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A PESQUISA NARRATIVA COMO POSSIBILIDADE DE FORMAÇÃO PARA

PROFESSORAS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

Daniel Novaes
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade São Francisco – USF
msdanielnovaes13@gmail.com

Ana Paula de Freitas


Docente do Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade São Francisco – USF
freitas.apde@gmail.com

Eixo temático: Formação de Professores e Educação Inclusiva


Modalidade de apresentação: Relato de Experiência

Resumo
Este estudo se encontra na temática da formação de professores. Tem como objetivo, discutir
como a pesquisa narrativa possibilitou um movimento de formação para um grupo de
professoras do interior do estado de São Paulo. O contexto da produção das narrativas é o de
um curso de extensão intitulado ‘O transtorno do espectro autista na contemporaneidade:
ações e reflexões’ na qual elas participaram como alunas. O referencial que o subjaz é o da
pesquisa narrativa alinhavado à perspectiva histórico-cultural. Tal perspectiva compreende que
os processos que viabilizam a (trans)formação humana ocorrem por meio dos signos. Assim, a
linguagem humana se torna signo por excelência por possibilitar que os sujeitos se relacionem,
mas para tanto, é necessário que estejam em um determinado contexto socio-histórico-cultural.
Tomando a linguagem como fundante para a constituição humana, a pesquisa narrativa se
constitui como espaço de escuta às denúncias, desejos, e, de (re)construção da realidade. As
narrativas sinalizam que as professoras relatam: 1. Não terem conhecimentos para lidar com os
sujeitos com deficiências; 2. Não terem escolha em querer ou não o aluno; 3. A tentativa de
realizar o seu trabalho na prática. Tais deslocamentos possibilitam a reflexão acerca da
educação inclusiva e da intencionalidade do fazer/querer do professor. Ademais dá indícios de
como, por meio das narrativas das professoras, foi acontecendo um processo formativo.

Palavras-chave: Pesquisa Narrativa, Formação de Professor, Educação Básica.

INTRODUÇÃO

O narrador enuncia seu discurso em gestos, compõe ao seu eu o que


ouve, e ao fazer, se (trans) forma. Benjamin (1986, p. 221) aclara que “[...] o
narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir
completamente a mecha de sua vida”; o narrador é, se não, o que narra a sua
própria história. Por essa perspectiva, iniciamos esta escrita contando o
movimento de continuidade dos estudos pós-defesa da dissertação de
mestrado intitulada: ‘Relações de Ensino: Possibilidades de (trans) formação
de um aluno com transtorno de expecto autista e seu professor1’.
A dissertação de mestrado perpassada pelos diálogos vigotskianos,
objetivou compreender as possibilidades de aprendizagem de Davi2, um aluno
com transtorno do espectro autista (TEA), em situações escolares. No trabalho
de campo realizamos as observações e filmagens focalizando atividades
pedagógicas desenvolvidas entre o aluno e o professor-pesquisador da própria
prática (um dos autores deste texto). No decorrer do trabalho, o pesquisador
vai (trans) formando seus modos de aula, passa a refletir o seu fazer e, vai
modificando os modos de relação com o aluno. Nesse movimento de trocas e
(re) construções, o aluno vai se modificando. Ao término da pesquisa,
consideramos que a relação professor-aluno, mediada pela palavra, se
constituiu como lócus de (trans) formação e elaboração conceitual do professor
e do aluno.
Como desdobramento dessa pesquisa, em um contexto de trocas,
impregnado de expressões de linguagem, se oportuniza um curso de extensão
universitária intitulado ‘O transtorno do espectro autista na contemporaneidade:
ações e reflexões’. O público alvo foi professoras da rede municipal de ensino
de uma cidade do interior do estado de São Paulo.
Nesse curso, usamos para a reflexão das professoras sobre o ensino
para alunos com TEA, a produção de narrativas escritas sobre suas
percepções sobre a temática. No presente texto, nos propusemos a discutir
como as narrativas produzidas possibilitaram um movimento de formação para
esse grupo de professoras.
Para isso, inicialmente apresentamos algumas reflexões de cunho
teórico sobre as potencialidades da narrativa como meio/modo de formação
docente, em seguida explicitamos o contexto em que o referido curso de
extensão foi oferecido, os procedimentos didáticos-metodológicos em sua
condução e as opções metodológicas que fizemos para o presente trabalho.

