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PROJETO REDIGIR • 2º semestre de 2007 • Turma 1 de sábado • Zé e Régener • Aula 4

O sonho dos ratos (Rubem Alves)

Era uma vez um bando de ratos que vivia no O queijo continuava lá, mais belo que nun-
buraco do assoalho de uma casa velha. Havia ratos ca. Bastaria dar alguns poucos passos para fora do
de todos os tipos: grandes e pequenos, pretos e buraco.
brancos, velhos e jovens, fortes e fracos, da roça e Olharam cuidadosamente ao redor. Aquilo
da cidade. poderia ser um truque do gato. Mas não era. O ga-
Mas ninguém ligava para as diferenças, por- to havia desaparecido mesmo. Chegara o dia glo-
que todos estavam irmanados em torno de um so- rioso, e dos ratos surgiu um brado retumbante de
nho comum: um queijo enorme, amarelo, cheiroso, alegria. Todos se lançaram ao queijo, irmanados
bem pertinho dos seus narizes. Comer o queijo se- numa fome comum.
ria a suprema felicidade... E foi então que a transformação aconteceu.
Bem pertinho é modo de dizer. Na verdade Bastou a primeira mordida. Compreenderam, re-
o queijo estava imensamente longe, porque entre pentinamente, que os queijos de verdade são dife-
eles e os ratos estava um gato... O gato era malva- rentes dos queijos sonhados. Quando comidos, em
do, tinha dentes afiados e não dormia nunca. Por vez de aumentar, diminuem. Assim, quanto maior
vezes fingia dormir. Mas bastava que um ratinho o número de ratos a comer o queijo, menor o naco
mais corajoso se aventurasse para fora do buraco para cada um. Os ratos começaram a olhar uns pa-
para que o gato desse um pulo e era uma vez um ra os outros como se fossem inimigos.
ratinho... Olharam uns para a boca dos outros, para
Os ratos odiavam o gato. Quanto mais o ver quanto do queijo haviam comido. E os olhares
odiavam mais irmãos se sentiam. O ódio a um se enfureceram. Arreganharam os dentes. Esquece-
inimigo comum os tornava cúmplices de um mes- ram-se do gato. Eram seus próprios inimigos.
mo desejo: queriam que o gato morresse ou so- A briga começou. Os mais fortes expulsa-
nhavam com um cachorro. ram os mais fracos a dentadas. E começaram a bri-
Como nada pudessem fazer, reuniam-se para gar entre si. Alguns ameaçaram chamar o gato,
conversar. Faziam discursos, denunciavam o com- alegando que só assim se restabeleceria a ordem. O
portamento do gato (não se sabe bem para quem), projeto de socialização do queijo foi aprovado nos
e chegaram mesmo a escrever livros com a crítica seguintes termos: “Qualquer pedaço de queijo po-
filosófica dos gatos. Diziam que um dia chegaria derá ser tomado dos seus proprietários para ser da-
em que os gatos seriam abolidos e todos seriam do aos ratos magros, desde que este pedaço tenha
iguais. “Quando se estabelecer a ditadura dos ra- sido abandonado pelo dono”.
tos”, diziam os camundongos, “então todos serão Mas como rato algum jamais abandonou um
felizes”. queijo, os ratos magros foram condenados a ficar
— O queijo é grande o bastante para todos esperando...
— dizia um. Os ratinhos magros, de dentro do buraco es-
— Socializaremos o queijo — dizia outro. curo, não podiam compreender o que havia acon-
Todos batiam palmas e cantavam as mesmas tecido. O mais inexplicável era a transformação
canções, era comovente ver tamanha fraternidade. que se operara no focinho dos ratos mais fortes,
Como seria bonito quando o gato morresse! agora donos do queijo. Tinham todo o jeito de ga-
Sonhavam. Nos seus sonhos, comiam o queijo. to, o olhar malvado, os dentes à mostra.
E quanto mais o comiam, mais ele crescia. Os ratos magros nem mais conseguiam per-
Porque esta é uma das propriedades dos ceber a diferença entre o gato de antes e os ratos de
queijos sonhados: não diminuem; crescem sempre. agora. E compreenderam, então, que não havia di-
E marchavam juntos, rabos entrelaçados, gritando ferença alguma. Pois todo rato que fica dono do
“O queijo já!”. queijo vira gato. Não é por acidente que os dois
Sem que ninguém pudesse explicar como, o nomes são tão parecidos.
fato é que, ao acordarem numa bela manhã, o gato
tinha sumido.
Geni e o Zepelim (Chico Buarque)

