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Copyright © Cristovam Buarque, 2012

Direitos reservados para esta edição


Editora Garamond Ltda
Rua Cândido de Oliveira, 43 – Rio Comprido
20261-115 – Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Tel/fax: (21) 2504-9211
www.garamond.com.br
editora@garamond.com.br

Capa e editoração
Estúdio Garamond · Anderson Leal
Revisão
Roberto S. Oliveira

ISBN 978-85-7617-280-2
Aos jovens:
Porque ainda têm
a chama.
E o tempo.

E para:
Pedro Simon, 82;
Ignacy Sachs, 85;
Edgar Morin, 93;
Stéphane Hessel, 95;
Oscar Niemayer, 104;
Que não pararam
de reagir.
REAJA contra a vida sempre bem comportada.
Escolha algumas aventuras para realizar: mon-
tanhas a subir, uma revolução a fazer, amores a
sentir. Coloque sua biografia na frente do seu
curriculum, e o curriculum na frente do patri-
mônio. Coloque as urnas na frente das armas; e
os sonhos na frente das urnas.

Não se acostume. Sinta alergia à monotonia.

Reaja ao hábito que toma conta da gente ao vi-


ver em um mundo perverso; e contra a pior das
maldades que é se acostumar com ele. Ao se
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acostumar com mau cheiro, sujeira, barulho, eles


começam fazer parte da gente. Não se acostume
à falta de ar em um mundo sem sonhos. Nem ao
vício de desejar apenas o possível. A grande van-
tagem de ser jovem é poder sonhar o impossível
e ter tempo para construí-lo. Quando o jovem
prende seus sonhos aos limites do possível, fica
velho. Não se acostume com a velhice antes do
tempo. E, quando ela chegar, não pare de desejar
o impossível, mesmo sabendo que não terá tempo
para construí-lo, nem vê-lo. Um dia Paulo Freire
me disse: “Não corte as asas dos seus sonhos na
tentativa de fazê-los possíveis. O mundo está
cheio de pessoas com tesouras cortando asas de
sonhos”.

Acostumar-se é morrer. Reaja aos costumes da


corrupção na política, no exercício profissional
ou nas relações pessoais. Não aceite o jeitinho de
furar fila, colar nas provas, molhar a mão de fiscal.

Reaja ao acomodamento.
9

Reaja contra uma civilização que produz quase


setenta trilhões de dólares por ano, dez mil por
cada pessoa, e tem crianças com fome, sem
roupas, brinquedos, higiene. Sem escolas nem
assistência médica. Reaja contra o triste futuro da
civilização estampado nos olhos desses meninos
e meninas pobres do mundo, não importa o país.

Lute para criar o mundo como você gostaria que


ele fosse. E quando conseguir, não se acomode.
Se não mudar a realidade social, mude a posição
dos móveis da sua sala. E continue inconformado.

Reaja às dúvidas, procurando respostas. E quando


encontrar aquelas que lhe dão certezas, procure
novas dúvidas. Cada vez que se acostumar com
as respostas, mude as perguntas. Não aceite dú-
vidas sem procurar respondê-las, nem certezas
sem formular questionamentos.

Reaja contra a prisão invisível em que a ideologia


dominante o amarrou, roubando o que você tem
de mais sagrado: os poucos minutos de vida que
recebeu e a capacidade de usar esse tempo para
sonhar e viver livre. Com sorte, você terá 30 mil
dias de vida. Não os jogue fora trabalhando sem
10

gosto, nem vocação, apenas por um salário; sa-


crificando seu curto tempo de vida para comprar
o carro do ano.

Não considere banal a paisagem urbana onde


crianças estiram as mãos para pedir esmolas,
nem a realidade social que entristece os olhos
de mães com crianças no colo; crianças no colo
só devem combinar com olhos alegres. Reaja à
banalização da fome, do analfabetismo, da falta
de escolas, de postos de saúde e hospitais. Não se
acostume com tanques de guerra nas ruas, nem
fuzis apontando para civis. Não veja poesia nesta
rima maldita. Não se acostume com o fato de
que, para acender a luz de sua casa, foi preciso
destruir florestas, expulsar índios de seus hábitats,
exterminar espécies biológicas e até biomas intei-
ros. Não se acostume com o conforto pessoal que
vem da concentração de renda e com o custo de
destruição ambiental. Lembre que hoje não nos
acostumaríamos com os privilégios da nobreza ou
com a exploração de escravos. E naquele tempo
todos estavam acostumados. Não se acostume
agora com o luxo dos ricos ao lado da miséria
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dos pobres. Escravocratas são todos os que vivem


indiferentes à pobreza que os rodeia.

Não se acostume com estômagos vazios em frente


a supermercados cheios; nem com escolas boas
para uns e ruins para outros, conforme a renda
dos pais; nem com a longevidade proporcional
ao tamanho da conta bancária da pessoa. Reaja à
aberração de dizer que há boa e má escola, bom
e mau hospital. Escola é ou não é escola; hos-
pital é ou não é hospital; tanto quanto oxigênio
é ou não é oxigênio. Não tolere passivamente a
imoralidade da desigualdade no acesso à saúde,
à educação e à justiça.

Reaja contra estas três desigualdades imorais: no


direito à vida, a compra dos serviços de saúde;
no direito à qualidade da educação, a compra do
acesso às escolas; e no direito a ser livre, porque
pode comprar justiça. Não aceite que a vida
seja comprada por quem pode pagar os servi-
ços médicos enquanto outros morrem porque
lhes falta dinheiro. Não aceite que um cérebro
seja jogado fora da escola de qualidade apenas
12

porque a família não tem dinheiro para pagar


a mensalidade. Não aceite que a justiça prenda
ou solte conforme o dinheiro que o criminoso
dispõe, independentemente do tamanho do crime
que comete.

Aprenda a chorar, mas não apenas por seus so-


frimentos pessoais. Isto todos sabem. Aprenda
a chorar pelo sofrimento dos outros, do velho,
jovem ou criança pobre, homem ou mulher, que
na esquina olha para dentro do seu carro e estira
a mão aberta, pedindo uma migalha do que você
leva no bolso. Chore cada vez que vê na televisão
meninos de olhos arregalados nos braços da mãe
sem leite; ele à espera da morte, ela à espera do
dia em que a falta de comida será esquecida pela
ausência do filho. Não aceite que o mundo seja
sempre assim. Sinta sua responsabilidade. Um
poeta tibetano de nome Milareta disse uma
vez: “Tendo meditado sobre a doçura e a pieda-
de, esqueci a diferença entre mim e os outros”.
Procure derrubar esta diferença, seja você, mas
sinta-se ligado a todos os outros bilhões de seus
contemporâneos atuais, lembrando os que já se
foram e aqueles que ainda virão.
13

Não aceite o hábito. O torturador se acostumou


tanto ao trabalho que o desempenha sem perceber
a indecência do seu ato. Nem aceite a desculpa
da omissão de quem lava as mãos porque não são
as dele que cometem o crime.