1 O trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível


Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001
2 Em atendimento aos procedimentos éticos, neste texto, os nomes de todos os participantes

são fictícios.
Por fim, trazemos excertos de três narrativas com o intuito de refletir sobre as
possibilidades de formação de professoras por meio de suas narrativas.

O ser humano: sua narrativa enquanto processo formativo

Quem narra? Quem narra, conta sua história, seus modos de vida, fala
do lugar social na qual se encontra e, ao falar, se relaciona com o outro. Assim,
se impregna da cultura.
Nesse sentido, a perspectiva histórico cultural é porta de entrada para a
reflexão acerca da pesquisa narrativa como possibilidade de formação. Oriunda
da tensão entre a psicologia que considera o homem em sua organicidade e as
ideias de Marx sobre o homem como um ser transformador da natureza para
além de seu corpo, Vigotski (1991), precursor dessa vertente teórica, propõe
um olhar para o desenvolvimento do ser humano como um sujeito fruto de suas
relações em um contexto sócio-histórico-cultural. Nas palavras do autor:

Mas somente a visão ingênua de que o desenvolvimento é um


processo puramente evolutivo, envolvendo nada mais do que
acúmulos graduais de pequenas mudanças e uma conversão gradual
de uma forma em outra, pode esconder-nos a verdadeira natureza
desses processos (VIGOTSKI, 1991, p. 71).

A narrativa em forma de texto escrito tem seu papel como meio de


apropriação do conhecimento humano. Em suas elaborações sobre a escrita,
Vigotski (1991) explicita o processo de elaboração da linguagem escrita e as
diferenças entre essa linguagem e a oral. Destarte, compreendemos que
algumas de suas ideias a respeito da escrita são profícuas para refletirmos
sobre a narrativa escrita. Para ele, se a escrita for um ato mecânico e sem
finalidade, ela perde o caráter simbólico. O autor argumenta a favor da escrita
como um gesto humano de linguagem e, ao escrever, o indivíduo sente a
necessidade de comunicar-se com o outro e consigo. No diálogo com Vigotski
(1991), Hunt (2010, p. 178) aclara que a narrativa parte de pressupostos
psicológicos “[...] e fontes culturais tão antigas quanto profundas; ao mesmo
tempo, é a forma literária mais comumente lida”
Por essa ótica, o narrar, como expressão da linguagem humana, é
constituidor do homem. Ouvimos, observamos e somos observados pelo outro,
e assim, vamos nos (trans) formando a cada dia. Arraigados na perspectiva
histórico-cultural, em específico em proposições vigotskianas, a linguagem
perpassa o homem e o constitui – é fundante e o integra ao meio sócio-
histórico-cultural. Nesse sentido, pontua Vigotski (2000, p. 312):

A escrita é uma função específica de linguagem, que difere da fala


não menos como a linguagem interior difere da linguagem exterior
pela estrutura e pelo modo de funcionamento [...] a linguagem escrita
requer para o seu transcurso pelo menos um desenvolvimento
mínimo de um alto grau de abstração. Trata-se de uma linguagem
sem seu aspecto musical.

