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“Se uma pessoa é gay e busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu

para julgá-la?” A afirmação do Papa Francisco durante a sua viagem


ao Brasil em 2013 se tornou viral e se impôs no contexto midiático. Algo
semelhante poderia acontecer com a expressão usada por ele no
documentário do diretor russo Evgeny Afineevsky, intitulado
"Francesco": “As pessoas homossexuais têm o direito de estar em uma
família. São filhas de Deus e têm direito a uma família. Ninguém deveria
ser expulso ou ficar infeliz com isso. O que devemos criar é uma lei sobre
as uniões civis. Desse modo, elas são cobertas legalmente. Eu lutei por
isso”.
A reportagem é de Gabriele Passerini, publicada por Settimana
News, 22-10-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A legitimidade e a oportunidade de uma legislação civil que regule um
fenômeno social sem confundir a dimensão do matrimônio com a simples
união não é nova no pensamento do papa. Foi isso que ele defendeu
na Argentina em 2010, quando se discutia o casamento gay.
Muito crítico ao projeto de lei, considerado um “grave dano”, ele
considerava aceitável uma normativa com um perfil jurídico próprio. Em
termos tradicionais da teologia moral, “um mal menor”.
A posição de Francisco certamente é diferente do fechamento “a todo
reconhecimento legal das uniões homossexuais” do documento
da Congregação para a Doutrina da Fé de 2003 (“Considerações
sobre os projetos para o reconhecimento legal das uniões entre
pessoas homossexuais”), mas não representa um passe livre para a
equiparação entre união e casamento civil, muito menos a abertura ao
matrimônio religioso dos homossexuais. Ela expressa uma mudança de
abordagem da questão e um olhar que privilegia os dados positivos e
evangélicos sobre os normativos, sem renegar estes últimos.
Reconhecer o amor generoso
Ao longo dos anos do pontificado, não faltaram sinais. Lembremos
alguns. Em 2014, durante o primeiro Sínodo sobre a família, houve um
momento de forte discussão ao término da Relatio post
disceptationem, ou seja, do relatório após o debate na sala e antes dos
trabalhos em grupo [disponível aqui, em português].
No n. 52, dizia-se: “Sem negar as problemáticas morais ligadas às uniões
homossexuais, tomamos consciência de que há casos nos quais o apoio
recíproco até ao sacrifício constitui um apoio precioso para a vida dos
parceiros. Além disso, a Igreja dedica atenção especial às crianças que
vivem com casais do mesmo sexo, reafirmando que devem ser sempre
postas em primeiro lugar as exigências e os direitos dos filhos”.
Os números 50-52 não alcançaram a maioria de dois terços, e o tema caiu,
mas, entre os contrários, havia também aqueles que os consideravam
muito cautelosos. De todos os modos, o papa, ao se encontrar com o
redator dos textos, encorajou-o sem se mostrar preocupado com o revés.
A exortação pós-sinodal Amoris laetitia (2016), no n. 297, tem esta
passagem: “Ninguém pode ser condenado para sempre, porque esta não é
a lógica do Evangelho! Não me refiro só aos divorciados que vivem numa
nova união, mas a todos seja qual for a situação em que se encontrem”.
Em uma das respostas do livro entrevista a Dominique Wolton, lê-se: “O
que pensar do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo? O
‘matrimônio’ é um termo histórico. Desde sempre, na humanidade e não
só na Igreja, ele é composto por um homem e uma mulher. Isso não pode
ser mudado. É a natureza das coisas. É assim”.
E continua: “O matrimônio, isto é, um homem com uma mulher. Esses
são os termos precisos. Chamemos a convivência homossexual de união
civil... mas não é um matrimônio, é uma união civil”.
Na exortação pós-sinodal Christus vivit (2019), no n. 81, diz-se: “Os
jovens reconhecem que o corpo e a sexualidade são essenciais para a sua
vida e para o crescimento da sua identidade. Mas, num mundo que
destaca excessivamente a sexualidade, é difícil manter uma boa relação
com o próprio corpo e viver serenamente as relações afetivas. Por esta e
outras razões, a moral sexual é frequentemente causa de incompreensão e