Reaja contra as desigualdades; mas, sobretudo,


contra a mãe de todas elas: a educação desigual.
Veja com horror a cara do futuro do país retratada
nas decrépitas escolas de hoje. Veja e reaja. Seja
um educacionista: no lugar de querer um país
rico para só então fazer a boa escola para todos,
queira a boa escola para todos como o caminho
de fazer o país rico. Lute para que os filhos dos
trabalhadores estudem nas mesmas escolas dos
filhos dos patrões. E cada um evolua conforme
seu talento, vocação e persistência – não pela
sorte lotérica da genética e da renda dos pais.
Lute pelo direito democrático de funcionamento
de escolas privadas, e para que um dia elas se
tornem desnecessárias, graças à qualidade de
toda escola pública.
14

Reaja contra a medicina que usa as doenças como


ponte para o lucro de empresas que fabricam
remédios ou equipamentos. Defenda um sistema
que trate a saúde das pessoas, e não a saúde das
empresas de medicamentos.

Reaja.

Reaja ao conceito de progresso baseado no cres-


cimento econômico, que consome a vida das
pessoas e destrói o equilíbrio ecológico em busca
de aumentar a produção de bens materiais priva-
dos e de curta duração. Não aceite como lógica a
riqueza medida pelo Produto Interno Bruto que
inclui as armas como benefício e não inclui as
mortes entre os custos. Não aceite como lógica
o que não atende à razão ou ao sentimento.

Reaja contra a indecente desculpa de que um


automóvel a mais é socialmente positivo porque
cria emprego para flanelinhas fora da escola; ou
que a construção das casas dos ricos e palácios dos
marajás modernos é socialmente boa porque paga
um mísero salário mínimo aos trabalhadores que
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moram em favelas a três horas de distância, onde


seus filhos não têm casa decente. Não aceite que
as mortes por violência ou acidente no trânsito
são detalhes irrelevantes que não entram na
medição dos resultados da produção.

O progresso foi uma das maiores invenções do


mundo das idéias, desde quando Condorcet e
Hegel imaginaram o que então parecia absur-
do: que a história tem um rumo e o mundo de
amanhã será melhor que o de ontem. Milhares
de cérebros – como os iluministas na França do
século XVIII e os liberais, utopistas e socialistas no
século XIX – construíram o humanismo moderno
sobre a ideia de progresso. Mas o século XX cor-
rompeu o conceito e apequenou progresso como
sinônimo de produção e consumo. Lembre do
poema de Drummond: “O progresso não recua/
Já transformou esta rua em buraco”. Perceba a
sacralidade que há em certos prédios que assis-
tiram a história passar à sua frente, história que
tem um valor superior ao do novo prédio que
construirão no lugar. Reaja contra a destruição
ou descaracterização do patrimônio cultural em
nome da novidade e a serviço da especulação e
dinamização do mercado.
16

Reaja ao progresso pela opulência: queira o pro-


gresso do bem-estar e da felicidade.

Reaja ao ufanismo de que a história é uma mar-


cha heróica do bem. Lembre o sangue derramado
em holocaustos para chegarmos até aqui. O mais
visível promovido pelos nazistas, especialmente
contra milhões de judeus. Também contra ciga-
nos, comunistas, deficientes físicos. Lembre dos
pobres nos atuais campos de concentração das
favelas, imenso “gulag do neoliberalismo” criado
pelo capitalismo global. Reaja ao sentimento de
que a culpa é dos outros. Todos somos respon-
sáveis, por ação ou por não agir, ao escolher a
omissão e a alienação.

Não ignore nem esconda a triste realidade cons-


truída pelo lado negativo da civilização, sinta-se
em parte responsável. Veja a vergonha de cem
milhões de indígenas mortos ao longo dos cin-
co séculos de ocupação europeia nas Américas.
Nossos indígenas foram dizimados por doenças,
por trabalho forçado, por balas; e sob a mesma
17

bandeira da civilização continuamos assistindo


ao genocídio deles pela construção de estradas e
hidrelétricas em seus territórios, matando física
ou culturalmente os sobreviventes do holocausto
anterior.

Nossa civilização nasceu no século XVI arran-


cando cerca de dez milhões de africanos de suas
terras, seus lares, seus hábitats; sequestrou-os em
navios que cortaram os mares transportando-
-os como mercadorias imprensadas em porões
fétidos; os que sobreviviam eram vendidos como
ferramentas, tratados como gado, sem a menor
consideração pela família, separando filhos das
mães, maridos das mulheres. Isto de certa ma-
neira continua sob a forma, dita livre, dos emi-
grantes no subemprego dos bóias-frias, das viúvas
de maridos vivos, dos velhos que sustentam os
netos pelo desemprego permanente dos filhos.

Reaja contra a maldade da estrutura agrária que


sobrevive cercando terras sem homens e deixando
de fora homens sem terra, sem emprego, sem
comida.
18

Reaja contra o genocídio cultural que ainda hoje


escraviza 800 milhões de adultos analfabetos, lute
contra a deseducação de três bilhões de analfa-
betos funcionais ou com alguns poucos anos de
escolaridade. Reaja ao holocausto intelectual, à
estupidez do forno crematório de cérebros que
transforma em massa inconsciente o potencial
de centenas de milhões de talentos, gênios que
deixam de dar a colaboração que poderiam para
um mundo melhor e mais belo só porque, como
uma flor, não foram regados no momento opor-
tuno por uma escola de qualidade. Crematório
de inteligência, mais nefasto que as queimas de
livros em outros tempos, quando seus escritores
sobreviviam. Na época em que o conhecimento
é o principal vetor do progresso, deixar pessoas
sem educação é como deixá-las fora da civilização.
Não aceite esta exclusão, lute contra ela.

