solto, comprimiu-o de volta ao seu lugar e
depois ligou a perna ensanguentada com tiras da
camisa branca de alguém. Ligou também o
estômago de Enrique Platero e o calado, estóico
Enrique pôs-se imediatamente a trabalhar
libertando outros que estavam presos nos assentos.
À medida que cada vez mais passageiros eram
retirados dos destroços, os "médicos" ficavam
espantados por ver que a maioria dos sobreviventes
tinha apenas sofrido ferimentos ligeiros. Roberto
Canessa e Gustavo Zerbino limparam e ligaram as
suas feridas. Mandaram outros, com ferimentos nos
braços e pernas, lá para fora para o glaciar, onde
podiam mitigar a sua dor refrescando os membros
na neve. Cada sobrevivente ileso que era libertado
dos assentos tornava-se outro trabalhador, e em
breve os trabalhadores tinham libertado todos os
passageiros presos à excepção de um, uma mulher
de meia-idade chamada señora Marinari. A señora
não fazia parte do nosso grupo. Ia para o casamento
da filha no Chile e comprara bilhete naquele avião
directamente da força aérea, como uma forma mais
barata de fazer a viagem. Na queda, o seu assento
tombara para a frente, comprimindo-lhe o peito
contra os joelhos e prendendo-lhe as pernas para
trás, por baixo do banco. Outros assentos tinham
caído por cima do dela, enterrando-a sob uma pilha
tão pesada e perversamente emaranhada que
nenhum esforço conseguia libertá-la. Tinha ambas
as pernas partidas e gritava de agonia, mas não
havia nada que alguém pudesse fazer por ela. E
também não havia nada a fazer por Fernando
Vasquez, um dos apoiantes da equipe. Quando
Roberto o examinou nos primeiros momentos após
o despenhamento, ele parecia atordoado mas
incólume e Roberto seguiu adiante. Quando o foi
ver outra vez, encontrou Vasquez morto no seu
assento. A perna fora decepada abaixo do joelho
pelo propulsor do avião quando este ceifara pelo
casco adentro, e enquanto Roberto estivera afastado
dele, sangrara até à morte. O médico da nossa
equipe, Francisco Nicola, e a mulher, Esther, tinham
sido arremessados dos bancos e jaziam mortos, lado
a lado, na parte da frente da cabina dos passageiros.
Susy jazia ao lado do corpo da minha mãe. Estava
consciente, mas incoerente, com sangue a escorrer
pelo rosto. Roberto limpou o sangue dos olhos de
Susy e viu que provinha de uma ferida superficial
na cabeça, mas suspeitou, correctamente, que
sofrera lesões internas muito mais graves. A alguns
metros encontraram Panchito, a sangrar da cabeça e
a divagar, semiconsciente. Roberto ajoelhou-se a seu
lado e Panchito pegou na mão de Roberto,
suplicando-lhe que não o deixasse. Roberto limpou
o sangue dos olhos de Panchito, confortou-o, depois
seguiu adiante. Na parte da frente do avião
descobriu-me, sem sentidos, o rosto coberto de
sangue e contusões negras, a minha cabeça já
inchada, do tamanho de uma bola de basquetebol.
Verificou o meu pulso e ficou surpreendido por
constatar que o meu coração ainda batia.
Mas os meus ferimentos pareciam tão graves que
não me deu qualquer hipótese de sobrevivência,
por isso ele e Zerbino continuaram, poupando os
seus esforços para os que acreditavam que
conseguiriam ajudar. Ouviam-se gemidos vindos
do habitáculo, mas a porta ainda estava
completamente bloqueada pela parede de assentos
virados, por isso Canessa e Zerbino tiveram de sair
da fuselagem e abrir caminho através da neve funda
até à frente do avião, onde conseguiram subir pelo
compartimento das bagagens até ao habitáculo.
Encontraram Ferradas e Lagurara ainda presos nos
seus lugares. O impacto final do avião no banco de
neve esmagara o nariz do Fairchild e forçara o
painel dos instrumentos contra o peito de ambos,
pregando-os às costas dos bancos. Ferradas estava
morto. Lagurara estava consciente, mas gravemente
ferido e com dores terríveis. Canessa e Zerbino
tentaram despegar o painel de instrumentos do
peito do co-piloto, mas ele não se mexeu. "Passámos
Curicó", murmurou Lagurara, enquanto os
"médicos" tentavam ajudá-lo, "passámos Curicó."
Canessa e Zerbino conseguiram retirar a almofada
das costas do assento, e isso aliviou a pressão no
peito de Lagurara, mas não havia muito mais que
pudessem fazer por ele. Deram-lhe alguma neve
para mitigar a sua sede, e depois perguntaram se
podiam usar o rádio do Fairchild. Lagurara disse-
lhes como girar o disco para transmissão, mas
quando tentaram enviar uma mensagem,
descobriram que o rádio estava mudo. Lagurara
pediu mais alguma neve e os "médicos" deram-lha,
e viraram costas para se irem embora. Quando
percebeu o desespero da sua situação, Lagurara
suplicou aos rapazes que lhe trouxessem o revólver
que tinha no seu saco de voo, mas Canessa e
Zerbino ignoraram-no e voltaram para a cabina dos
passageiros. Quando desciam do habitáculo,
ouviram Lagurara a murmurar: "Passámos Curicó,
passámos Curicó..." Na fuselagem, Marcelo estava a
fazer alguns cálculos sinistros. O acidente fora às
três e meia da tarde. Supôs que antes das quatro os
funcionários não poderiam confirmar que o avião
tinha desaparecido. Quando conseguissem
organizar uma equipe de resgate com um
helicóptero, seriam cinco e meia ou seis. Os
helicópteros não chegariam até nós antes das sete e
meia no mínimo e, uma vez que nenhum piloto no
seu juízo perfeito voaria nos Andes à noite, Marcelo
sabia que nenhuma acção de resgate seria lançada
senão no dia seguinte. Teríamos de passar a noite
ali. A luz do dia já esmorecia. A temperatura, que já
estava abaixo de zero quando nos despenhamos,
estava a descer rapidamente. Marcelo sabia que não
estávamos preparados para resistir a uma noite de
temperaturas abaixo de zero nos Andes. Tínhamos
apenas vestidas roupas leves de Verão - alguns
usavam blazers ou casacos de desporto, mas a
maioria estava em mangas de camisa. Não tínhamos
casacos quentes, nem cobertores, nada que nos
protegesse do frio cruel. Marcelo sabia que se não
encontrássemos uma forma de transformar a
fuselagem num abrigo decente, nenhum de nós
duraria até à manhã seguinte, mas o avião estava
tão cheio de bancos amontoados e destroços soltos
que não havia espaço livre no chão para os feridos
se deitarem, muito menos para dezenas de
sobreviventes incólumes dormirem. Percebendo
que aquele lixo teria de ser retirado da fuselagem,
Marcelo lançou-se ao trabalho. Primeiro reuniu uma
equipe de sobreviventes saudáveis e deu-lhes a
tarefa de removerem os mortos e feridos da
fuselagem. Começaram a arrastar os mortos lá para
fora, usando longas tiras de nylon que tinham
encontrado no compartimento das bagagens. Os
feridos foram levados de forma mais delicada e logo
que ficaram deitados na neve, Marcelo instruiu os
sobreviventes para limparem tanto espaço no chão
quanto conseguissem. Os trabalhadores esforçaram-
se com valentia por seguir as suas ordens, mas o
trabalho era esgotante e torturantemente lento.
Sofriam com o vento gelado e faltava-lhes o fôlego
no ar rarefeito. Quando a escuridão caiu, tinham
apenas desimpedido um pequeno espaço perto do
buraco na parte traseira da fuselagem. As seis
horas, Marcelo deu instruções aos outros para
voltarem a transportar os feridos para dentro da
fuselagem e, em seguida, os sobreviventes
saudáveis entraram e prepararam-se para a longa
noite à sua frente. Logo que todos se instalaram,
Marcelo começou a construir uma parede
improvisada para selar a enorme abertura nas
traseiras da fuselagem, onde a secção da cauda se
tinha desprendido. Com a ajuda de Roy Harley,
empilhou malas, fragmentos do avião e assentos
soltos na abertura, depois preencheu os intervalos
com neve. Estava longe de estar vedado e a
temperatura do ar dentro da fuselagem ainda era
odiosamente gelada, mas Marcelo tinha esperança
de que a parede nos escudasse da pior parte do frio
abaixo de zero. Quando terminaram de erguer a
parede, os sobreviventes acomodaram-se para
passar a noite. Quarenta e cinco passageiros e
membros da tripulação estavam a bordo do
Fairchild antes do acidente. Havia cinco mortos
confirmados no local da queda. Oito estavam
desaparecidos, embora os sobreviventes tivessem a
certeza de que um deles, Carlos Valeta, estava
morto. Zerbino vira o banco de Valeta cair do avião,
mas, inacreditavelmente, ele sobrevivera à queda.
Nos instantes mesmo após o despenhamento, um
grupo de rapazes vira-o a cambalear pela encosta
da montanha acima a algumas centenas de metros
do Fairchild. Chamaram-no e ele pareceu virar-se
na direcção do local do despenhamento, mas depois
tropeçou na neve funda e rolou pela encosta abaixo
desaparecendo de vista. Isto deixava trinta e duas
pessoas vivas no local do acidente. Lagurara ainda
estava preso no habitáculo. Alguns dos feridos, bem
como Liliana Methol, a única mulher sobrevivente
incólume, estavam juntos no abrigo do
compartimento de bagagens do Fairchild, que era a
parte mais quente do avião. O resto espremeu-se
num espaço exíguo no chão repleto de detritos da
fuselagem que não media mais de 2,50 por 3 metros
quadrados.
Devido ao facto de a noite ter caído tão
rapidamente, não tinha havido tempo para remover
todos os corpos e os sobreviventes foram forçados a
acocorar-se entre os mortos, empurrando e
acotovelando os cadáveres de amigos para arranjar
mais uns centímetros de espaço. Era uma cena
digna de pesadelo, mas o medo e o sofrimento físico
por que os sobreviventes estavam a passar
ofuscavam o seu horror.
Aquele alojamento apertado era intensamente
desconfortável e, apesar da parede de Marcelo, o
frio era insuportável. Os sobreviventes
comprimiam-se uns contra os outros para
partilharem o calor dos seus corpos. Alguns
pediram aos rapazes ao lado para lhe socarem os
braços e as pernas a fim de manter o sangue a correr
nas veias. A dada altura, Roberto percebeu que as
capas de pano dos assentos podiam ser retiradas
com facilidade e usadas como cobertores. Eram
feitas de nylon fino e ofereciam pouca protecção
contra o frio, mas Roberto entendia os riscos da
hipotermia e sabia que os sobreviventes tinham de
fazer tudo o que pudessem para conservar tanto
calor corporal quanto possível. Mesmo que os
cobertores não pudessem impedir ninguém de
sofrer com o frio, poderiam ajudar a reter suficiente
calor corporal para sobreviver até à manhã
seguinte. Deitaram-me ao lado de Susy e Panchito
na base da parede de Marcelo. Era a parte mais fria
da cabina. O vento passava através da parede
improvisada, e o chão por baixo de nós, que ficara
amolgado na queda, deixava o ar frio infiltrar-se
por baixo, mas colocaram-nos ali porque já tinham
perdido as esperanças de que vivêssemos muito
mais tempo e guardaram os sítios mais quentes
para os que tinham hipótese de sobreviver. Susy e
Panchito, que ainda estavam conscientes, devem ter
sofrido horrivelmente nessa primeira noite, mas eu
ainda estava em coma e essa agonia foi-me
poupada. De facto, o ar gelado poderá ter-me salvo
a vida, reduzindo o inchaço que teria destruído o
meu cérebro.
À medida que a noite se aprofundava, o frio
começava a pesar sobre os sobreviventes, gelando-
os até aos ossos e esmagando-lhes o ânimo. Cada
momento era uma eternidade e quando o último
vestígio de luz se apagou, era como se a escuridão
da montanha estivesse a infiltrar-se nas suas almas.
Todo o trabalho importante que tinham executado a
seguir ao acidente impedira-os de remoer os seus
medos e a actividade física tinha ajudado a mantê-
los quentes. Mas agora, jazendo impotentes nas
trevas, não havia nada que os protegesse do frio
nem, pior, do desespero. Os sobreviventes que
tinham desempenhado estoicamente as suas tarefas
durante o dia agora choravam e gemiam de dor.
Havia explosões selvagens de fúria quando um
rapaz mudava de posição naquele espaço apertado
e batia na perna ferida de outro, ou alguém sem
intenção dava um pontapé noutra pessoa a tentar
dormir. O tempo arrastava-se. A certa altura, Diego
Storm - outro estudante de medicina no nosso
grupo - viu qualquer coisa no meu rosto que o fez
pensar que eu talvez sobrevivesse, por isso
arrastou-me da parede de Marcelo para um sítio
mais quente na fuselagem, onde os outros me
mantiveram quente com os seus corpos. Alguns
conseguiram dormir nessa noite, mas a maioria
simplesmente aguentou, segundo a segundo,
respiração atrás de respiração, enquanto sons de
sofrimento e alucinação preenchiam as trevas.
Numa voz fina, Panchito implorava pateticamente
por ajuda e murmurava constantemente que estava
gelado. Susy rezava e chamava pela nossa mãe. A
señora Mariani gritava e queixava-se na sua agonia.
No habitáculo, o co-piloto delirante pedia a sua
pistola e insistia, vezes sem conta: "Passámos
Curicó, passámos Curicó..." "Foi um pesadelo,
Nando", contou-me Coche. "Foi o Inferno de Dante."
Os sobreviventes sofreram naquela primeira noite,
rodeados pelo caos. As horas eram intermináveis,
mas, por fim, a manhã chegou. Marcelo foi o
primeiro a levantar-se. Os outros, ainda enroscados
no chão da fuselagem para se manterem quentes,
sentiam relutância em se levantarem, mas Marcelo
despertou-os. A noite abalara-os profundamente,
mas ao movimentarem-se com a luz do dia a filtrar-
se pela cabina, o seu ânimo começou a melhorar.
Tinham conseguido o impossível - tinham
sobrevivido a uma noite gelada nos Andes.
Seguramente que a equipe de resgate os encontraria
hoje. Durante toda aquela noite horrível, Marcelo
garantira-lhes que sim. Agora tinham a certeza de
que em breve estariam em casa, que o pior da sua
provação já tinha terminado. Enquanto os outros se
preparavam para o dia, Canessa e Zerbino andaram
pela fuselagem a examinar os feridos. Panchito jazia
quieto e hirto. Morrera durante a noite. No
habitáculo, encontraram o corpo sem vida de
Lagurara. A señora Mariani estava imóvel, mas
quando Canessa tentou movê-la, ela voltou a gritar
em agonia e ele deixou-a em paz. Quando voltou
para examiná-la de novo, já morrera. Os médicos
fizeram o que puderam pelos sobreviventes feridos.
Limparam feridas, mudaram ligaduras e levaram os
rapazes com ossos partidos lá para fora para o
glaciar, onde podiam aliviar a dor repousando os
membros despedaçados na neve. Encontraram Susy
debaixo do corpo de Panchito. Estava consciente,
mas ainda delirava. Roberto esfregou-lhe os pés,
que estavam negros da queimadura do frio, depois
limpou-lhe o sangue dos olhos. Susy estava
suficientemente lúcida para lhe agradecer pela sua
gentileza. Enquanto os médicos faziam a sua ronda,
Marcelo e Roy Harley derrubaram parte da parede
que tinham construído na noite anterior e os
sobreviventes iniciaram o seu segundo dia na
montanha. Espiaram os céus durante o dia inteiro à
procura de sinais de resgate. À tarde ouviram um
avião passar, mas o céu estava encoberto e
perceberam que não tinham sido vistos. Com a
chegada do crepúsculo que tombava rapidamente,
os sobreviventes reuniram-se na fuselagem para
enfrentar outra longa noite. Com mais tempo para
trabalhar, Marcelo construiu uma parede melhor e
mais resistente ao vento. Os últimos cadáveres
tinham sido retirados da fuselagem e isso, junto
com a ausência dos que tinham morrido,
proporcionou mais espaço no chão para dormir,
mas mesmo assim a noite foi longa e o sofrimento
terrível. Na tarde do terceiro dia, acordei por fim do
meu coma, e, à medida que os meus sentidos
voltavam lentamente, fiquei chocado ao pensar nos
horrores que os meus amigos já tinham suportado.
O stresse do que tinham passado parecia tê-los
envelhecido anos. Os rostos estavam chupados e
pálidos da tensão e falta de sono. A exaustão física e
os efeitos do desgaste de energia causados pelo ar
rarefeito tornavam-lhes os movimentos lentos e
incertos, de forma que muitos deles vacilavam e
arrastavam-se pelo local do acidente como se
tivessem envelhecido décadas nas últimas trinta e
seis horas. Havia agora 29 sobreviventes, a maioria
rapazes entre os dezanove e vinte e um anos, mas
alguns tinham apenas dezassete. O sobrevivente
mais velho era Javier Methol de trinta e oito anos,
mas sofria tanto de náusea e fadiga provocadas pela
altitude que mal se aguentava em pé. Os dois
pilotos e a maior parte da tripulação estavam
mortos. O único membro da tripulação que
sobrevivera era Carlos Roque, o mecânico do avião,
mas o choque da queda desnorteara-o tanto que
tudo o que conseguíamos arrancar dele era um
delírio sem sentido. Nem nos conseguia dizer onde
é que o equipemento de emergência, como foguetes
de sinalização e cobertores, poderia estar. Não havia
ninguém que nos ajudasse, ninguém com qualquer
conhecimento de montanhas, ou aviões, ou técnicas
de sobrevivência. Vivíamos constantemente à beira
da histeria, mas não entrámos em pânico. Líderes
surgiram e nós reagimos como os Irmãos nos
tinham ensinado - como uma equipe. Marcelo
Perez, cuja liderança decisiva salvou muitas vidas,
merece boa parte do crédito pela nossa
sobrevivência nesses primeiros dias críticos. Desde
o primeiro instante da nossa provação, Marcelo
reagiu aos desafios desconcertantes que se nos
colocavam com a mesma combinação de coragem,
poder de decisão e antecipação com que nos
conduzira a tantas vitórias no campo de râguebi.
Compreendeu, instantaneamente, que a margem de
erro era pequena e que a montanha nos faria pagar
caro por erros estúpidos. Num jogo de râguebi, a
hesitação, a indecisão e a confusão podem custar a
vitória. Marcelo percebeu que nos Andes, esses
mesmos erros nos custariam as nossas vidas. A sua
presença forte nas primeiras horas depois do
despenhamento evitou o que poderia ter sido
pânico total. A operação de salvamento que
rapidamente organizou poupou as vidas de muitas
pessoas que foram arrancadas aos assentos
emaranhados e, sem a parede protectora que
construiu na primeira noite, estaríamos todos
mortos por congelamento na manhã seguinte. A
liderança de Marcelo foi heróica. À noite dormia na
parte mais fria da fuselagem e pedia sempre a todos
os outros rapazes que não estavam feridos para
fazer o mesmo. Obrigou-nos a manter-nos
ocupados, quando muitos queriam simplesmente
enroscar-se na fuselagem e aguardar que fôssemos
salvos. Acima de tudo, levantou o nosso ânimo
convencendo-nos de que o nosso sofrimento em
breve estaria terminado. Estava convencido de que
a equipe de resgate estava a caminho e teve força
suficiente para convencer os outros de que isso era
verdade. No entanto, compreendia que sobreviver
nos Andes, mesmo por poucos dias, testaria os
nossos limites e assumiu a responsabilidade de
tomar as medidas que nos dessem as melhores
hipóteses de sobreviver durante esse tempo. Uma
das primeiras coisas que fez foi reunir tudo o que
fosse comestível e pudesse ser encontrado nas
bagagens ou espalhado pela cabina. Não havia
muito -algumas tabletes de chocolate e outros
doces, algumas nozes e bolachas, alguns frutos
secos, vários pequenos frascos de compota, três
garrafas de vinho, um pouco de uísque e algumas
garrafas de licor. Apesar da sua convicção de que a
equipe de resgate estava apenas a horas de
distância, algum instinto natural de sobrevivência
aconselhou-o a inclinar-se para o lado da precaução
e, no segundo dia da nossa provação, Marcelo
começou a racionar cuidadosamente a comida -cada
refeição não era mais do que um pequeno quadrado
de chocolate ou um pedacinho de compota,
engolidos com um golo de vinho servido na tampa
de uma lata de aerossol. Não era o suficiente para
matar a fome de ninguém, mas, como ritual, dava-
nos força. Cada vez que nos juntávamos para
receber as nossas magras rações, estávamos a fazer
uma declaração, uns para os outros e para nós
mesmos, que faríamos tudo o que pudéssemos para
sobreviver.
Naqueles primeiros dias todos acreditámos que a
equipe de resgate era a nossa única hipótese de
sobrevivência e agarrávamo-nos a essa esperança
com um zelo quase religioso. Tínhamos de acreditar
nisso. As alternativas eram simplesmente
demasiado horríveis. Marcelo certificava-se de que
a nossa fé no salvamento se mantinha forte. Mesmo
quando os dias passaram e não chegou nenhuma
equipe de resgate, não nos deixava duvidar do facto
de que todos seríamos salvos. Se ele
verdadeiramente acreditava nisto, ou se era apenas
um estratagema corajoso para evitar que
desanimássemos, não sei dizer. Professava essa
crença com tanta firmeza que nunca duvidei dele,
mas não compreendi na altura o terrível fardo que
carregava e quão profundamente se culpava por
nos ter levado a todos nesta viagem condenada. Na
tarde do quarto dia, um pequeno avião a hélice
sobrevoou o local do acidente e vários
sobreviventes que o viram tinham a certeza de que
inclinara as asas. Isso foi considerado como um
sinal de que tínhamos sido avistados e, logo uma
sensação de alívio e júbilo se espalhou pelo grupo.
Esperámos enquanto as longas sombras do final da
tarde se estendiam pelas montanhas, mas, ao
anoitecer, nenhuma equipe tinha chegado. Marcelo
insistiu que os pilotos do avião mandariam ajuda
em breve, mas outros, cansados do stresse de
esperar, estavam a começar a admitir as suas
dúvidas.
- Por que é que demoram tanto tempo a encontrar-
nos? - perguntou alguém.
Marcelo respondeu a esta pergunta da mesma
forma que sempre fazia: talvez os helicópteros não
possam voar neste ar da montanha, dizia, por isso a
equipe de salvamento poderá vir a pé e isso leva
tempo.
- Mas se sabem onde estamos, por que é que não
nos sobrevoaram para largar provisões?
Impossível, dizia Marcelo. Qualquer coisa atirada
de um avião, afundar-se-ia simplesmente na neve e
perder-se-ia. Os pilotos sabiam isso. A maior parte
dos rapazes aceitava a lógica das explicações de
Marcelo. Também confiavam plenamente na
bondade de Deus. Deus salvou-nos da morte na
queda - diziam. Porque faria isso para depois
deixar-nos morrer aqui? Eu ouvia estas discussões
enquanto passava as horas a cuidar de Susy. Queria
tanto confiar em Deus como eles. Mas Deus já
levara a minha mãe e Panchito e tantos outros.
Porque nos salvaria a nós e não a eles? Da mesma
maneira, queria acreditar que o resgate vinha a
caminho, mas não conseguia afastar a sensação
torturante de que estávamos por nossa conta.
Deitado ao lado de Susy, sentia uma impotência
terrível e uma sensação de urgência. Sabia que ela
estava a morrer e que a única esperança era levá-la
depressa para um hospital. Cada momento perdido
era uma agonia para mim e em todos os segundos
que passava acordado aguçava o ouvido para o som
dos nossos salvadores a aproximarem-se. Nunca
parei de rezar pela sua chegada, ou pela intercessão
de Deus, mas ao mesmo tempo a voz fria que me
instara a poupar as minhas lágrimas estava sempre
a sussurrar no fundo da minha mente: Ninguém
nos vai encontrar. Vamos morrer aqui. Precisamos
de um plano. Temos de nos salvar a nós próprios.
Desde os meus primeiros momentos de consciência,
fui importunado pela séria apreensão de que
estávamos por nossa conta ali e alarmava-me que os
outros depositassem tanta confiança na esperança
de que seríamos salvos. Mas em breve percebi que
havia outros que pensavam como eu. Os "realistas",
como pensava neles, incluíam Canessa e Zerbino,
Fito Strauch, um antigo membro do Old Christians
que viera na viagem a convite do primo Eduardo, e
Carlitos Paez, cujo pai, Carlos Paez-Villaro, era um
famoso pintor e aventureiro uruguaio, amigo de
Picasso. Durante dias, este grupo andara a discutir
planos para escalar a montanha acima de nós e ver
o que estava do outro lado. Tínhamos razões para
acreditar que era possível escaparmos. Todos nós
sabíamos as palavras que o nosso co-piloto
pronunciara gemendo quando estava moribundo:
Passámos Curicó, passámos Curicó... Nas primeiras
horas após o despenhamento, alguém descobrira
conjuntos de cartas de voo no habitáculo. Arturo
Nogueira, cujas pernas partidas o confinavam à
fuselagem, passou horas a estudar os mapas
complexos, à procura da cidade de Curicó.
Finalmente descobriu-a, situada na fronteira
chilena, bem para lá das encostas ocidentais dos
Andes. Nenhum de nós era perito a ler aqueles
mapas, mas parecia claro que se, de facto, tínhamos
voado até Curicó, não havia dúvida de que
tínhamos cruzado toda a extensão da cordilheira.
Isso significava que o local da queda devia ficar
algures no contraforte ocidental dos Andes. Fomos
encorajados a acreditar nesta nossa convicção ao ler
o altímetro do Fairchild, que mostrava que a nossa
altitude era de 2000 metros. Se estivéssemos
embrenhados nas profundezas dos Andes, a nossa
altitude seria muito mais elevada. Certamente que
estávamos no contraforte e as cristas altas a
ocidente eram os últimos picos elevados da
cordilheira dos Andes. Cada vez tínhamos mais a
certeza de que para lá daquelas cimeiras a ocidente
ficavam os campos verdes do Chile. Encontraríamos
aí uma aldeia, ou pelo menos a cabana de um
pastor. Haveria alguém para nos ajudar. Seríamos
todos salvos. Até então, sentíramo-nos como
vítimas de um naufrágio, perdidos num oceano sem
qualquer ideia de onde poderia ficar o litoral mais
próximo. Agora, tínhamos uma pequena sensação
de controlo. Sabíamos um facto pelo menos: O Chile
fica a ocidente. Esta frase rapidamente se tornou um
grito de guerra para nós e utilizámo-la para
fortalecer as nossas esperanças durante toda aquela
provação. Na manhã de 17 de Outubro, o nosso
quinto dia na montanha, Carlitos, Roberto, Fito e
um sobrevivente de vinte e quatro anos chamado
Numa Turcatti decidiram que chegara a altura de
escalar a montanha. Numa não era do Old
Christians - viera na viagem como convidado dos
seus amigos Pancho Delgado e Gaston Costemalle -,
mas estava tão bem preparado fisicamente como
qualquer de nós e sobrevivera ao acidente sem
praticamente um arranhão. Eu ainda não o conhecia
bem, mas, nos poucos dias difíceis que tínhamos
passado juntos, impressionara-me, e aos outros,
com a sua serenidade e força calma. Numa nunca
entrou em pânico ou perdeu as estribeiras. Nunca
caiu no desespero ou autocomiseração. Havia algo
de nobre e altruísta em Numa. Todos o
constatavam. Cuidava dos mais fracos e confortava
os que choravam ou tinham medo. Parecia
preocupar-se com o bem-estar dos outros tanto
quanto se preocupava com o seu, e todos
retirávamos força do seu exemplo. Desde o
primeiro instante, soube que se conseguíssemos
escapar destas montanhas, Numa teria alguma coisa
a ver com isso e não fiquei nem um pouco
surpreendido quando ele se ofereceu como
voluntário para a escalada. E não me surpreendeu
que Carlitos e Roberto também se tivessem
oferecido. Ambos tinham escapado ilesos da queda
e os dois, cada um à sua maneira, tinham-se
tornado personalidades muito proeminentes no
nosso grupo: Roberto com a sua inteligência,
conhecimentos médicos e natureza, por vezes,
beligerante; e Carlitos com o seu optimismo e
temperamento corajoso. Fito, um antigo jogador do
Old Christians, era um rapaz calado, sério. Tinha
sofrido uma concussão leve no acidente, mas estava
completamente recuperado e foi uma boa coisa para
nós, pois Fito acabaria por demonstrar ser um dos
sobreviventes mais sensatos e mais expeditos.
Pouco depois da queda, quando lutávamos para
andar na neve funda e macia que rodeava a
fuselagem, Fito percebeu que, se atássemos as
almofadas dos assentos do Fairchild aos nossos pés
com os cintos de segurança ou pedaços de cabo,
serviriam como sapatos de neve improvisados e
permitir-nos-iam andar sem nos afundarmos na
neve. Os quatro alpinistas tinham os sapatos de
neve de Fito amarrados às suas botas quando
começaram a atravessar os montes fundos de neve
em direcção à montanha. A sua esperança era
alcançar o cume e ver o que ficava do outro lado.
Pelo caminho procurariam a secção perdida da
cauda do Fairchild, que todos esperávamos
estivesse cheia de comida e roupas quentes. Até
imaginámos que pudesse haver outros
sobreviventes a viver lá dentro. E Carlos Roque, o
mecânico de voo do Fairchild, que lentamente
recuperara o senso, recordou-se de que as baterias
para o rádio do Fairchild estavam guardadas num
compartimento da cauda. Se as descobríssemos,
disse, era possível que conseguíssemos arranjar o
rádio e emitir um pedido de socorro. O tempo
estava bom quando eles partiram. Desejei-lhes boa
sorte e depois ocupei-me com a minha irmã. As
sombras da tarde já tinham caído sobre o Fairchild
quando os alpinistas regressaram. Ouvi agitação na
fuselagem quando eles chegaram e ergui os olhos
quando entraram a cambalear e tombaram no chão.
Estavam fisicamente exaustos e sem fôlego. Os
outros rodearam-nos rapidamente, matraqueando-
os com perguntas, ansiosos por notícias
promissoras. Cheguei-me a Numa e perguntei-lhe
como era. Ele abanou a cabeça e franziu a testa.
- Foi muito difícil, Nando - disse, tentando
recuperar o fôlego. É íngreme. Muito mais íngreme
do que parece daqui.
- Não há ar suficiente - acrescentou Canessa. Não se
consegue respirar. Só se consegue andar muito
lentamente.
Numa assentiu com a cabeça.
- A neve é demasiado funda, cada passo é uma
agonia. E há fendas debaixo da neve. Fito quase
caiu numa.
- Viram alguma coisa para ocidente? - perguntei.
Mal chegámos a metade da encosta - disse Numa.
Não conseguimos ver nada. As montanhas
bloqueiam a visão. São muito mais altas do que
parecem. Virei-me para Canessa.
- Roberto - disse -, o que é que achas? Se tentarmos
de novo, conseguimos escalá-la?
- Não sei, pá - sussurrou ele -, não sei... Não
conseguimos escalar aquela montanha - murmurou
Numa. Temos de descobrir outro caminho, se é que
há algum.
Nessa noite, a tristeza pesou na atmosfera da
fuselagem. Os quatro rapazes que tinham escalado
a montanha eram os mais fortes e mais saudáveis e
a montanha derrotara-os facilmente. Mas não aceitei
essa derrota. Talvez, se estivesse num estado de
espírito normal, eu tivesse visto nos seus rostos e
nos olhares sombrios que trocaram, a negra
revelação que a escalada lhes mostrara: que não
conseguiríamos escapar deste lugar, que já
estávamos todos mortos. Em vez disso, disse
comigo mesmo que eles eram todos moles, que
tinham medo, que tinham desistido com demasiada
facilidade. A montanha não me parecia tão
traiçoeira. Tinha a certeza de que se escolhêssemos
o caminho certo e a altura certa e se simplesmente
recusássemos render-nos ao frio e à exaustão,
conseguiríamos certamente alcançar o cume.
Agarrei-me a esta convicção com a mesma fé cega
que fazia os outros continuarem a rezar pelo
resgate. Que escolha tinha? Para mim era
assustadoramente simples: a vida não é possível
aqui. Tenho de ir para um sítio onde exista vida.
Tenho de ir para ocidente, para o Chile. A minha
cabeça estava repleta de tantas dúvidas e confusão
que me agarrei desesperadamente à única coisa que
sabia ser verdadeira: O Chile fica a ocidente. O
Chile fica a ocidente. Deixei aquelas palavras
ecoarem na minha mente como um mantra. Sabia
que um dia teria de escalar a montanha. Nos
primeiros dias da nossa provação, raramente saía
de perto da minha irmã. Passava todo o tempo com
ela, esfregando-lhe os pés enregelados, dando-lhe
goles de água que derretera, alimentando-a com os
pequenos quadrados de chocolate que Marcelo
distribuía. Tentava sobretudo confortá-la e mantê-la
quente. Nunca tinha a certeza se ela estava ciente da
minha presença. Estava sempre semiconsciente.
Muitas vezes gemia. O sobrolho estava
constantemente franzido com preocupação e
confusão e havia sempre uma tristeza sem
esperança nos seus olhos. Por vezes rezava, ou
cantava uma canção de embalar. Chamava muitas
vezes pela nossa mãe. Eu acalmava-a e sussurrava-
lhe ao ouvido. Cada momento com ela era precioso,
mesmo naquele lugar horrível, e a suavidade da sua
respiração morna na minha face representava um
grande conforto para mim. No final da tarde do
oitavo dia, estava deitado com os meus braços à
volta de Susy quando, de repente, senti que algo
nela mudara. O olhar preocupado desapareceu-lhe
do rosto. O corpo ficou menos tenso. A respiração
tornou-se mais cava e lenta e senti a vida dela a
esvair-se dos meus braços, sem que pudesse fazer
nada para o impedir. Depois a respiração parou e
ela ficou imóvel.
- Susy? - gritei. Oh, meu Deus, Susy, por favor, não!
Ajoelhei-me de um salto, virei-a de costas e comecei
a fazer-lhe respiração boca a boca. Eu nem sequer
tinha a certeza de como se fazia, mas estava
desesperado para salvá-la.
- Vamos lá, Susy, por favor - gritei. Não me deixes!
Trabalhei em cima dela até cair, exausto, no chão.
Roberto substituiu-me, sem sucesso. Depois Carlitos
tentou, mas não adiantou nada. Os outros cercaram-
me em silêncio. Roberto veio para junto de mim.
- Sinto muito, Nando, ela partiu - disse. Fica com ela
esta noite. Enterrá-la-emos de manhã.
Assenti e agarrei a minha irmã nos braços. Agora
podia abraçá-la, por fim, com toda a minha força,
sem receio de a magoar. Ainda estava quente. O
cabelo era macio no meu rosto. Mas quando
comprimi a minha face contra os seus lábios, já não
senti a sua respiração morna na minha pele. A
minha Susy partira. Tentei memorizar o que sentia
ao abraçá-la, a sensação do seu corpo, o cheiro dos
seus cabelos. Enquanto pensava em tudo o que
estava a perder, a dor cresceu dentro de mim e o
meu corpo foi sacudido por grandes soluços
sufocantes. Porém, no instante em que a tristeza
estava prestes a esmagar-me, ouvi, mais uma vez,
aquela voz fria, incorporai, murmurar no meu
ouvido: As lágrimas desperdiçam sal. Fiquei
acordado com ela toda a noite, o meu peito a
sufocar com os soluços, mas não me dei ao luxo de
derramar lágrimas. Na manhã seguinte atámos
algumas tiras de nylon das bagagens à volta do
corpo de Susy e arrastámo-la da fuselagem para a
neve. Vi-os puxarem-na para a sua sepultura.
Parecia cruel tratá-la daquela maneira, mas os
outros tinham aprendido por experiência que os
cadáveres são pesados e moles e muito difíceis de
manejar e que essa era a forma mais eficaz de os
mover, por isso aceitei o facto como normal.
Arrastámos Susy para o sítio na neve, à esquerda da
fuselagem, onde estavam sepultados os outros
mortos. Os cadáveres congelados estavam
claramente visíveis, os rostos tapados apenas por
alguns centímetros de gelo e neve. Parei por cima
de uma das sepulturas e reconheci facilmente a
forma vaga do vestido azul da minha mãe. Cavei
uma sepultura pouco funda para Susy ao lado da
minha mãe. Deitei Susy a seu lado e penteei-lhe os
cabelos para trás. Depois cobri-a lentamente com
mãos-cheias de neve cristalizada, deixando o rosto
descoberto até ao último momento. Ela parecia estar
em paz, como se estivesse a dormir debaixo de um
cobertor espesso de lã. Olhei para ela uma última
vez, a minha linha Susy, e depois atirei
delicadamente mãos-cheias de neve para cima das
suas faces até o seu rosto desaparecer sob os cristais
cintilantes. Depois de terminarmos, os outros
voltaram para dentro da fuselagem. Eu virei-me e
olhei para cima, para a encosta do glaciar, para as
cristas das montanhas que bloqueavam o nosso
caminho para ocidente. Ainda conseguia ver o largo
trilho que o Fairchild cortara na neve quando
esquiara pela encosta abaixo depois de embater na
crista. Segui aquele trilho pela montanha acima até
ao local exacto em que tínhamos caído do céu para a
loucura que era agora a única realidade que
conhecíamos. Como é que isto acontecera? Éramos
rapazes, a caminho de um jogo! Fui subitamente
invadido por uma sensação nauseante de vazio.
Desde os primeiros momentos na montanha,
dedicara todo o meu tempo e energia a tratar da
minha irmã. Confortá-la dera-me um propósito e
estabilidade. Preenchera as minhas horas e
distraíra-me da minha própria dor e medo. Agora
estava tão terrivelmente sozinho, sem nada que me
distanciasse das horríveis circunstâncias que me
rodeavam. A minha mãe morrera. A minha irmã
morrera. Os meus melhores amigos tinham caído
do avião durante o voo, ou estavam enterrados ali,
sob a neve. Estávamos feridos, famintos e
enregelados. Passara-se mais de uma semana e a
equipe de resgate ainda não nos encontrara.
Senti a força bruta das montanhas que me
rodeavam, vi a completa ausência de calor,
misericórdia ou ternura da paisagem. Ao
compreender, com uma nova clareza contundente,
como estávamos longe de casa, mergulhei no
desespero e, pela primeira vez, tive a certeza de que
iria morrer. De facto, já estava morto. A minha vida
fora-me roubada. O futuro com o qual sonhara não
se concretizaria. A mulher com que teria casado
nunca me conheceria. Os meus filhos não
nasceriam. Nunca mais desfrutaria o olhar amoroso
da minha avó, ou sentiria o abraço caloroso da
minha irmã Graciela. E nunca regressaria para junto
do meu pai. Na minha mente, vi-o de novo, no seu
sofrimento, e senti uma ânsia tão violenta de estar
com ele que quase me fez cair de joelhos. A raiva
impotente que me subiu à garganta sufocou-me e
senti-me tão abatido e encurralado que, por um
momento, pensei que fosse enlouquecer. Então vi o
meu pai naquele rio na Argentina, esgotado,
derrotado, à beira de se render, e recordei-me das
suas palavras de desafio: Decidi que não iria
desistir. Decidi que iria sofrer um pouco mais. Era a
minha história preferida, mas percebi agora que era
mais do que isso: era um sinal do meu pai, uma
dádiva de sabedoria e força. Por um instante, senti-
o ali comigo. Fui invadido por uma calma estranha.
Olhei para as grandes montanhas a ocidente e
imaginei um caminho que passava por cima delas e
me levava para casa. Senti o meu amor pelo meu
pai a puxar por mim como uma corda salva-vidas,
atraindo-me para aquelas encostas despidas.
Fixando o ocidente, fiz ao meu pai uma jura
silenciosa. Lutarei. Voltarei para casa. Não deixarei
o elo que nos une partir-se. Prometo-te,não morrerei
aqui! Não morrerei aqui!
4 RESPIRA MAIS UMA VEZ
Nas horas que se seguiram ao enterro de Susy,
fiquei sozinho na fuselagem escura, recostado
contra a parede inclinada do Fairchild com o meu
crânio partido apoiado nas mãos. Emoções
poderosas atormentavam-me o coração -descrença,
indignação, tristeza e medo -e depois, finalmente,
uma sensação de aceitação exausta escorreu sobre
mim como um suspiro. Estava demasiado
deprimido e confundido para percebê-lo na altura,
mas parecia que a minha mente estava a passar
pelos estádios do luto a toda a velocidade. Na
minha antiga vida, a minha vida normal em
Montevideu, a perda da minha irmã mais nova teria
feito a minha vida parar e ter-me-ia deixado
emocionalmente prostrado durante meses. Mas já
nada era normal e qualquer coisa de primitivo em
mim entendeu que neste lugar impiedoso não me
podia dar ao luxo do luto. Mais uma vez ouvi
aquela voz fria e firme na minha cabeça erguer-se
acima do caos emocional. Olha em frente, dizia.
Poupa as tuas forças para as coisas que podes
mudar. Se te agarrares ao passado, morrerás. Eu
não queria largar a minha tristeza. Sentia a falta de
Susy ali comigo na fuselagem, onde podia confortá-
la e cuidar dela e a minha tristeza era agora a única
coisa que me ligava a ela, mas parecia que a minha
opinião não contava para nada. A medida que a
longa noite passava e eu me esforçava por lutar
contra o frio, a intensidade das minhas emoções
começou a desvanecer-se e os meus sentimentos
pela minha irmã simplesmente se dissolveram, da
mesma forma que um sonho se dissolve quando
acordamos. De manhã tudo o que sentia era um
vazio amargo e sombrio enquanto a minha amada
Susy, tal como a minha mãe e Panchito, flutuava
para o meu passado, um passado que já começava a
parecer distante e irreal. As montanhas estavam a
obrigar-me a mudar. A minha mente estava a ficar
mais fria e mais simples, à medida que se ajustava à
nova realidade. Comecei a ver a vida como esta
deve parecer a um animal que luta para sobreviver -
como um simples jogo de ganhar ou perder, vida ou
morte, risco e oportunidade. Os instintos básicos
estavam a vir ao de cima, suprimindo emoções
complexas e estreitando o foco da minha mente até
que a minha existência inteira parecia girar à volta
dos dois novos princípios organizadores da minha
vida: a assustadora noção de que ia morrer e a
necessidade intensa de estar com o meu pai. Nos
dias que se seguiram à morte de Susy, o meu amor
pelo meu pai foi a única coisa que me impediu de
enlouquecer e, muitas vezes, para me acalmar,
reafirmava a promessa que fizera na sepultura de
Susy: voltar para ele; mostrar-lhe que tinha
sobrevivido e mitigar-lhe um pouco o sofrimento. O
meu coração avultava de desejo de estar com ele e
nem um momento se passou em que não o
imaginasse na sua angústia. Quem o estava a
confortar? Como é que ele lutava contra o
desespero? Imaginei-o a vaguear à noite de um
quarto vazio para outro, ou a revolver-se na cama
até de madrugada. Como devia ser torturante para
ele sentir-se tão impotente. Como devia sentir-se
traído - ter passado uma vida inteira a proteger e
prover a família que adorava, e depois ver essa
família ser-lhe arrancada. Era o homem mais forte
que eu conhecia, mas seria suficientemente forte
para aguentar este tipo de perda? Conseguiria não
enlouquecer? Perderia toda a esperança e a vontade
de viver? Por vezes, a minha imaginação excedia-se
e eu preocupava-me que ele pudesse magoar-se,
escolhendo acabar com o seu sofrimento e juntar-se
aos seus entes queridos na morte. Pensar no meu
pai desta forma desencadeava sempre em mim uma
explosão de amor tão radiante e urgente que me
cortava a respiração. Não aguentava pensar que ele
sofresse nem mais um segundo. No meu desespero,
a minha raiva silenciosa ia para os grandes picos
que assomavam por cima do local do
despenhamento, bloqueando o caminho para o meu
pai e encurralando-me neste local perverso onde eu
não podia fazer nada para aliviar a sua dor. Esta
frustração claustrofóbica atormentou-me até que,
como um homem enterrado vivo, comecei a entrar
em pânico. Cada momento que passava era
preenchido por um medo visceral, como se a terra
debaixo dos meus pés fosse uma bomba relógio que
podia explodir a qualquer segundo; como se
estivesse vendado diante de um pelotão de
fuzilamento, à espera de sentir as balas a
trespassarem-me o peito. Esta terrível sensação de
vulnerabilidade -a certeza de que a morte estava
apenas a pouca distância - nunca se atenuou.
Preenchia todos os momentos do meu tempo na
montanha. Tornou-se o pano de fundo para todos
os pensamentos e conversas. E produziu em mim
uma ânsia maníaca de fugir. Lutei contra este medo
da melhor maneira que pude, tentando acalmar-me
e pensar com clareza, mas houve momentos em que
o instinto animal ameaçou sobrepor-se à razão e foi
preciso toda a minha força para me impedir de
disparar às cegas em direcção à cordilheira. Ao
princípio, a única forma de aquietar estes medos era
imaginar o momento em que a equipe de resgate
chegaria para nos salvar. Nos primeiros dias
daquele suplício, foi a esperança a que todos nos
agarrámos. Marcelo alimentava estas esperanças
com as suas convicções, mas à medida que os dias
passavam e a ausência da equipe de resgate se
tornava mais difícil de explicar, Marcelo, um
católico profundamente devoto, começou a apoiar-
se cada vez mais nas crenças que sempre tinham
moldado a sua vida.
"Deus ama-nos", dizia. "Não nos pediria para
aguentar tamanho sofrimento para depois nos virar
as costas e permitir que tivéssemos uma morte sem
sentido." Não nos cabia perguntar por que é que
Deus nos estava a testar de forma tão dura, insistia
Marcelo. O nosso dever - para com Deus, as nossas
famílias e uns com os outros - era sobreviver
momento a momento, aceitar os nossos medos e
sofrimento e estar vivos quando a equipe de resgate
finalmente nos encontrasse. As palavras de Marcelo
surtiam um efeito poderoso nos outros e a maioria
abraçava os seus argumentos sem se questionar. Eu
queria muito acreditar em Marcelo, mas, à medida
que o tempo passava, não conseguia silenciar as
dúvidas que cresciam na minha mente. Tínhamos
sempre assumido que as autoridades sabiam
aproximadamente onde o nosso avião caíra.
Dizíamos a nós mesmos que deviam saber qual era
a nossa rota através das montanhas e, certamente,
os pilotos tinham-se mantido em contacto via rádio
durante o voo. Seria simplesmente uma questão de
procurar ao longo da rota de voo, começando no
ponto da última transmissão de rádio. Seria assim
tão difícil detectar os destroços de um grande avião
à vista de todos no meio de um glaciar?
Seguramente, pensei, uma busca intensiva já nos
teria descoberto e o facto de a equipe de resgate não
ter aparecido forçou-me a considerar duas sombrias
conclusões: ou tinha uma ideia errada do local onde
tínhamos caído e andava à procura noutra faixa da
cordilheira, ou não fazia a menor ideia de onde
poderíamos estar naquela extensão de montanhas e
nenhuma maneira eficaz de estreitar as buscas.
Recordei-me de como as montanhas eram agrestes
quando sobrevoámos o desfiladeiro El Planchón,
todas aquelas ravinas de paredes íngremes
precipitando-se milhares de metros pelas encostas
de tantas cristas sinuosas e negras, nada além de
mais encostas e cristas até onde a vista alcançava.
Estes pensamentos obrigaram-me a chegar a uma
terrível conclusão: Ainda não nos encontraram
porque não jazem ideia de onde estamos, e se não
sabem nem de forma aproximada onde estamos,
nunca nos encontrarão. Ao princípio, guardei estes
pensamentos para mim, na ideia de que não queria
destruir as esperanças dos outros. Mas talvez os
meus motivos não fossem tão altruístas. Talvez não
quisesse exprimir os meus sentimentos em voz alta
porque receava que isso os tornasse realidade.
Quando a esperança se perde, a mente protege-nos
através da negação, e a minha negação protegia-me
de enfrentar o que sabia. Apesar das minhas
dúvidas em relação à probabilidade do resgate, eu
queria o que os outros queriam - que alguém viesse
e me tirasse daquele inferno, me levasse para casa e
me devolvesse a minha vida. Por mais que os meus
instintos me dissessem para abandonar este tipo de
convicção falsa, eu não podia deixar fechar a porta
sobre a possibilidade de um milagre. Ignorando o
desespero da nossa difícil situação, o meu coração
continuava a ter esperança com a mesma
naturalidade cora que continuava a bater. Por isso
rezava todas as noites com os outros, implorando a
Deus que apressasse a vinda da equipe de resgate.
Punha-me à escuta do zumbido vibratório dos
helicópteros a aproximar-se. Assentia, concordando,
quando Marcelo nos instava a todos a mantermos a
fé. Mesmo assim, as minhas dúvidas nunca se
aquietavam e em todos os momentos de calma a
minha cabeça flutuava para ocidente, para as cristas
maciças que nos encurralavam e uma torrente de
perguntas assustadoras irrompia no meu cérebro. E
se tivermos de escalar sozinhos as montanhas para
sairmos daqui?, pensava. Terei forças para
sobreviver a uma viagem através desta imensidão
árida? As encostas serão muito íngremes? E o frio à
noite? O solo será estável? Que caminho deverei
seguir? O que acontecerá se cair? E sempre: O que
existirá para ocidente, para lá dessas cristas negras?
Lá bem no íntimo, sempre soube que teríamos de
nos salvar sozinhos. Por fim, comecei a falar desta
minha convicção aos outros e, quanto mais falava
dela, mais o pensamento de escalar a montanha me
obcecava. Examinei a ideia de todos os ângulos
possíveis. Comecei a ensaiar a minha fuga de forma
tão vívida e com tanta frequência que os meus
devaneios logo se tornaram tão reais como um filme
a rodar na minha cabeça. Via-me a escalar as
encostas brancas em direcção aos cumes negros,
visualizando cada frágil apoio para os dedos na
neve, testando a estabilidade de cada rocha antes de
a agarrar, estudando cada colocação cuidadosa dos
meus pés. Seria açoitado por ventos gelados,
ofegando no ar rarefeito, lutando por entre neve até
à cintura. No meu sonho acordado, cada passo da
ascensão é uma agonia, mas não paro, vou em
frente até que, por fim, alcanço o cume e olho para
ocidente. Diante de mim espraia-se um vale largo,
estendendo-se em direcção ao horizonte. A curta
distância, vejo os campos cobertos de neve darem
lugar a uma bela manta de retalhos de castanhos e
verdes -os campos cultivados que atapetam o chão
do vale. Os campos são atravessados por finas
linhas cinzentas e eu sei que essas linhas são
estradas. Cambaleio pela parte ocidental da
montanha abaixo e marcho durante horas sobre
terreno pedregoso até que chego a uma das
estradas, depois ando para ocidente na superfície
plana do asfalto. Em breve ouço o ressoar de um
camião que se aproxima. Faço sinal ao espantado
condutor. Ele está desconfiado com um estranho tão
desesperado a pedir boleia no meio do nada. Tenho
de o fazer entender a situação e sei exactamente o
que dizer: Vengo de un avión que cayó en las
montañas... Venho de um avião que caiu nas
montanhas... Ele compreende, e deixa-me subir para
a cabina. Viajamos rumo ao ocidente através dos
verdes campos agrícolas até à cidade mais próxima,
onde encontro um telefone. Ligo o número do meu
pai e passados poucos momentos ouço os seus
soluços atónitos quando reconhece a minha voz.
Um dia ou dois depois estamos juntos e vejo a
expressão nos seus olhos - uma pequena alegria
agora, brilhando através de toda a tristeza. Não diz
nada, só o meu nome. Sinto-o desfalecer contra mim
quando o aperto nos meus braços... Como um
mantra, como um mito pessoal, este sonho em breve
se tornou a minha pedra de toque, o meu salva-
vidas, e alimentei-o e poli-o até cintilar na minha
cabeça como uma jóia. Muitos pensaram que eu
estava louco, que escalar a cordilheira era
impossível, mas, à medida que a fantasia da fuga se
tornava mais lúcida, a promessa que fiz ao meu pai
assumiu a força de um chamamento sagrado. Deu
um foco à minha mente, transformou os meus
medos em motivação e trouxe-me um sentido de
direcção e propósito nobre que me tirou do poço
negro da impotência no qual eu elanguescera desde
o acidente. Ainda rezava com Marcelo e com os
outros, ainda suplicava a Deus por um milagre,
ainda aguçava os ouvidos todas as noites para
tentar ouvir o som distante de helicópteros abrindo
caminho através da cordilheira. Mas quando
nenhuma destas medidas me acalmava, quando os
meus medos se tornavam tão violentos que pensava
que me enlouqueceriam, fechava os olhos e pensava
no meu pai. Renovava a minha promessa de voltar
para junto dele e, na minha cabeça, começava a
escalar a montanha. Após a morte de Susy, restaram
27 sobreviventes. A maioria tinha sofrido contusões
e lacerações, mas, considerando as forças
desencadeadas pelo acidente e o facto de termos
sofrido três fortes impactos a alta velocidade, era
um milagre que tão poucos tivessem ferimentos
graves. Alguns tinham escapado quase sem um
arranhão. Roberto e Gustavo tinham sofrido apenas
ferimentos leves. Outros, incluindo Liliana, Javier,
Pedro Algorta, Moncho Sabella, Daniel Shaw,
Bobby François e Juan Carlos Mendendez - um ex-
aluno do Stella Maris e amigo de Pancho Delgado -
tinham também sobrevivido com apenas cortes e
arranhões. Os que tinham tido problemas mais
graves, como Delgado e Alvaro Mangino, que
partira as pernas na queda, estavam agora a
recuperar e já conseguiam coxear pelo local do
acidente. António Vizintin,que quase sangrara até à
morte por causa de um braço lacerado, estava a
recuperar rapidamente as suas forças. Fito Strauch e
o primo Eduardo tinham perdido os sentidos no
impacto final, mas tinham recuperado com rapidez.
Apenas três sobreviventes, efectivamente, tinham
sofrido ferimentos realmente graves. O ferimento
na minha cabeça foi uma das piores lesões sofridas
no acidente, mas os fragmentos despedaçados do
meu crânio estavam a começar a ligar-se, o que
deixava apenas duas pessoas com ferimentos
realmente graves: Arturo Nogueira, que sofrera
múltiplas fracturas em ambas as pernas, e Rafael
Echavarren, cujo músculo da barriga da perna fora
arrancado do osso. Os dois rapazes tinham dores
fortes e constantes e vê-los naquela agonia foi um
dos maiores horrores que tivemos de enfrentar.
Fizemos o possível por eles. Roberto arranjou camas
para eles, simples redes de dormir, feitas de pilares
de alumínio e correias de nylon resistentes que
tínhamos salvo do compartimento das bagagens.
Suspensos nas redes, Rafael e Arturo eram
poupados à agonia de dormir com o resto dos
sobreviventes naquele emaranhado agitado de
humanidade no chão da fuselagem, onde a menor
colisão ou solavanco lhe causava dores
excruciantes. Nas camas baloiçantes, já não
partilhavam o calor dos nossos corpos enroscados e
sofriam mais intensamente com o frio. Mas para
eles o frio, por mais cruel, era um sofrimento menor
do que a dor. Rafael não era um membro do Old
Christians, mas tinha amigos na equipe que o
haviam convidado para a viagem. Não o conhecia
antes do voo, mas reparara nele no avião. Estava a
rir com prazer com os seus amigos e pareceu-me
um tipo amigável e franco. Gostei imediatamente
dele e gostava ainda mais depois de ver como
aguentava o seu sofrimento. Roberto mantinha-se
atento aos ferimentos de Rafael e tratava-os o
melhor que podia, mas os nossos suprimentos
médicos eram patéticos e não havia muito que
pudesse fazer. Todos os dias, mudava as ligaduras
ensanguentadas e lavava as feridas com uma água-
de-colónia que encontrara, na esperança de que o
conteúdo em álcool evitasse a infecção. Mas os
ferimentos de Rafael estavam constantemente a
deitar pus e a pele da perna já estava a ficar preta.
Gustavo e Roberto suspeitavam de gangrena, mas
Rafael nunca se deixou afundar na
autocomiseração. Pelo contrário, mantinha a sua
coragem e bom humor, mesmo com o veneno a
correr pelo seu organismo e a carne da perna a
apodrecer-lhe diante dos olhos. "Eu sou Rafael
Echavarren!", gritava todas as manhãs, "e não vou
morrer aqui!" Não havia desistência em Rafael, por
mais que sofresse, e eu sentia-me mais forte sempre
que o ouvia proferir estas palavras. Arturo, por
outro lado, era um rapaz mais calado e mais sério.
