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Ebook

O Problema da Educação Moderna


Monsenhor Álvaro Negromonte
Professor Guilherme Freire
Dr. Martín Frederico Echavarría
Prefácio: Carta do Papa Bento XVI
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA
Monsenhor Álvaro Negromonte
Professor Guilherme Freire
Dr. Martín F. Echavarría

Edição eBook – Maio de 2021 – Editora do Instituto Santo Atanásio

Coordenador Editorial
Ademir Segunda Halinski

Editor
Augusto Carlos Pola Júnior

Prefácio
Carta do Papa Bento XVI à Diocese e à Cidade de Roma

Revisão
Instituto Santo Atanásio

Capa e diagramação
Juscelino H. Silva

NEGROMONTE, A., FREIRE, G., ECHAVARRÍA, M, F. O Problema da Educação Mo-derna.


Edição eBook. Curitiba: Editora Santo Atanásio, 2021. 147 pp.
1.Educação 2. Pedagogia Católica 3. Catolicismo

Curitiba – PR
E–mail: contato@institutosantoatanasio.org
www.institutosantoatanasio.org
Sumário
APRESENTAÇÃO............................................................................... 6
PREFÁCIO......................................................................................... 9

EDUCAÇÃO, CONCEITO DE VIDA E EDUCAÇÃO INTEGRAL


MONSENHOR ÁLVARO NEGROMONTE

Capítulo i: Educação e Conceito de Vida.............................................. 20


1. Conexão com a filosofia................................................................. 21
2. Através da história........................................................................ 22
3. O naturalismo burguês................................................................... 23
4. Reduzem a Religião........................................................................ 24
5. Falta a visão do eterno................................................................... 25
6. Em face da sociedade..................................................................... 27
7. Os individualistas........................................................................... 28
8. Funestas consequências.................................................................. 29
9. No campo educacional.................................................................... 29
10. Descaso...................................................................................... 30
11. Os totalitários............................................................................ 32
12. Pedagogia totalitária................................................................... 33
13. O verdadeiro conceito.................................................................. 35
14. O que é o homem.......................................................................... 36
15. No plano histórico....................................................................... 37
16. Hierarquia de valores................................................................... 38
17. Consequências pedagógicas........................................................... 39
Capítulo ii: Educação Integral............................................................ 42
18. Visões parciais............................................................................. 42
19. Visão integral............................................................................. 43
20. A nossa pedagogia. ...................................................................... 44
21. Fim último................................................................................... 44
22. Formar o homem integral.............................................................. 45
23. Síntese pedagógica. ..................................................................... 46
24. Os meios..................................................................................... 48
25. Perigo a evitar............................................................................ 49
26. Unidade educativa........................................................................ 50
27. Hierarquia de fins........................................................................ 51
28. Respeito aos valores.................................................................... 53
29. “Teu nome é paciência”................................................................. 53
30. Respeitar o educando................................................................... 54
31. Perfeição pedagógica................................................................... 55
32. Aguardar os frutos..................................................................... 56

A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA E A DOUTRINAÇÃO NAS


ESCOLAS: A ORIGEM DOS PROBLEMAS
PROF. GUILHERME FREIRE

Capítulo i: A Falência da Educação Moderna. ...................................... 58


Capítulo ii: A Doutrinação nas Escolas. .............................................. 74

A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO


MARTÍN F. ECHAVARRÍA

A Criança e sua Educação segundo Tomás de Aquino................... 98


1. A criança é uma pessoa.............................................................. 99
2. Etapas do desenvolvimento da criança.................................... 104
3. Características da infância....................................................... 110
4. A criança é “algo do pai”.......................................................... 122
5. A idade da razão....................................................................... 131
6. Do pai humano a Deus Pai........................................................ 138
Apresentação

N
ão há qualquer novidade em atestar que
estamos em uma época de crise. Além
disso, as pessoas têm um sentimento difuso e um
pouco obscuro de que, para as coisas melhorarem,
é necessária uma boa educação. Um dos traços da
sociedade moderna, todavia, é a demagogia, de
modo que se por um lado é unânime a opinião
de que a educação é importante; por outro, pou-
cos são os que saem da superfície do problema,
pois, afinal, seria preciso perguntar: o que é edu-
cação? E quantos são capazes de dar uma resposta
satisfatória?
Da pergunta sobre o que é a educação, segue-se
o porquê de ela ser importante para a superação
da crise. A partir disto, a situação ficará ainda mais
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APRESENTAÇÃO

tenebrosa, pois veremos neste livro que, longe de


estarmos caminhando para uma educação salva-
dora, estamos em um sistema cuja educação é, na
verdade, a grande propulsora da crise.
Eis o drama: sendo o homem feito à imagem e
semelhança de Deus, dotado, portanto, de Inteli-
gência e Vontade, foi criado para viver em liber-
dade, que reside no amor a Deus. Porém, por
causa do pecado original, as faculdades de sua alma
foram enfraquecidas e, deste modo, se não formos
educados, seremos escravos das paixões oriundas
das faculdades inferiores da alma. No fim, temos
que a boa educação faz do homem um ser livre; a
má, um escravo de suas paixões e desejos.
O propósito deste eBook é tratar a respeito
do tema O Problema da Educação. Para isso, além
de trazermos uma carta do Papa Emérito Bento
XVI que servirá de prefácio a este livro, teremos
outras três partes. Na primeira, um trecho do livro
sobre educação dos filhos do Monsenhor Álvaro
Negromonte em que o antigo Diretor de Ensino
Religioso da Arquidiocese do Rio de Janeiro
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O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

– respeitadíssimo pedagogo – tratará de modo


geral, mas preciso, das más considerações que
estão presentes na pedagogia moderna e a neces-
sidade de levar em consideração uma educação
integral. Também neste sentido, na segunda parte,
o professor Guilherme Freire discorrerá sobre a
falência da educação moderna, apontando para
os problemas de fundo pedagógicos e filosóficos.
Por fim, se o reerguimento da educação, con-
forme será defendido pelo professor Guilherme
Freire, passa pelo resgate do paradigma tomista, a
última parte do livro será a tradução que fizemos
de um artigo científico de autoria do psicólogo e
filósofo Dr. Martín Echavarría, maior autoridade
em psicologia tomista da atualidade, em que tra-
tará do tema da psicologia na educação.
Esperamos que este livro possa ser fonte de
compreensão e inspiração para que possamos tra-
balhar, à medida do possível, por uma educação
verdadeira, isto é, uma educação de base católica.

Instituto Santo Atanásio

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Prefácio
SOBRE A TAREFA URGENTE DA
FORMAÇÃO DAS NOVAS GERAÇÕES1

Carta do Papa Bento XVI à Diocese e à Cidade de Roma

Queridos fiéis de Roma!

P
ensei dirigir-me a vós com esta carta para
vos falar de um problema que vós próprios
sentis e sobre o qual vários componentes da nossa
Igreja se estão a comprometer: o problema da
educação. Todos temos a preocupação pelo bem
das pessoas que amamos, sobretudo das nossas
1. Vaticano, 21 de Janeiro de 2008. Disponível em:
http://www.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/letters/2008/docu-
ments/hf_ben-xvi_let_20080121_educazione.html

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O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

crianças, adolescentes e jovens. De fato, sabemos


que depende deles o futuro desta nossa cidade.
Portanto, não podemos deixar de ser solícitos pela
formação das novas gerações, pela sua capacidade
de se orientar na vida e discernir o bem do mal,
pela sua saúde não só física, mas também moral.
Mas educar nunca foi fácil, e hoje parece se tor-
nar sempre mais difícil. Sabem-no bem os pais, os
professores, os sacerdotes e todos os que desempe-
nham responsabilidades educativas diretas. Fala-se
por isso de uma grande “emergência educativa”,
confirmada pelos insucessos com os quais com
muita frequência se confrontam os nossos esforços
para formar pessoas sólidas, capazes de colaborar
com os outros e dar um sentido à própria vida.
É espontâneo, então, dar a culpa às novas gera-
ções, como se as crianças que nascem hoje fossem
diversas das que nasciam no passado. Além disso,
fala-se de uma “ruptura entre as gerações”, que
certamente existe e pesa, mas que é o efeito, e não
a causa, da malograda transmissão de certezas e
valores.
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— 10 —
PREFÁCIO

Devemos, portanto, dar a culpa aos adultos de


hoje, que talvez já não sejam capazes de educar?
É forte certamente, quer entre os pais quer entre
os professores e em geral entre os educadores, a
tentação de renunciar, e antes ainda o risco de não
compreender nem sequer qual seja o seu papel, ou
melhor, a missão que lhes foi confiada. Na reali-
dade, estão em questão não só as responsabilidades
pessoais dos adultos ou dos jovens, que contudo
existem e não devem ser escondidas, mas também
uma atmosfera difundida, uma mentalidade e uma
forma de cultura que fazem duvidar do valor da
pessoa humana, do próprio significado da verdade
e do bem, em síntese, da bondade da vida. Então,
torna-se difícil transmitir de uma geração a outra
algo de válido e de certo, regras de comporta-
mento, objetivos credíveis com base nos quais dê
para construir a própria vida.
Queridos irmãos e irmãs de Roma, a este ponto
gostaria de vos dizer uma palavra muito simples:
não temais! Todas estas dificuldades, de fato, não
são insuperáveis. São antes, por assim dizer, a outra
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O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

face da moeda daquele dom grande e precioso que


é a nossa liberdade, com a responsabilidade que
justamente a acompanha. Contrariamente ao que
acontece no campo técnico ou económico, onde
os progressos de hoje se podem somar aos do pas-
sado, no âmbito da formação e do crescimento
moral das pessoas não existe uma semelhante pos-
sibilidade de acumulação, porque a liberdade do
homem é sempre nova e, portanto, cada pessoa e
cada geração deve tomar de novo, e diretamente,
as suas decisões. Também os maiores valores do
passado não podem simplesmente ser herdados,
devem ser feitos nossos e renovados através de
uma, muitas vezes difícil, escolha pessoal.
Mas quando as bases são abaladas e faltam as
certezas fundamentais, a necessidade daqueles
valores volta a fazer-se sentir de modo urgente:
assim, em concreto, aumenta hoje o pedido de uma
educação que o seja verdadeiramente. Pedem-na
os pais, preocupados e muitas vezes angustiados
com o futuro dos próprios filhos; pedem-na mui-
tos professores, que vivem a triste experiência
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— 12 —
PREFÁCIO

da degradação das suas escolas; pede-a a socie-


dade no seu conjunto, que vê postas em dúvida
as próprias bases da convivência; pedem-na no
seu íntimo os próprios jovens, que não querem
ser deixados sozinhos perante os desafios da vida.
Quem crê em Jesus Cristo tem depois um ulterior
e mais forte motivo para não ter receio: de fato,
sabe que Deus não nos abandona, que o seu amor
nos alcança onde estamos e como somos, com as
nossas misérias e debilidades, para nos oferecer
uma nova possibilidade de bem.
Queridos irmãos e irmãs, para tornar mais con-
cretas estas minhas reflexões, pode ser útil deter-
minar algumas exigências comuns a uma autên-
tica educação. Ela tem necessidade, antes de tudo,
daquela proximidade e confiança que nascem do
amor: penso na primeira e fundamental experiên-
cia do amor que as crianças fazem, ou pelo menos
deveriam fazer, com os seus pais. Mas cada ver-
dadeiro educador sabe que para educar deve doar
algo de si mesmo e que só assim pode ajudar os

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O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

seus alunos a superar egoísmos e a tornar-se, por


sua vez, capazes de amor autêntico.
Há já numa criança um grande desejo de saber e
de compreender, que se manifesta nas suas contí-
nuas perguntas e pedidos de explicações. Portanto,
a educação seria muito pobre se se limitasse a dar
noções e informações, e deixasse de lado a grande
pergunta em relação à verdade, sobretudo àquela
verdade que pode servir de orientação na vida.
Também o sofrimento faz parte da verdade da
nossa vida. Por isso, procurando proteger os mais
jovens de qualquer dificuldade e experiência do
sofrimento, arriscamos em fazer crescer, apesar
das nossas boas intenções, pessoas frágeis e pouco
generosas: a capacidade de amar corresponde, de
fato, à capacidade de sofrer, e de sofrer juntos.
Chegamos assim, queridos amigos de Roma,
talvez ao ponto mais delicado da obra educativa:
encontrar um justo equilíbrio entre a liberdade e
a disciplina. Sem regras de comportamento e de
vida, feitas valer dia após dia também nas peque-
nas coisas, não se forma o carácter e não se está
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— 14 —
PREFÁCIO

preparado para enfrentar as provas que não falta-


rão no futuro. Mas a relação educativa é, antes de
tudo, o encontro de duas liberdades e a educação
com sucesso é formação para o reto uso da liber-
dade. Mas à medida que a criança cresce, torna-
-se um adolescente e depois um jovem; portanto
devemos aceitar o risco da liberdade, permane-
cendo sempre atentos a ajudá-lo a corrigir ideias
e opções erradas. O que nunca devemos fazer é
favorecê-lo nos erros, fingir que não os vemos, ou
pior: partilhá-los, como se fossem as novas fron-
teiras do progresso humano.
Portanto, a educação nunca pode prescindir
daquela respeitabilidade que torna credível a prá-
tica da autoridade. De fato, ela é fruto de experiên-
cia e competência, mas se adquire sobretudo com
a coerência da própria vida e com o comprome-
timento pessoal, expressão do amor verdadeiro.
Portanto, o educador é uma testemunha da ver-
dade e do bem: sem dúvida, também ele é frágil e
pode falhar, mas procurará sempre de novo se pôr
em sintonia com a sua missão.
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O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Caríssimos irmãos de Roma, destas simples con-


siderações sobressai como é decisivo na educação
o sentido de responsabilidade: responsabilidade do
educador, certamente, mas também, e na medida
em que cresce com a idade, responsabilidade do
filho, do aluno, do jovem que entra no mundo do
trabalho. É responsável quem sabe responder a si
mesmo e aos outros. Além disso, quem crê procura
responder a Deus que o amou primeiro.
A responsabilidade é em primeiro lugar pessoal,
mas existe também uma responsabilidade que par-
tilhamos juntos, como cidadãos de uma mesma
cidade e de uma nação, como membros da família
humana e, se somos crentes, como filhos de um
único Deus e membros da Igreja. De fato, as ideias,
os estilos de vida, as leis, as orientações gerais da
sociedade em que vivemos e a imagem que ela dá
de si mesma através dos meios de comunicação,
exercem uma grande influência sobre a formação
das novas gerações, para o bem, mas muitas vezes
também para o mal. Contudo, a sociedade não é
uma abstração; no final somos nós próprios, todos
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— 16 —
PREFÁCIO

juntos, com as orientações, as regras e os repre-


sentantes que elegemos, mesmo sendo diversos
os papéis e as responsabilidades de cada um. Por-
tanto, há necessidade da contribuição de cada um
de nós, de cada pessoa, família ou grupo social,
para que a sociedade, começando pela nossa cidade
de Roma, se torne um ambiente mais favorável à
educação.
Por fim, gostaria de vos propor um pensamento
que desenvolvi na recente Carta Encíclica Spe salvi
sobre a esperança cristã: a alma da educação, como
de toda a vida, só pode ser a de uma esperança fiá-
vel. Hoje a nossa esperança está insidiada a muitas
partes e corremos o risco de nos tornarmos, tam-
bém nós, como os antigos pagãos: homens “sem
esperança e sem Deus neste mundo” como escrevia
o apóstolo Paulo aos cristãos de Éfeso (Ef 2, 12).
Precisamente daqui nasce a dificuldade talvez mais
profunda para uma verdadeira obra educativa: na
raiz da crise da educação, está de fato uma crise de
confiança na vida.

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— 17 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Portanto, não posso terminar esta carta sem


um caloroso convite a ter Deus como nossa espe-
rança. Só Ele é a esperança que resiste a todas as
desilusões; só o seu amor não pode ser destruído
pela morte; só a sua justiça e a sua misericórdia
podem sanar as injustiças e recompensar os sofri-
mentos suportados. A esperança que se dirige a
Deus nunca é esperança só para mim, é sempre
também esperança para os outros: não nos isola,
e sim nos torna solidários no bem, nos estimula a
nos educar reciprocamente para a verdade e para
o amor.
Saúdo-vos com afecto e garanto-vos uma espe-
cial recordação na oração, enquanto envio a todos
a minha Bênção.

Vaticano, 21 de janeiro de 2008.


BENEDICTUS PP. XVI

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— 18 —
PARTE I

EDUCAÇÃO, CONCEITO DE
VIDA E EDUCAÇÃO INTEGRAL

Monsenhor Álvaro Negromonte2

2. Trata-se dos dois primeiros capítulos de NEGROMONTE, Álvaro.


A Educação dos Filhos. Rio de Janeiro: Rumo Edições, 1961.
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Capítulo I
Educação e Conceito de Vida

Vive-se como se pensa;


educa-se como se vive.

T
odos os homens têm, mesmo inconsciente-
mente, um conceito de vida. Falam, agem,
sentem, encaram os acontecimentos, em função
deste conceito. Através de suas preocupações e
desejos, suas ambições e esforços, ele reponta, mais
ou menos evidente, mais ou menos consciente. É
ele que lhes dá rumo às atividades, que os orienta
A editora Calvariae Editorial recentemente reeditou esta obra, cuja
leitura recomendamos.

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— 20 —
EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

nesta ou naquela direção. O argentário, o gozador,


o artista, o dominador político, o cientista, enca-
ram a vida diferentemente, segundo o conceito
que dela têm. É possível, muitas vezes, que nem
percebam em que direção caminham: os outros
o percebem com facilidade, pois é clara a ligação
entre os atos e as preocupações, mesmo incons-
cientes ou reflexas.

1. Conexão com a filosofia

Ora, o rumo da educação depende do conceito


da vida. Vive-se como se pensa; educa-se como
se vive. “O valor de nossa doutrina da educação
depende do valor de nosso conceito do homem e
da vida”, disse Murray Butler. Num livro magis-
tral3 que os estudiosos de pedagogia lerão com
proveito, De Hovre, o maior pedagogo belga con-
temporâneo, estuda com profundeza a tese de que
a orientação pedagógica está em íntima conexão
com as doutrinas filosóficas. Que pensamos da
vida e do homem? É o que pensamos também da
3. Essai de Philosophie Pédagogique.

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— 21 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

educação. Ele ensina que “todo conceito da vida


envolve uma doutrina da educação, e toda dou-
trina da educação se baseia numa filosofia da vida”.
Que é o homem? Para que está neste mundo? A
resposta a estas duas perguntas encerra toda a vida,
e decide a sua orientação.
Consequentemente decide dos rumos a dar à
educação.

2. Através da história

Num trabalho de ordem mais erudita, mostraría-


mos com facilidade como as correntes pedagógicas
acompanham os meandros das doutrinas filosó-
ficas: os homens sempre educaram como pensa-
ram que se deva viver. Neste sentido, a educação
sempre foi uma “escola da vida para a vida”. Basta
folhear a história da pedagogia. Mas nossa inten-
ção aqui é mais modesta e prática. Sem despre-
zar os dados científicos, queremos falar ao leitor
comum, e ser entendido de todos, sem fastio e com
proveito. Apontaremos menos para o passado que

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— 22 —
EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

para o presente. Passemos, pois, um ligeiro olhar


sobre os atuais modos de educar, para vermos que
os homens educam como vivem.

