Você está na página 1de 339

Título

original: AUTOMNE DU MOYEN AGE OU PRINTEMPS DES TEMPS


NOUVEAUX? — L’économie européenne aux XIV et XV siècles Copyright ©
Aubier, Paris, 1986 Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda. para a
presente tradução

1 edição brasileira: dezembro de 1988

Tradução: Edison Darci Heldt

Revisão da tradução: Cristina Sarteschi

Revisão tipográfica: Coordenação de Maurício Balthazar Leal

Produção gráfica: Geraldo Alves Composição: Artel — Artes Gráficas

Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes

Dados da Catalogação na Publicação (CIP) Internacional

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Wolff, Philippe, 1913-

W8390 Outono da Idade Média ou Primavera dos Tempos Modernos? /


Philippe Wolff; [tradução Edison Darci Heldt].

São Paulo : Martins Fontes, 1988. (Coleção o homem e a história)

Bibliografia.
1. Europa - Condições econômicas - Até 1942

2. Europa - História - 476-1492

3. Idade Média - História

I. Título. II. Título: Primavera dos tempos modernos.

III. Serie.

CDD-330.9401

88-2420

-940.1

índices para catálogo sistemático:

1. Europa : História economica medieval 330.9401

2. Idade Média : Europa : Condições econômicas 330.9401

3. Idade Media : Europa : História 940.1

Todos os direitos para a língua portuguesa no Brasil reservados à LIVRARIA


MARTINS FONTES EDITORA LTDA.

Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677 01325 — São Paulo —


SP — Brasil


Para Charles Morazé

Fiel companheiro de pensamento há meio século, como lembrança afetuosa de


tantas experiências em comum.


Introdução

Até data recente — e ainda é essa a visão de vários historiadores —, os séculos


XIV e XV tiveram uma reputação lastimável. Para qualificá-los, as expressões
atropelam-se: estagnação, recessão, crises. Por muito tempo, eu mesmo
compartilhei dessa opinião. É verdade que, ao trabalhar sobre uma das regiões
que mais sofreram as agruras do tempo, sem estar, longe disso, na vanguarda do
progresso — ou seja. a região de Toulouse —, eu falava, em 1952, de “uma
economia estagnante com acidentes bruscos". Não se trata aqui de negar os
motivos de tal atitude, eles apenas são certos demais; irei me esforçar para
precisar os dados. Esse será o objeto da primeira parte.

O grande historiador Jan Huizinga tinha encontrado, para designar essa época,
uma belíssima fórmula, já muito mais elaborada: a de “outono da Idade Média".
O outono, certamente, é a aproximação do inverno; mas também são tão belos os
frutos que nele se colhem! Como a tantos outros historiadores, a leitura desse
belo livro não podia deixar de me influenciar profundamente.

À medida que avançavam minhas pesquisas e meus trabalhos, eu descobria


quanto progresso e novidades — algumas destinadas a se perpetuarem até o
século XIX — trouxe essa época tão depreciada. Tanto que cheguei a me
perguntar se esse outono não era de fato uma primavera — com freqüência ainda
atravessada pelas escarchas do inverno, mas rica de promessas. Logo, em certa
medida, é meu itinerário intelectual que convido meus leitores a seguirem
comigo. Definir essas promessas será, em todo caso, a tarefa a que me dedicarei
na segunda parte.

E por fim, será necessário chegar a um balanço. Que esse é um problema árduo,
complexo, talvez sem solução, eu não teria nenhuma dificuldade em assinalar
em minha conclusão.

Mas, antes de tudo, como qualquer arquiteto que se preze, antes de construir meu
edifício, quero firmar as bases.

Santa Coloma d’Enclar, Andorra, junho de 1984


I. JOÃO QUE CHORA

A Fame, impidemia et bello libera nos, Domine! (da fome, da epidemia e da


guerra, livrai-nos. Senhor!). Assim exprimia-se uma antiga prece, carregada de
angústias e de dramas. As fomes, as epidemias, a guerra: eis a sinistra trindade
que vai absorver agora nossa atenção. Devemos, ainda, acrescentar um quarto
elemento: foi em parte da necessidade de coordenar o esforço de guerra que
nasceram — ao menos numa parte da Europa — ou se fortificaram os Estados
modernos. Mas só progressivamente adquiriram os meios necessários a suas
tarefas — os espíritos não estavam preparados. Isso obrigou-os — de maneira
desigual, é verdade — a buscar esses recursos através de práticas diversas, nas
moedas em particular, cujo efeito foi perturbar um pouco mais a vida econômica.

Em suma, os séculos XIV e XV surgem para nós em primeiro lugar como uma
"idade de ferro" — e foi exclusivamente dessa maneira que eu mesmo os vi
inicialmente.

Expliquemo-nos.
1 As fomes

Fomes e penúrias

Comecemos por uma precisão de vocabulário, que não é sem importância: a


distinção entre penúria e fome. É a morte que as separa: quando os homens
morrem de fome, é lícito falar de fome; a penúria apenas lhes causa sofrimento
e, se pode enfraquecê-los a ponto de reduzir sua resistência às enfermidades, é só
indiretamente que ela se revela mortífera.

Sabia-se que a Europa tinha suportado numerosas fomes nos séculos XIV e XV.
Mas certos estudos sofriam as conseqüências de não levar muito em conta os
aspectos geográficos: é o caso de H. S. Lucas, que fez uma boa descrição da
fome de 1315-1317 no Norte da França, nos Países Baixos, na Inglaterra, mas
deveria abster-se de qualificá-la de européia (155). Em linhas gerais, é preciso,
com efeito, distinguir as três grandes zonas climáticas (à parte as montanhas) em
que se divide a Europa. Duas delas são separadas pela “dorsal” que atravessa a
França em diagonal, do Sudoeste ao Nordeste: região atlântica e região
mediterrânica. No Leste da França começa a zona continental, que vai em
seguida se reforçando. Felizmente, era raro que as condições meteorológicas
fossem más nessas três zonas ao mesmo tempo. Foi o que aconteceu em 1480-
1482, quando o horror chegou ao seu máximo. Em geral, era possível
encaminhar, das regiões normais ou excedentes para as zonas deficitárias,
estoques aguardados com impaciência, e que as autoridades se esforçavam em
conseguir para seus administrados — com alguma dificuldade, pois os países
atravessados pelos preciosos comboios empenhavam-se com muita freqüência
em desviar pelo menos uma parte a seu proveito.
Explica-se que o problema da subsistência tenha-se colocado em termos tão
dramáticos para o conjunto da Europa pela debilidade e irregularidade da
produção; pelas más condições de armazenagem, que provocavam, de um ano
para outro, perdas consideráveis, por apodrecimento do trigo, por extensão de
diversas doenças que o tornavam impróprio ao consumo, pelos estragos
causados pelos ratos; enfim, pelos hábitos alimentares demasiado uniformes — o
milho, por exemplo, ainda não era conhecido, tampouco a batata, que mais tarde
terão um papel importante na alimentação. Uma colheita fraca bastava para
ameaçar o equilíbrio entre a oferta e a procura; duas seguidas inevitavelmente
provocavam a fome.

Sabia-se de tudo isso de modo geral. Um estudo muito recente, o de Maurice


Berthe sobre os camponeses do reino de Navarra do fim do século XIII a meados
do século XV, estruturou, pela primeira vez, nossos conhecimentos de modo
sólido (108). Seu mérito é grande por ter utilizado muito bem fontes
excepcionalmente abundantes, sem se deixar desencorajar pela própria
abundância — e isso sem que recorresse a computador. Aos “livros de lares”,
encontrados em muitas outras províncias, e que com freqüência exigem algumas
ressalvas, junta-se uma série original, quase ininterrupta de 1280 a 1454: a dos
relatórios que todos os anos o rei recebia de seus agentes a respeito das 223
comunidades que compunham seu domínio. Eles detalhavam nesses relatórios os
censos (pechas) divididos por categorias de lares — inteiros (com a família
completa), reduzidos (seja pelo falecimento do chefe de família ou ausência de
adolescentes válidos) e indigentes. Anotavam cuidadosamente as causas e a
amplidão dos progressos alcançados — ou, na maioria das vezes, da despo-
voação e do empobrecimento. O interessante é que esses domínios se achavam
bem divididos entre as diversas zonas de que se constituía o reino: atlântica,
montanhosa e mediterrânica; certos domínios eram vizinhos de cidades, como
Pampeluna. outros eram isolados. Portanto, a série de amostras é boa. Navarra de
antes de 1347 é mostrada como um “mundo cheio"; as fomes apenas começam a
agir aí, cavando vazios demográficos rapidamente preenchidos. É em 1347 que
se rompe o equilíbrio, e por muito tempo. Suspeitava-se que a Peste Negra de
1348 tinha sido precedida por uma fome, à qual diversas fontes de outros países
fazem alusões mais ou menos vagas. Dessa vez, não é mais possível duvidar:
10% das famílias navarresas foram ceifadas pela fome de 1347, antes que, no
ano seguinte, 40% desaparecessem. Certamente houve reagrupamento das
famílias, o que, contudo, jamais permitiría uma verdadeira correção. O efeito das
epidemias soma-se ao das fomes. O choque não foi apenas material. Os espíritos
foram atingidos a ponto de levar alguns camponeses ao suicídio ou à loucura.

A Navarra, dir-se-á, não é mais que um pequeno pedaço da Europa, e no mínimo


é arriscado generalizar a partir desse caso. Entretanto, comparações cronológicas
são possíveis, seja com a Europa atlântica, seja com a zona mediterrânica. A
partir desse exemplo, que não deve ser único — um melhor conhecimento da
documentação européia, que está longe de esgotar suas surpresas, sem dúvida o
permitiría —, deveria ser possível fazer um estudo sistemático da Europa dos
séculos XIV e XV. Este pequeno capítulo pretende ser principalmente um
chamado à pesquisa. Os aspectos a definir são os seguintes.

Por que essas fomes e essas penúrias (mais frequentes, parece, que no século
precedente)? Seria necessário estabelecer com a máxima precisão possível quais
foram os rendimentos e suas variações (212, 215, 242). Certas contas mantidas
pelos produtores — os senhores, eclesiásticos em particular — deveríam
permitir fazê-lo. É o caso das cifras de dízimos (216), ainda raras, mas
sugestivas: sabemos, por exemplo, que a parte do arcebispo de Aries no dízimo
cobrado nos seus domínios podia variar de 118 sesteiros em 1424 a 717 em 1442
— casos extremos, que escolhi propositalmente, mas que sugerem as desordens
da produção. A Inglaterra é particularmente rica em contas senhoriais. Jan Z.
Titow e D. L. Farmer tiraram proveito das contas mantidas pelos agentes do
bispo de Winchester (174). A partir de seus quadros depreende-se que o
rendimento do frumento podia variar de 2,51 (1351) a 5,05 (1352) para um, o
que confirma essa extrema sensibilidade ao clima: de 2,51, reflitamos, colocada
de lado a parte destinada às futuras sementes, sobra pouca coisa para a
alimentação. Nem todos os cereais reagiam forçosamente da mesma maneira ao
acaso do tempo: um dos méritos de Tits-Dieuaide é haver estabelecido
rendimentos diferenciais e portanto sugerido transportes possíveis do consumo
em caso de baixa de uma das produções (243). O mais grave é que essa fraqueza
dos rendimentos era mais ou menos inevitável: devia-se à falta de adubação,
atribuível a uma criação de animais muito pouco desenvolvida — e, nos anos
ruins, não era preciso abater o gado no início do inverno, por ser impossível
alimentá-lo no estábulo nessa estação? Com isso, era a próxima colheita que se
achava comprometida. Há aí uma espécie de círculo vicioso, do qual a
agricultura européia no seu conjunto só sairá a partir do século XVIII.

Mais frio e umidade?

Lançou-se a idéia de que uma mudança de clima, situada em torno de 1350, teria
agravado a situação. No conjunto, esse clima teria se tornado mais frio e mais
úmido. Idéia bastante séria para que estudos de caráter mundial lhe tenham sido
consagrados (149 a 153, 129, 133, 177). Não é improvável que, com efeito,
assim como as grandes glaciações no período mais antigo da pré-história, as
variações infinitamente mais suaves que constatamos nos tempos histó-, ricos
tenham afetado nosso universo. Mas são constatadas? E como?

Essas poucas observações ampliam infinitamente as fontes postas à disposição


dos eruditos. Num tempo em que o trabalho era muito mais compartimentado,
homens como F. Curschmann (123), e mais recentemente J. Z. Titow,
trabalhando sobre as mansões que pertenciam ao bispo de Winchester (174,
176), iam pouco a pouco acumulando os dados que lhes forneciam os textos, de
qualquer modo demasiado raros e lacunosos. No último instante apresenta-se
Maurice Berthe (108), a quem a Navarra forneceu uma documentação
inigualável: “Os cinqüenta mil documentos analisados nos cinqüenta tomos do
Catálogo dei Archivo General de Navarra fornecem todas as informações
desejadas sobre os acidentes climáticos, as epidemias e as guerras, sobretudo
depois de 1350. A abundância e a precisão desses documentos permitem narrar
detalhadamente a história das calamidades rurais. Nenhuma infelicidade podia
passar através da rede estendida pelas fontes. Sua trama é tão cerrada que facilita
um esboço preciso dos fatos climáticos, epidemiológicos e militares, e uma
delimitação das áreas sinistradas.” E fazer a pergunta: “O que se deve pensar da
hipótese de uma deterioração das condições climáticas? No começo do século
XIV, os anos de forte pluviosidade e de seca são freqüentes em Navarra. Mas
bastariam para provar um desregra-mento da ordem natural? São apenas as
habituais mudanças bruscas de tempo de um país reputado por sua instabilidade
climática. As chuvas dos anos 1300-1320 e, mais tarde, a seca podem ser
consideradas acontecimentos perfeitamente normais. Mais que os próprios
acidentes climáticos, o que é anormal é a amplidão das catástrofes ocorridas em
um mundo rural em desequilíbrio. A mudança reside mais em um agravamento
da receptividade dos campos às mudanças bruscas do tempo do que em uma
modificação do clima.”

A documentação mesmo assim ampliou-se prodigiosamente. São observações


meteorológicas precisas? A data do degelo de primavera, que liberava o porto de
Riga, só foi anotada a partir de 1530; mas, antes, podem-se utilizar a título de
comparação os dados finlandeses. As variações do nível do lago Suwa, no Japão
central, foram observadas durante cinco séculos pelos sacerdotes do templo
vizinho de Arakawa. Eles também anotaram a data em que a florescência das
cerejeiras era responsável por uma festa celebrada pelo imperador ou
governador; se a primavera era quente, a data evidentemente era antecipada; ora,
a série é completa do século IX ao XIX. Tais informações, contínuas, são
preferíveis às menções dos cronistas levados a transmitir somente o excepcional.
São apenas um pouco afastadas. Que pena não ser mais freqüente a menção da
convocação das vindimas! Quanto mais a bela estação mostrava-se luminosa e
quente, mais a uva amadurecia rápido, e a convocação acontecia mais cedo. Ora,
muitas vezes ela era fixada por conselheiros e anotada nos registros de
deliberações ou de polícia municipal. Dijon possui uma bela série a partir do
século XIX. Mas outras cidades — em particular as pequenas — não são
igualmente bem providas?

Deixemos o escrito. A dendrocronologia parte do fato de que todo corte de


tronco de árvore põe à mostra uma série de anéis concêntricos, sendo que cada
um deles representa o crescimento anual; portanto, seu número permite calcular
a idade da árvore. Mas sua largura indica também as condições meteorológicas
que a árvore atravessou; quanto maior é, mais suas condições foram favoráveis.
Podemos até traçar belos gráficos, com a seqüência dos anos em abscissa e a
espessura dos anéis em ordenada. Que felicidade! Mas não nos entusiasmemos.
O que entendemos por “condições meteorológicas favoráveis”? Em regiões
semi-áridas, como no Maghreb e no Sudoeste dos Estados Unidos (Arizona), a
condição favorável é a umidade; já em regiões vizinhas do círculo polar, como o
Alasca e a Escandinávia, a condição favorável é o calor. Também foi lá que a
dendrocli-matologia desenvolveu-se mais. Os melhores trabalhos foram
consagrados às sequóias americanas, com idades de 500 a 1.500 anos. Nas zonas
médias, como a Europa Ocidental, os dois elementos combinam-se, e o equívoco
começa.

A árvore. Mas também a geleira. Relativos ao crescimento ou fundição das


geleiras, ligada é claro ao rigor desigual dos climas, nossos textos mais antigos
datam do século XVI, como a notável descrição das geleiras do Ródano, por
Sébastien Münster. Mas há também vestígios de erosão glaciária e a
possibilidade de datar alguns deles pelo carbono 14: em particular as florestas
esmagadas, cujos restos foram encontrados nas morenas laterais, como em
Grindel-wald e Aletsch. Essas variações têm, aliás, ligação com o nível do mar:
quando as geleiras fundem-se, o nível do mar sobe.

Vamos aos resultados, resumindo-os brevemente. Para o período pós-glaciário,


no qual vivemos, dois tipos de mudanças do clima podem ser observados. Uma
oscilação climática de vários séculos: houve um ótimo clima localizável — em
linhas gerais — entre 4000 e 1000 a.C., que favoreceu o nascimento da
agricultura, a expansão dos cereais — com mares altos, em contrapartida a uma
fase árida no Saara. Depois estabeleceu-se um clima “subatlântico” mais fresco e
úmido, o carvalho desapareceu da Europa Setentrionai, formaram-se pântanos,
as geleiras reconstituíram-se, o nível do mar baixou. Entre esses dois grandes
períodos plurisseculares, podemos pensar em uma diferença média de 2,5°.

No interior do segundo desses grandes períodos observa-se uma oscilação


secular: situa-se entre 125 a.C. e 450 d.C. um episódio rigoroso; depois, do
século V ao século X, um retorno xerotérmico, que contribui para explicar a
expansão escandinava; em seguida, um avanço do frio, que culminará nos
séculos XVII e XVIII (150). O único problema é datar o seu começo, e sem
dúvida podemos situá-lo no meio do século XIV. A história glaciária dos Alpes é
testemunha disso: a enchente glaciária foi nítida no vale de Aosta, como no
Oisans, ou na geleira de Aletsch; em 1380-1390, face ao mar de Glace, a aldeia
do Châtelard ainda existia—ela desaparecería em 1590. Também as séries
“fenológicas” do Japão constituem testemunhos: assim, sabemos que o lago
Suwa congelou todos os anos entre 1444 e 1504 e em datas anteriores àquelas de
depois de 1840. Enfim, são testemunhas disso as menções nos anais, como os do
padre norueguês Ivar Baardson, que viveu na Groenlândia — o “país verde”! —
entre 1341 e 1364, como intendente do bispo de Gardar. Ele observa que tinha se
tornado impossível costear a região oriental, devido aos gelos sempre mais
abundantes que vinham do Norte; foi preciso então passar mais ao largo da
costa. Nós mesmos vivemos uma fase de reaquecimento, como a observação das
geleiras cada vez mais finas evidenciam. Até quando?

Pierre Pédelaborde escreveu um ensaio de explicação dessas estranhas


constatações (158). Baseia-se na existência de um “fluxo do Oeste da zona
temperada” — um movimento “zonal”, portanto, que arrasta as partículas de ar
para o Leste. Quando esse movimento é rápido, faz com que o jet-stream [1] que
o encima vá para o Sul e a frente polar provoque um esfriamento. Quando é
lento, contrai-se em volta do pólo, e o ar saariano pode subir novamente.
Percebemos essas pulsações pelas oscilações da radiação ultravioleta do Sol:
quando isso acontece, há reaquecimento.

Então somos pobres seres entregues aos caprichos do clima? É a um


determinismo climatológico que somos conduzidos? Não, sem dúvida, pois em
tudo isso a parte hipotética é importante, e não se trata senão de uma das causas
que intervém. Além disso, o homem reage, luta. Os ecologistas ensinaram-nos
muito. Aqui encontramos a atitude sã de Maurice Berthe: “Tenderiamos a ver
principalmente na pobreza dos solos os efeitos de um desequilíbrio ecológico. O
bom equilíbrio de uma terra cultivada supõe com efeito que se resti-tua
permanentemente ao meio, pela frequência das tarefas agrícolas e pelo emprego
de fertilizantes, o equivalente químico retirado com a colheita... Não sendo
suficiente o fornecimento em matéria orgânica, era preciso multiplicar ao
máximo as operações de sachadura e as lavouras. Esse trabalho intensivo de
preparação, que apenas permitia assegurar a manutenção dos rendimentos, exigia
uma força de trabalho considerável e constante. Nesse sistema, o rendimento por
unidade de trabalho investido era bastante baixo, mas só ele assegurava uma
produção suscetível de satisfazer as necessidades...” Será preciso nesse caso pôr
em causa o regime social? A questão permanece aberta..

A essas causas mais ou menos permanentes, é necessário acrescentar os efeitos


recorrentes das epidemias: com certeza, elas reduziam o número de bocas a
alimentar, porém ainda mais o dos braços aptos ao trabalho. E. além disso,
podiam haver, de maneira localizada. as repercussões da guerra, a presença de
homens armados que impediam a cultura normal dos campos, quando não
resultava na destruição ''gratuita” e caprichosa dos pés de trigo e das videiras
cheias de cachos.

Também seria preciso estudar os comportamentos das populações atingidas pelas


penúrias e fomes. A desigualdade social tinha aí um papel importante: os mais
ricos podiam, quando as notícias mostravam-se más, comprar todo seu grão de
uma só vez, ao preço mais baixo e, em seguida, dosar o consumo, isso quando
não chegavam a se transformar em especuladores. Os assalariados mais
modestos deviam, ao contrário, fazer compras a cada oito dias, e suportar
diretamente a alta dos preços. Muitas vezes, as oscilações de preços revelam
toda a amplidão dos problemas colocados nas bolsas: para muitas cidades, em
tempo normal, o aprovisionamento familiar tinha um papel importante, e o
mercado permanecia pouco comercializado; mas, com a chegada da crise, todos
recorriam a ele ao mesmo tempo, no instante em que a oferta estava mais baixa
que nunca. Então, delineava-se uma vertiginosa alta dos preços, acrescida pelo
que os economistas chamam “o efeito King” (isto é, a exageração da evolução
normal, devido a fatores principalmente psicológicos, ver pp. 83-4). O consumo
evoluía de maneira não menos significativa e, entre outros, é Charles de la
Roncière que o constata na Florença do século XIV (73):

“Aos primeiros sinais de encarecimento do frumento, uma parte de


consumidores suplementares volta-se para o cereal panificável mais próximo,
sobretudo o centeio; acentuando-se a carestia, o centeio torna-se raro, seu preço
faz com que também ele seja inacessível para alguns, e então o milho miúdo e as
favas passam a preencher esse papel de substituto junto a um novo grupo de
consumidores...”
Não é preciso dramatizar a menção, freqüente sob a pena dos analistas: em caso
de fome, as pessoas contentavam-se em alimentar-se de herbes. A palavra herbes
tinha então um sentido muito mais vasto que em nossos dias: incluía as saladas e
diversos legumes que cresciam de maneira mais ou menos selvagem e que hoje
compõem a alimentação dos vegetarianos.

Seria preciso estabelecer as políticas dos poderes públicos face aos problemas
colocados pela penúria (8,99). As vezes, são as autoridades monárquicas, mas,
ainda com mais frequência, as municipais que devem enfrentá-la. Elas mandam
os comerciantes ao exterior, com a missão de conseguir a qualquer custo os
grãos que, se for necessário, revenderão com prejuízo. Proíbem a saída dos grãos
armazenados na cidade e, se preciso, colocam guardas nas portas para vigiar a
aplicação de suas ordens. Procedem às requisições e às per-quisições. Em caso
extremo, chegam a fixar preços máximos, medida cuja eficácia pode, aliás, ser
discutida.

Seria preciso cartografar uma geografia da produção e do consumo dos


alimentos. Ela faria com que aparecessem grandes mercados permanentes de
demanda: as grandes cidades — onde a cultura dos campos estabelecidos nas
parcelas abandonadas graças ao despovoa-mento era apenas um pequeno
paliativo —, as regiões industriais povoadas — como uma arte dos Países
Baixos —, as regiões especializadas, como o Bordelais, na viticultura. Ao lado
disso, mercados de produção permanente, que deviam seu papel exportador seja
à riqueza natural de seus solos, caso da Sicília, da região de Aries, da Barbaria
(isto é, da África do Norte), seja à frugalidade de seus habitantes, como na
Apúlia, na Sardenha, na Catalunha. Havia ainda zonas normalmente
exportadoras, mas que podiam se encontrar “fora de jogo” em razão de alguma
penúria: as planícies das bacias parisiense e londrina, as do alto Languedoc, a
Limagne, as grandes extensões cemalíferas vizinhas dos Países Baixos (Hainaut,
Ar-tois...). Enfim, seria preciso estabelecer uma cronologia o mais completa
possível das penúrias e das fomes no curso dos séculos XIV e XV, levando em
consideração seu caráter geral ou regional — o que F. Curschmann tinha tentado
já em 1900 —, mas tirando partido do considerável enriquecimento de nossa
documentação desde então.

Assim, tornar-se-á evidente como uma Europa mal emersa do mundo da fome
era vulnerável aos outros flagelos que a espreitavam.

[1] Vento forte a grande altura. (N.T.)


2. As epidemias

Era uma vez... Mas acabando as pestes do século VI, relatadas, entre outros, por
Gregório de Tours, ainda encontrava-se alguém para ler a menção nas raras
bibliotecas? É então como um acontecimento novo que a peste chega à Europa
Ocidental, em 1347. Descrevamos os fatos antes de tentar uma interpretação
(110, 116, 170, 184).

Um mal diferente de qualquer outro

Todos os testemunhos concordam em situar a origem da peste na Ásia Central,


onde ela existia em estado endêmico. O grande viajante Ibn Batouta, que visitou
a índia Meridional um pouco depois de 1342, assinalou-a ali. Em 1347, os
próprios mongóis, que sitiavam o estabelecimento mercantil genovês de Caffa,
no mar Negro, foram atingidos e, por um requinte de crueldade, enviaram vários
cadáveres para a cidade através de suas máquinas de guerra. Um navio que
partiu de Caffa para a Itália semeou, na passagem, a peste em Constântinopla;
depois chegou a Gênova: quando deu-se conta do mal que transportava e
ordenou-se que partisse, era tarde demais. A peste atacava a Itália pelos portos.
As cidades do interior não souberam organizar nenhuma defesa. Boccaccio
deixou-nos uma descrição muito viva das devastações da peste em Florença:

“Já havíamos chegado ao ano 1348 [1347] da fecunda Encarnação do filho de


Deus, quando a cidade de Florença, nobre entre as mais famosas da Itália, foi
atormentada pela epidemia mortal. Que a peste tenha sido fruto das influências
astrais ou o resultado de nossas iniqüi-dades, e que Deus, em sua justa cólera, a
tenha lançado sobre os homens como punição de nossos crimes, de qualquer
modo ela se manifestara alguns anos antes nos países do Oriente, onde provocara
a perda de uma quantidade inumerável de vidas humanas. Depois, sem
interrupção, grassando passo a passo, ela propagou-se para nossa infelicidade em
direção ao Ocidente. Todas as medidas profiláticas mostraram-se sem efeito. Os
agentes especialmente encarregados em vão limparam a cidade de seus montes
de lixo. Em vão interditaram a entrada da cidade a todo enfermo e multiplicaram
as prescrições de higiene. Inutilmente recorreram, e muito mais que uma vez, às
súplicas e preces costumeiras nas procissões, e às de um outro tipo, cujos
devotos se desobrigam com Deus. Nenhum resultado foi obtido. Desde os dias
primaveris no ano a que me referi, o horrível flagelo começou a manifestar, de
maneira surpreendente, suas devastações dolorosas.”

As outras cidades italianas foram acometidas durante á primavera de 1348, e


poderiamos, infelizmente, multiplicar os testemunhos enlouquecidos de
contemporâneos. Depois a calamidade atingiu a Provença — pelos Alpes e pelo
mar —, e de lá o Languedoc. A carta de um cônego flamengo que veio a
Avignon informa-nos sobre sua extensão. Desde abril de 1348, a região de
Toulouse tinha sido atingida; nenhum texto narrativo nos guia, mas sabemos que
a peste impediu a arrecadação dos impostos previstos para as muralhas da
cidade; um dos três grupos de moinhos que trabalhavam para a alimentação dos
habitantes (o da Daurade) foi abandonado; apenas quatro dos doze
capitouls [1] de 1347-1348 continuarão capitouls depois (podem ter morrido na
ocasião). A Península Ibérica foi atingida ao mesmo tempo pelos Pireneus e, da
Itália, por mar. Maurice Berthe expõe a alternativa a respeito da Navarra, onde a
existência da peste é provável desde julho de 1348. A partir de 2 de maio, ela já
chegara em Barcelona; em Aragão, instalou-se apenas em setembro. Entretanto,
de Toulouse e de Avignon, ela subia para o Norte. Bordeaux (fim de junho),
Lyon (desde maio), Paris (junho) estavam “ganhas”. Logo foi toda a Europa
Ocidental. Ingleses e escoceses lutavam como sempre na sua fronteira; o
vencedor comemorou cedo demais a vitória e, no próprio local de acampamento,
tombou quase todo. A Alemanha e, depois, a Europa Oriental terão sua vez
(1349-1350). O mal extinguia-se ao cabo de alguns meses, de 1348 a 1351
conforme os lugares. Pôde-se acreditar que desaparecera.
“Então, quando a epidemia, pestilência e mortalidade chegavam ao fim, os
homens e as mulheres que sobravam casavam-se à porfia“, declara, numa frase
citada muitas vezes, a Chronique latine de Gui-llaume de Nangis. Assim, voltou
o otimismo, e os múltiplos nascimentos que se sucederam logo preencheríam os
vazios, se... Deve ter sido um golpe horrível essa peste de 1361-1362, ainda
geral, que ceifou tantos jovens — às vezes, chamada "peste das crianças” — e
aniquilou a esperança! (136)

De fato, desde então, a peste instala-se como em sua casa. Não há mais epidemia
universal, mas uma espécie de foco endêmico que desperta em datas diversas
conforme os lugares. Foi preciso um certo tempo até que se elaborasse uma
sinistra contabilidade. Um cronista de Orvieto assinalou: “A primeira peste geral
aconteceu em 1348 e foi a mais forte.” Depois acrescentou: “Segunda peste,
1363. Terceira peste, 1374. Quarta peste, 1383. Quinta peste, 1389.” Uma outra
mão completou: “Sexta peste, 1410” (El. Carpentier, 117). “E também o caso de
Châlons-sur-Marne. As datas de epidemia na cidade parecem obedecer a um
ritmo, e destaca-se um golpe por decênio: 1455-1457, 1466-1467, 1479, 1483,
1494-1497, 1503, 1516-1517, 1521-1522” (J. Delumeau, 337 bis, segundo 138).
Daí a análise de Jean-Noèl Biraben: “Se acompanharmos a história da peste
numa cidade nessa época..., constataremos que ela passava, a cada oito, dez ou
quinze anos, por violentos impulsos em que toda a cidade era atingida, perdendo
até 20, 30 e mesmo 40% da população. Fora desses paroxismos, ela persistia em
estado semi-endêmico, vagando caprichosamente de uma rua ou de um bairro a
outro, periodicamente, durante um, dois, e até cinco ou seis anos seguidos,
interrompendo-se depois durante alguns anos. Reaparecia então sob essa forma
‘atenuada’ que muitas vezes precedia a forma ‘explosiva’.”

Daqui e dali chegam-nos os testemunhos, inumeráveis, sendo que a única


dificuldade é a de escolher entre eles. Elegerei os de Toulouse (99), porque
embalaram a minha juventude.

Eis aqui ainda um precioso testemunho, datado de fevereiro de 1417: os


capitouls assinalam as pestes e mortalidades sobrevindas há trinta anos, e mais
recentemente de três em três anos. A devoção supersticiosa que cercava o
número 3 pode ter levado os capitouls a sistematizar fatos em que se via uma
manifestação da cólera divina. Mas outros documentos confirmam essa
multiplicação dos ressurgimentos da doença no começo do século XV. 1406:
vários contratos firmados em setembro prevêem o caso de epidemia, para
autorizar um aprendiz a voltar para sua terra de origem, ou justificar o
rompimento de uma sociedade. 1411: a Universidade adverte que as
mortalidades tinham aumentado o número de práticos exercendo a profissão sem
haver obtido seus diplomas regulares de médicos, os capitouls proíbem esse
abuso, o provisor eclesiástico excomunga os contraven-tores; o rei Carlos VI
ordena ao preboste que puna os culpados. 1414: em setembro, o mesmo rei
constata que a mortalidade impediu o pagamento de vários impostos.

Graças a um registro do Colégio de estudantes de Périgord, aqui estão


informações mais precisas sobre a epidemia de 1420: na sexta-feira, dia 13 de
setembro, o prior diminui a alimentação do Colégio, pois vários estudantes
tinham abandonado a cidade com medo da mortalidade; em dezembro, ele deve
ir a Rodez, a fim de encontrar mão-de-obra — que se tornara rara em Toulouse
devido à epidemia — para os trabalhos das vinhas... Somente em 1440 o flagelo
irá se desencadear realmente de novo. Desde meados de janeiro, manifesta-se na
região de Toulouse, assim como em Saint-Agnan perto de Lavaur, onde o
enviado do Colégio de Périgord, encarregado de receber os censos, não ousa
permanecer. Em agosto, quase todos os estudantes fugiram, um criado do
Colégio voltou para sua terra, os trabalhos agrícolas tornaram-se difíceis. A
epidemia encontra-se no auge em setembro, o prior fica quase sozinho no
Colégio. Finalmente, o prior também foge...

Dez anos mais tarde, eis novamente o flagelo desencadeado. Mais uma vez, é o
prior do Colégio de Périgord quem nos informa: em julho de 1450, ele fugiu
para Sarlat, sua terra natal, devido à peste que grassava em Toulouse; em sua
ausência, foi eleito outro prior, em 24 de outubro de 1450. Só vem assumir sua
administração em fevereiro de 1451: o mal apenas assola então algumas vilas
das redondezas de Toulouse, mas, com o verão, ganha de novo toda a sua
extensão. No início de setembro, o prior vai a Périgueux: a entrada das grandes
cidades, Cahors, Sarlat, está proibida para ele. Seu relato ainda exala o terror:
“Se eu tivesse sido acometido pela peste (bo-cium), do que, em sua clemência
infinita, me preservou Cristo, a quem presto louvores e graças, ninguém me teria
conduzido, sequer levado ao albergue, mesmo que tivesse as mãos repletas de
escudos.” (Ph. Wolff)

Basta. Não temos a menor dúvida. Há três formas de peste, propagadas pelo
mesmo bacilo (110). A mais conhecida é a peste bubônica, devida à picada de
moscas ou de pulgas infectadas, doença que atacava a glândula linfática. Jean de
Venette descreve o mal, destacando sua rapidez: “Eles só ficavam doentes dois
ou três dias e morriam de repente, o corpo quase são; aquele que hoje estava com
boa saúde amanhã estava morto e enterrado... aquele que, estando são, visitava
um doente dificilmente escapava do perigo da morte.” Um único sintoma, “sinal
infalível de morte”, atrai sua atenção: os bubões, tumores que nascem
bruscamente na virilha e sob as axilas. Numa carta enviada de Avignon, o já
citado conego de Bruges, Louis Hei-lingen, assinala também esses “apostemas”,
mas enumera ainda outros sofrimentos: uma infecção intestinal e uma afecção
pulmonar acompanhada de escarros de sangue. A Peste Negra de 1348 associou
duas formas da epidemia: a peste bubônica e a peste pulmonar. Esta última é
contagiosa de homem para homem, sua incubação dura pouco, a evolução do
mal é rápida: as chances de sobrevivência são ainda menores que no caso da
peste bubônica.

Um fato essencial foi bem percebido pelos contemporâneos: o caráter contagioso


da doença. E apenas no nosso tempo que se conhecem suas causas, que a
pseudociência de outrora identificava como a poluição do ar, sob o efeito de
temíveis conjurações astrais ou de emanações pútridas que vinham do chão.
Consideramos inúteis as precauções que tomavam então, aspergindo dinheiro e
cartas com vinagre, acendendo fogos purificadores nas encruzilhadas das cidades
contaminadas, desinfetando roupas e moradias com enxofre e perfumes fortes, só
saindo com o rosto coberto por uma máscara com o formato de cabeça de
pássaro cujo bico era cheio de substâncias odoríferas. Em compensação, nem as
crônicas antigas nem a iconografia indicam como sinal precursor da peste a
mortalidade dos ratos, sobre a qual insiste Albert Camus no célebre romance A
peste. Os ratos não se locomoviam a ponto de transportar a epidemia de uma
cidade a outra! Mas o contágio inter-humano foi bem denunciado. Se as
purgações e as sangrias, o temor da transmissão do mal pelos dejetos dos
doentes, o abate de animais (boi, cavalo...) não portadores de pulgas foram vãos,
queimar os tecidos nas casas contaminadas, entretanto, era judicioso. Os
“sábios" podiam não concordar, mas o bom senso popular tinha razão: “A
intensidade da epidemia, anota Boccaccio, aumentou devido ao fato de os
doentes, por seu comércio diário, contaminarem os indivíduos ainda sãos.
Assim, como o fogo, que é alimentado pelas matérias secas ou gordurosas que
lhe são contíguas.” O isolamento e a fuga eram então o melhor remédio. Ainda é
Boccaccio quem faz com que Pampinéia diga: “Acho bem aconselhável
seguirmos o exemplo que muitos nos deram e ainda nos dão, isto é, abandonar
estes lugares.”

Indiquemos, todavia, que o homem pouco a pouco aclimatou-se a esse mal.


Enquanto em 1348 todo indivíduo atacado morria, alguns decênios mais tarde
era possível sobreviver: Francesco Datini é um bom exemplo disso, mesmo se
em seus anos de velhice sua saúde tenha sido duramente comprometida (61).

Assim foi passando o tempo — e as epidemias estouraram aqui e ali até 1720,
quando o último surto do flagelo no Ocidente aconteceu em Marselha (118).

“A terça parte do mundo”?

É Froissart que o afirma: morreu “a terça parte do mundo” (entenda-se: a


Europa). Terá ele razão? Coloca-se aí, em todo caso, o primeiro problema: o dos
efeitos demográficos da peste.

As respostas não faltam. Os contemporâneos assustados fizeram avaliações que


podem nos parecer excessivas. E, em primeiro lugar, Boccaccio:
“A crueldade do Céu, e talvez dos homens, foi tão rigorosa, a epidemia castigou
de março a julho com tanta violência, muitos doentes foram tão mal socorridos,
ou mesmo, devido ao medo que inspiravam às pessoas que passavam bem.
abandonados numa tal miséria, que temos razão segura para estimar em mais de
cem mil o número de homens que perderam a vida na cidade. Antes do sinistro,
não se havia notado talvez que em nossa cidade existia uma tal quantidade.
Quantos grandes palácios, quantas belas casas, quantas residências, outrora
cheias de servos, de senhores e de damas, viram enfim desaparecer até o mais
humilde servidor! Quantas ilustres famílias, quantos imponentes domínios,
quantas fortunas reputadas ficaram privadas de herdeiro legítimo! Quantos
valorosos senhores, belas damas e graciosos rapazinhos, aos quais não só a
Faculdade, mas Galeno, Hipócrates e até Esculápio teriam conferido um
certificado de boa saúde, tomaram sua refeição da manhã com seus pais, seus
camaradas e seus amigos, e, vinda a noite, sentaram-se no outro mundo à ceia de
seus ancestrais."

Jean de Venette concluiu que houve “um número de vítimas como nunca se
ouvira dizer, nem se lera ou vira nos tempos passados” — e arriscou uma
avaliação, verdadeira ao menos “em certos lugares”: “para cada vinte habitantes,
só restavam dois com vida”. O abade de Saint-Martin de Tournai contou nessa
cidade 25.000 mortos: puro exagero já que não podiam existir ali mais que
20.000 almas antes da epidemia. Certo, e no entanto...

No entanto, as verificações precisas que se puderam fazer são impressionantes.


Na França, graças à comparação de recenseamentos que enquadram o flagelo,
sabe-se que em Castres e Albi a metade da população morreu ou fugiu (147,
161). Na Alemanha, segundo os cálculos — discutíveis, é verdade —, em 1350,
a peste já tinha levado 50% dos habitantes de Magdeburgo, 50 a 66% dos de
Hamburgo, 70% de Bremen (100, 145). No fim das contas, podemos aderir à
razoável conclusão proposta por Yves Renouard: “... A proporção dos
falecimentos devidos à peste em relação ao conjunto da população parece ter
oscilado entre 2/3 e 1/8 conforme as regiões” (71). Vamos ao encontro de
Froissart.
“Conforme as regiões.” Quer dizer em particular que as cidades, sobre as quais
somos muito melhor informados, sofreram maiores perdas que os campos, onde
a população estava mais disseminada? Aqui, as opiniões divergem. René Fédou,
certamente com razões para isso, afirma em relação à região de Lyon: “Os
campos foram menos atingidos que as cidades, onde a promiscuidade favorecia o
contágio; as planícies foram-no mais que as montanhas, onde o clima mais rude
dificultava a propagação do micróbio.” Isso está de acordo com a hipótese que
formularíamos a priori. Há muito tempo, todavia, sabemos que o pároco de
Givry, vila próxima de Beaune, na Borgo-nha, cujo registro paroquial por feliz
exceção foi conservado, contou 39 falecimentos em 1345, 25 em 1346, 42 em
1347 — mas 649 do começo de janeiro a meados de novembro de 1348, dos
quais 615 entre 2 de agosto e 19 de novembro. Na Provença, o conde mandou
efetuar uma pesquisa nas cercanias de Aix em julho de 1349: a aldeia de Rians
passou de 300 para 213 lares, proporção que chega a 92-40 e 40-11 em duas
aldeias vizinhas (103). Mais recentemente, Maurice Berthe é bastante claro
quanto à Navarra: “O relevo acidentado do país, sua fragmentação em vales bem
fechados, e também a altitude podiam levar a prever uma contaminação
moderada. A baixa densidade humana nessas zonas de montanha era
aparentemente uma garantia suplementar. E, no entanto, a disseminação foi
geral... As aldeias isoladas foram todas infestadas” (108). Isso está de acordo
com as impressões de Boccaccio: “Se bem que os camponeses morrem nos
campos como os citadinos aqui mesmo, nós os vemos reagir com menos
angústia, pois as casas e os habitantes apresentam-se de forma menos densa que
na cidade.” O mais prudente é não deduzir, ou dizer como Michel Mollat: “No
fundo, as devastações tiveram força desigual na cidade e também no campo:
algumas aldeias foram muito atingidas, outras, como Garges [perto de Paris],
foram relativamente poupadas.” (17 e 17 bis)

O flagelo foi mais seletivo socialmente? Seríamos tentados a acreditar nisso. Era
mais fácil para um rico fugir, assegurado como estava de um domicílio rural,
menos dependente de um ganha-pão que o prendesse no lugar. Onde existem, os
recenseamentos são claros: o contágio devastava mais os bairros populares.
Entretanto, os grandes deste mundo não foram poupados. Em Paris, o bispo
Foulque de Chanac morreu em julho de 1349, a duquesa da Normandia, em
outubro, e a rainha Joana da Borgonha, a 12 de dezembro. “O efetivo de monjas
do Hôtel-Dieu teria caído de 102 para 40, mas, segundo os registros capitulares,
as fileiras dos cônegos de Notre Dame foram menos rarefeitas: em média, para
36 a 38, dois morriam por ano; ora, seis morreram em 1348, mas apenas um no
ano seguinte. Em compensação, cerca de 30% dos monges de Saint-Denis (trinta
para uma centena) foram vítimas da peste" (Michel Mollat, 17 bis). Podemos
ampliar: o clero era ao mesmo tempo privilegiado (pensemos nos monges
protegidos pelos muros espessos de suas abadias) e exposto. Sua atitude foi
muito diversa (183). Jean de Venette queixa-se"... Em muitas cidades, grandes e
pequenas, os padres abalados pelo medo afastavam-se”. Evidentemente, não foi
esse o caso do pároco de Givry. “A Peste Negra retira todos os agostinianos de
Avignon, todos os frades franciscanos de Carcassonne e de Marselha (nessa
cidade eles eram 150). Em Maguelone só ficam 7 cordelianos em 160; em
Montpellier 7 em 140; em Santa Maria Novella de Florença, 72 em 150. Os
conventos dessa Ordem em Siena, Pisa e Lucca, que tinham menos de 100
irmãos, perdem respectivamente 49, 57 e 39. Alguns Conselhos Municipais são
dizimados do mesmo modo. Em Veneza, 71% dos membros do Conselho são
levados, em Montpellier 83%, em Béziers 100%, em Hamburgo 76%” (J.
Delumeau, 337 bis). O mesmo Jean de Venette elogia religiosas parisienses em
1348: “E as santas irmãs do Hôtel-Dieu, não temendo a morte, cumpriam até o
fim suas tarefas com a maior doçura e humildade; e, em número considerável,
muitas das ditas irmãs, mais de uma vez renovadas em consequência dos vazios
provocados pela morte, repousam, como cremos, piedosamente, na paz do
Cristo.” Concluímos, portanto, que essa seleção existia, mas era muito relativa.

Podemos ser ainda mais claros quanto à seleção regional. Em 1348-1350. nem o
Béarn (89), nem a Flandres, nem a Boêmia foram atingidos com severidade. A
peste de 1361-1362 devia ser mais temível. Às vezes, o recorde cabe mesmo a
um ataque ulterior.

Conclui-se assim o esforço para calcular a amplitude do dano. Falemos agora


das consequências econômicas, sociais, morais e religiosas, até mesmo artísticas
(112, 115, 128, 132, 140, 141. 148. 157. 159, 160).
Um efeito lógico da peste foi a crise de mão-de-obra: de maneira incontestável,
com a fuga completando a obra da morte, faltavam braços para o trabalho — e
tanto mais que. com a ameaça da morte tornando vão o entesouramento, muitos
compradores apressaram-se em gozar a curta vida que, pensavam eles. restava
para viver. Por toda parte foram tomadas medidas de precaução. Mas em
nenhum lugar, parece, foram concebidas e aplicadas de modo tão sistemático
quanto na Inglaterra. Desde 18 de junho de 1349, enquanto a peste estava em seu
auge no reino, Eduardo III enviou aos xerifes dos condados uma ordem,
observando que “alguns, ao verificarem as necessidades dos senhores e a falta de
criados, só querem servir sob a condição de receber salários excessivos, e outros
preferem permanecer ociosos e mendigar do que ganhar a vida trabalhando”. Em
seguida, todos os homens e mulheres válidos, com idade abaixo de sessenta
anos, deveríam aceitar o trabalho que poderíam ser requisitados a fornecer. Os
senhores teriam prioridade para utilizar a mão-de-obra de seus vassalos, mas só
deveríam exercê-la na exata medida de suas necessidades. Essa obrigação do
trabalho era completada pelo congelamento dos salários, a referência foi
fornecida para o ano 1346 e para os anos precedentes: ninguém podia exigir,
ninguém podia oferecer ou pagar soldadas ou ordenados superiores aos que eram
então costumeiros na localidade ou na região. E isso valia tanto para os artesãos
das cidades — a ordem enumerava os principais ofícios — quanto para os
camponeses. A mendicância era proibida para os homens válidos, e ninguém
devia dar-lhes esmolas, “a fim de que sejam obrigados a trabalhar para viver”
(164).

Esse estrito programa foi apoiado num severo sistema de sanções: todo
contraventor, culpado na justiça, ficava preso até que fornecesse fiador
garantindo seu trabalho. Todo beneficiário de um aumento de salário — ou todo
empregador que aceitasse pagá-lo — devia ser multado no dobro da quantia
paga. A má vontade dos empregadores era prevista: se eles próprios ou seus
agentes se opusessem de certa maneira à ordem, poderíam ser denunciados nos
tribunais reais, e a multa poderia ser triplicada.

Se assim se esforçavam para congelar os salários, seria normal que fizessem o


mesmo com os preços! A ordem quanto a isso era menos peremptória.
Contentava-se em exigir dos comerciantes de víveres que pedissem “um preço
razoável”, conforme os preços praticados nas cercanias, de modo que só
obtivessem “um lucro moderado, não excessivo”. A imprecisão das fórmulas
permitia várias interpretações. Aí também o encorajamento à delação e a
triplicação das multas dos contraventores deviam possibilitar combater a má
vontade das autoridades municipais, mas o problema mesmo assim colocava-se
de maneira inquietante.

Não tardou que os juizes ordinários se sobrecarregassem de queixas e denúncias,


e a aplicação da ordem ressentiu-se disso. Também o Parlamento, ainda mais
rigoroso que o rei, completou o texto e promulgou-o sob a forma de um estatuto
(9 de fevereiro de 1351). Foram criadas comissões de juizes dos trabalhadores, e
algumas atas de suas sessões, conservadas até nossos dias, permitem observar
sua atividade. Ela era encorajada pelo fato de que as multas recebidas por seu
intermédio eram deduzidas do montante do subsídio devido ao rei pelo condado
em questão. Para os anos 1352 a 1354, calculou-se que 6% do imposto foi
coberto dessa forma, o que não podia ser menosprezado. Essas multas eram
pagas sobretudo pelos assalariados; as condenações de empregadores foram
relativamente raras. Dessa forma, isso resultava, até certo ponto, em lançar o
peso dos impostos sobre os mais pobres.

A aplicação do estatuto dos trabalhadores sem dúvida não bastou para impedir os
aumentos de salário (e de preço!). Os próprios empregadores buscavam com
demasiada freqüência conseguir mão-de-obra a qualquer preço, e muitos
assalariados, deslocando-se sempre, escapavam das multas. Mesmo assim, esses
aumentos foram, até certo ponto, freados. Mas a contrapartida foi a tensão
mantida em todo o país por esse gigantesco esforço. Sem dúvida, ela não
contribuiu pouco para a degradação das relações sociais, e não é estranha à
explosão de descontentamento, tão violenta e tão surpreendente, que a
sublevação dos trabalhadores de 1381 deveria representar.

Em outros lugares não houve repressão tão rigorosa. Na França, onde a


administração real era organizada de maneira menos estrita, medidas análogas só
foram tomadas no contexto do prebostado de Paris. Em Castela, o rei Pedro I —
dito o Cruel — promulgou, nas Cortes de 1351, ordens válidas para as diversas
partes de seu reino. Longas e minuciosas, elas definiam por categorias os preços
e os salários autorizados. Os diaristas, cujo trabalho era obrigatório, eram
punidos com chicotadas. Os artesãos pagavam multas em caso de exigências
excessivas. Mas não parece que essas ordens tenham sido aplicadas de forma
muito estrita e contínua (113).

Passada a primeira fúria de despesas que tomara conta dos sobreviventes, e


sobretudo nos segmentos que ela não atingira, o despovoa-mento causado pelas
epidemias no final das contas resultou numa crise de mercado. A febre dos
salários durou apenas um certo tempo — com exceção talvez da Inglaterra e de
alguns outros lugares. A regulamentação da maioria das cidades traduz a
preocupação de reservar a freguesia local para os artesãos locais, e de limitar o
número de mestres. Desde a segunda metade do século XIV, os estatutos de
ofícios restringiam o acesso ao mestrado, tanto para os estrangeiros quanto para
os criados. A obrigatoriedade de um exame, que exigia freqüentemente um chef-
d’oeuvre, longo e caro de ser executado, o pagamento de um encargo, o hábito
de se oferecer um banquete aos colegas, às vezes o depósito de uma garantia:
tantas barreiras tornavam a tarefa quase impossível para os criados, mas eram
extintas para os filhos e os genros de mestres.

Assim chegamos às conseqüências sociais da epidemia. As linhas precedentes


explicam a tensão crescente nas relações entre categorias sociais. Já se falou de
um intenso “ódio de classe em tempo de epidemia”. Só estamos tão bem
informados devido à existência de documentos modernos que mostram os ricos
acusando os pobres de haverem propagado o contágio, os pobres censurando os
ricos de só cuidarem de si mesmos. E razoável vislumbrar manifestações de ódio
de classes nos pogroms que, em inúmeros lugares, acompanharam a epidemia. O
fato foi constatado de maneira particular na Espanha e no vale do Reno. Em toda
a Catalunha, os judeus, considerados semeadores de peste, foram massacrados
aos gritos de Muyren los traydors, logo que o flagelo anunciou-se: assim foi em
Barcelona, depois em Cervera, em Tarrega, em Gerona, em Lleida...; o rei, a
quem os judeus pertenciam, e que deles extraía preciosas rendas, esforçou-se,
com mais ou menos eficácia, para protegê-los. Na Alsá-cia, antes mesmo que
surgisse a peste (cuja aproximação se anunciava), as “judiarias” foram invadidas;
teria chegado a 2,000 o número de vítimas em Estrasburgo (127). Corria o boato
de que os judeus envenenavam poços e fontes, que misturavam à comida um pó
suspeito. O fato de terem pago à morte um tributo pelo menos tão elevado
quanto as outras categorias da população nada alterava; chegaram até a divulgar
a idéia de que eles sofriam pouco da epidemia. Além dessas vítimas
mencionadas, o próprio desenrolar dos pogroms mostra que os ódios estavam
sempre prontos a dirigir-se para os ricos.

No entanto, podemos sustentar que, materialmente, a peste tinha sido proveitosa,


se não para todos (pois era preciso ter algo para herdar), ao menos para muitos.
O exemplo de Albi, privilegiado pela documentação, mostra bem que os bens
dos defuntos foram repartidos com bastante igualdade entre os sobreviventes;
nenhuma reviravolta social resultou disso, a desigualdade social não aumentou
(161). Entretanto, essa situação — muito embora pudesse ser constatada em
inúmeros lugares — não iria durar. Já a concentração das fortunas tendia
inevitavelmente a favorecer os ricos. Mas não bastava acumular bens: ainda era
preciso poder valorizá-los. Os ricos, que podiam recorrer a uma mão-de-obra
assalariada, tinham melhores condições. Inevitavelmente, muitos bens foram
abandonados por falta de braços, e vieram a somar-se a todos aqueles que os
processos de sucessão mantinham longamente fora das mãos dos herdeiros.
Seguiu-se um empobrecimento sensível. Mais ou menos por toda parte, os
documentos fiscais revelam essa inchação da categoria dos pobres.

Social e moral misturam-se tanto! Já avancei no domínio do moral e do


psicológico, ao qual volto agora. Seria de se imaginar, como iremos ver, que, se
a opinião corrente professava que a peste era um flagelo mandado por Deus para
o castigo de nossos pecados, os sobreviventes fossem se esforçar para pecar
menos. Matteo Villani não esconde sua surpresa:

“Poderiamos acreditar que os homens, poupados pela graça de Deus, tendo visto
seus próximos exterminados e estando informados de que coisas semelhantes
haviam acontecido em todas as partes do mundo, teriam se tornado melhores,
humildes, virtuosos e católicos, que evitariam as iniqüidades e o pecado e iriam
se encher de amor e de caridade uns para com os outros. Mas, quando a peste
acabou, aconteceu exatamente o contrário, pois os homens, que sobraram em
número reduzido e que se enriqueceram de bens terrestres graças aos herdeiros e
às sucessões, esquecendo os acontecimentos passados como se não tivessem
acontecido, entregaram-se a uma vida mais escandalosa e mais desordenada que
antes. Desse modo, abandonando-se à preguiça e à devassidão, pecaram por
glutonaria, em busca de festins, tabernas e das delícias de um alimento delicado,
assim como dos jogos, deixando-se levar sem controle ao excesso, procurando
modos estranhos e incomuns de se vestir e as maneiras desonestas, introduzindo
novidades no corte de todas as roupas. E a arraia-miúda, homens e mulheres,
devido à excessiva abundância das coisas, não queria mais exercer os ofícios
habituais; exigia a comida mais cara e mais delicada para sua mesa cotidiana, e
permitia-se que os servos e as mulheres de baixa condição se casassem, vestindo
as belas e ricas roupas das damas nobres defuntas. E sem nenhum recato nossa
cidade quase inteira abandonava-se a uma vida desonesta e, de maneira
semelhante ou ainda pior, iam as outras cidades e países do mundo."

O próprio Boccaccio, que, no entanto, não se fazia de moralista, descreve esse


frenesi;

"... (Para outros) entregar-se francamente à bebida como aos prazeres, dar a volta
pela cidade divertindo-se, e, com a canção nos lábios, conceder toda satisfação
possível a suas paixões, rir e troçar dos acontecimentos mais tristes, tal era,
conforme seus propósitos, o remédio mais seguro contra um mal tão atroz. Para
passar da melhor maneira de um tal princípio à prática, eles iam dia e noite de
taberna em taberna, bebendo sem constrangimento, nem limites. Mas era bem
pior nas moradas privadas, por pouco que acreditassem achar nelas matéria para
prazer e para distração.”

Naturalmente, os próximos não se viam mais: o temor do contágio não


recomendava esse afastamento contra a natureza? Boccaccio insiste: “O desastre
lançara tanto pavor no coração dos homens e das mulheres que o irmão
abandonava o irmão, o tio o sobrinho, a irmã o irmão, amiúde mesmo a mulher o
marido. E o que é mais forte e quase inacreditável: os pais e as mães, como se
seus filhos não mais lhes pertencessem, evitavam vê-los e ajudá-los.”

Acabo de lembrar: a cólera divina em geral é a explicação última que se dá da


epidemia. A iconografia representa Deus lançando suas flechas nos homens. Na
verdade, a imagem era anterior ao cristianismo, mas ele a retoma e a populariza.
“As flechas da epidemia aparecem pela primeira vez num quadro do altar dos
Carmelitas Descalços (1424) de Gottingen. O Cristo lança-as em chuva densa
sobre os homens. Dezessete personagens são transpassados por elas. Todavia,
vários outros estão protegidos pelo grande manto da Virgem — este último tema
seria retomado muitas vezes. Um afresco de B. Gozzoli a San Gimignano (1464)
mostra Deus Pai, apesar de Jesus e Maria ajoelhados, lançando a flecha
envenenada sobre a cidade que tinha sido atingida pelo contágio no ano
precedente.” (J. Delumeau)

Entendemos por que a peste propagou o culto de São Sebastião: se ele morreu
crivado de flechas, não afastaria as da peste de seus protegidos? Podemos ver aí
a aplicação de duas das leis invocadas pela magia, as da semelhança e do
contraste: o semelhante para suscitar o contrário. Um outro santo muito mais
venerado depois de 1348 foi naturalmente São Roque:

“As duas fontes hagiográficas que difundiram a vida e a legenda deste (morto
em 1327?) contam que Roque, nascido em Montpellier e que depois viveu na
Itália, foi atingido pela peste e expulso de Piacenza. Refugiou-se numa choça nas
cercanias da cidade. O cachorro de caça de um senhor da vizinhança começou a
roubar pão da mão e da mesa de seu dono, levando-o com regularidade ao
doente. Intrigado, o dono, chamado Gothard, um dia seguiu o cachorro,
compreendeu a manobra e alimentou Roque até sua cura. Em troca, o santo
converteu Gothard, que se tornou eremita. Roque, quando voltou a Montpellier,
não foi reconhecido pelos seus. Considerado um espião, foi posto na prisão,
onde morreu. Então a masmorra iluminou-se e o carcereiro descobriu perto do
corpo a inscrição traçada por um anjo: eris in pestis patronus." (J. Delumeau, 337
bis)
Em seguida, as relíquias de Roque foram trasladadas de Montpellier para
Veneza. Desde então, a fortuna do santo medrou rapidamente, a ponto de
ultrapassar a de São Sebastião.

Um fenômeno próprio da Alemanha foi a multiplicação dos cortejos de


flagelantes, penitentes que faziam procissão com o dorso nu, chicoteando o de
seu predecessor. Uma crônica anônima deplora-o: “Esses flagelantes fizeram
muito mal ao clero por suas predições e sua sublevação.” Na maioria dos outros
países, o clero controlava melhor a situação. O papa Clemente VI instituiu uma
missa particular contra a peste: “O papa concedeu a todos aqueles que ouvirão e
dirão essa missa 260 dias de indulgência. Todos os que ouvirem a missa
sobredita deverão carregar na mão uma vela acesa durante cinco dias
consecutivos e não poderão ser atacados de morte súbita. Isso é seguro e
aprovado para Avignon e região. Segue-se o ofício da missa.

“Intróito. Lembre-se, Senhor, de sua aliança e diga ao anjo exter-minador: que


sua mão pare doravante e deixe de arruinar a terra e de fazer perecer todo ser
vivo. Ouça-nos, você que dirige Israel, você que conduz José como uma ovelha!

“Glória ao Pai. Como ele era. Lembre-se, Senhor.

“Oração. Ó Deus, você que não deseja a morte, mas o arrependimento dos
pecadores, permita em sua benevolência, nós lhe suplicamos, que seu povo se
volte para você, a fim de obter, graças à sua submissão, que se afaste dele o
chicote da cólera.” Etc.

A vela acesa. Eis o que anunciam os “cintos de cera” oferecidos à Virgem e aos
santos antipestilentos por municipalidades enlouquecidas. Assim, em 1348 os
cônsules de Montpellier deram à Notre-Da-me-des-Tables um círio que uma
procissão levaria em torno da cidade sobre as muralhas. O exemplo foi seguido
por Amiens em 1418, Compiègne em 1453, Louviers em 1468 e 1472, Nantes
em 1490 (em honra a São Sebastião), Chalon-sur-Saône em 1494 (a São Vicente)
— ao menos a documentação nos fornece esses nomes. É a origem dessas
grandes procissões, a um só tempo penitenciais e propicia-tórias, das quais o
futuro propagará o uso, apesar do esforço das autoridades alarmadas justamente
com a idéia do foco de contágio suscitado por tais multidões.

Já fiz várias vezes alusão ao papel da peste na iconografia. Ela também teve
conseqüências artísticas. Pode-se considerar que, desde o século XIV, ela tivesse
sido “uma fonte ignorada de inspiração artística” (H. Mollaret e J. Brossollet). É
mais ou menos certo que o tema da Dança Macabra, em que homens e mulheres
de todas as condições são arrastados numa ronda infernal por esqueletos care-
teiros, nasceu com a grande epidemia de 1348. Encomendas de quadros
representando esse tema, em ligação com golpes do flagelo, estão atestadas entre
outros na Basiléia (1439, reproduzido por Me-rian) e em Lübeck (Marienkirche,
1463). Os artistas não cessarão de sutilizar a representação do flagelo: dedos
tapando narizes sugerindo o fedor dos moribundos, acumulação de cadáveres
que apodrecem entre os vivos aguardando que sejam retirados, etc. O capítulo 12
desta obra sugere outros aspectos dessa aspiração. Na verdade, é toda a vida que
é invadida pela morte!

[1] Assim se chamavam os antigos magistrados municipais de Toulouse. (N.T.)


3. A guerra

Tradicionalmente, os historiadores faziam da guerra o fator essencial da vida


econômica. A prosperidade aparecia não apenas ligada de modo indissolúvel à
paz, mas necessariamente provocada por sua manutenção. É o que exprimia de
maneira ingênua Arthur Coville, ao escrever, em 1909, seu texto para a Histoire
de France, de Ernest Lavisse: “O reino gozava felizmente naquela época [início
do século XIV] da maior prosperidade que tenha conhecido na Idade Média. No
século XIII e no primeiro terço do XIV, a paz só muito raramente tinha sido
interrompida.” Longe de mim a intenção de negar a existência dessa ligação!
Mas de uma parte aprendemos que a guerra é uma realidade complexa, que só
podemos compreender verdadeiramente graças a estudos locais e regionais
cuidadosos. E, de outra, compreendemos que o estado econômico depende de
outros fatores além do peso dos exércitos.

Não só a França conheceu, nos séculos XIV e XV, o triste jogo dos conflitos e
das agitações. Mas cabe-lhe a palma com certeza (4, 190). Na Alemanha, a
ausência de um poder imperial respeitado fez com que reinasse uma anarquia
mais ou menos grande. E o “Faus-trecht", o “direito do murro”: aos senhores
salteadores as cidades opõem suas milícias e seus comboios, sendo que muitas
vezes elas se associam para organizá-los e mantê-los. De 1414 a 1436, a Boêmia
e seus arredores atravessaram, além disso, a crise hussita, que não esteve livre de
arruaças. Em suma. a situação é bastante confusa e evolui pouco. — Na Itália, o
Sul está fortemente dominado pelos reis de Nápoles, e depois, após a conquista
por Alfonso V, o Magnífico (v. 1420-1442), pelos reis de Aragão. O centro
feudal, sob administração pontificai, multiplica os avatares que, por algum
tempo, fazem os papas decidirem mudar de Roma para Avignon. No Norte,
grandes Estados urbanos desenvolvem-se, não sem luta entre si. Nenhum desses
diversos distúrbios, que se desencadeavam intermitentemente, arruinava de fato
ou mesmo atingia profundamente o estado do país. — Na Península Ibérica, a
situação também é variável: Castela é palco de querelas dinásticas, e depois de
uma verdadeira anarquia durante a maior parte do século XV. A região de
Aragão permanece mais calma até a grave guerra civil de 1461-1472, que atinge
sobretudo Barcelona e seus arredores. Os Reis Católicos asseguram no fim do
século XV uma pacificação progressiva e geral. —A Inglaterra parece a antípoda
da França, mais ou menos tranqüila até 1450, salvo alguns breves episódios.
Durante bons trinta anos, a Guerra das Duas Rosas afetou sobretudo as Midlands
e o Norte. Depois a calma voltou. — É sobretudo com a França que quero
entreter o leitor.

Sua experiência é então única. A França suporta, sozinha, ao que parece, todo o
peso da Guerra dos Cem Anos (194). Mas convém definir o que significa
verdadeiramente essa expressão, no tempo e no espaço.

Ambigüidades de um doloroso privilégio

Em primeiro lugar, o que é a França nos séculos XIV e XV? Essencialmente


uma unidade política, um reino engajado nas querelas de seu soberano. Porém,
além de subsistirem ali grandes feudos, e de a soberania monárquica não ter
estado livre de contestações e de eclipses, durante esses dois séculos, ela não é
nem uma unidade climática nem econômica, e só de maneira progressiva torna-
se uma unidade moral, uma “nação”. Isso contribui para explicar a extrema
diversidade das situações, das quais veremos que ela caracteriza esse vasto
(conforme a época) conjunto.

Por outro lado, não seria inútil insistir sobre o que há de enganador na expressão
Guerra dos Cem Anos. A luta durou mais e menos de cem anos. E a
conseqüência natural do conflito surgido entre capetianos e plantagenetas nos
séculos XII e XIII. Ela ressuscita pouco antes de 1300, sob o rei invasor Filipe
IV, o Belo, da França. Só acabará em 1453, com o acordo assinado em Castillon
na Guyenne — simples trégua, na verdade, mas depois da qual a guerra não se
reacenderá. Entre 1300 e 1453, os anos de paz ou de trégua foram pelo menos
tão numerosos quanto os anos de guerra. Recordemos de forma sumária as
grandes fases do conflito: segundo uma tese tradicional, que me esforcei em
combater, a guerra começa em 1337, quando Filipe VI da França confisca a
Guyenne e Eduardo III da Inglaterra, contestando até sua legitimidade, também
faz-se coroar rei da França. Mas as tréguas predominam até 1346, quando Crécy
marca a primeira grande batalha. Após várias tréguas, os combates recomeçam
em 1355 e ganham novas regiões. João II, o Bom, esmagado e preso em Poitiers,
resigna-se em assinar o tratado de Calais, que deixa para Eduardo III, com plena
soberania, toda a parte ocidental de seu reino. Paz novamente. Mas é então que
aparece o flagelo mais grave. A guerra só opunha até então exércitos pouco
numerosos e temporários, portanto, só causava danos estritamente localizados.
Tudo iria mudar com a formação das Grandes Companhias.

Assim são chamados os agrupamentos de bandos de mercenários, que tinham-se


engajado a serviço de um dos dois reis, insuficientemente providos pelo serviço
feudal, mesmo pagando soldo. Com o retorno da paz, eles deveríam
normalmente se dissolver, voltando cada qual para sua casa. O que dizer? Esses
bandos eram compostos de homens que já tinham portado armas e camponeses
desenraizados — tristes frutos das fomes e das epidemias — comandados por
pequenos nobres, geralmente bastardos, os quais deviam procurar um meio de
viver fora da senhoria. Ninguém estava disposto a voltar para casa. Os bandos
agruparam-se, então, e começaram a trabalhar para eles, vivendo no país — o
que agravava consideravelmente o mal. Ele tornava-se permanente e tendia a
generalizar-se, os capitães de grandes companhias abandonavam de bom grado
as regiões devastadas para apegarem-se às zonas até então poupadas.

Após haver tentado evacuar uma parte desses “soldados" para Castela, Carlos V
da França reinicia a guerra em 1368, em resposta ao pedido dos senhores
gascões. Habilmente secundado por Bertrand du Guesclin, tem o cuidado de
evitar as grandes batalhas que foram tão nefastas para seus predecessores. A luta
prende-se ao solo, regionaliza-se. Assim mesmo, não deixa de provocar danos,
muito pelo contrário. Quando Carlos V morre em 1380, quase todo o reino foi
reconquistado, mas suas populações debatem-se nas mais profundas misérias, e o
falecimento do rei é acompanhado por uma série de sublevações, que estouram
em regiões tão diversas como o Lan-guedoc, a região parisiense, a Normandia e
Flandres. O novo reino na França parece anunciar-se sob auspícios favoráveis;
os conselheiros do novo rei Carlos VI conseguem expulsar em grande parte as
companhias, depois estabelecem negociações de paz e de reconciliação com os
conselheiros de Ricardo II da Inglaterra. Entre 1390 e 1410 aproximadamente, o
reino da França goza de vinte anos de relativa calma.

Entretanto, o conflito vai se reiniciar: na França a guerra civil entre Armagnacs e


Borguinhões, na Inglaterra o advento dos Lan-castre que se apoiam no
sentimento francófobo e a esperança de revanche conduzem a ele
inexoravelmente. O infeliz Carlos VI, que enlouqueceu, é o joguete das facções.
Em 1415, o exército francês sofreu novamente uma derrota humilhante em
Azincourt. Os distúrbios estão no auge por ocasião da assinatura do tratado de
Troyes (maio de 1420). Há então três Franças: a dos Lancastre, programados
herdeiros legítimos do trono francês e da coroa da Inglaterra; a do delfim Carlos,
o reino de Bourges; também o Estado borguinhão que se constituiu pouco a
pouco, da Borgonha aos Países Baixos. Sabe-se que a epopéia de Joana d’Arc
assegurou a vitória daquele que parecia o mais fraco, o qual passou a ser Carlos
VII pela sagração de Reims e que pôde entrar em Paris, reconciliar-se com o
duque de Borgonha, e terminar a conquista da Normandia e da Guyenne. A Luís
XI restará a tarefa de abater o ameaçador Estado borguinhão e vencer as
coalizões feudais.

De uma região a outra, a fisionomia do conflito foi extremamente diferente.


Algumas foram quase totalmente poupadas: o Béarn, a Alsácia (ainda não
francesa), e numa certa medida a maior parte do Estado borguinhão. Ao
contrário, as regiões bordelesa e parisiense foram devastadas da maneira mais
contínua possível (188). Entre esses dois extremos, encontram-se situações
muito diversas, com justaposição de vilas destruídas e outras levemente
atingidas em uma mesma zona. Evoquemos rapidamente as desgraças do Bor-
delais e as da região parisiense. Depois, passemos para uma província vizinha do
reino, Provença, que sofria de seus próprios males, ao mesmo tempo em que
suportava as conseqüências da guerra franco-inglesa.
Foi o saudoso Robert Boutruche quem descreveu de maneira minuciosa as
experiências da região bordelesa, onde a fragilidade do precioso vinhedo tornava
ainda mais cruéis as devastações cometidas em volta do Bordeaux inglês (31).
No século XIV, há períodos alternados de destruições e de restaurações. A região
cura suas feridas com mais continuidade de 1379 a 1403, mas o restabelecimento
é lento, incompleto. De qualquer maneira, seus resultados são comprometidos
pelo brutal, breve e infeliz esforço de conquista francês de 1403 a 1405. Depois
disso, a região fica a salvo por mais de trinta anos, que são aproveitados para
uma “reconstrução", aliás medíocre. A guerra recomeça depois de 1438: são, de
início, os saques sistemáticos dos écorcheurs [1] e, depois, a reconquista
francesa que acabam fazendo cair Bordeaux em 1450 e 1453. Os danos materiais
são acompanhados por uma crise de autoridade: confiscos e represálias
enfraquecem o mundo dos senhores, intimados a escolher entre ingleses e
franceses. Suas ligações com o mundo dos camponeses são quase
completamente rompidas.

A região parisiense é, sem dúvida, a mais infeliz de todas. O aplicado trabalho de


Guy Fourquin (47) permitiu reconstituir a imagem dessa zona próspera, com um
povoamento espantosamente denso antes de 1348 (134). A presença da capital é
um elemento de animação nos bons dias, mas uma perigosa vizinhança por
ocasião das guerras. Um primeiro período muito duro, aproximadamente de
1346 a 1365, é seguido até 1410 de uma longa fase de reconstrução, cujos
resultados são, na verdade, bastante decepcionantes; o equilíbrio que acaba se
estabelecendo permanece num nível muito inferior ao de 1342. No século XV,
grassam “trinta anos terríveis, talvez o período mais infeliz da história da região
parisiense”: em primeiro lugar é a guerra civil que suscita, depois de um alerta
em 1405, distúrbios e saques de 1410 a 1418. Depois é a ocupação anglo-
borguinhona que provoca represálias e devastações normais, além da luta contra
os partidários do delfim, que são numerosos a resistir nas vizinhanças da região
de Orleans. Depois de 1429. as tropas do delfim tomado rei (Carlos VII da
França) estreitam seu cerco a Paris, a qual acabam ocupando. Após 1436, os
ingleses conservam várias fortalezas, Meaux, Creil, Montereau, etc., e há falta de
recursos para desalojá-los. Assiste-se a uma espécie de apodrecimento. A
verdadeira calma só volta em 1441. Então é possível “reconstruir”.
Tudo isso aconteceu na França. Às portas do reino, eis a Provença, dividida há
séculos, e que em 1481 será integrada ao reino da França. Da primeira metade do
século XIV até aproximadamente 1470, é o palco de uma encruzilhada de
conflitos e de desgraças. Para nos conduzir nesse dédalo, dispomos felizmente
de um guia excelente, Louis Stouff (83). Para começar, ela faz parte do reino de
Nápoles, posse dos Anjou, herdeiros de Carlos de Anjou, irmão de São Luís; por
isso, é disputada entre duas linhagens, os Duras e os Tarente. Mas Robert de
Duras morre na batalha perdida de maneira tão deplorável pelo pobre rei da
França, João, o Bom, perto de Poitiers em 1356: um de seus parentes, o senhor
dos Baux, resgata sua causa. Mas Poitiers justamente deixou sem emprego uma
grande companhia, dirigida por um certo Arnaud de Cervole, dito o Arcipreste.
Instado por um dos rivais, ele atravessa o Ródano (13 de julho de 1357),
incendeia a cidade de Tours d’Aix (isto é, um fragmento da atual cidade de Aix-
en-Provence), Saint-Maximin, Brignoles, Dra-guignan. “Em 1365, o perigo
parece aproximar-se novamente: tropas mercenárias descem o vale do Ródano
com Duguesclin.” Evitemos considerar de modo muito inocente esse servidor, no
entanto, fiel do rei Carlos V da França: costumava colocar-se à frente de
companhias, para dirigi-las no “bom sentido”, certamente, mas as pessoas do
lugar tinham dificuldade em diferenciá-lo! Por enquanto, Duguesclin toma
Tarascon e sitia Aries (11 de abril de 1368).

Após um curto descanso, os mercenários reaparecem entre 1374 e 1376. Em


1380, morre a titular do trono de Nápoles, Joana, dita a Louca, que adotou Luís
de Anjou. Começa uma luta sucessória; as cidades provençais inquietam-se e
põem-se de acordo; o rei da França intervém por intermédio de seu senescal de
Beaucaire. Isso não é tudo: em 1378 eclode o Grande Cisma do Ocidente,
escândalo provocado pela oposição entre dois papas, um dos quais reside em
Roma, e o outro em Avignon. É Clemente VII, e ele apóia a causa dos Anjou. A
confusão chega ao auge entre 1382 e 1387, como também na vizinha França
meridional, onde acaba de se desencadear a revolta dos tuchins. Os tuchins
propriamente ditos eram pobres coitados que viviam em bandos, na Haute-
Auvergne, de pilhagens realizadas com a cumplicidade dos habitantes pobres das
cidades. Os distúrbios que se sucederam no Languedoc depois de 1379 abriram-
lhes essa vasta região, assim como a Provença, onde se propaga um tipo de
Jacquerie [2] rural.
Louis Stouff retoma o fio: “Uma das páginas mais sombrias de sua história (de
Aries) situa-se na noite de 24 para 25 de julho de 1384, com a chegada de um
bando de tuchins comandado por Ferra-gut.” Dispondo de cúmplices na cidade,
Ferragut pode penetrar nela, apenas por algumas horas, pois os representantes de
Luís de Anjou levam vantagem. Irá recompensá-los, aliás, em 21 de outubro de
1387, com uma dessas recepções reais através das quais o cerimonial começa a
fixar-se por toda parte. Mas já antes um sobrinho de Gregó-rio XI, papa de
Avignon, resolvera manifestar-se: Raimond de Tu-renne, personagem lendário
“de quem os eruditos provençais escreveram o romance mais do que a história”
(Noél Valois). Com tropas mercenárias a seu serviço, ele ocupa os domínios
pontificais em Pro-vença, entre os quais Les Baux. Mas eis que, em 1386,
desentende-se com o papa e os Anjou. Durante doze anos, com base em Les
Baux, pratica sítios, incursões armadas, pilhagens em toda a região, contribuindo
desse modo para o prolongamento do Grande Cisma.

Os perigos também vinham do mar. Mouros, genoveses, vizinhos malévolos


estavam sempre prontos a desembarcar e causar danos. Sobretudo o rei de
Aragão, Alfonso V, o Magnânimo, contesta aos Anjou a posse do reino de
Nápoles. A partir de 1420, Aries sofre as conseqüências da rivalidade dos
angevinos e dos aragoneses em Nápoles. Estes conduzem em Provença uma
guerra impiedosa. “A partir de 1426 e até 1452, a palavra ‘catalão’ aparece todos
os anos nas atas das deliberações comunais... A partir de 1453, as menções são
mais raras, porém até cerca de 1470 e mais além o catalão continua sendo o
inimigo.” (L. Stouff)

Vê-se que o reino da França não teve o monopólio da anarquia política e militar.
Não se duvida de que ela tenha marcado os espíritos: todos os anos, em 25 de
julho, uma procissão percorre as ruas de Aries em recordação da entrada dos
tuchins. “A persistência desse acontecimento na memória coletiva dos arlesianos
destaca seu caráter excepcional.”

A guerra não teve outras conseqüências além desse choque psíquico?


Uma sinistra contabilidade

No início deste capítulo, citamos a opinião de um Arthur Coville — historiador


de merecido renome —que, em 1909, atribuía à guerra as desgraças do tempo.
Depois, tentamos descrever o que fora a guerra — confusão de acontecimentos
medíocres, diversos conforme as regiões. E nos encontramos novamente diante
de nossa questão inicial. Em boa companhia. Eis aqui Kenneth Fowler em 1968:
“E, entretanto, por mais que tentemos minimizar os efeitos da guerra sobre a
sociedade francesa da baixa Idade Média, nos escritos da época, nas crônicas,
tratados, nas epístolas e leis, assim como nos decretos governamentais, jurídicos
e financeiros, centrais ou locais, essa guerra não deixa de aparecer como a fonte
de todas as misérias e sofrimentos da época, mais ainda que as epidemias e a
fome...” (Le siècle des Plantagenêts et des Valois, trad. J. Fillion, Paris, 1968).
Eis ainda Jacques Heers, professor de história econômica nessa velha Sorbonne:
... Parece difícil dar muito crédito às teorias que associam de maneira estreita
todas as desgraças da época a uma ‘reviravolta’ da conjuntura que o estado atual
das pesquisas estatísticas não permite nem analisar nem mesmo definir de um
modo seguro. A história calculada da conjuntura do Ocidente medieval no fim da
Idade Média talvez seja possível de se fazer; mas ainda não está feita...” (Actes
du Colloque International de Cocherel, Les Cahiers Vernonnais, 1964)

Atrás deles, e com sua experiência arlesiana, Louis Stouff coloca, por sua vez, a
questão (83): é possível, afirma, “ver a parte de cada um dos elementos da
célebre trilogia: guerra, penúria e peste... Para o Aries da baixa Idade Média, a
penúria é um acidente; a peste um mal periódico; a guerra uma ameaça
permanente”. E enumerar as conseqüências que são atribuídas sem contestação à
guerra: os numerosos edifícios em ruínas, às vezes derrubados por ordem das
autoridades e por precaução (sobretudo se encontram-se fora dos muros); o
recolhimento, ao interior dos muros, de vários estabelecimentos eclesiásticos
(resultando, como na maioria das cidades, numa remodelação da topografia), e
inúmeros refugiados; o abandono de uma parte das terras, que são devastadas
pelos que fazem a guerra. Se somamos a isso as repercussões psíquicas evocadas
mais acima, o prato vai pesar na balança. Não é minha intenção negá-lo.
Vou então, por minha vez, fazer a sinistra contabilidade da guerra. Terá ceifado
muitas vidas? Um cálculo rigoroso é impossível, só conseguimos formar uma
idéia geral. As batalhas não mataram muita gente. Os exércitos, cujo tamanho
meu velho mestre Ferdinand Lot dedicara-se a desmistificar, e que mais
recentemente Philippe Contamine resolveu descrever (191), não eram muito
numerosos, e estavam mais preocupados em fazer prisioneiros — pelo menos
entre os cavaleiros, devido aos resgates esperados — do que em matar. Havia
“abusos”, naturalmente, e os profissionais não eram os únicos em causa. Cidades
e vilas sitiadas também propiciavam ocasiões de incêndio e de assassinatos. A
crônica de Jean de Venette ilustra bem essa guerrilha muitas vezes mais
sangrenta do que as grandes batalhas campais. Mas nada disso pode se comparar
com as abundantes ceifas das fomes e das epidemias.

Das consequências demográficas, passemos às conseqüências econômicas. E


evidente que a cultura tenha se deteriorado com as guerras, que campos e vinhas
tenham sido abandonados, que terras, arrancadas do baldio no século XIII,
tenham retornado a esse estado, substituídas por medíocres arbustos. Na França
corria o provérbio: “Os bosques voltaram com os ingleses.” A trégua, a paz
significavam a possibilidade de “reconstruir”. Mas ainda era necessário que
houvesse ali homens para descobrir isso e que neles existisse vontade de fazê-lo.
Que o comércio padeceu com a insegurança geral é o que demonstra o que foi
dito diante de Froissart por um chefe de bando envelhecido, Aimerigot Marchès:

“Não há tempo, diversões, ouro, prata, nem glória neste mundo, que homens de
armas e de guerrear tenham vivido, como o que anteriormente vivemos. Como
ficavamos contentes quando partíamos para a aventura e podíamos encontrar um
rico abade ou um rico prior ou um rico mercador, ou um itinerário de mulos, de
Mont-pellier, de Narbonne, de Limoux..., de Béziers, de Carcassonne ou de
Toulouse, carregados de tecidos de ouro ou de seda, de Bruxelas ou de
Montivilliers, e de peleteria vinda de Bruges, ou outras mercadorias vindas de
Damasco ou de Alexandria! Tudo era nosso ou extorquido segundo nossa
vontade. Todos os dias, tínhamos novo dinheiro... Palavra de honra, essa vida era
bela e boa!”
Esse texto é citado com freqüência. Não é menos admirado por sua precisão
quanto pelo sentimento que o anima. Se tivessem encontrado os ouvidos
complacentes de um Froissart, quantos outros salteadores teriam podido dizer os
mesmos chavões! Não dramatizemos: em geral só eram surpreendidos os
comerciantes que não tinham tomado a precaução de se munir dos salvo-
condutos fornecidos, contra dinheiro sonante, por agentes dos chefes de bandos.
Eram chamados de pâtis, termo também usado com referência às quantias pagas
pelos povoados para evitar qualquer dano a seus territórios, ou pelas autoridades
para conseguir escapar dos temíveis bandos. Definitivamente, tudo passava a ser
questão de dinheiro. Mas será possível colocar isso em números?

Assim se manifestam para nós as conseqüências financeiras das guerras. Para


que essas guerras existissem, eram necessários homens que as praticassem, mas
também instituições que as organizassem. Alguns Estados esforçaram-se para
possuir essas instituições. O “preço da guerra” foi pago em parte por intermédio
de Estados nascentes e de suas finanças. Depois da sinistra trilogia, é preciso
evocar o difícil parto dos Estados. Aliás, será esse estudo que nos permitirá
responder à fatídica pergunta: epidemia, fome ou guerra, qual é a pior? O
exemplo da Inglaterra prova que, por intermédio das finanças de guerra, um país
pôde ser atingido sem nunca ter sido o teatro de operações. A resposta deve
então variar de região para região, a proporção dos fatores deve modificar-se de
uma para outra. Só depois de haver evocado pelo menos rapidamente as finanças
de guerra é que poderemos tentar medir as responsabilidades.

[1] Grupos de salteadores que durante a Guerra dos Cem Anos aterrorizaram a
França. (N.T.)

[2] Revolta dos camponeses franceses contra os nobres, durante o cativeiro de


João, o Bom, estendendo-se o termo depois a toda revolta dos pobres contra os
ricos. (N.T.)
4. Difícil parto dos Estados

Comecemos pelas definições (193 bis). Um Estado (do latim: sta-tus) é uma
entidade definida por seu território, que é demarcado por fronteiras conhecidas
com precisão; por sua população, que reconhece pertencer-lhe; por seu governo,
que dispõe do monopólio da autoridade suprema (nos limites do simples direito
internacional) e a exerce para assegurar a ordem pública e promover o bem
geral. Esse governo é reconhecido pelo conjunto das nações. Seus súditos
consideram-no como a “coisa pública” (res publica), instituída para o benefício
de todos, qualificada, portanto, para cobrar impostos, administrar justiça, criar
um exército, emitir a moeda, etc... Convém distinguir o Estado da sociedade:
esta é a livre associação de homens em famílias, classes ou grupos, independente
de todo controle político — é, no entanto, nesse sentido que se falava de
“estados” nos séculos XIV e XV: clero, nobreza, terceiro estado. Também
convém distinguir o Estado da nação, que supõe não só uma linguagem comum
— esse qualificativo não se aplicaria à nação suíça pelo fato de ali haver quatro
línguas oficiais? —, mas uma tradição, uma cultura, uma vontade de viver
juntos, que não coincidem necessariamente com as fronteiras dos Estados.

Foram os pensadores gregos — Platão e Aristóteles em particular — que


destacaram essas noções. Para eles, o Estado confundia-se com a cidade (polis).
Os romanos retomaram-nas, e exerceram sobre elas sua reflexão jurídica, ao
mesmo tempo em que as estendiam ao conjunto de seu Império. A queda do
Império Romano, pelo menos no Ocidente, assinalou o eclipse dessas noções.
Carlos Magno tentou ressuscitar o Império, mas era incapaz de diferenciá-lo de
seus bens de família, assim como de estabelecer uma clara distinção entre
espiritual e temporal. Os séculos seguintes iriam suportar o peso dessas
confusões.