Considere o analfabetismo de adultos como


uma tortura sem sangue; brutal como todas as
outras formas, com o agravante de ser contínua
e constante. Reaja exigindo dos governos que
erradiquem esta grave maldição. Faça a sua parte.
Se você conhece alguém que não sabe ler, dê-lhe
incentivo para aprender, convença-o a estudar; se
19

tiver possibilidade, alfabetize você mesmo . Os


antigos diziam que a vida não é plena sem gerar
um filho e plantar uma árvore; é preciso acrescen-
tar: e “alfabetizar uma pessoa”. Considere como
o 11º mandamento: “Alfabetizarás o próximo
como a teus próprios filhos”.

Reaja contra o holocausto do abandono de crian-


ças no mundo, mostrado ao vivo quase todos
os dias nas redes mundiais de televisão. Não
aceite sem protestar e lutar contra esta chaga da
civilização que consiste em abandonar crianças,
negar-lhes a chance de desenvolver seus poten-
ciais intelectual e cultural por falta de apoio, de
escola, de brinquedo, de carinho. Pense que os
campos de concentração nazistas cercando e
assassinando judeus só existiram porque eram
escondidos; hoje, um mundo mais insensível acei-
ta campos de concentração onde pobres morrem
de fome, de doenças, ou sobrevivem na magreza
intelectual da privação de educação. Esquálidos
de esperança. Um holocausto assistido ao vivo
pela televisão.
20

Reaja contra a outra forma de holocausto que se


comete ao negar às futuras gerações o potencial
que lhes cabe das florestas, das águas limpas, dos
oceanos para todos.

Galeano escreveu um bom livro sobre as veias


abertas por onde o colonialismo e o imperialis-
mo levaram as riquezas minerais da América
Latina. Esqueceu que a nossa tragédia vem me-
nos das veias abertas que dos cérebros tapados
pelo desprezo à educação. E a causa não são mais
as nações imperialistas, e sim a própria vontade
política dos governantes que elegemos, iludidos
com seus discursos demagógicos e populistas.

Ao lado de tantas belezas artísticas, conforto


técnico e verdades científicas, do século XX fi-
carão inesquecíveis palavras como Hiroshima,
Nagasaki, Auschwitz, Fukushima, Darfur,
Chernobyl, Exxon Valdez, Dresden, Vietnã,
Napalm , Campos de Concentração, Bombardeio
Aéreo, Bombas de Destruição em Massa,
Câmaras de Gás, Biafra. Os retratos de Hitler
21

e Stalin farão parte da galeria de fotos do século


XX ao lado dos de Gandhi e Luther King.

Por isto reaja aos que desejam acelerar esta ci-


vilização, em vez de reorientá-la. No lugar do
desenvolvimento, defenda, como diz Sachs, uma
nova civilização; no lugar de revolução dentro da
mesma civilização, defenda, como diz Morin,
uma metamorfose da civilização industrial em
uma civilização de harmonia entre os atuais
seres humanos e seus descendentes e deles com
a Natureza que os rodeia. Reaja contra os maus
tratos à natureza. No lugar das ferramentas que
a destroem, defenda o abraço para conviver com
ela, transformando-a para levar adiante o projeto
humano – que nela se originou – de libertação,
de busca da verdade, de conquista da beleza, sem
destruí-la. Usemos a Natureza para construir
um mundo onde nossa consciência, sendo parte
dela, a embeleze descobrindo os seus encantos
ao conhecer as verdades de seus mistérios e ao
deslumbrar-se com suas belezas.

Reaja contra a destruição da Natureza, mesmo


as menores. Aceite que recursos naturais se
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transformem em produtos desde que sejam re-


postos, reciclados, renascidos.

Reaja à lógica de que árvore só tem valor quan-


do é derrubada para dar lugar a um produto da
economia. Reaja quando derrubam árvores em
nome da necessidade de aumentar o consumo
supérfluo. Não aceite a derrubada de qualquer
árvore sem uma justificativa de interesse social;
e para cada árvore derrubada exija que muitas
outras sejam plantadas.

Ao destruir o equilíbrio ecológico estamos des-


truindo o projeto humano, por entendê-lo como
a tarefa esquizofrênica de produzir cada vez mais,
no lugar de usufruir cada vez mais. Olhando à
distância, a civilização parece uma luta sem sen-
tido e sem sentimento, sem direção moral e com
uma lógica só explicada depois que ocorreram
fatos nefastos. Observada de longe, a sensação
é de que agimos como animais, sem uma razão
para agir e sem uma razão na maneira de agir. É
como se fôssemos apenas mais um dos animais
da natureza, agindo para comer mas sofrendo
da loucura de criar mais fome sempre que con-
seguimos nos saciar: a fome insana do consumo.
23

Parecemos confirmar a triste hipótese de Koestler


de que somos um animal suicida por defeito da
mutação biológica: com um cérebro lógico e uma
moral desgovernada. Capazes de inventar tudo o
que desejamos, de inventar novos desejos a cada
dia, mas incapazes de limitar o desejo.

Ainda que fosse verdade, não aceite a formulação


de que o animal-homem é uma espécie suicida
por ter um lado do cérebro tão poderoso na ló-
gica que é capaz de fazer uma bomba atômica
e outro tão indecente que é capaz de usar essa
lógica contra os próprios semelhantes. Talvez
seja uma verdade neurobiológica, mas além do
cérebro está a mente e sua espiritualidade.

Reaja contra a fome de supérfluo, a fome de pro-


dutos que ficam sem valor no dia seguinte ao que
o conseguimos. Não aceite a ideia equivocada de
que as coisas se tornam obsoletas a cada ano, só
porque surgiu um novo produto com novas cores
e mais botões; nem a de que velho e usado são
sinônimos de feio; nem o sentimento que torna
velho o produto de ontem e considera feio o que
24

ainda não é o de amanhã. Reaja ao exibicionismo


de consumir por grife. Lembre que um sapato
é para usar, não para mostrar a marca. Reaja
à propaganda que amplia suas necessidades e
manipula seus gostos e gastos.

Adote um estilo de vida para consumir menos,


adie a substituição de seus bens de consumo por
anos, ou até décadas. Veja a beleza de manter o
uso dos bens independentemente da idade que
eles tenham. Sinta a beleza de um pulôver antigo,
de um sapato usado. Torne supérfluo o consumo
supérfluo.

