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PUC-SP
SÃO PAULO
2018
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
SÃO PAULO
2018
Banca Examinadora
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Naquela ocasião, era impossível prever o quanto a vida me levaria por rumos
diferentes, embora muito desejados. Já aprovada no curso, conheci aquele que viria a ser
meu marido e, pouco tempo depois, pai de minha filha. Tudo, então, ganhou nova
posição em minha lista de prioridades e passou a ser visto com outro olhar, inclusive eu
mesma. E, claro, isso teve impactos em minha pesquisa. Todos que estão aqui citados,
de uma forma ou de outra, foram essenciais para que eu concluísse este trabalho. Alguns
pelos conhecimento teórico; outros, pelas conversas e intensas trocas de ideias. Alguns,
pela ajuda com tarefas do cotidiano e outros, ainda, pelo carinho e incentivo, duas
coisas essenciais para qualquer pós-graduando.
Meus agradecimentos à Prof.ª Dr.ª Maria Celeste Mira pelo acolhimento inicial
e, sobretudo, pela compreensão e carinho com que me recebeu ao longo das fases de
pesquisa e vida pessoal pelas quais passei. Obrigada por entender minha “escrita
jornalística” e por sempre apresentar soluções, leituras, olhares e interpretações que
enriqueceram este trabalho.
Obrigada a Prof.ª Dr.ª Ana Lucia de Castro e a Prof.ª Dr.ª Mariza Werneck pelo
carinho com que acolheram minha pesquisa e pelas importantes observações no exame
de qualificação, além de terem aceitado o convite para compor a banca de defesa deste
trabalho.
A minha sogra, Adelia Bezerra de Meneses, pelas conversas sobre a tese, pelo
carinho em me indicar leituras e pelos preciosos momentos que passou com a Helena
enquanto eu me dedicava à elaboração da tese. Isso não tem preço para nenhuma de nós
três.
A Ulpiano Bezerra de Meneses, meu “tio”, que não só se interessou pelo meu
tema de pesquisa como procurou várias referências bibliográficas para me indicar.
Obrigada por transmitir um pouquinho de todo o seu conhecimento!
A meu sogro, Willi Bolle, e sua esposa, Fátima Monteiro, por estarem sempre próximos
e disponíveis, além das palavras de incentivo.
Aos meus queridos irmãos, Denis e Ivan, pelo carinho, incentivo e força que
sempre me deram. Vocês são meus melhores amigos e as pessoas que mais admiro. Este
trabalho, e tudo o que o envolveu, tem muito de vocês. Obrigada!
Aos meus pais, Vera e Wilim. Que falar dos pais? É um privilégio ser filha de
vocês e poder ter a certeza de que sempre terei sua confiança, apoio, encorajamento e
amor. Obrigada por sempre terem me incentivado nos estudos e nas escolhas que fiz até
aqui. Obrigada também por mostrarem que distância não significa nada...
Ao meu marido, meu companheiro e meu amor Pedro Bolle, pelo interesse e
pela parceria que sempre teve comigo durante o curso. Obrigada pelo incentivo quando
nos casamos, quando me descobri grávida e depois que a Helena nasceu, quando você
cuidou dela para que eu pudesse me dedicar aos livros e às muitas horas diante do
computador. Tenho orgulho de ser sua esposa e de ter dado um pai tão carinhoso e
dedicado para nossa filha. Amo você!
Ao meu amor, minha Helena. Você veio para deixar minha vida melhor e ser
minha companheirinha nessa jornada da vida. É uma felicidade enorme ser sua mãe e
ver que, a cada dia, você vai ganhando o mundo. Espero que eu consiga mostrar para
você as coisas boas que existem nele. Espero, ainda, que as reflexões desta pesquisa
cheguem até você na forma de muito amor, carinho e incentivo para que você cresça
sabendo amar seu corpo do jeito que ele é – e ele é perfeito.
For centuries, discourses about beauty have involved the female body in delicate
power relations, in addition to transforming it into the object of consumption and desire
in different societies. In the last decades, the body has gained even more importance
with the possibility of aesthetic and surgical interventions for beauty and physical
performance. For all this, the figure of the fat, the potbellied and the sedentary became
an indication of failure before so many possibilities of beauty, health and success
released by advertising and the media and general. However, since the early 2000s
something has been changing in this discourse. Blogs, social networks and other
alternative media have been releasing a more optimistic message about obesity. Without
apologies to fat, Internet encourages self-love and the end of suffering caused by useless
diets and treatments to lose weight. These channels are lead by young women who are
supposed to have learned to like themselves and to overcome issues such as prejudice,
lack of accessibility and representativeness. Some bloggers already add up to hundreds
of thousands of followers and have achieved good advertising contracts thanks to their
power of influence on social networks. A good part of this positive discourse is fashion,
which already sees in people considered to be overweight an important lode for
business. The so-called fashion plus size, as the segment was named, today moves the
fashion industry more than any other, and already has events, parades, stylists and own
models, all increasingly sought after. Even in the face of this new scenario in relation to
obesity, is it possible to imagine that the changes have come to stay? This paper
discusses a bit of the history of the fat body and the building of beauty standards, as
well as the paradigms that social networks and mass culture are helping to break down
by proposing the notion that it is possible to have extra kilos and be beautiful and, above
all, happy.
Introdução ....................................................................................................................... 3
Capítulo 2 – Gordofobia............................................................................................... 38
4.4 - Obesidade e saúde nos blogs (ou: “dos meus exames entendo eu, OK?”) ... 99
1
Capítulo 5 - Surge um novo padrão de beleza? ........................................................119
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Introdução
É possível que, ao ler essas linhas, o leitor tenha imaginado uma reportagem de
TV, semelhante as quais estamos habituados a ver todos os dias no noticiário. Seja qual
for o tema, os gordos são mostrados andando nas ruas, sentados para comer ou andando
com dificuldade. Raramente são entrevistados, o que costuma acontecer com médicos
ou especialistas. Os gordos não têm rosto: são sempre filmados do pescoço para baixo:
barriga, quadris, coxas grossas.
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Mas quem é aquela mulher gorda que caminha apressada rumo ao trabalho? E o
rapaz que acena para o ônibus e sobe nele com dificuldade? E a garota que inicia a
quinta dieta de sua vida, dessa vez com a meta de caber no vestido de noiva dos seus
sonhos?
Essas pessoas têm mostrado que têm rosto, sim. E voz. E vontades. Além de
tudo, que são muitas. Tantas que são responsáveis por uma conquista importante que
vem acontecendo nos últimos anos: sua visibilidade. Ao mesmo tempo em que
proliferam métodos dos mais diversos e revolucionários para a perda de peso, nunca se
falou dos gordos de forma tão branda, até mesmo positiva. Setores que nunca os
consideraram como clientes ou público-alvo, como a cultura pop, o design e até mesmo
a moda, hoje os incluem e criam produtos específicos. Se antes era preciso ser jovem,
bonito e magro para ser admirado, hoje esta última qualidade não chega a ser uma
exigência absoluta. Em alguns países, como o Reino Unido e os Estados Unidos, essa
visibilidade, que vem sendo tratada como movimento, foi batizada de fat pride (orgulho
gordo).
Como o nome sugere, o orgulho parte dos próprios obesos, que se unem em
grupos de defesa, associações e outras formas de apoio mútuo. A mobilização em prol
do reconhecimento de direitos sociais se dá juntamente com a de outras minorias, como
no caso dos homossexuais, das pessoas com deficiência, dos negros etc. A
movimentação é no sentido do “direito a ter direito”, o que não se limita apenas a
conquistas legais e que tragam igualdade entre os indivíduos – o direito à diferença,
aliás, é fundamental para a construção da base dessa nova noção de cidadania. Além
disso, a frequente divulgação de casos de discriminação e até mesmo bullying
(gordofobia, como vem sendo chamado) praticado em escolas ou ambiente de trabalho
tem estimulado debates acerca da necessidade do respeito à diversidade.
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Esse tom mais amigável em relação ao corpo vem sendo incorporado pela mídia,
que aos poucos abre espaços cada vez maiores aos obesos até mesmo onde antes eles
não eram muito bem-vindos, como nos editoriais de moda das revistas femininas. Até
pouco tempo atrás, o que se via no mundo da moda eram roupas de corte grosseiro, sem
tendências juvenis, com estampas e modelagem que não valorizavam as formas das
mulheres. Mesmo as jovens não tinham opção a não ser modelos geralmente
desenhados para senhoras. Durante décadas, o público jovem que estava acima do peso
sofreu com a indiferença do mercado de moda, que não tinha interesse em associar sua
marca a um estilo de vida indesejado. Contudo, as reivindicações por mais
representatividade das minorias contribuíram para que o mercado passasse a incluir
pessoas com sobrepeso. O que contou mais, sem sombra de dúvida, foi o poder
aquisitivo dessa população cada vez mais numerosa. Para incentivar o crescimento
dessa nova categoria de mercado, ela foi batizada de plus size.
O conceito plus size vai muito além do que sugere sua tradução, “tamanhos
grandes”. Trata-se sobretudo de uma nova atitude em relação ao próprio corpo, que
convida mulheres que já não veem sentido em dietas milagrosas ou regimes restritivos a
celebrar a beleza “real”, ou seja, o corpo como ele é. Na moda, isso se traduz em peças
que valorizam as curvas, a cintura, os decotes ou alguma outra característica marcante
do corpo. Com autoconfiança e a certeza de estar se sentindo bonita, a mulher assume
uma postura mais ativa em sua profissão, seus papeis sociais e sobretudo na sedução.
Agora, conhecendo melhor seu corpo, ela tem mais domínio sobre seus atributos e sabe
tirar proveito deles, ao invés de tentar esconder ou cobrir o que sempre foi considerado
uma “imperfeição”.
Seja a partir de uma abordagem voltada para o sensual, para a moda ou para a
geração de novos empreendimentos, é notável que, aos poucos, o plus size vem
deixando de ser tratado como nicho reduzido ou sem importância. Basta um passeio por
qualquer rua de comércio popular para perceber que o termo já foi incorporado pelas
confecções e que as próprias consumidoras já se sentem encorajadas a entrar nas lojas e
pedir, no seu tamanho, os mesmos modelos que veem as celebridades vestindo.
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obesidade representa um desafio para os meios de comunicação, que não sabem como
abordar uma questão por tanto tempo vista apenas pelo viés da saúde ou da estética,
quando não da economia. Resta, então, aos blogs e sites a missão de abrigar e produzir
um conteúdo mais livre, capaz de se dirigir aos seus leitores com menos ou nenhum
atrelamento a patrocinadores ou outro tipo de interesse.
4 https://blogmulherao.com.br/
5 https://juromano.com/
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temporal foi de janeiro de 2010, ano em que o termo plus size já alcançava certa
visibilidade, a julho de 2017, prazo que estipulei como final para a pesquisa. Um dos
critérios de escolha se deu em razão da popularidade e audiência deles, considerados
referência no segmento. Em cada um, foram estudados padrões e referências que
permitam identificar o discurso dirigido e relativo à mulher plus size. O conteúdo
retirado dos blogs ajuda a exemplificar e corroborar o que aponta a teoria aqui
apresentada.
6 https://grandesmulheres.com.br/
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dona que em 2017 ela o rebatizou com seu próprio nome, Ju Romano. No Facebook,
sua página tem mais de 100 mil curtidas e cerca de 99 mil seguidores8 .
Por fim, o Grandes Mulheres chama a atenção pela forte carga emotiva. Sua
criadora, a jornalista Paula Bastos, fala muito de moda e beleza, e com frequência o
tema passa a ser alguma experiência pessoal. As leitoras costumam se identificar com
seus relatos sobre relacionamentos amorosos fracassados, a baixa autoestima, a
espiritualidade e a busca pelo autoconhecimento. A sinceridade com que a autora expõe
suas fraquezas pode não atrair tanta publicidade como acontece nos outros dois blogs,
mas ela é referência quando se fala em levantar bandeiras plus size ou reivindicar
melhor tratamento aos gordos por parte das confecções, da mídia, do setor da saúde e
outros. Tanto é que, dos três, é o que tem maior audiência: sua página no Facebook tem
mais de 720 mil curtidas e 713 mil seguidores9 .
Cabe aqui a colocação de que o prazo de sete anos (janeiro 2010 - julho 2017)
para análise dos blogs foi suficiente para que eles, a exemplo do que ocorreu com o
próprio mercado plus size, passassem por transformações profundas. No caso de Juliana
Romano, por exemplo, seu blog cresceu a ponto de seu próprio nome ser o título, e não
mais Entre Topetes e Vinis. A blogueira passou a anunciar uma série de marcas de
roupas e produtos de beleza, além de, como veremos adiante, ser capa de revista de
moda. O Mulherão passou por transformação parecida; o blog de Renata Vaz serve
como veículo para o anúncio de marcas de roupas e também de sua própria grife, a
Maria Abacaxita, criada em 2015. Já o blog de Paula Bastos, embora divulgue marcas e
eventos, parece não ter crescido a ponto de mudar suas características iniciais.
A observação dos blogs logo revelou que eles têm como temas principais Moda,
Saúde e Autoestima, que abrigam boa parte dos textos publicados pelas autoras. Em
cada uma deles, foram estudados padrões e referências que permitam identificar o
discurso dirigido e relativo à mulher plus size. Coincidentemente, são temas que
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aparecem na mídia tradicional com frequência quando são debatidas questões ligadas à
obesidade. Nesta pesquisa, ilustro o referencial teórico com trechos retirados dos blogs,
o que dá uma medida, ainda que breve, de como as blogueiras enxergam assuntos que
muitas vezes foram considerados tabus para pessoas tidas como acima do peso. A
observação de fotos e ilustrações que acompanham o post tem importância para o
estudo, até por legitimar o que as palavras afirmam. Além disso, cabe a observação de
que muitas vezes as próprias autoras dos blogs posam para fotos quando abordam moda
ou beleza. Esta pesquisa, portanto, levará em consideração os códigos transmitidos
pelas imagens: comportamento, sensualidade, autoestima etc. Para dar suporte teórico a
essas indagações, recorro a autores como Claude Fischler e Jean-Pierre Poulain, entre
outros.
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Capítulo 1 - Corpo, beleza e saúde: da Antiguidade à contemporaneidade
Havia ainda, na Idade Média, a noção de que as mulheres eram mais volúveis,
fracas e suscetíveis a esse pecado; por isso, eram alvo quase que obsessivo da Igreja –
no século XIII, por exemplo, foi excepcionalmente alto o número de jovens mortas
devido à pouca ingestão de alimentos. Nos últimos séculos do período medieval, o
discurso clerical já abordava a fraqueza feminina pela comida, em especial pelo sabor
doce. As mulheres eram acusadas de se dedicar excessivamente aos confeitos, bolos,
frutas cristalizadas e outras iguarias – uma imprudência que poderia trazer
consequências para seus maridos. Os doces eram tão associados ao universo feminino
que
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“mancha de vinho” ou mesmo “inveja”. A literatura médica da França do século XVI
chega a citar marcas de nascença que ora têm a forma de uma uva, ora de uma cereja, de
um figo ou de um melão (QUELLIER, 2011:174).
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que evocam a “força desmedida” dos homens ou a “beleza tenra e bela da mulher
gorda” (VIGARELLO, 2012:22).
São raros os relatos dos séculos centrais da Idade Média em que o gordo é objeto
de insulto ou escárnio. Apesar disso, inevitavelmente a aparência maciça trazia
comparações com animais, e a própria voracidade do glutão era, por vezes, alvo de
comentários pejorativos. A voracidade do glutão era a tradução perfeita da perda do
controle do corpo e do distanciamento do que era tido como boas maneiras. A ânsia de
comer chamava mais atenção do que o peso. Ou seja: o abuso, a transgressão da norma
e a atitude em relação à comida eram mais graves do que as características físicas, o que
nos leva a concluir que o aspecto moral do ato de comer superava aspectos ligados à
aparência. O gordo não poderia chamar tanto a atenção, como ocorreria mais tarde,
devido a essa ascendência da moralidade. Trata-se de
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dos gordos. O recato e a moderação no comer e beber eram recomendações fortes para
as mulheres florentinas desde sua infância até a velhice. O comportamento à mesa
demonstrava toda a moral da mulher, desde os seus modos até a qualidade e quantidade
do que comiam. Era altamente recomendado que comessem pouco e não tagarelassem à
mesa (QUELLIER, 2011:184). No caso das noivas, o banquete de casamento era a
ocasião ideal para mostrar publicamente que seriam boas esposas, honestas, reservadas
e pudicas fugindo dos excessos na comida e na bebida.
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a gordura. Começa a se delinear outro ideal de corpo, contido, refinado, esbelto”
(ELIAS, 1990:4). Por toda a Europa, começa a estabelecer-se a importância da
disciplina dos comportamentos individuais, sobretudo os relacionados à alimentação. Os
novos padrões corporais atestam o triunfo do espírito. O exagero no comer favorecia a
doença, diminuía as forças e deixava os homens inúteis para as atividades da sociedade,
além de ser uma ofensa a preceitos religiosos e diminuir a capacidade para o
matrimônio (ELIAS, 1990:515).
Até o século XVIII, o que se entendia por dieta ainda estava centrado em ideias
de alimentação e vida saudáveis, chegando a ser tema de discussões não só na medicina,
mas também na filosofia e na política. Afinal, prezar pela própria saúde compreendia a
moralidade, o autocontrole, o dever cívico, a consciência de si e o equilíbrio
(FOXCROFT, 2014:53). Esse truísmo do período clássico, em que a dieta de um
indivíduo tinha impacto em toda a sociedade, é algo relevante ainda hoje, época em que
as dietas parecem estar mais associadas ao culto de celebridades – cuja vaidade e luxo
eram objeto de advertência dos gregos – do que à saúde de fato (FOXCROFT, 2014:53).