Os poderes universais — Império e Igreja romana, dirigida pelo papado — iriam


se esgotar num conflito estéril (salvo no plano das idéias, já que iria favorecer o
renascimento do direito romano). O primeiro saiu exangue: na Alemanha e na
Itália, as cidades, ou os senhores, grandes e pequenos, exerceríam por muito
tempo as funções estatais no seio desse grande espelho partido. A Igreja ficou
sob a influência do rei da França, sob cuja proteção o papado veio se estabelecer
no século XIV, em Avignon. Quando esse papado retornou a Roma, o Grande
Cisma do Ocidente não demorou a eclo-dir, e deveria perturbar os espíritos até
mesmo em pleno século XV.

Mais feliz, a Inglaterra soube encontrar, juntamente com os anglo-saxões e


pressionada pelo perigo normando, um Estado: desde os séculos IX e X. os reis
de Wessex legislavam. A conquista da Inglaterra pelos normandos, em 1066,
assegurou afinal a manutenção dessa tradição: pois os normandos — também
provariam isso na Sicília — eram juristas natos. Nos séculos XII e XIII, essa
noção de Estado refina-se na Inglaterra. O continente encontra-se menos
avançado: na França, a monarquia dos capetianos desliga-se, durante o século
XIII, dessa desintegração do Estado que a feudalidade constituía. Contudo, as
implicações desse desenvolvimento ainda não eram claramente compreendidas
nem definidas. Com muito mais razão nas diversas Coroas da Península Ibérica.

Assim apresentam-se — em ordem dispersa — os diferentes reinos no limiar do


século XIV. Os séculos XIV e XV, com todas as suas desgraças, acrescentariam
nos espíritos humanos progressos decisivos às noções definidas acima. Mas só
ao final de um parto difícil é que o Estado iria renascer: Não sem que a
economia sofresse dolorosas conseqüências.

Nascimento do imposto (193 e 193 bis)

Por volta de 1300, ainda era corrente na França a noção de que o rei devia viver
“por sua conta”, ou seja, das rendas normais de seu domínio, como todo senhor
— e que só podia recorrer à ajuda de seus vassalos (e, através deles, de seus
súditos) em casos bem definidos pelo costume feudal: resgate em caso de
cativeiro, sagração de cavaleiro do filho primogênito, casamento da filha
primogênita, partida para a Cruzada. Esse sistema mostrava-se cada vez menos
apto a cobrir as despesas crescentes da Coroa: ainda era suficiente para as
despesas dos palácios (do rei, da rainha, até dos príncipes), indispensáveis ao
prestígio da monarquia. Mas era necessário responder às despesas crescentes da
administração, e o feudo-renda foi concebido para isso. Porém, cedo ou tarde,
seria substituído pela concessão de verdadeiros estipêndios. Também era preciso
— recorrendo a donativos — conduzir uma diplomacia dispendiosa, mas
necessária. E sobretudo havia a guerra — em particular quando eclodiu a Guerra
dos Cem Anos! Era necessário que o rei solicitasse a ajuda de seus súditos,
mesmo que tivesse que discutir o assunto com seus representantes. Os Estados
Gerais, constituídos de delegados do clero, da nobreza e do terceiro-estado,
reunidos desde o fim do século XIII por ocasião das lutas com o papado, foram o
lugar natural desses debates.

Nessa evolução, seria decisiva a crise de 1355-1356: o rei João, o Bom, fora
aprisionado perto de Poitiers. O direito feudal previa uma ajuda para o
pagamento de seu resgate — mas que resgate enorme, um ano não bastaria para
pagá-lo! No dia seguinte à derrota, o delfim Carlos (futuro Carlos V) teve de
reunir os Estados Gerais, mas, antes de tudo, para obter os subsídios necessários
ao prosseguimento da guerra. Os representantes dos contribuintes concederam os
subsídios, mas impuseram condições: sua utilização deveria ser controlada, a
administração das finanças "extraordinárias" não seria confiada aos funcionários
que geriam a fortuna do rei. mas a "eleitos" que organizariam a coletoria e
supervisionariam o uso. Instituição duradoura: mesmo quando os “eleitos"
passaram a ser nomeados pelo rei novamente poderoso, o nome permaneceu,
distinguindo finanças ordinárias e extraordinárias. Destacava-se a idéia de um
imposto devido não à pessoa do rei, mas ao Estado.

Durante os meses que se seguiram, os Estados Gerais tornaram-se


desacreditados com a crise política. E foi com as assembléias locais, as cidades e
comunidades de habitantes que o delfim teve que discutir para obter o montante
necessário ao resgate do rei. Exigiram também que a arrecadação fosse confiada
a seus eleitos, e o delfim concordou ainda com mais boa vontade, já que as
comunidades tornavam-se desse modo responsáveis por essa arrecadação.

Assim foi criado o hábito do imposto. Não sem protestos de ambas as partes, a
quantia era concedida apenas por um certo tempo e para um objetivo
determinado. No meio do século XV, o imposto tornara-se praticamente
permanente. O rei fixava o montante, mesmo que tivesse de discutir a base em
certas províncias, como Langue-doc, Dauphiné, Normandia... Mas o peso dessa
novidade era sentido de maneira cruel. Para nos restringirmos a um exemplo: em
Toulouse, em 1404-1405, 59% das despesas eram destinados ao pagamento dos
subsídios reais concedidos para a luta contra “Henri de Lancastre que se diz rei
da Inglaterra"; mas é preciso acrescentar 5% correspondentes a despesas
empregadas no pagamento dos subsídios passados; e 26% consagrados ao
reembolso dos empréstimos contraídos pela cidade para quitá-los. Só sobravam
então 10% para uso propriamente municipal: salários dos funcionários da cidade,
proventos em espécie concedidos aos capilouls, despesas suntuárias e,
finalmente, trabalhos e consertos — pouco menos de 2% da despesa total. Isso
era bem pouco, já que uma parte da muralha caía em ruínas, que apenas uma das
cinco pontes outrora construídas sobre o Garonne continuava mais ou menos
utilizável e que numerosas ruas mostravam-se inabitáveis. O estado da
documentação permitiu-me analisar o exemplo de Toulouse. Mas posso
assegurar que não apresentava nada de excepcional. E quero já evocar as linhas
de sir John Fortescue que descrevem a miséria dos camponeses franceses: “Eles
não podem viver de outra maneira, pois os arrendatários, que deviam pagar a
cada ano um escudo pelo uso de seu território ao senhor, pagam agora, além
disso, cinco escudos ao rei.”

No entanto, sir John Fortescue era o último a poder denunciar esse peso do
imposto, pois em seu próprio país, a Inglaterra, a evolução tinha sido muito mais
precoce. Remonta mesmo ao século XII. Em 1215, a Magna Carta tentava
codificar o costume e limitar as exigências do rei. Em 1275, o primeiro Estatuto
de Westminster a definia e estabelecia novos limites às possibilidades do
soberano. Desde o fim do século XIII, a ajuda feudal tornara-se um verdadeiro
imposto nacional. A contrapartida era o desenvolvimento do regime
representativo: mas evitemos o erro que consistiria em ver nisso uma conquista.
Tomar assento no Parlamento era bem mais um dever que um direito. Ao menos
o Parlamento esforçava-se por representar seu papel. Em janeiro de 1377, pedirá
que dois condes e dois barões vigiem o emprego dos fundos fornecidos pelo
imposto; em outubro, dará preferência a comerciantes, mais competentes. O
essencial era que o Tesouro real não gerisse o imposto e que se prestassem
contas ao Parlamento. Em 1381, depois em 1415, as Comunas lembravam — em
vão — que o imposto devia continuar sendo excepcional.

O que acontecia quando cidades, que integravam o Império, conquistavam sua


autonomia? Foi feito um estudo comparado bastante revelador das finanças de
Florença (em 1336-1338), de Bruges (em 1391-1392) e de Cracóvia (em 1390-
1405). Entre as rendas, o imposto direto fornecia mais ou menos 15% a
Florença, 5% a Cracóvia, e praticamente nada a Bruges. Em compensação, a
caixa bruguense era quase completamente atendida graças ao imposto indireto,
responsável por cerca de 55% das receitas de Florença e por quase nada das de
Cracóvia. Como então esta última saía-se bem? Um domínio municipal
importante (40% da receita, contra 5% em Bruges e nada em Florença),
monopólios, como os dos pesos e medidas e das vendas de cera (30%, contra 3%
e nada) e, por fim. empréstimos (25%, contra 1% e 30%) dotavam-na. Vê-se
como as cidades podiam configurar casos diferentes. Vê-se também que sua
política fiscal traduzia uma atitude social bem definida: o imposto direto,
sobretudo se era mais ou menos proporcional às fortunas, era socialmente mais
eqüita-tivo que o imposto indireto, que os pobres pagavam como os ricos, cujas
necessidades não eram evidentemente a exata medida de suas possibilidades.
Isso significa que Bruges era dirigida por poderosas famílias pouco preocupadas
com justiça social; a posse de um importante patrimônio urbano permitia a
Cracóvia mostrar-se mais eqüita-tiva. O caso de Florença é intermediário: ela
pedia assim mesmo muito pouco ao imposto direto; apenas em 1427, para as
necessidades da guerra contra Milão, foi que os florentinos tiveram de recorrer
amplamente a esse imposto e confeccionaram, para fixá-lo, um catas-to que
existe até hoje e constitui uma fonte de informações inigualável (143). —
Quando as cidades encontravam-se submetidas ao soberano, era ele, juntamente
com elas, quem determinava essa política: na Inglaterra, havia um sistema que,
por direcionar o essencial do peso do imposto sobre direitos de duana no que
concernia a lã, tecidos e vinhos (entre outras coisas), convinha tanto às pessoas
abastadas quanto a ele mesmo; na França, ao mesmo tempo em que havia o
cuidado para que um mínimo de justiça social fosse respeitado (assim foi no
Midi, com a elaboração de registros de estimas, que permitiam o
estabelecimento de impostos diretos), ele tomava com freqüência o partido dos
burgueses contra os pobres, mas também contra os nobres e o clero.

Pois não faltavam contestações em relação a isso. Os nobres alegavam que,


combatendo, pagando o imposto do sangue, liberavam-se de toda carga
financeira; mas nem toda a nobreza era militar, e estava aberta a via para
discussões mesquinhas. Mais importante ainda era o caso do clero, que não
deixava de se dizer isento quanto a seus bens, dados em princípio a Deus ou aos
santos, e destinados — sempre em princípio — a piedosos e caridosos fins.
Podia-se tributar Deus? As municipalidades estavam cada vez menos dispostas a
pensar dessa forma já que a propriedade eclesiástica era amiúde considerável nas
cidades. De fato, teoricamente isento, o clero tinha mesmo assim que suportar
pesadas cargas.

Em torno do papa em primeiro lugar, e o século XIV é precisamente o período


em que o papado de Avignon organizou todo um pesado sistema de fiscalização
pontificai. O papa "reservava-se" um número crescente de benefícios—de
bispos, de abades, de cônegos... — sob o nome de “anatas", recebia os
rendimentos do primeiro ano de todo benefício provido recentemente.
Reclamava também, sob o nome de "espólios”, os bens e créditos dos clérigos, e
apossava-se deles quando morriam, o que não deixava de chocar muitas
consciências. Tendia a deixar vagos muitos meses, até vários anos, benefícios
que comportavam, entretanto, curas de almas, e isso a fim de receber os
rendimentos. Obtinha com freqüência dos bispos as “procurações", isto é. as
quantias que estes (ou seus arcediagos) arrecadavam quando de suas visitas
pastorais; assim mesmo, poucos foram os prelados que continuaram a visitar as
paróquias de suas dioceses. Sistema escandaloso, cujos detalhes evidentemente
não exponho, Ele soçobra na crise consecutiva ao Grande Cisma do Ocidente.
Os concílios reformadores de Constança (1414-1417) e Basiléia (1431-1449)
restabelecem a unidade da cristandade e põem fim a esse fiscalismo.

Os cleros encontram-se então sozinhos face aos seus príncipes. São negociadas
em cada país as condições nas quais ele próprio poderia contribuir para as
necessidades da Igreja romana... e do Estado. Uma concordata geralmente
resolvia essas questões. Em outros lugares, como na França, essa é uma decisão
do príncipe, à qual o clero está menos associado. Assim foi quanto à Pragmática
Sanção de Bourges em 1438. O clero então era privilegiado, mas não se pode
dizer que não pagasse imposto.

Todo esse nascimento do imposto, pelos encargos que fazia pesar sobre o
conjunto das populações, pelas destinações novas que dava a quantias em geral
consideráveis, afetava evidentemente a economia. Além disso, as dificuldades
desse parto trouxeram graves consequências nos planos militar e monetário em
particular.

Em direção aos exércitos permanentes (190 e 191)

Segundo o direito feudal, quando um senhor — mesmo o rei — queria fazer uma
guerra, convocava seus vassalos, os quais vinham com o contingente
determinado pelo costume. Cada qual, aliás, era um pequeno chefe, o que
privava esse exército de qualquer homogeneidade. Um outro inconveniente: o
serviço era devido somente por um curto período, em geral 40 dias. Mas, para
uma guerra feudal, isso podia bastar. Essa operação chamava-se convoquer le
ban — em caso de necessidade urgente, o rei podia também chamar o arriè-re-
ban, ou seja, todos os homens livres do reino aptos para o combate. Mas uma tal
turba também era tão difícil de conduzir ao combate, quanto de armar
convenientemente. Quase não era utilizada, e logo o rei substituiu a obrigação
pessoal por uma taxa. Quadro certamente simplista. Seria preciso estabelecer
diferenças sutis, mencionando o serviço das milícias urbanas, a presença de
sargentos a pé e a cavalo, etc.
A inadaptação desse sistema apareceu pelo menos já no século XIII, quando
algumas guerras excederam a duração e os deslocamentos previstos pelo
costume. O uso era que o rei conservasse seus dependentes, mas pagando-lhes
soldo e indenizando-os por suas despesas e perdas — em cavalos,
particularmente. Com mais forte razão a Guerra dos Cem Anos fez ressaltar essa
necessidade. Philippe Contamine pôde escrever: “Por volta de 1300, no reino da
França, o servicium debitum [serviço devido] tradicional encontra-se em plena
decadência.”

Não seria o caso aqui de evocar a evolução militar dos séculos XIV e XV a não
ser na medida em que ela afeta a economia. Devemos, portanto, nos restringir. É
preciso em primeiro lugar mencionar o importante desenvolvimento técnico a
que se prestaram de tão bom grado esses séculos guerreiros. Procuremos
esboçar, de algum modo, o encadeamento. Na origem de tudo, é necessário, sem
dúvida, colocar o aperfeiçoamento das armas de arremesso: o arco foi melhorado
pelos ingleses durante suas lutas contra os gauleses e os escoceses: é o long bow
de teixo, com altura de 1,50 a 2 metros, capaz de atirar três vezes mais flechas
por minuto que a balestra. Esta, arco de aço montado sobre um cabo, retesando-
se com a ajuda de uma mola, podia ter efeitos mais terrificantes ainda
(considerada uma arma “diabólica”, seu uso foi mesmo excomungado no século
XII), mas sua lentidão era um empecilho tão severo que era preciso que
combatentes especiais, os pavesiers, protegessem, com altos escudos, os que
manipulavam a balestra das flechas inimigas.

De qualquer maneira, era preciso proteger melhor homens e cavalos. Quanto aos
homens: “ainda na primeira metade do século XIV, as placas de metal só
recobriam uma pequena parte do corpo do combatente (sobretudo os membros),
a armadura de malhas continuava sendo a proteção fundamental do busto,
enquanto no século XV é o “arnês branco” que cobre com sua carapaça tanto os
membros, a cabeça, quanto o tronco, de modo que as peças de malha encontram-
se apenas a título de acessórios de pequena dimensão, por exemplo abaixo da
cintura ou ao nível da garganta” (Ph. Contamine). Naturalmente, esse sistema
reforçado não estava mais ao alcance financeiro senão de uma pequena minoria.
— Os cavalos? É famosa a frase de Giraudoux: “O cavalo, como todos sabem, é
a parte mais importante do cavaleiro.” Ora, o cavalo custava caro, era preciso
protegê-lo ao máximo, tanto mais que os arqueiros inimigos visavam
freqüentemente a montaria, da qual o cavaleiro, fincado em sua couraça, não
podia mais se livrar, uma vez que fosse abatida.

Desde meados do século XIV, a cavalaria tornava-se, aliás, o elemento essencial


dos exércitos. Os arqueiros e besteiros montados só punham os pés no chão na
batalha. Por volta de 1450, a infantaria, numerosa, econômica, também melhor
armada doravante (em particular da alabarda, da lança e mais tarde do
mosquete), recupera-se.

Uma modificação maior foi evidentemente o desenvolvimento da artilharia de


fogo, cuja origem, sem dúvida, é asiática. Seu primeiro emprego é atestado em
1346. na batalha de Crécy, quando os ingleses explodiram pólvora e atiraram
alguns projéteis: mais barulho que mal, ainda! Em cerca de vinte anos, a nova
arma espalhou-se por todo o Ocidente. Aos pequenos canhões, cada vez mais
numerosos, juntaram-se, desde 1400 aproximadamente, peças pesadas, colubri-
nas e morteiros. Transportados de início dentro de carroças, esses novos
engenhos passaram a ser montados sobre carretas munidas de rodas (por volta de
1450). Tudo isso custava evidentemente cada vez mais caro e devia, com o
tempo, provocar a transformação das fortificações, cuja manutenção também era
um ponto importante dos orçamentos.

Como os sistemas militares adaptaram-se a essas transformações? Em princípio,


o serviço dos cavaleiros conservava sua preeminência. A arrogância exibida
pelos cavaleiros franceses em relação à “gente a pé” foi-lhes mais de uma vez
fatal (como em Crécy), contudo, não se sabe se esses sentimentos tenham sido
amplamente compartilhados no Ocidente. Mas o essencial dos exércitos era
composto de homens que recebiam soldo e de mercenários (que se engajavam
pelo chamariz do ganho) empregados de fato desde o século XII. Como era de
esperar, a evolução foi mais precoce na Inglaterra, uma vez que esse país devia
enviar seus exércitos para fora de seu solo, ao continente. Desde o século XII.
foram tomadas medidas essenciais para o recrutamento e a formação das tropas,
a aquisição e a conservação das armas. No século XIV, o coração do exército era
constituído por “retenções” de dimensões variáveis, reunidas através de
contratos qualificados como certificados de guerra: por exemplo, em 1373, para
a expedição de Jean de Lancastre na França, 6.000 combatentes estavam
agrupados em 28 “retenções”.

Também a Itália cedo fez uso do sistema da condotta, uma vez que os meios
dirigentes das cidades deixavam-se absorver por suas ocupações industriais e
comerciais e preferiam engajar um condot-tiere, geralmente estrangeiro, como o
alemão Werner von Urslingen (sobre cuja couraça podia-se ler a insolente divisa:
“Inimigo de Deus, inimigo da piedade, inimigo da pena”), ou o inglês John
Hawkwood, filho de curtidor, que, de 1360 até sua morte em 1394, serviu
sucessivamente ao conde de Savóia, a Pisa, ao papa e por fim a Florença, que lhe
pagou por serviços prestados. Depois a preferência foi dada a italianos, como
Micheletto degli Attendoli. Na França, os Valois, que continuavam a recorrer ao
serviço feudal, também engajaram besteiros genoveses e depois multiplicaram os
contratos de “comando” com os dirigentes das Grandes Companhias. No século
XV, espalhou-se por toda parte a fama dos suíços, admiráveis combatentes,
duros e sem medo, e muito bem organizados (Olivier de la Manche constata isso
por volta de 1470: “Eram em geral três suíços juntos, um lanceiro, um
manobreiro de colubrina e um besteiro, e... socorriam um ao outro em caso de
necessidade”).

Contudo quanto mal essa gente de guerra causava às populações! Deviam não só
pagar o imposto para seu engajamento, mas além disso, e com muita freqüência,
sofriam suas pilhagens. Em razão das espoliações cometidas na Itália, passou a
ser dada preferência aos italianos: esses amontoados de grosseirões pilhavam
sistematicamente os territórios. E o que dizer da infeliz França? Os ingleses não
se importavam muito com a qualidade moral dos homens que enviavam para lá:
“Na maioria dos exércitos ingleses desse período (1346 a 1360), é provável que
a proporção dos fora-da-lei estivesse entre 2 e 12%” (J. Hewitt). Mas os infelizes
habitantes não tinham mais que se rejubilar com as tropas francesas; vagabundos
e ladrões engajavam-se facilmente. A situação ficou pior quando a monarquia
enfraquecida tornou-se incapaz de dissolver os bandos nos períodos de paz. Isso
se deu particularmente em dois momentos. Em 1360, os routiers (de ruttae, do
latim rumpere: frações de bandos) resolveram viver no país, e Carlos V, com a
ajuda de Duguesclin, teve muita dificuldade para enviar tantos quanto possível
para serem mortos em Castela e na Prússia. Em 1435, a paz de Arras seguiu-se
das devastações dos Escorchadores, sinistros bandos conduzidos por homens tais
como o castelhano Rodrigue de Villandrando, mas também pelos capitães
franceses, antigos companheiros de Joana d’Arc, La Hire, Xaintrailles...
Segundo Monstrelet, eram qualificados de Escorchadores porque “todas as
pessoas que com eles encontravam... eram despidas de suas roupas até a
camisa”. Pilhavam, matavam, estupravam, destruíam as plantações de trigo
ainda verdes, espoliavam o país...

A França, porque sofrerá, sem dúvida, as piores desgraças da guerra, realizou


alguns dos passos decisivos em direção à formação de um exército permanente,
noção cujo sentido é importante discernir plenamente. Para que haja realmente
exército permanente, são necessárias várias condições: existência de estruturas
regulares, independentes da renovação dos efetivos; desejo do poder em manter
em serviço elementos de tropas, mesmo em tempos de paz; presença de jovens
que projetem realizar verdadeiras carreiras militares, com a disponibilidade e a
perda de liberdade que uma tal vocação supunha; e, finalmente, instauração de
rendas regulares, suficientes para manter esse exército. Por volta de 1450, todas
essas condições existiam na França, e Carlos VII tomou as medidas essenciais:
procurou fixar a gente de guerra nas guarnições fronteiriças; reivindicou
unicamente para si, e às custas dos príncipes, o recrutamento; operou, entre os
soldados disponíveis, uma triagem e os elementos foram agrupados em
companhias de ordenança com organização e armamento uniformes. Pôde
mesmo despender o suficiente para lançar as bases do que seria a primeira
artilharia do mundo de então. Acostumar a opinião pública a essa novidade era
uma tarefa árdua. Muito mais tarde interviria o aquartelamento, que terminaria
tornando o homem de guerra simpático à população. A evolução era desde então
irreversível, e iria se generalizar fora da França.

Mas através de quantos sofrimentos os homens dos séculos XIV e XV chegaram


a esses resultados!
A moeda: o preço das carências fiscais (279)

Não há, sem dúvida, esforço maior que o de descobrir no que consistia o sistema
monetário dos séculos XIV e XV. Postas de lado as moedas fiduciárias, cujo
desenvolvimento será estudado adiante (cap. 9), ele continuava essencialmente
metalista. Baseava-se em peças de diversos metais, que não portavam qualquer
indicação de valor, mas apenas a menção do poder emissor e uma imagem
simbólica que lhe dava o nome: um agnel ou carneiro, um escudo, uma flor-de-
lis (daí o florim), uma coroa... Essas moedas definiam-se por três elementos:

1. Seu peso, muitas vezes indicado pelo número de peças extraídas do marco —
unidade que, conforme os países, variava por volta de 240 gramas e compreendia
192 deniers. As imprecisões das técnicas de cunhagem faziam com que
raramente se conseguisse um peso uniforme das peças. As ordenações previam
então uma margem ou “remédio”, e fixavam um peso mínimo, o peso “legal”. A
astúcia dos cambistas consistia em cortar as moedas mais pesadas que esse peso
“legal”, e isso lhes era facilitado pela ausência de qualquer impressão sobre a
borda da moeda.

2. Seu título ou quilate. Era indicado, para o ouro, em quilates, sendo que 24
quilates correspondiam ao ouro puro; para a prata, em deniers d’argent le roi,
levemente ligados para tornar a peça mais resistente (assim, 12 deniers d'argentle
roi, que era a pureza máxima, correspondiam a 958/1000 de metal precioso);
para as moedinhas ou, como se dizia, para a prata negra, mais ou menos
misturada com cobre ou estanho, as indicações variavam. Se o povo era
facilmente capaz de julgar o peso das moedas, era evidentemente muito mais
fácil enganá-lo sobre seu título.

3. Seu valor de conta, indicado segundo as antigas unidades das libras de 20


soidos, de cada 12 deniers (que variedade de sentidos para esta palavra deniers,
dá para confundir!). Esse sistema de conta variava conforme os países: na França
predominava o tornes, na Inglaterra o esterlino (e esse país conservador manterá
até meados do século XX uma conta em libras esterlinas, de cada 20 xelins, cada
um deles dividido em 12 pence\), etc. Cada vez que o príncipe emitia moedas,
fixava através de um decreto seu peso, seu título e seu valor de conta.

Mas quem era o príncipe? Na França e na Inglaterra, assim como nas Coroas
ibéricas, o monopólio do soberano tinha-se praticamente imposto (260, 287). Na
Itália, as grandes cidades (Gênova, Florença, Milão, Veneza em particular)
possuíam cada uma seu sistema monetário (314, 317). Na Alemanha reinava a
maior anarquia: não existia moeda verdadeiramente imperial, e os senhores
(como os Habsburgo) e as cidades emitiam cada qual suas moedas (284-285,
290).

Era evidentemente fácil para o príncipe “mudar” um desses dados: seja o peso, o
que constituía a mudança mais constatável pelo povo; seja o título, o que era
mais sutil; seja o valor de conta — ou ainda dois ou três desses elementos.
Mudar a moeda era, na falta de recursos fornecidos por um imposto regular, uma
tentação muito forte, pois a operação era de grande interesse para o príncipe:
com o mesmo peso de metal precioso, doravante seria possível para ele fabricar
um maior número de peças; além disso, a margem de lucros de seus ateliês seria
aumentada e podia ser ampliada pela depreciação das moedas anteriores, pela
proibição de utilizá-las doravante e pela obrigação imposta a seus possuidores de
levá-las para refundição nos ateliês monetários. Os lucros da operação podiam
ser enormes: segundo a conta do Tesouro do rei da França no natal de 1349
(período de grandes enfraquecimentos), os rendimentos da moedagem forneciam
70% das receitas da monarquia! Cada crise política ou militar traduzia-se, desse
modo, por uma série de “enfraquecimentos” das moedas, e nenhum país foi com
mais freqüência palco disso que a França, em particular devido à lentidão com
que ali se organizava o sistema de impostos. Certamente, seria errôneo imaginar
que uma anarquia monetária constante tenha reinado na França durante dois
séculos. Devem-se ressaltar dois períodos que correspondem justamente a tais
crises: de cerca de 1330 a 1360, os esforços empreendidos para preparar e
conduzir a guerra, os cruéis reveses provocados pelas derrotas (de Crécy e
Poitiers em particular) traduziram-se numa série catastrófica de desvalorizações
da moeda; desde 1360, Carlos V esforçou-se para corrigir a situação. Dessa
época data a difusão do franco, unidade que conhecería destino tão duradouro.
Uma nova crise de 1417 a 1435, associada a um dos episódios mais sombrios da
história francesa: calcula-se que a moeda, nos piores dias, teve seu valor
diminuído em 24 vezes! Desde 1436, Carlos VII e depois Luís XI empenharam-
se para restabelecer o equilíbrio. Mesmo assim, o balanço final era fortemente
negativo: o soldo tornês que, sob Luís IX, no século XIII, correspondia a 0,419g
de ouro, ou 4,046g de pr^ta, não mais continha, por volta de 1480, além de
0,102g (ou seja, uma queda de 24%) e l,149g (28%).

A situação não foi tão catastrófica em todos os países. Os reis da Inglaterra,


apoiados num sistema de impostos bem mais desenvolvido, puderam manifestar
uma dedicação à estabilidade da libra esterlina — a qual, fato notável,
permaneceu no fundo da alma britânica. Na Itália, as cidades esforçaram-se em
manter, na medida do possível, o valor de suas peças de ouro e de prata. Na
Espanha, o rei de Aragão tentou imitar o exemplo florentino, pela cunhagem de
seus próprios florins. Mesmo na Alemanha, onde ligas de cidades e de senhores
buscavam salvaguardar algumas moedas comuns: tal foi o objetivo do
Rappenbund (desde 1387), da aliança suábia (formada em 1396), e desde 1379
da aliança wende que se propunha dar uma base monetária à Hansa germânica.

Não saberiamos calcular os danos causados à economia por um sistema tão


complexo e instável. Os textos apressam-se para pô-lo fora de dúvida. Durante a
ocupação inglesa, o Bourgeois de Paris descreve assim a perturbação causada
pelos erros da potência inglesa ocupante (90):

“No sábado, 12 de abril [1421], foi proclamada em Rouen a nova cotação das
moedas: o gros de 16 deniers parisis não valia mais que 4; o nobre [moeda
inglesa] valia 60 soidos turneses e o escudo 30.

“Terça-feira, em Paris, todos acreditaram que essa cotação iria ser observada na
quarta-feira ou sábado seguintes, e o preço dos alimentos subiu tanto que não se
podia comprar mais... Os comerciantes vendiam assim qualquer vívere pelo
preço que queriam, pois ninguém encontrava solução de interesse geral. Dizia-
se, aliás, que aqueles que deveríam tê-lo feito eram eles próprios comerciantes...

“Houve um forte murmúrio para que se fizesse um novo pregão da moeda, pois
as pessoas do Palais e do Châtelet exigiam por todos os gros pagamento em
moeda forte... E só tomavam o gros por 4 deniers parisis e o davam em
mercadoria às pobres pessoas por 16 deniers pari-sis. Então o povo explodiu de
cólera e a multidão reuniu-se no Hôtel de Ville. Quando os governadores a
viram, ficaram com medo e mandaram proclamar que o primeiro termo dos
aluguéis a vencer se pagaria à cotação de 12 gros por um franco...”

Os tesoureiros das diversas instituições — municipalidades, igrejas, hospitais,


colégios universitários — não sabiam mais muito bem no que acreditar. Assim,
em 5 de agosto de 1427, forçado pela doença a abandonar sua administração, o
prior do Colégio de Périgord, em Toulouse, traduzia sua confusão (99): “É
preciso saber que, devido à cotação simultânea de moedas diversas durante esta
administração, o Colégio sofreu grandes prejuízos: pois, da Saint Front [25 de
outubro de 1426] a 15 de fevereiro, duas espécies de doubles tiveram cotação, e
o escudo elevou-se de 36 para 40 doubles, se bem que apresentando o mesmo
aspecto, não eram da mesma qualidade, de modo que muitos foram enganados, e
eu também. Depois surgiu uma outra moeda, o escudo valeu 30 doubles, depois
subiu até 36 neste dia.”

Em geral, os enfraquecimentos favoreciam os devedores, os refor- . ços, os


credores. Não sem um evidente exagero, os ricos denunciavam os ganhos que
nisso teriam obtido os “populares”. Assim fez Alain Chartier em seu Quadriloge
invectif, pondo essas palavras na boca do cavaleiro:

“Os populares têm a vantagem de terem a bolsa como a cisterna que recolheu e
recolhe as águas de goteiras de todas as riquezas deste reino... pois a fraqueza
das moedas diminuiu para eles o pagamento dos deveres e das rendas que nos
devem e a ultrajante carestia que impuseram aos víveres e obras criou-lhes o
haver que, a cada dia, recolhem e amealham.”

O que era fácil de dizer...

É testemunha da confusão dos espíritos em particular o hábito de fazer as contas,


não mais em libras, soidos e deniers, mas em peças de ouro, mesmo se apenas
simbolicamente, e em submúltiplos totalmente teóricos. Constatei-o em
Toulouse no início do século XV, mas não faltam outros exemplos.

Os pensadores exerceram sua reflexão nessas vicissitudes (347-348).


Originalmente, a moeda era considerada propriedade do príncipe. Desde o século
XIII teve lugar um longo esforço, do qual é testemunha este alerta do papa
Inocêncio IV (papa de 1243 a 1254): “Se o príncipe tem necessidades urgentes,
ele pode obter algum ganho sobre a moeda, de modo que a mesma valha menos
que seu valor material... Não pode fazê-lo sem o consentimento do povo; mas,
com esse consentimento, pode fazê-lo, pois é possível a cada um renunciar
licitamente a seu direito... Devido à jurisdição e ao fato de que a moeda recebe
uma certa autoridade e comunhão da pessoa ou do caráter do rei, ela ganha um
valor suplementar.”

Ninguém fez mais para aprimorar essas noções do que Nicole Ores-me,
preceptor do futuro rei Carlos V da França, bispo de Lisieux em 1377, e que, a
pedido de seu real aluno, traduziu várias obras de Aristóteles e redigiu um
tratado De 1’origine, nature et mutation des monnaies. Estabeleceu que o rei só
era possuidor da moeda em nome da comunidade, e que não devia mudá-la a não
ser que visasse ao proveito público:

“Não se deve jamais mudar as moedas se a necessidade não é urgente, ou se a


utilidade não é evidente para toda a comunidade...”

Assim, ao ritmo do renascimento do imposto, emergia também uma teoria


moderna da moeda. Mas quanto mal terão ocasionado nesse entretempo os erros
dos séculos XIV e XV!
5. As questões que restam

A causa parece compreendida. O dossiê não é estafante? Na maior parte da


Europa Ocidental, senão em sua totalidade, os séculos XIV e XV foram um
período de depressão. As únicas questões que subsistem são: quando se começou
a degringolar? e por que isso aconteceu? Consagremos a esse assunto alguns
instantes de reflexão.

Quando?

Quando? Foi grande a tentação —e numerosos historiadores deixaram-se levar


por ela — de fazer tudo partir de 1348, da grande vaga de Peste Negra que
desequilibrou tudo de maneira irresistível. É a solução simples, fácil. E depois
vozes ergueram-se.

Algumas, pouco numerosas é verdade, afirmavam que, em certos lugares, 1348


era demasiado tarde. É preciso espantar-se? Elas vêm sobretudo do mundo
mediterrânico. Em Barcelona, Claude Carrère faz partir de 1380 a era das
dificuldades reais; antes, tinha havido, evidentemente o mal any de 1333, mas as
dificuldades tinham sido superadas (34). Refletindo sobre a história de Veneza,
Jean-Claude Hocquet escreve (51): “Se tivesse me contentado em dirigir uma
pesquisa sobre o comércio marítimo do sal — il vero fondamento dei nostro
Stato, diz ele —, teria, creio, confirmado as conclusões habituais da
historiografia sobre vários pontos: dificuldades do século XIV..., prosperidade
dos anos 1380-1430 (sobre esse aspecto o acordo é unânime) — ‘podia-se então
falar de apogeu', diz ele ainda — crise da segunda metade do século XV... depois
derrocada. Teria no máximo avançado o começo das dificuldades para 1270-
1280 e acentuado o caráter catastrófico dos anos 1500-1530.” Para Valência,
Jacqueline Guiral apresenta dados dificilmente recusáveis (48): a cidade contava
com 8.000 lares no recenseamento de 1418, seja entre

32.000 e 40.000 habitantes; 15.000 lares em 1483, seja entre 60 e

75.000 habitantes. E conclui naturalmente: “Enquanto um certo declínio afeta


Barcelona, o século XV por muito tempo apareceu como o apogeu do reino de
Valência e de sua capital." Sem dúvida, é uma chave que ela nos põe na mão
quando escreve que um fator essencial, além das dificuldades próprias a
Barcelona, foi o favor sistemático que Valência recebeu, justamente contra
Barcelona, da parte da nova dinastia instalada desde 1412 no trono da Coroa de
Aragão: a dos Trastamare.

Muitos historiadores, ao contrário, recusaram a data de 1348 como muito tardia.


Já há vários decênios, a Europa Ocidental dava mostras indiscutíveis de declínio.
Michael Postan não teve nenhuma dificuldade em provar como o equilíbrio entre
a oferta e a procura de trigo — base da alimentação — tinha-se deteriorado (19).
A excepcional abundância dos arquivos ingleses permite pensar que depois de
1270, existia toda uma população subalimentada, pronta a sucumbir à menor
penúria. Depois vieram as fomes — apesar de evitar cansar o leitor com um
excesso de estatísticas, é preciso que, entre elas (pois estava longe de ser a
única), seja mencionada a fome de 1315-1317, que Lucas cometeu o erro de
considerar um acontecimento europeu, mas que de qualquer modo devastou
bastante a Europa Atlântica (155).

Há também outros sintomas que provam isso. São as falências (71). As mais
conhecidas situam-se antes de 1348. Desde 1298 estourou a falência da
companhia sienense dos Bonsignori, cujos negócios estendiam-se por todo o
Ocidente. Ela contava com 23 associados, entre os quais quatro filhos e um
sobrinho do fundador da sociedade, e 18 “estrangeiros”. A preponderância da
família geralmente era aceita; entretanto, foi um desacordo entre associados —
sobre a maneira como deviam ser enfrentadas as dificuldades — que levou à
declaração de falência. Mas os grandes abalos vieram mais tarde e atingiram
companhias florentinas. que pareciam verdadeiros colossos. Passemos a palavra
a Giovanni Villani (98 e 131):

“No dito ano de 1345 (1346), no mês de janeiro, a companhia dos Bardi — que
tinham sido os maiores comerciantes da Itália — faliu. A razão foi que haviam,
como os Peruzzi, emprestado seu dinheiro e o do próximo ao rei Eduardo da
Inglaterra e ao da Sicília, e assim os Bardi tornaram-se credores do rei da
Inglaterra em capital, juros e donativos prometidos por ele, de 900.000 florins de
ouro, os quais, devido a sua guerra com o rei da França, não podia pagar. Do rei
da Sicília eram credores de 100.000 florins de ouro... Daí que (Bardi e Peruzzi)
foram à falência em detrimento dos cidadãos florentinos e dos estrangeiros, a
quem apenas os Bardi deviam mais de 550.000 florins de ouro... Os Bardi
devolveram, depois de um acordo, os depósitos a seus credores, à razão de 9
soidos 3 deniers por libra, que só voltaram ao mercado à razão de 6 soidos por
libra... E, se tivessem podido recuperar o que lhes deviam o rei da Inglaterra e o
da Sicília, ou uma parte, teriam continuado senhores de grande poder e riqueza.
E os miseráveis credores ficaram arruinados e pobres devido a sua confiança
insensata e às iniqüidades dos regulamentos e modificações de nossa comuna
corrompida.”

Destacamos o caráter espantosamente “moderno” do acontecimento: o


endividamento mal escondido, a indiscrição que leva os depositantes aos bancos
onde querem recuperar seus fundos, a necessidade de parar e fechar passados
alguns dias. É que, no início do século XIV, o capitalismo já estava bem
desenvolvido, pelo menos em certos setores (11). A crise desse capitalismo não
esperou 1348. Isso nos leva à nossa segunda questão, intimamente ligada à
primeira: por quê?

Por quê?
Há várias tentativas de explicação para a depressão dos séculos XIV e XV. Vou
começar pela malthusiana, que por muito tempo considerei a principal. Ninguém
fez mais para elaborá-la que meu velho mestre, o saudoso professor Michael
Postan (19). Ei-la aqui, em algumas palavras: desde uma certa época, que é
possível situar por volta do século XI (mais cedo ou mais tarde, conforme as
regiões), teve início um movimento duplo. Um surto demográfico tão evidente
quanto incomensurável: chegou-se mesmo a negar sua existência, mas os
números que forneci mais acima impossibilitam dúvidas. Ao mesmo tempo foi
feito um esforço para nutrir todas essas bocas novas: houve certamente
progressos da produtividade — isto é, um número menor de homens produzia
mais alimentos, o que liberou braços, e levou seus possuidores a buscar trabalho
nas cidades. É, portanto, necessário falar de êxodo rural: foram as cidades que
atraíram os homens, depois esforçaram-se em criar tarefas para eles ali. Mas
também há arroteamentos, que são o aspecto mais visível e (graças à toponímia.
isto é, ao estudo dos nomes dos lugares) mais seguro dessa prosperidade da
Idade Média central (séculos XII-XIII). A maior parte desses ganhos foi obtida
às custas da floresta, até o momento em que se rompeu o equilíbrio, em meados
do século

XIII, e em que os senhores florestais começaram a se defender dos arroteadores.


Muito menos numerosas foram as reduções de pântanos, mas houve: o mais belo
exemplo ainda pode ser visto no Langue-doc, é a “estrela de Montady”, que
pode ser admirada das alturas da Ensérune —os arroteadores avançaram pouco a
pouco em direção ao centro do lago.

Seríamos tentados a perguntar: qual desses dois movimentos começou primeiro?


É porque cultivava-se melhor o solo que os bebês foram melhor alimentados,
que sua “esperança de vida" aumentou, e que os homens tornaram-se mais
numerosos? Ou é porque se multiplicaram que se esforçaram em responder a
suas necessidades crescentes? A primeira solução é a que vem naturalmente ao
espírito. É preciso sempre desconfiar do que vem naturalmente ao espírito. De
fato, as duas séries devem ter crescido juntas — apoiadas uma na outra, se ouso
escrever.
Seja como for — e hoje o que não nos faltam são exemplos disso — chegou um
momento em que a produção agrícola não mais satisfazia a procura. É mais fácil
ter filhos do que alimentá-los! Por volta de 1270. na Inglaterra, país em que a
documentação é mais rica (164), e onde o crescimento demográfico foi
particularmente forte, sinais de subalimentação surgem na parte mais pobre da
população. Isso eu já disse. Pode-se pensar que aconteceu a mesma coisa
praticamente em todos os lugares. De qualquer modo, é um pouco por toda parte
que penúrias e fomes — se bem que diferindo os anos segundo os climas —
multiplicam-se desde o início do século

XIV. É, portanto, uma população subalimentada que é atacada pela grande peste
de 1348. Desde então, o equilíbrio foi rompido. Certamente, há menos bocas
para alimentar. Mas há ainda menos braços para produzir, pois a fuga foi tanto
quanto a morte um efeito da epidemia. Era até mesmo recomendada como único
remédio eficaz. Muitos camponeses foram então desenraizados: são eles que vão
engrossar as companhias de tropas mercenárias. Colheitas apodreceram no pé.
Campos foram abandonados... O equilíbrio só irá se restaurar progressivamente
durante o século XV.

Inúmeros foram os discípulos de Michael Postan. Acham-se seus nomes — pelo


menos os principais —na bibliografia final. Portanto, não insisto nisso.

Mais raros foram os defensores de uma segunda explicação: pela moeda. Num
artigo da Economic History Review de 1959 (307), W. C. Robinson recusava-se
a atribuir a essa pressão demográfica um papel constrangedor comparável ao que
ele representa hoje nos países em via de desenvolvimento, e concluía que a
teoria quantitativa da moeda, bem aplicada, fornece a explicação adequada das
flutuações de preços entre os séculos XII e XV, portanto, da sensível reviravolta
de conjuntura no início do século XIV. O fator decisivo teria sido a parada do
crescimento de M (estoque monetário) e de V (velocidade da circulação), que
teria arrastado o de P (nível dos preços) e finalmente o de O (volume das
transações). Debate forçosamente bastante teórico, que as observações precisas
pouco podiam alimentar.

Recentemente, essa discussão foi mais uma vez levantada pelos autores de dois
artigos publicados na mesma revista, C. C. Patterson e N. J. Mayhew (292).
Ambos empenhavam-se em provar que, se o estoque monetário crescia
naturalmente com os produtos da extração mineira, diminuía pelo menos com a
mesma rapidez devido a diversas causas de perda, acidentais ou não. Mayhew
insistia sobretudo na importância do gasto, o desgaste normalmente ligado ao
manuseio das peças. Ambos esforçavam-se mesmo em calcular a importância
desse adelgaçamento e, com a ajuda dos arquivos dos ateliês monetários
ingleses, Mayhew pensava poder fixar entre 2 e 3% por ano, ou seja, perto de
10% em meio século, a redução devida a esse gasto. Esses cálculos permitiam
recomeçar a contestação da tese defendida por Postan. Este afirmava que, tendo
em conta o crescimento regular do estoque monetário, a diminuição da extração
mineira assinalada por Robinson por volta de 1300 só podia ter tido um efeito
limitado. Essa defesa não caía por terra a partir do momento em que se admitia
que esse fator secundário atingia um estoque monetário em diminuição e não em
aumento? Logo, a causa determinante da depressão teria sido o declínio de M,
arrastando o de P segundo um processo de deflação conhecido. A perturbação da
tendência demográfica teria sido antes uma conseqüência do que uma causa, ou
mesmo um simples fato do acaso. A explicação da depressão deveria ser,
portanto, sobretudo monetária.

De fato, essas considerações pedem elas mesmas várias observações. Os dados


seguros são insuficientes para afirmar que a extração mineira tivesse
efetivamente diminuído de modo sensível por volta de 1300. Diversos índices,
tais como a criação do gros de Misnie em 1339, levam a pensar que esta de fato
prosseguiu a um nível pouco variável, graças à descoberta de novos filões. Por
outro lado, os numismatas contestam os cálculos de Mayhew. Censuram-no por
não ter levado em conta evasões de prata da Inglatena para o continente.
Baseiam-se em averiguações realizadas oficialmente no século XIX para
considerar que o efeito do gasto era sensivelmente mais fraco do que pensava
Mayhew.
Isso me faz pensar — e estou longe de ser o único — que a explicação
demográfica apresentada por Postan, aliás muito mais natural e fundamental,
continua válida.

Desconfiamos que os historiadores marxistas não podiam aceitar nem uma


explicação malthusiana nem um raciocínio pela moeda. Num artigo já antigo, Z.
A. Kosminsky, que tinha seguido o seminário de Postan, mas não se considerava
facilmente vencido, assinalava de maneira profética que esses séculos XIV e XV
tão desacreditados eram sobretudo caracterizados por uma passagem da
economia feudal para a economia capitalista, portanto, por um avanço (11). De
fato, acabamos de ver, o capitalismo existia desde antes de 1300 — mas a
diligência intelectual é melindrosa.

Mais recentemente, Jean-Claude Hocquet, estudando Le sei et la fortune de


Venise — obra-mestra que já mencionei (51) —foi levado a escrever em sua
“advertência” estas linhas reveladoras:

“Finalmente, um dos resultados essenciais deste trabalho, a meu ver, foi


descobrir o quanto os venezianos enganavam-se ao recusarem-se a considerar o
sal como uma mercadoria. Sempre quiseram ver de uma parte o sal, de outra
parte alias quascumque mercaciones. Mas o sal reagiu a todas as pulsações do
mercado. A idéia difundida de que o tráfico do sal, produto indispensável,
mantém-se sem luta, não resiste à análise. As importações maciças, às quais
procedeu Gênova por volta de 1450-1460, foram autorizadas pela existência de
um mercado, que os venezianos eram, na ocasião, incapazes de abastecer, e essa
incapacidade do monopólio teve origem no duplo funcionamento do mercado do
sal: com efeito, o Estado, para vender o sal grosso dos mercadores, eliminou a
produção do sal do Adriático, mas essa política era contrária a seu interesse: nos
anos 1420-1450, o Estado pagou pelo sal de Piran entre 5 e 7 libras e revendeu-o
por 6 a 8 ducados a Bolonha ou Mântua, ou seja, um ganho para o Estado de 600
a 800%. E, no entanto, o Estado encarregou-se de arruinar essa receita
extraordinária, a fim de conseguir para os mercadores uma saída para o sal
mediterrânico, que ele comprava por 8 ou 9 ducados e revendia por 10 ducados,
ou seja, uma receita de 10 a 20%, que não era um lucro líquido, já que era
preciso arcar com as despesas de gestão do monopólio. O Estado pagava então
pelo sal dos mercadores entre oito e nove vezes mais do que pelo sal dos
produtores. O Estado de certo modo dava de presente aos mercadores as receitas
da gabela. As duas receitas confundiam-se nas caixas do Ofício ou em seus
livros, e, como o Ofício era rico, muitas vezes recorria-se a ele para financiar as
despesas extraordinárias. Então foi preciso diferir o pagamento dos produtores e
dos mercadores. Depois da revisão do ‘estimo’ de 1434, os mercadores hesitaram
em importar sal, e estourou a crise. Gênova substituiu Veneza ao longo do
itinerário do Pó.”

Minha citação é um pouco longa. É que a demonstração pareceu-me inteligente e


de difícil interrupção. Aí está a questão social — e uma política social favorável
aos mercadores — na origem de uma crise. Nesse texto, não se trata
expressamente de “luta de classes”; por isso ela seria menos forte?

Em compensação, e quaisquer que sejam, por outro lado, os imensos méritos que
convém reconhecer-lhe, a síntese de Guy Bois deixa a desejar (28). Contudo, ela
evidencia um refinamento e uma prudência na análise que nem sempre foram
manifestados por seus colegas. As conclusões são vigorosas. Parecem
estabelecer para ele de modo decisivo o caráter científico da teoria marxista. Isso
é verdade? De maneira característica, Emmanuel Le Roy Ladurie, a partir de sua
experiência languedociana, intitula a “nota crítica” que consagrou a essa obra, e
na qual não lhe poupa elogios, de “Na Alta-Normandia: Malthus ou Marx?”.
Basta, aliás, olhar a capa do volume. O título principal Recherches sur
l’économie rurale et la démographie du début du XIVe. au milieu du XVT siècle
en Normandie orientale aparece em caracteres tão pequenos que são quase
ilegíveis. Em compensação, o subtítulo mostra-se à vontade: Crise du
féodalisme. Em minha humilde opinião, Guy Bois traz uma contribuição de
primeira ordem para o estudo da economia medieval que acaba e de sua
passagem para a economia “moderna”; mas, em relação a Marx, ele não traz
nada.
Para concluir, diria que o debate também é muito teórico. Certamente ele o é na
medida em que os defensores dessa posição escrevem em nome de um dogma,
de uma ciência. Não há ciência marxista, mas apenas uma ciência. E a história
não é nem mesmo uma ciência; é uma arte, que se pratica com meios tão
científicos quanto possível. Dito isso, parece-me que não se pode descartar tão
facilmente do que esses historiadores escrevem, na medida em que são de fato
historiadores.

Parecia-me, portanto, que a explicação proposta por Postan era a melhor, mesmo
que tivesse de ser completada, aliás, de maneira desigual pelas outras duas. Até o
escrevi. Era dar muito pouco valor a um excelente artigo, já antigo (foi
publicado na Economic History Review de 1977) de A. R. Bridbury, intitulado
“Before the Black Death” (Antes da Peste Negra) (33). Ele mesmo baseava-se
em dois artigos — anteriores evidentemente — de E. Miller e de J. R. Maddicott.
O conjunto representa um novo enfoque do problema, que vou tentar resumir.
Quando escrevo que a história não é uma ciência...

Partamos ainda de Postan e de sua afirmação de que a economia estava


enfraquecida desde antes da Peste Negra. Que seja. Mas, defendem nossos
autores, se a população começa a diminuir então, a superfície cultivada a se
reduzir, é principalmente em razão do conflito franco-inglês, que remonta aos
últimos anos do século XIII — a expressão Guerra dos Cem Anos não deve nos
enganar. Esse conflito impunha à economia uma tal tensão que só podia levar a
pôr em causa a organização social. Por isso, eis uma ligação estabelecida entre as
ambições políticas que, ao preço de crises financeiras e constitucionais,
resultaram em vitórias brilhantes (Crécy!) e nos movimentos mais obscuros da
economia e da sociedade camponesas. Do mesmo modo, seremos tentados a crer
que, porque a Guerra dos Cem Anos foi inteiramente realizada em território
francês, os camponeses e citadinos franceses foram os únicos que sofreram.
Constatação tão evidente, à primeira vista, que, acima, quase só falei deles. Na
verdade, o povo inglês também suportou o fardo.

O período de conflitos e de intrigas, que transcorreu de 1294 a 1360, foi muito


estudado pelos historiadores constitucionais, militares e financeiros. Sua
importância não é menor no plano econômico, mas os historiadores da economia
não se arriscaram — contidos por tantos obstáculos que encontram em seu
caminho. Precisavam determinar o custo da guerra. Geralmente, admite-se que
ele não parou de aumentar: o cavaleiro montado que, no século XI, não era mais
que um cavaleiro levemente equipado, tornou-se no século XIV uma espécie de
tanque de guerra, servido por vários cavaleiros e infantes; o castelo que, no
século XI, reduzia-se em geral a um simples torreão, tornou-se no século XIV
uma construção altamente sofisticada. Faltam-nos em parte as fontes para
calcular o preço da diferença. E não esqueçamos que tudo isso aconteceu num
clima de alta dos preços difícil de medir.

Outra questão: o serviço militar era pago ou não? Certamente o sistema anglo-
normando era famoso por fornecer ao rei um exército remunerado pelos feudos
que recebiam seus membros; o número de cavaleiros que eles deviam enviar
servia mesmo de medida para esses feudos. Apesar disso, e muito cedo, o rei foi
levado a pagar o serviço em espécies: era preciso pagar um soldo aos cavaleiros
além de seu tempo legal de guerra; era preciso transportá-los ao exterior; era
preciso construir e manter os castelos; era preciso, através de pagamento, obter
aliados; last but not least, era preciso assegurar a burocracia indispensável a
tantas tarefas.

Desse modo, o serviço feudal foi pouco a pouco substituído pelo “mercenariato”.
A guerra ainda assim custou muito mais caro? Não é seguro. Certamente, ela fez
correr muito mais dinheiro. Mas, de qualquer maneira, os senhores despendiam
todo seu dinheiro: eles gostavam de se rodear de dependentes tão numerosos
quanto possível, embelezar seus castelos, viver luxuosamente... A guerra, para
eles, era o passatempo supremo, e a caça só constituía um pálido “ersatz”. Fazer
a guerra dava um sentido à vida. Quanto prazer seu rei Eduardo I causava-lhes
lançando-os contra esses “malditos franceses”! Por isso, quantias melhor
utilizadas até então passaram a ser desviadas para usos improdutivos.

Mas a própria economia tinha ganho um volume maior, aliás, difícil de medir.
Sabemos que no fim do século XIII, na Inglaterra, ela fazia viver 17.000 homens
e mulheres encerrados (mais ou menos) em conventos e cerca de 35.000 padres
seculares. A administração era numerosa: apenas no condado de Lincoln, eram
necessários 4.000 burocratas ocupados em coletar os impostos autorizados pelo
Parlamento. À parte Londres, as cidades mais importantes tinham mais ou
menos 10.000 habitantes. O que eram exércitos que raramente ultrapassavam
esse número? O país parecia em condições de suportar com facilidade o peso da
guerra. Se partirmos das estatísticas de exportação de lã — a grande riqueza do
país — estudadas com atenção por Eileen Power, podemos pensar que eram
alimentadas no essencial por cerca de 20.000 camponeses, possuindo cada um
260 carneiros em média; muito mais fraca aparece a parte dos grandes domínios.
Pensemos enfim nas construções de qualquer espécie — igrejas, fortificações,
conventos, casas — cujo número, sem dúvida, nunca foi tão elevado quanto por
volta de 1300.

Foi sobre essa economia variada, opulenta, que os Eduardo impuseram o fardo
das guerras. Quais foram as conseqüências? É naturalmente em direção aos
historiadores das finanças que nos voltamos. Seus trabalhos talvez nos fizessem
pensar que o custo da guerra tivesse aumentado mais depressa do que a
economia. É preciso cuidado! Na verdade, somos menos informados sobre esta
última. As contas mostram-nos sobretudo déficits e excedentes; não dizem como
os reis tentaram resolver seus problemas. As Comunas falaram em certos
momentos das dificuldades da economia; era seu papel. Por outro lado, se era
melhor organizado que seu primo da França para enfrentar as guerras, o rei da
Inglaterra podia-se colocar em dificuldade temporária até mesmo por um
pequeno conflito. Não cremos que a economia mesmo assim fosse perturbada.

Naturalmente o rei podia dever quantias importantes. As Comunas reclamavam


bastante; estavam ali para isso. De fato, ninguém se enganava: os exércitos
continuavam pequenos, as armas simples, os prejuízos apenas locais. Para os
senhores, a guerra era sobretudo uma oportunidade de mostrar sua bravura. Se
eram derrotados por simples camponeses ou burgueses mais ou menos bem
armados — o que lhes ocorria mais de uma vez nas fronteiras da Escócia e do
País de Gales —, não faziam disso um drama. De qualquer maneira, a economia
não sofria.
A situação agravou-se depois de 1294? O peso da guerra com certeza aumentou.
Como crescia entre os camponeses uma desigualdade, que era o preço do
desenvolvimento econômico, os mais pobres, mal alimentados, não puderam
resistir às grandes fomes do início do século XIV. Mas era uma crise social. A
tendência geral dos preços do trigo permaneceu em alta (exceto entre 1333 e
1351) portanto os rendimentos de todos os vendedores aumentaram. Certamente,
terras foram abandonadas, mas isso teve como efeito ajudar ainda mais a alta dos
preços. De qualquer modo, os camponeses eram em sua maioria assalariados; as
fomes resultaram num aumento maior dos salários do que dos preços; no pior
dos casos, apenas seguiram a alta. A população ainda era bastante numerosa para
que os proprietários pudessem mandar ocupar as terras que queriam conservar.
Sua dificuldade foi só um pouco maior depois da Peste Negra de 1348. Às vezes
era necessário uma geração para que os vazios fossem preenchidos, mas o foram.
Não se pode afirmar realmente que ela atingisse uma população deprimida em
seu conjunto.

Uma outra data importante é 1333. Até então, os senhores safavam-se bem das
dificuldades. Arrendavam as terras que, no “manor” (nome inglês da senhoria),
constituíam seu domínio; mas era principalmente por razões fiscais.
Desperdiçavam seu dinheiro com bebida e comida, que lhes eram fornecidas, a
baixo preço, a título de requisições, por seus foreiros. De maneira que eram os
camponeses quem mais suportavam o peso da guerra: pagavam censos ou
arrendamentos aos senhores, e ao rei os impostos que cada vez mais amiúde ele
arrecadava para o exército. Às vezes, rebelavam-se: em 1337, os foreiros do
conde de Warwick recusaram-se, devido aos impostos, a pagar seus censos, e o
intendente do conde teve de lhes dar razão. Ora, desde 1333, os senhores
também enfrentaram dificuldades: tiveram de aceitar os baixos preços do trigo
sem poder baixar os salários; ou mudaram os costumes de suas senhorias, mas
não demoraram em se arrepender disso, quando a alta recomeçou depois de
1351. Nesse meio tempo, o rei recorria desmedidamente ao imposto, até a crise
política de 1341, que o tornou mais prudente. Crécy sobreveio a tempo para
salvá-lo, mas antes, como vimos, seus principais credores, as grandes
companhias italianas, tinham estourado.
O que concluir de tudo isso, a não ser que, mesmo na Inglaterra, o Estado devia
improvisar para conduzir a guerra e a diplomacia, e que as principais vítimas
foram os pobres? Assim, às fomes e epidemias, portanto, ao afastamento
crescente entre crescimento demográfico e produção agrícola (tese de Postan),
devemos acrescentar a guerra como causa da depressão, mesmo onde não se
estendiam seus estragos visíveis, e a incapacidade do Estado — mesmo inglês —
de conduzir uma guerra longa, salvo o acaso das batalhas. Mas não devemos
perder de vista o aspecto social.

Aqui estou eu, pela última vez, reconduzido à questão: quando? Desta vez,
minha resposta será categórica: a depressão é anterior à Peste Negra. Ela
começou por volta de 1270, e suas manifestações foram diferentes segundo os
países, ou melhor, segundo as regiões naturais. Do mesmo modo deu-se a
retomada do desenvolvimento que se seguiu à depressão: entre o começo do
século XV e o começo do século XVI. Duas grandes noções a conservar: a
complexidade dos problemas e a diversidade das regiões.
6. Uma triste paisagem

Campos e cidades

Epidemias e fomes foram um fenômeno europeu. Porém, a guerra mais


importante daquele tempo foi aquela em que se lançaram com paixão as
monarquias inglesa e francesa. E é exclusivamente a França que goza do
duvidoso privilégio de fornecer o teatro de operações. O leitor não se
surpreenderá então se, no instante de descrever a triste paisagem criada por
tantos flagelos, as imagens francesas aparecerem em primeiro plano. Entretanto,
o que há de mais surpreendente do que o desaparecimento de centenas de vilas
nesses séculos

XIV e XV?! Ora, aqui são a Alemanha e a Inglaterra que aparecem em primeiro
plano. A questão, portanto, é complexa.

Sombrias descrições da miséria que esmaga a França do século XV não faltam.


São os documentos da época que as fornecem. O padre Denifle — historiador
estimável, apressamo-nos em dizer — reuniu numa obra de título espalhafatoso,
La grande désolation des Églises de France (1897-1899), centenas de súplicas
dirigidas ao papado por igrejas, monastérios, hospitais, para obter favores,
isenções, reduções de impostos, até socorro, ou a reunião de duas paróquias
empobrecidas. O quadro que disso resulta é horrível; trata-se somente de vilas
abandonadas, de terras não cultivadas, de regiões inteiras transformadas em
verdadeiros desertos. Descrições que não deixam de ter fundamento, mas
estaríamos errados se acreditássemos pia-mente nelas. Ainda hoje, qual o
contribuinte que descreve sua situação como sendo agradável, ao escrever a seu
inspetor de impostos?
“O trabalho parava totalmente. Os nobres eram privados de seus censos e
rendimentos; suas vilas e os habitantes destas foram destruídos. Oficiais reais e
capitouls ficaram tão nervosos e alterados que quase não eram mais obedecidos e
recebiam múltiplos insultos. Os comerciantes pararam de comprar, de vender e
de transportar suas mercadorias. Os burgueses não puderam receber nem cobrar
seus censos e outras rendas. Os artesãos não tinham com o que trabalhar ou, se
conseguiam fabricar algo, só podiam vendê-lo a preço vil. Considerando tudo,
não havia mortal suficientemente ousado para sair ou ficar fora dos muros das
aglomerações, devido a essa guerra.” Assim manifestava-se o assessor dos
capitouls de Toulouse, ao abrir a sessão de deliberações municipais de 20 de
abril de 1419 (99). Aí também é preciso tomar cuidado. Esse texto é um
exercício de escola. Se de fato a situação de Toulouse não era invejável naqueles
tempos, sabemos por vários documentos que a realidade não era tão negra.

Outros testemunhos parecem mais dignos de confiança. Thomas Basin, bispo de


Lisieux, redigiu sucessivamente as histórias de Carlos VII e de Luís XI, dos
quais viveu próximo. Ele coloca estas palavras na boca deste último, que veio
das ricas terras borgonhesas tomar posse de seu reino:

“Ele residira durante quase cinco anos nas terras do duque de Borgonha; as
cidades e os burgos magníficos e ricos, com tudo em abundância, as casas tão
bem mobiliadas quanto construídas, os habitantes gozando de uma grande
liberdade, convenientemente vestidos, tudo o que se via no país era a própria
imagem da fortuna e da liberdade; não se percebiam em nenhum lugar ruínas ou
destrui-ções. Ao contrário, desde que entrou em seu reino, só encontrara por toda
parte ruínas e construções demolidas, campos áridos ou não cultivados; quanto
aos homens e às mulheres, a magreza de seu rosto, a pobreza de suas roupas, que
mal escondiam sua nudez, traduziam tanta privação que parecia que essas
pessoas tivessem saído da mais cruel prisão e não que se tratasse de um povo
livre.”

Mas Basin não louvara em outros tempos o renascimento da agricultura sob


Carlos VII? Seu testemunho certamente não é sem valor. Mas o mestre mudara...

Um inglês, sir John Fortescue, atravessava em 1465 o Norte da França para


chegar a Paris. Suas impressões são bastante acabrunhadoras:

“Os camponeses da França bebem água, comem maçãs, com pão muito escuro,
feito de centeio; não comem carne, salvo às vezes um pouco de toucinho ou
entranhas e cabeças dos animais que eles matam para a alimentação dos nobres e
dos mercadores do país. Não usam roupa de lã, exceto um pobre gibão, sob sua
roupa de cima, que é feita de pano grosseiro e chama-se blusa. Suas polainas são
do mesmo pano e não ultrapassam os joelhos, onde são amarradas por uma
jarreteira; as coxas ficam nuas. Suas mulheres e crianças andam com os pés
descalços. Eles não podem viver de outra maneira, pois os rendeiros que deviam
pagar um escudo por ano, pela terra, ao senhor, agora pagam, além disso, cinco
escudos ao rei. São de tal modo constrangidos por necessidade a velar, arar,
arrotear a terra para sua subsistência, que suas forças são consumidas nisso, sua
espécie reduzida a nada. Vivem na mais extrema miséria, apesar de habitarem o
reino mais fértil do mundo.”

Tanta precisão impede-nos de considerar esse testemunho como possível de ser


desprezado. Mas uma dupla preocupação patriótica e literária transparece tão
claramente que não podemos confiar completamente nele. Commynes, um bom
observador, descreve em termos bem diferentes essa mesma região percorrida na
mesma época.

A lição que guardamos disso é que só se deve confiar realmente em testemunhos


estritamente localizados: em tal lugar, em tal data. E assim, com efeito, que de
uma maneira geral procederam os eruditos (47). Yvonne Bézard, ao estudar o
Hurepoix, de acordo com o registro das inspeções do arcediago de Josas, chegou
a conclusões desoladoras (203): perto de Chevreuse, a aldeia de Magny-les-Ha-
meaux ficou sem habitantes durante mais de vinte anos, de 1431 a 1455, quando
instalaram-se três imigrantes normandos. A própria Chevreuse tinha chegado a
300 paroquianos, era uma aglomeração importante: em 1458, tinha apenas 28. O
destino de Bièvres é quase paralelo, dois terços abaixo: 100 lares outrora, 8
almas em 1458. Entretanto, mesmo aqui, a crítica histórica não perde seus
direitos: desde antes da guerra, o Hurepoix era uma região relativamente pobre,
sua densidade de população só chegava a um terço ou à metade daquela de que
podia se gabar o conjunto do prebostado de Paris.

Se passamos para zonas ricas, o quadro muda: em Saint-Denis e arredores, em


Corbeil e redondezas, os estragos são muito localizados e raramente totais. O
senhor de Meudon mandou transcrever num cartulário todos os contratos de
restabelecimento do censo que ele autorizara de 1445 a 1520; concernem a 59
arpentes [1] dos 210 que compunham o território sujeito ao censo; menos de
30% do solo tinha, portanto, sido submetido a um abandono duradouro. Parece
que as regiões ricas eram as melhor armadas: mais povoadas, dispunham de mais
forças para repelir salteadores, aliás, menos seguros de si; mesmo depois dos
sinistros, continuavam a atrair os camponeses que vinham preencher os vazios.

Admite-se sem dificuldade que a região pouco acidentada, aberta, sem defesa era
uma presa mais fácil que as cidades e aldeias protegidas pelas cintas de suas
muralhas. É. aliás, o que confirma um texto famoso de Thomas Basin:

“Tudo o que se podia cultivar naquele tempo..., era apenas em volta e no interior
das cidades, praças ou castelos, perto o suficiente para que, do alto da torre, o
olho do vigia pudesse ver os salteadores atacando. Então, a toque de sino, de
trompa ou de qualquer outro instrumento, ele dava a todos aqueles que
trabalhavam nos campos ou nas vinhas o sinal para que recuassem ao ponto
fortificado. Era a coisa mais comum e freqüente quase por toda parte; a tal ponto
que os bois e cavalos de lavoura, estando soltos da carroça, quando ouviam o
sinal do vigia, imediatamente e sem guias, instruídos por um longo hábito,
voltavam a galope, enlouquecidos, para o refúgio onde sabiam estar em
segurança.”
E no entanto, as paisagens urbanas também não foram perturbadas? Não faltam
exemplos. Citemos um que vem da Inglaterra: Coventry — que tinha sido no
século XIII uma das cidades mais importantes do país, mas cuja indústria estava
em declínio, incapaz de se recuperar dos golpes causados pelas epidemias e
fomes — cai ao nível de cidade média, e abundam as casas arruinadas. Nada de
guerra, entretanto — quero dizer: ali mesmo.

Voltemos à França. Em Montpellier, o autor do Grand Thalamus escreve em


1395:

“A cidade de Montpellier era há muito tempo uma cidade notável em que havia
habitualmente pelo menos 10.000 lares; ela está agora tão diminuída que mal
pode oferecer 800.” Os capitouls de Toulouse expõem em 1408 que “outrora a
cidade era tão habitada que uma grande parte dos cidadãos tinha de se abrigar
nas aldeias; ela era bem edificada com belos palácios e edifícios, sem lugar
vazio, enquanto hoje a cidade tornou-se mui ruinosa”. Era apenas exagero. Eu
mesmo pude (99) traçar a imagem de uma cidade despovoada, empobrecida,
incapaz de conservar seu capital imobiliário, reduzida a manter de qualquer jeito
uma única de suas pontes sobre o Garonne, a se satisfazer com uma medíocre
muralha de lanços sempre desmoronadiços. Incêndios periódicos reduzem-na até
que o de 1463 destrói dois terços dela.

Mas nada iguala-se ao pungente quadro deixado das desgraças de Paris durante
os vinte anos que precedem a volta de Carlos VII à sua capital pelo Bourgeois de
Paris, anônimo que escreve um Journal célebre (90): os preços dos alimentos
eram declarados ali diariamente, os famintos mostrados morrendo nas ruas...

Estendamos agora nossas vistas para toda a Europa.


As vilas perdidas

Nada despertou mais as imaginações do que esse fenômeno das vilas perdidas,
descoberto pelos historiadores há alguns decênios (26 e 105). O que chamamos
de “vila perdida”? Uma aglomeração cuja existência fora atestada antes, e da
qual restava pelo menos um elemento, castelo, casa de lavrador, igreja, amiúde
em ruínas, ou mesmo absolutamente nada (181).

Naturalmente, mal é dada essa definição, impõem-se as nuanças: “vilas” é o que


escrevemos, contendo igreja ou castelo, e não apenas um modesto lugarejo. Mas
como trabalhar em zona de habitat disperso, onde a vila resume-se a quase nada?
— Também é preciso distinguir, entre os abandonos, aqueles que foram
temporários — e que, no momento, possuíam mesmo assim um significado
equivalente — e as deserções definitivas, cujo alcance revelava-se mais grave,
na verdade, outro. Outra distinção: algumas vilas foram abandonadas, mas não
suas terras, distribuídas para a lavoura das vilas vizinhas — falando como os
alemães, há então Wustung, e não Wüste Fluren.

A atenção dos observadores foi atraída, sobretudo de início, pelas fontes escritas:
pesquisas regionais feitas num ou noutro momento, queixas, descrições, visitas
pastorais e até, com mais esmero, exame das contas e dos livros de registro dos
censos. Há, infelizmente, bem poucos mapas anteriores ao século XVI. O estudo
dos nomes de lugares pode ser revelador, um topônimo, ligado desde então a um
local, sobrevive à vila que ele designara. Alguns indicam expressamente ruínas:
como Mazières, ou Mézières (do baixo-latim mace-riae) mas de quando datavam
essas ruínas? Uma contribuição ina-preciável foi fornecida pela fotografia aérea:
a presença de fragmentos subterrâneos muitas vezes dava às culturas atuais uma
fisionomia e uma cor que fotos tiradas de helicóptero nas condições mais
favoráveis revelavam facilmente (26). Guiados desse modo, os escavadores
podiam começar a tarefa, com todas as precauções que hoje são a norma.
Tornava-se possível apresentar os grandes problemas. Qual era a importância
relativa desses abandonos de vilas? De quando datavam? Apenas dos séculos
XIV e XV? Ocorreram antes e depois? Enfim, quais foram as causas desses
fenômenos?

As pesquisas foram feitas por país (181), e será por país que, por razões de
comodidade, também procederei.

1. Na Alemanha, esse fenômeno foi analisado mais cedo, desde o século XVIII,
e suscitou uma literatura tão desigual quanto abundante. Os eruditos entraram
em ação e compuseram sobretudo cuidadosas monografias locais. O grande
homem da síntese foi Wilhelm Abel (25, 100, 196-198). O problema era
complicado devido ao fato de que, posteriormente a esses sinistros séculos XIV e
XV, a Alemanha sofreu, no século XVII. as terríveis devastações da Guerra dos
Trinta Anos — útil elemento de comparação, mas causa de destrui-ções que
ocultaram em parte as antigas.

Tendo em conta essas condições e o desigual progresso da pesquisa, foi possível


destacar a amplidão desse desenvolvimento. O “coeficiente de deserção" indica a
porcentagem das aldeias desaparecidas em relação a um total que inclui vilas
desaparecidas e subsistentes. Varia muito, mas nunca é baixo:

— cerca de 20% na Alsácia e em Würtemberg;

— 44% em Hesse;

— 66% em Thuringe setentrional.

Portanto, sobretudo a Alemanha central, país cerealífero por excelência, é que


foi atingida. O Noroeste e o extremo Sul foram-no muito menos.
Apesar das devastações da Guerra dos Trinta Anos, a grande maioria desses
desaparecimentos data dos séculos XIV e XV. Uma estatística feita para o
Würtemberg mostra que a proporção dos Wüstun-gen remonta

— ao século IX e antes em 5% dos casos;

— aos séculos X e XI em 3% dos casos;

— aos séculos XII e XIII em 20% dos casos;

— aos séculos XIV e XV em 50% dos casos;

— aos séculos XVI e XVII em 12% dos casos;

— do século XVIII aos nossos dias em 10% dos casos.

Outro exemplo: o território dos Cavaleiros Teutônicos, onde em


aproximadamente um século os imigrantes criaram 1.400 vilas e 93 cidades. Ora,
seu crescimento esgotou-se bem antes da derrota de Tannenberg (1410) — esse
esgotamento começara antes da Grande Peste. Em 1419, sobre 31.525
manses [2] da Ordem, 6.561 (ou seja, 21%) estavam desocupados.

O fenômeno, portanto, é certo, considerável. Explicações não faltaram: falou-se


de redistribuições da população entre vilas, associadas a uma nova organização
das culturas; e houve de fato casos de terras retomadas por outras vilas vizinhas.
Mas isso não significa esquecer os Wüste Fluren que apesar de tudo existiram?
De outra parte, a maioria das vilas desaparecidas estavam, no fim do século XV,
num estado lamentável que não lhes teria permitido empreender o cultivo de
duas terras. Tomou-se como bode expiatório o êxodo rural em direção às
cidades: mas ele tinha sido, sem dúvida, mais intenso nos séculos XII e XIII, em
que, entretanto, as vilas se multiplicaram, mas num clima de crescimento
demográfico geral. Esse êxodo subsistiu aos séculos XIV e XV, mas no interior
de zonas menores, e, por outro lado, foi ineficaz para deter o declínio das
cidades, onde a mortalidade era grande.
De qualquer maneira, é com o recuo demográfico geral que deve ser concebido
esse fenômeno das vilas desaparecidas. Números precisos mostram que ele
atingia todas as aglomerações: as cidades declinavam, as aldeias vegetavam, as
vilas mais frágeis desapareciam.

Às vezes esse movimento fez-se acompanhar de um progresso da criação de


animais. Mas esse progresso é apenas uma conseqüência: os camponeses
voltavam-se para a criação porque havia falta de braços para a lavoura. Não é
uma causa: não é porque a criação desenvolvia-se que as vilas desapareciam.

2. O caso da Inglaterra é bem diferente (26,105-106). Em primeiro lugar porque


a extensão do fenômeno só foi reconhecida muito recentemente: em 1946, sir
John Clapham — historiador de primeira linha — declarava negligentemente
que na Inglaterra as vilas perdidas eram “singularly rare”. De fato, a
documentação, dessa vez, era superabundante: arquivos judiciários notavelmente
ricos, processos intentados por foreiros livres ameaçados de evicção, petições de
comunidades (219); em 1517 uma comissão de investigação toma conta do
fenômeno das enclosures que marcava os desaparecimentos de vilas. Essa
abundância não desencorajou um intrépido aventureiro, Maurice Beresford, que
escrutou a riqueza, e mandou realizar as admiráveis fotografias aéreas (há um
atlas), que foram imitadas por toda parte, e suscitaram muitas escavações.

A partir daí, a colheita parece “singularmente” rica. Cerca de 2.000 sítios de


vilas desaparecidas foram localizados, sobretudo nas Midlands, nas Lowlands do
Sul e do Sudeste, nas planícies setentrionais — isto é, nas melhores terras
cerealíferas.

Como se procede? Um exemplo permitirá julgar, o de East Lilling em Yorkshire.


Uma investigação feita em 1625 sobre os bens. da Coroa revelou a existência
antiga de uma importante vila com esse nome, da qual só restava uma residência
e alguns lanços de casas. O mapa atual traz a indicação de uma paróquia
chamada “Lilling Ambo” (isto é, os dois Lilling), mas só aparecem a vilazinha
de West Lilling e, num outro lugar, um conjunto de morros. A fotografia aérea
que foi tirada dali sugeriu um plano de vila, que as escavações confirmaram,
graças às quais foram encontradas as bases das casas.

Na verdade, testemunhos mais antigos poderíam ter sido evocados. Único por
sua precisão é o de John Rous, padre de Warwick. Ao morrer (1491), deixou
uma Historia Regum Angliae, que foi editada várias vezes. Obra medíocre, para
dizer a verdade, mas onde o autor protesta contra a cobiça dos proprietários das
terras, que mandavam cercá-las, visando criar carneiros, e expulsavam os
foreiros. Ele menciona, apenas no Warwickshire e seus arredores, 58 vilas
despovoadas. Em onze casos, ele teve a curiosidade de comparar com o número
de aldeões assinalado nos Hundred Rolls de 1279: assim Compton Scorpion
possuía, além de uma capela, 53 foreiros — dos quais não resta nenhum; e
apenas dois em 29 em Compton Verney.

A que atribuir tal fenômeno? É evidente que não às guerras! Pode-se de


preferência pensar nas pestes: assim Tusmore (Oxfordshire) foi transformada em
invernada em 1358, depois da morte de todos os servos. Sem dúvida, apenas
pequenas vilas foram aniquiladas desse modo. Noutras partes manifestava-se,
por volta de 1450, uma retomada demográfica. Foi então que entrou em cena
uma política senho-rial: com o boom da tecelagem inglesa, que provocou uma
grande procura de lã, era preciso desenvolver a criação de carneiros. Para fazê-lo
nas melhores condições, convinha cercar os campos e, portanto, expulsar os
foreiros. Esse movimento das enclosures tomou tal dimensão que uma comissão
de investigações parlamentar foi criada em 1517. Entre os vários casos que ela
denunciou, encontra-se o de Lillington Dayrell (Buckinghamshire): Thomas
Darrel, que tomava conta dos bens do conde de Oxford, despovoara oito casas e
quatro cabanas, cercando 164 acres; 40 pessoas "foram dolorosamente expulsas
e levadas ao desemprego... A cidade de Lillington Dayrell foi totalmente
devastada, exceto um domínio principal no qual reside o dito Thomas” (fevereiro
de 1493). As vítimas irão se defender em vão, mas o processo irá se arrastar até
1545, quando finalmente é adiado sine die.
Assim tinha sido em todas as grandes zonas cerealíferas citadas acima. A
paisagem agrícola inglesa sofreu então uma ampla e definitiva mutação — mas
pela vontade de alguns homens, não dos flagelos.

3. O que acontece na França? Não há nenhuma grande investigação aqui, mas


apenas algumas recentes pesquisas de detalhes. Muito menos escavações: foi
uma equipe de arqueólogos poloneses que veio abrir o sítio de Montaigu (Tarn)
(181), vila também citada numa ata registrada em tabelião de 1340, depois
atingida por fomes e pestes, e cujos sobreviventes sem dúvida encontraram
abrigo na bastida [3] de Lisle-sur-Tarn.

A impressão geral é de estabilidade — surpreendente, se comparada ao caso


inglês: das 32.500 paróquias recenseadas em 1328 no reino (154), apenas 900
(ou seja, 2,77%) desapareceram antes do século XIX. Esses desaparecimentos
não datam necessariamente dos séculos XIV e XV: desse modo, em Artois, em
153 vilas desaparecidas, 29 morreram então, contra 28 antes de 1340 (resultado
dos fracassos da colonização ou de oposições senhoriais), e 73 do século XVI a
1800 — triste preço de freqüentes guerras (111). Em Cham-pagne, a evolução
foi bem parecida.

A estabilidade confirma-se em regiões que, no entanto, foram muito atingidas e


eram pobres: é o caso de Quercy, onde a maioria das vilas foram repovoadas; e
de Rouergue que, apesar de uma forte emigração, quase não perdeu nenhuma
vila. Provença foi mais atingida: Noèl Coulet contou, apenas na
viguerie [4], cerca de 50 vilas desaparecidas, das quais cerca da metade antes de
1471 (36 bis). Se observarmos mais, veremos que esses desaparecimentos
deviam ser muito progressivos. Seus habitantes foram para Aix ou trabalharam
nos novos centros de produção, chamados bastidas (não confundir com as do
Sudoeste).

Esses poucos dados — que obviamente seria preciso completar — sugerem


que uma mutação tão considerável como a da Inglaterra não aconteceu na
França. Não é seguro que se deva regozijar-se disso.

4. Mais fragmentárias ainda foram as pesquisas feitas na Itália. E, no entanto, o


fenômeno é muito sensível ali: os casos de vilas arruinadas são numerosos,
subsistiram desertos (181). É verdade que fortes disparidades regionais se
distinguiram: enquanto na Toscana, nos séculos XIV e XV, apenas 10% das vilas
desapareciam, a proporção crescia para 25% na província de Roma, para 50% na
Sardenha — e o que dizer do Mezzogiorno e da Sicília, ainda muito mal
estudados?

A explicação desse fenômeno parece ainda mais complexa que em outros


lugares. Retrocesso demográfico? Mas houve numerosos abandonos na Sicília
desde o século XIII. Exterminações repentinas? Mas as guerras dão o pontapé
inicial ou o golpe de misericórdia.

De qualquer maneira, sempre que se encontravam camponeses obstinados


prontos para voltar a uma vila, ela sobrevivia. Não é impossível que tenham
colaborado para isso, aqui ou ali, políticas senhoriais análogas às dos
proprietários ingleses. Quando o papa voltou para Roma, por volta de 1420, o
campo estava arruinado; cerca de um quarto dos centros rurais do século XIV,
sobretudo os menores, tinham desaparecido. Uma retomada do desenvolvimento
teria sido concebível. Mas seria não contar com o jogo de interesses: apenas
entre 1422 e 1428. os Colonna compraram 35 localidades, dentre as quais,
metade arruinadas e desertas; só mandaram reconstruir três nos séculos XV e
XVI, e preferiram dedicar as outras à criação ovina. Em vão, de vez em quando,
o papa lembrava a obrigação de manter a terça parte das terras com culturas
cerealíferas.

E então? Vamos finalmente concluir? De maneira alguma se deve dizer que a


guerra não tenha uma grande responsabilidade por tantas desgraças e ruínas.
Também é preciso pensar que, aqui e ali, certas categorias de homens não tinham
absolutamente a consciência tranqüila? Mas não são as desgraças de um tempo
que preparam as atividades salutares do futuro? —Também é certo que o mal-
estar moral provocado pela guerra não se distinguia bem nos espíritos daquilo
que as fomes e pestes suscitavam. No entanto, é essa dupla sinistra que designo
como a mais culpada.

[1] Antiga medida agrária francesa, variando conforme a região de 30 a 50 a. (N.


T.)

[2] Porção de terreno que. nesses tempos, se julgava necessário para um homem
viver com sua família. (N.T.)

[3] Nome que se dava às cidadezinhas criadas com objetivo político ou militar
na Idade Média, no sudoeste da França. (N.T.)

[4] Território sob jurisdição do viguier, cargo equivalente ao de preboste em


outras províncias. (N.T.)


II. JOÃO QUE RI

Penso que já insisti o bastante sobre a gravidade dos flagelos que, nos séculos
XIV e XV, se abateram sobre o conjunto da Europa, para que a impressão não se
apague no decorrer desta segunda parte, mais alegre, que vamos abordar agora.
As desgraças, foi só o que vi de início, e não havia quase mais nada para se ver
na Toulouse daquela época. Depois, principalmente na Itália e nos Países Baixos,
revelou-se para mim o que, na mesma época, nascia portador de tanto futuro. É a
segunda face que nos cabe agora escrutar.
7. Cultivar melhor

Os historiadores da economia rural da Europa dispõem de uma Bíblia, na qual


Marc Bloch encarna o Antigo Testamento (204), e Georges Duby, o Novo (213).
Certamente nenhum dos dois dedica muito espaço à agricultura dos séculos XIV
e XV, mas desde então a lacuna foi preenchida por muitas obras e artigos de boa
qualidade. Podemos, portanto, tentar um primeiro quadro.

As dificuldades, contudo, não estarão ausentes. Mais uma vez, elas se prendem
amplamente ao problema das fontes. Dados preciosos não faltam nas fontes
narrativas: tanto as notas de Thomas Basin que descrevem a devastação do reino
da França, quanto as observações de sir John Fortescue ao atravessar o Norte da
França em direção a Paris, em 1465, são insubstituíveis; só é preciso evitar
tomá-las ao pé da letra. Os livros de registro de censos, que fornecem a lista dos
foreiros de uma senhoria, designando as parcelas ocupadas por eles, enumerando
os encargos que recaíam sobre eles, revelam a dura realidade. As contas de
senhoria, como as dos arcebispos de Bordeaux, da abadia de Saint-Denis na
França, aquelas, inúmeras, que propõe a Inglaterra — ou de clientes, como as
grandes Cortes e os hospitais — fornecem um útil complemento. E preciso ainda
recorrer aos contratos registrados pelos notários (onde há), aos documentos
judiciais (especialmente ricos na Inglaterra) — e, com mais prudência ainda, às
súplicas dirigidas ao papa pelas comunidades religiosas, às cartas de franquia. A
iconografia também é útil, em particular os trabalhos dos meses, esculpidos nas
catedrais, pintados nos missais; ainda aí, é preciso precaver-se, pensar que seus
autores eram mais ou menos realistas, que se copiavam de bom grado entre si,
que o aparecimento de novas técnicas corre o risco de estar dissimulado nisso.
Outras contribuições, que devem sempre ser utilizadas com prudência: a
toponímia (isto é, o estudo dos nomes dos lugares); os planos parcelares, mais
tardios, mas que podem revelar certas características das paisagens anteriores; ou
então a análise das paisagens rurais atuais. Mais modernos são os métodos de
estudo do clima: a palinologia (ou estudo dos polens conservados nas turfas), a
den-drocronologia (ou análise da seção transversal das árvores), a fotografia
aérea, que revela muitos fenômenos não aparentes ao nível do chão. E outras...
Seria preciso também interpretar a evolução dos preços. Em resumo, abundantes
métodos de análise que ainda deixam questões sem resposta, mas que permitem
tentar uma síntese.

Uma série de problemas merece ser evocada aqui. Vamos desde já indicá-la: irá
se basear ainda no homem, em sua alimentação, seus gostos, suas reações diante
de dificuldades de clima, suas capacidades de iniciativa individual. Dito isso,
passemos ao estudo desses problemas — individualizados para a clareza da
exposição, mas muito relacionados na realidade. Que influências sofreu a
agricultura dos séculos XIV e XV? A da guerra, naturalmente — e aqui
remetemos aos capítulos da primeira parte. O mesmo se dá quanto ao despovoa-
mento, que exigiu uma dedicação mais ampla a culturas que envolviam menos
mão-de-obra. Outras influências são mais positivas.

