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O Intruso: Como é a sua relação com ele? Você sabe por que ele usa essa roupa?

Imaginamos que é uma


espécie de disfarce. Ele se recusa a falar.

NC: Simplesmente amo a época do natal. Não sou religiosa, longe disso, não sei explicar, é uma doença.

O Intruso: Vocês moram aqui juntos? Nós o encontramos em um escombro. Estava escondido e machucado.

NC: Sempre decoro minha casa. Você gostou daqui? Da casa? É bonita, né? E os enfeites?

O Intruso: Ele perdeu muito sangue e por sorte não foi preso. Tem mais gente morando aqui?

NC: Dá pra ver que você gostou. Quando eu estava procurando uma casa, o corretor me levou a esse lugar
que eu chamo de depósito, eu disse “não tem nada no número 21 além de um depósito”, ele perguntou “você
tem um homem para pagar por isso”?

O Intruso: Ele mora com a senhora? Você precisa cuidar dos ferimentos dele, mas não pode leva-lo a um
hospital.

NC: Então o corretor continuou: “sim, um homem, você precisa ter um homem como todas essas mulheres
normais, como todas essas piranhas casadas com tiranos ou golpistas do Oriente ou da América Latina,
piranhas intoleráveis que se vestem bem para que ninguém perceba que são piranhas de uma ditadura
parasita ou mulheres submissas enquanto seus maridos aniquilam o povo”. Eu respondi a ele que eu não
precisava de um marido e que ele devia calar a boca, que ele não sabia quem eu era nem do que eu era capaz,
mas que agora eu era apenas uma senhora que decora a casa para o natal.

O Intruso: Não se dá conta? Sabe por que eu estou aqui? Está zombando de mim? Se você pudesse se ouvir.
Tem uma coisa para acontecer, vai ser grande e não vai ser bom. A situação do país não vai bem e seu filho é
um dos manifestantes mais visados. Um dos líderes do movimento. Seu filho faz parte disso e você não terá
feito nada para impedir, você vai se arrepender. Você não vê que ele não tá bem? Duas pessoas morreram no
último protesto, e ouvi dizer que planejam um atentado maior para o dia 28. Chamam ele de Suzano. Você
sabe por que Suzano? Suzano com Z?

D: O que você quer? Não diga nada a ela, eu respondo o que você quer saber.

O Intruso: Você já poderia ser preso por formação de quadrilha armada, desacato, ato obsceno, uso de
artefato explosivo, explosão seguida de...

D: O que você quer?


O Intruso: Você achou que estaria seguro ou que isso te ajudaria? Por que não pede ajuda pra sua mãe?

NC: Você me conhece?

O Intruso: Falando desse jeito, você parece senil, uma ex-militante senil. Na verdade pouco se parece com a
mulher de que se ouve dentro dos quartéis. Aquela que lutou contra o regime militar.

NC: Seu rosto ou seu jeito de falar: tem alguma coisa familiar da qual eu não gosto. Você disse militante?

O Intruso: Calma, você está descontrolada.

NC (perdendo o controle): Vamos. Fale “cale a boca, sua piranha”. Vamos, grite, grite como eles. Fale “você
vai morrer neste buraco, sua vagabunda idealista ingênua sonhadora”.

O Intruso: Me desculpe, eu não queria causar esse tipo de lembrança. Está tudo bem. Esqueça.

NC: Eu vou me acalmar, eu vou colocar Elton John. E acho que ainda vai levar um bom tempo. Para que ele
me perdoe. Talvez um dia ele me perdoe. Eu não sou a mulher que eles pensam que eu sou. Eu não podia ser
a mãe que eles queriam que eu fosse. Eu desejava estar em outro lugar. Um lugar melhor. Um país melhor.
Foi por isso que eu lutei, por um futuro melhor pro meu filho. E acho que ainda vai levar um bom tempo,
acho que ainda vai levar muito tempo. Me perdoe, por favor, querido. Eu ainda posso te ajudar, por favor, me
deixe te ajudar pelo menos uma vez. É verdade? É verdade o que ele disse?

