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CORACINI, M.J. E CARMAGNANI, A.M.

( Orgs) Mídia, exclusão e ensino: dilemas


e desafios na contemporaneidade.Campinas, SP : Pontes Editores, 2014. P.235-250

ISBN 978-857113-547-5

MEMÓRIA E DISCURSO: UM OLHAR SOBRE PROCESSOS FORMATIVOS DE


PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA1

Maria Bernadete Fernandes de Oliveira- UFRN

INTRODUÇÃO

Discutir ensino e processo formativo de docentes constitui ainda hoje


temática privilegiada para a reflexão acadêmica e para a produção do conhecimento no
campo da Linguística Aplicada. Os olhares sobre essa temática são os mais diversos
devido à própria dimensão e abrangência dos elementos envolvidos e implicados.
Grande parte das pesquisas sobre formação docente investiga a relação entre
tempo, trabalho e os saberes necessários a serem mobilizados e empregados na prática
cotidiana desses profissionais, seja no âmbito da formação inicial, sejam no que tange à
formação continuada e às atividades desenvolvidas em sala de aula. Outras, mais
propriamente no campo educacional, investem nas histórias de vida dos docentes,
priorizando a pesquisa autobiográfica.
Entre essas investigações, surgem mais recentemente pesquisas que
objetivam compreender as relações entre memória e formação de professores,
abordando a problemática de pontos de vista diferenciados. De um lado, aqueles que
buscam uma aproximação com os fazeres do cotidiano escolar (ROSA e RAMOS,
2008), uma forma, dizem as autoras, de escapar da presença do racionalismo que estaria
presente na abordagem clássica da produção de conhecimentos e que se refere
prioritariamente aos saberes docentes, saberes da prática, processos reflexivos, entre
outros. De outro, pesquisas como a de Barbosa (2009), que procuram delinear os
1
Uma primeira versão desse texto foi apresentada na Mesa-Redonda “Lugares de memória, discurso e
ensino”. III Simpósio Internacional Discurso, Identidade e Sociedade. Campinas. Unicamp. 2012.
contextos distantes e próximos que sustentam a produção dos discursos de licenciados
em sua relação com o papel que assumem as tradições culturais e históricas na
construção do discurso sobre a língua e sobre os saberes, necessários ao professor de
língua materna. Esse o caminho que iremos privilegiar em nossa reflexão.
Nesse artigo, o foco de nossas considerações endereça-se para a
compreensão de como a memória relaciona-se com o processo formativo de professores
e suas implicações para o ensino da língua. A organização de nossa reflexão tem como
ponto de partida uma revisão do conceito de memória em alguns pensadores na área das
Ciências Humanas, mais especificamente no campo dos estudos históricos; em seguida,
visitamos a noção de memória na perspectiva de uma teoria da linguagem, optando pela
compreensão apontada nos textos de M.Bakhtin e de alguns de seus comentadores 2; e,
finalmente, apresentamos alguns fragmentos de textos de pesquisadores da área dos
Estudos da Linguagem e de Licenciados em Letras, como exemplos de dizeres que
apontam para a relação entre as noções de memória discutidas nesse artigo e os
chamados saberes disciplinares (TARDIFF, 2002), presentes nas práticas discursivas
escolares dos processos formativos iniciais de docentes para o ensino de línguas.

REVISITANDO NOÇÕES DE MEMÓRIA


Os estudos da memória na contemporaneidade3 ultrapassam os limites de uma
interpretação que considera apenas sua natureza psicológica individual, considerando-a
como uma construção sócio-cultural (KONTOPODIS E MATERA, 2010). Grande e
relevante contribuição para essa noção de memória origina-se no campo da
historiografia, assumindo papel de destaque, nessa nova compreensão, o ponto de vista
de Halbwachs (2004/1950) e sua noção de que a memória individual constrói-se a partir
de uma memória coletiva, isto é, o entendimento de que todas as lembranças são
constituídas a partir do pertencimento a um grupo, não se restringindo a uma construção
individual da mente humana. A memória individual, naquela perspectiva, seria um
ponto de vista sobre a memória coletiva, em função do posicionamento do sujeito em
relação ao grupo e a experiência vivenciada em comum, elemento básico à sua
construção.