A demanda das cidades

E o caso da demanda urbana, pois a população das cidades reclama uma


alimentação mais variada: não mais apenas o companagium, o pão acompanhado
de diversos ingredientes — às vezes passado no alho — ou as sopas variadas a
partir de cereais, carnes raras com o predomínio do porco, ovos e frangos mais
ou menos magros, peixes secos ou salgados. Doravante a gama de necessidades
se enriquece muito (256, 291).

Nada é mais surpreendente que a procura crescente de carne, salientada por


Wilhelm Abel na Alemanha (196), como por Charles de la Roncière em Florença
(73), por Louis Stouff em Provença (82), por mim mesmo em Toulouse (99)...
Wilhelm Abel constatou que, na Alemanha, mesmo os simples assalariados
comiam carne duas vezes por dia. Criavam-se muitos porcos e carneiros. Na
região de Moselíe, importavam-se carneiros garanhões de Gotland e da
Inglaterra, para melhorar as raças. Tive uma impressão parecida em relação a
Toulouse; em 1322, temos uma lista de 177 açougueiros, ou seja. 1 para 226
habitantes, para uma população máxima de 40.000 almas — cerca de duas ou
três vezes mais que hoje; e alguns figuravam entre os comerciantes mais ricos da
cidade. Para que estender essa lista de referências?

Toda uma alimentação diferenciada em carnes surge em Florença como bem o


mostrou Charles de la Roncière, ao analisar principalmente as contas do hospital
Santa Maria Nuova. Ele anota: “O cabrito figura tradicionalmente na refeição
pascal e é o prato das grandes festas (quem o experimentou compreende bem).
Em compensação, o carneiro é a carne de consumo corrente, e o hospital nunca
compra carneiro vivo." Quanto a porcos, “o hospital, que cria seus animais ou os
compra vivos, só compra carne de porco em quantidades médias e
irregularmente. Suas compras acontecem sobretudo no inverno; antes da peste
são mesmo excepcionais fora dessa estação”. E, finalmente, as novilhas
constituem “um prato de luxo que é reservado para as grandes festas”. É possível
que tenha havido mudança de hábito depois da peste de 1348.

Como obter esses animais? Criando-os, é claro. Era uma das atividades dos
açougueiros, e mostrei, a propósito dos macelliers de Tou-louse, como eles
traziam seus animais do Maciço Central, prevendo paradas para o repouso e a
engorda, e praticando até mesmo a inver-nada final. Havia também a gasalha —
contrato de parceria pecuária — que se multiplicava por toda parte, sob diversas
formas, a qual, aliás, já tive oportunidade de analisar detidamente. É a
associação do capitalista urbano com o camponês criador — sem que o primeiro
fornecesse forçosamente todo o capital —, com uma divisão variada dos lucros e
perdas. Verdadeira infusão de capitais urbanos no seio dos campos.

Os cereais continuam assim mesmo a ser a base da alimentação. Sua gama torna-
se mais variada. Introduzido na Europa oriental a partir do império mongol, o
trigo-sarraceno ou trigo negro chega à Normandia e, no fim do século XV, à
Bretanha, onde sua boa adaptação às terras pobres o torna precioso, alcançando
um sucesso notório. Aos cereais podemos acrescentar o arroz, cuja cultura,
praticada em várias regiões da Espanha outrora muçulmana, também surge na
Itália setentrional, na baixa planície do Pó. Ainda faltam o milho e a batata.

Penúrias e fomes atingem sobretudo essa base da alimentação. O economista


inglês Gregory King (1650-1710) estabelecera uma relação entre uma colheita
insuficiente e a alta do preço dos cereais. Se a colheita era inferior de 1/10 da
normal, os preços subiam 3/10 acima da normal; de 3/10, elevavam-se de 16/10;
de 5/10, ascendiam de 45/10. Essa “lei”, que certamente podemos discutir, só
funcionava dessa maneira, reconhecia King, quando não entrava em jogo
qualquer outro elemento, tal como a importação de outros países, a presença de
estoques dos anos precedentes, a existência de substitutos. O “efeito King”
permite mesmo assim compreender que havia ali um notável estímulo para os
agricultores.

Além do mais, elementos psicológicos agiam para agravar a situação em período


de penúria. É justamente então que os aumentos dos preços tornavam rentáveis
os transportes a longa distância. Nunca se viu circular tamanha quantidade de
grãos como nessa ocasião. Assim impunha-se a idéia de que de fato reinava a
abundância, que a penúria devia-se apenas a manobras de especuladores. Desse
modo, propagou-se na França do século XVIII essa lenda do “pacto de fome”
que deveria representar um enorme papel nas origens da Revolução Francesa.

Havia os dias de abstinência, aumentados pela religião, sobretudo em período de


quaresma. Era preciso então comer peixe. É uma pena que o comércio de peixes
tenha sido tão pouco estudado. Limi-temo-nos, portanto, a dizer algo a respeito.
Desenvolveu-se muito o comércio de arenque, favorecido pelo processo de
embarricamento (91): logo depois de pescados, os peixes eram salgados e postos
em barris. Pode-se notar um deslocamento dos centros de pesca para o Oeste:
além da Escânia, os mares da Noruega à Islândia (onde obtêm-se o arenque
branco e o bacalhau, que é posto para secar), as águas ao largo da Inglaterra
oriental (Yarmouth), e o estuário do Reno na Holanda — o progresso de
Amsterdã está à vista. Michel Mollat mostrou o papel que a pesca do bacalhau
representou no movimento das grandes descobertas em direção à América do
Norte (65). Poderiamos dizer algo parecido em relação à pesca da baleia
praticada pelos bascos. A pesca mediterrânica não estava em atraso: em
Marselha existia uma importante corporação de pescadous — 100 a 350 pessoas
conforme as épocas.

Cada vez mais difundia-se o consumo de legumes e frutas. A produção de


legumes aumentava e diversificava-se: à tradicional trindade das ervilhas, dos
feijões e das favas, à cebola e ao alho, juntavam-se agora os espinafres, os aipos,
os melões, os aspargos, as alcachofras... Foram de início cultivados na Itália.
Charles de la Roncière fala de sua existência em Florença (82): “Dos pomares e
hortas, que cercam e sitiam Florença, os legumes e as frutas, em dezenas de
espécies, são expedidos todos os dias no mercado urbano” — e ele conta onze
espécies de frutas e outras doze de legumes. Eram exportados da Itália, às vezes,
para muito longe. Depois foram aclimatados noutros lugares, e subúrbios
"hortenses" começaram a ser criados: Vizille especializou-se na produção de
cebola e de alho; a Bretanha enviava seus legumes para a Inglaterra; em 1453, os
burgueses de Poitiers mandavam trazer de Milão seus grãos de salada. O mesmo
acontecia com as frutas: a região de Erfurt, “jardim do santo Império Romano”,
fornecia para toda a Alemanha. Os frutos mediterrânicos — laranja e limão, que
ainda mal se sabia distinguir; romã, figo e tâmara — faziam um sucesso
crescente nos países do Norte, onde chegavam da Espanha e de Portugal, ou
mesmo diretamente da África.

Legumes e frutas eram cultivados nos jardins e pomares. Ninguém disse melhor
que Noél Coulet quanto a Áix-en-Provence (247) como o jardim foi um dos
tutores do sentimento nascente em relação à natureza: “O prazer tem sua parte
nisso. As aléias sombreadas pelas parreiras, o perfume suave das rosas,
vermelhas e brancas, o cheiro do alecrim e da salva — aromas misturados, é
verdade, ao acre fedor do estrume em fermentação —, o frescor e o murmúrio
das águas, as distrações da pesca no viveiro são um estímulo ao passeio e ao
descanso. Os burgueses não admiram menos que o soberano esse campo
domesticado nas portas da cidade. Muitos atos do rei René são ditados nesse
grande pomar que ele constituiu entre 1447 e 1449 entre seu palácio e o antigo
convento das Clarissas.” São muitos os documentos iconográficos que nos
mostram que Aix não foi um caso isolado.

Ovos e frangos completavam de forma tradicional essa alimentação. Mas que


frangos? E mesmo que ovos?

Esses alimentos precisavam ser temperados. Havia em primeiro lugar o óleo. “O


óleo de oliva é em Florença — sempre Charles de la Roncière (82) — uma das
bases da alimentação e da indústria têxtil, a oliveira é muito cultivada...” Aqui
nos encontramos no domínio mediterrânico. A Itália meridional exportava o óleo
para Veneza e Egito, entre outros países. No Sul tunisino, a ilha de Djerba
formava um verdadeiro “oásis do óleo”, ainda mais precioso devido ao quase
desaparecimento dos antigos olivais da própria Tunísia. Ara-gão expedia o óleo
para Toulouse. Indo em direção ao Norte, entrava-se no domínio da manteiga.
Fernand Braudel exprimiu bem o estupor dos espanhóis ao chegarem no século
XVI nesses países “onde se preparam os pratos, coisa incrível, com a manteiga
de vaca em lugar de óleo”. Ninguém me convencerá de que a manteiga era coisa
nova no século XVI (2).

Havia naturalmente o sal. Saint Michel Mollat é o seu patrono, rodeado de uma
corte celeste composta por Jacques Le Goff, Jean-Claude Hocquet e muitos
outros (51, 289, 295, 297). Guiados desse modo, como nos perdemos?
Atualmente não temos mais idéia de todos os antigos usos do sal. Ele não servia
apenas para salgar a comida. Tinha usos industriais — preparação do couro,
limpeza das chaminés, soldas de canos e goteiras —, usos farmacêuticos — era
utilizado como auxiliar na destilação do álcool a partir do vinho, e também de
remédios contra a dor de dentes, acidez estomacal... Sobretudo, ele conservava
alimentos — o que será feito pela conserva no século XIX e pelo frio no século
XX. Conservava a carne (devido à falta de forragem, muitos animais eram
abatidos na entrada do inverno e colocados para salgar), a manteiga e o queijo
(punha-se até uma libra de sal para dez libras de manteiga), por fim e
principalmente o peixe — em especial os arenques do Báltico e do mar do Norte
—, de modo que era particularmente necessário nos países setentrionais.
O mesmo não se dava quanto à produção. Havia sobretudo ali as salinas
costeiras: conjuntos de pequenas represas cada vez menos profundas, pelas quais
passava-se a água para evaporar, até que o sal se cristalizasse. Era então
colocado em montes cobertos de palha. Método rudimentar, mas econômico.
Tais salinas eram encontradas em todas as costas baixas de clima
suficientemente quente: costas mediterrânicas, é claro; mas também atlânticas,
desde Setúbal, em Portugal, até a costa francesa. É preciso insistir
principalmente no papel internacional representado pela baía de Bourgneuf: as
salinas estendiam-se ali por cerca de 35 quilômetros de costas, bem protegidas
pela ilha de Noirmoutier; era uma zona intermediária entre Poitou e a Bretanha,
isenta de qualquer taxação sobre o sal; era, especialmente para os consumidores
do Norte, o primeiro grande conjunto de salinas que encontravam em direção ao
Sul. Já o sal-ge-ma, terrestre, é diferente: é o caso da montanha de sal de
Cardona na Catalunha; as minas de Franche-Comté e de Lorraine, cuja
exploração enriqueceu os burgueses de Metz e os duques de Lorraine; finalmente
as da Alemanha do Sul e da Áustria (Hall, Hallein, o Salzkammergut), que
expediam muito para a Alemanha setentrional; Munique era um grande mercado.
Podemos relacionar isso com as fontes de salmoura, que surgiam em diversos
lugares, como no Noroeste da Inglaterra e na hinterlândia próxima do Báltico.
Fervia-se essa salmoura e, com muito custo, obtinha-se um excelente sal, como o
de Lüneburg, que por muito tempo abastece Lübeck. Nas costas do Norte, como
na Inglaterra e nos Países Baixos, havia uma turfa salgada: era queimada, depois
a cinza era dissolvida na água do mar e fervida. Excelente sal, mas que saía
muito caro! No conjunto, os países meridionais aparecem, portanto, como os
mais favorecidos.

Havia ali — e houve desde a pré-história — um grande comércio de sal. A baía


de Bourgneuf vivia então seus melhores dias. Os navios hanseáticos, holandeses
e flamengos (até cerca de uma centena) agrupam-se em camboio para lutar
contra a pirataria. A Hansa tem sua “frota da Baía", que parte de Zwin entre
dezembro e março a fim de, na volta, abastecer o mercado de arenques do
Báltico. Mas há também pequenos navios isolados, sobretudo bretões: têm mais
liberdade de movimento, e sua própria pequenez os salva das cobiças. Bruges é o
grande porto de redistribuição. A frota parte novamente para os mercados de
Gdansk, Tallin, Riga (onde o sal é ensacado para a Rússia). A amplitude desse
tráfico não é bem conhecida, devido à falta de contas de aduanas. Entretanto, a
apreensão de toda a frota da Baía pelos piratas ingleses, em 23 de maio de 1449,
causou uma disputa internacional que fornece alguns elementos. Avalia-se o
estoque de sal em pelo menos 1.840 toneladas, levadas em 60 navios flamengos
e holandeses e 50 hanseáticos.

Há ainda as especiarias, cuja importância temos dificuldade de perceber, já que,


hoje, o especieiro é um comerciante igual aos outros (281). Elas constituem de
fato um conjunto muito variado de produtos, dos quais só citarei os principais.
Eram utilizadas na alimentação, mas também na farmacopéia. São de início
essências vegetais, mais ou menos tratadas, como o aloés (purgante), a cânfora
(utilizada contra o reumatismo e as doenças do coração), a escamônea
(purgante), o açúcar de cana (contra as doenças do peito). Outras eram partes de
plantas: raízes, de galanga (excitante) e de ruibarbo (purgante); as próprias
plantas, como o gengibre; cascas, como a canela; flores, como o açafrão
(também utilizado para tingir); frutas, cravos-da-índia, noz-moscada e,
sobretudo, pimenta. E, por fim, há alguns produtos animais, principalmente o
almíscar, muito procurado.

Todos esses produtos, ou quase, eram provenientes da China, da Insulíndia e da


Índia — portanto, tratava-se de um comércio muito longínquo. Encaminhadas
para os grandes mercados do Levante, sobretudo Cairo e Alexandria, as
especiarias eram compradas ali pelos comerciantes italianos, que as vendiam em
seguida nas grandes feiras, especialmente em Gênova e Lyon. Certamente,
tratava-se de um tráfico muito importante. As especiarias eram utilizadas na
farmacopéia, ainda limitada aos “simples” da tradição romana e ocidental, que
só iria se renovar de fato depois do século XVIII. Eram muito utilizadas na
cozinha, e não apenas porque se apreciavam os sabores fortes. As especiarias
compensavam a falta de gosto de certos alimentos: carne cozida por ser muito
dura, vinho demasiado novo (porque não se sabia fazê-lo envelhecer). Quando
era preciso, pimenta e gengibre serviam de moeda de troco, em que eram
estipulados alguns aluguéis e rendas. Contudo, não vamos exagerar. Richard
Gascon chegou a escrever que, mesmo em Lyon, “não foram as especiarias que
deram o impulso decisivo às feiras. Esse papel foi representado pelos tecidos de
luxo das cidades manufatureiras italianas”.
E a bebida? Aqui triunfa o vinho. “O vinho jorra aos borbotões nas mesas
florentinas, observa Charles de la Roncière (73)... O clero deplora a bebedeira,
mas admite as virtudes do vinho... Todos os anos, em 1° de novembro, festejos
comemoram o vinho novo, e o popolo minuto fica tão alegre que não se
aconselha, às personalidades de passagem, a permanência na cidade nessa
época.” Passamos por Provença e Louis Stouff, baseando-se em belas séries de
contas, observa: “Tudo nos arquivos demonstra a importância do vinho. Não há
alimentação conveniente sem ele.” Eu mesmo lembrei a respeito de Toulouse
(99): “A importância do vinho na alimentação tolosana era considerável. Puro,
ou misturado com água (limphatus), era a bebida por excelência, aquela que
invariavelmente estipulava contratos de trabalho e de emprego. Seu consumo,
embora seja difícil precisar a sua importância, certamente era cotidiano em todas
as classes da sociedade. O vinhedo constituía então, por excelência, o cinturão
das cidades, como hoje as culturas hortenses: ‘Ela constitui em belos vinhedos e
bons e plantados em plena luz’, tal é o mais belo elogio que Froissart pode fazer
a uma cidade.” Mas o gosto pelo vinho também é forte nos países nórdicos, a
ponto de suscitar um grande comércio analisado em particular por Jan
Craebeckx (265). E Henri Pirenne indica como sinal de distinção social nos
Países Baixos o fato de se beber vinho em casa — e não apenas nas tabernas.

Essa voga do vinho justifica-se com facilidade (211, 303, 304). Não insistamos
em demasia nas necessidades litúrgicas (para a comunhão), reais, no entanto, a
ponto de haver suscitado, em regiões que certamente não lhes convinham,
criações de vinhas, aliás desaparecidas nos séculos XIV e XV. É preciso atribuir
mais importância às necessidades fisiológicas, à necessidade de um tônico —
especialmente nos climas frios — numa época em que nem o álcool, nem o café,
nem o chá eram bebidos. Logo, é fácil de se compreender que um grande
comércio do vinho tenha podido se instaurar entre países meridionais
fornecedores e países setentrionais consumidores. Os poucos dados de que
dispomos assinalam essa extensão: Yves Renouard estabeleceu que a região de
Bordelais exportava em média 250.000 hectolitros aproximadamente; a título de
comparação, a exportação de 1956 era de 424.000 hectolitros, número que os
bons anos medievais deviam alcançar. Cidades, senhores e Estados obtinham
desse tráfico grandes recursos. Para nos limitarmos a um exemplo: em Gand, os
impostos sobre os vinhos representam 88% das finanças municipais em 1400-
1401, e 30% em 1436-1437, situando-se a média entre esses dois extremos. Jan
Craebeckx conclui: “o fato de que um consumo sem dúvida bastante fraco tenha
sido a causa de tal situação prova até que ponto a estrutura econômica anterior à
revolução industrial era diferente da de hoje”. O pai do escritor Chaucer
enriqueceu-se com o comércio de vinho. Assinalemos ainda que, embora a
cultura da vinha fosse muito sábia e cuidadosamente praticada, a vinificação era
muito medíocre. Sabia-se praticar o corte dos vinhos e o enchimento constante
dos tonéis para evitar a acidifi-cação do vinho ao contato do ar. Mas não se sabia
clarificar o vinho como hoje pela colagem. Tampouco podia-se envelhecer o
vinho e desconhecia-se o uso da garrafa de vidro. Era, portanto, preciso expedir
o vinho a partir de outubro e consumi-lo no ano. Para dar sabor a esses vinhos
jovens, amiúde misturavam-se a eles especiarias e mel, até mesmo substâncias
estranhas.

O século XV é o último grande século do comércio de vinho. Concorrentes vão


aparecer e desenvolver-se: em primeiro lugar a cerveja, que se aprende a fabricar
melhor na Alemanha no século XIV, com a utilização do lúpulo. A grande
cervejaria alemã desenvolve-se no século XV, e a cerveja torna-se uma bebida
popular nos Países Baixos. Depois é o álcool, cuja destilação progredira muito
desde o fim do século XIII; em Toulouse, fabrica-se aguardente no começo do
século XV. Em compensação, tornam-se melhores a produção e a conservação de
vinhos de boa qualidade.

Peço desculpas por ter insistido tanto nesses aspectos da alimentação. Além do
fato de que uma história econômica só tenha muito a ganhar apoiando-se no
homem, também possibilita a seguinte afirmação: no século XIII, certas regiões
tinham começado a passar de uma simples agricultura de subsistência a uma
exploração de mercado. Nos séculos XIV e XV, apesar da reviravolta da
conjuntura, essa evolução confirma-se e estende-se. Com todas as vantagens,
mas também com todos os riscos que isso comporta. Como, então, aconteceu
essa mutação?

Três regiões de progresso


A agricultura tradicional encontrava-se encerrada num círculo vicioso: os
rendimentos eram fracos devido à falta de fertilizantes, mas a criação — e,
portanto, a produção dos preciosos restos animais — estava pouco desenvolvida
devido à falta de alimento para os animais, pois era impossível mantê-los
durante o inverno no estábulo, sendo necessário abater um grande número no
fim do outono. Desse círculo vicioso, a Inglaterra sairá no século XVIII através
de sua “revolução agrícola”, e o continente irá imitá-la no século XIX. Não é
possível fazer remontar essas datas aos séculos XIV e XV?

Os Países Baixos — Flandres e Brabant em particular — e seus arredores


parecem fornecer uma resposta positiva a essa pergunta. Marie-Jeanne Tits-
Dieuaide, um de nossos guias mais seguros e mais penetrantes nesses problemas
delicados, constata em primeiro lugar resultados obtidos no fim do século XIII
(243): nas proximidades de Lille, o rendimento de 21 hectolitros por hectare é
corrente para o frumento, contra apenas cerca de 11 hectolitros na Inglaterra, 11
a 12 ainda nas regiões flamengas menos favoráveis. Além disso, houve
diversificação das culturas, geralmente conhecidas há muito tempo em teoria,
mas então adotadas de fato. Assim, o lúpulo, originário da Alemanha, apareceu
no Brabant no século XIV, e rapidamente tornou-se comum. As sementes de
nabo-silvestre eram muito correntes no século XV; algumas Mesas do Espírito
Santo, em Lierre perto de Antuérpia e em Louvain, distribuíam óleo de nabo a
seus pobres durante a Quaresma. O linho, conhecido desde a época romana no
Norte da França, e no Sul dos Países Baixos, propaga-se nos séculos XIV e XV
no Sul do Brabant, em Flandres (existiam pôlderes perto de Bruges, nos países
de Alost e de Waas, nos Quatre-Métiers, na pouco acidentada região gantense,
no vale do Lys), o que permite — temos provas disso — o avanço da indústria
do linho.

Isso supõe uma melhor preparação do solo, que é preciso regenerar, mas cuja
fertilidade original também ambiciona-se aumentar. Datam do século XIV os
primeiros vestígios escritos da cultura sistemática de ervilhas, ervilhacas e favas:
têm um poder fertilizante sobre o solo, fixando o nitrogênio atmosférico. Em
Flandres, desde pelo menos 1333, duas plantações que dependiam do hospital
Saint-Jean de Bruges são regularmente semeadas. No Brabant, no segundo
quarto do século XV, a Enfermaria da Grande Beguinaria de Bruxelas consagra-
lhes 15 a 20% de suas sementes sobre os cerca de 20 hectares que cultiva em
exploração direta de propriedade agrícola. Os camponeses com certeza seguiram
esses bons exemplos, mas não deixaram contas.

A boa fabricação dos adubos era conhecida na Inglaterra desde o século XIII.
Mas apenas em Flandres e no Brabant os camponeses utilizam os métodos com
obstinação. Também recorrem à marga, o que a época galo-romana não ignorara.
Às cinzas de madeira e de turfas, aos restos das saboarias e lavanderias, às tortas
de colza e de nabo-silvestre apenas depois do século XV. A colheita à foice
permite obter palha em abundância, também necessária para os tetos, e que serve
de cama de animais, a qual, saturada de urina e excrementos, conclui sua
fermentação no solo, ao ar livre. Por fim, a dispersão dos resíduos humanos
organiza-se, sem dúvida, com a instalação dos equipamentos urbanos.

É preciso também desenvolver a criação, alimentar os animais em qualquer


estação. Tradicionalmente, deixavam que pastassem nos bosques e charnecas, no
alqueive, nos raríssimos prados; depois, como já foi dito, a maior parte devia ser
abatida com a aproximação do inverno. As ervilhacas permitem alimentá-los
melhor agora: ricas em cálcio, elas fortalecem os ossos, tornando os animais
jovens capazes de puxar bem a carroça e de ter vários filhotes. De fato, mais
uma vez, tudo se equilibra. Ainda praticam o cultivo das plantas forrageiras no
alqueive, mantêm prados permanentes e desenvolvem prados artificiais. Desses
ganhos, alguns exemplos aparecem por volta de 1300, mas apenas na Flandres
francesa. Os solos da Flandres flamenga são menos ricos; há, portanto,
reticências. Impõe-se uma solução intermediária: desde a metade do século XVI,
nas regiões de Bruges, o alqueive acha-se integrado a um novo tipo de rotação,
que se estende por períodos mais longos do que o afolhamento trie nal; prados
temporários surgem ali. No Brabant, isso acontece no século XV, mas é possível
que seja anterior. O estudo menos aprofundado impede o julgamento.

Quanto aos prados, os contratos freqüentemente obrigam os arrendatários a


arrancar o mato e os espinheiros que poderíam impedir que a erva crescesse.
Numerosas contas brabantesas do século XV contêm os salários dos ceifeiros,
tanto para o primeiro corte quanto para a erva nova. Em Flandres, os prados
temporários, de dois a quatro anos, ocupam superfícies às vezes importantes:
assim, um camponês, ao alugar 70 medidas de terra em 1473, deve deixar 34 de
prado ao fim de seu contrato de arrendamento. São exemplos — mas quem dirá
a difusão exata desses métodos?

Na Holanda e na Zelândia, regiões pouco acidentadas, varridas pelos ventos, o


moinho de vento propaga-se: é um enorme engenho inteiriço que gira sobre um
grande tripé de madeira — somente mais tarde faz-se com que gire apenas a
parte de cima, com as pás. Em 1408, aparece o primeiro exemplo conhecido de
um moinho de vento que bombeia a água dos pôlderes. Tem um belo futuro pela
frente, tanto na economia como na... pintura.

Esses progressos não teriam se realizado, se não houvessem algumas condições


favoráveis. O número de homens, de fato: a grande peste de 1349, relativamente,
teve aqui pouco efeito, e a densidade da população mantém-se num bom nível. A
liberdade de que gozam os camponeses sobre suas terras: o afolhamento trienal,
com suas obrigações, raramente lhes é imposto. Muitos são proprietários de seus
quinhões de terra e não hesitam em fazer experiências nelas. Em geral, os
senhores, movidos por uma caridade bem ordenada, adotam uma atitude
positiva. Até mesmo a baixa dos preços dos cereais não deixa de ter
conseqüências felizes, já que leva os cultivadores a se interessarem por
produções mais rentáveis, como linho, culturas industriais...

Certamente, a verdadeira “revolução agrícola” só acontecerá no século XIX.


Mas, nesse meio tempo, tudo isso não pode ser deixado de lado!

A situação é semelhante numa zona mais ampla. Gérard Sivéry afirmou (238)
que, no Hainaut, as possibilidades de exportação eram maiores para a criação de
animais do que para os grãos: as cidades de Flandres, do Brabant e da Holanda
tanto podiam comprar seus “trigos” em Artois, na Inglaterra, como nos países
bálticos. E uma parte dos produtores conscientizou-se das condições do
mercado: os condes seguramente; como também os monges cambresianos da
abadia do Saint-Sépulcre que, cinco séculos antes dos fisiocratas, distinguem a
riqueza nova, proveniente da produção agrícola, da renda oriunda de uma
riqueza já existente; muito provavelmente vários senhores laicos e eclesiásticos;
talvez grandes arrendatários ativos — aqueles que em outra época e em outros
lugares irão se chamar cúlaques; certamente não a massa dos camponeses mais
humildes. Mas isso basta. Aliás, os solos prestavam-se bem a essas
especulações. Os monges cambresianos desenvolveram a criação de carneiros,
cuja lã era muito procurada e, em menor grau, a cultura do pastel-dos-tintureiros
e da garança. Sem dúvida, a economia ce realífera continuava sólida. Mas, na
medida em que o permitia uma conjuntura cujas flutuações a guerra
multiplicava, a criação ovina estava em pleno progresso no Cambrésis, e a
criação bovina no vale do Sambre. “As rendas da criação lhes [aos camponeses]
trazem um complemento de recursos e representam o mesmo papel que os lucros
dos vinhedos na região parisiense.” Seriam todos inconscientes das causas dessa
mutação?

Desse modo, louvam-se os Países Baixos. Mas há nisso uma certa dose de
injustiça para com o país pelo qual, afinal, se abrirá ao século XVIII a
“revolução agrícola” — isto é, a Inglaterra? Bruce Campbell colocou-se essa
pergunta e, para respondê-la, situou-se no Norfolk oriental, zona ideal: os solos
eram férteis, charcos aluviais ofereciam possibilidades ainda não imaginadas, o
terreno com ligeiras ondulações assegurava às comunicações terrestres uma
facilidade quase comparável à da água. A população era numerosa, sem dúvida,
a mais elevada do país: no início do século XIV, chegava a quase 190 habitantes
por km2. A maior parte era livre, e o espírito de iniciativa não lhe faltava. As
cidades constituíam-se num estimulante poderoso: com seus quase 18.000
habitantes; Norwich era provavelmente a primeira cidade provincial da
Inglaterra; com mais ou menos 11.000 almas Yarmouth estava, como porto, em
seu zênite. O sinal mais claro do progresso era a relativa raridade do alqueive,
que vinha sendo eliminado desde o fim do século XIII — e, pela primeira vez,
em 1268-1269, em South Walsham, domínio do duque de Norfolk. Entretanto,
seu total desaparecimento não era desejável, pois era o melhor meio de limpar o
solo; a maioria dos domínios consagra -vam-lhe uma pequena parte (cerca de
7%) de sua superfície. Durante o alqueive, as lavragens eram repetidas: três, e
até seis. O perigo era a deterioração do solo. Surgia, então, o problema: o gado
tinha necessidade do alqueive para se alimentar, e a eliminação deste levaria à
dos fertilizantes.

Segundo Titow (242), considerando eqüídeos e bovinos como uma unidade,


cordeiros e carneiros como um quarto de unidade, pode-se estimar que, nos 30
domínios do Norfolk oriental, entre 1255 e 1350, para 40 hectares semeados, o
número de unidades animais variava de 10,3 a 87,8, com uma média
estabelecida entre 30 e 34. Ora, para as propriedades do bispo de Winchester, era
de 72,7, número que Titow considera como sendo apenas suficiente para
fornecer adubos. Entretanto, a produtividade permanecia alta em Norfolk: os
rendimentos médios, de 1260 a 1350, eram, para o frumento, em 20 domínios,
sobre 141 colheitas, de 5,6 (ou seja, 10 para 1 em relação à semente), com um
máximo de 7,1; para a aveia, em 20 domínios também, sobre 199 colheitas, de
2,8 (ou seja, 7,4), com um máximo de 4,1. Eram números excepcionais para a
época: vizinhos um do outro, os domínios de Martham e Hemsby já atingiam o
máximo no fim do século XVIII (215). O mais notável é que alguns dos
melhores rendimentos eram obtidos nos domínios em que a ratio animal era mais
fraca: reencontramos Martham e Hemsby. Como isso era possível?

A cultura extensiva das leguminosas era, de fato, um dos traços essenciais do


sistema. Seu papel era o de enriquecer o solo em nitrogênio e fornecer forragem
rica em proteínas. Utilizam-se em primeiro lugar as ervilhas negras, depois a
ervilhaca surgida pelo fim de 1350, que logo igualou-se a elas. Cultivava-se
também um pouco de ervilhas brancas para a alimentação humana. Essas
leguminosas eram importantes desde aproximadamente 1240: ocupavam então
9% do solo cultivado em onze propriedades da abadia St. Benedict de Holm — e
essa importância não deixará de aumentar: para o conjunto 1239-1350, as
leguminosas ocupam 14% do solo cultivado. Média que dissimula variações
consideráveis: em Martham e Hemsby ainda, a parte podia subir para um quarto
ou um quinto.

Resultado: a alimentação do gado no estábulo — o que fornecia muito mais


fertilizante, já que bastava recolhê-lo ali mesmo, evitando as perdas causadas
pela oxidação e pela busca dos excrementos nos campos. Em Martham e
Hemsby. havia um esforço sistemático para emparelhar criação e cultura
cerealífera, e os rebanhos mais numerosos coincidiam com os anos de cultura
máxima: 1296, 1306, 1318 e 1349. Isso não era evidentemente um acaso. —
Ainda se recorria a outros fertilizantes: a marga, os dejetos humanos, os
excrementos dos inúmeros carneiros.

Tudo isso não deixa de nos colocar problemas. Discutiu-se bastante sobre o uso
do cavalo nos trabalhos agrícolas. Vamos opor Lynn White — desde o fim do
século XII, pelo menos em certas partes da Inglaterra, a lavragem era feita
principalmente com cavalos (255) —e Titow (242) — "Os documentos ingleses
asseguram, sem a menor dúvida, que não houve nenhuma passagem da lavragem
com bois para a lavragem com cavalos.” O Norfolk oferece uma resposta sem
equívoco: desde meados do século XIII, os domínios da abadia St. Benedict já
dispõem de um número considerável de cavalos, cinco a oito por propriedade.
Bruce Campbell acredita que se usassem cavalos e bois.

Outro problema: o recurso ao trabalho humano. A densidade da população


tornava-o barato, sobretudo para a sachadura, que continuava essencial, apesar
das lavragens repetidas do alqueive. Sem dúvida, o declínio demográfico do
século XIV reduziu essa intensidade. Pelo menos na “reserva” cultivada em
exploração direta graças às corvéias devidas por foreiros. Em Martham, desde
1292, o rendimento era seis vezes superior ao da reserva. De modo que posses
inferiores a dois hectares eram perfeitamente viáveis; tratava-se de cultura de
hortaliças. Entretanto, em muitas propriedades, posses e parcelas da reserva
combinavam-se; pode-se pensar que o trabalho era conduzido da mesma maneira
tanto numas como nas outras.

Pode-se então considerar as técnicas agrícolas do Norfolk como iguais às dos


Países Baixos; ele os precede em cinqüenta anos quanto à primeira eliminação
do alqueive. Mas quid do resto da Inglaterra?
Tratou-se várias vezes das pesquisas de J. Titow sobre as propriedades do bispo
de Winchester (242), amplamente espalhadas no Sul, sobretudo em Hampshire.
Berkshire, Wiltshire, Somerset, Oxford-shire... Mais recentemente foram
retomadas por D. L. Farmer (215), que, como Titow, calculou o rendimento em
si, e não por unidade de área, sempre discutível, mas fez um uso mais
sistemático das contas do intendente, freqüentes sobretudo depois de 1350.
Titow concluía que o rendimento médio anual era bastante estável para o fru
mento no século XIII e no começo do século XIV, e que baixava em relação à
aveia e à cevada. Atribuía esse fato à falta de adubo animal e à carência das
leguminosas. Mas a maioria dos rendimentos, depois de uma curta baixa,
recomeçou a aumentar após 1350, principalmente os oriundos do frumento. Pelo
menos a metade dos domínios que tinham “rendido” mais entre 1325 e 1349
ainda melhoraram seu desempenho de 1381 a 1410. Parece que isso pode se
explicar pelo espaço cada vez mais amplo consagrado às leguminosas (por volta
de 1390, em cinco propriedades, é mais de 15% do solo), por um progresso
consecutivo do adubo anual, pelo melhoramento das sementes. Mas não nos
entusiasmemos! A maior parte tem dificuldade para seguir. Comparados aos de
nossos dias, os resultados médios são medíocres.

Voltemo-nos agora para o Norte. R. A. Lomas escreveu um artigo sobre os


domínios do bispo de Durham, cujas conclusões merecem atenção. Um fato
importante, que ainda não mencionei, é que pouco a pouco os senhores pararam
de praticar a exploração direta da parte que se “reservavam” de suas
propriedades. Na Inglaterra setentrional, os Percies arrendam desde o começo do
século XIV a totalidade de seus domínios de Northumberland. Fazem o mesmo
em Yorkshire somente em 1416 (201). O bispo de Durham pára de arrendar a
partir de 1387. Por que essa evolução geral? O que se tornam os domínios
arrendados? Eis uma sondagem que nos pode ser esclarecedora. Por quê? Alta
dos salários e queda dos preços, má vontade dos foreiros, foi dito. Tudo isso não
é falso. É preciso pensar também na comutação em espécie que muitos senhores,
instados pela necessidade, concediam de suas corvéias a muitos de seus foreiros.
Geralmente, ou as parcelas da antiga reserva terão a mesma sorte das parcelas a
que estavam misturadas; os arrendatários, pequenos nobres e burgueses quando é
preciso, mas sobretudo camponeses médios, terão pressa em combinar a criação
ovina com a cultura de cereais, e poderão assim participar da exportação da lã.
Em todo caso, é importante lembrar que a política dominial, principalmente a
dos senhores eclesiásticos, só até certo ponto obedecia a considerações
econômicas: era preciso conservar da melhor maneira possível a propriedade do
santo! Mas uma Igreja, apesar de tudo, não era uma empresa; seus desígnios
eram acima de tudo religiosos e litúr gicos.

Quid do resto da Inglaterra? perguntava eu. O Norfolk parece, assim mesmo, ser
a exceção. Os resultados de conjunto permanecem inferiores aos dos Países
Baixos (86). De qualquer modo, todos foram dignos de um tratamento
aritmético, que me parece um pouco artificial. Mas como os leitores podem
julgar isso se eu não apresentá-lo pelo menos rapidamente?

A “tese” de Tits-Dieuaide (243) já dera o exemplo de um bom trabalho, fundado


em métodos apurados. Hugues Neveux lembrou-o bem. Escolher acuradamente
as séries de observações que se estendam, se possível, de modo contínuo (o que
é raro), sobre pelo menos uns cinqüenta anos; pois as “más colheitas" não
sobrevêm em vagas de dez ou vinte anos seguidas de períodos de calmarias de
mesma extensão? Essas séries também precisam ser bem analisadas: comparar a
instabilidade dos rendimentos por categorias de cereais. Tits calculou as
amplitudes máximas, depois, ano por ano, os desvios da média expressos em
porcentagens desta. Hugues Neveux sugere, para se ter “uma visão global da
instabilidade”, calcular além disso, para cada série, o coeficiente de dispersão,
isto é, o quociente do desvio padrão pela média aritmética. Também é necessário
confrontar as flutuações simultâneas dos diversos rendimentos numa mesma
exploração — e, para isso, estabelecer “coeficientes de variação linear”, levar
em conta ainda a hierarquia entre cereais — pode-se admitir que uma variação
superior em 15% da média pode razoavelmente definir, se for o caso, o déficit ou
o excesso! Quantos refinamentos!

Vamos tentar aplicar concretamente esses métodos. Podemos partir de Titow,


mas limitados ao período 1300-1349, e só conservar as séries em que não haja
excedente superior a 10% da média alta sobre a média baixa, ou seja, 19 para o
frumento, 11 para a cevada, 8 para a covariação dos dois cereais. Para o
frumento, notamos sem surpresa as médias elevadas da amplitude máxima (de 1
a 4,64) e da dispersão (28,4%). Com mais surpresa, constatamos que o grau de
dispersão é totalmente indiferente ao valor da média aritmética. “Na Inglaterra, a
instabilidade anual dos rendimentos das propriedades de Winchester não tem
nenhuma ligação com o seu nível médio... o que é grave se isso se confirmar no
tempo: os progressos da produtividade não seriam acompanhados de uma
atenuação das oscilações de colheita a colheita.” Mas Tits obriga a matizar essa
hipótese: “Numa exploração agrícola da Enfermaria da Grande Be guinaria, de
1450 a 1499, o rendimento médio sobe para 13,9, sem que a dispersão ultrapasse
23,5%.” Constatamos ainda que, se a instabilidade global situa-se em níveis
vizinhos em todas as explorações, apesar das amplitudes máximas variáveis de
uma unidade para outra, mesmo assim há sérias divergências: desse modo, em
1306, estabeleceu-se a variação de um déficit de 60% em relação à normal para
um excedente de 51%. Para a cevada, Tits confirma: a independência da
dispersão em relação ao valor da média aritmética é quase tão grande quanto
para o frumento. Entretanto, essa dispersão pode variar muito: é o que acontece
entre as séries Winchester e Brabant; ora, o interesse concedido à cevada na
produção e no alimento altera-se muito no tempo e no espaço. Há também fortes
disparidades individuais: nas propriedades de Winchester, 12 anos em 42
oferecem algumas importantes; entretanto, quando há paralelismo, a semelhança
dos comportamentos é nitidamente mais acentuada que no caso do frumento.
Enfim, se estudarmos a covariação do frumento e da cevada, constataremos que
mais ou menos por toda parte a cevada é um apreciado auxiliar do frumento;
apriori, admite-se movimentos grosseiramente sincrônicos. Contudo, por falta de
fertilizantes, o camponês é levado a nem sempre dedicar os mesmos cuidados às
diversas plantas. Parece que “a covariação cevada-frumento é da esfera do
mito”. Mas a cevada é um alimento de substituição; por ocasião dos anos de
déficit frumentício, o camponês presta mais atenção nisso.

Os Países Baixos. A Inglaterra. Seria injusto não completar a trilogia com a Itália
setentrional. Emilio Sereni fez um estudo da "paisagem rural italiana”, isto é, da
“forma que durante suas atividades agrícolas, e para cumpri-las, o homem
imprime à paisagem natural de maneira consciente e sistemática”. Além disso,
esse estudo é enriquecido por numerosas referências picturais (235).

No século XIV, afirmou-se a predominância das cidades e da reflexão. Desta


última, o bolonhês Pietro de Crescenzi (v. 1233-1320), autor de Ruralium
commodorum opus — que Carlos V de França mandará traduzir em 1373 sob o
título de Livre des prouffiz cham-pestres — deixou não apenas regras, mas o
resultado de suas observações. E sobretudo a paisagem suburbana que se
transforma, sob o efeito de iniciativas individuais que se combinam de maneira
racional. Ela humaniza-se, multiplica os campos fechados à “pigola”, isto é, de
forma poligonal irregular. Os desflorestamentos excessivos são limitados; Siena
cria, em 1358, uma magistratura especial para as florestas, e Veneza procede de
modo sistemático. Um esforço é feito para desenvolver — aqui também — a
criação de carneiro. Mas a anarquia administrativa, a manutenção dos
regulamentos feudais muitas vezes impedem que, na Itália meridional e nos
Estados pontificais, se vá além do estágio das boas intenções. Na Toscana, as
considerações de povoamento passam a ser predominantes. É o vale do Pó que
representa a vanguarda da agronomia. Ele é dirigido apenas por poderes
organizados e conscientes dos problemas econômicos: a Senhoria de Veneza e os
Sforza de Milão, no século XV, que empreendem os trabalhos de irrigação
necessários para superar o obstáculo essencial ao progresso agrícola, a secura do
clima (62). Veneza ordena sistematicamente o curso dos rios. Francisco I Sforza
mandou cavar o canal de Binasso para as águas do Naviglio de Milão até Pavia
(1457), depois o da Martesana para levar as águas do Adda de Trezzo até Milão
(1464). O exemplo foi seguido pela Toscana, onde o primeiro lago artificial foi
criado em 1469. Assim surge o prado irrigado, em que a atividade vegetal
prossegue o ano todo, enquanto o gado fica no estábulo. Um ordenamento das
colinas em terraços faz sua estréia ainda modesta; Boccaccio apresenta-o em seu
vale das Damas (6a jornada). A paisagem da villa, elaborada na Toscana,
propaga-se: em 1.411 villas de interesse artístico em Venécia, 15 datam do
século XIV. 84 do XV, mais de 257 do XVI. São grandiosas construções
simétricas, que guardam pouca coisa de suas origens utilitárias. É, pois. um
movimento que prosseguirá. De fato, as grandes linhas da paisagem rural
italiana, que irão perdurar até o século XIX, foram fixadas nessa época.

Vemos, portanto, destacar-se a evolução agrícola dos séculos XIV e XV. Não é
uma agricultura científica. Os manuais de agricultura são conhecidos apenas por
alguns eruditos; o autor principal é, sem dúvida, Pietro de Crescenzi, que será
traduzido para o alemão e impresso a partir de 1471. A economia cerealífera é a
base. Mas, em pelo menos três zonas privilegiadas, Países Baixos, Este da
Inglaterra, planície do Pó, uma evolução para a criação transforma o sistema
agrário e prepara a “revolução agrícola”. A transumância organiza-se em
particular na Espanha, para o carneiro merino. A floresta não é mais apenas
protegida; às vezes, é explorada, em proveito das espécies de luz (as coníferas)
(210). Chega-se a um novo equilíbrio. Sim, cultiva-se melhor!
8. Fabricar melhor

Assim como a necessidade de produzir os alimentos indispensáveis para uma


população, sem dúvida decrescente, mas cada vez mais exigente, levou a cultivar
melhor áreas reduzidas, condições desfavoráveis do trabalho artesanal
estimularam a pesquisar — e a encontrar novas técnicas. Se os progressos da
agricultura estiverem longe de nos parecer dignos de serem postos de lado, o que
diremos dos progressos da indústria? No curso desses séculos precedentes, o
crescimento das trocas, a riqueza distribuída de modo mais amplo, o surgimento
de necessidades e gostos novos desenvolveram a procura de produtos mais bem-
acabados e em maiores quantidades. De outra parte, a crise de mão-de-obra, real
pelo menos em certos ramos, o desejo de economizar sobre salários mais
elevados, incitavam a substituir o homem pela máquina. A Europa parece ter
sofrido também a falta de metais preciosos: disso decorreram os esforços feitos
para separar a prata, dos quais toda a metalurgia deveria tirar proveito... A
guerra, em um meio suficientemente aberto aos aspectos técnicos, é um fator de
progressos materiais: em relação a esse aspecto, os conflitos dos séculos XIV e
XV representaram amplamente seu papel, já que podemos contabilizar a seu
ativo (?) o desenvolvimento das couraças e o aparecimento das armas de fogo na
Europa (23,240-249,255).

Dentre essas inovações técnicas, apresentamos as principais, assinalando aquelas


que mais modificaram as condições do trabalho humano.

O homem começara a utilizar melhor as forças colocadas a sua disposição pela


natureza, como a água que fazia os moinhos funcionarem (214). Faltava
diversificar os empregos, através de melhores procedimentos de transmissão.
Tratava-se de transformar um movimento circular contínuo, tal como o que era
fornecido pela mó de um moinho, num movimento retilíneo alternativo. Para as
serras, os tomos, tiveram de início que prever uma mola que reconduzisse, a
cada vez, o instrumento para sua posição primitiva. Num caderno do começo do
século XV está finalmente representado de maneira esquemática o sistema biela-
manivela. Na prática, sua realização ainda apresentava dificuldades, que só
deveríam ser superadas durante os séculos XV e XVI. Assim, torna-se possível
aperfeiçoar os tornos, para o trabalho da madeira e dos metais e, sobretudo,
fabricar as bombas aspirantes e de compressão, que vão revolucionar a técnica
de mineração.

Desde o século XII, a mecanização do pisoamento abriu novos caminhos para a


indústria têxtil (246). Todavia, o progresso é mais humano que mecânico—o
pisoamento com os pés era uma operação muito penosa! Eram importantes
sobretudo: a crescente divisão do trabalho, a experiência adquirida para a
escolha e preparação das lãs, a utilização dos corantes, o acabamento.
Permanecerá muito tempo desse modo, apesar de alguns aperfeiçoamentos de
detalhe. A roda de fiar, cuja origem é desconhecida, é atestada na Europa o mais
tardar no fim do século XIII. É uma verdadeira “libertação da mulher”, outrora
sempre presa à roca para obter o fio perpetuamente necessário aos tecelões.
Desenhos que se sucedem desde o começo do século XIV permitem constatar os
melhoramentos que pouco a pouco lhe são introduzidos, como a adjunção de um
pedal que acelera o trabalho feito com um esforço menor. O trabalho da seda,
que ganhou com os luqueses um valor artístico real, solicitou fortemente o
espírito de invenção. O moinho mecânico de dobar a seda, cujos fios torcidos
adquirem mais resistência, parece ter surgido na Itália no fim do século XIII. Um
exilado de Lucca o teria construído em Bolonha em 1272. A tecelagem de
desenhos complicados obrigou a aperfeiçoar os teares, e os melhoramentos
obtidos para a seda certamente foram aplicados aos outros tecidos.

Herman van der Wee mostrou os obstáculos humanos e sociais encontrados pela
evolução nos Países Baixos (91). Na verdade, modernizar a indústria sempre foi
um problema social ao mesmo tempo que econômico! A solidariedade de grupo
impede a adoção dos métodos técnicos novos — antes, faz retroceder: assim,
enquanto os moinhos de apisoar tinham sido introduzidos em várias cidades nos
séculos XII e XIII, no século XIV muitos retornaram ao pisoamento com os pés,
melhor, ao que parece (?), para a produção de bons tecidos. Os empregadores
entram em acordo para reduzir os salários de seus trabalhadores; multiplicam-se
então as corporações artesa nais e as agitações “democráticas”. O sucesso final
do corporativismo é um desastre econômico: a tomada do poder pelos artesãos
traduz-se num aumento dos salários, mas também na queda da concorrência;
mesmo o aumento do desemprego não provoca nenhuma reação. A exportação
de tecidos baratos sofre duramente a concorrência de tantas tecelagens pequenas
criadas por toda parte. Isso torna a produção de tecidos de luxo de Flandres e do
Brabant — os melhores da Europa — muito frágil, pois depende da importação
das melhores lãs inglesas, e os reis da Inglaterra sabem disso: depois de 1336, os
direitos sobre a exportação da lã aumentam. Os Atos de Billon de 1340 forçam
os mercadores a pagar dois marcos de prata à Moeda da Torre por saco de lã
exportado. Mais tarde, a exportação da lã é concentrada no Mercado de Calais.
Depois de 1429, essa evolução é apenas oficializada. As taxas sobre a
exportação da lã inglesa tinham crescido entre 30 e 35% ad valorem (e até mais
para os estrangeiros), enquanto que, sobre a exportação dos tecidos, eram apenas
de 1 a 3%.

É preciso, portanto, adaptar-se. Utilizar a lã do local, escocesa ou espanhola — é


o momento em que os mercadores castelhanos e bascos abrem seus escritórios de
venda em Bruges. As pequenas cidades dão o exemplo — Poperinghe, que na
segunda metade do século XV vende bem suas fazendas no domínio da Hansa;
Termon de, Comines, Tourcoing fazem o mesmo sucesso no Sul da Alemanha.
Nas grandes cidades desenvolvem-se indústrias de luxo destinadas
principalmente ao mercado local. Isso é verdade para o trabalho têxtil, mas
também o é para o trabalho em madeira (pode-se julgar pelos retábulos de
Antuérpia e Malines), a fabricação dos móveis, a tapeçaria, a ourivesaria e a
joalharia, a indústria de armas, e, finalmente, o trabalho de peles, chapéus e
luvas. A grande cliente é a Corte dos duques de Borgonha, em Malines e
Bruxelas. É o tempo em que floresce a nova Universidade de Louvain; em que
as feiras do Brabant atingem o máximo desenvolvimento. Mas apenas os ricos
tiram proveito dessa produção; artesãos e camponeses estão cada vez mais
pobres.

Nada de muito essencial também no domínio da vidraria. Mas os segredos de


fabricação outrora conservados em Murano propagam-se; o Languedoc, a
Boêmia e suas vizinhanças (entre outras) fornecem uma produção cada vez mais
abundante e de qualidade. As aplicações do vidro multiplicam-se, transformam a
vida cotidiana. Nas janelas das casas, o vidro suplanta o papel oleado; em 1448,
Enea Silvio Piccolomini, futuro papa Pio II, observa que a metade das casas de
Viena usa o vidro. Os Países Baixos usam estufas para certas culturas: em Bois-
le-Duc, como revela uma carta de 1385, “eles fazem flores nascerem em
pavilhões de vidro, voltados para o Sul”. A importância do vidro cresce entre os
utensílios domésticos. Com o vidro produzem-se recipientes que resistem à ação
dos ácidos que os químicos aprendem a isolar. Dos óculos convexos, e sob o
efeito da necessidade de leitura aumentada pela imprensa, passa-se no fim do
século XV aos óculos côncavos, que corrigem a miopia. É interessante observar
a representação do homem de óculos pelos pintores. O espelho é um objeto bem
raro, de pequenas dimensões: para forrar o vidro, o estanho substitui o chumbo.
A expansão do espelho, que acontecerá sobretudo depois do século XVI, é
muitas vezes relacionada com um gosto crescente pela observação de si mesmo.
As indústrias da vidraria alargam então suas perspectivas. São principalmente
indústrias rurais, fixadas pela madeira e areia necessárias ao seu funcionamento.
Desenvolvem-se amiúde nos quadros da senhoria rural, e isso explica o
surgimento dos fidalgos-vidreiros.

Minas e metalurgia (244, 253, 254)

Os séculos XIV e XV são, relativamente, grandes consumidores de metal, para


as armaduras, os instrumentos agrícolas e artesanais, a artilharia. Entretanto, os
principais progressos são realizados em primeiro lugar na produção de metais
preciosos, onde o esforço parece mais rentável, depois consagraram-se ao
conjunto da metalurgia. A extração mineira desenvolve-se em particular. Com
que ritmo e onde? Mais uma vez, isso é difícil precisar. Os textos são demasiado
raros, a iconografia enganadora. A representação mais antiga conhecida de uma
via de rolamento e de um “cão de mina” encontra-se no retábulo de Santa Ana
de Roznava (Rosenau), nos Cárpatos, datado de 1513; mas as contas da
exploração mineira de Pampailly nos montes da região de Lyon provam que
essas duas novidades achavam-se ali desde a metade do século XV. Outro
exemplo inverso: um manuscrito de Kutná Hora (Kuttenberg) datado de 1490 já
mostra um guincho a sarilho (carretilha) conduzindo para cima a água que
inundava as minas; mas não nos esqueçamos de que, se dispúnhamos de tal
máquina para a evacuação da água na mina de Falkestein no Tirol, ainda
veriamos no começo do século XVI equipes formando uma cadeia para passar
recipientes de couro com água desde o fundo. Voltamos a dizer: um progresso
adquirido num lugar não o é forçosamente em todos.

É necessário, portanto, limitar-se ao essencial. Em relação às atividades mineiras


do Império Romano, a alta Idade Média assinalou um nítido retrocesso. A
retomada do desenvolvimento ganhou contornos sobretudo a partir do século XI.
Mas a técnica de extração durante muito tempo continuou primitiva. Limitava-se
a uma raspa gem superficial e os filões à flor do solo bastavam para as fracas
necessidades. Os buracos, cavados um ao lado do outro, a céu aberto, eram
abandonados quando a água os invadia. Mesmo assim, esse problema de
drenagem era tão grave, principalmente nas regiões bastante irrigadas, que no
século XIII foram feitos esforços para resolvê-lo. O relevo permitia amiúde
cavar, desde o fundo do buraco, valas ao ar livre que terminavam num declive,
por onde a evacuação das águas processava-se naturalmente. São as galerias de
escoamento de água, que além do mais têm a vantagem de ventilar a mina e
fornecer um segundo acesso. Em Pampailly, a administração real mandou cavar
numa rocha duríssima uma galeria de 300 metros, trabalho que prova quantas
esperanças de rendimento a mina de Jacques Coeur continua inspirando. Em
Olkusz, Polônia meridional, nas explorações em que se encontra o minério de
chumbo a pequena profundidade (menos de 50 metros), executa-se entre o fim
do século XV e o meio do século XVI uma rede de galerias muito longas, com
pouca inclinação.

Uma outra solução consistia em pôr a água para fora artificialmente, utilizando a
força humana, ou a dos animais, ou então de máquinas hidráulicas. Com o
guincho, a força do homem atinge seu limite a aproximadamente quinze metros
de desnível. Além disso, é o sarilho atrelado (carretilha) que aciona o guincho e,
em certos sítios, utilizaram-se até trinta cavalos atrelados. Mas, na medida do
possível, as sociedades mineiras, na segunda metade do século XV, “esgotaram a
água pela água”. O tratado de Agricola repertoria e descreve cuidadosamente os
engenhos movidos à força hidráulica: bombas a pistão construídas dentro de
troncos de árvore escavados e reunidos, máquinas de polias, longas cadeias de
recipientes que passam em volta de um tambor no fundo da mina e vertem a
água na superfície, ou esferas de couro que passam dentro de condutos tubulares
(“Heinzenkünste”). Esses engenhos só eram eficazes até 70 metros de
profundidade. Se não podiam ser secadas por galerias de escoamento de água, as
minas mais profundas deviam instalar a altos custos uma roda hidráulica com
movimento reversível (rotam “Kerrad” dictam) movida por uma queda d’água,
que acionava os alcatruzes que a roda possuía nos dois sentidos. Ela acionava
um tambor no qual se enrolava uma corrente de ferro que erguia, cheio de água,
um saco de couro feito com a pele de quatro bois.

É bem possível que esse sistema tenha sido imaginado por Johannes Thurzo, que
fora chamado pelas sete cidades mineiras da Eslováquia para dirigir sua
instalação. Por salvar minas inundadas, é ele que encontramos em Rammelsberg,
no Harz, em 1486, e muito mais tarde, em 1513, no sítio das minas de ouro de
Nagybánya na Eslováquia oriental, onde uma “Kerrad” de 10 metros de diâmetro
foi instalada a 65 metros sob a terra. Ela deveria secar uma rede mineira que
descia a 280 metros. Posta em movimento por uma queda d’água com a altura de
110 metros, girou tão rápido, segundo testemunhas oculares, que a madeira
molhada ameaçou pegar fogo. Para alimentar essa queda d’água, uma série de
lagos de barragem foi construída na montanha, primeira vez na história das
minas européias, a aproximadamente 15 quilômetros do sítio. Enorme plano de
salvamento, concebido e construído por Thurzo com o eficaz apoio do rei da
Hungria, mas as condições climáticas fizeram-no fracassar: os períodos de seca
continental e os rigores do inverno permitiam que funcionasse de modo efetivo
somente durante metade do ano. Foi necessário então organizar duas campanhas
de drenagem total das minas, de 15 dias cada, para o reinicio dos trabalhos no
fim do inverno e por ocasião das primeiras chuvas de outono, o que reduzia
ainda mais o número real de dias.

Esse reinicio dos trabalhos foi efetuado muitas vezes sobre os rastos de
trabalhadores anteriores, nas minas exploradas sob o Império Romano. Pelo
menos com a mesma freqüência, alcançou novos sítios, no que a Europa central
se mostrava particularmente rica: Alpes, Boêmia, montes Metalíferos
(Erzgebirge), Silésia, Hungria... Muitas dessas minas encontravam-se em países
de montanhas (daí a palavra alemã que serve para designar as minas: Bergwerk).
Geralmente, essas montanhas ainda eram zonas pouco exploradas, servindo no
máximo para pastagem de rebanhos; não havia proprietário que pudesse, com
alguma eficácia, defender seus direitos sobre o subsolo. Os soberanos puderam
aproveitar isso para fazer valer seu direito de regalia: o divórcio entre o uso do
solo e a propriedade do subsolo é uma característica do direito medieval. E
verdade que os soberanos só se deram ao trabalho de reivindicar sua regalia para
os minérios mais preciosos. Os minérios vis, como o de ferro, eram explorados
por eles apenas quando encontravam-se em seu domínio. Também é verdade
que, se os reis da Inglaterra impuseram sua regalia bem cedo e os soberanos da
França mais tarde (sobretudo no século XV), os imperadores a legaram pela
Bula de Ouro [1] de 1356 a todos os príncipes, que, por sua vez, freqüentemente
delegaram-na em seguida. No século XV, no Império, centenas de bispos,
condes, senhores mais modestos, de cidades, dispunham de direitos sobre o
subsolo.

De outra parte, essas zonas mineiras eram amiúde zonas de colonização, onde a
liberdade pessoal era o estatuto normal. “'O atrativo misterioso das regiões onde
trabalhava o mineiro contribuía para situá-lo nos corações, não no lugar do
escravo, mas no do pioneiro” (J. U. Nef, 253). Enquanto, na Antiguidade, a
atividade mineira era quase sempre reservada a escravos ou a condenados, ela
surgiu na Idade Média inseparável da liberdade e de uma certa dignidade.

Como as coisas se passavam? Em algumas zonas, a prospecção era reservada aos


membros de certas associações: assim, na região de Alençon, na Perche e na
Alta-Normandia, apenas os “barões fosseiros” — grupo de senhores laicos e
eclesiásticos — podiam abrir minas de ferro, onde o trabalho era confiado
exclusivamente à corporação hereditária dos férons. Mas, em geral, a atividade
mineira estava aberta a qualquer pessoa.

Nos Mendips (colinas do Somerset), onde cerca da metade das famílias das vilas
mineiras tinham posses medíocres, o arrendatário-mineiro podia ocupar uma boa
situação. Formado no ofício por seu pai, desde o mês de março, assim que
lavrara e se ocupara de seus cordeiros, ia trabalhar nas minas que se localizavam
nas colinas próximas de sua vila. Em julho, depois da festa do mineiro, voltava à
faina agrícola. Dividia-se então entre cerca de 135 dias de atividade agrícola e
130 dias de extração. Ele podia produzir entre uma e meia e duas toneladas de
minério por ano, em média; de fato, os números variam conforme a capacidade
de cada um. Com cerca de três quartos dos recursos que lhe proporcionava essa
extração, ele podia pagar o censo de sua posse. O resto, assim como sua
produção agrícola, cobria largamente suas necessidades. Desse modo ele vivia
numa relativa abastança — e acontecia o mesmo em toda a Inglaterra.

Qualquer um, então, podia pedir ao príncipe, ou a seu oficial especializado — o


Bergmeister no Império — uma concessão. Um filão em geral era dividido em
um certo número de seções, das quais uma ou várias eram entregues por um
tempo indefinido ao descobridor, uma ou várias reservadas para o soberano (que
podia ser censatário de sua exploração), as outras eram distribuídas entre os
mineiros que se declaravam prontos para trabalhar nelas de maneira contínua e a
se conformar aos costumes. O príncipe estipulava a parte da produção, em geral
um décimo, que lhe devia caber; também podia possuir um direito de preempção
sobre o resto, que comprava a um preço ligeiramente inferior ao do mercado —
faculdade de que os reis da Inglaterra fizeram largo uso em relação ao estanho
das Cor nualhas. O senhor, como proprietário territorial, também intervinha. Ele
devia facilitar o acesso à mina, conceder aos mineiros terrenos para suas
instalações, seus alojamentos, até para as lavouras que podiam manter
juntamente com sua atividade principal; devia fornecer-lhes madeira e pôr à sua
disposição a água dos rios. Era indenizado por isso com uma retirada sobre o
minério extraído.

Na maior parte do tempo, portanto, a atividade mineira é exercida por homens


que trabalham por conta própria, agrupados em comunidades. Estas beneficiam-
se com numerosos privilégios, como a isenção das taxas ordinárias.
Representantes dos mineiros, os jurados, tomam assento ao lado dos agentes
principescos e senhoriais para elaborar os costumes, regulamentando o
funcionamento das minas: fixação dos métodos técnicos, partilha dos prejuízos,
horário de trabalho... Alguns desses códigos, muito apreciados pela sabedoria de
suas disposições, foram amplamente imitados: assim, os estatutos das minas
argentíferas de Iglau, promulgados em 1249, depois completados pouco a pouco,
exerceram uma vasta influência na Alemanha, na Hungria, e até no território da
república veneziana.

O século XIII e o início do século XIV representam uma primeira etapa no


desenvolvimento da produção mineira. Depois de 1350, parece ter-se mais ou
menos estabilizado, apesar da procura crescente dos ateliês monetários e dos
fabricantes de armas. As guerras, aliás, destroem várias aglomerações mineiras,
particularmente na Boêmia. Além disso, os filões superficiais esgotam-se com
freqüência. É preciso empreender novas pesquisas ou cavar mais fundo. Só uma
importante retomada da procura, acompanhada de melhoramentos técnicos, pode
permitir um tal esforço e torná-lo rentável. Essas condições acham-se reunidas
por volta de meados do século XV.

Abordamos assim as condições do tratamento dos minérios. O grande problema


era fornecer o metal puro em grandes quantidades e sem perdas excessivas. No
século XIII, os métodos eram muito primitivos. De início procurou-se aumentar
as forjas. As experiências realizadas para o tratamento do minério de prata foram
preciosas a esse respeito: limpos e fundidos, eram submetidos à oxidação nos
fornos de copelação, o que os separava do chumbo, depois refinava-se a prata a
uma temperatura elevadíssima, obtida através de um sistema de duplos foles
movidos à energia hidráulica e assegurando um sopro contínuo. Esse sistema
também permite tratar quantidades mais importantes de minério de ferro por vez.
No século XIV, surgem forjas maiores, mais ou menos elevadas acima do chão:
o forno Os mund na Escandinávia; nos Pirineus, a forja catalã, que fornece entre
50 e 60 quilos de ferro por fundição, ou seja, cerca de 15 toneladas por ano; e,
sobretudo, o Stückofen da Europa central, com a qual se obtém até 50 toneladas
por ano.

A grande novidade — sem dúvida inspirada no exemplo do bronze — foi


produzir o ferro, não mais diretamente, mas em duas operações. A primeira se
passa dentro do alto-forno: um forno com altura que oscila entre quatro a cinco
metros, cuja alvenaria é recoberta de argila; por um aclive suave, as carretas
carregadas de minério sobem até a boca de carga. As camadas alternadas de
carvão e de minério acrescenta-se calcário, que facilita a fusão e melhora o
rendimento. Um potente sistema de foles produz a temperatura conveniente. O
metal fundido é escoado através de regos preparados na areia, colocada no pé do
aparelho. Segunda operação: a gusa em fusão é levada à forja onde é novamente
fundida, convertida em ferro, tratada com o auxílio de poderosos martelos
hidráulicos. O rendimento passa a ser bem melhor. E o ferro fundido é utilizado
para a fabricação de canhões, de balas e de lajes funerárias (bela trilogia!), na
segunda metade do século XV. Esse método indireto foi empregado em primeiro
lugar na Europa central. De lá, propagou-se bem devagar na Alemanha e depois
no Oeste; Liège possui altos-fornos desde o começo do século XV; no final desse
mesmo século é encontrado em Lorraine, na Normandia, em Champagne, no
Nivernais...

A nova invenção coloca tantos problemas quanto resolve. As dimensões maiores


do forno, e portanto da forja, exigem, para mover os foles e martelos, uma força
mais potente. É preciso situar as instalações perto de rios caudalosos, utilizar
melhor a energia hidráulica: as pesquisas resultarão no motor hidráulico.

Sobretudo, o tratamento de quantidades cada vez maiores de minério provoca


um consumo de combustível que se torna realmente terri-ficante. A produção de
50 quilos de ferro absorve, na forma de carvão de madeira, cerca de 25 estéreos
de madeira. Imaginemos um forno repetindo essa operação todos os dias, num
país florestal que fornece 100 estéreos por hectare: em 40 dias, todos os recursos
em madeira esgotar-se-iam à distância de um quilômetro ao redor. As queixas
contra esses fornos também multiplicam-se: “abismos de florestas”,
“sorvedouros de bosques”. A metalurgia só poderá desenvolver-se de fato com a
utilização do carvão-de-pedra.

A grande procura de prata no mercado europeu foi o motor de uma série de


experiências que resultaram, na segunda metade do século XV, na descoberta de
um processo químico que separa quase totalmente a prata do cobre argentífero,
pela adjunção de chumbo. O sistema comporta três fases: a fusão de cobre negro
de forte teor de prata com quatro vezes seu peso de chumbo resulta, a uma
temperatura de 990°, numa liga; depois, a diferença de temperatura de fusão do
cobre (1.083°) e do chumbo (327°), permite, quando há o resfriamento, provocar
a cristalização distinta do “esqueleto” de cobre e do chumbo argentífero; e,
finalmente, por um reaquecimento lento em um forno, chamado ressuage [2], o
chumbo argentífero goteja do cobre cristalizado. O processo de afinação do
cobre continua em um forno de secagem, e o da prata em um forno de copelação.
Em Nuremberg, de onde surge claramente o avanço tecnológico em todos os
domínios da metalurgia, é que o uso corrente desse método é atestado pela
primeira vez, no inventário da fundição municipal, em 1453. De lá, veio em
primeiro lugar para os Estados do conde de Mansfeld, na floresta da Turíngia: a
pureza do cobre argentífero de Eisleben, a abundância da madeira de
aquecimento e a antiguidade das posições adquiridas pelas sociedades
nuremberguianas explicam a rápida fundação de uma sucessão de usinas —
Schleusingen em 1461, Gràfenthal e Hohenkirchen em 1462, Steinach em 1464.
A difusão continuou naturalmente nos centros de tratamento do cobre
argentífero: em Mogila, perto de Cracóvia, em 1469, depois no Tirol, onde o
arquiduque Sigismond recebe do Conselho da cidade de Nuremberg, em 1486, a
receita do ressuage, sinal de que, nessa data, o método ainda não caíra no
domínio público, de que constituía um meio de diplomacia econômica e de que
Nuremberg e seus especialistas ainda controlavam sua ajustagem. Em 1494,
Hans Thurzo associou-se a Jacob Fugger: foi a famosa “empresa húngara”, e a
afinação do cobre e da prata foi feita em grande escala em Neusohl (Banská
Bystrica), Moschmitz (Mostenica) na Eslováquia, Hohenkirchen na Turíngia e
Fuggerau na Caríntia.

A abordagem, bem localizada e datada, da inovação permite descobrir a ligação


entre o trabalho dos metalurgistas, o estímulo do mercado e o interesse que os
príncipes, como o arquiduque da Áustria ou o duque de Saxe, demonstram pelas
novidades. Hans e Georg Thurzo da Eslováquia, na Turíngia, e Antoni von Ross
e Peter Rum mel, no Tirol, não se propõem a fazer ciência experimental, mas,
antes de tudo, a organizar uma exportação rentável, à qual são pessoalmente
ligados como conselheiros do príncipe, empreiteiros-mi neiros e mercadores de
metal. A correspondência do duque Luís IX da Baviera com alguns especialistas
da fundição fornece um bom exemplo dessa preocupação de rentabilidade: em
1467-1468, o duque insta o ourives Hans Lochhauser e Henri III Rummel, primo
de Peter, de Nuremberg, metalurgista eminente, a construir em Brix-legg, perto
de Rattenberg, uma usina de afinação do cobre segundo o novo processo. Foram
feitos ensaios preparatórios em Nuremberg com amostras de minério do Tirol
bávaro; o duque mantém-se permanentemente informado sobre os resultados
desses testes, medíocres de início, mas que em seguida melhoram
paulatinamente. Antes de se implantar de maneira definitiva em Brixlegg no
final do século XV, ressuage e afinação deverão, a alguns quilômetros dali,
transformar as condições de produção de Schwaz no Tirol austríaco.

O cobre! Imaginem-se todas as possibilidades que oferecia esse novo metal,


resistente, incapaz sobretudo de enferrujar, doravante acessível em grandes
quantidades? Sem ele. os navios de Cristóvão Colombo talvez não tivessem
podido atravessar o Atlântico, nem as grandes descobertas tivessem se
desenrolado no ritmo alucinante em que se deram.

Desaparecidos todos os obstáculos, um verdadeiro boom da atividade mineira


manifesta-se entre 1460 e 1530. Somente na Europa central, a produção de prata,
pelo menos, quintuplica para alcançar aproximadamente 85 toneladas por ano,
número que só será ultrapassado em meados do século XIX. O aumento é da
mesma ordem para o cobre, cerca do quádruplo para o ferro. Em 1525, Charles
Quint calcula em torno de 100.000 o número de pessoas empregadas nas minas e
nas instalações metalúrgicas, apenas no Império. Pode-se discutir o número. De
qualquer maneira, a atividade mineira representa desde então um aspecto
quantitativamente importante do trabalho humano.

A ampliação e o equipamento das minas exigiam investimentos crescentes. As


comunidades de mineiros endividavam-se. Sociedades capitalistas formavam-se
para comprar-lhes as explorações ou obter concessões novas. O capital estava
representado ali por cotas (128, ou até mais) vendidas a nobres, a monastérios, a
comerciantes, a cidades... Esses detentores de cotas só podiam se reunir
raramente. Deixavam a gestão da mina aos diretores, que admitiam os técnicos,
contramestres e mineiros necessários. A concentração ainda não tinha atingido o
seu máximo: em Joachimsthal, no Erzgebirge, aglomeravam-se desse modo
várias empresas que empregavam entre 16 e 32 trabalhadores. Mas os mineiros
não trabalhavam mais por própria conta; tinham-se tornado assalariados.

Essa separação entre capital e trabalho resultou em conflitos. Os mineiros


formaram grupos para defender seus interesses frente a seus empregadores, para
zelar pelas condições de trabalho, que eram duríssimas. Eclodiram greves.
Apesar de tudo, a noção de uma dignidade do mineiro mantinha-se. A atmosfera
de liberdade, que as antigas comunidades de mineiros haviam conservado, foi
também aquela em que cresceu Lutero, filho de um mineiro de Mansfeld. Como
a técnica mineira dos alemães era muito apreciada, vários príncipes procuravam
atraí-los oferecendo-lhes condições sedutoras. Quando os agentes de Carlos VII
da França recomeçaram a exploração das minas de cobre confiscadas a Jacques
Coeur, na região de Lyon, trouxeram da Alemanha um “mestre nivelador”,
contramestres, “sustentadores de montanha” ou carpinteiros, e pagavam-lhes
salários elevadíssimos. O regulamento da mina tinha um caráter patriarcal: era
proibido blasfemar, levar prostitutas às casas dos mineiros. Nenhum mineiro
podia impedir seus camaradas de trabalhar. Mas os trabalhadores tinham o
direito de apelar, perante o bailio de Mâ con, das decisões tomadas pelo
administrador da mina. As contas desta mostram que recebiam boa alimentação
e que dormiam em boas camas, num dormitório com aquecedor. O trabalho dos
mineiros era muito precioso, por isso procurava-se oferecer boas condições aos
que o praticavam. Como reagirá um leitor do século XX diante de todos esses
fatos?

Aliás, as formas de organização do século XIII subsistiam também em várias


minas pequenas. A extração de carvão continuava particularmente arcaica. Liège
oferece praticamente o único caso de um trabalho muito concentrado. O carvão
apresentava-se em veios espessos que afloravam à suferfície; a encruzilhada
fluvial propiciava transportes baratos. Desde o século XIII, os mineiros de
carvão formavam ali uma corporação importante. Em 1468, Carlos, o Temerário,
perseguiu sem trégua a cidade, que pensou ter arruinado para sempre. Em alguns
anos, entretanto, suas minas permitiram que se recuperasse. Em outros lugares, a
extração de carvão era um trabalho de camponeses, praticado além das
atividades agrícolas. Somente depois do século XVI é que o equipamento das
florestas aumentará o valor do carvão e tornará rentável a expedição longínqua,
feita em navios que nesse meio tempo terão crescido.
Uma atividade de ponta: a imprensa (250)

Voltemo-nos agora para uma atividade completamente diferente, a mais nova de


todas, por si mesma e pelos problemas de trabalho que coloca: a imprensa.

Os ateliês dos copistas profissionais que surgiram junto das Universidades não
pararam, depois do século XIII, de aperfeiçoar e de racionalizar seus métodos.
Multiplicavam as cópias, relativamente fiéis, de manuscritos, fazendo-as, não
umas sobre as outras (o que provocaria a repetição de erros em série), mas todas
sobre um exemplar de base, dividido em pequenos cadernos para permitir a
vários escribas trabalharem ao mesmo tempo. Nos ateliês, o trabalho era
especializado: preparo final do pergaminho, cópia do texto propriamente dito,
desenho das rubricas e das iniciais ornadas, pintura das miniaturas... No começo
do século XV, um livreiro atacadista podia encomendar simultaneamente, a um
mesmo ateliê, de três manuais utilizados nas Faculdades de artes, repectivamente
200, 300 e 400 exemplares. Apesar de tudo, essa produção em série saía cara e
ainda não cobria as necessidades crescentes, pois à procura das Universidades,
do clero, das Cortes, dos nobres, somava-se a dos burgueses, dos artesãos, entre
os quais aumentava a instrução: obras profissionais, livros religiosos, textos de
vulgarização e de distração... A imprensa será a resposta a essa questão, mas
apenas depois de longos ensaios é que se chegará a sua realização, os quais
mostram bem a interação dos diversos tipos de progresso.

O pergaminho constituía para os manuscritos um suporte de qualidade sólido e


durável. Para a imprensa, ele não convinha. Só o velino, ou pele de bezerro
natimorto, raro e caro, era suficientemente fino e maleável para passar nas
prensas. No começo, as condições oferecidas pelo papel não pareciam muito
boas. Espesso, flocoso, permeável à tinta, frágil, só servia mesmo para textos
que não eram destinados a durar. Felizmente, a indústria papeleira realizou,
sobretudo em Fabriano, na Itália, uma série de progressos que melhorou a
qualidade do papel, ao mesmo tempo em que diminuiu seu preço.

A melhor transmissão da energia permitiu que a mó substituísse os maços no


esmagar e triturar o “trapo”, matéria-prima do papel: o rendimento cresceu
muito. O aperfeiçoamento da preparação final, através do uso de colas animais (e
não mais vegetais), para uma “acetinação” mais cuidadosa, deu ao papel um
aspecto mais liso. E, principalmente, o aumento do cultivo do linho e do
cânhamo e a generalização do pano para a roupa forneceram às fábricas de
papel, desde o século XI, trapos mais abundantes e adequados à transformação
em papel. Ao invés de se transportar para Fabriano os trapos de toda a Europa,
as fábricas de papel italianas foram evidentemente levadas a se dispersar.
Técnicos italianos asseguravam o funcionamento de moinhos de papel cada vez
mais numerosos, na própria Itália, em torno de Avignon, em Champagne e na
região parisiense, depois em Auvergne — por toda parte onde houvesse ao
mesmo tempo água pura, trapos em abundância e proximidade de centros
intelectuais. Não esqueçamos Xativa, no sul da Espanha.

No início do século XV, a base da impressão estava pronta. O papel atingira uma
qualidade garantida pelas filigranas de seus fabricantes; saía quatro a cinco vezes
mais barato que o pergaminho. De outra parte, nessa época, a reprodução de
figuras, de legendas, de letras isoladas, através de impressão, não era mais uma
novidade na Europa. Relevos talhados em placas de madeira ou de metal e
tintados numa ou várias cores forneciam impressões sobre os tecidos, o que
também se aplicou no papel. Isso serviu de início para multiplicar as imagens de
piedade, difundi-las até nos lares mais humildes. Logo depois, séries de imagens,
explicadas por legendas, foram reunidas em livretes, que fizeram um imenso
sucesso popular.

Todavia, não era dessas estampas que devia nascer a imprensa. Podiam, no
máximo, expor as facilidades que o papel oferecia para a reprodução industrial
de textos. Mas esses xilógrafos eram em geral talhados em madeira. Caberia aos
ofícios do metal resolver os problemas próprios da tipografia. Problemas da
fabricação dos caracteres móveis: era preciso, com um punção de metal duro,
que continha o caráter em relevo, estampar uma matriz menos dura onde se
imprimia em côncavo; depois fundir, utilizando-a, caracteres de estanho ou de
chumbo — e, portanto, possuir boa técnica da fundição, conhecimento profundo
dos metais e das ligas... Problemas da tintagem: era preciso produzir uma tinta,
não mais escura e fluida como a dos manuscritos, mas realmente preta, espessa e
nítida. Problemas da prensa: era preciso juntar os caracteres dentro de “fôrmas”,
onde ficassem bem presos, e dispostos de maneira a constituir uma superfície
absolutamente plana; depois pressionar de modo bastante forte e maleável.
Todos esses problemas foram finalmente resolvidos em meados do século XV,
depois de longos esforços de ourives e de moedeiros, sobre os quais não temos
muitas informações. Johan nes Gutenberg, ourives, de Mainz, é tradicionalmente
considerado o principal desses inventores. Mas não se sabe ao certo qual foi sua
contribuição, nem a do seu colaborador Peter Schoffer ou de Proco pe
Waldfoghel, de Praga. Rapidamente, entretanto, a imprensa alcançou um alto
grau de qualidade.

O fato é ainda mais notável uma vez que essa nova indústria conduzia à adoção
de novos princípios de trabalho. Mais que qualquer outra, sem dúvida, ela
prefigura a organização “moderna” do trabalho. O trabalhador de base é o
tipógrafo. Ei-lo diante da caixa, dividida em uma série de caixotins onde estão
dispostos os diversos caracteres. Pega-os um a um, acomoda-os num
componedor que corresponde a uma linha. Depois, dispõe as linhas na fôrma. A
qualidade e o rendimento do trabalho dependem da rapidez e da segurança de
seus gestos. É preciso, portanto, facilitar-lhe a aquisição de um verdadeiro
automatismo: situá-lo na melhor posição frente à caixa, dispor da melhor
maneira os caixotins desta, distribuir os caracteres do modo mais racional...
Essas pesquisas prolongam-se pelo menos até o século XVIII e prenunciam o
estado de espírito que será, muito mais tarde, o do taylorismo.

Como o tipógrafo pode ser levado a trabalhar sucessivamente em vários ateliês,


há interesse de que ele se encontre sempre diante da mesma distribuição dos
caixotins e dos caracteres, a fim de que esta seja “estandardizada”. Outra
estandardização que só ocorreu de modo muito progressivo: a dos próprios
caracteres. Os primeiros impressores fabricavam por seus próprios meios os
punções, matrizes e caracteres que utilizavam. Ora, essa era uma tarefa
complexa, que exigia uma enorme experiência. Logo, trabalhadores
especializaram-se nesse ofício. Alguns impressores admitiram equipes deles e
passaram a ser fabricantes de caracteres. A preocupação com o rendimento fez
com que se uniformizassem os tipos de caracteres e suas dimensões.

Disso decorreram infinitas conseqüências. Qualquer que fosse sua origem, os


impressores compartilhavam a preocupação de vender o maior número possível
de exemplares. Para serem acessíveis ao máximo de leitores, era preciso que
eliminassem grafias, formas e palavras que, por seu caráter particular, pudessem
criar obstáculos para a compreensão do texto. Esse era, de fato, o trabalho dos
revisores, cuja influência foi incomparável na fixação das normas. Os revisores
contavam mais que Lutero quando, em Wittenberg, presidiram à impressão dos
cerca de 100.000 exemplares de sua Bíblia em alemão! Pois esses revisores não
se sentiam nem um pouco obrigados a respeitar a vontade do autor, ao contrário,
era este último quem observava regras dos revisores para não ser corrigido.

Essa linha seguida pelos revisores nem sempre foi clara ou unânime. Na França,
eles aceitaram as extravagâncias e as contradições dos manuscritos, deixando
para os gramáticos a tarefa quase total de esclarecimento. Na Alemanha, várias
“escolas” — renana, alemâ nica, bávara, nuremberguiana, saxã — opuseram-se
por muito tempo, até que, no curso do século XVI, chegam a um acordo a partir
das normas das chancelarias. Na Inglaterra, a ação de um Caxton parece mais
refletida e mais feliz, pois ao imprimir Chaucer e outros garantiu o triunfo
definitivo do dialeto das Midlands orientais.

A implantação geográfica da imprensa também é carregada de conseqüências.


Na Itália, um dos seus grandes centros é Veneza, e os impressores propagam o
dialeto veneziano, fortemente influenciado pelo florentino. Na França
meridional, são os livros impressos em Lyon que se espalham, e são textos
franceses que são oferecidos aos homens instruídos: a expansão rápida da langue
d’oil não se explica de outra forma. “Não foi Simon de Montfort mas sim
Gutenberg quem afrancesou o Languedoc” (E. Le Roy Ladurie).
De qualquer modo, a imprensa serve às línguas vulgares muito mais que ao
latim. Certamente numerosas obras em latim são impressas; as prensas das
cidades universitárias, como Bolonha e Roma, consagram-se particularmente a
isso, para satisfazer as necessidades do público escolar. Mas estas já tinham
suscitado a cópia manuscrita de textos numa quantidade relativamente
importante. Antes da imprensa, os manuscritos latinos eram de longe aqueles
que atingiam os números mais elevados de cópias, que também custavam mais
barato. Foi essa proporção que a imprensa derrubou. As novas condições de
rentabilidade permitem que se imprimam para um público simplesmente
cultivado obras literárias em língua “vulgar”: em 1472, a Divina Comédia já
tinha sido editada três vezes!

A influência da imprensa não se exercerá plenamente senão no século XVI. Por


volta de 1500, a leitura já ocupava, entretanto, um número incalculável de
pessoas. Nelas se produzia a revolução intelectual que a criança vivência quando
a ação da palavra lida começa a exercer-se em seu espírito. A língua literária
conquista um poder novo. A imprensa coroa a obra de fixação, de esclarecimento
e de normalização que preparava, não sem hesitações nem confusões, a evolução
lingüística geral.

Língua, pensamento, religião, tudo entrava em jogo com essa revolução da


imprensa. Mais uma vez, o conjunto do cérebro humano e a evolução da
economia estavam associados!

[1] Decreto promulgado em 1356, marcado pela cápsula de ouro do selo imperial
de Carlos IV, regulamentando a eleição para a Coroa do Sacro Império Romano-
Germânico. Suprimia qualquer ingerência do papa na eleição imperial. (N.T.)

[2] Processo que consiste em separar os elementos de um metal bruto por sua
fusão parcial. (N.T.)
9. Fazer negócios

Mesmo se alguns progressos podem ser constatados nas técnicas rurais e


industriais — a ponto de prepararem de longe a “revolução agrícola" dos séculos
XVIII e XIX —, as inovações são muito mais surpreendentes no domínio do
comércio. Certos métodos, alguns dos quais utilizados até em pleno século XX,
foram experimentados então. Precisamos, aqui, fazer um certo esforço para
explicá-los e perceber todo seu alcance (23).

Nos séculos XIV e XV, as condições em que se praticava o comércio eram muito
desfavoráveis. Não voltarei a falar sobre a grande diversidade dos pesos e
medidas, sobre a qual alguns tratados (299) procuravam informar os infelizes
comerciantes; nem sobre a desordem monetária, ligada às vicissitudes da guerra
e à desigual reação dos Estados; nem sobre as bruscas especulações
engendradas, de modo imprevisível, por epidemias e fomes. E é praticamente
seguro que o “volume” desse comércio diminuiu durante esses dois séculos.

A tantos obstáculos, devemos agora juntar mais dois:

1. Os Estados modernos estavam em formação (193 bis). Mas deixavam


subsistir, aliás, de maneira muito desigual, autonomias urbanas. Na Inglaterra
não havia quase nenhuma. Na França, variavam tanto no tempo (pois havia
eclipses do poder real como, por exemplo, sob o infeliz rei louco Carlos VI)
quanto no espaço (eram em geral maiores no Midi). No Império, algumas
cidades eram autônomas a ponto de elas mesmas tornarem-se Estados. Na
medida de suas possibilidades, publicavam em edito uma regulamentação — até
mesmo uma legislação — destinada a defender os interesses de seus membros.
Os negociantes internacionais tinham de levar em conta essa confusão de
medidas — e, antes de mais nada, conhecê-la.
2. Teoricamente, agiam nos moldes de um mundo cristão. Mais que
teoricamente: seus registros comerciais começavam com fórmulas piedosas, suas
associações muitas vezes previam uma parte reservada a Deus e aos seus pobres.
Simples rotina, dirão! Não é seguro, e tampouco é válido para todos os lugares.