Sendo a escrita uma atividade simbólica de linguagem, entendemos que


a narrativa escrita em sua totalidade de expressão, se constitui como lócus de
possibilidades para refletir acerca da constituição dos sujeitos pela linguagem.
Por ser a narrativa uma atividade de linguagem, específica e mobilizadora dos
seres humanos, por meio dela o homem se constitui humano. Considerando
isso, podemos dizer que se a linguagem, capacidade tipicamente humana, nos
for retirada, nos tornamos impedidos de participar ativamente da vida em
sociedade e de ter acesso à cultura. Explicando um pouco mais, temos como
hipótese de que a narrativa escrita é um meio/modo de linguagem que incide
na formação humana e, nesse sentido, é que compreendemos a narrativa
como instrumento técnico-semiótico mediadora da formação docente.
Embora Vigotski não tenha explorado a pesquisa narrativa em sua obra,
por ela conter dimensões do tempo, cultura, e lugar social na qual são
produzidos os enunciados dos sujeitos, suas elaborações sobre o papel
constitutivo da linguagem na formação humana, nos permitem tecer
aproximações entre suas ideias e o campo da pesquisa narrativa,
especialmente se considerarmos a narrativa em seu eixo formativo, como
possibilidade de elaboração de conhecimento. (PASSEGGI, 2010)
Estudos que abordam a narrativa com foco para a formação de
professores, apontam que, ao narrar suas histórias, os professores iniciam um
movimento de construção da identidade profissional e de reconstrução de si
mesmo (CAPORALE, SARMENTO, 2015; SARMENTO, 2016; SARMENTO,
2017). Esse viés qualitativo emerge da linguagem como reflexão da
experiência, é ação de agir sobre si. As narrativas desvelam. Nesse sentido, o
que está submerso emerge de tensões, falar de si, falar do outro e de sua vida,
revela sentimentos e sensações de situações práticas nem sempre
escancaradas pelo sujeito que narra, é viabilizado ao trocar e refletir sobre as
experiências, um processo de formação pessoal e profissional. A pesquisa
narrativa é via de escuta e de se descobrir enquanto sujeito de seu tempo,
lugar e contexto. (HAAS; LISBOA; MARIANI; MONTEIRO, 2009; OLIVEIRA,
2011; COELHO, 2013; MONTEIRO; FONTOURA, 2016; PASSEGGI;
NASCIMENTO; OLIVEIRA, 2016; FREITAS, 20193).

CONTEXTUALIZAÇÃO DO ESTUDO

Este estudo parte das concepções vigotskianas sobre o


desenvolvimento humano arraigado na linguagem, e, da narrativa (oral e
escrita), como meio/modo de elaboração de conhecimento.
Acerca da pesquisa narrativa como possibilidade de formação de
professor tendo como pressuposto a perspectiva histórico-cultural, Freitas
(2019, p. 3) pontua que esse tipo de pesquisa é fidedigno do ponto de vista
metodológico pois “o professor, ao narrar suas experiências, elabora um
sentido e, nesse processo de elaboração de sentidos, se dá a possibilidade
formadora das histórias de vida”. Os excertos narrativos trazidos neste texto
serão expostos em resultados, porém, de antemão explicamos que ele foram
tencionados em um processo de reflexão coletiva.
A pesquisa narrativa se constitui como espaço de escuta às denúncias,
desejos, e, de construção da realidade. Por essa opção metodológica, é
possível perceber micronarrativas que desvelam o modo como os sujeitos se
constituem, possibilitando a construção coletiva de sentidos para as situações
vivenciadas. (PASSEGGI; NASCIMENTO; RODRIGUES, 2018)