2
A opção pela perspectiva apontada por M.Bakhtin não significa ignorar a enorme contribuição da AD
francesa aos estudos sobre memória. Para maiores detalhes ver, entre outros, Pêcheux (1990, 1992);
Coracini (2010, 2011) e Orlandi (1992, 2011)
3
Para uma revisão aprofundada sobre os estudos da memória em uma perspectiva histórico-sócio-cultural
ver Smolka (2010)
Outros pesquisadores, relacionados mais diretamente à escola francesa, como
Pollack e Nora reelaboram essa noção, explorando aspectos igualmente importantes. No
caso de Pollack (1993), o foco da discussão dirige-se para a relação entre memória e
esquecimento, ressaltando-se a importância de memórias subterrâneas como partes
integrantes das culturas minoritárias e dominadas, em oposição à consideração
unicamente de uma memória oficial. Em suas reflexões, esse autor cita, como exemplo
de tentativa de silenciamento sobre o passado, depoimentos que tratam do processo de
desestalinização na ex-URSS, da história dos sobreviventes dos campos de
concentração e daqueles que versam sobre a colaboração dos alsacianos com o regime
nazista.

Portanto, diz ele, existem nas construções da memória coletiva, lembranças de


alguns fatos e silenciamento de outros que permanecem em zonas de sombra. Segundo
ele, se a memória, operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado
que se quer salvaguardar, integra-se em tentativas mais ou menos conscientes de definir
e de reforçar sentimentos de pertencimento, objetivando manter a coesão dos grupos e
das instituições que compõem uma sociedade, por outro lado, em alguns casos ela
poderia funcionar também com a intenção de dar sustentação à memória que se
configura como oposição ao ponto de vista canônico, este geralmente relacionado a
interesse do próprio Estado-nação. Dessa forma, de seu ponto de vista, seria preferível
falar de memória enquadrada em vez de memória coletiva.

Em Pierre Nora (1993), encontramos uma crítica mordaz ao esvaziamento da


noção de memória. Traçando uma diferença entre memória e história, afirma esse autor
que a memória é vida, sempre alcançada pelos grupos viventes, que está em evolução
permanente, enquanto que a história é a reconstrução sempre problemática e incompleta
daquilo que não é mais. Para ele, há tantas memórias quantos grupos existam,
enraizando-se aquelas no concreto, no espaço, no gesto, na imagem e no objeto. Assim
sendo, a memória é de ordem do vivido, enquanto que a História é apenas sua
reconstrução intelectual. Sugere a ideia de que, nos dias de hoje, a memória sobrevive
apenas como Lugares de Memória, lugares em todos os sentidos dessa palavra, ou seja,
em seus aspectos material, simbólico e funcional, discordando, portanto, da ideia de que
há memórias espontâneas. Os lugares de memória são lugares híbridos, mutantes e que
vivem de sua aptidão para a metamorfose, sem referentes concretos na realidade. O
lugar de memória recorta o espaço e tempo, neles tudo significando. É um lugar duplo,
pois, ao mesmo tempo em que se fecha sobre sua identidade, constantemente se abre na
extensão de suas significações.

Na perspectiva dos autores citados, a memória, de natureza eminentemente


psicológica, passa a ser compreendida como uma construção coletiva ou como lugares
de memória, ressaltando-se nessas noções a ideia de algo não fixo, mutável, em relação
aos pontos de vista que recortam as lembranças e as posições de sujeito.

No âmbito do referencial sócio-histórico-cultural, Smolka (2006), discutindo os


lugares de memória e a escola como espaço de lugares comuns, admite a possibilidade
de se conceber o discurso como lugar de memória, tomando como referência a
afirmação de Vygotsky de que a essência da memória humana reside no fato dos seres
humanos evocarem suas lembranças através dos signos, uma noção que remete para a
construção semiótica da memória humana. E aqui, lembramos Voloshinov (1988/1929)
quando afirma que, em seu entendimento, não há atividade mental sem expressão e que
o centro organizador da expressão situa-se no exterior. É a partir desses dois pontos de
vista, brevemente aqui expostos, que Smolka (2006) propõe que o discurso, atividade
semiótica humana mediadora no processo de constituição das funções superiores do ser
humano, seja entendido como um lugar de memória.