Ora, a Igreja dispensava um ensino que não era especialmente favorável aos
comerciantes — era até mesmo francamente hostil a seu respeito (343).
Considerava como “usura" não apenas — como em nossos dias—o fato de se
exigir um juro excessivo, mas “qualquer excedente fornecido por quem toma
emprestado ao emprestador” — por menor que fosse esse excedente. Os textos
das Escrituras nos quais se baseava essa doutrina eram ambíguos: uma passagem
do Deuteronômio (Velho Testamento) proibia que os judeus praticassem entre si
o empréstimo com juros; Cristo (Lucas VI, 34-35) aconselhava — sem ordená-
lo! — a “emprestar sem esperar nada de volta”. Sobre uma base tão fraca, foi
evidentemente o espírito do tempo que construiu um edifício tão sólido. Na
atmosfera de atonia econômica dos séculos anteriores ao século XI, todo
empréstimo era de consumo. A caridade mandava que não se exigissem juros
dos infelizes que a necessidade obrigara a tomar empréstimo. Isso é tão seguro
que, no Oriente bizantino, onde as exigências doutrinárias com certeza não eram
menos fortes, mas onde a economia continuava ativa, nenhuma doutrina
semelhante se formou.

Desde o século XII somaram-se a isso considerações extraídas de Aristóteles,


que via o dinheiro como um simples instrumento das trocas, o qual, por natureza,
não dava fruto. Assim o usurário não se contentava em emprestar um bem, ele
vendia além disso o uso, o que constituía propriamente a “usura" e parecia algo
inadmissível.

Ora, no século XII. o desenvolvimento econômico pôs em questão essa doutrina.


De fato, o dinheiro voltava a ser “frutífero": doravante era possível investi-lo e
obter lucros. Era preciso, em nome da doutrina, condenar operações
indispensáveis tais como a formação de sociedades, o seguro, o câmbio...?
Impunha-se uma reflexão. Ela foi empreendida ao mesmo tempo pelos
canonistas, especialistas em direito da Igreja, acostumados a discutir obrigações
morais; pelos teólogos morais, que julgavam os atos sobretudo por seus motivos
(assim fazia Tomás de Aquino, um dos mais eminentes); pelos próprios
civilistas, que raciocinavam a partir do direito romano. Entre esses pensadores
havia alguns notáveis, como o franciscano Bernar-dino de Siena (1380-1444), ou
Antonino, arcebispo de Florença (1389-1459), representante da tendência
rigorista, à qual se opunham as correntes mais laxistas. Alguns estiveram muito
envolvidos com negócios: é o caso de Fra Santi Ruccellai (1437-1497),
banqueiro florentino que se tornou dominicano na velhice. Não se poderia,
portanto, acusá-lo de ter ignorado as realidades de que tratavam. Schumpeter
pensa até que esse esforço de reflexão é a origem longínqua da ciência
econômica.

O problema era: como desenvolver os negócios sem cair sob a condenação de


usura? Paradoxo aparente: se não tivessem enfrentado um tal obstáculo,
mercadores e cambistas teriam sido tão inventivos? Limitar-me-ei a alguns
exemplos que considero decisivos.

Nascimento do seguro (269, 273, 280)

Começarei pelo seguro. Como pode ser definido hoje? É “um contrato pelo qual
uma das partes (o segurador) compromete-se, mediante um prêmio, a indenizar a
outra parte (o segurado) contra um prejuízo eventual”. Note-se que o prêmio é
pago em todos os casos pelo segurado, quando da conclusão do contrato; e que a
indenização intervém, a posteriori, em caso de sinistro. Tudo isso nos parece
natural. Devemos ter consciência do fato de que essa prática representou um
papel importante na elaboração do capitalismo moderno: por si mesma,
representava um esforço de racionalização, de cálculo e garantia do risco; de
outra parte, pela acumulação dos prêmios, fornece capitais consideráveis.
Compreendemos melhor então por que ela só tenha se elaborado lentamente. De
qualquer maneira, os séculos XIV e XV foram a etapa decisiva: é o que tentarei
demonstrar.

Ponto de partida: o “empréstimo marítimo” utilizado na Antiguidade. Tratava-se


de um empréstimo que era concedido aos empreiteiros de uma viagem,
normalmente marítima. Esse empréstimo só era reembolsado se o navio e a carga
chegassem ilesos ao ponto previsto. A taxa legal de juro era bastante elevada,
devido aos riscos corridos: em geral 12%. No que naturalmente se repensou no
século XVII. Para dissimular o juro, foram experimentadas duas fórmulas. Uma
era um contrato de câmbio: o emprestador fornecia uma quantia em moeda do
porto de partida; aquele que tomava emprestado prometia reembolsá-lo no porto
de chegada, em moeda corrente dali, mas só se o navio e o carregamento
chegassem ilesos. A outra era um contrato de venda: o emprestador comprava o
carregamento por um determinado preço, e o outro se comprometia a comprá-lo
de novo se chegasse ao porto de destino. Essa modificação tinha a vantagem de
fazer do segurador o proprietário legal da carga segurada: em caso de sinistro,
ele podia obter a restituição do que fosse salvo. Porém, o sistema era imperfeito,
o segurador perdia quase tudo em caso de desgraça. A noção de prêmio ainda
não se formulara. De outra parte, os canonistas não eram ingênuos: perceberam
muito bem que essas fórmulas eram apenas tentativas de dissimular o juro. Era,
portanto, preciso continuar procurando.

Certamente, continua-se a praticar, até em pleno século XV, o antigo


“empréstimo marítimo", sob o nome de “empréstimo à grande (aventura)”, pois
esse sistema fornecia aos mercadores os capitais sem o que não teriam podido se
lançar no comércio marítimo: para eles, o seguro era uma vantagem secundária
(ao mesmo tempo que era apreciável). Além disso, as autoridades empenhavam-
se em dissuadir os que tomavam empréstimos de má fé de prevalecerem-se da
condenação da usura e de recorrerem aos tribunais eclesiásticos.

Entretanto, a evolução econômica tornava possível o recurso a novas formas. Ao


lado dos mercadores que necessitavam de crédito, multiplicavam-se as
sociedades que dispunham de capital, que armavam ou fretavam navios, capazes
de comprar cargas sem ter de tomar empréstimo; buscavam apenas o seguro. De
outra parte, definiam-se grandes trajetos, nos quais os riscos tornavam-se
menores devido ao tamanho dos navios, à formação de comboios... Começava a
ser possível calcular precisamente o custo do seguro e reduzi-lo ao mínimo. Isso
permite aceder ao estágio (provisoriamente) final: o segurado pagava o prêmio
em todos os casos, na conclusão do contrato. Desse modo, estava livre de todas
as obrigações, e o contrato limitava-se a precisar as do segurador, ou seja, pagar
uma certa quantia se a carga não chegasse a bom destino. A transação tinha a
forma de uma venda (fictícia) do navio ou da carga ao segurador que, durante o
risco, era o proprietário legal. Mas ele só pagava em caso de sinistro, pois, se
houvesse boa chegada, o contrato era anulado. Parece que essa evolução
fundamental, da qual se depreendia a noção de prêmio, tenha se realizado em
Gênova por volta de meados do século XIV. Certamente, o prêmio não era
definido, e esse silêncio (bastante lamentável para o historiador) é um vestígio
de desconfiança em relação à condenação da usura. Até isso acaba
desaparecendo: o montante do prêmio é indicado em nossos documentos flo-
rentinos e barceloneses do início do século XV; naturalmente, Gênova, que dera
o passo decisivo, mostrou-se em seguida muito mais tradicional. Mas ela
também chegou ao verdadeiro contrato de seguro, em meados do século XV.

Tudo isso justifica que não conhecéssemos bem o custo do seguro. De início, era
muito elevado: sabe-se que, em 1350, para um transporte de trigo de Messina a
Túnis, a taxa era de 18%. Depois, a melhor construção dos navios, o
melhoramento dos portos, a defesa contra o corso e a pirataria permitiram
reduzir os riscos. Segundo o Manual de comércio de Uzzano, por volta de 1440,
o seguro de Bruges a Veneza custava entre 12 e 15%. Diminuiu muito ainda,
como informa um registro genovês de 1485: uma taxa. a “gabela de segurança”,
acabava de ser instituída para armar doze galés contra o rei de Aragão. Era
cobrada sobre os contratos de transporte, e houve 410 naquele ano. A taxa do
prêmio de seguro garantindo o transporte em questão é indicada a cada vez.
Podemos então avançar — sempre com cautela, pois, afinal trata-se apenas de
um ano, e de 410 contratos somente. O seguro raramente incidia sobre o próprio
navio; era muito baixo então (8 a 12%) sobre os grandes navios que faziam
longas viagens, e que normalmente eram segurados por ano; era muito mais
pesado (20 a 30%) sobre os pequenos navios. Versava com muito mais
freqüência sobre as mercadorias; sua taxa em geral era modesta, raramente
superior a 10%. Não era proporcional à distância — 6% de Gênova à Sardenha,
e apenas 10% de Quios a Flandres. Os riscos variavam muito conforme as zonas.
De fato, é preciso distinguir dois tipos de tráfico: o tráfico regional, vulnerável,
com prêmios relativamente importantes (5 a 6%); e o grande comércio
internacional, que se fazia em grandes navios, e pelo qual o seguro,
relativamente, não era caro (em média 8,5 de Gênova à Inglaterra; 3,6 de
Gênova a Quios). E preciso também fazer exceção ao tráfico de trigo da Sicília,
em que se pediam prêmios muito baixos (2 a 2,5%), a fim de favorecê-lo.

O seguro foi difundido no século XV, mas ainda não foi feito o estudo dessa
difusão. Pretendo chegar a duas constatações finais, essenciais: no século XVI, a
Espanha sucederá a Gênova como mercado mundial do seguro, enquanto irá se
anunciar a predominância inglesa e holandesa. Sobretudo, no século XVII, o
cálculo das probabilidades dará a base sólida que faltava ao edifício. Que este
tenha podido erguer-se sem essa base, eis aí, talvez, a maior manifestação dos
progressos realizados nos séculos XIV e XV!

Os primeiros passos do banco (74, 311-313, 319)

Tais são as origens do seguro. Não menos notável é ao mesmo tempo o


nascimento do banco. Os historiadores da economia medieval sentem certa
irritação ao ouvirem falar tão facilmente de banqueiros na Idade Média. Convém
mostrar-se mais rigoroso. O banco comercial efetua empréstimos, recebe
depósitos e, através da transferência de fundos de uma conta para outra, permite
inúmeros pagamentos; é essencial sua capacidade de criar crédito pela
antecipação de quantias maiores que o montante total de seus depósitos. Existem
outras funções bancárias: a impressão do papel-moeda, as operações de câmbio,
o desconto de letras de câmbio e de notas promissórias. O problema é: quando
apareceu o banco definido dessa forma? Onde e como? Terá nascido do câmbio
ou do crédito?
De fato, é o câmbio que seremos levados a pôr em primeiro plano. Em maior
proporção que no mundo contemporâneo, o câmbio era uma operação
indispensável e quase cotidiana nessa Europa onde, às moedas nacionais (como
as dos reis da França e da Inglaterra) somavam-se as dos senhores e das cidades
(como na Alemanha e na Itália). O câmbio podia ser normal: se tenho escudos de
ouro e desejo florins de ouro de Aragão, levo os primeiros a um “trocador”
instalado atrás do balcão, entrego-lhe os primeiros e recebo os segundos, de mão
em mão. Mas o que acontece se eu quiser evitar transportar numerário numa
longa distância, com todos os riscos de perda e de roubo que isso implica? A
solução é o “câmbio sacado”. Por muito tempo ele foi feito — desde o século
XII — pelo contrato de câmbio, que era um reconhecimento de dívida, passado
em tabelião. Reconhecia o recebimento de uma quantia em tais espécies e
prometia seu reembolso noutro lugar e noutras espécies. Esse contrato foi muito
utilizado. Representava também um empréstimo, graças ao qual o mercador
comprava o carregamento que ia vender, por exemplo, em feiras; com o produto
da venda, podia reembolsar seu credor, ao mesmo tempo que obtinha um lucro.
Todavia, esse ato implicava formalidades, como a presença de testemunhas e
despesas para a redação de um ato longo que sempre podia ser extraviado.
Também, sem que desaparecesse (pois representava um papel econômico
insubstituível), foi parcialmente substituído pela letra de câmbio, preferível para
todos aqueles que dispunham de capital e desejavam apenas fazer uma
transferência.

A letra de câmbio apresenta-se de maneira bem mais simples, num pequeno


pedaço de papel (309). É para traduzir a definição dada por Raymond de Roover,
“uma nota promissória através da qual um sacador ou tomador, em troca de uma
quantia que recebeu de um doador, ordena a um sacado pagar a um beneficiário
uma quantia equivalente, em um outro lugar e em uma outra moeda, a termo”. É
fundamental a presença da pessoa ou da sociedade a quem ele a destina;
intervém então o tomador e o sacado, que são “cambistas” (a palavra é posterior,
mas muito útil para assinalar que não se trata mais de um simples “trocador”),
que executam a transferência por um duplo jogo de escrituras. Façamos uma
pausa para algumas observações:

1. A diferença de lugar e de moeda, evidentemente, é essencial.


2. A letra é dita “primeira”, ou “segunda”, ou “terceira”: em geral, redigiam-se
três exemplares, que se enviavam separadamente, para reduzir os riscos de
extravio. O sacado conservava, é claro, apenas um exemplar da letra.

3. O pagamento devia se realizar “a uso”, a “usança”: assim chamamos o prazo


legal que existia entre a apresentação da letra ao sacado e a data efetiva do
pagamento. Combinadas, a duração do trajeto e a “usança” representavam um
certo período (cerca de dois meses entre Bruges e Barcelona), durante o qual o
sacador podia dispor da quantia sem ser debitado. A operação de câmbio
implicava secundariamente uma operação de crédito.

4. A taxa de câmbio era indicada pela letra. Por exemplo, um certo número de
libras barcelonesas por escudo flamengo: diz-se que Bruges dava o certo (era
sempre um escudo) e Barcelona o incerto (um número variável de libras). Eram
sempre as praças mais importantes que davam o certo. Essa taxa não era fixada
de maneira arbitrária: os corretores de câmbio estabeleciam uma cotação
(apenas, nas grandes praças as outras as seguiam), que permitia ao cambista
sacador um certo benefício, admitido pelos canonistas, em razão do serviço
prestado. Naturalmente, essa cotação variava em função da oferta e da procura,
ligadas a fatores comerciais (existência de um déficit das trocas) ou monetários
(ameaças sobre uma ou outra moeda), como em nossos dias.

5. Via de regra, o “trocador” pedia ao sacado para debitar sua conta do montante
da letra. Habitualmente, tinham relações regulares e abriam-se mutuamente
contas que eram debitadas ou creditadas das quantias inscritas nas letras que
sacavam um sobre o outro. Geralmente, também o sacado não pagava o
beneficiário em espécies, mas creditava sua conta. Tudo se resolvia assim
através de escrituras, cujas marcas podem ser encontradas nos registros de
contabilidade subsistentes.
Como se realizou a transição do contrato para a letra de câmbio? Há em primeiro
lugar um debate jurídico: certos autores pensaram que a letra resultava de uma
simplificação progressiva do contrato. De fato, parece se tratar de duas
realidades completamente diferentes. Podemos preferivelmente pensar que a
letra tenha surgido da nota que o devedor enviava a seu correspondente quando
ele próprio não se deslocava: há um exemplar dessa nota, entre Florença e
Bruges, em 1330.

Contudo, mais importantes são as condições econômicas e humanas que


tornaram essa evolução possível: o desenvolvimento da instrução entre os
mercadores, que puderam prescindir do notário, e a constituição de grandes
sociedades, com capital, ligadas umas às outras por laços regulares, e dispostas a
honrar as letras de câmbio que umas sacavam sobre as outras.

A letra de câmbio (redigida em italiano) é atestada em Florença e Siena desde o


fim do século XIII, e um pouco mais tarde em Pisa. Ao contrário, o contrato
notariado (em latim) mantém-se durante todo o século XIV em Gênova e em
Veneza, onde eram poucas as grandes sociedades com múltiplas sucursais. Elas
somente surgem aí no século XV.

Seu uso normal era de ordem comercial. Servia para pagar compras efetuadas no
exterior. Uma outra variedade era a letra de crédito: o mercador que queria viajar
sem carregar numerário, mandava sacar dele próprio uma letra pagável no lugar
de destino. Nesse caso, doador e beneficiário eram a mesma pessoa. Os
canonistas aceitavam que o cambista tivesse um certo lucro devido ao serviço
prestado e aos riscos que corria (associados à variação possível do câmbio).
Pediam apenas que a taxa de câmbio estipulada pelas letras não fosse diferente
da cotação normal.

Mas também logo se percebe a possibilidade de vantagens financeiras. Nesse


caso, o montante da letra não servia para liquidar mercadorias, mas para comprar
uma outra letra que era sacada em troca. Tratava-se, portanto, de especulação
sobre o câmbio. Podem-se distinguir dois casos diferentes:

— Podia-se tomar como base a diferença entre as cotações do câmbio existente


normalmente entre duas praças, em conseqüência de um déficit regular da
balança comercial, sendo que a praça deficitária sempre devia pagar o câmbio
mais caro. Raymond de Roover expôs brilhantemente essa operação: a lira di
grossi, moeda de conta veneziana, que dava a taxa de câmbio para as relações
entre Veneza e Florença, normalmente era cotada mais alta em Veneza. Assim,
comprar uma letra sobre Veneza normalmente dava um lucro: uma letra
comprada em Florença por 15 1. 18s. affiorino a lire di grossi, na volta, era paga
a 15 1. 19s. affiorino. De fato, não era útil sacar letras. Um capitalista florentino
só tinha que investir dinheiro em um cambista, que lhe rendia à taxa estabelecida
em Veneza dez dias (duração da “usança”) depois do investimento. Os riscos de
prejuízos não eram nulos, mas sem muita importância. Tratava-se de um
“câmbio seco”, assim chamado porque não havia uma emissão de letras.
Naturalmente, os canonistas, quase todos, condenavam essa operação. Apesar
disso ela propagou-se.

— Podia-se também especular sobre o câmbio, por exemplo, na expectativa de


uma transformação monetária. Assim, se uma crise monetária ou política dava a
impressão de que a moeda flamenga ia ser enfraquecida, muitos especuladores
compravam ducados ou florins italianos através de letras de câmbio; passada a
transformação, eles faziam recolocações que lhes permitiam receber uma
quantidade maior de espécies flamengas. Na falta de transformação, uma
variação sensível das cotações cambiais podia ser aproveitada. Essas
especulações, que conhecemos no século XX. evidentemente eram condenadas
pelos canonistas.

Coloca-se um último problema; o endossamento das letras de câmbio. Em geral,


hoje é possível pagar a um terceiro através de um cheque que a própria pessoa
recebeu em pagamento, e que lhe é remetido após ser “endossado", isto é,
assinado no verso. O mesmo cheque pode então servir para pagar a vários
credores; há uma verdadeira criação de moeda. Tradicionalmente, o início dessa
prática situava-se em Antuérpia em 1610. Uma série de descobertas permitiu
remontar até 1410, data que se refere a uma letra de câmbio de caráter comercial,
endossada duas vezes, encontrada por Federigo Melis nos arquivos Datini.

O endossamento existia, portanto, desde o início do século XV, mas ainda era
um “truque” técnico, raramente empregado.

A letra de câmbio é uma técnica instaurada pelos mercadores italianos e


correntemente utilizada nas relações entre as grandes praças financeiras, onde
sempre havia sucursais das principais companhias comerciais, com contas
abertas entre si. Nessas praças, os aborígines ou estrangeiros podiam recorrer a
essa técnica, como doadores ou beneficiários. Mas como era em outros lugares?
Vamos dar ao menos alguns exemplos:

— Na Inglaterra não se conservou a letra de câmbio. Certamente as companhias


italianas tinham sucursais em Londres, via de regra em Lombard Street, que
negociava com Bruges. Mas os ingleses preferiam um sistema de
reconhecimentos de dívidas, notas ao portador, que circulavam livremente.

— Não havia letra de câmbio nos países longínquos como a Polônia. Para
mandar vir fundos de Cracóvia para Avignon. o papado devia confiá-los a
mercadores ambulantes, que os transportavam em forma de mercadorias e
paravam no caminho para negociá-los. A chegada das espécies a Bruges podia
levar até um ano; em seguida, de Bruges para Avignon, chegavam em alguns
dias por letra de câmbio. Um contraste impressionante.

— Esse mesmo atraso caracterizava a Hansa (41). Ela não ignorou o crédito.
Chegou mesmo a praticá-lo amplamente no século XIV — vindo a desconfiar
dele no século XV. Mas não existiam grandes companhias comerciais com
filiais. O porte de espécies era freqüente: um importante comerciante de tecidos
de lã, como Vicko von Goldensen, de Hamburgo (temos suas contas de 1367 a
1392), muitas vezes mandava ouro e prata a Bruges para comprar tecidos ali.
Um recente artigo de Stuart Jenki destacou outras fraquezas da Hansa, como a
ausência de métodos de informação rápida e completa, o caráter rudimentar das
contabilidades...

— Por fim, a península ibérica, com exceção de algumas praças como Barcelona
e Valência, limitou-se ao contrato de câmbio nota riado. “O Algarve, a Niobla e
Sevilha encontram-se nos séculos XIV e XV na era da grande mutação italiana
dos anos 1250-1350” (P. Chaunu). São esses métodos rudimentares que ainda
servirão para a exploração dos novos mundos.

Estamos agora preparados para responder a nossa questão inicial. Quando e


como o banco nasceu na Europa? Não nasceu do empréstimo, como acreditaram
alguns historiadores, aliás, excelentes, porém um pouco antigos, como Kulischer,
mas do câmbio. Na sua origem, encontramos os “trocadores” de Gênova, desde
o século XII. Pelo menos são conhecidos por um abundante fundo notarial; se
estivéssemos tão bem documentados em relação a outras praças, talvez
pudéssemos encontrar também outras origens. Esses “trocadores” não se
limitavam ao câmbio normal; aceitavam depósitos, não regulares no sentido do
direito romano, que exigia que não se tocasse na coisa depositada, e que fosse
devolvida de modo idêntico. Investiam uma parte do dinheiro depositado e
pagavam juros ao depositante. Efetuavam também pagamentos por simples
transferência de fundos entre seus clientes. Criavam, desse modo, uma moeda
fiduciária. É por esse motivo que podem ser considerados banqueiros —
bancherii, como eles próprios se chamavam.

Quanto aos séculos XIV e XV, Raymond de Roover estudou de modo notável a
organização do crédito e do banco numa grande praça, Bruges (74). Distingue aí
com muita clareza três funções, exercidas por três categorias distintas de
homens.
— Os usurários, que em geral eram originários de Asti e de Chieri, no Piemonte.
O conde de Flandres fazia com que pagassem muito caro por suas licenças de
atividade (a última conhecida é de 1480). Estavam estabelecidos num bairro
tranquilo e discreto, longe do centro. Possuíam vastas instalações, que
possibilitavam organizar os penhores, pois eram empréstimos sobre penhores
que concediam a prazos muito curtos, em geral a pessoas muito modestas. A taxa
legal de juro, calculada para a semana (dois deniers por libra), subia para 43
1/3% por ano, o que pode parecer enorme e explica sua impopularidade;
entretanto, suportavam grandes despesas, e nenhum deles enriqueceu de maneira
escandalosa. Eis aí cristãos representando o papel que tradicionalmente é
atribuído aos judeus. E eis-nos longe do verdadeiro banco!

— Os cambistas italianos, membros das grandes companhias com múltiplas


sucursais, praticavam ao mesmo tempo o comércio propriamente dito e o câmbio
sacado. Dominavam o mercado internacional dos câmbios. Aceitavam depósitos,
em geral de italianos afortunados, que recebiam juros fixos. Também concediam
empréstimos ao conde de Flandres e ao rei da Inglaterra, cuja benevolência era
necessária ao exercício de suas atividades.

— Os “trocadores”, membros de famílias bem conhecidas do lugar, agrupavam-


se em torno do novo mercado de tecidos: tinham que dar ordens uns aos outros e,
portanto, trabalhar perto uns dos outros. Efetuavam o câmbio normal, mas
também recebiam depósitos de seus clientes. Essa atividade é bem conhecida,
graças aos registros de contas de Collard de Marke e Guillaume Ruyelle, que
foram conservadas, referentes aos anos 1366-1369: vê-se ali Collard passar de
100 para 300 depositantes, enquanto Guillaume tinha 82. Podemos deduzir que,
em Bruges, uma dentre 34 a 40 pessoas tinha uma conta com um “trocador”
(contra uma em 30 em Veneza). Os clientes não recebiam juros, mas se
beneficiavam de uma grande facilidade para efetuar depósitos, retiradas de
fundos e pagamentos, através de ordens orais. O “trocador” só guardava em seu
negócio uma parte dos fundos depositados, 29% com Ruyelle, 25 a 56% com
Marke, e isso era suficiente para as retiradas de fundos normais. Podia então
investir o resto: como Marke fazia no comércio de tecidos do Hai naut. Além
disso, autorizava adiantamentos em conta corrente para seus clientes mais
seguros. Esses “trocadores” criavam desse modo uma moeda fiduciária e poder
de compra. Evidentemente havia o risco de que, em caso de pânico, não
pudessem reembolsar de modo imediato o total dos depósitos. Assim, coexistiam
bancos italianos, de caráter internacional, praticando ao mesmo tempo o
comércio e o câmbio sacado, e bancos puramente locais de depósitos e de
transferência.

Com algumas variantes, essa situação é encontrada nas outras grandes praças.
Em todas existe um mercado monetário, com cotação cambial, emissão diária de
letras de câmbio; os manuais de comércio informavam sobre as taxas de câmbio,
às “usanças”, a corretagem. As cotações do câmbio eram fixadas por corretores
(322), que registravam as conclusões a que chegavam as assembléias de
cambistas. Estas eram feitas nas Lojas de Barcelona e Valença, na praça da Bolsa
em Bruges (264), no Royal Exchange de Londres. As variantes? Não havia
distinção entre “trocadores” e cambistas em Gênova. Em Veneza, o primeiro
lugar era ocupado pelos bancos privados do Rialto, que recebiam depósitos e
faziam transferências de fundos — era a “moneta di banco”, que representava
um papel importante. Em Florença, a Arte dei Cambio incluía ao mesmo tempo
os banchi minuti, que também faziam o comércio da ourivesaria; e os banchi
grossi, os cambistas, como os Bardi, os Peruzzi, os Medici...

No século XV, assiste-se também ao aparecimento de alguns bancos públicos.


Em Barcelona, depois de 1401, a Taula de Cambi servia de agente fiscal para a
cidade, à qual ela podia emprestar. Recebia depósitos, mas não podia conceder
adiantamento (319). Do mesmo modo, em Gênova funcionava a Casa di San
Giorgio, agrupamento dos Compadres, ou associações dos credores do Estado
(49), que foi criada em 1407 para liquidar a dívida pública, estabilizar a moeda,
fazer estancar a alta da cotação do florim. Tinha um banco, que recebia
depósitos, mas não podia conceder adiantamento em conta corrente — exceto
para o Estado, a quem emprestava sobre o produto dos impostos e das partes da
Dívida pública. Tecnicamente seu sucesso foi real. Mas a política seguida por
Gênova obrigou várias vezes a suspender os pagamentos. O banco foi liquidado
em 1444.
É visível a fragilidade desses bancos. Em caso de crise repentina, não se
achavam em condições de enfrentar os pedidos massivos de reembolso. De fato,
houve inúmeras falências, que minavam a confiança. Muitos progressos técnicos
ainda deveriam se realizar.

A contabilidade, condição dos progressos (277, 293, 300, 308, 310)

Nenhum dos progressos que acabo de enumerar teria sido possível sem a
elaboração de um bom sistema de contabilidade. Nessa matéria, não é exagero
dizer que os séculos XIV e XV foram um período decisivo: a introdução da
contabilidade de partida dobrada não precisará sofrer até o fim do século XIX
senão ordenamentos de detalhe. O fato geral é seguro, mesmo se os
contemporâneos não esgotaram todas as possibilidades que lhes abriam essas
descobertas. É mais difícil segui-los historicamente, pois temos apenas restos de
contabilidade, às vezes somente algumas folhas. Como comprovar que tal
progresso foi obtido e generalizado? As lacunas de nossa documentação sempre
irão impedir-nos de alcançar certezas absolutas. Essas considerações mostram-
nos o caminho a seguir: dar as explicações técnicas indispensáveis, e depois nos
lançarmos nos caminhos de Clio.

Que realidade se esconde sob esse termo misterioso de “contabilidade de partida


dobrada”? Tranqüilizamos imediatamente o leitor: isso não é tão complicado.
Todos nós — ou quase todos — mantemos uma contabilidade de partida simples.
Nós o fazemos como o Sr. Jourdain [1] fazia prosa, ou seja, sem o saber.
Anotamos nossas receitas e despesas num caderno e fazemos o que, em termos
científicos, se chama um registro dos movimentos de valores monetários; uma
classificação, separando receitas e despesas, ou mesmo estabelecendo distinções
no interior dessas duas categorias; uma verificação enfim, que se faz por
comparação entre, de uma parte, a diferença entre receitas e despesas, e, de
outra, o dinheiro que ficou efetivamente em caixa. É o único gênero de
contabilidade que os povos conheceram até o século XII. É também a
contabilidade das famílias cuidadosas — e, até recentemente, a contabilidade do
Estado, que só necessitava de uma conta de receitas e despesas; a contabilidade
era apenas o controle do orçamento.

Por que, em um dado momento, essa contabilidade pareceu insuficiente? Vários


fenômenos contribuíram para isso. Em primeiro lugar o da associação: se uma
empresa agrupasse várias outras ou muitos associados, e se existisse por um
certo tempo, os problemas de divisão dos lucros (ou dos prejuízos), ou até da
liquidação da sociedade, colocavam-se de modo complexo. Era necessário
determinar os lucros e prejuízos. De outra parte, o contador percebia que a
associação era uma unidade por si mesma, distinta dos associados. Outro dado:
era hábito dar procuração a entregadores ou correspondentes, ou chefes de
sucursais, cujas contabilidades próprias deviam se articular bem com a
contabilidade geral. Por fim e sobretudo, o desenvolvimento do crédito,
particularmente se havia numerosos credores e devedores. A memória já não
bastava. Então empenharam-se em manter um registro adequado através de uma
série de aprimoramentos. Assim foi empregado o método dos parágrafos:
registravam-se toda dívida ou crédito, deixando-se um pequeno espaço em
seguida para indicar como a operação fora resolvida. Um aperfeiçoamento real
foi o agrupamento de todas as operações referentes a uma mesma pessoa.
Melhor ainda, essas operações podiam ser distin-guidas em créditos e débitos, os
quais eram apresentados em duas colunas em uma mesma página, ou em duas
páginas opostas...

Assim surgiam os primeiros progressos. Os registros de contabilidade


multiplicavam-se para uma mesma empresa: ao registro de caixa, ou “diário”,
em que se anotavam cronologicamente as entradas e saídas de fundos, era
preciso juntar um registro de dívidas e créditos. Sua manutenção resultou, depois
de tentativas sucessivas, no que se chamará o “livro razão” (quaderno),
classificado por correspondentes, com uma apresentação distinta, para cada um
deles, dos créditos e dos débitos. À medida que crescia o porte das empresas,
essas contabilidades eram cada vez mais complexas. Impunha-se a necessidade
da fixação de regras simples e automáticas para a manutenção das contas. Foi da
procura dessas regras que nasceu a “contabilidade de partida dobrada”.
Partamos de uma operação simples. Dois clientes de um mesmo cambista ou
“trocador" querem pagar-se por transferência; o cliente A ordena para pagar 100
libras ao cliente B. Tudo se resolve através de um jogo de escriturações: B é
creditado da soma, A é debitado, o que se traduz assim:

Débito A Crédito

data; 100 libras

Débito B Crédito

data; 100 libras

Como se vê, essa operação única é normalmente registrada na forma de duas


inscrições de valor igual e de sentido contrário.

Vamos supor agora que a operação seja entre a caixa e um único cliente: a
empresa empresta 150 libras a C no dia 1 de janeiro de 1390, e ele reembolsa
100 no dia 1“ de maio. A conta de C é sucessivamente creditada, e depois
debitada:

Débito C Crédito

1.1.1390: 150 libras

1.5.1390: 100 libras


No diário de caixa figuram sucessivamente uma saída (despesa) de 150 libras no
dia 1° de janeiro, uma entrada (receita) no dia 1 de maio. Tendo em vista a
contínua aplicação dessa mesma regra que acabo de enunciar, somos obrigados a
abrir uma conta de caixa no livro razão, e, o que é grave, mantê-la às avessas:

Débito CAIXA Crédito

1.1.1390: 150 libras

1.5.1390: 100 libras

Manter às avessas, digamos: com efeito, achava-se lançado ao crédito do caixa o


que saía dali, isto é, raciocinando-se na ótica do diário, documento mais antigo,
indicar no haver do caixa o que não se encontrava mais ali. Havia nisso uma
mudança de hábitos, diante do que os contadores hesitaram muito. Mas assim
nasceu a contabilidade de partida dobrada, com seu princípio de base: toda
operação traduz-se por duas inscrições de valor igual e de sinal contrário.

As conseqüências lógicas do novo princípio não deviam tardar a aparecer. Foi


criada a conta de patrimônio: o comerciante é obrigado a manter contas, não
apenas de seu caixa, mas de todos os elementos de seu patrimônio. Assim,
quando compra 200 libras de tecidos, credita ao caixa 200 libras (já que estas
saem); mas deve debitar uma conta de igual valor, aqui será a conta “tecidos”. O
mesmo se dá para todas as outras categorias do patrimônio.

É, principalmente, a conta de perdas e lucros que surge. Suponhamos que esse


tecido comprado por 200 libras seja revendido por 250 libras. A conta de caixa é
debitada então em 250 libras. Mas a conta de tecidos só pode ser saldada, pois é
a mesma quantidade de fazenda que entrou e depois saiu. O que fazer então com
a diferença de 50 libras? A única solução é criar uma conta suplementar, na qual
serão creditadas essas 50 libras. Essa conta registra todas as variações de valor
do patrimônio, como as despesas realizadas sobre as vendas; e as despesas feitas
sem crescimento equivalente do patrimônio, como os pagamentos de salários. De
fato, é a conta que apresenta maior interesse econômico, a que informa sobre o
estado da empresa, a que se mostra aos sócios. A coluna crédito registra os
lucros, a coluna débito as perdas.

Assim, destacava-se uma segunda regra fundamental: devia-se abrir uma conta-
despejo, que recebia todas as indicações que não podiam ser registradas na conta
de patrimônio. Essa conta era fundamental para estabelecer o balanço da
empresa. O inventário apenas fornecia uma verificação. Quando não havia
contabilidade de partida dobrada, o balanço era muito mais longo e difícil de ser
estabelecido. Desse modo, os registros de contabilidade multiplicaram-se. Mas
os elementos de base continuavam: o diário de caixa, mantido por ordem
cronológica; o livro razão, mantido por contas de terceiros ou de patrimônio; a
caderneta secreta, que continha os contratos de associação, a conta de lucros e
perdas, etc.

Passemos à história. Colocam-se duas grandes questões: Onde e quando esses


progressos se realizaram? Em que ponto encontravam-se em outros lugares?

Para a primeira questão, a resposta é muito difícil. Como freqüen temente


dispõe-se apenas de fragmentos de contabilidade, é árdua a tarefa de distinguir
se toda inscrição tinha sua contrapartida, uma vez que os encaminhamentos nem
sempre eram claros. Em geral, também não se sabe como os associados faziam
para levantar o balanço de suas empresas. Era através de simples fechamento das
contas, ou recorriam a um longo inventário? Pode-se considerar sua
contabilidade mais ou menos aperfeiçoada, de acordo com o método utilizado.

Há aí, inevitavelmente, uma parte de interpretação, o que explica a oposição


entre Federigo Melis, que tinha temperamento otimista e situava os grandes
progressos bem cedo, e Raymond de Roover, mais prudente. Tem-se a certeza de
que a contabilidade de partida dobrada nasceu na Itália, entre 1250 e 1400.
Tentemos precisar. No final do século XIII, segundo publicação feita dos textos
toscanos anteriores a 1300, observam-se grandes progressos realizados em Flo
rença e Siena, os grandes centros bancários com Piacenza, dos quais nada
sobrou: a apresentação ainda é rudimentar, com a manutenção das contas feita
por parágrafos; entretanto, os registros multiplicam-se; há até alguns sinais que
puderam fazer pensar num nascimento da contabilidade de partida dobrada. Mas
os primeiros exemplos claros aparecem na Itália do Norte, onde, entretanto, as
contas foram por muito tempo mantidas em latim: o primeiro caso indiscutível
encontra-se nas contas dos “massari” ou intendentes da comuna de Gênova
referentes ao ano de 1340. Pode-se mesmo pensar que Gênova adotara essa
técnica desde 1317, para lutar contra as fraudes. Outros casos localizam-se em
Milão, no fim do século XIV.

Assim mesmo é possível que a invenção tenha sido feita na Tosca na. É preciso,
aliás, não confundir a evolução da apresentação das contas com a dos próprios
princípios de contabilidade. Salientamos que as contas foram mantidas em
italiano, muito mais cedo que em outras partes, embora a forma bilateral tenha
demorado a se impor. Um fragmento subsistente da contabilidade dos Peruzzi
mostra os créditos mantidos na frente do registro, e os débitos no verso, o que
não é uma disposição muito cômoda. A forma bilateral só aparece em 1382, no
registro de um mercador (chamado Polliani), que diz querer manter suas contas
alia veneziana: “numa página o débito, e em face o crédito”. Entretanto, não
passava de um progresso de apresentação, pois essa contabilidade ainda não era
mantida em partida dobrada.

O aparecimento da partida dobrada continua então uma questão controversa —


Melis que pensa que os Peruzzi haviam-na adotado desde 1292, Roover que
retruca, dizendo que não se possui nenhuma prova segura disso. De qualquer
modo, dois exemplos claros aparecem na contabilidade de Francesco Datini no
final do século XIV. Finalmente, é possível que a invenção tenha sido feita de
maneira independente em vários lugares e várias vezes. De qualquer modo,
Veneza também parece bastante conservadora: tinha relações comerciais
sobretudo com o Levante e a Alemanha, onde as condições técnicas eram mais
primitivas; aliás, por muito tempo nenhuma grande companhia com sucursais
múltiplas existiu ali. Durante muito tempo, utilizaram-se “contas à aventura”,
abertas para uma viagem: o valor das mercadorias, o preço das vendas e as
despesas estavam consignados ali, e a conta só podia ser encerrada vários meses
ou anos depois. A partida dobrada apareceu somente muito tarde: ainda não é
encontrada na primeira conta Soranso (1410). mas apenas em um segundo
fragmento (1434). É corrente nas contas que nos restam de Andréa Barbarigo
(1431-1449).

E fora da Itália, qual é a situação?

Evidentemente, farei algumas sondagens. Na França, é no Midi que aparecem os


exemplos mais interessantes. Os mais conhecidos são os registros dos irmãos
Bonis, mercadores de Montauban (1345-1369): resta-nos um grande livro C
(contas abertas aos devedores), e um livro vermelho dos depósitos — simples
fragmentos de um conjunto que remissões nos permitem reconstituir de modo
aproximado. Sua apresentação é feita por parágrafos: é ainda uma contabilidade
bastante rudimentar, e não se cogita de partida dobrada.

— Há também um registro de Jacme Oliver, de Narbonne (1381-1391), em que


se encontram contas de pessoas e de viagens.

— Em Toulouse, houve diversificação dos registros; mas tudo foi perdido.


Resta-nos apenas um fragmento de “inventário perpétuo” do mercador e
fabricante de tecidos Jean Lapeyre (1433-1441): cada peça de tecido comprada
por ele estava inscrita ali, com um número, a indicação de seu comprimento e do
preço de compra; depois consta, para cada uma, a menção de todas as vendas a
varejo; e, finalmente, cada conta era fechada, com lucro ou com perda. Tudo era
muito simples. Mas não havia necessidade de mais. Em meados do século XV, a
partida dobrada foi, sem dúvida, introduzida entre vários cambistas tolosanos,
que mantinham relações com Antonio delia Casa, banqueiro da Cúria.

De Lorraine nos chegam as contas dos armarinheiros de Metz, Jean Le Clerc e


Jacquemin de Moyeuvre (1460-1461) (77), que se abasteciam nas feiras de
Bergen-op-Zoom e de Antuérpia. Inscreviam suas compras numa coluna e suas
vendas noutra. Mas não há nenhuma adição, e a utilidade dessas contas para os
armarinheiros — que, contudo, devia haver — não aparece.

De Bruges chegaram-nos as contas dos cambistas locais Marke e Ruyelle (74).


Eram mantidas em francês, com apenas algumas palavras flamengas. Havia
diários e grandes livros. Acham-se ali apenas contas de pessoas, o que é normal
para uma atividade bancária. Eram mantidas com cuidado, mas em partida
simples. Sua apresentação era bilateral, com duas colunas por página.

Na Alemanha, os métodos hanseáticos permaneceram muito rudimentares (41).


Desejava-se apenas preparar as contas entre associados e anotar os principais
credores. A incapacidade de aceder a métodos mais aperfeiçoados é ilustrada de
maneira trágica por Hildebrand Veckinghusen (1365-1426) (81), que queria
ampliar seus negócios, criar uma ligação direta com Veneza. Mas seus processos
contábeis foram insuficientes; deixou-se enganar por seus agentes, viu voltarem
letras de câmbio protestadas; não foi capaz de em nenhum momento estabelecer
um verdadeiro balanço. A falência estava no fim disso tudo: preso no Steen de
Bruges a pedido de um banqueiro genovês (1422), ficou ali durante três anos, só
saindo para morrer. No Sul, os métodos foram de início muito rudimentares,
como se pode averiguar pelas contas dos Holzschuher, negociantes de tecidos de
Nurem berg (1304-1307) (263); trata-se de um livro de créditos, repartidos em
445 contas de clientes classificados por categorias sociais, mas sem distinção dos
créditos e dos débitos. Houve no século XV grandes sociedades, mas nada nos
restou de suas contas. Os membros da Grande Companhia de Ravensburg (1380-
1530) (315) faziam suas contas aproximadamente a cada três anos, através de
um inventário geral, que durava mais de um mês — no decorrer desse período,
eram mantidas na própria Ravensburg. Tratava-se com certeza de uma
contabilidade simples.

Quanto à Inglaterra, possuímos muito poucas indicações. Quase não nos restou
nenhum fragmento. Há no século XIV algumas folhas de contas de Gilbert
Maghfeld, mercador de ferro londrino, de quem Chaucer foi um dos clientes;
eram mantidas em francês, com algumas palavras inglesas. Era um simples
compêndio, sem organização muito clara. Na correspondência dos Cely (60) há
algumas alusões a sua contabilidade; sem dúvida, pode-se comparar à dos
hanseatas. Pouca coisa na verdade...

Como se vê, não há nenhuma uniformidade na Europa no fim do século XV. E


apenas no século XVI que a contabilidade de partida dobrada irá se propagar
realmente, o que foi facilitado pela impressão do tratado de Luca Pacioli sobre a
contabilidade.

Vicissitudes das feiras (270, 302)

As feiras constituíam uma instituição muito antiga. Nas civilizações onde a


circulação era difícil, serviam de ponto de encontro para as caravanas periódicas.
Realizavam-se amiúde por ocasião de festas religiosas — daí seu nome, que vem
de feria, isto é, “dia de festa”; em alemão, “Messe” quer dizer ao mesmo tempo
missa e feira. É importante distingui-la do simples mercado; ela realizava-se, não
todas as semanas como ele, mas uma ou duas vezes por ano; seu prestígio não
era apenas local, mas regional ou até mesmo internacional. Era antes de tudo um
encontro de mercadores, operando no atacado, ou pelo menos no semi-atacado, e
não se via ali normalmente clientela privada. As transações concerniam a
mercadorias muito variadas, e não apenas de consumo local.

Algumas características originais destacam-se de sua organização. As feiras


eram estabelecidas em grandes rotas de passagem, ou próximas dos principais
centros de produção — e não forçosamente dentro ou perto de cidades
importantes. A existência de centros sedentários não acrescentava muita coisa a
esse fenômeno seminômade. Várias cidades grandes não tiveram feiras notáveis.
Com efeito, a instalação era sumária: às vezes, era apenas um campo provisório
de tendas e de barracas, num local aberto (assim foi no começo em Lyon, às
margens do Saône). Apesar de utilizadas apenas de modo intermitente, as
instalações podiam ser próprias e duráveis, como em Gênova. A seqüência dos
acontecimentos no tempo era sempre resolvida de maneira bastante estrita: havia
alguns dias de entrada, durante os quais os mercadores instalavam-se; depois
davam-se, por ordem, as vendas especializadas, tecidos, couros, “avoir-du-
poids” (isto é, especiarias vendidas a peso). Finalmente, efetuavam-se os
pagamentos e estabeleciam-se as letras de feira. Muitas vezes, várias feiras
sucediam-se nos lugares vizinhos durante a maior parte do ano.

Várias instituições eram próprias das feiras. Em primeiro lugar a “paz da feira”,
salvo-conduto que protegia os mercadores na estrada que levava à feira, e cujo
valor era dado pela autoridade do senhor ou soberano que a concedera. No
próprio lugar da feira, materializava-se numa grande cruz. Na França, existia
amiúde uma jurisdição especial encarregada de assegurar essa paz; nos Países
Baixos ou na Alemanha, recorria-se ao tribunal ordinário da cidade, que adotava
um processo mais rápido, para não atrasar os mercadores. Também existiam
disposições especiais de direito: franquias, como a supressão das represálias
exercidas em caso de delitos de um concidadão, isenções fiscais; e privilégios,
como a agravação das penas concernentes a certos delitos que, desse modo, se
procurava evitar.

O papel das feiras podia ser múltiplo. Comercialmente, punham em contato


mercadores de regiões muito diversas, aos quais essas reuniões periódicas
certamente possibilitavam novos encontros; muitas vezes também ofereciam um
mercado cômodo para uma grande região de produção — isso era da maior
importância para a manufatura de tecidos. Mas também representavam um papel
financeiro. Ali, recorria-se muito ao crédito. Os mercadores deviam tomar
empréstimos, reembolsáveis na feira, para conseguir as mercadorias para vender.
Quando, no fim de uma feira, acontecia de deverem dinheiro, podiam mandar
estabelecer uma letra de feira, isto é, um reconhecimento de sua dívida, pagável
na próxima feira. Aproveitava-se para resolver na feira dívidas contraídas em
outras partes, e cujo pagamento fora estipulado na feira. Por isso Henri Pirenne
afirmou que as feiras de Champagne foram um “clearing house” embrionário da
Europa.

Fornecidas essas poucas indicações gerais, é preciso fazer um quadro geográfico


— não completo, é claro — das principais feiras. A maioria nasceu do
desenvolvimento das relações entre Europa do Norte e região mediterrânica. Tal
fora o papel das grandes feiras de Champagne e de Brie, que, em geral, se
considera em declínio por volta de 1300. Um artigo bastante recente de Heinz
Thomas, publicado em 1977, na Vierteljahrschrift f. Sozial-u. Wirtschaftsges-
chichte, levou-nos a definir ainda mais nossas posições sobre esse assunto —
mas pode ser que a contribuição ainda muito incompleta dos arquivos italianos
traga surpresas. Foi só por volta de 1320 que elas deixaram de ter um papel ao
mesmo tempo comercial e financeiro. Ainda em 1307, 4 dos 14 feirantes da
companhia florentina dos Alberti dei Giudice ocupavam-se especialmente das
feiras de Champagne e de Flandres; em 1348, os Alberti empregavam 19
feirantes, dos quais nenhum mais se preocupava com as feiras, e dos quais 6
residem em Avignon, que se tornou o grande centro da companhia ao Norte dos
Alpes. Também foi por volta de 1320 que essas feiras deixaram de ser para toda
a Europa uma praça de crédito. Por quê? Robert Bautier incriminou justamente o
desenvolvimento da confecção de tecidos italiana, que dissuade os mercadores
de fazer a viagem às feiras para conseguir os tecidos flamengos. Pode-se
também alegar o uso cada vez mais freqüente da rota marítima atlântica entre a
Itália e os Países Baixos. Por fim, o fato de que as feiras não gozavam mais da
liberdade de outrora: os enviados do rei intervi-nham cada vez mais. Por ocasião
das guerras franco-alemãs provocam o fechamento da fronteira do Norte. É
então que é preciso pôr o nascimento do Estado francês em causa.

Não esqueçamos as feiras de Chalon-sur-Saône, que um trabalho minucioso de


Henri Dubois colocou em seu verdadeiro lugar, secundário, mas mesmo assim
notável, nos séculos XIII e XIV. Entretanto, nunca foram um grande centro
financeiro.

As feiras de Gênova apareceram no século XIII no cruzamento de duas rotas: a


da Itália à Borgonha (pelo Grand Saint-Bernard e Jura), a da alta Alemanha à
Catalunha pelo vale do Ródano e o Languedoc. Elas progrediram muito no
século XIV, em particular sob a influência da Avignon pontificai. Havia 6 por
volta de 1400. Esse número foi reduzido a 4 em 1439: a de Epifania (janeiro), a
da Páscoa, a de São-Pedro-das-Correntes (agosto), a de Todos-os-Santos. Mas,
ao mesmo tempo, a duração de cada uma delas chegava a duas semanas. Alguns
produtos regionais eram negociados ali, tecidos de Friburgo (Suíça), cânhamo de
Bresse, panos de Borgonha, couros de Savóia (a própria Gênova não fornecia
nada); mas se tratavam sobretudo de mercadorias vindas de longe, tecidos e
panos da Normandia e dos Países Baixos, especiarias vindas da Itália, sedas de
Lucca, armas de Milão, metais de Nuremberg, açafrão de Aragão... E os italianos
fizeram disso um grande centro financeiro. A origem dos mercadores que
freqüentavam essas feiras também era muito variada. Os bancos italianos, as
grandes casas de comércio alemãs tinham agências ali. São essas feiras que
surgem como verdadeiras continuadoras das de Champagne. Mas Luís XI iria
provocar seu declínio ao favorecer as feiras de Lyon.

Estas passaram ao primeiro plano na segunda metade do século XV. O futuro


Carlos VII de França criara duas feiras em 1420 para recompensar a fidelidade
da cidade. Por muito tempo elas vegetaram. Foi Luís XI que teve a idéia de
favorecê-las contra Gênova, para beneficiar o reino com esse tráfico, e para
atingir o duque de Borgonha, que tinha grandes interesses em Gênova e tomava
grandes empréstimos. Em outubro de 1462, proibiu os mercadores franceses de
irem a Gênova, e os estrangeiros de atravessarem o reino para lá chegar. Em
1463, aumentou para 4 o número de feiras de Lyon e situou-as nas mesmas datas
das de Gênova. Gênova bem que tentou defender-se, diligenciar junto a Luís XI.
Mandou prender os mercadores que se dirigiam a Lyon. Apesar de tudo, os
bancos italianos, ao mesmo tempo em que mantinham ligações com Gênova,
transportavam suas ramificações para Lyon: os primeiros estatutos da nação
florentina em Lyon datam de 1466. Entretanto, Gênova não estava arruinada. No
fim do século XV, seu tráfico estava apenas um terço menor. É verdade que
nesse meio tempo o movimento geral dos negócios aumentou. Até mesmo uma
certa cooperação estabeleceu-se entre Gênova e Lyon. Em 1485, Gênova
autorizou os genoveses a levar para Lyon os produtos não vendidos de Gênova.
Foi principalmente o tráfico de sedas que assegurou a fortuna de Lyon, e o das
especiarias só o acompanhava de longe. Além disso, Lyon representou o papel
de uma grande praça de câmbio.
Outras feiras — a maioria — representaram um papel regional, que às vezes
tinha prolongamentos internacionais. Na França, as feiras de Pézenas e
Montagnac, no Languedoc, emergiram por volta de meados do século XIV;
Beaucaire concorrerá com elas a partir do século XV. Na Itália não havia
nenhuma feira muito grande: assinalemos as de Salerno (pelos tecidos), da
Apúlia (pelo algodão), de Pontestura, pequeno povoado ribeirinho do Pó, onde
se encontrava até mesmo alemães e espanhóis. Na Espanha, as feiras de Me dina
del Campo, surgidas por volta de 1320, eram um centro essencial das operações
com a lã; os mercadores italianos freqüentavam-nas, e no século XV tornaram-se
um notável centro financeiro. Na Inglaterra, no começo do século XIV, as
principais feiras internacionais para o tráfico da lã e de tecidos eram as de
Winchester, Bristol, e, em Estanglie, St. Ives, Boston e Stamford. No século XV
perderam o caráter internacional; o tráfico da lã diminuía e concentrava-se em
Calais; e a Inglaterra, por fabricar seus próprios tecidos, importava cada vez
menos. Nos Países Baixos, Bruges conservou por muito tempo seu prestígio;
ainda havia outras feiras flamengas, em particular feiras agrícolas (cavalos em
Messines e Thourout). As feiras brabantesas eram mais recentes; talvez só
datassem do século XIV. Muito depressa, elas organizaram-se num conjunto
coerente: em Antuérpia realizavam-se as feiras de Pentecostes, e as de São Bavo
(ou de São Remígio, 1 de outubro); em Bergen-op-Zoom as da Páscoa e de
Todos-os-Santos. Seu sucesso deveu-se às desordens que afastavam os
estrangeiros de Flandres no final do século XIV — mas, sobretudo, ao
desenvolvimento da exportação dos tecidos ingleses. Esta encontrava em
Antuérpia o ponto de venda sonhado: durante muito tempo (exceto alguns breves
desentendimentos com o duque), a chegada dos tecidos ingleses coincidia com a
abertura das feiras; vinham mercadores sobretudo da Alemanha; de Colônia e do
vale do Reno, e da alta Alemanha a partir do meado do século XV. No século
XVI, o encontro desses alemães com os portugueses será um fato de importância
mundial. A Holanda também teve suas feiras, principalmente as de Deventer, que
punham em contato vendedores holandeses de tecidos e de produtos leiteiros, e
fornecedores alemães de madeira, de vinho, de produtos metalúrgicos. Na
Alemanha, o desenvolvimento das feiras foi muito tardio. As mais importantes
foram as de Frankfurt-am-Main, atestadas desde 1227, num cruzamento de vias
(Reno e Danúbio, Lorraine...), nas proximidades de uma região grande produtora
de panos. Os mercadores dos Países Baixos encontravam ali os da alta
Alemanha, da Boêmia e da Áustria. Trocavam sobretudo panos e fustões de
algodão alemães, os tecidos e panos dos Países Baixos, os vinhos da Alsácia e do
Reno, os arenques do Mar do Norte e do Báltico, os objetos metalúrgicos de
Nuremberg, o pastel-dos-tintureiros da Turíngia... Mas a ausência quase total dos
italianos diminuía inevitavelmente a importância desse encontro. Ainda mais
para o Leste, as feiras de Leipzig desenvolveram-se no século XV: era o grande
mercado das peles da Polônia e da Rússia; ali também encontrava-se prata
extraída de Schnee berg; e, finalmente, o comércio do livro ganhava uma
importância crescente a partir do fim do século. Citemos também a feira de Escâ
nia, principal mercado de arenque, estabelecido na pequena península que separa
o Sund do Báltico; ela declinou no século XV, quando os centros das zonas de
pescaria deslocaram-se para o Oeste.

Ao fim dessa resenha, é impossível não sentir forte impressão que nos faz
considerar as feiras como uma fase ultrapassada do comércio internacional:
errante de início, ele se fixa aos poucos; Bruges, Paris e Avignon são as grandes
sucessoras — permanentes — das feiras de Champagne. Aliás, a Itália, tão
evoluída, não possuía nenhuma grande feira. Evitemos certamente exagerar: fora
das regiões mais avançadas, as feiras conservavam uma função essencial.
Mesmo com o retorno à segurança, o crescimento e a regularização do comércio,
eram uma instituição condenada. Renascerão a partir do fim do século XIX, sob
a forma de feiras de amostras; Leipzig dará o exemplo, logo seguido por Lyon e
outras.

Progresso das associações (61, 71)

Apliquemo-nos, ao descrevê-las, em distinguir bem os aspectos legal e


econômico. Partamos de necessidades essenciais: um capitalista podia precisar
dos serviços de um mercador; inversamente um mercador podia buscar se
assegurar de um capital; por fim, um mercador, ao mesmo tempo ativo e dotado
de um capital, podia associar-se a outros que se encontravam na mesma situação,
visando alcançar objetivos que fossem inacessíveis para um só. As formas
jurídicas que permitem satisfazer a essas necessidades podiam variar; afinal,
podia até mesmo acontecer que um contrato de associação fosse simplesmente a
garantia de um empréstimo!

Foram em especial os italianos que desenvolveram os diversos tipos de


associações, e possuíram as mais poderosas. Todavia, na própria Itália, uma
distinção é fundamental: a associação podia ser concluída para o exercício do
comécio marítimo; em geral, era de duração mais curta, e agrupava menos
parceiros. Em compensação, para a prática do comércio terrestre formaram-se
sociedades muito mais estáveis, duráveis, e que reuniam um número bem maior
de associados.

1. As associações de comércio marítimo italiano desenvolveram-se


principalmente em Gênova e em Veneza:

— A “comenda” unia um capitalista, que se limitava a fornecer o capital, e


permanecia no porto (é o que os ingleses chamarão de sleeping partner); e um
mercador, que se contentava em viajar, ao risco do primeiro, em vender as
mercadorias compradas com esse capital, e em trazer o dinheiro proveniente das
vendas ou de outras mercadorias compradas com esse dinheiro. A associação é
firmada para uma única viagem, logo, para uma duração não fixada previamente
e que em geral era de vários meses. Depois de os lucros (ou prejuízos) serem
divididos no término, o mercador só recebia um quarto; três quartos eram para o
capitalista. Pode-se achar essa distribuição injusta, mas é preciso lembrar que os
capitais eram raros e os homens numerosos. Em geral o mercador era um jovem
ambicioso, que queria através disso constituir para si os primeiros fundos e
tornar-se um capitalista por sua vez. Assim, é preciso evitar a crença fácil de
grupos antagonistas: capitalistas exploradores e mercadores explorados.

— A “sociedade de mar” de Gênova, chamada collegantia em Veneza, era uma


associação entre várias pessoas que contribuíam ao mesmo tempo com capital e
seu trabalho, segundo diferentes fórmulas, aliás. Ou um dos parceiros fornecia os
dois terços do capital, e o mercador um terço; nesse caso, que se aproximava
muito da comenda, os lucros eram divididos pela metade. Ou então um dos
mercadores fornecia uma grande parte do capital e dirigia o que em Pisa se
chamava na época uma capitania. Ou a sociedade podia unir vários sócios todos
fornecendo capital, e um ou alguns — ou todos — trabalho.

De qualquer maneira, essas associações eram concluídas para uma única viagem,
o que se justifica muito bem pelas condições em que se praticava o comércio do
Levante; apesar do aparecimento dos fonduks [2] ou colônias, a estadia no
Império bizantino e no mundo muçulmano era proibida aos mercadores
ocidentais. Além disso, esse sistema de curto engajamento permitia repor logo o
dinheiro investido na associação. A responsabilidade era limitada apenas ao
capital desta; se houvesse perda, só ele era atingido, os outros bens dos parceiros
ficavam fora da questão. Esse método permitia tanto ao capitalista quanto ao
mercador dividir seus fundos e sua atividade entre várias associações. Em geral,
quando um navio partia, levando vários mercadores, um grande número de
contratos era concluído em alguns dias no estabelecimento do notário. Exemplo:
quando, em 30 de março de 1248, o “Saint-Esprit” preparava-se para zarpar
rumo à Síria, e o “Saint-Gilles” para a Sicília, 50 commende e duas sociedades
foram concluídas no estabelecimento do notário Giraud Amalric, de Marselha.

Em terra, houve por muito tempo associações temporárias desse tipo. ligadas a
um comércio ainda errante. Depois, sem desaparecer, cederam lugar a outros
tipos mais originais.

2. As “companhias" de comércio terrestre eram essencialmente associações


familiares. Suas características próprias são: a duração, que é sempre de alguns
anos; a responsabilidade ilimitada, todo o patrimônio encontra-se engajado nas
operações; por fim, eram sociedades em nome coletivo, que a morte de um dos
parceiros não dissolvia. Esse era, sem dúvida, o caso das companhias
placentianas e sienenses do século XIII, mal conhecidas devido à falta de
documentos. Conhecemos melhor Florença, onde nos interessam em especial as
companhias poderosas (e não devemos esquecer as outras). Elas, aliás,
evoluíram:
— O saudoso Yves Renouard deixou um cuidadoso estudo das sociedades
integradas da primeira metade do século XIV, como as dos Bardi e dos Peruzzi.
Durariam muito tempo: mais de cem anos para os Scali, mais de setenta para os
Bardi e Peruzzi. De fato, tratavam-se de companhias concluídas para períodos de
dois a doze anos, que se sucediam. No término de uma delas as contas eram
acertadas; formava-se uma nova companhia, em parte com associados novos,
com um capital que podia variar. A cada vez, era redigido um contrato, aberta
uma nova contabilidade. Entretanto, subsistia uma ligação de continuidade entre
essas companhias; a nova devia mandar liquidar os bens da antiga; para tanto,
abria-lhe uma conta em seu livro razão. Essa continuidade distinguia-se na
permanência da família e da razão social.

A base da sociedade era, portanto, antes de tudo, a família, que podia ser muito
numerosa: em sua última companhia, os Peruzzi ainda eram 11 associados (em
22) e 14 corretores, ou seja, 25 no total. O pessoal compreendia o diretor, que era
o membro mais antigo da família; garantia a companhia por seu prestígio, e em
geral só era substituído ao morrer. Havia entre 10 e 25 associados, que de hábito
tinham um papel na vida da sociedade. Não recebiam retribuição fixa. Mas suas
despesas profissionais lhes eram reembolsadas. Em geral todos eram iguais em
direitos. Havia ainda os corretores, que eram agentes regularmente remunerados.
Pelo menos 378 serviram aos Bardi entre 1318 e 1345. Também havia os
mensageiros; e os hospedeiros (hoteleiros) que podiam representar a companhia
nas cidades em que ela não dispunha de agente permanente. Ao todo. podia-se
chegar assim a um total de 500 pessoas nas companhias mais importantes. Em
geral, esses corretores tinham nascido na própria cidade. Seu valor intelectual e
profissional é admirável. Todos sabiam escrever, contar em todas as moedas e
falavam várias línguas. Os diretores de sucursais tinham de tomar decisões
importantes, e mantinham relações freqüentes com os soberanos. Um bom
exemplo é Francesco di Balduccio Pegolotti que, corretor dos Bardi, escreveu
um importante manual de comércio.

Havia dois tipos de capitais. O capital social era constituído pelas contribuições
dos associados. Em geral, estes também formavam uma "companhia para as
esmolas", dotada de um pequeno capital, cujos dividendos eram distribuídos
entre os pobres. Era o "corpo" da companhia. Mas havia também o
“sopracorpo", formado pelos depósitos, reembolsável à vista, e que rendia juros
fixos anuais de 6 a 10%. Sua importância e sua estabilidade deviam-se à
confiança inspirada pela companhia.

A sede social e os armazéns ficavam em Florença, no palácio escolhido pelos


associados. O número de sucursais variava, conforme o campo de ação das
companhias. Os Bardi e os Peruzzi tinham geralmente 16, estabelecidas nas
grandes praças da Itália e do exterior (Avignon, Barcelona, Paris, Bruges,
Londres, Chipre...).

ssas companhias, que nunca tinham se especializado, tratavam dos negócios


mais variados — comércios diversos, indústrias, banco, seguros... Serviam como
agentes financeiros para os soberanos a quem emprestavam dinheiro (o papel de
Biche e Mouche junto ao rei de França Filipe, o Belo, é célebre). Empregavam
os métodos já descritos, e para funcionar, deviam redigir uma vasta
correspondência, que era como o sangue para o organismo.

As falências que a maioria dessas companhias conheceu nos decênios dos


meados do século XIV explicam-se por uma conjuntura desfavorável. Mas elas
trouxeram à luz algumas de suas fraquezas: seria preciso mostrar-se mais
prudente nos empréstimos concedidos aos príncipes e às cidades; calcular
melhor a proporção observada entre “corpo” e “sopracorpo", para enfrentar os
pedidos maciços de reembolsos; a manutenção de uma rígida unidade da
companhia impedia limitar as dificuldades a essa ou aquela sucursal, seria
melhor descentralizar; e, finalmente, parecia necessário assegurar-se mais
claramente o apoio do poder. Essas lições resultaram na formação da companhia
descentralizada do século XV.

A transição já era sensível com Francesco Datini: sua firma era de fato um
conjunto de associações autônomas, uma por sucursal; tinha todas sob controle.
Mas o tipo perfeito foi realizado pelos Medici (311): em 1458, Cosme era sócio
de onze negócios diferentes — o banco, em Florença; duas manufaturas de
tecidos e uma de sedas, também em Florença; as ramificações exteriores
(Veneza, Milão, Avignon, Gênova, Bruges, Londres) e, por fim, uma associação
em vias de liquidação. Eram entidades legais distintas, como foi reconhecido por
um julgamento de 1455, o que não as impedia de chamarem-se entre si i nostri, e
de se favorecerem mutuamente. Uma distinção era feita entre os maggiori,
membros da família Medici, aos quais eram outorgados direitos superiores, e que
podiam dissolver as associações; e os governatori, que dirigiam as ramificações,
eram interessados nos lucros, mas ligados por instruções imperativas e sempre
revogáveis.

Fora da Itália, a organização era muito menos aperfeiçoada. Quanto à França,


sabe-se muito pouca coisa. Na Alemanha, no seio da Hansa (41) existiam dois
tipos: a sendeve (isto é, “bens enviados ao exterior”), que não era uma
verdadeira associação, já que o empresário continuava proprietário do capital ou
das mercadorias e que o representante encarregado de vendê-las tinha uma
remuneração fixa; a Kumpanie ou Wedderlegginge (isto é, “colocação de fundos
recíproca”) era uma verdadeira associação que agrupava entre duas e quatro
pessoas, baseando-se amiúde numa família. Na Alemanha meridional havia
maior influência italiana, mas não podemos julgar isso, pois nenhum contrato foi
conservado; existiam, no entanto, grandes companhias, como, no final do século
XV, a grande Companhia de Ravensburg, que durou cento e cinqüenta anos
(315). Por fim. temos dificuldades em relação à Inglaterra (69), uma vez que não
foi conservado nenhum contrato de sociedade, e de termos de trabalhar apenas
com o auxílio dos documentos jurídicos. Além disso, o vocabulário é muito
enganador: sob o nome de “servidor”, encarregado de vender as mercadorias,
podia se dissimular um mercador importante. Parece que se encontram aqui os
mesmos tipos de associações que em outros lugares. A companhia (joint stock)
permanente, firmada para vários anos, também pode ser encontrada ali: a dos
irmãos George e Richard Cely, por exemplo.

Resta ainda desculpar-me por ter tomado tanto tempo dos leitores com todas
essas inovações comerciais. Na verdade só interessam diretamente a um pequeno
número de pessoas—mesmo se sua existência tem conseqüências sobre a vida de
um maior número. Mas, com a imprensa e a transformação do navio, elas são
particularmente espetaculares.

[1] Personagem de O burguês gentil-homem, de Molière. (N.T.)

[2] Entreposto e hospedaria dos mercadores, em país muçulmano. (N.T.)


10. Transportar melhor

Para que serviría produzir mais — tanto gêneros agrícolas, quanto produtos
fabricados — se não fosse possível transportá-los melhor? Alguns dos
progressos da produção só podem se explicar, aliás, através do desenvolvimento
dos transportes. Assim, às vezes seremos obrigados a voltar atrás. Nessa
mutação econômica dos séculos XIV e XV, tudo se interliga. Mas tampouco
deixarei de evocar uma condição fundamental desses avanços: a melhor
circulação das notícias.

Observemos em primeiro lugar que, no século XIV, transporte e comércio


tornaram-se duas atividades distintas (23). Pelo menos para os grandes
mercadores, não é mais o tempo em que o próprio comerciante transportava seus
produtos e circulava com eles. Os transportadores podem, paralelamente, fazer
um pouco de comércio; mas são essencialmente transportadores, não traficantes.
O mercador comanda tudo de seu escritório. Que revolução!

Em terra (325)

Comecemos pelos transportes terrestres.

A infra-estrutura — como dizemos hoje — são essencialmente os problemas das


estradas e das pontes. Numa parte pelo menos da Europa, que corresponde ao
antigo Império Romano, há as velhas estradas romanas, bastante notáveis, com o
solo preparado sob a estrada, uma drenagem pelas valas laterais, e na superfície
grandes lajes. Sua construção foi possível devido à autoridade do Estado romano
e à existência da escravidão. Sua conservação exigia uma manutenção
importante, que o desaparecimento dessas condições favoráveis tornou, na maior
parte das vezes, impossível. Por outro lado, eram sobretudo estradas estratégicas,
que seguiam direto sem demorar-se a servir as localidades, e, portanto, estradas
de planalto. Assim mesmo, esse "esqueleto” foi relativamente útil, sobretudo na
Itália, onde a rede era particularmente densa, e na Inglaterra, em que foi possível
ao Estado normando mantê-la muito bem. Também nesses países, mas
especialmente na França e na Alemanha, foi necessário construir estradas novas.
Na França, a rede romana estava centrada em Lyon, e novos traçados, que
partiam entre outros lugares de Paris, tiveram de ser projetados. Da Alemanha,
uma grande parte encontrava-se fora do antigo Império Romano. Em geral,
pode-se dizer que eram estradas simples, adaptadas à circulação de bestas de
carga. De preferência, pistas. Ainda assim havia exceções: algumas estradas
calçadas, suportavam carroças mais pesadas, em grandes itinerários. Também
eram estradas em curva, seguindo na medida do possível os vales. Eram muito
numerosas para um mesmo itinerário: havia quatro de Paris a Lyon. Um
transportador podia escolher uma delas. Pode-se falar de um verdadeiro
emaranhado de estradas.

As pontes constituíam problemas particulares. Sua construção foi por muito


tempo uma obra piedosa, entregue a confrarias. No século XIV, laicizou-se. As
enchentes e as guerras (que provocavam destrui ções a fim de interromper a
estrada para impedir a passagem a um exército) acarretam muitas perdas. Mas a
reconstrução ou apenas a manutenção foram deixadas a cargo das iniciativas
locais, cuja eficácia variava muito. As ligações através dos Alpes foram bastante
melhoradas no século XVIII pela criação de uma ponte suspensa que atravessava
as gargantas do Reuss em direção a Saint-Gothard e pela arrumação de um
desfiladeiro na estrada do Brenner. Pode-se dizer que a fortuna de Milão em
parte dependeu disso. O túnel de estrada mais antigo, o do Monte Viso, com o
comprimento de cerca de cem metros, largura de dois metros e meio, será
construído pelo marquês de Saluces entre 1478 e 1480, com a finalidade de
facilitar o transporte do sal de Provença.

O principal meio de transporte terrestre continua sendo sobretudo as caravanas


de bestas de carga, principalmente os mulos. É um animal de difícil criação —
cujo crescimento nos séculos XIV e XV é, aliás, pouco conhecido — e que pode
transportar até 175 quilos. A título de exemplo: entre Gênova e Milão, no século
XV, ocorreu cerca de 60 a 70 mil partidas de mulos por ano em cada sentido
(quase todos os povoados dos Apeninos forneciam arrieiros e bestas); em
Jougne, no Jura, pedágio bem conhecido graças às contas que chegaram às
nossas mãos, a circulação era feita, até o século XV, quase que unicamente por
caravanas de cavalos e de mulos; do mesmo modo, por volta do fim do século
XV, o tráfico do sal de Provença pelo Monte Viso em direção ao Piemonte exigia
mais de 21.000 passagens de bestas por ano (332).

Aloys Schulte (78) obteve nos Arquivos da Câmara de Comércio de Milão um


documento muito sugestivo — publicado por ele — em que são enumeradas as
cargas levadas de Constança a Bellinzona, prevendo o transporte, entre as duas
cidades, dos fardos de lã vindos da Inglaterra, destinados finalmente a Milão.
Trata-se de uma pesquisa feita por volta de 1390 por aquela Câmara de
Comércio e que se refere à parte evidentemente mais delicada desse trajeto.
Vamos resumir os dados.

De Constança a Rheineck, a pista ladeia as margens do lago; os mulos seguiam-


na tranqüilamente; no máximo, havia alguns pedágios para pagar. Depois
tomavam a estrada do Lukmanier, mais longa e difícil do que a do Saint-
Gothard, mas era de domínio da cidade de Lucerna, e Milão entendia-se mal
com Lucerna. Em Rheineck fazia-se um primeiro descarregamento. O trajeto
prosseguia até Coi re, ao longo do vale do Reno, na margem esquerda em
primeiro lugar, com paradas em Blatten e Saint-Pierre — em dois dias.
Atravessava-se o rio em Werdenberg, e os mulos caminhavam até Schaan. Nova
parada. O trajeto continuava então na margem direita, com pausas noturnas em
Balzers, Mayenfeld, Zizers. Em Coire, os fardos eram postos no chão, pesados e
novamente repartidos entre os mulos, que retomavam um caminho doravante
mais montanhoso, até Trins, depois Laax — que se alcançava por um
desfiladeiro de 1.150 metros, afastando-se do vale que nesse trecho tornava-se
estreito. Por Ilanz, a caravana descia mais uma vez ao vale, depois alcançava
Ruis — e de lá, em três dias, Caraccia. As dificuldades multiplicavam-se:
seguia-se bem o vale do Reno até Disentis, depois iniciava-se a verdadeira
montanha, com um desfiladeiro de 1.916 metros; eram necessárias não menos de
três paradas para esses 50 quilômetros, sendo a terceira em Casaccia. A partir de
então, a descida era muito vertiginosa (mas os mulos, como se sabe, não têm
vertigem): faltavam apenas 300 metros para Biasca! Era o Vale Santa Maria, e a
estrada continuava, mais fácil daí por diante, até Bellinzona. Ao todo,
percorriam-se aproximadamente 322 quilômetros em 20 dias, ou seja, uma
média de cerca de 16 quilômetros por dia.

E as despesas? Em primeiro lugar, as do transporte propriamente dito. Dessa


seca contabilidade ressalta a diferença entre dois mundos econômicos e mentais.
Na vertente germano-suíça, em virtude do antigo privilégio da Rodfuhr, que
obrigava o viajante a descarregar seus fardos em cada parada, cada dia era
contado à parte. A partir de Trins, na vertente italiana, o pagamento era feito de
maneira global, para vários dias.

Era preciso acrescentar as despesas de estadia e os pedágios; também aqui


evidencia-se a diferença: para a estadia, 2 deniers e 1/2 por parada, até Ruis;
além. apenas 2 deniers. Onze pedágios a pagar ao todo, o último em Ilanz, e o de
Constança representava cerca da metade de seu total. O dos gastos calcula-se
facilmente: 7 libras imperiais 10s. 6 deniers por fardo, dos quais 15 1. 1s por
carga — o que, a 30 soldos o florim, perfazia aproximadamente 10 florins a
carga. Era muito, menos sem dúvida do que a longínqua circunave gação
atlântica.

Em todo caso, essa predominância das bestas de carga reduz a importância dos
diversos progressos técnicos realizados nos transportes terrestres (328). Havia
em primeiro lugar os carros, que serviam sobretudo em alguns itinerários,
seguindo estradas relativamente boas. Lembro brevemente que, numa época
anterior, propagou-se a coleira de armação rígida, mantida sobre as espáduas do
animal, o que permitiu um esforço maior dos cavalos (aliás, melhor alimentados
e mais vigorosos), bem como a atrelagem em fila. Tornou-se possível puxar de 2
a 3 toneladas, pelo menos em percursos planos. No século XIV propagou-se a
boléia, peça ligada ao carro, à qual se prendem os tirantes, menos rígidos que os
varais. Havia carros de diversos tipos, com duas ou quatro rodas, puxadas por
um número variável de cavalos. E às vezes, no Midi da França, para os percursos
de planície, atestam-se carros de bois emparelhados.

Passemos aos transportes por água. Algumas observações preliminares são


indispensáveis.

Na água (324. 329)

É preciso insistir sobre a ambigüidade da noção de tonelagem. Esta baseava-se,


nos séculos XIV e XV, no número de tonéis carregados no navio. Hoje, avalia-se
em toneladas o volume do deslocamento de água correspondente à parte imersa
do navio. Não é exatamente a mesma coisa, e essa diferença torna difícil a
utilização dos números de tonelagem medievais.

Em segundo lugar, é preciso lembrar que, no século XIII, a genera lização do


leme de cadaste, que substituía o pesado remo situado na popa do navio,
permitiu dirigir e, portanto, construir navios muito maiores. Pode-se acompanhar
essa difusão observando os selos das cidades costeiras — até certo ponto pelo
menos, pois os navios nem sempre são representados ali com exatidão.

Por fim, é preciso notar que a construção dos navios de comércio não obedecia
apenas à preocupação de aumentar a capacidade de transporte. Buscava-se
também a velocidade, pela forma da carena (parte imersa do casco), pelo modo
da enxárcia, pela procura de outras forças de propulsão além do vento. Visava-se
também à estabilidade, que era assegurada por um centro de gravidade situado
na parte baixa. Mas, na época, o balanço era duro; também tentava-se atenuá-lo
através de um estudo cuidadoso das formas.
Os historiadores geralmente distinguem a navegação mediterrâ nica, em parte a
remos (barcas, galés), da navegação oceânica, unicamente à vela. Entretanto,
sobretudo a partir do século XIII, houve numerosas trocas entre as duas zonas:
assim os bascos introduziram a nave no Mediterrâneo; no século XV, os velames
mediterrânicos fragmentados propagam-se no Atlântico. Há, portanto, uma certa
unificação.

Dito isso. citemos os principais tipos de navios:

1. A galé. Em Veneza (327), em Pisa e em Florença, a partir do século XV, havia:


A galé “sutil”, navio de guerra de 125 a 130 metros de comprimento, com
largura máxima de cinco metros, tendo dois metros de calado. Delgada,
manobrava bem, podia bater com o espo rão no inimigo, mas tinha uma
capacidade de carga reduzida. Também havia a grande galé, comprimento de
cerca de 130 metros, largura de 6,30 metros, com três metros de calado. Seu
perfil era, portanto, mais redondo, oferecia mais espaço para as mercadorias e
resistia melhor às tempestades. Possuía dois ou três mastros, em vez de um ou
dois.

Essas galés eram trirremes, isto é, em cada banco havia três homens, cada um
munido de um remo. Os bancos eram dispostos obliquamente, e os remos eram
de comprimentos diferentes: 9,50 metros a 10,70 metros. Pesavam até 50 quilos.
Havia de cada lado 25 a 28 bancos, tendo, ao todo, entre 150 e 168 remadores.
Mas os remos só eram utilizados para entrar ou sair dos portos, o que exigia
manobras precisas; ou então em calmaria, ou para avançar contra o vento. Em
geral, apenas um terço dos remadores trabalhava ao mesmo tempo.

Os remadores via de regra eram homens livres, que se armavam para resistir aos
ataques eventuais; eram relativamente bem pagos. Entretanto, sua vida era muito
dura. devido ao esforço que deviam fazer e à obrigação que tinham de
permanecer em seu banco (para comer ou dormir, até mesmo durante as
tempestades).

Havia, além disso, entre 50 a 70 oficiais e marujos. Podia-se carregar bombardas


para a defesa eventual. O lugar das mercadorias era, pois, limitado: 150 tonéis no
máximo. Portanto, esse transporte só podia convir a produtos caros e pouco
volumosos. Também existiam galés menores, em numerosos portos do
Mediterrâneo, como Marselha. Essas galés não circulavam apenas no
Mediterrâneo. Algumas iam a Flandres ou à Inglaterra.

Conservamos o diário de bordo de um certo Luca di Maso degli Albizzi. escrito


em 1429-1430. durante a viagem de ida e volta que fez a bordo de uma galé de
Porto Pisano (anteporto de Pisa) a Sluis e Southampton (328 bis). Pertencia à
celebre família dos Albizzi e tinha sido nomeado capitão do navio pela senhoria
florentina. Escrevia de Villajoyosa (porto situado um pouco ao Norte de
Alicante, na Espanha) para os cônsules do mar de Florença, dos quais dependia:
“No dia 29 do último mês (setembro de 1429), escrevi de Barcelona a Vossa
Magnificência a respeito de tudo o que acontecera durante nossa viagem e que
era digno de menção... Estive em Maiorca e dali retornei a Java, pela graça de
Deus, cheguei lá no dia 7 desse mês ao amanhecer. Depois soube que a outra
galé estava em Denia, e ainda não tinha chegado a Java como havíamos
combinado porque não tinha acabado seu carregamento. Enviei logo um
mensageiro, e na mesma noite a galé chegou, com uma carga que pegara em
Valença e Denia, tão cheia que não podia pegar nada mais. Até hoje, temos a
metade da carga que pudemos adquirir em nossas diversas escalas, e espero que
possamos completá-la. Assim, graças a Deus, as galés terão cumprido seu dever
na viagem de ida, e carregadas de boas cargas. Entretanto, porque esperávamos
encontrar aqui 3.000 cântaros de frutas, não quisemos carregar mais em
Barcelona; quando chegamos aqui, só encontramos prontos dois terços das frutas
que esperávamos, tanto que foi necessário comprar de outros, a uma tarifa de
frete de 3 soidos 1/2 por cântaro até Flandres. Espero carregar hoje tanto quanto
as galés serão capazes, depois retomaremos nosso caminho se Deus quiser.
Penso que seria bom para nós fazermos escala em Alicante e em Cartagena,
porque pode haver cochinilha, que para nós seria um bom frete. Se tivermos
lugar, carregaremos...”
Quantas incertezas e esperanças! Aliás, quando se fala tanto de Deus, não é bom
sinal. De fato as duas galés levaram 83 dias para alcançar Sluis, e depois o Porto
Pisano; nove escalas e o mau tempo reduziram a navegação efetiva a 39% desse
tempo. A volta, com apenas três paradas, foi feita em 32 dias. A sorte de certo
não estava do lado deles.

2. A Kogge hanseática era exatamente o oposto (41). Era um navio redondo, que
manobrava apenas à vela. Desenvolvida a partir de pequenos navios, tinha uma
capacidade de 200 tonéis no final do século XII. O modelo foi introduzido no
Mediterrâneo no final do século XIII, e deu origem à “nave”. Uma maquete foi
construída em nossos dias, segundo a representação dada em 1350 pelo selo de
Elbing. Esse navio media 29 metros de comprimento e 7 de largura. Seus
mastros, em cuja confecção às vezes utilizavam-se dois fustes de árvores, tinham
uma altura entre 16 e 24 metros. Grandes velas quadradas ofereciam-lhe muita
superfície de velame. No fim do século XIV, esse navio fundiu-se com o tipo do
hulk (ou urca), navio de fundo plano e com ventre amplo, o que permitia ao
menos dobrar a capacidade de carga (mais de 430 tonéis). Representa o selo de
Gdansk em 1400.

3. Chegamos naturalmente à nave, já que, como acabo de dizer, ela teve sua
origem a partir dele. É encontrada em Veneza, em Pisa e em Gênova — porto em
que era o único navio utilizado. Era um navio muito largo (15 a 20 metros, por
50 de comprimento), com as popas redondas. Seus costados eram muito altos;
chegou-se a escrever: “a embarcação apresenta-se sobre a água como uma
cidadela — com importantes castelos de proa e de popa”. Era munida de três
mastros, que podiam medir até 45 metros de altura. De grande capacidade (entre
500 e 1.000 tonéis), era um navio maciço, mas pouco manejável; poucos portos
podiam recebê-lo, logo navegava pelo caminho mais direto, evitando escalas, ao
contrário das galés, que deviam parar com muita freqüência para se abastecer.
Convinha ao transporte de produtos pesados, de baixo valor.

Também encontravam-se naves em outros portos, como em Marselha. Havia


muitas variedades, mas esses navios eram muito menores. As naves redondas do
Atlântico transportavam entre 100 e 200 tonéis (até menos de 100, como as
naves bretãs). Essa tonelagem aumentou no século XV: as naves holandesas
transportavam entre 200 e 300 tonéis. Eram navios de rápido carregamento, que
penetravam por toda parte e permitiam dividir os riscos.

Para terminar, devo insistir nos consideráveis progressos alcançados, sobretudo


no século XV. Aprende-se a construir melhor os cascos, não mais a clin
(pranchas imbricadas), mas a carvel (pranchas justapostas), o que proporcionava
cascos lisos, que apresentavam menor resistência ao avanço. Se pensarmos nas
pesquisas atuais de aerodinâmica! Aprende-se também a fracionar melhor o
velame: foi o caso da caravela, no início simples barco de pesca português. No
final do século XV, tinha três velas “latinas” (triangulares), cada vez maiores em
direção da popa; na proa, um quarto mastro arvorava uma vela quadrada e um
trinquet (pequena vela triangular de proa). A supressão do castelo de proa
permitiu aliviar a marcha. Cristóvão Colombo atravessou o Atlântico com essas
caravelas.

A técnica de navegação, entretanto, ainda continuava sumária. Preferia-se a


cabotagem costeira. Os portulanos catalães ou portugueses representavam
principalmente as costas e apenas indicavam o ângulo que devia formar com o
eixo Norte-Sul da rota a seguir, e a distância a ser percorrida nessa rota. Se o
navio se afastasse dessa rota, por uma tempestade por exemplo, era muito difícil
reencontrá-la. O balanço ainda tornava impossível determinar coordenadas com
o auxílio do astrolábio. No século XV ousou-se ir da Espanha à Bretanha em
linha reta, mas os progressos reais da navegação datam apenas do fim desse
século.

Ainda seria preciso evocar os estudos de infra-estrutura. Nenhum estudo de


conjunto foi consagrado aos portos, que, no entanto, colocavam grandes
problemas de planificação. Limitar-me-ei a alguns exemplos. Pisa, em primeiro
lugar: Florença, em busca da costa, apoderou-se dela em 1406. Mas o mar já se
afastara 6 quilômetros desde a época romana. O anteporto de Porto Pisano, a 16
quilômetros ao Sul da embocadura do Arno, assoreava-se ele mesmo. Buscou-se
então desenvolver Livorno, mais longe ainda, contudo era muito insalubre (e
continuaria sendo até que a malária fosse vencida).

Um segundo exemplo é Bruges. O Zwin, golfo nascido de uma invasão marinha


do século V, entulhava-se pouco a pouco. Foi preciso criar sucessivamente cinco
anteportos: como Damme no fim do século XII, Sluis no fim do século XIII. À
procura do mar...

Também era necessário adaptar os portos ao desenvolvimento da tonelagem que


acabamos de constatar. Não sabemos bem o que foi feito. Seguramente, as
grandes naves genovesas só podiam entrar em alguns portos: da própria Gênova,
mas também Savona, Nápoles, Maiorca, Quios. Em outros lugares, era preciso
parar fora do porto e baldear homens e mercadorias.

O século XV ainda foi uma época de melhoramento dos rios e canais: na França,
o leito do Loire foi limpo, seu curso retificado em certos lugares, construíram-se
molhes para fixá-lo e foram realizados trabalhos para tornar seus afluentes
navegáveis. A partir de 1394, as eclusas foram aperfeiçoadas, como no canal de
Niort ao oceano. Na Holanda, por volta de 1408, apareceram os primeiros
moinhos de vento, que esgotavam a água e permitiam estabelecer todo um
sistema complementar de dragagem e de canais. Mas os maiores progressos
foram realizados na Itália do Norte. O Pó foi regularizado com a derivação de
vários rios. A partir de 1457, o Martesana foi desviado, para levar água a Milão,
depois quis-se tornar esse canal navegável, para evitar as curvas do Adda. Um
certo Leonardo da Vinci trabalhou nisso...