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A gordura ainda é um mistério para a medicina dos séculos XVI e XVII. Pouco
se progride em relação aos conhecimentos sobre sua composição, suas causas e
tratamentos. Em compensação, ela é cada vez mais observada. Trata-se de uma
observação meticulosa, baseada em medições, pesos, cálculos e comparações – estamos,
afinal, no Iluminismo. Pela primeira vez elaborou-se uma correspondência numérica
entre estatura e peso, o que antes era feito apenas de forma intuitiva. Além disso, surgiu
a noção de diversas gradações para uma mesma estatura, que indicava níveis mínimos,
intermediários e máximos de gordura. Quatro patamares foram estabelecidos no final do
século XVIII:
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Ao longo daquele século, a medicina foi se diversificando em especialidades, o
que resultou em uma abordagem mais científica das dietas. À medida que se descobria
mais sobre o funcionamento do aparelho digestivo ou do sistema endócrino, novos
tratamentos contra a obesidade eram propostos.
Nos anos 1920 e 1930, ser gordo era algo que chegava a ser pecaminoso,
especialmente para os países recém-saídos da Guerra. Perder peso era uma indicação de
força, tanto física quanto mental, já que exigia autocontrole, determinação e
autovigilância. Tudo isso era muito valorizado em tempos de escassez, quando
armazenar comida era visto como crime – armazenar no corpo era igualmente
condenável. Tanto é que as crianças que viveram durante esses anos eram encorajadas a
limpar o prato até o último pedaço ou gota de molho, hábito que marcou toda uma
geração pela vida inteira (FOXCROFT, 2013:140).
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Atualmente, os padrões são obrigatórios e voltados para o corpo todo: além da
magreza, cresce a pressão para que o corpo seja alterado tecnologicamente. A pressão
não se restringe mais à alimentação e à atividade física; agora, o corpo perfeito é aquele
que traz silicone nos seios, que passou por lipoaspiração, lipoescultura e outros
procedimentos para seu aperfeiçoamento.
O que vemos hoje é uma forte pressão disciplinadora para que o corpo seja
constantemente transformado. Cuidar, modificar e aperfeiçoar a plástica é parte de um
projeto referenciado não só à saúde, mas também e principalmente à felicidade e à
realização pessoal. Nesse sentido, as publicações femininas são importantes
disseminadoras de que a imagem precisa se ajustar às normas contemporâneas de saúde
e beleza.
O corpo ideal ocupa posição de destaque entre as questões que nos atingem neste
início do século XXI. Saúde perfeita, aparência jovem, beleza conforme os padrões e,
principalmente, a magreza são hoje desejo e objeto de consumo. Esses atributos são
veiculados na mídia, prometidos pela medicina e vendidos por uma indústria cada vez
mais influente e poderosa. Não por acaso, o corpo concentra discursos dos mais
variados, que vão do estilo de vida às questões de gênero. Essa multiplicidade de temas,
no entanto, é uma via de mão dupla: ao se submeter às mais diversas influências, o
corpo também influencia a dinâmica geral da sociedade. A contemporaneidade,
caracterizada pela fragmentação de ideologias e de relacionamentos, vive uma grande
valorização da aparência e da postura corporal. Os modos de vestir e as práticas
corporais sofrem influências como pressões de grupo, propaganda, recursos
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socioeconômicos e outros fatores que promovem mais a padronização do que a
diferença individual. De acordo com o contexto social e cultural em que o indivíduo se
insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual se constrói a relação com o mundo.
Através do corpo, o sujeito apropria-se da substância da sua vida e a traduz para os
outros. O corpo simboliza a sociedade e, em variadas proporções, reproduz os poderes e
a estrutura que a compõem. Nos contextos de formações sociais mais complexas, em
que há desigualdade entre as relações estabelecidas, o corpo acaba por tornar-se objeto
de “adestramento” a fim de que adquira e expresse características impressas por grupos
hegemônicos e seus interesses. A isso refere-se Michel Foucault quando fala das
práticas disciplinares, métodos que terminam por automatizar movimentos, posturas,
gestos etc, permitindo o controle das operações do corpo para otimizar seu rendimento,
controlar suas vontades e submetê-lo politicamente conforme interesses. Observamos
isso na prática no caso de operários que utilizam máquinas, por exemplo. Eles devem
adequar seus corpos às exigências dessas máquinas e ao ritmo de produção desejado. Já
em situações de lazer, como dança ou prática de algum esporte, a maneira como esse
mesmo corpo é utilizado muda radicalmente.
É o que afirma Breton quando diz que, antes de qualquer coisa, a existência é
corporal. “Emissor ou receptor, o corpo produz sentidos continuamente e assim insere o
homem, de forma ativa, no interior de dado espaço social e cultural” (BRETON,
2012:08). O autor comenta que, atualmente, o homem é “produto” do corpo, uma vez
que estamos submetidos ao que ele descreve como supremacia de um imaginário
biológico em que as diferenças sociais e culturais perdem importância para sinais
físicos, como cor da pele, altura e peso. São estabelecidos padrões de beleza e saúde, e
tidos como marginais os que não se encaixam neles.
Marcel Mauss, no pioneiro ensaio “As técnicas corporais”, lançou bases para
reflexões aprofundadas sobre o corpo, buscando compreender como os seres humanos,
em suas mais distintas sociedades, servem-se de seus corpos. O autor observou que cada
formação social tem hábitos peculiares, o que significa uma imensa variedade de
“técnicas corporais” - uma série de atos que fazem parte da constituição do indivíduo
desde toda a sua educação até a sociedade da qual ele faz parte e o lugar que ele nela
ocupa (MAUSS, 1974:218). É na transmissão dessas técnicas de geração para geração
que o homem se distingue sobretudo dos animais, segundo Mauss; essa transmissão
constitui um ato tradicional e eficaz, sendo feita principalmente por forma oral. Não se
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trata de educação ou simples imitação, mas de um verdadeiro processo de adestramento
e adaptações do corpo às variadas técnicas. Assim, podemos concluir que o uso que
fazemos do corpo em diferentes atividades não é algo simplesmente natural ou
espontâneo, mas principalmente cultural. Para o autor, o uso do corpo combina
elementos biológicos, psicológicos e socioculturais, quase sempre sem que tenhamos
consciência disso.
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É a partir do início do século XX que o corpo se torna o centro de uma série de
discursos que vigoram até os dias de hoje. Para a cultura e a ciência ocidentais, o corpo
é uma das peças principais de nossa civilização. As cirurgias plásticas, a clonagem, a
manipulação genética e todas as possibilidades de mudar ou mesmo criar um corpo são
indicativos do quanto essa civilização acredita estar avançando rumo à perfeição física.
Essa almejada perfeição reúne atributos como saúde, juventude eterna e beleza
ideal. Se normalmente criticamos pessoas que passam por cirurgias plásticas excessivas
ou sem necessidade, por exemplo, precisamos nos ater ao fato de que, julgamentos à
parte, elas estão inseridas em uma cultura dominante, na qual as representações do
humano, do corpo e do progresso da ciência estão inscritas. Neste início de século XXI,
o corpo é representado como expressão perfeita da evolução – o corpo do homem é a
imagem de sua cultura (NOVAES, 2010:20). Portanto, mesmo que o homem se conceba
livre e autônomo, seu próprio corpo está inserido em uma rede de simbolismos
relacionados aos mais diversos grupos, classes sociais e outros elementos (tempo,
espaço, linguagem etc), de forma que ele não pode escapar dessa ordem de significações
mais ampla. O corpo responderá a essas demandas da vida social por meio de gestos,
sentimentos ou sensações. Para Novaes, “é essa subordinação relativa à ordem social
que dá ao corpo a possibilidade de ser o suporte essencial à vida do sujeito, sem que a
vontade deste seja, constantemente, convocada para todas as manifestações da vida
cotidiana” (NOVAES, 2010:35). Podemos, ainda, pensar o corpo como uma construção
social tal como a linguagem ou o pensamento, e sua elaboração depende da forma como
vê e é visto na sociedade, ou seja, é resultado de um reflexo mútuo.
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estão fragmentados. Essa dissolução do terreno sólido traz um sentimento de estar à
deriva, em que vários pilares do humano acabam sendo questionados: questões de
gênero, papel da família, casamento, uso da tecnologia, radicalismos políticos,
instituições, identidade nacional etc. Nesses contextos frágeis e de grandes indagações,
o corpo torna-se uma mercadoria. Novaes sugere que a degradação desses pilares da
vida em sociedade pode ser um dos fatores relacionados ao recurso da marcação do
corpo como uma gravura de si (NOVAES, 2010:43). Seriam as marcas sociais
autoinflingidas (tatuagens, automutilações, escarificações etc) favorecidas ou geradas
pelos discursos dominantes? Afinal, o aumento dessas práticas nos últimos anos sugere
que elas sejam indicadores subjetivos do discurso social contemporâneo.
A relação entre consumo e corpo não é recente. Desde meados do século XX, a
publicidade e o cinema se empenham em criar e manter corpos que sejam objeto de
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desejo e, portanto, de consumo – geralmente, jovens, magros e sedutores. Trata-se da
aplicação prática daquilo que Marcel Mauss (1974) chamou de “imitação prestigiosa”,
ou seja, a reprodução de corpos e comportamentos considerados exitosos em cada
cultura. Segundo o autor, o corpo é uma construção cultural, que varia conforme cada
sociedade e cada época. Podemos dizer que modelos, atores, esportistas e, mais
recentemente, blogueiros e youtubers se encaixam nesse conceito, uma vez que
inspiram jovens mundo afora a seguir seus hábitos, roupas e estilo de vida. É a
influência deles na construção de identidades e padrões estéticos corporais que
estudaremos neste trabalho.
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uma propensão, mais ou menos marcada, à autodepreciação e à
incorporação do julgamento social sob forma de desagrado do
próprio corpo ou de timidez). (BOURDIEU, 1999:83)
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A oposição gordura versus magreza arraigava-se definitivamente, enfim, como
uma questão de beleza. Se nos séculos anteriores a beleza foi considerada dádiva divina,
agora era não mais a revelação de Deus, mas de si mesmo. O indivíduo do século XX
está interessado nas revelações sobre sua própria consciência. É o início do “triunfo do
eu”, em que a beleza é feita sobretudo de inteligência – é preciso usufruir o avanço das
indústrias e pesquisas na área de cosméticos. Não havia ainda um modelo fixo de beleza
a ser seguido, mas já era preciso ser ou fazer-se belo.
Em um contexto em que a beleza e a forma física não são mais percebidas como
"uma dádiva divina da natureza", mas sim como o resultado do esforço individual, as
pessoas têm responsabilidade por sua aparência. Sant'Anna (1995) observa que na
primeira metade do século XX, Natureza era escrita com letras maiúsculas e era
considerado perigoso interferir no próprio corpo em nome de objetivos pessoais ou
vontades incutidas pela moda.
A passagem do que era considerado boa aparência para padrão de beleza de fato
se dá lentamente, nas primeiras décadas do século XX. O primeiro aspecto de beleza
que desponta é a juventude. Se nos séculos anteriores as rugas por vezes eram tidas
como sinal de maturidade e austeridade, a partir dos anos 1920 elas já não são mais
desejáveis. A indústria de cosméticos a todo instante lança cremes, loções e outros
produtos que prometem acabar com o problema. Com isso, ganha força o culto à
juventude – e, como não se pode parar o tempo para que ela dure eternamente, deve-se
ao menos fazer esforços para se parecer jovem (BERGER, 2006:79). Outra
característica corporal considerada bela e associada à juventude é a magreza. Um corpo
jovem e magro é leve, ágil e agora livre, já que dispensa o uso de espartilhos e
modeladores. Como apontam Del Priore e Freire:
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moderna, desembaraçada do espartilho e ao mesmo tempo de
sua gordura decorativa. (DEL PRIORE E FREIRE, 2005:221).
A autora afirma, ainda, que a partir de meados do século XX a mulher feia era
criticada por não saber cuidar bem de sua aparência. “Mas não se sabe ainda aquilo que
nos anos 60 se descobre: desde então, se dirá que uma mulher é feia porque, no fundo,
ela não se ama.” (2005: 128). Temos, portanto, mais um fator para corroborar a ideia de
que a beleza ou a feiura são qualidades que dependem de merecimento, ou seja, do
esforço individual – e isso contempla, principalmente, a vaidade e a autoestima. Agora,
já não basta ser bela: é preciso também ser feliz, ou, ao menos, transparecer felicidade.
Revistas como Jornal das Moças ainda colaboravam com a identificação do que
seria a essência feminina (casamento, maternidade e tarefas domésticas, basicamente) e
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sua contrapartida, a masculina, baseando-se em uma ideia predeterminada de diferença
de gênero. Isso era feito com a indicação de brinquedos “próprios” para meninas e
meninos por especialistas, por exemplo, o que mostra como as publicações reproduziam
a mentalidade da época e contribuíam para moldar o que se acreditava ser um simples
destino. Porém, como afirma Carla Pinsky (2014), para além do que seriam as
“determinações da natureza”, existem regras sociais e modelos que devem ser aceitos a
fim de que esse “destino feminino” se cumpra adequadamente. O Jornal das Moças e
outras revistas recomendavam que as mães preparassem suas filhas para que fossem
boas mães e donas de casa exemplares, além de recatadas e bem comportadas. Já os
meninos podiam crescer com mais liberdade, sendo incentivados em seus interesses por
esportes e carros, vistos como “próprios” do sexo masculino. Assim, diz a autora, “os
limites da masculinidade e da feminilidade reservam quase sempre imagens de força e
iniciativa para o homem; doçura, passividade, ‘instinto maternal’ e sentimentalismo
para a mulher” (PINSKY, 2014:51). Os considerados “incontestáveis papeis femininos”
eram muito enfatizados, especialmente quando se referiam às jovens. O casamento era
visto como a porta de entrada para a realização dos ideais de feminilidade, o que exigia
que as moças fossem educadas de forma a não se desviarem desse caminho e não
escaparem do futuro reservado à mulher.
10 Cabe aqui a ressalva de que os estudos de Perrot referem-se a mulheres francesas; devido à lacuna de
pesquisas com enfoque nos trópicos, levaremos suas observações em consideração, mesmo porque a
influência da moda, da literatura e das artes na Europa era muito marcante por aqui no período estudado
(séculos XIX e XX).
28
autora continua dizendo que, então, as feias caem em desgraça, até que chega o resgate:
todas as mulheres podem ser belas.
29
Sant’Anna lembra que, nessa nova abordagem das revistas dos anos 1950, “as
regras de beleza prescritas pelos médicos e moralistas das décadas anteriores se
tornam insuficientes, austeras e ultrapassadas” (SANT’ANNA, 2005:128). Desde
então, a beleza passa a ser vista como uma conquista. Os produtos, antes confundidos
ou mesmo tratados como remédios, agora adquirem outro poder, graças à publicidade.
Cremes, loções e itens de maquiagem recebem uma roupagem que os torna capazes de
influenciar o psiquismo das mulheres, deixando-as bonitas e satisfeitas com elas
mesmas. A publicidade abandona a imagem da mulher sofredora e os anúncios passam a
dar cada vez mais destaque às imagens do que ao texto. “O importante é ressaltar a
imagem da mulher bela, que, desde então, ousa reinar sozinha, em fotografias
coloridas, ocupando páginas inteiras de revistas, sem tristeza e, sobretudo, sem
passado” (SANT’ANNA, 2005:129). Com tudo isso, parecia não haver mais segredos
de beleza, já que tudo passava a ser acessível às mulheres. Não só as da elite tinham
acesso a perfumes, cosméticos e outros produtos – agora, esses itens estavam ao alcance
de secretárias, professoras, funcionárias públicas e donas de casa. Também não havia
mais um momento específico para se tornar bela; era preciso fazê-lo cotidianamente, em
um esforço frequente contra a feiura. Assim, em meados do século passado, recusar o
embelezamento era uma negligência feminina, algo que deveria ser combatido.
Ao mesmo tempo, a ascensão dos esportes e da moda feminina fazem com que o
corpo seja mais exposto, e, portanto, mais visado do que a roupa. Pouco a pouco, o que
está ou não na moda é o próprio corpo, e não a vestimenta. Enquanto a moda se
pluralizava em estilos e tendências, o corpo se fixava em um modelo único, o magro.
Tal padrão foi se tornando cada vez mais exigente ao longo do século XX, década após
década, o que se observou também nas artes plásticas e no design modernistas.
Doravante, era preciso ser magra, juvenil, conhecer e gostar do próprio corpo. E
mais: era necessário não apenas ser, mas “sentir-se bela” (SANT’ANNA, 2012:119). A
magreza na moda teve como uma das pioneiras a britânica Twiggy, que apareceu nas
páginas da Vogue em 1965, mesmo ano do lançamento da pílula anticoncepcional.
Como muitos símbolos do mito da beleza, ela era ambígua, sugerindo às mulheres a
liberação da obrigatoriedade da reprodução de gerações anteriores já que a gordura na
mulher é categoricamente compreendida pelo subconsciente como uma sexualidade
fértil (WOLF, 1992:244).
Naomi Wolf, autora do clássico feminista O Mito da Beleza, afirma que as dietas
e a magreza são preocupações “criadas” a fim de reprimir as mulheres. Diz a autora:
“quando as mulheres invadiram em massa as esferas masculinas [no período da Grande
Guerra], esse prazer teve de ser sufocado por um urgente dispositivo social que
transformaria os corpos femininos nas prisões que seus lares já não eram mais”
(WOLF, 1992:244).
Toda essa preocupação (ou obrigação) com a beleza e o peso nos leva crer que,
lembrando o conceito de biopoder e corpos docilizados de Michel Foucault, a balança é
um dispositivo disciplinar da contemporaneidade. A noção de disciplina elaborada pelo
autor é fundamental para o entendimento da questão aqui posta. Em Vigiar e Punir
(1991), ele aponta que uma das características das sociedades modernas é o surgimento
de técnicas disciplinares aplicadas diretamente sobre os corpos, além da descoberta do
corpo como objeto e objetivo do poder. Os chamados dispositivos disciplinares, de
caráter coercitivo e repetitivo, têm a missão de produzir corpos dóceis e obedientes que
podem ser utilizados, transformados e aperfeiçoados conforme a necessidade e o
contexto. Para Foucault, a eficácia desses dispositivos está em que eles não precisam ser
necessariamente impostos por uma autoridade ou instituição, em uma relação vertical
31
descendente: ao contrário, já são incorporados pelo próprio indivíduo, que passava a
exercer um controle e uma vigilância sobre si mesmo.