Reaja ao modernismo que tenta se impor apenas


porque é novo, sem uma base estética ou ética
para justificar. Não veja o moderno como sinôni-
mo de bom ou de belo. Moderno deve ter apenas
significado etimológico: aquilo que é de hoje –
hodiernus. Um conceito temporal, cronológico,
sem valor especial além do momento em que
surgiu. Olhe para o moderno com visão crítica,
buscando encontrar sua utilidade, sua beleza, sua
bondade, quando estas existirem.
25

Reaja contra a estrutura social que condena uma


parte dos seres humanos à miséria do desem-
prego – deixando-os sem acesso aos bens mais
essenciais – e outra parte à miséria do excesso
de trabalho – para pagar o custo do consumo
supérfluo. Reaja à lógica que condena o ser hu-
mano à pobreza e à vergonha da falta de trabalho
ou ao trabalho desnecessário para financiar um
consumo desnecessário.

Reaja contra a escravidão que continua, no sécu-


lo XXI, sob a forma direta do trabalho forçado;
ou disfarçada em serviços domésticos, trabalho
infantil, exploração sexual; ou então a moder-
na escravidão da dívida, as algemas modernas,
plásticas, dos cartões de crédito.

Reaja contra a ideia de que a riqueza consiste em


gastar a vida endividando-se e trabalhando mais
do que o necessário para comprar mais do que o
necessário; afastando-se de vizinhos, esquecendo
a família, deixando de olhar ao redor, sem se
deslumbrar com a beleza ou se indignar com as
injustiças.
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Reaja contra o tempo que lhe é roubado da leitura,


do namoro, do lazer pelo trabalho indesejado que
você não escolheu, que lhe chegou. Reaja contra
o desviver de ocupar uma profissão que não lhe
dá prazer nem aventura. Nem sempre você vai
conseguir escapar, mas reaja mesmo assim. Você
não nasceu para ter um oficio; tem um ofício
para ajudá-lo a viver e fazer um mundo melhor
e mais belo.

Reaja.

Não deixe que o progresso roube a chance da hu-


manidade de usar sua capacidade de criar tempo
livre e usar esse tempo livre para as atividades
da cultura; não deixe a humanidade continuar
prisioneira do mercantilismo, do produtivismo
e do consumismo.

Reaja aos absurdos orçamentos militares que em


2010 consumiram no mundo inteiro o equivalente
a US$ 1,5 trilhão de dólares. Recursos que permi-
tiriam oferecer escola a todas as crianças pobres
27

do mundo. Recuse a lógica de um PIB medido


pelo valor das armas produzidas.

Não aceite o conceito de que a bala que matou


John Lennon aumentou a riqueza mundial por-
que serviu para ampliar o PIB norte-americano.
Não aceite que a bala usada por um assassino
aumenta a riqueza social medida pela produção
e, se for certeira no coração da vítima, aumenta
a renda per capita ao diminuir o número de habi-
tantes. Reaja contra a economia que se diz ciência
sem necessidade de ética; que trata a tragédia do
“desemprego” como “desequilíbrio”; a “destruição
de florestas” como “produção de riqueza”. Reaja
contra a economia que considera produtos as
armas que matam e comemora o aumento da
riqueza medido pelo uso delas.

Armas podem ser necessárias para defender


a riqueza existente, não para aumentá-la. As
muralhas que cercam uma mansão aumentam
a tranquilidade de seus moradores prisioneiros;
servem para afastar os indesejáveis, não para
tornar a vida mais alegre.
28

Veja com desconfiança um mundo cercado de


muralhas por todas as partes, nos condomínios
e shoppings. Pense como será seu país quando for
governado por crianças que jamais colocaram os
pés nas ruas de suas cidades; que veem o mundo
pelas grades de seus jardins ou pelos vidros escu-
ros de seus carros, e só conseguem vê-lo de dentro
dos shoppings ou das escolas por causa do tamanho
dos muros que os rodeiam. Pense também como
será o seu país se vier a ser governado pelos que
cresceram do outro lado do muro, carregando
desejos não realizados, mágoas aumentadas.

Reaja contra a monocromática economia me-


dida pela produção. Defenda todas as cores da
economia: “verde”, porque respeita a natureza;
“vermelha”, por ser comprometida com a redução
da pobreza e a boa distribuição do produto e
da renda; “amarela”, por ser produto do conhe-
cimento, da ciência e da tecnologia a serviço
de todos, conforme a necessidade de cada um,
para aumentar a esperança de vida e o conforto;
“branca”, por não atribuir valor às armas; “azul”,
por medir a riqueza com base no bem-estar e
29

na felicidade das pessoas e não no quanto elas


ganham, têm ou consomem.

Reaja contra a definição de riqueza baseada na


renda e no consumo. Entenda que mais vale uma
hora livre para caminhar por dia que uma hora
perdida no trânsito, ou gasta em busca de salário
adicional para comprar coisas desnecessárias.
Mais vale respirar ar puro que comemorar o au-
mento na produção; mais vale chegar cedo à casa
da namorada que ficar preso no engarrafamento
dentro de um carro novo.

Reaja à lógica irracional e insensível que, im-


posta há tanto tempo, já tomou conta das nossas
mentes: a ideia de que felicidade é sinônimo de
consumo; como se esta visão fosse intrínseca à
humanidade, estivesse no DNA de cada ser huma-
no. Não está. Mas se estivesse, reaja mesmo assim.

Reaja contra todo e qualquer país que comemo-


re ser uma potência econômica sendo fracasso
social na educação, na saúde, na estrutura urbana,
na distribuição de renda, na harmonia entre as
30

pessoas. Reaja contra comemorar o aumento de


famílias recebendo assistência em vez de come-
morar a diminuição do número das famílias que
precisam desta ajuda.

Reaja à desigualdade. Hoje, 1% dos ricos do


mundo detém 40% do patrimônio mundial. As
três pessoas mais ricas têm patrimônio superior
à população somada das 48 nações mais pobres.
É preciso indignar-se, como pede Hessel, mas
também reagir contra esta realidade imoral. Mas
não basta reagir à má distribuição da renda e do
consumo, reaja também ao consumismo, porque
é impossível todos consumirem como os 20%
mais ricos. O planeta não suportaria.