A terra ou a água?
Coloquemo-nos no espírito de um mercador daqueles tempos. Ao ter de escolher
entre um itinerário terrestre e um itinerário por água, os elementos de sua
escolha eram: a velocidade, a segurança e o preço de custo.

A velocidade? Os autores contemporâneos assinalam sobretudo os casos


extraordinários, e temos poucas informações sobre as condições médias. Não se
deve apenas considerar as possibilidades técnicas: na terra, era preciso parar à
noite (daí o grande número de hospedarias, até nos pequenos povoados); as
caravanas percorriam até 30 ou 40 quilômetros por dia, em terreno médio. No
mar, onde não havia a mesma necessidade, podia-se percorrer 120 quilômetros
em 24 horas. Mas existiam também muitas necessidades de abastecimento ou
considerações econômicas: datas das feiras ou da chegada das mercadorias para
carregar... Podia-se fazer desvios para completar um carregamento.

Havia, por fim, a influência do tempo: ventos e tempestades eram


particularmente temíveis no mar. De preferência, evitava-se o inverno para a
navegação. Assim, em Bordeaux havia dois grandes comboios para a Inglaterra,
um na primavera e outro no outono. Contudo, não exageremos: na verdade, o
mar não “se fechava” realmente no inverno. No máximo aumentava o risco de
irregularidade, sobretudo para os pequenos navios. Em Veneza, as galés
regressavam em novembro para não ter de lutar contra os ventos do Norte no
Adriático, e partiam novamente para o Sul em janeiro-fevereiro. Em terra,
também havia uma influência do inverno, seja para a travessia das montanhas,
seja devido ao congelamento dos rios no Norte. Aqui tampouco deve-se
dramatizar: uma das feiras de Gênova realizava-se na Epifania; mesmo por
ocasião dos anos nevosos (como em 1491), os mercadores chegavam lá, mesmo
que tivessem que ir em trenós.

Tentemos, assim mesmo, chegar a algumas conclusões. As viagens por terra em


geral eram mais lentas, pelo menos em princípio, sobretudo se o caminho a
percorrer era acidentado: para uma caravana, era preciso contar 24 dias de
Toulouse a Paris, 12 a 20 dias de Augs-burgo a Veneza. As viagens por mar
podiam ser muito mais rápidas: no Atlântico, os navios podiam, em 10 dias
aproximadamente, ligar Londres a Bordeaux, ou Portugal à Antuérpia (por volta
de 1.200 quilômetros). Os arquivos Datini permitiram calcular uma duração
média de 16 dias de Southampton às Baleares, de três dias de Maiorca a Gênova
ou Pisa, entre dois e três dias de Maiorca a Túnis ou Argel. O infeliz exemplo de
Luca di Maso degli Albizzi provou-nos que OUTONO DA IDADE MÉDIA

também podiam ser mais irregulares; do mesmo modo, entre Veneza e


Alexandria, o prazo podia variar de 22 a 82 dias.

Tratemos, então, do segundo elemento do problema: a segurança. No mar, havia


riscos de naufrágio, que, aliás, não se devem exagerar: os naufrágios eram muito
raros para os bons navios, salvo em casos de imprudência: em 1458, uma galé
"sutil" acompanhando as galés mercantes de Florença em direção a Flandres
soçobrou na baía de Biscaia. Os riscos eram maiores para os pequenos navios, e
sobretudo nas proximidades das costas, devido aos recifes: em Gênova, isso era
calculado para se fazer o seguro, baseando-se na perda de um pequeno navio por
ano, em média, no século XV. Mais graves eram o corso e a pirataria. No
Mediterrâneo havia o corso, isto é, a guerra no mar, como entre genoveses e
catalães, e mesmo navios mercantes dedicavam-se a isso. Também havia a
pirataria propriamente dita. Era praticada por pessoas pobres em algumas costas
consideradas perigosas: como as de Provença, onde se emboscava o tráfico do
trigo para Gênova, ou as da Córsega e da Sardenha, onde se fazia o mesmo para
o comércio entre Gênova e a Sicília. Também havia piratas profissionais, que
podiam ser senhores privados de recursos. Como o doge-arcebispo de Gênova,
Paolo Fregoso, que, expulso de sua cidade no final do século XV, partiu com
quatro navios e, a partir da Córsega, infestou o mar durante vários meses.
Também podem ser citados os Gattilusu, patrões de Mitilene, privados de seus
recursos ordinários devido à queda de Constantinopla. No Atlântico, havia
sobretudo o corso, ligado à Guerra dos Cem Anos: os soberanos tentaram
atenuar seus efeitos, fazendo tréguas, concedendo salvo-condutos. Mesmo assim
era um embaraço real: Michel Mollat chegou a ver nisso a causa essencial da
lentidão da retomada das relações anglo-normandas, que se fez principalmente
depois de 1475.

Mas era possível premunir-se contra esses riscos através da formação de


comboios, acompanhados de navios de guerra. Em geral isso era muito eficaz.
Federigo Melis (61) citou o caso, bastante comum, de um navio que no começo
do século XV completou quinze vezes sem empecilho o trajeto Pisa-Sluis. A
captura da frota da Baía, em 1449, já citada, é um fato único. Eram sobretudo os
pequenos navios isolados que corriam riscos, e principalmente perto das costas.

Em terra, também havia insegurança devido à guerra e à pilhagem, sobretudo na


Alemanha em razão da debilidade do poder central, e na França por causa da
Guerra dos Cem Anos e das grandes companhias que saqueavam o país mesmo
em tempos de paz. Froissart, já dissemos, narrou as lembranças de Aimerigot
Marches, evocando com nostalgia os bons e velhos tempos em que saqueava os
mercadores. Aqui, também, havia meios de luta: formar caravanas (as cidades
alemãs constituíam-nas, com homens armados, o que, aliás, lhes custava caro);
entender-se com os bandos de salteadores, pagando o que na França era chamado
“pâtis”; mudar de caminho. Contudo, havia zonas mais seguras.

Podemos comparar os dois casos? Foi lançada a idéia de fazê-lo levando-se em


conta as tarifas de seguro. Não esqueçamos, entretanto, que o seguro marítimo
foi mais precoce que o seguro terrestre. Isso não quer dizer que a via marítima
era menos segura: o seguro evita cobrir riscos muito grandes, e esse
desenvolvimento não teria acontecido se o perigo tivesse sido muito grande; mas
o seguro marítimo desenvolveu-se antes porque cobria investimentos maiores.
Em meados do século XV, encontramos prêmios de seguro equivalentes por terra
e por mar, da ordem de 3% de Bolonha ou Florença às feiras de Gênova, ou da
Itália até Alexandria, no Egito. Logo, pode-se concluir que a insegurança era
mais ou menos da mesma ordem tanto por mar quanto por terra, e não se deve
exagerar. Pode-se dizer sobretudo que os neutros acharam-se favorecidos nos
dois casos: arrieiros bearneses entre Toulouse e Bayonne, navios bascos no
Mediterrâneo, navios bretões (desde que se tornaram neutros) no Atlântico, etc.

Resta um último elemento: o preço de custo. Ele dependia de vários fatores:


1. O rendimento dos meios de transporte — e, portanto, sua amortização —,
segundo o qual, em parte, o transportador calculava seu preço. No mar, graças
aos arquivos Datini, pode-se seguir o ritmo de navegação de navios em alguns
grandes itinerários: em treze anos, de 1394 a 1407, a nave de Pado Italiano (750
tonéis) completou quinze vezes o trajeto Itália-Southampton e Bruges (mais uma
viagem para Quios); em dezessete anos, de 1393 a 1409, a nave de Lorenzo
Bandi nella fez onze vezes esse mesmo trajeto, e doze vezes a rota da Itália no
Oriente. Houve com certeza um esforço para utilização racional: os gráficos de
“vidas de navios” apresentados por Jacques Heers no 7. Encontro de História
Marítima testemunham isso de modo eloqüente.

2. Ao calcular o preço que iria pedir aos mercadores, o transportador também


devia levar em conta o problema dos fretes de retorno, a plena utilização de seu
meio de transporte em toda a extensão do trajeto, o que podia fazer com que o
itinerário ficasse mais longo. Assim, fazia-se a combinação de tráficos
triangulares: os navios que vinham da Itália iam descarregar em Sluis, depois
receber carga em Southampton. No Mediterrâneo, deve-se observar os tráficos
que se organizavam em torno de Ibiza, para onde se transportava o trigo e de
onde se levava o sal; ou em torno de Quios, associado com Alexandria, onde se
iam buscar mercadorias. Entre os produtos a transportar, procurava-se lastro,
matérias pesadas amontoadas no fundo do navio para abaixar o centro de
gravidade e torná-lo mais estável, em especial sal e madeira.

3. Havia, sobretudo em terra e nos rios, o problema das taxas e pedágios. É


preciso, aliás, distinguir as taxas ou os leudes nos portos e nas cidades dos
pedágios cobrados nas estradas e nos rios. Estes tinham-se multiplicado: no
Reno havia 19 pedágios no final do século XII, mais de 35 no final do século
XIII, cerca de 50 no final do século XIV, mais de 60 no final do século XV; no
Sena, no final do século XV, os pedágios chegavam a mais da metade do preço
de venda; no Garonne, no século XV, entre Toulouse e Bordeaux, havia mais de
30 pedágios. Mesmo assim não se deve exagerar sua influência. Os soberanos
opunham-se à sua proliferação. Além disso, amiúde era possível escolher entre
vários caminhos. Assim, de Toulouse ao oceano, o Garonne estava quase
abandonado; existia uma variante por Condom e Nérac; e havia o caminho
Toulouse-Bayonne por Saint-Gaudens e Pau.
4. Nos grandes itinerários marítimos, houve uma política de diferenciação dos
fretes: Pegolotti ainda indica tarifas uniformes, que não levavam em conta o
valor das mercadorias (299); ora, com base nos arquivos Datini, Federigo Melis
(61) mostrou que, sob a influência dos mercadores, uma discriminação das
tarifas foi obtida no final do século XIV — no trajeto da Itália a Bruges, para
100 libras (peso) de Florença, o frete era de 5 soidos para o pastel-dos-
tintureiros, 6 para o alume, 19 para a pimenta, 32 para cochinilha, 41 para o
açafrão. Assim, os produtos, mesmo pesados, raramente suportavam um frete
superior a 10% do preço de compra: eram 2,8% para o estanho, por volta de 4%
para a lã, 8% para o alume e o pastel-dos-tintureiros. Pode-se ver aí o sinal de
um estado de espírito capitalista, que favorecia o transporte dos produtos
pesados necessários à indústria (ou para o abastecimento).

5. Houve também, em menor proporção, um esforço de racionalização em


terra. No século XIV, no trajeto da Itália a Flandres pelos Alpes, com escala em
Gênova multiplicam-se albergues e entrepostos; os pedágios são organizados de
maneira mais racional; por volta de 1460, um grupo genovês de homens de
negócios resolveu não pagar aos arrieiros dos Apeninos senão uma determinada
tarifa por fardo de pastel-dos-tintureiros. A partir do século XV há uma
organização das estradas do sal: como em Poitou; em Franche-Comté um
“mestre dos caminhos” instalado em Salins, em 1412, zela pela manutenção das
estradas, pela conservação das estalagens de etapa e pelas reservas de forragem;
na Lombardia, Francisco Sforza organizava a estrada Gênova-Milão. O
obstáculo continuava sendo a multiplicidade das autoridades e dos interesses.
Nas estradas alpestres, acabamos de ver, subsistia o sistema da “Rodfuhr", em
virtude do qual as mercadorias deviam ser descarregadas e recarregadas sobre
outros animais, a cada pousada de etapa.

Em geral, portanto, a via terrestre saía muito mais cara. No século XV, o fardo de
pastel-dos-tintureiros custava tanto para ir por terra de Alessandria (Itália) ou
Voghera a Gênova (80 e 100 quilômetros), quanto por mar de Gênova à
Inglaterra. O conde de Hainaut, que devia mandar trazer seus vinhos por terra,
pagava no século XIV, pelos vinhos de “França" (Ile-de-France) e do Laonnais,
um frete que representava entre 35 a 40% do preço (mais 12 a 20% de taxas); no
século XV, para os vinhos de Borgonha, 61% (mais 11% de despesas diversas).
No Norte, segundo Michael Postan, o transporte de um tonel de vinho gascão até
Hull não custava sequer 10% do preço de compra em Bordeaux; o da lã, de
Londres a Calais, incluídas as despesas de comboio, saía por menos de 2% do
preço de custo em Londres.

Havia, na medida do possível, especialização das vias: o mar servia sobretudo


para os grandes tráficos, os produtos baratos; a via terrestre guardava a
predominância para os homens (assim, os mercadores italianos cavalgavam com
freqüência de Flandres por Avignon), para os produtos leves e caros, os metais
preciosos. Ora, uma real concorrência podia existir; assim a organização da via
marítima da Itália até Flandres no final do século XIII é uma das razões do
declínio das feiras de Champagne; ainda no começo do século XIV, a lã muitas
vezes viajava por terra, a da Inglaterra chegava a Gênova por Milão; vimos de
que maneira, no século XV, acontece o contrário.

Entretanto, esses fatores de rentabilidade não eram os únicos que contavam: em


caso de penúria, mandava-se trazer trigo de qualquer maneira; podia-se também
preferir o transporte terrestre devido aos riscos de umidade, que podia deteriorar
a lã, os tecidos, os couros.

Antes das mídias (330)

Chegamos a uma última questão, cuja importância é indiscutível: a da circulação


das notícias. Era feita de modos muito diversos, amiú-de por viajantes
(mercadores, peregrinos, jograis) aos quais se confiava uma carta: portanto, era
lenta. As notícias oficiais, levadas por correio, que às vezes cavalgava noite e
dia, circulavam mais rápido: assim, na França, Carlos VII proclamou-se rei em
Paris no dia 30 de outubro de 1422; a notícia foi conhecida em Toulouse em 13
de novembro, quinze dias mais tarde! Mesmo assim era muito.

Ora, os grandes mercadores, especialmente os italianos, tinham necessidade de


saber muito depressa as notícias relacionadas aos soberanos, suas guerras (ainda
mais se lhes haviam concedido empréstimo); todas as que podiam fazer
pressentir uma mudança monetária (principalmente se especulavam com as
moedas); e todas as informações de interesse comercial (penúrias, procura de
alguma mercadoria...). De maneira geral, o desenvolvimento da difusão das
notícias era indispensável para o desenvolvimento do comércio internacional.

Foram fundadas então organizações postais privadas. No século XIII, havia


correios coletivos regulares entre a Itália e as feiras de Champagne. De Florença,
a Arte di Calimala encaminhava um correio em cada sentido no início e no final
de cada uma das seis grandes feiras. Siena fazia o mesmo. Mas esse sistema
desapareceu no século XIV com o declínio das feiras.

As grandes companhias do século XIV empregavam correios por corrida, e não


por ano. Mas, por si mesmo, esses correios especializavam-se no serviço de
determinada companhia, em cujos hotéis pernoitavam nas suas viagens. Em
1357, dezessete companhias flo-rentinas fundaram a “Scarsella dei Mercanti
Fiorentini” que mantinha, toda semana, um correio comum e nos dois sentidos
com Avig non, via Gênova. Foi a primeira companhia postal conhecida, cujos
estatutos foram conservados graças a um feliz acaso. Também encarregava-se,
contra o pagamento de uma taxa, das cartas que lhe eram confiadas pelo povo.

Havia também organizações urbanas. No século XV, o consulado dos


mercadores de Barcelona organizou um serviço para Bruges: dois cavaleiros,
cruzando-se na estrada, chegavam a Barcelona e a Bruges no final de cada mês,
permaneciam ali seis dias, depois partiam novamente. Muitas outras cidades
tinham correios a seu serviço; Toulouse, Montpellier, Dijon, etc. Mas seu raio de
ação era muito limitado. Em Veneza, o Grande Conselho recebia numerosas
notícias pelos mercadores, pelos patrões de navios. Mas aqui não havia grandes
companhias com sucursais múltiplas. No início de século XV, a Senhoria decidiu
enviar representantes permanentes junto aos grandes poderes (papa, imperador,
rei de França, etc.). São os primeiros embaixadores, que expediam
correspondências. Muitas foram guardadas e constituem documentos de grande
importância.

Por uma transição imperceptível, chegamos às organizações oficiais. Todos os


soberanos possuíam correios a cavalo. No século XIV, os papas de Avignon
colocavam no seu comando um “mestre dos correios”. Esse sistema foi imitado
pelo rei de Aragão, depois por Luís XI na França. No Império, no final do século
XV, uma rede postal foi organizada pelos senhores de Tour e Taxis (que eram de
origem milanesa). Mas em princípio, essas organizações não estavam à
disposição dos mercadores. Mesmo os soberanos reconheciam a superioridade
das organizações privadas: assim, em 1348, o papa Clemente VI encarregou a
companhia florentina dos Alberti antichi, que lhe servia de banqueiro, de
fornecer-lhe o mais rapidamente possível todas as notícias referentes ao reino da
Sicília, e prometeu indenizá-la por isso. Pode-se ver aí o esboço de uma agência
de notícias — com a diferença de que não era aberta ao público.

Juntemos finalmente alguns dados sobre essa circulação por correios. Sua
velocidade era muito variável. Nos casos urgentes, os correios podiam cavalgar
noite e dia, cobrindo até 150 quilômetros em 24 horas. Em geral, circulava-se
apenas de dia: 50 quilômetros eram uma distância diária média, mas podia variar
conforme a estação, o relevo, as facilidades de trajeto, etc. Se a partida tinha dia
fixo, certas cartas podiam esperar algum tempo antes de partir. Muitas vezes
também os correios aguardavam, antes de se lançarem nas estradas, ter um
número suficiente de cartas para transportar.

Em meados do século XV, Uzzano forneceu números. Conta em média: de


Gênova, entre 7 e 8 dias para Avignon, 18 e 22 para Paris, 22 a 25 para Bruges;
de Florença, entre 5 e 6 dias para Gênova ou Roma, 10 e 12 para Milão, 20 e 22
para Paris, 20 e 25 para Bruges, 25 e 30 para Londres — ou seja, 60 quilômetros
por dia em média. O registro das cartas recebidas e enviadas pela ramificação de
Bruges da companhia de Ravensburg em 1477-1478 indica, de Bruges, 5 dias
para Nuremberg, 8 para Milão, 9 para Genebra, 12 1/2 para Gênova, 46 para
Valência, na Espanha.

A velocidade não é tudo. É preciso pagá-la. Quanto? Muito caro, e isso é


compreensível: havia o aluguel do cavalo, as despesas de indenização em caso
de perda deste, as de hospedagem do correio. Calculou-se que o envio de um
mensageiro especial de Veneza a Roma atingia o mesmo montante que o salário
mensal de um funcionário importante, ou o preço do pão consumido durante um
ano por uma família de três adultos. Entretanto, uma boa organização permitia
que se reduzisse de maneira relativa essas despesas: desse modo, a Scarsella
podia encarregar-se de cartas privadas por um preço módico.

Notemos, por fim, que os mercadores faziam muita questão de conservar a


exclusividade das notícias e de não informar seus concorrentes, ou, pelo menos,
informá-los somente mais tarde. Assim, a Scarsella não remetia as cartas ao
público senão 24 ou 48 horas depois que seus membros tivessem recebido as
suas. Esse exemplo devia ser largamente seguido.

Para concluir, nunca seria demais insistir na importância dessa circulação de


cartas, que para o comércio internacional foi comparável ao que é para um
organismo a circulação do sangue. Deve-se também colocar o problema das
relações entre economia e transportes em geral. Não era simples. Pode-se dizer
que as trocas internacionais continuavam com um fraco volume porque o
sistema de transporte era bastante rudimentar. Mas, do mesmo modo pode-se
sustentar que as necessidades econômicas fizeram esse sistema evoluir: isso foi
observado a propósito do progresso dos navios, da diferenciação dos fretes.
Então é possível que, até certo ponto, esse sistema de transportes tenha
continuado rudimentar na medida em que as necessidades econômicas não
exerciam uma pressão suficiente para provocar sua transformação. Isso será
visto, no século XIX, com a revolução das estradas de ferro.

11. Rumo a uma nova revolução do espírito

Per números ad homines (pelos números em direção aos homens)... Toda história
econômica que se respeita deve basear-se no homem, artesão, personagem e
testemunha da evolução material. É o que procuraremos fazer neste difícil
capítulo. Como vimos várias vezes, nenhum dos progressos realizados durante
esses séculos teria sido possível sem uma profunda transformação intelectual.
Mas esses progressos também não se realizaram sem provocar debates interiores.
inquietações e dramas, entre homens ligados a uma moral tradicional e, ao
mesmo tempo, espectadores de tantos horrores. O problema é, portanto,
intelectual e moral. Tentemos examiná-lo sob esses dois aspectos.

Um despertar intelectual

A história do espírito humano encontra-se, sem dúvida, na base de toda a história


— muito mais que os políticos, que em parte ele determina; também muito mais
que as relações de produção, cuja transformação só se explica pela evolução do
espírito humano. Como ela é árdua! Uma maneira ao mesmo tempo vivaz e
sugestiva de abordar o conjunto desses problemas consiste em partir do retrato
de dois homens que testemunham muito bem a mudança intelectual mais
obscuramente vivida por vários de seus contemporâneos em toda a Europa dos
séculos XIV e XV: Leon Battista degli Alberti e Leonardo da Vinci.

Leon Battista degli Alberti (333. 339) pertencia a uma família estabelecida em
Florença, no começo do século XIII. Os Alberti forneceram notários e depois
cambistas. Também participaram da vida política, o que lhes custou o exílio em
1402 por ocasião de uma guerra contra Milão. Entre eles havia um certo Lorenzo
que, em 1404, teve um filho chamado Leon Battista, fora dos laços do
casamento. A juventude de Leon desenrolou-se em Gênova, depois em Veneza, e
deixou-lhe muitas lembranças, esparsas em seus escritos. Como era frágil, seu
pai fez com que praticasse diversos esportes: a corrida, o lançamento da palia
(ou jogo da péla), equitação. Sua instrução não foi menos cuidadosa: além das
artes liberais, aprendeu grego, italiano e matemática, na escola da Barsizza (da
qual saíram letrados famosos, como Filelfo), a qual freqüentou durante dois
anos. Depois estudou direito em Bolonha.

Em 1421, com dezessete anos, teve a infelicidade de perder seu pai. Sua família
quis que praticasse os negócios, como era costume. Mas Leon. que não queria
abandonar seus estudos, teve seu sustento cortado. Seguem-se anos de intensa
atividade, pois trabalhava durante o dia para sobreviver e estudava à noite.
Mesmo assim, ainda encontrava tempo para apaixonar-se. Esse ardor devorante
obrigou-o a parar tudo por algum tempo. Apesar disso, em 1428, conseguiu sua
licenciatura em direito canônico, aos vinte e quatro anos.

Datam de então suas primeiras obras, sobretudo poéticas — seja em latim. De


commodis litterarum atque incommodis, onde evoca seu gosto pelo estudo, suas
ilusões, suas privações, ou a comédia Philodoxeos, atribuída por ele a um códex
antigo de Lépido, e que teve um imenso sucesso — seja em italiano, como as
éclogas Corimbo e Mirza, em que exprime o amor pela mulher, pela paz e pela
liberdade, e Ecatomfilea, em que, inspirado por Ovídio, faz uma jovem dissertar
sobre a arte do amor.

Nada disso era especialmente religioso: entretanto, nesse mesmo ano de 1428,
Leon passou a servir o cardeal Albergati, mecenas, a quem acompanhou em
Borgonha. Picardia e Alemanha — países que lhe interessaram vivamente —;
depois, em 1431, serviu o chanceler pontificai Biaggio Molin. Logo, tornou-se
compendiador apostólico na corte do papa Eugênio IV. A visão da Roma antiga,
em ruínas ainda desarranjadas marcou-o profundamente. Em seu tempo livre,
estudava os monumentos, procurava reconstruí-los através de desenhos, iniciava-
se nos métodos dos arquitetos antigos.

Em junho de 1434, expulso de Roma pelos Colonna, Eugênio IV refugiou-se em


Florença, onde então Leon pôde entrar. No convento dos Anjos, freqüentou os
mais famosos letrados da época, Cosme de Medici e Lorenzo, o Magnífico, o
barbeiro poeta Burchiello, o grande matemático Paolo Toscanelli, e artistas tais
como Donatello, Brunelleschi, Masaccio, Lucca delia Robbia. Esse interesse
pelas artes manifestou-se em duas de suas obras escritas nessa época: a plaqueta
De Statua, em que aconselhava a observação direta dos modelos vivos, o estudo
anatômico do corpo humano, e os três livros De Pictura (dedicados a
Brunelleschi), que estabeleciam as três tarefas essenciais do pintor: delimitar o
espaço a representar, combinar figuras e volumes segundo as leis da perspectiva
e, finalmente, introduzir a luz e as cores.

Acompanhou o papa a Bolonha, depois a Veneza. Em 1439, em Florença,


assistiu ao Concilio de União das Igrejas grega e latina, o qual praticamente em
nada resultou, a não ser em dar força a Eugênio IV, que pôde voltar a Roma em
setembro de 1443. Então Leon acabou os quatro livros de seu tratado Delia
famiglia, em que, entre outras coisas, defendia a língua “vulgar” contra os
ataques dos humanistas. Além disso, organizou um concurso de poesia em
italiano sobre o tema da amizade, e ele mesmo compôs os primeiros hexâmetros
nessa língua. Isso não o impedia de considerar o latim mais apropriado à
expressão das reflexões mais graves.

O ano de 1447 foi importante para Leon: na ocasião, um dos seus amigos
tornou-se papa, o humanista Nicolau V que, apesar do nascimento irregular de
Leon Battista, conferiu-lhe um benefício de cônego florentino. Pôde desde então
consagrar-se a suas atividades arquiteturais: sua Descriptio urbis Romae é antes
de tudo um plano de ação, e, com efeito, foi ele quem dirigiu os trabalhos de
restauração do aqueduto do Acqua Vergine, da ponte Molle e da basílica de São
Pedro. Quando Prospero Colonna encarregou-o de extrair do lago de Nemi um
navio afundado, Leon procedeu pela primeira vez a essa experiência, com meios
mecânicos tão exatamente calculados quanto consideráveis; isso inspirou-lhe o
opúsculo Navis, hoje perdido. Preocupava-se com as questões matemáticas,
como demonstram seus Ludi matematici, em que são resolvidos vários
problemas, como os colocados pelo nivelamento do solo, e o cálculo da
velocidade de deslocamento de um móvel no ar e na água.

Em 1450, concluiu sua obra essencial, digna de Vitrúvio, a De re aedificatoria,


escrita em dez livros que tratavam tanto dos trabalhos dos engenheiros modernos
quanto dos ensinamentos dos antigos e proclamavam a eminente dignidade do
arquiteto, artista e não apenas construtor. Essa obra teve uma repercussão
considerável. Passando à ação, aumentou a igreja San Francesco de Rimini, a
pedido de Sigismond Pandolfo Malatesta — depois, sob o papa Pio II, erigiu a
igreja San Sebastiano de Mântua com planta em cruz grega. A pedido do rico
banqueiro Giovanni Ruccellai, edificou o palácio e a loggia Ruccellai, a capela
do Santo Sepulcro, e concluiu a fachada da igreja Santa Maria Novella em
Florença. Desenhou as plantas da basílica San Andréa de Mântua, em cruz
latina; L. Fancelli executaria essa obra notável e grandiosa.

Leon Battista dividiu seus últimos anos entre a tarefa de arquiteto, pesquisas
científicas (no campo da óptica, em particular) e meditações filosóficas. Morreu
em Roma no dia 25 de abril de 1472.

Por essa época. Leonardo da Vinci (338, 340, 342) chegava aos vinte anos.
Também era filho natural: seu pai, o notário Piero da Vinci (Vinci era um
povoado próximo de Florença) colocou-o — e Leonardo irá se lembrar disso! —
numa espécie de orfanato. A proteção dos Medici permitiu-lhe felizmente
estudar pintura na escola de Andréa dei Verocchio, com Sandro Botticelli. Seus
progressos surpreendentes são atestados por uma pequena predela da
Anunciação. conservada no Museu do Louvre. Entretanto as partidas de
Verocchio, de Botticelli e de Perugino deixavam-no desamparado, sujeito a uma
sensação de isolamento. Essa é a razão pela qual, em 1482 ou 1483, enviado
talvez por Lorenzo, o Magnífico, Leonardo seguiu para Milão, onde se
apresentou a Ludovico, o Mouro. Como esse Sforza era um príncipe guerreiro,
foi como engenheiro que Da Vinci lhe foi recomendado. O fato de ocupar tal
função não o impediu de contribuir para a construção das catedrais de Milão e de
Pavia. de decorar o Castelo de Milão, de pintar os retratos do Mouro e de sua
corte, assim como a Ceia (na igreja Santa Maria delle Grazie), de realizar uma
gigantesca maquete de cavalo para o túmulo de Fran cesco Sforza, de organizar
várias festas da corte e de se dedicar a pesquisas anatômicas.

Em 1499, aproveitando-se de uma ausência do Mouro, os milane ses abriram


suas portas ao rei de França Luís XII, e esse período central da vida de Leonardo
foi substituído por uma existência errante entre Ferrara, Florença, Veneza. Milão,
Mântua e Roma... Em 1502-1503, colocou suas atividades de engenheiro a
serviço de César Borgia e de seus empreendimentos militares na Itália central.
Foi então que travou relações com Maquiavel. Trabalhou para tornar o Arno
navegável até Florença. Por fim, as promessas do rei Francisco I atraíram-no
para a França. Veio a morrer na casa de Luísa de Savóia, mãe de Francisco I,
perto de Amboise, no castelo de Clos-Lucé, em 2 de maio de 1519.

A amplidão de sua obra ainda é mal conhecida, e a autoria de vários dos quadros
atribuídos a ele ainda é discutível. A parte mais segura de sua obra são os
extraordinários desenhos, legados por ele com seus papéis a seu aluno Francesco
Melzi, e que, tomados pelas tropas de Bonaparte em 1796, nunca mais foram
restituídos. Hoje, pertencem ao Institui de France. Ainda existem outros
desenhos dispersos.

O que ressalta dessa obra de uma virtuosidade espantosa são seus conhecimentos
anatômicos, nutridos por uma prática pessoal da dissecação, e que só serão
igualados no século XVII, assim como suas descobertas no estudo da luz e a
representação da água.

São tão comoventes quanto instrutivas as reflexões consagradas por Paul Valéry
a Leonardo da Vinci — um criador referindo-se a um outro criador (351). O que
mais o impressionava, e com razão, na minha opinião era a capacidade que
Leonardo tinha de passar de um gênero para outro, com a mesma mestria, o que
não ocorre para a maioria dos homens. Duas citações farão compreender bem
esse aspecto:

“Ele desce na profundeza do que é comum a todas as pessoas, afasta-se e olha-


se. Atinge os hábitos e as estruturas naturais, trabalha-as por toda parte, e
acontecendo-lhe de ser o único que constrói, enumera, agita. Ergue igrejas,
fortalezas; obtém elementos cheios de suavidade e de grandeza, mil engenhos, e
as figurações rigorosas de muita pesquisa...”

“O segredo — tanto de Leonardo quanto de Bonaparte, como também daquele


que possui a mais alta inteligência — está e não pode deixar de estar nas
relações que encontraram — que foram forçados a encontrar — entre coisas cuja
lei de continuidade escapa-nos.'”

Suas obras impõem-se pelo “rigor obstinado” (marca de Leonardo) com que são
concebidas:

“No fundo de A Santa Ceia há três janelas. A do meio, que se abre atrás de Jesus,
diferencia-se das outras por uma cornija em arco de círculo. Prolongando-se essa
curva, obtém-se uma circunferência em cujo centro encontra-se Cristo. Todas as
grandes linhas do afresco confluem para esse ponto. A simetria do conjunto é
relativa a esse centro e à longa linha da mesa de ágape. O mistério, se há algum,
é o de saber como julgamos misteriosas tais combinações; e esse, receio, pode
ser esclarecido.”

Da Vinci realizou apenas uma ínfima parte do que concebeu. Abandonou,


insatisfeito, os esboços de obras que a tantos outros teriam parecido admiráveis.
E quantas outras concepções não saíram de seu espírito! Há nele um drama, que
não contribuiu menos para sua lenda do que sua real mestria — descoberto
muitos séculos mais tarde.

Tanto Alberti como Da Vinci foram homens excepcionais. Aqui, o que nos
interessa especialmente são suas ligações com a economia — o primeiro, por
suas relações com sua própria família assim como com Giovanni Ruccellai; o
segundo. por sua atividade de engenheiro. Neles combinam-se a ciência, a arte e
o pensamento. São gênios universais — e não convém fazermos generalizações a
partir deles. Entretanto, participam de um movimento conjunto, ao qual é preciso
correlacionar as inovações enumeradas nos capítulos precedentes, e que agora
tentaremos analisar.

Um modelo muito mais corrente nos é fornecido pelos homens de negócios da


Itália, já bem mais numerosos. Quantos? O saudoso Yves Renouard pelo menos
sugeriu ordens de grandeza: “As listas dos sócios e corretores das companhias
dos Bardi e dos Peruzzi atualmente conhecidos referentes aos anos 1310-1345
compreendem, a primeira 346, a segunda 142 nomes; e o pessoal da companhia
dos Acciaiuoli também devia ser muito numeroso." E, mais adiante: “Os dados
numéricos que nos restam referentes a Florença e a Veneza permitem estimar seu
número, nessas duas cidades, em 2% da população. Juntando todos os membros
da família, mulheres, crianças, velhos, que participam da mesma ética, chega-se
a um número equivalente a 5 e até a 10% da população total.” Se considerarmos
as quatro grandes cidades, Florença e Gênova. Milão e Veneza, cada uma com
aproximadamente 100.000 habitantes, isso representa entre 30.000 e 40.000
pessoas.

“Ora, essa minoria é a parte essencial da população urbana: são os homens de


negócios que, ao suscitarem para seu comércio o desenvolvimento da indústria,
fazem das cidades onde residem grandes aglomerações; são eles que exercem o
poder político e têm a preponderância econômica. Também sua maneira de
pensar, de viver e de agir tende a se tornar, pelo próprio fato de sua preeminência
social, um dos elementos dessa civilização urbana que eles, mais do que
ninguém, contribuíram para formar, e na qual as cidades têm um papel cada vez
mais importante.” (71)

Assim, ao analisarmos as maneiras de sentir e de pensar desses homens, que


tanto se encontravam em Roma, em tantas outras cidades italianas, como
também em Avignon. Montpellier, Barcelona, Paris, Bruges e Londres, ...
poderemos chegar a conclusões de alcance mais geral.

Esses homens de negócios tinham-se sedentarizado. Não que tivessem


renunciado a viajar quando havia oportunidade: dirigiam-se frequentemente aos
principais lugares de sua atividade, onde mantinham sucursais ou escritórios
comerciais. Residiam ali por longo tempo, dirigindo seus pequenos “impérios",
como se fosse do centro. Mas em todos os lugares utilizavam os mesmos
métodos: eram homens de escritório, que mantinham uma correspondência
abundante, anotando os acontecimentos que lhes pareciam mais significativos.
Tudo isso, tão normal e comum para as pessoas mais velhas do nosso tempo
(pois, com o declínio do século XX, já se anunciam novos métodos), então era
novo. Florence Edler falou de uma “revolução comercial” dos anos 1275-1325.
O transporte separou-se do comércio. Homens e mercadorias viajam separados
uns dos outros (271).

Por mais numerosas e variadas que sejam suas viagens — e seu conhecimento
do mundo com certeza não parou de crescer e de se aprofundar — continuam
muito ligados à sua cidade de origem. Ge noveses, florentinos, milaneses ou
venezianos agrupam-se nas cidades estrangeiras em “nações”, que têm uma vida
autônoma, administram-se, julgam-se, participam das mesmas festas e emoções
coletivas. São ao mesmo tempo universais e fortemente enraizados.

Seu modo de vida e sua atividade supõem uma instrução adquirida nas escolas e
no trabalho. Assinalamos anteriormente os casos de Alberti e de Da Vinci. Mas
outras centenas de exemplos poderíam ser citadas. Os séculos XIV e XV viram
desenvolver-se entre esses homens da cidade, tanto por prazer como por
necessidade, o gosto pelos estudos. Para satisfazer a tal fato, foram abertas
escolas em número sempre maior, cada vez mais separadas da Igreja e com
programas mais adequados. Também foram redigidos manuais — entre os quais,
os de Pegolotti e de Uzzano são apenas exemplos notáveis — com cujo auxílio
completavam sua formação enquanto trabalhavam com seus pais e parentes.

De que maneira sua visão do mundo e das coisas não teria evoluído? Sua
curiosidade despertara, estavam sempre à espreita de um possível
aperfeiçoamento, e podemos observar mais de um efeito dessa atenção ativa,
graças à qual a economia se desenvolveu. Passam a apreciar as notícias, que hoje
as mídias oferecem em tão grande número, mas que então eram fornecidas pelos
corretores: o que estaria acontecendo no seio de tal família governante? Haveria
uma guerra em preparação? Poder-se-iam prever mudanças monetárias?
Agitações sociais? Apressavam-se em perguntar-lhes e não hesitavam em
especular de acordo com as informações trazidas por eles. No fim do século XIV,
Paolo di messer Pace da Certaldo explica cinicamente a necessidade desse
sistema a propósito das correspondências agrupadas (330):

“Se você pratica o comércio e se, às cartas que lhe são destinadas, são juntadas,
quando você as recebe, cartas destinadas a outra pessoa, tenha sempre presente
no espírito ler em primeiro lugar suas cartas antes de enviar as do próximo. E se
suas cartas contêm conselhos de compra ou de venda que devem proporcionar-
lhe lucro, convoque logo o corretor e faça o que lhe aconselham as cartas, e só
depois envie as cartas que vieram junto com as suas. Mas nunca as envie sem
que antes tenha feito os seus negócios, pois essas cartas poderíam conter
indicações que criariam empecilhos para seus negócios, e o serviço que você
teria prestado a um amigo, a um vizinho ou a um estranho, ao entregar-lhe suas
cartas seria em seu grande detrimento: ora, você não deve servir ao próximo para
se prejudicar em seus próprios negócios.”

Gostavam das representações exatas. Sabiam fazer cálculos, com a ajuda do


ábaco, mas também do seu cérebro; e os cálculos que nos proporcionam tão
generosamente os escritos daquela época eram, ao menos nas regiões
desenvolvidas, de uma exatidão surpreendente. Falavam várias línguas
estrangeiras. Gostavam de ter uma idéia tão justa quanto possível tanto do tempo
como do espaço. Não se satisfaziam mais com as medidas tradicionais do tempo
nem com o fato de que o ano começasse em datas diferentes conforme os
lugares, sendo Natal, Anunciação ou Páscoa, que além de tudo é uma festa
móvel, todas inspiradas no computo eclesiástico, ou de que as horas fossem mais
curtas no verão do que no inverno, segundo o costume herdado dos romanos.
Como o sábio já o fazia muito antes, passaram a se basear num sistema de horas
iguais, que os relógios públicos — mais numerosos precisamente a partir do
século XIV — ajudavam a contar, pois a necessidade possibilitara sua criação.
Eram apaixonados por uma representação exata do espaço, conforme as leis cada
vez mais conhecidas da perspectiva; do homem, com a diversidade de suas
feições, a cor de sua pele, a anatomia exata de seu corpo; e, finalmente, do
mundo, graças a uma cartografia, para cujo progresso contribuíram muito os
catalões.

Em todas essas manifestações surgiu e desenvolveu-se um individualismo que


devemos reconhecer como a principal característica desses homens. Sua ética
era, sem dúvida, “capitalista” (338): tratava-se, para eles, de “encontrar os meios
mais eficazes de obter riquezas e de utilizá-las segundo um princípio de usufruto
individualista”. Contudo, viviam no seio de um mundo cristão, cujos princípios
eram outros.

Reflexões e angústias

Tratemos agora do mundo das paixões, dos sentimentos e das consciências. Os


homens e as mulheres dos séculos XIV e XV foram testemunhas de catástrofes
tão terríveis — “como nunca se tinham sido visto desde o começo do mundo”,
escreveram eles muitas vezes —, viveram também os problemas que suscitavam
em suas consciências, ainda ligadas às proibições tradicionais, tantas novidades
espantosas que, sem dúvida, provocaram neles, de modo infinitamente diverso,
debates, reflexões, preocupações e angústias. É o momento de também
evocarmos esse aspecto.

A morte. Esse espetáculo, familiar ao homem — seria preciso dizer:


infelizmente? —, tornou-se lancinante por ocasião das grandes epidemias, cuja
multiplicação já foi anteriormente citada. Aqueles que as viveram não puderam
deixar de ficar profundamente transtornados. Á evolução do túmulo é um
testemunho surpreendente desse sentimento. As estátuas jacentes do século XIII
são apenas retratos indiferentes; a morte não surge ali na decrepitude final da
existência terrestre, mas na eterna juventude que a eternidade lhe confere. Os pés
repousam sobre o cão, símbolo da fidelidade. As mãos estão juntas. Há um ar
sorridente e distante no rosto. Como são diferentes os túmulos do século XV!
Tomaremos apenas dois exemplos — pois precisamos nos limitar (345).

O primeiro é o túmulo do cardeal Lagrange em Avignon. Jean de Lagrange,


bispo de Amiens. tornou-se cardeal. Fazia parte do grupo de cardeais que não
foram esperados para se proceder à eleição, fato que deveria provocar o Grande
Cisma do Ocidente. Como era um homem de confiança do rei Carlos V de
França, sua primeira atitude foi apresentar suas censuras ao novo papa (1378).
Morreu em 1402, depois de ter representado um eminente papel na história do
Cisma. Era, portanto, um homem muito poderoso, porém mandou que
representassem seu cadáver — de modo terrivelmente verossímil — nu, as
costelas salientes, já devorado pelos vermes. Que lição de humildade! Diante da
morte, todos os homens são iguais.

Quanta diferença há no túmulo que o eminente escultor Antoine Le Moiturier


construiu em 1493 para Philippe Pot, grande senescal de Borgonha. Certamente
não constituía a primeira manifestação de todo um programa já estabelecido,
mas supera todas as outras em perfeição técnica e em serena grandeza. Para
descrevê-lo, tomo de empréstimo as palavras do grande historiador da arte que
foi Émile Mâle: “As estátuas da desolação, erigidas em estatura humana,
tornaram-se carregadores fúnebres e têm nos ombros a laje de pedra onde
repousa o senescal de Borgonha, vestido com sua armadura. São oito
antepassados, todos de família nobre, pois cada um deles carrega um escudo que
indica uma aliança. Caminham com gravidade, atormentados por essa morte que
lhes pesa sobre os ombros, mas que parece pesar ainda mais em seus corações.
Nada mais real, mais sólido que esses oito cavaleiros, maciços como pilares
romanos, e também nada mais misterioso. Essas grandes figuras veladas de
negro são assustadoras como aparições noturnas. Seguramente, não são deste
mundo. Enviadas pela morte, mostram-se um instante, mas logo irão se
desvanecer e voltar ao país das Sombras.”

Em dois séculos, que grande evolução, a qual me limitei a alinhavar! E


certamente apenas os poderosos nos deixaram suas imagens. Podemos imaginar
que, de maneira mais obscura, de modo mais rude, a legião de homens e de
mulheres viveu semelhante transformação?

Outra testemunha dos sentimentos experimentados diante da morte: o


testamento. Pode-se discutir sobre o que ele representa exatamente: a norma da
época ou as reações do indivíduo. Estabelecí, penso eu, o que toca às duas. De
qualquer modo, ambas nos interessam aqui. Em 1952, apresentei, com relação a
Toulouse, a evolução desse documento, encontrado em todos os lugares, com
algumas nuanças cronológicas (99). No século XIII, o testador enumera, sem
nenhum preâmbulo, um certo número de legados piedosos e, em seguida,
legados para parentes e amigos; institui um herdeiro universal e os executores
testamentários, e toma diversas providências em sua intenção. A partir de
meados do século XIV, o testamento torna-se mais longo. O preâmbulo ainda é
curto: obrigação de testar, exemplo dado por Cristo. Após persignar-se e ter
recomendado sua alma a Deus e aos santos, o testador escolhe o lugar da
sepultura. Os legados piedosos multiplicam-se: para o clero de sua paróquia,
para a lâmpada de um altar e para a obra da igreja (isto é, para a manutenção do
imóvel), para as luminárias das igrejas paroquiais da cidade, para hospitais e
leprosários, para reclusos e reclusas, para as obras das pontes, para as Ordens
mendicantes, para diversas confrarias. O testador toma providências para os
funerais, em que uma refeição será oferecida aos pobres. Seguem-se as
substituições de herdeiros, que se tornam indispensáveis devido ao grande
número de falecimentos provocados pelas epidemias.
No século XV, o testamento atinge toda a sua plenitude. Tomemos como
exemplo o do cambista Jacques de Saint-Antonin, que o ditou em 27 de agosto
de 1433, véspera de sua morte. Cito a mim mesmo (ou quase):

“Ele quer ser enterrado no convento dos Irmãos Prêcheurs\ oito Irmãos
conduzirão seu corpo, vestido com o hábito da Ordem. Mas quantas precisões!
No dia dos funerais, haverá doze círios, pesando cada um duas libras de cera,
assim como as velas necessárias; uma missa cantada será dita no convento por
um Irmão, assistido por um diácono e por um subdiácono. Será seguida das
litanias dos exau dis, e acompanhada de cem missas rezadas de requiem, no
mesmo dia. No dia seguinte, outra missa cantada, também seguida dos exau dis,
com seis círios de duas libras de cera. No menor prazo, três anos no máximo,
600 missas rezadas, das quais 150 no convento dos Irmãos Prêcheurs, 150 no
dos Menores, 150 no dos Agostinianos, 100 no dos Carmelitas, 50 numa igreja
(a Daurade). No aniversário, nova missa cantada com seis círios, novas litanias,
e além disso 100 missas rezadas no convento dos Irmãos Prêcheurs."

Os legados piedosos são mais ou menos da mesma natureza que antes. Mas
como não se impressionar com essa extraordinária mobilização de homens e de
dinheiro em proveito de uma certa ostentação?

Essa evolução do testamento é um fato europeu. Prova disso é, entre outros, o


ato lavrado em Paris, em 24 de fevereiro de 1413, por um dos maiores
mercadores do continente, Dino Rapondi (7). Nascido em Lucca, de uma família
que seguimos a partir do final do século XIII, e que conhecemos mal, torna-se,
em 1370, diretor da companhia, que possuía sucursais em Veneza, nas ilhas do
Levante em Avignon, Paris, Bruges, Antuérpia (já). Além do comércio de sedas,
especialidade de Lucca, praticava o banco. Rapondi, muitas vezes, fixava
residência em Bruges. Era, aliás, fornecedor, credor e conselheiro dos duques de
Borgonha — Filipe, o Audaz, e João Sem Medo. Seu grande golpe foi o
pagamento do resgate deste último aprisionado em Nicopólis em 1396. O sultão
pedia 200.000 florins. Dino dirigiu-se a Veneza, fez a transferência da quantia
através de letras de câmbio sacadas sobre mercadores italianos no Levante. Ele
mesmo garantia-se através das letras sacadas sobre Paris e Bruges. Por fim os
mercadores foram reembolsados pela coleta de impostos dos súditos do duque de
Borgonha.

Esse é o homem que, em 24 de fevereiro de 1413, diante de dois notários do


Châtelet de Paris, ditou esse verdadeiro monumento (ligeiramente modernizado):

“E, em primeiro lugar, como bom e verdadeiro cristão e católico, reconhecendo


com devoção seu doce Criador, Redentor e Salvador, ele recomendou muito
humildemente sua alma, quando do corpo for embora, à bem-aventurada Santa
Trindade, à bem-aventurada gloriosa Virgem Maria, a São Miguel Arcanjo, a
São João Batista, São João Evangelista, São Pedro e São Paulo, à Santa Catarina,
e a toda a bem-aventurada corte e companhia do Paraíso, e seu corpo à sepultura
da Santa Igreja, cuja sepultura ele designa a capela de Santa Ana na igreja dos
Agostinianos em Paris, em hábito de um desses Irmãos religiosos; e no caso em
que passasse para melhor vida na cidade de Bruges, gostaria de ser enterrado na
capela de Saint-Voult-de-Lucques, na igreja dos Agostinianos na dita cidade.” O
Voulté o Santo Sudário, a Santa Face, o rosto de Cristo impresso no pano que lhe
estendeu Santa Verônica durante Sua caminhada ao Calvário. Lucca acreditava
possuir esse pano, que estava guardado na catedral e era mostrado três vezes ao
ano. Portanto, um culto particularmente vivo em Lucca.

Logo em seguida revela-se o homem de negócios. Com uma precisão bastante


comercial, ele pede que, “antes de todas as outras coisas”, fossem pagas suas
dívidas e reparados os seus erros. No entanto, seriam necessárias para isso
“provas claras e evidentes”.

Ele próprio ocupa-se pouco de seus funerais. Deposita confiança em seus


executores testamentários; sabe que farão bem as coisas. Por outro lado sabe, por
circular muito, que deverá levar em conta as possibilidades locais. De todo
modo, ordena que sejam celebradas trinta missas de São Gregório em Paris,
assim como mil missas de finados, “para a salvação e restabelecimento de sua
alma e dos bem-aventurados que passaram para outra vida melhor. Lega também
a quantia necessária para a manutenção da capela de São Rieule (certamente São
Règle, bispo de Aries e de Senlis, mártir do século III), fundada por seu pai perto
de Lucca para que se possam celebrar missas ali “pela alma de seu finado pai, de
sua falecida mãe, e de seus irmãos e irmãs e outros amigos”. Peregrinações
completam esse quadro: era costume fazer o percurso a cavalo desde Paris, e são
previstas três, que levarão os viajantes a Compostela, Roma e Jerusalém —
quantas graças em perspectiva!

Não me estenderei evidentemente sobre os legados piedosos, apesar de


numerosos e importantes, localizados sobretudo em Paris e Lucca. Seus
montantes são calculados pelo velho sistema de numeração, sem dúvida de
origem gaulesa, com unidades de vinte: quatre-vingts (80), mas também huit
vingts (160), e douze vingts (240). Únicas exceções, mas notáveis, nessa
distribuição e que dependem do caráter individual do ato: as confrarias, os
leprosos (porém a lepra está em vias de ressorção). as beguinas (em Flandres,
entretanto...). Por uma transição imperceptível, passa-se aos legados familiais e
pessoais sobre os quais também não entrarei em detalhes. Dino Ra-pondi
morrería pouco depois, em Bruges. em 1 de fevereiro de 1416.

Tudo isso, certamente, custa caro. Temos aí um aspecto econômico dessa


piedade testamentária. Os legados piedosos e caritativos de Dino Rapondi
chegam a 1.643 libras e 4 soidos parisis (ou seja, mais de 2.000 libras tornesas)\
prevê atribuir a seus parentes 26.320 libras parisis [1] (cerca de 33.000 libras
tornesas). mais seus bens de Bruges e de Flandres; mas não indica o que restará
para seus três irmãos que (na falta de esposa) são instituídos, cada um com um
terço, como seus “verdadeiros e leais herdeiros”. Adivinha-se uma fortuna
considerável. Mas a retirada é muito forte. E é um fato geral, que freia a
acumulação dos capitais. Nesse mundo que comprovadamente se tornara
capitalista sob muitos pontos de vista, sobra uma grande força oposta ao
capitalismo, a religião.

Sem dúvida, depois de Philippe Ariès. a história da morte preocupou muito os


nossos escritores. Há trinta anos, inspira muitas obras de primeira ordem. Num
domínio vizinho, ainda está por ser escrita uma história do suicídio. Por muito
tempo acreditei que na Idade Média não houvesse suicídios — salvo em caso de
loucura —. porque eram séculos cristãos, e a religião cristã proíbe o suicídio.
Não estou mais tão seguro agora, como o leitor terá observado.

Na verdade, é a história de todas as paixões, de todos os sentimentos humanos


que deveria ser abordada. Muitos desses sentimentos dissimulam-se por trás da
seca demografia! A história do nascimento e das festas que o marcam. A história
do casamento e de seus ritos. A história da família... Todas distintas e todas
ligadas. Ligadas também à história econômica, uma vez que é ela que constitui
nossa matéria.

Um outro grave problema moral é o da usura e do capitalismo. A igreja impunha,


como vimos, uma moral tradicional, que revelava um estado de espírito. Eis que
os tempos novos traziam práticas e preocupações que lhe pareciam muito
estranhas, senão contrárias. Desse conflito, nenhum testemunho é mais revelador
talvez do que a correspondência dirigida a Francesco Datini, de Prato, um dos
capitalistas que melhor se conhece dessa época, por seu notário, Ser Lapo Mazei,
sinceramente cristão e tradicionalista. Segue a tradução do que Mazei escreveu-
lhe em 24 de junho de 1391 (341):

“Já soube através de suas cartas, de suas atribulações e dos impedimentos que
lhe causam as coisas deste mundo; mas, agora que as vi com meus próprios
olhos, sei que são bem maiores do que eu pensava. Quando penso nas
preocupações que lhe causam a casa que o senhor constrói, seus armazéns nos
países afastados, seus banquetes e suas contas, e muitos outros negócios,
parecem-me bem superiores ao que é necessário, e compreendo que o senhor não
possa subtrair uma hora ao mundo e a suas armadilhas. Entretanto, Deus
concedeu-lhe uma abundância de bens materiais e deu-lhe mil avisos a fim de
despertá-lo. Ei-lo com a idade de quase sessenta anos e livre de preocupações
com filhos — irá então aguadar até seu leito de morte, quando o ferrolho da
porta da morte será levantado, para mudar seus sentimentos?
“Em suma, queria que o senhor terminasse muitos de seus negócios que, diz o
senhor, estão em ordem, que parasse de construir e ainda que distribuísse uma
parte de suas riquezas em caridades por suas próprias mãos, e que apreciasse
essas riquezas em seu justo valor, isto é, que as possuísse como se não fossem
suas... Não lhe peço que se torne um padre ou um monge, mas digo-lhe para pôr
ordem em sua vida.”

Dezesseis anos mais tarde, em 1407, quando Francesco Datini estava velho
(mais de setenta e cinco anos), próximo da morte (que aconteceria em 1410), Ser
Lapo Mazei escreveu a Margherita, esposa de Francesco:

“Diga a Francesco que zombarias experimentaria um homem que, já em alto mar


com seus navios, e com o vento soprando em suas velas, não se dirigisse para
algum porto. Nosso porto é Deus. Ele nos fez; Ele nos chama: Ele devolve
nossas dádivas centuplicada mente... Todo homem é mal, avaro, orgulhoso, sem
fé, egoísta, invejoso; e se demonstra algum amor, o faz como um mercador: ‘O
senhor me fez um bem, e eu o retribuo.’ Mas suplique a seu marido, que é seu
amo, que não se iguale a tais pessoas. Faça com que ponha fim, se pode, a seus
atos vis e profanos; tudo é possível em Deus. Que ele utilize o pouco de tempo
que nos é deixado no final para Deus; esforcemo-nos pelo menos em morrer em
paz. Pois seria tarde demais para montar a cavalo quando a corrida já chegou ao
fim.”

Vê-se que tinha sido vão o pedido do amigo!

Temos muitas provas de que esse conflito não foi o único. Assim como, outrora,
os trovadores que cantavam o amor humano, extra -conjugal, proibido — como
Bemard de Ventadour, talvez o maior de todos — tinham-se fechado no claustro
no fim de seus dias, ou tinham — como Foulques de Marseille, que se tornou
cisterciense e depois bispo de Toulouse — batido com vigor no peito dos outros
(pelo que foi muito censurado!), do mesmo modo, homens de negócios, um Fra
Santi Ruccellai (1437-1497) tinha sido, durante muito tempo, banqueiro em
Florença antes de se tornar dominicano na velhice e escrever um tratado de
contabilidade, a meio caminho entre a moral cristã e as práticas capitalistas.
Quem seria capaz de dizer os motivos que o levaram a vestir o traje branco?

Surge então — ou desenvolve-se — um contraste entre duas atitudes morais e


religiosas (337). Uma é a atitude tradicional. Para a imensa massa de fiéis, a vida
religiosa define-se a partir de determinadas atividades exteriores, que são
sobretudo relacionadas com as práticas do culto, com a penitência, com as boas
ações, que se resumiam amiúde à esmola, e os legados, que os testamentos
enumeram tão complacentemente, constituem apenas sua última forma. Uma
outra — que será tão ardorosamente discutida — é a indulgência: nunca se
cogitou em obter pela indulgência o perdão do pecado.

É só uma satisfação concedida pelo papa “àqueles que estão contritos e


confessados”. Mas as instituições têm seu peso, e um verdadeiro tráfico de
indulgências desenvolveu-se. Esses homens são insensíveis ao escândalo de uma
sociedade tão correntemente refratária ao Evangelho, ligada a costumes
propriamente pagãos — prostituição, escra vagismo, imoralidade conjugal — e
crêem que observâncias, seguidas corretamente, conforme o direito, bastavam
para garantir a salvação. Entendem as coisas da religião com um valor absoluto,
o mesmo para todos, qualquer que seja o comportamento pessoal.

“Em nossa época há múltiplos indícios dessa mentalidade: inscre vemo-nos


numa terceira ordem, não porque nos sintamos chamados por Deus, mas porque,
em si mesma, a vida religiosa é mais perfeita que a vida laica e o porte de um
costume busca como de maneira sacramental as graças; ... legamos em nossos
testamentos grandes quantias para mandar dizer missas porque o fruto dessas
missas adiciona-se, e porque elas valem não pelo fervor daquele que as assiste,
mas simplesmente pelo cumprimento exato dos ritos; fazemos dizer preces por
outros em nosso nome, porque o importante é cumprir corretamente certas
formalidades jurídicas e litúrgicas; damos um ex-voto de cera de nosso peso
porque ele assegura uma presença que não necessita ser a da atenção e do amor,
mas só de um objeto figurativo. Nos sacramentos o engajamento pessoal conta
menos do que a observação pontual da lei; na confissão, por exemplo, a
contrição conta menos do que a satisfação. Compreende-se nessa mentalidade o
sucesso das indulgências; o cristão desta época está preparado para admitir a
idéia de um tesouro de méritos, no sentido mais objetivo que seja.” (Ét.
Delaruelle).

“Essa religião é, portanto, uma religião das observâncias e das obras.” Cristina
de Pisano quer exaltar a piedade do rei Carlos V de França e enumera a exatidão
de suas práticas.

Os homens de negócios participam dessa ética.

“Reúnem-se às vezes nos lugares santos; foi na casa dos Irmãos Prêcheurs de
Siena que a companhia dos Bonsignori foi fundada em 1289, renovada nessa
data. E os contratos de sociedade começam geralmente com uma invocação,
como o da companhia dos Tolomei de Siena em 1321: ‘Em nome de Deus e da
Virgem Maria; que nos possam dar e conceder os meios para praticar ações que
revertam em seu louvor e em sua glória, em nossa honra e em nosso proveito
para a alma e para o corpo. Amém...’ Esperam de seus negócios grandes lucros;
mas não pensam acumulá-los de maneira egoísta, quando há tantos pobres e
infelizes. Também prevêem, desde a constituição das companhias, uma atividade
benfeitora destas, que põem em nome de Deus e dos pobres — ‘conto di messer
Domeneddio’, dizem os Bardi — uma parte do capital social, variável conforme
as companhias, em torno de 1%, e a fração dos ganhos referente a essa parte é
destinada aos pobres. Não existe melhor maneira de despertar o interesse de
Deus para o sucesso da empresa. Em cada armazém é comum haver uma caixa
de dinheiro pendurada na parede, destinada a esmolas. Todos os homens de
negócios fazem parte das confrarias. É o caso, em Florença, da d’Or San
Michele, enriquecida por seus donativos...” (Y. Renouard, 71).
O cristão pertence à Igreja. Fora dela não há salvação. Não em de procurar a fé,
ele a encontra pronta; não tem de se interrogar sobre a Escritura, que recebe na
Igreja e por seus cuidados. “A Igreja é, em primeiro lugar, a Igreja da
autoridade” (Ét. Delaruelle). O padre não é um apóstolo; sua tarefa essencial é
ministrar os sacramentos.

Contra essa atitude dominante multiplicaram-se, a partir do século XIV pelo


menos, os sinais, aliás muito diversos, de uma interiori zação e de uma
individualização do sentimento religioso. Os partidários da Devotio moderna,
que se expressam amplamente na Imitação de Jesus Cristo, obra do renano
Thomas a Kempis (depois de 1420, aproximadamente), pregaram uma vida
interior, verdadeiramente dominada pelo desejo de imitar Cristo. Foram
fundados hospitais e colegiadas, são concedidas adesões individuais a confrarias,
a ordens terceiras, a grupos de Amigos de Deus, que tanto podem proceder de
uma inclinação pessoal como de um conformismo ambiente. As mulheres
representaram um importante papel nessa evolução, como Jeanne-Marie de
Maillé e Joana d'Arc, entre tantas outras. No entanto, são três homens que quero
evocar mais particularmente (337).

Em ordem cronológica, devemos começar por Leonardo Bruni (1370-1444):


nascido em Arezzo, é, a partir de 1405, secretário da chancelaria pontificai e, a
partir de 1427, chanceler da república flo rentina. Tradutor dos clássicos gregos,
é conhecido sobretudo por seus doze livros da História do povo florentino,
escritos em latim, primeira história dessa cidade que se baseou num exame
crítico das fontes. Sociólogo, pratica um neoguelfismo, bastante antiimperia
lista, ligado à liberdade que Florença, herdeira da Roma republicana, deve
encontrar. Recusa-se a ser nomeado bispo.

Nicolas de Cues (1401-1464), filho de um marinheiro, nascido nessa vila da


Moselle, obteve um doutorado de direito em Pádua, em 1423. No Concilio de
Basiléia, apresentou o tratado De Concordantia catholica (1437), em que seu
espírito crítico o levava a discutir a supremacia pontificai e a Doação de
Constantino. Rejeitava uma religião incapaz de livre invenção: "O que o move é
a confiança na autoridade, você é como um cavalo naturalmente livre, mas açai
mado pela arte humana, preso à sua manjedoura, onde não encontra outra
forragem senão aquela que lhe é oferecida.” É inútil acrescentar que, por muito
tempo legado pontificai na Alemanha, ele não pensa sair da Igreja romana tal
como ela é. Mas seu grito mais profundo não terá sido a lembrança de que,
acima dos livros dos homens, há “os livros de Deus, os que ele escreveu do
próprio punho”.

Lorenzo Valia (1407-1457, aproximadamente) nasceu em Roma, filho de um


advogado. Tornou-se padre em 1431 e durante algum tempo levou a vida errante,
de uma Universidade para outra, que, na época, era comum a muitos estudantes.
Tudo tem um fim: em 1437, Valia tornou-se secretário particular de Alfonso V, o
Magnânimo, rei de Aragão e de Nápoles, cidade onde, graças a este último, abriu
uma escola. Mais ainda do que por sua vida privada, que suscitou os mais
contraditórios julgamentos, ele merece a celebridade por suas obras. A De
Voluptate é um diálogo em que são comparadas as éticas estóica, epicurista e
cristã. Naturalmente, Valia é cristão, mas não é tanto do estoicismo, pregado por
muitos predeces sores, mas julgado demasiado austero e orgulhoso, quanto do
epicu rismo que se queixa. Para ele, o epicurismo é bem diferente da liberdade
dos “porcos”[2]. Celebra o “deleite”, de que o homem gozará um dia em Deus. o
da alma e do corpo simultaneamente — ita ut nulla Venus nec comparanda sit,
nec requiratur, de tal modo que nenhum amor carnal lhe poderá ser comparado,
nem será necessário.

A De Elegantiis é uma análise científica — sem dúvida, a melhor já feita — da


gramática e do estilo latinos.

Mas Valia ficou célebre principalmente devido a seu De falso credita e ementita
Constantini donatione declamado — “Discurso sobre a doação de Constantino
considerada injustamente autêntica” (1440). Ataca de frente essa doação
inventada no século VIII, na qual o imperador Constantino, convertido ao
cristianismo pelo papa Silvestre, teria por reconhecimento legado para sempre ao
papado, não só o poder espiritual sobre os outros patriarcados, mas uma
dominação temporal de Roma, da Itália e das províncias e cidades ocidentais.
Essa falsificação grosseira tinha sido considerada durante séculos como um
documento evidentemente autêntico. A política pontificai baseara-se em parte
nele, sobretudo contra os imperadores. Como vimos, na crise aberta pelo Grande
Cisma, que resultou nos Concílios reformadores, dúvidas tinham sido
levantadas. Pela primeira vez, o documento era criticado a fundo e
impiedosamente rejeitado. Tal audácia não podia ficar impune. Valia foi duas
vezes levado ante um tribunal inquisitorial, do qual foi salvo pela intervenção de
Alfonso V. Em 1447. o novo papa Nicolau V, já citado, iria acolhê-lo em Roma
na qualidade de secretário apostólico: “triunfo do humanismo sobre a ortodoxia
e a tradição”, escreveu-se. De qualquer modo. ao cristianismo exterior, fundado
no respeito da Igreja romana enriquecida por Constantino, Valia opunha um
cristianismo pessoal, o mesmo de São Paulo. Parecia-lhe vão querer conhecer o
segredo de Deus pela razão:

“Diria que nem os homens nem os anjos sabem o motivo pelo qual a divina
vontade endurece um no mal e tem piedade do outro. Ora, se a ignorância desta e
de muitas outras coisas não diminui o amor dos anjos por Deus, se eles, mesmo
assim, vão a seus ministérios e se sua beatitude tampouco diminui, por que essas
mesmas causas nos fariam perder a fé, a esperança e o amor? E enquanto
depositamos nos sábios nossa confiança sem razão, apenas em virtude de sua
autoridade, não a teríamos em relação a Cristo, virtude de Deus e sabedoria de
Deus?”

Ele recomendava um “epicurismo cristão”, que reabilitava o casamento — com a


mulher tal como a entrevira Bruni, não mais o ser faceiro, sensual, da qual
zombavam as fábulas satíricas, mas a companheira capaz de compartilhar as
noções e as emoções mais delicadas. Não nos espantamos se Lutero assim como
Erasmo professassem a maior estima por Valia.

[1] Moeda cunhada em Paris, que valia um quarto a mais do que a moeda
cunhada em Tours. Daí libra parisis e libra tornesa. (N.T.)

[2] Epicuri de grege porcus, exp. lat. sign. porco do rebanho de Epicuro. Frase
com que Horácio (Epístolas, I, 4, 16), por ironia, classifica a si mesmo, ao
criticar a linguagem dos estóicos, cuja austeridade excedia o razoável ante os
princípios da sua filosofia. Por causa de seu pitoresco, a expressão ficou para
designar qualquer homem grosseiramente sensual. (Grande Enciclopédia Delta
Larousse, 1975) (N.T.)
III. TENTATIVA DE BALANÇO
12. Esboço da nova Europa

A nova Europa? Ela lembra espantosamente aquela que o tratado de Verdun de


843 havia delineado, a velha Europa carolíngia que se lê ainda em nossos dias
como a Europa dos anos 1200, 1300 ou 1400 — hesitações significativas! Mas a
partir do século IX, ela confirmou-se e completou-se, seus traços definiram-se.
Nela reina a maior diversidade, como mostraram tantas páginas precedentes,
como mostrarão melhor ainda as que se seguem.

O eixo Itália-Países Baixos

Era o eixo da Europa carolíngia-Países Baixos, de que saíra a linhagem reinante,


Itália de onde tirara tantas inspirações, a começar pela idéia do Império. É ainda
aquele que, ao examinarmos um mapa econômico da Europa nos séculos XIV e
XV, logo localizamos.

A Itália — ou pelo menos sua parte central e setentrional. O Mez zogiorno, sob
domínio angevino e depois aragonês, já é subdesenvolvido. A Sicília surge
sobretudo como um celeiro de trigo, no qual os compradores servem-se
constantemente, mas com mais insistência nos anos difíceis. Em direção ao
centro, os Estados Pontificais, que tomavam a península obliquamente de Roma
a Rimini, formam o teatro, bastante anárquico, como vimos, de operações de
resgate das terras arruinadas. É, portanto, especialmente para os Estados urbanos
do Norte que devemos dirigir nossa atenção: eles acabam de se constituir no
século XIV e, freqüentemente, encontram-se envolvidos em lutas fronteiriças no
século XV.
“A César o que é de César”: Florença é uma capital econômica e monetária da
Europa (46. 73, 84). E isso é um fato novo: a cidade esteve durante muito tempo
atrasada, afastada da grande estrada Roma-Milão que, para evitar os ataques
vindos de Ravena, passava mais a Oeste, por Pisa e Lucca. Ao menos ela obteve
desse isolamento o gosto da independência, com o qual havia se habituado. São
seus talentos industriais que a tiram do ramerrão: a arte com que tingia os
melhores tecidos, os do Oriente e os de Flandres, e lhes dava os últimos retoques
— a Arte di Calimala. Mas necessitava ter um porto: em 1171, por ter ajudado
Pisa a triunfar sobre a coligação Lucca-Gênova, conseguiu um tratado comercial
que lhe permitia utilizar os navios pisanos pagando as mesmas tarifas dos
próprios pisanos, possuir entrepostos, etc. No século XIII. completou-se essa
ascensão econômica: os florentinos viajaram largamente, das feiras de
Champagne ao Oriente Próximo; desenvolveram sua própria indústria de lã. a
Arte delia Lana-, praticaram uma política de empréstimos, às vezes imprudente,
para os soberanos e para as cidades; criaram uma moeda de ouro, o florim
(1252) — contendo a imagem de São João Batista e a flor-de-lis — que logo
tornou-se o padrão monetário da Europa. As conseqüências políticas e militares
seguiram-se: a criação do condado florentino, país encerrado entre os Apeninos e
o mar Tirreno, com montanhas cheias de bosques, colinas vulcânicas, cobertas
de vegetação arbustiva, vales férteis, e baixas planícies litorâneas pantanosas. O
Arno constituía sua artéria principal. Englobava de início a diocese de Florença,
e as dioceses vizinhas de Fiesole. Prato, Pistoia, Arezzo; completou-se graças às
vitórias conseguidas depois de longas lutas, contra Pisa (1406), Lucca e
finalmente Siena (1455).

É em 1338 que se situa a famosa descrição deixada de Florença por Giovanni


Villani (90) —espécie de estatística, ela própria testemunho de um espírito novo.
Florença teria então 90.000 bocas para alimentar, mais os religiosos (ou seja,
cerca de 100.000 habitantes ao todo), e 80.000 no condado. Haveria cerca de
25.000 homens portando armas, com idade entre quinze e setenta anos. Haveria
entre 5.500 e 6.000 batismos por ano, com uma nítida predominância masculina:
este último número evidentemente é muito exagerado e não condiz com os
nossos conhecimentos demográficos. Villani indica a existência de 200 oficinas
da Arte delia Lana, fabricando entre 70.000 e 80.000 peças de tecido por ano; e
de 20 armazéns da Arte di Calimala, importando por ano mais de 1.000 peças de
tecido da França e de Além-dos-Montes, por 300.000 florins. Haveria 80
estabelecimentos de cambistas; e se teriam cunhado 350.000 florins de ouro, e
20.000 libras de deniers de prata. Villani interessa-se mesmo pelo nível cultural
dos florentinos: entre 8.000 e 10.000 rapazes e moças teriam aprendido a ler; a
um nível mais elevado, entre 1.000 e 1.200 rapazes teriam feito o aprendizado do
cálculo, em seis escolas; no nível superior, entre 500 e 600 teriam estudado
gramática e lógica em quatro grandes escolas. O que valem esses números que
foram visivelmente arredondados? Foram criticados, em particular por Werner
Sombart. Mais recentemente, entretanto, Armando Sapori examinou-os
minuciosamente e concluiu que pelo menos fornecem uma ordem de grandeza
verossímil.

E o grande período urbano de Florença. Em 1333 foi concluída a sexta muralha:


com extensão de 8.500 quilômetros, reforçada por 63 torres, englobando 630
hectares. Ela será suficiente até 1865. A partir de 1294, constrói-se a catedral
Santa Maria dei Fiore. Giotto, que passara a diretor dos edifícios em 1334, ergue
o célebre campanário em 1355. O Palazzo Vecchio da Senhoria é terminado em
1304. Em 1336 foi decidida a construção do Or San Michele, mercado, e depois
igreja das Artes; ela prosseguirá até 1377.

No entanto, sob certos aspectos, Florença já se encontra em declínio. Uma


primeira epidemia, que se seguira a uma fome, teria feito 15.000 vítimas em
1340, segundo Giovanni Villani. Em novembro desse mesmo ano, uma
conspiração dos Bardi contra o regime teria sido abortada a tempo, e dezesseis
deles teriam sido presos. Em 1342-1343 situou-se o breve episódio de Gautier de
Brienne, duque de Atenas, chamado para dirigir a cidade, mas cujos excessos
logo cansaram. Sobrevieram então as grandes falências de 1343 a 1346. E,
finalmente, a Peste Negra teria matado entre 40.000 e 50.000 florentinos. Desde
então a cidade conheceu mais de um acesso do flagelo. Estabilizou-se com uma
população em torno de 50.000 a 60.000 habitantes e também com um espírito de
prudência indicado por vários sinais. Desse modo, o sistema das grandes
sociedades centralizadas iria evoluir pouco a pouco para o do século XV, cujo
modelo seria o grupo de companhias dirigido pelos Medici.
Assim forjar-se-ia uma organização política original, destinada sobretudo a
multiplicar as precauções contra o poder de uma única pessoa (71). Florença é
guelfa (do nome da família Welf, antiga rival dos Hohenstaufen, família reinante
— por oposição aos gibelinos, de Weiblingen, local de um castelo que pertencia
aos Hohenstaufen), pois conquistara sua autonomia contra o imperador. O único
partido admitido é o partido guelfo. Por prudência, os nobres ou magnatas foram
excluídos da vida política: em 1293, as Ordenanças de Justiça determinaram que
não poderia ser nem prior nem gonfaloneiro de justiça, nem (salvo alguns)
pertencer aos Conselhos. Uma rudimentar separação dos poderes já surge aí. O
poder executivo, ou Senhoria, compõe-se de oito priores, pertencentes às Artes
Maiores, e do gonfaloneiro de justiça, designados para o período de dois meses.
São assistidos por dois colegas e diversas comissões. O poder legislativo está nas
mãos de dois corpos, escolhidos pela Senhoria para um período de seis meses (e
só quatro a partir de 1366): o Conselho do povo, de 300 membros, e o Conselho
da Comuna, de 200 (dos quais 1/5 de magnatas). Entretanto a iniciativa das leis
pertence à Senhoria; só são adotadas se receberem 2/3 dos sufrágios em cada um
dos dois Conselhos; o que permite que muito poucos projetos sejam aprovados.
O poder judiciário é o único setor confiado a não-cidadãos: são nobres
estrangeiros, assistidos por legistas, que são chamados para serem podestade,
capitão do povo, executante das Ordenanças de Justiça. Além disso, dirigem a
polícia, e tropas armadas são colocadas à sua disposição. O sistema das eleições
é particularmente sutil: um corpo eleitoral escolhe uma lista de elegíveis, entre
os quais os priores são sorteados a cada dois meses. Mas essas listas são revistas
a cada três anos, por três corpos diferentes, que devem pronunciar-se sobre cada
caso com a maioria de 2/3. Para ser elegível, é preciso ser guelfo, ter pelo menos
trinta anos, fazer parte de uma Arte, não ser falido, magnata ou culpado junto ao
fisco. O divieto impede qualquer prior de ser novamente escolhido antes de
decorrido o prazo de três anos. Desse modo, restam poucos elegíveis: em 1343,
segundo Giovanni Villani, 3.000 nomes tinham sido propostos, e apenas 300
conservados.

Todo esse sistema repousa numa base dupla: As Artes, e o partido. As Artes
regulamentam a produção e a venda da maioria dos produtos. Entre elas,
distinguem-se as sete Artes Maiores (Calimala, Lana, Cambio, Por San Maria ou
comerciantes de seda, Médicos e Dro guistas, Peleiros, Juizes e Notários) e as 14
Artes Menores (Açougueiros, Comerciantes de vinho, Sapateiros, Curtidores de
peles, Ferreiros...). Cada Arte possui seus cônsules e seus Conselhos, vigiados de
perto pela Senhoria. O partido guelfo tem capitães, sorteados, e Conselhos. Pode
recrutar tropas. Forma uma espécie de Estado dentro do Estado, mais aliado à
Senhoria que subordinado a ela.

O que pensar desse sistema complicado? Suas imperfeições são evidentes: a


extrema divisão da autoridade, a brevidade das funções opondo-se a qualquer
estabilidade verdadeira. Toda uma parte da população está excluída: os magnatas
e o povo. De fato, esse regime republicano instalou-se numa sociedade violenta,
onde se vive no temor contínuo de um golpe. Em certa medida, a continuidade é
garantida graças à imbricação dos termos. E, se muitas pessoas são excluídas,
numerosos são os cidadãos que participam também no exercício de diversas
funções e adquirem aí um mínimo de experiência política. De fato, tudo é
dominado por um grupo bem limitado de mercadores ricos e abastados, cerca de
5.000 pessoas, ou seja, no máximo, 5% da população.

Regime protegido demais contra a autoridade — regime que por fim sucumbirá.
A evolução pode ser vista na história dos Medici. Essa família, que gostava de
dizer-se ligada a Perseu, aparece nas crônicas florentinas no final do século XII.
O primeiro membro distintamente conhecido é Salvestro dei Medici que, em
1378, foi o chefe real da revolução popular dos Ciompi (cardadores de lã). O
verdadeiro fundador da fortuna da família foi Giovanni di Bicei dei Medici
(1360-1429), que adotou uma atitude mais moderada, ao mesmo tempo em que
sempre apoiava as Artes Menores, o que lhe assegurou grande popularidade.
Pelos seus negócios, acumulou uma importante fortuna da qual se beneficiarão
seus herdeiros; até o Concilio de Constança deu-lhe oportunidade para ganhos
consideráveis. O pequeno grupo de famílias — entre as quais os Albizzi —, que
tinha açambarcado o poder depois da repressão dos Ciompi, limitava
cuidadosamente o número de elegíveis, exilava as linhagens rivais, como os
Alberti, os Medici, e conduzia uma política exterior brilhante, mas penosa, cujo
apogeu foi marcado pela vitória contra Pisa. A oposição crescia, em particular
em torno de Giovanni. Quando ele morreu, em 1429, foi alvo de grandiosos
funerais, dos quais participaram representantes do imperador, de Veneza, etc. A
prova de força começou em 1433: como a guerra contra Lucca fracassara mais
uma vez, Cosimo, filho de Giovanni, negociou uma paz de compromisso. Então
os Albizzi fizeram com que fosse julgado responsável pela derrota e fosse
exilado por dez anos em Pádua. Ao mesmo tempo, os Medici eram declarados
magnatas. Mas Cosimo foi bem recebido em Pádua e Veneza. A Senhoria
designada em setembro-outubro de 1434 era a seu favor e mandou revogar o
decreto que o bania. Pôde então efetuar um retorno triunfal, ao passo que os
Albizzi foram inscritos, por sua vez, como magnatas.

A dominação política dos Medici será afirmada com Cosimo. Entretanto, o


espírito republicano, a desconfiança em relação ao poder pessoal continuavam
vivos. É preciso respeitar as aparências. Ele não exerce mais magistraturas do
que qualquer outro elegível; foi por três vezes gonfaloneiro de justiça — apenas
seis meses em trinta anos. É através de sua influência pessoal, de sua rede de
amigos, os quais transmitem seus conselhos, que ele se impõe. Somente em caso
de extrema necessidade, procede a banimentos. Com essa finalidade foi criado
em 1458 o Conselho dos Cem.

É, portanto, Cosimo (Cosme, o Velho) que devemos focalizar em primeiro lugar.


Sem dúvida, é o homem mais notável da família. Hábil e prudente, é bom
diplomata. Controla de perto seus negócios, o que não o impede de praticar um
mecenato muito esclarecido. Manda construir o convento dominicano de San
Marco, decorado com afrescos por Fra Angélico. Funda as duas primeiras
bibliotecas modernas da Europa: a Marciana e a sua própria (que se tornará a
Laurenziana), ambas providas de um catálogo. Favorável ao plato nismo, manda
vir a Florença o filósofo Marsile Ficin.

Seu filho, Piero, il Gottoso, só lhe sobrevive cinco anos (1464-1469): ótimo
homem de negócios, mas fraco e bastante pressionado por seu círculo, teve de
reprimir uma conspiração em Florença. Então passam ao primeiro plano seus
filhos Giuliano e Lorenzo. Giuliano é um homem sedutor, mas totalmente
estranho aos negócios, cujo peso recai então sobre seu irmão, Lorenzo, o
Magnífico. Ora, este é muito inferior a seu avô Cosimo. Nos negócios, não tem a
mesma prudência e não os controla de perto o suficiente. Tem, por outro lado,
gosto pelas festas e pelo luxo, mas sem verdadeira personalidade artística e
intelectual. Cada vez mais deixa-se levar por seus agentes, sobretudo Francesco
Sassetti, diretor do banco de Florença, muito seguro de si mesmo, e Tommaso
Portinari, dirigente da ramificação de Bruges, que passa a emprestar demais aos
duques de Borgonha, ao mesmo tempo em que mostrava um gosto artístico
bastante seguro — encomenda quadros a Memlinc e tapeçarias. Lorenzo comete
muitas imprudências políticas. Reprime em 1470 a revolta de Prato. Em 1478, a
conjuração arquitetada pela rica família dos Pazzi chega a um palmo do sucesso:
Giuliano é morto na catedral. Lorenzo consegue refugiar-se na sacristia. A partir
de então, comanda uma repressão feroz. Mas em 1480 passa a predicar um
dominicano oriundo de Ferrera, Girolamo Savonarola, prior de San Marco, que
denuncia com vigor os vícios difundidos em Florença e o abuso das riquezas.
Nos últimos momentos de vida, Lorenzo solicita em vão seu perdão, e morre
sem absolvição (1492). Seu filho Pietro, o Azarado, acabará por ser expulso pela
intervenção francesa.

Tudo isso não deve nos fazer esquecer o extraordinário florescimento da arte e
da literatura de que Florença foi palco. Yves Re-nouard escreveu: “O gênio
germinou em Florença nos séculos XIV e XV como nunca o fez em nenhuma
cidade do mundo” (71).

Assim como Florença era, no século XIII, uma novata no concerto das potências
italianas, Veneza aparecia como a patriarca (32, 51, 85). Desde o início do século
VI, Cassiodoro indicava as atividades de seus habitantes no comércio do sal e no
transporte de mercadorias. Seu crescimento fez-se aos poucos na órbita
bizantina. Ela emancipou-se, tornou-se aliada de Bizâncio e, finalmente, em
1204, foi a alma da conquista de Constantinopla pelos Cruzados. É aqui que os
primeiros traços do espírito “capitalista” foram sentidos no Ocidente: o
testamento (único conhecido, mas deve haver outros) de um nobre investindo
importante quantia no comércio demonstra-o bem. Por fim, que quadro
geográfico original, o qual ainda hoje faz parte da voga do turismo veneziano! É
um verdadeiro paradoxo o nascimento dessa metrópole sobre algumas ilhas
espalhadas numa laguna no fundo de um mar quase fechado. De fato, essas ilhas
serviram como refúgio para os habitantes do continente invadido pelos
lombardos no século VI. Não tinham outra possibilidade senão viver do mar,
mas poderiam ter vegetado. O crescimento da cidade é resultado de um conjunto
de notáveis qualidades humanas: coragem, espírito de iniciativa, tenacidade...

Veneza foi a única potência medieval que teve de fato um Império colonial,
depois da Cruzada de 1204. A própria Senhoria conquistou seus pontos
principais. Os outros foram confiados a patrícios, que conquistaram feudos:
assim, Marco Sanudo fundou o ducado do Arquipélago no mar Egeu. Ao longo
da costa oriental do Adriático e do mar Jônio, há Ragusa e Durazzo (até 1358),
Zara, as ilhas de Corfu (a partir de 1386), Cefalônia, Zante e, finalmente, os
portos de Modon e Coron no Peloponeso. No mar Egeu, a colônia principal é a
ilha de Creta, “núcleo e força do Império”; ao longo da Grécia, há a ilha de
Negroponto (antiga Eubéia). Uma grande parte do arquipélago (à exceção de
Quios que é genovesa) está nas mãos dos patrícios. Em Constantinopla,
reconquistada pelos bizantinos, um acordo com Basileu deixou para Veneza, ao
longo do Corno de Ouro, um importante bairro, com sua igreja, sua própria
administração, locais de comércio (acontece o mesmo em Tessalonica). Além
disso, os venezianos gozavam de uma extensa isenção alfandegária no Império
bizantino, e da liberdade do tráfico — portanto, de acesso ao mar Negro. A
administração desse conjunto é pesada, centralizada: há sempre um bailio ou
reitor, assistido por um Colégio executivo e por Conselhos. Os postos superiores
são confiados a patrícios venezianos, eleitos pelo Grande Conselho ou pelo
Senado, em geral para dois anos, com instruções precisas. Esse centralismo é
atenuado pelas distâncias — é necessário quase um mês para ir de Veneza até
Cândia, em Creta —, pela participação das aristocracias locais nos ofícios
menores, pelo respeito aos privilégios locais, como em Corfu, em Tessalonica...
O que pode possibilitar uma ampla autonomia para a colônia: é o caso de
Ragusa. Fora do Império, há estabelecimentos comerciais de mercadores
venezianos como em Lajazzo (Armênia), na Síria, no Egito (Alexandria).

A importância desses estabelecimentos comerciais cresceu muito quando, depois


da decomposição do Império Mongol, Veneza perdeu o contato direto com o
Extremo Oriente que, no século XIII, as viagens dos Polo lhe haviam garantido.
Lajazzo e principalmente Alexandria tornavam-se os grandes mercados da seda e
das especiarias. O Império possuía também seus próprios recursos, apreciados
por Veneza: trigo, vinho, mel de Negroponto; vinhos do Peloponeso (comprados
em Coron e Modon); trigo, mel e cera das planícies romenas; alume (mas muito
menos que Gênova); escravos, cujo tráfico fazia-se sobretudo no mar Negro.

Veneza tinha um sério concorrente no Oriente: Gênova que, com Pisa, apoiara os
Cruzados na Síria. Agindo principalmente no Império Bizantino, Veneza não
sentira de início nenhuma rivalidade. Entretanto, para lutar contra a pesada
predominância dos venezianos, Basileu concedia, no seu Império, benefícios aos
genoveses. Os venezianos desforraram-se deles na Síria. Os genoveses ajudaram
Basileu a reerguer-se em Constantinopla em 1261. Acredita-se que tenham
ocorrido guerras entre as metrópoles. Citamos agora, rapidamente, uma série de
quatro, de 1261 a 1270, depois de 1294 a 1299, de 1351 a 1355, e, finalmente, de
1377 a 1381. Foram disputadas com obstinação. Em 1379, com o apoio dos
pequenos príncipes vizinhos de Veneza, os genoveses chegaram às cercanias da
laguna. Mais adiante voltarei a falar sobre as graves consequências que sofreram
pela derrota no combate decisivo de Chioggia.

