Acionados em pares os sistemas de fusão, os propulsores queimaram
parte do aglomerado local até reduzi–lo a uma malha de frágeis seixos escuros. Apesar de estarem funcionando próximo a potência máxima, o cruzador Rho VII continuou a marchar numa invariante lentidão que, aliada ao traço rústico da aerodinâmica espacial do cruzador, o fazia parecer um imenso artefato abandonado por um ser interplanetário — esse que detinha poderes o suficiente para construir pequenas estrelas artificiais. E tal artefato, a deriva na extensão desprovida de fronteiras do cosmos, simbolizava, dentro de desesperadas interpretações formuladas por consciências efêmeras, a magnitude das coisas que prolongam a existência perante a sucessão corrosiva de eras. Como ele já carecia de alguma utilidade para o ser interplanetário, restava então tornar–se um novo constituinte do mundo inanimado circundante. Indissociável da formação de combate, Rho VII se juntou a outros cruzadores de sua classe, deixando um halo de matéria dispersa onde havia estado. Alinhou suas armas já calibradas na direção da lua mais proeminente; que uma vez foi a carcaça de um planetóide destroçado ao ultrapassar o limite de Roche do gigante gasoso que era, figurativamente, um observador silencioso das mobilizações colossais de cada exército que se desdobravam bem diante de si. Tomada a certeza dos fatos, a expectativa era de que a batalha não perduraria para além das 100 horas, pois os combatentes de ambos os lados estavam dispostos a sacrificarem suas forças para se destruírem mutuamente. A trégua era uma medida irremediável e até herética, quem a cogitasse seria de imediato visto como desertor da própria pátria. Os lordes e seus reinos tinham um histórico manchado por sangue e morte em proporções equivalentes. As intrigas e as disputas por poder estavam longe de serem resolvidas. Na altura das coisas, a subsistência de um dos povos infelizmente acarretava a uma fatalidade, a completa extinção daquele que não resistiria às investidas do seu contraposto. Vashastra, o maior e o mais poderoso de toda frota, não só empurrava como também esmagava os asteroides que estavam aglutinados no caminho. A rigidez da carapaça exercia a função de uma navalha que rasga a carne inimiga que tenta se interpor ao soldado que a impunha. No espaço adjacente, os membros da frota estavam ordenados de modo a assegurar que, se as espessas barreiras dos escudos fossem desabilitadas, de nenhum modo as regiões menos protegidas do Vashastra sofressem danos sérios. Com a progressiva passagem do astra naquele ambiente privado de luz natural, seguiu–se uma ação em cadeia dos asteroides se chocando um contra o outro que reorganizou os elementos do fronte cósmico, precedendo a dinâmica tardia da batalha. Tal ação durou pouco devido à impetuosa varredura da área feita pela frota que estilhaçou os “pedaços de gelo” apenas fazendo–os se espatifar nos cascos dos cruzadores, que nem desviaram da rota num único centímetro. Ao moverem em conjunto os pontos de encaixe, as intrincadas placas refratárias se desmantelaram dos reatores e foram recolhidas pelos robôs que iam e vinham nas extremidades do hipernúcleo. Com o desvelamento dos reatores, os orbes digama começaram a se agitar dentro deles, dando início a energização que percorreu as entranhas dos canhões e feixes de colisão até cristalizar nas vigas giratórias que sustentavam as incontáveis galerias do astra. O tocar da trombeta, o soar do grito de guerra, foi dado pelo pulso de alta energia do Vashastra que desintegrou o lado oculto da lua da qual o poderio bélico da frota se direcionava. O ataque foi preciso e satisfez os critérios de eficiência dos generais, que bateram palmas pelo aparente sucesso em minar os flancos do inimigo. Os generais estavam seguros no palácio do lorde, debatendo estratégias de guerra, enquanto uma se desenrolava fora do salão real do palácio. No meio dos fragmentos incandescentes e no intenso brilho do plasma, surgiu, como um pico de um iceberg se elevando no campo visual, a proa do Navastra e assim como o restante da frota inimiga logo em seguida. Seus cruzadores responderam a altura, gerando — com a irradiação dos disparos consecutivos dos canhões — uma onda de partículas instáveis que inundou grande parte do aglomerado local. Mas essa inundação só apagou do mapa dois terços de seus arredores, o exército que tinha como ponta de lança o Vashastra saiu ileso da investida. E isso se aplicou também para o Navastra e seus cruzadores, que antes estavam à espreita no lado oculto da maior lua do planeta, que servia como uma arena para o confronto entre os dois titãs. Os ataques vindos de ambos os lados foram apenas uma demonstração do que eram