Entenda que levar o consumo das classes médias


a toda a população mundial exigiria uma Terra
sete vezes maior que o seu tamanho real. Esta
pegada ecológica seria ainda maior se quisermos
levar o consumo dos 10% mais ricos a todos os
sete bilhões de seres humanos. Não aceite que a
solução seja congelar a concentração de renda e
o consumo para poucos. A ética da igualdade e
31

os limites ecológicos só podem ser compatíveis


com a redução do consumo supérfluo e talvez até
mesmo com um decrescimento harmônico e feliz,
no lugar do crescimento esquizofrênico e suicida.

Veja que a globalização criou um país dos ricos do


mundo inteiro, unidos pelo padrão de consumo,
pela cultura dita universal, pelos gostos e gastos,
pela culinária e as marcas de vinho, e até mesmo
pela temperatura nos carros, nos shoppings e ae-
roportos. E manteve um arquipélago de pobres
espalhados, excluídos, diferentes até mesmo
dentro dos próprios países. Observe o mundo
mais dividido entre os incluídos e os excluídos
da modernidade, ricos e pobres, do que entre as
nações. Não aceite ser parte do superconsumo
de um Primeiro Mundo Internacional dos Ricos
cercado por Ilhas do Arquipélago Social onde
os pobres sobrevivem na escassez. Reaja e aja
para derrubar a barreira que divide o mundo
separando as pessoas por uma cortina invisível
que divide países, mas é concreta nos muros dos
shoppings centers, nas grades dos condomínios, nas
muralhas que separam as populações dos EUA e
do México, nos guichês da polícia de fronteira
em cada país.
32

A vocês foi prometido um mundo sem a Cortina


de Ferro que separava países segundo o seu siste-
ma social e econômico, capitalismo ou socialismo.
Mas construíram outra separação. Reaja à Cortina
de Ouro que serpenteia o planeta dividindo entre
ricos e pobres as populações de cada país, que de
tão desiguais já começam a perder o sentimento
de semelhança. Não aceite a marcha em direção
à quebra da convicção de que todos os seres hu-
manos são semelhantes entre si.

Não aceite que as maravilhas da ciência e da


tecnologia sejam usadas para induzir uma mu-
tação biológica em benefício dos ricos, capazes
de comprar o conhecimento da genética, da
biotecnologia, da medicina. Não assista passiva-
mente à evolução de poucos para a situação de
um neo-homo-sapiens, superior na esperança de
33

vida, na saúde física e no potencial intelectual aos


neo-neanderthals a que os excluídos do mundo
estão sendo condenados a transformar-se. Esta
evolução pela ciência e tecnologia representa o
mais violento passo de involução ética, pior que
o racismo nazista e o apartheid sul-africano.

Reaja contra a globalização que destrói nações.


Reaja à visão de que a antropofagia só ocorre
quando o corpo de um ser humano é comido; ela
também ocorre quando a alma é convertida por
uma religião alienígena ou pelo consumismo de
uma civilização esquizofrênica. O que criticar na
antropofagia que come carne quando assistimos
à antropofagia que come almas e culturas? Mas
também reaja contra o isolamento que quer tratar
cada país como ilha. Veja o mundo como um
condomínio de nações; cada uma independente,
mas todas solidárias. Perceba que no mundo in-
tegrado de hoje todo ser humano é vizinho, não
importa em que lugar do planeta viva.

Reaja ao mundo dividido por fronteiras políticas


artificiais que dividem os seres humanos. Por isto
é necessário solidariedade internacional: globali-
zar a mente e os corações, não apenas os bolsos
34

e as contas. Não confunda internacionalismo e


globalização. Reaja contra a globalização que
começa por cima, universalizando os ricos, em
vez da sonhada internacionalização que nasceria
por baixo, unindo os trabalhadores. Este era
o sonho dos internacionalistas do passado, no
sentido contrário ao dos globalistas do recente
neoliberalismo.

Reaja ao direito de cada país sentir-se no direito


de queimar suas florestas, sujar seus rios, jogar
lixo no espaço ou no oceano. Não aceite a visão
do nacionalismo primário e egoísta em nome do
qual um país justifica jogar dióxido de carbono
na atmosfera, estragar a vida no Planeta Terra
só porque no passado outros países cometeram
este crime antes, sem medidas protetoras.

Defenda os recursos naturais como patrimônio de


todos, sob os cuidados de cada nação e cada gera-
ção. De todos: do passado e do futuro. Defenda
a necessidade da internacionalização moral do
patrimônio comum da humanidade: as flores-
tas, o oceano, o espaço, os museus. Lute pelos
35

direitos daqueles que ainda não nasceram. Não


aceite deixarmos para eles um mundo pior do
que o recebemos de nossos antepassados. Faça
o possível para que no mundo deles haja mais
flores, mais harmonia, as baleias continuem
donas do mar ainda azul, os pássaros donos
do céu também ainda azul e os seres humanos
continuem falando em todos os seus idiomas, e
com mais entendimento. Reaja ao suicídio que
parece tomar conta da humanidade.

Reaja à lógica que define a demanda de energia


em função de um consumo sem sentido, justi-
ficando lagos que destroem a diversidade e ex-
pulsam nações indígenas de seus locais sagrados.
Não aceite a visão utilitária mercantilista que
seria capaz de perfurar a Terra Santa ou a Meca
em busca do petróleo, porque a rentabilidade
da exploração de combustível prevalece sobre o
valor moral da conservação do solo sagrado. E
enquanto isto não ocorre vão comprometendo o
futuro da humanidade, explorando petróleo no
Polo Norte.
36

Enquanto a ciência e a engenharia não forem


capazes de garantir total segurança, reaja contra a
alternativa de energia nuclear, cujos impactos em
condições normais podem ser limpos ecologica-
mente, mas em caso de desastres provocam catás-
trofes que perduram por centenas de milhares de
anos, atingindo centenas de milhares de pessoas.
Como vi em Chernobyl, e acompanhamos pela
televisão em Fukushima. Atingindo inclusive
crianças que ainda não nasceram.

Não aceite ser parte da civilização-meteoro que


ameaça provocar um desastre de proporções
equivalentes ao provocado por um meteoro na-
tural vindo do espaço 65 milhões de anos atrás.
Apesar de tudo, reaja ao pessimismo.