Era membro da equipe, um médio de abertura na
formação dos XV Primeiros do Old Christians. Eu
não fora especialmente amigo dele antes do
acidente, mas a coragem com que aguentava o seu
sofrimento aproximou-me dele. Como Rafael,
Arturo devia estar numa unidade de cuidados
intensivos, com especialistas a tratar dele a toda a
hora. Mas estava ali nos Andes, balançando numa
rede improvisada, sem antibióticos nem analgésicos
e tendo apenas um par de alunos de medicina do
primeiro ano e um grupo de rapazes inexperientes
para cuidar dele. Pedro Algorta, outro dos
apoiantes da equipe, era especialmente chegado a
Arturo e passava muitas horas com o seu amigo,
trazendo-lhe água e comida e tentando distraí-lo da
sua dor. Os outros também se revezavam para ficar
com ele, tal como fazíamos com Rafael. Eu
aguardava sempre ansiosamente pelas minhas
conversas com Arturo. Ao princípio, falávamos
sobretudo de râguebi. Os chutos são uma parte
importante do jogo - um chuto bem colocado pode
alterar o desenvolvimento de um jogo - e Arturo era
o que chutava mais forte e com mais precisão na
nossa equipe. Eu recordava os grandes chutos que
ele dera em momentos cruciais nos nossos jogos, e
perguntava-lhe como conseguira atirar a bola tão
longe e com tanta precisão. Penso que Arturo
gostava destas conversas. Tinha orgulho na sua
capacidade de chutar e tentou muitas vezes ensinar-
me as suas técnicas deitado na rede. Por vezes,
esquecia-se da sua situação e tentava demonstrar
um chuto com uma das pernas despedaçadas, o que
fazia com que se encolhesse de dor e nos recordava
onde estávamos. Mas quando passei a conhecer
melhor Arturo, as nossas conversas tornaram-se
mais profundas. Arturo era diferente de nós. Para
começar, era um socialista apaixonado e as suas
opiniões firmes sobre o capitalismo e a procura da
riqueza pessoal faziam dele uma personagem
estranha no mundo de riqueza e privilégios onde a
maioria de nós fora criada. Alguns dos rapazes
pensavam que ele estava apenas a armar-se -
vestindo roupas surradas e lendo filosofia marxista
apenas para ser do contra. Arturo não era uma
pessoa fácil. Podia ser incisivo e veemente nas suas
opiniões e isso irritava alguns dos rapazes, mas
quando comecei a percebê-lo um pouco, comecei a
admirar a sua maneira de pensar. Não era a política
que me atraía - naquela idade, a política nem
passava pela minha cabeça. O que me fascinava em
Arturo era a seriedade com que vivia a sua vida e a
paixão arrebatadora com que aprendera a pensar
por si. Arturo interessava-se por coisas importantes,
questões de igualdade, justiça, compaixão e
imparcialidade. Não tinha receio de questionar
nenhuma das regras da sociedade convencional, ou
condenar o nosso sistema de governo e economia,
que ele acreditava servir os poderosos à custa dos
mais fracos. As opiniões fortes de Arturo
incomodavam muitos dos outros e levavam muitas
vezes a discussões acaloradas à noite, relacionadas
com história, política ou assuntos actuais, mas eu
queria sempre ouvir o que Arturo tinha para dizer e
ficava especialmente intrigado com as suas ideias
sobre a religião. Como a maior parte dos outros
sobreviventes, eu fora criado como um católico
tradicional e, embora não fosse propriamente um
praticante devoto, nunca duvidara dos
ensinamentos fundamentais da Igreja. Falar com
Arturo, contudo, obrigou-me a confrontar as
minhas convicções religiosas e a examinar
princípios e valores que nunca questionara.
- Como é que podes ter tanta certeza de que, de
todos os livros sagrados do mundo, aquele em que
te ensinaram a acreditar é a única palavra autêntica
de Deus? - perguntava ele.
- Como é que sabes que a tua ideia de Deus é a
única que é verdadeira? Somos um país católico
porque os espanhóis vieram e conquistaram os
índios que aqui viviam e depois substituíram o
Deus dos índios por Jesus Cristo. Se os Mouros
tivessem conquistado a América do Sul, estaríamos
todos a rezar a Maomé em vez de Jesus. As ideias
de Arturo perturbavam-me, mas o seu raciocínio
era excitante. E fascinava-me que, apesar de todo o
seu cepticismo religioso, fosse uma pessoa muito
espiritual, que pressentia a minha raiva contra Deus
e que me instou a não me afastar Dele por causa do
nosso sofrimento.
- De que nos serve Deus? - retorqui. Por que é que
deixou a minha mãe e a minha irmã morrerem tão
sem sentido? Se nos ama tanto, por que é que nos
deixa aqui a sofrer?
- Estás zangado com o Deus em que te ensinaram a
acreditar quando eras criança - respondeu Arturo.
O Deus que supostamente cuida de ti e te protege,
que responde às tuas orações e perdoa os teus
pecados. Esse Deus é apenas uma história. As
religiões tentam apreender Deus, mas Deus está
para lá da religião. O verdadeiro Deus está para lá
da nossa compreensão. Não conseguimos entender
a Sua vontade; não pode ser explicado num livro.
Não nos abandonou e não nos salvará. Não tem
nada a ver com o facto de estarmos aqui. Deus não
muda, Ele simplesmente é. Não rezo a Deus para
pedir perdão ou favores, rezo apenas para estar
mais perto Dele e, quando rezo, o meu coração
enche-se de amor. Quando rezo desta maneira, sei
que Deus é amor. Quando sinto esse amor, lembro-
me de que não precisamos de anjos ou de um céu,
porque já somos parte de Deus. Abanei a cabeça.
- Tenho tantas dúvidas - disse. Sinto que conquistei
o direito de duvidar.
- Acredita nas tuas dúvidas - instou Arturo. Se
tiveres coragem para duvidar de Deus e para
questionar todas as coisas que te ensinaram sobre
Ele, então pode ser que encontres de verdade Deus.
Está perto de nós, Nando. Sinto-O à nossa volta.
Abre os olhos e vê-lo-ás, também. Olhei para
Arturo, esse jovem socialista ardente deitado na sua
rede com as pernas partidas como galhos e os olhos
a brilhar de fé e encorajamento, e senti uma forte
onda de afecto por ele. As suas palavras tocaram-
me profundamente. Como é que um homem tão
jovem conseguia conhecer-se tão bem? Conversar
com Arturo obrigou-me a encarar o facto de nunca
ter levado a minha própria vida a sério. Aceitara
tanta coisa como certa, gastando a minha energia
em raparigas, carros e festas, e navegando tão
despreocupadamente pelos meus dias. Afinal de
contas, qual era a pressa? Estaria ali tudo amanhã
para eu resolver. Havia sempre um amanhã... Ri-me
tristemente para dentro, pensando: Se existe um
Deus, e se Ele queria a minha atenção, certamente
que a conseguiu. Inclinava-me muitas vezes sobre
Arturo com o meu braço à volta do seu peito para o
aquecer. Ouvindo a sua respiração rítmica e
sentindo o seu corpo crispar-se a intervalos por
causa da dor, dizia para mim mesmo: Eis um
homem de verdade. Havia outros cuja coragem e
altruísmo também me inspiravam. Enrique Platero,
cujo abdómen tinha sido furado por um cano no
impacto final, conseguiu esquecer o seu ferimento,
como se fosse um arranhão, e tornou-se um dos
trabalhadores mais esforçados, apesar de uma
semana depois do acidente uma porção do seu
intestino ainda sair da ferida na barriga. Eu sempre
gostara de Enrique. Admirava o respeito que
demonstrava pelos pais e o afecto óbvio que sentia
pela sua família, que assistia a todos os nossos
jogos. Enrique, que jogava como pilar, não era um
jogador ostentoso, mas era uma presença constante
e fiável em campo, sempre a postos, não poupando
esforços para nos ajudar a ganhar. Era o mesmo ali,
na montanha. Fazia sempre o que se lhe pedia, e
mais; nunca se queixava ou desesperava
abertamente e, embora fosse uma presença muito
sossegada na fuselagem, sabíamos que faria sempre
tudo o que pudesse para nos ajudar a sobreviver.
Fiquei também impressionado com a força de
Gustavo Nicholich, a quem chamávamos Coco.
Coco era avançado da terceira linha no Old
Christians. Rápido, forte, e um excelente placador,
era um jogador duro, mas tinha um espírito afável e
um belo sentido de humor. Marcelo pusera Coco à
frente da equipe de limpeza, que era constituída
sobretudo pelos rapazes mais novos do nosso grupo
- Alvaro Mangino, Coche Inciarte, Bobby François e
outros. O trabalho deles era manter a fuselagem o
mais limpa possível, arejar todas as manhãs as
almofadas dos assentos onde dormíamos e dispô-
las no chão da fuselagem todas as noites antes de
irmos todos dormir. Coco certificava-se de que os
membros da sua equipe levavam as suas
responsabilidades a sério, mas também sabia que,
ao manter os rapazes ocupados, estava a distraí-los
do medo. Enquanto liderava os rapazes nas suas
tarefas, contava piadas e histórias para animá-los.
Nos intervalos, incitava-os a fazer charadas e outros
jogos. Sempre que alguém ria, era em geral por
causa de Coco. O som de risos naquelas montanhas
era como um milagre e eu admirava Coco pela sua
coragem - alegrar tantos espíritos quando, como
todos nós, estava tão esgotado e amedrontado.
E fiquei especialmente impressionado com a força e
coragem de Liliana Methol. Liliana, de trinta e cinco
anos, era a mulher de Javier Methol, que, com trinta
e oito anos, era o mais velho de todos os
sobreviventes. Liliana e Javier eram extremamente
íntimos e afectuosos um com o outro. Eram ambos
grandes fãs da equipe, mas, para eles, esta viagem
deveria ser também uma curta escapadela
romântica, uma oportunidade de gozar um raro
fim-de-semana juntos sozinhos, longe dos quatro
filhos pequenos que tinham deixado com os avós
em casa. Logo após o acidente, Javier tinha sido
gravemente afectado pela altitude, que o deixava
num estado constante de náusea e profunda fadiga.
O seu raciocínio era lento e confuso, e pouco mais
conseguia fazer do que cambalear pelo local da
queda num estado de semitorpor. Liliana passava
boa parte do seu tempo a cuidar dele, mas também
arranjava tempo para servir de enfermeira
incansável para Roberto e Gustavo, e ajudava
imenso quando eles tratavam dos doentes. Depois
da morte de Susy, Liliana era a única sobrevivente
mulher e, ao princípio, tratávamo-la com
deferência, insistindo para que dormisse ao lado
dos feridos graves no compartimento das bagagens
do Fairchild, que era a secção mais quente do avião.
Ela fê-lo apenas durante algumas noites e depois
disse que já não aceitaria mais esse tratamento
especial. A partir daí, passou a dormir connosco na
secção principal da fuselagem, onde juntava os
rapazes mais novos à volta dela, fazendo o possível
por confortá-los e mantê-los quentes. "Tapa a
cabeça, Coche", dizia, enquanto jazíamos ali nas
sombras da noite, "estás a tossir muito, o frio está a
irritar-te a garganta. Bobby, estás bem quente?
Queres que te esfregue os pés?" Preocupava-se
constantemente com os filhos que deixara em casa,
mas ainda tinha a coragem e amor para servir de
mãe desses rapazes assustados que estavam tão
longe das suas famílias. Tornou-se uma segunda
mãe para todos nós e era tudo o que se poderia
desejar de uma mãe: forte, terna, amorosa, paciente
e muito corajosa.
Mas as montanhas mostraram-me que havia muitas
formas de bravura e, para mim, mesmo os mais
calados demonstravam grande coragem
simplesmente por viverem o dia a dia. Todos
contribuíam, com a sua simples presença e com a
força das suas personalidades, para a sensação de
comunidade e propósito comum que nos oferecia
alguma protecção contra a brutalidade e
implacabilidade que nos rodeavam. Coche Inciarte,
por exemplo, oferecia-nos a sua perspicácia rápida e
irreverente e sorriso caloroso. Carlitos era uma
fonte de constante optimismo e humor. Pedro
Algorta, amigo íntimo de Arturo, era um pensador
pouco convencional, muito teimoso e muito
inteligente, e eu gostava de conversar com ele à
noite. Eu era especialmente protector em relação a
Alvaro Mangino, um afável e calmo apoiante da
equipe que era um dos rapazes mais jovens no
avião e, muitas vezes, procurava dormir ao lado
dele. Se não fosse Diego Storm, que me puxara do
frio enquanto eu ainda estava em coma, teria
certamente morrido gelado ao lado de Panchito.
Daniel Fernandez, outro primo de Fito, era uma
presença firme e sensata na fuselagem que ajudou a
afastar o pânico. Pancho Delgado, um estudante de
direito muito arguto e bem-falante e um dos
maiores defensores de Marcelo, ajudou a manter
vivas as nossas esperanças com as suas garantias
eloquentes de que a equipe de resgate estava a
caminho. E depois havia Bobby François, cuja
recusa franca, quase jovial, de lutar pela vida nos
encantava a todos, de alguma maneira. Bobby
parecia incapaz de cuidar de si, mesmo nas coisas
mais simples -se as cobertas lhe fugiam à noite, por
exemplo, não exercia qualquer esforço para se
cobrir outra vez. Por isso, todos olhávamos por
Bobby, fazendo o possível para evitar que
enregelasse, examinando-lhe os pés para ver se
tinha queimaduras de frio, certificando-nos de que
saía da cama, de manhã. Todos aqueles rapazes
faziam parte da nossa família na montanha,
contribuindo, da maneira que podiam, para a nossa
luta comum.
Mas apesar de todos os tipos diferentes de coragem
que vi à minha volta, explícita ou subtil, sabia que
todos nós vivíamos cada instante com medo, e vi
cada sobrevivente lidar com esse medo da sua
própria maneira. Alguns ventilavam o seu medo
através da raiva, enfurecendo-se contra o destino
por nos encurralar ali, ou contra as autoridades por
serem tão lentas a chegar para nos salvar. Outros
pediam respostas a Deus e suplicavam por um
milagre. E muitos estavam tão incapacitados por
causa do seu medo, por causa de todas as forças que
se uniam tão cruelmente contra nós, que
mergulharam no desespero. Esses rapazes não
demonstravam qualquer iniciativa. Só trabalhavam
se obrigados e, mesmo assim, só se lhes podiam
confiar as tarefas mais simples. A cada dia que
passava, pareciam dissolver-se mais profundamente
na paisagem, cada vez mais deprimidos e
indiferentes até que, por fim, alguns se tornaram tão
apáticos que ficavam deitados o dia inteiro no local
onde tinham dormido, esperando pelo resgate ou
pela morte, o que viesse primeiro. Sonhavam com a
sua casa e rezavam por milagres, mas enquanto
elanguesciam nas sombras da fuselagem, torturados
pelo medo de morrer, com os olhos opacos e vazios,
estavam já a transformar-se em fantasmas. Os que
estavam suficientemente fortes para trabalhar nem
sempre eram simpáticos para com esses rapazes.
Com todas as pressões que enfrentávamos, era
difícil às vezes não pensar neles como cobardes ou
parasitas. A maior parte não estava gravemente
ferida e enfurecia-nos que não conseguissem
arranjar força de vontade para se juntarem à nossa
luta comum pela sobrevivência. "Mexam-se!",
gritávamos. "Façam alguma coisa! Ainda não estão
mortos!" Esta fissura emocional entre os
trabalhadores e os rapazes perdidos criou uma
potencial linha de cisão na nossa pequena
comunidade que poderia ter provocado conflitos,
crueldade e até violência. Mas, de alguma forma,
isso nunca aconteceu. Nunca nos rendemos à
recriminação e à acusação. Talvez fosse por causa
de todos os anos que passámos juntos no campo de
râguebi. Talvez os Irmãos nos tivessem ensinado
bem. Fosse o que fosse, conseguimos refrear os
nossos ressentimentos e lutar como uma equipe. Os
que tinham coragem para isso, e a força física
necessária, faziam o que tinha de ser feito. Os mais
fracos, e os feridos, simplesmente resistiam.
Tentámos incitá-los a agir, às vezes mandávamos
neles, mas nunca os desprezámos ou os
abandonámos ao seu próprio destino.
Compreendíamos, de forma intuitiva, que ninguém,
naquele lugar horrível, podia ser julgado pelos
padrões do mundo vulgar. Os horrores que
enfrentávamos eram esmagadores, e não havia
como saber como cada um de nós reagiria em
determinada altura. Naquele lugar, mesmo a
simples sobrevivência exigia um esforço heróico, e
aqueles rapazes estavam a travar as suas próprias
batalhas privadas nas sombras. Sabíamos que era
inútil pedir a alguém para fazer mais do que podia.
Por isso, certificávamo-nos que tinham o suficiente
para comer e roupas quentes para vestir. Nas horas
mais frias da noite massajávamos-lhes os pés para
os proteger das queimaduras do frio.
Certificávamo-nos de que se cobriam bem à noite e
derretía-mos água para eles quando eles não
conseguiam reunir o optimismo necessário para ir
lá fora respirar ar fresco. Acima de tudo,
mantivemos o companheirismo durante o nosso
sofrimento. Já tínhamos perdido demasiados
amigos. Todas as vidas eram preciosas para nós.
Faríamos o que pudéssemos para ajudar todos os
nossos amigos a sobreviver. "Respira mais uma
vez", dizíamos aos mais fracos, quando o frio, ou o
medo, ou o desespero, os empurravam para a beira
da rendição. "Vive para respirar mais uma vez.
Enquanto respirares, estás a lutar para sobreviver."
Efectivamente, todos nós na montanha estávamos a
viver as nossas vidas de inspiração em inspiração e
a lutar para encontrar a força de vontade de que
precisávamos para resistir entre cada batimento do
coração. Sofríamos a todo o instante, e de muitas
maneiras, mas a fonte do nosso maior sofrimento
era sempre o frio. Os corpos nunca se adaptaram às
temperaturas gélidas - nenhum corpo humano
conseguiria. Era o início da Primavera nos Andes,
mas o tempo ainda estava muito invernoso e,
muitas vezes, as tempestades duravam dias,
mantendo-nos presos dentro do avião. Mas em dias
de céu descoberto, o sol forte de montanha fulgia e
passávamos tanto tempo quanto possível fora da
fuselagem, a absorver os raios quentes. Tínhamos
até arrastado alguns dos assentos do Fairchild para
fora do avião e dispusemo-los na neve como
espreguiçadeiras para nos podermos sentar
enquanto nos aquecíamos. Mas o Sol logo
mergulhava por trás das cristas a ocidente e, no que
parecia uma questão de segundos, o céu azul
cintilante passaria a violeta-escuro, as estrelas
apareceriam e as sombras escorregariam pela
encosta da montanha na nossa direcção como uma
onda. Sem o Sol para aquecer o ar rarefeito, as
temperaturas desciam e retirávamo-nos para o
abrigo da fuselagem para nos prepararmos para
mais uma noite de sofrimento. O frio de alta
altitude é uma coisa malévola e agressiva, Queima e
corta, invade todas as células do nosso corpo,
esmaga-nos com uma força que parece capaz de
partir ossos. A fuselagem exposta escudava-nos dos
ventos que nos teriam morto, mas mesmo assim, o
ar dentro do avião era perversamente gelado.
Tínhamos isqueiros e podíamos facilmente ter
acendido uma fogueira, mas tínhamos muito pouco
material combustível na montanha. Queimámos
todas as notas que tínhamos - quase 7500 dólares se
foram em fumo - e encontrámos alguns pedaços de
madeira no avião para alimentar duas ou três
pequenas fogueiras, mas estas fogueiras
consumiram-se rapidamente e o breve luxo do calor
fez apenas com que o frio parecesse pior quando as
chamas se apagaram. A maior parte das vezes, a
nossa melhor defesa contra o frio era enroscarmo-
nos uns contra os outros nas almofadas soltas dos
assentos que tínhamos espalhado pelo chão do
avião e enrolarmo-nos nos nossos cobertores finos,
esperando acumular calor suficiente dos corpos uns
dos outros para sobreviver por mais uma noite. Eu
ficava deitado no escuro durante horas, com os
dentes a chocalharem violentamente e o corpo a
tremer tanto que os músculos do meu pescoço e
ombros estavam constantemente em espasmo.
Protegíamos todos com muito cuidado as nossas
extremidades, por causa das queimaduras do frio, e,
assim, eu tinha sempre as mãos enfiadas nas axilas
quando dormia e os meus pés debaixo do corpo de
outra pessoa. Mesmo assim, o frio fazia os meus
dedos dos pés e das mãos parecer que tinham sido
golpeados com um malho. Às vezes, quando
receava que o sangue estivesse a enregelar nas
minhas veias, pedia aos outros para me socarem os
braços e as pernas para estimular a circulação.
Dormia sempre com um cobertor por cima da
cabeça para preservar o calor da minha respiração.
Às vezes, deitava-me com a cabeça perto do rosto
do rapaz ao meu lado, para roubar um pouco da
respiração, um pequeno calor. Nalgumas noites
conversávamos, mas era difícil, pois os nossos
dentes batiam e os queixos tremiam no ar gelado.
Tentei muitas vezes distrair-me do meu sofrimento
rezando, ou imaginando o meu pai em casa, mas o
frio não podia ser ignorado por muito tempo. Às
vezes, não havia mais nada a fazer senão rendermo-
nos ao sofrimento e contar os segundos até de
manhã. Muitas vezes, nesses momentos de
desespero, eu tinha a certeza de que estava a
enlouquecer. O frio foi sempre a nossa maior
agonia, mas nos primeiros dias do nosso suplício, a
maior ameaça que enfrentámos foi a sede. A alta
altitude, o corpo humano desidrata cinco vezes
mais rápido do que ao nível do mar, sobretudo por
causa dos baixos níveis de oxigénio na atmosfera.
Para extrair oxigénio suficiente do ar seco da
montanha, o corpo força-se a respirar muito
rapidamente. É uma reacção involuntária; muitas
vezes ofegamos e estamos simplesmente parados. O
aumento das inalações traz mais oxigénio para a
corrente sanguínea, mas cada vez que inspiramos
também temos de expirar e perde-se humidade
preciosa cada vez que expiramos. Um ser humano
pode sobreviver por uma semana ou mais sem água
ao nível do mar. Nos Andes, a margem de
segurança é muito menor e cada expiração
aproxima-nos mais da morte. Sem dúvida que não
faltava água nas montanhas - estávamos sobre um
glaciar coberto de neve, rodeados por milhões de
toneladas de H2O congelado. O nosso problema era
tornar a água bebível. Os alpinistas bem equipados
transportam pequenos fogões a gás para derreter a
neve transformando-a em água bebível e bebem
água constantemente - litros por dia -para se
manterem hidratados. Nós não tínhamos fogões e
nenhuma forma eficaz de derreter neve. Ao
princípio, enfiávamos simplesmente punhados de
neve na boca e tentávamos comê-la, mas passados
apenas alguns dias os nossos lábios estavam tão
cortados, feridos e em carne viva por causa do frio
seco que empurrar os pedaços de neve pela boca
abaixo se tornou uma agonia insuportável.
Descobrimos que se fizéssemos uma bola de neve e
aquecêssemos a bola com as mãos, podíamos
chupar gotas de água à medida que esta se derretia.
Também derretíamos neve chocalhando-a dentro de
garrafas de vinho vazias e sorvíamo-la de qualquer
pequena poça que encontrássemos. Por exemplo, a
neve no cimo da fuselagem derretia com o sol,
enviando uma goteira de água pelo pára-brisas do
avião, onde escorria por um pequeno tubo de
alumínio que segurava a base do pára-brisas. Em
dias de sol, fazíamos fila e esperávamos a nossa vez
de sugar um pouco de água do tubo, mas nunca era
o suficiente para satisfazer as nossas necessidades.
De facto, nenhum dos nossos esforços para obter
água bebível nos proporcionava líquido suficiente
para combater a desidratação. Estávamos a
enfraquecer, a ficar letárgicos e com a cabeça
pesada, à medida que as toxinas se acumulavam no
nosso corpo. Rodeados por um oceano gelado,
estávamos lentamente a morrer de sede.
Precisávamos rapidamente de uma maneira eficaz
de derreter neve e, graças ao poder inventivo de
Fito, descobrimos essa maneira. Numa manhã de
sol, quando estava sentado cá fora, cheio de sede
como os outros, Fito reparou que o sol estava a
derreter a fina crosta de gelo que se formava todas
as noites na neve. Teve então uma ideia.
Silenciosamente, revirou a pilha de destroços que
tinham sido arrastados para fora da fuselagem e
descobriu, debaixo do estofo rasgado de um assento
partido, uma pequena folha rectangular de
alumínio fino. Dobrou os cantos do alumínio para
formar uma bacia pouco funda e apertou um dos
cantos para formar um bico. Então encheu a bacia
com neve e colocou-a ao sol. A neve começou logo a
derreter e a água a pingar continuamente do bico.
Fito recolheu a água numa garrafa e quando os
outros viram como esta invenção funcionava bem,
juntaram mais folhas de alumínio - havia uma em
todos os assentos - e moldaram-nas da mesma
maneira. Marcelo ficou tão impressionado com as
engenhocas de Fito que formou uma equipe de
rapazes, cuja principal responsabilidade era tratar
delas, certificando-se de que tínhamos uma reserva
constante de água. Não conseguíamos produzir
tanta quanto realmente precisávamos e a nossa sede
nunca se aplacava, mas o engenho de Fito forneceu-
nos hidratação suficiente para nos mantermos
vivos. Estávamos a aguentar sozinhos. Através de
esperteza e cooperação, tínhamos descoberto
formas de evitar que o frio e a sede nos matassem,
mas em breve enfrentámos um problema que só a
esperteza e o trabalho de equipe não conseguiam
resolver. As nossas provisões de comida estavam a
diminuir. Começámos a passar fome. Nos primeiros
dias da nossa provação, a fome não era uma grande
preocupação para nós. O frio e o choque mental que
sofrêramos, junto com a depressão e medo que
todos sentíamos, reduziram o nosso apetite e, como
estávamos convencidos de que a equipe de resgate
em breve nos encontraria, contentávamo-nos com as
magras rações que Marcelo distribuía. Mas a equipe
de resgate não veio. Certa manhã, lá para o fim da
nossa primeira semana nas montanhas, vi-me de pé
do lado de fora da fuselagem, a olhar para um
amendoim coberto de chocolate que embalava na
palma da mão. As nossas provisões estavam
esgotadas, aquele era o último pedaço de comida
que eu receberia e com um desespero triste, quase
mesquinho, estava determinado a fazê-la durar. No
primeiro dia, lambi lentamente o chocolate do
amendoim, depois enfiei o amendoim no bolso das
minhas calças. No segundo dia, separei com
cuidado as duas metades do amendoim, voltando a
enfiar uma metade no meu bolso e colocando a
outra metade na boca. Chupei lentamente o
amendoim durante horas, permitindo-me apenas
uma minúscula mordidela de vez em quando. Fiz o
mesmo no terceiro dia e quando, por fim, o
amendoim desapareceu, já não havia absolutamente
mais nada para comer. A alta altitude, as
necessidades calóricas do organismo são
astronómicas. Um alpinista que escalasse qualquer
das montanhas que rodeavam o local do acidente
precisaria de 15 000 calorias por dia simplesmente
para manter o peso corporal actual. Nós não
estávamos a fazer alpinismo, mas, mesmo assim, a
uma altitude tão elevada, as nossas necessidades
calóricas eram muito maiores do que seriam se
estivéssemos em casa. Desde o acidente, mesmo
antes de as rações se terem esgotado, nunca
consumimos mais de algumas centenas de calorias
por dia. Agora, há dias que a nossa ingestão de
calorias era zero. Quando embarcámos no avião em
Montevideu, éramos jovens robustos e vigorosos, a
maioria atletas no auge da condição física. Agora,
via os rostos dos meus amigos ficarem magros e
chupados. Os seus movimentos eram lentos e
claudicantes e havia um torpor de esgotamento nos
seus olhos. Estávamos absolutamente a definhar,
sem qualquer esperança de encontrarmos comida,
mas a nossa fome em breve se tornou tão voraz que
mesmo assim procurámos. Ficámos obcecados pela
busca de comida, mas o que nos compelia não era
nada que se parecesse com apetite normal. Quando
o cérebro percepciona o início da fome - ou seja,
quando compreende que o corpo começou a
consumir a sua própria carne e tecidos para usar
como combustível - liberta uma onda de adrenalina
de alarme, tão vibrante e poderosa como o impulso
que impele um animal perseguido a fugir do ataque
de um predador. Os instintos primários tinham
vencido e era realmente o medo, mais do que a
fome, que nos impelia a procurar comida de forma
tão frenética. Revirámos repetidas vezes a
fuselagem à procura de migalhas. Tentámos comer
pedaços de couro arrancados de pedaços de
bagagem, embora soubéssemos que os químicos
com que tinham sido tratados nos fariam mais mal
do que bem. Rasgámos as almofadas dos assentos,
na esperança de encontrar palha, mas só havia
espuma de enchimento não comestível. Mesmo
depois de ficar convencido de que não havia nem
um pedacinho de algo que fosse comestível, a
minha mente não conseguiu descansar. Passava
horas a vasculhar compulsivamente o meu cérebro,
tentando encontrar alguma fonte possível de
alimentos. Talvez haja alguma planta a crescer
nalgum, lado, ou alguns insectos debaixo de uma
pedra. Se calhar os pilotos tinham um lanche no
habitáculo. Talvez tenhamos deitado fora alguma
comida por acidente, quando arrastámos os
assentos para fora do avião. Devíamos ir verificar a
pilha de lixo outra vez. Verificámos todos os bolsos
dos mortos antes de os enterrarmos? Chegava
sempre à mesma conclusão: a menos que
quiséssemos comer as roupas que usávamos, não
havia nada ali senão alumínio, plástico, gelo e
pedra. Às vezes, saía de um longo silêncio e gritava
alto na minha frustração: "Não há nada para comer
neste maldito lugar!" Mas claro que havia comida
nas montanhas - havia carne, muita carne, e toda ao
nosso alcance. Estava tão perto quanto os cadáveres
dos mortos, lá fora, sob uma fina camada de gelo.
Intriga-me pensar que, apesar do meu impulso
compulsivo para encontrar qualquer coisa
comestível, tenha ignorado durante tanto tempo a
presença óbvia, a algumas dezenas de metros, dos
únicos objectos comestíveis. Existem algumas
fronteiras, suponho, que a mente demora muito
tempo a atravessar, mas quando a minha mente
finalmente atravessou essa fronteira, fê-lo com um
impulso tão primitivo que me deixou chocado. Foi
ao fim da tarde e estávamos deitados na fuselagem
a prepararmo-nos para a noite. O meu olhar recaiu
na ferida, que cicatrizava lentamente, da perna de
um rapaz deitado ao meu lado. O centro da ferida
estava húmido e em carne viva e havia uma crosta
de sangue seco nas bordas. Não conseguia parar de
olhar para aquela crosta e, quando cheirei o leve
odor de sangue no ar, senti o meu apetite aumentar.
Então ergui os olhos e encontrei o olhar de outros
rapazes que também tinham estado a fitar a ferida.
Envergonhados, lemos ospensamentos uns dos
outros e rapidamente desviámos o olhar, mas para
mim acontecera algo que eu não podia negar: olhara
para carne humana e reconhecera-a instintivamente
como comida. Uma vez aberta essa porta, era
impossível fechá-la e, a partir daquele momento, a
minha mente nunca estava muito longe dos corpos
congelados soba neve. Sabia que esses corpos
representavam a nossa única hipótese de
sobrevivência, mas estava tão horrorizado com o
que estava a pensar que ocultei os meus
sentimentos. Mas, por fim, já não me conseguia
manter calado e, uma noite, na escuridão da
fuselagem, decidi abrir-me com Carlitos Paez, que
estava estendido a meu lado no escuro.
- Carlitos - sussurrei -, estás acordado?
- Sim - murmurou ele. Quem é que consegue dormir
neste frigorífico?
- Estás com fome?
- Puta carajo - lançou ele. O que é que achas? Já não
como há dias.
- Vamos morrer de fome aqui - disse. Acho que a
equipe de resgate não nos vai encontrar a tempo.
- Isso não sei - respondeu Carlitos.
- Eu sei-o e tu também - repliquei -, mas não vou
morrer aqui. Vou conseguir voltar para casa.
- Ainda estás a pensar escalar a montanha para sair
daqui? - perguntou. Tuestás demasiado fraco,
Nando.
- Estou fraco porque não comi.
- Mas o que é que queres fazer? -perguntou. Aqui
não há comida.
- Comida há - respondi. Sabes o que quero dizer.
Carlitos mexeu-se naescuridão, mas não disse nada.
- Vou cortar carne do piloto - sussurrei. Foi ele que
nos pôs aqui, talvez nos possa ajudar a sair.
- Porra, Nando - sussurrou Carlitos.
- Há muita comida aqui - disse -, mas temos de
pensar nela apenas como carne. Os nossos amigos já
não precisam dos seus corpos. Carlitos ficou
silencioso durante um momento, antes de falar.
- Deus nos ajude - murmurou baixinho. Tenho
estado a pensar na mesma coisa... Nos dias
seguintes, Carlitos partilhou a nossa conversa com
alguns dos outros.
Uns poucos, como Carlitos, admitiram ter tido os
mesmos pensamentos. Roberto, Gustavo e Fito,
especialmente, acreditavam que era a nossa única
hipótese de sobrevivência. Durante alguns dias
discutimos o assunto entre nós, depois decidimos
fazer uma reunião e trazer a questão a público.
Reunimo-nos dentro da fuselagem. Foi ao fim da
tarde e a luz era diminuta. Roberto começou a falar.
- Estamos a morrer de fome - disse sem rodeios. Os
nossos corpos estão a consumir-se a si próprios. Se
não ingerirmos alguma proteína em breve,
morreremos, e a única proteína aqui são os corpos
dos nossos amigos. Houve um silêncio pesado,
quando Roberto fez uma pausa. Por fim, alguém se
pronunciou.
- O que é que estás a sugerir? - gritou. Que
comamos os mortos?
- Não sabemos quanto tempo vamos ficar aqui
encurralados - continuouRoberto. Se não comermos,
morreremos. É tão simples quanto isto. Se queremos
ver as nossas famílias de novo, é isto que temos de
fazer. Os rostos dos outros mostravam espanto à
medida que as palavras de Roberto surtiam efeito.
Depois Liliana falou baixinho.
- Não posso fazer isso - disse. Nunca conseguiria
fazer isso.
- Não vais fazê-lo por ti - disse Gustavo -, mas tens
de fazê-lo pelos teus filhos. Tens de sobreviver e
voltar para casa para junto deles.
- Mas o que é que será das nossas almas? -
perguntou alguém. Deus perdoaria uma coisa
destas?
- Se não comeres, estás a escolher morrer - disse
Roberto.
-Deus perdoaria isso? Penso que Deus quer que
façamos tudo para sobreviver.Decidi falar. Temos
de acreditar que agora é só carne - disse-lhes. As
almas já se foram. Se a equipe de resgate vem a
caminho, temos de ganhar tempo, ou já estaremos
mortos quando eles nos acharem.
- E se quisermos sair daqui por conta própria - disse
Fito -, vamos precisar de estar fortes ou morreremos
nas encostas.
- Fito tem razão - disse eu. E se os corpos dos nossos
amigos nos podem ajudar a sobreviver, então não
terão morrido em vão. A discussão continuou pelo
resto da tarde. Muitos dos sobreviventes - Liliana,
Javier, Numa Turcatti e Coche Inciarte, entre outros
- recusavam-se a considerar a hipótese de comer
carne humana, mas ninguém tentou dissuadir-nos
da ideia.
No silêncio, percebemos que tínhamos chegado a
um consenso. Agora tínhamos de encarar a terrível
logística.
- Como é que vamos fazer isto? -perguntou Pancho
Delgado. Quem é que tem coragem suficiente para
cortar a carne de um amigo?
A fuselagem já estava na escuridão. Conseguia
apenas ver silhuetas pouco nítidas, mas após um
longo silêncio alguém falou. Reconheci a voz de
Roberto.
- Eu faço - disse. Gustavo ergueu-se e disse
baixinho:
- Eu ajudo.
- Mas quem é que vai ser cortado primeiro? -
perguntou Fito. Como é que escolhemos?
Todos olhámos para Roberto.
- Eu e Gustavo tratamos disso - replicou. Fito
levantou-se.
-Vou com vocês - disse.
- Eu também posso ajudar - disse Daniel Maspons,
um ponta do Old Christians e grande amigo de
Coco.
Durante um momento ninguém se mexeu, depois
chegámo-nos todos para a frente, demos as mãos e
jurámos que se um de nós morresse aqui, os outros
teriam permissão para usar o corpo como comida.
Após o juramento, Roberto ergueu-se e procurou na
fuselagem até que encontrou alguns cacos de vidro,
em seguida levou os seus assistentes até às
sepulturas. Ouvi-os falar baixinho enquanto
trabalhavam, mas não tive vontade de observá-los.
Quando voltaram, traziam pequenos pedaços de
carne nas mãos. Gustavo ofereceu-me um bocado e
eu peguei nele. Era de um branco-acinzentado, duro
como madeira e muito frio. Disse a mim mesmo que
já não fazia parte de um ser humano; a alma
daquela pessoa já deixara o corpo. Mesmo assim,
demorei a levar a carne aos lábios. Evitei encontrar
o olhar dos outros, mas, pelo canto dos olhos,
observei as pessoas à minha volta. Alguns estavam
sentados como eu com a carne nas mãos, a juntar
forças para comer. Outros mastigavam com
dificuldade. Por fim, encontrei coragem e coloquei a
carne na minha boca. Não tinha sabor. Mastiguei,
uma ou duas vezes, depois forcei-me a engolir. Não
senti culpa ou vergonha. Estava a fazer o que tinha
de fazer para sobreviver. Compreendia a magnitude
do tabu que acabáramos de quebrar, mas se senti
alguma emoção forte, foi uma sensação de
ressentimento pelo facto de o destino nos ter
obrigado a escolher entre aquele horror e o horror
da morte certa. Comer a carne não aplacou a fome,
mas acalmou a minha mente. Sabia que o meu
corpo usaria a proteína para se fortalecer e atrasar o
processo de definhamento. Nessa noite, pela
primeira vez desde que nos tínhamos despenhado,
senti uma pequena fagulha de esperança. Tínhamos
arrostado com a nossa nova terrível realidade, e
descoberto que tínhamos força para enfrentar um
horror inimaginável. A nossa coragem deu-nos uma
pequena parcela de controlo sobre as circunstâncias
da situação e um tempo precioso. Agora já não
havia ilusões. Todos sabíamos que a luta pela
sobrevivência seria mais horrível e mais angustiante
do que tínhamos imaginado, mas senti que, como
grupo, tínhamos declarado à montanha que não
desistiríamos e, no meu caso, sabia que, de uma
forma pequena e triste, dera o meu primeiro passo
no caminho de volta para o meu pai.

5 ABANDONADOS
Cedo na manhã seguinte, o nosso décimo primeiro
dia na montanha, eu estava do lado de fora da
fuselagem, encostado ao casco de alumínio do
Fairchild. Eram cerca das sete e meia, a manhã
estava clara e eu estava a aquecer-me com os
primeiros raios do sol, que acabara de se erguer por
cima das montanhas a oriente. Marcelo e Coco
Nicholich estavam comigo, e também Roy Harley,
um ponta avançado alto e rápido do Old Christians.
Com dezoito anos, Roy era um dos passageiros
mais jovens do avião. Era também a coisa mais
próxima que tínhamos de um perito em electrónica,
pois ajudara uma vez um primo a instalar um
complicado sistema de estéreo na sua casa. Logo
depois do despenhamento, Roy encontrara um
rádio transístor partido no lixo dos destroços e, com
um pequeno conserto, conseguira trazê-lo de volta à
vida. Na cordilheira rochosa, a recepção era muito
má, mas Roy improvisou uma antena com cabos
eléctricos que arrancara do avião e, com um
pequeno esforço, conseguíamos sintonizar estações
de rádio chilenas. Todas as manhãs, bem cedo,
Marcelo acordava Roy e levava-o até ao glaciar,
onde manipulava a antena enquanto Roy mexia no
ponteiro. A sua esperança era ouvir notícias sobre o
progresso dos esforços de resgate, mas até agora
tinham apenas conseguido apanhar resultados do
futebol, boletins meteorológicos e propaganda
política de estações controladas pelo governo
chileno. Naquela manhã, como em todas as outras,
o sinal oscilava e, mesmo quando a recepção estava
no seu melhor, o pequeno altifalante do rádio
crepitava de estática. Roy não queria gastar as
pilhas; por isso, depois de mexer no ponteiro
durante vários minutos, estava prestes a desligar o
rádio quando ouvimos, no meio dos zumbidos e
estalidos, a voz de um locutor a ler as notícias. Não
me recordo das palavras exactas que utilizou, mas
nunca esquecerei o som metálico da sua voz e o tom
desapaixonado com que falou: depois de dez dias
de buscas infrutíferas, disse, as autoridades chilenas
suspenderam todos os esforços para encontrar o
voo charter uruguaio que desapareceu nos Andes
no dia 13 de Outubro. As tentativas de busca nos
Andes são simplesmente demasiado perigosas,
disse, e, após tanto tempo nas montanhas geladas,
não há hipótese de alguém ainda estar vivo. Depois
de um instante de silêncio aturdido, Roy gritou de
incredulidade e em seguida começou a chorar.
- O quê? - gritou Marcelo. O que é que ele disse?
- Suspendieron la búsquedal - exclamou Roy.
Cancelaram as buscas! Vão abandonar-nos!
Durante alguns segundos, Marcelo olhou para Roy
com um olhar de irritação no rosto, como se Roy
tivesse dito uma algaraviada, mas quando absorveu
as palavras de Roy, Marcelo caiu de joelhos e lançou
um uivo angustiado que ecoou pela cordilheira.
Desorientado pelo choque, fitei as reacções do meu
amigo com um silêncio e sensação de
distanciamento que um observador poderia ter
tomado por compostura. Mas, de facto, eu estava a
desmoronar-me, enquanto todos os medos
claustrofóbicos que lutara por conter se soltavam
agora, como as águas de uma enchente sobre um
dique rebentado, e senti-me arrastado para a beira
da histeria. Supliquei a Deus. Chamei pelo meu pai.
Impelido, mais poderosamente do que nunca, pela
ânsia animal de correr às cegas em direcção à
cordilheira, perscrutei de forma maníaca o
horizonte como se, passados dez dias na montanha,
pudesse de repente avistar um caminho de fuga que
não detectara antes. Depois, lentamente, virei-me
para ocidente e encarei as cristas altas que
bloqueavam o caminho para minha casa. Com nova
clareza, percebi o poder terrível das montanhas.
Que loucura ter pensado que um rapaz inexperiente
como eu poderia conquistar estas encostas
impiedosas! A realidade arreganhava-me os dentes
e vi que todos os meus sonhos de escalar a
montanha não passavam de uma fantasia para
manter vivas as minhas esperanças. Por puro terror
e desafio, sabia o que tinha de fazer: correr para
uma fenda e saltar para as profundezas verdes.
Deixaria as rochas esmagarem toda a vida, medo e
sofrimento do meu corpo. Mas mesmo no momento
em que me imaginava a mergulhar no silêncio e na
paz, o meu olhar estava pousado nas cristas
ocidentais, calculando distâncias e tentando
imaginar o declive das encostas, e a voz fria da
razão estava a murmurar-me ao ouvido: Aquela
linha cinzenta de rocha poderá constituir um bom
apoio... Deve haver algum abrigo por baixo daquela
saliência mesmo por baixo daquela crista... Era uma
espécie de loucura, na verdade, agarrar-me a
esperanças de fuga mesmo sabendo que a fuga era
impossível, mas aquela voz interior não me
davaoutra escolha. Desafiar as montanhas era o
único futuro que aquele lugar me permitiria e,
porisso, com um sentimento de fria determinação
que estava agora mais ferozmente entranhado em
mim do que antes, aceitei no meu coração a simples
verdade de que nunca deixaria de lutar para sair
dali, certo de que o esforço me mataria, mas ansioso
por começara escalada. Então, uma voz assustada
chamou-me a atenção. Era Coco Nicholich, de pé
ameu lado.
- Nando, por favor, diz-me que isto não é verdade! -
tartamudeou.
- É verdade - sibilei. Carajo. Estamos mortos.
- Eles estão a matar-nos! - gritou Nicholich. Vão-nos
deixar morrer aqui.
- Tenho de sair deste lugar, Coco - exclamei. Não
posso ficar aqui nem mais um minuto! Nicholich
meneou a cabeça na direcção da fuselagem.
- Os outros ouviram-nos - disse.
Virei-me e vi vários dos nossos amigos a sair do
avião.
- Quais são as notícias? - gritou alguém.
Localizaram-nos?
- Temos de lhes dizer - sussurrou Nicholich.
Olhámos ambos para Marcelo, que estava sentado
na neve com os ombros caídos.
- Não consigo dizer-lhes - murmurou. Não
aguentaria. Os outros aproximavam-se.
- O que se passa? - perguntou alguém. O que é que
ouviram?
Tentei falar, mas as palavras ficaram-me presas na
garganta. Então Nicholich deu um passo em frente e
falou com firmeza, apesar do seu próprio medo.
- Vamos para dentro - disse - que eu explico.
Todos seguimos Coco de volta à fuselagem e
juntámo-nos à volta dele.
- Ouçam, rapazes - disse ele -, ouvimos umas
notícias. Pararam de nos procurar. Os outros
ficaram aturdidos com as palavras de Coco. Alguns
praguejaram eoutros começaram a chorar, mas a
maioria simplesmente fitou-o sem acreditar.
- Mas não se preocupem - continuou -, são boas
notícias.
- Estás louco? - gritou alguém. Isso significa que
estamos encurralados aqui para sempre!
Senti o pânico crescer no grupo, mas Coco manteve
a serenidade e continuou.
- Temos de manter a calma - disse. Agora sabemos o
que temos de fazer. Temos de contar só connosco.
Não há razão para esperar mais. Podemos começar
a fazer planos para sairmos daqui pelos nossos
meios.
- Eu fiz os meus planos - explodi. Vou sair daqui,
agora! Não vou morrer aqui!
- Acalma-te, Nando - disse Gustavo.
- Porra, não me acalmo nada! Dêem-me alguma
carne para levar. Alguém me empreste outro
casaco. Quem vem comigo? Vou sozinho se tiver de
ser. Não vou ficar aqui nem mais um segundo!
Gustavo pegou-me no braço.
- Estás a dizer disparates - afirmou.
- Não, não, eu consigo fazê-lo! - objectei. Sei que
consigo. Vou escalar daqui para fora, encontrar
ajuda... mas tenho de ir agora!
- Se fores agora, morrerás - replicou Gustavo.
- Morro se ficar aqui!. - disse eu. Este lugar é a nossa
sepultura! A morte toca em tudo aqui. Não
percebes? Sinto-lhe as mãos em cima de mim!
Consigo cheirar-lhe a porra do hálito!
- Nando, cala-te e ouve! - gritou Gustavo. Não tens
roupa de Inverno, não tens experiência de escalada,
estás fraco, nem sequer sabemos onde estamos.
Seria suicídio partir agora. Num dia estas
montanhas matavam-te.
- Gustavo tem razão - disse Numa. Ainda não estás
suficientemente forte. A tua cabeça ainda está
rachada como um ovo. Estarias a deitar fora a tua
vida.
- Temos de ir! - gritei. Deram-nos uma sentença de
morte! Vão ficar aqui àespera de morrer? Eu andava
às cegas pela fuselagem, à procura de qualquer
coisa - luvas, cobertores, meias - que pensava me
ajudaria no caminho, quando Marcelo me falou com
suavidade.
- O que quer que faças, Nando - disse -, tens de
pensar no bem dos outros. Usa a cabeça. Não te
percas. Ainda somos uma equipe e precisamos de ti.
A voz de Marcelo era firme, mas havia agora nela
uma tristeza, uma impressão de resignação
magoada. Qualquer coisa nele se quebrara quando
ouvira que as buscas tinham sido canceladas e
parecia que em poucos momentos perdera a força e
confiança que o tinham tornado um grande líder.
Encostado à parede da cabina dos passageiros,
parecia mais pequeno, mais abatido, e eu sabia que
ele estava a afundar-se rapidamente no desespero.
Mas o meu respeito por ele ainda era muito
profundo e não podia negar a sabedoria das suas
palavras; por isso, relutantemente, aquiesci em
concordância e descobri um lugar para me sentar ao
lado dos outros, no chão da fuselagem.
- Precisamos todos de manter a calma - disse
Gustavo -, mas Nando tem razão. Morreremos se
ficarmos aqui e, mais cedo ou mais tarde, vamos ter
de escalar a montanha. Mas temos de fazê-lo da
forma mais inteligente. Temos de entender com que
é que nos defrontamos. Sugiro que dois ou três de
nós tentemos escalar hoje. Talvez consigamos ter
uma ideia do que fica para lá destas montanhas.
- É uma boa ideia - disse Fito. Em caminho,
podemos procurar pela secção da cauda. Poderá
haver comida e roupas quentes lá dentro. E, se
Roque estiver certo, as baterias para o rádio estão lá,
também.
- Muito bem - disse Gustavo. Eu vou. Se sairmos já,
podemos estar de volta antes de o Sol se pôr. Quem
é que vem comigo?
- Eu vou - disse Numa, que já sobrevivera à
primeira tentativa para escalar as encostas
ocidentais.
- Eu também - disse Daniel Maspons, um dos
corajosos que ajudara a cortar a carne. Gustavo
assentiu.
- Vamos lá descobrir as roupas mais quentes que
pudermos e partir - disse. Agora que sabemos qual
é a situação, não há tempo a perder. Gustavo
demorou menos de uma hora a organizar a
escalada. Cada um dos alpinistas levaria um par de
sapatos de neve feitos com as almofadas dos
assentos, que Fito inventara, e um par de óculos
escuros que o primo de Fito, Eduardo, fizera
cortando lentes, das viseiras de plástico para o sol
que havia no habitáculo, e ligando-as com fios de
cobre. Os sapatos de neve impediriam que os
alpinistas se enterrassem na neve macia e os óculos
de sol protegeriam os olhos do brilho feroz do sol
nas encostas cobertas de neve. Para além disto,
estavam muito mal protegidos. Usavam apenas
camisolas por cima de camisas leves de algodão e
calças finas de Verão. Todos tinham mocassins nos
pés. Os outros escalariam com ténis de lona.
Nenhum usava luvas e não levavam cobertores,
mas estava um dia bom, o vento era fraco e o sol
quente aquecia-nos o suficiente para tornar o ar da
montanha tolerável. Se os alpinistas seguissem o
plano à risca e voltassem para o Fairchild antes de o
Sol se pôr, o frio não ofereceria perigo.
- Rezem por nós - disse Gustavo, quando partiram.
Observamos então os três a caminhar a passos
largos pelo glaciar em direcção aos altos cumes à
distância, seguindo o trilho que o Fairchild cavara
na neve. A medida que subiam lentamente a
encosta e se distanciavam, os seus corpos ficaram
cada vez mais pequenos até que eram apenas três
pontinhos avançando centímetro a centímetro pela
face branca da montanha. Pareciam tão pequenos e
frágeis como um trio de mosquitos e o meu respeito
pela sua coragem era infinito. Toda a manhã os
observámos a subir, até que desapareceram de
vista, e depois mantivemo-nos de vigília até ao fim
da tarde, percorrendo as encostas com os olhos para
detectar qualquer sinal de movimento. Quando a
luz enfraqueceu, ainda não havia sinal deles. Depois
a escuridão desceu e o frio amargo forçou-nos a
voltar para o abrigo da fuselagem. Nessa noite,
ventos fortes açoitaram o casco do Fairchild e jactos
de neve entraram por todas as frestas e fendas.
Enquanto nos enroscávamos e tremíamos nas
instalações apertadas, os pensamentos estavam com
os nossos amigos nas encostas expostas. Rezámos
fervorosamente pelo seu regresso, sãos e salvos,
mas era difícil ter esperança. Tentei imaginar o
sofrimento deles, encurralados a céu aberto nas suas
roupas finas, sem nada que os protegesse do vento
mortal. Todos nós agora sabíamos muito bem qual
era a face da morte, e foi fácil para mim imaginar os
meus amigos deitados hirtos na neve. Imaginei-os
como os corpos que vira no cemitério lá fora -a
mesma palidez cerosa e azulada na pele, os rostos
impassíveis e rígidos, a crosta de gelo agarrando-se
às sobrancelhas e aos lábios, engrossando o queixo,
embranquecendo o cabelo.
Via-os assim, deitados imóveis no escuro, mais três
amigos que eram agora meras coisas congeladas.
Mas onde, exactamente, tinham caído? Essa questão
começou a fascinar-me. Cada um deles encontrara o
momento e local exactos da sua morte. Quando
seria o meu momento? Onde seria o meu local?
Haveria um local nestas montanhas onde eu por fim
cairia e morreria como os outros, congelado para
sempre? Haveria um lugar assim para cada um de
nós? Seria esse o nosso destino, ficarmos espalhados
naquele lugar sem nome? A minha mãe e a minha
irmã estavam no local do acidente; Zerbino e os
outros nas encostas; e o resto de nós onde estaria
quando a morte decidisse levar-nos? E se
descobríssemos que a fuga era impossível? Sentar-
nos-íamos simplesmente ali à espera de morrer? E
se fizéssemos isso, como é que seria a vida para os
últimos sobreviventes, ou, pior, para o último de
todos? E se esse último fosse eu? Quanto tempo
conseguiria aguentar sem enlouquecer, sentado
sozinho na fuselagem à noite, com fantasmas
apenas por companhia e, como único som, o rugido
constante do vento? Tentei silenciar estes
pensamentos juntando-me aos outros noutra oração
pelos alpinistas, mas, no meu íntimo, não tinha a
certezase estava a rezar pelo seu regresso sãos e
salvos ou simplesmente pela graçadas suasalmas,
pela graça de todas as nossas almas, pois sabia que
mesmo na relativasegurança da fuselagem, a morte
se aproximava. É apenas uma questão detempo,
dissepara comigo, e talvez os que estão na
montanha esta noite sejam os que têm mais sorte,
pois para eles a espera acabou.
- Talvez tenham descoberto algum abrigo - disse
alguém.
- Não há abrigo naquela montanha - retorquiu
Roberto.
- Mas tu subiste e sobreviveste - observou outra
pessoa.
- Fizemos a escalada de dia e mesmo assim
sofremos - respondeu Roberto. Deve fazer uns
quarenta graus a menos lá em cima à noite.
- Eles são fortes - sugeriu alguém. Outros acenaram
com a cabeça e, por respeito, não disseram nada.
EntãoMarcelo, que não falava há horas, quebrou o
silêncio.
- A culpa é minha - disse baixinho. Matei-vos a
todos.Todos entendíamos o seu desânimo e não nos
surpreendia.
- Não penses nisso, Marcelo - disse Fito. Todos
partilhamos o mesmo destino aqui. Ninguém te
culpa.
- Fui eu que aluguei o avião! - explodiu Marcelo.
Contratei os pilotos! Marquei os jogos e persuadi-
vos a virem.
- Não persuadiste a minha mãe e a minha irmã -
disse. Fui eu que o fiz e agora elas estão mortas.
Mas não posso assumir essa culpa. Não temos culpa
se umavião cai do céu.
- Todos nós fizemos a nossa própria escolha - disse
alguém. És um bom capitão, Marcelo, não
desanimes.
Mas Marcelo estava a desanimar com muita rapidez
e angustiava-me vê-lo tão triste. Sempre fora um
herói para mim. Quando eu andava na escola
primária, ele já era uma estrela de râguebi no Stella
Maris e eu adorava vê-lo jogar. Tinha uma presença
imponente e entusiástica no campo e sempre
admirei a alegria e confiança com que jogava. Anos
mais tarde, quando me vi a jogar a seu lado no Old
Christians, o meu respeito pelos seus dotes atléticos
aprofundou-se ainda mais. Porém, não foram
apenas as suas façanhas no râguebi que
conquistaram o meu respeito. Como Arturo,
Marcelo era diferente dos outros, com mais
princípios, mais maduro. Era um católico devoto,
que seguia todos os ensinamentos da Igreja e
tentava ao máximo levar uma vida virtuosa. Não
era um moralista orgulhoso; de facto, era um dos
tipos mais humildes da equipe. Mas sabia em que
acreditava e, muitas vezes, valendo-se da mesma
autoridade e calmo carisma com que nos incitava a
sermos melhores colegas de equipe, aconselhava-
nos a sermos homens melhores. Estava
constantemente a repreender-me e a Panchito, por
exemplo, por causa da nossa impetuosa obsessão
com o sexo oposto. "Há mais coisas na vida, para
além de andar atrás de miúdas", dizia-nos com um
sorriso oblíquo. "Vocês os dois precisam de crescer
um pouco e levar a vida mais a sério." Marcelo tinha
prometido manter-se virgem até ao casamento e
muitos dos rapazes metiam-se com ele por causa
disso. Panchito, sobretudo, pensava que era
hilariante - sem mulheres até casar? Para Panchito,
era como pedir a um peixe para não nadar. Mas
Marcelo não ligava às piadas e eu ficava sempre
impressionado com a seriedade e respeito próprio
com que ele se comportava. Sob muitos aspectos,
era muito diferente de Arturo, o ardente socialista
com as ideias heréticas sobre Deus, mas, como
Arturo, parecia conhecer bem a sua mente. Tinha
reflectido cuidadosamente sobre todas as questões
importantes da sua vida e sabia com clareza qual o
seu posicionamento nessa vida. Para Marcelo, o
mundo era um lugar ordenado, vigiado por um
Deus sábio e amoroso que prometera proteger-nos.
O nosso trabalho era seguir os Seus mandamentos,
receber os sacramentos, amar a Deus e amar o
próximo como Jesus nos ensinara. Esta era a
sabedoria que formava os alicerces da sua vida e
moldava o seu carácter. Era também a fonte da sua
grande confiança no campo, do seu pé firme como
nosso capitão e do carisma que fazia dele um líder
tão forte. É fácil seguir um homem que não tem
dúvidas. Tínhamos sempre confiado plenamente
em Marcelo. Como é que ele se podia permitir
vacilar agora, quando precisávamos mais dele?
Talvez, pensei, nunca tivesse sido tão forte como
parecia. Mas então compreendi: Marcelo fora-se
abaixo, não porque a sua mente fosse fraca, mas
porque era forte de mais. A sua fé no resgate era
absoluta e inabalável: Deus não nos abandonaria.
As autoridades nunca nos deixariam morrer aqui.
Quando ouvimos as notícias de que as buscas
tinham sido canceladas, Marcelo deve ter-se sentido
como se a terra debaixo dos pés tivesse começado a
desagregar-se. Deus voltara as Suas costas, o
mundo virara-se de pernas para o ar e todas as
coisas que tinham feito de Marcelo um líder tão
forte - a sua confiança, o seu poder de decisão, a sua
fé inquebrantável nas suas próprias convicções e
escolhas - impediam-no agora de se refazer do
golpe que sofrera e encontrar um novo equilíbrio.
As suas certezas, que lhe tinham sido tão úteis no
mundo normal, roubavam-lhe agora o equilíbrio e a
flexibilidade necessários para se adaptar às novas
regras estranhas que regiam a nossa luta pela
sobrevivência. Quando as regras do jogo mudaram,
Marcelo despedaçou-se como vidro. Vendo-o
soluçar silenciosamente nas sombras, percebi de
súbito que, neste lugar horrível, demasiadas
certezas nos matariam; o pensamento civilizado
normal custar-nos-ia as vidas. Jurei a mim mesmo
nunca julgar que entendia estas montanhas. Nunca
ficaria prisioneiro das minhas próprias expectativas.