3. O naturalismo burguês

Para muitos a grande preocupação é o bem-estar


dos filhos: a saúde, os estudos, a condição eco-
nômica. Os próprios estudos são orientados num
sentido utilitário, com uma finalidade prática, a
mais imediata possível. As profissões são escolhi-
das em vista das possibilidades econômicas. Daí
a primazia das carreiras técnicas, e o desprestígio
dos estudos clássicos ou filosóficos, desprezados
por nada “adiantarem” na vida...
As atenções com a saúde superam a formação
moral. Se o menino adoece, tomam-se logo todas
as medidas, à custa dos maiores sacrifícios. Mas se
ele tem uma tendência ao vício, pouco se cuida:
é da idade, passa com o tempo, o pai também foi
assim, hoje ninguém repara mais certas tolices...
Considera-se “vencedor” o jovem que conseguiu

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— 23 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

uma rendosa colocação. Ainda melhor, se for um


emprego público, bem remunerado e sem trabalho.
A satisfação dos pais rivaliza então com a inveja
dos que não “venceram” na vida com tanta rapidez
e eficiência! Para chegar a esses resultados, às vezes
são bons todos os processos. Não os censurem,
que a explicação vem cabal e definitiva: o mundo
hoje é assim; o que ontem era imoral, hoje não é;
o que hoje ainda é proibido, talvez amanhã seja
obrigatório; a vida tem dessas coisas... Por outras
palavras: não há valores morais definitivos!

4. Reduzem a Religião

Essa gente ainda tem “deveres religiosos” pou-


cos e exteriores: Missa de defuntos, casamentos (a
sociedade ainda tem esses preconceitos...), batiza-
dos, Primeira Comunhão. Mas não se preocupa
com a vida futura; crê vagamente em Deus; não
acredita no inferno; não vai à Missa de preceito
nem aos sacramentos; não sabe o que é o estado
de graça, em que todo cristão tem o grave dever
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— 24 —
EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

de viver! Da Religião conserva exterioridades, sem


conteúdo. Por isso, não aparecem preocupações
religiosas na educação dos filhos. Não os manda ao
catecismo; não pede ensino religioso nas escolas;
escolhe os colégios religiosos porque são os que
ainda dão melhor instrução; ou os matricula em
escolas heréticas, sob o pretexto (aliás ilusório) de
ensinarem melhor o inglês, hoje “essencial” para
uma boa colocação numa companhia “americana”;
não disse jamais aos filhos para que estão neste
mundo. Fala em Deus e na Religião algumas vezes;
mas na verdade, vive como se Deus não existisse.
Mergulha nos bens da terra, como se aqui tivesse
de viver por toda a eternidade.

5. Falta a visão do eterno

Por trás de tudo isto está o conceito naturalista da


vida. Variadas que sejam as ramificações, o tronco
é o mesmo: o naturalismo, que reduz toda a vida
a este mundo. Suas raízes estão, por exemplo, no
evolucionismo de Darwin, para quem o homem
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— 25 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

é simples animal evoluído: importa cuidar do


corpo e da saúde,4 fazendo dos prazeres sensíveis
a suprema finalidade, procurando como sumo
ideal as melhores condições de vida terrena. Ou
no pragmatismo de W. James, para quem não há
valores absolutos, é preciso viver à minuta dos
tempos e lugares, dando eficiência aos atos, sem
maiores preocupações morais, procurando vencer
na vida. Ou no positivismo de Comte, no cientifi-
cismo pedante de Renan,5 ensinando que a ciência
resolve os problemas humanos e que seus pos-
tulados superam os dogmas e os preceitos divi-
nos e dando, por isso mesmo, a supremacia aos
estudos sobre os costumes, à formação intelectual
sobre a formação moral. O seu grande pedagogo
é Spencer, o homem do relativo, da dependência
do tempo e do lugar, da submissão à natureza, do

4. “A primeira condição de sucesso neste mundo é ser um bom ani-


mal.” — Spencer.
5. “A Ciência é uma religião; só a Ciência pode doravante redigir
Credos; só a Ciência pode fornecer ao homem a solução dos enigmas
eternos.” Renan, em L’avenir de la science.

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— 26 —
EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

primado do corpo sobre o espírito, do utilitarismo,


o pedagogo do “como”.6
Afinal, se a realidade fosse esta, eles é que teriam
razão... E já que pensam assim, é lógico que assim
eduquem, tão certo é que a educação corresponde
ao conceito que se tem da vida.

6. Em face da sociedade

Se nos colocarmos doutro ponto de vista, per-


guntando qual a situação do homem em face da
sociedade, poderemos recolher duas respostas
errôneas e contraditórias: a) o homem é mero
indivíduo, justaposto a outros indivíduos, sem
laços de solidariedade, obrigado apenas a cuidar de
si; b) é um componente da massa, da qual depende,
para a qual se orienta, na qual se dilui, sem outro

6. “Como tratar o corpo? Como dirigir a inteligência? Como orien-


tar os trabalhos? Como educar a família? Como importa cumprir os
deveres de cidadão? Como se devem utilizar as fontes de felicidade
que a natureza deu ao homem?” — Spencer — “Essays in Education”
(apud De Hovre, o. c.). Não lhe interessa o “para que”.

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— 27 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

destino senão o que lhe der o Estado, a Nação ou


o Partido.
Examinemos estas duas respostas em face da
educação.
7. Os individualistas

Aí estão os gozadores da vida, os ricos “cada


vez mais ricos” fazendo os “pobres cada vez mais
pobres” (Pio XI), vivendo à custa do suor alheio,
explorando o mais que podem. Em que se baseiam
os trustes, os mercados negros, as negociatas, o
desrespeito aos dinheiros públicos, os subornos,
as manobras altistas? E do outro lado, as greves
injustas, as exigências crescentes de salários, as
sabotagens, a violação dos contratos de trabalho,
as infidelidades aos patrões, outros tantos males
que atingem aos trabalhadores? Do individualismo
nasce o capitalismo com o seu cortejo de misérias.

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— 28 —
EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

8. Funestas consequências

Noutro terreno, se o homem é senhor de si, sem


laços obrigatórios com a comunidade, erige- se
naturalmente em guia próprio, sem obrigação de
obedecer a outras leis que não sejam as da natureza
(e estas mesmas, quando convierem) sem qualquer
submissão ao Estado (a menos que seja para evitar
aborrecimentos ou guardar conveniências), sem
maiores compromissos mesmo com os filhos, sem
respeito aos valores morais, vivendo num anar-
quismo prático — mesmo que um resto de com-
preensão o obrigue a rejeitá-lo em teoria. Os que
quiserem eufemizar tão feia realidade podem cha-
mar de liberalismo ao que aí está: é a mesma coisa.

9. No campo educacional

É de ver como a educação toma o rumo do


egoísmo e do comodismo, ensinando antes a busca
do conforto que o cumprimento do dever, mais
preocupada em fazer-se servir que em ajudar,

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— 29 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

orientando desde muito cedo para a exploração


do próximo. Educa-se, ensinando o pequenino a
exigir da empregada que lhe dê na mão a roupa,
o calçado e os livros, apanhe o objeto que caiu, e
lhe satisfaça os caprichos. Se os grão-senhores se
portam indiferentes à miséria do povo, que eles
próprios construíram com suas manobras econô-
micas, os que ainda não podem fazer tanto farão
o que puderem, sem respeito ao próximo. No
menino que se refestela no bonde, incomodando
os vizinhos, para estar à vontade; e na jovem que
se conserva sentada em frente à velhinha ou à
senhora que vai em pé com uma criança ao braço,
já estão os péssimos frutos deste individualismo
que, para dar mais graves resultados, espera apenas
o tempo e as oportunidades.

10. Descaso...

Neste conceito individualista da vida vamos


encontrar as raízes do abandono educacional dos
filhos. A educação é trabalhosa: evita-se o trabalho,
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— 30 —
EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

para se viver mais despreocupado. Ou se entregam


os filhos às empregadas e aos colégios. O “deixa-
-fazer” de certa pedagogia nasce deste comodismo.
Para que corrigir? Passa com a idade. Mais tarde
a criança compreenderá. Para que castigar? Seria
tornar infelizes as crianças. Tanto mais quanto
“os mais eficazes castigos não são os que os pais
aplicam,... mas as consequências naturais dos atos”
(Spencer). Por sua vez, os demais educadores ado-
tam os mesmos princípios. Professores se esforçam
menos. Colégios se poupam a trabalhos e exigem
maiores remunerações — embora aqui os pais não
aprovem os princípios do individualismo como-
dista que adotam para si.
***
Poderíamos levar longe a análise. Bastem estas
amostras de pequenos e grandes atos para ver-
mos como, da simples atitude mal-educada de um
garoto no bonde às maiores crises econômicas ou
políticas, as causas estão num errado conceito da
vida e, consequentemente, da educação.

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— 31 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

11. Os totalitários

• Se o homem é apenas um número, componente impes-


soal da massa, sem outro destino que não o dela, mero
indivíduo e não uma pessoa, simples parafuso da máquina
estatal, gota d’água no oceano da coletividade, ou mesmo
uma abstração,7 então é justo reduzi-lo à coletividade, ao
serviço da massa. Neste caso a coletividade é o centro e o
fim de toda a vida humana, a grande e única realidade, de
que o homem é subsidiário. O mais que fazem todos os
totalitários — fascistas, nazistas ou comunistas — é con-
clusão lógica de seu conceito do homem e da vida. Se isto
é verdade, então:
• o Estado pode dispor, a seu talante, da vida dos cidadãos;
• é moral tudo o que interessa ao Estado (Lenine);
• devemos “procurar o reino do Estado e não o reino de
Deus” (Lyer);
• as atividades culturais (arte, ciência, literatura) só têm
razão de ser quando a serviço da Nação (Nazismo), do
Estado (Fascismo) ou do Partido (Comunismo);
a coletividade pode obrigar o homem a traba-
lhar em determinada função, a tantas horas por
dia e em tais condições, sem direito a escolha ou
mudança (trabalho forçado); etc., etc.
7. “O homem não é senão uma abstração, como o átomo para o físico.”
(Natorp).

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EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

12. Pedagogia totalitária

• No campo pedagógico são claras as consequências de tão


errado conceito da vida. Vejamos algumas:
• é preciso formar o homem para servir à coletividade, e
não para um destino pessoal e eterno;
• as preocupações religiosas e morais não têm lugar na edu-
cação, como não o têm na vida;
• sendo o homem formado para o reino deste mundo,
orientemo-lo não para rumos espirituais, mas para a busca
do bem-estar material, dando primazia senão exclusivi-
dade às preocupações econômicas e técnicas;
• não são os pais que devem educar os filhos, porque assim
lhes darão a orientação que quiserem: é unicamente o
Estado quem educa, para formar “servidores” seus
incondicionais;
• é preciso afastar os filhos da influência dos pais, que-
brando os laços domésticos e anulando o amor materno,
elementos que podem perturbar o domínio absoluto do
Estado;
• importa encaminhar as criancinhas para as creches, os
pequeninos para os jardins de infância, os maiorzinhos
para os internatos e multiplicar os meios de afastar a con-
vivência dos filhos com os pais;8

8. O pretexto é facilitar o trabalho das mães; a verdadeira finalidade

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— 33 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

• a escola oficial tem o direito de impor o regime e a orien-


tação que entender, por isso mesmo que os pais não têm
direito sobre os filhos: — e quando ainda não puder supri-
mir a escola particular, estabelece sobre ela uma verda-
deira ditadura, manietando-a e dirigindo-a;
como os sentimentos de moralidade são o mais
forte empecilho aos totalitários, importa ir desa-
tando os laços das paixões, quebrando as barrei-
ras entre os sexos, introduzindo a coeducação nas
escolas, praticando esportes mistos em seminudez,
promovendo de todo modo a dissolução da famí-
lia; etc., etc.
Neste rastro não encontramos apenas a Lenine e
Lunacharsky, mas homens como Kerschensteiner
e Dewey (com tantos discípulos e seguidores entre
nós), Durkheim e outros, tidos por inofensivos e

é outra. Aliás, o trabalho da mulher fora do lar é fortemente pre-


conizado por Lenine, como um dos melhores meios de introdução
do comunismo. Para Lenine “a mãe que ama os filhos é semelhante
a uma cadela que cuida dos cachorrinhos”. Veja-se, porém como os
burgueses, por comodismo, adotam os processos comunistas, desti-
nados a destruí-los. Creches e playground entre nós pretendem fazer
assistência social, ajudando a mãe trabalhadora, ou facilitando o tra-
balho da mãe fora do lar...

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— 34 —
EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

mesmos benéficos (sic), por suas ideias modernas


e reformadoras!

13. O verdadeiro conceito

Qual, então, o verdadeiro conceito do homem


e da vida?
Se queremos educar o homem todo quanto é,
devemos encará-lo na totalidade de seu ser. Só
com um conceito total do homem é possível um
conceito total da educação. Mais do que algures,
aqui qualquer parcialismo leva a tremendas defor-
mações. Erram os que veem no homem apenas
o corpo (como certos naturalistas), ou a inteli-
gência (Descartes), ou a vontade (Schopenhauer),
ou o trabalhador (Kerschensteiner), ou o técnico
(Spengler), ou o cidadão (Fichte), ou um elemento
da comunidade (como os coletivistas de toda espé-
cie). Olhando-lhe apenas uma face, só é possível
dar-lhe uma educação deformada, incompleta, que
desenvolve demasiado um aspecto do seu ser com-
plexo, deixando na sombra e na atrofia as outras

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— 35 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

faculdades. Uma concepção unilateral não pode


produzir uma educação integral. Só abraçando o
homem total é possível oferecer-lhe uma educação
correspondente à realidade.

14. O que é o homem

O homem é corpo e alma. Sensibilidade, inte-


ligência e vontade. Pessoa irredutível, mas mem-
bro natural da sociedade, na qual nasce (família),
trabalha (profissão) e vive (Estado). Filho do
tempo e destinado à eternidade, pela alma imor-
tal. Senhor de seus atos, pelo livre-arbítrio, mas
súdito incondicional de Deus, e submisso às justas
leis da sociedade em que vive. Com instintos que
pedem satisfação, e com exigências morais que
obrigam a se usar dos instintos dentro de normas
que os precedem e transcendem. Fraquezas e for-
ças. Egoísmo e generosidade. E tudo entrelaçado
e uno, de modo que o sensível, o intelectual e o
volitivo se distinguem, mas não se separam, antes
se ligam e completam em maravilhosa unidade.

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EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

15. No plano histórico

O homem foi criado por Deus, inocente e puro.


Mas caiu. Quando a mão divina o ergueu, pela
misericórdia da Redenção, já não era o mesmo. A
queda não apenas lhe arrebatara a graça santifi-
cante e os dons preternaturais. Desequilibrara-o
no próprio funcionamento natural. As paixões se
desordenaram, inclinando-o para o mal; turvou-
-se-lhe a inteligência; enfraqueceu-se-lhe a von-
tade, agora muitas vezes incapaz de praticar o bem.
Mesmo reconduzido à graça, pesam-lhe as conse-
quências da queda. Correspondendo à graça, pode,
com algum esforço, manter o equilíbrio, vivendo
no bem e na virtude. Tendo sido criado para o
Céu, vive desgostoso e insatisfeito na terra, de tal
maneira inquieto que só descansa quando descansa
em Deus. Dir-se-ia que sente uma misteriosa nos-
talgia da Casa Paterna, uma como saudade daque-
las tardes em que o Senhor descia a passear com ele
à fresca do Paraíso (Gn. 3, 8). Na verdade, nunca

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— 37 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

pôde esquecer que Deus é seu primeiro princípio


e seu último fim.

16. Hierarquia de valores

Com uma visão tão completa do homem, esta-


mos em condições de lhe proporcionar uma edu-
cação integral. Encarando-o como é, podemos
torná-lo como deve ser. Abrangemo-lo na multi-
plicidade de suas funções orgânicas e espirituais,
no seu destino terrestre e eterno, nas suas ativi-
dades individuais e sociais, mas guardamos uma
perfeita hierarquia dos valores, a fim de assegurar-
mos um rumo certo à educação, nem deformando
o conjunto, nem perturbando a harmonia de suas
finalidades.
Nossa hierarquização começa por organizar
essas finalidades. Tudo o que existe, existe em
vista de um fim. Nas várias finalidades huma-
nas, uma domina a todas e é, por isso mesmo, o
motivo primeiro e último da existência. Todos os
fins particulares, importantes que sejam, devem
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— 38 —
EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

subordinar-se e servir a este último fim, cuja con-


secução há de ser a maior preocupação da vida, o
seu verdadeiro ideal. Isto é de tal modo vital que a
vida só tem sentido em vista deste fim: perdido ele,
tudo perdido; ele alcançado, tudo feito, embora
possamos e devamos procurar atingir também
outros fins, que sempre serão secundários.
17. Consequências pedagógicas

A salvação da alma domina e canaliza tudo. Faze-


mos a cultura física; mas achamos a inteligência
melhor do que a força, o sábio superior ao animal
perfeito de Spencer. Fazemos a cultura intelectual;
mas achamos o dever maior do que a ciência: o
caráter vale mais do que o saber. Fazemos a cultura
moral, porque achamos que o homem só é homem
quando sabe dominar os instintos e, senhor de
si, age em função de suas finalidades morais; mas
preferimos o santo, o homem que, sem desprezar
o corpo nem a inteligência, orienta tudo para a
vida moral e a vida moral para Deus, vivendo no

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— 39 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

amor de Deus, que é a graça santificante. Entre


a força, a ciência, o dever e a graça, temos uma
preferência, que não é exclusão. Entre o atleta,
o sábio, o homem de caráter e o santo, sabemos
escolher. Mas, como na vida, o corpo, a inteli-
gência, a vontade e a graça devem conviver no
mesmo indivíduo, sem separações impossíveis,
mas na unidade do mesmo ser, para nós o ideal é
reunir a tríplice cultura humana, dourando-a com
a graça divina.
Não desconhecemos os diferentes valores da
vida; apenas sabemos organizá-los para atingir
os cimos. Temos um fim último, eterno que, por
isto, constitui toda a nossa felicidade e cuja perda
é para nós a suprema desgraça. Nem por isso se
desfazem os demais fins da vida. Pelo contrário,
convergem e se orientam todos para ele.
***

Este, o verdadeiro conceito do homem e da vida.


É por ele e nele que temos de educar. Neste rumo
caminharemos; neste rumo faremos caminhar os
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— 40 —
EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

que a Providência Divina confia a nossos cuidados.


Podemos resumir nossa orientação educacional
nesta síntese magistral:
“Cuidar do corpo para servir à alma; cuidar da
inteligência para servir à vontade; cuidar da von-
tade para servir a Deus.”

Ou nesta fórmula mais rápida e mais forte:


“Tudo para a criança, e a criança para Deus.”
Aqui temos o único rumo digno de uma verda-
deira educação.

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O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Capítulo II
Educação Integral

D
e acordo com o verdadeiro conceito do
homem, fixemos, em traços gerais, as fina-
lidades da educação, que depois examinaremos
mais detidamente.

18. Visões parciais

• Afastemos, por insuficientes, as finalidades parcialistas:


• os materialistas, por só admitirem a matéria, reduzem-se a
seus cuidados — saúde, força, beleza, instintos, habilidades
técnicas, facilidades de gozar a vida;9
9. Três correntes atuais ressumam profundo materialismo: o freu-
dismo, que reduz todo o homem ao instinto sexual; o comunismo, que

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EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

• os intelectualistas cultivam a inteligência julgando que tudo


está feito, esperando tudo das “luzes do alfabeto”, da ilu-
sória eficácia moral da instrução;
• os pragmatistas pensam que a vida é ação, e ação que se
pode utilizar praticamente — e encaminham tudo para o
“prático” e utilitário: saber para agir, e agir para vencer;
• os individualistas educam como se o homem fosse único no
mundo, ou (ainda pior) como se todos o devessem servir,
de direito e dever, como a um senhor;
• os coletivistas, ao invés, dissolvem o homem na comuni-
dade (sociedade, nação, estado), como se ele não tivesse
outro fim, senão desaguar na sociedade em que vive;
• os voluntaristas fixam-se de tal modo na formação da von-
tade que parece nada mais verem no complexo humano.