Não aceite o niilismo daqueles que optam pelo


acomodamento ao sentirem que o ser humano
é incapaz de cuidar do Planeta, porque nesse
caso seríamos inexoravelmente movidos pelo
individualismo e imediatismo da voracidade
do consumo. Nem aceite o niilismo ainda mais
radical daqueles que consideram a humanidade
37

carente de importância cósmica e acham que o


desaparecimento da espécie humana e mesmo
de toda a vida na Terra nenhum impacto teria
sobre a imensidão do universo. É verdade: diante
do Sol, das estrelas e galáxias somos menos que
poeira. Mas esta poeira embeleza o Cosmo ao
deslumbrar-se com ele, ao buscar explicações
para ele. É pelo Cosmo que é importante salvar
a humanidade e sua civilização, com sua ciên-
cia, sua arte – ou seja, a nossa consciência, que
não existe nas pedras, nas plantas, nos demais
animais.

Sem a nossa consciência, o mundo continuará,


mas sem existir.

Por isto, não se deixe levar pelo pessimismo, ainda


sabendo que ele é mais lúcido do que o otimismo.
Transforme a impossibilidade de salvar a humani-
dade na justificativa de sua luta. É como as altas
montanhas: se é impossível subir, mais razão para
tentar. Só porque estão ali. Além de que, nada
impede que outras poeiras conscientes existam
em outros mundos da imensidão. E se nenhum
38

outro valor houvesse para salvar a humanidade,


justificaria salvá-la para continuarmos buscando
outras vidas conscientes, como Colombos siderais.
Se nos salvarmos dos nossos equívocos, da nossa
inteligência técnica sem alma, sem ética, corroída
pela maneira como transformamos as pedras, as
plantas e os animais em produtos que atendem à
voracidade do consumismo, tentando preencher
o vazio de nossa existência.

Reaja contra a falta de liberdade. Grite, grite


sempre e o mais alto possível contra o silêncio
que acomoda e engana. Reaja contra o partido
único, criado pela submissão e a conivência
dos bajuladores e oportunistas; grite alarmado
contra o pensamento único criado pela mudez
conformada, assustada ou conivente dos intelec-
tuais, pela imprensa medrosa ou comprada, ou
simplesmente cega, sem capacidade de análise
independente. Diga não. Sinta o orgulho de dizer
não quando todos ao redor dizem sim. O prazer
de nadar contra a corrente de ideias.
39

Reaja à universidade que sempre diz sim e luta


apenas por mais verbas e não por novas ideias.
Reaja contra a universidade alienada dos pro-
blemas do mundo. Contra as aulas consumidas,
aprendidas apenas até o dia da prova, o dia da
prova servindo apenas para o dia da formatura e
a formatura servindo apenas para o diploma. Não
veja o seu conhecimento apenas como ferramenta
para um emprego. Veja a universidade como o
lugar de sua realização, o templo onde você vai
conquistar o céu do saber das coisas do mundo.
Veja, sinta e ajude a construir uma universidade
tridimensional: com o Departamento que lhe
oferece uma profissão e um saber aprofundado em
certa área do conhecimento; o Núcleo Temático
Multidisciplinar que lhe oferece compromisso
para conhecer e transformar a realidade; não
se contente com uma universidade que não lhe
oferece a chance de um Núcleo Cultural onde
você possa manifestar seu lado lúdico e seu po-
tencial humanista. Não aceite universidade sem
filosofia. Sem filosofia, qualquer profissional, por
mais preparado, é uma máquina de pensar, não
um ser pensante. Para ser um ser pensante, leia
filosofia, mas não apenas os textos de filósofos:
veja a fi losofia que há nos contos e romances
40

da literatura, nas poesias, até nas músicas, nos


jogos de que você participa.

Reaja contra o vazio ideológico que tomou conta


do mundo. Não aceite a falta de propostas, de
bandeiras de luta. Escolha a sua bandeira. Se
nenhuma lhe satisfizer, crie uma nova e vá para
a rua buscar aliados. Não se contente em optar
por uma das alternativas que lhe oferecem: bus-
que e escolha entre outras ainda desconhecidas,
que ainda parecem impossíveis. As opções entre
alternativas conhecidas não permitem sonhos.
Só a escolha livre permite sonhar com o impos-
sível. Não deixe de sonhar com uma utopia. Se
você percebe a morte da utopia capitalista ou
socialista, crie uma nova utopia, mais radical.
Não queira mudar apenas o sistema econômico
e social, queira mudar a própria civilização atual.
Lembre que no mundo de hoje o capitalismo é
um carro de luxo em alta velocidade na direção de
um abismo jogando poeira no povo da margem;
e o socialismo é um ônibus com velocidade um
pouco menor que recolhe todos os que estavam na
margem mas vai na mesma direção do precipício.
41

A nova utopia ainda não tem nome, cabe a você


criá-la e batizá-la. Mas não há dúvida de que o
retrato da utopia será um país sem muros cer-
cando escolas, hospitais, condomínios, shoppings.
Reaja contra o labirinto de muros que serpenteia
a superfície social do mundo. Essa utopia vai
exigir um piso – social – mínimo, abaixo do qual
nenhum ser humano e sua família serão abando-
nados, por mais pobre que seja; e um teto – eco-
lógico – máximo, acima do qual ninguém poderá
consumir, qualquer que seja a sua renda; entre
esses dois limites, uma desigualdade de renda e
consumo será tolerada conforme a ascensão social
de cada pessoa. A escola de qualidade igual para
todos será a escada que definirá a posição social,
conquistada livremente, conforme o talento, a
persistência, os desejos e a vocação.
42

Reaja contra o vazio estético que esconde belezas


ansiosas para serem expostas. Roube as belezas
ainda escondidas. Conforme sua vocação, não
deixe páginas em branco sem textos escritos;
não deixe bloco de mármore com uma escultura
aprisionada; não deixe cores isoladas escondendo
quadros ainda inexistentes que desejam aflorar;
assovie quebrando o silêncio que aprisiona as
canções. Roube também as verdades que estão
guardadas na ignorância de filosofias incomple-
tas, ciências superficiais, éticas preconceituosas.
No fundo do mar do conhecimento há riquezas
a serem liberadas, trazidas à superfície da sua
consciência e espalhadas pelas consciências de
outros. Reaja contra o vazio epistemológico que
esconde verdades ansiosas para serem descobertas,
porque usamos métodos tradicionais de pensar.
Não pense apenas o novo e o impossível, pense
de maneira nova e imprevisível.

Reaja contra projetos que desalojam índios de


suas terras ou expulsam moradores de favelas.
E contra discriminação. Todas elas: por defeito
físico, raça, gênero, opção sexual ou religião
43

professada. Não seja tolerante ou conivente com


desvios éticos e seja intolerante com a intolerância
dos preconceitos.