alheamento da Igreja, pois é sentida como um espaço de julgamento e
condenação. Ao mesmo tempo, os jovens expressam de maneira explícita
o desejo de se confrontar sobre as questões relativas à diferença entre
identidade masculina e feminina, à reciprocidade entre homens e
mulheres, e à homossexualidade”
Deslocamentos teológicos
Indireta, mas de um certo peso, é a interpretação que a Pontifícia
Comissão Bíblica, no documento “O que é o homem?” (2019), no
número 195, fez do relato do pecado de Sodoma, em Gênesis 19,1-29.
Esse texto é sempre citado na tradição para sustentar a desaprovação
bíblica da orientação e da prática homossexuais (também no Catecismo
da Igreja Católica). A Comissão demonstra que, na realidade, a exegese
da passagem deve ser revisada.
O verdadeiro pecado de Sodoma é a falta de hospitalidade ao forasteiro,
representado pelos dois anjos. “A rejeição do diferente, do estranho, do
necessitado e indefeso é princípio de desagregação social, tendo em si
mesma uma violência mortífera que merece uma pena adequada”.
Em um recente encontro com os pais de homossexuais da associação
Tenda di Gionata, o Papa Francisco disse: “O papa ama os filhos de
vocês assim como são, porque são filhos de Deus. A Igreja não os exclui,
porque os ama profundamente”.
No episódio, não surgiu uma segunda questão, ligada à bênção da união
homossexual. Excluída do Catecismo da Igreja Católica, ela é
praticado nas Igrejas reformadas e congrega muitas discussões entre os
teólogos. Um exemplo disso é o livro “ Benediktion von
gleichgeschlectlichen Partnerschaften” (Bênção de casais do
mesmo sexo), publicado pela Pustet na Alemanha, que reúne as atas de
uma congresso promovido pela Conferência dos Bispos da Áustria.
Também nesse caso, não está em questão o matrimônio religioso, mas sim
a possibilidade de uma união homossexual ser acompanhada por um
gesto de bênção no nível das orações contidas no Ritual de Bênçãos.
Voltando à ocasião que suscitou a discussão, é preciso lembrar que o
documentário de Evgeny Afineevsky é o relato dos desafios e da missão
da Igreja hoje. Muitas das emergências atuais são reconstruídas por meio
de documentos, trechos de vídeos e entrevistas (de Bento XVI aos
familiares de Bergoglio, do cardeal Tagle a Dom Scicluna) e algumas
respostas do próprio Francisco.
O diretor disse que o filme não é sobre o papa, mas sobre os desastres do
mundo: “Fiquei impressionado com ele não como papa, mas como pessoa.
Ele é um verdadeiro jesuíta, um homem de ação, mas também um
verdadeiro líder. Algo que faz muita falta hoje”.
Leia mais
Documentário “Francesco” oferece retrato comovente do impacto
provocado pelo papa nas pessoas
Grupo Global de Católicos acolhe a recente notícia na qual o Papa
Francisco indicou que “os casais homossexuais merecem proteção
legal para suas relações”
Papa Francisco: “Sou a favor das uniões civis, as pessoas
homossexuais têm direito a uma família”
Papa Francisco diz “sim” às uniões civis para casais homossexuais
A "virada histórica" do Papa nas uniões civis é apenas o ponto de
partida
O chileno salvo por Bergoglio “Ele foi o primeiro a acolher os
homossexuais como filhos de Deus”
Em nome do próximo
O Papa leva o amor de volta à dimensão do evangelho
Uma virada livre e corajosa que levanta o tema da parentalidade.
Artigo de Lucetta Scaraffia
O apoio do papa Francisco às uniões civis: boas e más notícias
A última afirmação do Papa sobre a união civil de pessoas do
mesmo sexo é saudada como um progresso pela comunidade
LGBT
O Conselho Pastoral de Católicos LGBT+ de Westminster saúda os
comentários do Papa Francisco sobre uniões do mesmo sexo e
direito à vida familiar
Igreja e homossexuais: que acolhimento?
“O Papa me disse: Deus ama os filhos homossexuais como eles são”
Francisco para os pais e mães de homossexuais: “A Igreja ama os
vossos filhos do jeito que eles são, porque são filhos de Deus”
"O que é o homem". Um importante documento da Comissão
Bíblica do Vaticano
“Quem sou eu para julgar os gays”. Conversa do Papa com os
jornalistas

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