19. Visão integral

• Fixemo-nos no conceito católico que tem a vantagem de


abranger o homem em sua totalidade:
• corpo e espírito; pessoa e membro da coletividade; inte-
ligência, vontade e ação exterior; boas e más tendências;
vida transitória e vida eterna; natureza e graça. Assim,
nenhuma atividade nos será estranha, nenhuma faculdade
ficará esquecida. Nenhuma potencialidade se desperdiçará.
O que ainda é mais: temos dois pontos essenciais:
só vê estômago e suas exigências; e o existencialismo, que solta a rédea
dos prazeres até a náusea.

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O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

• o ponto de partida: o homem, tal como é, criatura de Deus,


no conjunto de suas faculdades orgânicas e espirituais,
na desorganização consequente ao pecado original, no
complexo misterioso de elevações e fraquezas;
a meta final: a salvação eterna.

20. A nossa pedagogia

Firmados nestes dois pontos fundamentais,


podem os católicos caminhar livremente, que,
mesmo em educação, o mais é “o resto que será
dado por acréscimo” (Mt. 6, 33). Partimos do
estado de natureza imperfeita em que se encon-
tra o homem, demandamos o estado de perfeição.
Entre o sujeito e o termo da educação está a transição
a fazer, com os indispensáveis processos, cuja efi-
ciência vai depender de um conjunto de condições
sobremaneira complexas.

21. Fim último

É necessário precisar rigorosamente o fim da


educação, para orientar sem erro nem desperdício
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EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

a ação educativa. Fórmulas vagas dizem pouco.


“Ensinar a viver” (Rousseau), “preparar para a
vida” (Decroly), “Formar o homem na criança”
(Dupanloup), etc., são expressões que requerem
a conceituação certa de vida e homem. Se para
Dupanloup o homem é o homem integral da dou-
trina católica, já para Rousseau “viver” é deixar
correr libertariamente esta existência terrena...

22. Formar o homem integral

Eis o verdadeiro objetivo da educação. Não se


fixa em nenhuma faculdade humana, como se fosse
ela a única. Cuida de todas, que todas são necessá-
rias à perfeição do homem; mas procura hierar-
quizá-las de modo a fazer com que as inferiores
sirvam às superiores.
Assim, pois, podemos dizer: — Fim último: a
santidade.

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— 45 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

23. Síntese pedagógica

Para atingi-la — para fazer valer a riqueza da


graça — o homem precisa saber governar-se. E
então o domínio de si mesmo é o grau imediata-
mente inferior da educação. Pelo domínio de si
é que o homem é realmente homem, especifica-
mente homem, produzindo atos à altura de sua
dignidade de ser racional, sem se deixar determi-
nar pelos instintos ou impulsos de paixão nem por
motivos subalternos — porque só assim o homem
é verdadeiramente livre, daquela liberdade interior,
que há de ser a primeira grande conquista da edu-
cação. Este domínio de si, libertando o homem da
escravidão das paixões, é a condição para o cum-
primento do dever, para o reinado da consciência,
para a própria convivência social, em que temos
de respeitar alheios direitos e fazer respeitados os
nossos.
Este é, sem dúvida, o papel da vontade, que para
se formar requer a orientação da inteligência.

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EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

Para levar o homem à prática das virtudes


morais, a atos livres e responsáveis, importa não
apenas dar-lhe os conhecimentos devidos, mas ainda
a capacidade de julgar — a fim de que ele se sinta
inclinado a agir bem. É a formação intelectual. E
vejam: formação — e não mera informação. Aqui
o essencial é a capacidade de julgar. Sem esta razão
prática, têm frequentemente fracassado os esforços
para a formação da vontade.
Inteligência e vontade no homem supõem um
corpo, do qual não é possível a educação desinte-
ressar-se. E não se desinteressa. Pelo contrário:
cuida bem dele. Deseja-o forte e vigoroso, segundo
a sua finalidade. Uma boa educação física é boa base
para mais facilmente educar moralmente. Para
isto, terá de ser educado, tendo em vista o com-
posto humano, e não mero robustecimento do
animal — prejudicial à dignidade humana.
Partindo agora de baixo para cima, temos: a
educação física (saúde e robustez), a educação
intelectual (formação da razão para julgamento),
a formação moral (conquista da liberdade interior
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— 47 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

e defesa da exterior), conduzindo à santidade (vida


e crescimento na graça divina).
Eis a verdadeira educação.

24. Os meios

Fixado o ponto de chegada, resta saber como atin-


gi-lo, o que fazer para conseguir que o educando
se transforme no cristão perfeito. São os métodos e
os processos elementos de inestimável valor, como
meios para atingir-se o fim. Quanto melhores, mais
bem adaptados à natureza do educando e em ordem
aos fins (vamos diretamente aos fins particulares
que devem estar organizados em função do fim
último), mais eficientes serão.
Daqui, pois, a necessidade não só de conhecer
a criança e o adolescente em geral, mas também
de conhecer “este” educando, com suas característi-
cas pessoais, gostos, tendências, temperamento,
reações.
Este conhecimento dita a maneira pela qual
devemos adaptar a “este” educando os meios para

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EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

alcançarmos o desejado fim. Essas circunstâncias


particulares são de decisiva importância, porque
frequentemente o êxito depende mais dos meios
e do acerto do seu emprego do que da perfeição
dos fins. Aí está por que tantas vezes fracassamos
nós, educadores católicos, e até dos mais piedosos
e bem intencionados.
Na aplicação dos meios deve-se ter em vista o
como, o quando, o quanto e o a quem — que tudo
é exigência elementar da prudência, retriz da
pedagogia.
25. Perigo a evitar

Sem esta aplicação dos meios ao fim corre-se


o risco de estacionar nos meios, como se fossem
fins. É o grande erro da maioria dos pedagogos
modernos: “a supremacia dos meios sobre o fim”,
como notou Maritain.10 Analisam profundamente
a criança, aplicam-lhe cem testes e medidas, sub-
metem-na às mais minuciosas observações e

10. L’education à la croisée des chemins.

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O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

exames, vasculham sua vida pregressa até os tetra-


vós, enchem fichas, e... não a levam para diante e
para cima. Param no caminho, como se tivessem
chegado. O certo é valer-nos dos meios para alcan-
çar o fim.
26. Unidade educativa

A unidade da pessoa humana obriga-nos à uni-


dade no trabalho da educação. Corpo e alma, faculda-
des sensitivas e espirituais, interesses individuais
e sociais, tendências econômicas e artísticas, etc.,
estão num único sujeito, e devem ser encaminha-
dos e desenvolvidos para a formação de um todo.
Devemos, acima de tudo, pensar no homem, e só
secundariamente no sábio, no atleta, no industrial,
no artista, no proletário, no político. O que ficou
dito da educação física entenda-se de qualquer
outra: só será realmente educação, se orientada
para a formação do homem total, se organizada
para o todo como parte que é. Do contrário, é
mutilação ou deformação. Vejam o atleta sem

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EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

instrução: é um deformado. Ou o artista, o polí-


tico, o economista, sem moral. Ou o indivíduo,
sem respeito à sociedade. Ou mesmo o santo, sem
cuidados corporais.

27. Hierarquia de fins

Sendo o fim da educação o homem integral, tudo


há de convergir para lá, como partes para o todo.
Também aqui cabe em cheio a palavra do Divino
Educador: “Quem não junta comigo, desperdiça”
(Lc. 11, 23). Assim, pois, é dissolvente qualquer
“educação” que não se oriente para o fim supremo
da educação, o qual, por sua vez, se confunde com
o fim último do homem. Ou, ainda pior, que o
contrarie ou dificulte.
Os fins secundários da educação (que são os fins
imediatos do aperfeiçoamento de cada faculdade)
se devem encadear entre si, de modo a servir um
ao outro, de acordo com o seu lugar no composto
humano, e a servir em todos ao fim último. Há facul-
dades inferiores e superiores. Um bom corpo é

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O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

para servir à alma: já os pagãos queriam “mens sana


in corpore sano”. Uma boa inteligência, para escla-
recer e nortear a vontade. Como a vontade forte
e decidida, para servir a Deus e ao próximo por
amor de Deus. É um sistema fluvial, em que os
rios menores deságuam nos maiores, e o maior,
no mar. Para isto, em educação, importa conhecer
os valores, respeitá-los e organizá-los.

28. Respeito aos valores

Esta organização e este respeito dos valores


humanos têm uma finalidade moral, e não “mora-
lizante”. Não devem ser entendidos no sentido de
darmos a cada ato um fim moral imediato, mas
de prepararmos o homem para uma vida moral
íntegra e cada vez mais fácil de chegar à perfei-
ção. Atos em si indiferentes só têm sentido em
vista dos fins que os animam. E, na educação como
na vida, o fim que anima tudo é o fim último: é
bom o que lhe serve, é mau o que o dificulta, é
indiferente o que não lhe interessa. Quando eu
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— 52 —
EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

estudo, não é necessário que estude moral para


que seja moralmente bom o meu estudo: basta que
os conhecimentos adquiridos possam contribuir
para a minha vida moral — ou que, moralmente
indiferentes, me sirvam à própria vida natural. O
mesmo se diga da educação física, artística, eco-
nômica ou qualquer outra. O respeito aos valores
pede que se dê a cada um a justa medida, pois o
contrário seria invertê-los, prejudicando o neces-
sário encadeamento dos fins secundários — que
afinal são apenas meios em relação ao fim último.

29. “Teu nome é paciência”

Esta sensata palavra de Marcel Prevost — “Edu-


cação, teu nome é paciência” — nunca a deviam
perder de vista os educadores. Obra difícil pela
sua natureza, de resultados nem sempre compen-
sadores por motivos vários, costuma desalentar
ou precipitar os seus operários o que redunda em
maiores riscos para seu êxito. O natural desejo de
vermos em curto prazo levada a feliz termo nossa
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— 53 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

atividade educacional, ou (quem sabe?) a incons-


ciente preocupação do menor esforço nesta tarefa
de si tão cansativa, nos levam a uma certa pressa no
colher os frutos. E não os frutos, tais como os pode
dar esta determinada árvore nestas circunstâncias
particulares, mas os frutos que imaginamos...

30. Respeitar o educando

Kiefer,11 num livro sólido e ainda atual, nos


manda respeitar o educando. Fala do respeito à sua
psicologia. Para isto é que o devemos conhecer.
Temperamentos, tendências, gostos, talentos,
meio, desenvolvimento, idade, pesado e respei-
tado. Não posso exigir de todos a mesma coisa, só
pelo fato de serem todos meus filhos, ou estarem
todos na mesma classe, ou terem a mesma idade.
Posto em termos de peso físico, logo percebemos
o absurdo da imposição, que mais absurda ainda
é em peso moral — embora (que pena!) tantos o

11. La autoridad en la família y en la escuela (traducida de la 2aedición


francesa).

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EDUCAÇÃO E CONCEITO DE VIDA – MONS. ÁLVARO NEGROMONTE

não percebam. De cada um se exige e a cada um


se impõe ou pede o que ele é capaz de fazer. E
a perfeição do educando está em fazer ele o que
agora pode.

31. Perfeição pedagógica

Santo Tomás de Aquino fala da “perfeição


segundo a idade” secundum temporis conditionem.
A criança ou o adolescente não terão a perfei-
ção adulta, aquela que alcançarão com a idade,
mas, fazendo quanto podem, são agora perfeitos
segundo a sua condição. Aliás, o fim próprio da
educação é esta perfeição relativa, deste determi-
nado sujeito, nesta idade e nestas circunstâncias.
É a sua capacidade atual de agir bem, de fazer bem
o que ele é capaz de fazer. É a perfeição subjetiva,
não a objetiva. Veja os desenhos de um pequeno
de 7, de 12 ou 16 anos; o professor deu nota cem
aos três. Todos estão perfeitos, mas que diferença
entre eles! E que diferença do modelo que o mes-
tre debuxou! Assim é também a perfeição moral.
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— 55 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

E não a devemos confundir com aquela perfeição


que é o objeto da perfectibilidade humana, que não
se esgota com todos os nossos esforços e exige o
trabalho de toda a nossa vida.

32. Aguardar os frutos

Plantemos e aguardemos que a planta frutifique


no tempo oportuno. Isto moderaria bem alguns
educadores apressados, exigentes ou vaidosos,
confortaria a outros, sempre descontentes com a
colheita, e — o que é melhor — aliviaria muito as
crianças e sobretudo os jovens.
São Paulo anotou estas necessárias etapas da
vida: “Quando eu era criança, falava como criança,
sentia como criança, pensava como criança. Mas
quando me tornei homem, abandonei o que era
de criança” (1 Cor. 13, 11).
Observação também muito própria para sofrear
impaciências e precipitações do educador é que o
fim primeiro na intenção é sempre o último na
aquisição.
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— 56 —
PARTE II

A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA E


A DOUTRINAÇÃO NAS ESCOLAS:
A ORIGEM DOS PROBLEMAS

Prof. Guilherme Freire12

12. Transcrição de duas lives feitas pelo prof. Guilherme Freire e


estão disponíveis em seu perfil do Facebook e em seu canal pessoal
do Youtube.
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Capítulo II
A Falência da Educação Moderna:
Uma Reflexão entre o Passado e o Futuro13

H
oje vamos falar um pouco sobre a educação
moderna. Podemos ver que muita gente diz
que há uma a crise na educação, pois as aulas nas
universidades e nas escolas não estão indo bem.
Realmente, pois podemos ver que o Brasil teve um
desempenho de cem pontos abaixo da média na
OCDE em ciência, matemática, leituras e vários
outros tópicos. Então de fato as pessoas percebem
uma crise, mas gostaríamos então de refletir quais
são suas raízes.

13. https://www.youtube.com/watch?v=BtAIttWVT6w

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— 58 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

A filósofa Hannah Arendt em seu livro intitu-


lado “Entre o Passado e o Futuro”, que a prória
Arendt indicava para quem quisesse começar estu-
dar suas idéias, aponta para três raízes da crise
da educação, que não seriam novas, pois estavam
presentes no declínio do Império Romano (que
foi presenciado por Santo Agostinho).
A primeira raiz da crise é uma crise de autori-
dade. De fato, a autoridade foi perdida na educação
de hoje. A autoridade é mais do que um conse-
lho e menos do que uma ordem. Com a educação
moderna, a autoridade foi colocada em xeque, pois
se pensou o professor falando com os alunos como
um igual falando a outros iguais. O problema disso,
ressalta Arendt, é que se cria o mundo da criança e
o professor quer prender a criança neste mundo.
Entretanto, não existe mundo da criança, o que
existe é só o mundo real. Assim, quando o profes-
sor quer prender a criança no mundo da criança,
ele abandona seu papel de introduzi-la ao mundo
real, de conectá-la como o legado civilizatório.

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— 59 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Ora, a criança vê o mundo como algo novo e,


a partir disso, surgem todas as dúvidas e dificul-
dades. Se alguém não mostrar o caminho para ela
chegar ao tesouro da tradição cultural e da tradi-
ção filosófica, terá uma dificuldade muito maior
para descobrir por conta própria. Essa é uma das
grandes crises da autoridade atual.
A autoridade não é autoritarismo, não é usar de
palmatória ou forçar a criança. O problema é que
quando professor se colocar em uma posição de
igualdade com as crianças, acaba caindo no mesmo
erro da criança e sua autoridade é posta em xeque.
Perdendo-se a autoridade, a sala de aula tende a
degenerar-se. Quem já deu aula em escola, sentiu
isso na pele facilmente. A educação relativista só
é ótima para quem nunca entrou em uma sala de
aula para ter que dar uma aula. A realidade é que se
você perde a autoridade na sala de aula, as crianças
começam a destrui-la em menos três minutos.
Então a boa autoridade – e os romanos já enten-
diam isso - tem essa posicição: ela decorre do
quanto a pessoa conhece, do quanto tem coerência;
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A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

é uma autoridade natural, não é uma autoridade de


imposição. A partir do momento que há imposi-
ção, que não tem um lastro real, se perde a autori-
dade. Portanto, a autoridade é um dos elementos
relacionados à crise da educação moderna (depois
veremos por que esses elementos foram colocados
em xeque).
Outro elemento de que Hannah Arendt fala é
de uma crise de tradição. Conforme já falamos, o
conhecimento tem toda uma tradição de fundo. Há
um legado em cada uma das áreas, em cada uma
das respostas. A maioria dos problemas humanos,
problemas cotidianos, foram discutidos e coloca-
dos à prova por centenas de pessoas ao longo da
história, pessoas sábias. A seleção de pessoas sábias
e o contato com as questões principais que foram
debatidas é capaz de ajudar as pessoas a lidarem
com os problemas contemporâneos. A educação
moderna, porém, está focando substancialmente
na educação por experimentação – experimentar
e testar -, John Dewey é um exemplo. Ele diz que
educação é experiência; quanto mais experiência,
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— 61 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

mais educação. Então a melhor educação é a que


produz mais experiência.
No pano de fundo de John Dewey, há uma certa
crítica à leitura pela tradição, porque ele pensa em
experiência novas em detrimento da tradição. No
pano de fundo para se rejeitar a tradição está a
rejeição à realidade dos universais.14 No fundo, o
educador moderno tem uma visão nominalista15 e,
com essa visão, ele não reconhece valores e tende
a negligenciar a tradição. Não é que façam isso
necessariamente por mal, mas deixam de lado o
tesouro tradicional.
Questiona-se o cânon. E o que é o cânon?
Quando temos tem que fazer qualquer estudo de
literatura, artes, cinema, etc., temos os filmes clás-
sicos, livros clássicos, enfim, temos aquilo que é o
melhor daquela área, pois tem valor perene, isto
é, para além da sua época. Ora, com a visão nomi-
nalista, muitas vezes se coloca em xeque aquilo
14. Hannah Arendt não faz está análise.
15. O nominalismo é uma posição filosófica medieval que diz que os
universais são meramente nomes, não são coisas reais. Então justiça,
verdade, beleza, etc., não são coisas reais, mas apenas nomes.