Mira (2004) observa que os anos 1970 e 1980 trouxeram mais coerção sobre o
corpo. A ditadura da magreza prevalece, mas não basta: é preciso que o corpo esteja em
atividade. O mundo via o crescimento acelerado de práticas corporais como a onda
aeróbica que se popularizou por meio de figuras como o Dr. Cooper e seu método e a
atriz Jane Fonda, responsáveis por uma nova era da disciplina corporal. Vários países
tiveram personalidades que adotaram esse estilo de vida – no Brasil, a atriz Yoná
Magalhães foi a protagonista da ginástica aeróbica, enquanto Ala Szerman, professora
de educação física e empresária foi pioneira em promover a atividade física na televisão,
no programa TV Mulher (TV Globo, 1980-1986). A própria Ala comenta o boom de
academias que o país viveu naqueles anos:
32
Naquela época [anos 1960], as aulas de ginástica eram para a
apresentação, e não para condicionamento físico. O máximo que
se fazia no Brasil era ginástica rítmica. (...) Não havia ainda nas
atividades físicas dos clubes a preocupação com o peso nem
com as medidas harmoniosas do corpo. Dessa forma, quando
abri a minha primeira academia, em 1967, a ideia era justamente
trabalhar a parte estética para deixar as mulheres com corpo de
miss, que era o referencial máximo de beleza da época (...).
Depois de algum tempo, as mulheres que frequentavam a
[minha] academia foram à praia e fizeram uma propaganda
enorme com seus corpos muito bem estruturados, a academia
deslanchou e o movimento começou a crescer. No início, o
nome desse espaço era Lady Ginastic Center, mas alguns anos
depois tive que mudar para Ginastic Center porque os homens,
vendo o resultado que suas mulheres haviam conseguido,
pediram para abrir horários também para eles. (...) Era o
momento certo em termos de mercado. Em pouco tempo já
havia seis unidades do Ginastic Center em São Paulo,
movimentando mais de 12 mil clientes por mês (HERMANN,
2003:104).
33
A academia torna-se um lugar privilegiado para as construções
possíveis do corpo ideal. Com seus métodos precisos, sua
diversidade de aulas, seus aparelhos modeladores, e seus
professores animados, ela pode oferecer diferentes formas para
satisfazer os desejos mais íntimos e massificados.
34
ser gordas, embora apenas 25% delas tivesse de fato excesso de peso do ponto de vista
médico (WOLF, 1992:245).
A teoria de Wolf está baseada em uma construção de ódio a si mesma que foi
imposta à condição feminina, da qual a necessidade permanente de perder peso é uma
das bases. Em relação a essa pesquisa de 1984 da Glamour, Wolf comenta que o mais
doloroso era ver que as participantes escolheram como seu objetivo mais desejado
perder entre cinco e oito quilos em detrimento do sucesso no trabalho ou no amor. Esses
famosos “sete quilos” são, segundo a autora, aproximadamente aquilo que se interpõe
entre as mulheres que não são gordas, mas que pensam que são, e seu ideal. A natureza
desses “sete quilos” seria política e teria o objetivo de gerar culpa nas mulheres quando
comem “demais”. Prossegue a autora:
Parece que se sentir gorda é uma insegurança da qual a mulher nunca se livra,
mesmo quando o peso dela é considerado normal. Mais de trinta anos depois da
pesquisa de Wolf, outro estudo revela que pouco mudou no que se refere às mulheres e
sua percepção de beleza:
35
tempo fazendo dieta. Elas usam vários métodos pouco saudáveis
na tentativa de perder peso: pílulas milagrosas (7,5%), excesso
de atividade física (7%), diuréticos (2,5%), vômitos (1%). Esse
comportamento foi relatado inclusive por mulheres de 75 anos
ou mais.11
36
consumidor, a quem interessa que esteja sempre inquieto e insatisfeito com sua
aparência.
Se por muitos séculos as pessoas foram levadas a acreditar que seus corpos não
lhe pertenciam, hoje são levadas a crer que o corpo é o objeto central da existência e dos
afetos. Como afirma Baudrillard (1991), o culto da higiene, da dieta, da juventude, da
virilidade, feminilidade e outros rituais relacionados ao corpo nos indicam o quanto ele
passou a ser visto como objeto de salvação. Lipovetsky completa, comparando o culto
ao corpo a uma verdadeira religião:
37
Capítulo 2 – Gordofobia
12 Disponível em http://glamurama.uol.com.br/betty-faria-para-a-revista-j-p-sempre-batalhei-para-
nao-ser-uma-velha-gorda/, acessado em 14 de setembro de 2015.
38
incontáveis relatos de mau atendimento em lojas de roupas e bullying em ambiente
escolar ou de trabalho. Atitudes preconceituosas e estigmatizantes são (re)produzidas no
ambiente familiar, na mídia, nos planos de assistência médica, nos relacionamentos
amorosos, no ambiente de trabalho e na interação com amigos, colegas, professores,
chefes e subordinados. Para muitos obesos, o preconceito é parte da vida cotidiana, o
que se agravou nos últimos anos com a popularização das redes sociais – atitudes
gordofóbicas são mais frequentes entre indivíduos que têm acesso a redes como
Facebook, uma vez que elas permitem certo anonimato. Poucos casos chegam a ter
alguma solução ou ser encaminhados para a Justiça. A imensa maioria acaba em
silêncio, o que demonstra o quanto as questões sociais que envolvem a obesidade ainda
são subestimadas.
Num passado não tão distante assim, a figura do obeso era admirada, por ser a
gordura associada à prosperidade e à saúde. O corpo bem feito, forte, com uma
rotundidade razoável, era preferido ao magro, que denotava escassez, fraqueza e
doença. Hoje, a situação se inverteu. A gordura estimula tal repulsa na sociedade
contemporânea que é possível dizer que se trata de um “monstro” moderno. Adotamos,
aqui, a noção de que monstro é definido como algo que foge à norma e afronta, ou
coloca em questão, a norma do humano. Landa, Leite Jr, Torrano afirmam que
39
como ameaça somático-política que atenta contra a crença
sanitário-empresarial da (auto)liderança individual e
comunitária. A volumosidade, flacidez e carnalidade amorfa do
corpo obeso se constituem em marcas somáticas que confessam,
através do registro visual, a transgressão dos cidadãos
biológicos, que se apresentam em sua condição de desvio radical
entre os limites do humano/não humano. (LANDA, LEITE JR,
TORRANO 2013: 94)
40
Vista dessa maneira, a obesidade afeta a vida do indivíduo também em razão de
questões emocionais, como a sensação de humilhação, desmoralização, vergonha ou
deslocamento. A percepção social julga o corpo gordo como resultado da preguiça, do
desleixo, da indisciplina, da improdutividade e da falta de amor próprio e como
contrário a tudo o que se encaixe nos conceitos de saudável e “normal”. Frequentemente
ocorre algo ainda mais grave: o obeso demonstrar olhar preconceituoso e estigmatizante
a seu próprio respeito, utilizando termos e estereótipos em seu discurso. O conceito de
estigmatização difundido nas ciências sociais foi elaborado por Erving Goffman (1963),
que o definiu como um processo que tende a desvalorizar o indivíduo considerado
“anormal” ou “desviante”. Sobre essas pessoas é atribuído uma espécie de carimbo que
realça suas qualidades desviantes em relação aos outros indivíduos supostamente
normais. Esse carimbo passa a justificar, então, uma série de discriminações sociais e
exclusões mais ou menos severas. O indivíduo é reduzido à característica desviante, que
se torna, portanto, um estigma, e suas outras qualidades sociais tornam-se secundárias.
É o que acontece com os gordos: essa característica física prevalece sobre todas as
outras, como altura, sexo, idade, tipo de cabelo etc.
41
que as fazem querer perder peso, como a vontade de agradar aos outros e a si própria,
cuidar do seu grau de sex appeal ou sentir-se mais bonitas. Poulain lembra que, em
números absolutos, diversas pesquisas demonstram que a quantidade de pessoas sem
problemas com peso que se preocupam com sua corpulência e desejam emagrecer é
praticamente a mesma de pessoas clinicamente obesas que precisam, de fato, perder
peso (POULAIN, 2013:119). A luta contra a obesidade passa a ser a luta contra o
sobrepeso, às vezes de alguns poucos quilos, o que pode caracterizar uma obsessão.
Para um bom número de adolescentes ocidentais, aliás, fazer regime – seja qual for seu
peso – faz parte do que se espera de uma mulher. Aderir a uma dieta restritiva é vista
por muitas como um sinal de maturidade.
Os gordos são considerados constantes violadores das regras que dizem respeito
à comida, ao trabalho, ao prazer e ao autocontrole. Uma vez que a divisão da comida
simboliza a essência do vínculo social, o gordo transgride as regras e consome mais do
que sua parte, mais do que o devido. É natural, então, que a sociedade espere uma
espécie de contrapartida disso que o gordo faz em excesso – uma compensação. Mas
quais podem ser os termos de troca? Na falta de força, como no caso dos lutadores de
sumô ou trabalhadores braçais, o gordo pode pagar seu débito com a sociedade sob a
forma de espetáculo e zombaria, o que no mais das vezes ocorre, como é de se esperar,
em seu próprio detrimento. É o caso de atores de circo, de teatro ou de luta livre. Outra
solução seria apresentar a corpulência em atividades cômicas ou espetaculares, como os
atores que constroem personagens baseados na forma física – Oliver Hardy, de O Gordo
e o Magro, ou o Sr. Barriga, da turma do mexicano Chaves, para citar apenas dois
exemplos. Curiosamente, esses personagens são sempre punidos de alguma forma nos
42
episódios, seja com baldes d´água, tijolos na cabeça, tortas na cara, pontapés no traseiro
e outros infortúnios.
Na vida real, a “torta na cara” é o preço a se pagar para não ser rejeitado. Em um
grupo no qual o gordo é a figura desviante, é comum que ele acabe desempenhando
papel particular e representando certas funções bufas, enquanto lhe é negado o respeito
devido aos membros de pleno direito. Sua figura é importante porque conecta os
membros do grupo, mas ele não partilha todo o estatuto. Ele está no centro do grupo,
mas não como líder, e sim como mascote, confidente, figura cômica etc. O preço a
pagar para fazer parte é jamais tornar-se verdadeiramente um membro como os outros
(FISCHLER, 2005:76).
Essa impressão de que o gordo não pode ir além das bordas foi tema de um post
de Renata Vaz, no blog Mulherão. Ela critica o fato de que a modelo Fluvia Lacerda,
uma das mais importantes no mercado plus size, tenha aparecido na Playboy apenas na
chamada “edição de colecionador”, virtual, e não nas bancas, como costuma acontecer
com demais modelos e personalidades que posam para a revista.
43
mídia, mas na hora de vender a revista nas bancas, colocam a
magra. MAGRA! Pufavô, né? Uma legítima cafajestagem.
Isso reforça o que nós, mulheres gordas, estamos cansadas de
saber. A gorda é para se ver escondida. A gorda é a amante, a
que o cara só pode desejar, namorar e amar quando ninguém
estiver por perto. Quanto mais discreto, quieto, escondido,
melhor. Já a magra é aquela que ele desfila por aí, sem medo,
sem vergonha, casa, apresenta para o chefe, para os amigos. A
Playboy reforçou isso, todo esse preconceito. Não foi bonito.
Foi escroto. 13
Figura 1: A modelo plus size Fluvia Lacerda, capa da “ Playboy Verão 2017”, de dezembro de
2016, uma edição especial para colecionadores. Fonte:
<http://ego.globo.com/famosos/noticia/2016/12/playboy-divulga-capa-com-modelo-plus-size-
fluvia-lacerda.html (último acesso: 1º de agosto de 2017).
13 Disponível em http://blogmulherao.com.br/28177/gorda-na-capa-da-playboy-e-uma-farsa-e-reforca-o-
preconceito/, acessado em 1º de julho de 2017.
44
2.2 - A (in)visibilidade do obeso
Até pouco tempo atrás, a distinção entre robustez e obesidade era mínima. Hoje,
chegamos a ter várias denominações para quem tem excesso de peso, como magro,
gordinho, robusto, gordo, obeso, obeso mórbido etc. Os nomes seguem critérios muitas
vezes subjetivos, que variam conforme o apreço pela pessoa, a aparência, a idade e
outros fatores. De qualquer forma, afirma Fischler, “era preciso sem dúvida, no
passado, ser mais gordo do que hoje para ser julgado obeso e bem menos magro para
ser considerado magro” (FISCHLER, 2005:79).
A julgar pelo que é veiculado na mídia, nosso dia-a-dia não é receptivo ao corpo
gordo. Ele não cabe, é ultrajante e, contraditoriamente, visível e invisível. Apenas as
pessoas esteticamente perfeitas são “aptas” a ter histórias de amor e relações sexuais
satisfatórias. A moda, os esportes, o sucesso profissional e o reconhecimento público
são geralmente reservados aos magros. São raras as ocasiões em que gordos, feios,
pessoas com deficiência ou velhos aparecem nessas situações. Nosso imaginário não
está habituado a ver os feios vivendo esse tipo de realização, o que nos leva a associar a
magreza à beleza e a glorificar a “tríplice aliança” formada por magreza, sucesso e
felicidade. Sem apresentar esses quesitos, a tendência é o indivíduo sofrer
marginalização ou mesmo exclusão.
Desde cedo aprendemos que os corpos revelam suas posições nas diversas
camadas da sociedade, de forma que eles são fundamentais para o estabelecimento da
vida social e política. Nossas interações dependem das ações, reações e
posicionamentos de nossos corpos. Alguns chegam a ser mais públicos e sujeitos à
avaliação visual, como no caso de artistas e celebridades, enquanto outros estão sujeitos
a olhares críticos de acordo com o sexo, a etnia, a idade, a classe social e outras
variáveis. A gordura se apresenta, então, como um paradoxo, pois ao mesmo tempo em
que é indiscutivelmente visível, é também invisível devido à marginalização que sofre,
especialmente no caso das mulheres.
45
magros e perfeitos nas revistas, no cinema e na mídia em geral. Para a autora, ser
hiper(in)visível significa que algumas vezes a pessoa pode chamar muito ou nada de
atenção, o que pode, estranhamente, ocorrer ao mesmo tempo. As mulheres gordas são
hiperinvisíveis em suas necessidades e seus desejos e hipervisíveis na medida em que
seus corpos ocupam mais espaço físico do que outros e são alvo de julgamentos sociais
muitas vezes severos.
Gailey aponta para o que ocorre com os corpos marginalizados, que não são
simplesmente invisíveis ou alvo de pouca atenção; muitas vezes, são completamente
apagados ou descartados. Ela ilustra a ideia com entrevista feita com uma
afrodescendente americana de 35 anos:
46
conversas amigáveis enquanto pagava algo no caixa ou com
alguém que cruzasse pelo caminho. Já durante minha fase mais
gorda, no final dos meus 20 anos, eu pensava: “sou a pessoa
mais gorda aqui e ninguém está me vendo de verdade”. É como
ser invisível, as pessoas olham através de você. Os caixas sequer
olham para seus olhos quando falam com você. Agora, com o
maior peso que já tive, é como ser descartada. Você é descartada
antes mesmo que sua presença seja notada (2014:12). 14
Depoimento semelhante foi descrito por Novaes, que entrevistou uma mulher
que havia passado por cirurgia bariátrica:
Três dias antes de operar tive uma crise e quase não operei.
Liguei chorando para minha amiga Odete, que também operou
com o P., e disse: Odete, pra que eu vou operar, só para os outros
me tratarem melhor? Ou seja, vão me abrir, me mexer toda por
dentro, vou me arriscar a morrer, para que os outros me tratem
de uma maneira diferente? Será que isso vale a pena? O pior é
que vale... Nada supera você virar uma pessoa a quem os outros
consideram normal (2006:184).
14 “During my teenage years when I was not as heavy, people spoke to me in public, they were
nice. You could get friendly conversation out of a cashier or a passerby. During my heaviest and my late
20s, it was like, I know, I´m the biggest person in here yet nobody actually sees me. It´s almost like being
invisible; people look right through you. Cashiers don’t even look you in your eyes when they speak to
you. Now, at my heaviest, no; it´s like dismissive; you´re just dismissed before you can even make your
presence known” (tradução livre)
47
- o indivíduo vê-se então reduzido ao seu estigma e suas outras
qualidades sociais tornam-se secundárias;
- a etiqueta justifica uma série de discriminações sociais;
- o estigmatizado interioriza a desvalorização;
- o estigmatizado considera justificados os julgamentos que lhe
são atribuídos e a armadilha se fecha sobre ele. (apud
POULAIN, 2013: 117)
48
possível dizer que a obesidade pode ser considerada, nas sociedades ocidentais, uma
verdadeira deficiência social. A autodesvalorização e o ostracismo social consequentes
da estigmatização têm grande impacto sobre o sucesso ou o fracasso escolar e
profissional do indivíduo. Eles afetam, também, a socialização alimentar e o
estabelecimento de categorias cognitivas e de esquemas comportamentais utilizados
durante toda a vida (POULAIN, 2013:119).
49
da estética da magreza, o casamento parece ser uma verdadeira ‘estação de triagem’,
orientando as mulheres magras para cima da escala social e as gordas para a parte
mais baixa”, diz Poulain (2013:122). Essa constatação se encaixa na descrição que
Goldenberg faz do corpo como “capital”:
17 Disponível em http://www.clicrbs.com.br/especial/rs/bem-estar/19,0,3118385,Maioria-dos-
homens-nao-se-casaria-com-parceiras-acima-do-peso.html, acessado em 23 de novembro de 2010.
50
impacto negativo para as mulheres. Para eles, estar em situação de obesidade está
associado a um prêmio de probabilidade de emprego de 2,2 pontos percentuais,
enquanto para elas a mesma condição está associada a uma penalidade na probabilidade
de emprego de 4,3 pontos percentuais (TEIXEIRA E DIAS, 2011:206). Existe, assim,
relação muito forte entre a corpulência e a dinâmica da renda pessoal, bem como entre a
corpulência e o sentimento de melhoria ou de degradação da situação profissional.