De qualquer modo, uma lição Veneza aprendeu com isso: era preciso dominar a
Terra Firme, onde, em 1274, ainda era proibido a seus cidadãos adquirir
domínios pois isso poderia desviar do comércio capitais úteis. Mas era
necessário proteger as rotas comerciais do resto da Itália e da Alemanha. O
desaparecimento do imperador deixava que príncipes menos importantes, mas
ambiciosos (como os Carrara de Pádua), tivessem possibilidade de controlá-las,
de enriquecer-se através dos pedágios, ou até de aliarem-se aos genoveses. Não é
por acaso que a conquista definitiva da Terra Firme seguiu-se a Chioggia. Em
1420. Veneza tornou-se senhora do grupo Verona-Pádua-Treviso, do Friúli, da
Istria: estabeleceu sua influência sobre a Dalmácia. A luta contra Milão faria
com que seu poder se estendesse até Bergamo e Brescia (paz de Lodi, 1454).
Surgiram então todas as vantagens que lhe proporcionava seu condado: ele
fornece o aprovisionamento, a madeira para suas frotas, homens para suas
tropas. Rende 306.000 ducados para a Senhoria em 1440, contra 180.000 para as
outras posses de Ultramar. Oferece, para os próprios venezianos, várias
oportunidades de investimentos territoriais, cada vez mais apreciados, enquanto
no Oriente multiplicam-se as dificuldades.
Em geral, considera-se que Veneza tenha atingido seu apogeu em 1423. Data de
então o discurso que o historiador Marin Sanudo, ao escrevê-lo mais de um
século depois, colocou na boca de Thomas Mocenigo, doge expirante (32):

“Senhores. Nós os convocamos, a todos, pois Deus quis nos dar essa
enfermidade que porá termo à nossa peregrinação, e louvamos bem alto a
onipotência de Deus... A cujo Deus trinitário somos muito gratos, por inúmeras
razões. No que nos concerne, encontramos o dito Deus nos 41 que nos elegeram
chefe de nossa cidade, com numerosos capítulos a respeitar: defender a fé cristã,
amar o próximo, fazer justiça; querer a paz e conservá-la; coisas que nos
esforçamos para fazer, e que Deus, que tudo fez, seja louvado! Assinalamos que,
nesse meio tempo, amortizamos 4 milhões de imprestedi, dívida da Câmara que
fora contraída para a guerra de Pádua, Vicenza e Verona, e nosso total devido
encontra-se em 6 milhões de ducados; esforçamo-nos para fazer de tal modo
que, a cada seis meses, tivéssemos efetuado dois ‘pagamentos’ de imprestedi
além disso e todos os oficiais e administrações e todas as despesas do arsenal...

“Assim, como nos encontramos em paz, nossa cidade põe no comércio 10


milhões de ducados, para seus negócios, no mundo inteiro, tanto em naves, galés
e navios, de modo que o ganho desse investimento é de 2 milhões de ducados, e
o ganho, para trazê-lo a Veneza, é de dois milhões e, entre investimentos e renda
bruta, (o ganho) é de 4 milhões. Como vocês viram, 3.000 navios de 10 a 200
ânforas navegam, tendo 17.000 marujos; viram que temos 300 naves que levam
8.000 marujos. Viram que navegam, todos os anos, 45 galés, tanto “sutis" quanto
pesadas, que levam 11.000 marujos; viram 3.000 carpinteiros de navios, 3.000
calafates; viram 16.000 tecelões tanto em seda, tecidos de lã como em fustão de
algodão; viram as casas estimadas em 7 milhões e 50.000 ducados; os aluguéis
das casas, 500.000 ducados; há 1.000 fidalgos que têm rendimento anual entre
700 e 4.000 ducados... Vocês viram os rendimentos de Veneza serem de 774.000
ducados, os da Terra Firme 464.000 ducados, os do mar 376.000...

“Vocês viram nossa cidade cunhar todos os anos em ouro 1.200.000 ducados; em
prata, tanto em mezzanini, gros e soidos 800.000 ducados por ano, dos quais
5.000 marcos por ano vão para o Egito e para a Síria; em grossetti vão todos os
anos para suas regiões de Terra Firme, e em mezzanini e soldini, 100.000
ducados. Para suas terras marítimas, vão todos os anos 100.000 ducados de
soidos, e o resto fica em Veneza. Vocês viram que os florentinos trazem cada ano
16.000 peças de tecido de lã, tanto médios, finos, como muito finos. E nós
levamos para eles na Apúlia, reino de Sicília, Catalunha, Espanha. Barbaria
(Maghreb), Egito, Síria, Chipre. Rodes, Româ-nia, Cândia, Moréia, Lisboa, e
cada semana (?) os ditos florentinos trazem 7.000 ducados de mercadorias de
todo tipo, ou seja. por ano, 150.000 ducados, e compram lãs francesas, lãs da
Catalunha, grãos de quermes, sedas, ceras, ouros e pratas tirados à fieira,
açúcares, pratas brutas, especiarias grandes e miúdas, alume de rocha, anil,
couros, jóias, para o maior benefício de nossa terra...”

Os números citados com orgulho nessa triunfante estatística — cerca de um


século mais tarde, eco daquela que Giovanni Villani traçara para Florença —
foram, evidentemente, discutidos: tomando um a um, o probo historiador que era
Gino Luzzatto demonstrou, em 1954. que certamente eram exagerados, aliás de
modo desigual, mas não tão inverossímeis (344).

Paremos para considerar o que Veneza era realmente na época. Devido às


epidemias, devido também à presença variável de elementos flutuantes, sua
população oscilava entre 100 e 180 mil habitantes. Dividia-se em classes sociais.
O patriciado era uma nobreza de dupla origem: grandes linhagens de
mercadores-armadores e proprietários de terra (de nenhum modo feudais)
oriundos da Terra Firme. Eram as "200 famílias" que monopolizavam a vida
política. Abaixo delas, os cidadãos deviam ser filhos e netos de venezianos, e
não praticar nenhum ofício "mecânico"; dedicavam-se ao comércio ou a
carreiras administrativas. O povo, muito variado, compreendia negociantes,
cambistas, lojistas, alguns muito abastados; artesãos agrupados em Artes, que a
Senhoria vigiava de perto, mas não muito poderosos, pois, ao contrário de
Florença, ali não havia indústria muito grande. As únicas que podiam pretender
esse título eram as indústrias navais, que a Senhoria possuía — e nas quais
praticava uma política de emprego e de altos salários; portanto, a calma reinava.
Não seriam os marujos, submetidos às obrigações de suas tarefas, que iriam
rompê-la. O clero era numeroso e muito respeitado, pois a piedade — aliás,
principalmente prática e muito pouco mística — estava viva. Mas era vigiado de
perto: o patriarca, instalado desde 1451 em Grado, e depois em Veneza mesmo, e
os cônegos de São Marcos eram escolhidos pelo doge. Os bispos eram eleitos
pelo Senado. Era como uma “Igreja nacionalizada", que pagava seus impostos.

A vida política era uma atividade reservada ao patriciado: Veneza oferece o mais
belo exemplo de união do poder político com a prática dos negócios. A Senhoria
é o representante permanente do Estado. No seu comando, o doge é eleito de
maneira complicada (há onze escrutínios sucessivos), mas por toda a vida. Veste
um uniforme magnífico, títulos pomposos (“Príncipe Sereníssimo"); mas, fora a
autoridade moral de que pode gozar, não exerce muito poder. Propõe suas
opiniões nos Conselhos, mas não pode impô-las. Também está obrigado pelo
juramento solene que pronunciou quando de sua elevação. Alguém escreveu que
ele tem “a majestade de um príncipe e os deveres de um cidadão”. Em geral,
aceita esse “jugo dourado”. Deve fazê-lo. Francesco Foscari será deposto em
1457 pelas simples suspeitas que sua atitude despertará. É assistido pelo
Colégio. Paralelamente existe o sistema complexo dos Conselhos. O Grande
Conselho possui uma competência universal. No fim do século XIII, foi
“fechado”: em 1325, criou-se até mesmo um livro, onde estavam inscritas as
famílias que faziam parte desse Conselho. Desse modo, achava-se definida e
delimitada a nobreza. Mesmo assim é muito numerosa — cerca de 1.300
membros. Mas é o Senado (120 membros) que representa o papel essencial:
dirige a política estrangeira, nomeia os embaixadores; dirige a guerra, designa
eventualmente um capitão geral do mar e um da terra; organiza a vida
econômica, nomeia numerosos titulares de funções; tem um papel legislativo,
dividindo com o Grande Conselho o exame das proposições de lei oriundas do
Colégio. O Conselho dos Dez, instituído provisoriamente, tornou-se definitivo
em 1355 e nele juntaram-se o doge e seus conselheiros. Havia também um
advogado da Comuna, que podia defender os acusados. Seu papel consistia em
dirigir a polícia e proteger o Estado. É ele quem, em 1457, deporá Foscari.

O Grande Conselho participava da eleição para todas as magistraturas,


temporárias e coletivas, com poderes cuidadosamente delimitados: os
procuradores de São Marcos, que tinham postos vitalícios, dirigiam a
administração financeira; aos advogados da Comuna era atribuído um papel
sobretudo judiciário, além de conservarem o Livro de Ouro da nobreza; o
Grande Chanceler, não-patrício, escrevia e conservava as atas públicas, etc...

Podemos tentar, como fizemos com Florença, avaliar essa organização?


Numerosa e, sem dúvida, eficaz, intervinha em todos os campos geralmente de
maneira minuciosa. Podemos notar também seu caráter bastante aristocrático,
que entregava todo o poder aos patrícios, e seu caráter policial, marcado por
prisões e assassinatos. Pelo menos mantinha-se a paz pública, favorável ao
desenvolvimento dos negócios.

Podemos perfeitamente reconstituir as carreiras normais dos patrícios. Depois


dos estudos de gramática e de cálculo, feitos sob a direção de um preceptor
particular, havia o aprendizado no exército ou na marinha (especialmente nas
galés), e o início de uma atividade comercial. A juventude era passada em
viagens nos navios da família: o jovem nobre acompanhava a carga, negociava
as vendas e as compras. .. Isso se alternava com longas estadas no exterior — no
Levante, em Túnis, em Barcelona, em Portugal, em Londres — dedicadas a seus
negócios, aos de sua família, aos de seus correspondentes (sobre os quais
cobrava uma comissão de 2%). Com a idade madura, passava a ter uma vida
mais sedentária, talvez no exterior, mas geralmente em Veneza. Participava da
vida política, às vezes da administração de um território colonial ou de uma
embaixada.

Conhecemos alguns desses patrícios. O caso da família Barbarigo (954) pode ser
considerado como exemplo ou, pelo menos, uma de suas ramificações,
conhecida através de registros do século XV. pois havia uma outra ramificação,
que forneceu dois doges no século XV. Era de fato uma linhagem de nobreza
antiga. Em 1417, a ramificação pela qual nos interessamos teve uma queda
brusca. Niccolò Barbarigo, chefe de uma frota de galés oriunda de Alexandria,
passou por um canal interditado perto de Zara e perdeu ali uma galé que
encalhou num recife. Foi punido com uma multa de 10.000 ducados, que
arruinou a família. Esta foi restaurada por seu filho Andréa, que se lançou nos
negócios com um capital de 200 ducados, emprestados por sua mãe. Engajou-se
nas galés. Exerceu também as funções de procurador junto a um tribunal
comercial. Em 1431, possuía cerca de 1.600 ducados, capital inteiramente
investido no comércio. Para si mesmo, contentava-se com uma casa alugada,
com um único escravo . Em seguida, tirou proveito de suas relações: seus primos
de Creta; o banqueiro Francesco Balbi, que lhe concedeu adiantamentos; a rica
família Cappello, com quem se aliou por casamento, o que lhe permite dispor de
um dote de 4.000 ducados (1439). Aumentou assim o volume de seus negócios,
ao mesmo tempo que passou a ter uma vida mais abastada. Morreu em 1449,
deixando cerca de 15.000 ducados, o que mesmo assim não representava uma
enorme fortuna (sabe-se de um doge que, em 1476, possuía 160.000 ducados).
Pelo menos ele comprara um domínio, com uma casa de verão.

Podemos citar vários descendentes seus: o jovem primo Alvise da Mosto, que
navegou para ele na Barbaria, e será um precioso auxiliar do príncipe português
Henrique, o Navegador (que descobrirá as ilhas do Cabo Verde). Com seus
filhos, Niccolò e Alvise Barbarigo, marca-se uma nítida evolução: Niccolò fez
uma única viagem para Creta, para se ocupar dos bens que possuía lá; em 1462,
dos 15.000 ducados que ele possuía, menos de 1.300 estavam investidos no
comércio; em seu testamento de 1496, recomendava a seus filhos para
conservarem sobretudo seus domínios e seus títulos da Dívida, pois “a atividade
comercial não rende mais como outrora”.

O Senado dizia: “O comércio é a força de nosso Estado.” Com efeito, não há


grande indústria — salvo as construções navais —, mas uma atividade de
construção, e pequenas fabricações de luxo: o vidro, em Murano; o marfim e os
metais; a fabricação da seda, a partir de fios oriundos do Egito ou da China; o
algodão, com matéria-prima fornecida pelo Egito e pela Síria... Tampouco há
grandes companhias com várias sucursais, a não ser justamente as sucursais das
Sociedades florentinas. Contudo, há um banco local de transferência de fundos,
muito utilizado, no bairro de Rialto. A moeda é excelente: o ducado é cunhado
em ouro, matéria fornecida em abundância, e é muito procurado ao lado do
florim. Como nos outros lugares, também há uma moeda de prata e pequenas
moedas negras.
Dirijamos, então, nossa atenção para esse comércio, tanto marítimo como
terrestre. Os tipos de navios variam de acordo com os produtos a serem
transportados: galés mais caras, mais seguras e rápidas são reservadas para as
mercadorias de valor (seda, especiarias...); os grandes navios redondos carregam
o algodão e outras matérias menos dispendiosas; os navios pequenos transportam
o restante. Seu emprego é dominado pelo sistema de “mude”: uma “muda" é, no
sentido mais conhecido, um comboio; de fato, a palavra designa os períodos
durante os quais os navios podem ser carregados. Acontecem no Levante no fim
de março-abril e setembro-outubro. Quais são os objetivos do sistema? Evitar o
mau tempo: é claro que o mar nunca estava “fechado”; mas evitava-se voltar a
subir o Adriático contra os ventos do Norte, entre novembro e janeiro. Devia-se
facilitar a organização dos comboios: certamente, só havia comboio em caso de
perigo; mas o carregamento simultâneo dos navios permitia prepará-lo para o
imprevisto. Ao assegurar-se uma melhor utilização dos navios, tinha-se como
objetivo fazer com que realizassem duas viagens por ano. Os venezianos tinham
corretores no Levante, os quais faziam as compras antecipadamente. Mas a
tendência era fazer com que as negociações se arrastassem, a fim de se obterem
melhores preços. A fixação de um termo felizmente limitava essa tendência. Os
mesmos capitais serviam duas vezes para o algodão que, ao chegar da Síria em
junho-julho, logo era vendido; o dinheiro era investido em carregamentos de
navios que partiam em julho-agosto e chegavam ao Levante a tempo para uma
segunda “muda” de algodão. A renovação era menos rápida para as especiarias;
além disso, os pagamentos operavam-se muito lentamente. Era preciso assegurar
os chamados períodos “de feiras”, não no sentido exato do termo, incluindo
privilégios de feira; mas os períodos de transações ativas, em que Veneza
aparecia como o maior mercado mundial. Essas transações situavam-se entre as
chegadas e as partidas dos navios, próximo do Natal e no verão. Assim também
estava garantido o controle da quantidade de mercadorias que só era conhecida
de modo exato na conclusão da "muda”. Geralmente, a frota era anunciada por
um pequeno navio mais rápido. Então fixavam-se os preços, calculavam-se os
lucros e investia-se visando a próxima “muda”.

A partir dos incanti (leilões para a locação das galés, entre a República e os
particulares), Aldo Tenenti e Vivanti reconstituíram a evolução do sistema
(Andnales ESC, 1961): foi formado entre 1330 e 1340. No começo, os navios
eram construídos nos estaleiros particulares. O Estado impunha apenas algumas
regras de navegação. Quando o sucesso de um itinerário afirmava-se, assumia a
linha. As grandes viagens mais regulares eram as da Síria e Alexandria, com
escalas em Creta e em Chipre; a de Constantinopla e Tana, no mar Negro; a de
Flandres e Inglaterra. Mas também havia linhas secundárias: como, no século
XV, a viagem de Aigues-Mortes, prolongada até a Espanha; a partir de 1436, a
viagem de Barbaria, prolongada para o Sul da Espanha. Desse modo, constituiu-
se todo um sistema de linhas mercantes regulares.

O comércio terrestre com a Alemanha era igualmente essencial. Sem a clientela


alemã, Veneza teria sido asfixiada sob o peso dos produtos orientais, de modo
que o Fondaco dei Tedeschi era “o pulmão de Veneza" (80). Em princípio, todos
os mercadores alemães, que dominavam esse tráfico, residiam nesse edifício
situado próximo ao Rialto, reconstruído depois do incêndio de 1318.
Comportava dois andares, com dois pátios interiores, 56 quartos, armazéns, uma
sala de jantar, uma capela. Incendiou-se novamente em 1505, e então foi
construído o edifício atual. Apesar de ser bastante grande não era suficiente, e
muitos alemães acabavam por residir fora dele, no seio da colônia alemã situada
em volta do Fondaco e na Merceria. Mas era sempre no Fondaco que o mercador
devia comerciar, obrigado por uma regulamentação minuciosa: ao chegar, tinha
de mostrar seu dinheiro e sua mercadoria (pois não lhe era dado o direito de
trazer mercadorias inglesas ou flamengas, nem — a partir de 1447 —cobre
trabalhado); devia negociar apenas com venezianos, e o Fondaco transformava-
se em centro de coletoria das aduanas; não podia levar de volta mercadorias não
vendidas nem numerário. Da chegada à partida, era cercado de funcionários e de
controladores do Estado, que nem sempre eram imunes a algum tipo de fraude.
Aceitavam tudo isso, não apenas em razão da importância desse tráfico, mas por
causa do papel representado por Veneza como “escola superior dos mercadores
do Sul da Alemanha” — todos os mercadores importantes de Augsburgo, em
particular, ali se introduziram nos métodos comerciais e na prática da língua.
Esses aprendizados criaram até mesmo laços de amizade.

Assim vinham: da Alemanha para Veneza, os minérios alemães (ouro, prata,


ferro, cobre, chumbo e zinco), os produtos fabricados na Alemanha (couros,
tecidos de lã, fustões de algodão, panos de linho), assim como em trânsito as
peles do Norte e da Rússia; de Veneza para a Alemanha, os produtos do
artesanato veneziano (vidros de Murano, tecidos de algodão, de seda...), e em
trânsito os produtos do Levante (especiarias, açúcar, vinhos gregos, seda grega,
algodão...).

A luta contra os turcos domina a história de Veneza no século XV. Até aí, o
avanço dos turcos foi sobretudo em terra, envolvendo pouco a pouco
Constantinopla. Em vista disso, a expansão veneziana, servida por uma
supremacia naval segura e pela boa vontade das populações gregas incomodadas
pelos turcos, circunscreve esse avanço com uma espécie de "cordão” protetor.
Durazzo e Corfu (1387) são ocupadas, o poder sobre o Arquipélago torna-se
mais forte. No seio do Império, as relações com as populações autóctones
melhoram. inicia-se a evolução em direção a uma administração mista (ve-
nezianos e autóctones). Com a queda de Tessalonica (1431), o duelo passa a ser
direto. A expansão turca, além de terrestre, começa a ser marítima. Isso explica a
queda de Constantinopla (1453), de Ne groponto (1470), do Tana (1475), de uma
parte do Arquipélago. Veneza aceita essas perdas pela paz de 1479.
Compromete-se a pagar um tributo de 10.000 ducados para conservar o direito
de negociar no Império Otomano. Entretanto, à exceção do Mar Negro, o tráfico
continua — com Constantinopla e Tessalonica. Além disso, em 1489, Veneza
domina Chipre, que lhe é entregue por uma veneziana herdeira dos Lusignan.
Desse modo, o comércio continua importante. Mas o avanço turco continuará
(351).

Apesar de Veneza ser com certeza o maior mercado da Itália, não havia ali um
florescimento literário e artístico comparável ao de Florença. Entretanto, não se
deve negligenciar a evolução dos últimos decênios do século XV: certamente as
Universidades situavam-se em outros lugares, a de Pádua, por exemplo. Mas os
sábios gregos expulsos de Constantinopla trouxeram seus manuscritos, que se
acumularam na biblioteca de São Marcos. Veneza torna-se um centro de ensino
do grego e da filosofia platônica. Os impressores alemães também exerceram
alguma influência: a empresa gráfica de Aldo Manuce é fundada por volta de
1495, e Veneza será um grande centro de impressão. A arte, muito bizantina,
manifesta um gosto intenso pela cor, o que explica a adoção precoce da pintura a
óleo. No século XV, as pinturas de Giovanni e Gentile Bellini fundam a grande
tradição veneziana. Mas nota-se em tudo isso a predominância das influências
exteriores. Mas não se observam o mesmo poder criador nem a mesma
participação dos mercadores existentes de Florença.

Sob mais de um aspecto, o destino de Gênova assemelha-se ao de Veneza, assim


como dele se afasta (49, 56). A situação geográfica é notável: “lançada ao mar”
pela montanha que se ergue em inclinações abruptas e a isola do interior — a
pobre Ligúria, que só é rica em castelos —, Gênova, diferentemente de Veneza,
encontra no mar rivais próximos: Pisa, Marselha, e depois o rei de França, os
catalães... Até o século XI, era uma modesta parada na rota terrestre da França.
Foi fundamental para ela a luta — empreendida com uma mistura de fé religiosa
e de interesse comercial — contra os sarracenos, que infestavam as margens do
Mediterrâneo ocidental. Por uma inclinação progressiva, foi levada a transportar
e sustentar os Cruzados na Síria. Assim criou-se, a princípio indiretamente, uma
rivalidade com Veneza, a qual, como vimos, levou Gênova a grandes lutas. E,
finalmente, ao forte espírito coletivo dos venezianos opõem-se o individualismo
e o liberalismo dos genoveses, que, como se sabe, são tanto sua fraqueza quanto
sua força.

Gênova era uma cidade grande. A partir do número de casas construídas em


altura no solo escasso, Jacques Heers estimou sua população em pelo menos
100.000 habitantes. Graças ao comércio, Gênova não conheceu as penúrias, mas
sim as epidemias (portanto, os dois flagelos não estavam forçosamente
relacionados). Elas provocavam cortes consideráveis, sempre preenchidos por
uma forte imigração que a indústria absorvia. Era uma cidade muito moderna,
economicamente muito progressiva — onde apareceu pela primeira vez a
contabilidade de partidas dobradas, aperfeiçoou-se o seguro, desenvolveram-se
os transportes de massa através de grandes navios, o que contribuiu para o
progresso da ciência náutica.

Infelizmente também devemos apontar suas fraquezas. Dois grupos muito


diferentes de aristocratas entendiam-se mal ali: de um lado, uma aristocracia
feudal, que se interessava pouco pelo comércio (na metade do século XV. Eliano
Spinola era uma exceção), mas monopolizava os comandos militares e os
benefícios eclesiásticos; do outro, uma aristocracia de banqueiros (como os
Centurioni), de mercadores, de notários e de letrados. Eram dois grupos que se
ignoravam e que não se casavam entre si. No entanto, era preciso viverem
juntos. Questão de organização. De uma parte, havia os nobres, que não eram
todos senhores, não tinham títulos, não constituíam uma ordem. Para ser nobre,
bastava estar inscrito num dos 40 alberghi — grupos de pessoas que eram
designadas pelo mesmo nome e habitavam no mesmo bairro — como, por
exemplo, os Spinola de Luccoli. A outra metade da população era formada pelos
popolari, entre os quais figuravam também senhores, mas especialmente
mercadores (que também tinham seus alberghi) e artesãos. O doge era
considerado um popolare, e os empregos públicos eram divididos igualmente
entre nobres e popolari. É tudo? Não, pois a oposição tradicional entre Brancos e
Negros (Gibelinos e Guelfos) também pesava; quanto a empregos, compreende-
se que metade pertencesse aos Brancos e outra aos Negros. Esses dois grupos
oponentes não se sobrepunham um ao outro. Somente um genovês podia situar-
se nessa complicação!

Em 1339 foi criado o cargo de doge: era o chefe dos popolari, o “defensor do
povo”. Seu papel era sobretudo militar. Era eleito, em princípio para toda a vida.
por uma espécie de assembléia popular. Mas cada eleição parecia uma espécie de
reviravolta, e poucos eram os doges que não acabavam sendo depostos, e até
assassinados. Na ausência do Grande Conselho — um tipo de assembléia
popular, que raramente era reunida — era o Conselho dos oito Anciãos,
renovados a cada quatro meses, que dirigia os negócios, designava os outros
Conselhos (da Moeda, do Mar...), e os balies extraordinários, formados para
travar uma guerra ou restabelecer a paz civil. Sistema fadado ao insucesso, pois
os Anciãos governavam, e o doge dispunha da força pública, e não se entendiam
bem. Além disso, os pretendentes ao cargo de doge mantinham-se numa agitação
quase perpétua.

Felizmente (?), uma parte importante da vida financeira e econômica é subtraída


desse “governo da Comuna". Como o imposto direto não bastasse para cobrir as
várias despesas (especialmente as de guerra), era preciso recorrer a empréstimos,
muitas vezes a longo prazo. Devido a uma recente derrota em Chioggia, a cidade
tinha sido entregue ao rei da França, que nomeara governador o marechal
Boucicaut. Em 1407, Boucicaut confiou a “procuradores do ofício de San Gior
gio” a tarefa de fundir os compere, associações de credores cujo objetivo era
obter o reembolso de suas Dívidas. A fusão operou-se lentamente, em cerca de
meio século. Disso resultou a Casa di San Giorgio. Dirigida com grande
estabilidade por oito “procuradores e protetores”, cooptados para um ano entre
os maiores proprietários de títulos, ela administrava as percepções de
rendimentos que lhe tinham sido deixados em garantia: Dívida Pública, imposto,
monopólio do sal, colônias (entre elas, a Córsega) a partir de 1460, Zecca
(oficina monetária) de 1454 a 1473... Na base estavam os luoghi ou títulos da
Dívida, que rendiam juros de 7% calculados sobre seu montante nominal, mas
que eram negociados por quantias muito inferiores, que variavam de acordo com
os negócios públicos. Podiam até servir como moeda. Mais que um Estado
dentro do Estado, “San Giorgio era a comuna livre de todos os elementos
feudais. Os compere prefiguraram a República genovesa proveniente da reforma
de Andréa Doria em 1528” (J. Heers).

Enquanto isso, Gênova paga suas divisões pela submissão a dominações


exteriores: o imperador Henrique VII em 1311, depois o rei de Nápoles, o
duque-arcebispo de Milão Giovanni Visconti, o rei da França de 1396 a 1411
(depois de 1458 a 1461), o duque de Milão nesse meio tempo e depois disso.

Apesar de ser dominada por estrangeiros, Gênova tem um papel internacional.


No oriente, apóia-se na praça de Caffa, na Criméia, ponto de chegada das
especiarias e da seda, grande mercado de escravos; no bairro de Pera, em
Constantinopla. situado na margem asiática do Bósforo; na representação
comercial de Brousse na Ásia Menor; especialmente em Quios, “olho direito dos
genoveses”, grande centro de armazenamento de alume. O avanço turco é
exercido às custas desse edifício; Gênova perde Caffa e Pera em 1453; Quios
continua teoricamente sob seu comando até 1566. Eis aí o suficiente para levar
Gênova a tender cada vez mais para o Ocidente; aliás ela se encontra mais
próxima do Atlântico que Veneza. Os genoveses são recebidos de bom grado já
que não representam uma cidade imperialista. São encontrados tanto na
Inglaterra como na França, na Antuérpia como em Bruges, em Barbaria como
em Portugal (onde os Lomellini desenvolvem o cultivo da cana-de-açúcar na
Madeira), e principalmente em Castela. Obtêm com isso elementos importantes
para seu comércio: cereais, óleo, vinho, mercúrio — assim que ele aparece na
atividade dos Centurioni. Criam uma base para a exploração das Canárias, de
onde importam também o açúcar. É nessa linha que se situa a viagem que
Cristóvão Colombo, nascido em Gênova em 1451, agente dos Centurioni,
portanto, antes de tudo um mercador, empreendeu para a rainha de Castela, em
1492, em busca de ouro e de especiarias. Conhecemos o resultado disso.

Não falei do gosto dos genoveses pela arte e pela literatura. Não que não tenha
existido. Mas, para eles, arte e literatura representavam aspectos secundários.
Eram mais tentados a dissimular suas paixões. Suas preocupações eram
sobretudo práticas, por isso tiveram uma ótima escola de cartografia. Mas
Gênova era um centro muito original: ali a cidadania era rapidamente obtida, por
simples residência, mas tecia laços morais duráveis; o individualismo, uma
debilidade sob certos aspectos, encorajava também a audácia; enfim, mais que a
capital de um Império, a cidade era capital de um mundo — do qual surgirá o
Novo Mundo...!

De todas as grandes cidades italianas, Milão é a que teve o desenvolvimento


econômico mais tardio (36, 62). Até o século XIII, foi eclipsada por Pavia,
melhor situada, quase na confluência do Ticino e do Pó. Seu sucesso está
associado à abertura da estrada de Saint-Gothard, pois constituía-se em sua saída
natural. Economicamente, era uma cidade jovem, cujo dinamismo e
prosperidade contrastavam com as crises e a depressão constatadas em tantos
outros lugares. Também era uma cidade de imigrados que se interessavam pouco
pela política, já que lhes faltava o sentido da liberdade. Aceitariam a dominação
de uma dinastia feudal, contanto que esta garantisse a paz. Ora, existiam
estruturas religiosas e políticas antigas e fortes: Milão tinha sido no século IV a
sé de Santo Ambrósio, e seus sucessores exerceram um poder temporal muito
amplo, algumas vezes como vigários imperiais. Depois dos carolíngios, os
imperadores fizeram de Milão seu centro de ação, onde criaram a numerosa e
ativa nobreza dos vavassalos.
Tudo isso se encontra nos destinos da dinastia dos Visconti. Essa família de
origem modesta dominou Milão em meados do século XIII, com o arcebispo
Ottone Visconti, que fez nomear capitão do povo (1287) e depois vigário
imperial seu sobrinho-neto Matteo. Um outro arcebispo, Giovanni, exerceu o
poder na metade do século XIV, e fez reconhecer o príncipe herdeiro na
família. Em 1395, Gian Galeazzo obteve do imperador a elevação de seu Estado
a ducado da Lombardia. A manutenção de uma concepção patrimonial do
Estado, com partilhas sucessoriais, era uma fraqueza dos Visconti. Tiveram de
reconstituir seu Estado cinco vezes no século XIV e mais duas no século XV. A
morte de Gian Galeazzo em 1402 provocou a crise mais grave, que iria durar
mais de vinte e cinco anos.

O Estado milanês, portanto, varia geograficamente. Mas ainda compreende


Milão e sua arquidiocese, as cidades dos confins piemon teses (Alessandria,
Vercelle, Novara), as cidades dos confins dos Alpes (Angra, Bergamo), e uma
ponta em direção ao Pó. Não era um “contado” dominado por Milão, que é
apenas sua capital, submetida ao Estado. O governo da cidade e o do Estado
eram cuidadosamente distintos. O primeiro era confiado a um Conselho estrito
de doze membros, entre os quais dois juristas, e presidido por um vigário. O
duque nomeava o vigário e os juristas. No ducado exercia um vigoroso poder:
além de ter subjugado as comunas, fiscalizava a Igreja (era necessária sua
autorização para se obter um benefício) assim como a nobreza — proibida de
construir novos castelos, quando não tinha de destruir aqueles que parecessem
demasiado ameaçadores ao duque. Dispunha de um exército de mercenários, o
que dispensava os burgueses — e eles apreciavam isso — de qualquer obrigação
militar. Aplacou a oposição de Pavia, criando ali, em 1431, uma Universidade,
onde os filhos de nobres e de burgueses iam estudar, principalmente direito. Em
1391, erigiu uma cartuxa, destinada a receber os túmulos da dinastia.

Os Visconti praticaram uma política exterior ambiciosa. Lutaram sobretudo


contra Florença, dominaram, algumas vezes, Gênova: simples expansionismo ou
desejo (precoce) de realizar a unificação italiana? Conduziram brilhantes uniões
matrimoniais na Europa: uma prima de Gian Galeazzo casou-se com o duque de
Baviera, e sua filha Isabel seria a mulher do pobre Carlos VI, o rei louco de
França: uma filha de Gian Galeazzo, Valentina, casou-se com Luís de Orleans,
irmão desse mesmo Carlos VI, assassinado em 1407. Apesar da enorme taxação
financeira, os mercadores aceitavam esse Estado, porque ele fazia reinar a paz e
a ordem, oferecia perspectivas administrativas e títulos, regulamentara o
território, mandara construir estradas e pontes, cavar canais e além de criar
outras condições favoráveis ao comércio — e, finalmente, porque praticava uma
política econômica que eles julgavam ser eficiente.

No final do século XIII. Bonvesin de la Riva traçou um quadro muito lisonjeiro


sobre Milão (66). Falava em 200.000 habitantes, o que é um exagero; é possível
que contassem entre 50.000 e 80.000 almas. Poupada pela peste de 1348, Milão
sofreu seguidos acessos; entretanto, graças à imigração, sua população cresceu
pouco a pouco, até aproximadamente 90.000 habitantes em 1463. A planta da
cidade configurava grosseiramente um círculo, o que Bonvesin considerou um
sinal de perfeição. Houve alguns trabalhos — assim, após 1330, Azon mandou
calçar as ruas, concluir a muralha, consertar o palácio — mas tudo isso ainda
é pouco se comparado a outras cidades.

A economia milanesa caracterizava-se pela predominância do comércio. Não que


não houvesse indústrias na cidade. Ao contrário, ela possui algumas notáveis:
todos os têxteis eram trabalhados ali — lã, algodão, linho, e já a seda.
Principalmente as fábricas de armas e de armaduras gozavam de um renome
particular e possibilitavam exportações. As bombardas juntaram-se ao catálogo.
O papel e o vidro ainda eram. na época, indústrias de ponta. Contudo, os
mercadores dominavam essas fabricações, pois eram eles que as abasteciam em
matérias-primas e escoavam seus produtos (as telas de linho até os tártaros).
Encontram-se agrupados na Câmara dos Mercadores, que praticava uma política
ativa, enviava embaixadores e vigiava as passagens dos Alpes. Os duques
tratavam-na com consideração, ao mesmo tempo que a impediam de agir como
potência soberana.

Alguns mercadores milaneses começam a ser conhecidos. Irei me restringir aqui


a citar os Borromei. Encontramos, na sua origem, uma família abastada de
Pádua, os Vitaliani. Em 1406, um deles recebeu o sobrenome da mãe, uma
Borromeo di San Miniato: é Giovanni, amigo do duque Filippo Maria, que lhe
outorgou a cidadania milanesa. Tratava-se de imigrados, como era característico.
Giovanni fundou um banco, depois retirou-se dos negócios para dedicar-se à
administração, e tornou-se conde de Arone. Portanto, temos dois grupos mais ou
menos independentes um do outro: os Borromei de Itália, que possuíam bancos
em Milão, Roma, Veneza, e filiais na Espanha e na França; e os Barromei de
Bruges, com suas sucursais de Londres, Antuérpia e Middelburg. Estes últimos
são os mais conhecidos, graças à feliz conservação do livro razão da ramificação
de Londres relativo aos anos 1436-1439; os lucros, satisfatórios, atingiram 28%
em 1439. Mais tarde, a atividade dos Borromei canalizou-se sobretudo no campo
da política, do exército e da Igreja. Carlos Borromeo seria um notável arcebispo
de Milão no século XVI, vindo a ser beatificado.

Eram meios marcados pelo espírito de inovação e de investimento. Uma cláusula


que se propagou a partir do começo do século XV permitia uma bonificação
rural espetacular: no final de um contrato, o proprietário de uma terra devia
reembolsar as melhorias feitas pelo locatário; se não fosse capaz disso, devia
renovar o contrato nas mesmas condições e pelo mesmo tempo. Isso favoreceu
os locatários empreendedores, que só tinham de pagar um censo mínimo.
Assistiu-se a uma verdadeira expropriação da Igreja a seu proveito. A agricultura
entrou de fato numa fase capitalista. O exemplo era dado pelos duques. A
planície paduana transformou-se numa rica horta. A venda de legumes, frutas e
produtos da criação de animais fez com que afluíssem capitais para Milão. Os
cursos d'água, melhorados, serviam ao mesmo tempo para a irrigação e para o
transporte. Finalmente, havia uma atividade de construção bastante notável: as
catedrais de Milão e Pavia, e a Cartuxa de Pavia são os exemplos mais
conhecidos; mas muitos castelos foram restaurados, as villas rurais surgiram, as
casas urbanas foram aperfeiçoadas. A expressão “rico como um milanês” tornou-
se provérbio.

Depois de algum tempo, uma crise política interrompeu esse desenvolvimento.


Em 1447, Filippo Maria Visconti morria sem deixar herdeiro. Em Milão, alguns
nobres e juristas proclamaram a República. Ao mesmo tempo, o Estado
decompunha-se, enquanto surgiam candidatos estrangeiros à sucessão: o rei de
Nápoles, o duque de Savóia... Foi nessas condições que se sublevou Francesco
Sforza, filho bastardo de um camponês do Sul, que recebera uma boa educação e
casara-se com a filha natural de Filippo Maria. Servindo Milão como
condottiere, ele se voltou contra a cidade e apoderou-se dela em 1450; Cosme de
Medici fez com que fosse reconhecido em toda a Itália.

O progresso continuou sob a nova dinastia. Desenvolveu-se em particular a


cultura da seda: passou a ser obrigatório que todo proprietário de cem varas
cultivasse pelo menos cinco amoreiras (“mo ron” em patoá: daí o cognome More
[Mouro] que será dado a Ludo vico, filho e sucessor de Francesco). Do mesmo
modo, o cultivo do arroz propagou-se—começou a fazer parte do cardápio das
tropas por volta de 1500. E também os minérios passam a ser procurados nos
vales lombardos dos Alpes. A imprensa foi adotada em 1471. A importância das
colônias estrangeiras crescia: havia alemães (os Fugger de Augsburgo, em
particular), franceses, flamengos, ingleses...

Os Sforza mandaram executar grandes obras em Milão, com a ajuda de notáveis


arquitetos como Bramante. Contruiu-se o castelo da porta Giovia. Ergueu-se um
hospital geral, unificando-se todos os asilos anteriores. As obras da catedral
prosseguiram. Ludovico recorreu a humanistas, a sábios, a músicos. Leonardo da
Vinci. como vimos, veio organizar os prazeres de sua Corte.

Pena que Lodovico tenha se deixado levar pela ambição de criar uma monarquia
hereditária, suscitando assim oposições! Em 1492, a morte de Lorenzo, il
Magnífico, privou-o de seu melhor aliado. Quando Luís XII de França interveio,
em 1498, não pôde resistir-lhe, morrendo miseravelmente em Loches. Contudo,
continuou sendo um centro notável.

Quatro cidades, quatro patriotismos, quatro temperamentos diferentes!


Compreende-se que, além da comunidade lingüística e o desprezo pelos
ultramontanos, a Itália não seria, ainda por longos séculos, senão uma expressão
geográfica.

Pelos desfiladeiros alpestres, por Genebra e Basiléia, e depois pelo vale do Reno
ou pela circunavegação atlântica, chegava-se aos Países Baixos. Alcançava-se a
outra ponta do eixo. Os quadros políticos estavam em vias de transformação. O
passado legara uma fragmentação feudal extrema: a partir do Sul sucediam-se o
condado de Hai naut, a região de Liège dependendo de seus príncipes-bispos, o
condado de Namur, o condado de Flandres, o ducado de Brabant, as ilhas do
condado de Zelândia, e depois o condado de Holanda, a diocese de Utrecht, a
Guéldria e a Frísia. Legara também uma divisão entre reino de França e Império:
este compreendia o conjunto dos Países Baixos, mas a fronteira atravessava o
condado de Hainaut e o condado de Flandres, que no essencial, além das três
cidades de Bruges, Gand e Yperen, dependia do rei de França, que também
adquirira a Flandres valã de Lille e Douai. Legara, finalmente, um limite
linguístico, que o tempo não superaria: a linha passava por Courtrai, Bruxelas e
Louvain, depois atravessava o Reno entre Liège e Maastricht. No Sul, falava-se
valão e franciano, no Norte flamengo e neerlandês. Salvo nesse plano das
línguas, os séculos XIV e XV foram um período de simplificações, misturadas às
peripécias da Guerra dos Cem Anos.

Em 1361, depois da morte do duque Philippe de Rouvres, filho de Joana de


Boulogne, que casou-se pela segunda vez com o futuro rei de França, João II, o
Bom, o ducado de Borgonha retornou à coroa da França. Em 1363, João deu-o,
como herança, a seu filho Filipe, o Audaz, que o secundara admiravelmente no
curso da infeliz batalha de Poitiers. Filipe desposou Margarida, filha e herdeira
de Luís de Mâle, conde de Flandres, de quem herdou a sucessão em 1348 (a qual
também compreendia o condado de Borgonha, a Fran che-Comté). A partir de
1380, data do falecimento de seu irmão, o rei Carlos V de França, assumira, com
seus dois outros irmãos, a regência do reino de França. Em 1382, conduzira o
jovem Carlos VI, seu sobrinho, à vitória de Roosebeke sobre os flamengos
rebeldes. Em 1392, a loucura de Carlos VI fez com que tivesse um papel
importante na França. Em 1404, João Sem Medo, seu filho, sucedeu-lhe, e logo
(1408) obteve uma vitória sobre os liegenses, que haviam se revoltado contra seu
príncipe-bispo, seu cunhado João de Baviera. Mas João Sem Medo foi
assassinado em 1419. Seu filho Filipe, o Bom, foi rechaçado para a aliança
inglesa, e em 1420 participou do tratado de Troyes, que reconhecia Henrique V
de Lancastre como rei da França. Entretanto, ele captou a sucessão do Hainaut, o
que contribuiu para afastá-lo dos ingleses. Em 1433, herdou pelas vias normais o
Brabant e a Holanda, possessões de sua mãe. E, finalmente, em 1435,
reconciliou-se com Carlos VII, vitorioso graças a Joana d’Arc: o tratado de
Arras, que lhe reconhecia o conjunto de seus Estados em total soberania para
toda a vida, acrescentou a isso os condados de Mâcon, Auxerre, Bar-sur-Seine e
Ponthieu, e, sob reserva de resgate, as cidades do Somme (como Péronne). Na
Borgonha e nos Países Baixos tinha-se constituído então a extraordinária
potência dos “grandes duques do Ocidente”, para os quais só faltava o título real.
Carlos, o Temerário, seu filho, que lhe sucedeu em 1467, herdou a impossível
tarefa de adquirir esse título e reunir seus feudos — que nada mais separava
senão o ducado de Lorraine — num Estado coerente. Derrotado pelos suíços,
morreu durante o cerco de Nancy (1477). Seus Estados foram divididos entre
Luís XI e Maria de Borgonha, filha de Carlos e mulher de Maximiliano da
Áustria: a luta entre a França e os Habsburgo começava.

Mas esses são apenas quadros. O que nos interessa aqui é a vida econômica dos
Países Baixos. Embora não tivessem sido poupados das epidemias, eram Estados
que floresciam. Luís XI de França, que durante algum tempo ali se exilara,
elogiara-os como já vimos antes. Isso devia-se a uma agricultura muito
progressista, a uma tecelagem que se constituía numa das primeiras da Europa e
a um papel comercial que Bruges e Antuérpia ilustram em particular.

Até o século XII, Bruges era separada do mar por um conjunto de pântanos em
que a maré subia (74, 95). A navegação só podia atingi-la na maré alta. É
provável que um canal tenha sido aberto para facilitar a circulação. Em 1134 um
maremoto abriu uma baía na costa, o Zwin. O mar chegava então a 5
quilômetros da cidade; em 1180 fundou-se na sua orla o anteporto de Damme.
Também no século XII, o tráfico de Bruges começou a ganhar alguma expressão,
graças às relações com a Inglaterra, pois foi então que a tecelagem flamenga
utilizou em grande escala a lã inglesa, a melhor existente. Os mercadores
brugeses visitaram a Inglaterra inteira e animaram a Hansa flamenga de Londres,
a qual aparece nos documentos a partir de 1241. Bruges torna-se desse modo o
grande mercado da lã inglesa, que revendia a todos os centros fabricantes de
panos. A partir da união da Guyenne com a Inglaterra, representava também um
papel importante no comércio do vinho “gascão”.

No século XIII as relações de Bruges ampliaram-se, ao passo que diminuía ali o


papel dos comerciantes aborígines. Cada vez mais eram os mercadores
estrangeiros que vinham a Bruges, onde tinham certeza de escoar seus produtos
e encontrar tecidos flamengos como frete de retorno. Por volta de 1270, os
ingleses já tinham o papel mais importante. No início do século XIV surgiu o
sistema da Etapa e foram sobretudo os ingleses que levaram sua lã às cidades de
Etapa situadas no continente: Bruges beneficiou-se desse privilégio, várias vezes
em 1325-1326, em 1340-1348, e ainda em 1349-1352. Depois a Etapa foi fixada
em Calais, não longe de Bruges. Por volta de 1200, mercadores alemães de
Colônia e das cidades renanas também começaram a visitar Bruges. Depois foi a
vez dos mercadores que vinham de cidades mais setentrionais, Lübeck e
Hamburgo em particular. E finalmente, em 1277, chegaram as primeiras galés
genovesas, logo seguidas pelas galés venezianas. A ligação marítima direta entre
Bruges e a Itália estava estabelecida.

Os acontecimentos do final do século XIII consagraram esse declínio do grande


patriciado mercante em Bruges assim como em outras cidades flamengas. O
domínio que ele exercia sobre a administração municipal foi colocado em jogo
pelo que foi chamado de a “revolução democrática”, cujo principal animador foi
Pierre de Coninc, um tecelão brugês. A guarnição francesa de Bruges, em que se
apoiavam os patrícios, foi massacrada: foram as Matinas de Bruges (18 de maio
de 1302). Depois um exército de cavaleiros franceses foi esmagado em Courtrai
(11 de julho). A constituição urbana foi modificada em proveito dos artesãos.
Certamente o rei de França teve sua revan che em seguida. Mas os mercadores
eram desde então minoria nos governos municipais e tinham sido muito
atingidos pelos distúrbios. Seus sucessores contentaram-se com atividades
locais.
O século XIV pode, no entanto, ser considerado como o período de apogeu da
“Veneza do Norte”. A idéia tradicional é que sua fortuna provinha do encontro
entre mercadores, alguns oriundos do Mediterrâneo e do Atlântico, e outros da
Inglaterra e do domínio hanseático. Isso não é totalmente correto. Sem dúvida,
esses mercadores podiam fazer trocas entre si, permitidas na maior parte do
tempo por seus privilégios. Mas a economia internacional pôde dispensar o papel
de Bruges como intermediária. A Itália tinha relações diretas com a Inglaterra, e
por terra com a Alemanha. Bruges era um enorme centro de consumo, situada no
meio de uma região excepcionalmente rica e povoada. Os mercadores podiam
vir de todo lado para escoar ali seus produtos. Estavam seguros de encontrar no
local um frete de retorno: telas de Flandres e de Hainaut, dinanderies (objetos de
cobre batido) de Dinant e do vale do Meuse, mas principalmente os tecidos
flamengos, que agora eram em sua maioria tecidos médios, fabricados nas
cidades secundárias e no campo. Entre 1394 e 1410, Datini comprou 1.618 peças
de tecido originárias do vale do Lys (Courtrai, Wervick), e a Ordem Teutônica,
na Prússia, importou 11.000 peças de mesma proveniência de 1391 a 1399.
Bruges beneficiou-se também de uma organização financeira muito boa. A Santa
Sé mandava trazer, através de letras de câmbio, suas rendas da Polônia,
Alemanha, Escandinávia, transportadas até lá pelos han seatas em forma de
mercadorias. Era também o maior mercado internacional para os empréstimos, o
que facilitava a presença de capitais abundantes. Até as falências dos anos 1340,
os florentinos tinham aí o papel principal; depois foram os lucqueses, em
particular Dino Rapondi; os florentinos recuperaram sua posição no século XV.

Nessa época, eram muitos os mercadores estrangeiros em Bruges. Os hanseatas


eram seguramente os mais numerosos: calcula-se que fossem em cerca de 600 —
comissionados, criados e barqueiros — numa assembléia geral de 1457; mas
havia mais ainda no século XIV. Por muito tempo seu Kontor não tinha espaço
reservado. Os mercadores alojavam-se em hotéis ou na casa dos habitantes.
Faziam suas reuniões no convento dos Carmelitas. Entretanto, desde 1442,
passaram a ter uma casa. Mesmo assim era uma organização muito forte,
dividida em três terços (lubeckense-saxônico, westephaliano-prus siano,
gotlandês-livoniano), dirigida por seis Anciãos e dezoito assessores igualmente
eleitos nesses terços, com a existência de uma caixa alimentada pelas multas e
pelo Schoss (taxa de 0,14% sobre o câmbio). Quando o Kontor divergia das
autoridades municipais sobre as condições estabelecidas para o comércio,
chegava a abandonar a cidade e se instalar noutro lugar durante alguns anos.

Em seguida vêm os italianos, divididos um pouco antes de 1400 em “Nações”:


Bolonha, Florença, Gênova, Lucca, Milão, Piacenza, Siena e Veneza. Todas se
beneficiavam praticamente dos mesmos privilégios, definidos pelos tratados que
o conde de Flandres firmara com as cidades interessadas. Para dar um exemplo,
podemos examinar o que Gênova obteve em 1396: nenhum seqüestro de bens
poderia ser feito em represália pelos prejuízos de guerra devidos a outros
genoveses. Seria dado um aviso prévio de oito meses, caso o conde de Flandres
decidisse expulsar os genoveses. Os marinheiros genoveses conservariam todos
os seus direitos sobre seus navios fundeados em Sluis. Os genoveses não teriam
mais nenhuma taxa a pagar sobre suas mercadorias além daquelas que fossem
especificadas por acordo. Todas eram submetidas às mesmas restrições: exclusão
do comércio varejista, obrigação de sempre passar por um corretor, proibição de
comprar produtos locais para revendê-los no mesmo lugar. A Nação, dirigida por
um Comitê eleito (com um cônsul), era ao mesmo tempo uma associação
comercial, um círculo social (participando também das festas urbanas), e uma
confraria religiosa provida de uma capela. Pertencer a ela era uma obrigação.
Mas o número de membros era variável: 35 na Nação lucquesa, em 1378. Havia
casas consulares, várias delas instaladas na praça da Bolsa, assim chamada
porque ali encontra-se um hotel de propriedade da família Van der Beurse. Essa
praça era o ponto de encontro favorito dos italianos. Essa é a origem do termo
“Bolsa”, fadado a um tal sucesso.

Também havia ingleses, espanhóis, portugueses, mas muito poucos franceses,


porque o rei de França estava freqüentemente em conflito, ora com o conde, ora
com as cidades de Flandres. Não é de se surpreender que manuais de
conversação bilíngue tenham sido compostos em Bruges.

A organização do crédito e do banco em Bruges já foi estudada (pp. 124-5) (74).


Havia ali três setores economicamente bem distintos. Correspondiam a três
meios sociais não menos diferentes, que ainda nos falta evocar. Os “lombardos”
eram em geral originários de Asti e Chieri no Piemonte. Eram pessoas de fortuna
bastante razoável, cuidadosamente mantidos à distância da boa sociedade, que
tolerava suas atividades como um mal necessário. Assim, seus estabelcimentos
situavam-se no Quui Long, num bairro tranquilo, relativamente afastado do
centro. Não participavam das festas. Casavam-se entre si. Única exceção
conhecida: Simon de Mirabello, cujo pai morrera na prisão em 1333. Bem
depressa o empréstimo para consumo passara ao segundo plano para ele. Muito
ao contrário, concedeu adiantamentos ao conde e à cidade de Gand. Comprou
terras e senhorias. Ao casar-se com uma irmã natural do conde, tornou-se nobre
e passou a chamar-se Simon de Halen. Representou até mesmo um papel
político, como testa-de-ferro de Jacques van Artevelde. A esse título foi
proclamado regente de Flandres, vindo a acolher Eduardo III da Inglaterra em
1340. Havia os cambistas italianos, membros das Nações, que pertenciam às
grandes sociedades com várias sucursais. E, finalmente, havia os “trocadores"
que eram autóctones, cidadãos. Naturalmente, sua fortuna era variável. Alguns
pertenciam a famílias de maior destaque e ao clube da Poorterslogie;
participavam dos concursos de arco-e-flecha. Um dos mais brilhantes foi Évrard
Goe deric, de uma linhagem de escabinos. Tornou-se nobre e combateu várias
vezes a cavalo. Em 1379 fez parte de uma delegação da cidade de Bruges, que
assistiu ao casamento de Marguerite de Flandres com Filipe, o Audaz. Mas
também houve falências entre os “trocadores''. Aliás, seu número restringia-se
pouco a pouco. No final do século XV, tinham desaparecido completamente.

De fato, a partir da segunda metade do século XIV, Bruges começou a declinar.


Logo depois de aberto, o Zwin não parou de assorear-se. Foi preciso criar o
anteporto de Sluis, mencionado pela primeira vez em 1290, e unido a Damme
por um canal, que se tornava cada vez mais caro e difícil manter em bom estado.
Aliás, Sluis tendia a se desenvolver à parte, substituir Bruges como mercado,
sobretudo quando seu senhor, o caçula da família de condes de Flandres, quis
praticar uma política autônoma (1320). Bruges revidou mandando demolir seu
antigo anteporto, e fazendo com que o conde de Flandres lhe concedesse um
privilégio de etapa: toda mercadoria que entrasse no Zwin devia ser vendida a
Bruges. Durante todo o século XIV, Bruges fez confirmar e aplicar esse
privilégio. Apesar de tudo, as relações com o mar eram difíceis. Muitos patrões
de navios preferiam atracar na ilha de Walcheren e transferir suas mercadorias
em esqui fes que chegavam sem dificuldade a Sluis. Daí. cada vez mais era
preciso transportar as mercadorias para Bruges por terra.
Isso não era tudo. A nova produção de tecidos flamenga, a das pequenas cidades
e do campo, recuou no século XV diante da concorrência dos ingleses, dos
holandeses... Isso levou Bruges a tomar uma atitude protecionista, proibindo a
venda desses tecidos estrangeiros. Ao mesmo tempo em que se sentiam feridos
em seu individualismo por essa regulamentação, os mercadores não estavam
mais certos de encontrar em Bruges um frete de retorno.

A isso somava-se o nascimento de novos mercados nos Países Baixos. Para lutar
contra o protecionismo encontrado em Bruges, os ingleses favoreceram outros
portos: Dordrecht na Holanda, para onde os hanseatas transferiram seu
estabelecimento comercial em 1358-1360 (e ainda em 1388-1392); e,
principalmente, Middelburg, situado na costa da ilha de Walcheren em frente a
Bruges. Por volta de 1380, quando novos distúrbios agitaram Flandres, o conde
de Zelândia esforçou-se para atrair os italianos, os espanhóis e os portugueses,
mas não o conseguiu por muito tempo. No século XV, Middelburg tornou-se um
centro dos escoceses e dos bretões. Mas sofria por sua situação insular. Além
disso, cometeu o erro de procurar um privilégio de etapa, obtido em 1405, mas
que impunha as mesmas obrigações que a Bruges.

Finalmente, foram os portos do Escalda que mais se beneficiaram com a


mudança. Em primeiro lugar Bergen-op-Zoom, que obteve duas feiras em 1350,
mas que a evolução dos canais no estuário do Escalda desfavoreceu
progressivamente no século XV a ponto de fechar esse porto em 1530. Depois, e
de modo duradouro, Antuérpia (91-94). Desde o século XIII, Antuérpia era
bastante conhecida como porto de importância inter-regional e como centro da
indústria de tecidos — porém, secundário. Os primeiros grandes sucessos datam
do século XIV. Em torno de 1320, Antuérpia obteve o direito de ter duas feiras, a
de Pentecostes e a de outubro. O duque do Brabant esforçava-se em atrair os
mercadores italianos e hanseatas através de privilégios. Antuérpia representava
então o mesmo papel em relação à tecelagem brabantesa, que Bruges em relação
a Flandres.
Entretanto, em 1356, Antuérpia passou, juntamente com Meche len, para o
domínio do conde de Flandres. Chegou-se a cogitar se não haveria aí uma nova
política inspirada por Bruges para arruinar essa nova concorrência. Contudo, se
o conde fez com que a etapa do sal, da aveia e do peixe passasse de Antuérpia
para Mechelen (1358), também desejava beneficiar-se das taxas arrecadadas em
Antuérpia. Por outro lado, os mercadores brugeses favoreciam as feiras de
Antuérpia, ao mesmo tempo que as controlavam; por exemplo, reservavam para
si mesmos a venda da lã e das especiarias. No final do século, essas feiras eram
cada vez mais freqüentadas por novos grupos de mercadores: holandeses, que aí
vendiam cereais e cerveja; alemães do Sul e mercadores de Colônia ligados às
feiras de Frankfurt; ingleses repelidos pelo protecionismo flamengo.

No século XV, Antuérpia beneficiou-se de várias inundações, que aprofundaram


no Escalda os canais que conduziam a seu porto. Entretanto, assim como a
produção de tecidos flamenga, a produção de tecidos brabantesa declinava. Foi
fundamental que Antuérpia não tenha adotado na época uma atitude
protecionista. Beneficiou-se, ao contrário, de novos circuitos comerciais. Os
mercadores de Colônia e das cidades do Reno abandonavam cada vez mais
Bruges em proveito de Antuérpia; levavam para lá seu vinho e seus produtos
fabricados, e absorviam os tecidos ingleses que revendiam no Sul da Alemanha.
Com a insegurança reinante devido à Guerra dos Cem Anos na França e nas
costas atlânticas, uma parte das especiarias italianas vinha diretamente pelo Sul
da Alemanha até Antuérpia. Esse tráfico contribuiu para suscitar no seio desta
uma riqueza que foi investida em explorações mineiras: principalmente o cobre e
a prata encontraram um bom mercado em Antuérpia, onde a prata era
sobreestimada na moedagem a partir de 1465. E esses metais atraíram os
portugueses para Antuérpia, pois aí podiam conseguir o cobre procurado na
África e a prata buscada na índia; em troca, forneciam seus produtos exóticos e
orientais. O crescimento das tonelagens dos navios no século XV também
favoreceu Antuérpia (e Amsterdã) contra Sluis, onde não podiam mais atracar. A
partir de então, precipitaram-se as últimas fases do declínio de Bruges. Ainda
durante algum tempo, Lübeck e as cidades vendes favorece ram-na, pois
gozavam ali de uma preponderância que não encontravam em outra parte. Mas
as medidas tomadas para esse fim nem sempre eram respeitadas pelos hanseatas,
cujo número diminuía, a ponto de, em 1472, ter sido preciso reduzir o de seus
Anciãos e assessores de 24 para 18, depois para 12 em 1486. Os distúrbios que
marcaram a regência em Flandres de Maximiliano da Áustria, de 1482 a 1493,
representaram um golpe fatal para Bruges, que se revoltou contra ele. Em março
de 1484 e em junho de 1486, Maximiliano ordenou aos estrangeiros que a
abandonassem. Na segunda vez, chegou mesmo a determinar-lhes sua ida para
Antuérpia. Em seguida, deu-se o retorno oficial das Nações para Bruges; porém
muitos mercadores continuaram fixados em Antuérpia. O movimento do porto
de Sluis nos diz muito: de setembro de 1486 a setembro de 1487, 75 navios, que
representavam 8.300 tonéis; apenas 42 (4.800 tonéis) de setembro de 1499 a
setembro de 1500!

Bruges bem que tentou lutar, mas sem sucesso. O fortim que junto com Gand foi
construído numa margem do Escalda para interceptar o tráfico de Antuérpia foi
subjugado ao cabo de alguns meses. Ela autorizou altos gastos para melhorar o
acesso de Sluis. Várias vezes, aplicou com maior rigor o sistema da etapa; e
depois, em 1501, abandonando seu protecionismo tradicional, obteve a Etapa
dos tecidos ingleses em Flandres. Por volta de 1500, era freqüentada somente
por alguns mercadores. Conservou um certo papel como mercado financeiro,
onde se podiam conseguir empréstimos; mas também nesse campo afirmou-se a
concorrência de Antuérpia, que se tornou um grande mercado de capitais na
segunda metade do século XV, sobretudo com a chegada dos Fugger. Desde
então Bruges sobreviveu apenas como centro de chegada da lã espanhola (e
inglesa, depois da perda de Calais pela Inglaterra em 1558). No final do século
XVI, a revolta dos Países Baixos contra a Espanha poria um fim até mesmo a
essa sobrevivência, e Bruges entraria num sono multissecular (do qual não a
tiraria sequer o movimento dos turistas), enquanto Antuérpia iria se tornar um
dos grandes portos da Europa moderna.

A vertente atlântica

Com Antuérpia abordamos a vertente atlântica da Europa. As dimensões deste


livro evidentemente afastam a idéia, que eu poderia ter, de apresentar um quadro
completo das economias inglesa, francesa e ibérica, sobre as quais, entretanto,
não faltam escritos. Devemos nos limitar a algumas idéias gerais e a algumas
sondagens.

A Inglaterra dos séculos XIV e XV era o país que já observamos em várias


oportunidades. Possuía uma agricultura avançada de modo desigual, às vezes
mais do que se podia suspeitar. Foi relativamente poupada pelas guerras, mas
menos às suas custas do que se acreditou, revoltando-se, às vezes, contra as
desigualdades sociais que, nas condições e no espírito da época, elas
provocavam (33, 37, 50, 69, 86).

No tráfico dos mercadores ingleses, o primeiro lugar era tradicionalmente


ocupado pela lã, a melhor que havia, procurada especialmente pelos flamengos e
italianos... Para os ingleses, a vinda destes à Inglaterra para procurá-la era, de
início, um comércio passivo. Mas, relacionada às falências dos mercadores
italianos por volta de meados do século XIV, uma Etapa da lã foi criada, por
onde a lã exportada devia passar: ora era uma cidade inglesa, ora uma
continental, fixando-se por fim em Calais. A Companhia da Etapa, que agrupava
os exportadores ingleses, tinha o monopólio da compra e concedia subsídios ao
rei. Mas, no século XV, a exportação da lã começou a decair.

Ao contrário, a exportação dos tecidos fabricados na Inglaterra progredia.


Também era praticada por uma Companhia, a dos “Mercadores Aventureiros”:
assim eram chamados os mercadores que faziam, não a viagem regular de
Calais, como os mercadores da Etapa, mas outros trajetos, visando vender seus
produtos “à aventura”. Iam sobretudo à Prússia, aos países escandinavos, aos
Países Baixos, onde tinham obtido, respectivamente em 1391, 1408 e 1407,
privilégios, em particular o direito de administrarem eles próprios suas
representações comerciais. A Companhia dos Mercadores Aventureiros dos
Países Baixos tornou-se a mais importante entre todas as outras: só ela é
mencionada pelos textos que não se referem a qualquer outra especificação
geográfica. Compunha-se de grupos individualizados residentes nas grandes
cidades e de onde iam às feiras dos Países Baixos. Assim, podiam ser
encontrados em Newcastle, em York (onde a Companhia tinha uma grande sala
ou hall), em Bristol (primeira menção em 1477, com viagens principalmente
para a Espanha e para os países atlânticos), e em Londres (onde se confundia
com a corporação dos armarinheiros).

Havia também o comércio do vinho, importado da “Gasconha”, considerável a


partir do século XII. O vinho era essencialmente transportado por duas frotas,
que saíam de Bordeaux no outono e na primavera. E havia outras exportações
ali: o estanho, as peles, os alabastros (espécie de gipsita branca, que se
assemelha ao mármore...) E, finalmente, no século XV desenvolveu-se o
comércio com a Islândia, apesar das hesitações da Noruega e da oposição da
Hansa. A partir de 1412, começou a ser praticada a pesca de bacalhau (e de
outros peixes) em pequenos navios, a partir de Lynn e dos portos do Nordeste,
ou a partir de Bristol. Desde então estendeu-se uma atividade propriamente
mercante, com parada de verão na Islândia.

Podemos destacar algumas figuras de mercadores ingleses? Eram sobretudo


exportadores de lã. A documentação de que dispomos é composta
principalmente de correspondências. Um exemplo é a dos Stonor, que possuíam
domínios em Oxfordshire e nos condados vizinhos. Havia, entre outros, Thomas
Betson, noivo da jovem Ca therine Riche, com quem se casou em 1478, vindo a
morrer em 1486 — apenas depois de oito anos de casamento, mas na época a
aventura era comum.

Podemos citar ainda os Cely (60). Richard, o pai, morreu no fim de 1481 ou
começo de 1482. Deixava três filhos: não falemos senão por memória de Robert,
talvez o segundo, que era “a ne’er-do-well” (um homem inútil); o primogênito,
Richard, administrou seu domínio de Betts (paróquia de Alveley, no Essex)
depois dele; o mais jovem, George, morava a princípio em Calais, lugar bastante
adequado a um caçula. Em Londres, residiam em Mark Lane, perto da Torre. Eis
uma carta enviada por Richard, o pai, a George:

“Jesus M.IIII C.IIIIxx


Minhas saudações, recebi uma carta sua, escrita em Calais em 16 de outubro, e
se compreendí bem, você vendeu um fardo de minha boa lã das Costwold, ao
preço de 19 marcos o saco, e 6 fardos de minha lã média das Costwold, ao preço
de 13 marcos o saco, tudo vendido à vista a Jean van Underhay de Malines...
Ainda não embalei minha lã em Londres, nem comprei um único floco de lã,
pois a lã das Costwold é comprada pelos lombardos, também estou menos
apressado em embalar minha lã em Londres. Atualmente tenho um grande
estoque de lã em Calais; que Deus nos conceda uma boa venda! É tudo o que
tenho a dizer para o momento. Que Jesus o proteja. Escrita em Bretts, em 29 de
outubro prestamente [...] por Richard Cely.

Endereço: que esta carta seja entregue a George Cely em Calais.”

Notemos as invocações religiosas desenvolvidas numa carta de 1487: “Que Jesus


Todo-Poderoso conserve e guarde você e todos os seus por muito tempo com boa
saúde e prosperidade, pois Deus Todo-Poderoso envia novamente o mal aqui
para Calais e na região em que essa grande peste de doença se abate, imploro a
Sua Misericórdia que a apazigüe.” Verificamos que o autor da carta estreitou sua
cronologia: respondeu no dia 29 a uma carta expedida de Calais, por seu filho
George, no dia 16 — um prazo de 13 dias, portanto. Além disso, essas cartas
permitem reconstituir a atividade desses mercadores. Eles compravam lã na
primavera ou no outono, momento em que se matavam muitos animais que não
poderíam ser alimentados durante o inverno. Essas compras eram feitas freqüen
temente nas Costwold, colinas situadas a Oeste de Oxford. Mas ali havia a
concorrência ilegal de flamengos e de italianos. A lã, empilhada em fardos, em
seguida era encaminhada, por caravanas de animais de carga, até Londres, e
depois até Calais por pequenos navios originários de vários portos. Os pacotes
eram controlados na travessia. A venda era feita em Calais ou nos Países Baixos.
O exportador procurava então levar seu dinheiro para a Inglaterra, a fim de pagar
os produtores, de quem tinha comprado a crédito.
Os mercadores de Londres foram cuidadosamente estudados por minha velha
amiga Sylvia Thrupp (87). Ela observou que esses mercadores estavam
agrupados em corporações (crafts), algumas principalmente industriais (como as
dos curtidores, dos ourives), outras puramente comerciais (mercadores de vinho,
especieiros, peleiros, armarinheiros, vendedores de tecidos de lã...). Cada
corporação reunia assalariados, pequenos patrões e grandes mercadores. Havia,
portanto, uma dupla seleção entre as corporações importantes e as secundárias;
nas primeiras, entre os notáveis, “homens de libre”, e os outros membros. Esse
fosso ampliou-se no século XV. Os notáveis formavam clubes, tinham um lugar
à parte nos pequenos palácios adquiridos pelas corporações no século XV. Cada
corporação, dirigida por oficiais, estabelecia toda uma regulamentação do
comércio. As vezes, havia uma confraria à parte, como a dos peleiros. De fato,
os grande mercadores eram pouco especializados e praticavam vários outros
comércios ao mesmo tempo, além daquele ao qual correspondia sua
especialidade oficial. Numa população urbana total de 30 mil a 40 mil
habitantes, havia cerca de 1.200 mercadores, ou seja, um grupo social de 6.300
pessoas aproximadamente, com mulheres, crianças e aprendizes. Entre eles,
encontravam-se cerca de 700 homens de libré.

Como Londres era uma capital, esses mercadores puderam de início representar
um papel político nacional. De fato, eles quase não se exprimiam no seio da
Companhia da Etapa, que discutia, no entanto, sobre a importância dos subsídios
com o rei. Mais precisamente, pelo fato de o rei e a Corte residirem com
freqüência em Londres, enriqueciam-se, subvencionando-os, e, por outro lado,
suas relações com a Corte possibilitavam que ocupassem cargos e preenchessem
missões diplomáticas. Havia ainda a representação nos Parlamentos: uma parte
da delegação da cidade, cerca de um quarto, era composta de mercadores. Eles
também representavam o condados vizinhos em que tinham propriedades. Seu
papel municipal era essencial: Londres era governada pelos aldermen. que eram
escolhidos pelos diversos bairros (wards) e elegiam entre eles o prefeito; e pelo
xerife, que tinha poderes judiciários e policiais. Essas diversas autoridades
deviam resistir aos avanços do rei. levando sempre em conta a opinião pública.
O século XIV ainda estava muito perturbado, principalmente com a grande
revolta de 1381. No século XV, surgiu uma clara tendência aristocrática: os
aldermen eram reeleitos em princípio e permaneciam por toda a vida nessas
funções. Em caso de vacância, o Conselho da cidade elegia dois candidatos, os
quais escolhiam o prefeito e os outros aldermen. Dois xerifes eram designados,
um pelo Conselho, o outro pelo prefeito. Toda essa administração era dominada
pelos mercadores, que comandavam a justiça, as finanças, a regulamentação
(logo, as condições de trabalho, os salários...)

Muitos mercadores eram descendentes de camponeses ou de artesãos, mas


principalmente de mercadores das cidades secundárias, que chegavam com um
pequeno capital inicial. Havia também os descendentes de famílias mercantis
locais. As ligações estabeleciam-se por casamentos entre as linhagens, mas
também através de associações comerciais. As grandes corporações estabeleciam
um capital mínimo, que se devia possuir para se estabelecer. As fortunas obtidas
eram conhecidas pelos testamentos. Segundo o costume de Londres, um terço
dos bens móveis cabia à viúva, um terço aos filhos e um terço era destinado aos
legados piedosos e caritativos. Assim, no século XV. 45% dos especieiros
tinham menos de 400 libras esterlinas, 28% entre 400 e 1.000, 18% mais de
1.000. Também havia as propriedades territoriais. Era raro que não
representassem senão uma pequena parte do patrimônio, em geral entre a terça
parte e a metade. Esse patrimônio era composto de bens variados: manors (como
eram chamadas as senhorias na Inglaterra), terras, casas, rendas..., amplamente
espalhados pela Inglaterra (à exceção do Norte).

Esses mercadores dedicaram-se realmente à exploração de seus domínios: entre


os Cely. era o pai que o fazia quando os filhos estavam no exterior. Esses bens
tinham uma dupla utilidade para eles: constituíam uma garantia, que permitia a
obtenção de crédito: eram uma segurança para o futuro da mulher e das crianças,
e seus rendimentos permitiam também fundar uma capelania (com um capelão
que rezava por suas almas). Assim, os capitais não eram reservados para o
comércio.

Notamos que no século XV uma proporção crescente dos filhos de mercadores


tinha outra atividade que não o comércio. Encontram-se algumas famílias
estabelecidas por longo tempo em Londres: como os Elsyng, armarinheiros
durante cerca de cento e vinte anos; os Doget, dos quais o mais antigo que
conhecemos é um taberneiro morto em 1282, e depois mercadores de vinho
durante cinco gerações; os Gisors, que se estabeleceram em Londres no início do
século XIII (certamente de origem italiana), dos quais ainda encontramos uma
ramificação no século XVI. Mas. em geral, as famílias de mercadores ricos só
ficavam em Londres durante três gerações. Quando permaneciam por mais
tempo, era sinal de declínio. Preferiam instalar-se em seus domínios rurais e
pertencer à gentry rural, o que provava uma elevação social. Havia, aliás,
numerosas relações entre mercadores e nobres: os mercadores ostentavam
insígnias, admitiam nobres em suas corporações (havia cerca de trinta nobres
entre os armarinheiros de 1430 ao final do século XV). Alguns eram mercadores
e nobres ao mesmo tempo. Entretanto, não havia casamento entre eles; os filhos
de mercadores esposavam os dos juristas e dos oficiais inferiores (na falta de
mercadores). E poucos mercadores faziam-se sagrar cavaleiro: era uma honra,
mas que comportava pesadas despesas militares e administrativas. Um mercador
enriquecido preferia instalar-se em seus domínios rurais, casar-se na pequena
aristocracia local (gentry), que bem depressa assimilava seus descendentes.

Entre os estrangeiros, havia duas categorias principais. Os hansea-tas possuíam


em Londres uma importante representação comercial provida de privilégios.
Forneciam mercadorias essenciais, especial mente os cereais, a madeira, a pez, a
cera, as peles. No século XV houve um esforço inglês para penetrar no domínio
hanseático e obter reciprocidade, por exemplo nas cidades da Livônia e da
Prússia. Seguiram-se várias guerras, nas quais as cidades hanseáticas do Oeste,
Colônia em particular, interessadas menos diretamente nos conflitos, tomaram
uma posição à parte. No início do século XIV, os italianos ocupavam uma praça
importante, emprestavam dinheiro ao rei, arrecadavam impostos por sua conta,
principalmente os mercadores e financistas florentinos. Isso resultou, como
vimos, nas grandes falências dos Peruzzi, dos Bardi, etc. Mesmo depois, Londres
continuou sendo um lugar importante para eles, onde as Companhias italianas
tinham sucursais, sobretudo as de Veneza, Florença, Milão. Compravam aí a lã,
os tecidos, o estanho, as peles, os alabastros; e vendiam as especiarias, as sedas,
o algodão, o alume. Para elas, Londres também era uma praça financeira
importante. No meado do século XV desenvolveu-se o comércio genovês:
Gênova, aliada da França, tinha sido mal vista até então, mas a Guerra dos Cem
Anos perdia sua importância. Os genoveses trouxeram o alume, o pastel-dos-
tintu-reiros. Instalaram-se sobretudo em Southampton, porto freqüentado
também pelos florentinos a partir do momento em que possuíram uma frota, e
mesmo os venezianos. Esses italianos eram mal vistos na Inglaterra, houve
acessos de xenofobia, como por ocasião das rebeliões populares de 1456-1457
em Londres e depois em Southampton.

Colocou-se o problema do papel econômico representado pelos italianos na


Inglaterra. A tese corrente defendia que os italianos consideravam a Inglaterra
como um país retardatário, mas cuja lã era procurada. Seriam os italianos que,
com suas compras (logo, com seu dinheiro), com seus investimentos, lhe teriam
proporcionado o desenvolvimento econômico. Quando a Inglaterra tornou-se
bastante rica, teria expulso seus mestres. Postan criticou esse ponto de vista:
certamente os italianos introduziram suas técnicas avançadas, como o seguro.
Mas não se deve exagerar: os ingleses tinham, e conservaram, suas técnicas
próprias, como o crédito, as transferências de fundos, as associações. Quanto aos
capitais, alguns eram provenientes da Itália (e o efeito das falências foi fazê-los
ficar), mas outros vieram da Inglaterra (na forma de impostos arrecadados para o
rei). A maior parte desses capitais foram emprestados ao rei para suas guerras:
pode-se dizer que os italianos ajudaram o rei a mobilizar os recursos do reino,
que foram desperdiçados na França.

Passemos para a França, cujo destino devia ser — e foi — tão diferente, já que
ela teve de suportar fisicamente o peso da guerra. Deixando que se formem por
si mesmas as reflexões gerais inspiradas em seu exemplo (o que não é tão
simples!), vou me restringir aqui a três sondagens: um meio urbano, Toulouse;
um meio campestre, Anjou, um homem, Jacques Coeur.

Por que Toulouse (99)? Afinal era apenas um centro secundário, uma cidade que
devia ter atingido cerca de 40.000 habitantes no começo do século XIV, mas que
não tinha mais de 20 mil ou 25 mil um século mais tarde, apesar da imigração da
qual se beneficiava, portanto, em óbvio declínio, além de não estar situada em
nenhum grande eixo comercial e de sofrer com as crises da época: guerras (era
“barreira” do Languedoc face à Guyenne inglesa e servia de palco para a luta
entre as casas de Foix e de Armagnac), fomes e epidemias. Encontrava-se em
depressão, testemunhada por aspecto físico: muitas casas em ruínas, pontes mal
conservadas... Mas, justamente, estudando-a, pode-se ver como o mercador
comum reagia diante das dificuldades da época.

Os tráficos tolosanos baseavam-se em primeiro lugar e principalmente num


comércio local e regional, que visava o abastecimento da população em víveres,
matérias-primas para o artesanato (têxteis, madeira, couros...) e objetos
fabricados. Eram fornecidos, seja pelas vizinhanças mais próximas — era o caso
dos cereais, do vinho, uma parte dos animais e da lã, da madeira, dos couros...
—, seja pelas regiões um pouco mais longínquas, que faziam chegar ali suas
especialidades — madeiras e pedras dos Pirineus, sal do baixo Languedoc,
animais e queijo do Maciço Central, lã e óleo de Aragão... Além disso, Toulouse
constituía um trecho de trânsito, entre essas diversas regiões e também entre elas
e o exterior. Sua dificuldade era encontrar no local ou nessas regiões produtos de
troca, suscetíveis de serem vendidos no exterior: tecidos, pastel-dos-tintureiros,
pentes de buxo do Plantaurel, etc...

Toulouse mantinha também tráficos mais distantes. As relações com o


Mediterrâneo não eram tão desenvolvidas: Toulouse comprava suas especiarias
em Barcelona, com um trajeto terrestre até Perpignan, e marítimo do Roussillon
a Barcelona. No começo do século XIV, seus mercadores freqüentavam
Montpellier, onde compravam aviamentos e sedas, e quando necessário trigo da
Sicília, contra tecidos e couros; depois mantinham relações sobretudo com as
feiras de Pézenas e de Montagnac, onde estabeleciam contato com os
mercadores italianos — eram os mesmos tráficos: aviamentos e sedas contra
tecidos. Entretanto, tiveram muito pouco contato direto com mercadores
italianos. É significativa a ausência de qualquer colônia italiana em Toulouse,
onde ela começa a se formar por volta de meados do século XV. Toulouse
mantinha relações com os países de língua d'oil. buscava nos Países Baixos uma
parte dos tecidos de lã procurados por seus habitantes — tecidos flamengos no
começo do século XIV, depois tecidos médios de Wervick e de Courtrai, e
também os tecidos de luxo do Brabant e depois os da Normandia (Montivilliers).
O principal caminho, em direção a esses países, era a via terrestre pelo vale do
Ródano e Paris; não havia nada equivalente a Oeste do Maciço Central. Uma via
mais acidentada, porém menos repleta de pedágios e menos freqüentada pelas
companhias de mercenários, chegava a Lyon, atravessando o Maciço Central por
Rodez e Puy. No século XV, desenvolveram-se as relações com as feiras de
Gênova. Os tolosanos compravam ali aviamentos, sedas e talvez especiarias. É
preciso insistir também nas relações com a Inglaterra, já atestadas no século
XIII: vinhos do “haut pays” contra lãs. Nos séculos XIV e XV, apesar do
obstáculo (intermitente) das guerras, o comércio diversificou-se: os tolosanos
mandavam trazer arenques salgados, peles, estanho, trigo e principalmente
tecidos (de qualidade média); expediam pastel-dos-tintureiros. Mas essas
relações não eram mais diretas: eram feitas pelo vale da Garonne, repleto de
pedágios e ameaçado pelas operações militares; também, para Bordeaux,
geralmente fazia-se um desvio por Condom. Por intermédio dos bearneses
neutros, arrieiros e mercadores, organizou-se uma via terrestre para Bayonne,
por Tarbes e Pau.

Uma regulamentação precisa e minuciosa dominava o artesanato e o comércio.


Quase todos os ofícios eram organizados — ao contrário do grande comércio e
do câmbio, que permanecem livres. Tou louse possuía feiras e mercados. Os
mercadores tolosanos freqüen tavam também uma rede de pequenas feiras
regionais, Moissac e Agen, Muret e Pamiers, Avignonet e Castelnaudary. Tanto
os corretores, verdadeiros funcionários públicos, que eram encarregados de pôr
em contato compradores e vendedores, quanto os hospedeiros, que notificavam
seus clientes dos estatutos em vigor e fiscalizavam as transações, intervinham
em toda a vida econômica. As técnicas eram extremamente rudimentares: não
havia sistema de seguros, era lenta a penetração da letra de câmbio, as
contabilidades eram bastante simples, e havia exclusivamente as associações
sumárias, que agrupavam dois ou três associados pelo curto período de um a três
anos. Em meados do século XV, e sob influências italianas, o banco começou a
dar os seus primeiros passos.

Não se deve acreditar que os mercadores tivessem a exclusividade das funções


comerciais: notários, médicos, etc., também negociavam. Em período de
penúria, a especulação com o trigo era feita por todos aqueles que poderíam
conseguir algum estoque. A maioria dos tolosanos tinha condições de se auto-
abastecer com suas propriedades ou com o trabalho. Entre os mercadores, não
existia especialização. Seria muito arriscado: em tempo normal, os habitantes
conseguiam seus víveres pelo auto-abastecimento, e os produtos fabricados eram
vendidos normalmente; em tempo de penúria, com os preços dos víveres que
subiam, não sobrava mais dinheiro para os produtos fabricados. Tornava-se
então mais interessante especular com os cereais. Era, portanto, mais prudente
traficar de tudo. Acrescentemos que não havia limite bem definido entre
comércio no atacado e no varejo. Muitos mercadores faziam seus próprios
transportes.

Qual era o poder dos mercadores na cidade? Sem dúvida Toulouse era mais
comercial do que industrial, mas ao lado dos mercadores havia os juristas e os
"burgueses", nobres ou não. que viviam das rendas de suas propriedades
territoriais. O poder era o capitoulat, corpo municipal composto por quatro, seis.
ou doze membros. Tinha-se acesso a ele através de uma combinação entre a
cooptação (os que saíam propunham três candidatos por posto) e a escolha feita
pelo viguier real. De acordo com uma pesquisa abrangendo o período de 1380-
1381 a 1420-1421: em 404 capitouls, houve 103 mercadores. 98 cavaleiros e
donzéis, 86 juristas e notários, 65 "burgueses" não-no bres. 1 artesão (mais 51
indeterminados). Os mercadores eram, portanto, a categoria melhor
representada.

Mas é preciso constatar o prestígio que ainda tinha para ele a propriedade rural e
o gênero de vida nobre. Não havia preconceito contra o comércio, e até alguns
nobres dedicavam-se a essa prática — contudo, o mais elevado continuava sendo
adquirir propriedades territoriais, se possível uma senhoria, e chegar à nobreza
pelo capitoulat. O dinheiro consagrado a isso era sempre um pouco menos do
que o consagrado ao exercício do comércio, onde os capitais entretanto não eram
abundantes. Em tal meio, era impossível que se formasse um capitalismo
verdadeiro.

Procuraremos, finalmente, apresentar alguns exemplos individuais. Havia, em


primeiro lugar, uma camada antiga de famílias mercantis que remontavam aos
séculos XII e XIII, como os Rouaix ou os Maurand. Muitos de seus membros
tinham se tornado “burgueses”. Mas também havia ascensões mais recentes: os
Ysalguier, por exemplo, emergiram com Raimond, trocador no final do século
XIII, liquidante dos bens dos judeus da senescalia de Toulouse depois do
confisco de 1306 e enobrecido em 1328. Seus filhos ainda exerciam um pouco
de comércio e faziam alguns empréstimos; mas trabalhavam, sobretudo, na
administração real. Seus ganhos permitiram que acumulassem as senhorias na
região tolosana. Os Najac, sem dúvida, eram originários da pequena cidade de
mesmo nome que se situa nos confins do Rouergue e do Quercy. A família, ao
que parece, passou por Cordes. Em todo caso, apareceu em Toulouse no último
quarto do século XIV: eram principalmente mercadores de tecidos, que tinham
um corretor em Paris; também recebiam depósitos. Foram algumas vezes
capitouls: Nicolas, o pai (morto em 1393), primeira fortuna de Toulouse, Nicolas
e Huc, os filhos. Huc representou várias vezes a cidade nos Estados do
Languedoc e nas embaixadas. Tornaram-se nobres em 1412 e 1416 e adquiriram
várias senhorias. Mas tinham um padrão de vida certamente superior a seus
meios. Nicolas e Huc morreram pouco depois de 1450, e seu herdeiro Jean
debateu-se em processos. Arnaud Amic era descendente de uma família de
vendedores de tecidos. Ele mesmo casou-se com a filha de um especieiro.
Dedicava-se a comércios muito diversos: tecidos, pastel-dos-tintureiros,
especiarias, metais, lã de Aragão, cavalos, vinho. Além disso, praticava o
câmbio e recebia depósitos. Participou da administração da Moeda e encarregou-
se da cobrança de vários impostos. Tornou-se nobre em 1445 e foi vigueur real
de Toulouse de 1445 e 1458 e capitoul somente em 1461-1462; era então o
homem do rei. Comprou senhorias e terras, mas revendeu-as. Mandou construir
um moinho de apisoar, uma grua para limpar os fossos da cidade — técnicas que
eram indícios de um espírito novo. Também foi mantenedor do Gaio Saber
(primeira forma dos Jogos Florais) em 1458. Através dele se esgueira um pálido
e excepcional raio da Renascença, pois quase todos os outros exemplos de
sucessos mostram o prestígio que conservava, aos olhos desses mercadores, o
gênero de vida nobre tradicional, ao qual ambicionavam ter acesso.

Para Michel Le Mené (55), os campos angevinos revelaram-se como sendo um


“bom observatório”. Não que os meios de acesso fossem perfeitos: a ausência de
fontes registradas em tabelião e a falta de qualquer indicação de ordem
demográfica são lacunas difíceis de serem supridas. Mas a província estava bem
localizada, diante da Bretanha relativamente calma desde 1365, espécie de
“avenida constantemente ameaçada mas nunca inteiramente conquistada, no
limite de duas zonas de pressão inglesa que constituíram ao norte o Maine, e ao
sul o Poitou”. Joachim du Bellay, voltando de Roma, elogiou seu charme:

“Mais me agrada...

Meu Loire gaulês que o Tibre latino,

Meu pequeno Liré que o monte Palatino,

E mais que o ar marinho a doçura angevina.”