3 FREITAS, Ana Paula de. A narrativa (auto)biográfica como meio/modo de elaboração de


conhecimento de alunas de pedagogia no contexto da educação inclusiva. In: BERNARDES,
M. E. M.; FREITAS, A. P. de; TORTELLA, J. C. B.; ALMEIDA, L. R. de; ROCHA, M. S. P. de M.
L. (orgs.) Narrativas e Psicologia da Educação: pesquisa e formação. São Paulo: Terracota,
2019, no prelo).
Após a conclusão da pesquisa de mestrado anteriormente referida,
houve a oportunidade de desenvovlver um projeto de extensão universitária, no
contexto de uma parceria entre a universidade de natureza confessional a qual
somos vinculados e uma rede de ensino, com professores e gestores de um
múnicipio do interior do estado de São Paulo4. O objetivo da formação foi
refletir sobre o transtorno do espectro autista (TEA) na contemporaneidade;
reconhecer os aspectos diagnósticos e legais que amparam a educação
dessas pessoas; discutir as implicações educacionais; possibilitar uma reflexão
crítica por meio das narrativas individuais, sobre o papel do professor e da
escola no processo de inclusão dessas pessoas.
O grupo de formação ocorreu em um polo da Universidade Aberta do
Brasil e foi constituído com 60 professoras na faixa etária entre 20 e 60 anos,
atuantes na educação básica, “convidadas” a participar do curso de extensão.
Para este texto, escolhemos analisar a produção narrativa de três professoras:
São elas: Luiza, Mariana e Maria.
O curso foi dividido em quatro encontros, uma vez por semana, no
período das 19h. às 22h. O conteúdo programático foi o seguinte: 1. O
transtorno do espectro autista na contemporaneidade; 2. Os aspectos
diagnósticos e legais que amparam a educação; 3. As implicações
educacionais do TEA; 4. O papel do professor e da escola no processo de
inclusão e 5. Elaboração de uma síntese reflexiva sobre o curso.
Ao iniciar a proposta de formação, buscava um referencial teórico que
fizesse sentido para as professoras, mas como começar, se não as conhecia?
Como dar o ponta pé inicial, se não conhecia o trabalho delas e a necessidade
que as levaram à realização da formação? Inicialmente, parti da seguinte
atividade: “Escreva a partir de suas vivências, quais são as suas dificuldades
frente ao transtorno do espectro autista”. As narrativas com as respostas foram
lidas e posteriormente problematizadas no início do segundo encontro.
No decorrer do curso foram mobilizados textos como a lei 12.764 que
institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno
do Espectro Autista e estabelece diretrizes para sua consecução; o Manual

4 O curso foi conduzido por um dos autores deste texto, de modo que optamos por relatar na
primeira pessoa do singular, seus procedimentos didáticos.
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM V (APA, 2014); o texto
de Santos (2018) explicando como se elabora um diagnóstico de autismo; a
dissertação de mestrado acerca das possibilidades de trabalho com crianças
com TEA – Pereira (2018); o estudo de Oliveira e Sertié (2017) sobre
aconselhamento genético do TEA e excertos de Paulo Freire sobre o papel do
professor como transformador.
Como as professoras relatavam a vontade em conhecer acerca do TEA
do ponto de vista neurológico, bem como a elaboração do diagnóstico, foram
trabalhados no segundo encontro os textos com esse viés. Ao problematizar e
indagá-las a respeito do papel do professor em relação ao aluno com TEA, elas
ficavam em silêncio, e por vezes, comentavam que o aluno não tinha jeito.
Com vista a isso, no terceiro encontro emergiu a possibilidade de
abordar a temática de um outro modo. Assim, apresentei a elas o estudo que
desenvolvi no mestrado (PEREIRA, 2018), fundado nos pressupostos de
Vigotski (2011), sobre a criança com deficiência, a fim de suscitar reflexões
sobre novos modos de se compreender o aluno com TEA e as possibilidades
de ensino-aprendizagem. Também mostrei alguns vídeos da minha pesquisa,
sobre atividades que deslocavam o aluno da esfera de atividades
mecanizadas, para um espaço simbólico, na qual o outro (o professor)
viabilizava um caminho de atividades lúdicas na qual ambos interagiam e
trocavam experiências.
Ao término do curso, solicitei a produção de uma nova narrativa escrita,
a fim de identificar possíveis deslocamentos das professoras em relação a
novos modos de conceber o aluno com TEA e as possibilidades de trabalhar
com conteúdos significativos. Para tanto, pedi para que escrevessem uma
narrativa a partir da seguinte provocação: “Porque eu sou professora de
inclusão5.” Essa narrativa também foi lida e discutida no grupo.
Como já mencionamos, neste estudo, nos propusemos a analisar as
produções narrativas de algumas das participantes da formação. Em
consonância com Sarmento (2016), assumimos uma análise interpretativa, pois
ao analisar fragmentos das narrativas escritas das professoras, buscamos