De tudo que é nego torto Mas do zepelim gigante Vai com ele, vai Geni
Do mangue e do cais do porto Desceu o seu comandante Vai com ele, vai Geni
Ela já foi namorada Dizendo: “Mudei de idéia Você pode nos salvar
O seu corpo é dos errantes Quando vi nesta cidade Você vai nos redimir
Dos cegos, dos retirantes Tanto horror e iniqüidade Você dá pra qualquer um
É de quem não tem mais nada Resolvi tudo explodir Bendita Geni
Dá-se assim desde menina Mas posso evitar o drama
Na garagem, na cantina Se aquela formosa dama Foram tantos os pedidos
Atrás do tanque, no mato Esta noite me servir” Tão sinceros, tão sentidos
É a rainha dos detentos Que ela dominou seu asco
Das loucas, dos lazarentos Essa dama era Geni Nessa noite lancinante
Dos moleques do internato Mas não pode ser Geni Entregou-se a tal amante
E também vai amiúde Ela é feita pra apanhar Como quem dá-se ao carrasco
Com os velhinhos sem saúde Ela é boa de cuspir Ele fez tanta sujeira
E as viúvas sem porvir Ela dá pra qualquer um Lambuzou-se a noite inteira
Ela é um poço de bondade Maldita Geni Até ficar saciado
E é por isso que a cidade E nem bem amanhecia
Vive sempre a repetir Mas de fato, logo ela Partiu numa nuvem fria
Tão coitada e tão singela Com seu zepelim prateado
Joga pedra na Geni Cativara o forasteiro Num suspiro aliviado
Joga pedra na Geni O guerreiro tão vistoso Ela se virou de lado
Ela é feita pra apanhar Tão temido e poderoso E tentou até sorrir
Ela é boa de cuspir Era dela prisioneiro Mas logo raiou o dia
Ela dá pra qualquer um Acontece que a donzela E a cidade em cantoria
Maldita Geni — e isso era segredo dela Não deixou ela dormir
Também tinha seus caprichos
Um dia surgiu, brilhante E a deitar com homem tão nobre Joga pedra na Geni
Entre as nuvens, flutuante Tão cheirando a brilho e a cobre Joga bosta na Geni
Um enorme zepelim Preferia amar com os bichos Ela é feita pra apanhar
Pairou sobre os edifícios Ao ouvir tal heresia Ela é boa de cuspir
Abriu dois mil orifícios A cidade em romaria Ela dá pra qualquer um
Com dois mil canhões assim Foi beijar a sua mão Maldita Geni
A cidade apavorada O prefeito de joelhos
Se quedou paralisada O bispo de olhos vermelhos
Pronta pra virar geléia E o banqueiro com um milhão

amiúde: com freqüência, várias vezes. heresia: ato ou idéia que contraria a religião ou a
porvir: futuro; esperança. opinião geral; contra-senso
zepelim: balão dirigível redimir: libertar, resgatar
iniqüidade: qualidade daquilo que é contrário à moral asco: nojo, aversão, desprezo
ou à justiça; maldade lancinante: torturante, doloroso(a)

• Personagens planos e personagens esféricos


• Protagonistas, antagonistas, secundários e coadjuvantes
• Foco narrativo: primeira ou terceira pessoa
• Estrutura da narrativa