D: O que você quer? Eu nunca mais quero ouvir tua voz falando sobre corretores de imóveis. Eu não quero
mais ouvir o teu nome. Eu nunca mais quero ouvi-la dizendo coisas como “você tem sorte, não reclame, você
pôde estudar e fazer obturações, seus dentes são bons, eles não quebraram seus dentes e suas costelas, você
não sabe o que é uma ditadura”. Eu nunca mais quero fazer obturações. Eu nunca mais quero ir ao seu
dentista. Não quero encontrá-la numa recepção esperando para fazer obturações ou canais, esperando por
obturações numa sala climatizada ouvindo Itapema FM ou alguma porcaria do Elton John. Os dentes com
canal escurecem porque estão mortos, estão lá mas estão mortos, você se tornou uma pessoa horrível como
um dente com canal. Você, pra mim, tá morta. (desmaia)

NC: Calma, querido. Eu posso te chamar de querido? Fique deitado.

D: Que dia é hoje? Dia 28 vai acontecer o grande ato, eu preciso ir às ruas e evitar que a situação do país
piore. É a nossa maior chance de evitar que as coisas piorem de vez, antes que acabe o ano.
NC: Tente esquecer as coisas por um instante. É natal.

D: Então ainda não estamos no dia 28?

O Intruso: Calma, não se levante.

NC: Eu acho que eu não tenho mais nenhum curativo decente.

D: Me dá alguma coisa do tipo Neosaldina e depois me deixe ir embora.

NC: Não dá pra você sair assim.

D: Claro que dá, apenas me arranje alguma coisa do tipo Naldecon Dia, não sei...

NC: Eu acho que eu sei quem é ele, mas eu não sei exatamente o que ele quer e as coisas que ele diz, o modo
como ele fala... Acho que já ouvi aquela voz nas sessões de tortura, mas, às vezes, eu me confundo com isso,
você sabe, costuma acontecer.

D: Naldecon dia é melhor do que Vick Vaporub? Pode ser sal mesmo então, um punhado de sal deve servir,
algo que levante a minha pressão e eu possa me virar sozinho de novo, as coisas lá fora estão me esperando,
entende? É urgente. Fale alguma coisa pra eu ter certeza de que você é você.

NC: Você ouviu o que eu disse?

D: Fale alguma coisa.

O Intruso: Isso tem de ser rápido, o governo está sabendo. Vocês precisam fugir se você quiser continuar
vivo e livre.

D: Apenas me dê a pomada, eu vou aceitar isso de você, ok? Eu vou aceitar também um punhado de sal e eu
vou embora. Quer dizer, você tem uma coca-cola também?

O Intruso: Olha, talvez seja bom que vocês me ouçam agora, isso está ficando sério e não há mais tempo. Os
exércitos reforçaram os alertas.

D: Eu não sei quem é este cara. E se ele tiver chamado a polícia, e se ele for a polícia, e se ele estiver do lado
deles? (para ele) De que lado você está, você não fala nada direito. (para NC) Quer saber? Não me chame de
querido, eu odeio a sua voz dizendo querido.
O Intruso: Não fale assim com ela.

NC (para O Intruso): Deixe que ele fale como quiser comigo, ok?

D: Você parece uma imbecil. Eu odeio estar aqui.

NC: Não fale assim comigo. Deite-se de novo. Eu estou terminando o curativo.

O Intruso (para D): Eu consegui um tempo pra você.

NC: Você precisa comer alguma coisa. Podemos arrumar a mesa com boas louças e comer juntos, comer
ainda é possível, não é? É natal. Eu posso preparar alguma coisa, uma ceia.

D (para O Intruso): O que você disse?

O Intruso: Eu consegui um tempo. Será suficiente para começar a melhorar.

NC: Ok, então vamos fingir que está tudo bem por alguns minutos. Feliz natal! Eu não sabia que você viria,
filho, então não tenho nenhum presente pra você.

O Intruso: Será suficiente e então você precisa fugir, não sei, se esconder, eu não posso ajudar mais do que
isso, entende?

NC: O que eu poderia dizer para que isso fique mais confortável, quer dizer, este momento? Vamos fingir só
um pouquinho, ninguém pode tomar remédio com o estômago vazio. Brindemos então, por que não? Há
sempre algum motivo, sim, vamos brindar às coisas boas. À vida. À vida. O que mais? Me ajuda. Ah, já sei,
já sei. Um brinde aos bons dentistas! Aos decoradores de casas, às casas escondidas e seguras, às casas onde
ninguém pode te achar. Um brinde à juventude de dentes brancos e às estrelas que brilham cheias de luz
sobre os jovens. Havia tanta esperança naqueles dias, mas agora...Você sabe, a minha história... Você sabe, eu
queria mudar o meu país, mas...Você sabe, eu achava que eu poderia mudar alguma coisa, eu achava que…
Mas quando você experimenta a solidão absoluta, quer dizer, aquele tipo que acontece às 4h30 da manhã
numa cela de... Na cela de uma... Você… Esqueçam. Eu estou aqui, agora. Eles poderiam ter acabado
comigo, mas eu estou aqui. Um brinde às almofadas de cor salmão e ao conforto que temos agora, depois de
tudo. Feliz natal!