Reaja contra a corrupção de políticos que põem


dinheiro público no bolso ou na conta, por pro-
pina ou desvio de recursos. Mas também contra
a disfarçada e igualmente grave corrupção nas
prioridades que faz opção por gastos públicos que
beneficiam apenas a minoria rica, relegando sis-
temas de água e saneamento, escolas e hospitais
para a maioria. Reaja contra o cinismo de políti-
cos; e de eleitores também. Repudie o político que
não cumpre as promessas que fez na campanha,
e o eleitor que vota apenas por interesse pessoal
imediato, ou debochadamente, sem respeito ao
nobre ritual de escolher seus representantes no
parlamento ou no poder executivo.

Escolha políticas da ética, não da ótica. Os éticos


têm valores morais e com base neles elaboram
seus programas; os óticos têm apenas o olhar
ávido pelo poder e são capazes de sacrificar suas
almas.
44

Mas reaja também contra a corrupção de outros


poderes, no sistema judiciário, na mídia, nos
sindicatos, clubes esportivos ou carnavalescos.
Reaja contra a corrupção de cada um, no dia a
dia. Não feche os olhos para aqueles que usam
jeitinhos para burlar os direitos dos outros.

Reaja contra o terrorismo, seja de que lado for,


seja qual for sua justificativa. Tanto o terrorismo
de grupos e indivíduos quanto o terrorismo ofi-
cial de Estados e governos. Reaja contra todas
as formas de violência até mesmo quando feitas
contra criminosos; mas, sobretudo, reaja contra
a violência como são tratadas as crianças, as
mulheres, os índios, os negros, os homossexuais,
os pobres.

Reaja ao que se faz contra os habitantes da


Palestina, e aos que jogam bombas sobre habi-
tantes de Israel; contra aqueles que atacam os
gays em diversos países, os pobres na América
Latina, os muçulmanos em quase todos os países
ocidentais. Reaja também contra aqueles que
desejam esconder ou negar o holocausto contra
os judeus ou o direito dos judeus de terem seu
próprio país. E contra governos que usam tanques
45

para enfrentar pedras. Reaja contra o abandono


do povo pelos ricos do mundo e pelos ricos do
próprio país.

Reaja à maneira como a educação é destratada.


Reaja às consequências diretas deste destrato e
contra todos os que conduzem a economia presa
aos séculos XIX e XX, despreparada e resistente ao
salto em direção à economia do conhecimento
que caracteriza o século XXI.

Reaja ao descaso dos serviços públicos, escolas


parcialmente ativadas, hospitais que parecem de
guerra, não importa em que país isto aconteça.
Reaja contra as filas que o povo enfrenta para ter
atendidos seus direitos mais essenciais: seja para
receber comida em Mogadíscio ou educação e re-
médios em São Paulo. E, ainda mais fortemente,
reaja contra as promessas do livre mercado que
barram até mesmo as filas, impondo a exclusão
até da esperança de esperar.

Reaja contra a apropriação da ciência e da tec-


nologia a serviço da violência da guerra e da
46

ganância dos ricos. A inteligência é produto do


cérebro de uma pessoa, mas a inteligência de
cada pessoa se deve aos cérebros das milhares de
pessoas que direta ou indiretamente participaram
de sua educação; é resultado do esforço coletivo
de intelectuais que pesquisam e de trabalhadores
que os alimentam para que possam pesquisar. A
inteligência é de uma pessoa, mas o conhecimen-
to é produto de todos, e deve pertencer a todos os
homens e mulheres. É indigno que a descoberta
de um remédio só sirva a quem pode pagar por
ele, prostituindo-se a inteligência dos cientistas
que o descobriram.

Reaja contra a transformação da maravilha da


arte do futebol em ópio que impede a justa e
necessária revolta do povo.

Reaja àqueles que transformaram a beleza da


liberdade sexual na vergonha da pornografia; e de
forma irada reaja ao maldito crime da pedofi lia.

Reaja contra a ideia de que o mundo vai bem,


apenas porque não vai tão mal quanto antes.
47

Não aceite ser sequestrado por ideias. Com elas


devemos casar quando nos deslumbram, mas
nunca devemos nos subordinar a elas só porque
nos chegam bem pintadas e arrumadas, porque
trazem dinheiro ou são impostas por pessoas que
se fazem passar por donas da verdade. Derrube
as verdades que se apresentam como donas do
mundo. Escolha aquelas que lhe agradam e
adote-as. Não deixe que elas o adotem. Recuse ser
guiado por mensagens que não tenham passado
pelo fi ltro de sua consciência nem penetrado
fundo em seu coração. Respeite os que pensam
diferente. Reconheça as qualidades até mesmo
daqueles de quem você não gosta; e não deixe de
criticar os erros mesmo daqueles de quem você
gosta. Se um bandido escrever um bom livro,
diga que ele escreveu um bom livro; e continua
sendo bandido. Não ignore que ele escreveu um
bom livro nem deixe que isto esconda que ele é
bandido.

Para cada fato e ideia assuma uma posição. E


defenda-a. Não aceite análises simplistas, nem
apresentações complexas. Toda posição simplista
é insuficiente para apresentar o novo; mas toda
análise e proposta complexa pode ser apresentada
48

de forma simples. Busque o difícil fazendo-o


bonito pela simplicidade.

Não se conforme com a lei da gravidade. Tente


voar por todos os meios disponíveis, asas delta,
para-quedas, planadores; ou nas asas de sua
imaginação. Procure ver a beleza da matemática
procurando novos caminhos para provar velhos
teoremas na álgebra, cálculo ou geometria; re-
aja contra geógrafos, desbravando novas terras;
refaça os mapas com seu caminhar; enfrente as
ideologias criando novas visões do mundo.

Reaja aos limites do seu idioma, aprendendo ou-


tros, testando novas formas gramaticais, criando
novas palavras. Se você realmente pensa o novo,
terá de criar palavras novas. Não tema o ridículo
que elas carregam ao nascer, no primeiro mo-
mento em que são usadas.

Reaja aos slogans. Todos eles, inclusive o “Reaja”.


Se quiser, construa os seus próprios. Lembre-se
49

que os slogans morrem, os motivos que lhes


deram nascimento também; mas sua razão e
sua crença pessoal ficam, pelo menos enquanto
você assim considerar correto e justo. Reaja aos
dogmas: de padres, pastores, rabinos, gurus,
líderes políticos ou sindicais, patrões, aiatolás,
professores e generais. Milite em um partido
para libertar e libertar-se, nunca para escravizar
ou ser escravizado.