Esse posicionamento, ancorado na perspectiva sócio-histórico-cultural, é


também defendido por Kontopodis e Matera (2010), ao considerarem que os fenômenos
psicológicos não podem ser tratados independentes das interações sociais e das
atividades práticas que se realizam entre sujeitos. A memória, por exemplo, dizem eles,
depende da mediação social, pressupondo o uso de signos e instrumentos, os quais, por
definição, inscrevem-se no domínio do social, do histórico e do cultural.

Do que foi dito, podemos concluir que os estudos sobre a temática da memória,
seja no campo da historiografia, seja em outras áreas das Ciências Humanas, vem
merecendo outros enfoques, outras conceituações, destacando-se entre elas, a
abordagem sócio-histórica-cultural, implicando no fato de que a memória constrói-se
discursivamente e que não pode ser compreendida como um relato desinteressado e
acabado dos fatos, dos acontecimentos e das vidas pessoais.
Partindo, portanto da proposta de que o discurso pode ser compreendido como
um lugar de memória e que este lugar pode estar inscrito em enunciados verbais,
passamos a discutir essa problemática, no terreno dos estudos da linguagem, optando
pela perspectiva presente nos textos de M.Bakhtin4.
A discussão sobre memória, nos escritos daquele autor, surge no bojo de sua
reflexão sobre o papel da alteridade na criação artística, mais especificamente no que
tange à realização da atividade estética, configurada na relação entre autor-criador e
herói. Nesse sentido, emerge um dos pressupostos básicos do pensamento dos autores
inseridos no Círculo de Bakhtin5, qual seja a ideia de que ser é ser sempre em relação ao
outro, ou seja, a alteridade é constitutiva do ser humano (BAKHTIN, 2003/1923) 6. Essa
relação com a alteridade, decorrente do excedente de visão e da posição exotópica
ocupada pelo sujeito, permitindo-lhe ver no outro aquilo que esse outro não pode ver em
si mesmo, vai tornar possível a atividade estética por excelência, qual seja a de dar
acabamento ao total da obra e aos seus personagens, em seus aspectos espaciais,
temporais, semânticos, todos eles sempre atravessados pelo eixo axiológico. Ou seja, é o
outro que emoldura o eu e o insere em um contexto, a partir de seu posicionamento
externo e distanciado desse eu. Esse o movimento privilegiado da atividade estética.
Contudo, esse processo, realizado pela atividade estética, na esfera da criação
literária, ou seja, o acabamento de uma forma completa, implicando em uma visão total
da obra, de seus personagens, de seus mundos, realiza-se de forma diferenciada em
outras esferas da atividade humana, em outros processos de criação ideológica7. Nessas
esferas, não há autor-criador, não há aquele que dá acabamento à totalidade do ser, do
evento, o que há é um acabamento, sempre provisório, nunca do todo do eu, “mas
apenas alguns de seus atos” (BAKHTIN, 2003, p.11).
O fato é que, embora com realizações diferenciadas, a relação entre o eu e o
outro, em qualquer das esferas da atividade humana, respeitando suas especificidades,
qualifica o pressuposto bakhtiniano do primado da alteridade, no sentido de que tenho