Nunca fingiria saber o que ia acontecer a seguir. As
regras ali eram demasiado selvagens e estranhas e
eu sabia que não podia imaginar as provações,
reveses e horrores que poderiam estar para vir.
Assim, aprenderia a viver em constante incerteza,
instante a instante, passo a passo. Viveria como se já
estivesse morto. Sem nada a perder, nada me
poderia surpreender, nada me poderia impedir de
lutar; os meus medos não me travariam de seguir os
meus instintos e nenhum risco seria demasiado
grande. Os ventos sopraram toda a noite e poucos
de nós dormiram, mas, por fim, a manhã chegou.
Um a um, limpámos o gelo dos nossos rostos,
enfiámos os pés em sapatos gelados e forçámo-nos a
levantar. Depois juntámo-nos lá fora e começámos a
perscrutar as montanhas, procurando algum sinal
dos nossos amigos perdidos. O céu estava límpido,
o sol já aquecera o ar e os ventos tinham
enfraquecido para uma brisa fraca. Avisibilidade
era bastante boa mas, após horas de observação,
não tínhamos detectado qualquer movimento nas
encostas. Então, ao fim da manhã, alguém gritou:
- Está uma coisa a mexer-se! - disse. Ali, por cima
daquela crista!
- Também vejo! - disse outra pessoa. Fitei a
montanha e finalmente vi o que os outros estavam a
ver: três pontos negros na neve.
- Aquilo são pedras - resmungou alguém. Não
estavam ali antes.
- A tua cabeça está a pregar-te partidas - suspirou
outro.
- Vê bem. Estão a mexer-se.
Um pouco mais abaixo na encosta estava uma
escura saliência rochosa. Usando esta rocha como
ponto de referência, mantive o olhar nos pontos
negros. Ao princípio,tive a certeza de que estavam
estacionários, mas passado um minuto ou dois era
evidente que os pontos estavam mais perto da
saliência rochosa. Era verdade!
- São eles! Estão-se a mexer! Puta carajo! Estão
vivos!
Os nossos espíritos animaram-se e trocámos socos e
empurrões na nossa alegria.
- Vamos, Gustavo! Vamos, Numa! Vamos, Daniel!
Vamos, seus malandros! Vocês conseguem!
Os três levaram duas horas para descer a encosta e
atravessar o glaciar e, todo esse tempo, nós
gritávamos para os encorajar, festejando como se os
nossos amigos tivessem regressado dos mortos. Mas
a comemoração terminou abruptamente quando se
aproximaram o suficiente para vermos em que
condições se encontravam. Vinham curvados e
devastados, fracos de mais para levantar os pés da
neve enquanto se arrastavam na nossa direcção,
apoiando-se uns nos outros para não caírem.
Gustavo semicerrava os olhos e tacteava com a mão
como se estivesse cego, e os três pareciam tão
exaustos e vacilantes que pensei que a brisa mais
leve os pudesse deitar ao chão. Mas o pior era a
expressão nos seus rostos. Pareciam ter envelhecido
vinte anos numa noite, como se a montanha tivesse
destruído a juventude e vigor dos seus corpos e, nos
seus olhos, vi algo que não estivera lá antes - a
combinação perturbadora de pavor e resignação
que se vê por vezes nos rostos de homens muito
velhos. Corremos ao encontro deles, depois
ajudámo-los a entrar na fuselagem e demos-lhes
almofadas para se deitarem. Roberto examinou-os
imediatamente. Viu que os pés estavam quase
congelados. Em seguida reparou nas lágrimas que
corriam dos olhos turvos de Gustavo.
- Foi o reflexo na neve - disse Gustavo. O sol era tão
forte...
- Não usaste os teus óculos? - perguntou Roberto.
- Partiram-se - disse Gustavo. Parece que tenho
areia nos olhos. Acho que estou cego.
Roberto pôs algumas gotas nos olhos de Gustavo -
uma coisa que encontrara numa mala e que pensava
poder aliviar a irritação - e embrulhou uma T-shirt à
volta da cabeça de Gustavo para proteger os olhos
feridos da luz. Em seguida disse-nos para nos
revezarmos a massajar os pés gelados dos
alpinistas. Alguém lhes trouxe grandes porções de
carne e eles comeram vorazmente. Depois de terem
descansado, começaram a falar sobre a escalada.
- A montanha é demasiado íngreme - disse Gustavo.
Em certos sítios é como escalar uma parede. Temos
de agarrar a neve à nossa frente para nos içarmos.
- E o ar é rarefeito - disse Maspons. Ofegamos, o
coração bate. Damos cinco passos e parece que
corremos meio quilómetro.
- Por que é que não vieram antes de cair a noite? -
perguntei-lhes.
- Escalámos o dia todo e só chegámos a meio da
encosta - disse Gustavo. Não queríamos regressar e
dizer-vos que tínhamos falhado. Queríamos ver o
que estava para lá das montanhas, queríamos voltar
com boas notícias. Por isso, decidimos encontrar um
abrigo para a noite e depois voltar a escalar de
manhã. Os alpinistas contaram-nos como tinham
descoberto um local plano perto de uma saliência
rochosa. Fizeram um muro baixo com pedras
grandes que encontraram por ali e enroscaram-se
por trás dele, na esperança de que os escudasse do
vento à noite. Após tantas noites a gelar na
fuselagem, os alpinistas não pensaram ser possível
sofrer muito mais de frio. Rapidamente perceberam
que estavam errados.
- O frio naquelas encostas é indescritível - disse
Gustavo. Arranca-nos a vida. É tão doloroso como
fogo. Nunca pensei que conseguíssemos sobreviver
até de manhã.
Contaram-nos como tinham sofrido horrivelmente
nas suas roupas leves, socando-se uns aos outros
nos braços e nas pernas para manter o sangue a
correr nas veias e apertando-se muito para
partilharem o calor dos seus corpos. A medida que
as horas se arrastavam, tiveram a certeza de que a
sua decisão de permanecer nas montanhas lhes
custaria as vidas, mas, de alguma maneira, duraram
até de madrugada e, por fim, sentiram os primeiros
raios de sol a aquecer as encostas. Espantados por
estarem vivos, deixaram o sol degelar-lhes os
corpos enregelados, depois viraram-se para a
encosta e continuaram a escalar.
- Descobriram a cauda? - perguntou Fito.
- Só encontrámos destroços e alguma bagagem -
respondeu Gustavo. E alguns corpos.
Então explicou como tinham encontrado os restos
das pessoas que tinham caído do avião, muitas
ainda presas nos seus assentos.
- Tirámos estas coisas dos corpos - disse, puxando
de alguns relógios, carteiras, medalhas religiosas e
outros objectos pessoais que retirara dos cadáveres.
- Os corpos estavam numa parte bem alta da
encosta - disse Gustavo -, mas ainda estávamos
longe do cume. Não tínhamos forças para continuar
a escalar e não queríamos ficar ali presos outra
noite. Mais tarde, nessa noite, quando as coisas se
aquietaram na fuselagem, fui ter com Gustavo.
- O que é que viste lá em cima? - perguntei. Viste
para além dos picos? Viste algum verde?
Ele abanou a cabeça, exausto.
- Os picos são demasiado altos. Não se consegue ver
muito longe.
- Mas deves ter visto alguma coisa. Ele encolheu os
ombros.
- Vi por entre dois picos, à distância...
- O que viste?
- Não sei, Nando, algo amarelado, acastanhado, não
sei dizer bem, era um ângulo muito estreito. Mas
uma coisa tens de perceber: quando estávamos lá no
alto, nas montanhas, olhei para baixo para o local
do acidente. O Fairchild é um pontinho minúsculo
na neve. Não se distingue de uma rocha ou de uma
sombra. Não há qualquer esperança de que um
piloto o possa ver de um avião. Nunca houve
nenhuma hipótese de sermos salvos. A notícia de
que as buscas tinham sido canceladas convenceu até
os mais esperançosos do grupo de que estávamos
por nossa conta e que a única hipótese de
sobrevivência agora era salvarmo-nos a nós
próprios. Mas o fracasso da missão de Gustavo
desanimou-nos e, à medida que os dias passavam,
os nossos espíritos ainda se abateram mais quando
compreendemos que Marcelo, mergulhado nas suas
dúvidas e desespero, abdicara silenciosamente do
seu papel como nosso líder. Parecia não haver
ninguém para substituí-lo. Gustavo, que assumira
também a liderança desde os primeiros momentos
da nossa provação, com a sua coragem e engenho,
ficara devastado com a montanha e não conseguia
recuperar as forças. Roberto ainda era uma presença
forte e aprendêramos todos a confiar na sua
inteligência e imaginação aguçada, mas era um
jovem extremamente teimoso, demasiado irritável e
beligerante para inspirar o tipo de confiança que
nutríamos por Marcelo. Rapidamente, na ausência
de um único líder forte, surgiu um tipo de liderança
menos rígido e formal. Formaram-se alianças,
baseadas em amizades anteriores, temperamentos
semelhantes e interesses comuns. A aliança mais
forte era a formada por Fito e seus primos, Eduardo
Strauch e Daniel Fernandez. Dos três, Fito era o
mais novo e o mais proeminente. Era um rapaz
sossegado e, ao princípio, pensei que fosse quase
aflitivamente tímido, mas em breve provou ser
brilhante e sensato e, embora tivesse uma ideia
inflexível de como as nossas hipóteses eram más, eu
sabia que tencionava lutar com todas as suas forças
para nos ajudar a sobreviver. Os três primos eram
muito chegados e, com Daniel e Eduardo a
seguirem de forma consistente a liderança de Fito,
representavam uma força unificadora que lhes dava
uma grande dose de influência sobre todas as
decisões que tomávamos. E isso era uma boa coisa
para todos nós. Os "primos", como lhes
chamávamos, ofereciam-nos um centro forte e
estável que impediu que o grupo se desintegrasse
em facções e nos salvou de todo o conflito e
confusão que isso poderia ter provocado.
Conseguiram também convencer a maior parte dos
sobreviventes de que as nossas vidas estavam agora
nas nossas mãos, e que cada um de nós tinha de
fazer tudo o que podia para sobreviver. Rendendo-
se a esse conselho e à súplica de Javier, Liliana
finalmente começou a comer. Um a um, o resto dos
relutantes - Numa, Coche e outros - fizeram o
mesmo, dizendo a si próprios que extrair vida dos
corpos dos seus amigos mortos era como extrair
força espiritual do corpo de Cristo quando recebiam
a comunhão. Aliviado por ver que se alimentavam,
não questionei o raciocínio deles, mas, para mim,
comer a carne dos mortos não passava de uma
escolha difícil e pragmática que fizera para
sobreviver. Ficava comovido com a ideia de que,
mesmo na morte, os meus amigos me davam o que
eu precisava para viver, mas não tinha qualquer
sensação exaltada de ligação espiritual com os
mortos. Os meus amigos tinham desaparecido.
Estes corpos eram objectos. Seríamos loucos se não
os usássemos. A medida que os dias passavam,
tornámo-nos mais eficientes a processar a carne.
Fito e os primos assumiram a responsabilidade de
cortar a carne e a racionarem para nós e, em breve,
conceberam um sistema eficiente. Depois de cortar a
carne em pequenos pedaços, dispunham-na em
placas de alumínio e deixavam-na secar ao sol, o
que a tornava muito mais fácil de digerir. Nas raras
ocasiões em que fizemos uma fogueira, eles até a
cozinharam, o que melhorou dramaticamente o
sabor. Para mim, comer a carne foi ficando mais
fácil com o tempo.
Alguns não conseguiam ultrapassar a sua náusea,
mas todos comíamos agora o suficiente para evitar a
inanição. Por respeito por mim, os outros tinham
prometido não tocar nos corpos da minha mãe e da
minha irmã, mas, mesmo assim, havia corpos
suficientes para durarem semanas se racionássemos
a carne com cuidado. Para fazer a comida durar
ainda mais, começámos por fim a comer os rins, o
fígado e até os corações. Estes órgãos internos eram
altamente nutritivos e, por mais horrível que possa
soar, neste ponto da nossa provação, a maior parte
dos sobreviventes já se acostumara ao horror de ver
os amigos a serem esfolados como gado. Porém,
comer carne humana nunca satisfez a minha fome e
nunca me devolveu a minha força. Continuava a
definhar, como os outros, e a pequena quantidade
de alimento que nos permitíamos todos os dias
apenas atrasava o processo de inanição. O tempo
estava a esgotar-se e eu sabia que em breve estaria
demasiado fraco para escalar a montanha. Tornou-
se o meu maior medo, que ficássemos tão fracos a
ponto de a fuga se tornar impossível, que
usássemos todos os corpos e depois não tivéssemos
outro remédio senão elanguescer no local do
acidente, definhando, fitando os olhos uns dos
outros, à espera de ver qual dos nossos amigos de
tornaria a nossa comida. Este cenário horrível
preocupava-me e, por vezes, precisava de toda a
minha autodisciplina para não ignorar os desejos
dos outros e partir sozinho. Mas o quase desastre da
expedição de Gustavo dera-me um novo
entendimento de como a escalada seria difícil.
Como os outros, eu estava assombrado com o que a
montanha fizera a Gustavo, que era famoso pela sua
dureza e resistência no campo. Por que deveria
acreditar que podia conquistar a montanha, quando
ele não conseguira? Em momentos de fraqueza,
rendia-me ao desespero. Olha para estas
montanhas, dizia para comigo mesmo. É
impossível, estamos encurralados aqui. Estamos
acabados. Todo o nosso sofrimento foi em vão.
Mas sempre que me entregava ao derrotismo e à
auto-compaixão, o rosto do meu pai flutuava do
recesso da minha memória, recordando-me do seu
sofrimento e da promessa que eu fizera de voltar
para ele. Por vezes, quando pensava não aguentar o
frio ou a sede ou o terror aflitivo nem por mais um
segundo, sentia uma poderosa ânsia de me render.
"Podes acabar com isto quando quiseres", dizia para
mim mesmo. "Deita-te na neve. Deixa o frio levar-te.
Descansa simplesmente. Não te mexas. Deixa de
lutar." Eram pensamentos reconfortantes, sedutores,
mas se eu os saboreasse por demasiado tempo, a
voz na minha mente interromper-me-ia. Quando
escalares a montanha, certifica-te de que cada apoio
para as mãos é bom. Não confies que uma rocha vá
aguentar o teu peso, testa cada passo que dás.
Procura as fendas escondidas na neve. Encontraum
bom abrigo para as noites... Pensava na escalada e
isso recordava-me a promessa que fizera ao meu
pai. Pensava nele e deixava o meu coração encher-
se de amor por ele e esse amorera mais forte do que
o meu sofrimento ou o meu medo. Após duas
semanas na montanha, o meu amor pelo meu pai
adquirira o poder irresistível de um impulso
biológico. Eu sabia que algum dia teria de escalar a
montanha, embora estivesse a escalar em direcção à
morte. Mas o que é que isso importava? Já era um
homem morto. Por que não morrer nas montanhas,
lutando passo a passo, para que quando morresse,
morresse um passo mais perto de casa? Estava
pronto para enfrentar esse tipo de morte, mas, por
mais inevitável que essa morte parecesse, ainda
sentia uma fagulha de esperança de que conseguiria
de alguma forma cambalear por aquela imensidão
árida afora e chegar a casa. A ideia de largar a
fuselagem aterrorizava-me, embora mal pudesse
esperar para me ir embora. Sabia que, de alguma
maneira, encontraria coragem para enfrentar as
montanhas; também sabia que nunca teria coragem
suficiente para as enfrentar sozinho. Precisava de
um companheiro para a viagem, alguém que me
tornasse mais forte e mais capaz; por isso, comecei a
estudar os outros, pesando as suas forças, os seus
temperamentos, o seu desempenho sob stresse,
tentando imaginar qual destes rapazes
esfarrapados, esfomeados e assustados quereria
mais ter a meu lado. Vinte e quatro horas antes, a
questão teria tido uma resposta simples: teria
escolhido Marcelo, o nosso capitão, e Gustavo, cuja
força de carácter sempre admirara. Mas agora
Marcelo entrara em desespero, e Gustavo fora
arrasado e cegado pela montanha, e eu receava que
nenhum dos dois recuperasse a tempo de ir comigo.
Assim, virei a minha atenção para os outros
sobreviventes saudáveis e, ao observá-los, alguns
prenderam rapidamente a minha atenção. Fito
Strauch provara a sua bravura na primeira tentativa
para escalar a montanha e conquistara o nosso
respeito pela sua serenidade e clareza de
pensamento durante toda a provação. Os primos de
Fito, Eduardo e Daniel Fernandez, representavam
uma grande fonte de força para ele, e eu, por vezes,
interrogava-me como é que ele se sairia sozinho na
montanha, mas Fito estava definitivamente bem
classificado na minha lista. Numa Turcatti também.
Numa impressionara-me desde o início e, com o
passar dos dias, o meu respeito por ele aumentara.
Embora fosse um estranho para a maioria antes do
acidente, rapidamente conquistara a amizade e
admiração de todos os sobreviventes. Numa fazia
sentir a sua presença através de um heroísmo
discreto: ninguém lutou mais pela nossa
sobrevivência, ninguém inspirou mais esperança e
ninguém mostrou tanta compaixão pelos que
sofriam mais. Embora fosse um amigo novo para
quase todos, creio que Numa era o homem mais
estimado nas montanhas. Daniel Maspons, que
acompanhara com bravura Gustavo na escalada, era
outro candidato. Também Coco Nicholich, cujo
altruísmo e compostura me tinham impressionado.
António Vizintin, Roy Harley e Carlitos Paez eram
todos saudáveis e fortes. E depois havia Roberto, a
figura mais brilhante, mais difícil e mais complicada
naquela montanha. Roberto sempre fora um jovem
com quem era difícil lidar. Filho de um
cardiologista de renome em Montevideu, era
inteligente, confiante, egoísta e interessado em
seguir apenas as suas próprias regras. Por causa da
sua natureza contrária, estava sempre metido em
problemas na escola e parecia que a mãe estava
sempre a ser chamada ao gabinete do director para
aguentar outra palestra sobre as transgressões de
Roberto. Ele recusava simplesmente que lhe
dissessem o que fazer. Por exemplo, Roberto tinha
um cavalo que levava para a escola todas as
manhãs, embora os Irmãos o tivessem proibido,
repetidas vezes, de trazer o animal para os terrenos
da escola. Roberto simplesmente ignorava-os.
Amarrava o cavalo junto das bicicletas, o animal
conseguia soltar-se e, uma hora ou duas depois, os
Irmãos encontravam-no a vaguear pelo jardim,
mastigando os seus queridos arbustos e flores.
Também esporeava o grande animal pelas ruas
congestionadas de Carrasco, galopando pelos
passeios e cruzamentos movimentados tão depressa
que as ferraduras do cavalo lançavam faíscas no
asfalto. Os condutores desviavam-se e os pedestres
saltavam para o lado. Os nossos vizinhos
queixavam-se constantemente e uma ou duas vezes
a polícia falou com o pai de Roberto, mas ele
continuou a montar. Na esperança de encontrar um
escape para a turbulência de Roberto, os Irmãos
incentivaram-no a jogar râguebi, onde a sua
natureza vigorosa o transformou numa presença
formidável em campo. Era ponta esquerda, a
mesma posição de Panchito na direita, mas
enquanto Panchito se esquivava e serpenteava
graciosamente pelos placadores em direcção à linha
de ensaio, Roberto preferia abrir um caminho mais
directo pelos adversários, uma cabeçada atrás da
outra. Não era um dos nossos maiores jogadores,
mas as suas pernas grossas estavam tão
impressionantemente desenvolvidas que, junto com
a sua famosa cabeça dura, lhe valeram a alcunha de
Músculo. Impulsionado por membros tão robustos
e por tamanha beligerância natural, Roberto fazia
frente a adversários muito maiores e o que mais
adorava era baixar o ombro e enviar algum
placador grandalhão pelos ares. Roberto adorava o
râguebi, mas o desporto não o curou da teimosia
como os Irmãos tinham esperado. Roberto era
Roberto, no campo ou fora dele; e, mesmo no meio
de um desafio difícil, recusava-se a receber ordens.
Os nossos treinadores preparavam-nos bem para
todos os jogos, com jogadas e estratégias ensaiadas
e todos nós tentávamos com afinco seguir o plano
de jogo. Mas Roberto reservava-se sempre o direito
de improvisar à sua vontade. Geralmente isso
significava ficar com a bola quando deveria tê-la
passado, ou atirar-se de cabeça para cima de um
adversário quando os treinadores queriam que ele
dançasse em campo aberto. Suportando de má
vontade as reprimendas dos treinadores, o brilho
escuro dos seus olhos penetrantes mostrava desafio
e impaciência. Ficava furioso quando lhe diziam o
que tinha de fazer. Sentia simplesmente que a sua
maneira de fazer as coisas era melhor. E vivia desta
forma em todas as facetas da sua vida. A força de
carácter de Roberto transformava-o num amigo
complicado e, mesmo nas circunstâncias
confortáveis da nossa vida em Carrasco, ele podia
ser arrogante e insolente. Na atmosfera pesada da
fuselagem, a sua conduta era muitas vezes
insuportável. Ignorava de forma rotineira decisões
tomadas pelo grupo e virava-se contra qualquer
pessoa que o desafiasse, chovendo ofensas e
insultos no falsete beligerante que usava quando o
sangue esquentava. Conseguia ser brutalmente
insensível: se tivesse de sair do avião à noite para
urinar, por exemplo, simplesmente pisava os braços
e pernas de quem quer que estivesse a dormir no
seu caminho. Dormia onde bem entendia, mesmo
que isso significasse empurrar os outros dos lugares
que tinham escolhido. Lidar com o temperamento
impaciente e a agressividade de Roberto criava um
stresse de que não precisávamos e custava-nos uma
energia que não nos podíamos dar ao luxo de
desperdiçar e, mais do que uma vez, a sua aspereza
e teimosia quase provocaram brigas. Porém, apesar
da sua natureza difícil, eu respeitava Roberto. Era o
mais inteligente e engenhoso de todos nós. Sem os
seus cuidados médicos rápidos e sagazes na
sequência do acidente, muitos dos rapazes que
estavam agora a recuperar dos seus ferimentos
poderiam estar mortos, e o seu pensamento criativo
resolvera muitos problemas de formas que nos
davam mais segurança e conforto na montanha. Foi
Roberto que percebeu que as capas dos assentos do
Fairchild podiam ser removidas e usadas como
cobertores, uma inovação que poderá ter-nos salvo
a todos de enregelar. A maioria das ferramentas
simples que usávamos, e a nossa rude selecção de
suprimentos médicos, tinha sido improvisada por
ele a partir de coisas que aproveitara dos destroços.
E, apesar da sua arrogância egoísta, eu sabia que ele
sentia grande responsabilidade por todos nós.
Depois de ver como Arturo e Rafael sofriam à noite
deitados no chão do avião (e de gritar ferozmente
com eles para pararem com os seus patéticos
gemidos), Roberto passou horas na manhã seguinte
a construir as redes balouçantes que deram àqueles
dois rapazes feridos algum alívio na sua dor. Não
era propriamente compaixão que o instigava a fazer
estas coisas, era mais um sentido de dever.
Conhecia os seus dotes e capacidades, e
simplesmente fazia sentido para ele realizar o que
sabia que mais ninguém conseguia fazer. Eu sabia
que o desembaraço de Roberto seria muito
vantajoso em qualquer tentativa para escapar dali.
Também confiava na sua visão realista da nossa
situação - ele compreendia como o nosso estado era
desesperado e que a nossa única esperança era
salvarmo-nos a nós próprios. Porém, mais do que
tudo, eu queria-o comigo simplesmente porque era
Roberto, a pessoa mais determinada e resoluta que
já conhecera. Se havia alguém do nosso grupo que
poderia enfrentar os Andes apenas por pura
teimosia, esse alguém era Roberto. Não seria um
companheiro de viagem muito fácil e preocupava-
me o facto de a sua natureza difícil nos poder
mergulhar em conflito pelo caminho, sabotando
qualquer fraca hipótese que tínhamos de chegar à
civilização. Mas, intuitivamente, compreendia que a
obstinação e a personalidade forte de Roberto
seriam o complemento perfeito para os impulsos
desenfreados que me levavam a fugir cegamente
em direcção às montanhas. Com a minha ânsia
maníaca de escapar, eu seria o motor que nos
puxaria através das montanhas; o espírito intratável
de Roberto seria a embraiagem que me impediria
de acelerar e perder o controlo. Eu não tinha forma
de saber que provações nos aguardavam naquela
imensidão árida, mas sabia que Roberto me tornaria
mais forte e mais capaz durante o trajecto. Era dele
que eu precisava a meu lado e, quando me pareceu
a altura certa e estávamos sozinhos, pedi-lhe que
me acompanhasse.
- Temos de fazer isto, Roberto, tu e eu - disse.
Temos mais hipóteses do que qualquer outra pessoa
aqui.
- Estás louco, Nando - cortou ele, a voz a subir de
tom. Olha para a porra dessas montanhas. Fazes
alguma ideia de como são altas?
Olhei para o pico mais alto.
- Talvez duas ou três vezes o Pan de Azúcar - disse,
referindo-me à "montanha" mais alta do Uruguai.
Roberto bufou.
- Não sejas idiota! - guinchou. Não há neve no Pan
de Azúcar! Tem apenas quatrocentos e cinquenta
metros! Esta montanha é dez vezes mais alta, pelo
menos!
- Que escolha temos? - respondi. Temos de tentar.
Por mim, já decidi. Vou escalar a montanha,
Roberto, mas tenho medo. Não consigo fazê-lo
sozinho. Preciso que venhas comigo. Roberto
abanou a cabeça pesarosamente.
- Viste o que aconteceu ao Gustavo - disse. E só
chegaram a meio caminho da encosta.
- Não podemos ficar aqui - disse. Sabes isso tão bem
como eu. Precisamos de partir o mais cedo possível.
- Nem pensar! - gritou Roberto. Teria de ser
planeado. Temos de fazer isto de forma inteligente.
Temos de reflectir em todos os detalhes. Como é
que escalamos? Que encosta? Em que direcção?
- Eu penso nessas coisas constantemente - disse eu.
Vamos precisar de comida, água, roupas quentes...
- Como é que evitamos congelar à noite? -
perguntou ele.
- Descobrimos abrigos debaixo das rochas -
respondi eu -, ou então escavamos cavernas na
neve.
- O momento certo é muito importante - disse ele.
Teríamos de esperar que o tempo melhorasse.
- Mas não podemos esperar muito tempo para não
estarmos demasiado fracos para fazer a escalada -
disse-lhe eu. Roberto ficou em silêncio durante um
instante.
- Vai matar-nos, sabes - disse.
- Provavelmente vai - repliquei -, mas se ficarmos
aqui já estamos mortos. Não posso fazer isto
sozinho, Roberto. Por favor, vem comigo. Por um
momento, Roberto pareceu estudar-me com o seu
olhar penetrante, como se nunca me tivesse visto
antes. Depois acenou para a fuselagem.
- Vamos para dentro - disse. O vento está a levantar-
se e estou com frio.
Nos dias que se seguiram, todos se dedicaram a
discutir o nosso plano de sair dali escalando a
cordilheira e, em breve, percebi que os outros
estavam a começar a confiar neste plano de forma
tão desesperada como já tinham anteriormente
confiado na certeza do resgate. Como eu fora o
primeiro a falar abertamente sobre a nossa
necessidade de escaparmos, e porque sabiam que
eu certamente faria parte dos que tentariam a
escalada, muitos dos sobreviventes começaram a
ver-me como um líder. Nunca na vida eu assumira
esse papel - fora sempre o que ia atrás, seguindo a
maré, deixando os outros mostrar-me o caminho.
Certamente que não me sentia como um líder agora.
Será que eles não percebiam como eu estava
confuso e assustado? Queriam realmente um líder
que sentia no fundo do seu coração que já
estávamos todos perdidos? Eu não tinha qualquer
desejo de liderar ninguém; precisava de toda a
minha força só para não me deixar abater.
Preocupava-me estar-lhes a dar falsas esperanças,
mas por fim decidi que falsas esperanças são
melhores do que não ter esperança nenhuma.
Assim, guardei os meus pensamentos só para mim.
Eram pensamentos sombrios, sobretudo, mas, certa
noite, aconteceu uma coisa extraordinária. Já
passava da meia-noite, a fuselagem estava escura e
fria como sempre e eu estava deitado, agitado,
naquele estupor superficial e grogue que era a coisa
mais parecida com sono genuíno que alguma vez
consegui, quando, sem saber como, fui sacudido
por uma onda de alegria tão profunda e sublime
que quase ergueu o meu corpo do chão. Por um
instante o frio desapareceu, como se eu tivesse sido
banhado por uma luz quente e dourada e, pela
primeira vez desde que o avião se despenhara, tive
a certeza de que sobreviveria. Excitado, acordei os
outros.
- Ei, ouçam lá! - gritei. Vamos ficar bem. Vou levar-
vos para casa a tempo do Natal!
A minha explosão pareceu intrigar os outros, que
apenas murmuraram baixinho e voltaram a
adormecer. Dentro de momentos, a minha euforia
passou. Tentei a noite inteira recuperar o
sentimento, mas ele fugira. De manhã, o meu
coração estava mais uma vez repleto de dúvidas e
pavor.

6 SEPULTURA
Na última semana de Outubro, tínhamos escolhido
o grupo que partiria do local do acidente e tentaria
encontrar ajuda Ninguém tinha a menor dúvida de
que eu iria - teriam de me atar a uma rocha para me
impedirem de partir. Roberto finalmente
concordara em ir comigo. Fito e Numa
completariam a equipe. Os outros sobreviventes
aprovaram as escolhas e começaram a referir-se a
nós como "os expedicionários". Decidiu-se que
receberíamos rações maiores de comida para
ficarmos mais fortes. Receberíamos também as
roupas mais quentes e os melhores lugares para
dormir e seríamos dispensados das nossas tarefas
diárias para que pudéssemos conservar a nossa
energia para o caminho. O facto de termos uma
equipe de expedicionários designada fez com que
os nossos planos para escapar dali parecessem por
fim, verdadeiros e, como reacção, o moral do grupo
começou a subir. E, após duas semanas na
montanha, descobrimos outras razões para ter
esperança: apesar de tanto sofrimento e tantos
horrores, nenhum de nós morrera desde o nosso
oitavo dia na montanha, quando eu perdera Susy.
Com todos aqueles corpos congelados na neve,
tínhamos comida suficiente para nos mantermos
vivos e, apesar de ainda sofrermos nas noites
gélidas, sabíamos que desde que nos enroscássemos
no abrigo do Fairchild, o frio não conseguiria matar-
nos. A nossa situação ainda era grave, mas
começámos a sentir que tínhamos ultrapassado o
ponto de crise. As coisas pareciam mais estáveis.
Tínhamos solucionado as ameaças imediatas que se
nos deparavam e agora podíamos jogar um
compasso de espera, descansando e fortalecendo-
nos, enquanto esperávamos que o tempo
melhorasse, para depois iniciarmos a escalada.
Talvez tivéssemos assistido ao último dos horrores.
Talvez todos nós, os 27, estivéssemos destinados a
sobreviver. Que outro motivo teria tido Deus para
nos salvar? Muitos de nós consolavam-se com estes
pensamentos quando entrámos na fuselagem na
noite de 29 de Outubro e nos preparámos para
dormir.
Era uma noite ventosa. Acomodei-me no chão e
Liliana deitou-se a meu lado. Durante algum
tempo, conversou baixinho com Javier que estava
de frente para ela. Como sempre, falaram dos filhos.
Liliana preocupava-se com eles a todo o instante e
Javier confortava-a, dizendo-lhe que seguramente
os avós estavam a cuidar bem deles. Eu sentia-me
tocado pela ternura que existia entre eles.
Partilhavam uma tal intimidade, um tal sentido de
companheirismo. Era como se fossem uma única
pessoa. Antes do acidente, tinham vivido a vida que
eu sonhava para mim - um casamento forte, as
alegrias de um lar e de uma família amorosos. Será
que voltariam para essa vida? E então eu? A minha
própria hipótese de alcançar tal felicidade morreria
ali comigo naquele inferno gelado? Deixei os meus
pensamentos vaguear: Onde, neste preciso
momento, estava a mulher com quem casaria?
Estaria também a pensar no seu futuro -com quem
casaria e onde poderia estar esse homem? Aqui
estou eu, pensei, a congelar no topo do mundo e a
pensar em ti... Passado um momento, Javier
resolveu tentar dormir e Liliana virou-se para mim.
- Como é que está a tua cabeça, Nando? - perguntou
ela. Ainda dói?
- Só um pouco - disse eu.
- Devias descansar mais.
-Estou contente por teres decidido comer - disse-lhe.
- Quero ver os meus filhos - respondeu ela. E se não
comer, morro. Faço-o por eles.
- Como é que está Javier?
- Ainda se sente tão mal - suspirou ela. Rezo com ele
muitas vezes. Ele tem acerteza de que Deus nos
dará uma oportunidade.
- Achas que sim? - perguntei. Achas que Deus nos
vai ajudar? Sinto-me tão confuso. Tenho tantas
dúvidas.
- Deus salvou-nos até agora - disse ela. Temos de
confiar Nele.
- Mas por que é que Deus nos salvou e deixou os
outros morrer? A minha mãe, aminha irmã,
Panchito, Guido? Eles não queriam que Deus os
salvasse?
- Não há nenhuma forma de entender Deus ou a
Sua lógica - replicou ela.
- Então porque devemos confiar Nele? - perguntei.
E então todos os judeus que morreram nos campos
de concentração? E todos os inocentes mortos em
pragas, purgas e desastres naturais? Por que é que
Ele lhes voltou as costas e arranjou tempo para nós?
Liliana suspirou e senti o hálito quente dela na
minha face.
-Estás a ficar muito complicado - disse ela, com
doçura na voz. Tudo o que podemos fazer é amar a
Deus e ao próximo e confiar na vontade de Deus.
As palavras de Liliana não me convenceram, mas a
sua ternura e bondade confortaram-me. Tentei
imaginar como devia ter saudades dos filhos e
proferi uma oração desejando que em breve
ficassem juntos, depois fechei os olhos e caí na
minha habitual sonolência agitada. Dormitei algum
tempo, talvez meia hora, e depois despertei,
assustado e desorientado, com uma força enorme e
pesada a golpear-me o peito. Alguma coisa estava
terrivelmente errada. Senti uma humidade gelada a
pressionar-me o rosto e um peso esmagador a cair
sobre mim, expulsando-me o ar dos pulmões. Após
um instante de desorientação, percebi o que tinha
acontecido - uma avalanche rolara pela montanha
abaixo e enchera a fuselagem de neve. Houve um
momento de completo silêncio, depois ouvi um
chiado lento, molhado, quando a neve solta
assentou sob o seu próprio peso e se depositou à
minha volta como uma rocha. Tentei mexer-me,
mas parecia que o meu corpo estava encaixado em
cimento e nem sequer conseguia sacudir um dedo.
Consegui inspirar fracamente, mas logo a neve se
acumulou na minha boca e narinas e comecei a
sufocar. Ao princípio, a pressão no meu peito era
insuportável, mas, à medida que a minha
consciência diminuía, deixei de notar aquele
desconforto. Os meus pensamentos tornaram-se
calmos e lúcidos. "Esta é a minha morte", disse para
mim mesmo. "Agora vou ver o que existe lá do
outro lado." Não senti nenhuma emoção forte. Não
tentei gritar ou debater-me. Esperei simplesmente e,
ao aceitar a minha impotência, uma sensação de paz
envolveu-me. Esperei pacientemente que a minha
vida terminasse. Não houve anjos, nem revelações,
nem um longo túnel em direcção a uma luz
dourada e acolhedora. Pelo contrário, experimentei
apenas o mesmo silêncio negro em que caíra
quando o Fairchild batera na montanha. Flutuei de
volta a esse silêncio. Deixei a minha resistência
desvanecer-se. Estava acabado. Não havia mais
medo. Não havia mais luta. Só silencio sem fim, e
descanso. Então uma mão raspou a neve do meu
rosto e fui devolvido ao mundo dos vivos. Alguém
cavara um poço estreito através de vários
centímetros de neve para mealcançar. Cuspi a neve
da minha boca e engoli ar frio para os meus
pulmões, embora opeso da neve no meu peito
tornasse difícil respirar normalmente.Ouvi a voz de
Carlitos por cima da minha cabeça.
- Quem és? - gritou.
- Eu - cuspi. O Nando.
Então ele deixou-me. Ouvi caos por cima de mim,
vozes a gritar e a soluçar.
- Procura os rostos! - gritou alguém. Dá-lhes ar! -
Coco! Onde está Coco?
- Ajudem-me aqui! Alguém viu Marcelo? Quantos
temos? Quem é que falta? Alguém que conte!
Depois ouvi a voz de Javier a gritar histericamente:
- Liliana? Liliana? Ajudem-na! Aguenta-te, Liliana!
Oh, por favor, despachem-se, encontrem-na!
O caos durou apenas alguns minutos e depois a
fuselagem caiu em silêncio. Passados alguns
momentos, eles escavaram para me tirar dali e eu
conseguisair da neve. A escura fuselagem estava
sinistramente iluminada pela chama do isqueiro
que Pancho Delgado segurava. Vi alguns dos meus
amigos imóveis no chão. Outros erguiam-se da
neve, como mortos-vivos da sepultura. Javier estava
ajoelhado a meu lado,com Liliana nos braços. Eu
sabia, pela forma como os braços e a cabeça
pendiam frouxamente, que estava morta. Abanei a
cabeça, incrédulo, quando Javier começou asoluçar.
- Não - disse eu monocordicamente. Não. Como se
pudesse contestar o queacabara de acontecer. Como
se pudesse recusar-me a permitir que fosse real.
Lancei um olhar aosoutros de pé a meu lado.
Alguns estavam a chorar, alguns confortavam
Javier,outros fitavamsimplesmente as sombras com
uma expressão entorpecida nos rostos. Por um
instante ninguém falou, mas quando o choque
abrandou, contaram-me o que tinham visto.
Começou com um rugido distante na montanha.
Roy Harley ouviu o barulho e levantou-se de um
salto. Segundos depois, a avalanche irrompeu pela
parede improvisada na parte traseira da fuselagem,
enterrando-o até às ancas. Horrorizado, Roy que
todos nós, a dormir no chão, tínhamos ficado
enterrados na neve. Aterrorizado com a
possibilidade de estarmos todos mortos e de ele ter
ficado sozinho na montanha, Roy começou a cavar.
Rapidamente desenterrou Carlitos, Fito e Roberto.
A medida que cada rapaz ia sendo desenterrado,
começava também a cavar. Andaram para a frente e
para trás na superfície da neve, procurando
freneticamente os nossos corpos enterrados, mas
apesar dos seus esforços não foram suficientemente
rápidos para nos salvar a todos. As nossas perdas
eram pesadas. Marcelo estava morto. Enrique
Platero, Coco Nicholich e Daniel Maspons também.
Carlos Roque, o mecânico do Fairchild, e Juan
Carlos Menendez tinham morrido debaixo da
parede caída. Diego Storm que, no terceiro dia da
provação, salvara a minha vida ao arrastar-me para
a parte mais quente da fuselagem enquanto eu
ainda estava em coma, tinha sufocado sob a neve. E
Liliana que, apenas há alguns momentos, me
dissera palavras bondosas de conforto, também se
fora. Gustavo ajudara Javier a desenterrá-la, mas
demasiado tempo se passara e quando a
descobriram ela já morrera. É difícil descrever a
profundidade do desespero que desabou sobre nós
depois da avalanche. A morte dos nossos amigos
deitou-nos abaixo. Tínhamo-nos permitido acreditar
que passáramos o ponto de perigo, mas agora
víamos que nunca estaríamos a salvo neste lugar. A
montanha podia matar-nos de muitas maneiras. O
que me torturava mais era a natureza caprichosa da
morte. Como é que se podia entender aquilo?
Daniel Maspons estivera a dormir apenas a
centímetros de mim, à direita. Liliana estava à
minha esquerda. Ambos estavam mortos. Porquê
eles e não eu? Eu era mais forte? Mais esperto? Mais
bem preparado? A resposta era clara: Daniel e
Liliana queriam viver tanto quanto eu, eram tão
fortes quanto eu e lutaram com o mesmo afinco
para sobreviver, mas o seu destino foi decidido por
um simples golpe de azar - escolheram os sítios
para dormir naquela noite e essa decisão matou-os.
Pensei em Susy e na minha mãe a escolherem os
seus lugares no avião. Pensei em Panchito a trocar
de lugar comigo, momentos antes do acidente. A
arbitrariedade de todas aquelas mortes enraivecia-
me, mas também me assustava, porque se a morte
ali era tão despropositada e tão aleatória, nada,
nenhum grau de coragem, planeamento ou
determinação, podia proteger-me dela. Um pouco
mais tarde nessa noite, como para troçar dos meus
medos, a montanha enviou uma segunda avalanche
a troar pela encosta abaixo. Ouvimo-la chegar e
preparámo-nos para o pior, mas a neve
simplesmente rolou por cima de nós desta vez. O
Fairchild já tinha sido soterrado. A carcaça do
Fairchild tinha sido sempre um abrigo exposto ao
vento e apinhado de gente, mas, na sequência da
avalanche, tornou-se um lugar verdadeiramente
infernal. A neve que invadiu a fuselagem era tão
funda que não conseguíamos pôr-nos de pé; a altura
mal dava para gatinharmos pelo avião. Logo que
arranjámos coragem, empilhámos os mortos na
parte traseira do avião onde a neve era mais funda,
o que deixou apenas uma pequena clareira perto do
habitáculo para os sobreviventes dormirem.
Amontoámo-nos nesse espaço - 19 pessoas agora,
apertadas numa área que poderia ter acomodado
confortavelmente quatro - sem outra hipótese senão
apertarmo-nos, os nossos joelhos, pés e cotovelos
emaranhados numa versão de pesadelo de uma
mêlée. O ar da fuselagem estava carregado de
humidade por causa da neve, o que dava ao frio um
lado ainda mais perverso. Todos nós tínhamos
ficado cobertos de neve, que rapidamente derreteu
com o calor dos nossos corpos, e as nossas roupas
ficaram encharcadas num instante. Para piorar as
coisas, todas as nossas posses estavam agora
enterradas sob vários centímetros de neve, no chão
da fuselagem. Não tínhamos cobertores
improvisados para nos aquecer, nem sapatos para
proteger os pés do frio, nem almofadas para nos
isolar da superfície gelada da neve, que era agora a
única superfície onde nos podíamos sentar. Havia
tão pouco espaço por cima das nossas cabeças que
éramos obrigados a descansar com os ombros
arqueados e os queixos comprimidos contra o peito,
mas, mesmo assim, as nossas nucas batiam no tecto.
Enquanto me debatia no amontoado de corpos para
encontrar uma posição confortável, senti o pânico a
subir-me à garganta e tive de lutar contra a ânsia de
gritar. Quanta neve estaria por cima de nós, pensei.
Meio metro? Três metros? Seis metros? Estaríamos
sepultados vivos? O Fairchild ter-se-ia
transformado no nosso caixão? Eu conseguia sentir
a opressão da neve à nossa volta. Isolava-nos do
barulho do vento lá fora e alterava os sons dentro
do avião, criando um silêncio pesado e abafado, e
dando às nossas vozes um eco subtil, como se
estivéssemos a falar no fundo de um poço. Pensei:
Agora sei como é estar preso num submarino no
fundo do oceano. Apesar do frio, havia um suor
viscoso por baixo da minha gola. Senti as paredes
da fuselagem fecharem-se sobre mim. Todos os
meus medos claustrofóbicos - de ficar encurralado
nas montanhas à nossa volta, de ser impedido de
fugir e de ser separado do meu pai - estavam a
realizar-se de uma forma absurdamente literal.
Estava preso dentro de um tubo de alumínio sob
toneladas de neve endurecida. A beira do pânico,
recordei-me da aceitação pacífica que sentira
debaixo da avalanche e, por um instante, desejei
que tivessem encontrado Liliana em vez de mim. As
horas que se seguiram foram das mais negras de
todo aquele suplício. Javier chorava de tristeza por
Liliana e quase todos os outros sobreviventes
sofriam pela perda de pelo menos um amigo
especialmente íntimo. Roberto perdera o seu melhor
amigo, Daniel Maspons. Carlitos perdera Coco
Nicholich e Diego Storm. Todos lamentávamos a
perda de Marcelo e Enrique Platero. As mortes dos
nossos amigos fizeram-nos sentir mais impotentes e
vulneráveis do que nunca A montanha oferecera-
nos outra demonstração de força e nada podíamos
fazer em resposta senão sentarmo-nos a tremer num
terrível emaranhado de corpos na nossa dura cama
de neve. Os minutos escoavam-se como horas.
Passado algum tempo, alguns dos sobreviventes
começaram a tossir e ofegar e percebi que o ar da
fuselagem estava a ficar viciado. A neve selara-nos
tão hermeticamente que não havia entrada de ar
fresco. Se não encontrássemos depressa um
fornecimento de ar, sufocaríamos. Avistei a ponta
de uma viga de alumínio sobressaindo na neve.
Sem pensar, arranquei-a da neve, peguei nela como
se tosse uma lança e, apoiado nos joelhos, comecei a
empurrar a ponta aguçada da viga para o tecto.
Usando toda a minha força, golpeei repetidas vezes,
até que, de alguma maneira, consegui furar o tecto
do Fairchild. Empurrei a viga para cima, sentindo a
resistência da neve que cobria o avião. Depois a
resistência acabou e a viga ficou livre. Não
estávamos indefesamente enterrados. O Fairchild só
estava coberto por alguns centímetros de neve.
Quando retirei a viga, o ar fresco entrou através do
buraco que eu fizera e todos respirámos mais
facilmente, acomodámo-nos no nosso monte e
tentámos dormir. A noite foi interminável. Quando
a madrugada chegou, por fim, as janelas da
fuselagem iluminaram-se ligeiramente com a luz
ténue filtrada pela neve. Não perdemos tempo a
tentar escavar para escapar da nossa sepultura de
alumínio. Sabíamos que, devido a forma como o
avião estava inclinado no glaciar, as janelas do lado
direito do habitáculo estavam viradas para o céu.
Com toneladas de neve a bloquear a nossa saída
habitual pela parte traseira do avião, decidimos que
essas janelas seriam a nossa melhor rota de fuga
Mas o caminho para o habitáculo estava também
obstruído com neve. Começámos a cavar nessa
direcção, usando lascas de metal e pedaços partidos
de plástico como pás. Só havia espaço para um
homem trabalhar de cada vez, por isso revezámo-
nos a cavar em turnos de quinze minutos, um
homem cortando a neve dura como pedra e os
restantes empurrando a neve solta para as traseiras
do avião. Naquela luz fraca, não pude deixar de
pensar que os meus amigos barbados, emaciados e
desgrenhados pareciam prisioneiros desesperados
abrindo um túnel para fugir de uma cela no Gulag
siberiano. Levou horas a escavarmos uma passagem
até ao habitáculo, mas, por fim, Gustavo chegou ao
assento do piloto e, de pé sobre o cadáver,
conseguiu chegar à janela. Empurrou-a, na
esperança de a arrancar da moldura, mas a neve
que pressionava o vidro era demasiado pesada e ele
não conseguiu reunir a força necessária para o fazer.
Roberto tentou a seguir, mas não fez melhor.
Finalmente, Roy Harley subiu para o assento do
piloto e, com um empurrão furioso, libertou a
janela. Subindo pela abertura que criara, Roy cavou
alguns metros de neve até alcançar a superfície e
conseguiu olhar em volta. Uma tempestade açoitava
a montanha com ventos fortes e rajadas de neve que
lhe feriram o rosto. Semicerrando os olhos na
ventania, Roy viu que a avalanche tinha enterrado
completamente a fuselagem. Antes de descer para
se reunir a nós, lançou um olhar ao céu. Não viu
qualquer aberta nas nuvens.
- Está a cair um temporal - disse, quando voltou
para a fuselagem. E a neve à volta do avião é
demasiado funda para se andar em cima. Acho que
nos afundaríamos nela e desapareceríamos.
Estamos aqui presos até a tempestade passar e não
parece que vá acabar tão depressa.
Encurralados pelo tempo, não tínhamos outra
escolha senão acocorar-nos na nossa desgraçada
prisão e aguentar aquela agonia um longo momento
de cada vez. Para nos animarmos, discutíamos a
única coisa que nos confortava - os nossos planos
para escapar - e, à medida que as discussões
evoluíam, uma nova ideia surgiu. Duas tentativas
falhadas para escalar as montanhas por cima de nós
tinham convencido muitos rapazes no grupo que a
fuga para ocidente era impossível. Agora, voltavam
a sua atenção para o vale largo que se estendia pelas
encostas para leste. A teoria deles era que, se
estivéssemos tão perto do Chile como pensávamos,
então toda a água naquela região devia escoar-se
através dos contrafortes chilenos para o oceano
Pacífico a ocidente. Isso incluiria toda a neve que se
derretia nesta zona da cordilheira. Essa água tinha
de encontrar um caminho para correr para ocidente,
raciocinavam, e, se conseguíssemos descobrir o
trajecto dessa corrente através da cordilheira,
encontraríamos a nossa rota de fuga. Eu não tinha
muita fé neste plano. Para começar, não conseguia
acreditar que as montanhas nos deixassem escapar
tão facilmente. Parecia também uma loucura
ignorar o único facto que sabíamos ser verdadeiro -
o Chile fica a ocidente - e seguir um caminho que,
quase de certeza, nos levaria mais para as
profundezas do coração dos Andes. Mas como os
outros decidiram depositar a sua fé neste novo
plano, eu não discuti. Não sei porquê. Talvez o meu
raciocínio estivesse embotado por causa da altitude,
ou da desidratação, ou da falta de sono. Talvez
ficasse aliviado por me ser poupado o terror de
enfrentar a montanha. Por alguma razão, aceitei a
decisão deles sem contestar, embora sentisse que
era uma perda de tempo. Tudo o que sabia era que
tínhamos de sair daquele lugar e que teríamos de
partir em breve.
- Logo que o temporal passe, temos de partir - disse-
lhes. Fito discordou.
- Temos de esperar que o tempo melhore - disse.
- Estou farto de esperar - repliquei. Como é que
sabemos se o tempo vai melhorar neste maldito
lugar?
Então Pedro Algorta lembrou-se de uma conversa
que tivera com um motorista de táxi em Santiago.
- Ele disse que o Verão nos Andes começa
pontualmente a quinze de Novembro - observou
Pedro.
- É daqui a pouco mais de duas semanas, Nando -
disse Fito. Consegues esperar esse tempo?
- Eu espero - respondi. Mas só até quinze de
Novembro. Se mais ninguém estiver preparado
para ir nessa altura, eu vou sozinho. Os dias que
passámos encarcerados sob a avalanche foram os
mais horríveis de todo o nosso suplício. Não
conseguíamos dormir, nem aquecer-nos, nem secar
as nossas roupas molhadas. Presos ali dentro como
estávamos, as máquinas de fazer água de Fito eram
inúteis e a única forma de mitigar a nossa sede era
mastigar pedaços da neve suja onde gatinhávamos
e dormíamos. A fome apresentava um problema
mais complicado. Sem acesso aos corpos lá fora, não
tínhamos comida e rapidamente começámos a
enfraquecer. Estávamos todos cientes de que os
corpos das vítimas da avalanche estavam ao alcance
da nossa mão, mas não conseguíamos encarar a
perspectiva de os cortar. Até agora, quando a carne
fora cortada, isso fora feito fora da fuselagem e
ninguém, a não ser os que a cortavam, tivera de
assistir ao processo. Nós nunca sabíamos de cujo
corpo a carne tinha sido retirada. Além disso,
depois de ficarem tantos dias sob a neve, os corpos
lá fora tinham congelado de forma tão sólida que
era fácil pensar neles como objectos sem vida. Não
havia maneira de objectivar os corpos dentro da
fuselagem. Apenas um dia antes estavam quentes e
vivos. Como é que podíamos comer carne que teria
de ser cortada destes corpos acabados de morrer
mesmo diante dos nossos olhos? Tacitamente, todos
concordámos que preferíamos passar fome
enquanto esperávamos que a tempestade acabasse.
Mas a 31 de Outubro, o nosso terceiro dia sob a
avalanche, percebemos que já não conseguíamos
aguentar mais. Não consigo recordar-me quem foi,
Roberto ou Gustavo talvez, mas alguém encontrou
um pedaço de vidro, varreu a neve de cima de um
dos corpos e começou a cortar. Foi um horror, vê-lo
cortar um amigo, ouvir o som suave do vidro a
rasgar a pele e a serrar o músculo por baixo.
Quando me passaram um pedaço de carne, senti-
me repugnado. Anteriormente a carne fora seca ao
sol antes de a comermos, o que diminuía o sabor e
lhe dava uma textura mais agradável, mas o pedaço
de carne que Fito me deu era mole e gorduroso,
com veios de sangue e fragmentos de cartilagem
húmida. Senti vómitos quando a coloquei na boca e
tive de recorrer a toda a minha força de vontade
para me obrigar a engolir. Fito teve de pressionar
muitos dos outros a comer -até empurrou alguma
pela boca do primo Eduardo abaixo. Porém, não
conseguimos persuadir alguns a comer, incluindo
Numa e Coche, que, mesmo nas melhores
circunstâncias, mal conseguiam aguentar a carne
humana. Fiquei especialmente inquieto com a
obstinação de Numa. Ele era um dos
expedicionários, uma grande fonte de força para
mim e não me agradava a ideia de desafiar as
montanhas sem ele.
- Numa - disse-lhe -, tens de comer. Precisamos de ti
connosco quando nos pusermos a andar daqui para
fora. Tens de te manter forte.
Numa fez uma careta e abanou a cabeça.
- Eu mal conseguia engolir a carne antes - disse.
Não vou suportá-la dessa maneira.
- Pensa na tua família - instei. Se os queres voltar a
ver, tens de comer.
- Desculpa, Nando - disse, afastando-se de mim. Eu
simplesmente não consigo.
Eu sabia que a recusa de Numa não se limitava a
simples aversão. De certa forma, tinha chegado ao
limite, e recusar a comida era uma rebelião contra o
pesadelo que as nossas vidas se tinham tornado e a
que não podíamos escapar. Eu sentia o mesmo.
Quem conseguia sobreviver a tal litania de horrores,
como a que tínhamos sido forçados a aguentar? O
que tínhamos feito para merecer tal agonia? Qual
era o significado do nosso sofrimento? As nossas
vidas tinham algum valor? Que espécie de Deus
podia ser tão cruel? Estas questões atormentavam-
me a todo o instante, mas, de alguma maneira, eu
percebia que pensamentos como estes eram
perigosos. Não levavam senão a uma raiva
impotente, que rapidamente evoluía para apatia.
Naquele lugar, a apatia significava a morte; por
isso, lutei para afastar as perguntas, evocando
pensamentos da minha família em casa. Imaginei a
minha irmã Gabriela com o seu novo bebé. Eu
queria tanto ser um tio para aquele menino. Ainda
tinha os sapatinhos vermelhos que a minha mãe
comprara para ele em Mendoza e imaginei-me a
enfiá-los nos seus pezinhos, a beijar-lhe a cabeça,
sussurrando-lhe: "Soy tu tío Nando." Pensei na
minha avó Lina, que tinha os olhos azuis brilhantes
da minha mãe e o seu sorriso afectuoso. O que eu
daria para sentir os braços dela à minha volta
naquele lugar terrível. Até pensei no meu cão,
Jimmy, um boxer brincalhão, que ia comigo para
todo o lado. O meu coração partia-se ao pensar nele
deitado tristemente na minha cama vazia, ou à
espera junto à porta de entrada que eu voltasse para
casa. Pensei nos meus amigos em Montevideu.
Sonhei em visitar os locais que costumava
frequentar. Recordei todos os pequenos luxos -
nadar na praia, os jogos de futebol e as corridas de
carros, o prazer de dormir na minha própria cama e
a cozinha cheia de comida. Teria havido realmente
uma época em que eu estivera rodeado de tais
tesouros, em que tanta felicidade estivera ao meu
alcance? Tudo parecia tão distante agora, tão irreal.
A tremer na neve pegajosa, torturado pelo
desespero e obrigado a mastigar os bocados crus e
húmidos de carne que fora retalhada à minha frente
do corpo dos meus amigos, era difícil acreditar
nalguma coisa antes do acidente. Naqueles
momentos, forçava-me a pensar no meu pai e
prometia, mais uma vez, que nunca deixaria de
lutar para voltar para casa. Por vezes, isso dava-me
uma sensação de esperança e paz, mas muitas
vezes, quando passava os olhos pela nossa triste
condição e pelos horrores que nos rodeavam, era
difícil estabelecer ligação com a vida feliz que tivera
antes e, pela primeira vez, a promessa que fizera ao
meu pai começou a soar a oco. A morte
aproximava-se; o seu fedor estava a crescer à minha
volta. Havia algo sórdido e fétido no nosso
sofrimento agora, uma sensação de trevas e
corrupção que me amargava o coração. Eu sonhava
muito pouco nas montanhas - era raro dormir
profundamente para conseguir sonhar -mas, uma
noite, quando dormia sob a avalanche, vi-me
deitado de costas com os braços esticados para os
lados. Os meus olhos estavam fechados. "Estou
morto?", perguntei a mim mesmo. "Não, consigo
pensar, estou consciente." Depois uma figura escura
pairou por cima de mim.
- Roberto? Gustavo? Quem és tu? Quem está aí?
Nenhuma resposta. Vi qualquer coisa brilhar na
mão dele e percebi que estava a segurar uma lasca
de vidro. Tentei erguer--me, mas não me conseguia
mexer.
- Sai daqui! Quem diabo és tu? O que é que estás a
fazer? A figura ajoelhou-se a meu lado e começou a
cortar-me com o vidro. Pegava em pequenos
pedaços da carne do meu antebraço e passava-os
para outras figuras, de pé, atrás dele.