51
setor. Estudos mostram que, a cada 1% de redução no peso, na pressão arterial e nos
níveis de glicose, há uma economia entre US$ 83 a US$ 103 em despesas médicas por
pessoa19 . Uma pesquisa feita pelo Ministério da Saúde e ANS (Agência Nacional de
Saúde Suplementar) revelou que a proporção de obesos entre usuários de planos de
saúde chegou a 17% em 2015. No total, o índice de usuários que estão acima do peso
ideal chega a 52,3%. Em 2017, quando a pesquisa foi divulgada, 47,5 milhões de
brasileiros tinham plano de saúde. Havia, então, quase 1.500 programas de prevenção e
promoção à saúde sendo ofertados no país, por 379 das operadoras - equivalente a 34%
do total. Em 2010, eram apenas 82 programas nos mesmos moldes 20 . Alguns desses
programas premiam com bônus, bolsas, ingressos de cinema e até notebooks os usuários
que se comprometem a incorporar hábitos saudáveis no dia a dia, o que inclui também a
maior frequência na realização de exames preventivos21 .
52
penalidade parecida aos funcionários fumantes-que têm que
pagar US$ 2.000 a mais pelo plano de saúde22 .
Duas hipóteses podem explicar essa relação. Segundo Jennifer Shinall (2015),
pesquisadora da Vanderbilt Law School, nos Estados Unidos, a primeira é que os
trabalhadores obesos parecem evitar certas ocupações que o excesso de peso torna
difíceis. Por parte dos empregadores, isso exigiria compensações diversas para que o
funcionário pudesse exercer suas atividades sem qualquer prejuízo. A segunda hipótese,
53
muito mais provável, é a de que o custo de um empregado obeso é mais alto para as
empresas. A obesidade pode baixar a produtividade de um funcionário ou exigir que o
empregador busque compensações para adaptar o ambiente e equipamentos ou outros
benefícios, sem mencionar a maior frequência de faltas e licenças médicas.
54
Capítulo 3 - Mudanças no posicionamento do mercado em relação às mulheres
consideradas gordas
Caso deseje ser bela e atraente, a mulher precisa, em primeiro lugar, estar dentro
do peso ideal. Ou precisava: ao menos na ficção, cada vez mais, seriados, novelas e
filmes trazem atrizes e modelos gordas como protagonistas ou em papeis de destaque,
nos quais, assim como a heroína, podem viver romances e ter sucesso em suas
atividades. No mundo real, revistas femininas já incluem com mais frequência tamanhos
maiores em editoriais de moda e eventos como os concursos de beleza plus size
sugerem que é possível ser bonita e sedutora também em trajes íntimos ou moda praia,
tidos como tabu para mulheres acima do peso.
Se, por um lado, a pressão pelo corpo ideal é alimentada pela sociedade de
consumo, por outro, é visível que algo vem mudando, como uma espécie de reação, no
que diz respeito às pessoas consideradas acima do peso. Ao longo da última década,
espaços que sempre fecharam as portas a esse público, como a mídia e a moda, já o
veem com mais interesse.
Da mesma forma que acontece com termos como “obeso” e “acima do peso”, o
plus size não pode ser medido em termos absolutos. Há, também, grande incoerência no
uso do termo por parte das confecções e da indústria da moda em geral. Nas agências de
modelos, o corpo plus size tampouco segue medidas estabelecidas, muito embora seja
comum ver que mulheres aparentemente magras são encaixadas no segmento. Ou seja:
o corpo dessas modelos é muito menor do que o corpo que circula pelas ruas e para o
qual os fabricantes de roupas desse mercado produzem peças. A própria tabela de
55
tamanhos considerados plus size é bastante ampla, o que, além de dificultar a
padronização, abre nichos dentro de um próprio nicho. Uma rede de lojas pode trabalhar
do manequim 42 ao 48, enquanto outra vai do 44 ao 60, por exemplo.
56
também o aumento da obesidade na população brasileira (mais da metade é considerada
acima do peso, como visto anteriormente) e a maior exigência das consumidoras gordas
em relação às roupas que consomem: querem mais qualidade nos tecidos, nos cortes,
estampas etc. É isso o que chama a atenção do mercado: as mulheres tidas como acima
do peso passaram a ser reconhecidas e transformadas em consumidoras que não querem
apenas roupas para vestir, mas para se sentir na moda, bonitas e bem consigo mesmas.
Ao que tudo indica, a estratégia de ver os consumidores gordos com outros olhos
tem dado bons resultados. Nos Estados Unidos, por exemplo, o aumento de peso da
população foi apontado como uma das melhores apostas para revigorar negócios que
estiveram em crise nos últimos anos. Apenas entre abril de 2009 e abril de 2010, por
exemplo, o nicho plus size cresceu 1,4% no país, ao passo que a moda em geral baixou
0,8% no mesmo período23 . No Brasil, o setor cresce em média 10% ao ano e só
começou a ganhar força nos últimos cinco anos. Calcula-se que sejam cerca de 200 as
confecções nacionais especializadas em tamanhos grandes24 , que vendem seus produtos
em cerca de 300 lojas físicas e aproximadamente 60 virtuais 25 . Apenas em roupas
femininas, o segmento plus size brasileiro fechou o ano de 2015 com faturamento de
mais de R$ 6 bilhões26 . Em 2016, só na capital paulista, o segmento movimentou no
varejo cerca de 200 milhões de reais, um aumento de aproximadamente 11% em relação
ao ano anterior, um feito e tanto em momentos de crise. No país, o comércio de
vestuário no geral evoluiu apenas 1,3% no mesmo período27 .
O impacto que esses números têm causado no varejo é visível. As lojas que
ofereciam alguns itens em numeração maior já não deixam essas araras tão escondidas e
outras, que sequer pensavam no segmento plus size, hoje já são referência. É o que
acontece com algumas lojas de departamento, como Marisa, Riachuelo e Renner – esta
27 Revista Veja São Paulo, ano 50, n.º 11, 15 de março de 2017.
57
com uma marca própria, Ashua, que comercializa peças exclusivamente online. Mesmo
redes varejistas como Extra e Carrefour contam com estilistas em suas equipes, que
captam tendências e desenham peças exclusivas para tamanhos maiores. Se no comércio
mais popular o termo plus size já é bem conhecido, as marcas mais sofisticadas não
ficam para trás. Muitas já deixaram de lado o próprio preconceito de atrelar sua imagem
às pessoas gordas. A polêmica com a americana Abercrombie foi um marco nesse
sentido – em 2014, o então CEO da marca, Mike Jeffries, declarou que queria que suas
roupas só fossem usadas por “gente bonita”, de forma que sequer fabricavam peças nos
tamanhos G ou GG28 . A declaração gerou uma onda de protestos em vários países, além
de boicote à marca por parte de artistas, celebridades e ativistas de movimentos
antigordofobia. Agora, a percepção geral no mundo da moda é de que se trata de um
mercado bastante promissor. Em 2016, a marca de itens esportivos Nike já havia
surpreendido o público ao anunciar a venda de artigos para mulheres plus size.
Camisetas, tops, leggings, shorts e blusões com tecidos tecnológicos voltados para
diferentes práticas esportivas, que raramente iam além do tamanho M, agora estão
disponíveis nos tamanhos G, GG e GGG. A nova linha vem sendo anunciada por
algumas das blogueiras de moda plus size mais famosas do mundo29 , o que rompe um
paradigma que opunha esportes e pessoas gordas.
58
mudanças, acompanhadas de divulgação, campanhas de propaganda, eventos, desfiles e
outros itens antes vistos apenas na moda convencional, já não são mais “adaptados” aos
tamanhos maiores, e sim concebidos de forma a atender esse segmento de mercado. Isso
já é visível e já ocasiona mudanças em alguns setores mais tradicionais, que agora
reconhecem esse público como rentável ou merecedor de um pouco mais de atenção.
59
Mira, a Azul era uma editora menor, que seguia uma lógica diferenciada das revistas
segmentadas: menor tiragem, públicos e anunciantes específicos e mercado mais
instável. Nas palavras da autora,
Os títulos que a Azul lançou em poucos anos conseguiu fazer dela a segunda
maior editora do país em número de títulos. Nos seus dois primeiros anos de existência,
ela incorporou dez novos títulos. Tudo isso só foi possível porque a editora conseguiu
explorar variáveis importantes: a faixa etária e a classe socioeconômica do leitor.
Muitos dos títulos eram voltados aos jovens, responsáveis por uma verdadeira explosão
no mercado editorial em meados dos anos 1980-1990. Acompanhar de perto a
transformação nos relacionamentos entre gerações e nos conceitos de masculinidade e
feminilidade também conduziu a sucessos editoriais no período.
60
mídia impressa em geral diminuiu diante das infinidades de possibilidades, abordagens,
enfoques e personalidades do mundo virtual.
61
transformaram-se em algo mais descentralizado, baseado em pensamentos e relações
que não têm, obrigatoriamente, conexão entre si. Relações pessoais de amizade ou
intimidade sexual, por exemplo, são, na modernidade, meios de estabilizar laços sociais,
função que outrora cabia à família. Já o ambientes de risco, para Giddens, na pré-
modernidade cabiam às ameaças da natureza (desastres naturais, epidemias etc), às
guerras e suas consequências (pilhagens, bandidos e afins) e a influências religiosas
malignas. Na modernidade, as ameaças partem da violência humana derivada da
industrialização da guerra e da falta de sentido pessoal, resultante da reflexividade da
modernidade enquanto aplicada ao eu (GIDDENS, 1990).
Existe, para Hall, uma instabilidade do homem em conhecer seu “eu”, o que
resulta nessa crise. O autor distingue três concepções de identidades que integram as
discussões dos teóricos sociais: o sujeito do Iluminismo, baseado em uma concepção
individualista, de identidade centrada, unificada e contínua; a do sujeito sociológico,
para quem a identidade é formada na interação entre o “eu” e a sociedade; e o sujeito
pós-moderno, conceitualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou
permanente. Ele considera que as identidades são constituídas a partir de práticas de
significação, produzidas em locais históricos e institucionais específicos. Não haveria,
portanto, uma identidade plenamente unificada, completa e segura – isso seria uma
fantasia. Ao invés disso, sustenta, “à medida que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade
desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com as quais poderíamos nos
identificar a cada uma delas – ao menos temporariamente” (HALL, 2012:12).
62
Algumas dessas identidades existentes em cada um de nós podem ser, inclusive,
contraditórias, empurrando-nos em diferentes direções e deslocando continuamente
nossas identificações. Não temos uma identidade unificada desde o nascimento até a
morte – se alguns assim consideram, é meramente porque construíram uma narrativa
confortadora de si. A identidade, diz Hall, é realmente algo formado ao longo do tempo,
por meio de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no
momento do nascimento. Ela está sempre incompleta, em constante processo de
formação. Diz ou autor: “a identidade surge não tanto da plenitude da identidade que
já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é 'preenchida'
a partir de nosso exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por
outros” (HALL, 2012:24).
63
menores que não se sentem à vontade para serem assimilados por outros maiores, como
no caso dos brasileiros e latinos que vivem nos Estados Unidos, por exemplo. Além
disso, a produção da diferença nunca se estabiliza. Para cada signo produzido como
diferente, agentes sociais o fragmentam e produzem novos, criando ciclos incessantes
de produção da diferença. Isso se dá, segundo o autor, “porque classe não define o ser
social, tampouco a etnia, e os indivíduos veem suas práticas atravessadas por múltiplos
condicionamentos sociais, cujos impactos nessas práticas também são múltiplos”
(NICOLAU NETTO, 2017:55).
64
size, mas de mulheres gordas e negras. Ou gordas e lésbicas. Ou, ainda, gordas, negras e
lésbicas, e assim por diante30 .
Foi o que aconteceu, no Brasil no fim dos anos 1990. Além de Barbara, dirigida
a mulheres na faixa dos 40 anos, houve lançamentos de títulos para homossexuais
masculinos e pessoas de terceira idade, entre outros, até então carentes de produtos
específicos. Na segunda metade daquela década, em função da estabilidade econômica e
dos ganhos efetivos que se seguiram ao Plano Real (1994), o mercado de revistas lançou
diversos produtos voltados às mulheres de camadas mais pobres, como AnaMaria,
Viva!Mais ou Minha Novela. Entre 1996 e 2002, o montante de exemplares vendidos no
país passou de 300 para 600 milhões, para o que foi decisiva a contribuição dos
periódicos de baixo custo (LUCA, 2012:462). Também observamos, desde então, uma
miríade de propostas que tentam seguir a mudança no perfil da leitora desse novo
Brasil: Marie Claire, para a mulher “inteligente”, “sofisticada” e com alto poder
aquisitivo; Elle, que confere especial destaque à moda; ou TPM, para as mais
“antenadas” e identificadas com estilos de vida alternativos, por exemplo.
65
Posto que é mercadoria, a revista deve apresentar-se como algo capaz de
interessar e satisfazer as necessidades de possíveis consumidores. Projeto gráfico,
diagramação, dimensões, conteúdo, linguagem, capa, colunistas, periodicidade. Enfim,
cada aspecto de sua produção deixou de ser fruto do trabalho do editor ou de ensaios
ocasionais e passou a ancorar-se em resultados de pesquisas e sondagens, que definem o
público e ajudam a convencer os anunciantes, que deverão se valer de suas páginas para
atingir os consumidores desejados. Trata-se de tendência mundial observada na
multiplicação de títulos licenciados no mercado brasileiro.
Para a autora, é justamente essa diferença, em seus vários aspectos, que merece
atenção, pois novos segmentos passaram a compor o leque de preocupações dos
editores: meninas muito jovens, de 9 ou 10 anos, por exemplo, e as mais pobres. Assim,
algumas revistas trazem subtítulos, como “Viva!Mais – para a mulher que quer vencer”
e se apresentam como instrumentos úteis para o cotidiano, trazendo, por exemplo,
sugestões para garantir ou aumentar a renda, como a confecção de doces, salgados e
produtos artesanais.
66
portanto, têm de seguir uma fórmula que funcione. Eles não têm a possibilidade de
arriscar a fornecer o que muitas leitoras supostamente desejam: imagens que as
representem, artigos que não imponham regras, análises de consumo confiáveis e
produtos de acesso democrático. Muitos editores alegam que isso é impossível porque
as leitoras ainda não querem essas características “o bastante”, ou seja, ainda não houve
grandes reivindicações ou mostras de que um produto diferente teria mesmo boa
receptividade.
67
dessa tendência de comportamento e passou a lançar um olhar diferente para leitoras
que até então eram invisíveis: gordas, maduras, negras, homossexuais etc.
Teve então início uma onda de “realidade” nas revistas, na publicidade e demais
produtos midiáticos. O grande marco desse movimento foi, sem dúvida, a campanha da
Unilever para a linha Dove, em 2004. Ao mostrar mulheres que desviam da magreza,
juventude, cor de pele e cabelo tão padronizadas pela moda, a marca não só aumentou
seu faturamento como se tornou referência no meio publicitário, recebendo uma
infinidade de prêmios mundo afora31 .
Desde então, tipos que fogem do padrão de beleza ocidental, como as negras,
orientais e de meia-idade, têm sido cada vez mais vistos na mídia. No caso de
cosméticos antiidade, por exemplo, a presença de modelos com mais de 40 anos nos
comerciais é uma estratégia bem recebida pelas consumidoras. A tese é de que há mais
identificação com a marca, o que favorece as vendas.
68
De fato, nos últimos anos, diversas publicações têm se preocupado em fugir de
padrões estéticos. Em 2009, a revista americana Glamour publicou a foto de uma
modelo nua com a barriga saliente32 . A imagem ganhou repercussão internacional
positiva, o que levou a revista a preparar uma edição temática em cuja capa apareciam
várias modelos plus size, todas igualmente nuas. Da mesma forma, a Vogue Italia, em
junho de 2011, optou por uma edição especial com modelos mais gordas 33 . Em
dezembro de 2016, foi a vez da Playboy brasileira dar sua primeira capa com uma
modelo gorda, Fluvia Lacerda, conhecida como “Gisele Bündchen plus size” no
mercado de moda34 . Diante do bom retorno das leitoras e do mercado publicitário,
diversas outras publicações passaram a incluir modelos plus size nos editoriais de moda
ou indicar peças e acessórios de tamanhos maiores, na tentativa de ampliar o público-
alvo e, consequentemente, a circulação.
34 A capa com a modelo Fluvia Lacerda não foi a da revista impressa, distribuída em bancas, e sim
a de uma versão digital da mesma edição, sem chamadas ou código de barras e à venda exclusivamente
pelo site de Playboy. Informação disponível em <http://www.playboy.com.br/2016/12/fluvia-lacerda-
uma-capa-bombastica-para-os-colecionadores/>. Acesso em: 29 de julho de 2017.
69
Figura 2: As modelos plus size Tara Lynn, Candice Huffine e Robyn Lawley na capa da Vogue
Italia, em junho de 2011. Fonte:
<https://i.pinimg.com/originals/10/1e/7f/101e7f79518c79816e5c308ff0cc072e.jpg> (último
acesso: 17 de janeiro de 2018).
Além de revistas, o tema “corpo real” ganhou espaço em outros tipos de mídia,
especialmente as redes sociais. Com apoio de atrizes de Hollywood, alguns manifestos
acabaram por se tornar sites ou mesmo grupos de apoio e incentivo ao amor próprio.
Um dos casos mais conhecidos é o da atriz britânica Kate Winslet, que já falou
abertamente sobre a pressão pelo corpo perfeito no meio cinematográfico – ela chegou a
ser criticada pelas formas que exibiu nua ao aparecer nos filmes “Titanic” (1997) e “O
Leitor” (2008). Outro grande motivo de polêmica em seu discurso é a condenação de
imagens alteradas em softwares a fim de eliminar imperfeições, o que, além de deixar o
corpo irreal, às vezes o torna irreconhecível. Além de Winslet, outras atrizes,
personalidades e até mesmo modelos vêm levantando a bandeira de corpos “naturais”,
“reais” e, principalmente, “felizes”.