5 O termo ‘professora de inclusão’ foi utilizado tendo em vista que esse era o modo como as
professoras se denominavam.
conhecer o modo como elas revelam suas experiências com o ensino para
alunos com TEA.
NARRATIVAS DOCENTES: INDÍCIOS DE UM PROCESSO FORMATIVO
Ao assumirmos os pressupostos da perspectiva histórico-cultural,
compreendemos que o desenvolvimento humano é um processo não linear, por
vezes, contraditório e com idas e vindas. Tendo isso em vista, é que
procedemos as análises das narrativas das docentes, que durante quatro
encontros de três horas, tiveram a possibilidade de escutar, questionar e
refletirem sobre o aluno com TEA e vias de ensino para esse aluno. Desse
modo, o que destacamos neste texto são indícios (PINO, 2005) de um
processo de desenvolvimento.
Como mencionamos, as narrativas das professoras acontecerem em
dois momentos6. A primeira partiu da seguinte solicitação: “escreva a partir de
suas vivências, quais são as suas dificuldades frente ao transtorno do espectro
autista”, e, a segunda, de uma pergunta disparadora: “porque eu sou
professora de inclusão?” Para este texto, apresentamos excertos das
narrativas das professoras Luiza, Mariana e Maria. Ao elaborar sua primeira
narrativa, Luiza nos relata:

N1:Luiza: O que se faz necessário para uma criança muitas vezes é impossível para os
pais, principalmente na escola rural. Principais dúvidas... Como ajudar o professor que
está na sala de aula? Como podemos ajudar a criança a ter auto-regulação,
compreender os combinados, aceitar de maneira pacífica o não. Nos momentos de
surtos, o que podemos, o que devemos e o que não devemos fazer?

Em sua narrativa, a professora expõe suas dificuldades em relação aos


meios/modos de trabalhar com o aluno. Ao narrar, a professora clama por
auxílio e parece estar a revelar que não sabe como lidar com o aluno. Saber
como os discuros implicados na narrativa da professora a desloca, é buscar
olhar para esses indícios que marcam seu contínuo processo de formação.
Assim, as narrativas provocadas em espaços de formação, possibilitam que o
professor constitua-se, não somente em processos de tentativa e erro,
deslocados de fundamentos, mas em espaços significativos na qual se ouve,

6 N1 se refere a primeira narrativa; N2 se refera a segunda.


se problematiza buscando “superar a fragmentação do pensamento dualista”
(COELHO, 2013, p. 15) que vai aparecendo nas dúvidas oriundas das
condições concretas do passado.
No caso de Luiza, ela relata o não saber fazer ao questionar sobre como
atuar com a criança diagnosticada com TEA. Porém, ao término do curso, ao
olharmos para a narrativa final, é desvelado como os diálogos trazidos nos
quatro encontros implicou em sua formação.

N2: Luiza: “Sou professora a partir do momento que há a troca de conhecimento com o
outro, sou professora a partir do momento que eu me permito aprender com o meu
aluno. Sou professora pois estou lá de mente aberta e pronta para ouvir e respeitar meu
aluno. Sou professora de inclusão pois sem o educando não há o processo de
aprendizagem. Olhar para todos os alunos e perceber suas particularidades e suas
REAIS (grifo da autora) necessidades. Desafiá-los, encorajá-los. E com isso buscar o
sentido: pra quê escola? Pois o aluno que não vê sentido na escola, fica perdido, para
trás. E o professor consciente e que sabe o sentido de seu dever entende que a inclusão
está na união/troca/empatia com seu principal foco, o aluno. Finalizo com Ghandi: seja a
mudança que você quer e deseja ver no mundo.”