4
A relação constitutiva entre linguagem, ação, realidade e sujeitos é explorada por todos aqueles
integrantes do chamado Círculo de Bakhtin, fazendo-se presente em vários textos, com destaque em
Voloshinov (1997/1926); Voloshinov/Bakhtin (1979/1929); e em Bakhtin (1990/1934).
5
A literatura pertinente considera como pensadores principais do Círculo de Bakhtin, o próprio Mikhail
Bakhtin, que deu nome ao grupo, Valentin Voloshinov e Pavel Medviedev (FARACO, 2009).
6
É importante ressaltar que a compreensão do ser humano em Bakhtin não se restringe ao nível
ontológico do ser. Está inserido em uma categoria ética. Isto é, o ser humano é aquele que não tem álibi
para ser (BAKHTIN, 2010/1919).
7
A noção de esfera da criação ideológica e de suas especificidades são tratadas com detalhes tratadas por
Voloshinov (1977/1926) e por Medviédev (2012/1928).
de passar pela consciência e posicionamento axiológico do outro para me constituir
como sujeito.
É no bojo da relação com a alteridade, no que diz respeito à construção do todo
temporal do outro, que se situa a noção de memória para aquele autor. Segundo ele
(BAKHTIN, 2003/1923), a forma temporal da vida interior do ser humano 8,
desenvolve-se a partir do excedente de visão temporal de outra consciência,
estabelecendo, a partir desse excedente, as fronteiras da vida interior, em uma relação
espacial-temporal trabalhada pelo autor-criador e que não está vinculada a um tempo
cronológico nem matemático, e sim a um tempo axiológico9.
Nessa relação espaço-tempo, instaura-se a memória sobre o outro, constituída como
um ponto de vista do acabamento axiológico, cujo atributo mais destacado diz respeito à
apreciação, de fora, exotopicamente, de um acontecimento já concluído. Propõe Bakhtin
que, na relação eu-para-mim10, a memória aparece como uma memória do futuro11,
enquanto que na relação com o outro, em geral ela se apresenta como uma memória do
passado.
Em outras palavras, o ser para mim mesmo significa, na perspectiva daquele autor,
ser ainda em construção, estando a unidade da existência desse ser vinculada a um
futuro, a um porvir, não a um passado. Diz ele, “a minha unidade não é do já-ser, mas a
unidade do meu ainda não ser [...], só no futuro está o centro real de gravidade da minha
determinação de mim mesmo” (BAKHTIN, 2003/1923, p. 115).
Assim é que, em Bakhtin (2003/1923), na construção temporal da vida interior
do outro, podemos vislumbrar duas noções de memória, ou poderíamos dizer, dois
modos de funcionamento da memória. De um lado, uma memória do passado, aquela do
autor-criador, que compartilha produtivamente do acabamento do todo de uma obra
artística, assumindo um sentido de finitude, característica própria dos gêneros
produzidos nessa esfera de criação. E, é assim que, enquanto componente da atividade
estética, a memória começa a atuar como uma força conclusiva, implicando que o
processo de acabamento pressupõe um processo de memorização. Contudo, mesmo