- Pára! - gritei. Pára de cortar, eu estou vivo! Os
outros levaram a minha carne à boca. Começaram a
mastigar.
- Não! Ainda não! - gritei. Não me cortem! O
estranho continuava a trabalhar, cortando o meu
braço em fatias. Percebi que não conseguia ouvir-
me. Depois percebi que não sentia nenhuma dor.
- Oh, meu Deus! Estou morto? Morri? Oh, não, por
favor, meu Deus, por favor...
No instante seguinte, acordei com um safanão.
- Estás bem, Nando? -Era Gustavo, deitado a meu
lado. O meu coração batia com força.
- Tive um pesadelo - disse.
- Está tudo bem -respondeu ele. Estás acordado,
agora?
Sim, disse para mim mesmo, estou acordado agora,
está tudo bem. O dia 31 de Outubro, o nosso
terceiro dia sob a avalanche, era o aniversário dos
dezanove anos de Carlitos. Deitado ao lado dele na
fuselagem, nessa noite, prometi-lhe que
celebraríamos o seu aniversário quando
chegássemos a casa.
- Eu faço anos a nove de Dezembro - disse-lhe eu.
Vamos todos para a casa do meu pai em Punta del
Este e celebramos todos os aniversários que
perdemos.
- Falando de aniversários - disse ele -, amanhã é o
do meu pai, e o da minha irmã também. Tenho
estado a pensar neles e agora tenho a certeza de que
os vou voltara ver. Deus salvou-me do desastre e da
avalanche. Deve querer que eu sobreviva e volte
para a minha família.
- Já não sei o que pensar sobre Deus - observei eu.
- Mas não sentes como Ele está perto de nós? -
perguntou ele. Sinto apresença Dele de forma tão
forte aqui. Olha como as montanhas estão calmas,
como são bonitas. Deus está neste lugar e quando
sinto a Sua presença, sei que vamos todos ficar bem.
Como Carlitos, eu vira beleza nas montanhas, mas,
para mim, era uma beleza letal e nós éramos a
nódoa naquela beleza que a montanha queria
apagar. Perguntei-me se Carlitos verdadeiramente
compreendia o problema em que estávamos
metidos, mas mesmo assim admirei-o pela coragem
do seu optimismo.
- Tu és forte, Nando - disse ele. Vais conseguir. Vais
encontrar ajuda.
Eu não disse nada. Carlitos começou a rezar.
- Parabéns, Carlitos - sussurrei, e depois tentei
dormir.

7 LESTE
O temporal finalmente terminou na manhã de 1 de
Novembro. O céu estava limpo e o sol forte, por isso
alguns dos rapazes subiram à parte de cima da
fuselagem derreter neve para termos água para
beber. Os restantes iniciaram o lento processo de
remoção das toneladas de neve que estavam
empilhadas no interior do Fairchild. Levámos oito
dias a limpar o interior da fuselagem, atacando a
neve dura como rocha com as nossas frágeis pás de
plástico e passando cada pazada através da cabina,
homem a homem, até podermos deitá-la lá para
fora. Como expedicionário, fui oficialmente
dispensado desta tarefa exaustiva, mas, mesmo
assim, insisti em trabalhar. Agora que a data da
nossa fuga tinha sido escolhida, não conseguia
descansar. Tinha de me manter ocupado, receando
que os momentos de ócio pudessem enfraquecer a
minha resolução, ou enlouquecer-me. Enquanto
trabalhávamos para tornar a fuselagem habitável de
novo, os meus colegas expedicionários Numa, Fito e
Roberto preparavam-se para a viagem. Fizeram um
trenó atando uma correia de nylon a metade de
uma mala de plástico duro e carregaram-no com o
equipemento que pensaram que iríamos necessitar:
as capas de nylon dos assentos, que usaríamos
como cobertores, os sapatos de neve feitos de
almofadas de Fito, uma garrafa onde derreteríamos
água e outras coisas. Roberto inventara mochilas
para nós atando as pernas de calças e passando as
correias de nylon a toda a extensão para que
pudéssemos levá-las às costas. Carregámos as
mochilas com mais equipamento, mas deixámos
espaço para a carne que Fito e os primos estavam a
cortar para nós e a congelar na neve. Todos
estudávamos com atenção o tempo, esperando por
sinais de que a Primavera estava a caminho e, na
segunda semana de Novembro, pareceu que o
Inverno estava a perder a sua força. Quando havia
sol, as temperaturas eram amenas, chegando a cerca
de 7º C. Mas os dias nublados eram frios e mesmo o
vento mais fraco tornava o ar glacial. As noites
ainda eram geladas e as tempestades ainda varriam
as montanhas, muitas vezes sem qualquer aviso, e a
ideia de sermos apanhados nas encostas expostas
no meio de um temporal era uma das minhas
maiores preocupações. Na primeira semana de
Novembro, decidimos acrescentar António Vizintin
às fileiras dos expedicionários. António, ou "Tintin"
como lhe chamávamos, era um dos sobreviventes
mais fortes. Com ombros largos e com pernas que
pareciam troncos de árvores, era pilar no Old
Christians, uma posição em que jogava com a força
de um touro. Tinha também um temperamento de
touro. Tintin podia ser tão temperamental e
arrogante quanto Roberto e eu preocupava-me que
o facto de enfrentar as montanhas com estes dois
grandes cabeças-duras pudesse ser receita para o
desastre. Mas Tintin não era tão complicado como
Roberto; faltava-lhe o ego furioso de Roberto e a
necessidade de dar ordens aos outros. Em termos
de força física, Tintin aguentara as nossas semanas
na montanha tão bem como qualquer de nós e,
apesar das minhas preocupações, fiquei contente
por ele se ir juntar ao grupo, pensando que, com
cinco expedicionários em vez de quatro, as nossas
hipóteses de pelo menos um de nós conseguir
chegar vivo melhorariam. Mas logo que
acrescentámos este novo membro à equipe,
perdemos outro, pois Fito foi acometido por um
caso de hemorróidas tão grave que o sangue lhe
escorria pelas pernas abaixo, fazendo com que
percorrer apenas curtas distâncias fosse uma agonia
para ele. Não havia qualquer hipótese de Fito
atravessar as montanhas com tantas dores, por isso
acordou-se que viajaríamos com quatro e que ele
ficaria para trás. Com a aproximação do dia da
partida, senti os ânimos do grupo melhorarem, à
medida que a sua confiança nas perspectivas da
nossa missão aumentava. Eu não partilhava dessa
confiança. Sabia, no fundo do coração, que a única
forma de escapar daquelas montanhas era seguir o
caminho que subia as encostas dos aterradores
picos a ocidente, mas não questionei a decisão dos
outros de tentarmos a via oriental. Dizia a mim
mesmo que, pelo menos, o caminho mais fácil para
leste constituiria uma boa missão de treino para a
viagem mais difícil que estava para vir. Na verdade,
penso que era mais simples do que isso. Tinha
reprimido as minhas ansiedades e a minha louca
ânsia de escapar demasiado tempo. Já não
conseguia ficar no local do acidente nem mais um
instante. A ideia de sair daquele lugar,
independentemente da direcção que tomássemos,
era demasiado atractiva para resistir. Se os outros
insistiam em ir para leste, eu iria com eles. Faria
qualquer coisa para estar em qualquer outro lugar
menos ali. Mas, lá no fundo, sabia que este percurso
não era mais do que um prelúdio e preocupava-me
que nos custasse um tempo precioso. Todos
estávamos a ficar mais fracos, a cada hora que
passava, e alguns pareciam afundar-se a uma
velocidade alarmante. Coche Inciarte era um dos
mais enfraquecidos. Coche, um fã de longa data do
Old Christians, era um dos que actuava em segundo
plano. Era famoso por apanhar cigarros aos outros e
por persuadi-los com adulações a ficar nos lugares
mais quentes para dormir, mas sempre com grande
encanto, e era impossível não gostar dele. Coche
tinha um espírito aberto e amigável, uma esperteza
arguta e um sorriso irresistível. O seu espírito jovial
animava a nossa disposição até nos momentos mais
sombrios e o seu humor suave era um bom
amortecedor para as personalidades mais
agressivas do grupo. Ao dissipar as tensões e fazer-
nos sorrir, Coche estava a ajudar, à sua maneira, a
manter-nos a todos vivos. Como Numa, Coche fora
um dos que se recusara a comer quando cortámos
pela primeira vez a carne dos cadáveres. Mudara de
ideias uns dias mais tarde, mas ainda sentia tanta
aversão à ideia de comer carne humana que nunca
fora capaz de engolir comida suficiente para se
manter forte. Tornara-se chocantemente magro e o
seu sistema imunitário estava tão gravemente
comprometido que o seu corpo já não conseguia
combater a infecção. Assim, as pequenas feridas nas
suas pernas tinham infectado e agora grandes
furúnculos empolavam-se nas suas pernas finas
como canas.
- O que é que achas? - perguntou-me, enquanto
puxava a calça até ao joelho e girava a barriga da
perna de um lado para o outro, coquete. Muito
magra, não? Atiravas-te a uma miúda com pernas
tão magras como estas? Devia estar cheio de dores
por causa daquelas feridas horríveis nas pernas e eu
sabia que ele estava tão assustado e fraco quanto
qualquer de nós, mas ainda era o mesmo Coche e
conseguia encontrar uma maneira de me fazer rir.
Coche estava mal, mas Roy Harley parecia ainda
pior. Roy também tinha dificuldade em comer carne
humana, de forma que o seu arcaboiço alto e de
ombros largos perdera rapidamente a gordura e o
músculo. Agora andava curvado e com um passo
incerto, como se os ossos fossem uma débil colecção
de paus sustentados por uma pele pálida e flácida.
O estado mental de Roy também se estava a
deteriorar. Sempre fora um jogador potente e
corajoso no Old Christians, mas a montanha
esgotara todas as suas reservas emocionais e agora
parecia viver constantemente à beira da histeria,
saltando quando ouvia barulhos, chorando à menor
provocação e sempre com o rosto fechado numa
careta de apreensão e extremo desespero.
Muitos dos rapazes mais jovens estavam a
enfraquecer também, especialmente Moncho
Sabella, mas Arturo e Rafael eram de longe os
piores. Embora tivesse sofrido horrivelmente desde
o primeiro minuto do acidente, Rafael não perdera
nem um pouco do seu espírito lutador. Mantinha-se
corajoso e desafiador e ainda começava os dias com
a proclamação em voz alta da sua intenção de
sobreviver, um gesto de bravura que nos fortalecia
a todos. Arturo, por outro lado, estava ainda mais
calado e mais introspectivo do que o habitual e,
quando me sentava a fazer-lhe companhia,
pressentia que estava a aproximar-se do fim da sua
luta.
- Como é que te sentes, Arturo?
- Estou com tanto frio, Nando - dizia. Já não tenho
tantas dores. Já não sinto as minhas pernas. É difícil
respirar.
A voz estava a ficar baixa e fraca, mas os olhos
brilharam-lhe quando me fez sinal para me chegar
mais a ele e falou com suave urgência.
- Sei que estou a ficar mais perto de Deus - disse.
Por vezes sinto a Sua presença tão próximo de mim.
Consigo sentir o Seu amor, Nando. É tanto amor
que me apetece chorar.
- Tenta aguentar, Arturo.
- Penso que já não vou durar muito - declarou.
Sinto-me a ser puxado para Ele. Em breve
conhecerei Deus e então terei respostas para todas
as tuas perguntas.
- Queres que vá buscar água, Arturo?
- Nando, quero que te recordes que, mesmo neste
lugar, as nossas vidas têm significado. O nosso
sofrimento não é em vão. Mesmo que fiquemos
encurralados aqui para sempre, podemos amar as
nossas famílias, e Deus, e uns aos outros enquanto
vivermos. Mesmo neste lugar, as nossas vidas
valem a pena. O rosto de Arturo estava iluminado
por uma serena intensidade quando disse isto.
Mantive-me calado, com receio que a minha voz
falhasse se tentasse falar.
- Dizes à minha família que os amo, não dizes? É
tudo o que me importa agora.
- Tu é que vais dizer-lhes isso - disse. A mentira fez
Arturo sorrir.
- Estou preparado, Nando - continuou. Fiz a minha
confissão a Deus. A minha alma está limpa. Vou
morrer sem pecados.
- O que é isso? - ri. Pensei que não acreditasses no
tipo de Deus que perdoa os pecados. Arturo olhou
para mim e esboçou um sorriso pálido, auto-
desaprovador.
- Numa altura como esta - comentou -, parece
sensato cobrir todos os ângulos.
Durante toda a primeira semana de Novembro,
Arturo foi ficando cada vez mais fraco e mais
distante. O seu melhor amigo, Pedro Algorta,
manteve-se junto dele o tempo todo, trazendo-lhe
água, mantendo-o quente e rezando com ele. Uma
noite, Arturo começou a chorar suavemente.
Quando Pedro lhe perguntou porque estava a
soluçar, Arturo replicou, com uma expressão
distante no olhar: "Porque estou tão perto de Deus."
No dia seguinte, Arturo começou com uma febre
alta. Durante quarenta e oito horas delirou,
oscilando entre períodos de consciência e
inconsciência. Na sua última noite, ajudámo-lo a
descer da rede para poder dormir ao lado de Pedro
e nalgum momento antes da manhã, Arturo
Nogueira, um dos homens mais corajosos que já
conheci, morreu sossegadamente nos braços do seu
melhor amigo. Na manhã de 15 de Novembro,
Numa, Roberto, Tintin e eu, do lado de fora da
fuselagem, olhámos para o vale que se estendia
pelas encostas para leste, prontos para iniciarmos a
nossa viagem. Numa estava a meu lado e, embora
estivesse a tentar escondê-lo, eu sabia que estava
com dores.
Desde a avalanche, forçara-se a comer, apesar da
sua aversão, sabendo que precisaria de toda a força
para a expedição. Mesmo assim, como Coche, não
conseguia ingerir mais do que alguns bocados de
cada vez - às vezes não conseguia engolir nada - e,
embora a sua determinação se mantivesse elevada,
era evidente que o seu corpo enfraquecera.
Algumas noites antes, alguém a tentar avançar pela
fuselagem escura pisara a barriga da perna de
Numa, deitado no chão. Aparecera logo uma
equimose feia e, quando Roberto viu como a perna
tinha inchado, aconselhou Numa a desistir da
expedição. Numa garantiu a Roberto que a
equimose não era motivo para preocupações e
recusou com firmeza deixar-nos partir sem ele.
- Como é que te sentes? - perguntei-lhe, depois de
termos juntado as nossas coisas e despedido dos
outros. Tens a certeza que consegues com essa
perna?
Numa encolheu os ombros.
- Não é nada - respondeu. Estou bem.
Quando partimos pela encosta abaixo, o tempo
estava nublado e o ar frio, mas o vento era fraco e,
apesar de todas as minhas apreensões em relação à
viagem para leste, era bom sair por fim do local do
acidente. Ao princípio avançámos bem pela encosta
abaixo, mas passada mais ou menos uma hora, o
céu escureceu, a temperatura baixou e a neve
começou a voar em espirais violentas à nossa volta.
Num piscar de olhos, uma pesada tempestade rolou
sobre nós. Sabendo que cada segundo contava,
lutámos para subir de novo a encosta e
cambaleámos para dentro da fuselagem, assustados
e meio gelados, mesmo quando a tempestade se
transformou num perfeito temporal. Enquanto
ventos fortes abanavam o avião, eu e Roberto
trocámos um olhar sombrio. Compreendemos, sem
falar, que se a tempestade nos tivesse apanhado
uma hora ou duas depois, encurralando-nos mais
longe de qualquer abrigo nas encostas expostas,
estaríamos agora mortos ou a morrer.
O temporal, um dos piores que tínhamos tido em
todas as nossas semanas nos Andes, manteve-nos
pregados à fuselagem durante dois longos dias.
Enquanto esperávamos que passasse, Roberto
começou a ficar cada vez mais preocupado com a
perna de Numa. Havia agora duas grandes feridas,
tão grandes como uma bola de bilhar. Quando
Roberto lancetou e drenou as feridas, percebeu que
Numa não estava em condições de caminhar pelas
montanhas.
- As tuas pernas estão a piorar - disse Roberto. Vais
ter de ficar para trás. Pela primeira vez na
montanha, Numa explodiu.
- A minha perna está boa! -gritou. Eu consigo
aguentar a dor!
- A tua perna está infectada - contrapôs Roberto. Se
comesses mais, o teu corpo estaria suficientemente
forte para combater a infecção.
- Eu não fico para trás!
Roberto lançou um olhar penetrante a Numa e, com
a sua aspereza característica, disse:
- Estás demasiado fraco. Só nos vais atrasar. Não
nos podemos dar ao luxo de te levar.
Numa virou-se para mim.
-Nando, por favor, eu consigo. Não me façam ficar.
Eu abanei a cabeça.
- Tenho muita pena, Numa - disse. Concordo com
Roberto. A tua perna não está boa. Tens de ficar
aqui.
Quando outros deram o mesmo conselho, Numa
irritou-se e ficou calado. Eu sabia como ele queria ir
connosco e como seria difícil para ele ver-nos partir.
Sabia que eu não aguentaria tal desapontamento e
esperava que aquele revés não abatesse o ânimo de
Numa.
O temporal finalmente amainou e na manhã de 17
de Novembro despertámos para um dia claro e
calmo. Sem muitas fanfarras, Roberto, Tintin e eu
juntámos as nossas coisas e partimos uma vez mais
pelas encostas abaixo, desta vez com um sol
brilhante e uma brisa leve. Não falámos muito.
Rapidamente entrei no ritmo das minhas passadas
e, à medida que os quilómetros passavam, o único
som no mundo era o pisar dos meus sapatos de
râguebi na neve. Roberto, que puxava o trenó, ia à
frente, e cerca de uma hora e meia depois, ouvi-o
gritar. Estava em cima de um monte alto de neve e,
quando chegámos junto dele e olhámos para lá do
monte, vimos aquilo para onde ele apontava -os
restos da secção da cauda do Fairchild jaziam a
algumas centenas de metros de distância. Em
poucos minutos chegámos à cauda. Havia malas
espalhadas por todo o lado e revirámo-las à procura
de tesouros lá dentro: meias, camisolas, calças
quentes. Contentes, tirámos os trapos sujos e
esfarrapados que usávamos e vestimos roupas
limpas. Dentro da cauda encontrámos mais
bagagens, repletas de roupas. Também descobrimos
algum rum, uma caixa de chocolates, alguns
cigarros e uma pequena máquina fotográfica
carregada com um rolo. A pequena zona de cozinha
do avião ficava na cauda e aí encontrámos três
pequenos pastéis de carne que devorámos
imediatamente e umas sanduíches bolorentas
embrulhadas em plástico, que guardámos para mais
tarde. Estávamos tão excitados com este inesperado
saque que quase esquecemos as baterias para o
rádio, que Carlos Roque dissera estarem algures na
cauda. Após uma breve busca, encontrámos as
baterias num espaço escondido atrás de uma
portinhola no casco exterior da cauda. Pareciam
maiores do que eu esperara. Também descobrimos
algumas grades de Coca-Cola vazias no
compartimento das bagagens atrás da cozinha, que
levámos lá para fora e usámos como combustível
para uma fogueira. Roberto assou um pouco da
carne que trouxéramos connosco e comemos com
grande apetite. Raspámos o bolor das sanduíches
que tínhamos descoberto e comemo-las também.
Quando a noite caiu, espalhámos roupas das malas
no chão do compartimento de bagagens e deitámo-
nos para descansar. Com os fios que arrancara das
paredes da secção da cauda, Roberto ligou as
baterias do avião a uma instalação de luz pregada
no tecto e, pela primeira vez, tivemos luz depois do
pôr do Sol. Lemos algumas revistas e livros de
quadradinhos que salváramos das bagagens e eu
tirei algumas fotografias a Roberto e Tintin com a
máquina que tínhamos encontrado. Pensei que se
não conseguíssemos sair dali com vida, alguém
poderia encontrar a máquina e revelar o rolo e
saber-se-ia que tínhamos vivido pelo menos algum
tempo. Por alguma razão, aquilo era importante
para mim. O compartimento das bagagens era
luxuosamente quente e espaçoso -que prazer esticar
as pernas e rolar para qualquer posição que se
escolhesse - e logo ficámos sonolentos. Roberto
apagou a luz, fechámos os olhos e desfrutámos da
melhor noite de sono que tínhamos tido desde que
o avião caíra nas montanhas. De manhã, fomos
tentados a ficar mais um pouco nestas instalações
confortáveis, mas recordámo-nos dos outros e das
suas esperanças na nossa expedição, de modo que,
logo depois de acordarmos, voltámos de novo a
caminhar para leste. Nevou naquele dia, mas ao
final da manhã o céu abriu, o sol queimava os
nossos ombros e transpirávamos bastante nas
nossas roupas quentes enquanto andávamos. Após
tantas semanas de temperaturas gélidas, o calor
súbito esgotou-nos depressa e, ao meio-dia, fomos
forçados a descansar à sombra de uma saliência
rochosa. Comemos um pouco da nossa carne e
derretemos neve para bebermos água, mas, mesmo
depois de nos refrescarmos, nenhum de nós tinha
energia para continuar, por isso decidimos acampar
na rocha para passar a noite. O sol ficou mais forte à
tarde, mas ao pôr do Sol as temperaturas
começaram a baixar muito. Cavámos um abrigo na
neve e embrulhámo-nos nos nossos cobertores, mas
quando o frio cruel da noite se esmagou sobre nós,
aquelas coisas pareciam não nos oferecer protecção
absolutamente nenhuma. Era a minha primeira
noite fora da fuselagem e, em apenas alguns
instantes, percebi como Gustavo, Numa e Maspons
deviam ter sofrido quando passaram a sua longa
noite nas encostas expostas. A nossa não foi melhor.
O frio caiu sobre nós de forma tão agressiva que
receei que o meu sangue tivesse congelado nas
veias. Enroscados para nos aquecermos, tremíamos
nos braços uns dos outros. Descobrimos que
fazendo uma sanduíche com os nossos corpos - um
de nós deitado entre os outros - conseguíamos
manter o rapaz do meio quente. Ficámos assim
durante horas, revezando-nos para ocupar a
posição do meio e, embora não tenhamos dormido
nada, sobrevivemos até à primeira luz do dia.
Quando a manhã finalmente surgiu, saímos do
pobre abrigo e aquecemo-nos aos primeiros raios de
sol, assustados pelo que tínhamos vivido e
aturdidos por estarmos vivos.
- Não vamos aguentar outra noite como esta - disse
Roberto.
Estava a olhar para leste, para as montanhas que
pareciam ter ficado maiores e mais distantes à
medida que caminhávamos.
- O que é que estás a pensar? - perguntei.
- Não acho que este vale vá alguma vez virar para
ocidente - declarou. Estamos apenas a
embrenharmo-nos mais na cordilheira.
- Pode ser que tenhas razão - disse. Mas os outros
estão a contar connosco. Talvez devêssemos ir um
pouco mais adiante. Roberto franziu o sobrolho.
- É inútil! - cortou, e ouvi o falsete furioso na sua
voz.
- Servimos de alguma coisa se estivermos mortos?
- Então o que é que vamos fazer?
-Vamos buscar as baterias à cauda e levá-las para o
Fairchild - disse. Podemos arrastá-las no trenó. Se
conseguirmos pôr o rádio a funcionar, podemos
salvar-nos sem arriscar as nossas vidas.Eu não tinha
mais fé no rádio do que tinha nas perspectivas de
caminhar paraleste, mas disse comigo mesmo que
tínhamos de explorar todas as esperanças,por
maisleves que fossem. Assim, juntámos as nossas
coisas e regressámos à cauda.Levámos apenas
alguns momentos a retirar as baterias do avião e a
colocá-las lado a lado no nosso trenó Samsonite.
Mas quando Roberto tentou arrastar o trenó para a
frente, ele enterrou-se profundamente na neve e não
se mexia.
- Caramba, são muito pesadas - exclamou. Não dá
para as arrastarmos na subida para o avião.
- Não conseguimos carregá-las - disse eu.
Roberto abanou a cabeça.
- Não -concordou. Mas podemos trazer o rádio do
Fairchild para aqui. Trazemos Roy connosco. Talvez
ele consiga perceber como ligá-lo às baterias. Eu não
gostava daquela ideia. Tinha a certeza de que o
rádio estava estragado e que não tinha conserto, e
receava que as tentativas de Roberto de repará-lo só
o distraíssem do que sabíamos agora com mais
clareza do que nunca ser a nossaúnica esperança de
sobreviver: escalar as montanhas a ocidente.
- Achas mesmo que conseguimos pô-lo a funcionar?
- perguntei.
- Como é que sei? - lançou Roberto. Mas vale a pena
tentar.
- Vamos perder demasiado tempo.
- Tens de discutir por causa de tudo? - gritou. Este
rádio pode salvar-nos avida.
- Está bem - concordei. Eu ajudo-te. Mas se não
funcionar, começamos a escalar? Estamos de
acordo?
Roberto assentiu com a cabeça e, depois de
passarmos mais duas luxuosas noites no
compartimento de bagagens da cauda, partimos na
tarde de 21 de novembro para subirmos de volta à
fuselagem. A descida do local do acidente pelo vale
abaixo fora fácil - tão fácil, de facto, que eu não
percebera como as encostas eram íngremes. Por
isso, passados apenas alguns minutos da nossa
escalada, vimo-nos levados aolimite da nossa
resistência. Em certas zonas enfrentámos
inclinações quechegavam aos 45 graus e a neve era
frequentemente tão funda que nos chegava às
ancas. Aluta para subir a montanha esgotou-me
rapidamente a energia. Eu ofegava, osmeus
músculos ardiam de fadiga e via-me forçado a
descansar por trinta segundos ou mais acada
poucos passos que dava. O nosso progresso era
aflitivamente lento; tínhamos levado menos de duas
horas a descer do Fairchild para a cauda; levámos o
dobro afazer a mesma viagem em sentido contrário.
Chegámos ao local do acidente a meio da tarde e os
sobreviventes na fuselagem acolheram-nos
sombriamente. Tinham-se passado seis dias desde
que os deixáramos e eles tinham tido esperanças
que tivéssemos chegado mais perto da civilização.
O nosso regresso despedaçou aquelas esperanças,
mas não era a única razão para o desânimo; na
nossa ausência, Rafael Echavarren morrera.
- Lá para o fim já estava a delirar - contou-me
Carlitos. Pedia ao pai que o viesse buscar. Na
última noite pu-lo a rezar comigo e isso acalmou-o
um pouco. Algumas horas depois, começou a
ofegar com falta de ar e depois foi-se. Eu e Gustavo
tentámos reanimá-lo, mas era demasiado tarde.
A morte de Rafael foi um golpe pesado. Tornara-se
um tal símbolo de coragem e desafio para nós que
vê-lo destruído depois da sua brava resistência era
mais uma razão para acreditar que a montanha,
mais tarde ou mais cedo, nos reclamaria a todos. O
nosso sofrimento não tinha qualquer propósito?
Este homem luta com bravura e é levado, aquele
não batalha nada sobrevive? Desde a avalanche,
alguns dos rapazes tinham-se agarrado à crença de
que Deus poupara dezanove daquele desastre
porque eram os que Ele escolhera para sobreviver.
A morte de Rafael tornava mais difícil acreditar que
Deus nos estivesse a prestar alguma atenção.
Enquanto nos acomodávamos na fuselagem
naquela noite, Roberto explicou a razão do nosso
regresso.
- A rota para leste não serve - disse. Só nos
embrenha mais profundamente nas montanhas.
Mas encontrámos a secção da cauda e a maior parte
da bagagem. Trouxemos roupas quentes para toda a
gente. E muitos cigarros. Mas a boa notícia é que
encontrámos as baterias. Os outros escutaram em
silêncio enquanto Roberto explicava o seu plano de
arranjar o rádio do Fairchild. Valia a pena tentar,
concordaram todos, mas houve pouco entusiasmo
na reacção. Havia uma expressão nova nos olhos
deles agora, de cansada aceitação. Alguns tinham o
olhar vazio e opaco que eu vira em fotografias de
sobreviventes de campos de concentração. Apenas
há algumas semanas, estes rapazes eram jovens
vigorosos. Agora andavam curvados e claudicantes,
como velhos debilitados, e as roupas pendiam-lhes
soltas nos ângulos protuberantes das ancas e
ombros ossudos. Pareciam cada vez mais cadáveres
animados e eu sabia que o meu aspecto não era
melhor. Sentia que as esperanças deles se
consumiam e não podia culpá-los. Sofrêramos tanto
e os sinais eram tão maus: apesar da sua corajosa
resistência, Rafael estava morto. A nossa fuga para
leste falhara. Duas tentativas para escalar as
montanhas a ocidente quase tinham acabado em
desastre. Parecia que todas as portas que
tentávamos atravessar nos batiam na cara. Sim,
concordaram, devíamos tentar o rádio. Mas
nenhum deles parecia ver qualquer razão para
esperar que funcionasse. Na manhã seguinte, eu e
Roberto começamos a trabalhar para remover o
rádio do Fairchild. O habitáculo estava repleto de
ponteiros, alavancas e instrumentos complexos e, na
nossa ignorância, foi preciso tentarmos adivinhar o
que fazia parte do rádio e o que não fazia. Por fim,
percebemos que o rádio era formado por dois
componentes, um instalado no painel de
instrumentos do habitáculo e o outro escondido
atrás de um painel de plástico na parede do
compartimento de bagagens. O componente no
painel de instrumentos, onde estavam ligados os
auscultadores e o microfone, saiu com facilidade
depois de termos desapertado alguns parafusos. O
segundo componente, metido numa cavidade
escura e apertada na parede, estava fixo de forma
mais firme e foi muito mais difícil de tirar.
Trabalhando desajeitadamente com os nossos dedos
e os pedaços de metal e plástico que usávamos
como ferramentas, batalhámos para desapertar os
parafusos e grampos que apertavam o transmissor,
mas foram precisos dois dias frustrantes antes que
fôssemos capazes de o retirar da parede. Quando
finalmente o soltámos e o colocámos ao lado do
componente do habitáculo, vi a futilidade dos
nossos esforços.
- Carajo! - gritei. Olha para esta confusão!
Espetados na parte de trás de cada componente
havia um emaranhado louco de minúsculos fios
eléctricos.
- Isto é impossível, Roberto! Como é que vamos
ligar estes fios?
Roberto ignorou-me e contou cuidadosamente os
fios de cada componente.
- Há sessenta e sete fios a sair desta peça - disse - e
sessenta e sete a sair do transmissor.
- Mas qual é o fio que liga com o outro? - perguntei.
É impossível! Há demasiadas combinações
possíveis.
- Estás a ver estas marcas? - retorquiu. Cada fio tem
uma marca diferente. As marcas mostram-nos quais
são os fios que combinam entre si.
- Não sei, Roberto - duvidei. Todo este tempo que
estamos a gastar e nem sequer sabemos se o rádio
ainda trabalha. Os olhos de Roberto flamejaram de
fúria.
- Este rádio pode salvar as nossas vidas! - explodiu.
É nossa obrigação tentar fazer isto antes de nos
lançarmos pelas montanhas e jogar as nossas vidas
fora.
- Está bem, está bem! - exclamei, para o acalmar.
Mas vamos pedir a Roy para dar uma vista de
olhos. Chamei Roy e mostrei-lhe o rádio. Ele franziu
a testa e abanou a cabeça.
- Acho que isto não tem conserto - disse. Nós vamos
arranjá-lo - retorquiu Roberto.
- Tu vais arranjá-lo. Eu não consigo consertar isto! -
gritou Roy, a voz a ficar fina e estridente em
protesto. É demasiado complicado. Não percebo
nada de um rádio como este!
- Controla-te, Roy - disse Roberto. Vamos levar este
rádio até à cauda. Tu vens connosco. Vamos pôr
este rádio a funcionar e vamos usá-lo para pedir
ajuda. Os olhos de Roy abriram-se de terror com a
notícia.
- Eu não posso ir! - guinchou. Estou demasiado
fraco! Olha para mim! Malconsigo andar. Por favor,
não consigo ir até à cauda e voltar!
- Vais conseguir porque tem de ser - replicou
Roberto.
- Mas este rádio está estragado! - gemeu. É
impossível!
- Talvez seja - disse Roberto. Mas temos de tentar e
tu és o único que tem alguma hipótese de pô-lo a
funcionar. O rosto de Roy enrugou-se e ele começou
a soluçar. A ideia de sair da fuselagem aterrorizava-
o e, nos dias seguintes, suplicou a todos os que o
quiseram ouvir para ser dispensado da missão. Fito
e os primos foram firmes com ele, insistindo para
que fosse. Pressionaram-no a pensar no bem dos
outros. Até o forçaram a treinar para a missão,
andando para a frente e para trás do lado de fora da
fuselagem. Roy obedecia com relutância, mas
chorava muitas vezes enquanto andava na neve.
Roy não era cobarde. Eu sabia disso muito antes do
acidente, pela forma como jogava râguebi e como
vivia a sua vida. Nos primeiros dias do nosso
suplício, quando ainda estava forte, tinha sido um
membro produtivo do grupo. Roy estivera ao lado
de Marcelo quando organizaram o avião logo após
a queda e ajudara-o na difícil tarefa de construir a
parede que nos impediu a todos de enregelar. E eu
não podia esquecer que se não fosse a rápida
intervenção de Roy a seguir à avalanche, teríamos
todos sufocado debaixo da neve. Mas ele era muito
novo. Eu sabia que o sofrimento lhe esfrangalhara
os nervos e era óbvio que as provações lhe tinham
devastado o corpo. Era um esqueleto coberto de
pele, um dos mais magros e fracos do grupo e eu
devia ter sentido tanta compaixão por ele como
sentia pelos outros. Em todo o tempo que passámos
na montanha, raramente me zanguei com qualquer
dos meus colegas sobreviventes. Compreendia os
seus medos e as pressões a que estavam sujeitos,
especialmente os rapazes mais novos, por isso era
fácil ser paciente com eles quando o seu sofrimento
os tornava egoístas, preguiçosos ou medrosos. Roy
sofrera tanto como qualquer dos outros e merecia a
mesma consideração, mas, à medida que ele
enfraquecia e o seu estado emocional continuava a
deteriorar-se, eu enfurecia-me com as suas
frequentes demonstrações de agonia e, por alguma
razão, tornou-se cada vez mais difícil para mim ser
bondoso com ele. Assim, quando ele me pedia, em
desespero, para não o obrigar a ir connosco até à
cauda, eu nem sequer o olhava nos olhos. -Vamos
partir em breve -cortava. -É melhor estares
preparado. Roberto passou vários dias a estudar o
rádio e, enquanto esperava que terminasse, comecei
a ficar cada vez mais preocupado com Numa.
Desde que o tínhamos dispensado da equipe dos
expedicionários, o seu ânimo esmorecera.
Retirando-se para um silêncio absorto, ficara furioso
com a forma como o seu corpo o traíra. Andava
irritadiço e taciturno e, pior, recusava-se a comer.
Em consequência, perdia peso com mais rapidez e
as feridas nas pernas pioraram. Havia agora dois
grandes furúnculos na sua perna, maiores do que
uma bola de golfe e ambos claramente infectados.
Mas o que me preocupava mais era a expressão de
resignação no seu olhar. Numa era um dos
sobreviventes maisfortes e altruístas e batalhara
com tanta bravura como qualquer outro para
nosmanter vivos.Mas agora, que já não podia lutar
por nós e só tinha de cuidar dele, parecia estara
perder a coragem. Uma noite sentei-me ao lado dele
e tentei animá-lo.
- Vais comer um pouco por mim, Numa? -
perguntei. Vamos à cauda em breve. Seria bom ver-
te comer antes de partir.
Ele abanou debilmente a cabeça.
- Não consigo. É demasiado doloroso para mim.
- É doloroso para todos nós - declarei -, mas tens de
fazê-lo. Tens de te recordarde que aquilo agora é só
carne.
- Eu comi antes para me fortalecer para a viagem -
disse. Que razão é que tenho para me forçar a comer
agora?
- Não desistas - retorqui. Aguenta. Vamos sair
daqui.
Numa abanou a cabeça.
- Estou tão fraco, Nando. Já nem consigo levantar-
me. Acho que já não vou durar muito mais tempo.
- Não fales assim, Numa. Tu não vais morrer.
Numa suspirou.
- Não faz mal, Nando - disse. Examinei a minha
vida e sei que se morrer amanhã, ainda assim tive
anos maravilhosos. Eu ri-me.
- Isso era exactamente o que Panchito costumava
dizer - expliquei. E vivia avida de acordo com essas
palavras. Era estouvado, atrevido; pensava sempre
que ascoisas iam correr como ele queria. E em geral
corriam.
- Era famoso por isso - disse Numa.
- Que idade tinha ele?
- Tinha apenas dezoito anos. Mas viveu tantas
vidas, teve tantas aventuras e, macho, fez amor com
tantas raparigas bonitas.
- Talvez fosse por isso que Deus o levou - disse
Numa. Para que sobrassem algumas raparigas para
o resto de nós.
- Vai haver muitas raparigas para ti, Numa -
afirmei. Mas primeiro tens de comer e viver. Eu
quero que tu vivas. Numa assentiu com a cabeça e
sorriu.
- Vou tentar - disse. Mas mais tarde, quando lhe
trouxeram alguma carne, vi-o mandá-la embora.
Partimos às oito na manhã seguinte e avançámos
com rapidez pela encosta abaixo. Ao aproximarmo-
nos da cauda, vi uma mala de pele vermelha na
neve e reconheci-a imediatamente como a malinha
de maquilhagem da minha mãe. Lá dentro
encontrei batom, que poderia usar para proteger os
lábios do sol, alguns doces e um pequeno conjunto
de costura. Enfiei estas coisas nas nossas mochilas e
continuámos a andar. Menos de duas horas depois
de sairmos do Fairchild, estávamos de novo na
cauda. Descansámos naquele primeiro dia. Na
manhã seguinte, Roy e Roberto começaram a
trabalhar no rádio. Trabalharam com afinco,
tentando fazer as ligações correctas à bateria, mas
agiam por tentativa e erro e, mesmo quando parecia
que estavam a fazer progressos, os fios faiscavam e
chiavam e ouvíamos um estalo eléctrico. Roberto
praguejava e pedia a Roy que tivesse mais cuidado,
e lá recomeçavam. As temperaturas diurnas
estavam agora mais amenas e a neve à volta da
cauda derretia-se com rapidez. As malas que
estavam enterradas há apenas alguns dias, quando
tínhamos encontrado a cauda, estavam agora à
vista. Enquanto Roy e Roberto labutavam com o
rádio, Tintin e eu revirávamos as malas espalhadas
à volta da cauda. Numa delas encontrámos duas
garrafas de rum. Abrimos uma das garrafas e
bebemos alguns goles.
- Vamos guardar a outra - disse. Usá-la-emos
quando escalarmos a montanha.
Tintin acenou com a cabeça. Ambos sabíamos que o
rádio nunca iria funcionar, mas Roy e Roberto ainda
trabalhavam furiosamente. Consertaram-no durante
a tarde inteira e na manhã seguinte. Eu estava a
ficar ansioso para que aquela experiência
terminasse e voltássemos à fuselagem, onde nos
podíamos preparar para a escalada.
- Quanto tempo mais achas que vai demorar,
Roberto? - perguntei.
Ele lançou-me um olhar irritado.
- Vai levar o tempo que for preciso - grunhiu.
- Estamos a ficar com pouca comida - expliquei.
Acho que Tintin e eu devíamos voltar para ir buscar
mais.
- É uma boa ideia - comentou. Nós continuamos a
trabalhar. Tintin e eu juntámos as nossas coisas e,
passados alguns minutos, estávamos a subir o vale
em direcção ao Fairchild. Mais uma vez fiquei
chocado com o facto de ser muito mais difícil subir
aquelas encostas do que descê-las. Arrastámo-nos
durante horas, parando frequentemente para
recuperar o fôlego e, por fim, chegámos ao avião ao
fim da tarde. Mais uma vez tivemos uma recepção
sombria e não pude deixar de reparar que os
rapazes tinham ficado mais fracos e mais
indiferentes do que quando tínhamos partido.
- Viemos buscar mais comida - declarei. O rádio
está a levar mais tempo do que esperávamos.
Fito franziu o sobrolho.
- A comida está a acabar. Andámos por todo o lado
à procura dos corpos que se perderam com a
avalanche, mas a neve está muito funda e estamos
muito cansados. Até subimos às encostas várias
vezes para ir procurar os corpos que Gustavo
encontrou quando subiu.
- Não se preocupem - disse eu. Eu e Tintin vamos
cavar.
- Como é que vão as coisas com o rádio?
- Não muito bem - repliquei. Acho que não vai
funcionar.
- Estamos a ficar sem tempo - disse Fito. Todos nós
estamos fracos. A comida não vai durar muito mais
tempo.
- Precisamos de ir para ocidente - afirmei. Pode
parecer impossível, mas é a nossa única esperança.
Temos de partir o mais depressa possível.
- Roberto também pensa o mesmo?
- Não sei o que é que ele pensa - respondi. Sabes
como é o Roberto. Faz o que bem entende.
- Se ele recusar - disse Fito -, eu vou contigo. Eu
sorri afectuosamente para ele.
- É corajoso da tua parte, mas com essas feridas no
teu rabo, mal consegues andar cinco metros. Não,
temos de persuadir Roberto a ir para ocidente e
muito em breve. Tintin e eu ficámos na fuselagem
durante dois dias, cavando a neve à procura de
outros cadáveres. Quando descobrimos o que
procurávamos, Fito e os primos cortaram a carne
para nós e, depois de descansarmos um pouco,
voltámos a descer o glaciar. Chegámos à cauda a
meio da manhã e descobrimos Roy e Roberto a
trabalhar com afinco no rádio. Acreditavam ter feito
bem as ligações, mas quando ligaram o rádio só
ouviram estática. Roy pensou que a antena, que se
danificara no acidente, pudesse ter algum defeito,
por isso fez uma nova com fio de cobre que
arrancou do circuito eléctrico da cauda. Roy e
Roberto ligaram a nova antena ao rádio do Fairchild
e estenderam os longos fios de cobre pela neve. O
rádio não trabalhou. Roy soltou a antena e ligou-a
ao pequeno rádio transístor que trouxera com ele. A
antena comprida deu ao transístor um sinal forte.
Roy sintonizou uma estação com música de que
gostávamos e voltou ao trabalho. Instantes depois, a
música foi interrompida por um noticiário e
ouvimos a notícia surpreendente de que a força
aérea uruguaia ia enviar um Douglas C-47
especialmente equipedo para nos procurar.
Roy berrou de alegria ao ouvir as notícias. Roberto
virou-se para mim, com umsorriso largo.
- Ouviste aquilo, Nando!? Estão à nossa procura!
- Não fiquem com grandes esperanças - disse.
Lembrem-se do que Gustavodisse: das encostas o
Fairchild é apenas outro pontinho no glaciar.
- Mas este avião tem equipemento especial - disse
Roberto.
- E os Andes são enormes - retorqui. Eles não sabem
onde estamos. Mesmo que nos descubram, pode
levar meses.
- Precisamos de fazer um sinal para eles - disse
Roberto, ignorando o meu olhar céptico. Numa
questão de minutos, fez-nos juntar malas e dispô-las
na neve na forma deuma grande cruz. Quando
acabámos, perguntei a Roberto sobre o rádio.
- Acho que não conseguimos consertá-lo. É melhor
voltarmos para o avião. E prepararmo-nos para ir
para ocidente - exclamei. Como tínhamos
combinado. Roberto assentiu absorto e foi buscar as
suas coisas. Enquanto arrumava as minhas coisas,
Tintin veio ter comigo com um pequeno rectângulo
de tecido deisolamentoque retirara da cauda.
- Esta coisa está embrulhada à volta dos canos -
disse ele. Deve haver algumamaneira de podermos
usar isto.
Apalpei o material entre os dedos. Era leve e forte,
felpudo por dentro, com umacobertura de tecido
macia e resistente.
- Talvez possamos usá-lo para forrar as nossas
roupas. Parece ser capaz de nos aquecer. Tintin
acenou com a cabeça e entrámos na cauda. Em
pouco tempo tínhamosarrancado todo o isolamento
dos canos e enfiado nas nossas mochilas. Enquanto
trabalhávamos, milagre dos Andes ouvimos uma
barulheira lá fora e vimos Roy, furioso, a desfazer o
rádio com os pés.
- Ele devia poupar energia - disse para Tintin. Esta
escalada vai ser dura. Iniciámos a subida a meio da
manhã. O céu estava encoberto e baixo quando
partimos, mas a temperatura estava amena e o
tempo, calmo. Roberto e Tintin iam à frente, Roy
arrastava-se atrás de mim. Como antes, batalhar
pela encosta acima com neve até ao joelho era
exaustivo e parámos muitas vezes para descansar.
Eu sabia que Roy estava a sofrer com o esforço, por
isso mantinha um olho nele e atrasava o passo para
evitar que ele ficasse demasiado para trás. Passada
cerca de uma hora, olhei para o céu enquanto
descansava e fiquei assustado com o que vi. As
nuvens tinham inchado e assumido um tom
cinzento-escuro ominoso. Estavam tão baixas que
senti que podia tocar nelas. Então, enquanto olhava,
as nuvens lançaram-se sobre nós, como a crista de
uma onda assassina. Antes de poder reagir, o céu
pareceu desabar e fomos varridos por um dos
temporais arrasadores que os que conhecem os
Andes chamam "vento branco". Numa questão de
segundos, tudo ficou um caos. A temperatura
desceu. O vento empurrava-me e arrastava-me com
tanta ferocidade que tinha de cambalear para a
frente e para trás para não cair. A neve rolava em
redemoinhos espessos à minha volta, ferindo-me o
rosto e fazendo com que não soubesse onde estava.
Semicerrei os olhos naquele temporal, mas a
visibilidade era quase zero e não vi sinal dos outros.
Por um instante, entrei em pânico. "Por onde é que
se sobe?", perguntei a mim mesmo. "Qual é o
caminho?" Então ouvi a voz de Roberto, soando
débil e distante no meio do troar enorme da
tempestade.
- Nando! Estás a ouvir-me?
- Roberto! Estou aqui!
Olhei para trás. Roy desaparecera.
- Roy? Onde estás?
Não houve resposta. Cerca de dez metros atrás de
mim, vi um montinho cinzento pouco distinto na
neve e percebi que Roy tinha caído.
-Roy! - berrei. Vamos embora!
Ele não se mexeu, por isso cambaleei pela encosta
abaixo até ao ponto onde se encontrava. Estava
enroscado na neve, os joelhos apertados contra o
peito e os braços em volta do corpo.
- Mexe-te! - gritei. Esta tempestade mata-nos se não
continuarmos a andar!
- Não consigo - lamuriou-se Roy. Não consigo dar
nem mais um passo.
- Levanta-te, estúpido - gritei. Vamos morrer aqui!
Roy olhou para mim, o rosto retorcido numa careta
de medo.
- Não, por favor - soluçou. Não consigo. Deixa-me
aqui. A tempestade estava a ficar mais forte a cada
segundo que passava e, quando estava ao pé de
Roy, os ventos sopraram com tanta violência que
pensei que me fossem levantar do chão. Estávamos
encurralados numa completa escuridão branca.
Perdera inteiramente o meu sentido de orientação e
a minha única esperança de voltar para a fuselagem
era seguir o trilho deixado por Roberto e Tintin.
Mas a neve pesada estava rapidamente a enterrar-
lhes as pegadas. Eu sabia que eles não esperariam
por nós - também estavam a lutar pela vida - e que
cada segundo que passasse com Roy nos
aproximava mais do desastre. Olhei para Roy. Os
ombros sacudiam-lhe com o choro e já estava meio
coberto pela neve. Tenho de o deixar ou morro,
pensei. Consigo jazê-lo? Tenho coragem para deixá-
lo aqui a morrer? Não respondi a estas perguntas
com palavras, mas com acções. Sem pensar duas
vezes, virei costas a Roy e segui o trilho dos outros
na encosta. Enquanto me arrastava contra a força do
vento, imaginei Roy sentado na neve. Pensei nele a
ver a minha sombra desaparecer na tempestade.
Seria a última coisa que veria. Quanto tempo levaria
até perder a consciência? pensei. Quanto tempo
sofrerá? Estava talvez a quinze metros de distância
agora e não conseguia apagar a imagem dele da
minha cabeça: caído na neve, tão desamparado, tão
patético, tão derrotado. Senti uma onda selvagem
de desprezo pela sua fraqueza e falta de coragem,
ou pelo menos foi o que me pareceu na altura.
Retrospectivamente, as coisas parecem bastante
diferentes. Roy não era um fracote. Sofrera mais do
que a maior parte de nós e encontrara força para
aguentar, mas era tão novo e o corpo fora devastado
de forma tão dura, que todas as suas reservas,
físicas e mentais, tinham sido simplesmente
esmagadas. Estávamos todos a ser empurrados até
aos nossos limites, mas Roy tinha sido empurrado
demasiado depressa e com demasiada intensidade.
Incomoda-me o facto de não ter mostrado mais
paciência e encorajamento nas montanhas e percebi,
depois de anos de reflexão, que a razão por que o
tratava assim era porque via demasiado de mim
próprio nele. Agora sei que não conseguia suportar
o tom lamuriento na voz trémula de Roy porque era
uma expressão vívida do terror que sentia no meu
coração, e que a careta retorcida que punha no rosto
me enlouquecia apenas porque era um espelho do
meu próprio desespero. Quando Roy se rendeu e se
sentou na neve, eu sabia que ele chegara ao fim da
luta. Descobrira o local onde a morte, por fim, o
viria buscar. Ao pensar em Roy deitado sem se
mexer e a desaparecer lentamente na neve, fui
obrigado a imaginar quão perto estaria o meu
próprio momento de rendição. Onde estaria o lugar
onde a minha própria determinação e força
falhariam? Onde, e quando, desistiria da luta e me
deitaria, assustado e derrotado como Roy, no
conforto macio da neve? Essa era a verdadeira fonte
da minha raiva: Roy estava a mostrar-me o meu
futuro e naquele momento detestei-o por causa
disso. Claro que não havia tempo para estes
pensamentos introspectivos naquela montanha
fustigada pela tempestade.
Eu agia apenas por instinto e, ao imaginar Roy a
soluçar na neve, todo o desprezo e desdém que
sentira em relação a ele nas últimas semanas
explodiram numa fúria assassina. Impulsivamente,
praguejei como um louco no meio da ventania.
"Mierda! Carajo! La reconcha de la reputisima
madre! La reputa madre que lo recontra mil y una
parió!" Estava fora de mim com raiva e, sem
perceber, já estava a correr pela encosta abaixo para
onde Roy tinha caído. Quando cheguei ao pé dele,
pontapeei-o selvaticamente nas costelas. Caí sobre
ele batendo-lhe com os joelhos de lado. Ajoelhando-
me, esmurrei-o com os meus punhos. Enquanto ele
rolava e gritava na neve, injuriei-o verbalmente de
forma tão cruel como o atacava com os punhos.
- Filho-da-puta! - gritei. Grande bastardo! Levanta-
te porra, seu merdas. Levanta-te ou mato-te! Juro
que o faço, estúpido. Eu lutara, desde o primeiro
momento na montanha, para manter a compostura
e evitar gastar energia a ventilar os meus medos e
fúrias. Mas agora, inclinado sobre Roy, senti a
minha alma esvaziar-se de todo o medo e rancor
que o tempo na montanha me tinha dado. Pisei as
ancas e os ombros de Roy com as botas de râguebi.
Empurrei-o para a neve. Chamei-lhe todos os
nomes e mais algum, e insultei-lhe a mãe de uma
maneira que não gosto de me lembrar. Roy chorava
e gritava enquanto eu o maltratava, mas por fim
levantou-se. Empurrei-o à minha frente, com tanta
força que ele quase caiu outra vez. E continuei a
empurrá-lo com rudeza, obrigando-o a subir aos
trambolhões pela encosta acima, uns passos de cada
vez. Lutámos através da tempestade. Roy sofria
horrivelmente com o esforço e a minha força estava
rapidamente a esgotar-se. A agressividade da
tempestade era assustadora. Quando lutava para
respirar o ar rarefeito, os ventos ondulantes
arrancavam-me a respiração, depois forçavam-na
pela garganta abaixo outra vez, obrigando-me a
cuspir e a engasgar-me como se me estivesse a
afogar. O frio açoitava-me e arrastava-me pela neve
funda e pesada, levando-me para lá do estado de
exaustão. Os meus músculos estavam perfeitamente
esgotados e cada passo exigia uma monumental
força de vontade. Mantinha Roy à minha frente,
para poder continuar a empurrá-lo, e subimos passo
a passo. Mas, passadas algumas centenas de metros,
ele inclinou-se para a frente e caiu, e percebi que
gastara as suas últimas forças. Desta vez não tentei
reanimá-lo. Em vez disso, passei-lhe os braços à
volta e ergui-o da neve. Mesmo com todas aquelas
camadas da roupa, vi como estava magro e fraco e o
meu coração amoleceu.
- Pensa na tua mãe, Roy - disse-lhe, com os lábios
pressionados contra o ouvido dele, para ele
conseguir ouvir-me no meio da tempestade. Se
queres vê-la de novo, tens de sofrer por ela agora.
Ele tinha os queixos caídos e os olhos rolavam por
baixo das pálpebras. Estava à beira de desmaiar,
mas, mesmo assim, conseguiu menear debilmente a
cabeça: lutaria. Para mim, aquele momento de
bravura foi tão notável quanto qualquer dos outros
actos de coragem e força que vimos nas montanhas
e, agora, quando penso em Roy, penso sempre nele
naquele momento, como um herói. Roy apoiou-se
em mim e escalámos juntos. Ele lutava com tudo o
que tinha, mas em breve chegámos a um ponto em
que a encosta subia com uma inclinação abrupta.
Roy olhou para mim calmamente, resignado,
sabendo que a subida estava simplesmente para
além das suas forças. Semicerrei os olhos na neve
cortante, tentando calcular a inclinação da encosta,
depois apertei mais a cintura dele e, com toda a
pouca força que ainda me restava, ergui-o do chão,
de forma a aguentar o peso dele no meu ombro. Em
seguida, com um passo lento e laborioso de cada
vez, carreguei-o pela encosta acima. Escurecia e os
trilhos deixados pelos outros eram difíceis de ver.
Escalava por intuição e, enquanto apalpava o
caminho para o local do acidente, era
constantemente atormentado pelo pensamento de
que podia ter-me afastado do caminho e estar a
andar para o vazio. Mas, finalmente, quando a
última luz da tarde se desvanecia, vi a ténue
silhueta do Fairchild através da neve espessa. Agora
arrastava Roy, mais do que o carregava, mas, com o
avião à vista, senti uma nova explosão de energia e,
por fim, chegámos. Os outros tiraram-me Roy dos
ombros quando entrámos aos tropeções pela
fuselagem. Roberto e Tintin tinham desfalecido no
chão e eu caí pesadamente ao lado deles. Não
conseguia parar de tremer e os meus músculos
ardiam e vibravam com a mais profunda exaustão
que já sentira na vida. Esgotei-me, pensei. Nunca
mais vou recuperar. Nunca mais vou ter forças para
escalar a montanha e sair daqui para fora. Mas
estava milagre dos Andes demasiado cansado para
me preocupar. Enrosquei-me na pilha de corpos à
minha volta, retirando calor dos outros e, pela
primeira vez, adormeci sem demora e dormi
profundamente durante horas. De manhã descansei.
Os dias que passara longe do Fairchild tinham-me
dado alguma perspectiva e via com novos olhos o
horror que se tornara uma parte normal das nossas
vidas. Havia pilhas de ossos amontoados fora da
fuselagem. Grandes partes de corpos - o antebraço
de alguém, uma perna da anca até aos pés - estavam
armazenadas perto da abertura da fuselagem para
fácil acesso. Tiras de gordura estavam espalhadas
na parte de cima da estrutura para secarem ao sol.
E, pela primeira vez, vi crânios humanos na pilha
de ossos. Quando começámos a comer carne
humana, consumíamos sobretudo pequenos
pedaços que cortávamos dos grandes músculos.
Porém, à medida que o tempo passava e o
suprimento de comida diminuía, não tivemos outra
escolha senão alargar a nossa dieta. Há algum
tempo que comíamos fígados, rins e corações, mas a
carne era tão escassa que tínhamos de quebrar os
crânios para chegar aos cérebros. Na nossa
ausência, alguns dos sobreviventes foram impelidos
pela fome a comer coisas que não conseguíamos
aguentar antes: os pulmões, partes das mãos e dos
pés e até coágulos de sangue que se formam na
parede dos grandes vasos dos corações. Para o
senso comum, estas acções podem parecer
incompreensivelmente repugnantes, mas o instinto
de sobrevivência é muito profundo e, quando a
morte está tão próxima, o ser humano habitua-se a
tudo. Ainda assim, apesar da intensidade extrema
da fome e dos esforços desesperados para percorrer
as encostas à procura dos corpos que se tinham
perdido, não tinham quebrado a promessa que
tinham feito, a mim e a Javier: os corpos da minha
mãe, da minha irmã e de Liliana, todos de fácil
acesso, não tinham sido tocados; ainda estavam
intactos sob a neve. Comoveu-me pensar que,
mesmo à beira da inanição, uma promessa ainda
representava algo para os meus amigos. As
montanhas tinham - nos causado muitas perdas e
angústias. Tinham-nos milagre dos Andes roubado
os nossos melhores amigos e os entes mais
queridos, tinham-nos obrigado a enfrentar horrores
intoleráveis e tinham-nos mudado de maneiras que
levaríamos anos a compreender. Porém, apesar de
todo o sofrimento que os meus amigos tinham
suportado, os princípios da amizade, lealdade,
compaixão e honra ainda eram importantes para
eles. Os Andes tinham feito muito para nos esmagar
e todos sabíamos que nos agarrávamos à vida por
um fio. Mas não nos tínhamos rendido a instintos
primitivos de auto-sobrevivência. Ainda lutávamos
juntos, como uma equipe. Os nossos corpos
estavam a enfraquecer, mas a nossa humanidade
sobrevivia. Não tínhamos deixado as montanhas
roubar as nossas almas. Na primeira semana de
Dezembro, começámos a preparar-nos a sério para
escalar as montanhas a ocidente. Fito e os primos
cortaram carne para nós e armazenaram-na na neve,
enquanto António, Roberto e eu juntávamos as
roupas e o equipemento de que precisaríamos para
a viagem. Uma estranha mistura de excitação e
melancolia pairava sobre nós enquanto nos
aprontávamos para a expedição final. As primeiras
tentativas para escalar a montanha e a expedição
falhada para leste tinham-nos mostrado o terrível
poder dos Andes, mas também nos tinham
ensinado os princípios fundamentais da
sobrevivência na montanha. Estávamos ainda
espectacularmente mal equipedos para desafiar
aquela imensidão árida à nossa volta, mas pelo
menos compreendíamos, de forma um pouco mais
clara, como as montanhas podiam ser perigosas.