70
Johansson e Oprah Winfrey sem maquiagem e sem retoques. No Brasil, a revista
Glamour também mostrou famosos como Sabrina Sato e Valeska Popozuda do jeito que
acordam e lançou campanha para que as leitoras publicassem fotos de rosto lavado. Há
quem pense, no entanto, que tudo isso é algo passageiro:
71
rastafári, a de meia-idade, a mestiça de índios, a de traços exóticos e a gorda – esta, a
única a posar seminua, coberta parcialmente por um sobretudo. Trata-se da blogueira
Juliana Romano, cuja foto, aliás, foi capa da edição virtual da revista. Todo o conteúdo
foi celebrado na imprensa feminina em geral e bastante comentado pela ousadia do
protagonismo de corpos raramente vistos em editoriais de moda. Finda a leitura dos
textos que exaltam os diferentes tipos de beleza, entretanto, fica a sensação de que esse
posicionamento não passou de algo pontual na pauta de Elle. Nos anúncios – e revistas
de moda trazem anúncios na maioria das páginas –, o que se vê é o repertório habitual:
jovens na faixa dos 20 anos, magras, loiras, de cabelo liso, olhar sensual e lábios
entreabertos anunciando roupas, perfumes, joias, acessórios e outros produtos de grifes
nacionais e estrangeiras. A ousadia ficou restrita a um discurso que “inclui sem incluir”,
ou pelo posicionamento editorial ou pela falta de interesse de anunciantes.
Figura 3: A jornalista e blogueira Juliana Romano, capa da edição de Elle (maio/2015), que
celebra os diferentes tipos de beleza. Fonte:<Imagem disponível em:
<https://juromano.com/moda/plus-size-na-elle-brasil-de-maio-com-gorduras-e-sem-photoshop-
sim-sou-eu>. (último acesso: 3 de agosto de 2017).
72
gente” nas bancas. A mesma Elle, em sua versão francesa, publicou, em meados de
2009, capas com a atriz italiana Monica Bellucci e a modelo tcheca Eva Herzigova,
ambas já na faixa dos 50 anos, sem maquiagem ou retoques digitais nas fotos. O Brasil
reverberou essa tendência na revista feminina mais tradicional e de maior tiragem no
país: Claudia, da Editora Abril36 . Em agosto de 2010, a capa foi a modelo e atriz Luiza
Brunet, que já havia posado diversas outras vezes para a revista. A novidade ficou por
conta da legenda que a acompanhava: “Luiza Brunet, 48 [anos], sem Photoshop. Isso
que é mulher de verdade”. A ênfase na ausência do Photoshop foi explicada e
comemorada na apresentação da revista. Com o título “Nós, mulheres, e os retoques”, a
então diretora de redação, Cynthia Greiner, conta que o ensaio fotográfico já havia sido
feito quando os profissionais de arte gráfica deram-se conta de que a beleza de Brunet
dispensava tratamento digital. Além disso,
36 Segundo o Instituto Verificador de Circulação (IVC), em 2008 a tiragem média de Claudia foi
de 412 mil exemplares mensais.
73
risco para qualquer publicação sob o ponto de vista financeiro, mesmo que a intenção
seja oferecer um produto inovador.
Correr esse risco, ao que tudo indica, foi opção descartada por CLAUDIA. A
edição seguinte, de setembro de 2010, trazia Claudia Raia na capa, outra celebridade
com mais de 40 anos. Apesar do sucesso e dos elogios que as leitoras fizeram à capa de
Brunet, dessa vez não houve qualquer menção à idade ou à aparência natural de Raia.
Ficam então dúvidas e surgem hipóteses: a leitora quer mesmo ver a aparência real das
pessoas que admira? As artistas e celebridades estão dispostas a se mostrar por inteiro?
As revistas temem perder leitores? Que pensam os anunciantes?
Edições como essas da Elle e Claudia ainda não são comuns em nossa imprensa
feminina e parecem restritas a edições temáticas ou de aniversário. Se a beleza vai além
da aparência, como exaltam, ela ainda está presa às cifras. Pelo simples fato de a
indústria de cosméticos e produtos de toalete ser a que mais anuncia nesta mídia
impressa em comparação a outros segmentos, as publicações dirigidas às mulheres têm,
inevitavelmente, uma espécie de relação de simbiose em sua linha editorial. Ao veicular
anúncios de produtos de beleza, a revista deixa de ser independente em suas opiniões
74
sobre esse produto e seu fabricante, ou seja, passa a ser, em algum grau, censurada
(MARCELJA, 2012:59).
Uma das formas mais marcantes dessa censura não é a simples ausência de
mulheres mais velhas, gordas, negras etc, mas a forma como elas são mostradas quando
aparecem. Comemora-se que mais mulheres gordas têm aparecido em revistas
femininas. Porém, as fotos quase sempre são de close do rosto ou de algum ângulo que
as “favorece”. Foi o que aconteceu com a atriz americana Melissa McCarthy, capa da
Elle de novembro de 2013. A revista costuma trazer três opções de capa, prática que
também já é adotada por publicações brasileiras. As atrizes Reese Whiterspoon e
Shailane Woodley eram as outras opções para as leitoras. Enquanto estas apareciam com
decote ousado, vestido justo ou maiô, McCarthy vestia um sobretudo folgado que a
cobria do pescoço aos pés, sem revelar suas formas38 . Algo parecido ocorreu com
Gabourey Sidibe. Estrela do filme “Preciosa” (2009), a atriz é negra e obesa mórbida.
Por conta do sucesso do filme, ela foi convidada, juntamente com outras três atrizes de
sucesso, a estampar a capa da edição dos 25 anos de Elle, em meados de 2010.
Enquanto Megan Fox aparecia de corpo inteiro em pose sensual, Gabourey ocupou toda
a capa só com o rosto. A revista ainda foi acusada de ter supostamente clareado a pele
da atriz com retoques digitais, o que gerou repercussão bastante negativa 39 .
75
Muito se fala e se critica a respeito da “ditadura” do Photoshop. Na verdade, o
software apenas deu mais luz a algo que já vinha sendo praticado há anos. Bem antes
dos computadores se tornarem ferramentas essenciais dos estúdios de fotografia – o que
ocorreu a partir dos anos 1980 –, os profissionais já lançavam mão de truques para
aprimorar as imagens, como reduzir ou aumentar partes do corpo, uniformizar e/ou
clarear o tom de pele, manchas, marcas e linhas de expressão, entre outras alterações
possíveis. No estúdio, as modelos tinham de estar bem penteadas e maquiadas e
expostas a luzes de efeito calculado, o que não deixa de ser uma espécie de filtro.
Depois dos cliques feitos, muitas vezes havia retoques em cima da chapa ou do filme,
feitos com pinceis ou lápis. Os protestos contra o Photoshop, usado no mais das vezes
com o mesmo propósito de corrigir imperfeições, foram motivados por frequentes
abusos que chegavam a distorcer proporções do corpo humano. Em 2009, uma modelo
apareceu em anúncio da grife Ralph Lauren com a cabeça mais larga do que os
quadris40 . No Brasil, a cantora Preta Gil foi garota-propaganda de uma linha de roupas
plus size da C&A em campanha bastante criticada. Na ação, que divulga uma linha
própria da marca para mulheres de manequim entre 46 e 56, Preta aparece com a pele
embranquecida e o corpo remodelado digitalmente – a forma da sua cintura, por
exemplo, varia de uma foto para outra. Em nota, a empresa negou o uso do Photoshop e
declarou que se tratava apenas de um ou outro ângulo da cantora que dava a impressão
do uso excessivo de retoques41 .
76
Capítulo 4 – Blogs: entretenimento ou informação?
O sucesso de sites e redes sociais também está ligado à possibilidade que esses
formatos têm de ocupar lacunas e espaços criados à medida que as oportunidades
surgem, permitindo, assim, uma variedade grande de temas e enfoques. Bom exemplo
disso são os blogs, surgidos nos primeiros anos do século XXI. O nome “blog” vem do
inglês “web + log”, ou seja, uma contração de “web” (rede, do original World Wide
Web, sinônimo de Internet) com “log” (endereço ou registro). Ou seja, é um endereço
na Internet em que é possível expor opiniões, sentimentos, experiências, notícias e uma
variedade enorme de assuntos. A estrutura do blog permite a atualização rápida a partir
de acréscimos dos chamados artigos, ou posts. Estes, em geral, têm temáticas
77
específicas e podem ser escritos por uma ou mais pessoas. Um blog típico
combina texto, imagens e links para outros blogs, páginas da web e mídias relacionadas
a seu tema. A capacidade de leitores deixarem comentários de forma a interagir com o
autor e outros leitores é uma parte importante de muitos blogs.
Paula Sibilia (2016) atribui a cada vez maior popularidade de blogs (assim como
outras redes sociais) ao uso de imagens. A autora afirma que as câmeras digitais, que
permitem fazer fotos e vídeos de forma imediata e barata, sem a necessidade de
revelação em papel, são responsáveis por um fenômeno que une visibilidade e conexão.
78
Não por acaso, hoje chega a ser inconcebível que um tablet, notebook ou celular seja
vendido sem câmera – que, muitas vezes, é projetada especialmente para selfies, os
famosos autorretratos.
Hellen Tavares lembra que, apesar de serem conhecidos como “diários virtuais”,
os blogs não devem ser considerados como tal. Existe, sim, forte personalização de seu
conteúdo, mas o veículo serve, sobretudo, como forma de apropriação do ciberespaço
como modo de expressão da identidade de seus autores. A maioria dos blogs são
informais, sem formatação ou o que se chama na imprensa de “linha editorial”: são
escritas livres, puramente autorais. Para a autora, “os blogs são compreendidos como
um componente cultural, já que os textos e sua constituição são capazes de revelar as
facetas do modo de vida cotidiano, ou seja, um certo ethos contemporâneo, assim como
representações de seus corpos e identidades” (TAVARES, 2016:11).
É preciso fazer aqui uma ressalva: nem todos podem ser quem quiserem no
ambiente virtual, uma vez que o acesso às tecnologias digitais ainda está longe do
alcance de boa parte da população de países de Terceiro Mundo. No Brasil, segundo
pesquisa TIC Domicílios 2016, divulgada pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil
(CGI.br), por meio do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da
Sociedade da Informação (Cetic.br) do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto
BR (NIC.br), 54% das residências brasileiras estão conectadas à internet (36,7 milhões).
O acesso à rede está mais presente em domicílios de áreas urbanas (59%) e nas classes
A (98%) e B (91%)42 . Entre a população situada na classe C, o percentual dos que
79
acessam a internet, seja pelo smartphone ou computador, chega a 69% 43 . As residências
das classes D/E conectadas à internet são 23%, enquanto aquelas em áreas rurais
chegam a 26%. No total, o Brasil conta com 107,9 milhões de usuários de Internet. As
atividades realizadas na rede mais mencionadas foram o envio de mensagens
instantâneas (89%) e uso de redes sociais (78%)44 .
Uma das características dos blogs é a de explorar temas e nichos que são pouco
encontrados na mídia tradicional. Além disso, sua versatilidade permite abordagens
pouco comuns ou mesmo inéditas nos veículos de comunicação. Apenas o tema beleza,
80
por exemplo, engloba tipos físicos, cortes de cabelos, maquiagem, moda, unhas,
acessórios, sapatos, tons de pele, faixas etárias e uma infinidade de outros subtemas,
que, igualmente, permitem uma infinidade de enfoques. Essa pluralidade de temas
possíveis revelam os blogs como espaços para debates amplos e variados, além de
propiciar visibilidade política e social. Além disso, eles não sofrem tanto com controle
de informações. A virtualidade do ciberespaço permite a prática da liberdade de
expressão e representação, sem que haja controle como nas demais mídias, como
jornais, revistas, rádio ou televisão.
81
A falta de tempo, de disposição, de atenção, de foco, de disponibilidade, de
hábito ou mesmo de vontade são motivos que levam as pessoas a, cada vez mais,
preferir textos leves, curtos e superficiais, nos quais muitas vezes a reflexão não tem
espaço. O baixo nível de exigência dos leitores acarreta também uma desvalorização da
experiência dos mais velhos e do saber acumulado ao longo dos anos, que são
considerados “analógicos” em meio a tanta tecnologia de última geração. Além disso, o
hábito de ler ou se informar junto com outras pessoas ou membros da família vem
perdendo espaço a cada lançamento de smartphone. Não há mais o costume de assistir a
programas ao redor da televisão; às vezes, cada membro da família tem seu próprio
aparelho no quarto. Os fones de ouvido, por sua vez, fizeram do hábito de ouvir rádio
ou música algo particular. Os computadores, que antes eram de uso comum, agora já são
particulares. Com isso, a produção de conteúdo também mudou; são muito mais
estimulados os aspectos audiovisuais do que a leitura em si. “Enquanto um livro requer
uma leitura cúmplice e responsável, uma leitura interpretativa, o filme ou a televisão
mostram-nos as coisas já prontas”, explicava Umberto Eco em 2005, ainda no início da
explosão do uso dos blogs e redes sociais (apud SIBILIA, 2016:72).
82
4.1 – Os blogs plus size
Até o final dos anos 2000, os blogs que tratavam do universo de tamanhos
grandes eram quase sempre mantidos e visitados por pessoas consideradas acima do
peso, como uma espécie de mundo à parte. A grande maioria está baseada em
mensagens positivas, que incentivam a autoaceitação. Outra característica em comum é
que muitos nasceram a partir da necessidade das autoras de se sentirem bem consigo
mesmas e de compartilhar experiências. Os assuntos iam de beleza e dietas a sexo e
relacionamentos, com textos que sugeriam que os obesos poderiam ser vistos como
pessoas satisfeitas com sua própria condição física. A visibilidade veio um pouco mais
tarde, no final da década, em articulação com o mundo da moda. Foi quando se
popularizaram os lookbooks, tipo de blog em que jovens exibem as roupas e os
acessórios que usam a cada dia. Com isso, um público ávido por consumir, porém
marginalizado pelo mundo fashion, provou que também podia estar à frente de
tendências de moda e comportamento. Não demorou para que grifes e grandes lojas
norte-americanas e europeias se dessem conta de que estavam perdendo oportunidades
de negócio e começassem a pensar em oferecer produtos para esses consumidores.
Atualmente, marcas de roupas chegam a patrocinar premiações para esses blogs
temáticos e grandes eventos, como feiras e desfiles, contam com eles para sua
divulgação.
Sabe-se que tanto as imagens como os textos dos blogs fornecem elementos
subjetivos que influenciam e instigam a escolha por determinados produtos ou serviços.
O discurso, ou seja, o texto escrito do post, revela detalhes pessoais e íntimos das
autoras, opinião, dúvidas, sugestões e questões próprias do universo feminino, que têm
como função tecer o laço emotivo com o público-leitor.
83
De acordo com Raquel Recuero (2009), os aspectos dinâmicos das redes
contribuem para a percepção das alterações pelas quais ela passa diante dos contextos e
das interações dos atores que a constituem. Para entender o fluxo de informações que
circulam nelas, é preciso entender também os valores percebidos nos sites de redes
sociais e as conexões estabelecidas entre os atores em cada um desses espaços. Segundo
ela, o capital social pode influenciar a difusão da informação a partir do momento em
que se considera que as redes sociais são constituídas de atores sociais, “com interesses,
percepções, sentimentos e perspectivas” (RECUERO, 2009:117). Dessa forma, é feita
uma conexão entre o conteúdo publicado na Internet e a forma como seus amigos,
leitores e audiência em geral percebe essa informação. Diversas pesquisas já apontaram
a relevância do conteúdo publicado por alguns blogueiros na decisão do que outros
publicam. Da mesma forma, os comentários enviados pelos leitores costumam ser
relevantes na escolha do que o autor coloca no ar. Ou seja, como conclui Recuero, parte
da percepção de valor na atividade dos blogs pode estar na percepção dos comentários
recebidos e do feedback de sua audiência.
O sucesso dos blogs de moda, beleza e estilo pode dar a impressão de já ter
chegado ao seu limite e parecer mais uma moda passageira. No entanto, uma pesquisa
84
feita pela Collective Bias, uma grande empresa americana de marketing digital, revelou
o contrário. De acordo com os 14 mil adultos consultados por eles em março de 2016,
apenas 3% responderam que comprariam produtos endossados por celebridades,
enquanto 60% afirmaram que já foram influenciados por resenhas em blogs ou posts em
redes sociais desses “digital influencers”. O estudo ainda mostrou como os meios
tradicionais de publicidade estão passando por uma crise. Os participantes citaram as
propagandas em televisão, mídia impressa e anúncios digitais como os menos efetivos
na hora de suas compras, mas declararam que costumam consultar blogs em seus
celulares e tablets dentro das lojas antes de adquirirem algum produto45 .
Em geral, é possível dizer que a característica comum aos blogs plus size é o
discurso motivacional. Contando a própria história ou de outras mulheres, mostrando
lançamentos de moda ou comentando sobre algum item de maquiagem, os blogs
tornaram-se referência para uma parcela da população que já consumia tudo isso, sem
ter, porém, produtos especificamente desenvolvidos para ela. A identificação com as
autoras e com as demais leitoras, que passam pelas mesmas situações, traz o sentimento
de pertencimento e reforça o empoderamento. É justamente ao expressar sua opinião,
expor fatos de sua vida, seus dramas e sua individualidade que as blogueiras conseguem
a empatia e a admiração das leitoras. Paula Bastos, do Grandes Mulheres, é a que mais
costuma expor seus sentimentos e usar o blog como ferramenta para o
autoconhecimento. É frequente que ela o use para desabafos sobre dias em que se sente
feia, solitária ou triste. Muitas leitoras escrevem, nos comentários, que os textos as
ajudam a se aceitar como são, a encarar a vida e a se sentirem incluídas em uma
sociedade que as julga pela aparência. Na sequência, Paula comenta a repercussão, o
que faz seu blog ter uma característica de “bate-papo” mais marcante do que nos outros
dois aqui estudados.