D: Não há mais conforto neste país, você não entendeu? (para ele) Vá embora, você quer me prender, por
que não me prendeu ainda? Quem é você? Você é um miliciano? Você é do governo?
O Intruso: São perguntas sem resposta, não entendeu ainda?

D: Você é da polícia ou da igreja? Você nos conhece? Por que você está me seguindo? Você está me seguindo
ou me ajudando, Intruso? Quanto vai custar tudo isso? Nada é de graça. Você é da Nasa?

NC: Pare de dizer essas coisas confusas. Mê dê um tempo, por favor, sentamos, comemos e sorrimos e
depois vamos resolver as coisas com estes remédios, você está ficando mais pálido. Gosta desta toalha?

D: Você parece uma idiota falando sobre natal, eu tinha orgulho de você, mas agora você mente como uma
cínica. Há mentira mesmo nas manhãs mais bonitas.

NC: Não há nada mais inofensivo do que decorar uma casa com o espírito natalino, não me julgue.

O Intruso: Escute, assim que sentir-se melhor, desapareça, tentem ficar juntos. Eles chegarão e quando eles
chegarem, eu estarei com eles. Eu os ajudarei porque quando estou com eles, é assim que funciona.

NC (para ele): Eu nunca vou deixar esta casa.

D: Que droga, eu não consigo levantar.

NC (para ele): Você em algum momento achou que eu sairia daqui? (para D) Eu não podia ser um tipo de
mãe, mas agora você tem a idade que eu tinha e você talvez entenda. Você acha que pode mudar alguma
coisa? Você acha? Você vai, no máximo, explodir a cabeça de alguém e nunca mais vai conseguir dormir
pensando na cabeça que você explodiu.

D (para ele): O que você disse a ela?

NC: Você vai conseguir? Você vai conseguir se eles quebrarem as suas costelas e você não puder mais
respirar e depois arrancarem os seus dentes? Você vai lá dia 28 e vai fazer o quê?

D (avançando sobre ele): O que você disse a ela?

O Intruso a paralisa facilmente, como um policial. NC avança sobre ele.

NC: Solte a minha filha. Não encoste na minha filha, não encoste nunca mais na minha filha.

D se desvencilha. As duas estão descontroladas, mas agora nasce algum tipo de amor.
NC: Pare de resmungar porque você não teve a mãe que você imaginava, aquilo era o melhor que eu tinha.
Você pôde estudar e fazer obturações e sonhar com planetas distantes. As mães e as crianças deste país, eu
não tenho força pra te explicar, mas eu queria que você soubesse que todo dia, uma mãe neste país...

D (a interrompe): Eu sei e é por isso que eu estou tentando.

NC: Você não sabe o que é ser uma mãe neste país, esse tipo de coisa não está no discurso de ninguém, uma
mãe insone às 4h30 da manhã não faz sentido no discurso de ninguém. O que você sabe sobre isso?

D: Nós ocupamos a avenida e caminhávamos pacificamente, era bonito ver aquelas pessoas juntas querendo
mudar as coisas e eu pensei em você, eu estou lutando também, este é o meu tempo, eu estou aqui, “não é
todo dia que precisam de nós”. O que aconteceu com você?

NC: Eu não quero que você veja as coisas que eu vi, eu não quero que você ouça as coisas que eu ouvi, mas
você está certo, você está certo, vamos lá, vamos lá.

D: Não foi culpa minha, não foi culpa deles, eu não sei o que aconteceu, eles estão inventando, a gente não
pode parar agora.

NC (para ele): Me ajude com ela, ela está ficando sem cor, pode me ajudar aqui?

O Intruso: Não chamem uma ambulância, não apareçam num hospital, não confiem em ninguém,
desapareçam. Saiam. Fujam. Ninguém pode mudar nada. Ou pode?

D: Eu poderia dormir aqui. É tão macio, bom e inofensivo. Tudo podia ser simplesmente como este lugar.

NC: Shu. Fique quieto um pouco, tome o remédio. Isso. Engula. Tente dormir.

D: Diga a ele que vá embora. Ele sabe onde me encontrar: dia 28, 4h30 da manhã. Eu estarei lá, eles
precisam de mim, eu só vou dormir um pouquinho aqui antes, mas eu já vou, tudo bem?

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