capazes de fazer, talvez uma manobra tática para eliminar qualquer tipo de proteção oferecida pelo campo de batalha. Se tivessem o intuito de provocar baixas, lançariam mão de disparos mais concentrados que só poderiam ser parados por escudos ou por medidas de defesa coordenadas antecipadamente. Aumentando a sinergia dos propulsores, os cruzadores rumaram a toda velocidade. A batalha definhou numa trocação intensa de investidas que pouco a pouco redefinia a geometria do cinturão de asteroides. Rho VII foi um dos primeiros de sua classe a perecer, seguido dos emboscadores que foram esmigalhados, mas sem antes reduzirem significativamente os escudeiros do Navastra que o defenderam as últimas consequências. Essa mega nave de destruição em massa não ficou inerte, disparou uma espécie de anéis maleáveis de mésons que espremeram a configuração defensiva do Vashastra, massacrando as naves auxiliares até que não sobrasse nenhuma. As armas disponíveis estavam além de serem ogivas ou qualquer tecnologia balística, aliás, essa tecnologia era inexistente, já era obsoleta fazia dezenas de milhares de anos. O arcabouço bélico era puramente uma transfiguração de fenômenos físicos tanto na escala micro e macroscópica, uma sistemática modelação de eventos que tinham o potencial de subjugar fileiras inteiras de pequenos corpos celestes. Era vez do Vashastra de revidar, os novos pulsos de alta energia ricochetearam por quilômetros no seu interior até saírem por suas bifurcações, se propagando pelo espaço enquanto desmanchavam um a um os cruzadores da leva inimiga. Eram como notas de um contraponto responsável por compor melodias que perturbam o ambiente, fazendo as folhas secas do outono caírem com mais rapidez. As emissões de partículas instáveis em séries de arcos expansivos vindos de cada um dos lados geraram uma orquestra silenciosa, mas tão aniquiladora quanto a erupção de um vulcão. Tal orquestra continuaria até a ruína total de Vashastra e de Navastra, contemplando longos momentos de intermitência delimitados em mobilizações e suas consequências, respectivamente. Havia sido aceito no círculo dos anciãos que o prenúncio do fim foi dado muito antes dos lordes declararem uma guerra milenar, a origem remontava dos tempos em que os povos ainda construíam futuros independentes. O prenúncio não chegava a ser uma profecia, pelo menos não na acepção usual, somente uma constatação galgada na natureza histórica dos povos. A plêiade de espaços vazios dos astras permitia uma otimização do fluxo das forças nuclear forte e eletromagnética para então ser liberado como formas fragmentadas ou concêntricas de ataques massivos. No entanto, esses espaços não eram estritamente vazios, havia uma estrutura — a qual poderia ser encarada como etérea pelos místicos — que os envolvia como um todo, uma teia causal da espontânea emergência de entidades físicas onde a colisão delas provocava efeitos devastadores. Graças à própria geometria dos astras, os processos que ocorriam no interior estavam sempre sob controle; isso em condições normais, ou seja, quando a integridade dessas mega naves não se encontravam em condições críticas. Em suma, tanto Vashastra quanto Navastra eram como instrumentos de sopro, “ocos”, eram conchas em escala planetária. E como tais, geravam melodias cuja audição era incapaz de captar ao serem “soprados”. Os contornos das manifestações dessas melodias a visão poderia percepcionar, porém para compreender numa maior clareza seriam necessárias reproduções computadorizadas. Polvilhado por tempestades do tamanho de um exoplaneta das quais tinham um tempo de vida equivalente à duração do período pleistoceno, o gigante gasoso completava seu ciclo de translação sem perturbações. O poder de fogo dos astras era desmedido, de fato; porém, nada era comparado aos eventos cósmicos que o planeta já presenciou, os quais sentenciaram seus semelhantes. Para cada disparo concentrado dos canhões, cada descarga altamente energética dos feixes de colisão, cada dispersão caótica dos anéis de mésons, criavam–se clarões que ofuscavam o brilho das estrelas distantes; mas que eram meros tachos luminosos quando observados na perspectiva do planeta. As explosões geradas com a deflexão dos ataques pelos escudos abriam buracos nas nuvens eletricamente carregadas, transformadas em alvos acidentais pela fúria dos astras. Navastra comandou uma investida contra seu inimigo, já que acreditava que estava em vantagem. O jogo parecia ter virado, pois nas primeiras 56 horas transcorridas, Vashastra comportava o maior número de cruzadores e no momento restavam uns poucos 178 mil; sendo que antes as subdivisões da frota somavam juntas quase um milhão de unidades. Existia a