No primeiro momento da escrita da narrativa, a professora indaga a partir


de uma visão técnica hegemonicamente aceita pelos educadores. O termo
“auto-regulação”, considera o sujeito com TEA em sua organicidade, porém em
sua avaliação final, a professora traz indícios de seu processo formativo. Ao
dizer “troca de conhecimento com o outro”; “Olhar para todos os alunos e
perceber suas particularidades es suas REAIS (grifo da autora) necessidades”,
essa professora traz marcas do referencial estudado no decorrer do curso.
Refletindo esse movimento, retomamos as palavras de Caporale e
Sarmento (2015) acerca das possibilidades do narrar, quando mencionam que
o saber construído cotidianamente, fruto da experiência, podem culminar em
aprendizagens. Luiza relata “Sou professora de inclusão pois sem o educando
não há o processo de aprendizagem”. Levando em consideração a
aprendizagem do professor, Caporale e Sarmento (2015, p.15) apontam que
essas situações “podem ser potenciadoras de aprendizagem profissional se
forem sujeitas a uma reflexão crítica partilhada, quer com os pares, quer com
as ciências da educação e com as ciências da especialidade”.
A professora Mariana, atuante na educação infantil, também narra suas
experiências com uma criança com TEA:

N1: Mariana: “No ano de 2011, tive um aluno no infantil IV, que tinha traços do TEA. A
maior dificuldade de toda a equipe escolar, foi em conseguir fazer com que a mãe,
aceitasse os encaminhamentos e orientações para se fechar o diagnóstico. Recusa,
negação e por fim, a transferência do aluno para outra escola [...] hoje sou conselheira
tutelar e inúmeras são as vezes, em que somos acionados pelas escola que relatam das
dificuldades com os alunos “de inclusão. Relatam dos problemas familiares e da falta de
apoio na rede, são 69 escolas municipais, cerca de 15 mil apenas dessas escolas, sem
contar as escolas estudais (19)”

Nesse recorte narrativo, Mariana menciona as dificuldades do seu


trabalho: lidar com a família, a falta de apoio da rede de ensino e etc. Além
disso, seu dizer marca a insistência e importância que a escola dá ao
diagnóstico. Se entende, portanto, que sua narrativa escrita vai trazendo
indicios do olhar que atravessa seu processo de formação enquanto
professora. Ao dizer: “tive um aluno no infantil IV, que tinha traços do TEA”,
quais vozes estão implicadas nos “traços do TEA”? Qual lugar ocupa a
‘Pedagoga’ Mariana em seu processo de formação?
Refletindo acerca dessas questões, consideramos dois pontos chaves
para o entendimento do lócus discursivo.
Primeiro que, embasando a explicação na pesquisa narrativa, podemos
ponderar o movimento possibilitado por seu corpus teórico. Passeggi,
Nascimento e Oliveira (2016) consideram a narrativa fundamental para o ser
humano e o que se toma enquanto fundamento essencial para constituição das
relações situadas no espaço de construção e (trans)formação da realidade, se
mostra como via de reflexão. Nesse território de discussão, a fala das
professoras, durante os encontros de formação, muitas vezes vem marcadas
pelo ‘não ter tempo’ para formação continuada, mas há de se fazer necessária
a pausa para a reflexão da prática, pois o ‘refletir’ embora que sem a mudança
visível, já é um indício, uma possibilidade, de (trans)formação (ANJOS, 2006).
O segundo ponto diz respeito ao lugar que ocupa a ‘Pedagoga’ Mariana
em seu processo de formação. Ao elaborar seu texto narrativo, na ocasião do
último encontro, passa a olhar para si e para o seu papel como professora:
N2: Mariana: “No meu entendimento incluir significa participar integralmente na
sociedade em que se vive. Por um lado, se digo que sou professora de inclusão estarei
segregando os alunos “ditos de inclusão”. Acredito que o mais correto seria dizer que
sou professora que procuro dar oportunidades aos meus alunos, independente de seu
estilo de aprendizagem, de estarem aptos para participar integralmente na sociedade em
que vive.”

