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ISBN 978-857113-547-5
INTRODUÇÃO
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A opção pela perspectiva apontada por M.Bakhtin não significa ignorar a enorme contribuição da AD
francesa aos estudos sobre memória. Para maiores detalhes ver, entre outros, Pêcheux (1990, 1992);
Coracini (2010, 2011) e Orlandi (1992, 2011)
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Para uma revisão aprofundada sobre os estudos da memória em uma perspectiva histórico-sócio-cultural
ver Smolka (2010)
Outros pesquisadores, relacionados mais diretamente à escola francesa, como
Pollack e Nora reelaboram essa noção, explorando aspectos igualmente importantes. No
caso de Pollack (1993), o foco da discussão dirige-se para a relação entre memória e
esquecimento, ressaltando-se a importância de memórias subterrâneas como partes
integrantes das culturas minoritárias e dominadas, em oposição à consideração
unicamente de uma memória oficial. Em suas reflexões, esse autor cita, como exemplo
de tentativa de silenciamento sobre o passado, depoimentos que tratam do processo de
desestalinização na ex-URSS, da história dos sobreviventes dos campos de
concentração e daqueles que versam sobre a colaboração dos alsacianos com o regime
nazista.
Do que foi dito, podemos concluir que os estudos sobre a temática da memória,
seja no campo da historiografia, seja em outras áreas das Ciências Humanas, vem
merecendo outros enfoques, outras conceituações, destacando-se entre elas, a
abordagem sócio-histórica-cultural, implicando no fato de que a memória constrói-se
discursivamente e que não pode ser compreendida como um relato desinteressado e
acabado dos fatos, dos acontecimentos e das vidas pessoais.
Partindo, portanto da proposta de que o discurso pode ser compreendido como
um lugar de memória e que este lugar pode estar inscrito em enunciados verbais,
passamos a discutir essa problemática, no terreno dos estudos da linguagem, optando
pela perspectiva presente nos textos de M.Bakhtin4.
A discussão sobre memória, nos escritos daquele autor, surge no bojo de sua
reflexão sobre o papel da alteridade na criação artística, mais especificamente no que
tange à realização da atividade estética, configurada na relação entre autor-criador e
herói. Nesse sentido, emerge um dos pressupostos básicos do pensamento dos autores
inseridos no Círculo de Bakhtin5, qual seja a ideia de que ser é ser sempre em relação ao
outro, ou seja, a alteridade é constitutiva do ser humano (BAKHTIN, 2003/1923) 6. Essa
relação com a alteridade, decorrente do excedente de visão e da posição exotópica
ocupada pelo sujeito, permitindo-lhe ver no outro aquilo que esse outro não pode ver em
si mesmo, vai tornar possível a atividade estética por excelência, qual seja a de dar
acabamento ao total da obra e aos seus personagens, em seus aspectos espaciais,
temporais, semânticos, todos eles sempre atravessados pelo eixo axiológico. Ou seja, é o
outro que emoldura o eu e o insere em um contexto, a partir de seu posicionamento
externo e distanciado desse eu. Esse o movimento privilegiado da atividade estética.
Contudo, esse processo, realizado pela atividade estética, na esfera da criação
literária, ou seja, o acabamento de uma forma completa, implicando em uma visão total
da obra, de seus personagens, de seus mundos, realiza-se de forma diferenciada em
outras esferas da atividade humana, em outros processos de criação ideológica7. Nessas
esferas, não há autor-criador, não há aquele que dá acabamento à totalidade do ser, do
evento, o que há é um acabamento, sempre provisório, nunca do todo do eu, “mas
apenas alguns de seus atos” (BAKHTIN, 2003, p.11).
O fato é que, embora com realizações diferenciadas, a relação entre o eu e o
outro, em qualquer das esferas da atividade humana, respeitando suas especificidades,
qualifica o pressuposto bakhtiniano do primado da alteridade, no sentido de que tenho
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A relação constitutiva entre linguagem, ação, realidade e sujeitos é explorada por todos aqueles
integrantes do chamado Círculo de Bakhtin, fazendo-se presente em vários textos, com destaque em
Voloshinov (1997/1926); Voloshinov/Bakhtin (1979/1929); e em Bakhtin (1990/1934).
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A literatura pertinente considera como pensadores principais do Círculo de Bakhtin, o próprio Mikhail
Bakhtin, que deu nome ao grupo, Valentin Voloshinov e Pavel Medviedev (FARACO, 2009).
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É importante ressaltar que a compreensão do ser humano em Bakhtin não se restringe ao nível
ontológico do ser. Está inserido em uma categoria ética. Isto é, o ser humano é aquele que não tem álibi
para ser (BAKHTIN, 2010/1919).
7
A noção de esfera da criação ideológica e de suas especificidades são tratadas com detalhes tratadas por
Voloshinov (1977/1926) e por Medviédev (2012/1928).
de passar pela consciência e posicionamento axiológico do outro para me constituir
como sujeito.