8
Bakhtin considera que a vida interior do ser humano pode ser compreendida do ponto de vista da alma-
a vida interior do outro possibilitando sua vivência pelo excedente de visão; e, do ponto de vista do
espírito- a minha vivência de minha própria existência. Apenas a primeira permite o acabamento estético.
9
A relação espaço-tempo-axiologia configura a noção de cronotopo para Bakhtin (1990/1938)
10
Em Para Uma Filosofia do Ato (BAKHTIN 2010/1919) afirma que os valores construídos
historicamente pela humanidade giram em torno da relação eu/outro, em três aspectos: eu-para-mim; eu-
para-o outro; e, o outro-para-mim.
11
Futuro para ele, não é uma categoria temporal vazia, mas uma categoria de sentido, embora ainda não
existente no plano dos valores, porque não é predeterminada.
sendo memória do passado, porque inscrita no processo de dar acabamento, de
realização de uma atividade estética, essa memória, independentemente da esfera de sua
criação, apresenta-se sempre com uma natureza produtiva, na medida em que a imagem
do eu apenas existe se o outro a cria e ainda pelo fato de que esta implica em uma
axiologia, apresentando-se como um posicionamento sobre um todo vivenciado.
No dizer de Geraldi (2003), a memória do passado tem a ver com o fato de que
na realização de uma atividade estética, o futuro da personagem e dos acontecimentos é
conhecido do autor criador, pela posição exotópica que esse ocupa e que lhe possibilita
a visão total da obra. Ou seja, a memória do passado, identificada como uma memória
construída a partir da atividade estética é sempre produtora de totalidades, nesse sentido
ela unifica todos os aspectos do objeto, sejam esses espaciais, temporais ou semânticos.
Contudo, sendo ao mesmo tempo um ponto de vista axiológico, na perspectiva
bakhtiniana, embora o aspecto factual e material do passado não possa ser modificado,
ao ser gravado pela memória, este pode ser sempre ressignificado. Isto é, a memória do
passado está sempre atravessada por valores, os quais, por sua vez, podem apontar para
relações de sentido que se referem, por exemplo, a transgressões ou esquecimentos.
Sem dúvidas, poderíamos dizer que essa noção de memória do passado e sua
possibilidade de ressignificação, a partir de posicionamentos axiológicos distintos,
mantêm relações dialógicas de concordância com aquelas formulações encontradas na
historiografia presente nos textos de Halbwachs, Pollak e Nora, autores aos quais
fizemos referência na secção anterior.
De outro lado, diz Bakhtin, “Para mim [o ser humano em sua vivência], a
memória é memória do futuro [...] só no futuro está o centro real de gravidade da minha
determinação de mim mesmo” (BAKHTIN, 2003, p.115). Ou seja, a memória do futuro,
relacionada à própria natureza inacabada do ser humano, evoca sua inscrição na ordem
do vivenciado, do acontecimento, da incompletude.
Kontopodis e Matera (2010) compartilham essa noção de memória, afirmando
que hoje, grande parte dos estudos sobre memória aponta para o fato de que a memória
remete não apenas para o passado, mas também para o futuro, dependendo essa relação
entre passado e futuro tanto do agenciamento humano como de tecnologias. Em função
da ideia do agenciamento, propõem esses autores, o uso dos termos performance ou
encenação para se falar de diferentes versões do passado, sugerindo que a encenação ou
a performance, de uma versão particular do passado, está interrelacionada com uma
versão particular do futuro, de forma que esses dois aspectos temporais não podem nem
devem ser tratados independentemente.
A ideia de memória do futuro pode ser lida também em Pollack (1993), quando
esse autor, ao posicionar-se pela denominação de memória enquadrada, afirma que a
ideia de enquadramento remete para o fato de que a memória estaria incessantemente
sendo reconstruída a partir do presente e do futuro. Isto é, a forma de seu
enquadramento é dela constitutiva12.
Retomando o pensamento bakhtiniano, poderíamos dizer que para esse autor, a
memória desempenha papel fundamental na transfiguração do passado (BAKHTIN,
2003, p.396) é sempre ativa, não é estável, ainda que em seu aspecto material ela possa
apresentar-se como um depósito de coisas passadas. Por não limitar suas fronteiras
temporais, ela transita entre passado e futuro, inscrevendo-se naquilo que ele chama de
“grande tempo”, o tempo onde os sentidos rejuvenescem, ressignificam, ganhando vida.
Há uma passagem, no texto Metodologia das Ciências Humanas, que reitera essa sua
ideia, quando diz que.
“Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos
séculos passados, podem jamais ser estáveis: eles sempre irão
mudar [...] Não existe nada absolutamente morto: cada sentido
terá sua festa de renovação” (BAKHTIN, 2003, p.410).

Segundo Amorim (2009), essas memórias, a do passado e a do futuro, são


memorias do sujeito, são memórias que dizem respeito às diferentes posições ocupadas
pelos sujeitos, seja pelo autor-criador na esfera da criação artística, no caso da memória
do passado, ou pelo ser no mundo, nas outras esferas da criação, sejam estas científica,
política, midiática, do cotidiano, entre outras, no caso da memória do futuro.
Mas no dizer dessa autora, a perspectiva bakhtiniana possibilita a instauração
de outro tipo de memória, a memória que está na cultura e em seus objetos, que se
relaciona com as tradições, reforçando ou questionando as tradições conservadoras, que
vivem nas formas objetivas da própria cultura, sendo por natureza construída
intersubjetivamente. Seria a memória do objeto, cujo exemplo mais plausível pode ser
encontrado no conceito de gênero, na medida em que este embora viva no presente, seja
da ordem do acontecimento, está sempre recordando o seu passado.