Se, na primeira narrativa, Mariana se coloca fora do processo de ensino-


aprendizagem, na segunda, ela já se assume professora de todos os alunos,
que busca caminhos para que eles possam aprender.
O discurso da professora, ao término do curso, não revela uma mudança
radical em seu modo de ser professora, porém, dá indícios de alguns
deslocamentos: o olhar de Mariana para os “traços do TEA” foi se
movimentando para situações nas quais os sujeitos são concebidos como
frutos de um processo biopissicosocial. As possibilidades para os alunos,
oriundas da fala da professora, vai ao encontro do estudo de Pereira (2018),
trabalhado no curso, no qual, por meio de situações de interação entre
professor-pesquisador e, na busca por situações que faziam sentido para o
aluno, ambos modificam seus modos de agir – professor se desloca de uma
prática imediatista para uma relação pedagógica perpassada de sentidos e
possibilidades de/para o processo de desenvolvimento, e, o aluno, passa a
interagir com o professor não mais por agressões, mas pela palavra.
Maria, a outra participante do curso, revela não ter tido experiência com
alunos com TEA. Vejamos o que diz sua primeira narrativa:

N1: Maria: “Não tenho experiência com criança portadora de TEA, portanto tenho
curiosidade sobre o tema, pois como profissional, poderei receber em qualquer instante
um aluno e quero ao menos saber como recebê-lo. Tenho receio, pois sempre escuto
relatos que me deixa nervosa. Quero aprender a buscar práticas que contribuam para o
ensino e aprendizagem caso receba uma criança com esse transtorno. É importante
também conhecer melhor as (formas) teóricas técnicas para lidar com o aluno para que o
processo facilite a relação.”

Ao narrar, Maria vai refletindo sobre o que a levou a fazer o curso de


extensão: saber receber o aluno, se preparar, pois tem medo, pelos relatos que
escuta. Em sua narrativa, Maria revela que sua dificuldade está nos modos de
relacionar-se com o aluno, em função dos supostos problemas de interação
que há com crianças com TEA. Mas, ao mesmo tempo, ela também revela
querer contribuir com o ensino e aprendizagem do aluno. Visando a
problemática levantada pela da professora, tensionamos sua narrativa escrita
no sentido de buscar entender: de onde vem esses discursos de que a criança
com TEA surta e tem problemas de interação? Entendemos que a ênfase nas
características diagnósticas impactam as percepções da professora sobre o
aluno com TEA e, ao mesmo tempo, ela parece saber seu papel de ensinar.
Esses movimentos fazem parte da contradição presente em sua narrativa.
A respeito disso, Martins e Monteiro (2017, p. 223) explicam que a criança
autista, comumente é vista por seus aspectos “impossíveis” ou seja, focaliza-se
comportamentos e as “[...] propostas educacionais focam métodos específicos
que tendem a valorizar a execução de tarefas, a inibição de ações
consideradas indesejáveis ou incompreensíveis”. As autoras sinalizam no
sentido de que o professor olhe para o aluno em sua singularidade, para o que
é possível e emergente das situações concretas. Espera-se que a educação e
o ensino dessas pessoas sejam movimentados pelas trocas entre os sujeitos,
em um espaço simbólico e de linguagem (MARTINS, MONTEIRO, 2017).
Na sequência, vejamos o que narra Maria:

N2: Maria: “Ser professor de inclusão muitas vezes não é uma escolha pessoal, a
inclusão entra na vida do profissional e temos que ir atrás de novos conhecimentos para
colaborar com aquele aluno que é meu neste ano.”