De fato, um poeta não é necessariamente um geógrafo. Esse texto enganador


dissimula as reais variedades regionais, do “Anjou negro” ou armoricano ao
“Anjou branco” das terras sedimentares, do Beau geois e do Saumorois no vale
do Loire. Mesmo assim, é possível um julgamento geral sobre a paisagem
dominante: “se é costume usar-se a expressão ‘a árvore esconde a floresta' para
se fazer entender que o detalhe às vezes prevalece sobre o que é importante,
neste caso, o provérbio deveria ser usado ao inverso. Em Anjou, a floresta era
apenas o aspecto mais visível da paisagem, e o capão a característica
fundamental”. Assim era o país que conheceu as vicissitudes da época, as fomes
e principalmente as guerras: “Durante um século e meio, o Anjou vivenciou a
hora das calamidades largamente compartilhadas por muitas outras províncias. A
guerra, de início, atingiu-o três vezes. Mas, por ter começado e terminado mais
tarde que em outros lugares, seus efeitos diretos sobre os campos foram muito
menos marcados pelos abandonos prolongados das terras de cultivo. Depois da
grande tormenta da década de 1360, a recuperação já tinha sido amplamente
iniciada a partir de 1400. Depois da tormenta dos anos 1340, que atingiu de
maneira desigual o conjunto da província, o soerguimento confirmou-se
rapidamente, e as hostilidades das guerras franco-bretãs praticamente não
prejudicaram seu potencial agrícola.”

É difícil obter algo mais do que impressões sobre esse potencial. A produção
cerealífera, cultura de subsistência, que tinha sido duramente atingida, reergueu-
se claramente por volta de 1450. A criação de animais, na ausência de contratos
de parceria pecuária que iriam se propagar apenas a partir do final do século
XVI, continuava limitada a seu papel complementar. “A grande riqueza do
Anjou estava em sua vinha”, que fornecia sobretudo vinho branco e era melhor
cultivada nas regiões de forte tradição. “Já não estavam muito distantes os
tempos que presenciariam o progresso do porto de Nantes, a vinda dos
holandeses e a conquista dos mercados da Europa do Norte. Se consideramos os
homens, o destino — apesar de essencial e muito diverso — da população
componesa, talvez em vias de empobrecimento, nos escapa. E, se a crise não
teve repercussões sensíveis e imediatas sobre os patrimônios senhoriais,
traduziu-se, no entanto, num endividamento muito forte que obrigou a alta
nobreza a mendigar pensões reais, e incitou um grande número de nobres a
servir nos exércitos do rei."

Na história econômica da França, relativa aos séculos XIV e XV, praticamente


não há quase nenhuma figura de destaque num plano nacional, para não dizer
nenhuma. Por isso, acolhe-se com alegria a de Jacques Coeur (63-64). Essa
alegria talvez tenha sido expressa de maneira excessiva pelos historiadores um
pouco antigos, como Henri Martin que via nele a mais alta personalidade do
século XV depois de Joana D'Arc ou Jules Michelet. De fato, um grave
problema de fontes surgiu com a prisão de Jacques Coeur, em 1451, e com a
destruição ou dispersão de seus papéis. Fora o inventário dos seus bens
apreendidos, feito pelo procurador Dauvet, só se possuem indicações esparsas,
na maior parte das vezes, indiretas. Ali encontraram-se sempre informações, sem
que o conjunto seja satisfatório. Isso explica por que não existe ainda uma boa
obra de conjunto sobre Jacques Coeur, tal como a que vai nos oferecer,
esperamos, Michel Mollat.

Jacques Coeur era o filho de um grande mercador de peles de Bourges, chamado


Pierre. Recebeu uma educação apenas prática. O cronista Thomas Basin diz que
era “iletrado", o que significa que não aprendera latim. Mas ele era audacioso,
trabalhador, de inteligência vasta e não se deixava atrapalhar por escrúpulos
excessivos. Sua sorte foi o papel que coube a Bourges, capital do delfim Carlos
antes da epopéia de Joana D’Arc. Associou-se com o mestre da Moeda de
Bourges, chamado Ravant, o dinamarquês, um aventureiro expulso da
Normandia pelos ingleses. Junto com ele, cunhou em 1429 escudos de 14 a 15
quilates em vez de 18; fez 76, 80 ou até 89 peças por marco em vez de 70.
Obteve, desse modo, um lucro entre 20 e 30 escudos por marco. Naturalmente,
eram operações ilícitas. Foi perdoado por um decreto de graça de dezembro de
1429. Com vários sócios, tornou-se fornecedor da Corte em 1430. Por falta de
dinheiro, o delfim pagou-lhe em privilégios comerciais. Jacques desse modo
começou a praticar o comércio do Levante, em associação com italianos e
mercadores de Montpellier: em 1432, numa galé de Narbonne, foi a Beirute e
Alexandria. Na volta, lançado por um naufrágio nas costas corsas, foi despojado
de tudo. De qualquer maneira, a experiência dessa viagem lhe seria preciosa.

Sua carreira estava de fato ligada à sorte de Carlos VII: mestre da Moeda em
Bourges em 1435, também o foi em Paris de 1436, quando o rei retornou à sua
capital. Nessa condição, cunhou a peça que foi chamada “o gros de Jacques
Coeur”. Em 1440, tornou-se tesoureiro do rei, ou seja, o encarregado das
despesas da Casa do rei e de suas jóias. Encontrou aí muitas vantagens: tornou-
se nobre em 1441. Como todo funcionário real, sobretudo de finanças, conseguiu
ganhos importantes no exercício de suas funções — lucros sobre as moedas,
gratificações, pensões que lhe eram pagas pelas comunidades para gozar do seu
apoio. Dispunha de capitais abundantes: especialmente o rei depositava
confiança nele (Coeur falaria de “um documento de conta secreta entre eles”).
Conseguiu outros lucros com o fornecimento para a Corte de tecidos, móveis,
especiarias... Finalmente, obteve privilégios, como o monopólio do sal na região
de Tours e Bourges, ou a isenção das taxas sobre suas mercadorias. Tornou-se
rico o suficiente para poder, em 1449, conceder um empréstimo de 40.000
escudos para financiar a reconquista da Norman dia. Na entrada do rei em
Rouen, exibiu-se a seu lado, vestido suntuosamente. Para ele era o apogeu:
várias vezes foi embaixador do rei (em Gênova, em 1446; junto ao papa, em
1448), comissário real nos Estados do Languedoc, em 1450, inspetor geral dos
impostos e membro do grande Conselho do rei.

Seus negócios baseavam-se numa combinação entre esse papel como


funcionário do rei e a atividade comercial. Esforçou-se para estabelecer ligações
diretas com o Levante, sem passar pelos italianos nem pelos catalães. O tráfico
referia-se, na importação, a especiarias sobretudo, mas também à seda, aos
tapetes, aos perfumes, porcelanas e, sem dúvida, escravos (vêem-se seus
representantes libertarem vários); na exportação, figuravam principalmente os
tecidos e o metal prateado do qual necessitavam o Levante e a Ásia. Esse tráfico
era feito em grandes navios redondos (como o representado num vitral de
Bourges), mas de tonelagem inferior às naves genove sas. Eram construídos nos
estaleiros de Aigues-Mortes e de Colliou-re, ou compradas em Gênova e
Marselha. Além disso, havia pequenos navios para a cabotagem. Para recrutar
suas tripulações, estava autorizado a embarcar rapazes de má reputação,
“rufiões, cai mãos...”: seria essa sua leva de marujos. Seus navios ostentavam a
bandeira real, o que era uma preciosa proteção. Como portos, utilizava Lattes,
anteporto de Montpellier, que era, porém, pouco profundo, Aigues-Mortes e,
sobretudo, Marselha, como se pressentisse o futuro desse porto. Como apoio,
travava toda uma ação diplomática. Os papas concederam-lhe a autorização de
traficar com os Infiéis. Em 1448, teve peso na obtenção da abdicação do
antipapa Félix V, pai do duque de Savóia, a quem Carlos VII recusou
empréstimo. Obteve o arcebispado de Bourges para seu filho Jean. Ao levar ao
sultão presentes de Carlos VII foi-lhe concedido um consulado em Alexandria e
o direito de traficar. Aproveitou-se dos conflitos que dividiam a população
genovesa e associou-se a alguns genoveses. Com Alfonso V, rei de Aragão e de
Nápoles, fez um jogo duplo: pois criou uma taxa de 10% sobre as mercadorias a
caminho da Coroa de Aragão, ou vindas dela; ao mesmo tempo, fundou uma
companhia para a percepção dessa taxa. Também emprestou ao rei e informou-o
sobre os projetos do Conselho Real de França em relação a Gênova. Em
contrapartida, em 1451, Alfonso V protegeria seus agentes.

Seus negócios estenderam-se amplamente em todo o Ocidente. Após as tréguas


de Tours (1444), procurou entrar em contato com os mercadores ingleses. Fez de
Bruges sua escala para as operações com a Escócia (compra de couros, tecidos,
lã). Em todos os lugares, associava-se aos mercadores locais, para fazer render
seus capitais, mas também para estimular as produções que proviam suas trocas
com o Oriente. Em Florença, possuiu por algum tempo uma manufatura de
sedas. Na França, Montpellier, Lyon e Bourges constituíam seus principais
centros de atividade. Em Montpellier, possuía o hotel de Lunaret, assim como
uma tinturaria e armazéns para seus estoques. Procurou obter uma melhor
exploração do imposto do sal no Languedoc. Em Lyon, manifestou sobretudo
seu interesse pelas minas de chumbo e de cobre argentífero da região:
arrematante de impostos régios por doze anos, tornou-se proprietário das minas
de chumbo argentífero de Pampailly, perto de Sainte-Foy-l’Argentière; associou-
se aos Baronnat de Lyon, para a exploração das minas de cobre argentífero, em
Joux, Saint-Pierre-la-Palud. Empregava mineiros alemães. Teve também uma
fábrica de papel em Rochetaillée e um hotel em Lyon. De Bourges, sua atividade
irradiou-se por toda a região do Centro. Mandou construir para si mesmo um
verdadeiro palácio. De fato, tinha negócios em toda a França.

Mobilizou em seu proveito uma parte dos recebimentos fiscais, de cuja cobrança
era encarregado — por exemplo, as contribuições do Languedoc e do baixo
Alvergne. Devia conceder muitos empréstimos: como ao rei, em 1450, mais de
20.000 escudos para o pagamento dos legados de sua amante Agnès Sorel, e
2.000 escudos para o casamento de uma de suas filhas. Do mesmo modo, chefes
militares como Dunois, toda a alta nobreza, vários prelados e burgueses
figuravam entre seus devedores. Algumas vezes mostrou-se muito rude na
recuperação desses créditos.

A partir de 1447, tornou-se grande proprietário de terras. Adquiriu muitos bens


urbanos e rurais em Berry, Bourbonnais, baixo Languedoc... mais rendas em
dinheiro e em produtos. Mas não obteve altos rendimentos com isso. Calcula-se
que tenham amortizado suas compras somente em dezoito anos. Possuía também
muitas jóias, algumas demasiado importantes para serem vendidas. Teve então
de desmontá-las e liquidar os pedaços em Gênova. Além disso, tinha tapeçarias e
móveis. Tudo isso também representava capitais congelados. Ora, numa França
empobrecida pela guerra, o problema dos capitais era essencial.

Seus métodos eram pouco notáveis. Utilizava cédulas, isto é, reconhecimentos


de dívidas sob firma não reconhecida, que o credor restituía na ocasião do
pagamento (muitos desses seriam documentos encontrados entre seus papéis em
1451). Mas também sacava letras de câmbio em Genebra, Avignon, Roma.
Mantinha contas correntes a favor de terceiros, como Carlos de Anjou. Criou
várias associações de tipo tradicional. O mais notável foi a bela equipe de
comissionados que soube constituir. Uns eram apenas providos de procurações,
outros associados a seus negócios. Recrutava-os sobretudo no Centro: como, por
exemplo, em Bourges, Guillaume de Varye, sócio da Argenterie e de todos os
seus negócios, e Jean de Village, mestre da frota; outros em Orleans e Tours.
Havia, entretanto, outros, como Antoine Noir, em Montpellier (72). Essa equipe
demonstrou uma grande coesão e continuaria sendo-lhe fiel em 1451.

Mas são os próprios sucessos de Jacques Coeur que faziam com que seus
inimigos se multiplicassem, além de inquietarem o rei. Havia muitos devedores
que lhe queriam mal por seu luxo: era o caso, entre outros, da rainha. Foi fácil
encontrar irregularidades em seus negócios: comércio muito grande com os
Infiéis, fabricação de más moedas, desvio de impostos a seu proveito. Foi preso
em 30 de julho de 1451, sob a acusação de ter conspirado contra o rei e de ter
participado da morte de Agnès Sorel. Entre seus juizes figuravam vários
inimigos pessoais, como Otton Castellani, tesoureiro de Toulouse. Em 1453 foi
condenado ao degredo perpétuo, e ao pagamento, sobre seus bens confiscados,
de 400.000 escudos por malversações, exportações de moedas francesas, tráfico
proibido com os Infiéis (logo, não foram consideradas as acusações de
conspiração). O procurador geral Jean Dauvet redigiu em três anos (1453-1456)
um inventário de todos os seus bens. Thomas Basin espanta-se: “Quem diria que
o rei Carlos, para quem Coeur tinha sido um administrador tão fiel e tão
cuidadoso, e que o tratava com uma familiaridade considerada amizade por
muitas pessoas, mais tarde iria se mostrar tão duro e tão severo com ele?”

De fato, desde 1454, aproveitando-se de cumplicidades, Coeur escapou da


prisão. Obteve do papa o comando de uma frota contra os turcos, vindo a morrer
em Quios em novembro de 1456. Aliás, se uma parte de seus bens foi vendida a
baixo preço, o restante foi entregue a seu filho Jean que, em 1463, era
encarregado de missão na Suíça a serviço de Luís XI. Jean de Village, como
capitão das galés de França, e Guillaume de Varye, como tesoureiro e general
das finanças, fizeram brilhantes carreiras sob o novo reinado.

Não se deve exagerar o papel de Jacques Coeur. Ele não inovou; apenas buscou
prescindir parcialmente dos italianos, já que o vemos associado a alguns deles.
Tirou proveito do início da reedificação: à medida que esta se desdobrava, os
rivais multiplicavam-se, e, de outra parte, o rei dependia menos dele. Sua
carreira foi excepcional e mostra a fragilidade de seu sucesso. Além disso, sua
mentalidade continuava sendo tradicional; seu objetivo ainda era o acesso à
nobreza fundiária, com todos os investimentos imobiliários e as despesas de
prestígio que isso implicava e que lhe tornavam ainda mais sensível a falta de
capitais.

Chegamos, finalmente, à península ibérica. Aqui foi a abundância de uma


documentação demasiado dispersa que, por muito tempo, desencorajou os
pesquisadores. Cada um com seu temperamento, Jaume Vicens i Vives
(interrompido cedo demais, infelizmente) (96-97), Charles E. Dufourcq (ainda
vítima de uma recente epidemia) e Jean Gautier-Dalché (42) prosseguiram na
tarefa de uma síntese, sem dúvida, até agora impossível — e eles sabiam bem
disso, o que torna seu mérito ainda maior. Recentemente, Maurice Berthe,
utilizando habilmente os recursos de uma documentação bastante rica, lembrou a
enorme preponderância do mundo camponês, e os abismos de miséria aos quais
o conduziram catástrofes analisadas mais precisamente (conclusão que se aplica
a toda a Europa). Serei mais modesto citando as imagens deixadas pela obras de
duas historiadoras, Claude Carrère e Jacqueline Guiral.

De uma riquíssima — quase rica demais — documentação, Claude Carrière


extraiu um estudo considerável, a partir do qual chegou vigorosamente a
algumas conclusões (34). Sem dúvida, com 35.000 habitantes por volta do final
do século XIV — o que supõe mais de 50.000 antes de 1340 —, Barcelona não
constituía uma das maiores cidades do Ocidente. Mas, sob vários aspectos, era
extremamente original. Capital da Catalunha — de modo ainda mais orgânico
que Milão de seu ducado — diferenciava-se profundamente das outras cidades
italianas que haviam subjugado um condado. Segura de ser ouvida pelos reis e
pelas Cortes, ou seja, a assembléia representativa, ela redistribuía no país os
produtos de sua importação e orientava os excedentes da produção para suas
próprias necessidades ou para a exportação. Assegurava, assim, pelo menos a
metade do comércio exterior do principado, encontrando-se à frente de um belo
conjunto de cidades secundárias, de Perpignan a Tortosa, de Gerona a Lleida,
concorrendo com os mercadores, mas de forma leal. A importância de seu papel
devia-se aos capitais que possuía e à habilidade de seus mercadores. A idéia de
uma poderosa fabricação de tecidos catalã nasceu em Barcelona, mas “então era
o país inteiro que tecia e adornava tecidos, dentre os quais muitos tomariam o
rumo dos mares". Daí seu apego ao liberalismo. Ela deu prova de uma singular
lucidez com a análise econômica à qual procede, entre protecionismo e autarquia
de uma parte, livre iniciativa e livre comércio de outra.

Mesmo se não brilhava por seu espírito de invenção, mostrava-se a aluna mais
dotada dos italianos. “Curioso de espírito, o aluno catalão sabe o que é feito em
outras partes, tem sempre a preocupação de se informar... e, quando uma
descoberta ou uma prática parece-lhe benéfica, adota-a com um ardor tanto mais
notável quanto espontâneo. As realizações do aluno passam então a concorrer
com as do mestre. A frota satisfaz no conjunto às necessidades, vastas, do país;
os mercaders têm o controle da rede comercial... A confecção de tecidos de boa
qualidade propaga-se por todo o Mediterrâneo — e aí o aluno ultrapassou o
mestre.”

Barcelona era profundamente ligada à vida econômica do mundo de então e


sentia, muitas vezes de maneira perigosa, as pulsações a partir de meados do
século XIV. Sem dúvida, “o modo como a Catalunha atravessa a crise dos anos
1380-1390 parece provar a solidez de um edifício que ainda permitirá belas
conquistas a Alfonso, o Magnânimo”... “Mas, para que se apaziguassem
conflitos sociais revelados pela crise, teria sido necessário um longo período,
senão de prosperidade, pelo menos de calma! Este não é o caso.” Os anos 1430
foram — ali como em outras partes — particularmente sombrios. Foi então que
Barcelona pagou o preço de seu papel na Catalunha. O problema monetário
colocava-se com uma gravidade nova. Formavam-se dois campos opostos: de
um lado, os camponeses ameaçados por novas formas de servidão, os artesãos, a
maioria dos mercadores (chamados: a “Busca”); de outro, os “rendeiros”, “e
aqueles mercaders que já tinham uma mentalidade diferente, além de recursos,
acionistas antes que mercadores” (chamados: a “Biga”). A luta exacerbou-se
numa verdadeira guerra civil, que eclodiu em 1462 e se prolongou por onze
anos, esgotando a cidade e o país.
Foi justamente então que, favorecida pelos Trastamare contra Barcelona,
Valença atingiu seu apogeu (48). Sua população passou, como vimos, de 32-
40.000 a 60-75.000 habitantes, entre 1418 e 1483. Seu comércio era muito ativo:
nas importações, muitos cereais, queijos, massas alimentícias da Sicília, óleo,
peixes salgados (sobretudo de Castela e de Portugal), gado de Aragão,
especiarias do Oriente, algodão — contra o que exportava seus frutos (melões,
uvas, pêssegos, amêndoas, figos), arroz, cana-de-açúcar, e também algumas
sedas, e cada vez mais tecidos de lã. Utilizava uma grande variedade de navios,
entre os quais a caravela que surgiu em 1434. As colônias estrangeiras eram
numerosas e ativas: italianos, franceses (em 1491 foi criado um consulado da
França), alemães e saboianos, castelhanos e portugueses. Os propriamente
valencianos lutavam para participar de maneira sempre mais ampla desse
comércio. Sua força advinha de uma aliança estreita entre a-nobreza mais
esclarecida e a alta burguesia; contudo, cada vez mais opunham-se a eles os
pequenos burgueses e os artesãos, a ponto de resultar nas sangrentas lutas de
1519-1522, as “germanias”.

Rumo ao Far East

No século XIX, os Estados Unidos construíam-se à medida que se estendiam


para o Far West — um Eldorado mais ou menos imaginário — e seus arredores.
Do mesmo modo, nos séculos XIV e XV, a Europa tirava partido de sua
expansão para um Far East não menos estranho. No Norte as representações
comerciais da Hansa balizavam esse caminho.

O que significa a palavra “Hansa” (41) que aparece nos textos, aliás não apenas
para designar a Hansa Teutônica? É uma palavra antiga, encontrada desde o
século IV no sentido de “séquito guerreiro”. Reaparece no século XII, com
sentidos diferentes: taxa paga pelos mercadores, agrupamento de mercadores no
estrangeiro. Em 1267, designa os mercadores da Europa do Norte, na Inglaterra.
Propaga no século XIV, e é encontrada num documento oficial de 1343,
designando a comunidade dos mercadores da Alemanha setentrional. É a “Hansa
Teutonicorum”.

Tinha caracteres aparentemente contraditórios. Era sobretudo econômica: seu


objetivo essencial era a proteção dos mercadores e do comércio no exterior. Seu
papel político foi simples conseqüên cia da carência do poder imperial. Era
muito ampla: agrupava no máximo pouco mais de 150 cidades, numa zona cuja
extensão era de 1.500 quilômetros, do Zuiderzee ao golfo da Finlândia, do Bál
tico à Turíngia. Foi principalmente duradoura: perdurou por cerca de quinhentos
anos, de suas origens em 1158 até seu desaparecimento em 1669 (data em que se
realizou a última Dieta hanseática). Entretanto, não era menos notável por suas
fraquezas. Não era soberana e continuou fazendo parte do Império. Muitos dos
seus próprios membros permaneceram sob a autoridade de senhores diferentes.
Era mal estruturada, possuía poucas instituições próprias e não possuía nem
exército nem finanças. Não se pode sequer afirmar com certeza quem dela fazia
parte, pelo menos num certo número de casos duvidosos. Sua grande força
provinha da solidariedade comercial que ali se exprimia.

Em sua origem, no século XII, era uma associação de indivíduos, de mercadores


alemães que residiam no estrangeiro. Tinha-se formado num contexto de
expansão (nas margens do Báltico, e a Ordem Teutônica na Prússia) e de
criações urbanas (Lübeck, em 1158, depois Rostock, Dantzig, Riga...). Haviam
obtido no início amplos privilégios comerciais, mas seu próprio sucesso obrigou-
os a lutar para mantê-los. Necessitavam de um apoio político. Em 1356 realizou-
se em Lübeck uma assembléia geral das cidades, como conseqüência das
dificuldades que eclodiram entre as representações comerciais de Bruges, de
uma parte, e a própria cidade e o conde de Flandres de outra. Uma embaixada
enviada a Flandres examinou e aprovou um regulamento elaborado por essa
representação; desde então, estará ligada às cidades, e deverá sempre reportar-se
a elas, para modificá-lo. Do mesmo modo, as representações comerciais de
Novgorod (1361) e de Bergen (1365) lhe são submetidas. A de Londres
submeteu-se voluntariamente em 1374. A Hansa tornou-se uma associação de
cidades.
Os acontecimentos não tardaram a confirmar a utilidade da Hansa assim
concebida. Em 1358 foi decidido que se fizesse um bloqueio a Flandres. Era
proibido o comércio com essa cidade, e a representação comercial foi transferida
para Dordrecht. Flandres, atingida em 1359 pela falta dos cereais oriundos do
Oriente, cedeu em 1360: os privilégios dos hanseatas foram confirmados, o
direito de comercializar a varejo lhes foi concedido; e lhes foram consentidas
indenizações. O sucesso da Hansa causou uma grande impressão: Bremen, que a
havia abandonado, apressou-se em retornar a ela. Esse sucesso foi reforçado
após um conflito com a Dinamarca, cujo rei apoderara-se de Gotland. A luta era
muito difícil, até que a Dieta de Colônia, realizada em 1367, formou um liga,
com um exército e uma frota, financiados por uma taxa sobre as exportações.
Em 1370 a Dinamarca teve de inclinar-se pela paz de Stralsund. Nessa ocasião
deu-se o apogeu da Hansa, e sua organização pode ser melhor estudada.

Quem fazia parte dela? 150 a 200 cidades (mas não todas ao mesmo tempo),
além do grande mestre da Ordem Teutônica. Não havia lista oficial. Em caso de
necessidade, fazia-se uma pesquisa: toda cidade que tivesse há muito tempo
mercadores no exterior era considerada como hanseática. A prioridade honorífica
de Lübeck foi reconhecida em 1418. Essas cidades tinham quatro grandes
representações comerciais — as de Londres, Bruges, Bergen e Novgorod. Eram
dotadas de uma forte organização, com uma assembléia geral anual, que elegia
Anciãos e assessores, cujo papel era sobretudo representativo e judicial. Cada
uma tinha uma caixa. Também havia grupos regionais, que realizavam
assembléias anuais, comunicando entre si suas decisões. Eram cidades vendes
(Hamburgo, Lübeck, Rostock, Kiel), as cidades saxônicas, da Baixa Saxônia
(Brunswick...), as cidades vestefalianas (Dortmund, Colônia...), as cidades
livonianas (Riga, Reval...). No ápice encontrava-se a Dieta da Hansa (Hansetag),
ou Conselho das cidades, geralmente convocado por Lübeck. Suas reuniões eram
raras, sua periodicidade regular: houve 24 de 1363 a 1400, 12 de 1400 a 1440, 7
de 1440 a 1480. O número de participantes era baixo devido às longas distâncias
e aos custos: normalmente havia de 10 a 20 delegados (no máximo, houve 30 em
1437). As Dietas discutiam sobre tudo o que interessava às cidades, sua
economia, suas finanças, sua força militar. Exerciam uma jurisdição em relação a
todos os conflitos entre membros, pronunciando multas e exclusões. As decisões
(ou Rezesse) eram tomadas pela maioria.
As fraquezas dessa organização surgiram imediatamente. Não havia caixa
comum, mas apenas uma taxa extraordinária sobre as exportações, cobrada em
caso de guerra; além disso tampouco havia exército ou frota permanente. A
Hansa devia, portanto, agir por pressões, por exclusões, e sua existência era
agitada. Lübeck quase foi excluída em 1411 (em seguida à queda do governo
patrício nessa cidade); Bremen o foi em 1427, e, do mesmo modo, Colônia em
1471, pois recusava-se a pagar uma taxa comum, além de ter obtido um
privilégio especial do rei da Inglaterra. Apesar de tudo, sempre apareceu como
uma potência.

Quais eram os principais artigos do comércio hanseático? Do Oeste vinham


sobretudo tecidos ou fazendas de lã: com os tecidos flamengos em declínio, os
tecidos ingleses e holandeses ocupavam o primeiro lugar; havia também os
tecidos de luxo italianos. O sal era muito procurado, tanto para a cozinha, quanto
para a conservação dos peixes: fora as fontes de salmoura de Lüneburg,
exportadas por Lübeck, havia sal da baía de Bourgneuf, que uma frota ia buscar;
no século XV, apareceu o sal português. O Leste fornecia sobretudo os peixes:
bacalhau seco da Noruega, arenque salgado da Escânia, etc. Os cereais: centeio,
mas também frumento e cevada, eram produzidos sobretudo na Prússia e na
Polônia, e exportados por Dantzig. Sua chegada era uma necessidade para o
Ocidente, e isso forneceu uma arma poderosa para a Hansa. A cerveja era o
único produto fornecido exclusivamente pela zona hanseática; era expedida
principalmente por Bremen e Hamburgo. As peles eram muito procuradas no
Ocidente. Havia uma tal necessidade de cera para a iluminação que, embora
também fosse produzida no Ocidente, era preciso fazê-la chegar da Rússia,
Livônia e Prússia. A madeira, derrubada princi palmente na bacia do Vístula e na
Lituânia, era transportada por balsas, depois exportada sobretudo por Dantzig.
No conjunto, e apesar de os séculos XIV e XV serem geralmente considerados
como um período de recessão, esse comércio progrediu com regularidade; assim,
apenas no Báltico, o tráfico marítimo de Lübeck, que era de 153.000 marcos em
1368, passou para 660.000 em 1492.

As técnicas comerciais dos hanseatas chamam a atenção por seu caráter


rudimentar. Ignoravam qualquer sistema de seguro, o que os obrigava a dispersar
seus envios e barrava-lhes o espírito de iniciativa. Não possuíam um verdadeiro
banco, e muitas vezes eram obrigados a transportar quantias importantes de
numerário. Sua contabilidade continuava bastante primitiva. Entre eles havia
apenas associações dos tipos mais simples.

Normalmente, o mercador pertencia a uma ou várias associações, que também


eram confrarias religiosas. Às vezes, havia uma única associação numa cidade,
guilda mercantil, ou sociedade dos comerciantes de tecidos no atacado;
freqüentemente era isso que ocorria no Norte, como em Dantzig. Em Lübeck,
uma associação exclusivamente patrícia, o Círculo, reunia de vinte a trinta
membros, sendo que foram quase todos conselheiros. Ou então eram
agrupamentos estritamente profissionais que reuniam mercadores que
trabalhavam no mesmo setor, “Fahrer” da Escânia, de Bergen, de Novgorod, da
Inglaterra.

Dentre os mercadores, podemos citar como exemplo os irmãos Veckinghusen


(81): a família era, sem dúvida, originária de Veste fália, porém muito cedo
alguns de seus representantes já são encontrados no Leste. Uma abundante
correspondência (mais de 500 cartas) permite que conheçamos os dois irmãos
Hildebrand e Sievert: o primeiro, nascido entre 1360 e 1370, foi Ancião da
representação comercial de Bruges no final do século XIV. Depois de ter-se
casado com a filha de um mercador de Reval e de ter viajado um pouco,
instalou-se em Bruges a partir de 1402. O segundo, Ancião da representação de
Bruges em 1399, viveu a maior parte do tempo em Lübeck, onde se casou.
Associados nos negócios, compravam peles e cera em Novgorod e as trocavam
em Bruges por tecidos e especiarias. Seu comércio era próspero, a ponto de
terem a idéia de estabelecer uma ligação direta com Veneza, onde foi residir um
de seus associados. Formou-se uma sociedade com um capital de 5.000 marcos,
dirigida de Bruges por Hildebrand. Os primeiros sucessos permitiram aumentar
o capital. Depois imprudências foram cometidas, e uma contabilidade
insuficiente fez com que se estabelecesse a desordem. A sociedade foi à falência
em 1414. A partir de então, Hildebrand ficou deslumbrado pelos grandes
negócios. Foi novamente Ancião da representação comercial de Bruges em
1412, concedeu empréstimos ao imperador Sigismond. Preso em 1422, devido à
queixa de seus credores, ficou três anos na prisão do Steen, e somente dali saiu
para ir morrer em Lübeck, em 1426. Sievert, mais prudente, comprou bens
territoriais e limitou-se a negócios seguros. Possuía uma salina em Lüneburg.
Em 1430 foi o primeiro de sua família a ser admitido no Círculo. Morreu em
1433.

Hinrich Castorp nasceu na Vestefália, em Dortmund, entre 1410 e 1420. Mas, a


partir de 1450, instalou-se em Lübeck, onde se casou duas vezes. Tornou-se
burgomestre vitalício. Seus negócios eram dirigidos para a linha Bruges-
Novgorod e baseavam-se principalmente na troca tecidos-peles. Manifestou
preocupações intelectuais — coisa rara —, tendo escrito até mesmo uma crônica.
Conseguiu reunir a fortuna de aproximadamente 25.000 marcos. Concedeu
empréstimos ao rei da Dinamarca, que lhe hipotecou sua coroa. Morreu em
1488.

Esses mercadores apresentavam algumas características comuns. Em geral, eram


oriundos de famílias de comerciantes. Muitos eram originários da Vestefália,
verdadeiro viveiro, o que facilitava que se tornassem cidadãos dessa ou daquela
cidade. A maioria passava ao menos algum tempo em Bruges, que para eles era
uma escola. Exerciam somente o comércio, com exclusão do banco e da
indústria. Não eram, portanto, homens de negócios como os italianos. Seu
individualismo certamente era bem menor. Podemos colocar a questão: tinham
tendências culturais? Ao que é muito fácil responder negativamente. Na falta de
obras originais, liam traduções de obras estrangeiras, especialmente romances de
cavalaria. Gostavam de crônicas histórias e de teatro popular — em Lübeck, o
Círculo passou a organizar representações após 1420.

No século XV, o comércio do Norte da Alemanha e do Báltico continuava a se


desenvolver. Porém, uma parte crescente era detida pelos holandeses e também
pelos alemães do Sul. A Hansa reagiu de modo inábil, limitando as operações de
crédito e proibindo as associações com os estrangeiros. Correspondia cada vez
menos às realidades econômicas. No final do século XV seu declínio anunciava-
se claramente.
Pode-se considerar o Sul da Alemanha como um conjunto possível de ser
caracterizado? Ali falava-se o alto-alemão (que dará origem ao alemão
moderno), constituindo um domínio linguístico bem diferenciado. O Sul era
mais industrial que o Norte da Alemanha. Havia várias cidades industriais em
que os ofícios (que compreendiam muitos mercadores) tinham obtido, à custa de
agitações, o direito de participar dos Conselhos Urbanos. Era muito mais aberto
às influências exteriores, especialmente as italianas (315).

No início, o comércio de Veneza voltava-se sobretudo para a parte oriental do


Império. Duas cidades tinham importância primordial, Viena, que revendia
lingotes de prata e de cobre, e Ratisbona (Re-gensburg), que se situava no vértice
da curva do Danúbio, em fácil ligação com os Montes Metalíferos e com Praga,
onde o século XIV é brilhante, em particular graças à prata extraída das minas de
Kutná Hora. Isso é bem ilustrado pela família Runtinger, da qual nos resta um
registro de contas que cobre o período de 1383 a 1407. Originária da Baixa
Baviera, essa família fez fortuna no comércio do vinho, e seus membros iam
comprar tecidos nas feiras de Frankfurt. Mathieu Runtinger, que durante algum
tempo foi arrematante de impostos da Moeda de Ratisbona, assim como do
pedágio do ferro e do sal, ampliou os negócios da família comprando tecidos em
Brabant e desenvolvendo as relações com Milão e Veneza. No entanto, o
declínio da cidade já se esboçava.

Mas também é preciso notar a importância das estradas ocidentais, em direção


ao lago de Constança e do vale do Reno. O caso da Grande Companhia de
Ravensburg é típico. Ravensburg era uma cidade situada na Suábia central, entre
o lago de Constança e Ulm, no centro de uma região de intensa tecelagem do
linho e do cânhamo. A Sociedade foi constituída por volta de 1380, sem dúvida
pela união das famílias Humpis, Motelli e os Muntprat de Constança. Todos já
eram bastante ricos. Tratava-se de um espécie de truste, estabelecido para reduzir
a concorrência e os custos. A sociedade era renovada a cada cinco ou seis anos,
perfazendo um total de aproximadamente 25 vezes entre 1380 e 1530. Em 1497
compeendia 38 associados. À sua frente encontrava-se um pequeno Comitê
diretor composto por 3 membros: o diretor real, eleito, que era sempre um
membro das famílias Humpis ou Motelli; um segundo diretor, que acabava por
representar um papel efetivo quando o primeiro não passava de um nome; e um
chefe contador, que podia ser oriundo da própria classe. A fiscalização era
efetuada por um conselho de 9 membros, do qual faziam parte os dois primeiros
diretores. Prestavam-se contas a intervalos irregulares, em geral a cada três ou
quatro anos. Um ponto obscuro continua sendo a questão da responsabilidade
que pesava sobre os associados: limitava-se aos capitais empregados ou era
ilimitada? Além de sua sede social instalada em Ravensburg, a companhia
possuía uma dezena de sucursais, além dos correspondentes. A importância de
cada uma delas é conhecida através de um balanço de 1497: na Alemanha,
Nuremberg era de longe a mais importante; na Itália, Gênova ocupava a segunda
posição, e Milão a terceira, não havia quase nada em Veneza; na Espanha havia
Va lença (quarta posição) e Saragossa (sexta), quase nada em Barcelona; nos
Países Baixos, sobretudo Antuérpia (quinta); na Suíça, Genebra; na França, Lyon
e Avignon. Seu tráfico de mercadorias diversificou-se: além das telas e dos
fustões, havia os tecidos, as especiarias (em particular, o açafrão espanhol), o
vinho, os objetos metálicos...

Um fato essencial foi a ascensão da dupla Augsburgo-Nuremberg. Por muito


tempo, essas cidades serviram apenas como intermediárias entre os Países
Baixos e a Itália: os ganhos obtidos com a venda dos tecidos dos Países Baixos
eram investidos na compra de produtos vindos da Itália. O progresso estava
associado a uma evolução que se voltava para o comércio de massa. Houve ali
uma grande exportação de prata e de produtos metalúrgicos. Nuremberg
fabricava armas. Em Augsburg, a tecelagem estava muito desenvolvida; por
volta de 1500, 70.000 peças de pano e 35.000 peças de fustões eram submetidas
ao controle da corporação. Esse progresso foi marcado pela ascensão de grandes
famílias, os Rem e os Welser de Augsburg e os Reck de Nuremberg. Sentia-se
claramente em Veneza que os negócios concentravam-se a seu proveito: em
1442, o Senado reconhecia que o abastecimento da República em prata era feito
por “quatro ou cinco dos principais mercadores alemães”. Por volta de 1500, a
redação dos Welthandelsbrauche (regras do comércio mundial) traduzia a
posição de primeiro plano ocupada por Nuremberg.
Mas nenhuma outra ascensão merece nossa atenção tanto quanto a dos Fugger
(76). O primeiro conhecido é um certo Hans que, por volta de 1350, vivia em
Graben, vila próxima de Augsburg: era um pequeno proprietário, que tecia
fustões no inverno. Em 1367 seu filho Hans instalou-se como tecelão em
Augsburg. Representou um papel ativo na corporação desse ofício, e logo passou
a dedicar-se unicamente ao comércio. Morreu em 1409, com uma fortuna de
1389 florins húngaros. Sua viúva (morta em 1436) e seus filhos continuaram seu
trabalho. Em 1454, a fortuna familiar era de 11.000 florins húngaros. A partir de
1454, duas ramificações separaram-se claramente: a de André (morto em 1458),
depois de seus filhos, sobretudo Lucas, o primogênito. É chamada de “ao cabrito
montes”, pois em 1462 o imperador outorgou-lhe como insígnias um cabrito
montes de ouro sobre um campo azul. Mas Lucas realizou negócios infelizes, e a
ramificação desmoronou antes de 1500. A ascensão da ramificação de Jacob, o
ancião (morto em 1469), e depois de sua viúva e de seus filhos, foi mais lenta,
porém mais segura. Em 1473, obteve como insígnias "a flor-de-lis". Dedicou-se
a comércios tradicionais: tecidos, fustões, sedas, especiarias, drogas, frutas da
região mediterrânica. Nascido em 1459, Jacob Fugger (mais tarde chamado o
Rico) era o décimo filho da família, o que o destinava ao clero. Recebeu as
ordens menores e um benefício de cônego. Entretanto, em 1480, quatro de seus
irmãos morreram, sobrevivendo apenas dois. Jacob renunciou então a seu
benefício e foi fazer seu aprendizado em Veneza. Operou em primeiro lugar na
Itália. Circulando na Alemanha pelo Brenner, atravessava com freqüência o
Tirol, e foi lá que concebeu a idéia que produziría uma considerável
transformação nos seus negócios.

Essa transformação foi resultante do seu interesse pelas minas de cobre


argentífero do vale do Inn, sobretudo em Schwaz, que tinham sido descobertas
no começo do século XV. Em meados desse século, como vimos, aprendeu-se a
separar o cobre da prata. O primeiro, procurado para usos monetários, além da
argentaria, também era exportado para o Levante e para Ásia. O próprio cobre
era cada vez mais apreciado: agradável ao olhar, de fácil ligação, sólido, não se
oxidava e encontrava muitas aplicações como: nos objetos de limpeza e de
cozinha, que a elevação do nível de vida tinha multiplicado nos lares por volta
do final do século; nos telhados e nos bronzes da Renascença; nas ligas para a
fabricação de moedas; nas armas de fogo; e na marinha, em rápida expansão.
Na época, o conde do Tirol era Sigismond de Habsburgo, que tinha direito de
regalia ao dízimo (Fron), ou seja, a décima parte do minério extraído — e ao
câmbio (Wechsel); a prata devia ser entregue à Moeda de Hall, e havia uma
retirada de 40% do valor para o príncipe. Portanto, Sigismond tinha grandes
rendimentos, mas era muito perdulário—com sua Corte e suas guerras—e teve
de contrair empréstimos, penhorados sobre seus futuros rendimentos em metais.
Aí estava a possibilidade para os mercadores de adquirir metais em boas
condições. Mas faltavam capitais. Em 1485, Jacob fez um pequeno negócio,
graças à ajuda do diretor geral das finanças. Foi especialmente auxiliado pelas
dissensões entre os Habsburgo: Sigismond, que não tinha herdeiro, opôs-se a seu
primo, o imperador Frederico III, que acabou por vencê-lo em 1487. Sigismond
abdicou então a favor do filho de Frederico, Maximiliano (1490), a quem Jacob
concedeu grandes empréstimos. Além disso, era ligado a Melchior de Meckau,
bispo de Brixen e conselheiro financeiro de Maximiliano. Em 1493,
Maximiliano tornou-se imperador. Muito ambicioso, tinha muita necessidade de
dinheiro. Jacob financiou as operações feitas por ele na França para manter o
Artois e a Franche-Comté, dote de sua mulher, filha de Carlos, o Temerário.
Essas relações com o imperador aumentaram ainda mais seu crédito.

Foi então que iniciou o empreendimento húngaro: nos Cárpatos, na atual


Eslováquia, havia muitas minas de cobre argentífero, cuja exploração começara
no século XII, como em Neusohl. Mas as agitações políticas, as incursões dos
hussitas e dos turcos fizeram com que sua manutenção fosse negligenciada. As
minas estavam inundadas e, além disso, as camadas superficiais estavam
esgotadas. Eram necessárias bombas hidráulicas para drená-las e continuar a
exploração em profundidade. Jacob tinha capitais e um bom associado técnico,
Jean Thurzo, que instalara usinas de separação do cobre e da prata na Turíngia
(Hohenkirchen) para o mercado alemão, e em Caríntia (Fuggerau, perto de
Villach) para Veneza. Mandou arrumar as estradas, estabeleceu um acordo com o
senhor de Senj, porto do Adriático, por onde seus metais eram enviados para
Veneza. Houve um desenvolvimento considerável da produção, que concorria
com o cobre do Tirol, a ponto de se chegar a uma verdadeira superprodução. A
crise foi desfeita pela expansão portuguesa: Antuérpia tornou-se o mercado
principal onde as especiarias trazidas pelos mercadores portugueses eram
trocadas pelo cobre procurado na África.
O mais belo período da vida de Jacob Fugger iria pertencer ao século XVI. Em
1519, graças à sua prata, Carlos Quinto, neto de Maximiliano, foi eleito
imperador vencendo Francisco I, rei de França. Morreu em 1525, sem filhos. Seu
exemplo ilustra bem a passagem da Idade Média ao que chamamos os Tempos
Modernos.

Uma obra muito bonita, que Robert Delort consagrou ao comércio de peles
(267), permite que se conheça melhor esse Far East cuja importância cresceu
muito nos séculos XIV e XV. Exatamente por ocasião dos anos 40 do século
XIV aconteceu uma “verdadeira revolução”, com a generalização das roupas
curtas e justas que eram mais ornadas de pele do que forradas. A utilização das
peles, portanto, não diminuiu. Na época, ela era considerável: pois as peles, na
falta de aquecimento apropriado, constituíam o melhor meio de defesa contra o
frio. Delort acrescenta: “é... verossímil que a termore gulação natural, e
sobretudo entre aqueles cuja ração em calorias era mais que suficiente, era muito
melhor exercida que em nossos dias, e que o uso de peles era uma solução mais
saudável para o organismo que o aquecimento dos locais de moradia.” Não
esqueçamos que, salvo raríssima exceção, as janelas não tinham vidros, dormia-
se nu, e que, como vimos, certamente o clima tenha esfriado, ficando sobretudo
mais úmido nos séculos XIV e XV.

Naturalmente, as peles mais utilizadas eram as de coelho, de cabrito, e mais


ainda de cordeiro, existentes por toda parte. Mais raros eram os veiros e as
martas, que vinham dos países escandinavos, eslavos e russos. Mas seu valor era
considerável. Sua exportação multiplicava as ligações com essas regiões
longínquas, que se tornavam capazes de absorver uma maior quantidade de
produtos ocidentais.

Uma Europa ao mesmo tempo mais diversificada e mais una, aí está a dupla
impressão que se impõe ao nosso espírito, pois, se uma região como Navarra
quase não tinha mudado desde os séculos anteriores, na verdade regredira, a
efervescência intelectual e artística característica de Florença projetara esse meio
para o futuro. Essa é apenas uma entre as várias oposições que poderiamos
estabelecer. Entretanto, relações cada vez mais ativas eram estabelecidas
entre essas zonas tão desiguais. Quer se trate das ligações entre países
mediterrânicos e setentrionais, ou entre regiões ocidentais e orientais, seu
desenvolvimento dificilmente pode ser negado. Assim emergia, com efeito, uma
nova Europa.
13. Hoje e amanhã...

Esse quadro que acabamos de pintar no espaço, seria possível, mesmo que a
grandes pinceladas, pintá-lo no tempo? A priori, a tarefa comporta obstáculos
quase insuperáveis: se podemos datar com precisão uma batalha ou um tratado, o
que fazer com uma invenção ou progresso, dos quais sabemos, no máximo,
quando foram atestados pela primeira vez, e cuja difusão exata ignoramos?
Então, mãos à obra, mas sem esperança exagerada.

A cronologia, relativamente segura, dos flagelos — fomes, epidemias e guerras


— comporta períodos de acumulação e de crise interna, alternados a épocas de
descanso. Em campos muito diversos, os últimos anos do século XIII
anunciavam as desgraças que estavam por vir. Em 1294, a confiscação da
Guyenne por Filipe, o Belo, provocou furiosos e vitoriosos contra-ataques
ingleses e prefigurou a Guerra dos Cem Anos, cujo início é geralmente
estabelecido em 1337. As fomes de 1306 no Languedoc, de 1315-1317 nos
Países Baixos, na Inglaterra e na França setentrional traduziam a tensão
democrática e prometiam um futuro difícil. Ao fracasso dos Bonsignori de
Siena, em 1298, seguiram-se os dos Peruzzi em outubro de 1343. dos Bardi em
janeiro de 1346, entre muitos outros; revelavam uma crise do capitalismo.

Os pontos negros pareciam multiplicar-se em meados do século XIV. Crécy, em


25 de agosto de 1346. assinalou uma série de derrotas francesas que culminou
perto de Poitiers em 19 de setembro de 1356. Nesse meio tempo, em 1347,
eclodiu uma fome geral e devastadora; de 1348 a 1351 foi a Peste Negra. Na
França começaram então as agitações monetárias, que iriam prosseguir até 1360.
Pode-se falar de descanso quando o fenômeno das Grandes Companhias
iniciava-se, quando a segunda grande epidemia de 1361-1362 ceifava tantos
sobreviventes da Peste Negra e atormentava os espíritos? Quando a guerra
franco-inglesa recomeçava desde 1368? De fato, entrecortadas por tentativas de
reparação, as desgraças prolongaram-se até aproximadamente 1380: o Grande
Cisma do Ocidente dividiu a cristandade em abril-se tembro de 1378, enquanto
de 1378 a 1382 uma vaga de levantes populares agitou o Ocidente.

Depois disso, houve, com efeito, um descanso de cerca de trinta anos. Descanso
relativo, naturalmente, pois podiam ser encontrados penúrias e acessos de peste.
Mas a França e a Inglaterra discutiam para pôr fim ao conflito absurdo. Os
camponeses aproveitaram esse período para “reconstruir”. Foram multiplicados
os esforços para triunfar contra o cisma. Teriam resultado com 1417, no Concilio
de Constança aberto a partir de 1414.

Entretanto uma nova crise já começava. Os Lancastre estavam no poder na


Inglaterra desde 1399; em 1413, com a chegada de Henrique V ao trono,
recomeçou a guerra, e em 15 de outubro o exército francês sofreu um novo
desastre em Azincourt. Depois veio o tratado de Troyes (21 de maio de 1420), e
a divisão da França, que terminou graças à epopéia de Joana d’Arc. Carlos VII,
vitorioso, reconciliou-se com Filipe, o Bom, duque de Borgonha pelo tratado de
Arras (21 de setembro de 1435). Certamente o restabelecimento da paz
acompanhou-se das devastações dos escorchadores, sensíveis até 1442. Na
Boêmia, a condenação de Jan Hus (1416) provocou um levante que se prolongou
até 1436.

Por toda parte, a metade do século XV foi marcada por um vigoroso esforço de
reerguimento. Foram criadas as bases do exército permanente na França. O
acordo de Castillon (julho de 1453) praticamente pôs fim à Guerra dos Cem
Anos. A “reconstrução” desenvolveu-se em todos os lugares. O crescimento
demográfico começou a se generalizar.

Devemos nos espantar por quase não ser possível, diante desse quadro, fazer o
levantamento dos progressos, aperfeiçoamentos e inovações realizados durante
essa época? Não, pelas razões que já citei. A impressão que se tem, no entanto, é
que havia um esforço contínuo, com aparições regulares:
por volta de 1300: primeiras culturas de plantas forrageiras em alqueive
atestadas na Flandres francesa;

por volta de 1333: aparição da cultura sistemática de ervilhas, vicias e favas em


Flandres;

1340: aparição da contabilidade em partidas dobradas em Gênova;

por volta de 1350: aparição, também em Gênova, da noção de prêmio de seguro.


O selo de Elbing representa uma kogge;

1400: o selo de Dantzig (Gdansk) representa o hulk;

1401: em Barcelona, criação da Taula de Cambi, que serve como dinheiro fiscal
para a cidade;

1407: criação da Casa di San Giorgio em Gênova;

1408: primeiro exemplo conhecido de um moinho de vento, que bomba água, na


Holanda;

1434: aparição da caravela em Valença; por volta de 1450: aparição da imprensa;

1453: é atestado, em Nuremberg, o método que separa a prata do cobre;

1457: escavação do canal de Binasso para as águas do Naviglio de Milão a


Pavia;

1469: primeira doca artificial na Toscana;

1478-1480: construção do mais antigo túnel de estrada, no Monte Viso;

1492: descoberta da América.

Com algumas exceções sugestivas postas de lado (Alemanha e Península


Ibérica), a totalidade desses dados provém, aliás, dos Países Baixos e da Itália.
Naturalmente que se pode dizer que esse resultado seja em razão do estado das
fontes e os métodos de trabalho do presente autor, porém não se pode impedir
que a questão se coloque.

A ampliação do mercado e sua evolução ressaltam ao se compararem cinco dos


mais importantes manuais de comércio, destinados a iniciar os futuros
mercadores:

— a Pratica della Mercatura, redigida pouco antes de 1350 por Francesco di


Balduccio Pegolotti, agente dos Bardi, e que reflete a realidade entre 1330 e
1340;

— o manual elaborado sob o mesmo título, em 1442, por Giovanni di Antonio


da Uzzano e publicado em 1766;

— o Libro di Mercatantie e Usanze de’ paesi, anônimo, compilado em Ragusa


entre 1460 e 1481, logo impresso;

— o Delia Mercatura e dei Mercante perfetto, escrito em Nápoles no final do


século XV pelo ragusano Benedetto Contrugli;

— enfim a Summa de Arithmetica, Geometria, Proportioni e Pro-portionalità,


composta por Fra Luca Paciolo, de Veneza, e impressa em 1494, o que lhe
assegurou uma imediata difusão. Encontra-se ali, em particular, a primeira
exposição sistemática conhecida da contabilidade em partidas dobradas.

A origem desses autores, o lugar, a data e o motivo da redação dessas obras, os


meios de sua difusão, tudo merecería uma pesquisa que, aliás, seria preciso
estender a todos os manuais semelhantes. Certamente seria sugestiva.

Enquanto aguardamos que seja feita, podemos reter algumas conclusões que me
parecem se destacar da presente obra.
E, antes de tudo, nunca seria demais dizê-lo: o lugar aqui dedicado à agricultura
e aos camponeses não lhes faz justiça. Ela era evidentemente, e de muito longe,
a forma predominante da economia — e a grande massa da população vivia
principalmente dela. Porém, a difusão das inovações, cujo aparecimento ao
menos assinalei, foi ao mesmo tempo lenta e muito mal conhecida — e, em
seguida, sua transformação muito progressiva de economia de subsistência — a
mais divulgada até agora — em economia de mercado. Tudo isso pertence a esse
domínio da história que é quase da alçada da “história imóvel" — para empregar
uma terminologia felizmente difundida por Fernand Braudel e seus discípulos.

Se nos voltamos para uma categoria mais espetacular, porém muito menos
numerosa, da população — os mercadores —, convém distinguir três níveis,
definidos ao mesmo tempo pelos mecanismos econômicos e pelos estados de
espirito:

1. Entre os pequenos mercadores, que não buscavam o enriquecimento, mas


apenas prover suas necessidades, predominava uma economia de subsistência.

2. Mas entre os mercadores a economia de lucro era a mais geral — ao contrário


do mundo camponês —, mas cujos ganhos dispersavam-se de maneira
improdutiva: caridades, legados piedosos, etc.; despesas de luxo, de prestígio e
de combate; investimentos territoriais, que traduziam uma tendência à nobreza.
Assim, os capitais acumulados eram mais ou menos rapidamente disseminados.
E as famílias mercantis eram mais ou menos duráveis.

3. Do capitalismo propriamente dito — isto é, da vontade de aumentar


indefinidamente o capital, da busca racional de melhoramento dos processos
técnicos, do esforço de concentração — já encontramos alguns traços muito
evidentes: como, por exemplo, a desconfiança por muito tempo observada em
Veneza em relação aos investimentos territoriais, justamente porque desviavam
os capitais, e depois os esforços realizados para organizar as grandes rotas, para
diferenciar as tarifas de fretes... Era sobretudo um capitalismo comercial, que se
manifestava nas Grandes Companhias florentinas entre outras: mas, às vezes,
também — por exemplo, com Jacob Fugger — passou a ser industrial.

De qualquer maneira, esse capitalismo ainda era limitado. Pela desigualdade dos
lucros, que podiam ser muito elevados (20% ou mais, líquido), mas
permaneciam muito variáveis (7 a 8% em média, ou até menos). Pela
imobilização dos capitais, não só em razão das condições de crédito, mas pelo
ritmo dos negócios: em Veneza, por exemplo, o sistema de mude assegurava no
máximo um ritmo de dois anos — ou seja, os capitais empregados nos negócios,
com as compras e vendas a crédito, a lentidão dos transportes, o escoamento
nem sempre fácil das mercadorias, eram, na melhor das hipóteses, recuperados
em dois anos. Havia igualmente o problema dos empréstimos aos Estados, que
eram difíceis de recusar — essa era freqüen temente a própria condição da ação
—, mas que podiam provocar catástrofes involuntárias (os Bardi com Eduardo
III da Inglaterra, os Mediei com Carlos, o Temerário, de Borgonha), ou
desejadas (Jacques Coeur com Carlos VII de França). Na verdade, a técnica das
finanças públicas era insuficiente. Havia as dificuldades de conjuntura: não
esqueçamos que o período era difícil. Certamente, no final do século XV, houve
um restabelecimento geral; mas o efeito do avanço turco compensou-o para
alguns, como Veneza. E, finalmente, havia o atrativo que conservavam os
gêneros de vida tradicionais. — Quantas limitações ao desenvolvimento do
capitalismo!

“Hoje e amanhã”, anuncia o título deste capítulo. Significa que o hoje carrega o
amanhã, como a mãe o filho? Tantas indicações, de sentidos diversos, incitam-
nos a pensar. Uma nova geografia da Europa. As origens das grandes
descobertas. O desenvolvimento das técnicas capitalistas. A difusão da escrita,
depois da imprensa e do livro. A preparação social dos absolutismos...

Isso nos remete ao título desta obra: “Outono da Idade Média ou Primavera dos
Tempos Modernos?” E nos conduz à questão que eu colocava no começo, e da
qual o leitor pode irritar-se ao ver-me esquivar a resposta: os séculos XIV e XV
foram uma época de recessão ou de progresso? Não zombem demais se retardo o
momento. Pensem o quanto nossa documentação, sobretudo a referente a
números, é pobre! A qualquer preço, é preciso evitar generalizar a toda a Europa
o que pudemos discernir aqui e ali. Cada vez mais, as monografias sublinham a
extraordinária variedade da paisagem. Vamos concluir então, mas sem
demasiadas ilusões: sim, sem dúvida nenhuma, os séculos XIV e XV devem ter
sido uma época muito dura para viver. Mas, para o futuro, que tesouro foi então
acumulado!
14. Problemas de fontes e de métodos

É muito difícil para o historiador expor, para um público não iniciado, as


dificuldades de sua tarefa, os problemas que lhe são colocados pelo estado das
fontes e das publicações, os métodos — que estão sempre progredindo, como os
do campo da cirurgia — que ele próprio deve utilizar e aperfeiçoar! Em suma, o
que eu desejaria não é abrir um armário de esqueletos, mas um fazer percorrer
um canteiro de obras em plena atividade.

O volume de documentos (24)

As fontes para começar. Sua brusca multiplicação por volta de 1300 já é um fato
sobre o qual devemos refletir (238). Isso não se explica apenas pela melhor
conservação dos arquivos. É um pouco a civilização da escrita — cuja extinção
progressiva está sendo provocada hoje pelas novas mídias — que se instaura por
vários séculos. Os costumes orais são consignados em todos os lugares sobre
pergaminho ou papel a partir de 1270 aproximadamente. Nunca até então se
confiara tanto ao cálamo — e não mais à incerta memória humana — o cuidado
de registrar a lembrança do passado ou o estado do presente. Podemos falar de
uma verdadeira revolução intelectual.

Entre essas fontes, quais são as mais suscetíveis de interessar ao economista


(75)? Há em primeiro lugar as fontes que chamamos “narrativas” porque se
propõem precisamente a contar e descrever. Eis os ricordanze, memórias
pessoais que numerosos italianos mantinham então, especialmente mercadores:
relatam fatos políticos, acontecimentos familiares, menções genealógicas (mais
ou menos seguras), às vezes, contas domésticas. A título de exemplos, podem-se
citar: os Ricordi de Giovanni di Paolo Morelli, mercador florentino do século
XIV; ou o Diário de Bartolomeu di Michele dei Corazza, mercador de vinho —
também florentino —, que abrange o período 1405-1438. Destinadas a uso
interno, essas memórias em geral são sinceras. Não se deve, no entanto,
outorgar-lhes uma confiança absoluta: seu valor é sobretudo psicológico,
traduzem uma visão deformada, um orgulho de família. Consideradas desse
modo, são insubstituíveis.

Pouco a pouco passamos às crônicas. São menos pessoais e foram escritas tendo
em vista um uso público. Na Itália, citaremos especialmente Giovanni Villani
(1276-1348) (98): por pertencer a uma grande família que teve funções políticas
importantes em Florença, é uma testemunha de primeira ordem. Seu quadro de
Florença em 1338 é célebre, devido a todos os números que fornece. Vimos,
aliás, como apreciar seu valor, mas sua simples presença é uma grande novidade.
De mentalidade muito aristocrática, decepciona-se com a evolução política de
sua cidade e fica cada vez mais desgostoso no final de sua vida. Sua Crônica,
que vai das origens até 1348, será continuada por diversos membros de sua
família e, em primeiro lugar, por seu irmão Matteo Villani. Do mesmo modo, no
século XV, Veneza pode glorificar-se de Marino Sanudo (1466-1533) (32): filho
de senador, órfão muito jovem e arruinado, torna-se em seguida ele próprio
senador, vindo a ter acesso aos arquivos secretos. Como Villani, interessa-se
muito pelas questões econômicas. É célebre devido a um discurso
completamente atulhado de números que coloca na boca do doge Thomas
Mocenigo pouco antes da morte deste. A Viesde Doges é sua obra mais
conhecida.

São casos particularmente favoráveis. De fato, quase todas as crônicas são mais
ou menos úteis, como, na França, as de Froissart. Apesar de ter se ocupado
pouco com questões econômicas, ele foi um grande viajante. Em suas crônicas
encontram-se o eco das opiniões das pessoas de guerra ilustrando as relações
entre esta e o comércio. O autor do Journal d’un bourgeois de Paris de 1409 a
1449 (90), talvez fosse um amanuense. Passa sem transição da narração dos fatos
políticos às enumerações dos preços dos víveres, e nos deixa sob a impressão
pungente das desgraças que desabaram no século XV sobre as populações
francesas. Tanto a Histoire de Charles VII e a Histoire de Louis XI, de Thomas
Basin, como as Mémoires, de Philippe de Commynes (que serviu alternadamente
Carlos, o Temerário, duque de Borgonha e Luís XI, rei de França, seu inimigo,
investiu seu dinheiro nos negócios dos Medici, visitou e descreveu Veneza)
fornecem preciosos dados. De fato, não há praticamente nenhum livro de
literatura que não se interesse pela economia ou não seja suscitado por ela: não é
sob a influência da Peste Negra que Boccaccio colocou na boca de jovens
florentinos, reunidos num domínio rural para escapar do flagelo, relatos
destinados a mudar-lhes as idéias? Sabemos que assim nasceu o Decameron,
cujos episódios são, às vezes, um pouco licenciosos. E o que acabo de dizer
sobre a Itália e a França poderia estender-se facilmente a outros países.

Os arquivos dos participantes ativos da vida econômica —senhores laicos e


eclesiásticos, mercadores das cidades — são, ao mesmo tempo, os mais
importantes e os mais mal conservados. O mais considerável dos acervos de
negociantes que chegou até nós é o de Francesco Datini de Prato (61, 334):
morto em 1410 nessa cidade toscana em que havia nascido, deixou todos os seus
bens para a obra da Caixa dos Pobres, que os conservou cuidadosamente. Esse
enorme conjunto — 574 livros de contabilidade e cerca de 125.000 cartas, entre
as quais 6.000 letras de câmbio — ainda não foi totalmente examinado, e tornou
Prato a sede de um Congresso anual de história econômica que todos os anos
reúne os melhores especialistas vindos do mundo inteiro para tratar de uma
questão escolhida previamente. Francesco Datini era um notável homem de
negócios, assim mesmo secundário. Naturalmente, os mercadores mais modestos
não tinham arquivos, ou os mantinham mal, e são, portanto, pouco conhecidos;
ora, eles eram de longe os mais numerosos, e é preciso tentar não esquecê-los.
Os negociantes de primeiro plano são mal documentados. É o caso dos Bardi,
companhia florentina da qual possuímos dois “Livros secretos”, que concernem
sobretudo aos seus associados e corretores, seus capitais e seus ganhos, os
salários que pagavam, mas que pouco informam sobre sua atividade
propriamente comercial. É o caso dos Medici (ou Médicis) (311), companhia
florentina mais tardia (século XV), de cujos documentos restam apenas
fragmentos, vendidos na Inglaterra a um colecionador que os deu em seguida em
depósito à Universidade Harvard de Cambridge (Mass.); os italianos resgataram
alguns fragmentos. É o caso de Jacques Coeur, conhecido sobretudo pelo
inventário que foi feito de seus bens depois do confisco (64); e por alguns
elementos que a tenacidade dos pesquisadores, às vezes ajudada pelo acaso,
permitiu encontrar em acervos estrangeiros (63).

O que contêm esses arquivos? Antes de tudo, registros de contabilidade, muitos


dos quais, aliás, foram publicados: assim, em relação à Florença no século XIV,
os dos Peruzzi e os dos Alberti (por Armando Sapori); em relação à Gênova, o
de Giovanni Piccamiglio (1456-1459, por Jacques Heers); os dos Delia Casa,
cambistas da Cúria romana no século XV, conservados no hospital dos Inocentes
em Florença, e dos quais me servi entre outros para estudar as origens do banco
em Toulouse. Na França, há o terceiro dos “grandes livros” dos irmãos Bonis, de
Montauban (1345-1369, publicados por Édouard Forestié); o livro de Jacme
Oliver, de Narbonne (século XIV, editado por Adolphe Blanc); o registro de
contas dos armari nheiros de Metz, Jean Le Clerc e Jacquemin de Moyeuvre
(1460-1461, por Jean Schneider). Na Alemanha, o Handbuch (manual) dos
Holzschuher de Nuremberg (1304-1307, por A. Chroust e H. Prosler), vários
registros de Lübeck e Rostock entre 1330 e 1350; o livro dos Rutinger, de
Ratisbona (1383-1407, por F. Bas-tian)... Alguém dirá: quantos nomes! Mas
esses documentos não são apenas interessantes como testemunhos da técnica
contábil; lançam uma luz preciosa sobre os negócios desses mercadores.

A correspondência compreende documentos puramente técnicos, como as letras


de câmbio — cartas mais gerais, expondo a situação comercial e mesmo política,
importantes nessa época em que não existiam jornais (como os que foram
encontrados entre os documentos de Datini, ou entre os da filial de Bruges dos
Medici) —, e, finalmente, cartas mais pessoais e familiares, úteis para o estudo
da psicologia dos mercadores. Citamos passagens daquelas que foram enviadas
pelo notário Ser Lapo Mazzei a Datini (341), ou daquelas dos Cely, na Inglaterra
(1475-1488) (60).

Ao passarmos para os arquivos rurais, quase exclusivamente senho riais,


devemos reconhecer a melhor conservação do acervo eclesiástico, o que é
facilmente compreensível, já que um dos deveres dos bispos, abades e priores,
ou cânones, é transmitir todos os seus documentos para seus sucessores; mas
isso não deve fazer com que ignoremos os senhores laicos e seus camponeses.
Foi Gérard Sivery quem escreveu (238) em relação ao Hainaut: “As
contabilidades dos condados ou das senhorias e, sobretudo, das abadias,
permitem descobrir as etapas que, no final do século XIII e no começo do
seguinte, resultam numa técnica decisiva para vários séculos.” A Inglaterra é
como o paraíso das contas rurais, a ponto de conduzir os historiadores a
injustiças, já constatadas em seu tempo.

Chegamos aos manuais. Os manuais de agricultura sucedem-se: no século XIII,


na Inglaterra, Walter de Henley redige la Dite de Hosebondrie (hoje: husbandry,
isto é, de lavragem e de economia doméstica). Nos primeiros anos do século
XIV, um bolonhês, Pierre de Crescenszi, redige um Ruralium commodorum
opus, que Carlos V, rei de França, manda traduzir um pouco mais tarde com o
título de Livre des prouffi champestres. Convém examiná-los criticamente. Essas
obras são um testemunho precioso para nós, mas descrevem as explorações
agrícolas mais avançadas. Não devemos pensar sobretudo que, em sua época,
tenha exercido uma ampla influência. Alguns proprietários esclarecidos,
eclesiásticos principalmente, puderam inspirar-se nelas. Mas são antes um
resultado, a conseqüência de uma longa série de pesquisas. A difusão dos
progressos agrícolas continua sendo para nós muito misteriosa. É certo que a
agricultura medieval foi sobretudo empírica.

Os manuais de comércio representam um terreno mais seguro. Por volta de 1340,


um agente da grande firma florentina dos Bardi, Francesco Balduccio Pegolotti,
resume sua experiência na Pratica della Mercatura (Prática da mercadoria) (299).
Em 1458, o veneziano

G. de Uzzano registra no Libro di mercatantie e usanze de’ paesi (320) (Livro


das práticas do comércio e costumes dos países) os grandes progressos
realizados nesse entretempo. Foi justamente esse livro que me permitiu
descrevê-los. Contudo, ainda aqui devemos evitar as certezas muito rápidas: o
que conhecemos através desses autores são as técnicas de ponta.
Muitos contratos registrados em cartório, se não se encontram mais nos arquivos
dos senhores — e dos camponeses, evidentemente — ou até mesmo dos
mercadores, foram conservados nos arquivos notariais. É preciso imaginar a
importância do papel que representava então o notário na vida cotidiana.
Mandavam-no registrar não apenas contratos de casamento, doações ou vendas
de imóveis, testamentos, como em nossos dias. Ia-se a ele para comprar uma
mercadoria a crédito (mesmo se fossem só algumas medidas de trigo ou alguns
metros de tecido), para contratar um aprendiz, um companheiro, um servidor,
uma ama-de-leite... e, naturalmentc, concluir um empréstimo, um contrato de
sociedade ou de transporte... Todos os aspectos da vida econômica encontram-se
esclarecidos ali, mesmo em relação a personagens ou empresas muito modestas.
Esses atos notariados existem desde o século XII sob a forma de expedições em
acervos eclesiásticos. Com o século XIII, e sobretudo século XIV, são
encontrados reunidos nos registros de minutas notariais: sejam os rascunhos
abreviados que os tabeliões escreviam apressadamente sob o ditado das partes;
sejam as redações extensas que seus amanuenses desenvolviam para preparar a
expedição de uma pública-forma. Entretanto, é preciso notar que somente
possuímos fragmentos do que foi registrado pelos notários, sendo que a maior
parte desapareceu; que esses atos exigem, às vezes, um esforço de interpretação,
particularmente porque alguns procuravam dissimular a “usura” (questão que
examinamos); e, sobretudo, que esses acervos encontram-se nos países que
seguiam o velho direito romano (Itália, Espanha, França meridional). Em outros
lugares, os atos privados eram registrados pelas municipalidades ou por alguns
tribunais (eclesiásticos, em particular). Restaram-nos poucos deles. O notariado
só estendeu-se pouco a pouco para o Norte, durante os séculos XV e XVI (99).

Isso nos leva a falar sobre a documentação oficial. A atividade dos camponeses,
como a dos artesãos e dos mercadores, manifestava-se no quadro de diversas
autoridades; portanto, deixou vestígios nos arquivos de suas administrações.
Censualistas e cartulários, sobretudo eclesiásticos, para as estruturas agrárias e o
trabalho camponês. Os artesãos e mercadores eram habitantes de cidades: era
delas que emanava a legislação econômica que deviam obedecer. Contudo,
muito cedo na Inglaterra, a partir do século XIII na França, no século XIV nos
Estados borguinhões, a autoridade do soberano passa à frente da autoridade das
cidades. Cada vez mais, é o Estado que legisla e controla a vida econômica.
Entretanto, na Itália e na Alemanha, são as cidades que, sob um imperador
fantasmático, são praticamente a única autoridade: pode-se falar de cidades-
Estados. Assinalemos finalmente alguns senhores portageiros, dos tribunais
eclesiásticos.

Que tipos de documentos fornecem esses acervos? Em primeiro lugar atos


legislativos e regulamentos: costumes senhoriais, decretos reais ou editos
municipais, estatutos de ofícios, etc. Serão confrontados com a legislação
eclesiástica sobre a usura, o justo preço. É evidentemente uma fonte
indispensável de informação. Porém, ela descreve um ideal, e coloca-se sempre
o problema de sua eficácia. Quando as mesmas regras são repetidas muitas
vezes, com sanções agravadas, é sinal de que não são respeitadas. Podemos
somar a isso as deliberações dos corpos encarregados da elaboração e da
aplicação dessas regras, por exemplo, os corpos municipais. É inútil explicar por
que eles são mais confiáveis.

Disso também emanam contas, que podem ser muito variadas. Direi apenas
alguns exemplos. Já falei das contas senhoriais. As contas de hospitais são
preciosas tanto para o estudo da alimentação quanto para o dos preços (221).
Também há as tarifas e as contas de pedágios cobrados nas cidades e nas
estradas; elas se esclareciam mutuamente. Há as contas de duanas: as mais
notáveis são as Cus toms Accounts inglesas: 7.500 rolos nos quais se encontra
consignada a percepção dos direitos estabelecidos a partir do final do século
XIII, sobre a importação do vinho, e sobre a exportação de lã e pano (69). Há
também contas particulares dos diversos portos, e, de outra parte, os resumos e
totais estabelecidos no Échiquier (isto é, do Tesouro). Em 1955, seu valor foi
contestado, mas a discussão foi-lhe favorável. Em todo caso, nada pode ser-lhe
comparado: a Hansa germânica possui alguns Pfundzolle esparsos (41); em
outros lugares existem algumas contas portuárias, como as de Dieppe (65)...

Também há contas de administrações: Cortes principescas, ateliês monetários,


senhorias... São utilizadas em estudos recentes. Projetam uma luz esclarecedora
sobre a vida camponesa e sobre os tráficos dos produtos rurais, panos, peles,
pedrarias. Os arquivos judiciários permitem que conheçamos sobretudo as
fraudes, os atos delituosos e criminosos. Se não nos precavéssemos, elas nos
passariam uma imagem espantosa da realidade, inversa àquela que
proporcionava a regulamentação. Bem interpretadas, são, contudo, preciosas. Há
tribunais senhoriais — e seus arquivos abundam especialmente na Inglaterra —
e cortes propriamente comerciais, como a Mercanzia de Florença. Outros
tribunais não especializados tiveram que resolver casos que interessam à
economia. O rei de França costumava conceder decretos de perdão, pelos quais,
no curso das diligências e antes do julgamento, agraciava um ou vários acusados
de crime. Se analisados com prudência (contêm fatos excepcionais e traduzem
sempre os pontos de vista do solicitante, cujo interesse, entretanto, é o de nada
esconder sobre as faltas das quais poderia vir a ser ulte riormente acusado),
constituem uma fonte de qualidade. Os arquivos de alguns processos são
particularmente conhecidos: o inventário dos bens confiscados de Jacques Coeur
é o nosso dado principal a respeito desse mercador (64).

Existe ainda toda uma documentação iconográfica que procuraremos não


esquecer nem sobrestimar (252, 345). Eis os trabalhos dos meses, esculpidos nas
paredes das igrejas, ou pintados nas miniaturas dos livros de orações: as Très
Riches Heures do duque de Berry são particularmente célebres. Mas muitas
margens de manuscritos são ornamentadas com camponeses no trabalho,
mulheres fiando na roca ou na roda de fiar, artesãos dedicados a suas tarefas...
Quadros por vezes célebres mostram o cambista — desde Quentin Metsys
(1461-1530) até Rembrandt (1606-1674), mas as coisas não terão mudado muito
nesse meio tempo: — ou o intelectual no trabalho — Vittore Carpaccio pintando
São Gerônimo, entre outros. Que alegria ver esses homens e essas mulheres
sobre cujo difícil trabalho nos chegam informações através de documentos
escritos (23)! Contudo, tenhamos cuidado: a arte é transposição da realidade, a
um nível difícil de ser medido. Além disso, os escultores e miniaturistas
medievais tinham grande tendência a copiarem uns aos outros, a divulgarem
modelos que nem sempre correspondiam à realidade. Quem quisesse evocar com
sua ajuda os progressos da alfanje em detrimento da foice cairia em engano; eu
mesmo não vi ainda camponeses ceifando com foice na região de Toledo?

Há, finalmente — talvez aqui o testemunho se torne mais emocionante —, restos


materiais da economia européia do fim da Idade Média. Atentos conservadores
de museus encontraram charruas ou arados antigos. Eu mesmo descobri,
remexendo nos arquivos tolosa nos, amostras de panos ingleses do século XV.
Os bombardeios destruíram tantos imóveis — e entre outros a famosa Ponte
Vecchio de Florença. Mas subsistem outros palácios, como a casa de Fran cesco
Datini em Prato ou a de Jacques Coeur em Bourges. Pesquisas feitas por jovens
permitem reconstituir as humildes moradas dos camponeses dos séculos XIV e
XV.

Dependemos muito das condições em que se conservaram essas fontes e não


tenho a pretensão de ter enumerado todos os tipos de fontes. Quantas
destruições, devidas às guerras, aos incêndios, ou à simples negligência! Talvez
a documentação tenha se mantido mais intacta na Inglaterra. Prospecções aéreas
permitiram reconstituir algumas vilas abandonadas, cuja existência nos coloca,
como veremos, muitos problemas (26). Na França, as guerras ditas religiosas e
depois a Revolução de 1789 fizeram desaparecer muitos manuscritos; mas, na
França, ao menos foi feito um reagrupamento do material encontrado nos
arquivos nacionais ou departamentais. Também na Espanha houve destruição,
mas não o mesmo reagrupamento. A tarefa do pesquisador, que vai de igreja a
convento, muitas vezes é penosa, mas promete muitas surpresas felizes! Na
Alemanha e na Itália — uma vez que os tempos do Império na realidade
passaram — não há os acervos centralizados, mas a documentação local é
extremamente rica.

Para finalizar, reafirmamos nosso ponto de vista. Nossa informação da perfeição


— se a atinge, sem dúvida, somos nós que não conseguimos mais utilizá-la. As
lacunas existentes são deploráveis. Os números ainda permitem elaborar apenas
poucas estatísticas. Sua multiplicação é, no entanto, um fato essencial. É
característico o texto de um engenheiro milanês, conhecido sobretudo como
pintor, mas que, antes de tudo, era um "inventor”, ou seja, Leonardo da Vinci:

“Esta manhã, 2 de janeiro de 1496, vou pegar uma correia de couro e fazer um
experimento... Em uma hora, 400 agulhas estarão prontas cem vezes, o que
perfaz 40.000 agulhas por hora, e 480.000 em doze horas. Digamos quatro
milhões a cinco soidos por mil, perfazendo 20.000 soidos: 1.000 libras por dia de
trabalho e, se se trabalha vinte dias por mês, 60.000 ducados por ano.”

Parece-me seguro que, por volta do ano de 1300, tenha-se configurado uma nova
era no esforço do espírito humano.

Esboço de bibliografia

Não há nada mais indispensável e ao mesmo tempo enfadonho do que uma


bibliografia. Os leitores que o desejarem também encontrarão neste volume uma
lista de referências, não completa evidentemente, pois um livro inteiro não
bastaria para isso, mas que contém o essencial e está atualizada tanto quanto
possível, além de estar classificada ao máximo. Porém quando ensinava,
constatei que uma maneira de animar uma bibliografia consistia em pintar com
rápidas pinceladas um quadro de pelo menos uma parte dos homens e das
mulheres escondidos atrás de seus textos. É o que tentarei fazer, desculpando-me
antecipadamente pelas omissões — não é possível citar todos — e pelas
injustiças que possa cometer.

Comecemos pela história rural. Imediatamente, a fórmula vem ao espírito: e


Marc Bloch aparece. Não que isso signifique que antes dele ninguém tenha se
preocupado com o destino dos campos europeus. Porém, em 1931, seus
Caractères originaux de l'histoire rurale française (204) impuseram toda uma
nova problemática, não isenta de hipóteses e, portanto, de riscos, mas que renova
de uma só vez os horizontes mais familiares aparentemente. Contudo, Marc
Bloch, corajoso e reservado, desejava suscitar opositores. Os séculos XIV e XV
encontram-se um pouco sacrificados nessa obra, porém, seguindo os caminhos
traçados pelo mestre — torturado e fuzilado nesse entretempo pela Gestapo
devido a sua patriótica resistência — outros historiadores compensaram essa
lacuna: na França, Robert Boutru che abriu o caminho; a seu lado ou seguindo-o,
surgem, na Inglaterra, o esperto e sutil Michael Postan; na Bélgica, Léopold
Genicot; na Alemanha, Whilhelm Abel; na Espanha, o sedutor Jaume Vicens
iVives, desaparecido cedo demais.

Passemos à história do comércio e dos meios urbanos. Aqui, nossa companhia é


em grande parte internacional. Na França, a tradição criada por Fernand
Bourquelot e Gustave Fagniez (para não voltar mais atrás) foi retomada pelo
aristocrático (no bom sentido da palavra) decano Yves Renouard — também
desaparecido cedo demais —, pelo encantador Michel Mollat e, ousaria dizer
sem falsa modéstia, por mim mesmo, sem esquecer o fogoso Robert Bautier. Na
Inglaterra, houve Eileen Power, mulher muito agradável, morta em 1940 de uma
crise cardíaca; e Eleanora Carus-Wilson, mais austera, que reencontrei no
seminário de Eileen Power. Também travei conhecimento com Sylvia Thrupp,
obcecada por comparatismo. Apegado intransigentemente à Europa e aos
Estados Unidos, há também Robert Sabatino Lopez. Na Bélgica e nos Estados
Unidos, Raymond de Roover colaborou com sua experiência única, pois, antes
de escrever sua história, já tinha trabalhado com bancos e negócios. Como tantos
outros, também ele foi influenciado pelo velho mestre Henri Pirenne. A Itália
foi, nos séculos XIV e XV, terra de inovações. A escola italiana de história é uma
constelação que pode glorificar-se pelo menos de três nomes: o incansável
Armando Sapori; Federigo Melis, de início homem de Datini, também
desaparecido; e o professor e presidente Amintore Fanfani, que soube ocupar-se
simultaneamente de uma grande obra histórica e de uma atividade política. Até
mesmo a URSS enviou-nos E. A. Kosminsky, que realizou na Inglaterra a
ligação entre pesquisa marxista e “ciência burguesa", e o generoso Victor
Ivanovitch Rutenburg. Há uma boa escola polonesa, dirigida por meu excelente
amigo Aleksander Gieysztor. Há poucos alemães: o saudoso Erich Maschke
preenchia uma lacuna. Felizmente ele formou alunos.

Depois dessa resenha forçosamente incompleta, qual seria a impressão do leitor?


De que há pequena sociedade que comunga na lembrança dos grandes mestres,
que se encontra com regularidade em Congressos ou Encontros pelo mundo,
quando seus membros trocam comunicações, mas sobretudo conversam, além de
nutrirem-se com a leitura regular de algumas revistas de história econômica:
Annales ESC (nascida dos Annales d'Histoire économique e social fundadas em
1929 por Marc Bloch e Lucien Febvre), Histoire, écono-mie et société —
1’Economic History Review e sua contrapartida a Scandinavian Economic
History Review; 1’American Journal of Eco-nomic History, a Revue belge de
philologie et d’histoire, e Le Moyen Age —, os Hansische Geschichtsblãtter e o
Viertteljahrschrift für Sozial-und Wirtschaftsgeschichte (para citar somente as
principais), nas quais colaboram com muitos artigos. Eu poderia, nessa orquestra
tão amplamente internacional, assinalar algumas cadeiras ainda
insuficientemente ocupadas: é certo que, para os alemães, os bons tempos do
Império, que os atraem naturalmente, tenham passado — é característico o fato
de que o melhor livro sobre a Hansa (logo traduzido para o alemão) seja a obra
de meu velho e muito modésto amigo Philippe Dollinger (41), filho, é verdade,
dessa Alsácia destinada a se tomar uma encruzilhada da Europa. Mas os vazios
serão preenchidos depressa.

Tal realidade é tão viva e tão enriquecedora para os que se dedicam a essa área,
que uma simples enumeração de nomes e de títulos não seria, com certeza, capaz
de fazer antever.

As angústias de um historiador de acervo

Muitos amadores improvisam-se em historiadores, pois imaginam a tarefa como


algo óbvio. Para alguns sucessos — pagos caro aliás —, quantos reveses!
Escrever a história é um oficio que se aprende como todos os outros.
Evidentemente não me proponho a insistir sobre esse aprendizado em geral, mas
sim tratar de modo mais específico das dificuldades encontradas pelo historiador
da economia dos séculos XIV e XV.

Passo rapidamente sobre os problemas que surgem para a decifra ção das escritas
antigas, sendo que as que se referem a essa época são particularmente difíceis, e
o erudito mais escrupuloso não está a salvo de enganos. Que perda de tempo é
ler por inteiro uma pública-forma notarial! Isolar, à primeira leitura, algumas
linhas essenciais em um texto que pode cobrir seis páginas de registro é do
mesmo modo indispensável. É preciso saber decifrar uma contabilidade.
Convém ainda notar que nos séculos XIV e XV o ano não começava no mesmo
dia em todos os lugares: aqui era em 25 de dezembro (aniversário do nascimento
de Cristo), em outro local em 25 de março (o de sua concepção), às vezes Páscoa
(aniversário da Redenção, porém, uma data móvel, o que não é nada cômodo); o
1 de janeiro só aparece raramente. Daí as correções, que devem ser feitas de
maneira segura e rápida. O computador tem um papel cada vez maior no
trabalho do medievalista. É necessário que o historiador saiba reter os dados
essenciais e passá-los para um cartão perfurado que possa ir para a máquina. São
apenas amostras, talvez ultrapassadas graças aos progressos da técnica. A
História não é uma ciência; é uma arte, que se pratica com métodos tão
científicos quanto possível. Ensiná-los é justamente o objetivo das “ciências
auxiliares” da história — a paleografia, a diplomática, a estatística, a
informática, etc. — e não é possível prescindir delas.

Tratemos agora das dificuldades próprias ao estudo da economia (24). Surge,


antes de mais nada, o irritante problema das medidas antigas. No início, o
homem tomou a si próprio como instrumento de medida: daí o uso de expressões
como polegada, pé, passo, braçada (envergadura)... que encontramos sob
diversas formas nos textos mais antigos. O Império romano havia tentado
alguma sistematização dentro de seu território. Seu deslocamento resulta numa
variedade quase infinita das medidas (de comprimento, de superfície, de
capacidade) e dos pesos. Jacques Heers escreveu: (8): “É de fato irritante
constatar que nos dias de hoje o historiador da economia, sempre em busca de
documentos novos, não dispõe desse instrumento de trabalho indispensável à
primeira vista: uma lista das principais medidas da Idade Média com suas
equivalências modernas. Certamente a tarefa é imensa e pode desencorajar por
sua própria complexidade. A idéia de um sistema de medidas coerente e simples
é absolutamente estranha para as pessoas dessa época...”

Apenas por um esforço progressivo de abstração é que a França conseguiu


instaurar o sistema métrico (1791): o metro era a décima milionésima parte do
arco do meridiano terrestre compreendido entre o pólo norte e o equador. Nos
anos que se seguiram foram redigidos para cada departamento tabelas de
conversão das antigas medidas; cada um de nós os consulta freqüentemente, mas
temendo que as medidas tomadas depois de 1791 não fossem mais exatamente as
mesmas que se usavam nos séculos XIV e XV. Aliás, na Inglaterra subsistiam o
inch. o yard, a libra (pound), etc., e nossos amigos britânicos ainda hoje
manifestam alguma repugnância pelo sistema métrico... Em suma, nosso pobre
historiador penetra num dédalo. No entanto, o valor de seu trabalho dependerá
muito da maneira como ele soube se sair disso!

Um outro problema consiste em datar os progressos das diversas técnicas e em


seguir sua difusão. Sabemos muito bem que só passamos a considerar uma nova
técnica depois que seu emprego é assinalado num texto — mas há quanto
tempo? É o que quase sempre é impossível sabermos. Do mesmo modo, a partir
do momento em que constatamos que esse progresso foi realizado em algum
lugar, nossa tendência é acreditar que o mesmo se deu em todos os lugares. Que
erro! Esse é sobretudo o caso das técnicas rurais e da utilização dos instrumentos
agrícolas, pois sua difusão foi particularmente empírica. Em duas explorações
vizinhas podiam-se encontrar, em uma, a prática dos métodos mais modernos, na
outra o arcaísmo mais tacanho. Houve até mesmo retrocessos: quando um
homem voltado para o futuro morria, podia acontecer de seus herdeiros
mostrarem-se bem mais tradicionalistas. De sua pesquisa, o historiador obtém
principalmente lições de prudência e a aversão por qualquer generalização, que
sempre corre o risco de ser precipitada.

São sobretudo dois os domínios que quero evocar, porque neles é possível
constatar a que ponto os métodos de trabalho evoluem rápido — domínios
difíceis certamente, mas de importância capital: a demografia e a história dos
preços e dos salários.