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— 62 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

que tem valor perene, porque não tem os univer-


sais para balizá-los, então a educação fica presa
na experiência contemporânea, na experiência
presente, com exclusão de todo o tesouro que as
pessoas poderiam ter acesso.
A educação hoje, no Brasil, não tem essa visão de
alta cultura, então há um relativismo na cultura, a
idéia de que uma obra de arte é a mesma coisa que
a outra, que não há uma arte melhor que a outra,
nem que um filme seja melhor que o outro. Porém,
para a educação, um dos pontos mais importantes
é justamente selecionar o que é melhor. Se não há
esta seleção, não é possível haver educação.
Richard Weawer, em seu livro “As idéias têm
consequências”, fala justamente disso: é uma
consequência do nominalismo dos contemporâ-
neos a idéia de que não existem nem pessoas nem
idéias melhores que as outras. Tendo em vista esta
base, a diferença entre Bach e o funk é a peruca e a
época. Portanto, as coisas perdem o sentido e con-
sequentemente a formação é colocada em xeque.
Não há dúvida de que este é um dos principais
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— 63 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

fatores para a crise na educação. É a falta da tra-


dição, sendo que tradição é aquilo que é trazido.
E um outro elemento é a crise da religião. Han-
nah Arendt fala que falta religião. Aqui ela não
quer dizer no sentido estritamente de doutrina
cristã. O que ela tem em mente ao falar disso é
a religião romana, que é remontar uma expe-
riência originária, isto é, remontar a origem de
algo. Ao remontar a origem daquela nação, temos
uma noção de para onde ela vai. Por exemplo, em
Roma, os romanos tinham uma classificação dife-
rente para as coisas. Eles viam a maior parte das
cidades como acampamentos e viam Roma como
uma cidade de fundação sagrada, uma cidade com
origem diferente das outras.
Essa questão da religião diz de fato a respeito da
origem e fim, mas a nossa visão não é a mesma da
Hannah Arendt. Nós consideramos a importância
do paradigma cristão na formação, porque quando
se tinha uma visão cristã mais clara na sociedade,
tinha-se uma noção de origem e de fim último
mais claros. Entretanto, a forma como Arendt
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— 64 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

aborda a religião não deixa de ser interessante,


pois ela viu um padrão que os romanos mesmos
tinham, ou seja, que os pagãos virtuosos tinham:
o de remontar a origem social para ter em vista a
partir disso o fim daquela civilização.
Então a crise de autoridade, de tradição e de reli-
gião são partes que geraram essa crise da educação
moderna. E quais são as linhas pedagógicas que
começaram a insitar isso?
Temos, por exemplo, o pragmatismo de John
Dewey. O Brasil inclusive foi extremamente
influenciado por esta linha. Anísio Teixeira, que
foi uma das pessoas que organizaram o Ministé-
rio da Educação, foi profundamente influenciado
por Dewey. Além disso, John Dewey faz parte de
um tipo de pragmatismo muito específico, dife-
rente do de Peirce, porque ele não se considera um
realista da mesma maneira. Ele toma a teoria da
evolução como uma baliza e vê a educação como
uma evolução de adquirir mais experiência.
John Dewey fala de uma qualidade das expe-
riências, mas quando fala qual é essa qualidade,
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— 65 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

diz que a experiência que tem mais qualidade é


aquela que leva a ter mais experiência. Todavia, a
própria noção dele de qualidade não é qualitativa,
mas quantitativa. Tal peculiaridade pode ser expli-
cada porque o nominalismo é o pano de fundo
dele. Não acha que uma experiência é melhor que
a outra porque nos remonta ao bem, ao belo e ao
verdadeiro, mas porque nos remonta a mais expe-
riência. Ou seja, a noção dele de qualidade esvazia
a noção de qualidade.
Isso é um exemplo de teoria nessa linha. Nós
temos vários. A educação atual também pega
alguns preceitos pavlovianos, que são exemplos
de manipulação psicológica. É querer induzir
ou adestrar o aluno para determinado padrão de
comportamento. Isso está carregado de viés polí-
tico, porque querem usar da educação para forjar
o aluno em determinadas ideologias modernas.
Estando inspirada em uma experiência de fábrica,
então se constrói a sala de aula como se fosse a
educação de operário com os horários, etc. Porém,
isso também tem um pano de fundo nominalista,
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— 66 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

que é justamente o que permite desencadear esta


idéia de manipulação. Ora, no fundo, e ao contrá-
rio da posição nominalista, uma educação realista
tem em vista o bem, o belo e o verdadeiro, impe-
dindo que a educação seja usada como ferramenta
de manipulação em favor de determinada agenda,
que favorece um grupo específico em detrimento
do universal.
As técnicas de manipulação usadas são várias.
Fazem estudos estatísticos e mostra-se que se colo-
car um cartaz vermelho ali, os alunos vão para este
lado... Daí as técnicas pedadogicas ficam cheais
desse tipo de indicador: ameaça o aluno com isso,
muda a avaliação, gamefica a coisa... Não é que
estas discussões sobre técnicas pedagógicas não
sejam interessantes, mas se a técnica prescinde do
conteúdo, do currículo, da visão de educação clás-
sica e perene, a educação ficará reduzida a simples
manipulação de massa. Dependendo do conteúdo
que são dados nas escolas e universidades de hoje,
é melhor o aluno ficar lendo livro em casa, do

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— 67 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

que ir para a universidade ouvir aquelas bobagens


ideológicas. Depende muito.
O pai se mata de trabalhar para juntar dinheiro
para pagar a universidade do filho, ou se mata para
pagar escola para o filho passar em universidade
pública, e quando consegue, o filho sai pior do que
entrou. Não só na questão dos costumes - che-
gou lá e virou maconheiro, estas coisas acontecem
também -, as páginas antes e depois da federal é um
show de horrores, mostra como eles se transfor-
mam em aberração. Porém, não só isso, o outro
fator é o seguinte: não se pode substituir a forma-
ção pelos clássicos. Se isso não é visto pelo profes-
sor, então por mais que seja prestigiosa a univer-
sidade ou a escola, o proveito é muito pequeno.
Não tem propósito, nem conteúdo, a coisa não é
estruturada, o estudante não vê mais sentido na
coisa, cria-se uma crise. A quantidade de alunos
brasileiros que estão em universidades e escolas,
cuja maior tortura na vida deles é a universidade e
a escola, é muito alta. Eles não chegam lá e vibram
com o conteúdo.
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— 68 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

- “Ah, mas é impossível o aluno vibrar com o


conteúdo” - retrucam. Se o conteúdo é ruim e
passado de modo ruim, é realmente impossível.
Os alunos gostam é de conteúdo bom. Isso é algo
impressionante! Quando se oferece aos alunos
esse conteúdo, eles gostam, com ou sem dinâmi-
cas. Uma vez havia uma turma de alunos onde
sugeriram: - “Faz mais dinâmica”. Foi então ten-
tado fazer dinâmica de grupo, mas foi um caos.
Os alunos empurravam uns aos outros, não estu-
davam nada, a única coisa disseminada era o caos.
Dado o fracasso, também com tentativas de roda,
dentre outros testes, decidiu-se passar filosofia
clássica para esses alunos que eram da sexta ou
sétima série. – “Santo Tomás de Aquino! Vamos
lá!” Curso de metafísica para meninos de doze
anos, e eles vibraram. Por quê? Porque aquilo era
um conteúdo acima do que eles estavam acostu-
mados e foi passado como um desafio para eles.
O elemento de desafio é muito forte na educa-
ção. Quando se tinha a Ratio Studiorum dos jesuítas
ou a educação clássica medieval, muitas vezes se
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— 69 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

trabalhava com idéias muito acima do nível edu-


cacional comum das pessoas. Isso pode ter um
efeito ruim em alguns casos, porque se trouxermos
um conteúdo que está muito acima da capacidade
daquela pessoa, ela pode desanimar. Não podemos
menosprezar esse risco. Porém, por outro lado, se
subirmos a barra da educação, elevando o nível, as
pessoas sentem vontade de crescer, de melhorar,
para poder adquirir aquele nível. É o natural do ser
humano, principalmente em meninos, cuja educa-
ção é motivada por desafio. Ele sente-se desafiado
e deseja crescer para chegar naquele nível.
Com o relativismo da educação atual, o que
temos é a educação da medalha de honra ao mérito,
onde todo mundo é campeão. Esse não é o tipo de
educação que funciona. Todavia, também não é
boa aquela educação de meritocracia liberal que
diz que “se ganhar dinheiro, então quer dizer que
foi um menino bem educado, pois vai ter carro,
vai ter dinheiro, etc”. Esta educação tecnocrática
que diz “é importante aprender matemática, tem
que aprender coisas brutas, a ganhar dinheiro” na
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A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

realidade tende a fracassar, porque o aluno for-


mado neste tipo de educação perde as próprias
bases que levaram os grandes matemáticos e cien-
tistas e chegarem naquilo. Euclides foi formado na
escola de Platão, não foi formado na rua fazendo
conta na padaria. Foi necessário muito estudo e
formação filosófica para se formar um Euclides,
um dos maiores geômetros de todos os tempos.
A base de nossa geometria é quase toda de Eucli-
des. A formação tecnocrática, portanto, não dá
o todo da visão. É uma formação pobre que não
fundamenta nem a própria matemática, nem o
próprio método científico. Deste modo, os alunos
formados para serem efetivos, deixam de aprender
aquilo que o tornaria um aluno melhor.
A educação, por natureza, deve ser integral, mas
isso é algo que a educação moderna não entende.
A educação moderna não sabe o que é uma educa-
ção integral, porque uma educação integral forma
nos aspectos técnicos, nos conteúdos específicos,
mas, antes de tudo, ela forma a pessoa: sua base
ética, sua inteligência como um todo, bem como
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— 71 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

sua visão lógica. É evidente que um dos princi-


pais problemas da educação moderna é que ela é
extremamente compartimentalizada, hiper espe-
cializada, não vai nas origens dos próprios conhe-
cimentos,16 não forma na ética das virtudes. Se
formos falar com qualquer mãe, ela não vai querer
ter um aluno que seja muito bom em matemática,
e que seja um bandido. As pessoas têm a intuição
de que a melhor forma de aprender é por meio de
uma educação integral, mas ela não está em cena,
porque os pedagogos que estão fundamentando a
educação atual são tremendamente nominalistas
e, contaminados por visões pavloviana ou prag-
matistas, não conseguem enxergar o integral.
Portanto, nós temos na crise da educação atual
um problema de várias facetas: um problema que
envolve toda a dinâmica de como o professor se
vê, um problema que envolve o conteúdo que é
dado e um problema que envolve a forma como o
conteúdo é passado. Deste modo, enquanto não se
16. Por exemplo, o aluno aprende logarítmo, mas não sabe o que é
logarítimo. No máximo, na primeira aula, o professor faz demons-
tração do logarítimo, mas isso não contextualiza o que aquilo é.

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— 72 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

discutir estes pontos que estão sendo colocados, a


educação não vai melhorar. Vamos discutir salá-
rio dos professores (que é importante discutir),
as estruturas das escolas... Enfim, um monte de
coisa será discutido, mas sem ir ao ponto essen-
cial. Excluindo-se da discussão o que é essencial
à educação, não se vem à luz os seus principais
problemas.

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— 73 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Capítulo II
A Doutrinação nas Escolas: Origens do Problema17

H
oje falaremos sobre doutrinação nas esco-
las e universidades. Este tema é atualmente
muito forte, está sendo muito reclamado, mas as
pessoas não têm idéia da gravidade do assunto,
quão avançado está e como acontece. Elas pensam
vagamente que há um professor que está fazendo
apologia do PT em algum lugar, ou é pensado
como equânime, onde há um grupo que faz apo-
logia mais à direita e outro mais à esquerda e a
doutrinação teria aspecto de equalidade. Porém,
o problema que nós vivemos no Brasil é outro:
17. https://www.youtube.com/watch?v=ydG8wztO0-E

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A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

todo método pedagógico e o modo como foram


estruturadas as escolas e as universidades tem um
viés extremamente ideológico. Em relação a isso
há toda uma história.
Na época do império, quando houve a expulsão
dos jesuítas, o Brasil ficou com um déficit edu-
cacional muito grande, pois várias escolas foram
desmontadas. A partir disso o problema começou,
porque esta estrutura não foi substituída de ime-
diato por outra. Quando começou a substituição,
foram montados grandes colégios estaduais com
uma visão de planejamento centralizado e com viés
positivista. O lema da bandeira do Brasil – “ordem
e progresso” - é um lema do positivismo. Ensina-
va-se no Brasil catecismo positivista. Falava-se 18

18. Segundo o Padre Leonel Franca, se o positivismo falhou como


religião, não fracassou, contudo, como influência à mentalidade cien-
tificista e atéia que tanto contaminou nossa civilização: “A divinização
da Ciência como sucedânea da religião no governo das ações individu-
ais e sociais é um dos seus frutos mais venenosos (...). O cientismo foi
o aspecto novico deste entusiasmo. Reduzir toda a ciência à simples
averiguação de relações necessárias no espaço e no tempo, e confiar
a este conhecimento a orientação ética de indivíduos e povos é des-
conhecer as exigências mais imperiosas da vida moral e as aspirações
mais profundas da natureza humana. Não se mutila impunemente no
homem a atividade espiritual que gravita em torno da questão do seu

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— 75 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

inclusive que a educação deveria vencer a ideo-


logia retrógrada da Igreja Católica e outras coisas
do tipo. Em vários desses colégios mais antigos, é
possível ver os símbolos dessa ideologia positivista
em seus espaços físicos.
Se as escolas já tinham um grande viés ideoló-
gico, quando foram montar o Ministério da Edu-
cação, igualmente o viés ideológico estava pre-
sente. Neste caso era o de John Dewey, porque
os que criaram o ministério, Anísio Teixeira e
afins, foram formados na educação pragmatista
de Dewey, pragmatismo este que também vinha
com sua carga ideológica. Disso tudo, temos que
o Brasil teve uma fase forte de educação liberal-
-positivista-pragmatista bem no início do sistema
escolar e de universidades. E depois começaram a
chegar os marxistas.

destino. A ciência que ensina a dominar as energias cósmicas é uma


serva útil; divinizada, devorará seus adoradores (...). Da difusão desta
mentalidade, que sob o culto da ciência, disfaça um ateísmo intratável
e um materialismo indicustido e injustificado, grande quinhão de
responsabilidade cabe ao positivismo contista”. Cf. FRANCA, Leonel.
A Crise do Mundo Moderno. Curitiba: Editora Santo Atanásio, 2019.

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— 76 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

É com a doutrinação marxistas que as pessoas de


hoje têm um contato mais imediato. Elas sabem
vagamente que tem uma doutrinação de esquerda,
mas não conhecem a base positivista-pragmatista
como sendo anterior a esta. Os marxistas, por
exemplo, montaram a Universidade de São Paulo
(USP). Foi uma missão de marxistas franceses que
veio para colonizar o cenário intelectual brasileiro
com marxismo francês. A partir da USP, as outras
universidades brasileiras foram seguindo esta linha
de marxismo. A visão de Rousseau, que Dewey
e Marx já a tinham de fundo, traz em si a noção
de que o Estado precisa de fato formatar a cabeça
das crianças, porque seria necessário acabar com a
vontade individual delas, que é um problema que
teria surgido desde que se criou a propriedade pri-
vada, para incutir nelas uma nova base: entregar
cidadãos conformados à vontade geral.
O Estado deve formar, desde a infância, cidadãos
conformados à vontade geral. Isto é Rousseau. Já
em John Dewey, o estado precisa parar de dar os
conteúdos clássicos e começar a trabalhar para que
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— 77 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

as crianças tenham experiência. Para Dewey, a his-


tória com o seu legado histórico é uma sequên-
cia de experiência, não sendo visto como tendo
valor em si. Deste modo, via igualmente os valores
morais, bem como a ética, de maneira estritamente
nominalista, que não vê a beleza e a verdade, e são
descartados.
Em relação ao positivismo, a carga ideológica
é muito intensa, porque pensa o método cientí-
fico como sendo algo quase absoluto, tomado de
maneira ideológica, que vê a história divida em
eras. A era religiosa é vista como ultrapassada, e
estamos evoluindo para eras superiores ao largar
a metafísica e a religião.
Portanto, a doutrinação nas escolas não come-
çou recentemente no Brasil. Como vimos, a estru-
turação do sistema educacional e universitário no
Brasil foi montada de modo a poder doutrinar as
pessoas. Ora, quando os marxistas chegaram, a
cama já estava pronta para a implementação do
seu processo doutrinação.

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— 78 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

O Paulo Freire, quando montou sua teoria, já


tinha bebido de todos esses pedagogos anterio-
res. Já existia o Ministério de Educação criado aos
moldes do pragmatismo e já havia o sistema esco-
lar formado aos moldes do positivismo, então o
que ele fez foi colocar o viés marxista em cima
daquilo tudo que já estava preparado. Os marxis-
tas chegaram varrendo a casa, porque encontram
um terreno fértil. No Brasil, a Igreja Católica, a
que poderia fazer oposição a este viés marxista,
estava sofrendo muito com a Teologia da Liberta-
ção, então as pessoas da Igreja, deturpando a dou-
trina católica, começaram a falar de educação sob
o ponto de vista marxista, segundo a Pedagogia do
Oprimido. Daí que a Igreja, que deveria ser o con-
traponto ao marxismo, foi a que contribuiu para
difusão do marxismo nas escolas.
Sem resistência, houve quase que unânimidade
sobre o eixo político a ser trabalhado nas escolas: “a
formação familiar dos alunos tem que ser colocada
de lado e ser substituída por este conteúdo que
deve orbitar em um só eixo”. Qual eixo? Entre o
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— 79 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

eixo marxista de um lado (os que ganharam maior


atração) e o eixo liberal-positivista do outro (que
era a forma em vigor antes da chegada dos mar-
xistas). Ou seja, o espectro político foi reduzido a
somente um eixo. Se o aluno não for marxista, ele
pode ser liberal positivista, achando que o método
científico resolve tudo, que a liberdade tem que
ser absoluta (tornando-se um relativista moral de
outro perfil), bem como rejeitar a formação clás-
sica. Se o aluno for marxista, um relativista com
“consciência de classe”, daí ele é o “oprimido” mais
todo aquele discurso a que estamos habituados. Eis
o panorama que foi gerado e tomou conta de quase
100% das escolas do país. A situação é realmente
drástica, e só agora foi começar a ter uma reação
a isso, onde alguns poucos professores acordaram
para este problema e começaram a fazer alguma
coisa diferente. Contudo, permanece o fato de que
nós temos gerações inteiras no Brasil formadas
nesse molde relativista e anti-clássico.
Hoje, dentro do marxismo, a situação radicali-
zou, porque com as linhas do Focault, da Escola de
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A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