12
Bakhtin (1990/1934) já tratava da importância de se considerar os movimentos de enquadramento ao se
lidar com os processos de apropriação, reestruturação e transmissão da palavra alheia.
Para a autora, a memória do objeto confere à concepção de linguagem
formulada por M.Bakhtin uma dimensão específica, qual seja possibilitar que o objeto
cultural seja pensado como discurso. Como diz Amorim (2009, p.14), “a palavra é um
objeto cultural e como tal possui memória”, daí pode se dizer que a teoria da enunciação
bakhtiniana é também uma teoria da cultura.
Mas, ao lado de se constituir como lugar de memória, os enunciados também
13
podem ser portadores de esquecimentos, de apagamento dos “espaços vazios” de
memória (KOCIATKIEWICZ e KOSTERA, apud BAUMAN, 2001).
Esses esquecimentos, apagamentos, instauradores de uma monologização da
consciência podem acontecer no processo de apropriação e transmissão da palavra
alheia, assumindo valorações diferenciadas. De um lado, essa monologização da
consciência pode constituir-se como um momento necessário no processo de lidar com a
palavra alheia, na medida em que nossas palavras estão sempre apoiadas em já-ditos,
vem da “boca dos outros”. Nesse caso, afirma Bakhtin, pode haver
“o esquecimento paulatino dos autores, depositários da palavra
do outro. A palavra do outro se torna anônima, apropriam-se
dela (numa forma reelaborada, é claro): a consciência se
monologiza [...] Depois a consciência monologizada entra como
um todo único e singular em um novo diálogo” (BAKHTIN
2003, p.403),

E, esse processo não necessariamente implica em um apagamento do outro, como


sujeito do dizer, mas constitui parte do processo da apropriação da palavra alheia.
Mas podemos falar de outro tipo de esquecimento, aquele que atribui sentido
negativo para o monólogo. Na esfera da criação artística, esse apagamento do outro se
materializa na fórmula “o autor é o único que sabe” (BAKHTIN, 1981/1963, p.81),
tendo como consequência a imposição de uma concepção una de mundo à
multiplicidade das outras consciências. Nas outras esferas, esse fenômeno acontece,
sempre que um dos interlocutores, no processo de interação verbal, é considerado como
objeto e, nesse processo de reificação, o interlocutor emudece, é silenciado. Nessa
compreensão de monologismo, “o outro permanece inteiramente apenas objeto da
consciência e não outra consciência” (BAKHTIN, 2003, p.348). Aqui teríamos mais
propriamente o processo de silenciamento, em geral arbitrário e autoritário 14,

13
Espaços vazios seriam lugares aos quais não se atribuem significados pelo fato de serem invisíveis.
14
Sobre essa temática é bastante ilustrador e relevante a análise de Orlandi (1992) sobre as formas que o
processo de silenciamento pode assumir.
implicando em apagamento de vozes, de pontos de vista, diferenciados e,
consequentemente, privando essas vozes silenciadas de intervir enunciativamente na
construção de memórias, conforme o processo de esquecimento descrito por Pollak
(1993).
Outra peculiaridade da noção de memória na perspectiva bakhtiniana é que esta
se encontra intrinsecamente relacionada à noção de linguagem como discurso, na
medida em que todo objeto de discurso e de conhecimento é portador de memória. Essa
relação entre linguagem e memória retroage ainda para uma ideia presente em “Para
uma Filosofia do Ato” (BAKHTIN, 2010/1991) de que o enunciado é a semiotização do
ato ético, ou seja, a ação humana necessita da palavra em toda sua plenitude para ser
acessada. Nesse sentido, configura-se uma relação entre memória, linguagem e ação
semiotizada em acordo com os pressupostos de uma interpretação sócio-histórica-
cultural do ser humano e de suas ações, em todas as esferas da criação humana.