Foi ainda Jacques Heers quem escreveu justamente (8): “Sem du vida nenhuma
abordamos aqui um domínio de pesquisas relativamente recente, por muito
tempo negligenciado pelos historiadores. Em 1950, até mesmo o Rapport de
démographie médiévale, apresentado no Congresso Internacional das Ciências
Históricas, em Paris, por C. M. Cipolla, J. Dhondt, M. Postan e Ph. Wolff (121),
podia fazer apenas um balanço sumário, citar números muito aproximados e
principalmente indicar as lacunas e os métodos a serem seguidos. A demografia
medieval é, portanto, uma ciência totalmente nova que não pode progredir tão
rápido e de modo tão seguro quanto o desejariam os historiadores da economia,
impacientes para utilizar resultados ‘definitivos’.” Essas linhas foram publicadas
em 1963. Já são antiquadas, pois, em 1978, foram lançadas duas obras capitais
que renovaram a paisagem e permitiram responder a questões que, em 1950, por
ocasião do grande reencontro dos historiadores após a guerra, só aventuraríamos
com muito pouca esperança.

Em primeiro lugar, houve a publicação, por Christiane Klapisch e David Herlihy,


dos resultados comentados de uma análise do catas-to florentino de 1427,
utilizando o computador (143). Não foi sem hesitações que os florentinos
romperam com as tradições que os levavam a suportar o peso das despesas da
República, especialmente para suas guerras, pelos impostos indiretos. Por
definição, era injusto, pois a diferença entre as necessidades alimentares e outras
— dos ricos e dos pobres não era evidentemente proporcional à desigualdade das
fortunas. Recorria-se também ao empréstimo, mas era preciso reembolsar e
pagar pesados juros. Ainda era aos impostos indiretos que se apelava para fazê-
lo. As tensões sociais tornavam-se insuportáveis. Os pobres tentavam safar-se
pela fuga. O preâmbulo da lei do catasto reconhecia-o:

“Não se conseguiria descrever pela pena ou pela língua o número e a qualidade


dos cidadãos que a desigualdade dos encargos públicos despojou de seus bens,
privou de sua pátria, e que o aniquilamento de sua fortuna quase levou ao
desespero, retirando-lhes até mesmo o desejo que alguns nutriam ainda de voltar
a sua pátria, atingindo-os com milhares de males, pavor e incerteza sobre seu
estado.”

As guerras contra Milão e depois contra Lucca venceram as últimas resistências.


Uma verdadeira revolução fiscal é anunciada com a instituição do catasto.
Ainda era preciso poder estabelecê-lo. Não era pouco. Florença encontrava-se à
frente de um contado, isto é, de um território correspondendo aproximadamente
a dois atuais departamentos franceses — perto de 11.000 quilômetros quadrados
—, em linhas gerais, a bacia do Amo. Montanhas e vales opunham-se ali na
agradável paisagem ainda hoje admirada pelo turista. Cidadezinhas, que sempre
são propostas para nosso deleite, Pisa, San Giminiano, Arezzo, Vol terra, Pistoia,
Prato, faziam parte dessa espécie de coroa desenhada em volta da própria
Florença. Mais de 60.000 famílias viviam ali, ou seja, cerca de 260.000 pessoas.
Em nossos dias, em que os métodos de recenseamento fixaram-se bem, ainda são
muitos os erros e as hesitações! Como agir no século XV?

A própria confecção do catasto ilustra bem o que eu dizia acima: a multiplicação


dos documentos nos séculos XIV e XV corresponde a uma verdadeira revolução
intelectual. Situa-se num contexto que os autores de 1978 com muita razão
puseram em relevo:

“Como apreciar o objetivo de um tal projeto, cuja extensão por si só revela a


influência excepcional de um poderoso aparelho burocrático? De fato, nosso
monumento foi concebido e erigido pelos mesmos homens que lançaram, por
volta de 1400, os fundamentos daquilo que se chamou ‘o humanismo cívico’.
Exaltaram, não só em suas obras literárias, mas na própria ordenação de sua
cidade, em sua estatuária monumental e nos afrescos de seus palácios ou de suas
igrejas, a participação salvadora do indivíduo no seio da comunidade. A
concepção do catasto aparece então como uma das múltiplas facetas de uma rica
ideologia, apaixonada pela totalidade da atividade humana e preocupada em
descobri-la e avaliá-la para dar maior peso a sua vontade.”

Foi preciso então constituir toda uma administração. Os dez primeiro ufficiali
foram eleitos e se cercaram de representantes das diversas categorias sociais.
Entre eles, muitos mercadores, habituados às servidões da escrita, tais como os
descreve admiravelmente Léon Battista Alberti (pois é, o grande arquiteto!):
“Convém inteiramente ao mercador ter sempre as mãos manchadas de tinta... O
dever do mercador, e de toda (pessoa que exerce uma) atividade que implica em
relação com outras pessoas, é de escrever tudo, contratos, entradas e saídas de
depósitos, e, revendo com freqüência tudo isso, manter, por assim dizer, sempre
a pena à mão... pois, se você adia para mais tarde, os negócios envelhecem nas
mãos e acabam sendo esquecidos...”

Um palácio colocado à sua disposição para instalar seus escritórios: o palácio


Davizi. Podiam inspirar-se não só em sua experiência pessoal, mas na longa
tradição toscana de recenseamentos fiscais e no exemplo fornecido pela
administração veneziana. Tiveram sucessores. Ao todo, a confecção do catasto
levou cerca de quatro anos. A cada chefe de família perguntava-se: quantas
pessoas viviam com ele no “lar” tomado como unidade de base, o sexo, a idade,
e grau de parentesco; um “inventário completo de todas as formas de riqueza...:
bens imóveis, animais ‘dignos de valor’, espécies, mercadorias, créditos e partes
da dívida pública. O contribuinte devia fornecer para cada pedaço de terra ou
conjunto de cultivo a localização, as fronteiras, a dimensão e o rendimento que
dele obtinha; os proprietários deviam igualmente fornecer uma ‘avaliação justa’
de seu valor. Certas categorias de bens, entretanto, eram isentas: domicílios da
família, mobília... e as montarias destinadas a seu próprio uso. Os proprietários
viram-se também autorizados a tirar do valor das rendas que obtinham de suas
terras um florim por junta de bois empregado ‘a mezzo’ em suas propriedades
arrendadas assim como 5% para as despesas de adubação”.

Esse catasto teve conservação bastante assegurada, pois chegou-nos quase


integralmente. Um conjunto de dados tão vasto não podia ser tratado hoje de
outro modo senão no computador. Estremecemos ao pensamento de que um
pesquisador poderia ser tentado a analisá-lo segundo os métodos tradicionais.
Mas foi preciso se chegar aos métodos próprios para a confecção desse quadro: a
elaboração dos cartões perfurados destinados ao computador não foi a menor das
tarefas. Ao apresentar essa obra pioneira, eu não deixava de assinalar os perigos
que comportava, a meu ver, a divulgação de uma documentação tão excepcional.
“Desenvolvendo plenamente as informações de inigualável precisão fornecidas
pelo catasto, os autores criam uma inevitável distorção em relação às conclusões
que se podem obter da documentação ‘envolvente’, tão menos rica e menos
segura. A tantas questões que já nos colocávamos com uma inquieta insistência,
a tantas outras que doravante poderemos conceber, elas fornecerão respostas
inigualáveis, que facilmente concentrarão todas as atenções... A generalização,
contra a qual os autores justamente nos alertam não será, muitas vezes, uma
irresistível tentação?... Mesmo assim, a barriga está cheia! Será que deveremos
chorar?”

Estava errado inquietando-me assim. A algumas centenas de quilômetros de


Florença, a 240 de Toulouse, uma erudita bordalesa, Arlet te Higounet-Nadal
(144), trabalhava sobre a documentação bastante tradicional de uma
pequeníssima cidade: Périgueux. Algumas dezenas de registros de percepção da
derrama eram inteligentemente esclarecidas por uma busca paciente em todas as
outras fontes disponíveis. Deixo a meu colega Robert Étienne o cuidado de
apresentar o resultado: “A amplidão da investigação confunde, e foi necessária
uma sólida fé para examinar tantas séries, para preparar um fichário
mecanográfico de 80.000 dados, para catalogar 4.493 nomes de famílias. Só
podemos admirar essa pesquisa paciente que criou, de alto a baixo, a matéria de
uma reflexão ao mesmo tempo que apurava o método de exploração de dados
jamais reunidos: saudemos esses 69 quadros e outros gráficos que oferecem
doravante a todos os pesquisadores um inestimável banco de dados. Ninguém,
durante muito tempo, ousará tomar os mesmos caminhos, tanto esse trabalho
minucioso foi exaustivo e tanto é servido por uma excelente doutrina.”

A autora, de fato, elaborou uma tese e contribuiu com uma nova visão da
população de Périgueux, instalando a mobilidade no proscênio da demografia
medieval. Mobilidade no tempo, que apresenta incríveis oscilações: máximo em
1330, diminuição à metade em 1348, explicada pela recessão econômica de
1330-1335 e a famosa peste de 1348; outra queda, a do início do século XV,
causada pela peste de 1400, e o boom do fim do século. Mobilidade no espaço,
pois, numa população que se renova de maneira permanente, a imigração tem
um papel vital. Essa imigração é proveniente de uma zona concêntrica de
aproximadamente quarenta quilômetros em volta da cidade, mas também de
regiões mais longínquas como o Béarn e a Bretanha. Mobilidade social, já que
nas mesmas famílias coexistem ricos e menos ricos. Os limites do abastecimento
urbano, devidos às dificuldades do transporte, e as estruturas rudimentares do
equipamento econômico explicam essa mobilidade que interessa a todas as
categorias sócio-profissionais, sobretudo os lavradores e os artesãos. Único
elemento estável é o núcleo das famílias que detêm o poder e que emergem de
uma multidão de migrantes estrangeiros. Os que fazem a história manifestam sua
longevidade. Périgueux permite, portanto, apreender a demografia diferencial
das classes, explicar as quedas demográficas pela mobilidade da população, e as
contradições de uma sociedade numa região em que o progresso econômico
possibilita que se passe da família patriarcal à família conjugal, num país onde se
avizinham direito romano e costume.

De um único golpe, achava-se erguida a verdadeira “cruz” que, conforme meus


próprios termos, pesava sobre a demografia medieval: o aparentemente insolúvel
problema do “coefficient de feu". São feux (lares), não homens, que os
documentos dos séculos XIV e XV permitem-nos alcançar: pois, o que
importava para os contemporâneos não era o indivíduo, mas o “lar” a que ele
pertencia. Nossa atitude é inteiramente diferente hoje: é o indivíduo que nos
interessa e, quando citamos números populacionais, dizemos que essa ou aquela
cidade conta com tantos habitantes, que a densidade é de tantas pessoas por
quilômetro quadrado. Mais uma vez, a mudança de documentação corresponde a
uma transformação de mentalidades. Mas como passar do número de lares ao
número de habitantes? “A definição do feu (lar), observa Jacques Heers (8), de
início é muito complexa. Certamente, há muito tempo, os historiadores
estabeleceram a distinção entre feux compoix que compreende uma vasta
comunidade familiar (dez, vinte, trinta pessoas talvez) e o feu ordinaire que só
conta uma simples família. Deste último apenas a história estatística pode
ocupar-se, o primeiro é demasiado vago e incerto. Mas essa distinção nem
sempre é fácil de ser feita; ela não se depreende forço samente dos documentos e
alguns erros foram cometidos.” Certamente. foram feitas análises úteis: em
1473, temendo a aproximação de um cerco, a cidadezinha de Carpentras contou
as bocas a alimentar, tendo em vista a acumulação de estoques de alimentação
suficientes. Mas também possuímos registros de lares. Restava comparar. Robert
Bautier dedicou-se a isso: ele mostrou o quanto essa unidade era variável,
segundo os meios sociais e religiosos; assim, a média era de 5,2 para os cristãos
e de apenas 4,3 para os judeus; os lares dos meios populares limitavam-se a
menos de três pessoas, enquanto que, para os lares ricos, a média estabelecia-se
em 7,7, pois certas famílias tinham até 25 indivíduos. Os trabalhos citados acima
acabam por nos convencer: tantos são os casos, tantas são as soluções. É só por
falta de coisa melhor que nos contentaremos com um coeficiente de 4,5 — o
menos falso de todos os que foram propostos.

Voltemos aos ensinamentos do catasto florentino de 1427, do qual Philippe


Braunstein soube, numa vigorosa revisão do texto, sublinhar o exepcional
interesse — chegando mesmo à indiscrição. Apresenta uma pirâmide das idades
na Toscana de então: há uma elevada proporção de pessoas idosas, e também de
jovens (0 a 19 anos), comparável à da França napoleônica, mas estreita-se
sobretudo a faixa de idades entre 20 e 55 anos — “foi necessário cerca de um
século para restaurar uma estrutura por idades próxima da situação anterior aos
desastres”. Poucas crianças e muitos velhos entre os pobres; apenas 3,5% de
velhos, contra uma multidão de jovens entre os ricos. “A preeminência da idade,
de uma classe social para a outra, explica o fato de que pobreza e velhice estejam
estreitamente associadas nas mentalidades do outono da Idade Média, e que a
sociedade dos poderosos possa ser descrita como essas assembléias e cortejos
com uma cintilante e insolente juventude representada magnificamente pela
pintura florentina do Quattrocento.”

O contraste não é menos vivo entre cidades e campos: havia muitas crianças em
Florença, onde viviam as famílias mais ricas; ao contrário, os jovens fugiam do
campo. “A Toscana ganha então a forma de um corpo que envelhece ‘de coração
ainda alerta’.”

Levando-se em conta as inevitáveis lacunas da documentação, a divisão das


fortunas faz ressaltar uma grande desigualdade: "quatorze por cento da
população (laica) possuía os dois terços da riqueza toscana; a metade desses
capitais estava investida na terra, a fortuna mobiliária representava 30% do total,
as partes da dívida pública, 17%. Uma centena de famílias dispunha de 60% dos
títulos da dívida pública.” Os proprietários de capitais investiam amplamente nos
campos, graças ao sistema da mezzadria (arrendamento a meias): “Essa
transferência de capitais para a terra é a chave da relativa prosperidade toscana.”
Em compensação, “a metade desses camponeses mezzadri não possuem bens
tributáveis, e seu endividamento em relação ao patrão os situa nos limites da
deserção das terras”.

Completado pela leitura dos Ricordi, o catasto informa sobre os comportamentos


demográficos. A duração média da vida, que era de cerca de 40 anos por volta de
1300, caiu pela metade por volta de 1400; retomou o nível dos 40 anos após
1450. A idade de casamento é conhecida: em Florença como nos campos,
praticamente todas as mulheres casavam-se, e jovens, com aproximadamente 16
anos; também 97% das mulheres com menos de 25 anos eram casadas ou viúvas.
Para os homens, esse acontecimento era mais tardio: “o celibato prolongado, ou
definitivo — um ‘purgatório matrimonial’ indefinido — representava para os
homens o mesmo papel que a viuvez, muitas vezes precoce, das mulheres”. Daí
as tendências à homossexualidade ou à prostituição, citadas por Boccaccio; daí
também uma aptidão para as guerras privadas e para as lutas de facção, das quais
Shakespeare recolherá o eco em Romeu e Julieta.

Passemos aos nascimentos: no campo ressalta uma forte correlação entre


dimensões da terra e da família; os mezzadri têm muitos filhos, ao contrário dos
famintos dos castanhais e das pastagens de altitude. Na cidade, as mulheres ricas
trazem ao mundo três crianças que viverão, os pobres contentam-se com duas.
Ficamos especialmente impressionados com a diferença de idade entre os
esposos: a mulher estava muitas vezes a igual distância de seu marido e de seu
primeiro filho; a idade no casamento, que limitava a duração da vida conjugal,
foi um regulador da população toscana. Isso não impedia os medíocres e os
pobres de se consagrarem a práticas de limitações de nascimentos, que
provocavam o furor de um Bernardino de Siena em seus sermões.

Se tentarmos generalizar para o mundo mediterrânico o exemplo toscano — com


os riscos que isso implica — poderemos, com Philippe Braunstein, seguindo
Christiane Klapisch e David Herlihy, concluir: “Definitivamente há um
personagem essencial nessa história ao modo masculino, é a mulher: menina que
sobreviveu à indiferença, na verdade ao homicídio dissimulado, mocinha cujas
formas nascentes valem de repente seu preço no campo aberto das estratégias
matrimoniais, casada e mãe, amiúde chefe de família, viúva cortejada, ela tem
pela sucessão de seus papéis um lugar determinante no seio da casa. A sociedade
antiga, dividida entre a misoginia e a exaltação das qualidades da dona de casa,
era demasiado masculina para reconhecer que a igual distância de seus maridos e
de seus filhos, sobrevivendo a um e legando aos outros um capital e alianças
‘que faziam a diferença’, mulheres e mães asseguravam a continuidade das
linhagens agnadas: indispensável estrangeira nas sociedades de homens, mãe da
Toscana, ‘mãe mediterrânica’...”

A demografia é árdua? Certamente os métodos são austeros. Mas como são


significativos os resultados! Fazem surgir todo um mundo estranho. Isso é
suficiente para pôr fim aos complexos que poderiamos alimentar em relação aos
historiadores britânicos, que podiam basear-se num material tido até
recentemente como inigualável, e cujos resultados meu trêmulo amigo Josiah
Cox Russel (ele não esconde que é quaker) traduziu, com uma segurança que
não deixa transparecer nada de seus debates internos (164-168).

A história dos preços e dos salários — tão austera por seus métodos, mas tão
dramaticamente vivida por nossos antepassados — também teve seus pioneiros,
que não se devem ser desprezados; mesmo se, por volta de 1900, tenha
conhecido grandes ilusões. Na Inglaterra, Thorold Rogers publicava entre 1889 e
1902 os oito volumes de sua história da agricultura e dos preços de meados do
século XIII ao final do século XVIII. Na França, de 1894 a 1898, aparecem os
quatro tomos do estudo consagrado por Georges d’Avenel à história dos salários
e dos preços de 1200 a 1800.

A essa euforia estatística sucedeu, à medida que apareciam as exigências


científicas de um estudo racional dos preços, uma era de desconfiança. Para
dizer a verdade, era fácil dar-se conta de quanto a obra monumetal de Avenel
expunha-se à crítica. A própria documentação exigia ressalvas; com demasiada
freqüência ele utilizou muitas indicações de preços referentes a regiões diversas.
O problema das conversões das medidas e das moedas mesmo assim era
delicado. No que concerne às moedas, Avenel convertia, segundo Natalis de
Wailly, todos os valores em francos-germinal, que tinham cotação em seu tempo.
Ato de fé na estabilidade, com certeza notavelmente duradoura, desse franco-
germinal que, aos nossos olhos, não significa mais grande coisa. Reduzia todos
os preços à quantidade de metal precioso que se encontrava incluído nele; mas
como esse metal servia, muitas vezes, como uma mercadoria, isso resultava na
medição de todos os preços com o auxílio de um instrumento que, entrementes,
se alongava ou se encolhia.

Alertados pelas críticas suscitadas pelo trabalho de Avenel, os historiadores dos


preços tentaram, há cerca de cinqüenta anos, retomar esse estudo de maneira
mais científica e modesta. Limitar-me-ei a evocar aqui as obras publicadas por
Earl Hamilton, Moritz J. Elsas, Lord Beveridge, Charles Verlinden, e artigos
como os de A. P. Usher, Robert Latouche, Jean Meuvret, Gino Luzzato, Monique
Mestayer — e outros. Parece-me que, tornando claras diretivas que sinto um
pouco de orgunho de ter elaborado (99) — aconselhado por Marc Bloch —
desde 1952, os métodos mais seguros, pelo menos para o momento, foram
colocados por Hermann Van der Wee (91) e por Charles M. de La Roncière (73).

Sem dúvida, falta-nos o melhor tipo de documento para a história dos preços: a
mercurial, isto é, o conjunto das variações de preços registrados pelas
autoridades locais (amiúde municipais), dia após dia, para os produtos
essenciais, e sobre um determinado mercado. Tais fontes os séculos XIV e XV
não conheciam, mesmo se Monique Mestayer e o saudoso Jean Meuvret
acreditaram ver ali suas origens. Devemos, portanto, contentar-nos com outros
materiais, utilizados com o maior discernimento possível: menções notariais e,
sobretudo, registros de contas — contas de Cortes, de municipalidades, de
hospitais, de trabalhos diversos, muito raramente de famílias, a serem
interpretadas cada vez melhor.

Naturalmente, o objetivo do historiador dos preços modernos e contemporâneos


é estabelecer médias, traçar, com o auxílio destas, curvas, extrair tendências,
distinguir ciclos, trintenários ou de duração mais longa. Seu colega dedicado aos
séculos XIV e XV deve, na medida do possível, renunciar a imitá-lo. Essa
atitude não lhe é ditada apenas pelas insuficiências de sua documentação. Deve-
se à própria natureza das estruturas econômicas e sociais.

Em primeiro lugar aparecem as diferenças de indivíduo a indivíduo. A maior ou


menor ingenuidade do comprador, a maior ou menor capacidade e habilidade do
vendedor podem fazer enormes diferenças. Os textos da época não estão repletos
de referências significativas ao que, ao assumir um certo caráter coletivo, deve-
se chamar especulação?

Depois temos a separação da economia no espaço: séries de preços provenientes


de lugares muito próximos podem, no entanto, não ter nada de semelhante. H.
Van Houtte constatou que até em mercados tão próximos quanto Bruges e Furnes
em Flandres, os preços dos gêneros eram diferentes nos séculos XIV e XV, e
suas variações de um ano para o outro não eram sequer paralelas. Testemunhei
um fenômeno parecido quanto a Toulouse e Montauban — apesar de estarem
distantes um pouco mais de 50 quilômetros, na metade do século XIV. Georges
Duby assinalou-o fortemente em relação à Provença do século XIV, tanto no que
concerne aos preços dos cereais quanto aos salários dos ceifeiros.

Não é menor a separação no tempo. Charles de la Roncière a constata nas contas


do hospital de Santa Maria Nuova de Florença:

“Ora a comida confisca quase todo o orçamento (1326), ora não representa sua
terça parte (1372), e a proporção pode variar quase a metade de um ano para o
outro (de 1371 a 1372). Ora o frumento açambarca a quarta parte do orçamento
de alimentação (1340), ora representa pouco mais da centésima parte (1326). As
variações atenuam-se para o vinho e para a carne, sem, contudo,
desaparecerem.”
Essa noção de variação é fundamental. Ela impõe-se, aliás, de modo muito
desigual de acordo com os produtos. Atinge seu máximo para os cereais, base
necessária da alimentação. É muito fraca para produtos ainda apreciados, mas
não mais vitais, como o vinho e os legumes. É quase nula para os produtos
fabricados, como os tecidos. Penso ter estabelecido que suas variações não eram
sequer simultâneas, de um lugar para outro. Que diferença, por exemplo, entre
Toulouse, geralmente mal abastecida, e Gênova (49) que, graças a uma hábil
política de compras efetuadas em lugares e datas mais favoráveis, podia manter
o preço do trigo a um nível bem constante!

Quando uma tendência geral prevalecer sobre essas diferenças, então as noções
de mercado, de economia de trocas, não irão obter todo o seu valor. Será o
resultado de uma longa evolução que se processa do século XVI ao século XIX.

Que pode fazer o historiador dos preços e dos salários na Europa dos séculos
XIV e XV? Trabalhar com monografias tão locais e precisas quanto possível —
cujo modelo foi dado, entre outros, por Charles de la Roncière em relação à
Florença do século XIV. Resolver da melhor maneira o problema da conversão
das antigas medidas. Traçar um duplo quadro dos preços: preços nominais e
quantidades de metais representadas por eles. E, finalmente, manter-se o mais
próximo possível dos homens e das mulheres que viveram esses tempos difíceis
— por excelência, a caça do historiador, como gostava de lembrar Marc Bloch.
As páginas precedentes foram bastante vividas na companhia deles.
Bibliografia

Esta bibliografia não é completa. Ela contém apenas as obras e artigos


diretamente utilizados para a redação deste volume. As fontes publicadas estão
incluídas. As referências são ordenadas por temas e, no interior de cada tema,
por ordem alfabética de sobrenomes de autores. Cada uma dessas referências é
numerada, de modo a permitir remissões através de chamadas de notas dispostas
no texto.

Lista dos temas:

A. Generalidades

B. Estudos regionais e locais

C. Demografia, fomes, epidemias

D. As guerras, nascimento dos Estados

E. Aspectos agrícolas

F. As indústrias

G. Comércio, crédito, moeda

H. Os meios de transporte

I. Aspectos morais e intelectuais.


A. Generalidades
1. Bautier(R. H.), The Economic Developmentof Medieval Europe, Londres,
Thames and Hudson, 1971, in 16 de 286 p., il.

2. Braudel (F.), Civilisation Matérielle et Capitalisme, Paris, 1973, in 8° de


464 p.

3. Cambridge Economic History (The):

— vol. I, The Agrarian Life of the Middle Ages., dir. por E. Power e M.
Postan, 1942.

— vol. II, Trade and Industry in the Middle Ages, dir. por M. Postan e E. Rich,
1952.

— vol. III, Economic Organization in the Middle Ages, dir. pelos mesmos e E.
Miller, 1963.

Cambridge University Press, 3 vols. in 8.

4. Fossier (R.), Le Moyen Age, Le Temps des Crises, 1250-1520, Paris, A.


Colin, 1983, in 8 de 544 p., il.

5. Fontana Economic History of Europe {The), dir. por C. M. Cipolla, vol. I,


The Middle Ages, 900-1500:

— Seção 1: J. Cox Russell, Population in Europe, 500-1500.

— Seção 2: J. Le Goff, The Town asan Agent of Civilization, 1200-1500.

— Seção 3: R. Roehl, Patterns and Structure of Demand, 1000-1500.

— Seção 4: L. White Jr., The Expansion of Technology, 500-1500.

— Seção 5: G. Duby, Medieval Agriculture.

— Seção 6: S. Thrupp, Medieval Industry, 1000-1500.

— Seção 7: J. Bernard, Trade and Finance in Medieval Europe.


— Seção 8: E, Miller, Government Economic Policies and Public Finance.

6. Fourquin (G.), Histoire Economique de VOccident Médiéval, Paris, A.


Colin (Col. U), 1969, in 8° quadrado 446 p.

7. Glénisson (J.) e Day (J.), Textes et Documents d'Histoire du Moyen Age,


XIVe-XVe Siècles, Paris, S.E.D.E.S., 1970, 2 vols.

8. Heers (J.), VOccident aux XIVe et XVe Siècles. Aspects Economiques et


Sociaux, Paris, P.U.F., 1963 (Col. Nouvelle Clio, n/ 23), in 16 de 388 p.

9. Hilton (R. H.), “Rent and Capital Formation in Feudal Society”, em 2 e


Conférence Internationale d’Histoire Economique, Aix-en-Provence, 1962,
Paris, 1965, pp. 33-68.

10. Huizinga (J.), Le Déclin du Moyen Age, reed. da tradução francesa. Paris,
Payot, 1967 (o título real era: L'Automne du Moyen Age).

11. Kosminsky (E.A.), “Peut-on Considérer le XIVe et le XVC Siècle Com-me


"Époque de la Décadence Européenne?”, em Studi in Onore di Armando Sapori,
Milão, 1957.

12. Le Goff (J.), Marchands et Banquiers du Moyen Age, Paris, P.U.F., 1956
(Col. Que sais-je?), in 16 de 128 p.

13. Lopez (R.S.), The Commercial Revolution ofthe Middle Ages, 950-1350,
Englewood Cliffs (N.J.), Prentice-Hall, 1971 (Spectrum Book), in 16 de 177 p.

14. Lopez (R.S.), Miskimin (H.A.) e Cipolla (C.M.), “The Economic De-
pression of the Middle Ages”, Economic History Review, 2‘. série, XIV, 1962,
pp. 408-426, e XVI, 1964, pp. 519-529.

15. Lütge (F.), “Das 14/15 Jahrhundert in der Sozial-und Wirtschaftsges-


chichte”, em Jahrbuchf. Nationalòkonomie u. Statistik, 1950.

16. Miskimin (H.A.), The Economy of Early Renaissance Europe, 1300-1460,


Englewood Cliffs (N.J.), Prentice-Hall, 1969 (Spectrum Book), in 16 de 180 p.

17. Mollat (M.), Johansen (P.), Postan (M.), Sapori (A.), Verlinden (Ch.),
“L’Economie Européenne aux Deux Derniers Siècles du Moyen Age”, em
XCongresso di Scienze Storiche, Roma, 1955, Relazioni, VI, Floren-ça, 1955,
pp. 801-957.

17bis. Mollat (M.), Genèse Médiévale de la France Moderne, XIV'-XV' Siècles,


Paris, Arthaud, 1970, in 8í de 398 p., il. (2‘ ed. bolso, não il., 309 pv Arthaud-Le
Seuil, 1977).

18. Perroy (E.), “A 1’Origine d’une Économie Contractée: Les Crises du XIVe
Siècle”, em Annales ESC, 1949.

19. Postan (M.), “The 15th Century”, em Econ. Hist. Rev. IX, 1938-1939.

20. Singer (Ch.), Holmyard (E.J.), Hall (A.R.), William (T.J.), A History of
Technology, II. The Mediterranean Civilisations and the Middle Ages, Oxford,
Clarendon Press, 1957.

21. Sivery (G.), Mirages Méditerranéens ou Réalités Atlantiques (XII'-XV'


Siècles)?, Paris, P.U.F., 1976, in 12 de 288 p.

22. Sombart (Wemer), Der moderne Kapitalismus, Berlim, 1928 (lí ed., 1902).

23. Wolff (Ph.), “L’Âge de 1’Artisanat (Ve-XVIIP siècles)”, em Histoire


Générale du Travail, dir. por L.H. Parias, Paris, Nouvelle Librairie de France,
1960, pp. 163-224 (livro III, Crises de Croissance et d’Adap-tation, XIV '-XV'
siècles).

24. Wolff (Ph.), “L’Étude des Économies et des Sociétés Avant l’Ère Statis-
tique”, em L’Histoire et Ses Méthodes, dir. por Ch. Samaran, Paris, Enciclopédia
da Plêiade, 1961, pp. 849-912.

B. Estudos regionais e locais


25. Abel (W.), Geschichte der deutschen Landwirtschaft vomfrühen Mittel-alter
bis zum 19. Jahrhundert, Stuttgart, Eugen Ulmer, 1962.

26. Beresford (M.W.) e Saint-Joseph (J.K.S.), MedievalEngland, an Aerial


Survey, Cambridge Univ. Press, 1958.

27. Betts (R.R.), Essays in Czech History, Londres, Athlone Press, 1969.

28. Bois (G.), Crise du Féodalisme, Recherches sur /’Économie Rurale et la


Démographie du Début du XIV' au Milieu du XVI' Siècle en Nor-mandie
Orientale, Paris, 1976.

29. Bourin (M.), Villages et Communautés Villageoises en Bas-Languedoc


Occidental (vers 950-vers 1350). L’Exemple Biterrois (tese defendida em 1981,
inédita até hoje, a meu conhecimento).

30. Bouton (A.), Le Maine, Histoire Economique et Sociale, XIV’, XV’ et XVI'
Siècles, Le Mans, 1971, in 8í de 1040 p., 4 mapas, 65 gravuras.

31. Boutruche (R ), La Crise d’une Société: Seigneurs et Paysans du Borde-lais


Pendant la Guerre de Cent Ans, Paris, Belles Lettres, 1947.

32. Braunstein (Ph.) e Delort (R ), Venise, Portrait Historique d’une Cité, Paris,
Le Seuil. 1971.

33. Bridbury (A.R.), Économie Growth in England in the Later Middle Ages,
Londres, Allen and Unwin, 1962.

34. Carrere (C.), Barcelona, Centre Economique, 1380-1462, Paris-Haia,


Mouton, 1967, 2 vols., in 8 de 993 p., quadros.

35. Carrére (C.), Suarez Fernandez (L.), Vicens Vives (J.), “La Economia de los
Paises de la Corona de Aragòn en la Baja Edad Media”, em VI Congresso de
Historia de la Corona de Aragòn, pp. 103-135.

36. Cipolla (C. M.), “L’Economia Milanese, I Movimenti Economici Ge-nerali,


1350-1500”, em Storia Di Milano, Milão, 1957.

37. Darby (H.), org., An Historical Geography of England. Cambridge, 1936.

38. Darby (H.), The Medieval Fenland, Cambridge Univ. Press, 1940.

39. Derruau (M.)., La Grande Limagne Auvergnate et Bourbonnaise, Paris,


1949.
40. Dion (R.), Le Vai de Loire, Tours, 1934.

41. Dollinger (Ph.) La Hanse, XIT-XVUT Siècle, Paris, Aubier, 1964.

42. Dufourcq (C. E.) e Gautier-Dalché (J.), Histoire Economique et Socia-le de


1’Espagne Chrétienne au Moyen Age, Paris, 1976.

43. Elliot-Binns (L.E.), Medieval Cornwall, Londres, Methuen, 1955.

44. Favier (J.), Paris au XVe Siécle, 1380-1500, Paris, 1974 (Nouvelle Histoire
de Paris).

45. Ferran Nünez, Castilla Dividida en Domínios Segun el Libro de las


Behetrias, Madri, 1958.

46. Fiumi (E.), “Fioritura e Decadenza dell’Economia Fiorentina”, em Ar-


chivio Storico Italiano, 1958.

47. Fourquin (G.), Les Campagnes de la Région Parisienne à la Fin du Moyen


Age, du Milieu du XIIIe Siècle au Début du XVF Siècle, Paris, P.U.F., 1962, in 8
de 585 p., mapas.

47bis. Gonon (M.), La Vie Quotidienne en Lyonnais dAprés les Testaments


(XrIV-XVr Siècle), Paris, Belles Lettres, 1970, in 8°. de 579 p.

48. Guiral (J.), Le Trafic Maritime du Port de Valence, 1410-1525 (tese


defendida em 1982 em Paris, inédita até hoje, a meu conhecimento).

49. Heers (J.), Gênes au XVe Siècle, Activité Economique et Problèmes


Sociaux, Paris, S.E.V.P.E.N., 1961, in 8 de 741 p.

50. Hilton (R. H.), “Anglaterre Économique et Sociale (XIVe et XVe Siécle)”,
em Annales ESC, 1958.

51. Hocquet (J.-C.), Le Sei et la Fortune de Venise, vol. I, Production et


Monopole; vol. II, Voiliers et Commerce en Méditerranée (1200-1650), Presses
Universitaires de Lille, 1979.

52. Klein (J.), The Mesta, a Study ofSpanish Economic History, 1273-1836,
Cambridge (Mass.), Harvard Univ. Press, 1920, in 8°. de XVI-444 p.
53. Kuhn (W.), Geschichte der deutschen Ostsiedlung in der Neuzeit, I. 15 bis
17 Jahrhundert, allgemeiner Teil; II. 15 bis 17Jahrhundert, landschaf-tlicher Teil,
Graz, Bõhlau, 1955-1957, in 8 de XV-272 e XI-435 p., mapas.

54. Lane (F. C.), Andréa Barbarigo, Merchant of Venise, 1418-1449.

55. Le Mené (M.), Campagnes Angevines, Etude Economique (vers 1350-vers


1530), 1983.

56. Lopez (R.S.), “Le Marchand Génois, un Profil Collectif”, em Annales ESC,
1958, pp. 501-515.

57. Lopez (R.S.) e Raymond (I.W.), Medieval Trade in the Mediterranean


World, Cambridge (Mass.), 1955 (coletânea de documentos).

58. Ludat (H.), Vorstufen und Entstehung des Stadtwesens in Osteuropa,


Colônia, 1955 (tratados das relações Oeste-Leste).

59. Magalhães Godinho (V.), L'Economie de 1’Empire Portugais aux XV et


XVF Siècles, Paris, S.E.V.P.E.N., 1969, in 8” de 857 p.

60. Malden (H.E.), org., The Cely Papers, Selections From the Correspon-
dance and Memoranda of the Cely Family, Merchants of the Staple, A.D. 1475-
1488, Londres, 1900 (Camden Series, 3‘. série, vol. I).

61. Meus (F.), Aspetti delia Vita Economica Medievale, Siena, Monte dei
Paschi-Olcheski, Florença, 1962 (essencial entre outros para Francesco Datini).

62. Miami (G.), “L’Economie Lombarde aux XIVe et XVe Siècles, une Ex-
ception ou la Règle?”, em Annales ESC, 1964.

63. Mollat (M.), “Les Affaires de Jacques Coeur à Bruges”, em Revue du Nord,
tomo XXXI, out.-dez. 1949, pp. 241-246.

64. Mollat (M.), Les Affaires de Jacques Coeur, Journal du Procureur Dau-vet,
Procès Verbaux de Sequestre et d'Adjudication, Paris, S.E.V.P. E. N.. 1952-1953,
2 vols. in 8 de XXIV-387 p.

65. Mollat (M.), Le Commerce Maritime Normand à la Fin du Moyen Age,


Paris, Plon, 1952, in 8 de XXXV-617 p., gráf. e mapas.
66. Bonvesin Della Riva (Fr.), Le Meraviglie di Milano, tradução italiana de E.
Verga, Milão, 1922 - e De magnalibus urbis Mediolani, org. F. Novati, em
Bollettino delTIstituto Storico Italiano, 20, 1898, pp. 67-114.

67. Palmieri (A.), La Montagna Bolognese nel Medioevo, Bolonha, 1919.

68. Petry (L.), Die Popplau, Eine schlesische Kaufmanns-familie des 15. und
16. Jahrhunderte, Breslau, Marcus, 1935, in 8“ de VIII-175 p.

69. Power (E.) e Postam (M.), Studies in English Trade in the 15th Century,
1933.

70. Ral (V.), “A Family of Italian Merchants in Portugal in the 15th Cen-turv,
the Lomellini”, em Studi in Onore di Armando Sapori, 1957, pp." 715-726.

71. Renouard (Y.), Les Hommes d’Affaires Italiens du Moyen Age, Paris, A.
Colin, 2‘. ed., estabelecida por Bernard Guillemain, in 16 de 336 p.

72. Reyerson (K. L.), Business, Banking and Finance in Medieval Montpe-llier,
Toronto, Pontificai Institute of Mediaeval Studies, 1985, in 8 de 184 p.

73. Roncière (C. M. de la), Florence, Centre Économique Regional au XIV'


Siècle, Le Marché des Denrées de Première Nécessité à Florence et dans sa
Campagne, et les Conditions de Vie des Salariés, 1320-1380 (tese defendida em
Aix em 1976, inédita até hoje, a meu conhecimento).

74. Roover (R. de), Money, Banking and Credit in Medieval Bruges,
Cambridge (Mass.), Harvard Univ. Press, 1948, in 8 de XVII-420 p., il.

75. Sapori (A.), Le Marchand Italien au Moyen Age, Paris, S.E.V.P.E.N., 1952.
in 8" de LXXII-127 p. (sobretudo bibliografia comentada).

76. Schick (L.), Un Grand Homme d’Affaires du Début du XVF Siècle, Jacob
Fugger. Paris, S.E.V.P.E.N., 1957, gr. in 8“ de 323 p.

77. Schneider (J.). La Ville de Metz aux XI1V et XIV Siècles, Nancy, 1950.

78. Schulte (A.), Geschichte des mittelalterlichen Handels u. Verkehrs zwis-


chen Westdeutschland und Italien, mil Aussschuss von Venedig, Leipzig, 1900, 2
vols. (reed., Berlim, Duncker-Humblot, 1966).
79. Seibt (F.), Hussitica, zur Struktur einer Revolution, Graz, Bõhlau, 1965, in
8” de VI-205 p.

80. Simonsfeld (H ), Der Fondaco dei Tedeschi in Venedig..., Stuttgart, 1887, 2


vols., I. Urkunden von 1225 bis 1653; II. Geschichtliches (reed. 1968).

81. Stieda (W.), Hildebrand Veckinchusen, Briefwechsel eines deutschen


Kaufmannes im 15. Jahrhundert, Leipzig, 1921.

82. Stouff (L.), Ravitaillement et Alimentation en Provence aux XIV et XV


Siècles, Paris-Haia, 1970. in 8” de 507 p.

83. Stouff (L.), La Ville d'Aries à Ia Fin du Moyen Age (tese defendida em Aix
em 1979, inédita até hoje, a meu conhecimento).

84. Tenenti (A.), Florence à 1’Époque des Médicis, De Ia Cité àVÉtat, Paris,
1969.

85. Thiriet (F.), Histoire de Venise, Paris, P.U.F., 1969 (Col. Que sais-je?), in 16
de 128 p.

86. Thomson (J.A.F.), The Transformation of Medieval England, 1370-1729,


Londres-Nova Iorque, Longman, 1983, in 8° de 432 p.

87. Thrupp (S.), The Merchant Class of Medieval London, 1300-1500, 1948, in
8”.

88. Touchard (H.), Le Commerce Maritime Breton à la Fin du Moyen Age,


Paris, Belles Lettres, 1967, in 8°. de 455 p.

89. Tucoo-Chala (P.), “Forêts et Landes du Béarn au XIVe Siècle”, em Ann.


Midi, 1965, pp. 247-259.

90. Tuetey (A.), org., Journald’un Bourgeois de Paris, Paris, 1881 (Société de
1’Histoire de France).

91. Van Der Wee (H.), The Growth of the Antwerp Market and the Euro-pean
Economy, La Haye, 1963, 3 vols.

92. Van FIoutte (J.A.), “La Genèse du Grand Marché International d'An-vers à
la Fin du Moyen Age”, em Revue Belge de Philol. et d’Hist., 1940.

93. Van Houtte (J.A.), “Anvers aux XVe et XVT Siècles, Expansion et
Apogée”, em Annales ESC, 16, 1961, pp. 248-278.

94. Van Houtte (J. A.), “Bruges et Anvers, Marchés Nationaux ou Interna-
tionaux au XVIe Siècle”, em Revue du Nord, 34, 1952, pp. 89-108.

95. Van Houtte (J.A.), “The Rise and Decline of the Market of Bruges”, em
Economic Hist. Rev., XIX (1), 1966, pp. 29-47.

96. Vicens Vives (J.), Historia Econômica de Espana, Barcelona, Ed. Teide,
1959 (2* ed.), in 8 de 706 p. (3‘. ed. 1964).

97. Vicens Vives (J.), dir.. Historia Social y Econômica de Espanã y America,
II. Patriciado Urbano, Reyes Católicos, Descubrimientos, Barcelona, Ed. Vicens
Vives, 1979.

98. Villani (G.), Crônica, Ed. Magheri, Florença, 1823.

99. Wolff (Ph.), Commerces et Marchands de Toulouse (vers 1350-vers 1450),


Paris, Plon, 1954, in 8 XXX-710 p., mapas e gráficos.

C. Demografia, fomes, epidemias


100. Abel (W.), “Wachstumschwankungen mitteleuropáischer Võlker seit dem
Mittelalter”, em Jahrbücher f. Nationalõkonomie u. Statistik, vol. 142, 1935, pp.
670-692, gráf.

101. Arnould (M.), Les Dénombrements de Foyers dans le Comté de Hainaut


(XIV-XVT Siècles), Bruxelas, 1956.

102. Arnould (M.), Les Releves de Feux, Turnhout, 1976, in 16 de 98 p.


(tipologia das fontes da Idade Média ocidental, fase. 18, col. dir. por L. Genicot).

103. Baratier (E,), La Démographie Provençale du XIIF au XVF Siècle, com


números de comparação para o século XVIII, Paris, S.E.V.P.E.N., 1961, in 8o de
257 p., mapas, gráf.

104. Beloch (K.J.), Bevòlkerungsgeschichte Italiens, Leipzig-Berlim, 3 vols., I.


Grundlagen, Die Bevòlkerung Siziliens u. des Kònigreiches NeapeL 1937, VIII-
284 p.; II. Die Bevòlkerung des Kirchenstaates, Toskanas u. der Herzogtiimer
am Po. 1939 (2: ed. 1965), VIII-312 p.; III. Die Bevòlkerung der Republik
Venedig, des Herzogturns Mailand, Pie-monts, Genuas, Corsicasu. Sardiniens,
Die Gesamtbevõlkerung Italiens, 1961, XVI-401 p.

105. Beresford (M. W.), The Lost Villages of England, Londres-Nova Iorque,
Lutterworth Press, 1954 (livro pioneiro).

106. Beresford (M.W.), "Isolated and Ruined Churches as Evidence for


Population Contraction”, em Mélanges Perroy, Paris, 1973, pp. 573-580.

107. Berthe (M ), Un Milieu Rural: Le Comté de Bigorre au bas Moyen Age


d’Après les Censiers de 1313 et 1429, Paris, 1975.

108. Berthe (M.). Famins et Epidémies dans les Campagnes Navarraises à la Fin
du Moyen Age, Paris, S.F.I.E.D., 1984, 2 voL., in 8“ e 523-602 pp.. estatísticas
anexas, gráf. e mapas.

109. Bickel (W.), Bevòlkerungsgeschichte u. Bevòlkerung-politik der Sch-weiz


seit dem Ausgang des Mittelalters, Zurique, 1947.

110. Biraben (J.-N.), Les Hommes et la Peste en France et dans les Pays
Européens et Méditerranéens, I. La Peste dans 1’Histoire, II. Les Hommes Face
à la Peste, Paris-La Haye, Mouton, 1976, 2 vols., 455 e 380 p.. mapas e gráf.

111. Bocquet (A.), Recherches sur la Population Rurale de 1’Artois et du


Boulonnais Pendant la Période Bourguignonne (1384-1477), Arras, 1969. in 8“
de 200 p., 4 mapas.

112. Bowsky (W. M.), “The Impact of the Black Death upon Sienese
Government and Society”, em Speculum, XXXIX, 1964, pp. 1-34.

113. Cabrillana (M.) “La Crisis dei Siglo XIV en Castilla, La Pesta Negra en el
Obispado de Palencia”, em Hispania, 109, 1968.
114. Callet (E ), “La Famille et la Population Pisanes d’Après le Catasto de Pise
de 1428-1429”, Mémoire de Maitrise, Paris-Nanterre, 1968.

115. Carpentier (E.) e Glénisson (J.), “Bilans et Méthodes, la Démographie


Française au XIVe Siècle”, em Annales ESC, 1962, n" 1. pp. 109-129.

116. Carpentier (E.), “Autour de la Peste Noire: Faihines et Épidémies dans


1’Histoire du XIVe Siècle”, em Annales ESC, 1962, pp. 1062-1092.

117. Carpentier (E.), Une Ville Devant la Peste: Orvieto et la Peste Noire de
1348, Paris, S.E.V.P.E.N., 1962, in 8° de 286 p., mapas.

118. Carriére (Ch.), Courdurié (M.) e Rebuffat (F.), Marseille Ville Morte, la
Peste de 1720, Marselha, Garçon, 1968, in 8° de 354 p., 18 il.

119. Cazelles (R.), “La Population de Paris Avant la Peste Noire” em c.r.
Académie des Inscriptions et Belles Lettres, 1966, pp. 539-550.

120. Châteaux et Peuplements en Europe Occidentale du Xe au XVIIP Siècle,


Centre Culturel de 1’Abbaye de Flaran, Gers, Flaran I, Auch, 1980.

121. Cipolla (C.M.), Dhondt (J.), Postan (M.) e Wolff (Ph.), “Démogra-phie:
Moyen Age”, em 1X3 Congrès Internat. des Sciences Historiques, Paris, 1950, I,
Rapports, pp. 55-80, II, Actes, pp. 31-44.

122. Contamine (Ph.), “Contribution à 1’Histoire d’un Mythe: les 1.700.000


Clochers du Royaume de France (XVe-XVIe Siècle)”, em Mélanges Perroy,
Paris, 1973, pp. 414-427.

123. Coulet (N.), “A Propos d’un Cadastre Provençal du XIVe Siècle [Pour-
rièresl, Note d’Histoire Démographique”, em Mélanges Perroy, Paris, 1973, pp.
161-170.

124. Curschmann (F.), Hungersnóte im Mittelalter, Ein Beitrag zur deustschen


Wirtshaftsgeschichte des 8. bis 13. Jahrhunderts, Leipzig, Teubner. in 8t de VI-
217 p. (um livro pioneiro).

125. Cuvelier (J.), Les Dénombrements de Foyers en Brabant (XIV'-XVI'


Siècle), Bruxelas, 1912, 2 vols.
126. La Démographie Médiévale, Sources Bet Méthodes, Paris, 1972, 125 p.
(Annales de la Fac. des Lettres et Sciences Humaines de Nice, n! 17, Actes du
Congrès de 1’Association des Flistoriens Médiévistes de 1’Enseignement
Supérieur Public, Nice, 15-16 maio de 1970).

127. Dollinger (Ph.), “Le Chiffre de Population de Paris au XIVe Siècle: 210.000
ou 80.000 habitants?” em Revue Historique, 216, 1956, pp. 35-44 (provocou a
reação do n 119).

128. Dubled (H.), “Conséquences Économiques et Sociales des ‘Mortalités’ du


XIVe Siècle, Essentiellement en Alsace”, em Revue d’Hist. Econom. et Sociale,
1959, pp. 273-294.

129. Dubois (H.), “Peste Noire et Viticulture en Bourgogne et en Chablais”, em


Mélanges Perroy, Paris, 1973, pp. 428-438.

130. Easton, Les Hivers dans TEurope Occidentale, Leyde, 1928.

131. Favier (J.), Les Contribuables Parisiens à la Fin de Ia Guerre de Cent Ans,
Les Rôlesd’ Impôtde 1421, 1423 et 1438, Paris-Genebra, Droz-Mi-nard, 1971, in
8° de 372 p.

132. Fiumi (E.), “La Demografia Fiorentina di Giovanni Villani”, em Archi-vio


Storico Italiano, CVIII, 1950, pp. 78-158.

133. Fiumi (E.), Demografia, Movimento Urbanístico e Classi Sociali in Prato


dalPEtá Communale ai Tempi Moderni, Florença, 1968, in 8“ de 688 p.,
quadros.

134. Flohn (FL), “Klimaschwankungen im Mittelalter”, em Berichte der


deutschen Landeskunde, Bd. 7, Stuttgart, 1949-1950.

135. Fourquin (G.), “La Population de la Région Parisienne aux Environs de


1328", em Le Moyen Age, 1956, pp. 63-91.

136. Genicot (L.), “Les Grandes Villes d’Occident en 1300”, em Mélanges


Perroy, Paris, 1973, pp. 199-219.

137. Glénisson (J.), "La Seconde Peste; rÉpidémie de 1360-1362 en France et en


Europe”, em Annuaire-Bull. de la Soc. de l’Hist. de France, 1968-1969 (1971),
pp. 27-38.

138. Gottfríed (R.S.), Epidemic Disease in 15th Century England, Leicester


Univ. Press, 1978, in 8 de XIV-262 p.

139. Guilbert (S.), “A Châlons-sur-Marne au XVe Siècle: un Conseil Municipal


Face aux Épidémies”, em Annales ESC, 23, 1968, pp. 1283-1300.

140. Harvey (B.F.), “The Population Trend in England Between 1300 and 1348”,
em Transactions of the Royal Historical Society, 1966, vol. 16, pp. 23-42.

141. Helleiner (K.), “Population Movement and Agrarian Depression in the


Later Middle Ages”, em Canadian Journal of Economics and Poli-tical Science,
XV. 1949, pp. 373-377.

142. Herlihy (D.), “Population, Plague and Social Change in Rural Pistoia, 1201-
1430”, em Econ. Hist. Rev., 2‘. série, XVIII, 1965, pp. 205-244.

143. Herlihy (D.) “Vieillir à Florence au Quattrocento”, em Annales ESC, 24,


1969, pp. 1338-1352.

144. Herlihy (D.) e Klapisch (C.), Les Toscans et Leurs Familles, une Etude du
Catasto Florentin de 1427, Paris, Presses de la Fondation Nationale des Sciences
Politiques, 1978, in 8 de 703 p. (fez uso considerável do computador).

145. Higounet-Nadal (A.), Les Comptes de la Taille et des Sources de l'His-toire


Démographique de Périgueux au XIVe Siècle, Paris, 1965, in 8 de 236 p. (com
os recursos disponíveis, uma obra-prima).

146. Keyser (E.), Bevòlkerungsgeschichte Deutschlands, Leipzig, 3; ed. 1943,


XII-594 p. (aborda largamente a Suíça, a Alsácia, muito nacionalista e racista —
mas o autor perdeu seus dois filhos na guerra).

147. Krause (J.), “The Medieval Household, Large or Small?”, em Econ. Hist.
Rev. 2‘. série, IX, 1957, pp. 420-432.

148. Larenaudie (M.J.), “Les Famines en Languedoc aux XIVe et XVe Siè-cles”,
em Ann. Midi, 1952.

149. Le Bras (H.), “Retour d’une Population à 1’État Stable Après.une


‘Catastrophe’ ”, em Population, 24, 1969, pp. 861-896 (modelo matemático
teórico, precioso apoio para os historiadores).

150. Le Roy Ladurie (E.), “Histoire et Climat”, em Annales ESC, 1959, pp. 3-
34.

151. Le Roy Ladurie (E.), “Climat et Récoltes aux XVIFet XVIIP Siècles”, em
Annales ESC, 1960, pp. 434-465 (contém também dados úteis para o século
XV).

152. Le Roy Ladurie (E.), “Aspects Historiques de la Nouvelle Climato-logie”,


em Revue Historique, CCXXV, 1961, pp. 1-20.

153. Le Roy Ladurie (E.), “Le Climat des XIe et XVIe Siècles”, em Annales
ESC, 1965, pp. 899-922.

154. Le Roy Ladurie (E.), Histoire du Climat Depuis TAn Mil, Paris, 1967, 379
p.

155. Lot (F.), “L’État des Paroisses et des Feux de 1328”. em Bibl. de TÉcole
des Charles, 90, 1929, pp. 51-107 e 256-315.

156. Lucas (H.S.), “The Great European Famine of 1315. 1316 and 1317”, em
Speculum, 1930.

157. Mols (R.), Introduction à la Démographie Historique des Villes d'Eu-rope


du X'IV au XVIII’ Siècle, Louvain, Nauwelaerts, 1954-1956. 3 vols., in 8‘.' de
X-336, X-558 p. (I. Les Problèmes\ II. Les Résultats; III. Annexes) (capital).

158. Ottolenc.hi (D.), “Studi Demografici Sulla Popolazione di Siena dal Secolo
XIV al XIX", em Bollettino Senese di Storia Patria, vol. 10/3. 1903, pp. 297-
358.

159. Pedelaborde (P.). Le Climat du Bassin Parisien, Essai d’Une Méthode


Ratiormelle de Climatologie Physique, Paris, 1957, 2 vols.

160. Perroy (E.) “Wage Labour in France in the Later Middle Ages", em Econ.
Hist. Rev., 1955. pp. 232-239.

161. Postan (M.) e Titow (J.), “Heriots and Prices on Winchester Manors", em
Econ Hist. Rev., 2’ série, 1959, pp. 392-417.

162. Prat (G.), “Albi et la Peste Noire”, em Ann. Midi, 1952, pp. 15-25.

163. Riu (M.), “Una Posible Fuente Para la Estadística Demográfica Medieval:
los ‘Cartells’ de Cofradias de Laicos", em Homenaje à Vicens Vives, I, 19, pp.
591-605.

164. Roller (C.), “Die Lebensdauer der Geschlechter des ausgehenden


Mittelalters in Deutschland", em Klinik f. psychologische u. nervõse
Krankheiten, 7, 1912.

165. Russell (J.C.), British Medieval Population, Albuquerque (U.S.A.), 1948, in


8 de XVI-389 p., mapa, graf.

166. Russell (J.C.), Late Ancient and Medieval Population, Filadélfia. 1958, 152
p. (Transactions of the American Philosophical Society. nova série, vol. 48).

167. Russell (J.C.), “Medieval Cemetery Patterns: Plague and Non-Pla-gue”, em


Mélanges Perroy, Paris, 1973, pp. 525-530.

168. Russell (J.C.), “The Medieval Monedatge of Aragon and Valencia", em


Proceedings of the American Philosophical Societv. 106, 1962, pp. 483-504.

169. Russell (J.C.), “Recent Advances in Mediaeval Demography", em


Speculum, 1965, pp. 84-101.

170. Sée (H.), “Peut-on Évaluer la Population de FAncienne France?", em Revue


d’Économie Politique, 38, 1924, pp. 647-655.

171. Shrewsbury (J.F.D.), A History of the Bubonic Plague in the British Isles,
Cambridge, 1970, XI-661 p.

172. Sivery (G.), “Le Hainaut et la Peste Noire”, em Publ. et Mém. de la Soc.
des Sciences, Arts et Lettres du Hainaut, 1979.

173. Smith (R.H.), “Barcelona Bilis of Mortality and Population, 14571590”, em


Journal of Political Economy, 44, 1936, pp. 84-93.

174. Somogyi (S.), “Sulla Mascolinità Delle Nascite a Firenze dal 1451 al
1774”, em Rivista Italiana di Economia, Demografia e Statistica, 4,1950, pp.
460-470.

175. Titow (J.Z.), "Evidence of Weather in the Account Rolls of the Bisho-pric
of Winchester”, em Econ. Hist. Rev., 1960.

176. Titow (J.Z.), English Rural Society, 1200-1350, Londres, 1969.

177. Titow (J.Z.), “Le Climat à Travers les Rôles de Comptabilité de l’Évê-ché
de Winchester (1350-1450)”, em Annales ESC, 1970. pp. 312-350.

178. Utterstrom (G.), “Climatic Fluctuations and Population Problems in Early


Modern History”, em The Scandinavian Econ. Hist. Rev., III, 1955, n“ 1.

179. Van Elsuwé (M.), “La Révision des Feux en Gascogne Orientale à la Fin du
XIV' Siècle (Tese de mestrado, Bordeaux, 1968 —cf. Annales de Démugraphie
Historique, 1970. pp. 418-419).

180. Van Werveke (H.), “La Famine de l’An 1316 en Flandre et Dans les
Régions Voisines”, em Revue du Nord, XLI, 1959, pp. 5-14.

181. Van Werveke (H.), De Zwarte Dood in de Zuidelijke Nederlanden (1349-


1351), Bruxelas, 1950.

182. Villages Désertés et Histoire Économique, XT-XVIIT Siècles, Paris, S.E.


V.P.E.N., 1965, in 8 de 619 p., il„ pl.

183. WoLFF(Ph.), Les Estimes Toulousaines des X1V‘ et XVe Siècles, Toulou-
se. Assoe. Marc Bloch, 1956, in 8° de 355 p., mapas, gráficos.

184. Zaddach (B.I.), Die Folgen des Schwarzen Todes (1347-1351) für den
Klerus Mitteleuropas.

185. Ziegler(P), The Black Death, Nova Iorque, 1969. HarperTorchbooks, 319 p.

D. As guerras, nascimento dos Estados


186. Bossuat (A.), Le Bailliage Royal de Montferrand (1425-1556), Paris, 1957.

187. Bossuat (A.), “Le Servage en Nivernais au XVe Siècle, d’Après les
Registres du Parlement”, em Bibl. de 1’École des Chartes, 1959.

188. Boutruche (R), “La Dévastation des Campagnes Pendant la Guerre de Cent
Ans et la Reconstruction Agricole de la France”, em Public, de la Fac. des
Lettres de Strasbourg, Mélanges, 1945, III, Paris, 1947.

189. Choffel (J.), La Guerre de Succession de Bretagne. Paris, F. Lanore, 1976,


184 p.

190. Contamine (Ph.), La Guerre au Moyen Age, Paris, P.U.F., 1980, in 16 de


516 p. (Col. Nouvelle Çlio, n'.’ 24).

191. Contamine (Ph.), Guerre, État et Societé à la Ein du Moyen Age. Etude sur
les Armées du Roi de France, 1337-1494. Paris-Haia, Mouton, 1972.

192. Gandilhon (R.), La Politique Économique de Louis XI, Paris, 1941.

193. Guf.née (B.), Tribunaux et Gens de Justice Dans le Bailliage de Senlis à la


Fin du Moyen Age (vers 13800-vers 1550), Paris, Belles Lettres, 1963, in 8 de
XIV-587 p., mapas.

193bis. GuENÉt (B.), L’Occident aux XIV et XV’ Siècles: les États, Paris. P.U.F.
(Col. Clio, n 22), 2t ed., 1980.

194. Perroy (E.), La Guerre de Cent Ans, Paris, 1945.

195. Thielemans (M.R.), Bourgogne et Angleterre, les Relations Politiques et


Économiques entre les Pays-Bas Bourguignons et TAngleterre, 1435-1467,
Bruxelas, Minard, 1967, in 8° de 680 p.

E. Aspectos agrícolas
196. Abel (W.), Agrarkrisen und Agrarkonjunktur, Eine Geschichte der Land- u.
Ernáhrungswirtschaft Mitteleuropas seit dem hohen Mittelalter, Hamburgo-
Berlim, 2‘. ed., 1966.

197. Abel (W.), Die Wüstungen de ausgehenden Mittelalters, ein Beitrag zur
Siedlungs- u. Agrargeschichte Deutschlands, Iena, 1943.

198. Abel (W.), “ Wüstugen und Preisfall im spátmittelalterlichen Europa”, em


Jahrbuch f. Nationalõkonomie u. Statistik, 1953.

199. Baker (A.R.H.), “Evidence in the ‘Nonarum Inquisitiones’ of Contrac-ting


Arable Lands in England During the Early Fourteenth Century”, em Econ. Hist.
Rev., 2‘. série, XIX, 1966, pp. 518-532.

200. Barger (E.), “The Presente State of Studies in English Field Systems”, em
Engl. Hist. Rev., 1938.

201. Bean (J.M.W.), The Estates of the Percy Family, 1416-1537, Oxford, 1958.

202. Bennett (H.S.), Life on the English Manor, A Study of Peasant Condi-tions,
1150-1400, Cambridge, 1937.

203. Bézard (Y.), La Vie Rurale dans le Sud de la Région Parisienne de 1450 à
1560, Paris, 1929.

204. Bloch (M.), Les Caractères Originaux de THistoire Rurale Française. lí ed.,
Oslo, Institut pour 1’Étude Comparative de Civilisations; Paris, A. Colin, 2‘. ed.,
1952, in 8 de 265 p., pl.; t. II, suplemento estabelecido por R. Dauvergne,
segundo os trabalhos do autor, 1956, XLIV-230 p. (este é evidentemente o
principal livro que há cinquenta anos domina toda a história rural).

205. Boulay (F.R.H. du), “A Rentier Economy in the Later Middle Ages: The
Archbishopric of Canterbury”, em Econ. Hist. Rev., XVI, 1964, pp. 427-438.

206. Brunet (P.), Structure Agraire et Économie Rurale des Plateaux Tertiai-res
entre la Seine et l’Oise, Caen, 1960.

207. Champier (L.), “La Recherche Française en Matière d’Histoire et de


Géographie Agraire Depuis un Quart de Siècle, Résultats et Problè-mes”, em
Etudes Rhodaniennes, 1956.
208. Les Communautés Villageoises en Europe Occidentale du Moyen Age aux
Temps Modernes, Centro Cultural da Abadia de Flaran, Gers, Fla-ran 4, 1982,
Auch, 1984.

209. Debien (G.), En Haut Poitou, Défricheurs au Travail, XV’-XV11T Siècles,


Paris, 1952.

210. Devéze (M.), La Vie de Ia Forêt Française au XVF Siècle, Paris, 1961, 2
vols.

211. Dion (R.), Histoire de Ia Vigne et du Vin en France, des Origines au XIX''
Siècle, Paris, 1959.

212. Duby (G.), “Techniques et Rendements Agricoles dans les Alpes du Sud en
1338”, em Ann. Midi, 1938.

213. Duby (G.), L'Economie Rurale et la Vie des Campagnes dans 1’Occi-dental
Médiéval, Paris, Aubier, 1962, 2 vols. (chega até o início do século XV).

214. L'Economie Cistercienne. Géographie. Mutations, du Moyen Age aux


Temps Modernes. Centro Cultural da Abadia de Flaran, Gers, Flaran 3, 1981,
Auch, 1983.

215. Farmer (D.L.), “Grain Yields on the Winchester Manors in the Later Middle
Ages”, em Econ. Hist. Rev., 1977, pp. 555-566.

216. Goy (J.) e Le Roy Ladurie (E.), Les Fluctuations du Produit de la Dime,
Conjoncture Décimale et Domaniale, de la Fin du Moyen Age au XVIIF Siècle,
Paris-Haia, Mouton, 1972, 397 p.

217. Guérin (I.), La Vie Rurale en Sologne aux XIV1 et XV' Siècles, Paris,
S.E.V.P.E.N., 1960, gr. in 8 de 339 p.

218. Hilton (R.H.), The Economie Development of Some Leicestershire Es-tates


in the XIVth and XVth Centuries, Londres, Cumberledge, 1947.

219. Hilton (R.H.), “A Study in the Pre-History of the English Enclosure in the
XVth Century”, em Studi in Onore di Armando Sapori, Milão, 1957.

220. Imberciadori (I.), Mezzadria Classica Toscana, Con Documentazione


Inédita, Dal IX al XIV Secolo, Florença, Vallechi, 1951.

221. Imbert (J.), dir., Histoire des Hôpitaux en France, Toulouse, Privat, 1982, in
4 de 559 p., il. (M. Mollat utiliza largamente as contas de hospitais no século
XIV).

222. Jones (P.J.). “Per la Storia Agraria Italiana nel Medio Evo, Lineamenti e
Problemi”, em Rivista Storica Italiana, 1964.

223. Jones (P.J ), “The Agrarian Development of Medieval Italy”, em 2e


Conférence Internationale d’Histoire Économique, Aix-en-Provence, 1962,
Paris, 1965, pp. 69-86.

224. Juillard (E.), Meynier (A.), Planhol (X. de), Sauter (G.), “Structures
Agraires et Paysages Ruraux, un Quart de Siècle de Recherches Fran-çaises”, em
Annales de l'Est, mem. n 17, Nancy, 1959.

225. Os mesmos, “Géographie et Histoire Agraires”, ibid., mem. n 21, 1959.

226. Lawson-Tancred (T.), Records of a Yorkshire Manor [Aldborough],


Londres, 1937.

227. Le Roy Ladurie (E.), Les Paysans de Languedoc, Paris, S.E.V.P.E.N., 2


vols., 1966.

228. Lewiss (E. A.), “The Court Rolls of the Manor of Broniarth (14291464)”,
em Bull. of Celtic Studies, XI.

229. Lütge (F.), Geschichte der deutschen Agrarverfassung vom frühen


Mittelalter bis zum 19. Jahrhundert, Stuttgart, Engen Ulmer, 1963.

230. Passmore (J.B.), The English Plough, Oxford Univ. Press, 1930.

231. Plaisse (A ), La Baronnie de Neufbourg, Essai d'Histoire Agraire, Eco-


nomique et Sociale, Paris, 1961.

232. Raftis (J.A.), The Economy ofthe Estates ofRamsey Abbey, 1240-1440,
Toronto, Pontificai Institute of Medieval Studies, 1957.

233. Roupnel (G.), Histoire de la Campagne Erançaise, 1932.


234. Sclafert (T.), Cultures en Haute-Provence, Déboisement et Páturages au
Moyen Age, Paris, S.E.V.P.E.N., 1959, gr. in 8 de 271 p.

235. Sereni (E.), Storia dei Paesaggio Agrário Italiano, Bari, 1961 (tradução
francesa em 1964).

236. Sicard (G.), Le Métayage dans le Midi Toulousain à la Fin du Moyen Age,
Toulouse, 1957.

237. Sicard (G.), “Les Techniques Rurales en Pays Toulousain aux XIVe et XVe
Siècles d’Après les Contrats de Métayage”, em Ann. Midi. 1959, pp. 82-86.

238. Sivery (G.), Structures Agraires et Vie Rurale dans le Hainaut à la Fin du
Moyen Age, Presses Universitaires de Lille, 2 vols., 1977-1980, in 8í de 731 p.,
il., mapas e gráf.

239. Slicher van Bath (B.H.), “Zwanzig Jahre Agrargeschichte im Benelux


Raum, 1939-1959”, em Zeitschrift f. Agrargeschichte u. Agrarsoziolo-gie, 1960.

240. Slicher van Bath (B. H.), The Agrarian History of Western Europe, A.D.
500-1850, Londres, Edward Arnold, 1963 (ed. holandesa de 1960).

241. Timm (A.), Die Waldnützung in Nordwestdeutschland im Spiegel der


Weistümer, Einleitende Untersuchungen über die Umgestaltung des Stadt-Land
Verhiiltnisses im Spátmittelalter, Colônia. Bõhlau, 1960, 133 p., mapa.

242. Titow (J.Z.), Winchester Yields: A Study in Medieval Agricultura! Pro-


ductivity, Cambridge, 1972.

243. Tits-Dieuaide (M.-J.), La Formation des Prix Céréaliers au Brabant et en


Flandre au XVe Siècle, Bruxelas, 1975.

F. As indústrias
244. Braunstein (Ph.), “LTnnovation dans les Mines et la Métallurgie Euro-
péenes (XIVe-XVIe Siècles)”, em Assoe. Fr. des Historiem Economis-tes, boi. n
° 15, 1982, pp. 1-17.

245. Carus-Wilson (E.), “Evidencesof Industrial Growth onSome 15th Cen-tury


Manors”, em Econ. Hist. Rev., 1959.

246. Coornaert (E.), “Draperies Rurales, Draperies Urbaines”, em Rev. Belge de


Philol. et Hist., 1950, pp. 59-96.

247. Coulei (N ), Aix-en-Provence, Espace et Relations d’une Capitule (mi-lieu


XíV-milieu XV Siècle) (tese defendida em Aix em 1979, inédita até hoje, a meu
conhecimento).

248. Fagniez (G.). Documents Sur THistoire de TIndustrie et du Commerce en


Frunce, 2 vols.. Paris, 1898 e 1900, e LXXIX-345 p.

249. Fagnihz (G.), Etudes Sur 1’Industrie et la Classe Industrielle à Paris aux Xir
et XIV Stecles. Paris, 1977.

250. Febvrh (L.) e Martin (H.-J.), L'Apparition du Livre, Paris, A. Michel, 1958,
in 8° de 538 p.

251. Geremek (B.), Le Salarial dans 1’Artisanat Parisien aux XIIP-XVe Siè-cles,
Etude Sur le Marche de la Main-d’ceuvre au Moyen Age, Paris-Haia, Mouton,
1969, in 8 de 150 p.

252. Hommes et Métiers dan l'Art du XIP Siècle au XVIP Siècle en Europe
Centrale, Paris, Gründ, 1968, in 8° de 298 p., 187 pl. h. t., 171 il.

253. Nef (J.U.), “Silver Production in Central Europe (1450-1518)”, em The


Journal of Political Economy, 1941.

254. Sprandel (R.), Das Eisengewerbe im Mittelalter, Stuttgart, Hiersemann.


1968, in 8 de XII-465 p., mapas e quadros.

255. White Jr. (L.) Technologic Médiévale et Transformations Sociales, Pa-ris-


Haia, 1969, in 8 de 190 p.
G. Comércio, crédito, moeda
256. L’Approvisionnement des Villes de I’Europe Occidentale au Moyen Age et
aux Temps Modernes, Centro Cultural da Abadia de Flaran, Gers, Flaran 5,
1983, in 8 de 274 p., Auch, 1985.

257. Bastian (F.), Das Runtingerbuch 1383-1407 und verwandtes Material zum
Regensburger-Siidostdeutschen Handel u. Miinzwesen, Regens-burg, 3 vols.,
1944.

258. Bloch (M.), “Le Problème de Por au Moyen Age”, em Annales d'Hist.
Écon. et Sociale, V. 1933.

259. Bridbury (A.D.), England and the Scilt Trade in the Later Middle Ages.
Oxford. 1955.

260. Brooke (G.C.), English Coins, Londres, 3! ed., 1950.

261. Carson (R.A.G.), dir., Mints, Dies and Currency, Essays Dedicated to the
Memory of Albert Baldwin, Londres, Methuen, 1971, gr. in 81 de XV-336 p.

262. Carus Wilson (E.), Medieval Merchant Venturers, 1954.

263. Chroust (A.) e Proeslier (H.), Das Handlungsbuch der Holzschuher in


Nürnberg von 1304-1307, Erlangen, 1934, in 8 de LXXXIII-162 p., quadros.

264. Coornaert (E.), “Les Bourses d’Anvers aux XVC et XVF Siècles”, em
Revue Historique, CCXVII, 1957, pp. 20-28.

265. Craeybeckx (J.), Un Grand Commerce d'Importation: Les Vins de Fran-ce


aux Ancients Pays-Bas (XIIT-XVP Siècles), Paris, S.E.V.P.E.N., 1958, in 81 de
XXXII-315 p.

266. Dannenberg (H.), Die deutschen Münzen der sàchsischen und fránkis-chen
Kaiserzeit, bd. 1-4 mit Nachtrágen, Berlim, 1876-1905 — reed. 1967.

267. Delort (R.), Le Commerce des Fourrures en Occidentà la Fin du Moyen


Age, Paris, 1978, 2 vols.

268. Delumeau (J.), L’AIun de Rome, XV‘-X1X‘ Siècles, Paris, S.E.V.P. E.N.,
1963, ín 8'i.

269. Doehaerd (R.), “Chiffres d’Assurance à Gênes en 1427-1428”, em Rev.


Belge de Philol. et Hist., 1949, pp. 736-756.

270. Dubois (H.), Les Foires de Châlon et le Commerce dans la Vallée de la


Saône à la Fin du Moyen Age (vers 1280-vers 1430), Paris, Publ. da Sorbonne,
1976, in 8° de XLII-632 p.

271. Edler (F.), Glossary of Mediaeval Terms of Business, Italian Series: 1200-
1600, Cambridge (Mass.), The Mediaeval Academy of America, 1934, in 8 de
XX-430 p.

272. Edler (F.), “Francesco Sassetti and the Downfall of the Mediei Bank
House”, em Bull. ofthe Business Historical Society, 17,1943, pp. 65-80.

273. Edler (F.), “Early Examples of Marine Insurance”, em Journal of Econ.


Hist., 1945, pp. 172-200.

274. Engel (A.) e Serrure (R.), Traité de Numismatique du Moyen Age, Paris,
1891-1905, 3 vols.

275. Favier (J.), Les Finances Pontificales à TEpoque du Grand Schisme


d’Occident (1378-1409), Paris, E. de Boccard, 1967, in 8 de 853 p., il.

276. Feavearyear (Sir A.), The Pound Sterling: a History of English Money,
Oxford, 2" ed., 1963.

277. Fourastié (J.), La Comptahilité, Paris, P.U.F., 1943, in 16 de 128 p. (Col.


Que sais-je?).

278. Graus (F.), “La Crise Monétaire du XIVe Siècle”, em Rev. Belge de Philol.
et Hist., XXIX, 1951, pp. 445-454.

279. Grierson (Ph.), Bibliographie Numismatique, Bruxelas, 1966.

280. Heers (J.), “Le Prix de 1’Assurance Maritime à la Fin du Moyen Age”, em
Rev. d'Hist. Écon. et Sociale, XXXVII, 1959, pp. 7-19.

281. Heyd (W.), Histoire du Commerce du Levant au Moyen Age, 2 vols., 1886.
282. Hobson (B.), Les Monnaies d’Or, de Crésus à Élisabeth II, Paris, Bordas,
1971, 192 p., il. de 484 moedas.

283. Ives (H.E.), The Venetian Gold Ducat and its Imitations, org. e anot. de
Philip Grierson, Nova Iorque, 1954.

284. Jesse (W.), Quellenbuch zur Münz- u. Geldgeschichte des Mittelalters,


Halle, 1924.

285. Jesse (W.), Der wendische Münzverein, Lübeck, 1928, VIII-290 p.

286. Joseph (P.), Goldmünzen des 14. und 15. Jahrhunderts, Frankfurt, 1882.

287. Lafaurie (J.), Les Monnaies des Rois de France, 1. Hugues Capet à Louis
XII, Paris-Mâcon, Bourgey, 1951, in 4° de XXIV-148 p., fig.

288. Laurent (FL), Un Grand Commerce d’Exportation au Moyen Age, la


Draperie des Pays-Bas en France et dans les Pays Méditerranéens, XIV-XVe
Siècles, Paris, Droz, 1935, in 8 de XXX-358 p.

289. Le Goff (J.) e Jeannin (P.), “Questionnaire pour une Enquête Sur le Sei dans
l’Histoire”, em Revue du Nord, 1956, pp. 225-236.

290. Lòhr (A.), Osterreischiche Geldgeschichte, Viena, 1946.

291. Manger et Boire au Moyen Age, 2 vols., Nice, 1984.

292. Mayhew (N.J.), “Numismatic Evidence and Falling Prices in the 14th
Century”, em Econ. Hist. Rev., 2". série, XXVII, 1974, pp. 1-15.

293. Melis (F.), Storia delia Ragionaria, Contributo alia Conoscenza e Inter-
pretazione delle Fonti Piú Significative delia Storia Economica, Bolonha, 1950.

294. Miskimin (H.A.), “Monetary Movements and Market Structure, Forces for
Contraction in 14th and 15th Century England”, em Journal of Econ. Hist.,
XXIV, 1964, pp. 470-490.

295. Mollai (M.), “Géographie du Sei”, em Géographie Générale, Encyclo-pédie


de la Pléiade, Paris, 1966, pp. 1438-1450.
296. Mollat (M.), “Le Rôle du Sei dans PHistoire”, em Publ. de la Fac. des
Lettres de Paris, Série Recherches, 1968, pp. 11-19.

297. Mollat (M.), “Sei et Sociétés: Discriminations et Contradictions”, em Studi


Romagnoli, XXII, Faenza, 1971, pp. 57-69.

298. Nacl (A.), “Die Goldwãhrung und die handelsmãssige Geldrechnung im


Mittelalter”, em Numismatische Zeitschrift, XXVI, 1894, pp. 41-258.

299. Pegolotti (F.B. di), La Pratica delia Mercatura, org. por Allan Evans,
Cambridge (Mass.), 1936.

300. Peragallo (E.), Origin and Evolution of Double Entry Bookkeeping. A


Study of Italian Practice Since the 14th Century, Nova Iorque, 1938.

301. Power (E.), Medieval English Wool Trade, Londres, 1941.

302. Recueils de la Société Jean Bodin, tomo V, La foire, Bruxelas, 1953.

303. Renouard (Y.), “Le Grand Commerce du Vin au Moyen Age”, em Rev.
Hist. de Bordeaux, 1952, pp. 5-18.

304. Renouard (Y.), “Le Plus Grand Commerce de Gascogne au Moyen Age”,
em Revue Historique, 221, 1959, pp. 261-304.

305. Renouard (Y.), Les Relations des Papes d'Avignon et des Compagnies
Commerciales et Bancaires de 1316 à 1378, Paris, De Boccard, 1941, in 8 de
XXVII-694 p.

306. Renouard (Y.), Recherches Sur les Compagnies Commerciales et Bancaires


Utilisées par les Papes d'Avignon Avant le Grand Schisme, Paris, De Boccard,
1942.

307. Robinson (W.C.), “Money, Population and Economic Change in the Late
Medieval Europe”, em Econ. Hist. Rev., 2a. série, 1959-1960, pp. 63-76.

308. Roover (R. de), “The Development of Accounting Prior to Luca Pacio-li...”,
em Studies in the History of Accounting, 1957, pp. 114-174.

309. Roover (R. de), L'Évolution de la Lettre de Change (XIVe-XVlIIe Siècle),


Paris, S.E.V.P.E.N., 1953, in 8°, 240 p.

310. Roover (R. de), “Aux Origines d’une Technique Intellectuelle: La


Formation et 1’Expansion de la Comptabilité à Partie Double”, em Annales
d'Hist. Écon., 1937. pp. 171-193 e 270-298.

311. Roover (R. de), The Mediei Bank, Its Organization, Management, Ope-
rations and Decline, Nova Iorque-Londres, 1948, in 8“ de XV-98 p., il.

312. Roover (R. de), The Rise and Decline of the Mediei Bank, 1397-1464,
Cambridge (Mass.), Harvard Univ. Press, 1963.

313. Roover (R. de). “New Interpretations of the History of Banking”, em


Cahiers d'Histoire Mondiale. II, n.’ 1, 1954, pp. 38-76.

314. Sambon (G.), Repertório Generale delle Monete Coniate in Italia, vol. I,
Paris, 1912.

315. Schulte (A.), Geschichte der Grossen Ravensburger Handelsgesell-schaft,


1380-1530, Stuttgart-Berlim, 3 vols., 1923.

316. Sedgwick (W. B ), “The Gold Supply in Ancient and Medieval Times and
Its Influence on History”, em Greece and Rome, tomo V, 1936.

317. Simonetti (L.), Manuale di Numismatica Italiana Medievale e Moderna,


vol. I, Cronologia, 1965.

318. Spufford (P.), Monetary Problems and Policies in the Burgundian Ne-
therlands, 1433-1496, Leyde, Brill, 1970, X-229 p.

319. Usher (P.), The Early History of Deposit Banking in Mediterranean Europe,
Cambridge (Mass.), Harvard Univ. Press, 1943.

320. Uzzano (G. da), El Libro di Mercatantie e Usanze de’ Paesi, org. por Franco
Borlandi, Turim, 1936, in 8'.’ de LI-215 p.. il.

321. Van Gelder (E.) e Hoc (M.), Les Monnaies des Pays-Bas Bourgaignons et
Espagnols, 1434-1713, Amsterdam. 1960.

322. Van Houtte (J.A.), “Les Courtiers au Moyen Age”, em Revue Hist. de
Droit, 1936, pp. 105-141.

323. Zimmermann (M.), “Les Foyers de Production de l'Or dans 1'Antiquité et


au Moyen Age”, em Bull. Soc. de Géogr. de Lyon..., XX, 1905, pp. 155-175 e
232-242.

H. Os meios de transporte
324. Bernard (J.), Navires et Gens de Mer à Bordeaux (vers 1400-vers 1550),
Paris, S.E.V.P.E.N., 1968, 3 vols., in 8, 450, 934 e 510 p.

325. L’Homme et la Route en Europe Occidentale, au Moyen Age et aux Temps


Modernes, Centro Cultural da Abadia de Flaran. Gers. Flaran 2, 1980, Auch,
1982.

326. Lane (F.C.), “Fleets and Fairs: The Functions of the Venetian Muda”, em
Studi in Onore di Armando Sapori, 1957.

327. Lane (F.C.), Venetian Ships and Shipbuilders of the Renaissance, Balti-
more, 1934.

328. Lopez (R.S.), “The Evolution of Land Transport in the Middle Ages”, em
Past and Present, 1956, pp. 17-29.

328bis. Mallett (M E ), The Florentine Galleys in the I5th Century, Oxford,


1967.

329. Mollat (M ), dir. por, Travaux des Colloques Internationaux d’Histoire


Maritime, Paris, 12 vols.. publicados desde 1957.

330. Renouard (Y.), “Information et Transmission des Nouvelles”, L’His-toire et


ses Méthodes, dir. por Ch. Samaran, 1961, pp. 95-142.

331. Tenenti (A.) e Vivanti (C.), “Le Bilan d'un Grand Système de Naviga-tion,
les Galères Vénitiennes, XIV^-XVF Siècle”, em Annales ESC, 1961, pp. 83-86.
332. Tyler (J.T.), The Alpine Passes in the Middle Ages, Oxford, 1930.

I. Aspectos morais e intelectuais

333. Bec (C.), Les Marchands Ecrivains, Affaires et Humanisme à Florence,


1375-1434, Paris-Haia, Mouton, 1967, in 8 de 489 p.

333bis. Benelli Brunetti, art. “Leon Battista Alberti”, em Enciclopédia Italiana,


II, 1929.

334. Bensa (E.), Francesco di Marco da Prato, Notizie e Documenti, Milão,


Trèves, 1928, in 8 de XXIII-487 p.

335. Bordeaux (M.), Aspects Economiques de la Vie de VEglise aux XIVe et


XVe Siècles, Paris, Libr. Générale de Droit, 1969, in 8 de 404 p.

336. Burke (P.), dir. por, The Renaissance Sense of the Past, Londres, E. Arnold,
1970, in 8 de 160 p.

337. Delaruelle (E.), L’Eglise au Temps du Grand Schisme et de la Crise


Conciliaire, 1378-1449, tomo II, Tournai, Bloud et Gay, 1964, in 8, pp. 459-
1231.

337bis. Delumeau (J.), La Peur en Occident, XIVe-XVIIIe Siècles, une Cité


Assiégée, Paris, 1978; Le Péché et la Peur, La Culpabilisation en Occident
(XIIF-XVIir Siècles), Paris, 1983.

338. Fanfani (A.), Le Origini dello Spirito Capitalistico in Italia, Milão, 1933.

339. Garin (E.), L’Éducation de l’Homme Moderne, 1400-1600, Paris, Fayard,


1969, 288 p.

340. Garin (E.), Moyen Age et Renaissance, Paris, Gallimard, 1969.

341. Guasti (C.), Lettere d’un Notare [Ser Lapo Mazzei] a un Mercantante dei
Secolo XIV, Florença, 1880, 2 vols.

342. Heer (F.), UUnivers du Moyen Age, 1100-1550, Paris, Fayard, 1970, in 8
de 488 p., il.
343. Le Bras (G.), “La Doctrine Ecclésiastique de 1'Usure à 1’Epoque Classi-
que, XIIe-XVe Siècle”, art. Usure do Dictionnaire de Théologie Catho-lique, de
Vacant e Mangenot, Col. 2336-2372.

344. Luzzatto (G.), “SulPAttendibilità di Alcune Statistiche Economiche


Medievali”, em Studi du Storia Economica Veneziale, Florença, 2 ed., 1946, pp.
127-135.

345. Mâle (E.), L’Art Religieux à la Fin du Moyen Age en France, Paris, A.
Colin, 3 ed., 1925.

346. Manteuefel (T.), Naissance d’une Hérésie, Les Adeptes de la Pauvre-té


Volontaire au Moyen Age, Paris-Haia, Mouton, 1970, in 8 de 113 p.

347. Roover (R. de), La Pensée Economique des Scolastiques, Doctrines et


Méthodes, Paris, Vrin, 1971, 108 p.

348. Roover (R. de), San Bernardino of Siena and SantAntonino of Florence, the
Two Great Economic Thinkers of the Middle Ages, Boston (Mass.), 1967.

349. Sapori (A.), “L’Attendibilità di Alcune Testimonianze Cronistiche deli


Economia Medievale”, em Studi di Storia Economica Medievale, Florença, 2a
ed., 1946, pp. 127-135.

350. Toussaert (J.), Le Sentiment Religieux en Flandre à Ia Fin du Moyen Age,


Paris, 1960.

351. Valéry (P.), Introduction à la Méthode de Léonard de Vinci, Paris, 1919 [de
fato, data de 1894],

Complementos
352. Doumerc (B.), “La Crise Structurelle de la Marine Vénitienne au XVe
Siècle: Le Problème du Retard des Mude". em Annales ESC. mai.-jun. de 1985,
pp. 605-623.
(A observação rigorosa dos prazos de navegação era capital para o comércio
veneziano; ora, ela é cada vez menos assegurada no século XV, fato que a coloca
em relação com a transformação dos interesses da aristocracia, que se volta para
a exploração da terra firme.)

353. Rigaudière (A.), “Le Financement des Fortifications Urbaines en Fran-ce


du Milieu do XIVe Siècle à la Fin du XVe Siècle”, em Revue Histo-rique, 553,
jan.-mar. de 1985, pp. 19-95.

(Bom estudo das conseqüências para as finanças urbanas da necessidade de


conservar as muralhas, em ligação com a guerra.)

Você também pode gostar