Em sua segunda narrativa, Maria continua a refletir sobre o que é ser


professora de alunos com deficiência. Para ela, não é uma escolha. Podemos
interpretar essa narrativa, pensando que Maria está dizendo que a inclusão já é
uma realidade e que para lidar com os alunos, o professor precisa estar
preparado, buscar conhecimentos, o que ela faz quando decide fazer o curso
de extensão.
Nesse sentido, destacamos a importância de situações e espaços de
formação na qual a identidade do ser professor é valorizada. Se espera,
portanto, uma relação de ensino-aprendizagem humanizada e humanizadora,
na qual os sujeitos se relacionam, culminando em um processo de
(trans)formação e produção de saberes oruindos desses momentos de
reflexão.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo propusemos a discussão de como a pesquisa narrativa


possibilitou um movimento de formação para um grupo de professoras do
interior do estado de São Paulo.
Ao longo do texto trouxemos excertos que contribuem para a reflexão de
como a pesquisa narrativa se constitui como lugar de formação humana, e
portanto, profissional.
Ao analisar as narrativas das professoras, entendemos que o aluno com
transtorno do espectro autista desestabiliza o professor, como se o tirasse de
sua zona de conforto, de modo a ‘colocar’ o seu saber em questão. Se
considera assim, as mobilizações e tensões oriundas da pesquisa narrativa,
como um lócus de possibilidade de formação. Pelos excertos que analisamos,
as narrativas escritas das professoras desvelamque elas consideram que têm
poucos conhecimentos para lidar com os alunos com deficiência e, por isso,
buscam o curso de formação; entendem que ter um aluno com deficiência não
é uma escolha e que precisam estar preparadas e, ainda, as narrativas revelam
alguns indícios de que os conteúdos abordados no curso provocaram reflexões
nas docentes em relação ao modo de compreenderem as singularidades dos
aluno com TEA, o que pode refletir em suas práticas pedagógicas.
Tendo em vista os limites do trabalho que realizamos no curso de
formação: curta duração, o que denota pouco tempo para as (re)elaborações
das professoras, consideramos que as reflexões nas narrativas nos apontam
alguns indícios, especialmente, em relação ao papel que as docentes têm no
ensino de todos os alunos.
Desse modo, consideramos que a narrativa, como atividade simbólica de
linguagem, se constitui como um meio/modo de elaboração de conhecimento
para o professor e, assim, se faz relevante a oportunidade de espaços coletivos
de discussão de suas práticas e compartilhamento de suas experiências para,
juntos, enfrentarem os desafios da prática docente no contexto da diversidade.

REFERÊNCIAS

ANJOS, Daniela Dias dos. Como foi começar a ensinar?: histórias de


professoras, histórias da profissão docente / Daniela Dia dos Anjos.
Campinas, SP. 2006.

APA, Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais; American


Psychiatric Association; Tradução: Maria Inês Corrêa Nascimento; - 5.ed. -
Porto Alegre: Artmed, 2014.

BENJAMIN, Walter. O narrador. In: BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte


e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo
Rouanet, 2. ed. Brasiliense, 1986 .

CAPORALE, Silvia Maria Medeiros; SARMENTO, Teresa Jacinto. Cruzar o mar


na formação e na ação: narrativas de professores portugueses e brasileiros.
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https://revistahorizontes.usf.edu.br/horizontes/article/view/171/74. Acesso em
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COELHO. Roseane Martins. Formação de professores: narrativas de


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FREITAS, Ana Paula de. A narrativa (auto)biográfica como meio/modo de


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educação inclusiva (2019. p. 1 - 27. no prelo).

HAAS, Lurdi. LISBOA, Waldiney Jorge de. MARIANI, Fábio. MONTEIRO,


Filomena Arruda. Narrativas de formação de professores que atuam na
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Disponível em: < http://publicacoes.unicid.edu.br/index.php/ambienteeducacao
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HUNT, Peter. Crítica, teoria e literatura infantil. São Paulo. Cosac Naify,
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