MODOS DE INSCRIÇÃO DA MEMÓRIA EM PRÁTICAS DISCURSIVAS

De acordo com o posto nos itens anteriores, a memória, independentemente da


área de conhecimentos, é entendida como uma construção coletiva, funcionando como
resgate (ou silenciamento) daquilo que é vivenciado, sendo ao mesmo tempo
orientadora de ações futuras. Na perspectiva bakhtiniana, a memória apresenta-se como
componente indispensável à construção do todo temporal do outro, ao lado da memória,
como sugere Amorim (2009), que se encontra em todo objeto cultural. Além disso,
considerando que o enunciado concreto constitui-se como uma possível materialização
semiótica, um lugar de memória, é que buscamos exemplificar, em alguns depoimentos
e entrevistas, como se inscreve, na memória de pesquisadores da área dos estudos da
linguagem e de alunos licenciados em Letras, a concepção de linguagem presente que
ancora os componentes curriculares da formação inicial de professores. Para tanto,
fazemos uso de comentários desses pesquisadores, publicados em textos amplamente
divulgados, juntamente com depoimentos de alunos licenciados em Letras, obtidos em
entrevistas semiestruturadas15.
Em primeiro lugar, trazemos como exemplos fragmentos de textos de três
pesquisadores reconhecidos na área. Os pesquisadores franceses Chiss e Puech (1998)
15
As entrevistas, das quais utilizamos aqui alguns fragmentos, fizeram parte de um projeto que
investigava o processo formativo inicial de professores de língua portuguesa (OLIVEIRA, 2006).
afirmam que o ensino da língua estaria calcado em uma concepção estrutural da língua e
da linguagem, difundida e consumida na área acadêmica dos estudos linguísticos como
um “verdadeiro patrimônio”, constituindo-se como matriz para os saberes organizados
em disciplinas. “Por sua vez, Pennycook (1998), linguista aplicado australiano, comenta
que o ensino estaria centrado em uma “visão meramente funcional da linguagem”,
aquela que se limita a ideia de língua como código, esquecendo que a” língua é um
sistema de significação de ideias” que desempenha um papel central no modo como
concebemos o mundo e a nós mesmos.
Entre pesquisadoras brasileiras, Signorini (2008, p.216) enfatiza que embora o
campo dos estudos aplicados venha discutindo, desde o final da década de 90, a vocação
crítica atribuída aos estudos da linguagem, essa discussão “permanece submersa ou
apenas indiferentemente tratada”.

Dessa forma, os dizeres dos pesquisadores acima mencionados, considerando-se


um espaço de tempo de dez anos entre eles, evidenciam uma crítica ao processo de
construção da memória do objeto, configurado na concepção de língua, em sua relação
com o ensino. Constrói-se assim uma memória do objeto alicerçada em uma visão
parcial do que seja Língua, reforçando uma tradição conservadora, na medida em que o
objeto em questão é considerado como sendo, um verdadeiro patrimônio, conforme
destacam Chiss e Puech (1998). Ou seja, reforçando uma memória do objeto como algo
a ser preservado, de natureza estável, finito e imutável, configurando a noção de língua
como algo acabado, esquecendo, nesse processo seu constante processo de atualização
pelo uso que dela fazem seus usuários. Além do que, como entende Pennycook, a
memória sobre o objeto oculta a outra face desse mesmo objeto, sua face discursiva,
responsável pelos processos de significação e pelo dizer o mundo e os seres humanos
que nele habitam. Entendimento partilhado por Signorini (2008), para quem, a memória
do objeto exerce também um tipo de apagamento, esquecendo o fato de que a produção
do conhecimento na área específica há muito tempo, afirma da necessidade de se levar
em consideração uma visão discursiva e enunciativa da linguagem16.

Em resumo, poderíamos dizer que, nos comentários dos pesquisadores, ressoa


uma voz social crítica à memória que se constrói sobre a língua, em todas as instâncias

16
É importante destacar que os PCN, em todas as suas versões para os níveis de ensino fundamental e
médio, enquanto materialização de orientação proposta por políticas públicas para o ensino e
consequentemente para o processo formativo de docentes incorpora essa visão discursiva e enunciativa da
língua e da linguagem.
de seu uso pela instituição escolar. Esse posicionamento, recorrente em qualquer revisão
de literatura da pesquisa sobre formação de professores e ensino na área da LA,
configura, no dizer de Bakhtin (1981/1963), uma polêmica aberta, dirigida ao processo
de apagamento e silenciamento da memória construída do objeto cultural em questão,
qual seja a concepção de língua e linguagem e seu uso hegemônico nas atividades da
escola formal.