Frankfurt, da esquerda cultural, começaram a tra-


tar não só do marxismo tradicional, mas também
da dissolução da sexualidade das pessoas. A ideo-
logia de gênero é um exemplo disso. Parte-se de
um pressuposto corroborado pelo nominalismo,
junto com seu relativismo todo, de que não existe
natureza humana, então temos que ensinar crian-
ças de quatro anos sobre “questões de gênero”.
Uma vez houve um debate na câmara de São
Paulo, porque estava tendo um protesto “de
gênero”. O homem protestador estava lá, com a
camisa do Corinthians (nada contra os corinthia-
nos, isto é só um dado), barbudo, e perguntamos:
- “Então, qual é o teu projeto? O que querem?”
Ele respondeu: - “Nós queremos ensinar gênero
para as crianças a partir de dois e três anos”. Então
demos corda: - “Poxa, que interessante esse pro-
jeto, mas como é que funciona?” Então ele expli-
cou: - “Nós pegamos as crianças, arrancamos dos
pais, desconstruímos o que os pais estavam ensi-
nando para elas e então inserimos o conteúdo de
que elas não são nem menino e nem menina”.
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— 81 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Então questionamos: - “Legal o projeto, mas me


explica o que é ser menino e o que é ser menina.
Já que a intenção é destruir essas idéias, precisa-
mos saber qual é o conceito que tens delas. Já que
desejas destruir o conceito de natureza humana
também, do mesmo modo precisamos saber qual
é o teu conceito de natureza humana. Se conse-
guires explicar, podemos investir no negócio”. Na
tentativa de começar a explicar, o próprio bar-
budo reconheceu: - “Eu não sei o que é natureza
humana”. Então indagamos: - “Pois bem, então
estás querendo deconstruir um negócio que não
sabes nem o que é?!” Ele confirmou: - “É, eu não
sei. Onde posso ler sobre natureza humana?”
Enfim, este homem estava convicto; estava que-
rendo ajudar, e da maneira dele achava que o que
estava propondo era o bem, mas estava comple-
tamente equivocado. Todavia, ele revelou o pano
de fundo da coisa, que é uma desconstrução de
uma coisa que não se sabe o que é. Ora, quando
se nega o conhecimento clássico, nega-se a base,
a partir disso se deseja então descontruir algo que
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A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

nem o agente desconstruidor sabe o que é, muito


menos a criança. Este ativista pelo menos teve a
honestidade de revelar o que queria fazer e gritar
em público, mas há muitos professores que ficam
doutrinando as crianças nas escolas, e ninguém
toma conhecimento. O pai só vai descobrir quando
o menino virou um vagabundo.
O pai coloca o menino na escola, e sai pior do
que entrou. Os pais chegam à reunião de pais e
dizem que a professorzinha é bem simpática e que
o professorzinho é um cara bem legal, e o menino
vai, ao longo dos anos, estocando este conteúdo de
doutrinação, perdendo todo o conteúdo bom que
teria na casa dos pais. No Brasil, este é um pro-
blema tão grande que se deveria decretar estado
de sítio na educação, porque esta é a regra geral.
As boas escolas são exceções ínfimas, são muito
poucas. Podemos falar isso em concreto, a partir
da experiência de professor.
Em uma escola boa é possível passar Platão para
os alunos, fazer trabalho de maquete para repro-
duzir a arquitetura romana, ensinar latim, estudar
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— 83 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

o Trivium, etc. Em um ou outro colégio é possí-


vel transmitir este tipo de formação melhor. Eis
a experiência: uma vez, ao dar aula conjunta para
os alunos de uma dessas boas escolas junto com
alunos de escolas mais “normais”, na hora traba-
lhar um texto, os alunos do bom colégio conse-
guiam pegar o texto, ler, interpretar e explicar;
os dos outros colégios, porém, em um texto com
um nível de dificuldade um pouquinho maior,
já parecia como impossível de entender. O mais
interessante é que estes alunos não olhavam para
o professor, mas para o aluno do lado e se espan-
tavam, porque notava que o coleguinha da escola
boa estava conseguindo entender o texto.
Não podemos cair em demagogia, porque muito
das reformas da educação que estão pensando vai
na linha: “tem que trazer mais tecnologia para a
educação, aumentar verba, etc.”. Muitas propostas,
mas sem focar no conteúdo! Ninguém discute o
conteúdo da educação!
Ora, se o conteúdo é deixado de lado em detri-
mento de propostas ideológicas, não é a tecnologia,
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— 84 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

por exemplo, que vai resolver o problema. Colo-


quemos um computador e o menino simplesmente
vai estudar gênero pelo computador, ou seja, con-
tinuará ignorante mesmo com computador. Ser
ignorante com computador não é melhor do que
ser ignorante sem. Portanto, o conteúdo que é a
chave da coisa; portanto, está errada a forma de
como estão pensando o problema.
– “Ah, falta salários aos professores”. Sim, muitas
vezes falta. A situação do professor no Brasil não
é fácil. É verdade que o professor sofre disso no
Brasil, mas não sofre apenas por questão de salário
ou de estrutura, mas também por questão de má
formação. Estamos aqui falando de formação clás-
sica, entrentanto qual é o professor que conhece
isso? Nunca foram apresentados, não sabem onde
buscá-la, pois já vieram de uma formação defi-
ciente e ideológica.
Vejamos na universidade. O discurso geralmente
é de “escola sem partido”, solicitação de exposição
equânime, etc. Mas tem um porém: via de regra, a
perseguição é só para um lado, não é para todos os
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— 85 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

lados. É mentira dizer que há perseguição geral nas


universidades. Via de regra, quem é perseguido
na universidade é o cidadão que é conservador,
ponto. O liberal também, mas de certo modo, e
muito menos que o conservador. Em especial, se
for católico e conservador, “pior” ainda, católico e
tradicional, este é que é o último da pirâmide em
uma universidade.
Serve como exemplo uma situação bizarra pre-
senciada na universidade. Havia um segurança, que
era um sujeito negro de condição mais humilde,
e um aluno que era branco e rico. Este estava
fumando maconha dentro do campus da univer-
sidade, então o segurança solicitou: - “O senhor
poderia, por favor, se retirar do campus, pois está
sendo desagradável, etc.” Em resposta, o jovem
branco começou a gritar: - “A burguesia está nos
perseguindo! É tudo culpa da Igreja Católica que
tem mania de nos perseguir!” Bizarro, porque
a luta de classes na cabeça do sujeito tem muito
menos a ver com estruturas reais no mundo ou
com coisas que acontece de fato do que com uma
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— 86 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

leitura superficial que ele faz das coisas. Ou seja,


é uma inversão completa, e esse tipo de coisa é
muito comum!
Outra vez quisemos contruir uma sala de estudo
na faculdade, a sala Santo Tomás de Aquino. Os
seguranças todos vieram ajudar. Os meninos riqui-
nhos, de esquerda no caso, não queriam saber de
ajudar nisso. Mas vejam, os seguranças e os tra-
balhadores da faculdade ajudaram a construir a
coisa para a Pastoral da Faculdade. Novamente:
quando falam de luta de classes, estão fazendo uma
inversão muito grande. A história do socialista de
iPhone é um fato! E por que disto? É que a forma-
ção deles é extremamente materialista: ensinam
a ganhar dinheiro e o socialismo. Uma “beleza”,
pois permite ter um iPhone e ao mesmo tempo
se considerar um oprimido da luta de classes, não
indo assim a lugar algum. 19

19. Dado tal cenário das universidades, o que pode um professor


consciente do problema pode fazer para mitigar um pouco todo esse
dano causado é buscar ter uma formação clássica e profunda, esfor-
çando-se para passar esse conteúdo aos alunos. Isso é o principal. Ou
seja, buscar conteúdo, didática e auto-formação: melhorar. É algo que,
sem dúvida, requer muito esforço, mas é o que é necessário.

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— 87 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Nisso tudo ainda tem o paradoxo do “esta-


mos educando para o mercado de trabalho”, mas
quando vamos conversar com os empresários
do mercado de trabalho, estão achando péssima
a formação dos que estão chegando. A queixa é
de que os jovens não têm responsabilidade, não
acordam cedo, não querem fazer os estudos para
aperfeiçoamento... Isto é, não são qualificados para
ocupar os empregos. A situação da educação, ape-
sar de dizerem que estão focadas no mercado de
trabalho, não é boa para o mercado de trabalho.
Aliás, fazer uma formação só focada no mercado
de trabalho não vai resolver o problema da edu-
cação, porque igualmente esta formação não tem
conteúdo. Enquanto não tiver conteúdo bem tra-
balhado com formação de virtudes, o mercado de
trabalho também vai sofrer.
Não adianta mudar de tecnologia, não adianta
mudar a forma como se aborda e também não
adianta falar que “agora nós vamos compartilhar
mais os sentimentos”. Esta é outra praga que veio
com Rousseau: o sentimentalismo. São aquelas
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— 88 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

idéias de que a criança precisa fazer todas as von-


tades dela para poder se desenvolver, que o sen-
timento supera a razão. Neste caso, expressar o
sentimento seria algo mais belo. Contudo, a natu-
reza humana não é assim. Deixando o ser humano
largado para expressar os sentimentos e as coisas
que aparecem imediatamete, fará coisas más. Por
exemplo, o que acontece se largarmos um celular
com uma criança? Ora, a pessoa precisa ter uma
boa formação para buscar coisas boas, portanto,
diante do celular, sem conseguir discernir o bem
do mal, o conteúdo que mais chamará sua atenção
será o mais superficial: sexo e violência. É só com
a virtude que a pessoa busca por coisas mais ele-
vadas. É só observar a música clássica. Para fazê-
-las, são necessários anos de estudo, uma vida de
formação. Para um funk, qualquer batida já serve,
não é preciso muito esforço. Eis aqui o drama da
educação, que não tem nada a ver com a questão
do “oprimido”.
- “Ah, mas na periferia, as pessoas têm uma cul-
tura diferente”. Não, não têm. É só observar que o
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— 89 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

mesmo funk que está na periferia, também está no


bailezinho de rico. Podemos dizer o mesmo das
20

vestimentas e da estética. Outro detalhe curioso:


a “cultura” própria da periferia no Brasil é a dos
rappers americanos. Bem espontâneo, não? Ima-
gina, deve ser mera coincidência, não deve ter nada
a ver com uma cultura que foi imposta... É claro
que este papo determinista de “cultura da periferia”
não existe! Ora, a alta cultura tem que ser fomen-
tada em todos os lugares, simplesmente porque
ela é melhor. Se em tal lugar existem pessoas com
dificuldade, o que é melhor passar para ela? Res-
posta: justamente a alta cultura, porque, sendo a
melhor, é a que compensa mais. É justamente com
uma formação intelectual mais profunda, com uma
formação mais clássica, com atenção às virtudes,
que as pessoas em dificuldade terão mais chance
de superá-las. – “Ah, mas o problema é que na
20. O psiquiatra Theodore Dalrymple, por exemplo, também consta-
tou que na Inglaterra os maus gostos culturais não eram prerrogativa
da periferia, mas que a elite [econômica] também era consumidora
de má cultura. É que o dinheiro não é em si nenhum escudo para a
disseminação do mal. Cf. DALRYMPLE, Theodore. A Vida na Sarjeta:
o ciclo vicioso da miséria moral. São Paulo: É Realizações, 2015.

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— 90 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

periferia eles não entendem essas coisas de Bach


e de Mozart, então tem que ser uma música mais
simplória”. Objeção muito comum, mas que na
realidade revela o preconceito e a ignorância do
objetor. É uma objeção inadimissível. É claro que
é possível educar as pessoas da periferia.
A partir disso podemos entender a contradição
brasileira de discutir taxa de juros, importação de
ferro... Enfim, de discutir um monte de coisas, mas
não discutir a questão chave de como formar as
pessoas do Brasil, que deveria ser a prioridade.
Ora, o quanto o Brasil vai se desenvolver depende
da qualidade das pessoas do país, de como elas são
formadas. – “Ah, mas há discussão sobre educação
inclusiva”. Ora, mas educação inclusiva não pode
ser rebaixar o nível de conteúdo para todos sob a
pretenção de que isso resultaria em inclusão, senão
justamente ir atrás de quem não tem um conteúdo
muito bom e dar este conteúdo a eles. Ir aos luga-
res onde as pessoas não têm acesso e oferecê-las
o que tem de melhor. Todavia, a mentalidade de
doutrinação das escolas não pensa desse jeito. Ela
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— 91 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

fomenta no aluno o sentimento de revolta. - “Olha,


você é oprimido”, - “Olha, você está sendo perse-
guido”, - “Olha, você está sendo perseguido, por-
que é gay”. – “Mas eu não sou gay!” – “Que seja,
mas é por isso que você está sendo perseguido”. É
o fomento de uma situação em que o aluno nem
sabe direito onde ele está. Deste sentimento de
perseguição, segue-se o de estar sendo injustiçado
e, para reforçar tal sentimento, ainda aplicam o
seguinte discurso: - “Além disso, as cartas já estão
marcadas, então nem tente porque não vai conse-
guir”. Ela transveste-se de educação boa, mas na
verdade limita a possibilidade de evolução dos alu-
nos. Este é um dos principais problemas do país,
mas é bem onde a maioria os pais se enganam.
Os pais pensam que estão colocando o filho em
um bom colégio, em um colégio “católico”, em um
colégio “tradicional”, em um colégio estrangeiro,
mas quando se vai ver, estes colégios pretensa-
mente superiores possuem uma educação pior do
que se imagina. É que os pais não acompanham e
ignoram que o problema de fundo não se resolve
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— 92 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

com espaço físico ou marketing, porque a raíz do


problema é com a própria teoria.
O que eles precisam saber é que a filosofia clás-
sica foi estruturada para que as pessoas tivessem
autonomia. Neste sentido, a concepção tomista de
educação é a melhor. É ótimo que esteja havendo
esforços para valorizar Hugo de São Vitor, Santo
Agostinho, o Trivum, etc., que têm como base
excelente pedagogia. A concepção plena, porém,
é a tomista. Essas outras integram-se dentro desta,
confluem para a educação tomista. A questão é que
a concepção do paradigma tomista é toda montada
para o aluno de fato conseguir ter autonomia, mas
autonomia no melhor sentido da palavra. Não uma
liberdade mal construída, mas uma liberdade do
descobridor da verdade. A liberdade daquele que
encontra a verdade, consegue melhorar, encon-
trando a si próprio em face desta verdade.
Entretanto, as pessoas têm uma visão muito
errada disso. Ao falar de Tomás de Aquino, auto-
maticamente já pensam – “Ah, mas isso é uma coisa
medieval” – “Ah, isso é retrógrado e manipulador”.
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— 93 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Ora, mas hoje o que nós temos? Nós temos uma


educação que parece linha de produção, onde os
alunos saem todos repetindo a mesma coisa. No
passado, por outro lado, tínhamos justamente uma
educação mais ampla e que dava realmente auto-
nomia. A questão está toda invertida: parece que
a educação clássica era a que deformava os alu-
nos, enquanto a educação moderna seria a que é
“limpíssima”, sem nenhum conteúdo tendencioso,
totalmente isenta. Isso não é verdadeiro.
Não é tão difícil verificar isso. Analisemos o nível
das matérias, de escrita e de fala das pessoas que
estudaram em colégios católicos - quando existiam
colégios católicos bons no Brasil - e compare com
o pessoal de hoje. A diferença é chocante. Antiga-
mente estudavam latim, francês, citavam livros,
conheciam a doutrina católica, conheciam conteú-
dos de diversas áreas. Enfim, o nível humano era
diferente. Havia coisas exageradas? Sim, claro que
havia. Palmatórias e outras coisas fora de contexto.
Não defendemos voltar com isso. O fato é que,
em termos de conteúdo educacional, o nível de
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— 94 —
A FALÊNCIA DA EDUCAÇÃO MODERNA – PROF. GUILHERME FREIRE

profundidade era maior. E o que dizer das pessoas


de hoje? O nível linguístico está caindo. Elas mal
conseguem se expressar. – “Ah, que absurdo, vai
21

querer que se estude latim?” Ora, estamos che-


gando em um ponto que nem o português está
sendo conhecido. O latim, por sua vez, oferecia
maior profundidade no conhecimento de portu-
guês e de outras línguas, algo que que as pessoas
de hoje não têm mais.
Resumindo tudo o que dissemos. O problema da
doutrinação nas escolas, no Brasil, é prevalente,
está em todos os lados. É um problema grave e os
pais precisam acordar para isso, urgentemente.
E qual é a solução? A solução é voltar para um
modelo não-relativista, modelo que reconhece
que tem o certo e o errado, que tem coisas boas e
coisas más, que de fato existe um norte: o bem, o
belo e o verdadeiro. Reconhecendo esta necessi-
dade, restaurar então o tomismo como padrão da
21. O Brasil está 100 pontos abaixo da média da OCDE em leitura,
ciência e matemática. Por todos os parâmetros, está em péssima situ-
ação. E o brasileiro é inteligente. Para estarmos tão abaixo, é porque
o ensino é deficiente, já desde o ensino primário.

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— 95 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

educação. Esta é a melhor solução que teríamos.


22

Mesmo porque, o tomismo não é doutrinação, mas


é justamente a abertura de horizontes, oposto ao
que nos oferece a formação educacional ideológica
de hoje.

22. O que se propõe aqui não é nenhum modelo de solução mágica,


como seria se propusesse, por exemplo, o retorno da educação jesuí-
tica. O que se defende é o retorno e aplicação do paradigma tomista.
Deste modo, o que tinha de bom na educação jesuíta, nós pegamos;
na pedagogia vitoriana, também. O mesmo para outras abordagens
e modelos. No fundo o que está sendo defendido é restaurar o para-
digma tomista e a partir dele ir buscando várias coisas boas com
este paradigma em vista. Não se está defendendo retornar ao modelo
medieval propriamente, pois seria um pouco inadequado para os dias
de hoje, mas sim ao paradigma filósofico tomista. Isto, sem dúvida,
precisa ser feito.

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— 96 —
PARTE III

A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO


SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO

Martín F. Echavarría23

23. Trata-se da tradução de ECHAVARRÍA, Martín. El Niño y su edu-


cación según Tomás de Aquino. In: SOWINSKA, E., SZCZURKO,
E., GUZ, T., MARZEC, P. Dziecko: Studium Interdycyplinarne. Lublin:
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Artigo de Martín F.
Echavarría

A Criança e sua Educação


segundo Tomás de Aquino

N
este trabalho eu proponho fazer uma breve
apresentação das idéias principais de Santo
Tomás de Aquino a respeito da infância e da edu-
cação criança. Embora minha intenção seja expor
as ideias do próprio Aquinate, sem excessivas
interpretações, a finalidade de minha exposição
não é somente histórica. Além de alguns detalhes
científicos de tipo biológico e de circunstâncias
Wydawnictwo KUL, 2008. pp. 29-55. Por motivo de simplificação,
algumas notas de rodapé foram condensadas.
Créditos da tradução: Instituto Santo Atanásio (institutosantoatanasio.
org)

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— 98 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

socioculturais, acredito que as ideais centrais da


concepção tomasiana são plenamente vigentes
(inclusive em suas observações psicológicas) e
devem estar na base de uma visão integral (filosó-
fica e teológica) da criança no contexto da família
e do matrimônio, que é o educador do ser humano
por decreto natural.24

1. A criança é uma pessoa

Para poder compreender o que diremos, há que


partir de uma afirmação primeira fundamental:
que, a partir do momento em que há natureza e
indivíduo humano, há pessoa (sem entrar no tema
da animação do embrião) 25. Para santo Tomás,
24. Sobre esses temas, cf. F.A. Bednarski, “Animadversiones S. Tho-
mae Aquinatis de iuvenibus eorumque educatione”, en Angelicum 35
(1958) 373-411; idem, “L’educazione dei giovani nel pensiero di San
Tommaso”, en Sapientict 20 (1967) 80-104; idem, L’educazione dell’af-
fettività alia luce delia psicologia di San Tommaso d’Aquino, Massimo,
Milano 1986; E. Martínez, Persona y educación según Santo Tomás,
Fundación Universitária Espanola, Madrid 2002; M. Palet, La família
educadora dei ser humano, Scire, Barcelona 2000; idem, La educación de
las virtudes en la familia, Scire, Barcelona 2007.
25. É conhecido que Santo Tomás, seguindo a Aristóteles, foi partidá-
rio da tese da animação sucessiva do embrião (vegetativa, sensitiva e

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— 99 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

seria absurdo distinguir entre um indivíduo que


possui natureza humana e a pessoa, pois, segundo a
definição de Boecio, pessoa é a substância individual
de natureza racional. Por “substância individual”
entende-se o que Aristóteles chamava de substân-
cia primeira, que Santo Tomás chama suppositum
ou hipostasis, ou seja, o sujeito que possui uma
natureza, com suas condições individuantes (que
nas sustâncias compostas de matéria e forma pro-
vêm da matéria) e acidentes.26 Como as naturezas
são conhecidas através das ações dos sujeitos que
a possuem, e como o ato mais propriamente evi-
dente de quem possui a natureza humana é o ato
da razão, chama-se a esta natureza de “racional”.
Isso não significa que quando não se evidencia
atos racionais (ou quando deixa de fazê-lo) não
finalmente racional), embora considerando o aborto um delito e um
pecado mortal desde o começo da vida (Cf. Summa Theologiae, IIa-IIae,
q. 64, a. 8, ad 2; In IV Sent., Dist. 31, exp. text.). Sobre este tema, inter-
pratado à luz dos dados atuais da bilogia, cf. J.A, Izquiedo Labeaga actu-
ales de la biologa, cf. J.A. Izquíerdo Labeaga, “Santo Tomás, Maestro
de bioética?”, em e-aquinas. Revista electrónica mensual dei Instituto Santo
Tomás (Balmesiana), 4, febrero 2006,2-41 (25/03/2008; http://www.e-
-aquinas.net/epocal/sobre-la-animacion-racional-del-enibrion/).
26. Cf. Summa Theologiae, IIIa, q. 2, a. 2.