85
a troca de confidências. Já nos anos 1930 essa fórmula foi sucesso estrondoso nas
publicações voltadas às mulheres, como lembra Evelyne Sullerot:
Muitas vezes os blogs mantêm diálogos e fazem referências uns aos outros, o
que parece indicar uma rede não só de informação como de apoio. Outra característica
comum é que as blogueiras são as próprias modelos das peças de roupa que divulgam.
Juliana Romano, do Entre Topetes e Vinis, aparece também em sugestões de penteados e
maquiagem. Os blogs, portanto, são centralizados nas figuras de suas próprias autoras,
que compartilham não só o que vestem, mas também sua individualidade, experiências
pessoais, profissionais, amorosas e emocionais.
Embora a temática seja a moda e seus usos, a distinção entre os blogs está na
abordagem, no enquadramento, na construção do texto e no sentido da mensagem. A
questão que se impõe para os estudiosos dos fenômenos da comunicação e da sociologia
do consumo é compreender de que forma o discurso das blogueiras influencia leitoras e
consumidoras. Além disso, tendo mais visibilidade, as plus sizes podem chamar a
86
atenção de diversos outros segmentos de mercado, ganhar espaço na mídia e até mesmo
propor novos padrões de beleza. Assim sendo, de que modo tal discurso se relaciona
com a construção de identidades?
Para as mulheres vistas como acima do peso, a relação com o mundo da moda
foi, por muito tempo, alimentada pelos sentimentos de rejeição, exclusão e isolamento,
já que são raras as marcas e confecções que fabricam peças em tamanhos maiores.
Muitas acabavam deixando para segundo plano seu estilo e suas preferências devido à
impossibilidade de se expressar no modo de se vestir.
Essa lacuna é uma das maiores queixas dos blogs analisados. O Mulherão
frequentemente reclama das poucas marcas que de fato se dedicam ao mercado plus
size. Para sua criadora, Renata Vaz, a moda não se restringe à aparência, mas abrange,
principalmente, a personalidade:
87
conseguimos transformar em estilo, com muita graça e à
primeira vista, aquilo que antes ficava escondido: a nossa
essência.46
88
A moda é um tema singular que centraliza diversas tensões da vida social. Ela é o
resultado da necessidade de diferenciação das classes superiores e da necessidade de
imitação de outras classes. Por estar no cerne das tensões da dinâmica social e por
contribuir para a sua solução, a moda funciona como uma lente de aumento para os
fatos sociais em vez de ser mero fenômeno superficial relacionado ao vestuário.
Compreender a moda é, portanto, compreender a mudança social, uma vez que “a moda
é elemento essencial na construção identitária dos indivíduos e dos grupos sociais”
(GODART, 2010:33). Ao interagir com diversos outros campos culturais, a moda
proporciona aos grupos e aos indivíduos instrumentos para que eles construam suas
identidades. A moda e a aparência são dois fatos sociais muito próximos, porém
distintos. Esta influencia muitos e diversos aspectos da vida dos indivíduos, inclusive
determinando seu sucesso e fracasso independentemente dos contextos sociais, culturais
e econômicos, mas pode ser modificada conforme os movimentos da moda e a
mensagem que se deseja transmitir. Já a moda se manifesta no espaço intermediário
entre o indivíduo e a sociedade. É a partir da escolha de roupas, acessórios e cortes de
cabelo, por exemplo, que os indivíduos reafirmam constantemente sua inclusão ou
exclusão em certos grupos sociais, religiosos, políticos e profissionais (GODART,
2010:36).
Os blogs plus size costumam explorar a moda como eixo principal. É geralmente
a partir desse tema, e da consequente inclusão sentida com o aumento de confecções e
marcas voltadas a tamanhos maiores, que surgem discussões a respeito de beleza,
relacionamentos, afetividade, gordofobia e outras.
89
Os blogs aqui analisados não são exclusivos de moda, mas a tem como pauta
mais frequente. Os três possuem algumas características comuns como temas abordados
por editoriais de moda, lançamentos e novidades em marcas e produtos, tendências,
tutoriais e “look do dia”, quase sempre com as mesmas mensagens e conteúdo; o que
vestir, o certo e o errado na moda, o que comer, qual a melhor atividade física, sugestão
de dietas e produtos de beleza. As imagens ilustram o conteúdo da mensagem, com
fotos em que as blogueiras aparecem vestindo as peças comentadas. O texto costuma
trazer os créditos (nome, marca, preço) de cada item.
Um dos temas mais explorados pelo blog de Juliana Romano, o Entre Topetes e
Vinis, é justamente a possibilidade de dizer não aos tabus que opõem as gordas à moda.
A blogueira frequentemente recomenda o uso de peças com estampas grandes, listras,
saias volumosas e outras combinações que sempre foram condenadas por estilistas por
realçarem ainda mais o corpo roliço. Um exemplo é o link fixo “Bota para perna
grossa”. Clicando nele, a leitora conhece as melhores formas de usar ankle boots,
coturnos e outros modelos que não eram apenas condenados para quem tem pernas
grossas – eram sequer fabricados. Diz a jornalista: “Na dúvida de como usar bota de
cano alto para perna grossa ou não sabe onde comprar uma que passe pela batata da
perna larga e ainda fique confortável? Acredite, você pode usar o que quiser!”47 . O
texto é ilustrado por fotos da própria blogueira usando botas que alcançam os joelhos.
Além de links para modelos e lojas que vendem botas mais largas, o texto traz conselhos
como:
90
elástico como o neoprene. Além de se ajustar a formatos
diferentes de perna, também consegue expandir nas batatas mais
grossas sem prender a circulação. 48
48 Idem.
49 Disponível em: <https://juromano.com/home/pescoco-gordo-como-usar-gargantilha-que-cabe>.
Acesso em: 29 de junho de 2017.
50 Idem.
91
mulheres consideradas “normais”. Paula Bastos, do Grandes Mulheres, comemora
justamente o fato de vestir um modelo de espartilho que também é usado por
celebridades. A blogueira aparece em fotos com a peça e chega a elogiar a confecção
pela iniciativa:
Figura 4: Paula Bastos, do Grandes Mulheres, comemora o lançamento de acessórios plus size
modernos e dentro das tendência. Fonte: <https://grandesmulheres.com.br/2017/07/25/e-trend-
vestido-com-corset/>. (último acesso: 25 de julho de 2017).
92
Segundo Bauman, “não há nada por descobrir na identidade, mas sim inventar
com o intuito de atingir determinado objetivo, mesmo que se tenha que ocultar a
verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade”
(BAUMAN: 2005, 22-38). Para ele, as identidades fixas e inegociáveis não são
permitidas ou aceitas no mundo líquido moderno. “Em nosso mundo
de ‘individualização’ em excesso, as identidades são bênçãos ambíguas”, variando
entre o sonho e o pesadelo. É possível que essa relação ambivalente da sociedade
líquido-moderna seja a mais comum e perturbadora, ocupando um lugar central nas
discussões existenciais. O autor continua:
93
coisas – ou seja, adquire-se a filiação à “tribo” desejada. O consumo em prol do corpo
ideal é estimulado desde meados do século XX pela publicidade e principalmente pelo
cinema, que criaram e mantêm padrões de beleza que valorizam a juventude, como
corpos magros, saudáveis e sedutores.
É com essas palavras que a blogueira Juliana Romano define o que sentia em sua
adolescência, quando vivia em busca de dietas e métodos para emagrecer. Em seu blog,
o Entre Topetes e Vinis, a mensagem que ela procura divulgar é a de que dá para se amar
independentemente do peso, do manequim, das formas do corpo ou, principalmente, da
pressão dos modelos de beleza tradicionalmente vistos na mídia, com mulheres altas e
magras. Segundo ela, não se trata de lutar contra esse padrão, mas sim de abrir espaço
para outras formas também serem consideradas belas. Mais do que isso: a beleza não
deve ser martírio ou o único caminho para a mulher se sentir bonita, desejada ou
incluída em determinado grupo.
94
O fato de terem a moda como tema principal evidencia que é a aparência o fator
de exclusão do gordo na sociedade. Todos os blogs tratam a moda como algo que
“ajuda” na autoestima, destacando que o principal é sentir-se bem com o corpo do jeito
que ele é. Há incentivos à prática de exercícios, porém as privações típicas das dietas
são encaradas como repressoras – algo típico de mulheres que, ao contrário das
blogueiras, não amam o próprio corpo ou não se libertaram de padrões de beleza.
95
O tom usado, o convite e a linguagem direta, referindo-se à leitora como “você”,
são típicas de um discurso de autoajuda. Tal gênero, hoje tão popular na lista dos livros
mais vendidos, ganha notoriedade no contexto da Modernidade e a ascensão do
individualismo, momento histórico em que as referências tradicionais são rompidas. A
autoajuda pode ser descrita como um conjunto de práticas que partem do pressuposto de
que todos os indivíduos possuem força interior capaz de solucionar os mais diversos
problemas, os quais, apesar de muitas vezes terem causas sociais, são apresentados
como se fossem de natureza pessoal. Para Rüdiger (apud AGUIAR, 2011:21), os textos
que se definem como de autoajuda podem ser divididos em duas categorias: os
destinados ao desenvolvimento de capacidades objetivas (como passar em concursos,
ter sucesso nos negócios, falar bem em público etc) e os destinados ao desenvolvimento
de capacidades subjetivas, como autoestima, envelhecer bem, superar algum vício etc.
O gênero, portanto, pode projetar-se em todos os campos da vida.
96
persuasiva e para a construção de um ethos que irá se adaptar àquele tipo de
auditório” (AGUIAR, 2011:24).
Por sua vez, o saber prévio do auditório a respeito do orador é importante para a
adesão e para a receptividade ao seu discurso. Algo comum no discurso de autoajuda é a
exposição da própria vida do orador. Com isso, ele exemplifica e esclarece o raciocínio,
além de prender a atenção do auditório, que, por sua vez, passará a analisar a própria
vida. É a velha ideia do “se eu posso, vocês também podem”. Segundo o autor, ao
lançar mão dessa estratégia,
Muito da popularidade dos blogs plus size está nesse discurso encorajador, ainda
mais quando se sabe que as próprias autoras são mulheres consideradas acima do peso,
com idades, experiências e repertório comuns aos das leitoras. Mesmo com todas as
97
semelhanças, o público ainda precisa de alguém que supostamente tenha “vencido” as
questões que deseja superar para sentir-se encorajado a fazer o mesmo. É o que vemos
em um post do blog Entre Topetes e Vinis:
98
Figura 5: Gostar-se demais pode ser sinal de arrogância?, perguntam as blogueiras convidadas
no Entre Topetes e Vinis. Fonte:: <https://juromano.com/comportamento/mulherao-da-porra-
linha-tenue-entre-autoestima-e-arrogancia>.(último acesso: 28 de julho de 2017).
4.4 - Obesidade e saúde nos blogs (ou: “dos meus exames entendo eu, OK?”)
99
outras formações disciplinares para obter controle aberto e contínuo, o que resulta no
sancionamento de uma nova educação corporal e sanitária.
No decorrer da história, por muito tempo se considerou que o que fugia da idéia
de saúde, ou seja, a doença, consistia, basicamente, no excesso ou falta de excitação dos
diversos tecidos abaixo ou acima do grau que constitui o estado normal. Portanto, havia
uma atribuição incondicional à intensidade dos fenômenos para diferenciar saúde - o
“normal” - da doença (ESTANISLAU, 2014:54).
100
variações quantitativas, para mais ou para menos, dos fenômenos fisiológicos
correspondentes” (2009:13). Assim, é no estado patológico (doença) que os estudiosos
da saúde irão procurar as respostas para as questões que dizem respeito ao corpo e à
vida. A partir daí, concepções do tipo tornam-se dogmas durante o século XIX,
especialmente com a busca do racionalismo e do empirismo, representados por Auguste
Comte e Claude Bernard, respectivamente.
Ah! Antes que digam qualquer coisa sobre ser saudável, sobre ser
bonito, sobre ser qualquer coisa, quero deixar APENAS UM recado: O
CORPO É MEU E EU FAÇO O QUE EU QUISER COM ELE E
NINGUÉM TEM NADA COM ISSO! (não me leve a mal, é só para a
patrulha gordofóbica entender que aqui não é lugar para comentários
preconceituosos e que dos meus exames entendo eu, ok?) 56
102
recebeu críticas por não considerar o aumento da longevidade e das doenças crônicas e
por envolver todos os aspectos da vida sob o manto da saúde e do bem-estar, o que,
como era de se imaginar, teve impactos muito bem-vindos na indústria farmacêutica.
Não é raro que o tratamento da obesidade inclua antidepressivos ou recomendação de
exercícios leves, suficientes para trazer mais a sensação de bem-estar do que a queima
de calorias. Tudo isso parece justificar a progressiva patologização da obesidade.
Juliana Romano conta que recebe centenas de mensagens por dia por conta de
textos publicados em seu blog. Boa parte delas são de leitores que desejam saber o
quanto ela pesa. Fugindo de classificações que podem levar a julgamentos sobre sua
saúde, ela diz:
103
simplesmente parei de subir na balança para controlar
loucamente quanto eu peso. Comecei a ir ao consultório da
minha médica e me pesar de costas, de forma que ela visse o
peso e me dissesse o que eu precisava ou não fazer. (...)
Fazer exercícios e manter uma alimentação equilibrada têm a
ver com o resultado ótimo dos meus exames, mas éééééé. O que
alguém tem a ver com isso mesmo? Pra ser sincera, o resultado
dos meus exames e minha saúde cabem a mim, apenas a mim.
(...)
104
“mantém”, especialmente quando o assunto é o peso corporal. Todos acreditamos, desde
crianças, que comer bem é “se cuidar”, e que se nos exercitarmos seremos fortes,
saudáveis e longevos. Doenças inesperadas são, nesse caso, uma tragédia, pois são um
desvio do caminho natural da vida longa. Ou seja: existe, apenas para os gordos, um
julgamento moral nas questões que envolvem saúde X doença, como se uma ou outra
dependessem de escolhas que não priorizam o físico.
Alguns teóricos, como Lionel Robbins, pressupõem que o homem deve sempre
maximizar suas vantagens para atingir uma série de objetivos que lhe são dados; já Von
105
Mises e Kirzner sustentam que, se quiser melhorar sua posição, o sujeito deve constituir
os “quadros de fins e meios” em que deverá efetuar suas escolhas. Não se trata, então,
de um maximizador passivo, mas de um construtor de situações proveitosas, que se
descobre mediante vigilância e que poderá explorar (DARDOT e LAVAL, 2016:146).
106
como o ideal de magreza. As atitudes dos profissionais sofrem essa influência, de forma
que eles têm uma função de “grandes estigmatizadores” (POULAIN, 2013:121).
A estigmatização dos obesos põe em sério risco sua saúde psicológica e física,
além de repercutir na implementação de medidas efetivas para a prevenção da
obesidade, partam elas do próprio indivíduo ou de profissionais e entidades da área da
saúde. Como apontam Lee e Pausé (2016:6), estes percebem o sujeito gordo como
cidadãos fracassados e com menos capacidade de aderir às recomendações médicas.
Uma vez que os profissionais de saúde não acreditam muito que os pacientes obesos se
preocupam com seu estado e não seguem as instruções dadas, eles terminam por vê-los
como desinteressados ou desmotivados para tratamentos de prevenção.
Essa visão sobre os obesos representa uma grande barreira para que eles
procurem atendimento médico adequado. Diversas pesquisas apontam que as atitudes
negativas em relação a pacientes gordos resultam em consultas mais rápidas, nas quais
são prescritos menos testes de prevenção e diagnóstico; os médicos costumam alegar
que esses testes são sempre mais complicados em corpos obesos. Além disso, o gordo é
menos respeitado no ambiente médico do que o magro, e muitos profissionais admitem
que preferem não tratar esse tipo de paciente (LEE e PAUSÉ, 2016:6).
107
fosse espontânea, mas direcionada a fim de enquadrá-los em categorias, como a do
“psicopata”, a do “doente desprovido de inteligência” ou a do “doente demasiado
inteligente que interpreta o que diz o médico”, por exemplo (BOLTANSKI, 1984:50).
108
O médico que me atendeu foi super simpático, mas perguntou,
meio que de cara, se eu tinha vontade de fazer a bariátrica e eu
disse que não. Ele quis saber o porquê. Eu expliquei. (...)
Aí ele foi fazer o exame da tireoide e bingo, mais um problema:
meu hipotireoidismo voltou. Faz ANOS que ninguém me pede
um exame de tireoide. Ela também não favorece o meu quadro,
obviamente, mas a surpresa mesmo veio em outro exame em
que ele diagnosticou algo que vai precisar de cirurgia e tudo,
mas eu não tinha sintoma algum.
Por que eu tô te contando tudo isso? Porque negligência médica
é um dos maiores exemplos de gordofobia que a gente vive. Eu
tenho um convênio médico bom e vivo indo a médicos, mas
ninguém nunca se deu ao trabalho de me examinar de verdade
para ver o que acontecia comigo, simplesmente assumiam que
eu era uma gorda comilona e relaxada. Não pediam exames
detalhados, não me acompanhavam. Eu vou precisar de uma
cirurgia e eu não tenho sintomas, eu não sinto nada. Se essa
médica não fosse realmente humana e não tivesse me pedido
tudo o que ela pediu, eu jamais saberia que estou com esse
problema que precisa de cirurgia. Talvez fosse saber daqui anos
quando a questão estivesse muito agravada. (...)59
109
A que se deve essa incoerência entre prestigiar os remédios
contra as consequências (hipertensão e diabetes melito) e
condenar os remédios que combatem as causas? Basicamente, a
meu ver, é o preconceito contra os obesos, contra os remédios
que podem tratá-los e contra os médicos que os tratam. 60
110
limitações de quantidade. Os mecanismos de controle foram aumentados: para que o
medicamento fosse vendido, a receita deveria ficar retida na farmácia e o médico
deveria assinar termo de responsabilidade. Além disso, o paciente também deveria
assinar documento em que reconheceria os riscos que as substâncias emagrecedoras
podem causar. Em 2016, a Anvisa publicou novas diretrizes para o uso desses
medicamentos. Já em 2017, a Câmara dos Deputados liberou a comercialização dessas
substâncias63 .