possibilidade de reverter o quadro? Sim, existia. Todavia, seria uma tarefa complicada. Por enquanto teria que ficar resistindo às saraivadas de disparos até notar uma brecha na postura estratégica do Navastra e então usar essa possibilidade para revidar de maneira decisiva. Era isso ou bater em retirada, e essa última escolha estava fora de cogitação. Não poderia–se negar que estava difícil resistir, os generais e o lorde estavam cientes disso. O andamento das mobilizações por parte dos cruzadores continuava constante, mesmo com as baixas que limitavam o escopo de ação. Passos estratégicos não dependiam só de cálculos estatísticos, o cálculo sem dúvida era uma etapa importante; contudo, ele em si dispensando a fixação de outro eixo de apoio mostrava ser estéril. Compromisso em arriscar em situações complexas onde as chances de sucesso são pouco otimistas, perspicácia para agir e mesmo a sorte potencializariam o seu alcance ao ponto de concretizar as abstrações subjacentes. Os cruzadores que resistiram à primeira onda tentaram penetrar os flancos de Navastra se valendo da disposição flexível dos asteroides, porém foram eliminados pelos disparos cirúrgicos do inimigo antes que conseguissem. Cá estava um problema, o número de aberturas o suficiente para aplicar um ataque pontual sem o uso ostensivo de recursos bélicos. Se ele era irremediável, isso dependia de circunstâncias atuais. Com a crescente tensão, os cérebros de Asimov, analisando minuciosamente o ramo de possibilidades, enfim convergiram numa articulação que resolveria o quadro nada vantajoso, era o que se pensava. Então, ela foi posta em prática: Vashastra ondulou um pulso com a intenção proposital de errar o Navastra, uma das luas era o alvo oculto. Ao atingi–la, uma série de fragmentos dispersaram–se e era isso que precisava. Num movimento suicida, os cruzadores foram orientados a desfazerem a postura de defesa e a se detonarem no inimigo, usando os fragmentos da lua como escudo. Navastra e sua tropa atacaram em várias direções, estavam desorientados pela chuva de detritos que caíam neles. O campo visual havia sido tragado por esses detritos, de extremo a extremo. A mega nave fez o que estava num alcance imediato, descarregar o poder de fogo na miríade heterogênea composta de metal e rocha. O dano causado foi severo, igualando o número de membros das tropas, que num instante mais avançado da batalha, simplesmente despencou para zero. Agora, sobraram apenas os astras como combatentes. Embora tenha sido estudado exaustivamente, o gigante gasoso nunca recebeu um nome definido. Se dependesse só das lendas remotas de navegadores que se orientavam com ajuda do seu brilho nas viagens, seria batizado como Hamsa. Os navegadores quase nunca se pegavam refletindo sobre o motivo desse nome ser o mais adequado, e de certo modo isso era irrelevante. O que importava era a maneira de que viam no planeta uma bússola de escolhas, escolhas para um futuro que, real ou irreal, ampliariam a luz interior ao ponto de iluminar ideias e anseios antes obscurecidos. Qual era a razão do marco para fim da guerra e dos povos serem as suas redondezas? (Essas delineadas por borrões que unificados sintetizavam todos os tipos de azul.) Mesmo a classe dos mais sábios da qual os lordes sempre recorriam quando estavam aflitos resolvia se agarrar a um grande silêncio ao invés de responde–la. Havia se transcorrido exatamente 95 horas, os lordes já haviam perdido tudo, até mesmo as próprias vidas por insistirem numa guerra que culminaria num colapso civilizatório. Muitos dos generais, estrategistas e conselheiros optaram por abandonar os homens que uma vez juraram lealdade; que agora tiveram o destino selado em túmulos gigantescos que lentamente afundavam na pesada atmosfera de Hamsa. Fugiram através de cápsulas lançadas às cegas para além da impetuosa ação gravitacional do gigante gasoso. Os que decidiram ficar nos astras comandavam as armas para que a batalha durasse enquanto ainda houvesse determinação para tal. Com a série de avarias que limitavam o uso do poder de fogo, Vashastra e Navastra somente emitiam pulsos muito fracos. O vigor das horas iniciais que provocou uma destruição sem precedentes foi exaurido, as cordas que permitiam a composição de sons avassaladores estouraram e os instrumentos da orquestra que traziam eloquência a ela quebraram. Nada de mais milagroso poderia impulsionar os pistões de batalha exceto a resistência dos astras que, no momento, estava fatalmente fragilizada. Os astras faziam movimentos circulares que eram interrompidos por fortes pancadas de casco contra casco. Passado algum tempo, eles finalmente tiveram um fim nebuloso nas profundezas das nuvens continentais de Hamsa.