Vejamos a seguir, dois fragmentos de depoimentos de alunos licenciados sobre


os saberes presentes em seu processo formativo inicial,

“é indiscutível a tradição que a Linguística Estrutural possui na


Licenciatura em Letras, contudo o curso está formando professores
com uma visão simplificada, impelindo-os a transmitir aos alunos
conteúdos relativos à concepção de língua somente como sistema
estruturado, como a ideia da língua correta...” (Ana/2008).

Afirma-se comumente que a grade curricular do curso de Licenciatura


em Letras é feita visando à formação dos professores porém é
necessário deixar claro que tipo de formação ela dá ao professor, pois,
se ser “formado” significa ser apto a “ensinar com segurança” a
língua materna, mostrando as várias perspectivas dessa
abordagem, o curso de Letras não prepara devidamente o
professor (Abrahão/2008).

Se, de um lado, esses comentários estão em concordância com os dizeres


anteriores dos pesquisadores mencionados, de outro, deles diferem pelo fato de que
esses depoimentos indicam um entrelaçamento explícito entre a memória do objeto e
sua projeção em uma memória do futuro. Ou seja, os depoimentos dos licenciados
parecem fazer sobressair a presença de uma memória do futuro, no sentido bakhtiniano
(BAKHTIN, 2003/1923), na medida em que é no futuro que se coloca o real centro de
gravidade da determinação do ser, no caso o futuro professor de língua, em seu processo
de existência. É, pois, com o olhar para o futuro que os licenciados avaliam seu
processo formativo. E avaliam negativamente, no sentido de que a memória de língua
não contribui para a formação de um profissional competente para o exercício de suas
atividades profissionais, pelo fato de que aborda exclusivamente uma face da língua, seu
modo semiótico, conforme diria Benveniste (1989).

Nesse sentido, é bastante esclarecedor o depoimento de uma professora,


licenciada e no exercício da profissão há mais de quinze anos, ao afirmar em uma
entrevista para uma Revista de Divulgação Científica,
“Enquanto a escola estiver presa a uma abordagem estritamente
gramatical, que não considera o uso e o funcionamento
discursivo da língua, nossos alunos continuarão com baixo
desempenho escolar” (prof. Y em depoimento para a Revista
Língua Portuguesa. 2006).

Ou seja, assim como no depoimento dos licenciados, a memória do futuro,


materializada semioticamente no enunciado acima apresentado, estabelece uma
polêmica explícita com o objeto cultural em questão, porém, nesse caso, está em jogo
não apenas a concepção de língua ou de linguagem em si, mas sua implicação para a
construção da identidade profissional do docente.

Para finalizar, gostaríamos de dizer que apresentamos uma discussão sobre a


questão da memória e da construção da identidade profissional do professor de língua e
não propriamente resultados de pesquisa sistemática. De certa forma, uma reflexão que
contribui para referendar, do ângulo da memória discursiva em sua relação com o
processo de construção identitária de docentes, aquilo que vem sendo apontado
recorrentemente na literatura de pesquisa na área da LA. Ou seja, uma discussão que se
apresenta como uma defesa da necessidade de uma concepção discursiva e enunciativa
da linguagem, nos componentes curriculares dos processos formativos de docentes, de
forma que suas ressonâncias no ensino da língua possibilitem o acesso aos
multiletramentos e à pluralidade de vozes que habitam os diversos textos produzidos nas
esferas de atividade humana. Entendemos ainda que, os dizeres que exemplificaram
nossa discussão podem ser considerados como expressão semiótica de atos éticos, no
sentido bakhtiniano, isto é, posicionamentos de sujeitos que, direta ou indiretamente,
consideram-se responsáveis pela construção de memórias visando contribuir com a
mudança de situações de “privações sofridas” (ROJO, 2006), vivenciadas no cotidiano
das atividades escolares.

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