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— 100 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

nos encontramos diante de uma pessoa. A natu-


reza humana não se identifica com o ato e nem
com a potência racional (embora esta última seja
um “acidente próprio” dela).27 Por outro lado, a
alma e a potência racional estão presentes desde
o momento em que há um indivíduo da espécie
humana, mesmo quando não exercite esta facul-
dade mais adiante no tempo, como veremos. A
alma é a forma do corpo orgânico e vivente.28
Quando temos um organismo vivo individual,
temos uma alma e uma natureza, embora esta não
manifeste todas suas capacidades senão através do
tempo.
O prório da pessoa, que possui natureza racional,
ainda antes do exercício atual de suas capacidades
racionais (os atos da razão e do “apetite racional”
ou vontade) é sua interioridade. A pessoa enquanto
tal é imaterial e espiritual e, por conta disso, ela
está imediatamente presente a si mesma. Esta
autopresença é própria das realidades espirituais

27. Cf. Summa Theologiae, Ia, q. 77, a. 1.


28. Cf. Summa Theologiae, Ia, q. 76, a. 1.

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— 101 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

- pois o material é opaco e não pode voltar perfei-


tamente sobre si mesmo - é o fundamento de suas
capacidades e de sua dignidade. É assim sempre
quando há pessoa, embora com diferença em sua
perfeição. Em Deus, dá-se plenamente, pois Ele é,
como dizia Aristóteles, pensamento de pensamen-
to.29 Nas criaturas espirituais superiores (inteligên-
cias separadas: anjos), dá-se mais imperfeitamente,
pois embora seu primeiro objeto de pensamento
seja sua própria essência, contudo, seu ser não se
identifica com seu pensar.30 Nas almas humanas,
últimas entre as criaturas espirituais, situadas no
confim entre o mundo espiritual e o material, o
espírito está presente imediamente a si mesmo,
mas como está vazio de objetos inteligíveis, esta
presença é desapercebida em ato. Só ao conhececer
intelectualmente os objetos tomados da experiên-
cia sensível, a pessoa humana toma consciência em
ato de sua própria substância espiritual, que então
é experimentada como fonte de seus atos.31 Mas
29. Cf. Metafsica, XII, 9 (1074b 33-35).
30. Cf. Summa Theologiae, Ia, q. 54.
31. Cf. A célebre Q. De veritate, q. 10, a. 8.

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— 102 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

mesmo antes que isso suceda, ela já está dotada de


dignidade pessoal. Esta espiritualidade e intimi-
dade da alma humana empurra-a a afimar a criação
imediata dos espíritos por parte de Deus, o que
implica uma proximidade ontológica maior entre
Deus e as pessoas criadas, bem como a considera-
ção dela como imagem de Deus.32
Por outro lado, como a pessoa humana tem a
matéria como parte integrante de sua sustância,
matéria que recebe da alma o ser e a espécie e
que traz suas condições individuantes (que indi-
vidualizam a alma não só numericamente, mas
em propriedades tão importantes como o sexo, o
temperamento, o alcance de suas capacidade cog-
nitivas, etc.); por isso, o corpo humano participa
da realidade pessoal. Embora sejamos pessoas, por-
que temos em nós a capacidade (que se atualiza ao
longo do tempo) de dizer “eu”, oriunda de nosso
espírito, “eu” não é apenas minha alma, mas tam-
bém meu corpo.33 O corpo humano é, por isso,

32. Cf. Summa Theologiae, Ia, q. 90, a. 2.


33. Cf. Super I Cor., cap. 15,1. 2a.

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— 103 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

justamente humano e pessoal em todas as etapas de


seu desenvolvimento, ainda que crescer como pes-
soa implique que esse caráter constitutivamente
pessoal se vai estendendo e se manifestando cada
vez mais.

2. Etapas do desenvolvimento da criança

Este caráter racional e pessoal vai se desenvol-


vendo, precisamente, com o progresso das capaci-
dades espirituais. Equivoca-se a psicologia contem-
porânea quando considera o eu e a personalidade
como uma construção social que se monta sobre
um organismo biológico impessoal (um id ou isso,
como chama Freud). Contudo, isso não significa
negar um crescimento no ser da pessoa.34 Embora
a substância, segundo Aristóteles, não admite mais
e menos, ela é o sujeito real das mudanças, é ela a

34. Embora tenhamos a perfeição primeira pelo ser substancial, os


acidentes, especialmente os próprios, e os atos derivados dos aciden-
tes próprios (em particular a intelecção e a volição) permitem uma
manifestação e um aperfecionamento do esse da substância.

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— 104 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

que cresce em seus acidentes35. Ainda que tenha-


mos “personalidade” desde o princípio, ainda que
sejamos “eu” já pela presença habitual do espírito
35. Cf. L. de Raeymaecker, Philosophie de l’être, essai de synthèse métha-
physique, trad. esp. Filosofa del ser. Ensayo de síntesis metafísica, Gredos,
Madrid 1968,199: “Por conseguinte, não se pode tentar conceber a
substância como um substrato imóvel e inerte sobre o qual ou em
torno do qual se desenvolveria um movimento que por si mesmo não
afetaria a realidade fundamental do sujeto no devir. Indubitavelmente,
o ser particular conserva rigorosamente sua identidade fundamental
através de suas mudanças. A consciência dá testemunho disso: eu sou
e permaneço sempre o mesmo no curso de minha vida; por outro
lado, viver é mover-se, ‘vivere est sese movere’, a vida é uma evolu-
ção constante: nenhum instante estou fora desta evolução; seria um
absurdo pretender que minha vida se desenvolva ao redor de mim
sem me tocar; pelo contrário, esta evolução realiza-se em mim, ou
seja, sou eu que vivo, sou eu o que mudo”. (Estas últimas afirmações
são verdadeiras a respeito da vida que se realiza na matéria. Mas não
estão corretas a respeito da vida enquanto tal quando se realiza fora
da matéria, nas substâncias imateriais e em Deus). (...) Raeymae-
cker continua: “a substância é um princípio de substancialidade que
afeta o ser [leia-se ente] inteiro, inclusive seus acidentes; portanto,
o devir acidental participa da realidade substancial, percente a ele e
nela encontra o princípio de individuação. Com efeito, cada momento
de minha vida é integralmente meu, é comportado, animado, indi-
viduado por minha substância: seria inconcebível que fosse possível
mudar de sujeito ou que pudesse de alguma maneira pertencer a outra
pessoa. E vice-versa, os acidentes são princípios do devir do ser [ente]
particular considerado em sua totalidade, incluindo nela o princípio de
substancialidade; por conseguinte, a substância participa da mudança
que ela individualiza. Cada uma de minhas ações existe realmente em
mim e por mim; nelas vivo e existo”.

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— 105 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

a si mesmo (do qual já falamos), esse “eu” está feito


para ir ganhando unidade e perfeição operativa ao
longo do tempo, especialmente através do desen-
volvimento da razão e da vontade, em si mesmas
e nas suas participações com a “parte sensitiva”,
que constituem os hábitos e os atos perfeitos que
deles derivam.36
Colocados estes princípios, podemos passar para
o desenvolvimento dos temas particulares. Santo
Tomás segue a concepção clássica das idades huma-
nas que, em suas primeiras etapas, se dividem em
septênios:
As idades no homem variam segundo diversas
notáveis veriedades em seu estado: a primeira idade
chama-se infância, até o sétimo ano; a segundo,
puberdade, até os quatorze; a terceira, adolescência,
até os vinte e cinco anos; estas três idades às vezes
encontram-se como uma só; a quarta é a juventude,
até os cinquenta e cinco anos; a quinta idade é seni-
lidade, até os setenta e cinco; a sexta, a ancianidade,
até o final.37

36. A finitude ontológica própria das substâncias criadas é, de certo


modo, “remediada” nas pessoas pelo conhecimento, o que permite que
se possa ter presente na mente a perfeição de todos os outros entes;
cf. De veritate, q. 2, a. 2.
37. In IV Sent., Dist. 40, a. 4, Ex.

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— 106 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

Evidentemente, neste tema o que nos interessa


são as três primeiras etapas que se conformam
em um grupo: infância, puberdade e adolescên-
cia. Todas elas dizem respeito ao tempo em que a
pessoa está em crescimento, particularmente em
relação ao aumento corporal.38 Porém, durante
estas etapas, a criança também cresce naquilo que
lhe é próprio como pessoa: o uso da razão; assim,
segundo o progresso neste uso, estas três idades
podem ser distinguidas. O primeiro septênio está
dirigido para formar as bases corporais e sensiti-
vas sobre a qual se fundará o desenvolvimento da
razão; durante este período, a criança não pode
entender (no sentido próprio que o termo enten-
dimento possui em santo Tomás), nem sequer sob
a asa de outro. Já ao final do primeiro septênio,
a criança começa a usar sua razão, mas sob a asa
de um adulto. Por isso já pode iniciar a educação
escolar. Até o final do segundo septênio, já pode
entender suficientemente por si o que se refere a
si mesmo (por isso é capaz de dolo e pode contrair
38. In IV Sent, Dist. 15, q. 3, a. 2C, co.

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— 107 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

matrimônio ou ingressar na vida religiosa), mas


não mais do que isso, por causa da falta de expe-
riência. A experiência só é obtida ao final do ter-
ceiro septênio.
Os sete anos é o tempo derterminado pelo direito
para poder contrair os esponsais [ou seja, para pro-
meter-se em matrimônio], o que é bastante razoá-
vel; porque como os esposáveis são certa promessa
de algo futuro, conforme dito, é necessário que os
que os façam sejam aqueles que de algum modo
podem prometer. Coisa que não é própria senão de
quem tem alguma previsão de futuro, o que requer
o uso da razão. A respeito disto, podem-se assinalar
três graus, segundo o Filósofo em I Ethic. O pri-
meiro é quando alguém nem entende por si, nem
tampouco pode entender com a ajuda de outro. O
segundo estado é quando o homem pode entender
de outro, mas por si mesmo não é capaz de enten-
der. O terceiro é quando o homem pode entender
tanto com a ajuda de outro como por si mesmo.
Assim, como a razão do homem vai se tornando
forte pouco a pouco, segundo se aquieta o movi-
mento e o fluxo dos humores, por isso o primeiro
estado tem o homem antes do primeiro septênio.
Por isso, neste tempo, não é apto a nenhum con-
trato, nem tampouco para os esponsais. Mas, no
segundo estado, o homem começar entrar ao final
do primeiro septênio, razão pela qual também é

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— 108 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

nesse tempo que se levam as crianças às escolas. Já


no terceiro estado, o homem começa chegar ao fim
do segundo septênio nas coisas que pertecem a sua
própria pessoa. Porém, nas coisas que sejam exte-
riores a ele, só ao final do terceiro septênio. Por isso,
antes do primeiro septênio, o homem não é apto a
nenhum contrato. Mas ao final do primeiro septê-
nio, começa a ser apto para fazer alguma promessa
sobre o futuro, especialmente em relação às coisas
que a razão natural mais se inclina. Porém, não para
se obrigar com vínculo perpétuo, porque, todavia,
não tem ainda uma vontade firme. Por isso, em tal
tempo, se pode contrair os esponsais. Mas ao final
do segundo septênio já pode se obrigar a respeito
daquilo que corresponde a sua própria pessoa, seja
para entrar na religião, seja para contair matrimô-
nio. E depois do terceiro septênio, também pode
se obrigar a respeito de outras coisas; e, segundo
as leis, adquire-se autoridade para dispor de suas
coisas depois dos vinte e cinco anos.39

Santo Tomás tende a associar o desenvolvi-


mento da razão com o desenvolvimento do orga-
nismo. Como as meninas chegam à puberdade
antes que os meninos (elas aos doze anos e eles

39. In IV Sent., Dist. 27, q. 2, a. 2, co.

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— 109 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

aos catorze), costumam tembém antes amadurecer


intelectualmente.40
De acordo com o que foi exposto, é possível
falar de uma normalidade ou perfeição relativa
a cada idade. Embora uma criança não seja per-
feita segundo toda a perfeição possível à natureza
humana, contudo, pode ter tudo o que é próprio
de seu tempo.41

3. Características da infância

A infância, como etapa do desenvolvimento


humano, é um movimento até a adultez. Se é
menino ou um adolescente, trata-se de alguém que
“está crescendo”. Este movimento termina quando
se torna alguém “que já cresceu” (adulto). O cresci-
mento é corporal e anímico. O primeiro depende
sobretudo da natureza e também é o que se dá
nas plantas e nos animais. O segundo tem algo de

40. In IV Sent., Dist. 27, q. 2, a. 2, ad 3.


41. Summa Theologiae, Ia-IIae, q. 98, a. 2, ad 1.

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— 110 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

propriamente humano, embora em alguns animais


haja também um certo crescimento anímico.
O desenvolvimento anímico dá-se pelo pro-
gresso no uso das capacidades cognitivas, apeti-
tivas e motrizes. Conforme acabamos de dizer,
as próprias etapas da infância são distinguidas
por Santo Tomás segundo o progresso no uso da
razão. Como o uso da razão depende das imagens
que proporcionam os sentidos internos, e estes são
faculdades situadas no cérebro, a maturidade deste
e o exercício das funções sensitivas são de capital
importância para o desenvolvimento anímico do
ser humano. Neste ponto vê-se com claridade o
equilíbrio da visão hilemórfica que Santo Tomas
recebe de Aristóles.
O uso da razão depende de certo modo do uso das
forças sensitivas e, portanto, está ligado ao sentido.
Assim, impedidas as forças interiores sensitivas, o
homem não possui perfeito uso da razão, como é
evidente naqueles que dormem e nos frenéticos.42
42. Nesta passagem, “frenéticos” pode significar “loucos”, sem pro-
blema. Contudo, na Idade Média e desde a Antiguidade, a “phenilis”
era um transtorno mental específico, cuja característica principal era a
presença de delírio com febre aguda; (...) Segundo o psiquiatra tomista

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— 111 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Uma vez que as forças sensitivas são capacidades de


determinados órgãos corporais, então impedidos
esses órgãos necessariamente se verão impedidos
seus atos e, por conseguinte, o uso da razão. Nas
crianças, dá-se o impedimento de tais força por
causa da excessiva umidade do cérebro. Por isso,
neles não há perfeito uso da razão, nem dos outros
membros.43
Contudo, o uso das capacidades sensitivas
começa já no período intrauterino e, portanto,
o desenvolvimento cognoscitivo que culminará
no uso adulto da razão tem já seu início nessas
primeiras experiências anteriores ao parto.44 As
Eduardo Krapf: “Pareceria às vezes como se os phrenetici tivessem
formado um grupo à parte, pois este tipo de alienados tem presente
certas relações etiopatogenéticas com as condições dos órgãos inter-
nos. Este grupo, sob o ponto de vista sintomatológico, caracteriza-se
pela presença de abundantes alucinações, sendo, pois, comparável
com certos tipos de nossas ‘psicoses sintomáticas’, e se diferenciam
notadamente do grupo dos lethargic, caracterizado pelo predomínio
de transtornos amnésicos e, em certa medida, assimilável a certos
tipos de demências (...) ((E. Krapf, Tomás de Aquino y la psicopato-
logía. Contribución al conocimiento de lapsiquiatria medieval, Index,
Buenos Aires 1943,35). O Canon Medicinae de Avicena coloca como
causa da fenilis a acumulação de humor sanguíneo em forma de tumor,
recomendando como tratamento a flebotimia. (Avicenna, Canon
Medicinae, L. UI, Fen I, Tract. 3, cap. 1-3).
43. Summa Theologiae, I, q. 101, a. 2, co.
44. Indo além do tema da chamada “animação diferida” do embrião
em Santo Tomás, para este Cristo gozava do perfeito uso dos sentidos

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— 112 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

experiências das infância são muito importan-


tes, porque, por causa das novidades, ficam fir-
memente gravadas no ânimo e se, ademais, são
repetidas, transformam quase em uma segunda
natureza: “O costume, especialmente os adquiridos
desde a infância, obtem a força de uma natureza:
sucede assim que essas coisas de que se impregna
o ânimo desde a infância, ficam fixados tão fir-
memente como se fossem naturalmente e por si
evidentes”.45 Por isso, muitas das primeiras expe-
riências da infância, às vezes de conteúdo em si
insignificante, ficam fortemente impressas na
memória da criança e podem ser recordadas inclu-
sive na adultez. E isso porque, no momento espe-
cífico, foram novidades admiráveis: “Sucede que
essas coisas que alguém recebe em sua infância, a
memória as retém firmemente pela intensidade
do movimento, então sucede que aquelas coisas
de que mais nos admiramos, são as mais impressas
na memória. Porém, nós nos admiramos sobre-

desde a conceção; cf. Summa Theologiae, IIIa, q. 34, a. 2, ad 3.


45. Summa contra gentiles, 1.1, c. 11, n. 1.

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— 113 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

tudo das coisas novas e insólitas. As crianças, que


entram como novas no mundo, assombram-se
mais daquelas coisas que lhes parecem insólitas; e
por causa disso recondam com firmeza”.46
Por outro lado, a falta de experiência é uma das
principais causas do porquê as crianças e jovens
estão mais inclinados à esperança.
A juventude é causa de esperança por três moti-
vos, como disse o Filósofo em II Rhetoric. Estes três
motivos podem ser tomados como as três condi-
ções do bem que é objeto da esperança: o que é
futuro, árduo e possível, conforme já foi dito. Já
que os jovens têm muito futuro e pouco passado,
e como a memória é do passado e a esperança é do
futuro, têm pouco na memória, mas vivem muito
pela esperança. Também pelo calor da natureza, os
jovens têm muitos espíritos47, e por isso seu coração
46. In De memória et reminiscentia, 1. 3, n. 6
47. Evidentemente que aqui “espírito” não significa as substâncias ima-
teriais, mas um elemento vaporoso que circula pelo corpo humano.
Na doutrina médica que deriva da tradição galênica, no corpo há três
tipos de “espíritus” (ou “soplos”): os naturais (elaborados no fígado),
os vitais (elaborados no coração) e os espiritos animais (elaborados
no cérebro e que circulam pelos nervos). Neste texto, Santo Tomás
refere-se claramente aos espíritos vitais, que dilatam o coração. Para
Santo Tomás, as emoções são psicosomáticas. O movimento aní-
mico tem como complemento uma paixão corporal, que é um movi-
mento do coração. Por isso, a esperança é formalmente o movimento

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— 114 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

se dilata. Da amplitude do coração deriva que se


tenda às coisas árduas. É por isso que os jovens são
animosos e de boa esperança.
De modo semelhante, também aqueles que não
experimentaram fracassos, nem impedimentos a
seus desejos, facilmente consideram que algo é pos-
sível para eles. Então os jovens, pela falta de expe-
riência em impedimentos e derrotas, facilmente
consideram que algo lhes é possível. Por isso tem
boa esperança.48

De modo contrário, as experiências negativas,


especialmente as traumáticas, como a perda dos
seres queridos ou a violência sexual, podem levar
ao desenvolvimento de desequilíbrios psicológicos
(aegritudo animalis).49
apetitivo que surge ante um bem árduo possível de conseguir, mas
materialmente é uma dilatação do coração produzida pela presença dos
espíritos vitais. Os jovens estariam biologicamente mais dispostos
a ter esperança por causa da abundância de espíritos vitais em seu
coração. Sobre o papel central do coração na biologia tomasiana, cf.
seu opúsculo De motu cordis.
48. Summa Theologiae, Ia- IIae, q. 40, a. 6 co.
49. Cf. In VII Ethicorum, l.1, n. 12; Cf. In VII Ethicorum, 1.5, n. 7.
Sobre o tema aegritudo animalis, cf. M.F. Echavarría, “La enfermedad
psquica (aegritudo animalis) segun santo Tomás”, em Proceedings of the
International Congress on Christiati Iiumanism in the Third Millennium:
The Perspective of Thomas Aquinas, Pontifícia Academia Sancti Thomae
Aquinatis, Vatican City 2006, 441- 453; idem, “Santo Tomás y la enfer-
medad psquica”, em Actas de las Tomadas de Psicologia y Pensamiento

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— 115 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Além do crescimento na própria experiência,


é capital que a criança possa se enriquecer com
a experiência e conhecimento dos seus maiores,
para o qual tem um papel fundamental a aquisição
da linguagem. No princípio, a aprendidagem da
linguagem é imitativa, mas vai se interiorizando
quando a criança passa, pouco a pouco, a com-
preender o conteúdo conceitual da linguagem,
desenvolvendo a sua própria “linguagem mental”.50
Daí a importância capital para o desenvolvimento
humano de “palavras” educativas, “verba doctoris”,
que lhe chegam através dos seus pais e educadores.
Junto com o desenvolvimento cognitivo, temos
o não menos importante desenvolvimento afetivo.
Se a criança no começo vive mais centrada em suas
sensações do que na razão, similarmente a criança

Cristiano. Bases para una Psicologia Cristiana, EDUCA, Buenos Aires


2005,31-50; idem, La praxis de la psicologa y sus niveles epistemológicos
según santo Tomás deAquino, Documenta Universitária, Girona 2005,
especialmente pp. 435-632; idem, “Enfermedad mental y respon-
sabilidad ético-jurfdica”, en AA. VV., Encuentro Internacional de
Profesores de Derecho Penal de Universidades Católicas, A-Z editora
- UCA, Buenos Aires 2007,58-66.
50. Cf. In VII Ethicorum, l.3, n. 17

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— 116 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

está por isso mesmo muito sujeita a suas paixões


ou emoções antes de poder manifestar atos clara-
mente livres. As crianças estão mais inclinadas à
busca do prazer. Não só por causa do defeito no
uso da razão, que os sujeita aos sentidos, mas tam-
bém porque estando em processo de crescimento,
sentem maior necessidade da ação medicinal dos
prazeres sensíveis:

A tristeza contraria o bem próprio de quem se


entristece; por isso os que estão tristes apatecem
o deleite, como forma de contribuir para o bem
próprio, dado que é medicina de seu contrário. (...)
Por isso os jovens apetecem em grau máximo os
deleites, pelas muitas transmutações que ocorrem
neles enquanto estão em crescimento.51

Em relação às suas inclinações afetivas, a criança


não nasce como uma tábula rasa. Junto às inclina-
ções gerais próprias da espécie (conservar o ser,
aumentá-lo, etc.), suas potências apetitivas sensi-
tivas, que são faculdades dos órgãos corporais, têm
51. Summa Theologiae, Ia- IIae, q. 32, a. 7, ad 2.