Sabíamos, por exemplo, que enfrentaríamos dois
grandes desafios na viagem. Em primeiro lugar, as
intensas exigências que a escalada em alta altitude
exerce sobre o corpo. Aprendêramos, por dura
experiência, que o ar rarefeito da montanha
transforma até o mais pequeno esforço num
horrível teste de resistência e determinação. Não
podíamos fazer nada contra isso, excepto partirmos
antes de ficarmos demasiado fracos e medirmos as
nossas capacidades. O segundo desafio seria
protegermo-nos da exposição ao frio, especialmente
depois do pôr do Sol. Naquela época do ano
podíamos contar com temperaturas bem acima de
zero durante o dia, mas as noites ainda eram
suficientemente frias para nos matar, e sabíamos
que não encontraríamos abrigo nas encostas
expostas. Precisávamos de uma forma de sobreviver
às longas noites sem enregelar, e o tecido
acolchoado do isolamento que arrancáramos da
secção da cauda proporcionou-nos a solução. O
isolamento era constituído por pequenos pedaços
rectangulares, cada um do tamanho de uma revista.
Desde que regressáramos, tínhamos passado a
colocar o isolamento entre as camadas das nossas
roupas e descobrimos que, apesar da sua leveza e
pouca espessura, era muito eficaz a escudar-nos do
frio à noite. Quando planeávamos a viagem,
percebemos que podíamos coser os rectângulos
para formar uma grande manta de retalhos quente.
Depois percebemos que se dobrássemos a manta ao
meio e juntássemos as costuras, criaríamos um saco-
-cama suficientemente grande para os três
expedicionários dormirem lá dentro. Com o calor
de três corpos conservado no tecido de isolamento,
talvez tivéssemos hipóteses de aguentar as noites
mais frias. Carlitos assumiu o desafio. A mãe
ensinara-o a coser quando era pequeno e com as
agulhas e linhas do conjunto de costura que
encontrara na malinha da minha mãe, ele pôs mãos
à obra. Era uma tarefa meticulosa e ele tinha de se
certificar que todos os pontos eram suficientemente
fortes para aguentar uma utilização pouco delicada.
Para acelerar o processo, Carlitos ensinou outros a
coser e todos nos revezávamos, mas muitos não
tinham qualquer jeito para o trabalho; Carlitos,
Coche, Gustavo e Fito revelaram ser os melhores e
mais rápidos alfaiates. Enquanto o trabalho
progredia, Tintin e eu preparávamo-nos para a
viagem, mas Roberto estava a demorar a juntar as
suas coisas. Preocupado que estivesse a
reconsiderar a ideia da escalada, aproximei-me dele
uma tarde quando descansava fora da fuselagem.
- O saco-cama vai ficar pronto em breve. Tudo o
resto está preparado. Devíamos partir logo que
possível.
Roberto abanou a cabeça.
- É idiotice partir logo agora que andam à nossa
procura - retorquiu.
- Tínhamos um acordo - disse. O rádio não
funcionou, é altura de partirmos para ocidente.
- Sim, vamos para ocidente - replicou. Vamos só
dar-lhes mais algum tempo.
- Quanto tempo?
- Vamos dar-lhes dez dias - pediu Roberto. Faz todo
o sentido dar-lhes uma hipótese.
- Olha, Roberto, ninguém sabe melhor do que tu
que não temos esse tempo todo. Em dez dias,
metade de nós pode morrer. Roberto fuzilou-me
com um olhar beligerante.
- Então qual é a tua brilhante ideia, Nando?
Atirares-te para as montanhas quando sabemos que
uma equipe de resgate está a tentar encontrar-nos?
- Não é uma equipe de resgate - respondi. Estão à
procura de cadáveres. Não têm pressa de nos
encontrar.
Roberto franziu a testa e afastou-se.
- Ainda não é altura - murmurou. É demasiado
cedo.
A meio da primeira semana de Dezembro, o saco-
cama ficou pronto. O nosso equipemento estava
todo preparado, a carne para a viagem cortada e
embrulhada em meias e todos sabíamos que
chegara a hora de partir - todos menos Roberto, que
descobria uma razão irritante atrás de outra para
adiar a viagem. Primeiro queixou-se que o saco-
cama não era suficientemente forte e insistiu para
que fosse reforçado. Depois disse que não podia
partir quando Coche, Roy e os outros precisavam
tanto dos seus cuidados médicos. Por fim, declarou
que não descansara o suficiente da escalada e que
precisaria de muitos dias para recuperar as forças.
Fito e os primos tentaram pressioná-lo a agir, mas
Roberto rejeitou furiosamente a autoridade deles.
De facto, refilava com todos os que sugerissem que
andava a protelar e proclamou bem alto que não
partiria senão quando estivesse pronto. A medida
que o resto do grupo ficava mais aborrecido com a
sua teimosia, Roberto tornou-se cada vez mais tenso
e implicante. Maltratava os mais fracos. Arranjava
brigas sem a menor provocação. Certa vez, depois
de uma discussão banal, pegou no amigo Álvaro
Mangino pelos cabelos e atirou-o contra a parede.
Momentos mais tarde, cheio de remorsos, pediu
desculpa a Mangino e abraçaram-se, mas eu já vira
o suficiente. Segui Roberto e esperei até ficarmos
sozinhos.
- Isto não pode continuar. Sabes que está na hora de
partirmos.
- Sim - disse Roberto -, partimos em breve, mas
temos de esperar que o tempo melhore.
- Estou cansado de esperar - declarei serenamente.
Já te disse. Vamos quando o tempo melhorar!
Eu estava a tentar manter a calma, mas o tom
agressivo de Roberto fez-me explodir.
- Olha à tua volta! - gritei. Estamos a ficar sem
comida! Os nossos amigos estão a morrer. Coche
começou a delirar à noite. Já não vai durar muito.
Royainda estápior, só pele e osso. Javier está
aniquilado e os rapazes mais novos, Sabella,
Mangino e Bobby, estão todos muito fracos. E olha
para nós! Tu e eu estamos a definhara cada hora
que passa. Temos de escalar a montanha antes que
estejamosdemasiado fracos para nos aguentarmos
em pé!
- Escuta-me, Nando - ripostou Roberto -, tivemos
uma tempestade há dois dias. Lembras-te disso? Se
nos tivesse apanhado nas encostas, tinha-nos morto.
- E uma avalanche poderá matar-nos. Ou podemos
cair numa fenda. Podemos desequilibrar-nos e cair
era cima das rochas! Não podemos eliminar esses
riscos, Roberto, e não podemos esperar mais tempo!
Roberto afastou o olhar, ignorando os meus
comentários. Levantei-me.
- Já escolhi uma data, Roberto. Vou partir na manhã
do dia doze de Dezembro.Se não estiveres pronto,
vou sem ti.
- Não podes ir sem mim, seu idiota.
- Tu ouviste-me - disse, afastando-me. Vou partir no
dia doze. Com ou sem ti.
No dia 9 de Dezembro era o meu vigésimo terceiro
aniversário. Nessa noite, nafuselagem, os rapazes
deram-me um dos charutos que tínhamos
encontrado nabagagem da cauda.
- Não é Punta del Este, como tínhamos planeado -
brincou Carlitos -, mas é um havano.
- A qualidade é o menos - disse eu, engasgando-me
quando inalava. Só sei é que o fumo é quente.
- Perdemos os nossos aniversários - declarou
Carlitos - mas sei, lá no fundo, que estaremos com
as nossas famílias no Natal. Tu vais conseguir,
Nando, tenho a certeza.
Não respondi a Carlitos e fiquei contente por as
sombras na fuselagem esconderem a dúvida nos
meus olhos.
- Dorme - disse-lhe, e depois soprei-lhe uma nuvem
de caro fumo cubano para a cara. No dia 10 de
Dezembro, Gustavo e eu falámos com preocupação
sobre Numa.
- Ele pediu-me para lhe ver uma ferida nas costas -
disse Gustavo - e olhei para dentro das roupas dele.
Não tem carne nenhuma agarrada aos ossos. Não
vai durar mais de dois dias.
Ajoelhei-me ao lado de Numa.
- Como é que te sentes, Numa?
Numa sorriu debilmente.
- Penso que já não vou durar muito tempo.
Vi um olhar de aceitação nos olhos dele. Enfrentava
a morte com coragem e não quis desonrar aquilo
contando-lhe mentiras.
- Tenta aguentar - disse. Nós vamos escalar a
montanha em breve. Vamos para ocidente, por fim.
- "O Chile fica a ocidente" - disse ele com um sorriso
cansado.
- Vou lá chegar ou morrer a tentar.
- Tu vais conseguir, tu és forte.
- Tu é que tens de ser forte, Numa, pela tua família.
Vais vê-los de novo.
Numa sorriu apenas.
- É curioso. Penso que a maior parte dos homens
morre a lamentar erros que cometeram na vida, mas
eu não tenho remorsos. Tentei viver uma boa
vida.Tentei tratar bem as pessoas. Espero que Deus
tenha isso em consideração.
- Não fales assim, Numa.
- Mas eu estou em paz - disse. Estou preparado para
o que vier.
Na manhã de 11 de Dezembro, Numa entrou em
coma. Morreu nessa tarde. Numa era um dos
melhores do grupo, um jovem que parecia não ter
um lado mau, uma pessoa cuja compaixão e
generosidade nunca esmoreciam, por mais que
sofresse. Enlouqueceu-me pensar que um homem
daqueles morresse de uma simples ferida na perna,
uma contusão menor, o tipo de lesão que no mundo
normal não teria merecido a mínima preocupação.
Olhando para os meus amigos, pensei se as suas
famílias, que se tinham despedido deles como
jovens saudáveis, os reconheceriam sequer agora,
com os rostos chupados, as sobrancelhas e faces
encovadas com os ossos à vista, com os rostos
mirrados de gárgulas e gnomos, e a maioria mal
tendo forças para se pôr de pé sem cambalear. Eu
via nos seus olhos que qualquer esperança que
tivessem conseguido manter viva se estava a
desvanecer agora. Os corpos eram cascas secas e
vazias. A vida extinguia-se como a cor se esvai de
uma folha caída. Pensei em todos os outros que
tinham morrido e imaginei os seus fantasmas a
juntarem-se à nossa volta, vinte e nove figuras
cinzentas amontoadas em silêncio na neve, e Numa
a ocupar o seu lugar entre elas. Tantas mortes,
tantas vidas abreviadas. Uma sensação pesada de
esgotamento invadiu-me. Chega, murmurei. Chega.
Era altura de acabar com aquela história. Encontrei
Roberto lá fora, apoiado à fuselagem do Fairchild.
- Está tudo pronto - afirmei. Tintin e eu estamos
preparados para partir. Amanhã de manhã saímos.
Vens connosco?
Roberto relanceou o olhar pelas montanhas a
ocidente. Vi-lhe nos olhos que ficara tão abalado
com a morte de Numa como os outros.
- Sim - disse. Estarei pronto. Chegou a hora de
partir.
Na noite de 11 de Dezembro, a nossa sexagésima
noite nos Andes, sentei-me do lado de fora da
fuselagem, num dos assentos que tínhamos
arrastado de dentro do avião e fitei as montanhas a
ocidente, que bloqueavam o meu caminho para
casa. Quando a noite caiu, a montanha maior, a que
teria de escalar, ficou mais escura e mais medonha.
Não vi nela qualquer hostilidade, apenas grandeza,
poder e indiferença cruel. Era difícil convencer-me
de que o momento pelo qual ansiara e receara
finalmente chegara. A minha mente era um furacão
de perguntas. Como será congelar até à morte?,
pensei. É uma morte dolorosa ou fácil? É rápida ou
lenta? Parece uma forma solitária de morrer. Como
é que se morre de exaustão? Caímos simplesmente
pelo caminho? Seria horrível morrer de fome, mas
preferia morrer assim do que cair. Por favor, meu
Deus, não me deixes cair. É o meu maior medo -
escorregar por alguma encosta íngreme centenas de
metros por ali abaixo, tentando agarrar-me à neve,
sabendo que vou direito a um despenhadeiro e a
uma longa queda desamparada até às rochas,
milhares de metros abaixo. Qual seria a sensação de
cair de uma altura daquelas? A minha mente
apagar-se-ia para me poupar o horror, ou estaria
lúcido até bater no chão? Por favor, meu Deus,
protege-me desse tipo de morte. Subitamente, uma
imagem surgiu na minha cabeça. Vi-me de cima,
como uma figura imóvel enrolada na neve.
A vida extinguia-se do meu corpo. Encontrara os
meus limites, o local e o momento da minha morte.
Como é que seria esse momento? Qual seria a
última coisa que veria? A neve? O céu? A sombra
de uma rocha? O rosto de um amigo? Estaria
sozinho? Os meus olhos estariam abertos ou
fechados quando o meu espírito saísse do corpo?
Aceitaria a morte pacificamente, como sob a
avalanche, ou choraria e debater-me-ia por mais um
momento de vida? A morte parecia tão real, tão
próxima e, sentindo a sua presença, comecei a
tremer, sabendo que não tinha coragem para
enfrentar o que estava para vir. Não consigo fazer
isto. Não quero morrer. Decidi que diria aos outros
que mudara de ideias. Ia ficar. Talvez Roberto
tivesse razão e a equipe de resgate finalmente nos
encontrasse... Mas sabia que não era assim.
Estávamos quase sem comida. Quanto tempo se
passaria até que ela acabasse completamente e
começasse a terrível espera pela morte de alguém?
Quem morreria primeiro? Quanto tempo
esperaríamos para cortá-lo? E como seria para o
último sobrevivente? Olhei de novo para a
montanha e compreendi que nada do que fizesse
poderia ser pior do que aquilo que o futuro me
reservava aqui. Falei à montanha, esperando que
houvesse misericórdia nas suas encostas.
- Conta-me os teus segredos - sussurrei. Mostra-me
como te escalar.
A montanha, obviamente, ficou em silêncio. Fitei as
cristas altas, tentando, com olhos de amador, traçar
o melhor caminho até ao cume. Mas a noite não
tardou a cair. As encostas desapareceram na
escuridão. Entrei no Fairchild, deitei-me com os
meus amigos uma última vez e tentei dormir.

8 O OPOSTO DA MORTE
Se dormi alguma coisa naquela noite, não foram
mais do que instantes agitados de cada vez e,
quando a primeira luz da manhã iluminou
debilmente as janelas do Fairchild, já estava
acordado há horas. Alguns dos outros estavam de
pé, mas ninguém falou comigo quando me levantei
e me preparei para partir. Vestira-me para a
montanha na noite anterior. Junto à pele tinha uma
camisola pólo de algodão e um par decalças de lã.
Eram calças de senhora que descobrira na bagagem
de alguém - provavelmentede Liliana -, mas
passados dois meses na montanha não tive
qualquerdificuldade em fazê-las deslizar pelas
minhas ancas ossudas. Tinha três paresde jeans por
cimadas calças e três camisolas por cima do pólo.
Calçara quatro pares de meias ecobrira as meias
com sacos de plástico do supermercado para mantê-
las secas na neve. Enfiei os pés nas botas de râguebi
esfoladas e amarrei cuidadosamente os atacadores,
depois coloquei um gorro de lã na cabeça e joguei
por cima o capuz e ombros que cortara do casaco de
antílope da Susy. Tudo o que fazia naquela manhã
parecia cerimonioso, consequente. Os meus
pensamentos estavam afiadíssimos, mas a realidade
parecia nebulosa e onírica e tinha a sensação de que
me observava a mim mesmo à distância. Os outros
estavam silenciosos, sem saberem muito bem oque
dizer. Eu jáos deixara anteriormente, quando
partira para leste, mas soubera desde o princípio
que aquela viagem era meramente um exercício.
Naquela manhã, sentia um pesado toque de
fatalidade na minha partida e os outros também o
sentiam. Depois de tantas semanas de intensa
camaradagem e luta comum, havia uma súbita
distância entre nós. Já começara a deixá-los. Agarrei
na viga de alumínio que iria usar como bordão e
tirei a minha mochila do compartimento de
bagagens por cima de mim. Estava cheia com as
minhas rações de carne e de coisas que pensava me
seriam úteis - algumas tiras de pano que podia
enrolar nas mãos para as manter aquecidas, um
batom para proteger os meus lábios gretados do
vento e do sol. Arrumara a mochila antes de me
deitar. Queria que a minha partida fosse tão rápida
e simples quanto possível; os atrasos só dariam
tempo para me enervar. Roberto acabara de se
vestir. Trocámos um aceno de cabeça silencioso,
depois coloquei o relógio de Panchito no pulso e
segui-o até lá fora. Havia um frio intenso no ar, mas
a temperatura estava bem acima de zero. Era um
dia perfeito para escalar a montanha; o vento estava
fraco e o céu de um azul brilhante.
- Vamos logo - disse. Não quero desperdiçar este
tempo.
Fito e os primos trouxeram alguma carne para o
pequeno-almoço. Comemos rapidamente. Não se
falou muito. Quando chegou a altura de partir,
levantámo-nos para nos despedirmos. Carlitos deu
um passo em frente e abraçámo-nos. Sorria com
alegria e a sua voz estava cheia de forte
encorajamento.
- Tu vais conseguir! - disse. Deus vai proteger-te!
Vi a louca esperança no seu olhar. Estava tão
magro, tão fraco, os olhos escuros tinham-se
afundado nas órbitas e a pele estava tão repuxada à
volta dos ossos das faces. Senti o coração partir-se
ao pensar que era a sua última esperança, que esta
viagem desesperada que estávamos prestes a iniciar
era a única hipótese de sobrevivência. Queria
abaná-lo, deixar correr as minhas lágrimas, gritar-
lhe: O que raio estou a fazer, Carlitos? Tenho tanto
medo! Não quero morrer! Mas sabia que se deixasse
que estes sentimentos aflorassem, o que restava da
minha coragem se esboroaria. Assim, em vez disso,
estendi-lhe um dos minúsculos sapatos vermelhos
que a minha mãe comprara em Mendoza para o
meu sobrinho. A minha mãe escolhera-os com tanto
amor para o neto e manuseara-os com tão tanta
ternura no avião que aqueles sapatinhos eram
mágicos para mim.
- Guarda isto. Eu fico com o outro. Quando te vier
buscar, fazemos o par de novo. Os outros
despediram-se com abraços e olhares de silencioso
encorajamento. Os seus rostos mostravam tanta
esperança e tanto medo, que era difícil olhá-los nos
olhos. No final de contas, fora eu quem planeara a
expedição e insistira mais ferozmente que era
possível chegar ao Chile a pé. Sei que os outros
consideravam o meu comportamento confiante e
optimista e talvez isso lhes desse esperanças. Mas o
que lhes parecia optimismo não era, na realidade,
nada do género. Era pânico. Era terror. A ânsia que
me levava a caminhar para ocidente era a mesma
ânsia que leva um homem a saltar do topo de um
edifício a arder. Sempre quisera saber o que uma
pessoa pensa num momento como esse,
empoleirada na beira, encolhendo-se das chamas,
esperando pela fracção de segundo em que uma
morte faz mais sentido do que a outra. Como é que
a mente faz uma escolha destas? Qual é a lógica que
nos diz que chegou a hora de dar um passo no
vazio? Naquela manhã tive a resposta. Sorri para
Carlitos e depois virei-me para ele não ver a
angústia nos meus olhos. O meu olhar recaiu no
macio montículo de neve que marcava o lugar onde
a minha mãe e a minha irmã estavam enterradas.
Todo o tempo que passara desde as suas mortes,
não me permitira um único pensamento
sentimental sobre elas. Mas naquele instante revivi
o momento em que depositara Susy na cova pouco
funda e a cobrira com a neve reluzente. Tinham-se
passado dois meses desde aquele dia, mas ainda
conseguia ver-lhe o rosto com muita clareza com os
cristais brancos a caírem suavemente sobre as faces
e sobrancelhas. Se eu morrer, pensei, o meu pai
nunca saberá como a confortei e a mantive aquecida
e como ela parecia em paz na sua sepultura branca.
- Nando, estás pronto?
Roberto estava à espera. A montanha estava atrás
dele, as encostas brancas luzindo sob o sol da
manhã. Recordei-me que aqueles picos brutais eram
tudo o que bloqueava o caminho até ao meu pai e
que chegara finalmente a hora de iniciar a longa
caminhada de regresso a casa, mas estes
pensamentos não me inspiraram nenhuma
coragem. Sentia-me muito perto do pânico. Todos
os medos que me tinham atormentado desde que
acordara do coma estavam a convergir e eu tremia
como um homem condenado prestes a subir os
degraus da forca. Se estivesse sozinho, talvez
tivesse chorado como um bebé e o único
pensamento na minha cabeça era a súplica de uma
criança assustada: Não quero ir. Durante meses
tinha sido a ideia desta fuga que me tinha
aguentado, mas agora, prestes a partir, queria
desesperadamente ficar com os meus amigos.
Queria enroscar-me com eles na fuselagem naquela
noite, conversar com eles sobre as nossas casas e
famílias, ser confortado pelas suas orações e o calor
dos seus corpos. O local do acidente era um sítio
terrível, ensopado de urina, cheirando a morte,
atulhado de pedaços de osso e cartilagem humana,
mas para mim, subitamente, parecia seguro, quente
e familiar. Queria ficar ali. Queria tanto ficar.
- Nando - disse Roberto -, está na hora de partir.
Lancei mais um olhar às sepulturas, depois virei-me
para Carlitos.
- Se ficarem sem comida - disse -, quero que usem a
minha mãe e Susy. Carlitos ficou sem fala durante
um momento, depois assentiu.
- Só como último recurso - respondeu suavemente.
Roberto voltou a chamar:
- Nando?
- Estou pronto - disse.
Acenámos uma última vez e depois começamos a
escalada. Nenhum de nós tinha muito a dizer
quando subimos a inclinação suave do glaciar até às
encostas mais baixas da montanha. Pensávamos
saber o que nos esperava e como a montanha podia
ser perigosa. Aprendêramos que mesmo a
tempestade mais fraca nos podia matar se nos
apanhasse numa zona exposta. Compreendíamos
que a neve em forma de cornija nas cristas altas era
instável e que a menor avalanche nos varreria
encosta abaixo como uma vassoura a limpar
migalhas. Sabíamos que havia fendas profundas
escondidas por baixo da fina crosta de neve gelada,
e que rochas do tamanho de aparelhos de televisão
muitas vezes se despenhavam de saliências no alto
da montanha. Mas não sabíamos nada sobre as
técnicas e estratégias do alpinismo e o que não
sabíamos era o suficiente para nos matar. Não
sabíamos, por exemplo, que o altímetro do Fairchild
estava errado; o local da queda não ficava a dois mil
metros de altitude, como pensávamos, mas a perto
de três mil e seiscentos. Nem sabíamos que a
montanha que estávamos prestes a enfrentar era
uma das mais altas dos Andes, elevando-se a uma
altitude de aproximadamente cinco mil metros, com
encostas tão íngremes e difíceis que seriam um
desafio para uma equipe de alpinistas experientes.
Montanhistas experientes, na realidade, não se
teriam aproximado daquela montanha sem um
arsenal de equipementos especializados, incluindo
pítons de aço, parafusos para gelo, cordas de
segurança e outras ferramentas indispensáveis
concebidas para os manterem presos em segurança
às encostas. Transportariam picaretas, tendas
impermeáveis e botas térmicas resistentes
adaptadas com crampons - pontas de metal que
providenciam tracção nas inclinações mais
íngremes e geladas. Estariam em perfeitas
condições físicas, claro, escalariam na altura
escolhida e planeariam cuidadosamente o caminho
mais seguro até ao cume. Nós íamos escalar com
roupas de cidade, só com as ferramentas toscas que
tínhamos improvisado a partir de materiais
resgatados do avião. Os nossos corpos já estavam
devastados por meses de exaustão, fome e
exposição ao frio e a nossa vida passada pouco nos
preparara para aquela tarefa. O Uruguai é um país
quente e de baixa altitude. Nenhum de nós vira
sequer montanhas a sério. Antes do acidente,
Roberto e Tintin nunca tinham visto neve. Se
soubéssemos alguma coisa sobre alpinismo,
teríamos percebido que estávamos condenados.
Felizmente, não sabíamos nada e aquela ignorância
representou a nossa única hipótese. A nossa
primeira missão era escolher um caminho pelas
encostas. Alpinistas experientes teriam logo
detectado uma crista que descia do cume até ao
glaciar, num ponto cerca de um quilómetro e meio a
sul do local da queda. Se tivéssemos sabido o
suficiente para caminhar até àquela crista e escalar a
sua longa e estreita espinha, teríamos encontrado
melhor apoio para os pés, encostas mais suaves e
um caminho mais seguro e rápido até ao cume.
Nem sequer reparámos na crista. Durante dias
marcara com os olhos o local onde o Sol se punha
atrás das cristas e, pensando que o melhor caminho
era o mais curto, usámos aquele ponto para traçar
um percurso em linha recta para ocidente. Foi um
erro amador que nos obrigou a serpentear pelas
encostas mais íngremes e mais perigosas da
montanha. O começo, no entanto, foi promissor. A
neve no flanco mais baixo da montanha era firme e
razoavelmente plana e os ferros das botas de
râguebi agarravam-se bem à crosta gelada.
Impelido por uma intensa onda de adrenalina, subi
com rapidez a encosta e, num abrir e fechar de
olhos, estava quase cinquenta metros à frente dos
outros. Mas depressa fui obrigado a diminuir o
ritmo. A encosta tornara-se muito mais íngreme e
parecia ficar pior a cada passo, como um tapete
rolante que vai constantemente aumentando a sua
inclinação. O esforço fazia-me ofegar no ar rarefeito
e precisava de descansar, com as mãos nos joelhos,
praticamente a cada poucos metros do caminho. Em
breve o sol ficou suficientemente forte para nos
aquecer, mas aquecia também a neve, e a superfície
firme sob os pés começou a ceder. A cada passo, os
meus pés rompiam a camada de gelo cada vez mais
fina e afundava-me até aos joelhos na neve macia e
funda. Cada passo exigia um esforço tremendo.
Levantava o joelho quase até à altura do peito para
tirar a bota da neve. Depois dava um passo em
frente com aquele pé, mudava o peso do corpo para
ele, e o gelo partia-se mais uma vez. Naquele ar
rarefeito, tinha de descansar, exausto, a cada passo.
Quando me virei, vi os outros a batalharem
também. Olhei para o sol sobre as nossas cabeças e
compreendi que esperáramos demasiado tempo
para começar a escalada naquela manhã. A lógica
dizia-nos que seria mais sensato escalar à luz do
dia, de modo que tínhamos esperado pelo nascer do
Sol. Os especialistas, por outro lado, saberiam que a
melhor hora é antes do amanhecer, antes de o sol
transformar as encostas em papa. A montanha
estava a fazer-nos pagar por mais um erro amador.
Imaginei que outros obstáculos nos esperariam e a
quantos seríamos capazes de sobreviver. Por fim,
toda a crosta derreteu e fomos obrigados a avançar
encosta acima através de montes de neve pesados,
que às vezes nos chegavam às ancas. -Vamos
experimentar os sapatos de neve! -gritei. Os outros
concordaram com a cabeça, tirámos os sapatos
improvisados de Fito das costas e calçámo-los sem
demora. Funcionaram bem ao princípio, permitindo
que escalássemos sem nos afundarmos na neve.
Mas o tamanho e a grossura das almofadas
forçavam-nos a arquear as pernas ao caminhar e a
girar os pés em círculos absurdamente grandes para
evitar que chocassem. Para piorar, o enchimento
ficou logo encharcado de neve derretida. No meu
estado de esgotamento, parecia que estava a escalar
a montanha com tampas de esgotos presa nos
sapatos. Estava rapidamente a desanimar. Já
estávamos à beira da exaustão e a verdadeira
escalada nem tinha sequer começado. A montanha
foi ficando cada vez mais inclinada e em breve
alcançámos encostas demasiado íngremes e
expostas ao vento para acumularem montes fundos
de neve. Retirámos com alívio os sapatos de neve,
amarrámo-los às costas e continuámos. A meio da
manhã, chegáramos a uma altura vertiginosa. O
mundo à nossa volta era constituído mais por ar
azul e luz do Sol do que por rochas e neve.
Tínhamos literalmente escalado até ao céu. A
perfeita altitude e amplitude daquelas encostas
imensas deram-me uma sensação onírica de
incredulidade. A montanha descia tão verticalmente
atrás de mim que, quando olhei para baixo, para
Tintin e Roberto, vi apenas as suas cabeças e
ombros recortados contra seiscentos metros de céu
vazio. O ângulo da encosta era tão íngreme quanto
uma escada de mão, mas imagine-se uma escada
que fosse até à lua! A altitude punha-me a cabeça
tonta e sentia espasmos nos tendões e na coluna.
Virar-me para olhar para baixo era como fazer
piruetas na beira de um arranha-céus. Em encostas
íngremes e expostas como aquelas, em que a
inclinação parece querer expulsar-nos da montanha
e é difícil encontrar bons apoios para as mãos, um
especialista usaria cordas de segurança atadas a
grampos de aço espetados na rocha ou no gelo,
além de contar com os crampons para fixar os pés
com segurança na encosta. Não tínhamos nada
daquilo, somente a força cada vez mais débil dos
nossos braços, pernas, pontas dos dedos das mãos e
dedos dos pés congelados, para evitar que
caíssemos no vácuo azul. Estava aterrorizado, sem
dúvida, mas, mesmo assim, não podia negar a
beleza selvagem em meu redor - o céu imaculado,
as montanhas geladas, a paisagem reluzente da
neve virgem e funda. Era tudo tão vasto, tão
perfeito, tão silencioso e tranquilo. Porém,
escondido por trás daquela beleza, havia algo que
me perturbava, algo antigo, hostil e profundo. Olhei
para baixo, para os destroços no local do acidente.
Daquela altitude, eram apenas uma mancha na neve
ancestral. Percebi como pareciam toscos e
inadequados, como estavam absolutamente errados.
Tudo estava errado no nosso caso - a violência e o
estrondo da nossa chegada, o sofrimento horrível, o
barulho e o caos da nossa triste luta pela
sobrevivência. Tudo aquilo destoava naquele lugar.
A vida destoava naquele lugar. Era tudo uma
violação da serenidade perfeita que reinara ali por
milhões de anos. Sentira isso no primeiro momento
em que olhei para as montanhas: perturbáramos um
equilíbrio antigo e este teria de ser restabelecido.
Sentia isso à minha volta, no silêncio, no frio. Algo
queria recuperar aquele silêncio perfeito, algo nas
montanhas queria calar-nos. Ao final da manhã
estávamos a cerca de seiscentos metros do local do
acidente e provavelmente a mais de quatro mil
metros acima do nível do mar. Eu arrastava-me
centímetro a centímetro com uma dor de cabeça
perversa que pressionava o meu crânio como uma
argola de ferro. Sentia os dedos grossos e
desajeitados e as minhas pernas pesavam de
cansaço. O menor esforço - erguer a cabeça, virar-
me para falar com Roberto - fazia-me ofegar como
se tivesse corrido mais de um quilómetro e,
independentemente da força que fizesse para
respirar, não conseguia encher os pulmões. Era
como se um pedaço de feltro bloqueasse a minha
respiração.
Não podia adivinhar que estava a sofrer os efeitos
da altitude. O stresse psicológico de escalar numa
atmosfera com falta de oxigénio é um dos maiores
perigos que os alpinistas podem enfrentar. A
síndrome da altitude, que geralmente ataca na zona
dos dois mil e quinhentos metros, pode causar uma
série de sintomas debilitantes, incluindo dor de
cabeça, fadiga extrema e tonturas. Acima dos três
mil e quinhentos metros, pode provocar edemas
cerebrais e pulmonares, que podem causar lesões
irreversíveis no cérebro e morte súbita. Em alta
altitude, é difícil evitar os efeitos desta síndrome na
sua forma suave ou moderada, mas o quadro piora
se se escalar rapidamente. Os especialistas
recomendam que o alpinista suba apenas trezentos
metros por dia, o que dá ao corpo hipótese de se
habituar ao ar rarefeito. Nós tínhamos escalado o
dobro numa só manhã e piorávamos ainda mais a
situação porque continuávamos a subir quando os
nossos corpos precisavam desesperadamente de
descanso. Em consequência, o meu corpo faminto
de oxigénio lutava para se adaptar ao ar rarefeito. O
meu ritmo cardíaco disparou e o sangue engrossou
nas minhas veias - a maneira que o corpo encontra
para conservar o oxigénio na corrente sanguínea e
enviá-lo com maior rapidez para os tecidos e órgãos
vitais. O ritmo da respiração chegou quase à
hiperventilação e, com toda a humidade que perdia
a expirar, estava a ficar gravemente desidratado a
cada expiração. Para conseguirem a enorme
quantidade de água necessária para se manterem
hidratados a alta altitude, os alpinistas experientes
usam fogareiros portáteis para derreter pedaços de
neve e ingerem litros de líquidos por dia. A nossa
única fonte de líquidos era a neve que engolíamos
aos punhados ou derretíamos na garrafa de vidro
que transportávamos numa
milagre dos Andes das mochilas. Não adiantava
muito. A desidratação esgotava rapidamente as
nossas forças e escalávamos com uma sede
constante e abrasadora.
Após cinco ou seis horas de escalada árdua,
tínhamos subido provavelmente pouco mais de
setecentos e cinquenta metros, mas, apesar de todo
o esforço, o cume não parecia nem um pouco mais
próximo. Comecei a desanimar quando calculei a
enorme distância até ao topo e percebi que os meus
dolorosos passos mal me aproximavam dele mais
do que trinta centímetros. Compreendi, com uma
clareza brutal, que tínhamos empreendido uma
tarefa inumana. Arrasado pelo medo e por uma
sensação de futilidade, tive vontade de me afundar
de joelhos e ficar ali quieto. Então ouvi aquela voz
calma na minha cabeça, a que me dera força em
tantos momentos de crise. Estás a afogar-te nas
distâncias, disse ela. Diminui a montanha de
tamanho. Eu sabia o que tinha de fazer. À minha
frente havia uma grande rocha. Decidi esquecer o
cume e fazer dela o único objectivo. Andei com
dificuldade na sua direcção, mas, tal como o cume,
parecia afastar-se de mim à medida que escalava.
Percebi então que estava a ser enganado pela
enorme escala de referência da montanha. Sem
nada naquelas encostas imensas e vazias para dar
perspectiva - nenhuma casa, pessoa ou árvore - uma
rocha que parecia ter três metros de largura e estar a
cem de distância podia ser realmente dez vezes
maior e estar a mais de um quilómetro. Ainda
assim, subi em direcção à rocha sem parar e,
quando finalmente a alcancei, escolhi outro marco e
comecei tudo de novo. Escalei daquela forma
durante horas, concentrando toda a atenção em
algum alvo - uma rocha, uma sombra, uma
formação de neve diferente -até que a distância que
me separava dele se tornasse a única coisa que
importava no mundo. Os únicos sons que ouvia
eram a minha própria respiração pesada e o ruído
dos meus pés esmagando a neve. Os passos em
breve se tornaram automáticos e entrei num transe.
Em algum lugar da minha mente ainda sentia a
falta do meu pai, ainda estava fatigado, ainda me
preocupava que a nossa missão estivesse fadada ao
insucesso, mas esses pensamentos pareciam
amortecidos e secundários, como uma voz num
rádio a tocar noutra sala. Dá um passo, empurra a
perna, dá um passo, empurra a perna. Nada mais
importava. Às vezes prometia a mim mesmo que
iria descansar quando alcançasse o próximo alvo,
mas nunca mantive a promessa. O tempo esfumou-
se, as distâncias diminuíram, a neve parecia deslizar
sob os meus pés. Era uma locomotiva arrastando-se
encosta acima. Era a demência em câmara lenta.
Mantive aquela passada até me distanciar bastante
de Roberto e Tintin, que tiveram de gritar para me
fazer parar. Esperei por eles numa saliência que
oferecia uma superfície plana para descansarmos.
Comemos um pouco de carne e derretemos neve
para bebermos. Ninguém tinha muito a dizer.
Sabíamos bem o problema em que estávamos
metidos.
- Achas que ainda conseguimos chegar antes do
anoitecer? - perguntou Roberto.
Olhava para o topo. Encolhi os ombros.
- Devíamos procurar um lugar para acampar.
Olhei para o local do acidente. Ainda conseguia ver
as pequenas formas dos nossos amigos observando-
nos dos assentos que tínhamos arrastado para fora
da fuselagem. Imaginava qual seria a perspectiva
deles. Perceberiam quão desesperadamente
estávamos a lutar? As suas esperanças já estariam a
desvanecer-se? Se em dado momento parássemos
de nos mexer, até quando esperariam que
continuássemos a andar? E o que fariam se não nos
movêssemos? Aqueles pensamentos vinham-me à
cabeça apenas como observações passageiras. Já não
estava no mesmo mundo que aqueles rapazes lá em
baixo. O meu universo estreitara-se e os
sentimentos de compaixão e responsabilidade que
sentira em relação aos outros tinham sido sufocados
pelo meu próprio terror e luta encarniçada pela
sobrevivência. Sabia que Tintin e Roberto sentiam o
mesmo e, embora tivesse a certeza de que
lutaríamos lado a lado enquanto pudéssemos,
compreendia que estávamos sozinhos no nosso
desespero e medo. A montanha ensinara-me uma
dura lição: a camaradagem é um sentimento nobre,
mas, no fim, a morte é um adversário que cada um
enfrentaria sozinho. Descansando taciturno na
borda da rocha, olhei para Roberto e Tintin.
- O que fizemos para merecer isto? - murmurou
Roberto.
Olhei para o alto da montanha, procurando uma
escarpa ou um bloco de pedra que pudesse servir
de abrigo para a noite. Não vi nada para além de
um íngreme e interminável manto de neve.
Enquanto batalhávamos para subir a montanha, o
manto de neve deu lugar a uma paisagem ainda
mais difícil. Rochas projectavam-se da neve,
algumas imensas e impossíveis de escalar. Havia
cristas e saliências maciças por cima de nós,
bloqueando-me a visão para a próxima encosta e,
assim, era forçado a escolher o caminho por
instinto. Muitas vezes escolhia mal e via-me preso
sob um rebordo intransponível, ou na base de uma
parede de rocha vertical. Em geral, voltava para trás
ou avançava em diagonal, palmo a palmo, pela
encosta até encontrar um novo caminho. Às vezes
não havia outra hipótese senão prosseguir com
vigor. A dada altura no início da tarde, o caminho
foi bloqueado por uma inclinação extremamente
íngreme e coberta de neve. Vi uma plataforma
rochosa plana na extremidade superior. Se não
escalássemos a inclinação em diagonal e
rastejássemos até àquela plataforma estreita,
teríamos de voltar para trás. Perderíamos horas a
voltar e, com o pôr do Sol a aproximar-se a cada
minuto que passava, sabia que essa hipótese não era
viável. Olhei para trás para Tintin e Roberto. Eles
observavam-me para ver o que ia fazer. Analisei a
inclinação. A encosta era íngreme e lisa, não havia
nada a que nos agarrássemos com as mãos. Mas a
neve parecia suficientemente estável para me
aguentar.
Teria de fincar o pé na neve e manter o peso do
corpo para a frente enquanto escalasse. Seria tudo
uma questão de equilíbrio.
Comecei a escalar a parede congelada, cortando a
neve com a ponta das botas epressionando o peito
contra a encosta para não tombar para trás. A base
eraestávele avancei lentamente, com muito cuidado,
até à plataforma, rastejando emseguida até à
superfície plana. Acenei para Tintin e Roberto.
- Sigam os meus passos - gritei. Tenham cuidado, é
muito íngreme.Virei-lhes as costas e comecei a
escalar as encostas acima. Instantes depois olhei
para trás e vi que Roberto conseguira atravessar a
inclinação. Era a vez deTintin. Voltei a escalar e já
subira cerca de trinta metros, quando um grito
aterrorizado ecoou pela montanha.
- Estou preso! Não vou conseguir!
Virei-me e vi Tintin parado no meio da inclinação.
-Vamos, Tintin! - gritei. Tu consegues!
Ele abanou a cabeça.
- Não consigo mexer-me.
- É a mochila! - disse Roberto. Está muito pesada.
Roberto tinha razão. O peso da mochila de Tintin,
que ele carregava muito alto nas costas, estava a
puxá-lo da face da montanha. Ele lutava para se
equilibrar, mas não tinha nada que servisse para se
agarrar e a expressão do seu rosto dizia-me que não
ia aguentar por muito tempo. Da posição onde
estava, via a queda vertiginosa que se estendia atrás
dele e sabia o que aconteceria se Tintin caísse.
Primeiro flutuaria durante muito tempo no vazio,
depois bateria na encosta ou nalguma saliência
rochosa e rolaria montanha abaixo como uma
boneca de trapos até algum monte de neve ou
penhasco deter por fim o seu corpo partido.
- Tintin, aguenta-te! - exclamei.
Roberto estava na beira da plataforma por cima da
inclinação, esticando o braçopara Tintin. Não o
alcançava por uma questão de centímetros.
- Tira a mochila! - gritou. Passa-ma!
Tintin tirou a mochila com cuidado, lutando para
manter o equilíbrio enquanto soltava lentamente as
alças dos braços e entregou-a a Roberto. Sem o peso
da mochila, Tintin conseguiu recuperar o equilíbrio
e subir em segurança a inclinação. Quando alcançou
a plataforma, afundou-se na neve.
- Não consigo continuar - disse. Estou demasiado
cansado. Não consigo levantar as pernas.
A voz de Tintin denunciava a sua exaustão e o seu
medo, mas eu sabia que tínhamos de continuar até
encontrarmos um abrigo para descansar à noite, por
isso segui em frente, não lhes deixando outra
hipótese senão acompanharem-me. A medida que
escalava, ia perscrutando em todas as direcções,
mas a montanha era tão rochosa e íngreme que não
havia nenhum lugar seguro para estendermos o
nosso saco-cama. Já era o fim da tarde. O Sol
pusera-se atrás dos picos ocidentais e as sombras já
se espalhavam pelas encostas. A temperatura
começou a cair Vi que os nossos amigos se tinham
retirado para a fuselagem para escapar ao frio. O
pânico subia na minha garganta enquanto
procurava freneticamente um local seguro e plano
para passarmos a noite. Ao crepúsculo, ascendi a
uma saliência rochosa alta para ter uma melhor
visão. Quando a escalava, enfiei o pé direito numa
pequena fenda, depois, estendi a mão esquerda
para ver se chegava à ponta de um bloco de pedra
que se projectava na neve Parecia firme, mas
quando me icei para cima dele, uma pedra do
tamanho de uma bala de canhão soltou-se e rolou
por mim.
- Cuidado! Cuidado aí em baixo! - gritei.
Olhei para baixo para Roberto. Não havia tempo
para reagir Ele arregalou os olhos, esperando o
momento do impacto da rocha, que passou a
centímetros da sua cabeça. Após um instante de
silêncio aturdido, Roberto fuzilou-me com o olhar.
- Seu filho-da-puta! Seu filho-da-puta! Estás a tentar
matar-me? Tem cuidado. Presta atenção ao que
estás a fazer!
Depois calou-se, inclinou-se para a frente e os
ombros começaram a sacudir-se. Percebi que estava
a chorar. Ouvindo os seus soluços, senti uma onda
de desalento tão grande que conseguia senti-la na
língua. Fui invadido por uma fúria súbita,
inarticulada.
- Chega desta porra! Chega desta porra! -
murmurei. Não aguento mais! Não aguento mais!
Só queria que aquilo acabasse. Queria descansar.
Afundar-me na neve. Ficar parado e imóvel. Não
me lembro de nenhum outro pensamento, por isso
não sei o que me fez seguir adiante, mas, assim que
Roberto se recompôs, voltámos a escalar na luz que
se desvanecia. Por fim encontrei uma depressão
pouco funda na neve, debaixo de um grande bloco
rochoso. O sol aquecera o bloco o dia inteiro, depois
o calor que irradiara da rocha tinha derretido a neve
formando este buraco compacto. Era estreito, e o
chão inclinava-se bastante pela encosta abaixo, mas
proteger-nos-ia do frio e dos ventos nocturnos.
Dispusemos as almofadas no interior do buraco
para isolar o frio e depois estendemos o saco-cama
sobre elas. As nossas vidas dependiam daquele saco
e do calor corporal que ele conservaria, mas era um
objecto frágil, cosido de forma tosca com pedaços
de fio de cobre, portanto manuseámo-lo com muito
cuidado. Com medo de rasgar as costuras, tirámos
os sapatos antes dedeslizarmos lá para dentro.
- Mijaste? - perguntou Roberto quando eu me
acomodava. Não é possível entrar e sair do saco a
noite inteira.
O facto de Roberto estar a recuperar o seu mau
humor tranquilizava-me.
-Eu sim - respondi. E tu? Não quero que mijes
dentro deste saco.
Roberto bufou.
- Se alguém mijar aqui dentro vais ser tu. E tem
cuidado com esses pés enormes.
Quando já estávamos os três dentro do saco-cama,
tentámos ficar confortáveis, mas o solo era muito
duro e o chão do buraco era tão íngreme que
estávamos quase de pé, com as costas coladas à
montanha e os pés apoiados no bordo inclinado da
cova. O rebordo de neve era a única coisa que nos
impedia de escorregar pela encosta abaixo.
Estávamos exaustos, mas eu estava demasiado
assustado e com frio para relaxar.
- Roberto - disse -, tu és estudante de medicina.
Como é que se morre de exaustão? É doloroso? Ou
simplesmente adormecemos?
A pergunta pareceu aborrecê-lo.
- O que é que interessa saber como se vai morrer? -
perguntou. Vais estar morto e é isso que interessa.
Ficámos calados durante um bom bocado. O céu
estava negro como breu e salpicado de milhões de
estrelas reluzentes, todas absurdamente cristalinas e
cintilando como uma chama. Naquela altitude,
sentia que podia estender a mão e tocá-las. Noutra
situação qualquer e noutro local, teria ficado
maravilhado com toda aquela beleza. Mas ali,
naquele momento, parecia uma brutal
demonstração de força. O mundo mostrava-me
como eu era pequeno, fraco e insignificante. E
passageiro. Escutei a minha própria respiração,
recordando-me de que, enquanto conseguisse
respirar, ainda estaria vivo. Prometi a mim mesmo
não pensar no futuro. Viveria instante a instante e
de respiração em respiração, até esgotar toda a vida
que tinha. A temperatura caiu tanto naquela noite
que a garrafa de água que tínhamos trazido se
partiu com o frio. Enroscados no saco-cama
conseguimos evitar o enregelamento dos corpos,
mas mesmo assim sofremos horrivelmente. De
manhã, colocámos os nossos sapatos congelados ao
sol e descansámos no saco-cama até descongelarem.
Em seguida, depois de comermos e de arrumarmos
as nossas coisas, recomeçámos a escalar. O sol
estava forte. Era outro dia perfeito. Já estávamos a
mais de quatro mil e quinhentos metros de altitude
e, a cada cem metros aproximadamente, a
inclinação da montanha ficava mais perto da
verticalidade total. As encostas estavam a ficar
impossíveis de escalar, de modo que começámos a
subir pelas orlas rochosas dos barrancos - as ravinas
íngremes e profundas que cortavam os lados da
montanha. Os alpinistas experientes sabem que os
barrancos podem ser mortais - o seu formato
transforma-os em pistas inclinadas perfeitas para
todas as rochas que descem a rolar pela montanha -,
mas a neve compacta dava-nos um bom apoio e as
altas paredes de rocha nas suas rolas ofereciam-nos
algo firme a que nos agarrarmos. Por vezes, a
extremidade de um barranco levava-nos até um
ponto intransponível. Quando isso acontecia,
atravessava o centro coberto de neve do barranco
até à outra ponta. A medida que escalávamos os
barrancos, comecei a preocupar-me cada vez mais
com o vazio letal nas minhas costas. Talvez fosse a
altitude vertiginosa, o cansaço ou uma partida
pregada pelo meu cérebro com falta de oxigénio,
mas sentia que aquele vazio não era um perigo
passivo. Tinha presença e intenção, intenção muito
má, e eu sabia que, se não resistisse com todas as
minhas forças, me arrancaria da montanha e me
atiraria encosta abaixo. A morte batia-me no ombro,
e a ideia dessa morte tornou-me lento e comedido.
Pensava bem em todos os movimentos e perdi a
confiança no meu equilíbrio. Percebi com extrema
clareza que não havia ali segundas oportunidades,
não havia margem para erro. Um passo em falso,
um instante de desatenção, um cálculo
minimamente errado, far-me-iam cair de cabeça
pela encosta abaixo. O vazio puxava-me
constantemente. Queria-me e a única coisa que
podia impedir-me de cair nele era o nível do meu
desempenho na escalada. A minha vida resumia-se
a um simples jogo - se escalares bem, vives, se
falhares, morres – e a minha consciência aguçara-se
até não haver espaço no meu pensamento para mais
nada senão uma atenta e cuidadosa análise da rocha
que pretendia alcançar, ou do rebordo no qual
fincaria o pé. Nunca tivera uma sensação tão forte
de presença concentrada. A minha mente nunca
experimentara uma sensação tão pura e simples de
propósito. Coloca o pé esquerdo ali. Sim, aquela
extremidade vai aguentar. Agora, com a mão
esquerda, alcança o buraco naquele bloco. E firme?
Óptimo. Iça-te. Agora, coloca o pé direito naquele
rebordo. E seguro? Confia no teu equilíbrio.
Cuidado com o gelo! Esqueci-me de mim mesmo na
intensidade da concentração, esqueci os meus
medos e o meu cansaço e, por um momento, senti-
me como se tudo o que já fora tivesse desaparecido,
e que eu não era mais do que pura determinação de
escalar. Foi um momento de absoluta alegria
animal. Nunca me sentira tão concentrado, tão
determinado, tão furiosamente vivo. Durante
aqueles surpreendentes instantes, o meu sofrimento
desaparecera, a minha vida tornara-se um genuíno
fluxo. Mas aqueles momentos não duraram. O
medo e a exaustão logo voltaram e a escalada
voltou a ser um suplício. Já estávamos muito alto e
a altitude tornava os movimentos pesados e o meu
raciocínio lento. As encostas tinham-se tornado
quase verticais e mais difíceis do que nunca de
escalar, mas disse a mim mesmo que encostas tão
íngremes só podiam significar que nos estávamos a
aproximar do topo. Para me fortalecer, imaginava o
cenário que veria do cume tal como já o imaginara
tantas vezes antes - as colinas estendendo-se,
divididas em campos agrícolas verdes e castanhos,
as estradas conduzindo à segurança e, algures, uma
cabana ou uma casa de quinta...
Não saberia dizer como conseguimos continuar a
escalar. Tremia descontroladamente de frio e de
cansaço. O meu corpo estava à beira de um
esgotamento total. A mente conseguia apenas
formar os pensamentos mais simples. Então, à
distância, por cima da minha cabeça, vi os
contornos de uma crista ascendente destacando-se
contra o pano de fundo do límpido céu azul, sem
mais montanha acima dela.
- O topo! Conseguimos! - gritei e, com renovada
energia, abri caminho até à crista.Porém, quando
me icei por cima da extremidade, a crista deu lugar
a uma plataforma plana de vários metros e depois a
montanha voltou a erguer-se. O ângulo íngreme da
encosta enganara-me. Era outra partida pregada
pela montanha, um cume falso. E não era o único.
Passámos a tarde lutando para chegar a falsos
cumes uns atrás dos outros até que, muito antes do
pôr do Sol, encontrámos um local protegido e
decidimos montar o nosso acampamento.Naquela
noite, quando nos deitámos no saco-cama, Roberto
estava taciturno.
- Vamos morrer se continuarmos a escalar - disse. A
montanha é demasiad oalta.
- E o que é que podemos fazer além de escalar? -
perguntei.
- Voltar.
Fiquei sem fala por um instante.
- Voltar e ficar à espera da morte? - indaguei.
Ele abanou a cabeça.
- Estás a ver ali adiante, aquela linha escura na
montanha? Acho que é uma estrada.
Roberto apontou para lá de um vale largo, para
uma crista demontanha a quilómetrosde distância.
- Não sei - disse. Parece uma espécie de linha de
cisão na rocha.
- Nando, tu mal consegues ver - explodiu.
- Estou-te a dizer que é uma estrada. O que é que
estás a pensar?
- Acho que devemos voltar e seguir aquela estrada.
Deve ir dar a algum lugar. Era a última coisa que eu
queria ouvir. Desde que tínhamos saído da
fuselagem, tinha sido secretamente atormentado
por dúvidas e receios. Estamos a fazer a coisa certa?
E se a equipe de resgate chegar enquanto
estivermos na montanha? E seos campos agrícolas
chilenos não estiverem logo depois da crista? O
plano de Roberto parecia loucura, mas forçava-me a
considerar outras opções e eu não tinha forças para
aquilo agora.
- A montanha deve estar a uns quarenta
quilómetros de distância - disse. Se formos até lá,
escalarmos aquela linha escura e descobrirmos que
é só uma camada de xisto, não teremos forças para
voltar.
- É uma estrada, Nando, tenho a certeza!
- Talvez seja uma estrada e talvez não seja -
repliquei. A única coisa quesabemos ao certo é que
o Chile fica para ocidente.
Roberto franziu a testa.
- Andas a dizer isso há meses, mas vamos partir o
pescoço antes de lá chegarmos.
Eu e Roberto discutimos durante horas sobre a
estrada, mas, quando nos acomodámos para
dormir, eu sabia que a questão ainda não tinha
ficado resolvida. Acordei namanhã seguinte e o céu
estava limpo mais uma vez.
- Estamos com sorte com o tempo - disse Roberto.
Ainda estava dentro do saco-cama.
- O que é que decidiste? - perguntei. Vais voltar?
- Não tenho a certeza - disse ele. Preciso de pensar.
- Eu vou subir. Somos capazes de chegar depressa
ao cume.
Roberto assentiu cora a cabeça.
- Deixa aí as tuas coisas. Vou esperar até tu voltares.
Eu aquiesci. A ideia de continuar sem Roberto
apavorava-me, mas não tinha qualquer intenção
devoltar para atrás. Esperei que Tintin arrumasse a
mochila e depois virámo-nos para a encosta e
começámos a escalar. Após horas de progresso
lento, vimo-nos encurralados na base de um
penhasco que se erguia centenas de metros acima
de nós. A sua face era quase completamente vertical
e coberta de neve compacta.
- Como é que vamos escalar isso? - perguntou
Tintin.
Estudei a parede. A minha mente estava lenta, mas
não demorei muito a lembrar-me da viga de
alumínio amarrada às minhas costas.
- Precisamos de uma escada - disse.
Tirei a viga das costas e comecei a esculpir degraus
toscos na neve com a ponta afiada. Usando-os como
os degraus de uma escada de mão, continuámos a
subir. Era excruciante, mas empenhámo-nos com a
persistência de um animal de quinta e içamo-nos
um lento degrau de cada vez. Tintin vinha atrás de
mim. Nunca reclamou, apesar de saber que estava
apavorado. De qualquer forma, eu estava apenas
vagamente consciente da sua presença. A minha
atenção estava concentrada no meu trabalho: Cava,
sobe, cava, sobe. Parecia, às vezes, que estávamos a
escalar os lados verticais de um arranha-céus
congelado e era muito difícil cavar e manter o
equilíbrio ao mesmo tempo, mas já não me
preocupava com o vazio nas minhas costas.
Respeitava-o, mas aprendera a tolerar a sua
presença. Como disse anteriormente, um ser
humano habitua-se a tudo. Era um processo
torturante, subir a montanha centímetro a
centímetro e as horas arrastavam-se. Em certo
momento, ao fim da manhã, descortinei o céu azul
sobre uma crista e lutei para alcançá-lo. Depois de
tantos falsos cumes, aprendera a controlar as
minhas esperanças, mas, daquela vez, depois de
escalar o bordo da crista, a encosta ficou plana e vi-
me de pé numa sombria corcunda de rocha e neve
limpa pelo vento. Fui compreendendo aos poucos
que já não havia mais montanha acima de mim. Eu
chegara ao topo. Não me recordo se senti alguma
alegria ou sensação de conquista naquele momento.
Caso tenha sentido, desapareceu assim que olhei à
minha volta. O cume da montanha oferecia-me uma
visão de 360 graus, sem obstáculos, da criação. Lá
de cima, conseguia ver o horizonte circundando o
mundo como as bordas de uma taça colossal e, em
todas as direcções daquela extensão azul, a taça
estava apinhada de legiões de montanhas cobertas
de neve, cada uma delas tão íngreme e proibitiva
como a que acabara de escalar. Compreendi de
imediato que o co-piloto do Fairchild se enganara
redondamente. Não tínhamos passado Curicó. Não
estávamos nem próximo dos limites ocidentais dos
Andes. O avião caíra algures no meio da imensa
cordilheira. Não sei quanto tempo fiquei ali a olhar.
Um minuto. Talvez dois. Fiquei imóvel até sentir
uma pressão a queimar-me os pulmões e percebi
que me tinha esquecido de respirar. Engoli ar. As
minhas pernas ficaram frouxas como borracha e caí
no chão. Amaldiçoei Deus e enfureci-me contra as
montanhas. A verdade estava diante dos meus
olhos: apesar de toda a minha luta, de todas as
minhas esperanças, das promessas que fizera a mim
mesmo e ao meu pai, eu terminaria daquela
maneira. Morreríamos todos naquelas montanhas.