Apresentação Conflito Clímax/anticlímax Desfecho


Branca de Neve e os sete anões

Há muito tempo, num reino distante, vi- muito graciosa. Parecia habitada por crianças, pois
viam um rei, uma rainha e sua filhinha, a princesa tudo ali era pequeno.
Branca de Neve. Sua pele era branca como a neve, A casa estava muito desarrumada e suja,
os lábios vermelhos como o sangue e os cabelos mas Branca de Neve lavou a louça, as roupas e
pretos como o ébano. varreu a casa. No andar de cima da casinha encon-
Um dia, a rainha ficou muito doente e mor- trou sete caminhas, uma ao lado da outra. A moça
reu. O rei, sentindo-se muito sozinho, casou-se no- estava tão cansada que juntou as caminhas, deitou-
vamente. O que ninguém sabia é que a nova rainha se e dormiu. Os donos da cabana eram sete anõe-
era uma feiticeira cruel, invejosa e muito vaidosa. zinhos que, ao voltarem para casa, se assustaram
Ela possuía um espelho mágico, para o qual per- ao ver tudo arrumado e limpo. Os sete homenzi-
guntava todos os dias: nhos subiram a escada e ficaram muito espantados
— Espelho, espelho meu! Há no mundo al- ao encontrar uma linda jovem dormindo em suas
guém mais bela do que eu? camas. Branca de Neve acordou e contou sua his-
— És a mais bela de todas as mulheres, tória para os anões, que logo se afeiçoaram a ela e
minha rainha! — respondia ele. a convidaram para morar com eles.
Branca de Neve crescia e ficava cada vez O tempo passou... Um dia, a rainha resolveu
mais bonita, encantadora e meiga. Todos gostavam consultar novamente seu espelho e descobriu que a
muito dela, exceto a rainha, pois tinha medo que princesa continuava viva. Ficou furiosa. Fez uma
Branca de Neve se tornasse mais bonita que ela. poção venenosa, que colocou dentro de uma maçã,
Depois que o rei morreu, a rainha obrigava a e transformou-se numa velhinha maltrapilha.
princesa a vestir-se com trapos e a trabalhar na — Uma mordida nesta maçã fará Branca de
limpeza e na arrumação de todo o castelo. Branca Neve dormir para sempre — disse a bruxa.
de Neve passava os dias lavando, passando e esfre- No dia seguinte, os anões saíram para traba-
gando, mas não reclamava. Era meiga, educada e lhar e Branca de Neve ficou sozinha. Pouco de-
amada por todos. pois, a velha maltrapilha chegou perto da janela da
Um dia, como de costume, a rainha pergun- cozinha. A princesa ofereceu-lhe um copo d’água
tou ao espelho: e conversou com ela.
— Espelho, espelho meu! Há no mundo al- — Muito obrigada! — falou a velhinha —
guém mais bela do que eu? coma uma maçã... eu faço questão!
— Sim, minha rainha! Branca de Neve é No mesmo instante em que mordeu a maçã,
agora a mais bela! a princesa caiu desmaiada no chão. Os anões, aler-
A rainha ficou furiosa, pois queria ser a tados pelos animais da floresta, chegaram na caba-
mais bela para sempre. Imediatamente mandou na enquanto a rainha fugia. Na fuga, ela acabou
chamar seu melhor caçador e ordenou que ele ma- caindo num abismo e morreu.
tasse a princesa e trouxesse seu coração numa cai- Os anõezinhos encontraram Branca de Neve
xa. No dia seguinte, ele convidou a menina para caída, como se estivesse dormindo. Então a colo-
um passeio na floresta, mas não a matou. caram num lindo caixão de cristal, em uma clarei-
— Princesa — disse ele —, a rainha orde- ra, e ficaram vigiando noite e dia, esperando que
nou que eu a mate, mas não posso fazer isso. Eu a um dia ela acordasse.
vi crescer e sempre fui leal a seu pai. Um certo dia, chegou até a clareira um prín-
— A rainha?! Mas por quê? — perguntou a cipe do reino vizinho e logo que viu Branca de
princesa. Neve se apaixonou por ela. Ele pediu aos anões
— Não sei, mas não vou obedecer a rainha que o deixassem levar o corpo da princesa para seu
dessa vez. Fuja, princesa, e por favor não volte ao castelo, e prometeu que velaria por ela. Os anões
castelo, porque ela é capaz de matá-la! concordaram e, quando foram erguer o caixão, este
Branca de Neve correu pela floresta muito caiu, fazendo com que o pedaço de maçã que esta-
assustada, chorando, sem ter para onde ir. O caça- va alojado na garganta de Branca de Neve saísse
dor matou uma gazela, colocou seu coração numa por sua boca, desfazendo o feitiço e acordando a
caixa e levou para a rainha, que ficou bastante as- princesa. Quando a moça viu o príncipe, se apai-
tisfeita, pensando que a enteada estava morta. xonou por ele. Branca de Neve despediu-se dos se-
Anoiteceu. Branca de Neve vagou pela flo- te anões e partiu junto com o príncipe para um
resta até encontrar uma cabana. Era pequena e castelo distante, onde se casaram e foram felizes
para sempre.
Morte do leiteiro (Carlos Drummond de Andrade)