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— 117 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

um conjunto de inclinações características que são


inatas, aquilo que hoje se costuma chamar de tem-
peramento. Uma vez que estas inclinações podem
ser favoráveis ou contrárias a um desenvolvimento
futuro das virtudes, Santo Tomás, com Aristóteles,
as chama de “virtudes e vícios naturais”, embora
não sejam virtudes e vícios em sentido estrito,
porque ainda falta a voluntariedade e a eleição.
Provém da boa complexão do corpo e da natureza
que alguém se incline mais ou menos às operações
das virtudes e vícios, assim alguns são naturalmente
irascíveis e outros mansos. Esta disposição da natu-
reza corporal deriva dos pais, a maioria das vezes,
como também de outras disposições corporais como
a beleza, a força e coisas do tipo. Por isso, de pais
bons, nascem muitas vezes bons filhos, embora
por algum impedimento da natureza nem sempre
se produza este resultado. Assim, às vezes, de pais
bem dispostos à virtude, nascem filhos mal dispos-
tos; bem como de pais belos, filhos feios; de pais
grandes, filhos pequenos.52
52. In I Politicorum, l. 4, n. 12. Cf. Alberto Magno, Quaestiones super De
animalibus, liber I, q. 21: “Alguns estão naturalmente dispostos à forta-
leza, outros à liberdade e outros à castidade, e, contudo, pelo costume
podem mudar e se inclinar para o sentido oposto. De modo seme-
lhante, alguns naturalmente estão dispostos à vícios, como os melan-
cólicos à inveja e os coléricos à ira, e, contudo, pelo discenimento do

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— 118 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

Além de outros motivos, a semelhança de tem-


peramento faz dos pais os educadores mais idô-
neos da afetividade dos filhos. Partindo destas
disposições naturais, trata-se de ir inclinando as
emoções de modo conveniente à natureza racional
e à destinação sobrenatural da criança. Isso, antes
do uso da razão, faz-se por meio de prêmios e cas-
tigos, do desejo e do temor,53 mas à medida que a
razão da criança se desenvolve, a educação deve
apelar cada vez mais à razão e à vontade.54

intelecto, podem se habituar ao sentido contrário. Portanto, pelas


partes do corpo, podem se conhecer as tendências naturais a certa
conduta ou oposição em respeito aos homens. Porém, por elas não se
podem conhecer os hábitos que existem na alma”. Em Santo Tomás,
cf. Summa Theologiae Ia-aeII q. 51 a. 1 in c.
53. Cf. Summa Theologiae, la-IIae, q. 99, a. 6.
54. Cf. PALET, La educatión de las virtudes..., 25: “Para que os atos que a
criança irá realizar tenham um valor educativo, para que contribuam
à própria formação do coração, da vontade e da sensibilidade - isto é,
das virtudes morais -, é necessário sejam livres e pessoais e, para isso,
é indispensável que a criança compreenda, à medida em que isso seja
possível, sua utilidade e significado. A habituação moral da criança,
a educação e aquisição de hábitos para o discenimento virtuoso têm
que ser propostos constante e convenientemente segundo os fins
dos atos que está realizado e na adequada medida em que ela possa
compreender”.

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— 119 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Conforme já dissemos, o final do primeiro sep-


tênio é quando a criança começa, segundo Santo
Tomás, a usar de sua razão com ajuda de seus
superiores. É de pensar que, junto com o começo
do uso da razão, se dá também o início das elei-
ções livres. É muito difícil dizer de modo preciso
quando a criança começa a ter responsabilidade
moral. Santo Tomás refere-se de modo vago à
primeira eleição, que acontece quando a criança
alcança a idade do discernimento, quando se per-
gunta se é possível alguém com pecado original
ter como primeiro pecado um venial e não mortal:
É impossível estar em estado de pecado venial
e de original, simultaneamente, sem estar no de
mortal. E isso porque a falta de idade, que priva o
uso da razão, excusa o pecado mortal quem ainda
não chegou à idade do discernimento. Portanto,
com maior razão, o excusa do pecado venial, se
cometer algum que o seja genericamente. Quando,
porém, começar a ter o uso da razão, não ficará
absolutamente excusado da culpa do pecado venial
e do mortal. Ora, nessa idade, o que primeiramente
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— 120 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

ocorre ao pensamento humano é deliberar sobre


si mesmo. E então, ao se ordenar a si mesmo ao
fim devido, conseguirá, pela graça, a remissão do
pecado original. Se, porém, não se ordenar para
esse fim e como está em idade capaz de discerni-
mento, pecará mortalmente por não fazer o que
era capaz de fazer.55
Santo Tomás não determina quando é este
momento. Poderia ser aos sete anos, que é a idade
canônica para a primeira comunhão; embora o
mais provável é que seja a puberdade, como será
visto daqui a pouco.56 Em todo caso, o fim do
desenvolvimento anímico da criança é a aquisição

55. Summa Theologiae, Ia- nae, q. 89, a. 6.


56. Cf. J.A. Weisheipl, Tomás de Aquino. Vida, obras y doctrina, Pam-
plona, EUNSA, 1994, 312 (nota 41): “Para Tomás, ‘a idade da razão’
chega normalmente com a puberdade; é a idade do discernimento moral,
a idade em que o rapaz passa a ser ‘capaz de decidir’ (doli capaces), ou
seja, capaz de cometer pecado mortal, manter as virtudes e votos (II-
II, q. 88, a. 9; q. 189, a. 5, etc.). Em nenhuma parte, Tomás menciona
a idade do discernimento especulativo, o qual é necessário para receber
a primeira comunhão à idade de sete anos. A maioria dos rapazes
alcança a idade do discernimento moral em torno dos catorze anos
(e doze para as garotas), então podem emitir votos religiosos ou se
casar, mesmo quando a lei positiva da Igreja e das Ordens religiosas
exigem uma idade maior”.

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— 121 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

dos hábitos virtuosos (intelectuais e morais) neces-


sários para levar uma vida de acordo com a própria
natureza. Para obter êxito neste fim, é fundamen-
tal o papel da família.

4. A criança é “algo do pai”

Com efeito, quando Santo Tomás trata sobre a


necessidade do matrimônio, explica com profun-
didade o que é a fecundidade humana como tal.
Ser pai humano não implica só a transmissão da
vida orgânica, coisa que também fazem as plantas
e os animais, mas também a comunicação da pró-
pria perfeição racional, que é a virtude. Ser pai,
para um ser humano, supõe trabalhar também na
virtude. Por isso os homens, diferentemente dos
vegetais e dos animais brutos, precisam crescer
no seio de um matrimônio. Este é o argumento
do Aquinate:
Diz-se que algo é natural de duas maneiras. Pri-
meiro, como causado pela necessidade dos prin-
cípios da natureza, tal como mover para cima é

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— 122 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

natural ao fogo, etc.; e assim o matrimônio não


é natural, nem nenhuma das coisas que se levam
a cabo mediante o livre-arbítrio. Segundo, diz-se
natural àquilo a que a natureza inclina, mas que
se completa mediante o livre-arbítrio, tal como os
atos das virtudes são ditos naturais; e deste modo
também o matrimônio é natural, porque a razão
natural inclina ao mesmo de duas maneiras. Pri-
meiro, quanto ao seu fim principal, que é o bem
da prole: pois a natureza não intenta apenas sua
geração, mas seu crescimento e promoção ao estado
perfeito do homem enquanto é homem, que é o
estado de virtude. Pelo qual, segundo o Filósofo,
três coisas recebemos dos pais: o ser, o alimento e
o ensinamento. Mas o filho não pode ser criado e
educado se não tem certo e determinados pais, o que
não seria possível se não houvesse nenhuma obriga-
ção de um homem a uma mulher determinada, que
é o que constitui o matrimônio. Segundo, quanto
ao fim secundário do matrimônio, que é o mútuo
obséquio dos conjuges para as coisas de casa. Pois
tal como a razão natural dita que os homens vivam
juntos, porque um homem não basta por si mesmo
em tudo o que é necessário para a vida, pelo qual
se diz que o homem é naturalmente político; assim
também, das coisas que são necessárias para a vida,
para algumas dessas obras são mais competentes os
varões e para outras as mulheres, razão pela qual a
natureza move para que haja uma certa associação
entre varão e mulher, que é o matrimônio. Estas

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— 123 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

duas coisas foram postas pelo Filósofo no l. VIII


da Ética.57

A primeira coisa que é preciso destacar é que a


que costuma ser considerada a definição tomasiana
de educação:58 “a promoção ao estado perfeito do
homem enquanto é homem, que é o estado de vir-
tude”. Aqui se conecta explicitamente a educação
com a finalidade do matrimônio. O fim principal
do matrimônio é a procriação. Porém, se trata da
procriação humana. Para a simples reprodução
biológica, não é necessário o matrimônio, que
não se dá entre os simples vegetais, nem entre os
animais brutos. Se é necessário o matrimônio, é
porque procriar humanamente é levar o efeito (a
prole) à perfeição de sua natureza, ou seja, pro-
mover os filhos ao estado de virtude. O matrimô-
nio existe para a educação na virtude. Isso é assim
de tal maneira, que há uma conexão intrínseca
entre a paternidade humana (isto é, a que se dá

57. In IV Sent., Dist 26, q.l, a.l, co.


58. A base dela está estruturada no livro E. MARTÍNEZ, Persona y
educación..., citado anteriormente.

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— 124 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

dentro do matrimônio) e a educação. Uma vez


que os esposos se constituem como tais em ordem
a levar seus filhos à perfeição, daí deriva que ser
pai humano é ser educador. O educador primeiro
(não só em relação ao tempo, mas pela natureza
da relação com seu filho) é o progenitor: o pai e a
mãe. É daqui que deriva o que hoje, em linguagem
moderna, se costuma chamar de direito e dever
primário dos pais de educar seus filhos. Os pais,
diz Santo Tomás, dão “o ser,59 o alimento e o ensi-
namento”. Essa é a ordem de geração, mas tudo se
ordena ao terceiro destes elementos, que é a for-
mação da virtude. O cuidado material da criança
é o que se chama “criação” (educatio); a formação
na virtude, “educação” (disciplina).60
Por que é necessário o matrimônio? Já que os
homens, para crescer, precisam de muito tempo
para serem cuidados, alimentados e educados na

59. Entenda-se na medidade em que deles derivam as bases materiais


do homem, porque a forma, ou seja, a alma humana espiritual (que é
a que realmente dá o ser - esse - ao composto) é criada imediatamente
por Deus, como já dissemos.
60. É chamativa a inversão do significado de educatio em espanhol.

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— 125 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

virtude, então necessitam da atividade diferen-


ciada61 do pai e da mãe. É por isso que o matri-
mônio se constitui como uma união estável entre
o homem e a mulher. O matrimônio existe justa-
mente para garantir à prole a estabilidade neces-
sária para a criação e educação (isto é, a formação
das virtudes). A tal ponto isso é assim que, para
Santo Tomás, se antes do nascimento o filho está
contido no corpo da mãe, em seu útero, depois de
nascer o filho está contido de alguma maneira na
atmosfera moral dos pais, como se fosse um “útero
espiritual”:
O filho é naturalmente algo do pai. Pois, pri-
meiro, não se distingue dos pais segundo o corpo,
enquanto está contido no útero da mãe. Depois,
mais tarde, depois de sair do útero e antes que tenha
o uso do livre-arbítrio, está contido sob o cuidado
dos pais como que em um útero espiritual. Pois
enquanto não tem o uso da razão, a criança não se
diferencia dos animais irracionais. Daí que tal como

61. Sobre esta ação diferenciada do pai e da mãe, cf. De Malo, q.15,
a.l, co; Summa Theologiae II-II, q.154, a.2: “Ora, é manifesto que para
a criação dos filhos na espécie humana não bastam só os cuidados da
mãe, que os amamenta; mas muito mais, os do pai que deve educá-los,
defendê-los e dotá-los de bens tanto internos como externos”.

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— 126 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

o boi e o cavalo são usados como se queira, nos


termos do direito civil, como instrumento próprio;
assim também é do direito natural que o filho, antes
que tenha o uso da razão, esteja sob o cuidado dos
pais.62

Em um texto paralelo, depois de dizer coisas


semelhantes, conclui: “Mas depois que começa a
ter o uso do livre arbítiro, já começa ter posse
de si, podendo prover por si mesmo enquanto
esteja dentro daquilo que são do direito divino
ou natural”.63
Isso deve ser entendido corretamente, pois a
comparação com os animais irracionais pode levar
ao equívoco.64 Os filhos são algo do pai em um
sentido muito distinto do que são suas posses, ani-
mais ou escravos. Enquanto todos esses são algo
de que os pais dispõem como instrumentos a seu
desejo em ordem a um fim próprio, os filhos são
62. Summa Theologiae, IIa-IIae, q. 10, a. 12, co.
63. Quodlibeta II, q. 4, a. 2, co.
64. O tema dos filhos como “algo do pai” é complexo e tem aspectos
morais e jurídicos envolvidos. Há nisso vários lugares em que Santo
Tomas fala do assunto: Summa Theologiae, Ia-IIac, q. 100, a. 5, ad 4;
Summa Theologiae, IIa-IIac, q. 57, a. 4; Summa Theologiae, III, q. 59, a.
5, co; De Maio, q. 5, a. 4, co.

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— 127 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

“algo dos pais” no sentido de que, antes de chega-


rem ao perfeito uso da razão, estão sob seus cuida-
dos; pela falta de razão e livre-arbítrio dos filhos,
são os pais quem decidem por eles. Mas fazem
isso com base na unidade que possuem com eles,
por serem sua causa e, sobretudo, e que deriva
disto, pelo amor que lhes têm65 (especialmente as
mães, que são as que mais amam, segundo Aristó-
teles)66. Diferentemente das posses, dos filhos se
decide não como se fossem instrumentos, mas em
ordem ao bem dos próprios filhos, como pessoas,
segundo o que já foi dito a respeito da orientação
do matrimônio ser para a educação da prole. Isso
diferencia radicalmente a relação que um pai tem
com seus instrumentos (inanimados ou animados)
e seus filhos. Neste texto magistral, santo Tomás
expressa isso claramente:

65. Sobre o tema do amor, que diferencia radicalmente o principado


real e o político do tirânico, cf In I Politicorum, l. 10, n. 4.
66. Ética Nicomáquea, l. VIII, c.XII. Ali Aristóteles explica que os
pais amam mais aos filhos que estes a seus pais, e que o filho é para
o pai como “outro eu”, pois entre pais e filhos há amizade, ainda que
assimétrica.

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— 128 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

Deve-se notar que o governo do pai sobre o filho


é diferente daquele do senhor sobre o servo, porque
o amo usa seu escravo em utilidade própria, mas o
pai guia o filho para a utilidade do filho. Por isso é
necessário que os pais eduquem seus filhos para a
utilidade destes, não os oprimindo ou subjulgando-
-os em demasia. É por isso que se diz em Col 3, 21:
pais, não irriteis vossos filhos para que não se tornem
desanimados, porque tal provocação não anima ao
bem. Como então? Acrescente a isso que sejam for-
mados na disciplina, ou seja, com repreensões, com
correções, com palavras, ou seja, corrigindo-os e
educando-os para que sirvam ao Senhor. Ou: pelo
ensinamento, induzindo-os ao bem; pela correção,
retirando-os do mal.67

Quando os pais confundem o domínio que têm


sobre os filhos com um governo tirânico, tratando
os filhos como instrumentos para seus fins indi-
viduais e como servos, os filhos tornam-se débeis
de ânimo (pusilânimes) e não desenvolvem as vir-
tudes que os tornariam homens capazes e aptos
para o serviço de Deus.68 Em um texto paralelo, o
Angélico diz isso com estas palavras:

67. Super ad Ephes., c.6, l.1.


68. Cf. In VIII Ethic., l. 10, n. 11-12.

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— 129 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Depois [São Paulo] instrui os pais em Efésios


6,4: E vós, pais, não irriteis vossos filhos, etc. E isso
para que não se tornem covardes, ou seja, para que
não se façam pusilânimes. A razão disso é que os
homens conservam muito da impressão que tiveram
na infância. E é natural que quem é criado de modo
servil seja pulsilânime.69

Isso a que se refere o texto anterior, o pai faz


através de gestos e palavras. Então, antes de tudo,
na vida cotidiana o pai educa através do exemplo.
A virtude não pode ser fingida diante dos filhos,
pois convivem com seus pais. Se o pai não possuir
a virtude, nem aspirar a ela, os filhos percebem. A
virtude adquire-se mais pelo contato e conatura-
lidade com os homens bons do que pelo dizer de
muitas palavras separadas da boa vida:
Pois, nos atos dos homens, mais movem os exem-
plos do que as palavras. O homem atua e elege o que
lhe parece bom. Assim, a melhor mostra de que é
bom é o que ele mesmo elege, aquilo que ensina que
tem que eleger.70

69. Super ad Coloss, c. 3, l.4.


70. Super Evangelium loannis, cap. 13,1. 3.

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— 130 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

Nas operações e paixões humanas, nas quais a


experiência é o que mais conta, mais movem os
exemplos do que as palavras.71

5. A idade da razão

De todo modo, é interessante assinalar no texto


sobre o “útero espiritual” dois pontos:
a) A criança alcança suficientemente o uso do livre-arbítrio para
“prover por si mesmo enquanto esteja dentro daquilo que são do direito
divino ou natural” na adolescência. Com efeito, é nessa idade em que se
pode contrair licitamente o matrimônio e fazer votos religiosos. Apesar
disso, os pais podem continuar dirigindo-os desde antes para a vocação
e profissão segundo o que melhor lhes pareça, em ordem ao bem de seus
filhos. Vale a pena citar o Aquinate:

O voto religioso é de dois tipos. Um, simples,


que consiste só na promessa feita a Deus, que pro-
cede da deliberação interior da mente. Este voto
tem eficácia por direito divino. O qual, contudo,
pode ser desfeito por dois motivos. Um, por defeito
da deliberação, como no caso dos furiosos72, cujos
votos não são obrigatórios (...). Também a mesma
razão vale para as crianças, porque não têm o devido
71. Summa Theologiae, Ia- IIae, q. 34, a.l, co.
72. Furor é outra espécie de doença mental, equivalente ao que os gre-
gos chamavam “mania”, definida como “alienação sem febre”, também
chamada de “demônio lupino”, porque, dado sua fúria, o aspecto da
pessoa era semelhante ao de um lobo.