Afundar-nos-íamos na neve, o silêncio ancestral
cairia sobre nós e aqueles que amávamos nunca
saberiam como tínhamos lutado para voltar para
casa. Naquele instante, todos os meus sonhos,
suposições e expectativas de vida se evaporaram no
ar rarefeito dos Andes. Sempre pensara que a vida é
que era verdadeira, natural, e que a morte era
simplesmente o seu fim. Mas ali, naquele lugar
árido, compreendi com uma terrível clareza que a
morte era a constante, a morte era a base, e a vida
não passava de um sonho leve e frágil. Eu já estava
morto. Já nascera morto, e o que julgava que era a
minha vida era apenas um jogo que a morte me
deixava jogar enquanto esperava a hora de me
levar. No meu desespero, senti uma necessidade
aguda e súbita da ternura da minha mãe e de Susy,
do abraço forte e caloroso do meu pai. O amor pelo
meu pai cresceu no meu coração e percebi que,
apesar da situação irremediável, a recordação dele
me enchia de alegria. Aquilo chocou-me: apesar de
todo o seu poder, as montanhas não eram mais
fortes do que a ligação ao meu pai. Não conseguiam
destruir aminha capacidade de amar. Tive um
momento de calma e clareza e, no meiodessa
clarezade pensamento, descobri um segredo
simples e espantoso: a morte tem umoposto, mas
não é meramente a vida. Não é a coragem, a fé ou a
determinação humana. O opostoda morte é o amor.
Como é que não percebera isso antes? Como é que
alguémpode não perceber isso? O amor é a nossa
única arma. Apenas o amor podetransformar
umamera vida num milagre e retirar significado
precioso do sofrimento e do medo.Por um instante,
breve e mágico, todos os meus medos
desapareceram e soube que não deixaria a morte
controlar-me. Caminharia por aquele país
desgraçado que me separava de casa com amor e
esperança no meu coração. Caminharia até esgotar
toda a vida que existisse em mim e, quando
sucumbisse, morreria muito mais perto do meu pai.
Aqueles pensamentos fortaleceram-me e, com
esperança renovada, comecei a procurar por
caminhos através das montanhas. Em breve ouvi a
voz de Tintin achamar-me lá de baixo.
- Estás a ver algum verde, Nando? - gritou. Estás a
ver algum verde?
- Vai ficar tudo bem. Diz ao Roberto para subir e ver
com os próprios olhos. Enquanto esperava que
Roberto subisse, tirei um saco de plástico e o batom
da mochila. Usando o batom como lápis, escrevi as
palavras Monte Seler no saco e enfiei-o debaixo de
uma rocha. Aquela montanha era minha inimiga,
pensei, e agora dou-a ao meupai. Aconteça o que
acontecer, pelo menos guardo isso como vingança.
Roberto levou três horas a escalar os degraus.
Olhou em volta alguns instantes, abanando a
cabeça.
- Bem, estamos acabados - disse, insipidamente.
- Deve haver um caminho pelas montanhas -
respondi.
- Estás a ver ali ao longe, dois picos mais pequenos
sem neve? Talvez as montanhas terminem ali. Acho
que devíamos dirigir-nos para lá.
Roberto abanou a cabeça.
- Devem ser uns oitenta quilómetros. E quem sabe
quanto mais teremos deandar depois de lá
chegarmos? No nosso estado, como é que vamos
fazer uma viagem dessas?
- Olha lá para baixo - disse. Há um vale na base
desta montanha. Estás a ver?
Roberto assentiu com a cabeça. O vale serpenteava
por entre as montanhas durante quilómetros, em
direcção àqueles dois picos mais pequenos. Ao
aproximar-se deles, bifurcava. As bifurcações
perdiam-se de vista ao virarem para trás de
montanhas mais altas, mas eu estava confiante de
que o vale nos levaria até onde precisávamos de ir.
- Uma dessas bifurcações deve seguir para as
montanhas mais pequenas. O Chile está ali, só que
mais longe do que tínhamos pensado.
Roberto franziu a testa.
- É demasiado longe - disse ele. Nunca
conseguiremos. Não temos comida suficiente.
- Podíamos mandar Tintin de volta. Com a comida
dele e o que sobrou da nossa, podemos durar à
vontade vinte dias. Roberto virou-se e olhou para
leste. Eu sabia que estava a pensar na estrada. Olhei
mais uma vez para ocidente e o meu coração
apertou-se com a ideia de atravessar sozinho aquela
imensidão.
Ao final da tarde já estávamos de volta ao
acampamento. Enquanto comíamos, Roberto falou
com Tintin.
- Amanhã de manhã vamos mandar-te de volta -
disse. A viagem vai ser mais longa do que
pensávamos e vamos precisar da tua comida. De
qualquer maneira, duas pessoas avançam mais
depressa do que três.
Tintin meneou a cabeça, concordando. De manhã,
Roberto disse-me que decidira ficar comigo.
Abraçámos Tintin e despachámo-lo montanha
abaixo.
- Lembra-te - disse, quando ele partiu -, vamos
seguir sempre para ocidente. Se a equipe de resgate
chegar, manda-a procurar-nos!
Descansámos aquele dia inteiro, preparando-nos
para a viagem que nos esperava. Ao final da tarde,
comemos um pouco de carne e enfiámo-nos no
saco-cama. Naquela noite, enquanto o Sol
desaparecia atrás da crista por cima de nós, os
Andes resplandeceram com o pôr do Sol mais
espectacular que já vira. O sol dourou as montanhas
e o céu incendiou-se com espirais escarlates e cor de
lavanda. Ocorreu-me que eu e Roberto éramos
provavelmente os primeiros seres humanos a terem
uma visão daquele espectáculo majestoso de uma
posição tão vantajosa. Tive uma sensação
involuntária de privilégio e gratidão, como é vulgar
acontecer com os seres humanos quando são
presenteados com alguma das maravilhas da
natureza, mas durou apenas um instante. Depois da
minha educação na montanha, percebia que toda
aquela beleza não era para mim. Os Andes
encenavam aquele espectáculo há milhares de anos,
muito antes de os seres humanos aparecerem pela
Terra e continuariam a fazê-lo depois de todos
termos partido. A minha vida ou a minha morte
não fariam a menor diferença. O Sol continuaria a
pôr-se, a neve continuaria a cair...
- Roberto, consegues imaginar como isto seria
bonito se não fôssemos homens mortos?
Senti a mão dele envolver a minha. Era a única
pessoa que entendia a magnitude do que tínhamos
feito e do que ainda tínhamos de fazer. Sabia que
estava tão assustado quanto eu, mas aquela
proximidade fortaleceu-me. Estávamos agora
ligados como irmãos. Ajudávamo-nos um ao outro
a ser homens melhores. De manhã subimos os
degraus até ao topo. Roberto ficou ao meu lado. Vi-
lhe o medo nos olhos, mas vi também coragem e
perdoei-o instantaneamente por todas as semanas
de arrogância e teimosia.
- Podemos estar a caminhar em direcção à morte -
disse -, mas prefiro andar até encontrar a morte do
que esperar que ela me venha buscar.
Roberto acenou com a cabeça.
- Tu e eu somos amigos, Nando. Passámos por tanta
coisa. Agora vamos lá morrer juntos.
Caminhámos até à extremidade ocidental do cume,
saltámos por cima do bordo e começámos a descer.

9 "ESTOU A VER UM HOMEM"


As secções mais altas do lado ocidental estavam
cobertas de neve e eram extremamente íngremes, e
a vista montanha abaixo, que nenhum outro
homem contemplara antes, era arrepiante. A
inclinação das encostas e a altitude vertiginosa -
desceríamos em direcção às nuvens - roubaram-me
a coragem e tive de me forçar a andar. Assim que
deslizámos do topo, percebi imediatamente que
descer a montanha seria ainda mais aterrorizante do
que subi-la. Subir é uma luta, um ataque, e cada
passo é uma pequena vitória contra a força da
gravidade. Mas descer é mais parecido com uma
rendição. Já não se luta contra a gravidade, mas
tenta-se estabelecer um acordo com ela e, à medida
que se desce cautelosamente de um apoio traiçoeiro
para outro, sabemos que, se tiver a menor hipótese,
essa gravidade nos vai arrancar da montanha para o
vazio azul do céu.
- Carajo! Sou um homem morto - murmurei para
mim mesmo. O que é que estamos a fazer neste
lugar?
Foi preciso muito esforço para reunir coragem, mas
consegui, e comecei a descer com cuidado os
declives verticais mesmo no topo da montanha. As
encostas eram demasiado íngremes para agarrarem
neve e o vento limpara a montanha até ficar apenas
rocha, de modo que fomos descendo centímetro a
centímetro, agarrando as pontas dos blocos
rochosos que se projectavam do solo e enfiando as
botas nos vãos entre as rochas pequenas. Às vezes
descíamos com as costas coladas à montanha e
outras viradas para o céu. Todos os passos eram
traiçoeiros - rochas que pareciam firmemente
pregadas à montanha, soltavam-se sob os nossos
pés e tínhamos de procurar à pressa alguma coisa
sólida a que nos agarrarmos. Sem qualquer
experiência para guiar a descida, faltava-nos a
capacidade para planear o trajecto mais seguro.
Pensávamos apenas em sobreviver até ao passo
seguinte e, às vezes, o caminho ao acaso conduzia-
nos até uma parede intransponível, ou até ao
rebordo de uma saliência rochosa que se projectava
da encosta como uma varanda, com uma vista de
fazer parar o coração para a base da montanha,
milhares de metros abaixo. Nenhum de nós sabia as
mais elementares técnicas de alpinismo, mas
conseguíamos vencer ou contornar esses obstáculos,
ou então descer pelas estreitas frestas entre eles.
Algumas vezes não tínhamos outra opção senão
saltar de uma rocha para outra, com mais nada
além de uns milhares de metros de ar rarefeito por
baixo de nós. Descemos assim durante mais de três
horas, não chegando a cobrir nem cinquenta metros,
mas, por fim, as rochas deram lugar a encostas
abertas, cobertas por um manto pesado de neve.
Caminhar na neve que nos chegava às ancas não era
tão assustador quanto a escalada anterior, mais
técnica, mas era mais cansativo e éramos
constantemente enganados pelas encostas
ondulantes e suavemente esculpidas. Repetidas
vezes, o que começava com uma descida delicada ia
dar a uma parede de gelo, a um penhasco
escondido ou a um declive impossível de descer.
Cada beco sem saída obrigava-nos a voltar atrás e
procurar outro caminho. Quando já tínhamos
descido algumas centenas de metros, a base de
apoio para os pés mudou drasticamente. Como
aquela parte da encosta ocidental era exposta
diariamente ao sol da tarde, a maior parte da neve
estava derretida e uma grande parte da superfície
rochosa encontrava-se à mostra.
Era mais fácil caminhar no solo seco do que na neve
funda, até aos joelhos, lá em cima, mas em alguns
pedaços estava coberto por uma camada de pedras
soltas e xisto de vários centímetros de
profundidade. Este cascalho tornava a base de
apoio perigosamente instável e, mais de uma vez,
perdi o equilíbrio e tive de me agarrar
desesperadamente a rochas e montes de gelo para
não escorregar montanha abaixo. Quando
conseguíamos, deslizávamos de costas, ou
agachávamo-nos em barrancos enormes cheios de
pedras soltas e seguíamo-los montanha abaixo. Ao
meio-dia, depois de cerca de cinco horas na
montanha, chegámos a um ponto em que as
encostas eram sombreadas por uma montanha a
ocidente. A neve voltou a ser funda e, ao olhar para
a superfície macia e branca, tive uma ideia. Sem
pensar duas vezes, atirei uma almofada para a neve
e sentei-me nela. Agarrando o meu bordão de
alumínio com as duas mãos, encolhi as pernas,
inclinei-me para a frente e comecei a guiar a
almofada pela encosta abaixo. Numa questão de
segundos, percebi que tinha feito uma coisa muito
estúpida. A superfície da neve era dura e
escorregadia e, em apenas alguns metros, adquiri
uma velocidade alarmante. Pilotar a minha moto
nas estradas desimpedidas do Uruguai dera-me
uma boa ideia do que era velocidade e tenho a
certeza de que estava a voar pela encosta a cerca de
noventa quilómetros por hora. Num esforço para ir
mais devagar, enfiei a vara de alumínio na neve e
finquei os calcanhares, mas não teve qualquer
efeito, a não ser o de jogar o peso do meu corpo
para a frente. Sabia que se fosse arremessado da
almofada e capotasse pela montanha abaixo,
quebraria todos os ossos do meu corpo, por isso
parei de tentar diminuir a velocidade e segurei-me
simplesmente com força, voando pelas rochas e
pelas saliências, sem possibilidade de parar ou de
me desviar. Por fim, uma parede de neve surgiu à
minha frente e percebi que ia em direcção a ela
numa rota de colisão. Se houver rocha por baixo
daquela neve, pensei, sou um homem morto.
Segundos depois, choquei contra o banco de neve a
toda a velocidade e, embora o impacto me tenha
atordoado, a neve funda amorteceu o choque e
sobrevivi. Quando escavava para sair dali e limpava
a neve do corpo, ouvi o falsete estridente de
Roberto vindo das alturas. Não conseguia entender
as palavras, mas sabia que estava furioso por causa
da minha imprudência. Acenei com os braços para
mostrar que estava bem e descansei enquanto ele
descia cuidadosamente ao meu encontro.
Continuámos a descer juntos a encosta e, ao final da
tarde, já tínhamos vencido dois terços da montanha.
No local do nosso acidente, a sombra projectada
pelas montanhas para ocidente abreviava o dia. Mas
naquele lado ocidental a luz do dia durava até ao
anoitecer, e eu queria usar cada segundo do nosso
tempo.
- Vamos continuar até o Sol se pôr - disse.
Roberto abanou a cabeça.
- Preciso de descansar.
Vi que ele estava exausto. Eu também estava, mas a
ansiedade e o desespero que me impeliam eram
mais fortes do que a fadiga. Durante longos meses,
a minha necessidade compulsiva de fugir estivera
refreada dentro de mim. Mas agora libertara-se e
estava fora de controlo. Tínhamos conquistado a
montanha que nos encurralara no local da queda e
aguardava-nos agora um vale aberto, apontando na
direcção de casa. Como é que podíamos parar para
descansar?
- Mais uma hora - pedi.
- Precisamos de parar - cortou Roberto. Temos de
usar a cabeça, ou vamos esgotar-nos.
Os olhos de Roberto estavam lacrimosos de
cansaço, mas havia também determinação neles e
compreendi que não adiantava discutir.
Estendemos o saco-cama numa rocha plana e seca,
enfiámo-nos nele e descansámos. Por causa da baixa
altitude, e talvez por causa da energia solar
armazenada na rocha, a noite não foi
desconfortavelmente fria. A manhã seguinte era o
dia 15 de Dezembro, o quarto dia de viagem.
Acordei Roberto ao raiar do Sol e voltámos a descer
a encosta. Quando chegámos ao fundo da
montanha, por volta do meio-dia, encontrámo-nos
diante da entrada do vale que esperávamos ser o
caminho para a civilização. Um gelo glacial corria
pela superfície levemente inclinada do vale,
serpenteando como um rio pelas grandes
montanhas que se erguiam de ambos os lados. À
distância, o glaciar coberto de neve parecia tão liso
como vidro, mas era uma ilusão. Ao perto, vimos
que a neve à superfície do glaciar se fracturara em
milhares de pequenos blocos de gelo e placas
irregulares. Era terreno difícil e tropeçávamos a
cada passo, como se andássemos sobre montes de
cascalho de betão. Os pedaços grandes de neve
rolavam e deslocavam-se sob os nossos pés. Os
calcanhares oscilavam e os pés escorregavam e
ficavam presos nos espaços estreitos entre os blocos.
O progresso era difícil e doloroso e tínhamos de
prestar atenção a cada passo - sabíamos ambos que
naquela imensidão árida um calcanhar partido seria
uma sentença de morte. Eu pensava no que faria se
um de nós se ferisse. Abandonaria Roberto? Ele
abandonar-me-ia? Passámos o dia inteiro a
atravessar o glaciar aos trambolhões, até que as
horas se evaporaram. Estávamos os dois a lutar
naquele terreno duro, mas eu mantive o meu ritmo
louco e estava sempre a afastar-me cada vez mais
de Roberto.
- Vai mais devagar, Nando! - gritava. Vais matar-
nos!
Eu, pelo contrário, instigava-o a andar mais
depressa e ressentia-me com o tempo que
perdíamos cada vez que tinha de esperar que ele me
alcançasse. Porém, sabia que ele tinha razão.
Roberto estava a chegar aos limites da sua força. A
minha estava também a desvanecer-se. Cãibras
dolorosas assaltavam-me as pernas, transformando
cada passo numa agonia e a minha respiração era
demasiado rápida e curta. Sabia que estávamos a
matar-nos de tanto andar, mas não conseguia
obrigar-me a parar. O tempo estava a esgotar-se e
quanto mais enfraquecia, mais frenético ficava para
continuar a andar. A dor e o meu corpo já não
importavam; não passavam de um veículo. Eu
consumir-me-ia em cinzas, se fosse preciso, para
chegar a casa. As temperaturas já estavam
suficientemente amenas para podermos caminhar
depois do pôr do Sol e, às vezes, conseguia
persuadir Roberto a andar até tarde, de noite. Por
mais arrasados que estivéssemos, ficávamos
pasmados com a beleza selvagem dos Andes após o
anoitecer. O céu era de um escuro azul-índigo e
salpicado de estrelas cintilantes. O luar suavizava os
picos escarpados à nossa volta e emprestava um
brilho misterioso aos campos de neve. Uma vez,
quando descíamos uma encosta do vale, vi dezenas
de figuras irreais à nossa frente, como frades
encapuzados reunidos para rezar ao luar. Quando
alcançámos estas figuras, descobrimos que eram
altos pilares de neve - os geólogos chamam-lhes
"penitentes" - esculpidos nas bases de encostas
cheias de neve pelo vento em redemoinho. Havia
dezenas deles, lado a lado, silenciosos, e tivemos de
encontrar o nosso caminho por entre eles como se
serpenteássemos por uma floresta de árvores
congeladas. As vezes observava a minha sombra a
deslizar ao meu lado na neve e usava-a como prova
de que eu era real, de que estava ali. Porém, muitas
vezes, sentia-me como um fantasma naqueles
campos de neve iluminados pela Lua, um espírito
preso entre o mundo dos vivos e o mundo dos
mortos, guiado apenas pela determinação e pela
memória, e por um indestrutível desejo de voltar
para casa.
Na manhã de 18 de Dezembro, sétimo dia de
viagem, o cruel manto de neve começou a dar lugar
a pedaços dispersos de gelo cinzento e superfícies
de cascalho solto. Eu enfraquecia rapidamente.
Cada passo exigia agora um esforço supremo e uma
concentração total da minha força de vontade. A
minha mente estreitara-se até não haver espaço na
minha consciência senão para o próximo passo, o
cuidadoso colocar de um pé, a questão fundamental
de seguir em frente. Nada mais importava - o
esgotamento, a dor, a provação dos meus amigos na
montanha, nem mesmo a inutilidade dos nossos
esforços. Tudo fora esquecido. Esquecia-me de
Roberto também, até ouvi-lo a chamar por mim e
virar-me para ver que mais uma vez ficara para
trás. Era provavelmente uma espécie de auto-
hipnose, provocada pelos efeitos magnetizantes da
minha respiração ritmada, do esmagar repetitivo
das botas na rocha e na neve e da ladainha de ave-
marias que entoava o tempo todo. Nesse estado de
transe, as distâncias desapareciam e as horas fluíam.
Poucos pensamentos conscientes quebravam o
feitiço e, quando o faziam, eram pensamentos
simples Cuidado com aquela pedra solta...
Trouxemos comida suficiente?... O que estamos a
fazer aqui? Olha para aquelas montanhas! Estamos
tramados! A dada altura, nessa fase da viagem,
percebi que a sola da minha bota direita de râguebi
estava a soltar-se na parte superior. Percebi que se a
bota falhasse naquele terreno pedregoso estaria
perdido, mas a minha reacção a esse problema foi
estranhamente distanciada. Uma imagem de mim
mesmo coxeando descalço nas rochas e no gelo até
os meus pés estarem demasiado ensanguentados
para continuar projectou-se na minha mente. Vi-me
então a rastejar, até as mãos e os joelhos ficarem
retalhados. Por fim, caí de barriga e arrastei-me com
os cotovelos até as minhas forças se extinguirem.
Nesse ponto, pensei, morreria. No meu estado
mental alterado, essas imagens não me
perturbaram. Na realidade, julguei-as
tranquilizadoras. Se a bota se despedaçasse, eu
tinha um plano. Havia coisas que poderia fazer.
Ainda haveria espaço entre mim e a minha morte.
Caminhei quilómetros nesse estado de alucinação.
Distante. Alheado. No entanto, havia alturas em
que o poder e a beleza das montanhas me
arrancavam da abstracção surda. Acontecia de
repente: sentia a antiguidade e a experiência das
montanhas e percebia que elas se tinham mantido
ali, silenciosas e esquecidas, enquanto civilizações
se ergueram e caíram. Contra o pano de fundo dos
Andes, era impossível ignorar o facto de que a vida
humana era apenas um ínfimo piscar de luz no
tempo, e eu sabia que se as montanhas tivessem
mentes, as nossas vidas passariam demasiado
rápido para elas notarem. Impressionava-me,
porém, que até mesmo as montanhas não fossem
eternas. Se a Terra durar o suficiente, todos aqueles
picos um dia se reduzirão a pó. Qual é então o
significado de uma simples vida humana? Por que
lutamos? Porque suportamos tanto sofrimento e
dor? O que nos faz batalhar tão desesperadamente
pela sobrevivência, quando poderíamos
simplesmente render-nos, afundar-nos no silêncio e
nas sombras e encontrar a paz? Não tinha resposta
para essas perguntas, mas quando elas me
atormentavam demasiado, ou nos momentos em
que julgava ter chegado finalmente ao limite das
forças, recordava-me da promessa que fizera ao
meu pai. Decidia, como ele o fizera naquele rio na
Argentina, sofrer um pouco mais. Dava mais um
passo, e depois outro, e dizia a mim mesmo que
cada um me levava para mais perto do meu pai,
que cada passo dado era um passo arrancado à
morte. A dada altura da tarde do dia 18 de
Dezembro, ouvi um som distante -um jorro abafado
de ruído pálido que ia ficando mais alto à medida
que me aproximava e que em breve reconheci como
o rugido da água a correr. Ainda estávamos a andar
sobre a superfície escarpada da neve coberta de
cascalho, mas estuguei o passo, apavorado com a
ideia de que o som pudesse vir de alguma torrente
intransponível que nos isolaria e selaria o nosso
destino. Desci uma encosta suave e depois deslizei
por um pequeno penhasco congelado. Uma
montanha gigante assomou-se diante de mim. O
vale que tínhamos seguido levava directamente até
à base da montanha e terminava, mas dois vales
mais pequenos bifurcavam-se a partir dele e
desapareciam contornando os dois lados da
montanha. Este é oY que vimos do cume, pensei.
Estamos a caminho de casa, se tivermos forças para
lá chegar. Virei à esquerda e contornei o penhasco
pequeno e abaulado em direcção ao misterioso
ruído. Quando dei a volta ao penhasco, encontrei-
me na base de uma parede de gelo de
aproximadamente cinco metros de altura. Um jacto
grosso de água, alimentado por toneladas de neve
derretida, jorrava da parede através de uma brecha
grande a cerca de um metro e meio do chão. A água
espirrava aos meus pés e depois seguia
rapidamente pelo gelo e pelo cascalho, para o vale à
frente. Para o olho humano, a inclinação do solo
parecia suave, mas era suficientemente íngreme
para dar à água um grande impulso e eu conseguia
enxergar um ponto, a poucos metros de distância,
onde a cascata de neve derretida rapidamente
engrossava até se tornar uma corrente vigorosa.
- Isso é a nascente de um rio - disse para Roberto,
quando ele chegou ao pé de mim. Vai guiar-nos
daqui para fora.
Avançámos, seguindo o rio, certos de que ele nos
levaria pela zona montanhosa até algum lugar
civilizado. Neve, pedras e pedaços sujos de gelo
passavam pelos meus pés enquanto me arrastava,
depois a linha de neve desapareceu tão
abruptamente como a extremidade de um carpete e
estávamos finalmente a andar em solo seco. Porém,
a caminhada não era mais fácil do que nos campos
de neve, pois as margens de ambos os lados do rio
estavam repletas de grandes pedras, muitas mais
altas do que a nossa cabeça, e tínhamos de
serpentear por entre aquelas rochas enormes, ou
escalá-las e saltar do cimo de uma pedra
escorregadia para outra. Levámos horas para
atravessar o terreno pedregoso, mas, por fim, o solo
ficou nivelado e passámos a andarnovamente numa
paisagem mais acessível de pedras soltas e cascalho.
O rio aolado ficavamais largo e forte a cada metro,
até que o seu rugido afogou todos os outrossons. Eu
andava, como sempre, num estado de transe,
vivendo de um passo laborioso para o outro e, à
medida que os quilómetros passavam, o único facto
da minha existência, do meu universo, era a
pequena porção de solo difícil que serviria de base
para o próximo passo.
Andámos até ao pôr do Sol naquele dia e, quando
parámos para descansar, Roberto mostrou-me uma
pedra que apanhara no caminho.
- Vou guardar isto como lembrança para Laura -
disse.
Laura Surraco era a noiva de Roberto.
- Ela deve estar preocupada contigo - disse.
- Ela é maravilhosa. Sinto muito a falta dela.
- Sinto inveja de ti, Roberto. Eu nunca tive um
namoro a sério. Nunca me apaixonei.
- Verdade? - Ele riu. E todas aquelas miúdas que tu
caçavas com Panchito? Nenhuma te roubou o
coração?
- Acho que nunca lhes dei qualquer hipótese. Estive
a pensar, a miúda comquem me casaria está aí,
algures. A andar por aí, a viver a vida dela. Talvez
pense àsvezes no homem com quem vai casar, onde
está, o que está a fazer. Adivinhará que está nas
montanhas, a tentar atravessar os Andes para
chegar até ela? Senão conseguirmos, nunca vou
encontrá-la. Ela nunca vai conhecer-me. Vai casar-se
com outra pessoa, sem nunca saber que existi.
- Não te preocupes - disse Roberto. Nós vamos
conseguir voltar para casa e tu vais encontrar
alguém. Vais fazer alguém feliz.
Sorri com a gentileza de Roberto, mas as suas
palavras não me reconfortaram. Sabia que em
algum lugar no mundo normal, a mulher com quem
poderia casar estava a vivera sua vida, caminhando
em direcção ao ponto no tempo em que nos
poderíamos ter encontrado e o meu futuro teria
começado. Sabia que quando ela chegasse àquele
ponto, eu não estaria lá. Ela nunca me conheceria.
Os nossos filhos nunca nasceriam. Nunca
construiríamos um lar ou envelheceríamos juntos.
As montanhas tinham-me roubado essas coisas;
aquela era a realidade e eu começara a aceitá-la.
Mas, mesmo assim, continuava a desejar as coisas
que sabia que nunca teria - o amor de uma mulher,
uma família só minha, um reencontro com a minha
avó e a minha irmã mais velha e, sempre, o abraço
do meu pai. O suplício simplificara a minha mente e
esculpira-me até muito perto da essência do que
era, e compreendi que aquele anseio, aquele amor e
aquela ternura pela ideia da minha vida eram uma
parte mais profunda de mim do que a impotência, o
medo, a dor ou a fome. Aquilo parecia sobreviver
para lá de toda a compreensão. Imaginei quanto
tempo duraria? Até quando sobreviveria? E,
quando finalmente se desvanecesse, seria esse o
momento em que o meu corpo cederia? Ou
persistiria até ao meu último instante de
consciência? Eu morreria ansiando pela vida que
não podia ter?
O dia 19 de Dezembro foi outro dia bonito, o oitavo
consecutivo perfeito. Caminháramos durante
muitas horas nessa manhã e, enquanto esperava
que Roberto me alcançasse, examinei a sola da bota.
Tantos pontos se tinham soltado que abanava
quando andava. Olhei para as pedras ásperas que
juncavam o chão do vale. Quem, pensei, vai falhar
primeiro, eu ou o sapato? Tínhamos superado
tantos perigos; já não corríamos o risco de congelar
até à morte ou de morrer numa queda. Agora era só
uma questão de resistência, de sorte e de tempo.
Estávamos a matar-nos de tanto andar, na
esperança de encontrar alguma ajuda antes de
esgotarmos a vida que nos restava.
Mais tarde, naquela manhã, vimos árvores bem ao
longe no vale e Roberto pensou ter visto algo mais.
- Ali - afirmou ele, olhando para o horizonte com os
olhos semicerrados. Acho que estou a ver vacas.
A minha miopia impedia-me de ver as coisas tão
longe, mas fiquei preocupado que Roberto estivesse
a ter alucinações provocadas pela exaustão.
- Pode ser um veado - disse. Vamos continuar.
Algumas horas depois, Roberto agachou-se e
apanhou alguma coisa do chão. Quando ma
mostrou, vi que era uma lata de sopa enferrujada.
- Alguém esteve aqui - exclamou.
Recusei-me a ficar esperançado.
- Pode estar aí há anos - comentei. Ou ter caído de
um avião.
Roberto franziu a testa e atirou a lata para longe.
- Seu idiota - replicou. As janelas dos aviões não
abrem.
Mais tarde, encontrámos uma ferradura e alguns
montes de bosta que Roberto insistiu serem de vaca.
- Podes explicar-me como merda de vaca poderá ter
caído de um avião? - perguntou.
- Continua a andar. Quando encontrarmos um
agricultor aí sim, vou ficar entusiasmado.
A medida que avançávamos, encontrávamos outros
sinais de presença humana: mais excrementos de
vaca, bosta de cavalo e troncos de árvores com
marcas de machado. E, por fim, ao dobrarmos uma
curva no vale, vimos, a alguns metros de distância,
o pequeno rebanho de vacas que Roberto detectara
de manhã.
- Eu disse-te que tinha visto vacas. Devemos estar
perto de uma quinta ou de alguma coisa do género.
- Mas estas vacas não podiam ter sido largadas aqui
para pastar sozinhas? - perguntei. É muito alto e
deserto aqui. É difícil acreditar que alguém possa
viver num lugar destes.
- A prova está bem diante dos teus olhos - disse
Roberto. Estamos salvos. Amanhã vamos encontrar
o dono destas vacas.
Quando acampámos naquela noite, Roberto estava
animado, mas eu sabia que ele não aguentaria
muito mais horas na montanha.
- As minhas pernas doem tanto - disse ele - e sinto-
me tão fraco. Às vezes,preciso de todas as minhas
forças para levantar o pé e colocá-lo à minha frente.
- Descansa. Talvez amanhã encontremos ajuda.
A manhã seguinte era o dia 20 de Dezembro, o
nosso nono dia de viagem.Começámos cedo e
encontrámos um bom caminho ao lado do rio.
Tinha sido desbastado por vacas e outros animais
de pasto e era o primeiro solo bom para andar da
nossa jornada. Roberto esperava ver a barraca de
um camponês a qualquer momento,mas quando as
horas passaram e não encontrámos mais sinais de
vida, cansou-se rapidamente e tive de esperar mais
vezes do que o normal para ele descansar. Mesmo
assim,demos umgrande avanço até que, ao fim da
manhã, chegámos a um ponto onde um bloco
rochoso tão grande como uma casa de dois andares
caíra no rio.
A rocha maciça bloqueava completamente a
passagem.
- Vamos ter de escalar isso - disse.
Roberto examinou a rocha e viu que uma saliência
estreita contornava a rocha, por cima das águas
violentas do rio.
- Vou por ali - declarou.
- É demasiado perigoso. Basta um escorregão e cais
no rio. Vamos ter de passar por cima da rocha.
- Estou muito fraco para escalar - disse. Vou arriscar
a orla saliente.
Roberto seguiu lentamente pela orla saliente,
contornando a rocha até que o perdi de vista e então
comecei a escalar. Quando desci do outro lado, não
havia sinais de Roberto, embora o caminho que ele
escolhera fosse muito mais curto do que o meu.
Aguardei, primeiro com impaciência e depois com
preocupação. Quando ele finalmente apareceu,
cambaleava, dobrado em dois e agarrado ao
estômago. A cor tinha-lhe desaparecido do rosto e
os olhos estavam apertados de dor.
- O que é que se passa? - perguntei.
- Os meus intestinos estão a explodir - grunhiu ele.
É diarreia. Muito forte. Veio quando estava na orla
saliente.
- Consegues andar? O caminho parece estar
desimpedido agora.
Roberto abanou a cabeça.
- Não consigo - murmurou. Dói-me muito.
Caiu angustiado no chão. Eu tinha medo que o mal-
estar esgotasse as energiasque lhe restavam e não
queria deixá-lo ali.
- Vamos. É só mais um pouco...
- Não, por favor - implorou. Deixa-me descansar.
Olhei para o horizonte. Um extenso planalto erguia-
se ao longe. Se conseguíssemos arrastar-nos até ao
topo, teríamos um bom ponto de observação para
detectar cabanas ou quintas.
- Eu levo a tua mochila, mas temos de continuar a
andar. Vamos até ao topodaquele planalto e depois
descansamos.
Antes de Roberto poder responder, peguei na
mochila dele e comecei a andar, não lhe deixando
outra alternativa senão seguir-me. Ficou para trás
rapidamente, mas fiquei de olho nele. Coxeava,
dobrado, em grande desconforto e sofrendo a cada
passo.
- Não desistas, músculos - sussurrei para mim
mesmo, sabendo que ele não desistiria.
Estava agora a forçar-se a andar para a frente por
pura teimosia e força de vontade. Observando-o,
tive a certeza de que fizera bem em escolhê-lo como
companheiro de viagem.
Chegámos à base do planalto ao fim da tarde e
ajudámo-nos um ao outro a subir o caminho
íngreme até ao topo, onde nos vimos em frente de
um prado de erva espessa. Havia árvores e flores e,
à esquerda, os muros baixos de pedra do curral de
algum camponês das montanhas. Estávamos bem
acima da garganta do rio, e a terra descia íngreme
até às margens. Outra encosta inclinada erguia-se
do lado oposto do rio, que naquele ponto já tinha
cerca de trinta metros de largura e corria com força
torrencial. Roberto já mal podia andar, de modo que
o ajudei a atravessar o prado até ao pequeno grupo
de árvores em que decidimos acampar.
- Descansa - disse. Vou explorar um pouco por aí.
Talvez haja alguma casa por perto.
Roberto acenou com a cabeça. Estava muito fraco e
quando se acomodou pesadamente na relva,
percebi que não me acompanharia para mais
nenhum lugar. Não queria pensar no que
aconteceria se tivesse de abandoná-lo. A tarde
estava a desvanecer-se quando segui o caminho
tortuoso da garganta do rio para ver o que havia
mais à frente. Vi algumas vacas a pastar nas
encostas cobertas de erva e aquilo animou-me, mas,
depois de andar uns trezentos metros, vi
exactamente o que temia: outro rio largo e veloz
vinha da esquerda para se juntar ao que tínhamos
seguido. A confluência desses dois rios bloqueava a
passagem. Não parecia possível atravessar nenhum
dos dois. Em vésperas de um milagre, chegáramos
ao fim da linha. Quando voltei para onde Roberto
estava, contei-lhe sobre o rio e sobre os animais que
vira. Estávamos os dois com muita fome. A pouca
carne que tínhamos estava a estragar-se por causa
das temperaturas elevadas e, durante algum tempo,
considerámos tentar matar e esquartejar uma das
vacas, mas Roberto observou que isso
provavelmente não deixaria o dono da vaca muito
disposto a ajudar-nos. De qualquer forma, duvidava
de que tivéssemos força para apanhar e subjugar
um animal tão grande e em breve abandonámos a
ideia. A noite começava a cair e o frio aumentava.
- Vou procurar um pouco de lenha – disse.
Mas depois de andar alguns metros pelo prado,
ouvi Roberto a gritar.
- Nando, estou a ver um homem!
- O quê? O que é que disseste?
- Ali! Olha! Um homem montado num cavalo!
Roberto apontava para a encosta do outro lado da
garganta do rio. Semicerrei os olhos para tentar ver
nas sombras da noite.
- Não estou a ver nada!
- Vá! Corre! - gritou Roberto. Corre para o rio!
Desci a correr às cegas a encosta em direcção ao rio,
com Roberto a corrigir-me a direcção enquanto eu
corria.
- Vai para a direita, não, eu disse direita!. Não, já
andaste demais! Vai para aesquerda!
Ziguezagueei encosta abaixo, seguindo as
indicações de Roberto, mas não vi nenhum homem
a cavalo. Virei-me e vi Roberto a coxear pela encosta
abaixo atrás de mim.
- Juro que vi alguma coisa - disse ele.
- Está escuro do lado de lá - repliquei. Talvez fosse a
sombra de uma rocha.
Agarrei no braço de Roberto e ajudei-o a subir de
volta até ao acampamento, quando ouvimos, por
cima do rugido do rio, o inconfundível som de uma
voz humana. Demos meia-volta e daquela vez vi-o
também, um homem a cavalo. Ele estava a gritar
para nós, mas o barulho do rio engolia quase tudo o
que dizia. Depois virou costascom o cavalo e
desapareceu nas sombras.
- Ouviste o que ele disse? - gritou Roberto. O que é
que ele disse?
- Só ouvi uma palavra - respondi. Ouvi-o dizer
mañana.
- Estamos salvos - disse Roberto.
Ajudei Roberto a subir a encosta até ao
acampamento e, em seguida, fiz uma fogueira e
deitámo-nos para dormir. Pela primeira vez desde a
queda, senti uma esperança verdadeira. Eu
sobreviveria. Tinha a certeza de que iria reencontrar
o meu pai. Então as minhas preocupações voltaram-
se para os que tínhamos deixado para trás.
Obcecado pela minha própria sobrevivência, mal
pensara neles desde que tínhamos deixado o local
do acidente, há nove dias.
- Estou preocupado com os rapazes - disse para
Roberto. Roy e Coche estavam muito fracos. Espero
que ainda dê tempo.
- Não te preocupes - retorquiu Roberto. Quando o
homem voltar amanhã, explicamos que não há um
segundo a perder.
- Se ele voltar - respondi.
Eu não estava tão confiante como Roberto de que a
nossa provação estivesse prestes a acabar. Na
manhã seguinte, 21 de Dezembro, décimo dia de
viagem, Roberto e eu acordámos antes do
amanhecer e olhámos para o outro lado do rio. Três
homens estavam sentados à luz de uma fogueira.
Corri encosta abaixo até à beirinha da garganta e
depois desci até à margem do rio. Do outro lado,
um dos homens, vestido com roupas de trabalho de
camponês, fez o mesmo. Tentei gritar, mas o rugido
do rio engolia as minhas palavras. Apontei para o
céu e depois fiz gestos com a mão para indicar a
queda de um avião. O camponês só olhava.
Comecei a correr de um lado para outro na margem
do rio, com os braços estendidos como asas. O
homem virou-se e gritou alguma coisa para os
amigos. Por um momento, entrei em pânico,
imaginando que fossem pensar que era lunático e
partissem sem nos ajudar. Em vez disso, ele tirou
um papel do bolso, escreveu qualquer coisa nele e
depois amarrou-o à volta de uma pedra com um
cordel e atirou-ma por cima do rio.
Apanhei-a com rapidez e quando desembrulhei o
papel, vi esta mensagem:
“Há um homem que vem mais tarde. Diga-me o
que quer.”
Procurei nos bolsos alguma coisa com que escrever,
mas só encontrei o batom que trouxera da bagagem
da minha mãe. Sabia que não conseguiria escrever
um bilhete legível com aquilo, por isso fiz gestos
para ele, fazendo movimentos de escrever com as
mãos e abanando a cabeça. Ele assentiu, atou o lápis
a outra pedra e atirou-ma. Peguei no lápis e comecei
a escrever no verso do bilhete do camponês. Sabia
que tinha de escolher bem as palavras para fazê-lo
entender a urgência da situação e que precisávamos
de ajuda sem demora. As minhas mãos tremiam,
mas, quando o lápis tocou no papel, já sabia o que
dizer:
“Vengo de un avión que cayó en las montarias”...
Venho de um avião que caiu nas montanhas. Sou
uruguaio. Estamos a andar há dez dias. Estou com
um amigo ferido. Há ainda mais 14 pessoas feridas
no avião. Temos de sair daqui depressa e não
sabemos como. Não temos comida. Estamos fracos.
Quando é que nos vêm buscar? Por favor. Não
conseguimos nem andar. Onde estamos?
Quando acabei, virei o papel ao contrário e usei o
batom para rabiscar, em gordas letras vermelhas,
CUANDO VIENE? ("Quando é que vêm?").
Querendo economizar cada precioso segundo, não
perdi tempo a assinar o meu nome. Embrulhei o
bilhete na pedra como o camponês fizera e lancei o
braço para trás para a atirar para o outro lado do
rio. Mas ao calcular a distância e a quantidade de
força necessária, percebi de súbito a extensão da
minha fraqueza física. Não tinha a certeza de ter
força para atirar a pedra tão longe. E se ela caísse a
meio do caminho, dentro de água? Será que o
camponês perderia a paciência comigo e se iria
embora? Perderia tempo a atirar mais papel? Reuni
toda a minha energia e arremessei a pedra com toda
a força que tinha. Bateu na beira da água e rolou até
à margem. Quando o camponês leu a mensagem,
assentiu com a cabeça e ergueu as mãos espalmadas
num gesto que dizia: “Espere aí. Eu entendi”. Antes
de partir, atirou-me um pouco de pão. Levei-o para
Roberto, devorámo-lo e depois esperámos que
chegasse ajuda.
Por volta das nove da manhã, outro homem
apareceu, montado numa mula, dessa vez do lado
do rio onde esperávamos. Apresentou-se como
Armando Serda. Tirou um pouco de queijo do bolso
e deu-nos e em seguida pediu que esperássemos
enquanto ele conduzia as suas ovelhas até aos
pastos mais altos. Algumas horas depois voltou.
Quando viu que Roberto não conseguia andar,
ajudou-o a montar na mula e depois levou-nos até
um sítio calmo onde era possível atravessar a
corrente do rio. Após viajarmos cerca de trinta
minutos por trilhos cercados de árvores, chegámos
a uma clareira. Vimos duas cabanas rústicas de
madeira junto às margens do rio.
- Onde estamos? - perguntei ao homem enquanto
caminhávamos.
- Los Maitenes - disse Armando, referindo-se à
região montanhosa da província chilena de
Colchagua, perto do rio Azufre. Usamos estas
cabanas quando conduzimos os rebanhos até às
pastagens mais altas.
- Temos amigos que ainda estão nas montanhas -
disse. Eles estão a morrer e precisamos de conseguir
ajuda o mais rápido possível.
- Sérgio foi buscar ajuda - respondeu Armando.
Sérgio Catalan, explicou, era o homem a cavalo que
nos encontrara na noite anterior.
- A ajuda vem de muito longe? - perguntei.
- O posto de polícia mais próximo fica em Puente
Negro. A umas dez horas a cavalo. Um segundo
camponês saiu da cabana maior e Armando
apresentou-o como Enrique Gonzáles. Levou-nos
até uma fogueira perto dessa cabana, onde nos
sentámos nalguns troncos. Enrique trouxe queijo e
leite. Armando começou a cozinhar numa grande
panela na fogueira e, em poucos momentos, serviu-
nos comida quente - pratos de feijão, massa, pão.
Comemos tudo o que nos foi oferecido e ele ria-se à
medida que enchia os nossos pratos repetidas
vezes. Depois de acabarmos de comer, fomos
levados a uma segunda cabana, onde duas camas
nos esperavam. Não havia colchões, apenas peles
de carneiro macias espalhadas sobre as molas, mas
Roberto e eu agradecemos efusivamente a Armando
e em segundos estávamos os dois a dormir
profundamente. Quando acordámos, já era o início
da noite. Armando e Enrique tinham-nos preparado
outra refeição - mais queijo e leite, um guisado de
carne e feijão, além de dulce de leche espalhado no
pão e café quente.
- Estamos a esvaziar a vossa despensa - gracejei,
mas os dois camponeses apenas riram e insistiram
que comêssemos mais.
Depois de comer, relaxámos todos à volta da
fogueira. Armando e Enrique ouviram fascinados
enquanto Roberto e eu contávamos a história do
nosso suplício, mas em breve fomos interrompidos
por dois polícias chilenos correndo pelo trilho em
direcção à cabana, seguidos rapidamente por uma
patrulha de mais dez polícias a cavalo. Sérgio
Catalan vinha a cavalo com a polícia. Quando
desmontou, Roberto e eu corremos a abraçá-lo.
- Não precisam de agradecer-me - disse baixinho e,
quando o abraçámos, ele apenas sussurrou:
“agradeçam a Deus, agradeçam a Deus”.
Quando o capitão da polícia montada se
apresentou, expliquei que havia mais catorze
sobreviventes à espera no local do acidente. Ele
pediu os nomes, mas recusei-me a dá-los.
- Alguns estavam às portas da morte quando
partimos. Receio que alguns deles possam ter
morrido. Se divulgar os nomes, vai dar falsas
esperanças aos pais e eles vão ter de perder os filhos
uma segunda vez.
O capitão entendeu.
-Onde está o avião? - perguntou.
Olhei para Roberto. Era óbvio que o capitão não
entendera como aquele resgate seria difícil, mas,
quando descrevemos a nossa odisseia de dez dias e
a localização aproximada do local da queda, ele
percebeu sem demora que a sua patrulha não
conseguiria chegar ao local da queda a cavalo.
- Vamos mandar alguns homens de volta para
Puente Negro - disse - e eles pedirão um helicóptero
de Santiago pela rádio.
- Quanto tempo é que isso vai demorar? - inquiri.
- Eles devem chegar amanhã, se o tempo estiver
bom. A minha preocupação com os sobreviventes
no local da queda aumentava a cada minuto, mas
não tínhamos outra opção senão esperar.
Conversámos um pouco com Enrique e Armando e
com alguns dos polícias. Depois fomos dormir.
Passei uma noite agitada na cabana, ansioso pela
chegada da manhã, mas, quando acordei e saí,
fiquei aflito ao ver que um nevoeiro espesso caíra
sobre Los Maitenes.
- Achas que eles vão conseguir pousar com esta
neblina? - perguntei a Roberto.
- Talvez ela se dissipe depressa - respondeu ele.
Enrique e Armando tinham o pequeno-almoço à
nossa espera na fogueira. Sérgio e alguns dos
polícias juntaram-se a nós e, enquanto comíamos,
ouvimos o barulho de uma multidão que se
aproximava. Numa questão de segundos, ficámos
chocados ao ver uma horda de jornalistas correndo
pela estrada de terra em direcção à cabana.
Avançaram de supetão quando nos viram.
- São estes os sobreviventes? Fernando?
Câmaras disparavam, microfones eram enfiados nas
nossas caras e repórteres de jornal rabiscavam em
blocos e gritavam perguntas num emaranhado de
vozes.
- Quanto tempo é que andaram?
- Quais são os outros sobreviventes?
- Como é que sobreviveram ao frio? O que é que
comeram?
Olhei espantado para Roberto.
- Como é que eles nos acharam - murmurei - e como
é que chegaram aqui antes dos helicópteros?
Vimo-nos cercados de repórteres de jornais e de
canais de televisão do mundo inteiro. A chegada
repentina deles surpreendeu-nos e ficámos um
pouco confusos com a intensidade das perguntas,
mas tentámos responder-lhes da melhor maneira
possível, embora tenhamos guardado os factos mais
sensíveis só para nós. O capitão da polícia montada
permitiu que as entrevistas continuassem por
algum tempo e depois afastou-nos dos jornalistas.
- O nevoeiro ainda está denso - disse-nos. Não acho
que os helicópteros vão chegar hoje. Vou mandar-
vos para Puente Negro para esperarem lá pela
equipe de resgate.
Talvez seja mais fácil para eles aterrarem lá.
Assentimos com a cabeça e, em poucos instantes,
Roberto e eu seguíamos a cavalo dois polícias
montados pelo trilho, com a imprensa no nosso
encalço. De repente, toda a ruidosa comitiva parou
para olhar para o céu nublado. Havia um alvoroço
por cima das nossas cabeças, o troar de motores
poderosos e um rugido de vento. A neblina ainda
estava tão densa que não conseguíamos ver os
helicópteros pousarem, mas seguimos o som nos
cavalos até um prado plano perto das cabanas, a
cerca de quatrocentos metros de distância de onde
estávamos, onde os três helicópteros enormes da
força aérea chilena tinham acabado de pousar.
Desmontámos enquanto os médicos e os tripulantes
saltavam dos helicópterose corriam para nos
examinar. Roberto precisava imenso dos cuidados
deles, mas eu recusei ser examinado. Em vez disso,
fui até dois dos pilotos, Carlos Garcia e JorgeMassa,
e tentei convencê-los da necessidade de partirmos
imediatamente.
O comandante Garcia abanou a cabeça.
- Não é possível voar neste nevoeiro. Temos de
esperar que se dissipe. Enquanto isso, o que é que
me pode dizer sobre a localização do avião?
Descrevi mais uma vez a nossa viagem pelos
Andes. Garcia franziu assobrancelhas com
cepticismo e depois foi buscar uma carta de voo
dentro do helicóptero e abriu-asobre a erva.
- Acha que me consegue mostrar no mapa? -
perguntou.
Pôs o dedo no mapa e disse:
- Nós estamos aqui. Olhei para o mapa por um
instante e, assim que me orientei, foi fácil traçar ao
contrário a rota que eu e Roberto seguíramos.
- Aqui - disse, batendo com o dedo no sítio do mapa
onde o vale acabava na base do pico que eu
baptizara de Monte Seler. Eles estão do outro lado
desta montanha.
Massa e Garcia trocaram olhares de incredulidade.
- Isso é na Argentina - afirmou Garcia. São os Altos
Andes. Ficam a mais de cem quilómetros daqui.
- Temos de nos apressar. Os nossos amigos estão a
morrer.
Massa franziu o sobrolho para Garcia.
- Ele está confuso - disse Massa. Eles não podem ter
atravessado os Andes a pé! É impossível.
- Tem a certeza de que entende este mapa? -
perguntou-me Garcia.
- Tenho - confirmei. Nós descemos esta montanha e
seguimos este vale. Aqui é onde o vale se bifurca,
depois seguimos esta bifurcação e ela trouxe-nos até
aqui! O avião está caído ali, logo depois da
montanha, num glaciar sobre um vale enorme que
vai para leste.
Garcia meneou a cabeça a dobrou o mapa. Eu ainda
não tinha a certeza se ele acreditava em mim.
- Quando é que vai buscá-los? - indaguei.
- Assim que o nevoeiro levantar, partimos - e os
dois afastaram-se com as cabeças juntas e eu sabia
que estavam a falar do meu relato e a pensar se
deveriam acreditar nele.
Três horas depois ainda havia neblina, mas
dissipara-se um pouco e os pilotos julgaram ser
seguro voar. Enquanto a tripulação se preparava
para descolar, Garcia aproximou-se de mim.
- Vamos partir - disse. Mas a localização que nos
deu, fica numa parte muito alta e remota dos
Andes. Voar até lá vai ser muito difícil e, sem
pontos de referência, nunca vamos encontrar os
seus amigos no meio de todas aquelas montanhas.
Acha que pode vir connosco e guiar-nos até ao
avião?
Não me lembro como é que respondi, ou se cheguei
a responder, mas, em questão de segundos, senti
braços à minha volta erguendo-me para dentro do
helicóptero e fui atado a um assento dobrável no
compartimento de carga. Alguém enfiou um par de
auscultadores na minha cabeça e colocou a ponta de
um pequeno microfone perto da minha boca. Três
membros da equipe de resgate andina sentaram-se
ao meu lado. O co-piloto sentou-se na minha frente
e o comandante Garcia assumiu os comandos.
Enquanto Garcia aquecia os motores, olhei pela
janela e vi Roberto, a única pessoa que podia
entender como estava apavorado por ir voar de
volta aos Andes. Ele não acenou, apenas trocámos
olhares. Então o helicóptero balançou no ar e o meu
estômago deu uma volta quando nos inclinámos
para leste, na direcção da montanha.
Primeiro os meus auscultadores estalaram com
palavreado técnico enquanto o piloto e o mecânico
determinavam a rota e depois Garcia falou comigo.
- Muito bem, Nando, mostre-nos o caminho.
Guiei-os até ao vale e descemo-lo até cruzarmos a
fronteira chilena, chegando aos Andes argentinos,
com um segundo helicóptero, pilotado pelo
comandante Massa, colado à nossa cauda. O ar
estava turbulento e o helicóptero dançava e sacudia-
se como um barco de corridas em águas revoltas,
mas o voo foi curto - em menos de vinte minutos
estávamos a pairar sobre a extremidade leste do
vale, onde o volume maciço do Monte Seler se
erguia sobre as nossas cabeças como as muralhas de
uma gigantesca fortaleza.
- Santo Deus - murmurou alguém.
Garcia deixou o helicóptero a pairar no ar enquanto
olhava para cima, para o pico coberto de neve e
depois para as encostas negras que mergulhavam
na superfície do vale, várias centenas de metros
abaixo.
- Minha Nossa Senhora - disse. Não me diga que
desceu isto.
- Sim - retorqui. É esse o caminho.
- Tem a certeza? - perguntou. Está certo disso?
- Tenho a certeza. Eles estão do outro lado. Garcia
olhou para o co-piloto.
- Estamos pesados demais com tanta gente - disse o
co-piloto. Não sei se temos potência suficiente para
ultrapassar a montanha.
Garcia perguntou mais uma vez:
- Nando, tem a certeza absoluta de que é este o
caminho?
- Tenho! - berrei ao microfone.
Garcia assentiu com a cabeça.
- Segure-se - disse.
Senti o helicóptero saltar para a frente enquanto os
pilotos forçavam o motor. Disparamos para a face
da montanha, ganhando velocidade e, então,
lentamente o helicóptero começou a subir. À
medida que voávamos cada vez mais próximo da
montanha, éramos castigados pelo ar que subia em
espiral das encostas. Garcia lutou para manter o
controlo, enquanto o avião balançava com violência
de um lado para outro. Os motores gritavam, o
pára-brisas tremia e o meu assento chocalhava tanto
que a minha vista ficou turva. Parecia que cada
parafuso do helicóptero estava a ser forçado para
além dos limites e eu tinha a certeza de que se iria
desfazer de tanto chocalhar. Já vira aquele tipo de
caos mecânico momentos antes de o Fairchild bater
na crista e assistir novamente àquilo fez o pânico
subir pela minha garganta como vómito. Garcia e o
co-piloto vociferavam comandos com tanta
velocidade que não sabia quem estava a dizer o quê.
- O ar é muito rarefeito! Não temos altura suficiente.
- Vamos, force-o! Cem por cento, cento e dez por
cento...
- Mantenha a estabilidade! Mantenha a estabilidade!
Olhei para a equipe de resgate na esperança de ver
algum sinal de que aquilo era normal, mas os seus
rostos estavam tensos e pálidos. Garcia continuava
a forçar os motores, lutando por cada metro de
altitude e, finalmente, conseguiu levar o helicóptero
acima do topo da montanha, mas, assim que
passámos o cume, as poderosas correntes de ar que
se deslocavam por cima da crista atiraram-nos com
violência para trás e Garcia não teve outra opção
senão deixar o helicóptero descer num longo círculo
para evitar que fôssemos arremessados contra as
encostas. Enquanto caíamos, comecei a gritar e
continuei a gritar quando demos a volta para mais
um assalto ao cume, apenas para sermos
empurrados de volta da mesma forma apavorante.
- Não vamos conseguir passar por cima desta
montanha - anunciou Garcia. Precisamos de
encontrar uma forma de contorná-la. Agora esta
missão envolve risco de vida e não vou prosseguir a
não ser que todos a bordo concordem. Vocês é que
decidem. Vamos continuar ou regressar?
Troquei olhares com os outros tripulantes e depois
virámo-nos para o comandante e assentimos com a
cabeça.
- Está bem - disse ele. Mas segurem-se com força,
não vai ser nada fácil.
O meu estômago deu outra volta quando nos
inclinámos para a direita e sobrevoámos alguns dos
picos mais baixos logo a sul do Monte Seler. Era o
único caminho livre, mas estávamos a afastar-nos
da rota que eu e Roberto tínhamos seguido e perdi
rapidamente o meu sentido de orientação naquela
paisagem desconhecida.
- Para onde agora? - perguntou Garcia.
- Não tenho a certeza... Fiquei confuso...
Perscrutei o horizonte, procurando freneticamente
um ponto de referência, com medo de ter perdido
de vez os meus amigos. Para onde quer que olhasse
só via a mesma coisa, um oceano interminável de
neve branca e rochas negras... Então alguma coisa
no perfil denteado de uma das cristas chamou a
minha atenção.
- Espere! - gritei. Eu conheço aquela montanha! Já
sei onde estamos! Desça!
Enquanto descíamos até às montanhas, percebi que
Garcia contornara os picos que rodeavam o local da
queda para sul. Estávamos sobre o vale que
tínhamos atravessado nas nossas tentativas de
escapar pelo leste e a subir para ocidente na
direcção da face oriental do Monte Seler.
- Eles devem estar lá em cima - disse, apontando
para leste.
- Não vejo nada - respondeu o piloto.
- Siga em frente! - exclamei. Eles estão no glaciar!
- O vento está forte! - bradou o co-piloto. Não sei se
vamos conseguir descer aqui.
Olhei para as encostas e, de repente, vi-o, um
pontinho apagado na neve.
- Estou a ver o avião! - gritei. Ali, à esquerda.
Garcia perscrutou as encostas.
- Onde... não estou a ver nada. Espere, sim, estou a
ver. Calem-se, calem-se todos!
Num instante estávamos a voar em círculos bem
acima do local da queda e o meu coração batia com
força, enquanto Garcia lutava contra a violenta
turbulência sobre o glaciar, mas os meus medos
desapareceram quando vi uma fila de pequenas
figuras a sair da fuselagem. Mesmo àquela altura
conseguia reconhecer alguns deles – Gustavo por
causa do boné de piloto, Daniel, Pedro, Fito, Javier...
havia outros a correr, a acenar.