111
conformado”, “não devemos fazer apologia à obesidade por tratar-se de uma
doença”65 . Ela acrescenta:
É delicada a linha que separa a suposta apologia do discurso que reconhece que
é preciso cuidar do corpo e da alimentação. Algumas vezes, quando o texto enfatiza essa
necessidade, podem surgir comentários como “ué, você não fala pra gente ser feliz
sendo gorda?”. Por isso, alguns posts já começam com um discurso na defensiva. É o
caso de Renata Vaz, quando publica o relato de uma blogueira que emagreceu
combinando remédios com dietas e exercícios:
112
amar e aceitar do jeito que eu sou, a ter objetivos reais,
atingíveis, padrões de beleza compatíveis com o meu corpo. 67
113
mais de 30 quilos de gordura animal. O peso, e também o material, representavam o que
ela havia perdido após meses de uma rigorosa dieta. Apesar de os Estados Unidos
viverem em uma cultura obcecada pela magreza desde meados da década de 1970, foi a
primeira vez que uma celebridade falou tão abertamente sobre sua luta contra a balança.
O programa Oprah, que já era um dos líderes de audiência na época, ficou ainda mais
famoso por ela ter adotado um tom próximo de seus telespectadores – algo no estilo “eu
sou como vocês, também sofro com o peso”. Esse tipo de interação acabou por tornar-se
uma das marcas de Oprah e seu programa, que durou até 2011.
Ao longo dos anos, Oprah Winfrey perdeu e ganhou peso diversas vezes. Seu
emagrecimento foi sempre acompanhado pelo público, que, assim, conhecia as últimas
tendências na medicina, na estética, na ginástica e em outras áreas da saúde voltadas à
perda de peso. Aos poucos, ela foi tendo sua imagem associada às dietas, o que foi
devidamente capitalizado: seu nome ajuda a vender suplementos, equipamentos de
ginástica, alimentos dietéticos variados e, claro, promove os profissionais que a
acompanham. A exploração midiática do processo de emagrecimento de (e por)
celebridades recebeu o nome de fatsploitation (MOBLEY, 2014:141).
114
Parte importante da prática do fatsploitation consiste em vender “veracidade”
como item adicional dos produtos. Assim, pessoas que obtiveram êxito em seu
emagrecimento graças ao consumo de um ou outro item passaram a ser convidadas a dar
seu testemunho, o que muitas vezes inclui as famosas comparações de fotos de “antes X
depois”. Por todos os motivos já analisados, um corpo gordo é algo a que muitas
celebridades não querem ser associadas. Isso não chega a ser um problema, afinal essa
indústria pode criar suas próprias celebridades. Foi o que aconteceu com Jared Fogle e
a rede de lanchonetes Subway. Em 1999, o então anônimo rapaz decidiu perder peso de
uma forma bastante incomum: já que havia engordado comendo fast food, que
emagrecesse da mesma forma. Ele passou a pedir, então, a opção mais saudável do
menu da Subway. Quando os executivos da rede tomaram conhecimento do caso, após a
perda de mais de 100 quilos, logo transformaram Fogle no garoto-propaganda da “Dieta
Subway”, mostrando aos consumidores que os sanduíches não faziam tão mal assim à
saúde – pelo contrário. O resultado dessa campanha de marketing foi excelente: as
vendas de sanduíche mais que dobraram no período. Fogle representou a marca até
2009; aos poucos, sua imagem começou a perder força, até porque muitos dos que
haviam seguido seu exemplo desde 1999 voltaram a ganhar peso (MOBLEY,
2014:147).
115
alimentação correta. Para aprimorar sua atuação na série, Taís
também investiu em uma modalidade conhecida como ballet
fitness, que mistura exercícios funcionais com movimentos de
ballet. Isso também ajudou na definição muscular e na perda de
peso.69
Seja como for, a exposição fez bem a Kirstie Alley, que conseguiu revigorar
sua carreira. As muitas vezes que engordou ou emagreceu foram conhecidas pelo
público em suas aparições no programa de Oprah Winfrey. Em 2006, por exemplo, ela
chegou a se exibir de biquíni para mostrar o sucesso de um dos tratamentos; um ano
depois, porém, apareceu vestida com roupas grandes e folgadas, que enfatizavam todos
os quilos que ela havia recuperado (MOBLEY, 2014:156). Mais uma vez, a
autopromoção obteve resultados. Ela produziu mais uma série sobre ela mesma, Kirstie
Alley's Big Life, em 2010, e logo foi convidada a participar de Dancing with the Stars. A
116
atriz voltou a perder peso e, com o sucesso, deu seu nome a uma série de produtos
voltados para o emagrecimento.
117
Sua imagem de gordo em uma festa chegou a virar “meme”72 , algo que provavelmente
jamais o deixará, não importa quanto peso tenha perdido.
72 O termo meme é sinônimo de “fenômeno da Internet”, ou seja, tudo que faz sucesso e propaga-se
rapidamente na rede, especialmente quando se trata de fotos ou vídeos engraçados (nota da autora).
118
Capítulo 5 - Surge um novo padrão de beleza?
Uma das maneiras de buscar um resultado mais palpável foi proposta por
Teófilo de Queiroz Júnior, no artigo “Beleza da mulher e a literatura brasileira” (2000).
O objetivo foi buscar um padrão de beleza com base em personagens criados por
grandes escritores, como Machado de Assis, José de Alencar e Érico Veríssimo. Ele
estudou obras publicadas entre 1844 e 1958, nas quais a figura feminina,
obrigatoriamente de ficção, aparece já no título (Clarissa, Iracema, Gabriela Cravo e
Canela etc). Em conjunto, os onze livros selecionados para o trabalho 73 mostram
peculiaridades na maneira de os autores verem a beleza feminina, seja na diversidade
do tipo físico ou caráter de suas heroínas ou na trama que as envolve. Uma das
primeiras revelações foi a de que as mulheres-título nos romances do século XIX têm
entre 15 e 18 anos. As do século XX, quando mais velhas, não vão muito além, ficando
na faixa dos 20 anos. Eram tempos em que os homens casavam-se com mulheres bem
jovens, que mal haviam chegado à adolescência. “Ao mesmo tempo, era uma maneira
73 São eles: A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo; Inocência (1872), de Visconde
de Taunay; A escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães; Senhora (1875), de José de Alencar; Ia iá
Garcia (1875), de Machado de Assis; Clarissa (1933), de Érico Veríssimo; Prima Belina (1940), de
Ribeiro Couto; Eurídice (1945), de José Lins do Rego; Presença de Anita (1948), de Mário Donato; Lélio
e Lina (1956), de João Guimarães Rosa; e Gabriela, Cravo e Canela (1958), de Jorge Amado.
119
de desfrutarem o efêmero frescor juvenil que as mulheres perdiam muito cedo, na
obscura reclusão da rotina doméstica, bem como nos desgastantes encargos de gerar e
criar muitos filhos” (QUEIROZ, 2000:143). Logo, pode-se concluir que a juventude
era, para nossa literatura, condição primordial de beleza feminina. Já em relação aos
traços físicos, o autor considerou aqueles que mais aparecem em cada livro. Muitos
autores descrevem a cor da pele das personagens, mas, curiosamente, podiam ser belas
tanto as muito claras, como Inocência, quanto as mais escuras, como a mulata Gabriela,
de cor de canela. Os cabelos também são citados; nenhuma personagem é loira ou
ruiva, havendo cabelos negros mesmo entre as personagens de pele clara. Os olhos são
realçados não precisamente pela cor, mas principalmente pelo formato dos olhos e
pelos distintos olhares que emitem. As moças de outrora enfrentavam vários
impedimentos, além de demonstrar recato e etiqueta, e não podiam declarar seus
interesses ou demonstrar abertamente as emoções que sentiam por seus pretendentes ou
pretendidos. Sobrava-lhes o recurso dos olhares, que transmitia mensagens e
sentimentos dos mais diversos. Explica o autor:
120
Segundo Queiroz, os 114 anos que abrangem a publicação do primeiro e do
último romances analisados no estudo demonstram, naturalmente, diferenças
estilísticas. No entanto, diz, “elas não chegam a ocultar correspondência na maneira
de descreverem mulheres belas, chamando a atenção para os dotes fisicos. E essa
correspondência, presente em quase dois séculos, não pode ser acolhida apenas como
coincidência” (QUEIROZ, 2000:150).
O que podemos tomar como “padrão” é aquilo que nos é divulgado pela mídia,
o que não deixa de ser algo gerado pela própria sociedade. O histórico de nossas musas
assim o demonstra. Quando ainda não havia implantes de silicone, botox ou outros
recursos da estética, cabia aos concursos de beleza eleger a mulher mais bonita do
Brasil. Assim foi, por exemplo, com a gaúcha Ieda Maria Vargas, que em 1963 ouviu
seu nome como vencedora do concurso Miss Universo. O corpo perfeito, então, era o
que cabia em um maiô sem decote e pouco cavado e que seguia as medidas de 90cm de
busto, 60cm de cintura e 90cm de quadril (Ieda tinha 1,70m, o que é considerado
pouco para as misses de hoje. Ou seja: as contemporâneas são mais altas, mas, para
manter essas medidas 90-60-90, são, obrigatoriamente, mais magras).
121
“Beleza mercadoria” ou “beleza publicitária”, substituindo a
beleza atormentada da estrela, o manequim sistematizou o
princípio de um corpo de “papel gelado'. Figura que agita as
modas e as práticas do dia, ela caracteriza os momentos mais
homogêneos nas mais difíceis situações (VIGARELLO,
2005:173).
Já houve, no Brasil, certa reação à beleza loura e alva imposta pelos modelos de
beleza americanos e europeus. No final do século XIX, verificou-se, em parte, tentativa
de neutralizar esse “albinismo”, através da valorização de belezas femininas morenas
em romances e poesias. Nem por isso, no entanto, as modas de mulher deixaram de
sofrer, na época da Império e no início da República, impacto considerável do que
vinha do exterior. As referências só mudaram um pouco quando houve uma
“redescoberta” de recursos naturais brasileiros na moda, no design e em outras áreas.
Observou-se em meados dos anos 1970 maior uso de material ecologicamente correto
na confecção de artigos de moda feminina, como o algodão e a cambraia – celebrados
como femininos, confortáveis, arejados, práticos, simples de lavar e passar e perfeitos
para climas quentes como o nosso (FREYRE, 2009:58). Esse contexto favoreceu a
valorização de uma beleza feminina considerada típica brasileira, com pele morena,
cabelos cacheados e coxas grossas. Aquilo que Gilberto Freyre chama de “triunfante
reação melanizante” teve seu ponto culminante com a glorificação da beleza de Sônia
Braga, que interpretava Gabriela na novela de mesmo nome (Rede Globo, 1975),
baseada na obra de Jorge Amado - “sem que essa glorificação de uma beleza morena
venha significando o desapreço por brasileiras louras, tão belas como Sônia Braga: o
caso de Vera Fischer” (FREYRE, 2009:57).
122
Na opinião de Klanovicz, a personagem Gabriela é tomada como referência de
um discurso que tornou positivas as características sensuais da gestualidade e da
aparência da personagem. Tais características poderiam passar despercebidas, porém a
reprodução de sua imagem (o que ocorreu ao longo de três reapresentações da novela,
ao passo que duas delas foram transmitidas nos anos 1980), ou seja, a sua recorrência,
perpetuou uma aparência sensual e brasileira com traços bem definidos: um corpo
moreno, de ancas largas, aberto ao amor: a perfeita amante. Esses foram atributos que
contribuíram para a constituição de um desejo encarnado no corpo de Gabriela - um
corpo que estava além da atriz Sônia Braga, mas que passaria a ser visto, muitas vezes,
como a representação da "mulher do Brasil" (KLANOVICZ, 2010).
As chamadas “chacretes” eram cerca de seis ou sete garotas que faziam parte do
Programa do Chacrinha como dançarinas e assistentes de palco. Voltada às classes
populares, a atração era comandada por Abelardo Barbosa e foi ao ar nos anos 1960 e
1970 pela Rede Tupi, entre 1978 e 1982 pela Band e, finalmente, entre 1982 e 1988
pela Rede Globo. O programa contava com atrações musicais que faziam sucesso entre
os jovens, além de um show de calouros. Em sua maioria, as chacretes eram jovens na
faixa dos vinte anos, oriundas de camadas populares das cidades do Rio de Janeiro ou
São Paulo, que viam na dança uma primeira oportunidade de trabalho no mundo
artístico. O sucesso que elas faziam era explicado nem tanto pela beleza, mas
principalmente pelo interesse pela dança e sobretudo por suas formas abundantes. Elas
não deviam apenas ter um tipo físico característico, mas evocar a todo instante, por
meio de vestimentas e gestos, uma imagem de mulher superexcitada e sempre
disponível, servindo-se de seus corpos para isso. “Desde o processo de seleção, os
produtores já atentavam para gestos, trejeitos e estilos que evocassem tal imaginário.
A estética e a corporalidade, portanto, eram essenciais para a atividade das
dançarinas” (BISPO, 2015:242).
124
Quais eram os atributos físicos considerados requisitos básicos para uma
chacrete? Em relação à idade, as que beiravam os 30 anos já eram consideradas velhas,
embora os processos de seleção raramente mencionassem a faixa etária ideal (BISPO,
2015:242). Em relação à cor da pele ou tipo de cabelo, havia a valorização de uma
diversidade de etnias, com a presença de mulheres cujos tons de pele eram
considerados os mais diferentes possíveis. Segundo Bispo, a proposta era agradar a
maior quantidade de homens telespectadores e oferecer a eles um cardápio variado de
tipos femininos brasileiros – desde que, é claro, as dançarinas apresentassem as
dimensões corporais desejáveis. A altura não vinha ao caso. O próprio Leleco Barbosa,
filho de Chacrinha e produtor do programa, comentou a exigência de a chacrete se
enquadrar na categoria das “udas”, ou seja, tinha de ser boazuda, bunduda, peituda,
coxuda e cadeiruda (apud BARBOSA E RITO, 1996:119). As câmeras raramente
filmavam as meninas além da cintura ou focavam os seios; o rosto, então, só recebia
destaque quando elas ajudavam o apresentador em algum momento. Desde então,
programas semelhantes sempre contaram com dançarinas em seu elenco, variando
pouco o figurino (maiôs ou biquínis quase sempre).
No final dos anos 1980 e início dos 1990, o corpo cultuado pela mídia já era
mais longilíneo, representado por modelos que ganhavam cada vez mais status de
celebridade, como Cindy Crawford, Claudia Schiffer, Naomi Campbell, Linda
Evangelista e Kate Moss, por exemplo. No Brasil, porém, a influência de movimentos
musicais populares contribuiu para que esse corpo magro ficasse um pouco mais
“reforçado”. O axé dos anos 1990 deu fama a figuras como Carla Perez e Scheila
Carvalho, dançarinas de coxas grossas e traseiro abundante – o que, naturalmente, era
bastante explorado nas letras das músicas, nas coreografias e no figurino do grupo É o
Tchan. Não por acaso, essas celebridades contribuíram para a popularização das
próteses de silicone, especialmente nos seios. A ordem era ter um corpo sensual.
O movimento da cultura funk no Rio de Janeiro, surgido a partir dos anos 2000,
é um exemplo que contribuiu para que as mulheres mais corpulentas passassem a ser
vistas de outra forma. Mesmo não sendo exatamente gordas, as “funkeiras” como
Mulher Maçã, Mulher Melancia e Mulher Moranguinho, entre outras (as frutas remetem
a partes abundantes do corpo de cada uma, como seios e nádegas, por exemplo),
apresentaram a corpulência associada à sensualidade e ao poder em relação aos homens.
A musculação pesada para adquirir coxas grossas, abdome definido e braços
125
musculosos fez do corpo “violão” um sucesso na mídia, e, o que é mais interessante,
tornou-o desejado em diferentes classes sociais e níveis de instrução, e não apenas nos
mais baixos, tidos como público-alvo do funk carioca. Programas como o Big Brother
Brasil também contribuíram para a divulgação dos corpos “turbinados”, em alguns
casos com a polêmica ajuda de anabolizantes e próteses de silicone. No Carnaval de
2009, a revista Veja publicou um texto sobre as musas das escolas de samba. Segundo a
matéria, “rainha de bateria que se preze” deveria ter pelo menos “um metro de
quadris”, seios “turbinados” e “nádegas que avançam como mísseis balísticos”
(SANT'ANNA, 2014:178). Soma-se ao movimento funk a maior afirmação dos negros e
mulatos, no que se inclui a valorização da “beleza brasileira” dos quadris fartos. Ao
mesmo tempo, a beleza de cabelo louro e liso, pele alva, nariz fino e cintura reta,
representada pelas tops Gisele Bündchen e Ana Hickmann desde meados dos anos 1990,
foi cedendo espaço a outros tons de pele e cabelo, bem como a outras formas.
Figura 9: Viviane Araújo, atriz e rainha de bateria de escola de samba, e a funkeira” Mulher
Melancia: corpos “turbinados” com dietas, exercícios e próteses de silicone. Fontes:
<http://static1.purepeople.com.br/articles/5/22/65/@/17554--950x0-1.jpg> (último acesso: 15 de
janeiro de 2018) e
<https://i.pinimg.com/originals/26/e0/1d/26e01de2e29a91731644c88312cc7d8d.jpg> (último
acesso: 23 de dezembro de 2017), respectivamente.
Prova dessa preferência pelo corpo mais curvilíneo é a divulgação dos resultados
de uma pesquisa feita em 2012 pelo Instituto Data Popular com 15 mil mulheres acima
126
de 16 anos, de todas as classes sociais do país. As entrevistadas receberam fotos de
mulheres famosas sem a identificação de seus rostos, vestindo apenas lingerie. Para
72%, o corpo atraente era o mais curvilíneo. A maioria (59%) gostaria de ter aquela
silhueta. As participantes não sabiam, mas escolheram Geisy Arruda, a moça que foi
humilhada em uma universidade paulista por usar um vestido curto. Na pesquisa, Geisy
superou a atriz Juliana Paes (32% queriam ser como ela) e a modelo Gisele Bündchen
(apenas 8% queriam ser como ela). “O padrão de beleza deixou de ser o das passarelas.