Reaja às ordens vindas de uniformes de todos os


tipos, batinas, fardas, ternos, togas, macacões.
Olhe nos olhos de quem as dita. Só aceite as
mensagens pelo conteúdo, nunca pela ordem
nem pela embalagem de quem as diz.

Reaja ao imobilismo, sob todas as maneiras e pre-


textos. O parado não é vivo, move-se apenas em
sua degradação natural. Como cadáver. Mova-
se e mova as coisas ao seu redor, as coisas e as
ideias. Dê volta nas ideias do mundo e naquelas
que você carrega. Não se contente com uma ideia
parada. Ideia parada é ideia morta. Não aceite o
sedentarismo, nem o sectarismo. O primeiro é
50

a paralisia física, o segundo a paralisia mental:


pensamento engessado. Mude de cidade onde
mora ao menos uma vez em sua vida. Renove
suas relações pessoais fazendo de cada dia um
novo dia com as pessoas que você ama e com
aquelas que não ama também.

Viaje sempre que puder; para onde escolher, e


até sem escolher nem planejar. Cada pessoa é
um Marco Polo. Quando lhe disserem para ir de
avião, tente um trem ou barco; se o conselho for
para ir de carro, tente um ônibus ou caminhar.
Quando não puder viajar fisicamente, abra um
livro sobre viagens feitas por outros. Não tema o
desconhecido, nem a curiosidade para caminhar
e olhar ao longo do caminho por onde passa.
Nunca feche os olhos para as paisagens, nem os
ouvidos para os sons que ocorrem ao longo do seu
caminho. Teste o gosto de todos os alimentos que
encontrar nas paradas. Prove todas as comidas
que lhe forem oferecidas.

Ame o desconhecido, esta é uma forma de reagir


ao dia a dia, ao imobilismo, ao conformismo. Seja
curioso. A curiosidade de conhecer o mundo
e como ele funciona. Não mova o interruptor
51

da sua sala sem se perguntar como é possível


que aquele gesto faça a luz acender. Derrube as
paredes. Sobretudo as invisíveis. Estas são as
piores: construídas à sua volta desde os primei-
ros anos, vão sufocando sem que você perceba.
São estas paredes que aprisionam o espírito e
o intelecto até quando não puder mais escapar.

Leia, leia, leia muito, mas interagindo com o


autor; às vezes para deslumbrar-se, outras para
indignar-se; outras para entender e outras para
se contrapor. Leia muito, mas não seja leitor
passivo. Liberte os personagens trazendo-os à
vida da sua imaginação, não os deixe prisioneiros
dos livros em páginas fechadas, cemitérios de
livros esquecidos. Em cada texto veja onde você
mudaria as vírgulas, que outras palavras usaria,
quais destinos alternativos daria a cada perso-
nagem, e até mesmo que novo enredo armaria.
Ouça música, tanto quanto puder, mas ouça com
o corpo inteiro, a partir das entranhas, não dos
ouvidos; veja pinturas e esculturas mergulhando
nelas, não apenas como espectador distante.
52

Reaja à arrumação dada às pedras deste quebra-ca-


beça que chamamos mundo. Independentemente
de como ele foi criado, lute, trabalhe, aja para
mudar a arrumação das peças buscando fazer a
realidade mais harmônica, com mais justiça, mais
beleza, mais equilíbrio. Redesenhe, nem que
seja um pequeno pedaço do mundo. Prometa a
si próprio que, ao morrer, pelo menos uma peça
estará em posição diferente daquela que estava
no dia que você nasceu. Basta ter um filho e o
quebra-cabeça do mundo já ficou diferente; ter
vivido um belo amor, mesmo sem filho, rompe o
quebra-cabeça; construa uma casa; mude o curso
de um rio conversando com o vale onde ele corre;
plante árvores; escreva, ainda que seja um verso
simples de poema. Basta contar uma anedota
numa tarde de sábado, fazendo os amigos rirem,
e você já mexeu nas peças do mundo. Faça o
mundo ser AV, Antes de Você, e DV, Depois de
Você. É a isto que se chama razão de viver.

Borges, cego, quando esteve no deserto egípcio se


agachou, agarrou um punhado de areia, levantou,
deu um passo e deixou escorrer aos poucos entre
53

os dedos a fina areia desértica. Olhando para


o ponto distante aonde os cegos miram, disse:
“Acabei de mudar o universo”. Mudou duas vezes:
ao mover a areia e ao fazer um poema. Procure
fazer mudanças mais radicais do que Borges,
mas se não tiver a chance ou não quiser, faça
um simples poema e o quebra-cabeça já estará
transformado, o DV estará diferente do AV: você
terá justificado sua existência. Mas, para isto,
precisa ter consciência de seu papel no mundo.

Reaja ao silêncio. Não aceite esconder qualquer


fato da história do seu país e do mundo. Não
se conforme com segredos históricos, exija a
máxima transparência em todas as decisões
políticas. Reaja ao silêncio entre você e alguém
desconhecido ao lado. Converse, converse, para
não se arrepender do silêncio-barreira entre você
e o seu ao-redor. Saiba que o silêncio no passado
carrega remorsos para o futuro, quando imaginar,
anos depois, o que perdeu por não falar naquele
instante. Nunca deixe o silêncio impedir a pon-
te que você pode construir com pessoas. Nem
ignore o risco do arrependimento por não ter se
manifestado em cada instante de sua vida.
54

Reaja ao fato de a Natureza não ter lhe dado asas,


usando ao máximo as pernas que você tem e as
asas invisíveis de sua imaginação para compensar
as que você não recebeu, por não ser pássaro. A
Natureza lhe deu as asas do sonho, voe com a
imaginação nos livros que você ler, nas músicas
que escutar, nas cores que vir, com as conversas
que tiver. E também sem nada disto, pelas asas
puras, suas, nos dias de chuva ou de sol, quando
sem nada fazer você voa por si, sozinho. Para isto,
precisa ter consciência de que está voando. Não
tenha inveja dos pássaros, eles não imaginam o
voo.

Ao fechar um livro que leu até o final, reaja ao


que leu. E não reaja apenas por reagir. Aja. Para
isto, escreva seu próprio livro, com suas ideias e
ações. Esta será uma forma de reagir.

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