Tentei contá-los, mas não era possível com os
balanços do helicóptero. Não havia sinal de Roy ou
de Coche, que eram os que mais me preocupavam.
Ouvi a voz de Garcia nos auscultadores, falando
com a equipe de resgate.
- A encosta é demasiado íngreme para aterrar. Vou
descer o mais baixo possível. Vão ter de saltar.
Voltou então a sua atenção para a tarefa traiçoeira
de descer o helicóptero em segurança naquela
ventania.
- Merda! A turbulência está forte. Mantenha a
estabilidade.
- Cuidado com a encosta, estamos perto demais!
- Mantenha a estabilidade.
- Cuidado...
Virou o helicóptero para que um dos lados desse
para a encosta, e depois desceu até que um dos
esquis quase tocasse na neve.
- Agora! - gritou.
A equipe de resgate abriu a porta de correr, atirou
os equipementos para a montanha e saltou para
fora sob as hélices que rodopiavam. Olhei pela
porta e vi Daniel a correr na nossa direcção.
Agachou-se sob as hélices e tentou mergulhar
dentro do helicóptero, mas calculou mal o pulo e
bateu com o peito contra um dos esquis do
helicóptero.
- Carajo! - exclamou. Acho que parti as costelas.
- Não te vás matar agora! - gritei.
Depois estiquei os braços e puxei-o para dentro.
Álvaro Mangino subiu atrás dele.
- Só podemos levar esses - declarou Garcia.
- Amanhã vimos buscar os outros. Agora feche a
porta!
Obedeci às ordens do comandante e, em poucos
segundos, estávamos a sobrevoar o local da queda
enquanto o segundo helicóptero descia e mais
membros da equipe de resgate saltavam para a
montanha. Vi Carlitos, Pedro e Eduardo subirem
para o helicóptero. Então vi a figura emagrecida de
Coche Inciarte a coxear em direcção ao aparelho.
- Coche está vivo! - disse eu para Daniel. Como é
que está Roy?
- Vivo - respondeu Daniel -, mas por pouco.
A viagem de volta para Los Maitenes foi tão
perturbadora quanto o voo anterior, mas em menos
de vinte minutos tínhamos aterrado em segurança
no prado próximo da cabana dos camponeses.
Assim que as portas se abriram, Daniel e Álvaro
foram levados pelo pessoal militar. Instantes
depois, o segundo helicóptero pousou a uns trinta
metros de distância e eu estava lá quando as portas
se abriram. Coche atirou-se alegremente nos meus
braços e, em seguida, Eduardo e Carlitos.
Maravilhados por verem flores e verde novamente,
caíram de joelhos na relva. Outros abraçavam-se e
rolavam juntos no chão. Carlitos apertou-me nos
braços e derrubou-me.
- Grande malandro - gritou. Conseguiste!
Conseguiste!
Então enfiou a mão no bolso e tirou o sapatinho
vermelho que eu lhe dera quando partira da
fuselagem.
Ele estava radiante, com os olhos iluminados de
alegria e o rosto a centímetros do meu.
- Estou feliz por te ver, Carlitos - disse -, mas, por
favor, não me vais beijar, pois não?
Quando a comemoração acabou, eles trouxeram-nos
sopa quente, queijo e chocolates. Enquanto os
paramédicos examinavam os seis recém-chegados,
procurei o comandante Garcia e perguntei quando é
que os outros sobreviventes seriam resgatados da
montanha. Ele explicou que seria demasiado
perigoso voar até lá à noite. O resgate teria de
esperar mais um dia. Mas afiançou-me que os
paramédicos e membros da equipe que tinham
ficado na montanha garantiriam a segurança de
todos os rapazes. Depois de todos termos comido,
fomos embarcados nos helicópteros e levados até
uma base militar perto da cidade de San Fernando.
Equipes de médicos e enfermeiras estavam lá para
nos colocarem em ambulâncias. As ambulâncias
partiram em comboio, escoltadas por polícia de
moto, e chegámos em dez minutos ao hospital São
João de Deus em San Fernando. Funcionários do
hospital receberam-nos no estacionamento com
macas. Alguns dos rapazes precisaram delas, mas
eu disse às enfermeiras que conseguia andar.
Depois de atravessar os Andes a pé, não ia deixá-las
carregarem-me nos últimos metros. Levaram-me
para um quarto pequeno e limpo e começaram a
arrancar as camadas de roupa suja do meu corpo.
Atiraram os farrapos imundos para um canto e vi-
os ali caídos - as camisolas, jeans e calças que
tinham sido a minha segunda pele. Foi bom livrar-
me delas e pô-las no meu passado.
Fui levado até à casa de banho e deram-me um
banho quente. Senti mãos a lavarem-me os cabelos e
um pano macio a esfregar a sujidade do meu corpo.
Quando o banho terminou, secaram-me com
toalhas macias e então vi-me no espelho de corpo
inteiro da casa de banho. Fiquei aturdido quando vi
no que me tinha tornado. Antes do acidente, eu era
um atleta em actividade, mas agora já não havia o
menor vestígio de músculo no meu corpo. Os ossos
das costelas, ancas e omoplatas estavam à mostra e
os meus braços e pernas tinham definhado tanto
que os joelhos e cotovelos estavam protuberantes
como nós grossos numa corda. As enfermeiras
afastaram-me do espelho e vestiram-me uma bata
de hospital limpa, levaram-me para uma cama
estreita e começaram a examinar-me, mas pedi que
me deixassem um instante sozinho. Quando saíram,
regozijei-me sossegadamente com o conforto, a
limpeza e a paz do agradável quartinho. Deitei-me
no colchão macio, senti a suavidade dos lençóis de
algodão. Lentamente, deixei a ideia assentar na
minha cabeça: estava em segurança; ia voltar para
casa. Inspirei longamente e depois expirei o ar
devagar, fartamente. Respira mais uma vez,
costumávamos dizer na montanha para nos
encorajarmos uns aos outros nos momentos de
desespero. Enquanto respirares, estás vivo.
Naqueles dias, cada respiração era quase um
desafio. Nos meus 72 dias nos Andes, não respirei
uma única vez sem medo. Agora, finalmente,
gozava o luxo de respirar normalmente. Repetidas
vezes, enchi os pulmões e soltei o ar em expirações
longas e lentas e, a cada uma delas, sussurrava,
maravilhado comigo mesmo: Estou vivo. Estou
vivo. Estou vivo. De repente, os meus pensamentos
foram interrompidos por gritos do lado de fora da
porta, no que parecia um tumulto no corredor.
- Acalme-se! - gritou uma voz masculina firme.
Ninguém pode entrar aqui.
Uma voz de mulher respondeu:
- O meu irmão está aí dentro! Preciso de o ver! Por
favor!
Cheguei ao corredor quando a minha irmã Graciela
passava aos empurrões por um bando de
empregados de hospital. Chamei-a e ela começou a
chorar quando me viu. Em segundos estava nos
meus braços e o meu coração encheu-se de amor
enquanto a abracei. O marido Juan acompanhava-a
com os olhos brilhando de lágrimas e, por um
momento, abraçamo-nos os três sem dizer uma
palavra. Então levantei a cabeça. No fim do
corredor, imóvel na ténue luz fluorescente, estava a
figura magra, arqueada do meu pai. Caminhei na
sua direcção e abracei-o, depois ergui-o nos meus
braços até os pés lhe saírem do chão.
- Estás a ver, papá - sussurrei, quando o colocava de
volta no chão -, ainda estou suficientemente forte
para te levantar.
Ele colou o seu corpo ao meu, tocando-me,
convencendo-se de que eu era real. Abracei-o
durante muito tempo, sentindo-lhe o corpo tremer
suavemente enquanto chorava. Ficámos os dois em
silêncio por algum tempo. Então, com a cabeça
ainda colada ao meu peito, ele sussurrou:
- A mamã? Susy?
Respondi com um silêncio delicado e ele cedeu um
pouco nos meus braços quando compreendeu.
Instantes depois, a minha irmã veio ter connosco e
levou-nos de volta para o quarto. Eles juntaram-se à
volta da cama e eu contei a história da minha vida
nas montanhas. Descrevi a queda, o frio, o medo, a
longa viagem que fizera com Roberto. Expliquei
como a mãe morrera e como tinha confortado Susy.
O meu pai encolheu-se quando mencionei a minha
irmã, de forma que o poupei aos detalhes do seu
sofrimento, considerando que já bastava contar que
ela nunca ficou sozinha e que morrera nos meus
braços. Graciela chorava baixinho enquanto eu
falava. Não conseguia tirar os olhos de mim. O meu
pai estava sentado em silêncio ao lado da cama,
ouvindo, acenando com a cabeça, com um sorriso
dolorido no rosto. Quando terminei, fez-se um
silêncio até o meu pai encontrar forças para falar.
- Como é que sobreviveste, Nando? - perguntou.
Tantas semanas sem comida...
Contei-lhe que tínhamos comido a carne dos que
não sobreviveram. A expressão do seu rosto não
mudou.
- Fizeste o que tinhas de fazer - disse, a voz a falhar
por causa da emoção. Estou feliz por te ter em casa.
Eu queria contar-lhe tantas coisas, que pensara nele
a todo o momento, que o seu amor fora a luz que
me guiara em direcção à segurança. Mas haveria
tempo para isso depois. Naquele instante queria
aproveitar cada momento da nossa reunião, por
mais agridoce que fosse. Ao princípio, foi difícil
convencer-me de que aquele momento, com o qual
sonhara por tanto tempo, fosse real. A minha mente
funcionava lentamente e as minhas emoções
estavam estranhamente entorpecidas. Não me
sentia jubiloso ou triunfante, sentia apenas o
delicado brilho da segurança e da paz. Não havia
palavras para explicar como me sentia, por isso
fiquei simplesmente em silêncio. Passado algum
tempo, ouvimos sons de comemoração no corredor,
à medida que as famílias dos outros sobreviventes
encontravam os seus filhos. A minha irmã levantou-
se e fechou a porta e, na privacidade do meu quarto,
compartilhei com o que restava da minha família o
simples milagre de estarmos mais uma vez juntos.

10 DEPOIS
No dia seguinte, 23 de Dezembro, os oito
sobreviventes que tinham ficado na montanha
foram transportados para Santiago, onde foram
examinados num hospital conhecido como Posta
Centrale. Os médicos decidiram manter Javier e Roy
internados em observação - estavam especialmente
preocupados com Roy, cujas análises sanguíneas
mostravam irregularidades que poderiam ser
nocivas para o coração -, mas os outros tiveram alta
e mudaram-se para o hotel Sheraton San Cristóbal,
onde muitos se juntaram à família. Nós os oito, do
hospital de S. João fomos transferidos para Santiago
nessa mesma tarde. Álvaro e Coche, os mais fracos,
foram internados no Posta Centrale enquanto o
resto teve alta e foi levado para o Sheraton para se
reunir aos amigos. A atmosfera no Sheraton, e em
toda a cidade de Santiago por sinal, estava
carregada de um sentimento de comemoração e
reverência religiosa. Os jornais chamavam ao nosso
regresso "O milagre de Natal" e muitas pessoas
consideravam-nos quase como figuras místicas:
jovens que tinham sido salvos por intercessão
directa de Deus, prova viva do Seu amor. As
notícias da nossa sobrevivência apareciam nas
primeiras páginas do mundo inteiro e o interesse
público era intenso. O átrio do Sheraton e as ruas
em frente ao hotel estavam lotados, a toda a hora,
com repórteres e equipes dos noticiários à espera de
acompanhar todos os nossos movimentos. Não
podíamos lanchar num café ou ter uma conversa
sossegada com a família, sem uma horda de
jornalistas a empurrar microfones para cima de nós
e a disparar flashes nas nossas caras. Na véspera de
Natal, organizaram uma festa para nós no salão de
baile do hotel. Havia no ar uma atmosfera de
alegria e gratidão, enquanto muitos dos
sobreviventes e suas famílias davam graças a Deus
por nos ter salvo da morte.
- Eu disse-te que estaríamos em casa para o Natal -
disse-me Carlitos com o mesmo sorriso convicto
que mostrara nas montanhas. Eu disse-te que Deus
não nos abandonaria.
Eu estava feliz por ele e pelos outros, mas enquanto
os observava a partilhar a sua alegria com os entes
queridos, percebi que, excepto Javier, todos os meus
colegas sobreviventes estavam a regressar a uma
vida que era tal e qual como fora antes. Era verdade
que muitos tinham perdido amigos no desastre e
que todos tinham suportado um incrível pesadelo,
mas agora, para eles, terminara. As suas famílias
estavam intactas. Seriam de novo abraçados pelos
pais, irmãos e irmãs, namoradas. Os seus mundos
recomeçariam e as coisas seriam tal e qual como
eram antes do acidente interromper as suas vidas.
Mas o meu mundo fora destruído e a festa apenas
sublinhava o que perdera. Nunca mais passaria
outro Natal com a minha mãe ou com Susy. Era
óbvio para mim que o meu pai ficara destroçado
pela provação e eu perguntava-me se alguma vez
voltaria a ser o homem que conhecera. Tentei
participar nas comemorações naquela noite, mas
sentia-me muito sozinho, sabendo que o que era um
triunfo para os outros, era o início de um futuro
novo e incerto para mim. Passados três dias em
Santiago, a atmosfera de circo no hotel tornou-se
insuportável e o meu pai mudou-nos para uma casa
na estância balnear chilena de Vina del Mar.
Passámos ali três dias sossegados, a descansar, a
passear, a apanhar sol.
Na praia sentia-me uma aberração. A minha
fotografia aparecera em todos os jornais e com a
minha barba comprida e os ossos a aparecerem sob
a pele, era fácil reconhecerem-me como um
sobrevivente. Não podia ir longe sem ser abordado
por estranhos, por isso ficava perto de casa e
passava muitas horas com o meu pai. Ele não me
fez muitas perguntas sobre o que me acontecera na
montanha e pressenti que ainda não estava
preparado para ouvir os detalhes, mas estava
disposto a partilhar comigo o que fora a sua vida
nas longas semanas em que estivera ausente.
Contou-me que às três e meia da tarde de 13 de
Outubro, na hora exacta em que o avião caíra do
céu, ia fazer um depósito num banco perto do
escritório, em Montevideu quando, de repente,
alguma coisa o fez parar. A porta do banco ficava
apenas a alguns passos - contou-me -, mas já não
consegui continuar. Foi muito estranho. Perdi todo
o interesse no banco. O meu estômago apertou-se.
Só queria era ir para casa. Em toda a sua vida, o
meu pai só faltara ao trabalho apenas um punhado
de vezes, mas naquele dia esqueceu o escritório e
guiou até à nossa casa em Carrasco. Serviu-se de
um copo de mate e ligou o televisor, onde serviços
noticiosos especiais relatavam que um avião charter
uruguaio se perdera nos Andes. Não sabendo da
nossa noite não programada em Mendoza,
tranquilizou-se com o pensamento de que teríamos
chegado a Santiago na tarde precedente. Mesmo
assim, um sentimento de pavor assombrou-o
enquanto escutava as notícias. Então, cerca de uma
hora depois de ter chegado a casa, bateram à porta.
- Era o coronel Jaume - explicou o meu pai,
mencionando o nome de um amigo que era oficial
na fora aérea uruguaia. Ele disse: "Tenho um carro à
espera. Quero que venhas comigo. Receio ter más
notícias...
"O coronel levou o meu pai até casa dele, onde
confirmou o pior - o avião perdido era, de facto, o
nosso. No dia seguinte o meu pai apanhou um voo
para Santiago, para uma reunião com oficiais
chilenos que explicariam o que sabiam do acidente.
A rota fê-lo passar pelos Andes e quando olhou
para as montanhas em baixo, ficou apavorado com
o pensamento de que a mulher e os filhos tinham
caído num sítio tão implacável.
Naquele momento - contou-me -, perdi toda a
esperança. Sabia que nunca mais veria nenhum de
vocês. As semanas seguintes foram tão horrorosas
como tudo o que eu imaginara para ele nas
montanhas. Não conseguia comer nem dormir. Não
encontrou conforto na oração nem na companhia de
outros. Muitos pais de outras vítimas encontram
formas de manter vivas as suas esperanças.
Algumas mães encontravam-se regularmente para
rezar por nós. Um grupo de pais, liderado pelo pai
de Carlitos, Carlos Paez-Villaro, até organizou os
seus próprios esforços de busca, alugando aviões e
helicópteros para sobrevoarem os Andes nos locais
onde as autoridades pensavam que o Fairchild
pudesse ter caído. O meu pai contribuiu com
dinheiro para essas buscas, embora tivesse a certeza
de que não eram senão uma perda de tempo.
- Quando um avião cai nos Andes, perde-se para
sempre - disse. Eu sabia que teríamos sorte se as
montanhas nos dessem nem que fosse um pequeno
fragmento dos destroços.
Sem esperança a que se agarrar, o estado emocional
do meu pai deteriorou-se rapidamente. Tornou-se
introvertido e apático. Sentava-se sozinho, em
silêncio, durante horas, ou vagueava sem rumo pela
praia, com o meu cão, Jimmy, como único
companheiro.
- A tua mãe era a minha força - afirmou. Eu
precisava tanto dela naquela altura, mas ela fora-se
e sem ela eu estava perdido. A medida que os dias
passavam, ficava cada vez mais apático e metido
consigo e mais do que uma vez a sua dor levou-o à
beira da loucura.
- Um dia estava a almoçar com Lina. A casa estava
tão silenciosa. Havia tantos lugares vazios à mesa.
Larguei o meu garfo e disse: "Mama, não consigo
ficar aqui." Então saí de casa e comecei a andar.
Andou pelas ruas durante horas, durante toda a
tarde e toda a noite. A sua mente estava vazia, à
excepção do pensamento informe de que devia
continuar a andar, que através de simples
movimento para a frente se poderia distanciar da
sua dor. Por fim, viu-se no extenso relvado da Plaza
Matriz, a praça histórica de Montevideu. À sua
frente erguiam-se as torres escuras e enfeitadas da
Catedral Napolitana, construída pelos
colonizadores espanhóis em 1740. O meu pai não
era um homem religioso, mas alguma coisa o atraiu
para a igreja, uma ânsia de paz, ou algum pequeno
conforto a que se pudesse agarrar. Ajoelhou-se e
tentou rezar, mas não sentiu nada. Inclinado no
banco da igreja, olhou para o relógio e ficou
chocado por ver que estava a andar há mais de dez
horas. Receando estar a perder o juízo, saiu da
igreja e, nas trevas, voltou para casa.
- Disse para mim mesmo: "Tenho de mudar tudo."
Então, como se pudesse livrar-se da dor cortando as
ligações físicas com o passado, o meu pai começou a
desmantelar a sua vida. Vendeu o Mercedes que
adorava e o Rover da minha mãe. Pôs no mercado o
apartamento de Punta del Este e preparou-se para
vender a nossa casa em Carrasco. Até tentou vender
o negócio que batalhara a vida inteira para
construir, mas Graciela e Juan souberam dos planos
e dissuadiram-no daquela imprudência antes de
haver muitos estragados feitos.
- Eu não sabia o que estava a fazer - disse-me. Por
vezes conseguia pensar com clareza, e outras vezes
estava absolutamente louco. Nada mais me
importava. Nada fazia sentido depois de o avião ter
caído. Quando o meu pai ouviu dizer que eu e
Roberto fôramos encontrados nas montanhas,
recusou-se a acreditar, mas lentamente permitiu-se
aceitar que era verdade.
Na manhã de 23 de Dezembro, embarcou num voo
fretado com Graciela e Juan e famílias das outras
vítimas do acidente, rumo a Santiago. Os nomes dos
outros sobreviventes ainda não tinham sido
anunciados e passando novamente sobre os Andes,
o meu pai deixou as esperanças crescerem outra
vez.
- Se alguém está vivo - declarou à minha irmã, é
porque a tua mãe os tirou de lá.
Horas depois estava nos meus braços e eu revelava-
lhe que as suas esperanças eram falsas; a minha mãe
e a minha irmã não tinham sobrevivido.
- Papá - disse-lhe naquele dia em Viña del Mar -,
sinto muito por não ter conseguido salvar a mamã e
Susy. Ele sorriu com tristeza e agarrou-me no braço.
- Quando tive a certeza de que estavam todos
mortos, sabia que nunca recuperaria da perda. Era
como se a minha casa tivesse ardido completamente
e tivesse perdido tudo o que possuía para sempre. E
agora que tu voltaste, é como se tivesse tropeçado
nalguma coisa preciosa no meio das cinzas. Sinto
que renasci. A minha vida pode recomeçar. De
agora em diante, vou tentar não ficar triste com o
que perdi, mas sim feliz com o que me foi oferecido
de volta.
Aconselhou-me a fazer o mesmo.
- O Sol vai nascer amanhã - disse-me - e no dia
seguinte e no dia a seguir a esse. Não deixes que
isto seja a coisa mais importante que te aconteceu.
Olha em frente. Vais ter um futuro. Vais viver uma
vida.
Partimos de Viña del Mar no dia 30 de Dezembro
num avião rumo a Montevideu. Estava apavorado
por atravessar os Andes de novo, mas com a ajuda
de sedativos receitados por um médico chileno,
embarquei. Quando chegámos à nossa casa em
Carrasco, uma multidão de vizinhos e amigos tinha-
-se reunido na rua à minha espera. Apertei-lhes as
mãos e abracei-os desde a longa escada até à porta
de entrada, onde a minha avó Lina me aguardava.
Caí-lhe nos braços e ela apertou-me com tanta força
e afecto agridoce, que soube que na sua mente
estava também a abraçar Susy e a minha mãe.
Entrámos. À minha frente, deitado no chão de
mosaico do átrio estava o meu cão, Jimmy. Estava a
dormir profundamente, mas quando nos ouviu
entrar abriu os olhos com cansaço, sem levantar a
cabeçorra quadrada das patas. Lançou-me um olhar
curioso, depois as orelhas empinaram-se e sentou-se
e entortou a cabeça como se não acreditasse no que
estava a ver. Durante um longo momento estudou-
me, depois, com um latido alegre, atirou-se na
minha direcção com tanta velocidade que correu
primeiro sem sair do lugar, com as patas a raspar no
piso escorregadio.
Abracei-o quando me saltou para os braços e deixei-
o lamber o meu rosto com a sua língua quente e
húmida. Todos riram com a alegria de Jimmy e,
para mim, foi uma bela recepção. Aqueles primeiros
momentos em casa foram estranhos para mim.
Estava feliz e espantado por estar de volta, mas as
salas ribombavam com a ausência da minha mãe e
da minha irmã. Fui até ao meu antigo quarto.
Graciela viera morar com o meu pai depois do
acidente e o filho de dois anos estava a usar o meu
quarto. Vi que todas as minhas coisas tinham
desaparecido. Na sua tentativa angustiada para se
purgar do passado, o meu pai livrara-se de todas as
minhas coisas - roupas, livros, equipamento
desportivo e revistas de corridas, até do cartaz de
Jackie Stewart que estivera pendurado na parede
durante anos. Na sala vi a minha fotografia sobre a
lareira, arrumada junto de fotografias da minha
mãe e de Susy num sombrio memorial. Olhei pela
janela. Carros passavam na rua. As luzes acendiam-
se noutras casas onde as pessoas continuavam com
as suas vidas. É assim que a vida seria se tivesse
morrido, pensei. Não deixei um vazio muito
grande. O mundo seguiu em frente sem mim.
Aquelas primeiras semanas em casa foram uma
espécie de limbo para mim. Tanta coisa mudara e
eu parecia não ser capaz de retomar a minha vida.
Com Guido e Panchito mortos, passava a maior
parte do tempo sozinho. Brincava com Jimmy e
passava horas a guiar a minha moto - o meu pai
vendera-a na minha ausência, mas o amigo que a
comprara devolvera-a logo que soube do nosso
resgate. Às vezes andava pelas ruas, mas era
reconhecido em todo o lado e, passado algum
tempo, era mais fácil ficar em casa. Quando
realmente saía, não conseguia evitar recordar-me do
que me acontecera. Certa vez, em La Mascota, uma
pizaria do bairro que frequentava desde criança, o
dono e empregado fizeram um alarido por causa da
honra que era terem-me lá e recusaram-se a aceitar
o meu dinheiro. A intenção era boa, eu sei, mas
passou-se muito tempo antes de lá voltar. No
passeio, estranhos aproximavam--se para me
apertar a mão como se fosse uma espécie de herói
conquistador que trouxera honra para o Uruguai
com os meus feitos. De facto, a nossa sobrevivência
tornara-se uma questão de orgulho nacional. O
nosso suplício era celebrado como uma aventura
gloriosa. As pessoas comparavam os nossos feitos
com as façanhas heróicas da equipe de futebol do
Uruguai que ganhara o campeonato do mundo em
1950. Algumas pessoas chegaram a dizer-me que
me invejavam por causa da experiência nos Andes e
desejariam ter lá estado comigo. Não sabia como
explicar-lhes que não havia glória nenhuma nas
montanhas. Era tudo fealdade, medo e desespero, e
a obscenidade de ver tantas pessoas inocentes
morrerem. Fiquei também abalado com o
sensacionalismo com que grande parte da imprensa
cobriu a questão do que comêramos para
sobreviver. Pouco depois do resgate, membros da
Igreja católica anunciaram que, de acordo com a
doutrina da Igreja, não tínhamos cometido qualquer
pecado ao comer a carne dos mortos. Como Roberto
argumentara na montanha, disseram ao mundo que
o pecado teria sido deixarmo-nos morrer.
Mais satisfatório para mim foi o facto de muitos
familiares dos rapazes que tinham morrido terem
expressado o seu apoio, dizendo ao mundo que
compreendiam e aceitavam o que tínhamos feito
para sobreviver. Ficarei sempre grato pela coragem
e generosidade que demonstraram ao apoiar-nos.
Apesar destes gestos, muitas reportagens focavam a
questão da nossa dieta de uma maneira estouvada e
exploradora. Alguns jornais publicaram títulos
sinistros por cima de fotografias macabras de
primeira página, tiradas por membros da equipe de
resgate andina, mostrando pilhas de ossos perto da
fuselagem e partes de corpos humanos espalhadas
em volta na neve. Na sequência desta cobertura
sensacionalista, começaram a surgir boatos,
incluindo uma teoria de que a avalanche nunca
acontecera e que nós tínhamos na realidade morto
as pessoas desse desastre para podermos usá-las
como comida. Graciela e Juan ajudaram-me muito
naqueles dias, mas sentia uma falta intensa de Susy
e da minha mãe. O meu pai era o meu companheiro
de sofrimento, mas, combalido pela dor, estava tão
perdido quanto eu. Em breve descobri que, na sua
solidão, procurara o conforto de outra mulher e que
ainda se encontrava com ela. Não o culpei por isso.
Sabia que era um homem que precisava de um
centro emocional forte na vida e que a morte da
minha mãe lhe retirara o sentimento de plenitude e
equilíbrio sem o qual não conseguia viver. Mesmo
assim era difícil para mim vê-los aos dois juntos tão
cedo depois do desastre, além de ser mais uma
indicação de que a minha velha vida se acabara
para sempre. Assim, quando o Verão chegou, decidi
fugir de Montevideu, e de todas as memórias que
me trazia, para passar sozinho algum tempo no
apartamento do meu pai em Punta del Este. Há
anos que a nossa família passava aí o Verão, desde
os tempos em que eu e Susy éramos crianças
brincando na areia. Tudo estava diferente agora,
claro. Todos me conheciam e onde quer que fosse
era cercado por idiotas, admiradores e estranhos a
pedir autógrafos.
Ao princípio escondia-me no apartamento, mas à
medida que o tempo passava, devo admitir, uma
parte de mim começou a gostar da atenção -
especialmente quando percebi que tantas jovens
atraentes pareciam determinadas em conhecer-me.
Sempre invejara a habilidade natural de Panchito
para conquistar as raparigas mais bonitas da praia
e, agora, essas mesmas raparigas sentiam-se
atraídas da mesma forma poderosa por mim. Sentir-
se-iam atraídas por quem eu era, ou pelo que eu
fizera? Ou era simplesmente a minha nova
celebridade? Eu não queria saber. Pela primeira vez
na vida, as raparigas consideravam-me fascinante -
irresistível, de facto - e fiz o melhor que pude para
aproveitar ao máximo. Semanas a fio, diverti-me
com uma mulher bonita atrás de outra, às vezes
com duas ou três no mesmo dia e andava sempre a
ver se encontrava alguém novo. Tornei-me um dos
mais visíveis libertinos de Punta del Este, com a
minha fotografia a aparecer muitas vezes nas
colunas sociais dos jornais - Nando numa festa
chique qualquer, erguendo um copo, vivendo a
vida de lazer de um playboy a tempo inteiro e
sempre com uma rapariga vistosa ou duas nos
braços. Esta notoriedade não escapou à atenção dos
meus colegas sobreviventes, que não ficaram
satisfeitos com o meu comportamento. Para eles, o
suplício fora uma experiência transformadora que
lhes mostrara a dignidade da vida humana e os
levara a comprometerem-se com vidas de
moralidade e princípios elevados. Aos olhos deles,
eu estava a esquecer as lições que aprendera. A
dada altura no Verão pediram-me para ser juiz de
um concurso de beleza na praia, uma oferta que
aceitei de bom grado. A notícia foi anunciada num
jornal local, que publicou uma foto minha com um
grande sorriso e rodeado por meia dúzia de belezas
de biquíni. Foi demasiado para os outros e, por
respeito para com eles, voltei atrás e recusei o
convite. Ainda assim, pensava que os meus amigos
se estavam a levar um pouco a sério de mais.
No final de contas, considerando o que tínhamos
passado, o mundo não nos deveria um pouco de
diversão? Disse a mim mesmo que estava a saborear
ávida, a compensar o tempo que perdera nas
montanhas. Mas talvez estivesse a enganar-me.
Penso agora que no centro da minha alma havia um
entorpecimento, um vazio, e que estava a tentar
preencher esse vazio com noites e noites de farra.
Ainda estava a negar a dor que guardara dentro de
mim desde os primeiros dias do desastre. Estava a
tentar encontrar uma forma segura de sentir. Uma
noite, num clube nocturno chamado 05, estava a
conversar com a miúda com quem tinha saído e a
bebericar uma Coca-Cola, quando a realidade me
atacou de emboscada como uma moca na cabeça.
Tinha passado tantas noites neste clube com
Panchito que naquele momento, por hábito, me vi a
esperar que ele entrasse pela porta. Pensara nele
muitas vezes desde o resgate, mas naquela noite,
naquele lugar, senti a sua presença de forma
visceral, como uma dor nas minhas entranhas e
entendi, com brutal certeza, que ele se fora. A
compreensão daquela perda trouxe todas as minhas
outras perdas à superfície e, pela primeira vez
desde que o Fairchild caíra nas montanhas, comecei
a chorar. Baixei a cabeça e solucei com tanta força
que não me conseguia controlar. A miúda que saíra
comigo fez o favor de me levar para casa e fiquei
sentado durante horas na varanda do apartamento,
observando o oceano, sozinho com os meus
pensamentos. Enquanto meditava sobre todas as
coisas que me tinham sido retiradas, a dor em breve
cedeu lugar à indignação. Por que é que aquilo
acontecera? Por que é que fui obrigado a sofrer
tantas perdas enquanto tantos outros puderam
viver as suas vidas alegremente? Fiquei horas ali
parado, amaldiçoando Deus ou a minha sorte, e
torturando-me com possibilidades: Se ao menos os
pilotos tivessem visto aquela crista mais cedo. Se ao
menos Panchito tivesse escolhido um lugar
diferente. Se ao menos não tivesse convidado a
minha mãe e a minha irmã para me acompanharem.
Pensei em rapazes que tinham desistido da viagem
no último momento, ou que tinham perdido o avião
e tiveram de apanhar um voo diferente. Por que é
que eu não fora poupado como esses rapazes? Por
que é que fora a minha vida que tivera de ser
destruída? À medida que as horas passavam e me
afundava mais nestes pensamentos amargos, a
minha raiva ficou tão forte que pensei que nunca
mais ia perdoar à vida a forma como ela me tinha
negado um futuro feliz. Mas então, a certa altura
antes do amanhecer, quando o cansaço amainou a
minha fúria, recordei-me do conselho que o meu pai
me dera em Viña del Mar: Vais ter um futuro. Vais
viver uma vida. E, reflectindo nas suas palavras, vi
o equívoco que estava a cometer. Tinha estado a
pensar no desastre como um horrível erro, como
um desvio não programado da história feliz da vida
que me fora prometida. Mas agora começava a
entender que a minha provação nos Andes não era
uma interrupção do meu verdadeiro destino, ou
uma perversão do que a minha vida supostamente
deveria ser. Era simplesmente a minha vida e o
futuro que estava à minha frente, era simplesmente
o único que estava disponível. Esconder-me deste
facto, ou viver num estado de amargura e raiva, só
me impediriam de viver uma vida genuína. Antes
do acidente, aceitava muita coisa sem questionar,
mas as montanhas tinham-me mostrado que a vida,
qualquer vida, é um milagre.
Agora, milagrosamente, fora-me concedida uma
segunda oportunidade de viver. Não era a vida que
queria ou esperava, mas compreendia que era agora
meu dever vivê-la de forma tão rica e tão
esperançosa quanto possível. Jurei tentar. Viveria
com paixão e curiosidade. Abrir-me-ia às
possibilidades da vida. Saborearia cada momento e
tentaria, todos os dias, tornar-me mais humano e
mais vivo. Fazer menos, compreendia, seria um
insulto para os que não tinham sobrevivido. Fiz
aquelas promessas sem qualquer expectativa de ser
feliz. Senti simplesmente que era minha obrigação
aproveitar ao máximo a oportunidade que me fora
concedida. Assim, abri-me à vida e, para minha
grande sorte, a minha nova vida começou a
acontecer.
Em Janeiro de 1973, alguns amigos convidaram-me
para ir com eles ver o Grande Prémio de Fórmula 1
em Buenos Aires. Eu não estava muito disposto a
viajar nessa altura,mas o tempo que passara na
montanha não diminuíra a minha paixão pelo
desporto automobilístico e era uma oportunidade
para ver os maiores pilotos domundo, por isso
concordei em ir. Não estávamos há muito tempo na
pista, quando a imprensa notou a minha presença e
em breve me vi rodeado de fotógrafos. Deixei que
tirassem as fotose seguimos em frente. Alguns
momentos mais tarde, fui surpreendido por um
anúncio no sistema de som da pista.
- Nando Parrado, queira por favor comparecer na
box da Tyrell...
- Deve ser algum jornal que quer uma entrevista -
disse aos meus amigos. Mas é a zona da box da
equipe da Tyrell. Vamos lá. É uma oportunidade
para ver os carrosde perto.
Quando lá chegámos, as boxes da Tyrell
fervilhavam de actividade. Cerca devinte mecânicos
de fato de macaco azul estavam atarefados a tratar
de dois belos carrosde Fórmula 1. Quando me
apresentei, um dos mecânicos pegou-me por um
braço e levou-me, passando pelos carros, até uma
zona asfaltada atrás dos boxes, onde uma caravana
enorme estava estacionada. O mecânico abriu a
porta e fez-me sinal para entrar, depois voltou para
as boxes.
Subi um pequeno lanço de escadas e entrei na
caravana. À minha esquerda, um homem magro, de
cabelo escuro, estava sentado num sofá, com um
macacão de corrida à prova de fogo cinzento-claro
vestido até às pernas. Quando ergueu o olhar e vi
quem era, ofeguei e dei um passo atrás.
- É o Jackie Stewart! - exclamei.
- Sim, sou eu - disse ele, com o suave sotaque
escocês que eu ouvira centenas de vezes na
televisão.
- Você é o Nando Parrado?
Assenti em silêncio.
- Ouvi dizer que estava aqui e pedi para o
chamarem.
Então explicou-me que quisera conhecer-me desde
que ouvira a história do desastre nos Andes. Ficara
muito impressionado com aquilo, disse, e esperava
que eu não me importasse de conversar com ele
sobre o assunto.
- Não -gaguejei eu -, dar-me-ia muito prazer...
Ele sorriu e olhou para mim.
- Gosta de corridas? - perguntou.
Inspirei fundo. Por onde é que havia de começar?
- Adoro - disse por fim. Adoro corridas desde
pequenino. Você é o meu piloto preferido. Li os
seus livros. Conheço as suas corridas, tenho um
cartaz seu no meu quarto...
Não sei quanto tempo fui desbobinando coisas
deste género, mas queria que ele entendesse que eu
não era um fã qualquer. Queria que soubesse que
estudara as técnicas dele e que respeitava a sua
mestria naquele desporto - o virtuosismo com que
levava o carro até aos limites da física sem nunca os
ultrapassar, como equilibrava agressividade e
graça, risco e controlo. Queria que visse que eu
compreendia as corridas, na minha alma, e sabia
que pilotar bem era mais uma questão de poesia do
que de machismo.
Jackie sorriu amavelmente enquanto se acabava de
vestir.
- Tenho de ir para o qualifying agora - explicou -,
mas fique por aí nas boxes e falamos quando eu
voltar.
Em menos de uma hora, Jackie estava de volta.
Mostrou-me o carro dele - até me deixou sentar
atrás do volante - depois convidou-me para ficar
para a reunião da equipe antes da corrida. Escutei
com respeito enquanto Jackie discutia com os seus
engenheiros e mecânicos os ajustamentos de último
minuto que teriam de fazer no motor do carro e na
suspensão, para o afinar para a corrida. Depois da
reunião, Jackie e eu falámos durante horas. Ele fez
perguntas sobre os Andes e eu fiz-lhe perguntas
sobre corridas e carros. Passado algum tempo, já
não estava tão aturdido por estar com ele. Apesar
da sua fama e estatura, era um homem genuíno e
generoso e, à medida que nos ficávamos a conhecer,
percebi, espantado, que o meu ídolo de infância e
eu nos estávamos a tornar amigos.
Alguns meses depois, aceitei o convite de Jackie
para o visitar na sua casa na Suíça, onde me tornei
amigo da sua família e a nossa amizade se
aprofundou. Jackie e eu passávamos horas a falar
de carros e corridas e eu tentava absorver tudo o
que ele dizia. Finalmente, confessei-lhe que sonhara
pilotar carros desde criança. Jackie levou o meu
interesse a sério e encorajou-me a fazer o mesmo.
Em 1974, por recomendação dele, inscrevi-me na
escola de pilotos de Jim Russell em Snetterton na
Grã-Bretanha. Naquela altura, era a melhor escola
de pilotos de corrida do mundo e os seus
formandos - Emerson Fittipaldi entre eles - corriam
nas principais competições do mundo. Na escola de
Russell treinei em Fórmula Fords - máquinas tão
espectaculares quanto os carros com que sonhara
quando criança - e provei a mim mesmo que tinha
condições para me tornar um piloto de elite.
Quando as aulas acabaram, voltei para casa, para a
América do Sul, e passei os dois anos seguintes a
pilotar motos e stock cars no Uruguai, Argentina e
Chile. Conquistei algumas vitórias, mas sonhava
sempre em pilotar nas grandes pistas da Europa e
não demorou muito para esse sonho se tornar
realidade. Em 1973, no Grande Prémio de Buenos
Aires - a mesma corrida em que conhecera Jackie
Stewart -, fui apresentado a Bernie Ecclestone, o
empresário de corridas inglês, que é hoje
considerado um dos fundadores da Fórmula 1
moderna.
Naquela época, Bernie já era uma das figuras mais
influentes da cena internacional e dono da grande
equipe Brabham. Como Jackie, reconheceu a minha
paixão pelas corridas e isso tornou-se a base de uma
grande amizade. A partir dali, permanecemos em
contacto e ele seguiu a minha curta carreira como
piloto. No início de 1977, soube por Bernie que a
prestigiada equipe Autodelta, da Alfa Romeo estava
à procura de pilotos. Ofereceu-se para me arranjar
uma entrevista e, poucas semanas depois, fui aos
escritórios da Alfa Romeo em Itália com outros três
pilotos sul-americanos - Juan Zampa, Mario
Marquez e Eugene "Chippy" Breard. As nossas
reuniões com as pessoas da Autodelta correram
bem e, em Maio de 1977, Juan, Mário, Chippy eeu
começámos a correr como colegas de equipe nas
corridas de longa distânciado Campeonato Europeu
de Carros de Turismo. Eu fizera aquilo acontecer, a
vida com que sonhara, pilotar carros de corrida e
correndo contra pilotos de elite nas maiores
corridas do mundo. Saímo-nos bem, acabando em
segundo lugar em Silverstone, na Inglaterra, e em
Zandvoort, na Holanda, e conquistando a nossa
primeira vitória em Pergusa, uma pista muito
rápida no Sul de Itália. A cada corrida eu ganhava
mais confiança. Corria melhor, com mais equilíbrio,
precisão e velocidade. Excedia cada vez mais os
limites e provei a mim mesmo que, mesmo
competindo com os melhores, conseguia aguentar.
E, pouco a pouco, estava a realizar o sonho que
tinha em rapaz - o sonho de encontrar poesia no
poder e precisão de uma bela máquina.
Foi um ano incrível, repleto de excitação, grandes
desafios, pessoas interessantes e viagens
espectaculares. Estava a viver um sonho tornado
realidade e quando cheguei à Bélgica, para uma
corrida na pista de Zolder em Setembro, não tinha
razões para pensar que acabaria. Mas nos dias que
antecederam a corrida, quando a equipe
preparavaos carros, andava por uma zona VIP cujo
anfitrião era Philip Morris, à procura deuma Coca-
Cola, quando vi uma rapariga loura, alta, vestindo
um blazer vermelho e calças brancas. Estava de
costas para mim, mas alguma coisa nela me fez
parar. Então ela virou-se e sorriu.
- Nando? - disse ela.
- Veronique? - gaguejei.
- O que é que estás a fazer aqui?
Conhecia-a. Chamava-se Veronique van
Wassenhove, uruguaia de nascença, cujos pais
tinham emigrado para a Bélgica. Era uma rapariga
impressionante, alta e esbelta, com cabelos longos e
grandes olhos verdes. Conhecera-a três anos antes,
em1974, em Montevideu, quando ela andava com o
irmão mais novo de GustavoZerbino, Rafael.
Rafael sofrera um ligeiro acidente de viação mesmo
antes de uma grande festa e telefonara-me a pedir
se podia ir buscar a rapariga com quem tinha
combinado sair.
Eu ia a caminho da festa com Roberto e a namorada
Laura, por isso parámos em casa de Veronique para
lhe dar uma boleia. Rafael devia ir ter connosco à
festa, mas não apareceu, por isso tornei-me o par de
Veronique naquela noite. Ela só tinha 16 anos na
altura, mas tinha uma graciosidade simples e um
traço de maturidade que me mostrou que tinha os
pés bens assentes no chão. Gostei logo dela.
Divertimo-nos muito, conversando e dançando e ela
impressionava-me cada vez mais, à medida que a
noite passava. Mas era demasiado nova para mim e,
além disso, andava a sair com o meu amigo, por
isso nunca pensei naquilo como mais do que uma
noite de acaso. Nos anos seguintes encontrei
Veronique na praia, em clubes ou festas e sempre
nos cumprimentávamos. Certa tarde, eu e os meus
amigos estávamos entre o público no concurso
anual de Miss Punta del Este, um evento prestigioso
que junta as mulheres mais belas de toda a América
Latina, vendo aparecer uma mulher deslumbrante
atrás da outra nos seus elegantes vestidos de noite.
Passado um bocado, uma loura alta num vestido
azul liso subiu ao palco. Movia-se de maneira
diferente das outras. Os passos eram menos
estudados e de uma graciosidade mais espontânea.
Havia humor nos seus olhos e, enquanto as outras
pareciam esforçar-se muito para apresentarem a sua
imagem mais resplandecente, aquela mulher tinha
um sorriso tranquilo e um porte natural que me
mostraram que estava realmente a divertir-se. Era
Veronique, claro. Entrara no concurso no último
instante, instada por amigos que pensavam que isso
ajudaria a lançar a sua carreira de modelo. Ri
baixinho quando ela passou pela mesa do júri. As
outras concorrentes tinham obviamente passado
muito tempo e esforço a polir a sua aparência e os
seus trajes, até aos sapatos chiques que todas
usavam. Mas quando Veronique atravessou o palco
vi, por baixo da bainha do vestido comprido, que
estava descalça. Fiquei completamente encantado,
tal como o júri que, no final da noite, lhe deu a
coroa. Agora aqui estava ela na Bélgica, alguns anos
mais velha, já não com Rafael, e parecendo ainda
mais bonita do que me lembrava. Disse-me que
estava em casa da mãe no apartamento delas em
Bruxelas, que aceitara um trabalho temporário
como relações públicas ali na pista e que estava a
planear ir para Londres estudar inglês, mas os meus
pensamentos estavam demasiado dispersos para
registar tudo o que dizia. Não conseguia parar de
olhar para ela. Mal conseguia respirar. Imaginara,
quando era rapaz, como é que seria quando
encontrasse a mulher com quem casaria. Como é
que a reconheceria? Ouviria um trovão? Veria
foguetes? Agora sabia. Não era nada do género, era
apenas uma voz firme e tranquila de convicção a
murmurar na minha mente: Veronique. Claro... Não
durou mais do que um segundo. Vi o meu futuro
nos olhos dela. E penso que ela viu o futuro dela
nos meus. Falámos um pouco, depois ela convidou-
me para almoçar na segunda-feira no apartamento
da família. Corri no dia seguinte e acabei em
segundo lugar, o que era um milagre, porque
choveu bastante e pilotar à chuva exige uma feroz
concentração. Mas enquanto lançava o carro curva
atrás de curva e acelerava nas rectas, não estava a
pensar no equilíbrio ou na tracção ou na
importância de descobrir o melhor ângulo para
fazer a curva. Estava com a cabeça na segunda-feira,
quando veria Veronique de novo. Quando segunda-
feira finalmente chegou, vi-me a almoçar com ela e
a mãe no seu apartamento elegante na Avenue
Louis em Bruxelas. A mãe de Veronique era uma
mulher impressionantemente aristocrática que me
cumprimentou calorosamente, mas deve ter ficado
desconfiada com um piloto de carros de corrida de
vinte e sete anos a visitar a sua filha de dezanove.
Tentei comportar-me o melhor possível, mas já
estava loucamente apaixonado e tive de me esforçar
ao máximo para tirar os olhos de cima de Veronique
e lembrar-me que estava outra pessoa na sala.
Depois do almoço, fomos até Bruges, a romântica
cidade medieval repleta de canais e catedrais. A
cada passo que dávamos, sentia a ligação entre nós
ficar mais forte. Quando a tarde terminou e era
altura de levá-la para casa, pedi-lhe que me
visitasse em Milão.
- Estás louco! - ela riu. A minha mãe matava-me só
de lho pedir.
- Então vai a Espanha - insisti. Vou correr na
próxima semana em Jarama.
- Nando, não posso - disse. Mas ver-nos-emos em
breve.
Voltei para o meu apartamento em Milão na terça-
feira, sentindo imensa falta dela, mas na quarta-
feira ela surpreendeu-me com um telefonema,
dizendo que vinha a caminho. Não havia nada de
leviano ou impulsivo na sua decisão. Reflectira bem
em tudo e fizera uma escolha consciente. Tínhamos
passado apenas um dia juntos na Bélgica, mas não
havia dúvidas de que havia qualquer coisa séria
entre nós. Ela estava a escolher o seu futuro. Será
que eu estava preparado para fazer o mesmo?
Na quinta-feira à noite fui buscá-la à estação de
Milão. Ela saiu do comboio só com uma mochila e
uma bolsa pequena, tão linda que me voltei a
apaixonar. Veronique foi comigo para Jarama,
depois viajámos para Marrocos, onde tirámos umas
semanas de férias. Percebi que estava perante uma
grande decisão. Provara a mim mesmo que tinha
aptidão para ser um grande piloto, mas, para esse
sonho se tornar realidade, teria de me dedicar cada
vez mais ao desporto. Pilotar teria de ser o centro da
minha vida e não era o tipo de vida que interessaria
a uma mulher como Veronique. Será que seria
capaz de desistir de todos os meus sonhos como
piloto, dos sonhos de toda uma vida, logo agora que
eles estavam prestes a realizar-se? Sabia que se nos
juntássemos, teria de ser no Uruguai. Será que era
suficientemente forte para trocar a vida
deslumbrante que vivia agora, por longos dias a
labutar nas lojas de ferragens do meu pai, fechando
os balanços, preenchendo encomendas, controlando
o envio de pregos e parafusos? No fim de contas,
nem sequer havia nenhuma questão. As lições que
aprendera na montanha impediam-me de tomar
uma decisão que não fosse a correcta; construiria
um futuro com a mulher que amava. Na Primavera
de 1978, a minha carreira como piloto era uma
recordação e Veronique e eu tínhamos regressado a
Montevideu. Em 1979, casámos. Mudámo-nos para
uma pequena casa em Carrasco e começámos a
construir uma vida juntos. Veronique arranjou
trabalho como modelo e eu descobri que gostava de
trabalhar nas lojas de ferragens.
Graciela e Juan trabalhavam lá há anos e, juntos,
com a orientação do meu pai,transformámos o
nosso negócio na maior cadeia de lojas de ferragens
do país.
Com o passar dos anos, outras oportunidades se
apresentaram. Em 1984, pediram-me para produzir
e apresentar um programa sobre desportos
motorizados para o Cana 15 da televisão nacional
do Uruguai. Eu nunca estivera em frente às câmaras
anteriormente, mas era uma oportunidade de voltar
a fazer parte do mundo das corridas, por isso decidi
aproveitá-la. Na TV descobri uma nova paixão que
se transformou numa segunda carreira.
Hoje, Veronique e eu produzimos e apresentamos
cinco programas para atelevisão do Uruguai,
incluindo programas sobre viagens, natureza, moda
e actualidades. Estamos envolvidos em todos os
aspectos da produção destes programas -
escrevemos, editamos e dirigimos; até
seleccionamos a música.
O trabalho na televisão satisfaz o meu apetite de
criatividade e o nosso sucesso neste meio levou-nos
a outros empreendimentos, incluindo uma empresa
de televisão por cabo. Trabalhámos com afinco para
construir todas estas empresas e temos sido
abençoados com o sucesso muitas vezes. Mas a
maior bênção das nossas vidas foi, de longe, o
nascimento das nossas filhas.
Veronica nasceu em 1981. Até então, eu pensava
que não podia amar nada na vida mais do que
amava a minha mulher, mas, quando olhei o rosto
do meu bebé, fui arrebatado de amor por ela.
Momentos depois do seu nascimento, tornara-se
outro tesouro na minha vida e sabia que morreria
por ela sem hesitação. Desde o início, saboreei cada
momento da paternidade. Adorava mudar-lhe as
fraldas, dar-lhe de comer, dar-lhe banho, pô-la a
dormir. Por vezes, segurava-a espantado pela
doçura e perfeição do seu pequeno corpo e percebia
que se não tivesse conseguido sair dos Andes, esta
pequenina pessoa maravilhosa não existiria. Sentia
uma súbita e atordoante sensaçãode gratidão pelas
valiosas alegrias da minha vida - recebera tanto
amor efelicidade - e percebia que cada horrível
passo que dera naquela imensidão árida fora um
passo na direcção daquele pequeno e precioso
milagre que segurava nos braços.
Dois anos e meio depois, a minha filha Cecilia
nasceu com apenas cinco meses e meio de gravidez.
Pesava apenas um quilo e duzentos gramas e
passou os primeiros dois meses de vida nos
cuidados intensivos. Houve muitas noites em que
os médicos nos disseram que nos preparássemos
para o pior, que devíamos ir para casa rezar e todas
essas noites foram um outro Andes para mim. Mas
Veronique passava horas no hospital, todos os dias,
a acariciar a nossa bebé, e lentamente Cecilia ficou
mais forte. Agora ambas as minhas filhas são jovens
lindas de vinte e poucos anos, cheias de vida e
alegria e prontas a enfrentar o mundo sozinhas.
Enquanto as minhas filhas iniciam a sua vida, o
meu pai entra no seu octogésimo oitavo ano, ainda
com a mente e o corpo saudáveis. É impossível
descrever a intimidade que há entre nós. Nos
muitos anos que se passaram desde o desastre nos
Andes, tornou-se mais do que um pai; é o meu
amigo mais próximo e mais íntimo. Estamos ligados
pelo sofrimento e pelas nossas perdas, mas também
por um grande sentido de respeito mútuo e, claro,
por um amor profundo, inquestionável. Não sei se o
meu pai alguma vez compreendeu como foi
importante para mim quando eu estava perdido.
Nunca esquecerei o que me disse, logo depois de
regressar dos Andes.
- Planeei tudo para ti, Nando. Para a mãe, para Susy
e Graciela. Estava tudo tratado. Eu escrevera a
história das vossas vidas como um livro. Mas não
planeei que isto acontecesse. Não escrevi este
capítulo.
Entendi que aquilo era um pedido de desculpas.
Apesar de todo o esforço para nos manter seguros e
felizes, não fora capaz de nos proteger e, algures no
seu coração, havia a noção de que, de alguma
maneira, nos deixara ficar mal. Quis escrever este
livro para lhe dizer que não tem razão. Ele comigo
não falhou. Salvou-me a vida. Salvou-me ao contar-
me histórias quando era pequeno e essas histórias
ajudaram-me a encontrar força nas montanhas.
Salvou-me ao trabalhar tanto, nunca desistindo e
ensinando-me, através do seu exemplo, de que tudo
é possível se estamos dispostos a sofrer. Sobretudo,
salvou-me com o seu amor. Nunca foi um homem
abertamente afectuoso, mas nunca duvidei do seu
amor quando era criança. Era um amor discreto,
mas sólido e profundo e duradouro. Quando estava
na montanha, preso nas sombras da morte, aquele
amor foi como uma corda salva-vidas que me
ancorou ao mundo dos vivos.
Enquanto me agarrasse àquele amor, não estaria
perdido, estaria ligado ao meu lar e ao futuro e, no
final de contas, foi aquele forte cordão de amor que
me afastou do perigo. Quando pensou que todos
estávamos mortos, o meu pai entrou em desespero
e, na sua dor, desistiu da sua esperança por nós.
Mas não era da sua esperança que eu precisava.
Salvou-me simplesmente sendo o pai que amo.
Quando os meus colegas sobreviventes e eu
voltámos das montanhas, os nossos pais e
professores preocuparam-se que estivéssemos
traumatizados por causa dos horrores que tínhamos
enfrentado e pediram-nos que fôssemos ao
psicólogo. Como grupo dissemos que não.
Sabíamos que tínhamos o apoio uns dos outros e,
para mim, isso sempre foi suficiente. Mas mesmo
agora, as pessoas ficam curiosas sobre os efeitos
psicológicos de tal suplício e perguntam-me muitas
vezes como é que lidei com o trauma. Tenho
pesadelos? Flashbacks? Luto com o sentimento de
culpa do sobrevivente?
Estas pessoas ficam sempre surpreendidas e, creio,
incrédulas, quando lhes digo que não senti
nenhuma dessas coisas. Tenho vivido uma vida
feliz desde o acidente. Não sinto culpa ou
ressentimento. Vivo para o dia de amanhã e espero
sempre que o futuro seja bom. "Mas como é
possível?", perguntam frequentemente. "Como pode
estar em paz com a vida depois do que sofreu?"
Digo-lhes que estou em paz não apesar do que sofri,
mas por causa do que sofri. Os Andes levaram-me
muito, explico, mas também me deram o
entendimento simples que me libertou e iluminou a
minha vida: A morte é real e a morte está muito
perto. Nas montanhas, nunca houve um minuto em
que não sentisse a morte a meu lado, mas no
momento em que cheguei ao topo da montanha e
não vi senão picos a erguerem-se até onde a vista
alcançava, foi quando todas as minhas dúvidas
foram varridas para longe e a certeza da minha
morte se tornou visceralmente real. Essa realidade
da morte roubou-me o fôlego, mas, ao mesmo
tempo, nunca a vida queimara tanto em mim e, em
face da total falta de esperança, senti uma explosão
de alegria. A realidade da morte era tão clara e tão
poderosa que por um instante consumiu tudo o que
era temporário e falso. A morte mostrara o seu
rosto, escuro, predatório, invencível e, por uma
fracção de segundo pareceu-me que abaixo das
frágeis ilusões da vida, só a morte existia. Mas então
vi que havia alguma coisa no mundo que não era
morte, uma coisa tão impressionante, duradoura e
profunda quanto ela. Era o amor, o amor no meu
coração e, por um incrível momento, enquanto
sentia este amor crescer -amor pelo meu pai, pelo
meu futuro, pela simples maravilha de estar vivo -,
a morte perdeu o seu poder. Nesse momento, deixei
de fugir dela. Em vez disso, transformei cada passo
num passo em direcção ao amor e isso salvou-me.
Nunca deixei de avançar em direcção ao amor. A
vida abençoou-me com sucesso material. Gosto de
carros rápidos, bons vinhos, boa comida. Adoro
viajar. Tenho uma casa linda em Montevideu e
outra na praia. Acredito que a vida deve ser gozada,
mas a experiência ensinou-me que, sem o amor da
minha família e dos meus amigos, todos os sinais
exteriores de sucesso material soariam a vazio.
Também sei que seria um homem feliz se todos
esses sinais exteriores me fossem retirados, desde
que estivesse perto das pessoas que amo. Acredito
que muitas pessoas gostariam de pensar nelas desta
maneira, mas sei que, se não tivesse sofrido o que
sofri e não tivesse sido obrigado a enfrentar o rosto
da morte, não valorizaria os prazeres simples e
preciosos da minha vida tanto como valorizo.
Existem tantos momentos perfeitos num dia e não
quero perder um único - os sorrisos das minhas
filhas, o abraço da minha mulher, as boas-vindas
babadas do meu novo cachorrinho, a companhia de
um velho amigo, a sensação da areia debaixo dos
meus pés e o quente sol uruguaio no meu rosto.