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— 131 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

uso da razão, o que lhes daria capacidade de dolo, e


que os meninos em geral só alcançam em torno dos
catorze anos e as meninas aos doze; anos chamados
de “puberdade”, embora alguns se adiantem e em
outros se atrasem, segundo a diversa disposição da
natureza. De outro modo se impede a eficávia do
voto simples: se alguém promete a Deus aquilo que
não está em seu próprio poder (...). Assim, como
menino e a menina, antes dos anos da puberdade,
estão naturalmente sob o poder de seus pais em
relação a disposição da sua vida, o pai poderia rejei-
tar ou aceitar seu voto, se assim lhe aprouver (...).
Então, se um menino, antes da puberdade, emite
um voto simples, anterior ao pleno uso da razão,
não está obrigado pelo voto. Porém, se tiver uso
da razão antes da puberdade, está obrigado por seu
voto naquilo que depende dele, mas a obrigação
pode ser removida pela autoridade do pai, em cujo
poder, todavia, está; porque a odernação da lei,
pela qual um homem está sujeito a outro, leva em
conta aquilo que se sucede na maioria das vezes. [...]
Outro é o voto solene, que é feito para se tornar
monge ou religioso e que está sujeito à ordenação
da Igreja por causa da solenidade que o acompanha.
Assim, uma vez que a Igreja leva em conta o que se
sucede na maioria dos casos, a profissão feita antes
do tempo da puberdade, embora se tenha pleno
uso da razão, sendo capaz de dolo, não tem efeito,
não produz efeito para torná-lo religioso. Porém,
embora antes dos anos da puberdade não possam

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— 132 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

professar, contudo, com a vontade dos pais, podem


ser recebidos na religião para ali serem educados,
conforme se disse de João Batista, em Lucas I, que
o menino crescia e era confortado em seu espírito, e que
estava no deserto. Por isso, como diz Gregório, os
nobres romanos começaram a entregar os filhos a São
Bento a fim de serem educados para Deus onipotente. O
que é muito sensato, segundo Lam. 3: É bom para
o homem suportar o julgo desde sua infância. Por
onde é de costume comum que os meninos se dedi-
quem naqueles ofícios ou artes que deverão praticar
durante a vida.73

Aqui aparece uma ideia muito lógica e comum


na Idade Média: a formação para um estado de vida
e também para uma profissão particular não são
algo distinto e separado da educação nas virtudes
morais e teológicas. Não existem virtudes abstra-
tas, elas se manifestam em pessoas, em substân-
cias particulares, com determinadas capacidades
e com determinado contexto familiar e social. A
formação nas virtudes implica ter em conta esses
fatores. Não podemos esquecer que, para Santo
Tomás, a virtude da justiça legal é como a forma de

73. Summa Theologiae, IIa-IIae, q. 189, a. 5, co.

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— 133 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

todas as outras virtudes morais, o que implica que


a temperança e a fortaleza, que aperfeiçoam o indi-
víduo, se ordenam ao bem comum através de um
conjunto de costumes e leis determinadas, sob um
regime político concreto.74 Similarmente, não se
aprende, por um lado, ciência e moral e, por outro,
como ser pai ou religioso, ou como exercer uma
profissão. Aprende-se como ser homem cabal em
uma concreta e determinada situação: sendo filho
de determinados pais, sendo religioso, sendo sapa-
teiro ou agricultor, etc. A “deontologia” profissio-
nal é uma disciplina que só poderia ter surgido em
uma sociedade em que as relações naturais entre
pais, educadores em geral e educandos são abstra-
tas e artificiais. De modo oposto, na Idade Média, o
ofício era aprendido do pai, ou de algum “mestre”,
que por sua vez era como um novo pai, com o qual
o aprendiz convivia. É na convivência com o pai,
ou com os mestres (que enquanto tais são outros
pais), que o homem aprende por conaturalidade,

74. Cf. Summa Theologiae IIa-IIae, q. 58, a. 6, co.

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— 134 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

junto com um regimento de vida e profissão, a ser


homem, a viver moral e cristianamente.
De qualquer forma, ao chegar à adolescência, a
pessoa decide voluntaria e livremente sobre aquilo
que até o momento estava nas mãos dos pais. Evi-
dentemente, especialmente no caso de vocação
religiosa, nem sempre se segue a linha traçada
pelos pais, embora seja algo que o filho, por conta
da virtude da piedade filial, deveria levar em conta.
Em relação a isso, o Aquinate falava por experiên-
cia própria, pois entrou como oblato beneditino
no monastério de Montecasino na idade de cinco
anos e ali permaneceu até os catorze. Com deze-
nove anos, embora tenha confirmado a vocação
religiosa que tinha sido dirigida por seus pais, fez
isso ingressando na ordem mendicante dos domi-
nicanos, não permaneceu com os beneditinos de
Montecasino.75
75. Cf. Weisheipl, Tomás de Aquino..., 313: “As questões disputadas
do começo da quaresma de 1271 lançaram luz ao ponto de vista do
Aquinate sobre o tema da entrada dos adolescentes na ‘vida religiosa’.
Intituladas De ingressu puerorun in religione, estas duas questões foram
inseridas no Quodliber IV nos artigos 23 e 24. Neles defende a admis-
são dos rapazes antes da idade da puberdade, porque as coisas que

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— 135 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

b) Quando a pessoa começa a ter o uso do livre-


-arbítrio, começa a “ser de si”. Evidentemente,
conforme já dissemos, enquanto pessoa, o menino
é sempre “de si”, porque possui imaterialmente e
intimamente seu ser. Por isso goza de dignidade
pessoal desde o princípio, e por isso não é “algo
de seus pais” como são os instrumentos, mas de
um modo distinto. Porém, é claro que o desen-
volvimento da capacidade de se autodeterminar

aprendemos na infância se gravam mais firmemente em nosso inte-


rior. Tomás indubitavelmente pensava em sua própria experiência de
Montecasino, onde tinha sido oblato. No Quodlibet, a. 23, nada falou
sobre as ordens mendicantes; responde à questão de modo geral, mas
com referência especial ao costume imemorial dos beneditinos. Para
Tomás, era admirável que os pais enviassem seus filhos mais jovens
a um mosteiro para que fossem ensinados no caminho de santidade.
Porém, quando o jovem atingisse a idade da puberdade, deverá decidir
por si mesmo se vai emitir votos na comunidade ou não. Conforme
já vimos, Aquino tinha em torno de dezenove anos quando recebeu
o hábito dominicano. Não sabemos com segurança qual foi seu status
religioso entre 14 e 19 anos. Porém, argumentou Eschmann que foi
um simples leigo; todas as indicações, embora circunstanciais, pare-
cem assim indicar. Uma coisa é certa: nunca se lamentou de ter sido
oblato beneditino. Porém, novamente no Quodlibet IV, a. 23, Tomás
deixa bem claro que quando um oblato chega à idade da razão, ou seja,
à puberdade, deverá ratificar o oferecimento feito por seus pais ou
recusá-lo. Por desgraça, o Angélico não nos dá nenhuma informação
autobiográfica”.

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— 136 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

livremente faz com que a vida seja mais pessoal,


pois, como disse o Aquinate “de modo mais espe-
cial e mais perfeito se dá o ser particular e indivi-
dual nas substâncias racionais, porque têm domí-
nio de seus atos; e não somente são levadas, como
os outros, mas agem por si mesmas.76
Embora a singularidade substancial provenha da
materia signata quantitate,77 princípio de individua-
ção das substâncias materiais, e muito da singula-
ridade operativa provém de muitos outros fato-
res (biológicos, ambiente social e familiar, etc.), o
verdadeiro desenvolvimento da personalidade tem
seu centro nas eleições livres, pelas quais a pessoa
se manifesta como tal e se mostra como aquele
em que se dá de modo perfeito o ser particular
e individual. O homem, evidentemente, pode se
comportar de modo menos pessoal, por exemplo,
quando se deixa arrastar pelo pecado, conforme
disse o mesmo Aquinate: “Porque o homem carnal
está vendido ao pecado, é como servo do pecado,

76. Summa Theologiae, Ia, q. 29, a. 1, co.


77. Cf. In Boeth. de Trinilate, pars II, q. IV, a. 2, co 6.

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— 137 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

por isso é manifesto que não atua por ele mesmo,


mas sim que é arrastado pelo pecado. Mas quem é
livre atua por si mesmo e não é levado por outro”.78
A “boa singularização” carrega o desenvolvimento
das virtudes, que é o fim da educação: levar à prole
ao perfeito estado do homem enquanto é homem,
que é o estado de virtude, conforme dito.

6. Do pai humano a Deus Pai

Embora os pais sejam os primeiros educadores,


eles não são suficientes para formar o filho na vir-
tude. Além disso, se o matrimônio pode ser con-
traído na adolescência, como disse Santo Tomás,
esses pais carecerão muitas vezes da virtude, ao

78. Super ad Romanos, c. VII, 1.3, n. 17. É significativa a oposição que


há entre esta concepção de Santo Tomás e a de Sigmund Freud, que
vê o homem como alguém “vivido” pelo id; cf. S. Freud, “El yo y el
ello”, em Obras, vol 3, Biblioteca Nueva, Madrid 1973,2707: “Será
muito proveitoso, na minha opinião, aceitar o convite de um autor,
que por motivos pessoais declara em vão não ter nada a ver com a
ciência rigorosa e elevada. Refiro-me a G. Groddeck, o qual afirma
sempre que aquilo que chamamos nosso eu é conduzido na vida pas-
sivamente e que, em vez de viver, somos ‘vividos’ por poderes igno-
rados e invencíveis”.

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— 138 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

menos da virtude perfeita. Porém, Santo Tomás


não é um moderno individualista. Àquilo que os
pais não conseguem, suplementa antes de tudo
os anciãos da “casa”, que vai além da nossa atual
“família nuclear”. Porém, tampouco a casa seria
suficiente a si mesma para a boa vida, ou seja, para
a vida virtuosa. É necessária a comunidade polí-
tica, com suas instituições e leis:
Conforme é patente pelo que já foi dito, no
homem está inerente certa aptidão para a virtude;
mas para chegar à perfeição da virtude, o homem
necessita da aprendizagem. Também vimos que o
homem resolve suas necessidades, por exemplo de
comida e vestido, por certa indústria, cujo ponto de
partida tem por natureza a razão e a mão, mas não
por complemento, tal como têm os demais animais,
onde a natureza já lhes deu abrigo e comida sufi-
cientes. Esta aprendizagem o homem não consegue
fazer sozinho com facilidade. Porque a perfeição
da virtude consiste especialmente em retrair do
homem os deleites indevidos, a qual estão particu-
larmente inclinados, sobretudo os jovens, é onde a
disciplina é mais eficaz. Por isso é necessário que
nesta aprendizagem, pela qual se chega à virtude, o
homem seja guiado por outro. Assim, para os jovens
que estão inclinados aos atos de virtude por boa

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— 139 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

disposição da natureza ou por costume, ou melhor,


por dom divino, basta o ensinamento paterno,
que se embasa em advertências. Porém, como há
alguns jovens rebeldes, inclinados aos vícios, que
não podem ser movidos facilmente pelas palavras,
é necessário que sejam coibidos pela força e pelo
temor, para que pelo menos desistam do mal e dei-
xem que os demais tenham uma vida tranquila, e
que eles mesmos consigam, finalmente, através do
costume, a fazer voluntariamente o que antes faziam
por temor, tornando-se assim virtuosos. Por isso
que foi necessário para a paz dos homens e para a
virtude que se impusessem leis, porque, conforme
disse o Filósofo em l. I da Política, como o homem, se
perfeito em virtude, é o melhor dos animais; quando
se separa da lei e da justiça, é o pior de todos. Porque
o homem tem a arma da razão para realizar seus
desejos e crueldades, algo que os outros animais não
têm.79

A ausência de boas leis, pelo contrário, não só


predispõe ao mal moral “humano”, mas também
a todo tipo de aberrações contra a natureza.80
Porém, no atual estado da natureza humana,
decaída por causa do pecado original, tampouco

79. Summa Theologiae, I-IIe, q, 95, a. 1, co.


80. Cf. In VII Ethicorum, l. I, n. 12.

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— 140 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

basta o guia da lei. É necessária a graça, que cura


a natureza e a eleva:
A natureza do homem pode ser considerada de
dois modos: um, em sua integridade, conforme
estava no primeiro pai antes do pecado; de outro
modo, segundo a corrupção em nós depois do
pecado do primeiro pai. Em ambos os estados, a
natureza humana necessita do auxílio divino, como
primeiro motor, para fazer ou querer qualquer bem,
como se diz. Porém, no estado de natureza ínte-
gra, pela suficiência da força operativa, o homem
podia por suas próprias capacidades naturais querer
e operar o bem proporcionado a sua natureza, em
conformidade com o bem da virtude adquirida; mas
não era capaz do bem que a excedia, tal como é o
bem da virtude infusa. Porém, no estado de natu-
reza corrupta, o homem falha também naquilo
que diz respeito a sua natureza, de modo que não
pode cumprir todo este bem pelas suas capacidades
naturais. Contudo, como a natureza humana não
está totalmente corrompida pelo pecado, então não
está privada de todo o bem de sua natureza, pois no
estado de natureza corrupta pode, pelas forças de
sua natureza, efetuar algum bem particular, como
por exemplo, edificar casas, plantar uvas, e coisas do
tipo. Mas não consegue efetuar todo o bem conatu-
ral a ponto de não faltar em nada. É como o homem
enfermo, que até pode fazer algum movimento por
si mesmo, mas não pode se mover perfeitamente
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— 141 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

como o homem saudável, se não for curado pelo


auxílio da medicina.81
Daí a necessidade da Igreja: seus sacramentos,
seus ministros, suas instituições e suas comunida-
des (já falamos, por exemplo, do papel educativo
da vida religiosa, mesmo na infância). Há muitas
tantas formas de ser “pai” e “mãe” quanto de papéis
educativos. A própria Igreja é Mãe. Além disso,
e sobretudo, é preciso recordar que Deus Pai é a
fonte de toda paternidade no Céu e na terra:
O nome de geração e paternidade, como também
os outros nomem que se predicam propiamente do
divino, dizem-se primeiro de Deus que das criatu-
ras, quanto à realidade significada, mas não quanto
ao modo de significar. Por isso que o Apóstolo disse,
em Efésios 3, Dobro os meus joelhos diante do Pai de
Nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a paternidade
toma o nome nos Céus e na Terra. O que é patente por
isso: é evidente que a geração recebe sua espécie do
seu termo, que é a forma do gerado. Quanto mais
próxima ela for à forma do gerante, tanto mais ver-
dadeira e perfeita é a geração, assim como a gera-
ção unívoca é mais perfeita que a não unívoca, por
ser a razão do gerante o que gera aquilo que lhe é
semelhante pela forma. Por isso, uma vez que na
81. Summa Theologiae Ia-IIae, q. 109, a. 2, co.

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— 142 —
A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO – MARTÍN F. E.

geração divina a forma do gerante e do gerado é


una numericamente, mas nas coisas criadas não é
a mesma numericamente, mas só especificamente,
se mostra que a geração, e portanto a paternidade,
se dá antes em Deus do que nas criaturas.82

Os pais humanos transmitem sua semelhança


aos filhos, antes de tudo, biologicamente; e depois,
embora não necessariamente, sua semelhança
moral (que, conforme vimos, é o motivo da exis-
tência do matrimônio). Mas o pai e o filho huma-
nos, embora compartilhem a mesma espécie, e
eventualmente semelhantes inclinações morais,
não são Uno numericamente quanto à natureza.
82. Summa Theologiae, I, q. 33, a. 2, ad 4. “Na realidade, Deus não é uma
‘imagem do pai’, mas o pai que é uma imagem de Deus. Para nós, não
é o pai o primeiro tipo ou imagem ideal de toda divindade, mas justa-
mente o contrário: Deus é o primeiro tipo de toda ‘paternidade’. O pai
só é o primeiro ontogenética, biológica e biograficamente; mas Deus
é o primeiro ontologicamente. Assim, portanto, psicologicamente a
relação filho-pai é sim anterior à relação homem-Deus, mas ontolo-
gicamente a primeira não é modelo para segunda, mas o contrário.
Considerando as coisas ontologicamente, meu pai carnal, quem me
gerou, é o primeiro representante, de certo modo só casual, dAquele
que gerou tudo; a partir do mesmo ponto de vista ontológico, meu
criador natural é, pois, unicamente o primeiro símbolo, e de algum
modo também a imagem, do Criador sobrenatural de toda natureza”
(V. E. Frankl, La presencia ignorada de Dios, Herder, Barcelona 1988,
66).

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— 143 —
O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO MODERNA

Em Deus, o Pai e o Filho têm a mesma substância,


por isso nEle é que se dá primeiramente a pater-
nidade e a filiação. Assim, nós e nossos filhos, que
por graça somos participantes da filiação divina,
fomos chamados, como disse Nosso Senhor, a “ser
perfeito como nosso Pai celestial é perfeito”. Este é
o sentido da infância e da adultez, do matrimônio,
da paternidade, da filiação e também o sentido da
vida.

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— 144 —
RECOMENDAÇÃO FINAL

Para quem está interessado na visão católica de política edu-


cacional, bem como na relação Estado-Educação-Família, reco-
mendamos a síntese da Doutrina Social da Igreja elaborada pela
União de Malines , presente sobretudo em seu Código Familiar.
Ela está no primeiro volume do livro Código Social e Código Fami-
liar lançado pela Editora Santo Atanásio.

Eis um trecho:
A comunidade conjugal e familiar tem um direito
absoluto, inviolável e inalienável a poder ser univer-
salmente considerada como o primeiro meio educa-
tivo da personalidade humana. À família compete
“formar para a vida” (Pio XI), isto é, imprimindo
a sua primeira orientação a todas as faculdades do
indivíduo, consagrar a orientação fundamental
deste. (...)
Esse dever que a família tem de dar aos filhos a
primeira educação fundamental “compreende não
somente a educação religiosa e moral, mas ainda a
educação física e cívica, principalmente naquilo em
que pode esta relacionar-se com a moral e a religião”
(Pio XI, Divini illius Magistri, n. 36). (...)
Não obstante, sendo a família, por um lado, uma
sociedade imperfeita, por não ter em si mesma
todos os meios necessários para atingir sua perfei-
ção própria, e tendo, por outro lado, de educar os
seus súditos em mira à sociedade civil e religiosa,
a família tem o direito absoluto de contar com o
auxílio positivo complementar e às vezes mesmo
supletivo, dessas duas sociedades [a civil e a reli-
giosa]. Em consequência (...) devem elas pôr-se à
disposição das famílias para rematarem a educação
que estas houverem iniciado.

União Internacional de Estudos Sociais. Código Social


& Código Familiar. Curitiba: Editora Santo Atanásio,
2018. pp.208-209.

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loja.institutosantoatanasio.org

Que Deus abençoe a todos!


VIVA CRISTO REI!

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