Ele é considerado pelas mulheres, e até pelos homens, pouco atraente, nada sensual e
até feio”, diz Renato Meirelles, sócio diretor do Instituto Data Popular74 .
A pesquisa indica que um corpo de curvas abundantes vem sendo mais admirado
do que aquele reto e magro. Entre as possíveis explicações está a recente ascensão das
classes C e D, que promoveu um novo olhar em relação a esse corpo. Segundo
Sant'Anna,
127
questões feitas à dupla Maiara e Maraisa falava sobre a relação delas com o espelho. As
respostas foram:
É difícil afirmar a que se deve essa distinção de alvo a atacar quando o assunto é
a forma física. Estamos acostumados a ver figuras como a cantora Preta Gil serem mal
tratadas pelo público simplesmente por serem gordas, como se isso fosse uma ousadia
além da conta para quem canta em trios elétricos no Carnaval. Algumas personalidades,
de fato, sentem-se ousadas demais quando estão fora de forma e simplesmente saem de
cena, voltando quando (e se) reassumem o corpo de antes – talvez por isso a escassez de
exemplos para ilustrar esse raciocínio, especialmente entre mulheres. Um dos casos
mais conhecidos é o da ex-modelo e atriz Susy Rêgo. Depois de muitos trabalhos nos
anos 1990 e 2000, ela fez uma pausa na carreira para tentar engravidar. Foi preciso um
128
tratamento de fertilidade, o que a fez chegar aos 104 quilos 75 . Apesar de não ser
condenada por isso (e aqui fica a hipótese de que a gordura originada por doenças ou
tratamentos médicos é digna de pena ou mesmo respeito, e não de críticas), a atriz levou
anos para conseguir chegar a um manequim considerado razoável. Ela só voltou à cena
quando tirou partido de seu novo corpo: foi modelo plus size de uma grife paulistana e,
na TV, participou da novela Morde e Assopra (Rede Globo, 2016), no papel de uma
artista fora de forma que se internava em SPAs mas que sempre dava escapadinhas para
comer pratos mais calóricos.
No caso das sertanejas, uma das hipóteses para ela estarem “imunes” a esses
ataques gordofóbicos pode ser a origem nas classes populares, com a qual muitos fãs
das classes C e D, seu público-alvo, se identificam. Como afirmado há pouco, para
essas classes sócio-econômicas, o corpo magro e enxuto não é tão obrigatório como
entre pessoas de renda ou grau de instrução elevados. Outra explicação possível é a
força das redes sociais, em que os fãs se unem para manifestar repúdio a ataques ou
gozações que seus ídolos sofrem. Há de se considerar também que, em sua música, as
cantoras do sertanejo universitário exercem o papel de quem toma a iniciativa na
conquista do sexo oposto. As letras falam de volta por cima, de amor que não foi
devidamente valorizado pelo parceiro, autoestima em alta e temas afins. É possível que
essa postura ativa, que não chega a ser inédita na música, porém é agora mais frequente,
iniba demonstrações de gordofobia ou outros tipos de preconceito em relação ao corpo
fora das medidas convencionais para artistas mulheres.
129
Figura 10: em sentido horário, as cantoras sertanejas Marília Mendonça, Maiara e Maraisa e
Simone e Simaria. Fontes: <http://cdn.ofuxico.com.br/img/galeria_thumb/11162/show-da-
cantora-marilia-mendonca-0630_354230_164673-998x700.jpg> (último acesso: 15 de
dezembro de 2017); <https://abrilcapricho.files.wordpress.com/2017/05/maiara-e-
maraisa.jpg?quality=85&strip=info&crop=16px%2C0px%2C562px%2C382px&resize=1000%
2C666> (último acesso: 15 de dezembro de 2017) e
<http://cdn.ofuxico.com.br/img/galeria/2017/03/simone-3_339540.jpg> (último acesso: 15 de
dezembro de 2017), respectivamente.
Nas poucas vezes em que é abordado com essas artistas, o tema da gordura em
excesso entra quase sempre de forma franca e direta nas entrevistas, ou então como
brincadeira feita pelas próprias. Marília Mendonça, em seu Instagram, publicou a foto
de uma barriga masculina e perguntou aos seguidores de quem seria, oferecendo “100
contos” a quem adivinhasse. Para o seguidor que respondeu que a barriga “obviamente
era dela”, a cantora disse o seguinte: "Só não é minha porque a minha não tem cabelo
(risos). Sem neura. O que 'nóis' tem de barriga, 'nóis' tem de dinheiro. Graças a Deus.
Amém”76 .
76 Disponível em https://extra.globo.com/famosos/marilia-mendonca-rebate-comentario-sobre-peso-que-
nois-tem-de-barriga-tem-de-dinheiro-20632517.ht ml, acessado em 11 de novembro de 2017.
130
"estou desconfiado de que isso é um travesseiro". Em outro momento, o dono do SBT
chamou a cantora de gordinha, no que foi prontamente rebatido por sua parceira
Simaria: "mas ela não é gordinha. Ela é gostosa"77 .
A associação entre curvas e sensualidade é forte, o que pode ser um dos motivos
para essa nova valorização dos corpos mais fartos. Não é possível, porém, afirmar que
um padrão de beleza culturalmente hegemônico apague a concorrência de outros. O fato
de haver uma ou outra qualidade física tida como modelo de beleza não impede a
existência de outros, tampouco a circulação de discursos ou ideais que os afirmam. O
que ocorre, segundo a noção de hegemonia que Raymond Williams adota de Antonio
Gramsci, não é uma dominância total, mas um processo de disputa política e cultural em
que determinado(s) discurso(s) torna(m)-se mais ou menos predominante(s), sendo
continuamente desafiado(s), renovado(s), defendido(s) e recriado(s). Assim, embora o
ideal de magreza e juventude seja divulgado e reforçado pelos meios de comunicação
como “o modelo” a ser seguido, não é correto supor que este padrão seja o único
existente ou que ele tem a mesma relevância para todos os grupos ou classes sociais –
“deve-se levar em conta outras construções, bem como as possíveis ressignificações e
contestações produzidas” (BETTI, 2014:165). Do mesmo modo que as percepções e
significados em torno da gordura não são unívocos, também não o são aqueles em torno
da magreza.
77 Disponível em http://f5.folha.uol.com.br/televisao/2017/05/silvio-santos-chama-simone-de-gordinha-
e-simaria-o-corrige-ela-e-gostosa.shtml, acessado em 11 de novembro de 2017.
131
está ligada à anorexia ou a outros distúrbios alimentares. Um exemplo do quanto a
magreza é celebrada sem critérios é o caso da blogueira Nara Almeida, que tem mais de
700 mil seguidores na rede Instagram. Ao postar fotos suas com pouca roupa ou biquíni,
a jovem recebeu muitos elogios e perguntas sobre o que fazia para manter um corpo tão
bonito. Para a surpresa de muitos, ela revelou que sofre com um câncer de estômago e
respondeu com um desabafo:
Nas fotos parece que estou super saudável, magra, gostosa... mas
a realidade é que estou muito abaixo do meu peso, me sinto
cansada, estou com anemia e vários outros problemas, só eu sei
o quanto estou debilitada. (…) Não consigo me alimentar mais,
até a água que eu tomo coloco pra fora em questão de minutos,
meu estômago não processa nada! Hoje o que me mantém viva é
a sonda que faço alimentação via enteral. O preço que tô
pagando pra ter esse corpo que vocês consideram dos ‘sonhos’ é
muito alto. (…) enfim, parem de desejar os corpos alheios,
fiquem felizes com a vida e o corpo de vocês. 78
78 Disponível em https://vejasp.abril.com.br/blog/pop/o-desabafo-desta-jovem-vai-te-fazer-repensar-o-
corpo-dos-sonhos/, acessado em 24 de outubro de 2017.
132
grupos de pessoas para quem silhuetas gordas são o foco da fantasia e da satisfação
erótica (KULICK, 2012: 233).
133
Figura 11: A modelo plus size Crystal Renn em ensaio para edição de 90 anos da Vogue
francesa, em setembro de 2010. Fonte: <http://3.bp.blogspot.com/_UDp-
YUuZT4E/TKOVAynqxdI/AAAAAAAABm0/HaN0R78eIfM/s1600/90ans.jpg> (último
acesso: 16 de dezembro de 2017).
O autor questiona de onde vem o interesse pelo que muitos consideram uma
aberração. Citando Freud, ele lembra que uma das maneiras de assegurar que uma coisa
se torne desejável é justamente proibi-la. É o que acontece quando comemos doces,
bebemos álcool ou fumamos: são comportamentos nocivos e proibidos na vida
cotidiana, mas que, talvez por isso, tornam-se atraentes e desejáveis. Diz ele:
135
namorados, maridos, pretendentes ou simplesmente para elas mesmas, como se
estivessem afirmando que gostam de seu corpo e têm tanto poder de sedução quanto as
modelos de medidas consideradas dentro do padrão.
No Mulherão, o sexo é tratado sem rodeios. Mesmo aspectos que costumam ser
constrangedores, como posições sexuais para gordos ou vergonha das celulites, são
tratados como algo natural e que merece ser discutido, já que fazem parte da vida de
qualquer mulher tida como acima do peso. Dos três blogs estudados, este é o que mais
estimula a exploração da sensualidade, inclusive como ferramenta para a autoestima.
Para o dia dos namorados de 2016, por exemplo, o blog publicou um ensaio sensual
com um casal de gordos. Ambos aparecem seminus e em poses excitantes, com
destaque para decotes e calcinha fio-dental. Diz a blogueira:
79 Disponível em
http://blogmulherao.com.br/25959/aviso-de-sensualidade-explicita-ensaio-sensual-com-gordo-e-gorda/,
acessado em 1º de julho de 2017.
136
Figura 12: Ensaio sensual para comemorar o dia dos namorados no blog Mulherão:
representatividade de casais gordos na mídia. Fonte:
<http://blogmulherao.com.br/25959/aviso-de-sensualidade-explicita-ensaio-sensual-
com-gordo-e-gorda/>. (último acesso: 1º de julho de 2017).
Ainda é raro que imagens que mostram gordos em situações como essa, sempre
relacionadas a pessoas magras, jovens, com corpo atlético. Os estereótipos morais
ligados às pessoas gordas são muito fortes e muitas vezes as obrigam a exercer papeis
secundários, nos quais é ressaltada sua figura. Sobre essa pouca representatividade,
Novaes pensa que “se na cultura grega a feiura não deveria ser representada, na
cultura atual o sentimento crescente de lipofobia afasta dos espaços públicos a feiura
indesejada dos gordos, bem como do nosso imaginário a presença dos esteticamente
imperfeitos” (NOVAES, 2010:74).
É o que acontece na mídia de forma geral. No cinema, nas novelas, nas revistas e
demais meios de comunicação, é quase nula a presença de atores ou modelos gordos em
papeis de destaque. Restam os personagens estereotipados, marcados por serem maus,
feios, fracassados ou cômicos. No entanto, como vimos anteriormente, esse mesmo
público deixado em segundo plano vem se tornando importante para vários setores da
economia, no qual se inclui a indústria cultural. Como há uma busca por novos
consumidores, o mercado cria nichos e busca formas de dialogar com eles de forma
mais direta e convincente. Já se percebe uma ou outra iniciativa de inclusão dos gordos
no cinema, novelas etc. O “ativismo” (aspas porque muitas vezes é involuntário) de
figuras como a cantora Adele ou a modelo Ashley Graham convida as mulheres jovens a
darem uma atenção diferente ao seu corpo, olhando-o com mais carinho e buscando
qualidades. A indústria já deu-se conta dessa tendência e lança campanhas de marketing
com a mesma proposta. Aos poucos, a gordura, a gordofobia, a vergonha do próprio
137
corpo e o isolamento causado pela estigmatização vão cedendo espaço a mais
representatividade e quebras de tabus em terrenos sempre “vetados” ao corpo gordo,
como sexo e beleza. O que antes provocaria riso e zombaria já consegue ser encarado de
forma mais natural. Exemplos recentes disso são ensaios de moda feitos por confecções
de lingerie e moda praia, com gordas vestindo trajes sensuais e ousados, sem a
preocupação de esconder o que até pouco tempo atrás era visto como imperfeição. A
cantora Anitta, famosa por músicas, danças e figurinos sensuais, tem em sua equipe de
dançarinas duas mulheres gordas, o que nunca se viu em nenhum palco. Ou seja: gordo
ou não, o que importa ao corpo, agora, é a maneira como se lida com ele. A obesidade
pode ser “compensada” pela atitude em relação às próprias formas. O corpo sempre será
objeto de consumo, mas agora existem outros recursos para construí-lo de acordo com a
identidade pessoal. O emagrecimento ainda é o predominante, mas há também a
malhação, as tatuagens, os implantes de silicone, as cirurgias plásticas variadas etc.
Parece que, ao mesmo tempo em que somos transformados em nichos dos mais
variados, somos convidados a transformar e encarar nossos corpos ao sabor dos
modismos, do humor, da faixa etária, dos hormônios ou de outros elementos que
constituam nossas identidades.
138
6 - Considerações finais
Foi por estar tão habituada a ver, na mídia voltada ao público feminino, o que
“não” comer, o que “não” vestir ou o que “não” fazer com meu corpo que algo começou
a chamar minha atenção, no início dos anos 2010: a frequência cada vez maior com que
mulheres gordas eram mostradas. Revistas, catálogos de moda, novelas e filmes já não
restringiam o corpo abundante a papeis secundários ou a figurinos de senhoras. Elas já
apareciam sorridentes em sites e blogs, vestindo roupas da moda e até dando conselhos
de beleza. Na televisão, personagens gordas chegavam a ser disputadas por dois
homens. Como pode? O que motivou esse novo olhar em relação à obesidade? Como eu
já vinha estudando temas ligados a mídia, consumo e corpo, no caso o de mulheres
idosas, resolvi mudar um pouco o foco. Mudar para a minha vivência, para algo que
fazia parte de minha vida, já que a preocupação com o peso me acompanha desde a
infância. Passei a observar, então, a forma como a obesidade estava sendo mostrada pela
mídia.
139
Esse burburinho que acontecia no mundo virtual passou a ter ecos também na
mídia impressa feminina. Revistas tradicionais como Claudia, Marie Claire, Elle e TPM
já incluem, com frequência, peças plus size em seus editoriais de moda. Em alguns
casos, como em Nova, personalidades consideradas gordas como Preta Gil já foram até
capa. Algo impensável até poucos anos antes.
140
outro lado, é bastante animador ver o interesse com que lojistas e empresários buscam
informação sobre esse mercado. Ao longos dos meses, o plus size foi se tornando termo
cada vez mais comum nos veículos de comunicação, em abordagens que iam desde
comportamento até economia e saúde.
141
acordo com o que se espera de uma mulher. Ainda que o discurso plus size estimule a
valorização de atributos que não apenas a beleza, mas o carisma e a sensualidade, por
exemplo, é inegável que ele abriga algum grau de normatização e padronização.
Também os blogs especificam ideais de beleza, feminilidade e comportamentos
desejáveis para uma mulher toda como acima do peso. É desejável que o corpo seja do
tipo “violão”, com quadris protuberantes, e não o tronco; é interessante que a mulher
tenha pele, cabelos e unhas bem cuidados, que pratique exercícios e se alimente
corretamente. Além disso, ela será uma mulher gorda “bem-sucedida” se seu manequim
não ultrapassar o 48. Tal teoria é comprovada nos concursos de miss plus size e
catálogos de moda, nos quais as modelos geralmente não vestem além do tamanho 44.
Portanto, embora o discurso dos blogs plus size seja o de questionar padrões de
beleza que relacionam o corpo magro à perfeição física, eles muitas vezes acabam por
reiterar a imagem feminina tradicional e a estetização da beleza. O corpo gordo é uma
alternativa “aceitável”, porém com ressalvas. O que se pode concluir é que, se antes o
corpo gordo era um outsider, ou seja, excluído do sistema, hoje ele se tornou parte dele,
graças ao estímulo ao consumo.
Essas contradições nos discursos e práticas referentes ao universo plus size nos
faz perguntar se de fato algo mudou nas representações femininas de forma geral. Há
mesmo espaço para belezas plurais, que signifiquem mais do que apenas a aparência?
Talvez não haja uma resposta, ou, pelo menos não uma única. Acredito que algumas
horas diante da televisão ou da Internet já nos indicam alguns sinais de uma mudança
que não parece passageira. Enquanto escrevo estas linhas, as paradas de sucesso trazem
nas primeiras posições do ranking músicas de artistas mulheres, algumas acima do peso,
como no caso de duplas sertanejas. Essas artistas se apresentam nos palcos e na
televisão com trajes curtos, que não escondem seus corpos. Para elas, o importante é se
gostar e se divertir e, na carreira, ter talento. Também estão nas paradas artistas que
exploram diversidade de gênero e, com a exposição do próprio corpo, estimulam
debates sobre a liberdade de assumi-lo do jeito que ele é. Não se sabe se tal postura é
autêntica ou apenas uma maneira de chamar a atenção da mídia; seja lá como for, as
questões circulam e despertam reflexões em uma sociedade que talvez já tenha se
cansado da imposição de tantos padrões de beleza e comportamento. Ou seja: depois de
tanto tempo sendo o principal alvo dos poderes disciplinares, chegou o momento do
142
corpo ser pensado e visto como uma possibilidade de resistência. Quanto mais livre a
relação do sujeito com seu próprio corpo, mais autônomo ele será.
Por isso, é tão importante que celebridades e outras figuras se exponham e que
os chamados influenciadores (blogueiros, jornalistas, escritores etc) proponham outros
tipos de relacionamento com o corpo. Se isso é feito por meio de polêmicas, pelo
figurino ousado, por letras de música feministas, pela sensualidade exagerada, via funk
ou MPB, é sempre válido. A questão é a ressignificação do corpo feminino depois de
décadas de submissão a padrões inalcançáveis de beleza, o que muitas vezes beira o
ódio ao próprio corpo e às próprias origens étnicas.
143
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