É no bojo da relação com a alteridade, no que diz respeito à construção do todo
temporal do outro, que se situa a noção de memória para aquele autor. Segundo ele
(BAKHTIN, 2003/1923), a forma temporal da vida interior do ser humano 8,
desenvolve-se a partir do excedente de visão temporal de outra consciência,
estabelecendo, a partir desse excedente, as fronteiras da vida interior, em uma relação
espacial-temporal trabalhada pelo autor-criador e que não está vinculada a um tempo
cronológico nem matemático, e sim a um tempo axiológico9.
Nessa relação espaço-tempo, instaura-se a memória sobre o outro, constituída como
um ponto de vista do acabamento axiológico, cujo atributo mais destacado diz respeito à
apreciação, de fora, exotopicamente, de um acontecimento já concluído. Propõe Bakhtin
que, na relação eu-para-mim10, a memória aparece como uma memória do futuro11,
enquanto que na relação com o outro, em geral ela se apresenta como uma memória do
passado.
Em outras palavras, o ser para mim mesmo significa, na perspectiva daquele autor,
ser ainda em construção, estando a unidade da existência desse ser vinculada a um
futuro, a um porvir, não a um passado. Diz ele, “a minha unidade não é do já-ser, mas a
unidade do meu ainda não ser [...], só no futuro está o centro real de gravidade da minha
determinação de mim mesmo” (BAKHTIN, 2003/1923, p. 115).
Assim é que, em Bakhtin (2003/1923), na construção temporal da vida interior
do outro, podemos vislumbrar duas noções de memória, ou poderíamos dizer, dois
modos de funcionamento da memória. De um lado, uma memória do passado, aquela do
autor-criador, que compartilha produtivamente do acabamento do todo de uma obra
artística, assumindo um sentido de finitude, característica própria dos gêneros
produzidos nessa esfera de criação. E, é assim que, enquanto componente da atividade
estética, a memória começa a atuar como uma força conclusiva, implicando que o
processo de acabamento pressupõe um processo de memorização. Contudo, mesmo
8
Bakhtin considera que a vida interior do ser humano pode ser compreendida do ponto de vista da alma-
a vida interior do outro possibilitando sua vivência pelo excedente de visão; e, do ponto de vista do
espírito- a minha vivência de minha própria existência. Apenas a primeira permite o acabamento estético.
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A relação espaço-tempo-axiologia configura a noção de cronotopo para Bakhtin (1990/1938)
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Em Para Uma Filosofia do Ato (BAKHTIN 2010/1919) afirma que os valores construídos
historicamente pela humanidade giram em torno da relação eu/outro, em três aspectos: eu-para-mim; eu-
para-o outro; e, o outro-para-mim.
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Futuro para ele, não é uma categoria temporal vazia, mas uma categoria de sentido, embora ainda não
existente no plano dos valores, porque não é predeterminada.
sendo memória do passado, porque inscrita no processo de dar acabamento, de
realização de uma atividade estética, essa memória, independentemente da esfera de sua
criação, apresenta-se sempre com uma natureza produtiva, na medida em que a imagem
do eu apenas existe se o outro a cria e ainda pelo fato de que esta implica em uma
axiologia, apresentando-se como um posicionamento sobre um todo vivenciado.
No dizer de Geraldi (2003), a memória do passado tem a ver com o fato de que
na realização de uma atividade estética, o futuro da personagem e dos acontecimentos é
conhecido do autor criador, pela posição exotópica que esse ocupa e que lhe possibilita
a visão total da obra. Ou seja, a memória do passado, identificada como uma memória
construída a partir da atividade estética é sempre produtora de totalidades, nesse sentido
ela unifica todos os aspectos do objeto, sejam esses espaciais, temporais ou semânticos.
Contudo, sendo ao mesmo tempo um ponto de vista axiológico, na perspectiva
bakhtiniana, embora o aspecto factual e material do passado não possa ser modificado,
ao ser gravado pela memória, este pode ser sempre ressignificado. Isto é, a memória do
passado está sempre atravessada por valores, os quais, por sua vez, podem apontar para
relações de sentido que se referem, por exemplo, a transgressões ou esquecimentos.
Sem dúvidas, poderíamos dizer que essa noção de memória do passado e sua
possibilidade de ressignificação, a partir de posicionamentos axiológicos distintos,
mantêm relações dialógicas de concordância com aquelas formulações encontradas na
historiografia presente nos textos de Halbwachs, Pollak e Nora, autores aos quais
fizemos referência na secção anterior.
De outro lado, diz Bakhtin, “Para mim [o ser humano em sua vivência], a
memória é memória do futuro [...] só no futuro está o centro real de gravidade da minha
determinação de mim mesmo” (BAKHTIN, 2003, p.115). Ou seja, a memória do futuro,
relacionada à própria natureza inacabada do ser humano, evoca sua inscrição na ordem
do vivenciado, do acontecimento, da incompletude.
Kontopodis e Matera (2010) compartilham essa noção de memória, afirmando
que hoje, grande parte dos estudos sobre memória aponta para o fato de que a memória
remete não apenas para o passado, mas também para o futuro, dependendo essa relação
entre passado e futuro tanto do agenciamento humano como de tecnologias. Em função
da ideia do agenciamento, propõem esses autores, o uso dos termos performance ou
encenação para se falar de diferentes versões do passado, sugerindo que a encenação ou
a performance, de uma versão particular do passado, está interrelacionada com uma
versão particular do futuro, de forma que esses dois aspectos temporais não podem nem
devem ser tratados independentemente.