Há pouco leite no país, E como a porta dos fundos não sei,


é preciso entregá-lo cedo. também escondesse gente é tarde para saber.
Há muita sede no país, que aspira ao pouco de leite
é preciso entregá-lo cedo. disponível em nosso tempo, Mas o homem perdeu o sono
Há no país uma legenda, avancemos por esse beco, de todo, e foge pra rua.
que ladrão se mata com tiro. peguemos o corredor, Meu Deus, matei um inocente.
Então o moço que é leiteiro depositemos o litro... Bala que mata gatuno
de madrugada com sua lata Sem fazer barulho, é claro, também serve pra furtar
sai correndo e distribuindo que barulho nada resolve. a vida de nosso irmão.
leite bom para gente ruim. Quem quiser que chame médico,
Sua lata, suas garrafas Meu leiteiro tão sutil polícia não bota a mão
e seus sapatos de borracha de passo maneiro e leve, neste filho de meu pai.
vão dizendo aos homens no sono antes desliza que marcha. Está salva a propriedade.
que alguém acordou cedinho É certo que algum rumor A noite geral prossegue,
e veio do último subúrbio sempre se faz: passo errado, a manhã custa a chegar,
trazer o leite mais frio vaso de flor no caminho, mas o leiteiro
e mais alvo da melhor vaca cão latindo por princípio, estatelado, ao relento,
para todos criarem força ou um gato quizilento. perdeu a pressa que tinha.
na luta brava da cidade. E há sempre um senhor que
[acorda, Da garrafa estilhaçada,
Na mão a garrafa branca resmunga e torna a dormir. no ladrilho já sereno
não tem tempo de dizer escorre uma coisa espessa
as coisas que lhe atribuo Mas este acordou em pânico que é leite, sangue... não sei.
nem o moço leiteiro ignaro, (ladrões infestam o bairro), Por entre objetos confusos,
morados na Rua Namur, não quis saber de mais nada. mal redimidos da noite,
empregado no entreposto, O revólver da gaveta duas cores se procuram,
com 21 anos de idade, saltou para sua mão. suavemente se tocam,
sabe lá o que seja impulso Ladrão? se pega com tiro. amorosamente se enlaçam,
de humana compreensão. Os tiros na madrugada formando um terceiro tom
E já que tem pressa, o corpo liquidaram meu leiteiro. a que chamamos aurora.
vai deixando à beira das casas Se era noivo, se era virgem,
uma apenas mercadoria. se era alegre, se era bom,

ignaro: inculto, ignorante; ignorado. quizilento: antipático, briguento. estatelado: estendido, imóvel. redimido: liberta-
do, perdoado.

Proposta de redação • Todos os textos vistos nesta aula possuem uma estrutura semelhante: são
narrativas tradicionais, com apresentação, conflito, clímax (ou anticlímax) e desfecho. Outra caracte-
rística comum é o foco narrativo em terceira pessoa: todas as histórias são narradas por um sujeito que
vê os fatos de fora, como um observador distante. Escolha qualquer um dos textos que vimos hoje (“O
sonho dos ratos”, “Geni e o zepelim”, “Branca de Neve e os sete anões” ou “Morte do leiteiro”) e rees-
creva-o, mudando seu foco narrativo. Não é necessário manter a estrutura em prosa ou em verso, nem
o estilo; o importante é que você escolha um dos personagens da história para ser um narrador (que
será, obviamente, participante). Cuidado com a verossimilhança: o modo como o personagem narrará
os fatos não é igual ao modo do narrador em terceira pessoa. Acrescente ou omita informações confor-
me achar conveniente.

“Há duas classes de tolos: os que não duvidam de nada e os que duvidam de tudo.” (príncipe de Ligne)

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