Estes momentos fazem o tempo parar. Saboreio-os e
deixo cada um deles transformar-se numa
miniatura de eternidade e, ao viver esses pequenos
momentos da minha vida de forma tão plena,
desafio a sombra da morte que paira por cima de
nós todos, reafirmo o meu amor e gratidão por
todas as dádivas que recebi e encho-me mais
profundamente de vida. Desde o desastre, penso
muitas vezes no meu amigo Arturo Nogueira e nas
conversas que tivemos nas montanhas sobre Deus.
Muitos dos meus colegas sobreviventes dizem ter
sentido a presença pessoal de Deus nas montanhas.
Acreditam que Ele nos deixou misericordiosamente
viver, em resposta às nossas orações, e estão certos
de que foi a mão de Deus que nos guiou para casa.
Tenho grande respeito pela fé dos meus amigos,
mas, para ser sincero, por mais que tenha rezado
por um milagre nos Andes, nunca senti a presença
de Deus. Pelo menos, não senti Deus como a
maioria das pessoas O vê. Senti realmente qualquer
coisa maior do que eu, qualquer coisa nas
montanhas e nos glaciares e no céu brilhante que,
em raros momentos, me tranquilizava e me fazia
sentir que o mundo era ordenado, amoroso e bom.
Se isto era Deus, não era Deus como um ser, ou um
espírito, ou uma mente omnipotente, sobre-
humana. Não era um Deus que escolhesse salvar-
nos ou abandonar-nos, ou mudar de alguma
maneira. Era simplesmente um silêncio, uma
totalidade, uma simplicidade digna de respeito.
Parecia-me chegar-me através dos meus próprios
sentimentos de amor e já pensei muitas vezes que
quando sentimos aquilo a que chamamos amor,
estamos, na realidade, a sentir a nossa ligação a essa
extraordinária presença. Ainda sinto essa presença
quando a minha mente se aquieta e presto
realmente atenção. Não pretendo saber o que é ou o
que quer de mim. Não quero compreender essas
coisas. Não tenho qualquer interesse num Deus que
possa ser compreendido, que nos fale num ou
noutro livro sagrado e que altere as nossas vidas de
acordo com algum plano divino, como se fôssemos
personagens numa peça. Como é que posso
perceber um Deus que estabelece uma religião
acima das restantes, que responde a uma oração e
ignora outra, que envia dezasseis jovens para casa e
deixa outros vinte e nove mortos numa montanha?
Houve uma altura em que desejei conhecer esse
Deus, mas compreendo agora que o que queria
realmente era o conforto da certeza, o conhecimento
de que o meu Deus era o verdadeiro Deus e que no
fim devia recompensar-me pela minha fidelidade.
Agora compreendo que ter a certeza - sobre Deus,
sobre qualquer coisa - é impossível.
Perdi a necessidade de saber. Naquelas
inesquecíveis conversas que tive com Arturo
quando ele agonizava, ele disse-me que a melhor
maneira de encontrar a fé era tendo a coragem de
duvidar. Lembro-me dessas palavras todos os dias,
e duvido, e tenho esperança, e dessa maneira
imprecisa, tento intuir o meu caminho em direcção
à verdade. Ainda rezo as orações que aprendi
quando criança - as ave-marias e os pais-nossos -,
mas não imagino um pai sábio e celestial a escutar
pacientemente do outro lado da linha. Em vez
disso, imagino amor, um oceano de amor, a
verdadeira fonte do amor e imagino-me a fundir-
me nele. Abro-me para ele, tento dirigir essa onda
de amor para as pessoas que me são próximas,
esperando protegê-las e ligá-las a mim para sempre
e unir-nos a todos ao que quer que haja no mundo
de eterno. É uma coisa muito minha e não tento
analisar o que significa. Gosto simplesmente do que
me faz sentir. Quando rezo dessa maneira, sinto que
estou ligado a algo de bom, de absoluto e de
poderoso. Nas montanhas, foi o amor que me
manteve em contacto com o mundo dos vivos. A
coragem ou a inteligência não me teriam salvo. Não
podia contar com a experiência, por isso confiei na
confiança que sentia no amor pelo meu pai e no
meu futuro, e essa confiança guiou-me para casa.
Desde então, tem-me levado a um entendimento
mais profundo de quem sou e do que significa ser
humano.
Estou agora convencido de que se há alguma coisa
de divino no universo, a única maneira de o
descobrir é através do amor que sinto pela minha
família e pelos meus amigos e através da simples
maravilha de estar vivo. Não preciso de mais
nenhuma sabedoria ou filosofia além desta: O meu
dever é preencher o meu tempo na terra com tanta
vida quanto possível, tornar-me um pouco mais
humano, todos os dias, e entender que só nos
tornamos humanos quando amamos. Tentei amar
os meus amigos com um coração leal e generoso.
Amei as minhas filhas com toda a minha força. E
amei uma mulher com um amor que encheu a
minha vida de significado e alegria. Sofri grandes
perdas e fui abençoado com grandes consolações,
mas seja o que for que a vida me dê ou retire, esta é
a sabedoria simples que iluminará sempre a minha
vida: amei, com paixão, sem medo, com todo o meu
coração e toda a minha alma, e fui amado também.
Para mim é o suficiente. Dois anos depois do
milagre dos Andes, eu e o meu pai regressámos ao
local do acidente nos Altos Andes perto da
Montanha Sosneado. Fora descoberto um caminho,
transitável apenas no Verão, saindo dos contrafortes
argentinos até ao glaciar onde jazia o Fairchild. É
uma viagem dura de três dias, que começa com um
percurso de oito horas em veículos todo-o-terreno
pelo solo acidentado das colinas andinas, seguido
de dois dias e meio a cavalo. Passámos a vau um rio
veloz e depois cavalgámos cavalos andinos
especialmente treinados ao longo de trilhos estreitos
e íngremes que serpenteavam subindo as
montanhas por cima de declives apavorantes
estendendo-se até às encostas rochosas em baixo.
Chegámos à base do glaciar ao meio-dia, depois
trepamos até ao cemitério a pé.
A sepultura em si, construída depois do nosso
resgate por membros da força aérea do Uruguai e
do Chile, assenta sobre um promontório rochoso
que se projecta da neve. Por baixo das rochas estão
Susy e a minha mãe, junto com os restos dos outros
que morreram ali, todos a distância segura do
glaciar opressivo a algumas centenas de metros. É
um jazigo simples, apenas uma pilha de pedras e
uma pequena cruz de aço encimando o túmulo. O
meu pai trouxe flores e uma caixa de aço inoxidável
contendo o ursinho de peluche com que Susy
dormira todas as noites da sua vida. Colocou estas
ofertas no túmulo e depois ficámos ali de pé no
silêncio das montanhas. Recordava-me tão bem
daquele silêncio, uma constante e absoluta ausência
de som. Em dias calmos não se ouve senão a nossa
própria respiração, os nossos próprios
pensamentos.
O rosto do meu pai estava pálido e as lágrimas
molhavam-lhe as faces enquanto partilhávamos
aquela triste reunião, mas não senti dor ou mágoa.
Senti tranquilidade naquele lugar. Já não havia
medo, nem sofrimento, nem luta. Os mortos
estavam em paz. A quietude pura, perfeita, das
montanhas, voltara. Era um dia primaveril, claro e
brilhante. O meu pai virou-se para mim com um
sorriso triste. Olhou para o glaciar, para os picos
altos por cima de nós, para o céu vasto e selvagem
dos Andes e sei que estava a tentar imaginar aquele
lugar nos frios meses do início da Primavera.
Lançou um olhar aos destroços da fuselagem.
Estaria a ver rapazes amontoados lá dentro? Rostos
assustados na escuridão e no frio, a escutar o uivar
do vento e o ressoar das avalanches distantes, sem
ninguém com quem contar senão eles próprios?
Imaginar-me-ia naquele lugar árido, tão apavorado,
tão inacreditavelmente longe de casa e ansiando
desesperadamente estar com ele? O meu pai não
disse. Apenas sorriu com ternura, pegou-me no
braço e sussurrou:
-Nando, agora entendo...
Ficámos cerca de uma hora no cemitério e depois
descemos até aos cavalos. Nunca pensámos, nem
por um momento, em transferir os corpos dos
nossos entes queridos para um cemitério no mundo
civilizado. Enquanto descíamos as montanhas, a
grandiosidade dos Andes retumbava à nossa volta -
tão silenciosa, tão maciça, tão perfeita - e nenhum
de nós podia imaginar um jazigo mais majestoso.
EPÍLOGO
Há cerca de trinta anos que os sobreviventes do
desastre dos Andes se reúnemcom as suas famílias
no dia 22 de Dezembro para comemorar o dia em
que fomos resgatados da montanha.
Celebramos essa data como o nosso aniversário
comum, porque nesse dia todos renascemos. Mas o
que nos foi dado foi mais do que vida; descemos da
montanha com uma nova maneira de pensar, com
um apreço mais intenso pelo poder do espírito
humano e com uma compreensão mais profunda da
maravilha que é - para nós, paratoda a gente - estar
vivo. A capacidade de estar verdadeiramente vivo e
consciente, de saborear cada momento da vida com
presença e gratidão, essa foi a dádiva que os Andes
nos deram. Um estranho pode não notar o carinho
especial com que os meus amigos abraçam as
mulheres, ou a ternura com que acariciam os filhos,
mas eu noto, pois, como eles, sei que essas coisas
são maravilhas. Depois de termos sido resgatados à
montanha, os jornais chamaram à nossa
sobrevivência "O Milagredos Andes".
Para mim, o verdadeiro milagre é que, pelo facto de
termos vivido tanto tempo sob a sombra da morte,
aprendemos da forma mais vívida e transformadora
o que significa estar vivo. Essa é a sabedoria que
nos une e, embora como todos os amigos, tenhamos
a nossa quota-parte de conflitos e mal-entendidos e
a vida tenha levado algunspara longe da nossa casa
em Montevideu, nunca permitiremos que esses elos
se quebrem.
Mesmo hoje, mais de três décadas após o desastre,
penso em todos esses homens como meus irmãos.
Mas ninguém foi um irmão melhor para mim do
que Roberto Canessa, o meu parceiro nessa longa
viagem através dos Andes. Vários dias depois de a
termos iniciado, quando íamos ficando cada vez
mais fracos naquele terreno sombrio e a esperança
parecia desvanecer-se a cada passo, Roberto
apontou para o belo cinto que usava. Reconheci o
cinto de Panchito.
- Estou a usar o cinto que tirei do corpo do teu
melhor amigo - disse -, mas sou o teu melhor amigo
agora.
Naquele momento, nenhum de nós acreditava que
tivéssemos algum futuro, mas tínhamos e, mais de
trinta anos depois, tenho orgulho em dizer que
Roberto ainda é o meu melhor amigo e que se
tornou mais engenhoso, mais confiante e, sim, mais
cabeça-dura com o passar do tempo. Estas
qualidades, que fizeram dele uma figura tão
importante e tão difícil na montanha, ajudaram-no a
tornar-se um dos mais respeitados cardiologistas
pediátricos do Uruguai e renderam-lhe a reputação
de um homem cujos conhecimentos e capacidades
só são ultrapassados pela sua feroz determinação
em ajudar os seus jovens doentes. A maior parte das
crianças tratadas por Roberto está gravemente
doente e não surpreende ninguém que o conhece o
facto de ele não se poupar a esforços para as ajudar.
Uma vez, por exemplo, um bom amigo, que era
chefe do departamento de cardiologia num hospital
de Nova Iorque, disse a Roberto que o seu hospital
tinha um aparelho de ecografia Doppler de que já
não precisava. Ofereceu-o a Roberto, com a
condição de que se responsabilizasse pelo
transporte do aparelho para o Uruguai. Roberto
sabia que um aparelho daqueles seria de grande
ajuda no tratamento dos doentes e também que o
seu hospital em Montevideu não tinha verba para
comprar aquele tipo de tecnologia dispendiosa.
Demorou apenas uns instantes para se decidir e,
menos de vinte e quatro horas depois, estava em
Nova Iorque a receber o equipemento. Sem plano
definido para trazer o aparelho e ninguém para o
ajudar, Roberto carregou a volumosa máquina - do
tamanho de um pequeno frigorífico - num carro de
mão que pedira emprestado ao departamento de
manutenção do hospital e empurrou-o até ao
elevador. Momentos depois estava numa rua
movimentada a tentar apanhar boleia dos camiões
que passavam. Ficou ali a fazer sinal durante muito
tempo, enquanto o trânsito passava. Ninguém
parecia reparar nele, mas finalmente chamou a
atenção do motorista de uma carrinha aberta que
concordou, por um dado preço, levar Roberto e o
aparelho até ao aeroporto JFK.
Roberto teve mais problemas ao chegar a
Montevideu, onde funcionários da alfândega
picuinhas se recusaram a deixar o aparelho entrar
no país. Mas claro que Roberto não seria
contrariado. Chamou um táxi e foi directo ao
gabinete do presidente do Uruguai, onde exigiu
uma reunião com o chefe do país. Incrivelmente o
seu pedido foi concedido e, depois de apresentar o
caso ao presidente, os funcionários alfandegários
receberam ordens para cortar com a burocracia e
deixar o Doppler entrar no país. Roberto conseguiu
que fosse levado para o hospital, onde foi
imediatamente posto ao serviço. Menos de quarenta
e oito horas se tinham passado desde que Roberto
soubera do aparelho, mas agora já estava instalado,
a funcionar e a salvar vidas de crianças uruguaias.
Roberto tem gozado de uma vida pessoal rica e
pacífica.
Três anos depois do nosso regresso dos Andes,
casou com Laura Surraco, a rapariga de quem tinha
tantas saudades nas montanhas, e teve sorte, pois
ela deve ser a única mulher no Uruguai capaz de
aguentar a sua teimosia e de refrear a sua energia
sem limites. Têm dois filhos e uma filha. Eu sou
padrinho do filho Hilário, que é agora médio de
abertura no Old Christians. Roberto, que sempre se
mostrou activo nos assuntos da equipe, é agora
presidente do Old Christians Club, uma posição
que muito aprecia, porque adora a equipe e está
convencido de que ninguém a pode dirigir melhor.
Claro que sente isso em relação a tudo e acredita
que deve ter algo a dizer em todos os assuntos
importantes, incluindo os do Estado uruguaio. Em
1999, de facto, ficou tão descontente com a liderança
do governo que formou o seu próprio partido
político e concorreu a presidente do país. A sua
campanha popular arrecadou apenas uma pequena
percentagem dos votos, mas, como sempre, fez
ouvir a sua voz. Gozo impiedosamente com ele por
causa do seu ego, mas não o quereria doutra forma.
Gustavo Zerbino é outro amigo especial de quem
me aproximei muito com o passar dos anos. É um
homem de princípios sólidos e discurso franco e,
quando fala, as suas palavras contam. Não consigo
imaginar um amigo em quem se possa confiar mais
do que Gustavo. Nos Andes, foi sempre corajoso,
inteligente e firme e, se não tivesse ficado
extenuado naquela tentativa quase fatal de escalar a
montanha, certamente que teria sido um dos
expedicionários de maior confiança. Mas mesmo
antes do desastre, era um aliado leal e protector que
nunca desertaria um colega de equipe ou um
amigo. Nunca me esquecerei de como veio em meu
auxílio durante um jogo de râguebi muito duro,
quando um adversário me fez uma emboscada por
trás e me deu um soco ilegal na nuca. O golpe
aturdiu-me. Não vi de onde viera, mas Gustavo
sim.
- Foi o número doze - disse-me enquanto a minha
cabeça andava à roda.
- Não te preocupes -sussurrou -, eu trato dele.
Instantes depois, formou-se um "reagrupamento",
quando jogadores das duas equipes se
engancharam numa disputa feroz para ficar com a
posse da bola. De repente, vi o número 12 sair
daquele emaranhado de corpos a cambalear e cair
para trás como uma árvore caída. Gustavo passou
por cima do número 12 caído eaproximou-se de
mim. Fez-me um aceno de cabeça prosaico. Só disse:
- Pronto. Gustavo era um jovem idealista e
compassivo que muitas vezes trabalhava com os
jesuítas nos bairros da lata de Montevideu. Hoje,
demonstra a mesma preocupação pelo bem-estar
dos outros e isso faz dele um amigo forte e
generoso. Dirige uma grande empresa de produtos
químicos, colabora activamente em várias
organizações comunitárias, é presidente da
Associação de Química do Uruguai e vice-
presidente do Old Christians Rugby Club. É
divorciado, tem quatro lindos filhos do primeiro
casamento e, como mora apenas a poucos
quarteirões, vejo-o muitas vezes e à família.
Carlitos Paez, outro dos meus amigos favoritos,
continua tão irreverente, tão afectuoso e
absolutamente cativante como era todos os dias na
montanha. Adoro-o pela sua criatividade e humor
insultuoso e pelo afecto que sempre dedicou às
minhas filhas, que estão especialmente ligadas a ele,
atraídas pela sua personalidade magnética desde
bebés. Carlitos já enfrentou mais do que a sua
quota-parte de desafios na vida. O primeiro
casamento terminou passados apenas dois anos e
desde então é solteiro. Há cerca de quinze anos
mergulhou fundo no vício do álcool e das drogas e
todos percebemos que tínhamos de fazer alguma
coisa. Uma tarde, Gustavo e eu aparecemos em casa
de Carlitos. Dissemos-lhe que o íamos levar para
um hospital de reabilitação onde ficaria até ter
recuperado totalmente. Ele ficou chocado com esta
confrontação e, ao princípio recusou-se a ir, mas nós
dissemos-lhe que a decisão já não era dele. Estava
tudo tratado, explicámos e mostrámos-lhe, com a
expressão dos nossos rostos, que não valia a pena
resistir.
Felizmente, Carlitos recuperou completamente.
Tem estado sóbrio desde então e agora dedica o seu
tempo como voluntário a aconselhar pessoas que se
batem contra o vício e abuso de drogas. Trabalha
como executivo numa empresa de relações públicas
em Montevideu. Tem uma paixão tal pelo golfe que
recentemente comprou uma casa que ladeia o
fairway de um clube de golfe.
Mas a sua maior paixão ultimamente é a neta,
Justine, filha da sua filha Gochi. O mundo dele gira
à volta desta bebé e é bom ver a alegria que ela lhe
traz. Uma vez, Carlitos escreveu-me: "Continuamos
a seguir o nosso caminho com a certeza de que a
vida vale a pena ser vivida, de que nada é
impossível se existir afecto e solidariedade, se
tivermos pessoas dispostas a ajudar [os que]
precisam." Carlitos sobreviveu a mais de uma
provação na vida, mas aprendeu a encontrar a
felicidade e fico sempre contente por estar com ele.
Alvaro Mangino era um dos rapazes mais novos no
desastre e, talvez por causa disso, sempre tive um
sentimento especial de protecção em relação a ele
quando estávamos nas montanhas. Transformou-se
num homem de grande senso comum e calma
interior que aprendeu a pôr aquela provação para
trás das costas e, embora tendo aprendido muito
com a experiência, seguiu a sua vida. Está casado há
muitos anos com a mulher, Margarita, e criou
quatro crianças. Viveu durante muitos anos no
Brasil, mas regressou recentemente a Montevideu,
onde trabalha para uma importante empresa de
aquecedores e ares condicionados, e faz parte do
conselho do Old Christians. É um amigo leal e
constante e estou contente por o ter outra vez perto
de casa. Álvaro é particularmente íntimo de outro
dos meus bons amigos, Coche Inciarte, que deve ser
o mais calmo, mais amável e mais ponderado de
todos os sobreviventes. Coche tem uma natureza
naturalmente dócil e pacífica; posso honestamente
dizer que nunca o ouvi levantar a voz. Fala com
grande eloquência natural e inteligência mordaz,
mas, embora brinque e troce com muita frequência,
tem uma profunda compreensão emocional pelo
que sofremos e nunca esconde a proximidade que
sente por nós. Coche casou com a sua namorada de
infância Soledad, que pensara tê-lo perdido nas
montanhas. A reunião dos dois foi um milagre e
Coche nunca esqueceu a maravilha que é tê-la e aos
três filhos que criaram.
Durante muitos anos, Coche, que cria gado leiteiro,
foi um dos maiores produtores de lacticínios no
Uruguai. Recentemente, vendeu as suas acções e
reformou-se para passar mais tempo com a família e
para se dedicar à sua grande paixão - a pintura.
Coche é um artista muito talentoso. Um dos seus
quadros está pendurado no meu gabinete e penso
em Coche sempre que olho para ele, pois o seu
trabalho artístico revela a mesma profundidade,
bondade e dignidade que fazem dele um amigo tão
valioso. Como membro do triunvirato de líderes
conhecido como "os primos", Eduardo Strauch foi
uma figura importante nas montanhas. O seu
raciocínio claro e deliberado acrescentou
estabilidade e orientação à nossa luta diária pela
sobrevivência. Não mudou muito desde os Andes:
calmo e senhor de si, homem de poucas palavras,
mas que vale sempre a pena escutar. Eduardo e a
mulher, Laura, têm cinco filhos. É um arquitecto de
renome em Montevideu que construiu muitos belos
edifícios na cidade, incluindo a minha primeira
casa. Daniel Fernandez, primo de Eduardo, ainda
possui o humor e carisma que usava para aliviar as
intensas pressões e medos que enfrentávamos nos
destroços da fuselagem. Daniel é um poderoso
contador de histórias e tem a habilidade para
capturar a imaginação do público quando fala.
Soltam-se sempre fagulhas quando Daniel, membro
do partido político Blanco, e Roberto, um Colorado
ferrenho, discutem a política uruguaia. São ambos
teimosos e adoram implicar um com o outro. As
suas discussões acabam inevitavelmente num
impasse mas, independentemente do assunto, são
sempre entrelaçadas cora humor e todos
apreciamos o espectáculo. Daniel dirige uma bem-
sucedida empresa de computadores e tecnologia
sedeada em Montevideu. Ele e a mulher, Amália,
têm três filhos maravilhosos. Sempre admirei Pedro
Algorta, o grande amigo de Arturo Nogueira, pela
sua inteligência, espírito vivo e pensamento
independente. Não vejo Pedro tanto como gostaria,
porque vive na Argentina, onde trabalha como
administrador-geral de um grande produtor de
cervejas e outras bebidas. Mas ele comprou
recentemente um rancho no Uruguai e espero que
isto me permita vê-lo com mais frequência. Ele e a
mulher, Noel, têm duas filhas e um filho, todos a
estudar ou a trabalhar no estrangeiro. Nos Andes,
nenhum dos sobreviventes era tão calmo e senhor
de si como Bobby François. Tenho a certeza de que
estava tão assustado como qualquer de nós, mas
parecia determinado a enfrentar o seu destino com
o mínimo drama. "Se morrermos, morremos",
parecia dizer. "Por que gastar energia a
preocuparmo-nos com isso?" Tem vivido a sua vida
mais ou menos com a mesma atitude e saiu-se bem.
Bobby tem um rancho e leva um estilo de ritmos
lentos e simples que combinam com ele. Passa o dia
na sela, a cavalgar sozinho nos espaços abertos, a
vigiar o gado sob os céus imensos das planícies
uruguaias. Tem cinco filhos da mulher Graciana.
Passam metade do tempo no rancho, a outra
metade em Carrasco, onde Bobby é particularmente
chegado a Coche e Roy Harley. Javier, o único
sobrevivente além de mim que perdeu um familiar
na montanha, lutou para recuperar da morte de
Liliana e encontrou forças na sua forte fé católica e
no amor dos quatro filhos que ele e Liliana
partilhavam. Depois de sofrer pela mulher perdida
durante anos, Javier conheceu e casou com a
segunda mulher, Ana Maria, de quem tem agora
mais quatro filhos! Durante muitos anos foi
executivo numa grande tabaqueira - uma empresa
fundada pela família de Panchito -, mas está agora
confortavelmente reformado. De todos os
sobreviventes, Javier é o que está mais convencido
de que foi a mão de Deus que nos tirou das
montanhas. Certa vez escreveu-me: Deus deu-nos
vida outra vez nas montanhas e tornou-nos irmãos.
Quando pensávamos que estavas morto, Ele trouxe-
te de volta à vida para que depois, com Roberto, se
tornassem os Seus mensageiros à procura da
salvação de todos nós.
Tenho a certeza de que por alguns momentos Ele
vos carregou nos braços... Javier e eu temos ideias
diferentes de Deus e do papel que Ele
desempenhou na nossa sobrevivência. Mesmo
assim, respeito a humildade e sinceridade da sua fé
e a forma como reconstruiu a sua vida depois da
devastadora perda. Calmo e equilibrado, é uma das
forças estabilizadoras do grupo e sinto sempre um
sentimento de paz quando estou com ele. Antonio
Vizintin, que escalou corajosamente a montanha
comigo e com Roberto, enfrentou muitos desafios e
dificuldades na vida. O primeiro casamento acabou
em divórcio e a segunda mulher morreu de forma
trágica. Casou-se uma terceira vez e todos rezamos
para que tenha um futuro mais feliz à sua frente.
Tintin, como ainda lhe chamamos, tem uma filha e
um filho, ambos do segundo casamento. É um bom
pai e tem tido sucesso no seu trabalho como
importador de químicos e outros produtos para a
indústria dos plásticos. Tintin ainda vive em
Carrasco, mas é um pouco solitário e, nos últimos
anos, temo-lo visto menos do que gostaríamos.
Mesmo assim, será sempre um de nós e gostaríamos
de o ver mais vezes, apesar de deixar o filho, um
belo jogador de râguebi, jogar no Old Boys Rugby
Club, o velho arqui-rival do Old Christians. Roy
Harley é um dos sobreviventes em que penso com
muita frequência.
Durante mais de trinta anos fiquei incomodado com
a forma como fora retratado em narrativas
anteriores sobre o acidente, sobretudo no magnífico
livro de Piers Paul Read, Alive. Sinto-me intrigado
pela forma como o tratei por vezes na montanha. É
verdade que Roy ficou emocionalmente fragilizado
nos Andes, mas também é verdade que era um dos
mais jovens do grupo e que esteve mais perto de
morrer do que qualquer dos outros que
sobreviveram. O facto de ter as emoções à flor da
pele não significa que fosse mais fraco ou estivesse
mais amedrontado do que os outros. Ninguém
podia estar mais assustado do que eu e, de facto,
percebi, ao escrever este livro, que foi o meu medo
que alimentou a raiva e frustração que sentia contra
Roy. O livro Alive baseou-se muito em extensas
entrevistas feitas com todos os sobreviventes e
arrependo-me de que nessas discussões possamos
ter traçado um perfil demasiado simples da luta
particular de Roy. Mas éramos jovens na altura e as
coisas pareciam muito mais simples. Em Milagre
nos Andes tentei acertar as coisas: a meu ver, Roy
Harley não era cobarde nem fracote. Era e será
sempre um de nós, um sobrevivente, um amigo de
confiança e um elemento importante do nosso
círculo. Ao longo dos anos demonstrou repetidas
vezes ser um homem de integridade e força, e é
uma das pessoas com que sei que posso sempre
contar. Hoje é um engenheiro de sucesso e trabalha
para um grande fabricante de tintas. Vive em
Montevideu com a mulher, Cecilia -irmã da mulher
de Roberto, Laura -, duas lindas filhas e um filho
que joga no Old Christians. Roy, um grande
defensor da boa forma física, quase não envelheceu,
e todos invejamos a sua barriga chata e músculos
firmes, pois a maioria de nós viu os músculos
amolecerem e as barrigas crescerem. Alfredo
"Pancho" Delgado é outro sobrevivente cuja história
deve ser esclarecida. Em Alive, Pancho aparece
como uma personagem manipulativa e desonesta,
que tramava por trás das nossas costas para
aumentar o seu conforto, muitas vezes à custa de
outros. Não há dúvida de que Pancho fazia estas
coisas, mas, na realidade, todos o fazíamos. Todos
nós, por vezes, agíamos de forma egoísta - tentando
roubar um pouco mais de comida ou cigarros, fugir
ao trabalho, ou arranjar as roupas mais quentes e os
lugares mais confortáveis para dormir. Nenhum de
nós era santo. Sobrevivemos não porque fôssemos
perfeitos, mas porque o peso acumulado da nossa
preocupação uns com os outros superava em muito
o nosso egoísmo natural. Porque Pancho se
destacou nesse sentido é um mistério. Tinha uma
inteligência arguta e uma eloquência natural e
talvez nos ressentíssemos com o seu talento para se
safar com as transgressões. Em qualquer dos casos,
não está correcto que Pancho tenha sido separado
desta forma e tivesse tido de arcar com o peso desta
injusta reputação. A verdade é que Pancho sempre
foi e sempre será um de nós e, como os outros,
gozará sempre da minha amizade, da minha
confiança e do meu respeito. Pancho, que vive perto
de mim em Carrasco, é um advogado proeminente.
Está casado com a sua namorada de sempre,
Susana, de quem tem dois filhos e duas filhas. O
mais velho, Alfredo, é capitão da equipe principal
do Old Christians. Ramon "Moncho" Sabella, que
nunca casou, é o solteirão do grupo. Apesar dos
nossos esforços constantes para o apresentar a
várias boas pretendentes, continua um feliz homem
solteiro que jura estar simplesmente a divertir-se
tanto que não pode assentar. Quando não está em
festas na praia de Punta dei Este, ou nos clubes de
Montevideu, Moncho trabalha no negócio do
imobiliário e num novo empreendimento, em
parceria com o colega sobrevivente Fito Strauch:
produção de ostras. Moncho é um bom amigo,
ainda com bom faro para mulheres bonitas e é
sempre uma companhia divertida. Fito Strauch foi
um dos homens mais importantes na montanha e
nenhum de nós, eu muito menos, esqueceu as suas
inúmeras contribuições para a nossa sobrevivência.
Como Javier, Fito acredita firmemente que foi a
intervenção pessoal de Deus na montanha que nos
salvou e que devíamos viver as nossas vidas como
Seus mensageiros. Por vezes sinto que Fito está
descontente comigo pela forma como vivo a minha
vida; que pensa que minimizei ou até desprezei o
papel de Deus no nosso resgate e que não fui fiel às
lições espirituais da nossa provação. Digo-lhe que
não tenho a certeza de como espalhar a mensagem
de Deus, porque não tenho a certeza de qual é a
mensagem. Fito poderá dizer que a lição dos Andes
é que Deus nos salvou porque nos ama. Mas Ele não
amava a minha mãe e a minha irmã e os outros
vinte e nove que morreram? O que aconteceu nos
Andes transformou-me intensamente e deu-me uma
forma de abordar a vida mais profunda e mais
espiritual do que tinha antes, mas para mim, a lição
da montanha é que a vida é preciosa e deve ser
vivida plenamente, do coração e com amor. Não
quero que a minha vida seja definida pelo que me
aconteceu há trinta anos; sinto que escrevo o guião
da minha vida todos os dias. Para mim, isso não é
negar as lições espirituais que aprendemos na
montanha, mas sim a perfeita realização das
mesmas. Fito e eu provavelmente nunca
concordaremos sobre essa questão, mas, para mim,
isso não diminui o respeito e amizade que sinto por
ele e, quando nos encontramos, sempre nos
abraçamos como irmãos. Fito vive no campo, onde
tem e dirige um rancho de gado. Tem quatro filhos
da mulher, Paula. Sergio Catalan, o camponês
chileno que foi o primeiro a encontrar-me e a
Roberto nas montanhas e cuja reacção rápida e
competente levou directamente ao nosso resgate e à
salvação das outras 14 jovens vidas, não é,
tecnicamente, um dos sobreviventes. Mas faz
definitivamente parte da nossa família e
mantivemo-nos em contacto com ele ao longo dos
anos, visitando-o na sua aldeia no Chile, ou
mandando-o vir de avião para estar connosco em
Montevideu. Continua o mesmo homem humilde,
gentil e imensamente digno que cavalgou durante
dez horas para conduzir a equipe de resgate até
onde estávamos em Los Maitenes. Vive uma vida
simples, passando semanas seguidas nas pastagens
de montanha, só com o cão por companhia,
enquanto cuida do gado e das ovelhas. Sérgio e a
mulher criaram nove filhos e impressiona-me que,
mesmo com os recursos modestos de um pastor das
montanhas, tenha conseguido enviar a maioria
deles para a faculdade e vê-los a todos estabelecidos
em bons casamentos e empregos. Em Março de
2005, a mulher de Sérgio, Virgínia, telefonou-me a
convidar-nos para o seu aniversário de cinquenta
anos de casamento. Seria uma surpresa para Sérgio,
disse ela. Não lhe diria que nós vínhamos.
Concordámos, e um dia antes da comemoração,
Roberto, Gustavo e eu, com as nossas famílias,
estávamos a guiar pela estrada estreita e pedregosa
que levava à aldeia de Sérgio. Os contrafortes
acidentados e despidos dos Andes erguiam-se à
nossa volta enquanto subíamos sem parar, quando
alguém viu uma figura a cavalo. Vestia o traje
tradicional dos vaqueiros chilenos - jaqueta curta,
botas pontiagudas, chapéu de abas largas.
- É o Sérgio - disse alguém.
Encostámos. Roberto, Gustavo e eu saímos dos
carros e andámos em direcção ao cavaleiro. Ao
princípio ele estava desconfiado, como quando nos
conhecera pela primeira vez, mas quando nos viu, a
Roberto e a mim, os olhos arregalaram-se e
encheram-se de lágrimas. Antes de poder falar, dei
um passo em frente.
- Desculpe, meu bom homem, mas estamos
perdidos de novo. Poderia ajudar-nos mais uma
vez? Quando estou com os meus colegas
sobreviventes, dizemos em silêncio tudo o que
precisa de ser dito sobre o tempo que passámos nas
montanhas e, durante muitos anos, foi suficiente
saber que estes amigos e a minha família entendiam
o que enfrentáramos. Tinha pouco interesse em
partilhar a minha história pessoal com alguém fora
do nosso círculo e, embora por vezes desse
entrevistas a revistas e jornais, ou participasse em
documentários que comemoravam os vários
aniversários do desastre, fui sempre cauteloso em
relação a revelar demasiado de mim mesmo com
estranhos. Acreditava que tudo o que o público
precisava saber fora coberto, de forma magistral, em
Alive. É verdade que o livro se concentrava quase
por completo nos eventos factuais da nossa
provação; nenhum leitor podia ter senão uma vaga
ideia da minha luta interior ou das emoções
violentas que me levaram a sobreviver. Mas não
estava interessado em revelar essas coisas de forma
demasiado profunda.
Os leitores que ficassem com o drama, o horror e a
aventura. Eu guardaria para mim as memórias mais
íntimas, mais dolorosas. Com o passar dos anos, fui
abordado mais de uma vez por agentes e editores
que me pediam para contar de novo a história, da
minha perspectiva pessoal. Recusei sempre. Essas
pessoas viam-me como um herói e sabia que
queriam celebrar o desastre como uma história
inspiradora de triunfo e perseverança. Mas estavam
equivocadas. Eu não era um herói. Estava sempre
assustado, fraco e confuso, sempre impotente. E
pensar no desastre - a intensidade do sofrimento, o
desperdício obsceno de tantas vidas inocentes - não
trazia nenhuma sensação de triunfo ou de glória
para o meu coração. A nossa história pode ter
inspirado milhões de pessoas no mundo inteiro
como a história do poder do espírito humano, mas,
para mim, aqueles meses nas montanhas foram dias
de agonia, horror e perda irreparável. O desastre
não era algo a ser celebrado. Era uma coisa a ser
superada e tentara fazê-lo o melhor possível,
preenchendo a minha vida com a riqueza da
amizade e da família, de modo que todas essas
partes despedaçadas da minha vida estavam
enterradas por baixo do acumular de uma vida de
felicidade e amor. E estava feliz por ser assim. Não
quero dizer que negasse o passado - mesmo hoje, as
minhas recordações dos Andes tocam-me todos os
dias. Só queria evitar que a tristeza e o sofrimento
moldassem o futuro. Estava a seguir o conselho que
o meu pai me dera a seguir ao resgate. Olha em
frente, Nando. Não deixes que isto seja a coisa mais
importante que te aconteceu. Não queria viver a
minha vida como um sobrevivente. Não queria que
o desastre definisse a minha vida. Tirei as lições que
pude daquela provação. Saboreei as amizades que
cresceram dela e sempre honrei a memória dos que
morreram. Mas não podia glorificar ou romantizar
o que nos acontecera e não tinha certamente desejo
de remexer nessas memórias sombrias com a
honestidade inabalável que seria necessária para
escrever um livro. Porquê, então, passados cerca de
trinta anos, concordei em escrever o relato que
agora têm nas mãos? A resposta começa em 1991,
com um telefonema de um homem chamado Juan
Cintron. Cintron estava a organizar uma
conferência para jovens empreendedores na cidade
do México e decidira que a minha história
constituiria uma grande prelecção de motivação
para o encontro, por isso contactou-me por telefone
em Montevideu e pediu-me para proferir o discurso
de apresentação. Eu não tinha qualquer desejo de
transformar as minhas experiências numa conversa
de encorajamento, por isso recusei delicadamente.
Mas Juan não aceitava uma recusa. Telefonou-me
repetidas vezes, suplicando-me que reconsiderasse.
Por fim voou até Montevideu para me implorar
pessoalmente. Impressionado com a sua
persistência e entusiasmo, sucumbi à persuasão e
concordei em fazer a prelecção. Nos meses que se
seguiram, batalhei para criar o tipo de discurso que
Cintron queria. Pedira-me que procurasse na
história lições que prendessem a atenção de jovens
empreendedores ambiciosos à procura de
pensamentos e ideias que os ajudassem a prosperar
- pontos sobre liderança, inovação, trabalhar em
equipe e resolução criativa de problemas.
Aconselhara-me a manter a apresentação clara e
focada no tema. São pessoas muito ocupadas e
impacientes, disse. Se andar com demasiada
lentidão, perderá a sua atenção.
Quando trabalhava no discurso, quando tentava
retirar de tanta agonia e dor o tipo de dicas que
pudessem ajudar um público de estranhos a
melhorar os seus resultados, arrependi-me
profundamente de ter aceitado fazer a palestra. Mas
agora não havia volta a dar. Por fim o dia chegou e
vi-me no palco na cidade do México, sob os
holofotes, com as notas para o meu discurso no
pódio à minha frente. Já fora apresentado, os
aplausos de circunstância tinham acabado, e estava
na altura de começar.
Eu queria falar mas, por mais que tentasse, as
palavras não saíam. O meu coração batia, suores
frios escorriam-me pelo colarinho da camisa e as
minhas mãos tremiam. Olhei para as minhas notas.
Não faziam sentido. Comecei a remexer nos papéis.
As pessoas agitavam-se nas cadeiras. O silêncio
constrangido ficou tão forte que soava como um
trovão e, mesmo quando o pânico estava prestes a
subjugar-me, ouvi a minha voz:
- Eu não devia estar aqui - disse de repente. Devia
estar morto num glaciar nos Andes.
E então, como se tivesse aberto uma represa,
despejei a minha história, não poupando nenhuma
emoção e não retendo nada. Falei simplesmente do
coração. Guiei-os por todos os momentos
importantes da provação para que vivessem tudo
como eu vivera, a dor feroz que senti quando Susy
morreu, o terror quando ouvimos dizer que a busca
fora cancelada e o horror de mastigar a carne dos
nossos amigos mortos. Trouxe-os connosco para
dentro da fuselagem na noite da avalanche e nos
dias horríveis que se seguiram. Levei-os pela
montanha acima e mostrei-lhes a vista devastadora
no topo, depois conduzi-os, comigo e com Roberto,
pelo trilho, que tínhamos a certeza nos levaria até à
morte. Não disse uma palavra sobre criatividade,
trabalho de equipe ou resolução de problemas. Não
mencionei a palavra sucesso. Em vez disso, partilhei
com eles o que de súbito percebi ser a verdadeira
lição da minha provação: não foi esperteza, nem
coragem, nem qualquer outro tipo de competência
ou conhecimento que nos salvou, foi tão-somente
amor, o nosso amor uns pelos outros, pelas nossas
famílias, pelas vidas que queríamos tão
desesperadamente viver. O nosso sofrimento nos
Andes varrera tudo o que era trivial e pouco
importante. Todos percebemos, com uma clareza
difícil de descrever, que a única coisa crucial na
vida é a oportunidade de amar e ser amado. Nas
nossas famílias, nos nossos futuros, já tínhamos
tudo o que precisávamos. Os dezasseis de nós que
tiveram a sorte de regressar às suas vidas nunca
esqueceram isto. Ninguém deveria esquecer. Falei
durante mais de noventa minutos, embora tenham
parecido apenas cinco e, quando acabei, a sala
encheu-se de um silêncio pesado. Durante vários
segundos, ninguém se mexeu, depois os aplausos
cresceram e o público pôs-se de pé. Mais tarde,
estranhos de lágrimas nos olhos vieram abraçar-me.
Alguns chamaram-se de lado para me contarem
provações que tinham enfrentado nas suas vidas,
lutas com doenças, luto, divórcio, vícios. Senti uma
poderosa ligação com estas pessoas. Não estavam
simplesmente a compreender a minha história;
estavam a transformá-la na sua. Isso encheu-me de
uma grande sensação de paz e propósito e, embora
não tivesse entendido completamente estas emoções
na altura, sabia que queria sentir-me daquela forma
de novo. Depois do sucesso do discurso na cidade
do México, recebi convites para fazer palestras em
todo o mundo, mas as minhas filhas ainda eram
pequenas e as minhas obrigações profissionais eram
complicadas, por isso só pude aceitar alguns desses
convites. À medida que os anos iam passando e
arranjava mais tempo, comecei a discursar com
mais frequência. Hoje, falo para públicos no mundo
inteiro, embora as minhas responsabilidades em
casa ainda me obriguem a ser muito selectivo. E
cada vez que falo, faço simplesmente o que fiz da
primeira vez: conto a minha história e partilho a
elementar sabedoria que adquiri. O resultado é
sempre o mesmo, uma explosão de afecto, gratidão
e aquele poderoso sentimento de ligação. Certa vez,
depois de uma palestra, uma jovem pediu para falar
comigo. "Há alguns anos estava a fazer marcha
atrás para sair da garagem", disse. "Não sabia que a
minha filha de dois anos estava atrás do carro.
Passei-lhe por cima e ela morreu. A minha vida
parou naquele momento. Desde então, não consigo
comer, nem dormir, nem sequer pensar em nada
senão naquele momento. Tenho-me torturado com
perguntas. Por que é que ela estava ali? Por que é
que eu não a vi? Por que é que não fui mais
cuidadosa? E, sobretudo, Por que é que isto
aconteceu? Desde aquele momento que tenho
estado paralisada de culpa e dor e o resto da família
tem sofrido com isso. A sua história mostra-me que
tenho estado enganada. É possível viver, mesmo
quando se sofre. Sei agora que tenho de continuar.
Tenho de viver pelo meu marido e pelos meus
outros filhos. Mesmo com a dor que sinto, tenho de
encontrar forças para o fazer. A sua história faz-me
acreditar que é possível." Sem palavras, envolvi-a
nos meus braços e abracei-a. Naquele momento, um
pensamento pouco claro que andara a pairar na
minha mente, assumiu uma evidência penetrante.
Percebi que a minha história é a história dela; é a
história de todos os que a ouvem. Esta mulher
nunca sentiu uma rajada de vento abaixo de zero.
Nunca cambaleou no meio de um temporal a alta
altitude, nem viu com horror o corpo enfraquecer
de fome. Mas poderia haver alguma dúvida de que,
no que é mais importante, sofrera tanto quanto eu?
Sempre pensara na minha história como uma coisa
única, algo tão extremo e revoltante que só os que lá
tinham estado podiam genuinamente entender o
que passáramos. Mas na sua essência -a essência da
emoção humana - é a história mais familiar do
mundo. Todos nós, às vezes, enfrentamos o
desespero e a falta de esperança. Todos sentimos
dor, abandono e perda esmagadora. E todos, mais
cedo ou mais tarde, enfrentaremos a inevitável
proximidade da morte. Enquanto abraçava esta
triste mulher, uma frase formou-se nos meus lábios.
"Todos temos os nossos próprios Andes", disse-lhe.
Agora, passados mais de dez anos de prelecções
públicas, depois de ver a minha história ecoar,
repetidas vezes, em milhares de pessoas em todo o
mundo, compreendo que a ligação que sinto com o
público tem as suas raízes em algo mais profundo
do que a sua admiração pelo que fiz para
sobreviver. Vêem, na minha história, as suas
próprias lutas e medos materializando-se num
cenário surreal, numa escala épica.
A história arrepia-as, mas também as encoraja,
porque percebem que, mesmo em face do tipo mais
cruel de sofrimento e contra todas as expectativas,
uma pessoa vulgar pode perseverar. Satisfaz-me
profundamente que tantas pessoas tenham
encontrado força e conforto nas coisas que tenho a
dizer, mas elas deram-me muito em troca.
Mostraram-me que há mais na minha história do
que dor e tragédia sem sentido. Ao usar o meu
sofrimento como fonte de inspiração e
tranquilização, ajudaram a curar as minhas
memórias feridas. Vi que a minha mãe, a minha
irmã e os outros não morreram em vão, e que o
nosso sofrimento resulta realmente em algo
importante, nalgum tipo de sabedoria, que pode
tocar os corações de seres humanos no mundo
inteiro. Os ouvintes também me comovem. Extraio
tanto amor e sentido de realização da ligação que
sinto com eles, como se estivéssemos unidos numa
rede humana de compreensão, como se cada pessoa
tocada pela minha história enriquecesse e ampliasse
a minha vida. Espanta-me que seja o mesmo
homem que outrora não gostava de falar sobre os
Andes, porque agora tenho uma paixão por
partilhar a história pelo maior número de pessoas
possível, e foi dessa paixão que nasceu o desejo de
escrever este livro. Comecei a escrevê-lo, no meu
coração, há vários anos, e finalmente pareceu
chegada a altura de colocar os pensamentos no
papel. Foi uma experiência notável - dolorosa,
alegre, humilde, surpreendente e muito gratificante.
Tentei ser o mais sincero possível ao escrever esta
narrativa e agora ofereço-a como um presente: Ao
meu pai, para que ele possa ver, em sólido detalhe,
o que passei e como o meu amor por ele foi o
verdadeiro poder que me salvou. Aos meus colegas
sobreviventes, para que possam saber o amor e
respeito que sinto sempre por eles. A minha mulher
e às minhas filhas, para que possam ficar ao meu
lado nas montanhas, dia a dia, e ver que, mesmo
sendo apenas uma parte do meu distante futuro,
cada passo que dei foi um passo para me aproximar
delas. E, finalmente, aos que estão ligados a mim
pelo sofrimento e pelas alegrias e desapontamentos
da vida - ou seja, a todos os que lerem este livro.
Não sou um homem sábio. Cada dia me revela o
pouco que sei da vida, e como posso estar errado.
Mas há coisas que sei serem verdadeiras. Sei que
vou morrer. E que a única resposta sensata a tal
horror é amar. Antes de morrer, Arturo Nogueira,
um dos mais corajosos de todos nós, disse repetidas
vezes: "Mesmo aqui, mesmo quando sofremos, a
vida vale a pena ser vivida..." O que ele queria dizer
era que mesmo que tudo nos tenha sido tirado,
ainda podíamos pensar nos nossos entes queridos,
mantê-los no coração e acarinhá-los como o tesouro
das nossa vidas. Como todos, Arturo descobrira que
só isto importa. A minha esperança é que o leitor
não leve tanto tempo a perceber os tesouros que
possui. Nos Andes vivíamos a contar as batidas do
nosso coração. Cada segundo de vida era uma
dádiva, que resplandecia de propósito e significado.
Tenho tentado viver dessa forma desde então, e isso
encheu a minha vida de incontáveis bênçãos. Insto-
o a fazer o mesmo. Como costumávamos dizer nas
montanhas: "Respira. Respira mais uma vez.
Enquanto respirares, estás vivo." Passados todos
estes anos, este é o melhor conselho que posso dar:
Saboreie a sua existência. Viva cada momento. Não
desperdice uma respiração.

AGRADECIMENTOS
Gostaria de expressar a minha gratidão a amigos e
colegas, sem cujacontribuição este livro não teria
sido possível:Aos meus agentes Stephanie Kip
Rostan, Elizabeth Fisher, Daniel Greenberg eJim
Levine pelos sábios conselhos.A minha editora,
Annik LaFarge, pelo entusiasmo e experiência e
pela paixão ecuidado com que orientou o
nascimento deste livro.A Vince Rause, cujo humor e
talento transformam o trabalho numa alegria e
aquem posso agora chamar amigo.A Gail e Kelly
Davis, que apoiaram este livro desde o início e cuja
amizadesempre apreciei muito.
Ao falecido Mark McCormack, um grande homem e
um grande amigo, que sempre me encorajou a
contar a minha história pessoal num livro.
Finalmente segui o seu conselho. A Jackie Stewart, à
mulher Helen e aos filhos Paul e Mark, que sempre
me fizeram sentir parte da família. A minha
amizade com Jackie tem sido uma grande bênção e
agradeço-lhe todas as lições sobre corridas, sobre
negócios e sobre a vida. A Bernie Ecclestone, que
me abriu tantas portas quando era novo e que,
como Jackie, me ensinou tantas coisas que me
transformaram no que sou hoje. Tenho orgulho de
poder dizer que é meu amigo.
Ao meu bom amigo Piers Paul Read, cujo soberbo
livro Alive foi o primeiro a revelar a história do
desastre dos Andes ao mundo, com honestidade,
sensibilidade e grande força. A todos os meus
colegas de equipe e amigos que morreram no
acidente. Nunca os esqueci e tentei viver a minha
vida em sua honra. Aos meus quinze colegas
sobreviventes, meus irmãos para toda a vida, que
são os únicos que podem entender verdadeiramente
o que sofremos. Sem a lealdade e solidariedade que
mostrámos uns pelos outros, nenhum de nós teria
escapado dos Andes. Ao Old Christians Rugby
Club e ao espírito do Old Christians, um espírito de
união e altruísmo, que nos uniu e deu a força e a
vontade comum de sobreviver. À minha irmã
Graciela, que representou um grande conforto para
mim após a nossa provação e de quem me tenho
sentido cada vez mais próximo com o passar dos
anos. À minha mulher Veronique e às minhas filhas,
Verónica e Cecília, pelo seu constante amor e apoio
e pela paciência com que suportaram as longas
horas que passei a trabalhar neste livro. Para mim,
são as coisas mais preciosas deste mundo. À minha
irmã Susy, de quem ainda sinto a falta, tanto quanto
nos primeiros momentos após a sua morte. À minha
mãe Xenia, cujo carinho, amor e sabedoria me
deram a força de que precisava para suportar o
insuportável... E ao meu pai, Seler, que me inspirou
na infância e que ainda hoje me inspira. Foi o meu
amor por ele, e nada mais, que me tirou daquelas
montanhas, e cada momento passado com ele desde
então tem sido uma bênção.
Quando fui abordado em relação à possibilidade de
trabalhar com Nando Parrado em Milagre nos
Andes, o meu primeiro impulso foi pensar se esse
livro seria necessário. Como milhões de outras
pessoas, ficara fascinado e inspirado pela saga do
Desastre dos Andes de 1972, mas o best-seller de
1973 Alive contara a história com tantos
pormenores e uma abrangência e força tão
definitivas, que me perguntei se haveria alguma
boa razão para contá-la de novo. Sabia que para este
novo livro conquistar um público teria de explorar
dimensões da história que Alive não estudara -
dimensões de emoção e de introspecção, do espírito
e do coração. Não faria sentido contar simplesmente
de novo os acontecimentos daquela provação.
Teríamos de colocar os leitores dentro da cabeça de
Nando, deixá-los ver através dos olhos de Nando a
aridez dos Andes e forçá-los a arrastar-se
desesperadamente nas suas botas de râguebi
estragadas pelas encostas geladas que Nando tinha
a certeza que seriam o seu túmulo. Teríamos de
largá-los com Nando e os seus amigos na
cordilheira sem vida, fazê-los sobreviver ao frio, ao
medo e à desolação. A história teria de ser contada
de dentro para fora, através do filtro emocional do
desespero de Nando, e isso só seria possível quando
Nando compreendesse que a melhor história que
podia contar não seria apenas sobre um jovem a
conquistar as montanhas; seria sobre um rapaz
vulgar que amava demasiado a vida para ser
derrotado por probabilidades impossíveis. Eu sabia
que para contar bem esta história seria preciso
sensibilidade e coragem. Nando teria de reabrir
velhas feridas. Teria de reviver, com os olhos bem
abertos, momentos de perda e horror que poucos
conseguem imaginar. Revelar-me-ia esses
momentos? Recordaria e exporia as suas memórias
mais pessoais e mais dolorosas? Que tipo de
homem era? Duro? Honesto? Tinha a inteligência
emocional necessária para entender como a
provação o transformara? E, após trinta anos de
reflexão, teria alguma coisa de útil a dizer sobre o
significado de tudo aquilo?
Eu não conhecia Nando na altura, mas sabia o tipo
de homem que teria de ser para escrever um livro
de que nos pudéssemos ambos orgulhar, e sabia
que esses homens não são fáceis de encontrar. Se
Nando não fosse aquele tipo de pessoa, se não
conseguisse iluminar a sua história com reflexões
significativas e o tipo mais corajoso de candura,
então o livro seria supérfluo e trabalhar nele seria
uma tarefa enfadonha. Os riscos pareciam elevados
e a prudência aconselhou-me a abalar antes de o
projecto avançar mais, mas algum tipo de intuição
persistente não me deixava afastar. Perdi noites de
sono a lutar com ela: quero dizer, e se afinal ele
fosse esse tipo de pessoa? No final a intuição venceu
e, quando Nando me ofereceu oficialmente o
trabalho, aceitei e fui ao Uruguai conhecê-lo.
Sentámo-nos na sala da sua casa de praia em Punta
del Este e, lentamente, começámos a conhecermo-
nos. Mostrei-lhe fotografias da minha família.
Conheci a mulher e as filhas. Brincámos com o seu
grande labrador preto, Sasha e, a dada altura,
quando pareceu o momento adequado, ele começou
a falar sobre os Andes. Era Verão na América do Sul
e, pela grande janela atrás dele, conseguia ver as
ondas verdes a rebentarem na praia. Mas quando
Nando começou a falar, esqueci a praia, as ondas e
o sol, porque já não estava em Punta del Este.
Estava ao lado de Nando na cordilheira coberta de
neve. A voz dele era suave, expressiva e sem
pressas, e recordo-me de ele sorrir amavelmente,
mesmo quando se lembrava de algum horror.
Recordou o momento em que enterraram a irmã na
neve e como os flocos de neve cintilavam nas faces
dela, antes de o rosto ficar coberto. Recordou o
pânico que sentiu quando ouviu a notícia de que as
tentativas de resgate tinham sido canceladas e como
tivera de se conter para não correr às cegas para o
vazio. Vi-o enterrado sob o peso esmagador da
avalanche, cansado de lutar, querendo ver como era
a morte, e, no topo do Monte Seler, onde a visão
cruel o devastou tão completamente que se
esqueceu de respirar durante mais de um minuto.
Ele cobriu tudo - as saudades de casa, o terror
constante, o lado perverso do frio em alta altitude, a
sensação da carne humana entre os dentes. Nando
olhava-me enquanto descrevia estas coisas e havia
uma urgência serena na sua voz. Ele queria que eu
entendesse. A história já foi contada antes, parecia
estar a dizer, mas não esta, não a minha história...
Falou durante mais de uma hora e depois recostou-
se no sofá e ficou em silêncio. Antes de poder
preparar-me para falar, ele abriu-se num grande
sorriso e encolheu os ombros modestamente. "Não
sei", disse suavemente, "acha que é o suficiente para
fazer um livro?" Naquele momento senti-me como
um idiota por ter duvidado da capacidade de
Nando em dar conta do recado. Senti-me abalado
ao perceber que eu teria de dar o meu melhor para
fazer justiça a esta história. A partir daquele
momento, tentei com todo o coração ajudar Nando
a escrever um livro digno da sua experiência, e
posso agora dizer que trabalhar com ele foi uma das
experiências mais ricas e gratificantes da minha
vida. Por isso, a prioridade aqui é expressar a
minha gratidão a Nando Parrado. Agradeço-lhe a
sua coragem, generosidade, visão e o bom humor, e
a grande dádiva da sua amizade. Mas, sobretudo,
agradeço-lhe ter-me confiado a sua história. É a
melhor história verdadeira que já ouvi e ter tido a
oportunidade de o ajudar a contá-la foi um
privilégio inesquecível. Tenho também o privilégio
de trabalhar com uma equipe excepcional na
agência Levine/Greenberg, incluindo Jim Levine,
Dan Greenberg, Arielle Eckstut, Elizabeth Fisher e,
especialmente, Stephanie Kip Rostan, cujo trabalho
árduo pôs este navio a navegar e cuja gentil
persistência evitou que partisse sem mim. A nossa
editora, Annik LaFarge, trouxe uma rara
combinação de cérebro e coração para o projecto e
não posso imaginar este livro sem ela. Começou por
ser a nossa defensora mais ferrenha, tornou-se uma
conselheira de confiança e acabou como amiga.
Agradeço-lhe a sua orientação e entusiasmo. Estou
também grato a Steve Ross, Amy Boorstein, Mary
Choteborsky, Genoveva Llosa, Luke Dempsey e a
toda a equipe da Crown por abraçarem este livro
com tanto profissionalismo; a Ernesto e Roselle
Trello que ofereceram apoio emocional e espaço
para trabalhar em horas de necessidade; a Gail
Davis, pelos seus esforços pioneiros para fazer este
livro acontecer; a Roy Harley, Coche Inciarte,
Álvaro Mangino e Gustavo Zerbino, por
partilharem as suas memórias, e a Ed West, pelos
bons conselhos e perspicácia irreverente e por uma
amizade que dura há quase quarenta anos. Por fim,
agradeço à minha mulher, Chris, que é a âncora da
nossa família com a sua força serena e infinita
paciência, e à minha filha, Carmela, que não é nada
paciente nem serena, mas que vive a vida com tanta
exuberância doce e graciosa que os meus dias são
repletos de sorrisos. As duas fizeram muitos
sacrifícios enquanto eu trabalhava neste livro e
agora dedico--lhes esta obra, cora amor.
Vince Rause

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