A ideia de memória do futuro pode ser lida também em Pollack (1993), quando
esse autor, ao posicionar-se pela denominação de memória enquadrada, afirma que a
ideia de enquadramento remete para o fato de que a memória estaria incessantemente
sendo reconstruída a partir do presente e do futuro. Isto é, a forma de seu
enquadramento é dela constitutiva12.
Retomando o pensamento bakhtiniano, poderíamos dizer que para esse autor, a
memória desempenha papel fundamental na transfiguração do passado (BAKHTIN,
2003, p.396) é sempre ativa, não é estável, ainda que em seu aspecto material ela possa
apresentar-se como um depósito de coisas passadas. Por não limitar suas fronteiras
temporais, ela transita entre passado e futuro, inscrevendo-se naquilo que ele chama de
“grande tempo”, o tempo onde os sentidos rejuvenescem, ressignificam, ganhando vida.
Há uma passagem, no texto Metodologia das Ciências Humanas, que reitera essa sua
ideia, quando diz que.
“Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no diálogo dos
séculos passados, podem jamais ser estáveis: eles sempre irão
mudar [...] Não existe nada absolutamente morto: cada sentido
terá sua festa de renovação” (BAKHTIN, 2003, p.410).
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Bakhtin (1990/1934) já tratava da importância de se considerar os movimentos de enquadramento ao se
lidar com os processos de apropriação, reestruturação e transmissão da palavra alheia.
Para a autora, a memória do objeto confere à concepção de linguagem
formulada por M.Bakhtin uma dimensão específica, qual seja possibilitar que o objeto
cultural seja pensado como discurso. Como diz Amorim (2009, p.14), “a palavra é um
objeto cultural e como tal possui memória”, daí pode se dizer que a teoria da enunciação
bakhtiniana é também uma teoria da cultura.
Mas, ao lado de se constituir como lugar de memória, os enunciados também
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podem ser portadores de esquecimentos, de apagamento dos “espaços vazios” de
memória (KOCIATKIEWICZ e KOSTERA, apud BAUMAN, 2001).
Esses esquecimentos, apagamentos, instauradores de uma monologização da
consciência podem acontecer no processo de apropriação e transmissão da palavra
alheia, assumindo valorações diferenciadas. De um lado, essa monologização da
consciência pode constituir-se como um momento necessário no processo de lidar com a
palavra alheia, na medida em que nossas palavras estão sempre apoiadas em já-ditos,
vem da “boca dos outros”. Nesse caso, afirma Bakhtin, pode haver
“o esquecimento paulatino dos autores, depositários da palavra
do outro. A palavra do outro se torna anônima, apropriam-se
dela (numa forma reelaborada, é claro): a consciência se
monologiza [...] Depois a consciência monologizada entra como
um todo único e singular em um novo diálogo” (BAKHTIN
2003, p.403),
13
Espaços vazios seriam lugares aos quais não se atribuem significados pelo fato de serem invisíveis.
14
Sobre essa temática é bastante ilustrador e relevante a análise de Orlandi (1992) sobre as formas que o
processo de silenciamento pode assumir.
implicando em apagamento de vozes, de pontos de vista, diferenciados e,
consequentemente, privando essas vozes silenciadas de intervir enunciativamente na
construção de memórias, conforme o processo de esquecimento descrito por Pollak
(1993).
Outra peculiaridade da noção de memória na perspectiva bakhtiniana é que esta
se encontra intrinsecamente relacionada à noção de linguagem como discurso, na
medida em que todo objeto de discurso e de conhecimento é portador de memória. Essa
relação entre linguagem e memória retroage ainda para uma ideia presente em “Para
uma Filosofia do Ato” (BAKHTIN, 2010/1991) de que o enunciado é a semiotização do
ato ético, ou seja, a ação humana necessita da palavra em toda sua plenitude para ser
acessada. Nesse sentido, configura-se uma relação entre memória, linguagem e ação
semiotizada em acordo com os pressupostos de uma interpretação sócio-histórica-
cultural do ser humano e de suas ações, em todas as esferas da criação humana.
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É importante destacar que os PCN, em todas as suas versões para os níveis de ensino fundamental e
médio, enquanto materialização de orientação proposta por políticas públicas para o ensino e
consequentemente para o processo formativo de docentes incorpora essa visão discursiva e enunciativa da
língua e da linguagem.
de seu uso pela instituição escolar. Esse posicionamento, recorrente em qualquer revisão
de literatura da pesquisa sobre formação de professores e ensino na área da LA,
configura, no dizer de Bakhtin (1981/1963), uma polêmica aberta, dirigida ao processo
de apagamento e silenciamento da memória construída do objeto cultural em questão,
qual seja a concepção de língua e linguagem e seu uso hegemônico nas atividades da
escola formal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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[1923].
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KONTOPODIS, M e MATERA, D. Doing Memory, Doing Identity; Politics of the
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